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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Enrique Serra Padrós
Como el Uruguay no hay...
TERROR DE ESTADO E SEGURANÇA NACIONAL
Uruguai (1968-1985): do Pachecato à Ditadura Civil-Militar
Tomo II
Porto Alegre, 2005
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434
SUMÁRIO
TOMO II
Capítulo 5 - DITADURA MILITAR E TERROR DE ESTADO
INSTITUÍDO ..................................................................................
441
5.1 - A ABRANGÊNCIA DO TERROR DE ESTADO........................................................... 443
5.2 - A LEGISLAÇÃO REPRESSIVA..................................................................................... 448
5.3 - A JUSTIÇA MILITAR E A MILITARIZAÇÃO DA JUSTIÇA..................................... 470
5.4 - REPRESSÃO E CONTROLE CULTURAL.................................................................... 488
5.5 - REPRESSÃO E MILITARIZAÇÃO DO ENSINO......................................................... 509
Capítulo 6 - MODALIDADES PARTICULARES DO TERROR DE
ESTADO URUGUAIO ...................................................................
539
6.1 - O “GRANDE ENCARCERAMENTO”........................................................................... 541
6.2 - A POLÍTICA DOS REFÉNS............................................................................................ 563
6.3 - A POLÍTICA DA TORTURA MASSIFICADA.............................................................. 582
Capítulo 7 - A POLÍTICA DOS DESAPARECIMENTOS E O TERROR
DE ESTADO ...................................................................................
613
7.1 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA POLÍTICA DE DESAPARECIMENTOS......... 613
7.1.1 - Um caso em aberto: os “desaparecidos” da Espanha franquista..................................... 615
7.1.2 - O Decreto Noite e Nevoeiro nazista............................................................................... 618
7.1.3 - A Batalha de Argel: a repressão colonial francesa......................................................... 628
7.1.4 - “Banhos de Sangue” e desaparecimentos no Vietnã....................................................... 635
7.2 - A METODOLOGIA DOS DESAPARECIMENTOS...................................................... 640
7.2.1 - O conceito de desaparecido............................................................................................ 640
7.2.2 - O desaparecimento como sistema................................................................................... 653
7.3 - O DESAPARECIMENTO COMO PRÁTICA DO TERROR DE ESTADO.................. 672
7.3.1 - Os desaparecidos uruguaios............................................................................................ 676
7.3.2 - A dinâmica dos desaparecimentos no Uruguai............................................................... 683
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435
Capítulo 8 - CONEXÕES EXTERNAS: A COORDENAÇÃO
REPRESSIVA..................................................................................
702
8.1 - A REPRESSÃO EXTRATERRITORIAL........................................................................ 704
8.2 - CONEXÕES ANTERIORES ÀS DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONAL........ 708
8.3 - O URUGUAI NO MARCO DA OPERAÇÃO CONDOR............................................... 715
8.4 - NO “OLHO DO FURACÃO”: URUGUAIOS REPRIMIDOS NO
EXTERIOR, ESTRANGEIROS REPRIMIDOS NO URUGUAI....................................
734
8.4.1 - Coordenação repressiva em Porto Alegre: “o caso Lilian – Universindo”..................... 755
8.5 - A POLÍTICA DE APROPRIAÇÃO DE CRIANÇAS...................................................... 766
8.6 - OS ESTADOS UNIDOS DIANTE DA INTERNACIONALIZAÇÃO
REPRESSIVA...................................................................................................................
790
CONCLUSÃO........................................................................................................ 807
ARQUIVOS E FONTES CONSULTADAS.......................................................... 840
436
LISTA DE SIGLAS
AAA (ou Triple A): Alianza Anticomunista Argentina - (AR).
ACNUR: Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
AEBU: Associación de Empleados Bancários del Uruguay - (UY)
AFE: Administración de Ferrocarriles del Estado - (UY)
AI: Acto Institucional - (UY)
AI-5: Ato Institucional N° 5 - (BR)
AID: Agência Internacional de Desenvolvimento - (EUA)
ALN: Ação Libertadora Nacional - (BR)
ALPRO: Aliança para o Progresso - (EUA)
ANCAP: Administración Nacional de Combustibles, Álcohol y Portland - (UY)
ANTEL: Administración Nacional de Telecomunicaciones - (UY)
ASCEEP: Asociación Social y Cultural de Estudiantes de la Enseñanza Pública - (UY)
CDPPU: Comité de Defensa por los Prisioneros Políticos del Uruguay - (UY)
CIA: Agência Central de Inteligência - (EUA)
CIDE: Comisión de Inversiones y Desarrollo Económico - (UY)
CIEX: Centro de Informação do Exército (BR)
CIOSL: Confederación Internacional de Organizaciones Sindicales Libres
CMI: Complexo Militar-Industrial - (EUA)
CNT: Convención Nacional de Trabajadores - (UY)
COHA: Council on Hemispheric Affairs - (EUA)
CONADEP: Comisión Nacional sobre el Desaparecimiento de Personas - (AR)
CONAE: Consejo Nacional de Educación - (UY)
CONSUPEN: Consejo Superior de Enseñanza - (UY)
437
COSENA: Consejo de Seguridad Nacional - (UY)
CSU: Confederación Sindical del Uruguay - (UY)
DII: Departamento de Información e Inteligencia - (UY)
DINA: Dirección de Inteligencia Nacional - (CH)
DINARP: Dirección Nacional de Relaciones Públicas - (UY)
DOP: Departamento de Orden Político (BO)
DOPS: Departamento de Ordem Política e Social - (BR)
DSN: Doutrina de Segurança Nacional
ERP: Ejército Revolucionario del Pueblo - (AR)
ESEDENA: Escuela Superior de Seguridad y Defensa Nacional - (UY)
ESMA: Escuela de Mecánica de la Armada - (AR)
ESMACO: Estado Mayor Conjunto - (UY)
ESNI: Escola Nacional de Informações (BR)
EUA: Estados Unidos da América
FARO: Frente Armado de Revolución Oriental - (UY)
FAU: Federación Anarquista Uruguaya - (UY)
FBI: Departamento Federal de Investigações - (EUA)
FEUU: Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay - (UY)
FIDEL: Frente Izquierdista de Liberación - (UY)
FLN: Frente de Libertação Nacional - (Argélia)
FUSNA: Fusileros Navales - (UY)
GAU: Grupos de Acción Unificadora - (UY)
ICEX: Programa de Coordenação e de Exploração da Informação - (EUA)
IPA: Academia Internacional de Polícia - (EUA)
JCJ: Junta de Comandantes en Jefe - (UY)
438
JCR: Junta Coordenadora Revolucionária
JID: Junta Interamericana de Defesa
JUP: Juventud Uruguaya de Pié - (UY)
MAP: Programa de Assistência Militar - (EUA)
MAPU: Movimiento de Acción Popular Uruguaya - (UY)
MDB: Movimento Democrático Brasileiro - (BR)
MILGP: Grupo Militar - (EUA)
MIR: Movimiento de Izquierda Revolucionaria - (CH)
MJDH: Movimento de Justiça e Direitos Humanos - (BR)
MLN (ou MLN-T): Movimiento de Liberación Nacional - Tupamaros - (UY)
MPS: Medidas Prontas de Seguridad - (UY)
MRO: Movimiento Revolucionario Oriental - (UY)
NN: Nacht und Nebel (Noite e Nevoeiro) - (Alemanha Nazista). Também: Ningún nombre
(corpo sem identificação)
NSC: National Security Council (Conselho de Segurança Nacional) - (EUA)
OAB: Ordem dos Advogados do Brasil - (BR)
OBAN: Operação Bandeirantes - (BR)
OCOA: Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas - (UY)
OEA: Organização dos Estados Americanos
OIT: Organização Internacional do Trabalho
OLAS: Organização Latino-Americana de Solidariedade
ONU: Organização das Nações Unidas
OPR 33: Organización Popular Revolucionária - (UY)
ORIT: Organização Regional Interamericana do Trabalho
OSE: Obras Sanitarias del Estado - (UY)
439
PCU: Partido Comunista del Uruguay - (UY)
PDC: Partido Demócrata Cristiano - (UY)
PIT: Plenario Intersindical de Trabajadores - (UY)
PSP: Programa de Segurança Pública - (EUA)
PVP: Partido por la Victoria del Pueblo - (UY)
RNS: Registro Nacional de Sindicatos - (UY)
ROE: Resistencia Obrera Estudantil - (UY)
RUSHA: Departamento Superior da Raça e Povoamento - (Alemanha Nazista)
SA: Tropas de Assalto - (Alemanha Nazista)
SERPAJ: Servicio Paz y Justicia - (UY)
SID: Servicio de Inteligencia de Defensa - (UY)
SIDE: Servicio de Inteligencia del Estado - (AR)
SIJAU: Secretariado Internacional de Juristas por la Amnistía en el Uruguay - (UY)
SN: Segurança Nacional
SNI: Serviço Nacional de Informação - (BR)
SOPS: Seção de Ordem Político e Social - (BR)
SS: Tropas de Proteção - (Alemanha Nazista)
SUNCA: Sindicato Único Nacional de la Construcción y Afines - (UY)
TAMU: Transporte Aéreo Militar Uruguayo - (UY)
TDE: Terror de Estado
TIAR: Tratado Interamericano de Assistência Recíproca
UGT: Unión General de los Trabajadores - (UY)
UNESCO: United Nations Educational, Scientifc and Cultural Organitation
UTE: Usinas y Teléfonos del Estado - (UY)
UTU: Universidad del Trabajo - (UY)
440
URSS: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
VCI: Viet Cong Infraestrutura - (EUA)
VPR: Vanguarda Popular Revolucionaria - (BR)
441
CAPÍTULO 5
DITADURA CIVIL-MILITAR E
TERROR DE ESTADO INSTITUÍDO
[...] vos no sos guerrillero, pero sos algo peor:
[...] les hacés creer a los negros que pueden escuchar a Beethoven.
[...] A vos te formaron para tocar para nosotros y elegiste la negrada.
Coronel Nino Gavazzo ao pianista Miguel Angel Estrella
1
Aún cuando la dictadura no dure más de cinco años, sus consecuencias sobre el nivel
educacional del país, se sentirán por lo menos, durante 20 años.
2
A modalidade repressiva implementada pela ditadura de Segurança Nacional (SN)
uruguaia não teve o impacto do bombardeio do Palácio de La Moneda pelas forças golpistas
no Chile, nem a magnitude dos milhares de desaparecidos das Juntas Militares argentinas.
Entretanto, a ditadura militar no Uruguai foi muito mais abrangente: “Todo lo observable fue
observado desde el poder.”
3
Promoveu, com sofisticação singular, uma repressão progressiva,
silenciosa e seletiva, atingindo um controle quase total da sociedade, chegando inclusive a
classificar a população em categorias de acordo com a periculosidade, segundo critérios
estabelecidos pelas Forças Armadas.
4
O país foi “ocupado pelo próprio Exército.” Nunca
antes o cidadão uruguaio se sentiu tão observado, espiado, controlado em todos seus passos:
no bairro, no centro de estudos, no lugar de trabalho, nos meios de transporte, em qualquer
lugar público, na igreja, no hospital.
O aparato repressivo uruguaio apresentou algumas características especiais. Em
primeiro lugar, foi suficientemente abrangente e eficiente para derrotar as organizações
revolucionárias (antes até do próprio golpe de Estado, em 1973) e para desarticular um
movimento popular de grande capacidade de mobilização e tradição combativa. Em segundo
1
Página 12, 12/01/03.
2
URUGUAY 1973-1978. Informe presentado por la OIP y la FISA e la Conferencia General de la UNESCO en
Paris, 1978. p. 24.
3
CAETANO, Gerardo; RILLA, José. Breve historia de la dictadura. 2ª ed. Montevideo: Banda Oriental, 1998.
p. 168.
4
IEPALA. Uruguay. Seguridad nacional y cárceles políticas. Madrid: IEPALA Editorial, 1984.
442
lugar, procurou estabelecer um caráter de (pseudo) legalidade para evitar ou diluir a rejeição
da tradição cívico-liberal. Em terceiro lugar, assumiu, como modalidade primordial de
repressão massiva, a prisão política prolongada. Sob os desígnios do Estado de Segurança
Nacional, toda sociedade foi atingida através de mecanismos aplicados de forma quase
ilimitada, estimulando o medo ao regime. Não se tratou da violência perpetrada por
funcionários isolados, senão de mecanismos planejados e aplicados sistemática e
organicamente a partir da própria estrutura de poder estatal, diante da qual não cabia discutir a
respeito dos direitos e das garantias individuais ou coletivas.
5
Em realidade, a sociedade uruguaia, quase como um todo, tornou-se refém desse
sistema:
Todos estábamos fichados, clasificados y vigilados. Un “Certificado de Fe
Democrática” conseguido según la categoría o casillero en que uno estaba,
regía los destinos de esa persona para conseguir empleo o perderlo, salir o
entrar en el país, tener más o menos vigilada su vida [...]. Todos los
uruguayos fuimos sometidos al doloroso sentimiento de estar impotentes e
inermes ante una voluntad despótica y sin control. [...] Esa fue nuestra guerra
[...]. Una guerra no documentada, sin discriminar enemigos, en la que la
inmoralidad, el desborde ético y el crímen se confundían con los actos de
servicio, la defensa de la seguridad nacional y el patriotismo.
6
A aplicação ampla, diversificada e contundente das medidas repressivas gerou uma
condição de insegurança profunda, combinada com o reconhecimento da impunidade que se
prolongou durante o auge da ditadura. A lógica repressiva implicou em que o repressor nunca
explicitasse o objeto da sua fúria. Desta forma, a imprecisão sobre as regras e os
comportamentos desejados, por parte da população, gerou a incerteza e a insegurança do
temor do ilícito por falta de informações propositalmente sonegadas desde o centro do poder.
7
A ação repressiva, durante um longo período, inibiu a população, que sofreu seu
impacto indireto. Esta constatou a onipotência e o alcance ilimitado de uma violência estatal
paralisante. Diante da desconfiança de todos e desinformada sobre os acontecimentos, a
população tendeu ao isolamento individual. O terror induziu a uma espécie de amnésia, de
“esquecimento social”, negação do que se conhecia e desejo de não querer saber mais do que
se passava frente à constatação de que não se podia agir. Sem dúvida, situações onde o saber
podia ser fonte de angústia, de remorso, de culpabilidade. Dupla culpabilidade: frente às
5
BAUMGARTNER, José Luis; DURAN MATOS, Jorge; MAZZEO, Mario. Os desaparecidos. A história da
repressão no Uruguai. Porto Alegre: Tchê, 1987. p. 106.
6
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Informe Sobre la Violación a los Derechos Humanos (1972-1985).
Montevideo: SERPAJ, 1989. p. 7.
7
CAETANO; RILLA, op. cit., p. 168.
443
vítimas, por não poder defendê-las, e frente aos victimarios, porque seu testemunho, que
poderia incriminá-los, era interditado.
8
O cúmulo é que, enquanto isso acontecia à sombra do
Terror de Estado (TDE), promovia-se a abertura da economia nacional ao capital
internacional, o crescimento da dívida externa e o aumento da desigualdade social. As
manifestações de descontentamento em relação a isso estavam proibidas.
O silêncio social resultante não era produto de um vazio de idéias, senão o produto
de uma política estatal de intimidação coletiva. Tal política, além dos mecanismos coercitivos
mais óbvios, implementava um conjunto de medidas que estruturavam uma intensa atividade
propagandística, a qual não era indiferente a uma atividade psicológica de massas destinada a
produzir profundas modificações nos sistemas de idéias e valores vigentes. Quando se dava
informação, omitia-se o essencial. Intentou-se produzir, no corpo social, um efeito combinado
de terror, paralisia e consenso, efeito que garantisse a manutenção do status quo. A introjeção
do silêncio induzido, por amplos setores da sociedade, foi um dos comportamentos coletivos
estimulados e desejados pela ditadura.
9
O silêncio, resíduo direto da censura e da auto-
censura, acabou sendo, mesmo que indiretamente, uma forma de consentimento da repressão
estatal.
10
5.1 - A ABRANGÊNCIA DO TERROR DE ESTADO
O desencadeamento do TDE como um sistema de dominação ocorreu paralelamente
à ascensão das Forças Armadas no cenário político. Isto significou que, desde os últimos anos
da década de 60, houve uma escalada repressiva que culminou, em junho de 1973, com o
golpe promovido pelo presidente Bordaberry e pelos militares. Dentro desse processo, foram
momentos importantes o decreto do Poder Executivo criando as Fuerzas Conjuntas, com seu
respectivo Estado Mayor Conjunto (ESMACO), e a Junta de Comandantes en Jefe (JCJ), com
a incumbência de dirigir a “luta anti-subversiva” (setembro de 1971) e o “Estado de Guerra
interna” legitimado pelo Parlamento (abril de 1972). Como já foi visto, todos os recursos
materiais, humanos e estratégicos do Estado foram direcionados ao combate à guerrilha
tupamara e os setores populares foram mobilizados na luta contra uma crise sócio-econômica
8
IEPALA. Uruguay. Seguridad nacional y cárceles políticas. Madrid: IEPALA Editorial, 1984. p. 146.
9
KORDON, Diana; EDELMAN, Lucila. Efectos psicológicos de la represión política. II. In: KORDON, D.;
EDELMAN, L. I.; Equipo de Asistencia Psicológica de Madres de Plaza de Mayo. Efectos psicológicos de la
represión política. Buenos Aires: Sudamericana/Planeta, 1987. p. 152.
10
Seminário Internacional sobre: Consecuencias de la Represión en el Cono Sur. Sus efectos médicos,
444
que não recuava.
O golpe de Estado de 1973 foi o produto lógico desse processo e deu início a uma
intervenção em todas as áreas do espaço político, econômico, social e cultural do país. Uma
tendência de militarização da sociedade, segundo os padrões da Doutrina de Segurança
Nacional (DSN), ficava cada vez mais visível. A sociedade civil sofreu a imposição dos
princípios de hierarquia, obediência, disciplina e subordinação, entre outros próprios da
disciplina militar.
11
Assim, como em outros países da região, a incapacidade da burguesia e dos setores
oligárquicos de reconverter e adequar, com estabilidade política, a estrutura produtiva às
novas necessidades do capitalismo, levou à ruptura constitucional da democracia. Dito de
outro modo, a fragilidade econômica do país era resultado da crise do modelo agro-exportador
e da reduzida industrialização - que ainda assim foi desmantelada. Além disso, deve-se citar a
política de privatização e desnacionalização da economia. Associado ao novo modelo de
acumulação, o Estado atuou como agente primordial para a consolidação de tal política. Nesse
sentido, várias medidas foram tomadas, entre elas: o crescimento dos impostos indiretos, a
redução dos gastos em políticas públicas e o estímulo da produção voltada à exportação. Esta
última medida contribuiu para aumentar a dependência econômica do mercado externo.
A partir da aplicação do Estado de Guerra Interno (1972), o poder militar ocupou as
ruas ostensivamente e multiplicou as ações de busca por toda a capital e principais cidades do
interior do país. Prisões massivas foram marcadas pelo recrudescimento de um clima de medo
e de violência. O golpe militar garantiu a permanência das medidas de exceção; mais do que
isso, o Estado se tornou um Estado de exceção.
O Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MLN) se tornou o maior alvo das
Forças Armadas. Entretanto, é importante reafirmar que, no momento do golpe de Estado, o
MLN já havia sido militarmente derrotado, o que não evitou a manipulação grosseira da
ameaça produzida pelos “agentes da subversão”, usada como justificativa do golpe, do
fechamento e da dissolução do Parlamento, dos partidos e dos sindicatos, da proibição das
atividades políticas e da proscrição de organizações e de indivíduos.
12
As forças militares, ao vasculhar o país inteiro atrás de “células subversivas”,
acabaram com a privacidade das pessoas. Essas atitudes foram respaldadas pela “ficção da
luta contra a sedição”.
13
A leitura imposta à sociedade pelas Forças Armadas, a respeito da
psicológicos y sociales. Conclusiones. SERPAJ. Balneario Solís/Uruguay, 1986.
11
IEPALA, op. cit., p. 13.
12
BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 158.
13
ROUQUIÉ, Alain. O Estado militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984. p. 301.
445
necessidade histórica de uma ação corretiva para evitar que o país caísse em mãos
subversivas, encontra eco ainda hoje, como transparece no texto de González Lapeyre:
Al caer las estructuras de la democracia liberal, con instituciones obsoletas
de las que ellos [MLN] sacaban provecho y ser sustituídas por otras más
eficaces, fueron prácticamente aniquilados em 1973. [...] Sin embargo, las
semillas que habían sembrado fueron germinando, no sólo en el Uruguay
donde surgieron otros movimentos del mismo tipo pero con distintas bases
ideológicas, sino también en otras tierras, con su secuela de destrucción,
terror y muerte.
14
A bem da verdade, deve-se ressaltar que, após instalada a ditadura, não surgiu
nenhuma experiência armada nem de longe semelhante aos tupamaros. Inclusive, as
organizações citadas pelo autor, em uma nota de rodapé (Frente Armado de Revolución
Oriental, Grupos de Acción Unificada, Organización Popular Revolucionaria 33 Orientales),
a partir de documentos das próprias Forças Armadas, foram combatidas simultaneamente aos
tupamaros. Mesmo se assim não fosse, a argumentação da necessidade do golpe se esvai
diante do fato de que o poder daquelas era reconhecidamente muito inferior ao do MLN, e que
este já estava derrotado. Observa-se o que diz a respeito o estudo do SERPAJ: “Al contrario
de lo que sostuvieron las FFAA, [...] tanto el MLN como los demás grupos armados estaban
casi plenamente aniquilados al momento en que se produjo el golpe de Estado en junio de
1973 [...].”
15
Logo, a “guerra interna” contra o “inimigo interno” teve um grau de elasticidade
significativo. Em um documento apresentado no Tribunal Permanente dos Povos, pela seção
uruguaia, foram elencados dados que permitem uma melhor apreciação da dimensão
repressiva durante o período da ditadura. Assim, foi denunciado que no Uruguai:
- entre 1968 e 1978, foram detidos, em prisões e quartéis, cerca de 55 mil pessoas
(uma em cada cinqüenta habitantes);
- ocorreu a maior relação de presos políticos, em números proporcionais e em relação
a sua população;
- entre 1973 e 1978, desapareceram, na Argentina, no Paraguai e no Chile, cerca de
150 cidadãos uruguaios, entre os quais oito crianças e várias mulheres grávidas (das
quais três, tiveram seus filhos em cativeiro), com indícios de co-participação de
comandos uruguaios;
14
GONZÁLEZ LAPEYRE, Edison. Violencia y Terrorismo. Montevideo: Arca, 1995. p. 118.
15
SERPAJ, op. cit., p. 66.
446
- ocorreram inúmeros assassinatos de militantes estudantis, sindicais e políticos,
crimes que permanecem impunes;
- entre 1972 e 1984, quase 100 presos políticos morreram na prisão;
- durante a ditadura, ocorreram 10 mil cassações, sobretudo na educação;
- mais de 300 mil cidadãos exilaram-se por motivos políticos e econômicos;
- mais de 15 mil cidadãos foram privados de seus direitos políticos.
16
São dados exemplares quanto à dimensão e ao grau de complexidade e de articulação
da estrutura coercitiva do Estado. Pode-se imaginar o tamanho das redes de controle e de
repressão necessárias para tal fim. Logo, não há exagero na expressão “grande
encarceramento”. Isso aparece, reiteradamente, como uma das marcas mais características da
modalidade que adquiriu o TDE no Uruguai: “Se estivéssemos avaliando o percentual da
população que foi detida, interrogada e intimidada pelas forças de segurança, o Uruguai ocupa
o primeiro lugar.”
17
As cifras apresentadas na Organização das Nações Unidas (ONU), no
começo dos anos 80, permitiram afirmar que “um em cada 600 uruguaios estava na prisão por
delito de oposição.”
18
É possível afirmar ainda que ocorreu um visível enquadramento do sistema
educacional nos seus diferentes níveis. Além disso, foram vetados espetáculos, publicações,
músicas, canções, poesias, etc. O sistema de correio foi amplamente controlado. Através de
uma imensa rede de propaganda e alicerçado pelo medo, o sistema visou o controle da
sociedade e o incentivo à delação.
Outra dimensão do impacto que a imposição de uma política de TDE produziu sobre
o tecido social relacionou-se à repressão cultural. Paralelamente à intervenção sobre o plano
político-institucional e sobre as organizações sociais, milhares de livros foram apreendidos,
dezenas de meios de comunicação passaram a ser vigiados e a censura silenciou ou retalhou
produções musicais, literárias e teatrais, entre outras. Editoras foram fechadas e outras tantas
sofreram rigoroso controle sobre o que podiam ou não publicar logo após a deflagração do
golpe de Estado, enquanto estoques de livros proibidos foram destruídos e muitos editores,
autores e tradutores foram presos e torturados.
O mapeamento geral dos alvos dissimulados no discurso do regime foi completado
16
Marco histórico de la Impunidad en el Uruguay. In: TRIBUNAL PERMANENTE DE LOS PUEBLOS.
SESIÓN URUGUAY 1990. La Impunidad en América Latina. Sesión Uruguay. Abril de 1990. p. 11-12.
17
STEPAN, Alfred. Repensando a los militares en política. Cono Sur: un análisis comparado. Buenos Aires:
Planeta, 1988.
18
Subcomissão para a Prevenção das Discriminações e a Proteção das Minorias – ONU, apud ROUQUIÉ, op.
447
com o setor da educação, um dos objetivos centrais da prática do TDE. A violência instaurada
contra as instituições de ensino, os quadros docentes e os estudantes resultou do pretendido
enquadramento da ativação consistente do movimento estudantil e do posicionamento crítico
de grande parte do professorado. Por outro lado, tomou-se a iniciativa de reordenar
profundamente a estrutura de ensino em todos os níveis, para adequá-la às novas orientações
da DSN.
A Lei de Educação, aprovada nos marcos das Medidas Prontas de Seguridad (MPS)
e do Estado de Guerra Interno, aplicada globalmente a partir do golpe de Estado, serviu de
base referencial às arbitrariedades cometidas no campo da educação. A criação do Consejo
Nacional de Enseñanza (CONAE) acabava com a tradição de autonomia do ensino diante do
Estado.
Faz parte da lógica deste sistema, na área do ensino, o fomento de ações inibitórias,
entre as quais podem ser destacadas:
[...] a eliminação da autonomia acadêmica e da liberdade de cátedra, a
exclusão dos corpos docentes dos indivíduos considerados ideologicamente
adversos (impedindo-lhes, em certos casos, o exercício de qualquer tipo de
docência, inclusive a privada) e a expulsão de estudantes militantes ou com
capacidade para liderar grupos em confronto com o sistema. Entre as ações
de reformulação merecem ser citadas a restrição daqueles campos de
conhecimento ideológico [...] e a modificação dos conteúdos em certas
disciplinas.
19
Carlos Rama
20
definiu o estilo educacional relacionado aos regimes militares do
período como sendo um “estilo de congelamento político”, definição que se conecta com a
idéia de desativação política de Guillermo O’Donnell.
21
Frente ao enquadramento da cultura e do reordenamento do ensino, a ditadura de SN,
ao desconsiderar qualquer possibilidade de autonomia, por mais fragmentada que fosse,
demonstrou reconhecer a importância estratégica que tal esfera possuía para a desativação da
resistência e para a conquista dos “corações e mentes”. Nesse sentido, nenhum esforço foi
poupado. A simbiose entre o TDE e as formas coercitivas mais tradicionais de intervenção no
ensino e na educação, por exemplo, possuíram um caráter orgânico. Ao ponto que, entre as
principais vítimas do regime, estavam o professor Julio Castro, reconhecido
cit., p. 266.
19
RAMA, Carlos. Estilos educacionais. Educação, estrutura social e estilos de desenvolvimento. In: RAMA,
Carlos, et al. Desenvolvimiento. Educação na América Latina. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986.
p. 77.
20
Idem.
21
O’DONNELL, Guillermo. Tensões do Estado Autoritário-Burocrático e a Questão da democracia. In:
COLLIER, David (Org.). O Novo Autoritarismo na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.
448
internacionalmente pelo seu trabalho junto a United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization (UNESCO), desaparecido em agosto de 1977, e José Luis Massera,
matemático mundialmente consagrado nos meios científicos especializados (preso político
durante quase toda a ditadura). Diante deste quadro, não surpreende a previsão feita, em 1978,
numa denúncia junto a UNESCO, sobre o grau de deterioração das condições do ensino no
país: “Aún cuando la dictadura no dure más de cinco años, sus consecuencias sobre el nivel
educacional del país, se sentirán por lo menos, durante 20 años”.
22
5.2 - A LEGISLAÇÃO REPRESSIVA
Em 1990, a sessão uruguaia do Tribunal Permanente dos Povos emitiu uma
conclusão categórica sobre o regime militar: as Forças Armadas haviam mudado seu papel
constitucional histórico e se haviam transformado em forças de ocupação, governo e
administração do país.
Até o governo Pacheco Areco, as Forças Armadas haviam agido dentro dos limites
institucionais demarcados pela Constituição e pela Ley Orgánica Militar de 1941,
particularmente com a obrigação da proteção das fronteiras nacionais. Entretanto, desde o
imediato pós-guerra, foram assimilando orientações originadas nas reuniões da Junta Inter-
americana de Defesa, nas Conferências de Exército, Marinha e Força Aérea hemisféricas e, é
claro, do relacionamento global com o Pentágono. No início dos anos 60, as Forças Armadas
tomaram um protagonismo interno mais intenso a partir das atividades vinculadas à “ação
cívica”, sob o influxo do governo Kennedy e da Aliança para o Progresso, assumindo funções
e realizando tarefas que beneficiassem comunidades geograficamente marginalizadas ou
participando de ações de interesse do bem comum. Assim, por exemplo, abriram caminhos e
estradas, construíram pontes, transportaram passageiros para regiões onde inexistiam
comunicações, socorreram populações atingidas por desastres naturais, etc. Justamente, o
general Gestido havia sido um dos maiores incentivadores dessas atividades para tornar as
Forças Armadas mais visíveis e integradas ao esforço estatal de atendimento de demandas
sociais. Iniciativas de “ação cívica” faziam parte de uma estratégia para tornar mais simpática
a presença militar e obter a adesão da população diante de ameaças eventuais ou concretas de
274.
22
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 24.
449
focos “subversivos”.
Como já foi visto, a opção do governo Pacheco Areco de enfrentar a crise social e as
mobilizações populares mediante mecanismos autoritários intensificou o confronto com as
organizações armadas e com os movimentos sociais.
As MPS, de caráter emergencial, haviam sido, entre 1968 e 1971, um primeiro marco
jurídico utilizado pelo governo para aumentar o rigor repressivo sob a cobertura
constitucional. Entretanto, inúmeras irregularidades acompanharam sua aplicação massiva,
principalmente o fato de tornar-se um recurso permanente quando a legislação, sempre sob
fiscalização do Parlamento, reforçava seu caráter emergencial e transitório. A multiplicação
das denúncias de irregularidades levou o governo, na administração Bordaberry, a procurar
outras salvaguardas para impedir o recuo dos excessos repressivos. Para as Forças Armadas,
definitivamente comprometidas no combate e na destruição da subversão, era imprescindível
contar com um respaldo normativo que justificasse e legitimasse sua atuação. Era necessário
manter a fachada de legalidade, até pela significativa tradição militar de respeito à
Constituição e à Lei. Foi assim que, no apogeu do combate aos tupamaros, obtiveram o
Estado de Guerra Interno, aprovado pelo Parlamento e, posteriormente, a Ley de Seguridad
del Estado y el Orden Interno (mais conhecida como Ley de Seguridad del Estado ou Ley
14.068), complemento indispensável para colocar em mãos dos militares, via Justiça Militar,
um sistema de segurança permanente para os operativos repressivos.
Uma face particular do conflito foi o confronto do comando militar com o
Parlamento, onde alguns setores da oposição tornaram-se caixa de ressonância das denúncias
contra os excessos repressivos cometidos pelo Poder Executivo. Por sua vez, esses
legisladores eram a principal fonte de informação da imprensa não governista, que sofria,
cada vez mais, o cerceamento da liberdade de expressão. O governo e as Forças Armadas
passaram a ter o entendimento de que informar a opinião pública sobre as ações de segurança,
realçando as denúncias sobre os excessos repressivos, o método de interrogatório ou o
seqüestro de suspeitos, prejudicava a tarefa contra-revolucionária e a imagem dos militares,
gerando simpatia ou solidariedade com a “subversão”, o Parlamento e a imprensa de
oposição. Consideravam que um princípio fundamental do combate à “subversão” estava
sendo atingido: o segredo militar. Assim, intensificaram uma campanha de propaganda nos
meios de comunicação alinhados com eles e assumiram, publicamente, a postura de
desconhecer ou negar as acusações e as evidências contra o crescente desrespeito
constitucional. Foi o que ocorreu quando surgiram rumores de conversações, com lideranças
do MLN presas, sobre ilícitos econômicos, ou quando da ingerência dos chefes militares na
450
insubordinação de fevereiro de 1973, no impasse onde o Parlamento se mostrou inoperante e
o presidente Bordaberry, conivente.
23
As Forças Armadas pressionaram permanentemente o presidente Bordaberry para
obter novas concessões, mesmo atropelando as diretrizes constitucionais. Nesse sentido, no
mês de fevereiro, antes do golpe de Estado de junho de 1973, do fechamento do Parlamento e
da legalidade constitucional virar peça de ficção do discurso oficial,
24
como resultado da
queda de braço com Bordaberry, os militares impuseram a criação do Consejo de Seguridad
Nacional (COSENA), órgão de assessoramento do Poder Executivo (decreto 63/973 do Poder
Executivo de 23/02/73). O documento oficial que o normatizou foi o primeiro que expressou
o cerne da DSN:
[...] se entiende por seguridad nacional el estado según el cual el patrimonio
nacional en todas sus formas y el proceso de desarrollo hacia los objetivos
nacionales se encuentran a cubierto de interferencias o agresiones.
25
A justificativa para a criação do COSENA era explicitado no item 5º do decreto
citado:
5º) Que es indispensable la participación de las Fuerzas Armadas en esta
tarea, conforme el criterio de que, según su capacidad técnica y sus
responsabilidades constitucionales y legales han de brindar seguridad al
desarrollo nacional, además de su participación coordinada en proyectos
específicos de desarrollo para mejor cumplimiento de los objetivos señalados
por el Poder Ejecutivo.
26
A partir do COSENA, o alto comando militar teve acesso irrestrito à Casa de
Governo, participando de reuniões secretas e tendo conexão direta com a Junta de
Comandantes en Jefe e o ESMACO. O COSENA discutia e afixava os marcos normativos da
DSN, que depois eram apresentados e aprovados pelo Poder Executivo.
Um passo importante na escalada da ordem militar foi a aprovação da Ley de
Seguridad del Estado (Lei 14.068), em julho de 1972. Antes da sua aprovação e logo após a
posse de Bordaberry, o Poder Executivo havia enviado ao Parlamento um projeto de lei sobre
segurança de Estado, o que demonstra a disposição do novo governo em reforçar
imediatamente a política repressiva em andamento para resolver os impasses sociais e
23
TRIBUNAL PERMANENTE DE LOS PUEBLOS, op. cit., p. 24.
24
Cabe lembrar que as Forças Armadas sempre argumentaram que foi o Poder Executivo (com Pacheco Areco)
que as convocou para assumir a guerra contra a “subversão”, e que foi o presidente Bordaberry quem dissolveu o
Parlamento. Ou seja, na versão oficial daquelas, simplesmente cumpriram ordens da autoridade maior, o
Presidente da República. Quer dizer, desresponsabilizam-se dos acontecimentos dos quais foram protagonistas
essenciais através da velha tese da “obediência devida”.
25
TRIBUNAL PERMANENTE DE LOS PUEBLOS, op. cit., p. 24.
451
políticos existentes. Na alegação ao Parlamento o governo argumentava que era necessário
“preencher os vazios” do sistema normativo. Estes, na prática, eram os obstáculos que a
Constituição impunha à campanha militar desencadeada pelas Forças Armadas, as quais
mencionavam que, na evolução do conflito contra a “subversão”, verificavam a existência de
entraves de ordem diversa (inclusive jurídicos) que dificultavam sua ação e comprometiam
seus resultados.
Na obra Las Fuerzas Armadas al Pueblo Oriental. El Proceso Político, de 1978, a
Junta de Comandantes en Jefe arrolava os dispositivos constitucionais que dificultavam o
combate à “subversão” antes da aprovação da Lei 14.068. Esses dispositivos constituíram os
“vazios normativos”. Entre eles, destacavam-se:
- A obrigatoriedade de colocar o detido a disposição do juiz em 24 horas,
iniciando-se o sumário em até 48 horas (art. 16). Tal dispositivo dificultava o
interrogatório (tempo), a obtenção e o uso da informação recolhida e o segredo do
procedimento (deixando filtrar notícias sobre ações, detenções e material expropriado).
- A impossibilidade de realizar batidas policiais de noite e sempre com a
exigência da ordem judicial (art. 11). Alegava-se que assim os “subversivos” agiam e se
organizavam de noite. Para as batidas, a justiça exigia dados como nome do proprietário
do imóvel e motivações da inspeção domiciliar. Quanto aos prédios públicos, a norma
era imprecisa. Por isso, a falta de agilidade desses procedimentos impedia uma ação
indagatória efetiva.
- A legislação vigente não previa batidas ou inspeções domiciliares massivas
por área, zona ou bairro. Isto facilitava o sistema de alerta do inimigo, que ocorria em
dois âmbitos: o alerta da base (domicílio) e o alerta da zona (bairro).
- As MPS possibilitavam ao preso político optar pelo desterro, podendo voltar
no fim das mesmas. Como não sofria nenhum tipo de vigilância do país que o recebia,
sua volta era facilitada, ainda mais sendo o Uruguai um país de fronteiras abertas.
- As modalidades de liberdade provisória ou condicional previstas em lei (art.
27) permitiam rápida volta do processado ou condenado à luta, tornando ineficiente a
tarefa das forças de repressão. Alegava-se que, na guerra convencional, o prisioneiro era
neutralizado pela sua detenção até o fim das hostilidades. Já na guerra irregular contra a
subversão, o inimigo detido, rapidamente libertado, voltava a atacar as forças da ordem
“no justificándose de esta manera los sacrifícios de vida y sangre exigidos a la fuerza
26
Idem.
452
pública para su captura”.
27
- A garantia constitucional de difusão livre de notícias sobre atividades
subversivas sem censura prévia (Art. 29) era vista como comprometedora da segurança
e do êxito das ações das forças da ordem, vulnerando o segredo e a surpresa da ação.
- O hábeas corpus (art. 17) não podia ser aplicado nos casos de “traição ou
conspiração” e “estado de guerra”. As organizações sediciosas cometiam delito de lesa
nação, conspiravam e configuravam um estado bélico sui generis.
- A proteção à inviabilidade de correspondência e de papéis de particulares (art.
28) também era denunciada com a alegação do uso sistemático dos correios por parte da
“subversão”.
- Os limites existentes - em matéria carcerária -, que impediam a imposição de
tratamento disciplinar especial, e o isolamento - para impedir a coordenação
“subversiva” dentro dos presídios e as fugas massivas decorrentes - eram questionados.
Essas eram algumas das dificuldades de ordem jurídica enfrentadas pelas Forças
Armadas para enfrentar a “subversão”. Acrescentavam-se ainda as críticas que recebiam,
desde o Parlamento, a propaganda favorável à “sedição” na imprensa “penetrada pelo
comunismo internacional” e a indiferença - e até hostilidade - da população.
28
A Ley de Seguridad del Estado corrigia essas incoerências ou inadequações da
norma constitucional diante das demandas dos novos tempos. No fundo, tratava-se de criar
um instrumento jurídico que tornasse permanente as condições do Estado de Guerra Interno
(que só valiam por 30 dias), principalmente, no que dizia respeito ao controle e disposição dos
detidos por razões de segredo ou segurança (ou seja, razões de Estado). Sua definitiva
aprovação, após intenso debate no Parlamento e no meio do colapso do MLN, permitiu que
delitos até então considerados de direito comum passassem à jurisdição militar. Por outro
lado, foram ampliados e legalizados os mecanismos repressivos e aumentadas as penalidades
estabelecidas.
29
O coronel Bolentini afirma que essa foi uma lei imprescindível pois, ao passar os
crimes de lesa-nação à Justiça Militar, estabelecia normas especiais de procedimento e de
garantias para o pessoal envolvido na luta “anti-subversiva”. Destacava também a criação de
27
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al pueblo oriental. T II. El proceso
político. Montevideo, 1978. p. 55.
28
Idem, p. 54-58.
29
NAHUM, Benjamín. Manual de Historia del Uruguay 1903-1990. Montevideo: Banda Oriental, 1995. p.
283.
453
mecanismos que impediam a manutenção ou formação de organizações militares
“subversivas” no interior dos estabelecimentos carcerários. Essa medida era considerada
prioritária para evitar a preservação de comando guerrilheiro paralelo na prisão com
capacidade de continuar liderando a ação dos quadros que permaneciam agindo na
clandestinidade, ou de organizar fugas massivas, como as que vinham desmoralizando o
governo.
30
Oscar Bruschera, testemunha privilegiada dos acontecimentos desde quando escrevia
nas páginas de Marcha, avaliaria, posteriormente, que a transferência do julgamento de civis à
jurisdição militar, essência da Ley de Seguridad del Estado, violentou a Constituição. Sua
argumentação aponta para a inadequação entre competência e fidelidade, da parte dos
magistrados militares, e a falta de garantias e condições mínimas de atuação para a defesa:
Aquí no se trataba de juzgar a un delincuente por un delito que cometió o
que se presume que cometió, por un juez imparcial y técnico, sino por un
subordinado del vencedor, que ejercita la venganza en lugar de la justicia.
31
O fato é que a lei foi aprovada pelo Parlamento com a oposição da Frente Ampla e o
apoio de Ferreira Aldunate, o que foi um tanto surpreendente devido à linha de atuação
política assumida por este após as eleições. Posteriormente, Ferreira Aldunate se arrependeu
de tal votação, o que ficou claro na célebre frase:
Nos equivocamos. Les dimos facultades que no se usaron para aquello que
se pidieron [...] quizás en alguna oportunidad hayamos olvidado que para
imponer la libertad, el arma más poderosa que el hombre ha inventado es la
propia libertad.
32
Sem dúvida, a liberdade, os direitos humanos, os direitos políticos e as garantias
constitucionais eram perdas irreparáveis dentro de um processo que se acelerou entre meados
de 1972 e o golpe de Estado em 1973. Concretizado o golpe, e sob o impacto imediato de uma
repressão sem limites, a sociedade passou a sofrer uma situação de insegurança completa.
Sem Parlamento, com a imposição da Justiça Militar e a rigidez da nova Ley Orgánica Militar
e da Ley de Seguridad del Estado, o sentimento de desamparo foi completo. A perseguição
das referências políticas democráticas, a rigorosa censura, as prisões massivas e o caminho do
exílio marcaram os primeiros anos da ditadura civil-militar de Bordaberry. A Constituição foi
30
CENTRO MILITAR/REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Codigos. Penal Militar/Ley de
Seguridad del Estado/De Organización de los Tribunales Militares/De Procedimento Penal Militar.
Montevideo: 1976. p. 82.
31
BRUSCHERA, O. H. Las decadas infames. Análisis político 1967-1985. Montevideo: Lunardi y Risso,
1986. p. 78.
32
NAHUM, op. cit., p. 283. Frase também citada no capítulo 3.
454
esquecida, sendo eventualmente lembrada quando podia ser instrumentalizada para justificar
ou legitimar argumentações oficiais que redundassem em novas medidas coercitivas e maior
grau de repressão.
Em 1976, iniciou-se a experiência dos Atos Institucionais (AI), espécie de
instrumentos que deveriam pautar uma refundação jurídica e legislativa, visando um
ordenamento institucional interrompido com o golpe de Estado de Bordaberry: em síntese, a
tentativa de consolidação de uma nova ordem. Para tanto, intensificaram-se os estudos que
resultavam em medidas jurídicas que regulamentavam (“enquadravam”) todos os setores da
vida política e social após a conclusão da “política de saneamento”. Era hora do
reordenamento, da refundação, da reconstrução a partir das diretrizes da DSN.
Em realidade, desde o advento das Forças Armadas ao centro das tensões políticas,
desenhara-se, gradativamente, uma malha invisível de proibições, criminalização
retrospectiva e ameaças que geraram um clima de tensão intolerável:
En un país pequeño, donde todo está al alcance, el terror estatal penetró por
todos los poros de la sociedad, estableciendo un certero sistema de vigilancia
policial, fiscalizando y castigando en el ámbito laboral, educativo,
eclesiástico, cultural, social. Em suma, procurando pulverizar todo reducto
autónomo del Estado.
33
Dentro da perspectiva de que os Atos Institucionais fazem parte do esforço jurídico
de reordenamento das relações entre o Estado/Forças Armadas e a sociedade, e da usurpação
do papel do Poder Legislativo por parte do Poder Executivo, comentar-se-ão alguns
mecanismos e aspectos dessa iniciativa de refundação do cenário e da dinâmica política
uruguaia a partir dos preceitos da ordem autoritária.
Os AIs foram instrumentos jurídicos também experimentados em outras ditaduras de
Segurança Nacional do Cone Sul. No Uruguai, foram sancionados como decretos
constitucionais aprovados somente pelo Presidente da República e pelos Ministros do Interior
e de Defesa Nacional, embora tivessem o consenso dos demais integrantes do Poder
Executivo institucionalizado desde o golpe de Estado. É importante frisar que as categorias
Decreto-Constitucional e Ato Institucional inexistiam no direito uruguaio anterior.
Através do Ato Institucional nº 1 (AI-1), de junho de 1976, suspendeu-se a
convocação de eleições gerais previstas constitucionalmente para o fim de novembro daquele
ano. Tal fato foi justificado com a alegação de que o Decreto de 27 de junho de 1973 (data do
golpe de Estado) havia imposto uma ordem institucional transitória que interrompia a
33
SERPAJ, op. cit., p. 346.
455
dinâmica político-partidária e a lógica eleitoral indefinidamente. Naquele momento, afirmava-
se que a suspensão permaneceria assim até futuro pronunciamento do Poder Executivo. Como
o tema eleitoral virara tabu na ordem inaugurada em 1973, a população tinha certa expectativa
do que diriam as Forças Armadas à medida que se aproximava o ano eleitoral. Era evidente,
poucos meses depois do golpe, que não ocorreriam eleições no momento afixado. Porém, não
deixava de ser um alento o fato de que as Forças Armadas pronunciaram-se a respeito no ano
eleitoral. Era um reconhecimento quanto às expectativas da população e quanto ao caráter
transitório da dinâmica imposta em 1973.
Juntamente com o Ato anterior, foi promulgado o AI-2, que fundamentou a
dissolução e o fechamento do Parlamento como sendo prerrogativa do Poder Executivo.
Alegou-se que o Parlamento estava infiltrado pela subversão e bloqueava a ação do governo
para proteger a democracia. O AI-2 criou ainda um Conselho da Nação, que deveria
concentrar o poder eleitoral e o constituinte, localizando-se por cima dos três poderes.
Integrado pelos 25 membros do Conselho de Estado e os 22 da Junta General de Oficiales
Generales, o Conselho da Nação assumiu como competência a nomeação do Presidente da
República,
34
do Presidente e membros do Conselho de Estado, dos Intendentes Municipais,
dos membros da Suprema Corte de Justiça, do Tribunal de lo Contencioso Administrativo e
da Corte Eleitoral. Era função de tal Conselho, também, diante de certas condições, instaurar
juízo político contra o Presidente da República, seus ministros e as autoridades de outras
instituições. A concentração de atribuições de poder eleitoral pelo Conselho da Nação violava
a Constituição ao eliminar:
- o direito de escolha do Presidente e Vice-Presidente da República (Art.
151), dos Intendentes e das Juntas Departamentais (Art. 270) assim como
dos representantes do Parlamento (Art. 88 e 94), através do voto popular e
direto.
- a regulação da designação dos membros da Suprema Corte de Justiça (Art.
236), do Tribunal de lo Contencioso Administrativo (Art. 308) e da Corte
Eleitoral (Art. 324), por parte do Parlamento.
35
Um outro elemento central da reorganização imposta pela nova ordem consistia na
“Reestruturação do Poder Executivo”, objetivo do AI-3, de setembro de 1976. Na sua
essência, consistia no questionamento da separação entre poderes do Estado, especificamente,
a existência de um Poder Judiciário com capacidade de autonomia diante do Poder Executivo.
34
Em caso de ausência do Presidente da República assumia, no seu lugar, o Presidente do Conselho de Estado,
em funções de Vice-Presidente.
35
DERECHOS HUMANOS EN URUGUAY. Actos Institucionales - Comentarios. AI-2.
456
Quando este ato foi aprovado, os militares haviam afastado seu aliado Bordaberry e, embora
mantivessem ainda uma fachada civil na presidência, tratava-se, definitivamente, de uma
ditadura totalmente controlada pelas Forças Armadas. Nesse sentido, a lógica era concentrar
os centros de decisão subordinando hierarquicamente todas as instituições ao poder militar. A
justificativa das Forças Armadas para acabar com o equilíbrio de poderes invertia a tradição
do funcionamento democrático do país:
[...] en nuestro derecho público tradicional há dominado [...] el negativo de
la separación, comprometiéndose la supremacía natural que corresponde al
Ejecutivo como órgano de dirección [...].
36
Ao proporem uma outra interpretação sobre a relação entre os poderes, além de
mostrar uma avaliação negativa dos princípios da separação e do equilíbrio entre os mesmos,
explicitaram uma vontade de permanência que extrapola qualquer entendimento anterior de
uma ação cirúrgica para destruir os germes nocivos presentes no corpo social e uma rápida
retirada após a conclusão da operação saneadora. Por detrás do AI-3, surge a sombra da
refundação da sociedade e do aparato estatal de acordo com os valores da DSN.
O Poder Judiciário já havia sido bastante esvaziado desde a subordinação da Justiça
Civil à Justiça Militar no que dizia respeito a crimes de lesa nação (vagamente explicado nos
interesses da razão de Estado). O que restava de autonomia do Judiciário foi cancelado
quando foi criado o Ministério da Justiça, órgão subordinado ao Poder Executivo. Foi este
órgão que assumiu as relações de ligação entre os Poderes Executivo e Judiciário e demais
entidades jurisdicionais, com exceção da Justiça Militar, subordinada ao Ministério da Defesa
Nacional.
Complementarmente, o AI-3 regulamentava a intervenção nas administrações
municipais institucionalizando uma Junta de Vizinhos cujos membros também passavam pelo
filtro do Conselho da Nação (que os nomeava). Em tese, substituíam as Juntas Departamentais
nas funções legislativas, sensivelmente restringidas, sem debate político e com um papel
quase decorativo. Detalhe importante: simultaneamente, o Poder Executivo suprimia a
autonomia tributária municipal (criação de taxas, impostos e contribuições) e incorporou tal
tarefa diminuindo, ainda mais, as possibilidades de expressão e pressão de uma população
com minguada condição de cidadania. Na prática, esta medida foi mais um exemplo
apontando para o esforço centralizador das instâncias de decisão por parte do Poder
Executivo.
36
Idem, AI-3.
457
O que é essencial no AI-3, a criação do Ministério de Justiça, foi complementado
com o AI-8, pelo qual a Suprema Corte perdeu a condição de nível mais alto de autonomia e
independência do Poder Judiciário para um órgão (Ministério da Justiça) vinculado a um
outro poder (o Executivo). Deixava de existir a independência para o desempenho da função
do magistrado. Desta forma, os resquícios de Justiça Civil foram atrelados àquele ministério,
enquanto a Justiça Militar estava hierarquicamente subordinada ao Ministério de Defesa
Nacional. A conclusão óbvia é o desaparecimento do Poder Judiciário e o atrelamento ao
Poder Executivo, ao qual se subordinavam os Ministérios da Justiça e da Defesa. Na prática, é
necessário precisar que não se tratou só do atrelamento da Justiça ao Poder Executivo, mas
também ao Poder Militar, já que, de fato, era este que controlava o Poder Executivo. Na
avaliação do Secretariado Internacional de Juristas por la Amnistía en el Uruguay (SIJAU),
o AI-8 foi o “[...] golpe de gracia a la independencia de la administración de justicia, al
hacerle perder su anterior calidad de Poder del Estado y al subordinarla en múltiples aspectos
al Ejecutivo, a través del Ministerio de Justicia.”
37
Até então, segundo constava na Constituição, cabia à Suprema Corte de Justiça,
órgão máximo do Poder Judiciário, exercer a superintendência diretiva, corretiva, consultiva e
econômica sobre todos os tribunais. Os membros da Suprema Corte de Justiça (nomeados e
eventualmente substituídos pelo Parlamento) designavam os membros do Tribunal de
Apelaciones (com posterior anuência do Senado), os Juízes Letrados, os Defensores de Ofício,
os Juízes de Paz e todos os funcionários do Poder Judiciário.
Com o AI-8 essa estrutura e hierarquia foi desmanchada. Os membros da Corte de
Justiça (ex-Suprema) passaram a ser designados pelo Conselho da Nação após proposição do
Poder Executivo. A Corte de Justiça manteve a prerrogativa de propor nomes para os cargos
de Juízes e Defensores de Ofício, mas a última palavra passou a ser do Executivo, que podia
aceitá-los ou não: “El Poder Ejecutivo puede nombrar, trasladar o promover [...] a personas
distintas de aquellas comprendidas en propuestas que se le hubiesen formulados.”
38
Ou seja,
“sin necesidad de explicar los motivos por los que se aparta de la recomendación”.
39
Paradoxalmente, o documento expressa uma contradição, pois indica reforçar a
autonomia e independência dos juízes, o que contraria toda a lógica até aqui delineada.
Efetivamente, no “Considerando XV”, consta que
[...] se consagra la inamovilidad de los Jueces para asegurar su completa
37
DERECHOS HUMANOS EN URUGUAY. Op. cit., AI-8.
38
Idem.
39
Idem.
458
independencia, como está aceptado universalmente.
40
Entretanto, logo a seguir, complementa-se:
[...] pero manteniéndose la solución de nuestra Constitución actual, se fija en
período de prueba, un interinato de cuatro años para todos los
nombramientos en la judicatura de primera instancia, como etapa de prueba
que permite valorar la actitud e ideonidad del magistrado.
41
Ou seja, desde aquele momento até julho de 1981, todos os magistrados judiciais
passaram a ter caráter interino: durante esse período, o governo podia examinar seu
comportamento e destituí-los em qualquer momento, sem maiores explicações.
42
A
instabilidade desses funcionários (incluindo juízes) fragilizava a função e mostrava um
retrocesso jurídico que abalava o funcionamento da Justiça. Ficando expostos à vontade do
Poder Executivo, muitos desses funcionários, ao sentirem-se ameaçados, eram induzidos a
desenvolver relações amistosas, confiáveis e submissas a aquele.
De fato, logo após a entrada em vigor do AI-8, o governo demitiu diversos
funcionários judiciais. Foram atingidos juízes letrados que, havendo julgado casos políticos,
haviam admitido a procedência de recursos de habeas corpus em situações de detenções
administrativas. Outros, foram demitidos por terem autorizado que médicos privados
realizassem exames post-mortem em corpos de detidos mortos em prisão; além daqueles que,
ao questionarem judicialmente o procedimento das Forças Armadas em relação ao tratamento
recebido pelos presos políticos, desafiavam abertamente a nova ordem.
O governo alegava que as destituições ocorriam por razões de segurança ou de
interesse público, termos sempre vagos, imprecisos e de elástica interpretação. É claro que
sempre implicavam no caráter arbitrário do regime. A destituição imediata era a punição
sofrida por qualquer magistrado ou funcionário do Ministério da Justiça que formasse parte de
associações profissionais ou corporativas. Inclusive cabe mencionar que até a tradicional
Associação dos Magistrados foi dissolvida logo após a implantação do AI-8.
A suspensão de direitos políticos foi legitimada mediante o AI-4 (setembro 1976),
que foi fundamentado na necessidade de eliminar a tolerância e a permissividade que os
políticos e os partidos políticos haviam tido com o marxismo e a “subversão”. Da mesma
forma, visou a depuração dos quadros dos partidos tradicionais que haviam permitido aquela
40
DERECHOS HUMANOS EN URUGUAY. Op. cit., AI-8. Nombamientos y destituciones en la
administración de justicia.
41
Idem.
42
O mesmo regime passou a vigorar para todos os futuros magistrados. Somente seguiram no cargo aqueles que
passavam por este “estágio” de quatro anos imposto pelo governo. Idem.
459
situação. Acusados por omissão, co-participação ou concordância com o inimigo interno, a
velha elite política colorada e blanca foi responsabilizada, pelas Forças Armadas, do ataque
que o comunismo internacional e seus associados internos desencadearam contra as
tradicionais instituições da democracia uruguaia.
Inclusive, no “Considerando II” do AI-4, afirma-se que foi isso que “[...] obligó a
suspender transitoriamente toda actividad de los Partidos Políticos [...]”, mas abrindo a
expectativa de “[...] restaurar, cuando se den las condiciones adecuadas, la vida política.”
43
Aparentemente, havia uma situação de indefinição no que se refere aos partidos tradicionais.
Como já foi indicado, em novembro de 1973, 14 partidos políticos e entidades sindicais,
estudantis e políticas haviam sido banidas. Quanto às demais, inclusive os partidos Nacional e
Colorado, sofriam uma espécie de recesso forçado desde a implementação da ditadura. A
proibição de qualquer atividade de fundo político tornava a situação dos partidos que não
haviam sido considerados ilegais muito precária: na prática, sofriam uma condição de
ilegalidade informal.
De qualquer forma, as Forças Armadas não pretenderam eliminar os partidos
tradicionais. Além de parte da base que possuíam pertencer às correntes de direita e extrema
direita dos mesmos, a maioria dos civis que ocuparam cargos desde o golpe de Bordaberry até
o final da ditadura pertenciam ou eram originários dos blancos e colorados. Porém, os
militares reputavam que havia toda uma geração de políticos que devia ser depurada, pois
havia sido “contaminada”, em algum grau, pela dinâmica dos acontecimentos, pelas idéias
oriundas “de fora” ou pelas relações políticas com a “subversão”. A nova ordem precisava
criar as condições para o surgimento de uma nova geração de políticos que comungasse dos
novos cânones ideológicos. Da geração anterior, não devia sobrar rasto; por isso, o AI-4
proscreveu dez mil cidadãos uruguaios.
44
Dois tipos de proscrições políticas ocorreram. A mais abrangente proibia por 15 anos
(portanto, até 1991) toda atividade política, inclusive o direito ao voto. Nesta categoria, eram
incluídos todos os candidatos a cargos eletivos, nas eleições de 1966 e 1971, pertencentes a
partidos marxistas; também constavam os cidadãos processados por crimes de lesa nação,
independente de terem sido condenados ou não.
Da segunda categoria, faziam parte cidadãos que também eram proibidos de
participar de qualquer atividade política por 15 anos, mas aos quais era permitido o direito ao
voto, o que não fazia a mínima diferença, pois, naquele momento, a inatividade eleitoral era
43
Idem.
44
Idem.
460
completa (e assim seria até o Plebiscito de 1980). Estavam arrolados, nesta condição, os
candidatos de organizações políticas associados às marxistas e pró-marxistas (ou seja, eram
“contempladas” todas as correntes da Frente Ampla), os cidadãos processados por crimes
contra a Administração Pública durante o exercício de cargos políticos, os candidatos à
Presidência e à Vice-Presidência da República nas eleições de 1966 e 1971 (inclusive dos
partidos tradicionais), os deputados e senadores (titulares e suplentes) eleitos desde 1966 e os
integrantes dos Diretórios dos partidos políticos.
As sanções para os que desobedecessem as proscrições consistiam em destituição, no
caso de funcionários públicos, redução de 1/3 do valor das aposentadorias (durante seis meses
a dois anos) e processos penais correspondentes. Dentro do clima geral de insegurança e de
medo, a expressão “atividade política” tornava-se abstrata e ambígua. Por exemplo, ir às
festas de aniversário de pessoas proscritas, processadas ou suspeitas era possível de ser
caracterizado como ato ilegal, delito. Uma homenagem a uma figura pública desvinculada do
regime podia ser interpretada como atividade política. Da mesma forma, participar, por
amizade ou solidariedade, dos solitários velórios e enterros de ex-presos políticos também
podia ser compreendido como atividade de caráter político.
45
Pode parecer estranho, mas a
imprecisão, a falta de detalhes, de explicações e de respostas eram elementos eficientes e
massivamente utilizados para aumentar o medo e induzir ao recolhimento individual. Foi a
época em que qualquer inocente festa de batizado ou de aniversário devia ser autorizada pela
autoridade militar competente.
Ser proscrito era sofrer uma punição permanente, com direitos e garantias cassados,
com atividades proibidas. Relacionar-se com proscritos podia ser o passo prévio para ser
considerado suspeito e sofrer as mesmas sanções que aqueles; logo, não era incomum a
estigmatização do proscrito. A repressão era menos vitoriosa quando apontava o peso da
acusação e da sanção contra milhares de proscritos do que quando criava e alimentava o caldo
de cultura onde o medo, a omissão ou a pseudo-segurança quebravam as relações cotidianas
de coleguismo e de solidariedade dos vizinhos, dos companheiros de trabalho ou da própria
família.
Entre as preocupações das Forças Armadas, houve espaço, também, – por mais
bizarro que isso possa parecer de acordo com a essência repressiva do regime – para os
direitos humanos. Pelo menos foi o manifestado no AI-5 (outubro de 1976), com “curiosa
45
São inúmeros os relatos nesse sentido. A solitária e dolorosa despedida dos familiares e amigos mais diretos
era registrada ostensivamente por agentes dos serviços de inteligência, muitas vezes até uniformizados, que
acompanhavam, fotografavam e seguiam às escassas pessoas presentes.
461
mescla”: princípios vinculados a velha e honrosa tradição do país, em relação aos direitos
humanos foram subordinados, previsivelmente, às razões da Segurança Nacional.
Todo ciudadano tiene derecho a la seguridad interna, entendiéndose por tal,
genéricamente, una tutela integral del Estado que le permita la vigencia de
sus Derechos Humanos y el libre ejercicio de sus Derechos Individuales.
En consecuencia, la defensa de los Derechos Humanos e Individuales, que
encaran al hombre como unidad, debe regularse en función de la seguridad
interna [...].
46
Portanto, o regime explicita: o prioritário é a segurança. A segurança é o maior
direito, pois ele garante a possibilidade da existência e respeito dos outros. O direito à
segurança exige a subordinação dos direitos humanos a ela.
47
Justamente por isso, colocaram-se restrições para a aceitação de denúncias feitas do
exterior (sabendo-se que no interior do país era impossível fazer isso e não sofrer imediata
represália). Principalmente, visava-se desqualificar os organismos internacionais
estabelecendo condições particulares. Assim, afirmava-se que se aceitavam denúncias de
violação de direitos humanos quando respaldadas por “tribunais internacionais” profissionais,
permanentes e imparciais ou, então, de Estados signatários de tratados específicos que
garantissem a reciprocidade no sentido de terem que aceitar denúncias apontadas contra eles
pelo Estado acusado. Ou seja, colocaram-se subterfúgios para rejeitar qualquer reclamação ou
denúncia com essa origem.
O anticomunismo, fortemente ressaltado na análise geopolítica expressa no
arrazoado introdutório do AI-5, foi o filtro permanente para reverter pressões internacionais.
Na retórica da Segurança Nacional, denúncias contra o regime militar foram transformadas
em acusações infundadas:
Ayer fue la lucha contra el fascismo y el nazismo, contra la guerra, por la
paz, por la liberación de los pueblos; hoy es la lucha por los derechos
humanos, que el comunismo viola masivamente y de los que se mofa como
una fútil preocupación de la sensiblería burguesa [...]. [grifo meu]
48
Veja-se que associar fascismo, nazismo e comunismo é a velha e simplista
argumentação elaborada pelo discurso do “mundo livre”.
O outro elemento envolve uma questão mais complexa. Se não surpreende o uso
abstrato e impreciso da associação nazismo, fascismo e comunismo, tal fato muda de figura
ao situar a comparação em termos de contexto uruguaio. Sem querer identificar quem foram,
46
DERECHOS HUMANOS EN URUGUAY, op. cit. AI-5.
47
Idem.
48
Idem.
462
no seu tempo, os fascistas e os nazistas uruguaios (não vem ao caso, embora não seja difícil
estabelecer heranças e filiações no decorrer dos anos 40 a 70), sabe-se sim quem foram
considerados aliados ou adeptos do comunismo internacional no país. O que possibilita inferir
que os “comunistas”, “subversivos” ou ainda “inimigos internos” da “sociedade” uruguaia
foram um mal tão profundo que, comparativamente, só têm similares com as hordas fascistas
e nazistas. Se o “mundo livre” teve que assumir o conceito de guerra total para enfrentar
aquele perigo das décadas de 30 e 40, não deve surpreender que, diante da nova ameaça de
“mesmo teor”, se deva recorrer ao mesmo conceito de guerra. O “inimigo interno”, essa
ameaça que inclusive agride os direitos humanos, deve ser, conseqüentemente, alvo de uma
guerra total.
Retomando o texto do AI-5, verifica-se que, de forma pontual:
En ningún caso se dará curso en esos Tribunales [internacionales] a
denúncias hechas a título particular o por Organismos Privados Nacionales o
Internacionales [...].
49
Desta forma, o regime encontrou o mecanismo jurídico para descartar denúncias
feitas por organizações internacionalmente reconhecidas, como a Anistia Internacional, a
Comissão Internacional de Juristas, o Movimento Internacional de Juristas Católicos ou o
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, entre outras. Da mesma forma rejeitou as denúncias
apresentadas pelas organizações que surgiram a partir da implantação da ditadura, como
resposta da comunidade exilada e da solidariedade internacional (caso do SIJAU), e daquelas
pessoas que sofreram diretamente as violações. Até porque, como afirmam as Forças
Armadas no seu texto fundamental, Las Fuerzas Armadas al Pueblo Oriental, ao comentar o
AI-5, concluem categoricamente: “El Uruguay no tortura, no veja, no maltrata, no humilla ni
al más abyecto de los criminales.”
50
[grifo meu]
O regime afirma com veemência que no país inexistem violações de direitos
humanos, negando descaradamente e contra todas as evidências em contrário, a tortura. Ainda
acrescenta:
No conoce, ni sabe, de estas prácticas de horror que, en cambio, son moneda
corriente en los países comunistas, que es donde sale el aliento que insufla
las campañas de desprestigio internacional como las que actualmente se
inventan contra el [...].
51
O regime não responde às acusações, mas defende-se atacando, ou seja, divulga que
49
Idem.
50
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE, op. cit., p. 408.
463
sofre uma campanha internacional difamatória a partir de denúncias infundadas dos países
comunistas, que são, segundo as Forças Armadas uruguaias, os que de fato torturam e usam o
medo e o horror contra a população. No bojo dessa argumentação, reafirma-se um
alinhamento e uma determinação bem concreta no cenário da Guerra Fria, pano de fundo
permanente da DSN.
De qualquer maneira, é importante ressaltar que o motivo por detrás do AI-5 é,
evidentemente, muito mais um recurso propagandístico de convencimento externo e de
silenciamento do exílio uruguaio e latino-americano - e suas conexões de solidariedade
internacional -, do que um instrumento de política interna. Trata-se, em realidade, de mais um
recurso utilizado na disputa da legitimidade da informação e da contra-informação no cenário
externo.
Um dos aspectos mais originais do reordenamento jurídico e legislativo do Estado
empreendido pelo regime militar constitui o denominado Saneamento da Administração
Pública, mediante o Ato Institucional nº 7 (julho de 1977). Na avaliação dos militares, a
administração pública havia sido penetrada e contaminada em toda sua extensão pela
subversão “[...] consecuencia del abuso de libertad y del exceso de tolerancia de la
democracia liberal anestesiada por la politiquería para con las ideologías antidemocráticas
[...]”.
52
Desde o início, com Bordaberry, foram aplicados mecanismos emergenciais
previstos para a destituição de funcionários que haviam sido processados pela Justiça Civil ou
Militar ou estavam requeridos. A mesma situação se aplicava para aqueles que haviam optado
pelo abandono do cargo público ao passarem para a clandestinidade ou partirem para o exílio.
A partir da militarização gradual de todas as instâncias estatais, novos mecanismos foram
sendo introduzidos. O objetivo era bem evidente: afastar da administração pública todo
funcionário pouco confiável ou inimigo do regime, utilizando artifícios que permitissem
manter um manto de legalidade que justificasse as demissões sem a explicitação das
verdadeiras razões políticas e ideológicas.
53
Uma das formas de encobrir essas destituições dizia respeito a uma realidade
questionável, mas que encontrava um senso comum bastante arraigado na cultura política do
país: o ausentismo do funcionário do seu local de trabalho e de presença representada no
paletó cuidadosamente colocado no encosto da cadeira. A ineficiência administrativa e o
51
Idem.
52
Idem, p. 412.
53
SERPAJ, op. cit., p. 351.
464
inchaço de funcionários públicos era uma questão polêmica, antiga e em aberto. O discurso
militar explorava muito bem essa imagem. Dizia ser conseqüência da “irresponsável
demagogia” patrocinada pelos partidos políticos que, a cada eleição, inchavam a máquina
pública (empleomanía). O voto e o emprego público eram moeda de troca que historicamente
perpetuavam os partidos tradicionais no poder.
54
Usando com força este argumento, o governo poderia depurar os focos “subversivos”
da função pública, mantendo o discurso da eficiência enquanto realizava um duplo
saneamento. Para coroar de êxito essa estratégia, foi necessário isolar o funcionalismo do
conjunto da sociedade; o melhor recurso para isso foi a denúncia de que, além de serem
ineficientes, possuíam inúmeros privilégios. Contrapondo-se as vantagens da função pública
em relação aos trabalhadores da iniciativa privada, explorou-se o desgaste de tal comparação:
“[...] una situación de irritante privilegio frente a los empleados y trabajadores de la industria
y comercio privados.”
55
A estabilidade foi um dos fatores mais denunciados. Diga-se de
passagem, juridicamente, isso consistia em um importante obstáculo para o governo e sua
pretensão de legalidade. Assim, o “Considerando V” do ato avalia que a estabilidade “que lo
torna casi invulnerable” é um fator perturbador na gestão do Estado porque implica em
impunidade diante da ineficiência ou do descaso no cumprimento da função.
56
No discurso
oficial, são argumentos para a denúncia do processo de burocratização da administração
pública e fonte de injustiça para os demais trabalhadores.
É necessário ressaltar que o número elevado de funcionários públicos (com o
conseqüente ônus para o orçamento nacional) também era resultado de um importante
processo de estatização de serviços e atividades econômicas
57
, o que marcou a política
distributiva do batllismo e a formação do Estado de bem estar social no transcorrer do século
XX. Entretanto, independente dos critérios eficiência, competência técnica ou administrativa,
as principais razões do reordenamento do setor público foram de fundo político-ideológico. A
Constituição oferecia algumas brechas que podiam ser exploradas. Baseados nos seus artigos
58 e 80 (inciso 6), o ato destacava que não podiam ser funcionários do Estado, pessoas “[...]
que formen parte de organizaciones sociales o partidos políticos que por medio de la violencia
o de propaganda que incitase a la violencia, tiendan a destruir las bases fundamentales de la
54
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE, op. cit., p. 413.
55
DERECHOS HUMANOS EN URUGUAY, op. cit., AI-7.
56
Idem.
57
Além do controle e responsabilidade sobre os serviços essenciais (saúde, educação, previdência), o Estado foi
assumindo empresas vinculadas a setores de prestação de serviços de eletricidade, telefonia, água potável,
transporte urbano e ferroviário, pesca. Também absorveu parte do setor financeiro, refino do petróleo, produção
de álcool, portos, etc.
465
nacionalidad.”
58
A Constituição dava margem para um tratamento mais rigoroso (dentro da lei) das
organizações armadas. Porém, a ditadura extrapolou essa base legal de atuação e
enquadramento. A tal ponto que, seguindo a orientação das diretrizes e da lógica da DSN,
foram incluídos nessa categoria desde os opositores políticos até os trabalhadores com
militância sindical; uns e outros também foram considerados “subversivos”, mesmo que tal
fato não encontrasse apoio no texto constitucional. Assim sendo, o AI-7 também os excluiu.
59
A forma encontrada para “limpar” o setor público foi a de colocar o funcionário
visado em disponibilidade, ou seja, ele era afastado das suas funções e ficava disponível para
uma eventual incorporação a outra repartição pública que o aceitasse e justificasse a
solicitação. Se, após 12 meses de ter sido colocado em disponibilidade, não tivesse sido
requerido para outra função era definitivamente destituído, independente do direito de
estabilidade, pois se considerava que deixara de existir. O AI-7, ao normatizar essa prática,
estabelecia duas possibilidades: a “disponibilidade simples”, fundamentada na suspensão ou
reorganização do setor administrativo, não se justificando mais a permanência do funcionário
no cargo;
60
e a “disponibilidade qualificada”, determinada por razões superiores, de interesse
público ou de melhoria do serviço.
61
A fórmula da “disponibilidade qualificada” por razões superiores (que pode ser
considerada sinônimo de “razões de Estado” ou “segurança”) foi o mecanismo que viabilizou
a depuração político-ideológica. Os boatos a respeito da circulação de listas com os nomes
dos funcionários colocados em disponibilidade tornaram mais tenso o cotidiano dos entes
públicos intervidos, onde a desconfiança, o medo e a delação influenciavam no desempenho
coletivo. O regime guardou para si o direito de dar explicações e de ouvir os atingidos, o que
raramente fez.
Para legitimar as destituições, o regime recorreu a outros expedientes semelhantes.
Por exemplo, a indução à “renúncia compulsiva”. Utilizando mecanismos psicológicos,
aterrorizou-se os funcionários, que passaram a se sentir perseguidos, desprestigiados,
discriminados, pelos superiores. Tendo sua auto-estima rebaixada pela ação persecutória dos
interventores, podiam sofrer ameaças de todo tipo: censura, punição salarial, aumento de
58
DERECHOS HUMANOS EN URUGUAY, op. cit.
59
Idem.
60
O funcionário que não fosse redistribuído continuava recebendo integralmente seu salário durante o ano de
disponibilidade simples. Durante os 6 meses seguintes, recebia a metade. Depois, automaticamente, deixava de
receber.
61
O funcionário na condição de disponibilidade qualificada se não fosse redistribuído em 6 meses, tinha o salário
diminuído pela metade nos 6 meses seguintes. Ao final do período, não recebia mais nada. SIJAU. Actos
466
jornada de trabalho não remunerada, mudança de horários de serviço, deslocamento
funcional, etc. Tudo isso ocorrendo em um cenário de substituição de chefia, insegurança,
delação, prisão de colegas e oportunismo. O auto-afastamento era o reconhecimento das
agudas pressões desestruturadoras, tanto em termos individuais como no ambiente de
trabalho.
62
Um outro mecanismo consistiu na recuperação de um decreto-lei de 1943 (em
tempos de guerra), onde se exigia dos funcionários públicos uma declaração juramentada de
fé democrática e adesão ao sistema republicano. Colocada na ordem do dia, tornava-se um
instrumento de aferição dos funcionários que infringiam a norma ao fazerem falsas
declarações juradas enquanto caíam nos critérios elásticos do que era definido como atividade
subversiva. Essa aferição era diretamente realizada pelos Ministérios de Defesa Nacional e do
Interior; eram seus agentes os que investigavam a vida pregressa dos novos funcionários,
mantendo, posteriormente, um acompanhamento atualizado das suas atitudes.
O primeiro setor atingido por essa nova prática restritiva foi o da Universidad de la
República (decreto-lei 351/974 de maio de 1974). Uma resolução do Ministério de Educação
e Cultura estabeleceu um texto padrão de declaração juramentada no qual docentes e
funcionários, além da adesão ao sistema democrático, deviam jurar não ter pertencido a
nenhuma organização “subversiva”. A exposição dos funcionários era completa. Caso
assumissem que, no passado, estiveram integrados a partidos políticos ou organizações
populares (que eram perfeitamente legais no seu tempo), eram destituídos e levantavam
suspeitas sobre si, de acordo com os critérios da nova ordem. Se mentissem e fossem
descobertos, eram passíveis de sofrer, além da destituição, processo penal da Justiça Militar.
A constatação da carencia de notoria filiación democrática motivou massiva destituição. Os
serviços de segurança e inteligência informavam aos interventores (novas autoridades
acadêmicas) sobre a existência de dúvidas ou certezas quanto à filiação democrática dos
funcionários existentes e dos novos candidatos.
Pouco depois, a Ley 14.248 estendia essa exigência a todo o funcionalismo público,
63
obrigando-o também a apresentar o atestado de fé democrática (Declaración Jurada
Representativa de Gobierno”). O artigo 3º da lei era cristalino:
Institucionales, op. cit.; SERPAJ, op. cit., p. 352.
62
SERPAJ, op. cit., p. 353.
63
Em 1977, regulamentou-se que a solicitação dessa declaração devia ser feita às delegacias policiais do bairro
do requerente. O órgão expedidor era a Jefatura de Policía. No ano seguinte, o Ministério do Interior passou essa
atribuição ao Servicio de Información de Defensa (SIDE). WIEDER, Edith. La Restitución de los Destituidos. In
SIJAU. Coloquio sobre Uruguay y Paraguay: La transición del Estado de excepción a la democracia.
Montevideo: Banda Oriental, 1985. p. 82.
467
Será causal de destitución por ineptitud, omisión o delito según los casos la
falsa declaración jurada o falta de declaración comprobadas mediante
sumario [...]. Se considerará que medió falsa declaración jurada cuando se
compruebe que los funcionarios, por actos o hechos, cualquiera sea su
naturaleza, anteriores o posteriores al nombramiento, hayan cumplido o
entrado a cumplir una actividad incompatible con los principios
enunciados.
64
Atestados semelhantes passaram a ser exigidos também dos secundaristas e dos
universitários no início de cada ano letivo. Com o tempo, generalizou-se entre a população
como uma espécie
65
de atestado de bons antecedentes. A falta do mesmo ou falsa declaração
(aferida pelo serviço de inteligência) acarretava em não atendimento de solicitações diversas
junto à administração estatal, destituição e, dependendo do caso, prisão.
66
Um fator agravante
residia em que, se fosse feita alguma denúncia ou se imputassem atitudes incompatíveis com
o regime, o ônus da prova era do funcionário em questão; ou seja, não era o regime que tinha
que provar a culpabilidade do acusado, mas era este quem devia provar sua inocência, o que,
nas condições da dinâmica do TDE, era quase impossível.
67
Sem dúvida, há inúmeros paradoxos nessa reestruturação da administração pública
mediante o artifício da “declaração de fé democrática”. O primeiro, a pretensão de que a
mesma é a verdadeira salvaguarda da democracia. O segundo, a de que aqueles que exigem a
adesão ao “sistema Republicano Representativo” são justamente os que acabaram com o
Parlamento e as formas de participação e organização cidadãs. O terceiro, uma feroz ditadura
de Segurança Nacional que exige dos habitantes do país uma proclamação de fé democrática,
ou seja, a população precisa formalizar que é democrática, o que a torna confiável aos olhos
da ditadura! E quarto, os que se opõem de distintas formas à ditadura e exigem o retorno à
vida democrática são considerados antidemocráticos e, por isso, acusados e punidos.
Artifício mais criativo foi elaborado a seguir. Não satisfeito com as destituições que
conseguia justificar mediante o sistema de “disponibilidade” ou da exigência da “declaração
de fé democrática”, o regime passou a exigir, ao funcionário público, uma “constância de
habilitação para cargos públicos” fornecida pelas delegacias de polícia dos bairros.
68
Tratava-
se de um documento que informava, desde 1976, sobre o perfil do requerente através de uma
letra A, B ou C, que nada mais era do que uma nova forma de classificação das pessoas
segundo um parecer elaborado e fornecido pelos serviços de inteligência a partir dos
64
Ley 14.248. Funcionários Públicos. Art. 1º, 19/08/74.
65
SERPAJ, op. cit., p. 352.
66
SIJAU, op. cit.
67
SERPAJ, op. cit., p. 352.
468
antecedentes daquelas. As pessoas passaram a ser classificadas nessas categorias sem saber
como isso funcionava, onde estava normatizado e quais os critérios para estar ou não nas
listas específicas.
69
Sabiam só que A significava estar isento de qualquer relação ou
vinculação com pessoas, organizações ou atividades consideradas “subversivas”. O B
apontava alguma relação indireta ou participação, há muito tempo, em atividades que não
eram “subversivas” mas inspiravam cuidado: o cidadão classificado como B merecia certa
atenção e acompanhamento. Quanto ao C era uma categoria associada à “subversão” e,
dependendo de cada caso, sofria punições diversas. Mais uma vez, o funcionário público era o
maior alvo da aplicação deste sistema classificatório; dependendo da categoria imputada, era
imediatamente sancionado e destituído.
Os funcionários que obtinham a categoria A eram considerados habilitados para o
exercício dos cargos públicos e podiam conservar seus empregos ou assumir novos cargos. A
categoria B indicava cidadãos de segunda classe, o que significava que até podiam ser
destituídos se fosse do interesse da chefia; de qualquer forma, o fato de pesarem algumas
suspeitas sobre eles dificultava-lhes a possibilidade de ascensão funcional.
Os que pertenciam à categoria C nem recebiam o documento solicitado (a
“constância”). Este era enviado diretamente ao local de trabalho, onde o funcionário era
comunicado do resultado e imediatamente destituído.
70
A partir desse momento era
encaminhado ao Servicio de Información y Defensa para conhecer as causas e os cargos
imputados. As respostas eram vagas e os fatos incriminatórios muito imprecisos, genéricos e,
em muitos casos, inofensivos. Por exemplo, ter colocado o nome em um abaixo-assinado, ter
viajado a países de regimes inimigos, ter publicitado apoio a políticos ou países estrangeiros.
Podia simplesmente ser acusado de ter sido esquerdista ou filiado a algum partido agora
ilegal. Mas podia ser algo mais abstrato: “Ter sido visto com tal pessoa, ter conhecido tal
esquerdista”, etc.
71
O que fica claro é que a classificação C nem sempre correspondia a uma
efetiva militância política ou sindical e, como era difícil precisar os critérios, tudo caía na vala
comum dos “antecedentes ideológicos”, mesmo que se referissem a organizações plenamente
legais e integrada à vida política do país, como a Convención Nacional de Trabajadores, a
Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay, o Partido Democrata Cristiano, etc.
72
As pessoas atingidas com a classificação C ficavam marcadas. Era perigoso mantê-
68
Idem, p. 353.
69
WIEDER, op. cit., p. 82.
70
Idem, p. 82.
71
SERPAJ, op. cit., p. 353.
72
WIEDER, op. cit., p. 82.
469
las no emprego ou relacionar-se com elas. A atividade pública lhes era proibida e a particular
dependia de fortes laços de solidariedade; um empresário que mantivesse ou contratasse um
trabalhador categoria C arriscava-se a atrair a desconfiança dos serviços de segurança.
73
“Listas negras” circulavam nos institutos privados de ensino com relações de professores
públicos destituídos; semelhante situação ocorria nos bancos privados em relação aos
bancários demitidos dos bancos públicos. Para muitas das pessoas marcadas por essa
classificação e que não foram presas, o exílio acabou sendo uma necessidade de sobrevivência
política (como é da essência do exílio), mas também de sobrevivência econômica.
74
Em definitivo, a permanência no cargo de um funcionário, tanto na administração
pública quanto na privada, independiam, cada vez mais, dos critérios eficiência, mérito,
dedicação. O elemento definidor era o conjunto de antecedentes políticos e sindicais que
nutriam os pareceres elaborados pelos sistemas de informação e que fundamentavam a
entrega das declarações de “fé democrática” e a temida classificação das pessoas nas
categorias A, B e C.
Sem dúvida, a política de reestruturação da administração pública implementada pelo
governo atesta a sofisticação de um sistema de depuração que soube combinar antigas
fórmulas com outras inovadoras, criativas e originais. Nenhum outro regime de Segurança
Nacional contemporâneo elaborou uma classificação da sociedade como o uruguaio, onde
“Todo el mundo estaba fichado y catalogado.”
75
Como resultado da aplicação daquelas
fórmulas, só no setor público ocorreram umas 10 mil destituições que atingiram toda a
máquina administrativa estatal, principalmente em Montevidéu.
76
Apesar do discurso
diversionista e encobridor, a ditadura, já no seu tempo, não conseguia (e talvez nem
pretendesse) esconder a enorme depuração política e ideológica por detrás da proclamada
reestruturação. É muito interessante, a esse respeito, examinar o depoimento de Edith Wieder,
do Movimento Nacional pró Restituição dos Funcionários Públicos Destituídos, que, em
1985, avaliava:
Una suerte de pudor hizo que los destituidos calláramos durante mucho
73
No setor privado, o impacto foi semelhante. Desde o início da ditadura, procurou-se cercear a atividade
sindical através da dissolução da CNT, a perseguição a toda forma de associação, a proibição do direito de greve,
atingindo direitos e conquistas históricas do movimento operário. Houve pressão do governo sobre empresários
(fora os adesistas ou orgânicos do novo regime) para que demitissem os trabalhadores com militância sindical.
SERPAJ, op. cit., p. 355.
74
WIEDER, op. cit., p. 83.
75
SIJAU, op. cit.
76
A área do ensino foi a mais atingida, perfazendo um 60% de todas as destituições. Wieder (1985) calcula
3.000 demissões em Primaria e Secundaria e 5.000 na Universidade. A autora indica que 75% do total se
concentrou nas áreas de educação e saúde, o que permite aferir para onde e a quem apontou a ditadura (p. 84).
470
tiempo nuestros reclamos. En un país en el que día a día falta gente de su
casa, en el que suceden las torturas, las desapariciones, en el que día a día
hay gente que se exilia, el problema de la destitución aparecía como menor
en su gravedad intrínseca, aunque no en sus implicaciones sociales. Otras de
las razones para esta desinformación ha sido el miedo, porque por supuesto
siempre es menor la pérdida de la fuente de trabajo que la prisión o el exilio,
y estos eran los pasos siguientes al reclamo por las justas aspiraciones o por
la propia denuncia de la situación.
77
Considerando-se o tamanho da população do país e as seqüelas dessas demissões
massivas, pode-se pensar nos múltiplos efeitos negativos que se projetaram sobre o conjunto
da sociedade, desde as milhares de famílias diretamente atingidas até o ônus coletivo da perda
de qualidade na prestação de serviços estatais, caso do ensino público (referência latino-
americana até então), que entrou num rápido e profundo processo de deterioração. Tais
seqüelas fazem parte também das perdas irreparáveis promovidas pelo TDE uruguaio contra
aquelas gerações e as subseqüentes, e do legado profundo deixado pela ditadura, embora isso
nem sempre seja computado na hora das avaliações do balanço do período.
A essência das diversas reestruturações implementadas pelo novo regime foi
procurar pretensa legitimidade que, apesar do esforço, só de forma desconexa e
descontextualizada podia encontrar alguma base de apoio constitucional. A legitimidade, de
fato, era apresentada por um discurso que sabia que suas interpretações da lei e justificativas
não enfrentavam o contraditório. No fundo, a legitimidade do regime não foi a da
pretensamente aclamada norma constitucional, e sim a da Doutrina de Segurança Nacional.
Por isso, a lógica da legitimidade se inverteu. A análise dos Atos Institucionais revela um
esforço comum implícito em todos: a eliminação de direitos e garantias que protegiam a
população diante de possibilidades de excesso estatal. A inversão da lógica está no
esvaziamento de todos os órgãos, mecanismos e instâncias de representação e defesa da
sociedade. Esta, anteriormente, através do Parlamento e da autonomia dos poderes, tinha
formas e possibilidades de atuação que foram destruídas e expropriadas à medida que o novo
regime interditou os outros poderes e fez, do Poder Executivo, um aparelho subordinado às
Forças Armadas e seus aliados.
5.3 - A JUSTIÇA MILITAR E A MILITARIZAÇÃO DA JUSTIÇA
Dentro da dinâmica da espiral autoritária que atingiu o Uruguai desde o final dos
77
WIEDER, op. cit., p. 81.
471
anos 60, a Justiça Militar foi uma peça chave dentro da estrutura do TDE. Paradoxalmente,
sua imposição ao conjunto da sociedade, proposição de um Poder Executivo pressionado
pelas Forças Armadas, acabou sendo decisão de um Parlamento eleito democraticamente e
que, assim, legalizou e legitimou a ofensiva autoritária contra as instituições constitucionais,
cedendo aos argumentos emanados da DSN.
Uma vez que sua jurisdição diante dos fatos referentes à defesa do Estado contra a
ameaça armada foi aprovada, sua área de atuação foi ampliada através da incorporação de
novas garantias e controles. Sua aprovação por um Parlamento acuado e colocado no olho do
furacão, alimentado pelas denúncias sobre a existência do Esquadrão da Morte (funcionando
como repressão clandestina do governo), pela ofensiva tupamara de 14 de abril e pela
violentíssima e letal reação dos militares, tornou-se um peso evidente na consciência dos
setores políticos democráticos os quais, naquele momento, entenderam que atender o apelo do
Poder Executivo para agilizar o combate à guerrilha era defender o Estado democrático.
Alguns legisladores que, apesar de contrariados, haviam votado pela sua aprovação,
reconheceram que o seu argumento de que “era algo provisório” se desmanchava no ar diante
do desenrolar dos acontecimentos. Outros, talvez menos preocupados em ter que se explicar
diante da opinião pública, reconheceram que era o preço a pagar para “salvar a democracia”.
78
Para Martinez Moreno, essa atitude política produziu resultados nefastos; constituiu um erro
histórico da maioria parlamentar democrática (referindo-se aos segmentos dos partidos
tradicionais que se opunham à orientação do Poder Executivo), que se posicionou a partir da
ilusão de que, fazendo algumas concessões à pressão militar, afastava a possibilidade da
consolidação dos setores golpistas.
79
Até então, o artigo 253 da Constituição ditava a norma a ser seguida:
La jurisdicción militar queda limitada a los delitos militares y el caso de
estado de guerra. Los delitos comunes cometidos por militares en el tiempo
de paz, cualquiera que sea el lugar donde se cometan, estarán sometidos a la
Justicia ordinaria.
80
Mesmo considerando a aplicação das MPS, as Forças Armadas se ressentiam dos
limites da Justiça Civil. Segundo elas, tal situação retirava eficiência no combate à
“subversão”. Na versão oficial elaborada a posteriori, os militares explicaram porque era
necessário alterar a jurisdição do entorno do combate à guerrilha:
78
SERPAJ, op. cit., p. 167.
79
MARTINEZ MORENO, Carlos. La Justicia Militar en el Uruguay. Montevideo: Librosur/Nuevo Mundo,
1984. p. 22.
80
REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Constitución. Montevideo: Barreiro y Ramos, 1969. Artigo
472
El trámite judicial indagatorio se realiza con total desconexión de las FF.CC.
[Forças Armadas]; a su vez, éstas no tienen acceso a la información que
resulta del trámite sumarial. Esta desconexión, innegable, favorece
inequívocamente a la acción subversiva. Tal situación, por sí sola, justifica la
intervención de la Jurisdicción Militar. La Justicia penal ordinaria y las
FF.CC., encargadas de la represión de la sedición, trabajan en ambientes
estancos, lo que no permite obtener los resultados anhelados, deteriorándose
progresivamente las fuerzas morales y materiales de las FF.CC.
81
A crítica das Forças Armadas aponta vários elementos de tensão. Um deles, o fato de
serem tratadas como correia de transmissão e deslocadas do centro de tomada de decisões nos
casos penais pontuais. Para elas, esta situação constituía uma flagrante contradição após terem
sido chamadas pelo governo para assumir a luta contra a “subversão” em detrimento da força
policial. Outro elemento de tensão ocorreu pela simultaneidade de ações e esforços
desconexos entre a Justiça Civil e as Forças Armadas, que se tornam um fator largamente
explorado pelo inimigo. Nesta crítica, está implícita a necessidade de concentração de poder
(na perspectiva da tradição militar de mando unificado, disciplina e hierarquia) e o
questionamento do que é avaliado como um excesso de burocratização do processo penal, o
que acaba tendo desdobramentos no combate ao inimigo. Finalmente, as Forças Armadas se
queixam da não utilização das informações obtidas nos centros de detenção, o que permite
inferir, conhecendo-se os métodos de interrogação massivamente aplicadas no período, uma
preocupação pela falta de valorização de uma informação obtida através da tortura. Ou seja,
se essa informação passasse a ser vista como vital, diminuiriam as pressões, pelo menos
dentro do governo, pela prática de “técnicas de interrogação” tão particulares.
Assim, era necessário que a Justiça Militar, e não a Civil, fosse o fórum para julgar
os processos vinculados ao combate à subversão. Para isso, o primeiro passo era declarar o
Estado de Guerra Interno, obrigando as ações militares, ante a emergência de um contexto de
guerra (“interna”), a ficarem delimitadas no âmbito da jurisdição da Justiça Militar. Isto
realmente ocorreu em abril de 1972, mas com alcance de 30 dias. A posterior aprovação da
Ley de Seguridad del Estado y el Orden Interno, transferindo os civis vinculados aos atos
“subversivos” à jurisdição militar, resolveu, definitivamente, o impasse constitucional
denunciado pelas Forças Armadas. Ou seja, desde julho de 1972, com a aprovação daquela lei
pelo Parlamento, sacramentava-se a subordinação da Justiça Civil à Justiça Militar, enquanto
que os civis ficavam expostos às normas do Código Penal Militar já que, em caso de serem
acusados de delitos de lesa nação, passavam a ser julgados por juízes e tribunais militares.
253.
81
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE, op. cit., p. 56.
473
A partir dessa nova realidade jurídica, configurou-se um quadro marcado pela
ausência de garantias para os cidadãos. A criação de entraves para a livre atuação da defesa
disseminou um clima de ameaça e de violência latente contra os advogados que eram
contratados pelas pessoas acusadas ou detidas. Na evolução decorrente desta situação, o
trabalho da defesa acabou sendo constrangido ao ponto de que, em uma visão de conjunto,
acabou praticamente anulado.
82
A Justiça Militar era uma instituição dependente do Ministério de Defesa Nacional e
atuava quando recebia ordem superior. Seus cargos eram ocupados e desempenhados por
militares que não eram necessariamente advogados e que haviam sido designados para
assumir funções para as quais não tinham qualificação técnica, profissional e intelectual. Não
eram especialistas em direito e nem tinham vocação jurídica; porém, o maior problema não
era esse, e sim o fato de que, como bons militares, colocavam em primeiro plano o respeito à
hierarquia, à fidelidade e à subordinação (obediência) a seus superiores. Esta é uma questão
fundamental. A Justiça Militar não possuía a independência exigida pela função, pois entrava
em contradição com os princípios da obediência, da disciplina e da submissão característicos
do verticalismo da ordem militar. Os militares não ocuparam esses cargos para ditar justiça,
mas sim para cumprir uma missão militar como tantas outras. O que tornava o desempenho
dessas funções como mais um ato de arbitrariedade e perversidade contra a sociedade,
principalmente contra os que eram diretamente atingidos pelo exercício desses
“profissionais”.
Portanto, esses “magistrados” militares, além de carecerem de uma especialização
técnico-jurídica e de não integrarem uma carreira judicial (pois o desempenho dessas funções
fazia parte da eventualidade da carreira militar), estavam imersos no conflito; conflito que, em
tese, deviam julgar imparcialmente. Ou seja, os próprios indivíduos encarregados de fazer
justiça formavam parte dos serviços de segurança e da estrutura repressiva.
83
Anteriormente à aprovação da Lei 14.068, a jurisdição das justiças civil e militar não
só coincidiam como mantinham vinculações hierárquicas diferentes. A jurisdição militar
estava desvinculada do Poder Judiciário. O órgão superior deste, a Suprema Corte de Justiça,
não possuía ingerência sobre a Justiça Militar. A estrutura desta se organizava a partir do seu
órgão superior, o Supremo Tribunal Militar, integrado por cinco membros designados pelo
governo e ratificados pelo Parlamento (durante a vigência da democracia). A seguir, na escala
82
CANABAL, Rodolfo. Persistencia de la violación de los derechos humanos. In: SIJAU. Coloquio sobre
Uruguay y Paraguay. La transición del Estado de excepción a la democracia. Montevideo: Banda Oriental,
1985. p. 46.
83
Idem, p. 48.
474
imediatamente inferior, estavam os juízes militares na área penal (primeira instância) e os
juízes militares de instrução assessorados por advogados.
84
Esses advogados eram peça
importante da engrenagem repressiva. Eles compensavam a falta de conhecimento jurídico da
autoridade militar e foram responsáveis pela tipificação de delitos, análise de provas e fixação
de sanções. Seu trabalho estava por detrás de regulamentos e uniformes, e sua presença
parecia quase invisível diante da exposição do poder. Foram profissionais anônimos que
deram sustentação às carências técnicas dos juízes militares.
85
Agiram desde as sombras do
sistema em benefício do mesmo e de si próprios.
Ao submeter a Justiça Civil à Justiça Militar, o processo penal virava uma peça
legitimadora inserida na lógica de guerra interna imposta à sociedade pelas Forças Armadas.
A Justiça deixava de ser um outro campo de batalha entre os setores de oposição e o governo
para transformar-se em instrumento da repressão contra aquela. O SERPAJ diz que, no
processo penal, fatos e responsabilidades estavam predeterminados pelas informações
fornecidas pelos serviços de inteligência. Os juízes se contentavam com isso, não aceitavam o
contraditório, não investigavam. Salvo raríssimas exceções, simplesmente se cumpriam as
ordens dos serviços de segurança e aceitavam-se como verdadeiras as declarações do acusado
arrancadas sob tortura e que, evidentemente, sempre o incriminavam. Isto tornava o processo
uma simples simulação de processo.
86
Para tornar a situação da defesa ainda mais difícil, instituiu-se, junto ao expediente
oficial e público de cada caso em questão, a figura do “expediente submerso”. Os advogados
de defesa tinham acesso – limitado – ao expediente público; este era o documento concreto
sobre o qual aqueles se debruçavam para questionar a peça acusatória. O diálogo entre a
defesa, os fiscais e os juízes girava em torno dele. Entretanto, quando a defesa organizava
uma linha de argumentação sustentada por depoimentos, dados e testemunhos que atingiam as
considerações e argumentos da acusação, surgia o misterioso “expediente submerso”. O
mesmo, de teor secreto, era municiado por novas informações “vitais” fornecidas pelos
serviços de inteligência, que elaboravam a peça à margem do conhecimento da defesa. Dele
faziam parte as avaliações que sobre o processado em questão emitiam os “funcionários”
militares que o haviam “interrogado” e informações secretas sobre o grau de participação
efetiva do acusado em fatos reais. Através desse recurso, os órgãos de inteligência e
segurança imputavam novos cargos ao processado. Acabavam indicando-lhe um grau de
84
SERPAJ, op. cit., p. 173.
85
MARTINEZ MORENO, op. cit., p. 24.
86
SERPAJ, op. cit., p. 174.
475
periculosidade que não se fundamentava nas informações do expediente público, deixando a
defesa impotente diante de acusações contra seu cliente, acusações que ele sequer conhecia.
Muitas vezes, nem de acusações concretas se tratavam (lembrando sempre de como eram
obtidas as informações que as fundamentavam), mas de suspeitas de delitos. Martinez Moreno
cita, como exemplo, o caso de um determinado preso cujo “expediente submerso” justificava
a acusação de que: “No se há podido determinar con certeza pero se le sindica como el Fiscal
del Pueblo en los juicios emprendidos por el M.L.N.”
87
Os advogados de defesa, por mais que requeressem, alegassem ou apelassem (dentro
dos limites da autosobrevivência), acabavam barrados pela negativa no atendimento dos
argumentos que mostravam as contradições no expediente público e no vício de origem das
suas conclusões (informações e confissões obtidas sob tortura). No momento de pronunciar-se
sobre pedidos de liberdade ou de sentença, eram as informações do “expediente submerso”
que os juízes consideravam; as mesmas que eram desconhecidas pelo processado e seu
advogado. Tanto o estudo do SERPAJ quanto a obra de Martinez Moreno reconhecem que
não era estranho que o próprio juiz e o fiscal militar também desconhecessem detalhes do
“expediente submerso” e do processado. Há inúmeros registros que atestam a ignorância
destes diante da denúncia, por parte de familiares, de novos seqüestros de prisioneiros já
processados – seqüestros estes realizados por órgãos de inteligência para submetê-los a novos
interrogatórios. Tal fato ocorria com freqüência para configurar novas situações através de
mais confissões que ampliavam o “expediente submerso” e serviam de pretexto para ampliar
as condenações. Tudo isso ocorrendo com desconhecimento da defesa, da família e até das
autoridades judiciais coniventes.
88
Sem dúvida, o uso da figura do “expediente submerso” é
um dos motivos que levam a concordar com Canabal, quando afirma que a Justiça Militar é
uma justiça criada para castigar, para punir e não para julgar.
89
Ou ainda, com Martinez
Moreno, para quem: “En la justicia militar [...] los procesos no son procesos y la justicia no es
justicia sino venganza”.
90
A Lei 14.068 abriu caminho para esse avanço institucional das Forças Armadas,
projetando-se sobre os poderes constitucionais. É importante frisar que o golpe de Estado
demoraria ainda quase um ano para acontecer. Por outro lado, no plano militar, o conflito com
os tupamaros estava sendo definitivamente vencido, embora deva matizar-se esta afirmação
no sentido de entender que tal percepção talvez não fosse ainda tão visível. Por exemplo, o
87
MARTÍNEZ MORENO, op. cit., p. 33.
88
MARTÍNEZ MORENO, idem; SERPAJ, op. cit.
89
CANABAL, op. cit., p. 48.
90
MARTÍNEZ MORENO, op. cit., p. 22.
476
coronel Nelson Bolentini, uma das figuras chaves do regime militar e considerado um
conhecedor da cultura jurídica, argumentava, em 1976, em favor da aprovação da Ley de
Seguridad del Estado porque ela:
[...] constituyó el instrumento legal que permitiera subsanar las carencias
para enfrentar el fenómeno antijurídico e ilegítimo da la subversión y
posibilitara al Gobierno salir del estado excepcional de guerra interna
[vigente desde o 15 de abril de 1972].
91
Tal afirmação possui sérias conotações, considerando-se que, em vez de ser um
instrumento que permitiu enfrentar um impasse pontual, os efeitos da aprovação dessa medida
pelo Parlamento mostraram que sua aplicação não se restringiu ao mesmo. Concretamente, o
que devia ser um mecanismo de uso emergencial e transitório acabou sendo alicerce de
legitimação jurídica de uma estrutura de poder excludente, anti-democrática e com pretensão
de permanência: a nova ordem fundada sob as diretrizes da Doutrina de Segurança Nacional.
Há um paradoxo na constatação de que a consolidação do endurecimento do regime ocorre
após o colapso do MLN-T em todas suas linhas, com o confinamento da maior parte dos
sobreviventes nas prisões políticas e nos centros de detenção espalhados por todo o país
(havia núcleos no exílio que pouco depois decidiram abandonar a luta armada).
Em outra ordem de coisas, a Ley de Seguridad del Estado, além de manifestar seu
caráter restritivo e punitivo, não implementou, na prática, as tímidas garantias prometidas aos
acusados ou culpados. É o que ocorreu, por exemplo, com o direito de apelação nos autos do
processo ou na responsabilização dos funcionários envolvidos nos excessos e no zelo da
função repressiva. Efetivamente, o artigo 7º da lei enuncia que:
El funcionário público encargado de la administración de una carcel, de la
custodia o del traslado de una persona arrestada o condenada que cometiere
con ella actos arbitrarios o la sometiere a rigores no permitidos por los
reglamentos será castigado con pena de seis meses de prisión a dos años de
penitenciaría.
92
Reafirmando o que está no cerne deste enunciado, curiosamente, o coronel Bolentini
salienta que o governo e as Forças Armadas estão preocupados com o “abuso de autoridade”.
Mostra, assim, que se quer proteger os detidos de agressões físicas que são,
constitucionalmente, proibidas.
93
Entretanto, bem ao contrário do que indica a norma
constitucional, o artigo sétimo da Lei 14.068 ou o argumento explicativo do coronel
91
CENTRO MILITAR, op. cit., p. 82.
92
Ley de Seguridad del Estado, ARTIGO 7
O.
93
CENTRO MILITAR, op. cit., p. 84.
477
Bolentini, a prática foi bem diferente. Os mecanismos de TDE em gestação não produziam
somente detenções ilegais, seqüestros e implementavam massivamente a tortura, como
puniam com extremo rigor qualquer objeção às novas orientações do poder executivo ou
comportamento “estranho” dentro das próprias Forças Armadas. O temor da punição severa e
de sofrer em carne própria o tratamento dedicado aos subversivos ou suspeitos de serem
subversivos está presente nos relatos de ex-agentes das forças de segurança, como Hugo
García Rivas, Daniel Rey Piúma ou Julio César Cooper, que desertaram por discordarem do
que viam e das funções que eram obrigados a desempenhar. Os casos citados se
transformaram em importante fonte de informação para as denúncias das organizações de
direitos humanos.
A saída desses integrantes dos corpos repressivos estatais é posterior à deflagração
do golpe de Estado. Mas há um caso que exemplifica muito bem o funcionamento da Justiça
Militar e a reação diante dos excessos cometidos. Tal caso refere-se ao capitão do Exército
Carlos Arrarte e é anterior à subordinação dos civis à jurisdição militar, mas é paradigmático
se analisado diante do que viria depois.
Uma primeira referência ao caso Arrarte vem através do depoimento do tenente
Cooper quando denuncia o grau de extensão da aplicação da tortura nos centros de detenção,
jogando por terra a versão oficial de Bolentini e do artigo sétimo da Lei 14.064 de preservar
os detidos e punir os responsáveis pelos excessos cometidos no desempenho da função
militar. Cooper afirma que
[...] considero que por lo menos, incluso lo pude constatar, no existen
militares castigados por intervención en la aplicación de la tortura. Al
contrario, existe sí una clara complicidad de parte tanto de los mandos
militares como de la justicia militar [...].
94
A seguir, Cooper lembra um fato ocorrido no início de 1972. Ao ser perguntado
sobre o que aconteceria se um funcionário militar impedisse ou denunciasse maus tratos
contra um detido, cita um caso ocorrido no interior do Batalhão nº 7 (cidade de Salto), onde o
capitão Édison Arrarte interrompeu uma sessão de tortura contra um detido (de nome
Buscarous) aplicada por outro capitão e um primeiro-tenente, com ordens e, depois, mediante
luta corporal.
95
Pelas posteriores declarações de Arrarte, pode-se inferir que agira assim
pensando nos direitos garantidos aos detidos pela mesma ordem constitucional vigente então
lembrada por Bolentini ao comentar e justificar a Ley de Seguridad del Estado.
94
Testemunho do ex-tenente uruguaio Julio César Cooper. SERPAJ, T 002.
95
Idem.
478
Em função desse acontecimento, um Tribunal Especial de Honor funcionou diversas
vezes, entre março e abril de 1972. Vale a pena estender-se um pouco sobre este fato porque é
esclarecedor quanto à dinâmica do funcionamento da Justiça Militar e dos critérios utilizados
para filtrar as provas e evidências. E, em última instância, entender como essa “máquina”
jurídico-administrativa se transformou em um mecanismo de enquadramento e paralisia das
vozes e consciências discordantes no interior das Forças Armadas.
Baseando-se em informes médicos militares, declarações de testemunhas (militares)
e na Ata assinada pelo presumível preso torturado, afirmando ter recebido muito bom
tratamento
96
dos funcionários militares (inclusive durante o interrogatório), o Tribunal
rejeitou as acusações de Arrarte de que se tivessem aplicado maus tratos ao detido em
questão, violando a Constituição. E passou a questionar a conduta do capitão, que acabou
sendo acusado pelos seguintes motivos:
- [...] la actitud del Capitán Arrrarte ante la presunción y según él
confirmación de mal trato al detenido, no fue la normal, la que correspondía
a un Oficial de su jerarquía, que se supone con la madurez y el
discernimiento suficientes para encausar el problema por la vía
correspondiente o sea del Comando [...]. El Capitán Arrarte manifiesta que
actuó así movido por un sentimiento de humanidad y basado en principios
personales e institucionales, pero olvidó o no tuvo en cuenta otros que
forman parte de las cualidades propias del Honor Militar, como por ejemplo,
la serenidad ante situaciones difíciles, la discreción y el dominio de sí mismo
o autocontrol, llegando a destratar a un camarada frente a subalternos y a
subestimar y ofender éstos en un momento, según él, de ofuscación
incontrolada. - Se concluye, entonces que
la reacción del Capitán Arrarte
resulta desmedida, ante la real magnitud de los hechos.
97
- [...] el Capitán Arrarte maltrató de palabras al Capitán Tarigo [involucrado
na tortura] en presencia del detenido y en forma airada [...]. ... también lo
desautorizó frente a subalternos, al contravenir y revocar órdenes, que el
Capitán Tarigo en su calidad de Capitán de Servicio, tenía la responsabilidad
de hacer cumplir [...].
- [...] el Capitán Arrarte maltrató de palabra, en forma grave, a personal de
tropa, motivando que éstos se sintieran lesionados como hombres y como
96
O capitão alega, na sua defesa, que o parecer dos médicos e o atestado de bom trato, assinado pelo detido,
foram manipulados. Particularmente, em relação à segunda prova argumenta: “¿Podemos llamar sincera,
honestamente ‘buen trato’ a esas actitudes que humillan y que ultrajan la condición humana? ¿Es buen trato las
vendas, las esposas, la mofa, los puntapiés? ¿Podemos decir de alguien que fue bien tratado cuando estuvo
durante 14 horas sin interrupción sometido a interrogatorios, situación admitida por los intervinientes? Aún
cuando el propio Tribunal de Honor Regional no descarta brusquedades aisladas tal como lo patentiza el Acta de
fundamentos. Evidentemente hubo mal trato. Para qué hacer constar en un papel buen trato cuando de hecho fue
todo lo contrario.” [Acta nº 736. Actuaciones del Tribunal Especial de Honor, de 11/04/72. Boletín (Reservado)
del Ministerio de Defensa Nacional nº 1878, de 09/05/77].
97
O que o Tribunal considerou reação desmedida de Arrarte foi provocada pelos gritos do detido durante a
sessão de tortura que lhe estava sendo aplicada e pela imagem que teve do mesmo: “[...] recuerdo a los señores
Miembros del tribunal en el estado en que yo lo ví. Descalzo, vendado, esposado, con la ropa desarreglada, con
el pelo parado tal como queda cuando es agarrado, jadeante, transpirando, con un hematoma en el mentón,
nervioso, sediento, cansado, se desplomó en la silla y allí quedó sin moverse, abatido, con la cabeza gacha.” Acta
nº 736. Doc. cit.
479
Soldados; pudiendo haber llegado a crear dudas en su espíritu que se
tradujera en falta de confianza en sus Superiores y de fé en la misión
asignada.
- [...] ha existido una clara contraversión de órdenes del Comando y a
medidas de seguridad dispuestas, según surge de las propias declaraciones
del Capitán Arrarte, quien llega a extralimitarse en sus facultades
reglamentarias, al disponer de por sí, medidas para con un detenido, que no
estaba bajo su responsabilidad. - Esta actitud traduce desconcierto en el
personal subalterno, en cuando a la unidad de doctrina en la conducción de
la lucha antisubversiva y lógicamente
frustra, el esfuerzo realizado durante
catorce horas consecutivas por el personal de información, al fortalecer a un
detenido de las características de Buscarons [o detido em questão, militante
do MLN-T]. [grifos meus]
98
O Tribunal considerou ainda as seguintes situações agravantes:
- Que las ofensas al Capitán Tarigo hubieran sido proferidas en presencia del
personal subalterno y de un sedicioso.
- El efecto que sobre la moral de la tropa actuante pudiera haber tenido la
actitud del Capitán Arrarte, desmotivándola en la misión de lucha
antisubversiva que cumplen las Fuerzas Armadas.
- La falta de mesura y ponderación del Capitán Arrarte, da a los hechos
ribetes de escándalo dentro de la Unidad, con el consiguiente perjuicio para
la disciplina.
- El hecho de que mientras el M.L.N. (Tupamaro) lleva a cabo una intensa
campaña de difamación contra las Fuerzas Armadas, apoyada por la prensa
simpatizante, el Capitán Arrarte asume violentamente la defensa de un
sedicioso, en presencia del mismo y de forma pública dentro de la Unidad; y
el de que en circunstancias que no pueden comprobarse formule tan grave
acusación contra un camarada y personal subalterno, sin medir las
consecuencias que para el Ejército ello puede traer aparejado.
99
Em conseqüência do exposto, o capitão Arrarte foi desclasificado por falta
gravíssima. (Acta nº 174. Actuaciones del Tribunal Especial de Honor, 20/03/72. Boletín
(Reservado) del Ministerio de Defensa Nacional nº 1878, de 09/05/77)
Pela linha de argumentação assumida por Arrarte na sua minuciosa defesa, passa a
imagem de ser um oficial que parece não compreender ou aceitar as mudanças no
comportamento repressivo das Forças Armadas. Alega ter seguido a risca os regulamentos e
diretrizes existentes na Unidade de proibição de métodos violentos nos interrogatórios. Aliás,
a existência de tais normas é reconhecida pelo próprio Tribunal; entretanto, este aceita a
norma como fato inquestionável, ou seja, desconsidera a possibilidade da norma não ser
cumprida. Diante das denúncias concretas do capitão a postura do Tribunal é primária: se a
norma e os regulamentos proíbem métodos violentos de interrogatórios nos estabelecimentos
militares, é evidente que a tortura inexiste nos mesmos. Arrarte se mostrou enfático nesse
98
Idem.
99
Idem.
480
ponto. Reafirma que ocorreu um fato violento proibido pelos regulamentos vigentes. Mas ele
vai além disso, fazendo uma manifestação contra a tortura que perpassa os limites dos
regulamentos internos e se insere numa perspectiva de princípio universal:
[Para enfrentar a guerrilha] contamos con la información como necessidad
fundamental y urgente. Pero no contamos con la tortura ni física ni
psicológica porque sabemos que no es dignificante, que el Honor está reñido
con esos métodos.
100
Nos recursos posteriores solicitados pelo capitão, o Tribunal manteve suas
conclusões. O ex-tenente Cooper, no seu testemunho, complementa os desdobramentos do
fato. O capitão Arrarte foi processado, condenado e expulso das Forças Armadas. Ficou
detido até, pelo menos, 1978. Quanto aos dois oficiais que Arrarte acusou por aplicação de
tortura, o Tribunal ressaltou a conduta digna de ambos, seu zelo no serviço, exemplo para os
demais oficiais.
101
Sem dúvida, o caso Arrarte é emblemático do que as Forças Armadas
queriam consagrar no Art. 7º da Lei 14.068 e de tantas outras, mas que, na prática, não
deviam passar de letra morta. E o fato do caso analisado ter acontecido antes da aplicação da
Justiça Militar aos civis, esclarece sobre o funcionamento da mesma em relação à própria
corporação.
Um outro aspecto vinculado à Justiça Militar diz respeito ao papel desempenhado
pelos juízes militares na configuração da política repressiva do Estado. Martinez Moreno,
nesse sentido, questiona profundamente a atitude de conivência, omissão e co-participação
que assumiram. Legitimaram ou encobriram os excessos cometidos pelos militares
(seqüestros, tortura, mortes, desaparecimentos). Desconsideraram a violência praticada nos
quartéis e nos centros de detenção. Desconheceram denúncias e não tomaram iniciativa para
apurá-las.
102
Dentro do âmbito da Justiça Militar, afirma o autor, “[...] jamás se tuvo el
cuidado de esclarecer ningún abuso de autoridad imputado a la represión.”
103
Diante da
função jurídica que deviam desempenhar ou da fidelidade e da disciplina que deviam à ordem
militar, o prevalecimento desta última inviabilizava qualquer possibilidade de autonomia
mínima. Todo e qualquer fato que pudesse atingir, enfraquecer ou desmoralizar as Forças
Armadas devia acabar arquivado nas malhas da Justiça Militar.
Os regulamentos e a sobreposição dos oficiais superiores sobre os inferiores não
100
Acta 736. Doc. cit.
101
Testemunho do ex-tenente uruguaio Julio César Cooper. SERPAJ, op. cit.
102
“[...] el juez militar de instrucción se conformaba con todo y no preguntaba nada. Ni ordenava una autopsia ni
concurría siquiera al simple reconocimiento de un cadáver en el sitio presunto de un enfrentamiento ni en una
morgue militar.” MARTÍNEZ MORENO, op. cit., p. 28.
103
Idem.
481
deixaram margem de atuação aos magistrados militares, os quais “[...] no pueden actuar sino
en virtud de la orden del superior jerárquico y político [...]. No pueden actuar si no se les
ordena, no pueden dejar de actuar si se les manda.”
104
. A disciplina, o respeito à hierarquia, a
fidelidade à corporação, o sentimento de que as Forças Armadas são vítimas de uma
campanha difamatória e a necessidade de mostrar aos críticos e inimigos que se tratava de
uma instituição monolítica levou os juízes militares a assumirem uma postura incondicional
de defesa do regime, tornando-se, por isso mesmo, peça importantíssima na imposição, na
consolidação e no funcionamento do TDE. Apesar da conivência da magistratura militar com
o regime, em algumas situações em que suas decisões desagradaram o comando ou entraram
em conflito com os interesses e as orientações dos serviços de inteligência e de segurança,
suas resoluções foram desacatadas.
105
Justamente nessas poucas situações conflitantes, pode-
se observar que os juízes militares careciam de poder. A vontade do juiz somente prevalecia
se fosse consoante com a vontade do Comando Militar.
106
Situação de constante ameaça foi vivida pelos advogados de defesa. Com a supressão
dos direitos e garantias dos presos, aqueles que deviam defendê-los passaram a correr riscos
crescentes sofrendo pressões e intimidações. Desde 1972, a relação defensor-preso começou a
tornar-se irregular. Permanentemente foi solapada pela imposição de longos períodos de
incomunicação e ausência de privacidade nos contatos esporádicos. Denúncias diante da ONU
e de outras organizações internacionais indicavam que os advogados contratados pelos
familiares do preso eram obrigados a realizar seu trabalho com cautela, para evitar possíveis
recriminações ou recrudescimento dos métodos violentos de interrogatório contra seus
clientes e, para evitar atrair suspeitas e a violência do Estado sobre si mesmos.
107
Todas essas pressões faziam parte de um esquema de paralisia da capacidade de
resposta dos setores atingidos. A colocação de tantos obstáculos implicava na perda de tempo
por parte da defesa. A violação dos contatos entre advogados e clientes (presos) ocorria
através da intervenção e censura dos funcionários militares, da limitação e manipulação do
tempo de visita e pelas difíceis condições em que se realizavam as entrevistas. Além disso, era
rotina, para os serviços de inteligência, seguir os advogados. Tantos constrangimentos e
limitações para o desempenho da função de advogado de defesa visava, sobretudo, diminuir
104
Idem, p. 25.
105
caso dos 4 médicos apresentado no capítulo 3.
106
SERPAJ, op. cit., p. 175.
107
ANISTIA INTERNACIONAL. Abuso dos Direitos Humanos: um desafio para os profissionais da saúde.
Seção Brasileira, abril/maio 1987.
482
as denúncias sobre o funcionamento da Justiça Militar.
108
A advogada Azucena Berruti relata que o regime passou a considerar os defensores
dos presos políticos de suspeitos de subversão, sendo obrigados a entregar, para poder atuar,
extensa lista de dados pessoais e fotografias deles e dos familiares mais próximos (pais,
filhos, cônjuges e irmãos).
109
Nos casos mais graves, as ameaças se transformaram em
atentados; em outros, ocorreram detenções e processos penais. Muitos advogados foram
presos sob acusação de asociación para delincuir ou “associação subversiva”; tal
enquadramento estava amparado nas MPS e, posteriormente, na Justiça Militar.
110
Sendo
assim, muitos tiveram que partir para o exílio.
111
Portanto, os advogados dos presos políticos
viveram uma situação carregada de constrangimento e de medo, na qual, pelo simples fato de
representarem seus clientes, já eram tratados com hostilidades por parte do governo e das
Forças Armadas. Candidatos ao papel de novos “inimigos internos”, no ano de 1977, sofreram
a maior escalada contra sua integridade, o que implicou que mais ou menos 50% dos acusados
e presos políticos tivessem que substituir seus defensores diante da inexistência de condições
para continuarem na função.
112
A situação dos presos foi agravada com a aprovação, em dezembro de 1975, da Lei
14.493 que, com caráter retroativo, impunha a revisão de todas as penas derivadas de
processos instalados a partir de crimes cometidos contra a segurança nacional. Todos os
casos, independente da data do delito, passavam à Justiça Militar, mesmo aqueles cuja
sentença havia sido pronunciada na vigência da jurisdição civil. Em função disso, centenas de
casos foram revistos com o conseguinte acréscimo na duração das penas.
Uma outra prática, denunciada pela Anistia Internacional, foi a obtenção de
confissões forçadas com a participação ativa de juízes militares, os quais induziam os detidos
a assinar confissões diante da sua presença. É o caso do preso Washington de Vargas
Saccone, que foi advertido pelo juiz militar Carmelo Betancourt de que, se persistisse na
recusa de assinar uma confissão oficial, poderia ser enviado novamente ao serviço de
inteligência das Forças Armadas para ser interrogado mais uma vez. O detido em questão
desconheceu a advertência do juiz. Poucos dias depois, como resultado de violentíssima
agressão sofrida por oficiais na penitenciária de Libertad, foi hospitalizado em coma.
108
SERPAJ, op. cit., p. 183.
109
BERRUTI, Azucena. Justicia Militar. In: SIJAU. Coloqio sobre Uruguay y Paraguay. La transición del
Estado de excepción a la democracia. Montevideo: Banda Oriental, 1985. p. 52.
110
SERPAJ, op. cit., p. 182.
111
Caso, entre tantos outros, da advogada de Flávia Schilling, Maria Elena Martínez, que, segundo a irmã da
presa política, representava uns trezentos tupamaros. Acabou partindo para o exílio em 1977. SCHILLING,
Flávia. Querida liberdade. 2
a
ed. São Paulo: Global Editora, 1980. nota 46.
483
Recuperado, voltou a sofrer novas sessões de tortura até que, finalmente, “aceitou” assinar
uma declaração oficial diante do tribunal. Em nenhum momento julgou-se improcedente ou
inadmissível uma confissão resultante de tão específico tratamento.
113
Fatos como este eram comuns, ao ponto da maioria dos detidos entenderem ser
inconveniente alegar torturas ou solicitar retificação das suas declarações arrancadas sob
violência, diante do juiz. Por um lado, porque isso era desconhecido deste. Por outro, porque
eram muito grandes as possibilidades de voltar “à máquina” (torturas) com o agravante da
desforra de parte daqueles que havia denunciado.
114
A verdade é que, em geral, a Justiça Militar ignorou as denúncias de tortura. Da
mesma forma que a detenção de pessoas foi sempre decidida e ordenada pelos serviços de
segurança e de inteligência, e não como resultado do pedido de um juiz militar. Devia-se
extrair informação dos detidos; até o cumprimento e esgotamento dessa etapa, eles não eram
levados à Justiça.
Quanto ao recurso do hábeas corpus, foi sensivelmente prejudicado com fortes
restrições de aplicação prática. A Constituição regulamentava-o no seu artigo 17º:
En caso de prisión indebida el interesado o cualquier persona podrá
interponer ante el Juez competente el recurso de “habeas hábeas”, a fin de
que la autoridad aprehensora explique y justifique de inmediato el motivo
legal de la aprehension, estándose a lo que decida el Juez indicado.
115
A tradição democrática uruguaia reconhecia, no recurso do hábeas corpus, uma das
maiores garantias contra as arbitrariedades ou erros cometidos pelo Estado. Na mesma
direção, apontava o artigo 16º da Constituição, que determinava ao juiz tomar a declaração do
detido até 24 horas após sua detenção e iniciar, até completar 48 horas desta, o sumário. A
declaração do acusado devia ser tomada em presença do seu advogado, o qual teria garantido
o direito de acompanhar todas as instâncias do sumário.
Entretanto, a prática da Justiça Militar ignorava esses procedimentos. A rotina era a
demora de semanas ou meses após efetuada a detenção até o início do processo (ou seja, para
ser colocado a disposição da Justiça). Aparentemente, a demora decorria da dificuldade em
obter informações e uma confissão auto-incriminatória por parte do detido. Esse
procedimento, praticamente padrão a partir do predomínio da Justiça Militar, era fundamental
112
SERPAJ, op. cit., p. 183.
113
ANISTIA INTERNACIONAL, op. cit., p. 4.
114
SERPAJ, op. cit., p. 178.
115
REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY. Constitución. Montevideo: Barreiro y Ramos, 1969. p. 25.
484
porque a confissão era, na maioria dos casos, a única peça provatória considerada.
116
Levando em conta que, desde que foi sancionada a Ley de Seguridad del Estado, os
recursos do hábeas corpus tiveram que ser apresentados diante da Justiça Militar, a situação se
tornou muito mais complexa para defensores e defendidos. Constatada a detenção ou
presumindo-a, o procedimento iniciava com a apresentação de recurso acompanhado de um
pedido de explicações, por parte da defesa, encaminhados aos Ministérios do Interior e de
Defesa Nacional, à Jefatura de Polícía, e aos Comandos do Exército, da Marinha e da Força
Aérea. Após algumas semanas ou meses, o detido era levado a declarar. Aliás, somente neste
momento, e em alguns casos, permitia-se o primeiro contato com os familiares mais
próximos.
117
O fiscal militar elaborava o termo de acusação a partir dos dados e informações que
lhe eram fornecidos pelos serviços de inteligência. Essa fonte era considerada como suficiente
e devidamente isenta pelo juiz. Como já foi dito ao comentar os “expedientes submersos”,
mesmo quando a defesa conseguia juntar ao processo outros dados e informações trazidos por
testemunhos do detido ou retificações da confissão arrancada pelos serviços de inteligência,
tais dados, informações e retificações eram desconsiderados.
118
Mesmo nos casos onde as
evidências a favor da defesa eram notórias, o juiz podia dar ou manter uma sentença
considerada improcedente, alegando, simplesmente, razões de segurança, desobrigando-se a
dar maiores explicações ao detido, seu advogado ou seus familiares. Logo:
¿Qué sentido tiene un Hábeas Corpus cuya tramitación demora semanas o
meses y cuando además el juez a cargo no tiene autoridad para incidir sobre
las autoridades requeridas por la sencilla y elemental razón de que está
subordinado a esas mismas autoridades? Vemos pues, que el abogado
presentó el recurso y se le dio trámite pero, en definitiva el detenido fue
puesto a disposición del juez cuando la autoridad aprehensora lo consideró
oportuno.
119
Ou seja, era a vontade da chefia superior que decidia. Diante das pressões
internacionais denunciando a inviabilização da instituição do hábeas corpus, o governo
respondeu que sua utilização era improcedente nos casos de detenções amparadas no âmbito
das MPS. Sabidamente, estas eram um recurso emergencial e provisório para enfrentar
116
SERPAJ, op. cit., p. 177.
117
BERRUTI, op. cit., p. 54.
118
É comum o processado não ter direito a presenciar a declaração que prestam os testemunhos na sua causa. Por
sua vez, o advogado de defesa não recebe cópia da sentença nem pode fotocopiar o expediente; somente se lhe
permite tomar notas manuscritas. A sentença é sempre condenatória e, muitas vezes, o detido condenado, sequer
recebe permissão para conhecer o texto completo ou o teor do mesmo. Geralmente, só recebe a informação de
que foi condenado e a pena que deve cumprir. Idem, p. 55.
119
Idem.
485
situações inusitadas. Há pertinência na afirmação oficial de que as MPS suspendiam o hábeas
corpus. Porém, o que se tornou inconstitucional foi o uso indiscriminado das MPS,
eliminando seu caráter temporário e a regulamentação dos efeitos das ações tomadas nessa
situação, o que era previsto pela Constituição. Posteriormente à Lei 14.068, as razões de
Estado e a necessidade da manutenção do segredo militar acabaram reafirmando o
entendimento oficial de que a vigência do hábeas corpus era um empecilho para a defesa da
Segurança Nacional e o combate à subversão. Conseqüentemente:
Al no funcionar el recurso de habeas corpus, la vida, la libertad y la
integridad física de las personas perdieron las seguridades jurídicas que les
proporciona este instituto ¿Qué garantías quedaban? Ninguna. No habían
instrumentos jurídicos para proteger esos derechos.
120
A demora em passar o detido à justiça virou enorme obstáculo para uma resposta
imediata da família. Na medida em que a detenção podia ocorrer em circunstâncias e locais
diversos, não havia certeza da mesma. Como a autoridade negava a detenção, os hábeas
corpus impetrados caíam no vazio, tornando todo recurso jurídico (de improvável sucesso
quando havia um reconhecimento oficial de detenção) praticamente inútil. A situação do
detido se tornava terrível, insuportável: estando tecnicamente “desaparecido”, a perversidade
do sistema deixava essa pessoa seqüestrada a mercê das arbitrariedades dos seus
seqüestradores.
121
Portanto, o hábeas corpus foi completamente desconsiderado; mas não se tratou da
única violência cometida contra a norma constitucional de que falava o coronel Bolentini. O
advogado Jorge Pessano listou os direitos e garantias constitucionais diretamente infringidos
pela Justiça Militar. Assim, ele apontou: a inviolabilidade de domicílio (Art. 11); direito ao
devido processo (Art. 12); a exigência do flagrante como prova de delito para proceder à
detenção (Art. 15); declaração do detido dentro das 24 horas, início do sumário até 48 horas e
presença do defensor (Art. 18); abolição das investigações secretas (Art. 22).
122
Aliás, no caso do início do sumário, o SERPAJ aferiu através da pesquisa La Prisión
Prolongada - cujos dados foram apresentados no relatório Uruguay: nunca más (1989) -, que
somente 17% das pessoas processadas antes de 1972 (portanto, na vigência das MPS e antes
da imposição da Justiça Militar aos civis) foram colocados a disposição do juiz no prazo de 48
horas. E considerando o período 1972-1984, constata-se que, em 64% dos casos, ocorreu uma
120
SERPAJ, op. cit., p. 178.
121
Idem, p. 181.
122
PESSANO, Jorge. Amparo y habeas corpus. In: SIJAU. Coloquio sobre Uruguay y Paraguay. La
transición del Estado de excepción a la democracia. Montevideo: Banda Oriental, 1985. p. 58.
486
demora compreendida entre um e seis meses, desde a detenção até a colocação à disposição
de um juiz.
123
Outros aspectos que merecem consideração a respeito do funcionamento da Justiça
Militar dizem respeito, respectivamente, à implementação da liberdade vigiada e ao
prolongamento da privação de liberdade.
Quanto à situação de liberdade vigiada, o relatório Uruguay: Nunca Más define-a
como uma “aberrante secuela del terror de las prisiones.”
124
A recuperação da liberdade, para
a maioria dos presos políticos, tinha os limites concretos da imposição de quase uma prisão
domiciliar. O conjunto de restrições enfrentadas pelos ex-presos foi uma tentativa de
imobilizá-los, realçando todos os seus medos, suas inseguranças e incertezas, reafirmando sua
exclusão por parte dos outros; em resumo, reduzindo-lhes significativamente sua
possibilidade de ação, de participação, de mobilidade e de reinserção social.
A Justiça Militar, ao reconhecer-lhe a liberdade, obrigava o ex-detento a cumprir
uma série de regulamentos que não podia ignorar ou descumprir sem o risco de voltar a ser
processado (como aconteceu em muitos casos). Entre essas obrigações, devia observar que:
- Sem autorização militar, não podia afastar-se do seu endereço de
residência por mais de 24 horas; da mesma forma, era proibido de
abandonar a região departamental e o país.
- Devia comunicar à autoridade militar qualquer mudança de endereço, de
estado civil ou de trabalho.
- Não podia reunir-se com outras pessoas (a não ser as mais diretamente
vinculadas) por estar em situação de “liberdade vigiada”.
- Devia comparecer, a cada 15 dias, à unidade militar designada.
- A cada ano era convocado a comparecer na unidade militar, pelo menos
uma vez, para responder a um rigoroso interrogatório.
- Anualmente, devia apresentar novas fotografias à autoridade militar.
- Eventualmente, sofria a visita de oficiais, na sua residência, que
realizavam interrogatório e rigorosa inspeção.
Curiosamente, em alguns casos, o regime de liberdade vigiada era aplicado a pessoas
que nunca haviam sido condenadas. O intuito era, mais do que uma forte suspeita de
123
SERPAJ, op. cit., p. 179.
124
Idem, p. 187.
487
pertencimento a alguma rede subversiva, amedrontar, visando resultados coletivos - a cultura
do medo. Até porque, no caso de suspeita, ela já era motivo suficiente para a detenção e o
posterior processamento do indivíduo. Finalmente, cabe dizer que a duração do sistema de
liberdade vigiada era indefinida e desconhecida para quem a sofria. E, para fomentar ainda
mais a insegurança, uma vez concluído, podia ser reimplantado.
125
Em relação à segunda, prolongamento da privação de liberdade, cabe destacar que o
descaso da Justiça Militar com as condições e situações dos presos chegava ao cúmulo de
demorar a divulgação da ordem de libertação de muitos detidos, uma vez concluído o tempo
de condenação. Mas aqui deve precisar-se que isso não foi fruto de desorganização ou falta de
competência. Ao contrário, tornou-se um mecanismo racionalmente utilizado para prolongar a
punição dos presos políticos e aumentar a pressão e desgaste psicológico sobre os mesmos.
Fato constatado na já citada pesquisa La Prisión Prolongada. Segundo os dados colhidos no
item “prolongamento de privação de liberdade”, verifica-se que, no universo dos que
cumpriram pena entre 1972 e 1984, 20% tiveram a libertação adiada num lapso compreendido
entre 15 e 90 dias. Já 27% sofreram um prolongamento da reclusão, após a conclusão do
cumprimento da pena, por um período que variou entre 3 meses a 6 anos.
126
É importante frisar: não se tratava de aumento da pena, fato rotineiro para muitos
presos políticos que, após a conclusão do processo, tiveram suas penas revisadas e acrescidas.
Tratava-se de sonegação do direito à liberdade dentro das próprias regras estabelecidas pelas
Forças Armadas. Ou seja, configurava novo seqüestro, embora, agora, público. O que os
dados revelam, em relação ao prolongamento da prisão, é que quase 50% dos presos sofreram
um confisco de tempo em liberdade. Tal fato, mesmo considerando a lógica da “legalidade”
da Justiça Militar, expõe cruamente mais uma face da perversidade do sistema. Mais uma vez,
pressiona-se com a expectativa, a incerteza e a insegurança de quem enfrentou duríssimas
condições de sobrevivência em centros clandestinos de detenção e nas prisões militares,
enfrentando a tortura, a incomunicação, o isolamento e a falta de proteção jurídica.
Explorando o desgaste físico e psicológico de um universo carcerário sensivelmente
fragilizador, atinge-se o que pode restar de força de vontade canalizado na perspectiva da
“saída”, da recuperação da liberdade, da possibilidade de retornar a um mundo que, para
muitos, parecia distante, adiando o reencontro com os abraços proibidos durante anos de
prisão. O sistema visa, concretamente, o enlouquecimento induzido. É disto que se trata.
Apesar da sordidez da ação, o sentido dessa afirmação está cabalmente implícita na postura do
125
CANABAL, op. cit., p. 51.
126
SERPAJ, op. cit., p. 186.
488
regime; logo, proibir que os presos fossem libertados, sem dar-lhes nenhuma explicação a
esse respeito, era uma forma de testar sua resistência anímica, espiritual, psicológica. Prendê-
los uma semana, um mês ou um ano a mais podia ter sido a diferença entre a sobrevivência
física e a sanidade mental do preso político. Enlouquecê-los, destruí-los: essas foram as
justificativas concretas para o confisco da liberdade após o cumprimento da pena. Confisco
sobre o qual, em geral, silenciaram os juízes militares mais uma vez, cumprindo ordens e
desempenhando o papel que o sistema esperava deles. Essa foi a justificativa de um ato que
chegou a ser ilegal mesmo para os padrões de “legalidade” de um sistema baseado na DSN,
constituindo-se em mais uma típica manifestação do TDE.
Pode-se afirmar que a Justiça Militar foi um instrumento das Forças Armadas na luta
contra a subversão, mas também a tentativa de uma refundação estatal, a qual precisava de
uma fachada de legalidade que aquela podia-lhe garantir. Comportando-se como correia de
transmissão do Comando Militar, usurpou o lugar da Justiça Civil, interpretou a Constituição
como quis, manipulando o que convinha às Forças Armadas e jogando no limbo o que não
tinha utilidade ou atrapalhava. Por tudo isso, pode-se afirmar que, como Justiça, a Justiça
Militar foi uma grande ficção, uma aperfeiçoada máquina burocrática que tinha como única
função guardar as aparências e que escondia o que de fato era: uma afinada perversão do
direito e da Justiça.
127
A Justiça Militar impôs um comportamento monolítico à corporação, como foi
demonstrado no caso Arrarte, com o predomínio de uma visão hierárquica, disciplinada e
obediente, que devia servir de modelo para o conjunto da sociedade e onde todo
questionamento da atuação da corporação foi interpretado como desvio subversivo. Aceitando
a utilização de mecanismos clandestinos, como os “expedientes submersos”, legitimou o
direito da força e da tortura. Por tudo isso, deve-se destacar a já citada conclusão de Martinez
Moreno: “En la justicia militar – por lo menos, en lo que se aplica a los civiles – los procesos
no son procesos y la justicia no es justicia sino venganza.”
128
E, por ser a fachada de
legalidade do regime, tornou-se um instrumento de inestimável valor para o TDE praticado
pela ditadura uruguaia.
5.4. - REPRESSÃO E CONTROLE CULTURAL
127
SERPAJ, op. cit., p. 175.
489
Uma das políticas governamentais marcantes da ditadura militar foi a repressão
cultural, coerente com um dos principais objetivos da nova ordem, a despolitização e
desativação da sociedade civil, particularmente daqueles setores sociais que se haviam
identificado e comprometido com a exigência de mudanças profundas. A política de TDE
levou à apreensão de milhares de livros, o fechamento de inúmeros meios de comunicação, a
instalação da censura em todos os níveis de expressão, a organização e divulgação de listas de
autores, artistas, temáticas e títulos que estavam proibidos.
A falta de liberdade abala toda e qualquer produção cultural, assim como a
distribuição e consumo desses bens por parte da sociedade. Conseqüentemente, bloquearam-
se formas de relacionamento coletivo onde os fatores de identidade, de inclusão e de reflexão
foram diluídos como resultado da desconexão entre os criadores e o entorno que os
alimentava, criadores que, por sua vez, se alimentavam dessa produção cultural. A
institucionalização da censura e os mecanismos inconscientes ou (de qualquer forma,
defensivos) da autocensura atestam uma brutal falta de liberdade, elemento primordial que
aguça o pensamento crítico: sua ausência desestimulava o diálogo e a discussão e isolou os
autores daqueles que deviam ser o público alvo.
O desestímulo e o desinteresse oficial como objetivo, visando esvaziar o conteúdo
crítico e politizado da produção cultural anterior (embora as dificuldades existentes), através
do corte de verbas e da inexistência de políticas culturais, complementou-se com a imposição
de valores e modelos importados, estranhos à realidade do país.
129
Assim, desenhou-se um
quadro de contraste assustador em comparação às experiências que haviam se desenvolvido
nos 20 anos anteriores. Antes da tomada do poder pelos militares, o estágio cultural e
educacional do país se expressava em altos índices de desenvolvimento e expressividade para
o que eram os marcos referenciais da região. Tendo como base uma educação gratuita com
altos índices de alfabetização e escolarização (entre os mais altos do continente), a sociedade
uruguaia era relativamente bem informada; conformava uma população de leitores, sobretudo
nos centros urbanos. Para se ter uma idéia, existia um desenvolvido jornalismo escrito que, na
época, contava com cerca de nove jornais diários. Quase 20% da população comprava seu
exemplar, dado importante para uma população de, aproximadamente, três milhões de
habitantes. Por volta dos anos 60, a tiragem total desses jornais diários era de 550 mil
exemplares.
130
128
MARTÍNEZ MORENO, op. cit, p. 22.
129
Las causas del deterioro cultural. Carlos Zubillaga. Aquí, 26/07/84.
130
Informe apresentado pela Organización Internacional de Periodistas à Conferência Geral da UNESCO. Paris,
1978. URUGUAY 1973-1978, op. cit.
490
Um outro dado fundamental a ser destacado é que, desde a década de 40, não se
registrava nenhum ato de censura, fechamento ou apreensão de algum meio de comunicação
local ou estrangeiro. Esta situação se alterou significativamente a partir da ascensão de
Pacheco Areco.
Um fato bem representativo da atividade e dos hábitos culturais da sociedade
uruguaia podia ser medido pela intensa e variada difusão cinematográfica. Durante os anos 60
e início dos 70, os cinemas uruguaios recebiam caravanas de brasileiros e argentinos que
visitavam o país em curtos e apertados roteiros de final de semana nos quais se atualizavam
com a exibição cinematográfica que a liberdade de expressão constitucional garantia no
Uruguai, enquanto, nos seus países, sofriam o impacto da censura imposta pelas respectivas
ditaduras. Essa situação começou a mudar a partir do golpe de Estado, quando os restritivos
critérios políticos, ideológicos e de forte cunho moral também atingiram o país. A partir daí, a
censura imperou. Dezenas de filmes sofreram censura total ou parcial e outros tantos
estrangeiros tiveram rejeitado o pedido de licença de projeção.
Desde a decretação do Estado de Guerra (abril de 1972), as Forças Armadas
assumiram o controle da informação sobre suas operações contra a guerrilha e outros focos de
subversão. Os programas jornalísticos de rádio e televisão e a imprensa escrita foram
obrigados a transmitir a versão oficial dos acontecimentos. A pauta política da imprensa
parecia ser transmitida diretamente do Ministério de Defesa. A televisão foi o meio
privilegiado para transmitir diariamente, às 20 horas (horário nobre), “comunicados” das
Forças Armadas à população. Nos mesmos, em cadeia de rádio e televisão, relatavam-se os
êxitos das forças de segurança nos operativos militares, as detenções de pessoas e a
divulgação de novas listas de pessoas requeridas pela Justiça Militar; tudo num tom
rigorosamente marcial.
131
De forma geral, todas as atividades que diziam respeito à informação jornalística,
artística e cultural foram alvos do controle estatal. Livros, músicas, espetáculos foram
vigiados e proibidos. Toda atividade cultural, para acontecer, devia encaminhar à autoridade
pertinente documentação contendo informações sobre nome, sobrenome, carteira de
identidade e endereço de todos os participantes e dos organizadores. Tudo isso se tornava
mais asfixiante ao ocorrer nas pequenas cidades do interior; com exceção de Montevidéu,
todos os demais centros urbanos sofriam um impacto muito maior desse controle orwelliano
que se foi institucionalizando e sofisticando. Como lembra o escritor Mario Delgado: “En
sítios así no había forma de cobijarse en el gran número, en volverse invisible tras las
491
multitudes cada vez menos anónimas de Montevideo.”
132
São marcas e registros que fazem
parte das difíceis condições de sobrevivência de uma cultura de resistência durante toda a
ditadura, mas particularmente do período 1973-1978, o do apagón cultural.
A produção literária foi atingida com dureza pelos mecanismos restritivos da
repressão cultural. O regime proibiu inúmeras obras de circular nas livrarias, prendeu
escritores, expulsou outros. Muitos tiveram que abandonar o país como Juan Carlos Onetti,
Mário Benedetti e Eduardo Galeano, amargando um exílio que teve incidência variada em
cada um. Autores estrangeiros como o espanhol Juan Ramón Jiménez, Pablo Neruda e Gabriel
García Márquez foram proibidos. O index de obras e autores proibidos chegou às bibliotecas
públicas, à rede de ensino e à Biblioteca Nacional, onde foram retiradas até as fichas de
catalogação das obras censuradas.
Muitos obstáculos foram colocados para o setor editorial, principalmente pelo fato de
que, sem nenhum tipo de auxílio do Estado, tal setor era obrigado a enfrentar os custos da
importação de maquinaria gráfica, a recessão – que diminuía cada vez mais o consumo de
livros - e, ainda por cima, a desigual concorrência do produto importado de autor já
consagrado. Para se ter uma idéia do que significava editar livros no Uruguai é só constatar
que uma tiragem de mil exemplares era considerada normal; e outra de 3 mil volumes
constituía uma tiragem de exceção. Nessas condições, para editar livros no país, era quase
impossível concorrer com o “best-seller” importado, de altas tiragens e ampla promoção
publicitária. Por outro lado, o valor do peso uruguaio tornava irrealizável qualquer disputa por
mercados externos. No final da ditadura, quase 90% dos livros vendidos no país eram
importados (sobretudo da Espanha, Argentina e México), e de preços relativamente
acessíveis, enquanto que os livros considerados fundamentais estavam fora do alcance da
maioria da população.
Essa era uma realidade diferente daquela propiciada por um pequeno “boom” da
literatura uruguaia no início dos anos 60. Segundo Enrique Estrázulas, antes do golpe de
Estado, a vitalidade da produção literária uruguaia era alimentada por fatores diversos, como a
contribuição da excelente e tradicional Feria Nacional del Libro y del Grabado,
133
o perfil de
editoras que apostavam em autores nacionais, a disposição dos leitores em conhecer seus
autores e a ausência de qualquer tipo de censura. Tudo isto mudou, no bojo da prática de
131
SERPAJ, op. cit., p. 358.
132
Mi noche triste. Escribir en dictadura. Brecha, 11/07/03. Separata A 30 años del golpe de Estado (VI). p. I.
133
A Feria del Libro y del Grabado, atividade cultural formal organizada pelas editoras desde a segunda metade
dos anos 60, de forte sentido cultural, sofreu ostensiva vigilância. Diversos participantes foram presos ou se
exilaram. Seguidamente, razzias policiais recolhiam obras que estavam sendo divulgadas ou lançadas,
492
desestímulo à produção nacional, às perseguições de cunho político-ideológica e ao
favorecimento das políticas importadoras; a produção do livro uruguaio se tornou quase nula.
A crise econômica tornou ainda mais difícil, o acesso ao livro, tanto para os setores sociais
médios quanto para os de baixa renda, prejudicados também pelo corte de verbas das
bibliotecas públicas e pela omissão do governo diante da proposta da Câmara Uruguaia do
Livro em importar livros mais baratos.
134
Se, no plano econômico, as condições eram adversas, no plano ideológico, as ações
pareciam mais coerentes com as novas premissas em vigor. Foi assim que as editoras
consideradas marxistas (Anteo, Pueblos Unidos, Nativa) foram fechadas desde fevereiro de
1974; seus estoques de livros foram destruídos. Outras editoras que publicavam temáticas
“suspeitas” (Arca, Tierra Nuestra, Nuestra Tierra) foram pressionadas de forma diversa
mediante advertências, prisão dos seus responsáveis ou visita de censores e policiais com
listas das obras que deviam ser eliminadas dos seus depósitos. Os meios dirigidos por Carlos
Quijano - Marcha, Cuadernos de Marcha e a Editorial Marcha - acabaram fechados e seus
arquivos destruídos. A gráfica e Editorial Comunidad del Sur foi dissolvida e seus integrantes
detidos e torturados.
135
Como complementação dessas ações de controle, o Estado interveio,
também, na violação de correspondência para evitar a permanência de alguns canais que
pudessem compensar a restrição do acesso a esse tipo de bens culturais. Foi assim que, em
julho de 1975, um decreto conferiu à Empresa de Correio a função de apreender toda
correspondência de livros, jornais, revistas, folhetos, documentos, fotografias, filmes, discos,
fitas ou fitas magnéticas de “filiación marxista y antidemocráticas”, que afetassem à
Segurança do Estado.
136
A produção literária da década de 70 foi um reflexo da crise conjuntural do país; a
mesma acabou atingindo o consumo de bens culturais.
137
Os entraves impostos pela ditadura
eram difíceis de superar. Havia falta de discussão, de intercâmbio, de crítica aberta; em
resumo, a falta concreta de liberdade. Um crítico literário do El Día teve que depor diante dos
militares por ter citado o nome do escritor colombiano Gabriel García Márquez.
138
Os
concursos oficiais criados por instituições ligadas ao regime não estimularam as pessoas a
participar. Era difícil encontrar autores de qualidade que se prestassem para participar desses
concursos, assim como quem aceitasse fazer parte de júris oficiais. Aliás, o desprestígio dessa
motivando censuras parciais do evento.
134
La Semana, 23 a 29/07/83, p. 12.
135
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 26.
136
Idem.
137
Mário Alvarez, artigo publicado no jornal (finalmente fechado) Cinco Días de 20/03/84.
493
“cultura oficial” tornou-se evidente. Apesar das dificuldades de criação, surgiram novos
autores através de concursos particulares (patrocinados por editores e jornais) e “Oficinas de
Literatura”, onde alunos e professores discutiam e criticavam, de forma um tanto marginal, a
literatura em si, representando núcleos de resistência contra o circuito oficial.
139
O regime proibiu autores e liquidou o setor editorial local sob a pressão da censura e
da sutileza das causas profundas da economia de mercado, muito desigual nessa área. A
sobrevivência de uma literatura de resistência foi condicionada ao uso de uma linguagem
cifrada, metafórica. Foi necessário fazer opções, trabalhar com diálogos fragmentados para se
evitar o óbvio e deixar oculto o que fosse passível de censura, no meio de uma linguagem
figurada. Os escritores deviam mudar os códigos para ter a chance de continuar conectados
com seu entorno. O uso dessa linguagem não foi só mais um subterfúgio para evitar a censura,
mas a possibilidade de responder a ela e a todo ambiente opressivo instaurado.
140
Na área das Artes Plásticas, a repressão também se fez sentir, embora de forma mais
discreta. O principal problema, neste caso, relacionou-se com o descaso oficial quanto à
Escuela Nacional de Bellas Artes, fechada desde a Intervenção Universitária. Essa instituição
era considerada o principal espaço de expressão artística. Sendo pública, seu ingresso era
massivo. O seu fechamento acarretou o surgimento de escolas privadas que cooptaram parte
da clientela de maior renda, marcando um processo de elitização que se tornou crescente.
Parte dos artistas remanescentes e parte da nova geração seriam formados dentro de premissas
que coincidiam ou se alimentavam dessa perspectiva. O descaso das novas autoridades da
educação chegou ao ponto de transformar seu local em anexo de funcionamento de outras
faculdades. Anedoticamente, deve-se registrar que seu arquivo administrativo foi parar no
Hospital de Clínicas,
141
e parte do seu patrimônio sumiu (inclusive valiosos equipamentos das
oficinas de cerâmica, de impressão, foto-cinematografia, estampado em tela, etc.). Pelos
cárceres da ditadura transitaram vários pintores (Clemente Padrón, Jorge Carabello, etc.). E,
como resultado da associação de identidade nacional, potencial criativo do artista e DSN, os
censores, no cumprimento das suas funções protetoras, chegaram a advertir um jornal por ter
citado uma vernissage de artistas plásticos romenos, em 1978.
142
138
Coojornal Especial, agosto 1978, p. 18.
139
Realidad, 23/05/84, p. 22.
140
En tiempos de desprecio. Oscar Brando. Brecha, 11/07/03. Separata A 30 años del golpe de Estado (VI). p.
IV.
141
Segundo o jornal Convicción, isto ocorreu porque a funcionária administrativa que assumiu o papel de
secretária durante a Intervenção da Escuela Nacional de Bellas Artes foi trabalhar, depois, nesse hospital, e levou
com ela o que restava daqueles documentos, inclusive os registros sobre a vida acadêmica dos alunos.
Convicción, 12/04/84, p. 13.
142
Coojornal Especial, agosto 1978, p. 18.
494
A ditadura golpeou mais duramente aqueles setores que lhe causavam maior medo:
particularmente, em termos de produção cultural, aqueles relacionados com atividades que
obtinham formas de interação mais profunda ou que atingiam maior número de pessoas.
Nesse sentido, explica-se a repressão desenfreada desencadeada sobre o teatro. Mais de uma
centena de artistas foram proibidos, presos e praticamente expulsos do país. Foi a aplicação de
um silenciamento amplo, multiplicador de outros, imposto ou induzido.
143
A partir de 1973, a censura começou a proibir as versões de Brecht
144
e de peças
sobre textos clássicos que eram vinculados com a reflexão crítica; autores como Lope de
Vega (Fuenteovejuna) e Sófocles (Antígona) foram censurados. Autores, diretores e atores
foram perseguidos e proibidos de atuar, dirigir, escrever ou ter qualquer contato com algum
organismo cultural em todo o território nacional (casos, entre outros, de Ruben Yañez, César
Campodónico, China Zorrilla, Atahualpa del Cioppo). Outros acabaram presos, como o
tupamaro Mauricio Rosencof e Hiber Conteris; outros foram expulsos. Ocorreram casos de
peças que foram canceladas mesmo após terem recebido licença para se apresentar. A
primeira onda de impacto foi marcada pelo fechamento de salas (Teatro Universal em 1973;
Club de Teatro em 1974) e a dissolução de grupos de teatro independente. Tentando
desmantelar o movimento teatral, as detenções e ameaças (ostensivas) se multiplicaram. O
trabalho das peças em preparação e as que estavam funcionando foi dificultado ao máximo,
tentando inviabilizá-las.
Mesmo que se tentassem respostas criativas e a substituição imediata dos atores
detidos (nuca se sabia por quanto tempo), a manutenção da peça em cena exigia um esforço
descomunal. Assim, como resultado da repressão direta, da crise econômica que atingia
particularmente os espectadores, do medo crescente e paralisante, do fechamento de salas (sob
pressão direta da ditadura) ou por opção defensiva, muitas das peças que não haviam sido
proibidas antecipavam o final da temporada. Clima sombrio traduzido por um
contemporâneo: “[...] los escuros embates de las fuerzas más regresivas [...] la falta de libertad
expresiva y un clima asfixiante casi invisible.”
145
Em 1974, o grupo La Comedia Nacional (instituição oficial) teve sua obra “Isabel,
três caravelas e um charlatão” suspensa, porque foi considerada uma ofensa contra as
tradições hispânicas (no mesmo ano em que uma publicação oficial de ensino dedicava um
143
MIRZA, Roger. Memória, Desmemoria y Dictadura. Una perspectiva desde el sistema teatral. In: RICO, A.
(Comp.). Uruguay: Cuentas pendientes. Dictadura, memorias y desmemorias. Montevideo: Trilce, 1995. p.
122.
144
Proibido até 1981. Volta com a encenação de várias peças, particularmente, “Vida de Galileu”, obra que, pela
concepção e interpretação, se constituiu em marco político-cultural de denúncia contra a ditadura.
495
artigo especial a Francisco Franco, “o maior defensor do mundo livre”). La Comedia
Nacional, de arraigada trajetória artística, havia encenado nove peças em 1973; em 1974, só
conseguiu encenar uma, a qual foi censurada. Dentro dessa linha, no ano seguinte, foi fechada
a Escuela Municipal de Arte Dramático após mais de duas décadas de atividade permanente.
Porém, talvez o maior golpe foi desferido contra “El Galpón”, grupo que construíra
um movimento de profunda recepção junto ao público, produzindo um teatro autônomo,
popular e de altíssimo nível. Possuía duas salas e uma escola de teatro. Contava com um
conjunto de teatro e outro de bonecos e tinha expressivo número de sócios cooperadores. Nos
anos prévios ao golpe, diante do crescimento do autoritarismo e da presença das bandas de
extrema direita, El Galpón respondia com um repertório conseqüente diante dos
acontecimentos e suas sedes viraram centros vitais para as organizações populares
democráticas.
146
No final de 1975, o governo proíbe de trabalhar a alguns dos seus
integrantes
147
e no início de 1976, seus diretores e principais atores foram presos, enquanto os
remanescentes colocavam em cartaz uma obra de Pirandello (El gorro de cascabeles) que, a
cada função, se transformava em um ato contra a ditadura. Em maio de 1976, o governo
decretou definitivamente a ilegalidade e extinção do grupo. Contraditoriamente, antes disso,
soltou os dirigentes presos diante da falta de provas de envolvimento em atos subversivos. O
grupo, dissolvido em maio, teve seus bens expropriados: salas, arquivos, vestiários, equipes
técnicas, depósitos bancários, etc. Ameaçados por novos requerimentos, alguns integrantes
solicitaram asilo na Embaixada mexicana de Montevidéu e decidiram continuar trabalhando
juntos fora do país. Radicados no México, realizaram mais de 2.000 funções em mais de 14
outros países.
148
Enquanto isso, os grupos Teatro del Pueblo, La Máscara e El Tinglado também
perderam suas salas. Como produto do fim das atividades teatrais de grupos reconhecidos e
também atingidos pelo medo de serem identificados ou associados a atividades ilegais, o
público diminuiu sensivelmente sua presença nas poucas salas que ainda restavam.
A música esteve entre as atividades culturais mais reprimidas, e, em todas as suas
modalidades, desde a erudita até a popular. É interessante observar que o fato da música
erudita estar, historicamente, mais ligada a setores da elite, do poder e das formalidades
governamentais, não a poupou de sofrer não só uma rigorosa fiscalização como uma
sistemática ação de controle sobre seus músicos, cantores e autores. Segundo a soprano Nelly
145
G. Fernández. Marcha, 28/12/73. Apud: MIRZA, op. cit., p. 123.
146
La Voz, 12/07/84, p. 30.
147
Idem.
148
Idem, p. 22.
496
Pacheco, proibida de cantar desde 1973 por ter participado de atos públicos da Frente Ampla,
foi no âmbito das manifestações mais ligadas a uma cultura oficial a maior repressão
ideológica,
149
pois se exigiu desses artistas uma identificação e um compromisso com o novo
regime que estas não tinham (por exemplo, cantar e tocar em eventos militares). Tais pessoas
sofriam, inclusive, delação de seus pares. A intervenção do Conservatorio Nacional foi
simultâneo à destituição de todos os docentes: “Todas las personas que hacían la cultura
musical uruguaya quedaron afuera.”
150
As Orquestras Sinfônicas (OSSODRE
151
e Municipal)
foram abaladas por inúmeras demissões; os contratos dos principais professores do
Conservatorio Nacional não foram renovados (casos dos professores Balzo, De Serdini,
López Chirico
152
e Vigil). Os que permaneciam sofriam e eram humilhados com a famosa e
constrangedora “fé democrática”.
153
Junto ao cerceamento motivado por razões políticas,
também ocorreram as infaltáveis pressões de ordem econômica e, acima de tudo, o
descomprometimento do Estado com essas atividades culturais. Muitos músicos abandonaram
a OSSODRE, abandonando o país a procura de melhores condições econômicas, constituindo
um “êxodo de talentos”, segundo o jornal colorado El Día.
154
A Orquestra Sinfônica de Porto
Alegre (OSPA), por volta de 1977, foi uma das orquestras que acolheu músicos uruguaios.
Da mesma forma, foi atingido o balé. O desestímulo oficial e a falta de condições de
trabalho desvalorizou artistas como Sara Nietv, dançarina do Sodre que, procurando novos
horizontes, até como forma de continuar evoluindo profissionalmente, também partiu para o
exterior.
Por outro lado, até os tangos começaram a ser em parte censurados ou simplesmente
proibidos de tocar. No final de 1976, as autoridades policiais informaram às emissoras de
rádio que sete tangos do repertório de Carlos Gardel estavam proibidos por refletirem
problemas da condição social do operariado e porque “traduzen un estado de ánimo
149
Entrevista a Nelly Pacheco, cantora de ópera que após ter sido proibida de cantar no país se fixou na Bélgica e
se projetou por toda a Europa. Voltou ao Uruguai em 1980. Pode lecionar mas continuou proibida de cantar até o
final da ditadura. Aqui, 10/07/84, p. 28.
150
Aquí, 10/07/84, p. 28.
151
Trata-se da Orquesta Sinfónica del Servicio Oficial de Radiodifusión y Espectáculos.
152
Hugo López Chirico, por exemplo, regente da Orquestra Filarmônica Municipal, foi demitido em 1975,
acusado dos seguintes cargos: dirigir a orquestra sinfônica no ato de inauguração da Frente Ampla; negar-se a
dirigir a orquestra do SODRE no primeiro concerto durante a ditadura; dar “asilo”, na orquestra, à esposa e à
filha de dois “subversivos” (o escritor Juan Carlos Onetti e o Decano da Faculdade de Arquitetura Carlos
Reverdito, respectivamente), concursadas na orquestra; chamar de “denunciante” a quem o denunciou para
instalação do sumário; ser insolente com a autoridade, etc. (Depoimento de Selva López Chirico ao autor).
153
O pianista Luis Batlle Ibáñez, que, por pertencer a uma família tradicional, não fora identificado como
“esquerdista”, rejeitou um contrato com o SODRE para executar um concerto por negar-se a assinar a declaração
de “fé democrática”. URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 27.
154
“Se a dispersão continuar se chegará a um ponto em que a OSSODRE se transformará em uma escola de
prática para alunos mais ou menos avançados em lugar do grupo profissional e experimentado que deveria ser.”
497
totalmente superado”, como no caso do tango “Al pie de la Santa Cruz” cuja letra conta: “hoy
se le negó el aumento al pobre obrero que le pidió un pedazo de pan.” A mesma coisa
aconteceu com o tango “Aquaforte” que diz: “Declaran la huelga / hay hambre en las casas /
es mucho el trabajo y es poco el jornal.” Até a tradicional Radio Artigas, que sempre tocou
tango e folclore platino, foi fechada durante cinco dias, em maio de 1978, por difundir a
çanção “La inyección”, cuja letra foi acusada de “menoscabar indiscutiblemente la moral y las
buenas costumbres.”
155
Os integrantes do movimento de música popular foram particularmente visados, pois
atraiam significativo público, o que assustava o regime. Daniel Viglietti, Alfredo Zitarosa,
Numa Moraes, Yamandú Palácios, José Carbajal, Los Olimareños e tantos outros tiveram que
se exilar para poder continuar seu trabalho. Alguns foram presos e depois libertados (Viglietti
e Pepe Guerra de Los Olimareños); outros foram proibidos de cantar. Sem saída, essas
pessoas desenvolveram intenso trabalho de denúncia no exterior contra o regime, participando
em encontros com outros latino-americanos exilados (Mercedes Sosa, os Parra, Quilapayún,
Inti-Illimani, etc), e nas próprias colônias de uruguaios espalhados pelo mundo a partir da
década de 70. Intérpretes estrangeiros como Joan Manuel Serrat, Mercedes Sosa, Jorge
Cafrune e Osvaldo Pugliese também estiveram expressamente proibidos de atuar no
Uruguai.
156
A falta de regras e a indefinição de políticas de proibições faziam parte dos
mecanismos de intimidação no âmbito da cultura. As pessoas afetadas enfrentavam a
incerteza e a insegurança derivadas do desconhecimento de regras e de critérios para sua
funcionalidade. Tal metodologia de ação inibia investimentos e produções, pois implicava em
correr riscos difíceis de avaliar. A falta de critérios definidos, reforçando que, muitas vezes,
isso era intencional, gerou situações que beiraram o absurdo, como aconteceu, por exemplo,
com o compositor e cantor Eduardo Darnauchans. A ditadura permitira que ele continuasse
compondo e gravando canções que tocavam no rádio; o cantor podia até aparecer na televisão.
Mas sofria uma restrição rigorosamente aplicada: estava proibido de cantar em qualquer lugar
do país.
Dentro das prisões, a política da ditadura foi a de inibir qualquer atividade criativa,
inclusive daqueles que viviam disso. Por exemplo, os casos do renomado pianista argentino
Miguel Angel Estrella e do compositor Anibal Sampayo. Este, preso por mais de 8 anos por
La Semana. Caderno semanal de El Día, 02/08/80, p. 18. Nota: tradução do autor.
155
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 27.
156
Idem.
498
pertencer ao MLN, lembraria que: “Eu tinha comigo um violão. Mas não podia compor nem
passar nada para fora. Tudo que escrevia era requisitado e destruído.” Depois de ser libertado,
mesmo tendo pago suas obrigações com a sociedade, segundo os critérios das Forças
Armadas, Sampayo continuou proibido de cantar “inclusive em rodas de amigos”, obrigando-
se a sair do país.
157
Quanto ao pianista Estrella, preso no Uruguai sob (falsa) acusação de ser
montonero, ouviu do coronel uruguaio Nino Gavazzo: “[...] vos no sos guerrillero, pero sos
algo peor: con tu piano y tu sonrisa te metés a la negrada en el bolsillo y les hacés creer a los
negros que pueden escuchar a Beethoven.” O conhecido torturador e chefe operacional dos
comandos uruguaios que seqüestraram e desapareceram com dezenas de exilados na
Argentina referia-se ao fato de Estrella ser conhecido internacionalmente como um virtuoso
da música e, particularmente, por tocar para setores sociais marginalizados, como os
moradores das villas misérias, dos índios coyas de Salta e de Jujuy ou os peões tucumanos.
Gavazzo jogava-lhe na cara sua “traição de classe”: “A vos te formaron para tocar para
nosotros y elegiste la negrada.”
158
O cuidado e excesso com a normatização de tudo levou a ditadura, no que concerne à
Comisión de Censura, a produzir anedotas surrealistas. Todo espetáculo público era
acompanhado por “funcionários” que tinham um roteiro informativo sobre os artistas que se
apresentavam e o repertório que havia sido liberado pela autoridade pertinente. Aliás, era pre-
condição para obtenção da permissão do espetáculo mandar às autoridades a documentação
dos responsáveis, do local e dos artistas participantes, com três cópias de todas as letras das
canções que pretendiam cantar: exigência da censura.
Em determinado espetáculo, Eduardo Larbanois, da dupla Larbanois & Carrero, foi
notificado por um policial, instantes antes de apresentar-se, que estava proibido de subir ao
palco. Tentando superar o impasse, o músico convenceu o policial: “vamos a atenernos a lo
que dice acá. ¿Que le parece si para no comprometerme canto abajo del escenario?”
159
Dito e
feito; o policial, cioso do seu dever, concluiu que estava cumprindo a ordem ao pé da letra. E
o público viu, surpreso mas já acostumado com fatos “estranhos”, como metade do duo
cantava sobre o palco e, a outra metade, o fazia... em baixo.
Fato mais curioso ainda ocorreu com o pajador Carlos Molina. Tendo atuado, em
nome da Asociación de la Música Popular Uruguaya (ADEMPU), na recepção a Alfredo
Zitarrosa (quando este voltava do exílio), foi detido imediatamente depois por não ter
157
Cadernos do Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, nº 31, p. 95.
158
Página 12, 12/10/03.
159
Cantando abajo del escenario. Brecha, 11/07/03. Separata A 30 años del golpe de Estado (VI). p. VIII.
499
apresentado antecipadamente as três vias das letras que pretendia cantar. Molina tentou
argumentar, sem sucesso, que ele era um pajador e que, portanto, sua arte era improvisar, ou
seja, nem sabia o que iria cantar. Diante do insucesso de fazer entender à autoridade
competente o porquê de não ter cumprido com a determinação da Comisión de Censura,
apelou para a didática da copla:
Cuando pulso el instrumento
Y me pongo a improvisar
Ahí ya me empiezo a olvidar
Mi copla muere en el viento.
160
Sendo o carnaval a maior festa popular do país, era pertinente que a ditadura
procurasse vigiá-lo e discipliná-lo. Um carnaval com importante grau de politização devia
sentir os reflexos da intervenção. A aplicação dos mecanismos de controle e de censura
produziram, num primeiro momento, um empobrecimento sensível. O carnaval uruguaio se
caracteriza pela descentralização das atividades artísticas. Ele se constitui de alguns bailes e
festas, desfiles inaugurais e as atuações que durante 40 dias se realizam em dezenas de
cenários de rua (tablados) espalhados pelos bairros de Montevidéu e de outras cidades.
161
As
manifestações artísticas são realizadas por conjuntos de humoristas, de candombe e as
populares murgas.
Paralelamente às apresentações pelos bairros, há uma apresentação oficial no Teatro
de Verano do Parque Rodó onde os diversos conjuntos são acompanhados por verdadeiras
“torcidas” de simpatizantes. Dentro desse panorama, o grande destaque são as murgas,
162
conjuntos populares que se organizam durante o carnaval para contar, com humor crítico, os
acontecimentos do momento. Durante a ditadura foram alvo direto da repressão. As letras das
apresentações foram censuradas e foram proibidas de empregar palavras como liberdade,
igualdade, justiça, justiça social, operários, classe operária, etc. Constituídas por quase 90%
de pessoas dos setores populares, que não possuem conhecimento musical teórico prévio, a
160
Idem.
161
DIVERSO, Gustavo. Murgas. La representación del carnaval. Montevideo: s. ed., 1989. p. 87.
162
As murgas são uma das modalidades de expressão cultural do carnaval uruguaio. Resultam da fusão de
expressões culturais espanholas (zarzuela) e africanas (comparsas) em fins do século XIX. A primeira murga é
de 1908. Nos anos 70 e 80, as murgas podem ser caracterizadas como conjuntos integrados por entre 12 e 17
integrantes masculinos que atuam durante o período do carnaval. Constitui um fenômeno artístico que liga a
música às artes plásticas, ao teatro, à poesia e à dança, tudo ao mesmo tempo. Apresentam anualmente um
repertório que constitui uma sátira dos valores sociais, envolvendo problemas e fatos quotidianos veiculados
através de temas musicais conhecidos, cantados em conjunto ou por solistas. O acompanhamento musical é feito
somente com instrumentos de percussão. As letras dos repertórios devem ser originais, criativas e devem
possibilitar a compreensão imediata ao público presente nos tablados. O conjunto deve respeitar algumas
convenções, como o fato de todos seus integrantes vestirem a mesma fantasia (que, segundo o regulamento
oficial, não se deve destacar pelo seu luxo, e sim pela sua originalidade) e se apresentarem com o rosto pintado.
500
murga é um exemplo específico da cultura uruguaia de caráter coletivo. Algumas foram
proibidas de atuar, como La Soberana e Las Ranas. E José Alanís, diretor da primeira, foi
processado no final de 1975 por: “Ataque a la fuerza moral de las Fuerzas Armadas.”
163
As condições precárias de liberdade esvaziam todo um rico processo de construção e
criação de cultura popular. Além da repressão física, o cerceamento foi feito mediante a
censura. Em alguns casos, letras do extenso repertório tiveram que ser modificadas em cima
do evento, obrigando, muitas vezes, a que a representação fosse realizada com uma nova letra
que não estava memorizada, impossibilitando uma melhor apresentação e um melhor
relacionamento entre a murga e o seu público, já que o contato direto e simples da palavra era
obstruído.
164
Enrique Vidal lembra do esforço da censura em eliminar todas as palavras com
conotação ambígua (subversiva ?) no texto de um quadro de uma murga que contava a
aventura de um navio pirata. O libreto com as letras foi peneirado e devolvido pela censura
com todas as palavras proibidas, que deviam ser substituídas, sublinhadas em vermelho. As
palavras perigosas identificadas pela Comisión de Censura eram motim, marinheiro,
uniforme, rebelde, sublevação, companheiros, objetivo, passado, clandestino, povo,
esconderijo, preso e a mais visada, capitão (os piratas obedeciam ao Capitán Garfio - o
Capitão Gancho da Disney).
165
Era necessário usar a metáfora, embora nem sempre, como no
caso anterior, as palavras parecessem tão metafóricas assim.
Apesar dos exemplos, às vezes um tanto patéticos, os primeiros anos da ditadura
foram muito duros para todos aqueles que se expressavam através do carnaval e das diversas
formas de comunicação popular nele contidas. Houve perda de qualidade e de público frente à
crise econômica e o medo à repressão que, diante da concentração de público, agia sob a
forma da infiltração e da provocação. Mesmo assim, quando a recomposição da resistência
permitiu novas atitudes de denúncias, cifradas ou não, as murgas assumiram, com a sátira, a
ironia e o humor, um protagonismo singular.
A tal ponto foi se politizando o discurso das murgas consideradas mais engajadas
(Reina de la Teja, Diablos Verdes, Falta y Resto, Araca la Cana, etc.) que, no final da
ditadura, uma autoridade policial reagia com indignação diante da influência e do prestígio
delas junto à população, e da contundência das suas críticas:
Esas letras no las dejo tocar. [...] si a los partidos políticos autorizados, que
(Normas Básicas Municipales. Carnaval - categoria Murgas. Intendencia de Montevideo).
163
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 27.
164
Opción, 02/03/82, p. 36.
165
VIDAL, Enrique. Que el letrista no se olvide. In: EQUIPO 23. deGeneraciones. Montevideo: Nordan
Comunidad, 1995. p. 70.
501
tienen sus convenciones funcionando, les está vedado hacer política, menos
puede hacerlo una murga, que tiene otra finalidad. No puede ser que los
partidos no pueden hacer propaganda y las murgas sí. Eso es distorsionar los
objetivos.
166
A denúncia ou protesto habilmente passados através de uma sátira, driblava a
censura, ameaças e prisões, fazendo crescer o respeito e o carinho do povo por este gênero
popular. A forte conexão com os setores populares tornou-as baluarte do embate social e
sinônimo de resistência contra a ditadura e contra o “colonialismo cultural”, sobretudo nos
carnavais dos anos 80.
167
Para as Forças Armadas e sua base doutrinária da Segurança Nacional a liberdade de
expressão, assim como os meios de comunicação, constituíram elementos de importância
estratégica para seus objetivos. Em primeiro lugar, era necessário aplicar-lhes uma ação
saneadora que extirpasse os agentes contaminadores escondidos nas suas redações e cargos de
direção. Dependendo do caso, se isso não fosse suficiente, fechavam o próprio meio
temporariamente (política de quarentena) ou de forma definitiva. Em segundo lugar, devia-se
tentar cooptá-los para que servissem de mediadores do discurso oficial com o conjunto da
população. Avaliava-se que jornais, rádio, televisão e cinema tinham influência direta sobre a
opinião pública; via-se que sua instrumentalização podia contribuir na consecução dos
Objetivos Nacionais.
Em função disto, é evidente que as Forças Armadas e seus aliados consideravam
prioritário colocar limites a uma liberdade de expressão e informação que devia ser
“protegida” frente ao risco de uma utilização tendenciosa a qual podia exercer influência
sobre a opinião pública. Para efetuar esse “acompanhamento”, foi criada, em 1975, durante a
administração Bordaberry, a Dirección Nacional de Relaciones Públicas (DINARP),
168
que
tinha controle absoluto sobre a informação, e o Departamento de Operaciones
Psicológicas.”
169
Entre as fundamentações da DINARP, constava que “el proceso
revolucionário que orienta y conduce el gobierno de la República debe ser conocido y
comprendido por la opinión pública, a efectos de propender, con su consenso y adhesión al
166
Idem, p. 80.
167
UBAL, Mauricio. O Momo antiimperialista. In: Cadernos do Terceiro Mundo, Rio de Janeiro, nº 89, maio de
1986.
168
Entre os objetivos da DINARP, podem destacar-se: establecer “sistemas de control sobre la difusión de
noticias que puedan afectar la imagen y el prestigio de la República en el exterior (y) neutralización de la prensa
y otros medios de difusión ideológica al servicio de intereses antinacionales y/o marxistas; procurar el consenso
y adhesión de la opinión pública para el proceso revolucionario (sic), assim como contrarrestar [...] las corrientes
de opinión y de información (que desarrollen) una opinión negativa y divorciada de la acción gubernamental,
con grave perjuicio para la imagen del Estado.” SERPAJ, op. cit., p. 358.
169
Idem.
502
logro de los objetivos nacionales.”
170
Para Marchesi, a DINARP tinha duas funções: produzir
informação e atividades divulgadas através dos meios de comunicação, às vezes com
reprodução textual das suas informações; e desempenhar um papel censor sobre esses
meios.
171
Na publicação oficial Uruguay Hoy 1973-1981, onde as Forças Armadas
apresentam sua versão do que é o novo país após sua irrupção no cenário político, a DINARP
(que é responsável por esse material de propaganda do regime), num pequeno texto de
sugestivo título (La imagen real de este país), justifica sua criação “por causa de la
neutralización de la propaganda contraria a sus acciones y objetivos [do Poder Executivo]”.
172
Ou seja, a ditadura não se contentou em centrar sua ação no acompanhamento, controle e
censura dos meios de comunicação, mas criou uma estrutura estatal específica que
“produzisse” e divulgasse informação (oficial). Portanto:
[...] que la población se mantenga continuamente informada sobre la gestión
de los gobernantes, [...] que entre en conocimiento detallado de las
motivaciones y los pasos de la reorganización general, [...] y que la defensa
de la imagen real del país se desarrolle en el marco de una organización
adecuada.
173
Para avaliar os efeitos do controle e da censura realizados pelas Forças Armadas é
importante considerar que o Uruguai tinha, em 1965, uma proporção de 260 exemplares de
jornal por mil habitantes. Ao final da ditadura (1984), podia-se aferir a dimensão das perdas: a
relação diminuíra em 30%, ou seja, 184 exemplares por mil habitantes. Os jornais de maior
circulação foram os que tiveram, em números absolutos, maiores perdas. Antes do golpe de
Estado, El Día, El País e El Diario eram responsáveis por 70% da tiragem da imprensa do
país. Os jornais El Día e El País, que antes do regime militar tinham tiragens diárias de 90 mil
exemplares, no final da ditadura caíram para 50% das mesmas, enquanto El Diario reduzia
em 80% suas vendas de 120 mil exemplares diários.
174
Para Caparelli, a redução em 30% da tiragem de jornais diários se explica por
diversos motivos. Entre eles, arrola a crise econômica, pois alguns leitores não se
reconheciam mais neles, não aceitando que os meios se comprometessem com um sistema de
poder marcado pela repressão e pela censura. Além disso houve a consolidação da televisão
170
MARCHESI, Aldo. El Uruguay inventado. La política audiovisual de la dictadura, reflexiones sobre su
imaginario. Montevideo: Trilce, 2001. p. 12.
171
Idem, p. 13.
172
DIRECCIÓN NACIONAL DE RELACIONES PÚBLICAS. Uruguay 1973-1981. Paz y futuro.
Montevideo: 1981. p. 19.
173
Idem.
174
CAPARELLI, Sérgio. Ditaduras e indústrias culturais no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai.
Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1989. p. 38.
503
como nova forma de consumo que transforma leitores em televidentes.
175
Sempre é necessário frisar que o cerceamento da liberdade de expressão iniciou
durante a administração Pacheco Areco, onde diversos mecanismos autoritários foram
implementados, o que marcou esse governo como uma etapa de gestação do TDE e de
experimentação de algumas das suas modalidades específicas de atuação. A censura à
imprensa vigorou desde o primeiro momento, após ele tomar posse, ao banir o Partido
Socialista e proibir, definitivamente, seus meios impressos, o diário Época e o semanário El
Sol. Durante seu governo, outros 44 jornais foram fechados em forma temporária ou
definitiva. Sob o “guarda-chuva” das Medidas Prontas de Seguridad, o governo procurou
impor o silêncio jornalístico sobre a evolução de greves e outras mobilizações sociais e
políticas que pudessem comprometer a “estabilidade das instituições”. Coerente com isso,
instituiu na censura prévia, exigindo o filtro da autoridade policial às informações
consideradas perturbadoras da ordem.
De posse das novas regras, sob acusação de subversão, de colaboração ou de
estímulo à mesma, dezenas de publicações de matizes políticos variados foram fechados,
extrapolando os limites da esquerda e da centro-esquerda, para atingir posições moderadas e
mesmo aquelas vinculadas à Igreja. O governo Pacheco Areco orientou a imprensa a
substituir as palavras “subversivo”, “movimento clandestino”, “comando”, “célula”,
“terrorista”, “criminoso político”, “criminoso ideológico”, “extremista” e “tupamaro” por
“réu”, “delinqüente”, “malfeitor” e “malviviente”. Ou seja, a censura visou tornar
impronunciável um tipo de manifestação política, o que chamou a atenção do mundo para o
fato de que, no Uruguai, existiam certos acontecimentos e protagonistas que eram
innombrables.
176
O governo Pacheco Areco foi responsável também pela criação do Departamento de
Operações Psicológicas, Sociais e Políticas, com o objetivo de influenciar atitudes, emoções e
ações da população.
177
Com ele, se colocou em prática a engrenagem da psicopolítica, as
operações psicológicas, sociológicas e políticas através do planejamento do uso dos meios de
comunicação para influenciar os grupos alvos. E, para o caso de guerra, cabia a esse
departamento planificar a política do Ministério de Defesa Nacional sobre os meios de
175
Idem, p. 39.
176
CAULA, Nelson; SILVA, Alberto. Alto el fuego. FF.AA. y Tupamaros. 3
a
ed. Montevideo: Monte Sexto,
1986. p. 68.
177
Committee to Protect Journalists and the Pan American Center. Uruguay: does democracy include freedom of
the press? New York, junho de 1983. p. 12, apud, CAPARELLI, op. cit., p. 88.
504
comunicação de massa, a fim de destruir a vontade de resistência do inimigo.
178
Portanto, o
período de Pacheco Areco incubou também uma política de restrições quanto aos meios de
comunicação.
As Forças Armadas justificavam a censura denunciando os excessos cometidos pelos
meios atingidos e alegando que os mesmos se faziam de vítimas diante da atitude “defensiva”
do governo. Usando esta inversão de valores, justificaram um dos casos de maior impacto - o
penúltimo fechamento do semanário Marcha, em junho de 1974. Assim se referiram a este
fato:
Uma das últimas medidas foi determinada não pelo sentido profundo e
deliberadamente antinacional que sua atividade espalha há anos e que exige
há muito tempo seu fechamento definitivo, mas pela publicação de um conto
conscientemente repugnante e obsceno, que ganhou um concurso literário. A
detenção preventiva do diretor, do júri e do pessoal de redação, aos quais
uma justiça que vive no limbo e que se satisfaz, julgando com preciosismos
técnicos alheios à realidade atual do país, absolveu, possibilita-lhes
novamente se erigirem em alvos de uma perseguição autoritária e a reafirmar
a impossibilidade de alterar os desígnios anti-uruguaios de uma campanha de
entrega do país ao imperialismo comunista.
179
Esta informação refere-se ao concurso literário que o semanário Marcha organizava
anualmente. O de 1973, presidido por Juan Carlos Onetti, o escritor uruguaio de maior
prestígio internacional na época, premiou o conto El guardaespaldas, de Winston Nelson
Marra. Tal conto, contendo alusões diretas às práticas de tortura praticadas pelo regime, foi
publicado nesse jornal em fevereiro de 1974. Diante disso, o governo processou o autor do
conto, Nelson Marras, por “atentado à força moral do Exército” e o condenou a 30 meses de
prisão.
180
Deteve também, por mais de um mês e sem julgamento, os integrantes do Júri, os
escritores Onetti, Mercedes Rein (Jorge Ruffinelli já estava no exterior e se exilou); o diretor
de Marcha, Carlos Quijano; o redator responsável, Julio Castro e o administrador Hugo
Alfaro. O semanário foi fechado por vinte edições.
181
Situações como esta alimentaram os Informes que, em 1977 e 1978, foram
divulgados pela Anistia Internacional e pela Inter-American Press Association. O Uruguai foi
considerado um país onde existia uma censura completa da imprensa. As denúncias
apontavam particularmente as requisições de jornais e revistas estrangeiras, fechamento
178
“La prensa amordazada. De la indignidad de algunos a las clausuras.” La República, 27/06/03.
179
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE apud CAPARELLI, op. cit., p. 90.
180
Antes disso, Marras foi levado à sede da Dirección de Información e Inteligencia (DII) onde foi brutalmente
torturado, principalmente com choque elétrico, em sessões assistidas por todo o comando da organização e do
futuro general Ballestrino. CALACE, José. Quince años en el infierno. Montevideo: TAE, 1989. p. 16.
181
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 26.
505
temporário ou definitivo de diversos órgãos de imprensa, censura, os efeitos da autocensura,
etc., e inclusive a constatação de que a própria Asociación de la Prensa teve a sede invadida
pela polícia, sofrendo expropriação de móveis e do arquivo. Particularmente, desencadeou-se
feroz repressão contra inúmeros jornalistas. Na perspectiva da psicopolítica, os jornalistas
tornaram-se alvos prioritários e estratégicos. Muitos foram detidos, torturados e proibidos do
exercício profissional. Um alto número emigrou ou partiu para o exílio. O seqüestro de
jornalistas se intensificou, tanto no Uruguai quanto entre os exilados na Argentina; alguns
desapareceram, como Julio Castro (vice-diretor de Marcha), outros, como Norma Cedrés (El
Popular) e Edmundo Rovira (El País), morreram na prisão.
Em 1977, a Ley 14.670 sobre radiodifusão estabeleceu que as emissoras de rádio
podiam ser sancionadas quando, “[...] sin configurar delito o falta, pudieran perturbar la
tranquilidad pública, menoscabar la moral y las buenas costumbres, comprometer la seguridad
o el interés públicos, o afectar la imagen o el prestigio de la República.”
182
Eram atos
complementários da ditadura: a medida que esmagava os focos internos de oposição e colhia
os resultados da prática repressiva, ampliava a área de atuação e de controle e partia para uma
política mais sofisticada de disciplinamento mediante leis e atos institucionais com o que
podia alegar que ações ilegais deviam ser combatidas, deixando em segundo plano as formas
mais diretas de repressão. Ainda:
Los informativos, comentarios, acotaciones, amenidades y otras formas
afines de expresión no deberán contener muestras directas o artificiosas de
simpatía, complacencia, apología de estilos antinacionales o reñidos con las
estrutucturas y formas de vida de la República y su proceso de desarrollo.
183
Com isso, não só se acenava com os critérios que justificavam as penalizações, mas
“recomendavam” sobre os aspectos que deviam ser realçados. Isto tem relação com o esforço
em mostrar que se estava construindo uma nova ordem, um novo Uruguai, a refundação do
país. Em síntese, a refundação do Uruguai pelas Forças Armadas e pela DSN.
Dados apresentados pela Asociación de la Prensa Uruguaya indicam que durante
dezembro de 1967 e 1º de setembro de 1981, ou seja, da ascensão de Pacheco Areco até a do
tenente-general Gregório Alvarez, 101 veículos de comunicação foram fechados
temporariamente e outros 30 de forma definitiva. E, na administração de Gregório Alvarez
(até meados de 1984), a censura se intensificou com outros 20 fechamentos temporários e 30
definitivos. Nessa listagem, não se incluem outras formas de sanções, como requisições de
182
SERPAJ, op. cit., p. 359.
183
Artigo 28, inciso b, apud SERPAJ, op. cit., p. 359.
506
edições completas
184
sob efeito da censura prévia, limitações à livre informação de
acontecimentos nacionais e internacionais, proibição de certos temas (greves, mobilizações,
atividades partidárias, etc.), críticas a instituições e autoridades governamentais, censura de
jornalistas e proibição de publicação dos seus textos, proibição de circulação de jornais e
revistas estrangeiras (inclusive Newsweek, Le Monde e Time), pressão sobre jornalistas para
divulgarem suas fontes, etc.
185
Nesse período, intensificou-se a pressão contra CX 30, La Radio e seu diretor José
Germán Araújo, uma das figuras públicas de maior relevância desde a perspectiva das
denúncias contra o regime. Denominada anteriormente Radio Nacional, este meio teve seu
próprio nome proibido pela ditadura. Então, passou a ser identificada, pela população,
simplesmente como La Radio, e continuou mantendo uma postura intransigente de defesa dos
valores democráticos. Araújo foi preso dezenas de vezes. Quando o Poder Executivo, em
1983, fechou definitivamente a emissora, Araújo iniciou uma greve de fome que foi destaque
internacional e que conseguiu reverter a medida (dezembro de 1983). Em maio de 1984, o
Canal 10 de televisão foi fechado por três dias por ter divulgado uma entrevista com Hugo
Batalla, importante advogado de presos políticos e liderança vinculada, na época, à Frente
Ampla.
Sem dúvida, na fase final da ditadura, recrudesceram as ações arbitrárias por parte
das Forças Armadas. O esgotamento do calendário eleitoral, os retrocessos das negociações
com os partidos políticos e, sobretudo, a onda de mobilizações sociais desafiando as restrições
vigentes e demonstrando a superação do medo imobilizador, elevaram o tom ameaçador do
discurso militar e levaram à aplicação concreta de novas medidas repressivas. Entre 1968 e
1981, foram fechados 39 jornais; um número aproximado foi fechado entre 1981 e 1984, no
final da ditadura. Este é um dado desse acirramento repressivo, mas também atesta que essas
medidas, apesar do impacto material, operacional, profissional e humano que produziam,
vinham perdendo eficácia ante a crescente manifestações de oposição. A cada jornal fechado,
outros surgiam dentro das faculdades, entre os setores políticos em rearticulação, do interior
da sociedade civil, etc.
É inegável que o início dos anos 80 assinala uma mudança de postura da sociedade
diante da ditadura. O plebiscito de 1980, seu entorno mobilizador e a vitória do NO se
184
A requisição de uma edição do semanário La Democracia, em maio de 1984, por ter publicado um discurso
de Ferreira Aldunate em Buenos Aires, teve um desfecho inédito até então. Os 15 mil exemplares da tiragem
apreendida foram devolvidos aos responsáveis do jornal transformados em papel picado; até então, as edições
recolhidas ficavam em poder da polícia. Correio do Povo, 12/05/84, p. 3.
185
Realidad, 16/05/84, 10 e 06/06/84, p. 4.
507
tornaram fatores de reativação e recuperação da arena política por parte da sociedade. A
derrota das esperanças continuístas dos militares estimulou o surgimento crescente de novos
semanários e jornais diários, de acordo com as posições manifestadas pela maioria dos
eleitores. Acentuou-se o ressurgimento de uma música popular, o Canto Popular, que desde
1978 começava a ocupar o espaço do vácuo produzido pelo apagón cultural. Para surpresa
dos militares, que tanto esforço devotaram à descontaminação de uma geração inteira, jovens
músicos surgiram cantando e compondo em cima de temas quotidianos. Dez anos de ditadura
não tinham sido suficientes para tirar da memória dos uruguaios suas raízes. O grupo de teatro
El Galpón”, embora exilado no México, continuava criando escola entre os jovens, assim
como vozes parecidas com as de Zitarrosa ou Viglietti se ouviam nos bairros. Além do
fracasso na erradicação da memória coletiva daquelas figuras exiladas ou presas há anos,
surgia uma geração que, apesar do recrudescimento da repressão, ocupava o vácuo cultural e
assumia posturas de resistência.
186
O TDE continuou ameaçando, censurando, prendendo, torturando e produzindo
mortes. Nova onda repressiva foi desencadeada e inúmeros jornais foram fechados. Alguns,
novos, não conseguiam ultrapassar dez edições.
187
Também ocorreu ampla depuração nos
quadros da Cinemateca, centro cultural cinematográfico de intensa reflexão crítica que
apontava rumo para a recuperação das instituições democráticas. Este centro partiu de estudos
sobre o questionamento da vigência de uma cultura uruguaia e seu empobrecimento geral com
a ausência de políticas públicas de fomento à cultura e a facilitação para a importação de
“produtos enlatados”.
Além dos efeitos diretos produzidos pela intervenção da ditadura no campo fértil e
criativo da cultura, outras conseqüências, nem sempre muito visíveis e que também incidiram
como marca residual das perdas constatadas, ocorreram. Um clima pesaroso atingiu durante
186
Cinemateca, nº 31, abril 1982, p. 22.
187
A sucessão de fatos no bojo da ofensiva desencadeada pela ditadura impressiona. As Forças Armadas não
mediram esforços para amedrontar a população e arrancar os acordos políticos que a elas interessavam para
retirar-se do cenário sem surpresas e sem perdas presentes nem futuras: Novembro de 1980, Radio Carve
suspensa por 48 horas e diretor de La Nueva Idea, detido; abril 1981, Opinar fechado por 4 edições e editor
preso (17 dias); setembro 1981, La Democracia (4 ed.), em outubro (8); outubro 1981, Opción (4 ed.); janeiro
1982, La Democracia (8 ed.); março 1982, editores de Búsqueda detidos para interrogatórios; abril 1982, Opción
(8 ed.); maio 1982, La Plaza (8 ed.), depois definitivamente e diretores a julgamento; julho 1982, La Razón (8
ed.), depois definitivamente; agosto 1982, novo julgamento editores de La Democracia; setembro 1982, editor
Alberto Zumarán preso (9 dias) e perda de direitos políticos; outubro 1982, Opción, fechado definitivamente;
janeiro 1983, jornalistas de Opinar interrogados; janeiro 1983, “sugestões” oficiais para que jornais nada
publiquem sobre estado sanitário das praias de Montevidéu; fevereiro 1983, processo contra editor e jornalista de
El Dia; fevereiro 1983, revista El Dedo fechada definitivamente e editor a julgamento; março 1983, Radio Carve
ameaçada por processo; março 1983, Lealdad, fechado definitivamente; maio 1983, La Democracia (6 meses).
(Committee to Protect Journalists and the Pan American Center. Uruguay: does democracy include freedom of
508
anos o meio cultural do país, até como contraste a um passado recente de importante
efervescência, que se perdeu desde os conturbados anos de Pacheco Areco. A ruptura de
gerações aumentou a percepção das perdas, sobretudo nos anos de 1973 até o plebiscito. O
oportunismo, o adesismo e o oficialismo foram formas de ascensão e de reconhecimento
segundo os critérios dos novos tempos, enquanto que poucos espaços para aprendizado, troca
de experiências e trabalho profissional restaram para os que não aderiram a essas posturas
fáceis. Tudo são sintomas de uma decomposição cultural que se aprofundou sob o impulso da
contra-subversão e o disciplinamento do comportamento social.
188
O fato do governo utilizar diferentes métodos de aplicação da censura ou da indução
a uma autocensura mostra versatilidade e uma política de Estado. A combinação de medidas
essencialmente repressivas com outras de asfixia econômica expressam alguma preocupação
com o impacto que isso produzia tanto internamente quanto externamente. Levar pequenas
empresas jornalísticas à quebra permitiam apontar para outras causas que não fossem
exclusivamente perseguição política. Por exemplo, as requisições de edições inteiras de
jornais foram uma metodologia aplicada nos últimos anos da ditadura, levando muitas
publicações a fechar por não conseguirem recuperar esses prejuízos econômicos causados e
pelas requisições ou fechamentos parciais. O mesmo podia-se pensar das censuras parciais
que sofriam os artistas, escritores, etc. A pessoa podia não sofrer violência física, mas era
impossibilitada de trabalhar. Outro podia gravar discos, mas não cantar em público; um
terceiro, em tese, não sofria um controle mais direto, mas as pessoas que se relacionavam com
ele eram constrangidas a ignorá-lo. Também não pode passar desapercebido que, além da
retirada de políticas de apoio à cultura (com autonomia e respeito aos artistas), a retirada de
propaganda estatal das atividades não quistas eram uma outra modalidade de pressão. Como a
relação da ditadura com boa parte dos círculos empresariais era profícua para ambos, estes
tampouco investiam em artistas ou produções suspeitos ou não confiáveis.
189
Ao entender a mecânica do funcionamento da repressão cultural, seus diversos
objetivos e a vastidão do seu alcance, entendemos o porquê de Mario Benedetti ter-se referido
a um genocídio cultural ocorrido no Uruguai:
[...] a violência contra a cultura foi feroz, é possível que o genocídio cultural
praticado no meu país tenha sido o mais grave dos ocorridos na América
Latina. Eu, pessoalmente, penso que por que no Uruguai, há muito tempo a
cultura não era uma coisa de elite, de minorias, senão que cada vez abrangia
the press? New York, junho 1983. p. 16, apud CAPARELLI, op. cit., p. 91.
188
Cinemateca, nº 32, julio 1982, p. 20.
189
SERPAJ, op. cit., p. 361.
509
setores mais amplos do povo: o teatro, a pintura, a literatura, a poesia, eram
atividades mobilizadoras e conscientizadoras. A ditadura se propôs desde o
primeiro momento acabar duramente com isso. Na sua linguagem, a cultura
era “subversiva”.
190
Sem dúvida, a repressão cultural e a repressão à liberdade de expressão se
alimentaram da ausência de garantias mínimas e da impunidade e acabaram sendo ostensivas
muitas vezes, patéticas em outras. Mas na avaliação global, e independente das resistências
contextualizadas, não se pode escamotear a eficiência de uma repressão silenciosa, impossível
de quantificar, e que contribuiu decisivamente para a gestação da cultura do medo e da
autocensura, a qual não atingiu só os produtores culturais, artísticos e os jornalistas, mas
também afetou os receptores dessa produção e inviabilizou ou dificultou sensivelmente as
possibilidades de diálogo, reflexão e, conseqüentemente, de recriação.
5.5 - REPRESSÃO E MILITARIZAÇÃO DO ENSINO
As vinculações entre a DSN e a intervenção autoritária exigiram uma profunda
cirurgia no sistema de ensino. Segundo as premissas que norteavam toda a concepção da
doutrina e o entendimento das forças internas, que se sentiam ameaçadas com o clima de
instabilidade resultante da crise e do avanço das reivindicações populares, um sistema de
ensino baseado em valores como laicidade, gratuidade e igualdade só poderia ser encarado
como subversivo e formador de subversivos. Isso estava de acordo com a preocupação central
da política estadunidense para a região. Certamente que as dificuldades no campo educacional
experimentadas pelos seus aliados do Cone Sul estiveram presentes na elaboração do
Documento Santa Fé, o programa da política externa do grupo Reagan para enfrentar, entre
outros, os desafios do sandinismo e das guerrilhas centro-americanas, no início da década de
80. Efetivamente, em relação à importância estratégica do controle da educação e da cultura,
diz que:
Os Estados Unidos devem tomar a iniciativa ideológica. É essencial que se
estimule um sistema educacional na América Latina que enfatiza a herança
cultural comum das Américas. [...]
A cultura é o meio pelo qual as culturas se mantêm, desenvolvem-se e
superam seu passado. Quem controlar a educação define seu passado e
(também) seu futuro. O amanhã está nas mãos e no cérebro dos que estão
sendo educados hoje [...] Deve ser iniciada uma campanha para capturar a
190
El Viejo Topo, s. d., p. 70.
510
elite intelectual íbero-americana através do rádio, da televisão, de livros, de
artigos e folhetos, de mais doações, bolsas-de-estudo e premiações.
Consideração e reconhecimento é o que mais agrada aos intelectuais e um
programa com essas características poderá atraí-los.
191
Portanto, é a permanência de uma preocupação hemisférica que se expressa também
através da relação de dependência e subordinação dos países latino-americanos aos Estados
Unidos. Para o Cone Sul, essa problemática estava desenhada desde o início da década de 60.
Junto aos tecnocratas, grupos de assessoramento, diplomatas, filiais de empresas
multinacionais e a indústria cultural, estavam os modelos educacionais sugeridos para
contribuir no combate às ideologias estranhas (esquerdistas, nacionalistas, populistas,
terceiromundistas e/ou, genericamente, progressistas).
O Documento de Santa Fé reafirmou uma tendência que já era perceptível desde os
anos 60 e que a experiência das ditaduras de Segurança Nacional confirmou: a educação e a
cultura também eram alvos da “pentagonização”, fosse através da pressão da indústria cultural
ou dos modelos de educação tecnocrática. A linguagem e a lógica da DSN estavam presentes
na imprensa, mostrando a preocupação dos setores conservadores com a politização da
geração de 68. Veja-se, por exemplo, este texto direcionado aos adolescentes e “recheado” de
jargões da DSN:
MUCHACHO, NO TE DEJES ENGAÑAR...
Piensa con tu cabeza en todo lo que aquí escribimos.
Los sediciosos son comunistas adiestrados para destruir nuestra forma
constitucional. Por eso roban, asesinan, imponen terror. Son ladrones,
asesinos, delincuentes. Son conscientes de lo que hacen.
Su consigna es: destruir el Uruguay como tierra libre.
Por eso necesitaron meterse en Secundaria, en la Universidad, en Primaria,
en organizaciones gremiales, en la religión, en el teatro, en el mundo
musical.
Ellos saben que en estos lugares siempre hay muchachos soñadores, fáciles
de ser engañados.
Muchacho, tienes que hacerte hombre de esta tierra libre.
No dejes que te roben tu forma de pensar.
No dejes que te maten tus sentimientos de uruguayo, llevándote a sueños de
tierras extrañas.
Todo lo que ves en América ha sido programado desde Moscú, desde Pekín,
desde La Habana... Defiende tu tierra frente a los uruguayos traidores.
Ponte de pie. [Alusão direta ao bando de extrema-direita JUP]
Arráncales el disfraz de los que se dicen “socialistas” que en nuestra tierra
son los que abren las puertas a quienes nos destruyen como país libre.
Arráncales el disfraz a los que se ponen el título de universitario, o de Rector
o de Decano, o de miembros de ‘organismos internacionales’ o de
191
DOCUMENTO SECRETO DA POLÍTICA REAGAN PARA A AMÉRICA LATINA. São Paulo: Hucitec,
1981. p. 73.
511
‘empresarios norteamericanos’, para tener patente de demócratas y tirarle al
Uruguay una puñalada trapera.
Sácales el disfraz a los ‘sacerdotes progresistas’ y a los que invocan para
defenderse títulos de Obispos, o párrocos o Pastores, disfraces que se ponen
para que tú no te enteres de su complicidad con asesinos comunistas.
Sácales el disfraz a los que pregonan ser ‘políticos izquierdistas’ dentro de
los Partidos Colorado y Blanco, que ya están vendidos al comunismo para
conseguir poder.
Sácales el disfraz de militar, General u Oficial, que proclama que la
violencia trae la violencia para engañarte y asegurar con falsedades su
candidatura presidencial.
Sácales el disfraz que se ponen, llamándose a sí mismos “opositores al
gobierno”; para abrirles las puertas al comunismo agresor.
Sácale el disfraz al “músico folklórico”que te lleva a que cantes las letras
que su alma destructiva de nuestra vida construye para lavarte el cerebro.
Aprende muchacho a descubrir a los uruguayos que valen, porque aman a su
patria.
Descubre y ponte al lado de los que tienen como tú, alma de uruguayos
libres.
Aunque a veces descubras que ellos tienen defectos como todos los seres
humanos tenemos.
No te dejes engañar muchacho de nuestra tierra libre.
De tu cabeza muchacho uruguayo, de tu corazón, tienen que salir las fuerzas
que aseguren la libertad del Uruguay para cuando nosotros hayamos muerto.
Coronilla
192
O alerta da mensagem aponta para os setores progressistas do Exército, da Igreja, dos
políticos democráticos e dos partidos tradicionais, para a Universidade, intelectuais e artistas
populares; todos são comunistas e traidores da pátria. A virulência do texto é representativa
do grau de polarização que atinge a sociedade. O adolescente deve ser protegido, é um alvo
frágil e fácil de ser atingido. Sua defesa implica, conseqüentemente, numa especial atenção ao
sistema de ensino, fato que se inicia ainda na gestão de Pacheco Areco, marca o período
“democrático” de Bordaberry e será objetivo estratégico da ditadura.
Os princípios que orientaram o ensino uruguaio, em todos os níveis, durante o século
XX, haviam-se estabelecido no final do século anterior: gratuitidade, obrigatoriedade e
laicidade. Dirigida por José Pedro Varela, a Reforma Escolar que implantou esses princípios
pretendia que a escola tivesse a freqüência da maior quantidade possível de crianças,
independente de origem social. Também, nesse período, surgiram as primeiras faculdades
(Matemáticas, Medicina, Ciências e Letras, etc.). Entre 1910 e 1920, durante o “período
batllista”, ampliou-se o número de estabelecimentos educativos. Assim, surgiram os Liceos
Departamentales, resultado da interiorização do sistema de ensino e da integração da
população rural à realidade de mudanças dirigidas desde Montevidéu, em função das novas
192
La Mañana, Edición del Interior, 03/09/70, 3, apud, DEMASI, Carlos (Coord.). La caída de la Democracia.
Cronología comparada de la historia reciente del Uruguay (1967-1973). Montevideo: Fundación de Cultura
512
condições e necessidades da economia do país e da demanda mundial. Logo após, foi criada a
primeira universidade de mulheres, ampliando as perspectivas de inserção social
(universidades mistas ainda eram proibidas).
Sem dúvida, a consciência de ter como direito uma educação gratuita de qualidade
permitiu alto nível na formação geral de grande parte da população. A Constituição de 1952
consagrou o princípio da autonomia dos órgãos de governo do ensino, diferente da maioria
dos países que os centralizavam no Poder Executivo, mediante o Ministério de Educação.
193
Desta forma, explica-se a organização qualificada dos estudantes que, durante a década de 50,
não só lutavam por seus direitos como, partindo de uma visão muito mais ampla do processo
uruguaio, procuravam unificar seu movimento com o de outros segmentos da população. Em
1958, enquanto combatiam pela aprovação da Ley Orgánica Universitaria, participaram de
uma ação unificada com os operários, aposentados e pensionistas. Organizados na Federación
de Estudiantes Universitarios del Uruguay (FEUU), lançaram conjuntamente com a
Convención Nacional de Trabajadores (CNT) a idéia da aliança operário-estudantil:
[...] fue en esas jornadas callejeras de 1958, enfrentando a la reacción
desatada y reclamando la sanción de la ley universitaria que se matrizó una
consigna luego transformada en línea de acción permanente, en medio de la
sangre y aún de la muerte: Obreros y Estudiantes unidos y adelante!
194
Esse movimento foi vitorioso e, em 1958, foi aprovada a Ley Orgánica de Enseñanza
Universitaria. A partir dela, a Universidade se transformou em palco de produção crítica,
científica e autônoma. A lei reconhecia o governo universitário com participação de docentes
e estudantes, funcionamento assentado em uma concepção ativa, criativa e libertadora da
educação. Possuía flexibilidade suficiente para permitir um processo orgânico e coerente da
Universidade e apresentava um dispositivo fundamental, o artigo nº 5 da lei, que declarava
que a Universidade tinha obrigação de defender o sistema democrático republicano de
governo.
195
(grifo meu)
A conjuntura de crise que evoluiu desde o final dos anos 50 desencadeou medidas
governamentais que atingiram as liberdades públicas, os direitos das pessoas, os princípios da
justiça e o bem estar social. A defesa destes princípios, por parte da comunidade acadêmica,
era o que estava implícito naquele artigo 5º. Cresceram, então, os confrontos entre a
Universidade e o Poder Executivo. As forças liberais e de esquerda da Universidade
Universitaria, 1996. p. 137.
193
URUGUAY 1973/1978. Informe apresentado pela Organización Internacional de Periodistas à Conferência
Geral da UNESCO. Paris, 1978.
194
RODRIGUEZ, Enrique. Uruguay: raices de la madurez del movimiento obrero. S. l.: s. ed., s. d. p. 89.
513
coincidiram no posicionamento intransigente diante de qualquer ameaça contra sua autonomia
e em defesa da Constituição, da legalidade e das liberdades; sobretudo, na medida em que
Pacheco Areco promovia a ampliação da participação dos militares na vida política do país. A
lei estava do lado dos defensores da autonomia do sistema, pois constava como norma
constitucional. A própria Constituição de 1967, em seu artigo 202, reafirmava:
La Enseñanza Pública Superior, Secundaria, Primaria, Normal, Industrial y
artística, serán respetadas por uno o más Consejos Directivos Autónomos.
[...] Los Entes de Enseñanza pública serán oídos, con fines de asesoramiento,
en la elaboración de las leyes relativas a sus servicios, por las Comisiones
Parlamentarias.
196
Quer dizer, em termos gerais, todos os setores do ensino apresentavam relativo grau
de autonomia e garantia constitucional de participação política em tudo o que dizia respeito à
educação. A existência dessa autonomia refletia uma situação de reconhecimento de
pluralidade social. Mas os ataques do governo contra o sistema de ensino se intensificaram:
intervenções em Secundaria e na Universidad del Trabajo, agressões contra os sindicatos, o
uso de bandos de extrema-direita provocando e agredindo estudantes e executando atentados
contra os estabelecimentos de ensino.
197
Essa foi a resposta contra as mobilizações estudantis
e a atitude contestatória da Universidade frente às políticas governamentais.
É evidente que a dinâmica da autonomia estimulara uma intensa politização de
docentes e estudantes. A Universidade, diante da crise, foi ocupando importante espaço de
crítica e assumiu um protagonismo ativo no diálogo político e na proposição de alternativas
de desenvolvimento. Setores mais radicais viam-se como parte de um contra-poder, ao estilo
renovador das ondas do complexo processo global do “68”.
Nos anos que precederam o golpe, a situação do ensino refletia a profunda crise que
assolava o país, principalmente na redução do poder aquisitivo dos salários dos docentes e na
tentativa do governo Pacheco Areco de destituir o Consejo Central Universitario, órgão que
dirigia a Universidade (fato que, à luz da lei, era inconstitucional). A tensão social, o avanço
do autoritarismo e os recortes orçamentários (particularmente na educação) se
entrelaçaram.
198
Em 1968, o movimento estudantil sofreu as primeiras mortes. Líber Arce,
199
195
Jornada, ano 1, nº 0, setembro 1984. Órgão da FEUU e da ASCEEP.
196
Constituição de 1967, em seu artigo 202.
197
Desde 1969, tornaram-se freqüentes os ataques de grupos de extrema-direita contra os liceos e as residências
de estudantes e professores. Indivíduos encapuçados espalharam o terror através de atentados com armas de fogo
e artefatos explosivos, além de assassinatos. Entre junho de 1969 e março de 1973, ocorreram mais de 200
atentados. DEMASI, op. cit., p. 215.
198
O ano de 1968 foi um ponto de clivagem quanto à redução dos investimentos destinados à educação. Iniciava-
se um período de queda pronunciada. Se em 1967 o investimento era da ordem de 26,1% do orçamento nacional,
514
Susana Pintos, Hugo de los Santos e Heber Nieto foram vítimas do crescimento da violência
repressiva estatal.
200
Tentando paralisar a oposição crescente, o governo procurou assumir o controle
sobre a informação relacionada à Universidade, o que fica claro na seguinte correspondência
do Chefe da Polícia de Montevidéu ao redator do semanário Marcha:
Sr. Redactor Responsable del Semanario “Marcha”:
Se pone en conocimiento de esa redacción que cualquier comunicado o
remitido que la Universidad de la República u organismos integrantes, como
ser Facultades, Institutos, Escuelas, etc., envíe a ese órgano de publicidad,
debe ser sometido previamente a su publicación, a contralor por parte de esta
Jefatura de Policía, no incluyéndolo en la edición respectiva sin obtener la
correspondiente aprobación.
Saludo a usted atentamente
Cnel. Alberto Aguirre
Jefe de Policía de Montevideo
201
No ano de 1970, ocorreu o que Enrique Rodriguez chamou de “Batalha do Ensino”.
Segundo ele, a influência do Maio Francês e o crescimento da guerrilha urbana radicalizaram
os estudantes secundaristas e universitários. O governo e sua base de apoio viram, com
preocupação, o apoio de muitos pais às reivindicações estudantis, abandonando uma postura
anterior de moderação ou indiferença:
La oligarquía y el imperialismo palpaban que también ese sector de la
sociedad, las nuevas generaciones, donde ellos tenían antaño la fuente de
reserva de quienes pasarían a suplantarlos, sea como clase dominante o sea
como administradores o justificadores intelectuales de seu dominio de clase,
estaban “contaminándose”de las ideas progresistas, olvidándose y hasta en
actitud de repudio de las plácidas ideas liberales burguesas.
202
O conflito se intensificou. Os estudantes, além dos seus objetivos específicos,
denunciavam a penetração do imperialismo norte-americano no plano econômico, cultural e
militar. Alertavam também para o gradual avanço de medidas de cunho autoritário sobre a
em 1968, diminuia para 19,7%. APPRATTO, Carmem; ARTAGAVEYTIA, Lucila. La educación. In:
APRATTO, Carmen et al. El Uruguay de la dictadura (1973-1985). Montevideo: Banda Oriental, 2004.
199
O cortejo fúnebre que acompanhou os restos de Liber Arce, primeiro estudante morto na história do país,
reuniu cerca de 200 mil pessoas, fato de proporções inéditas, que mostra o grau de descontentamento de amplos
setores da sociedade com o governo e seu respaldo ao movimento estudantil.
200
Em função das mortes dos estudantes pela repressão policial, o Ministro do Interior, Eduardo Jiménez de
Aréchaga, foi interpelado pelo Senado. Um pedido de renúncia feito pela oposição fracassou diante da “falta de
quorum”, frustrando a iniciativa de condenação do governo (na figura do próprio ministro). APPRATTO;
ARTAGAVEYTIA, op. cit., p. 216.
201
Marcha, 15/08/68, 7, apud DEMASI, op. cit., p. 66.
202
RODRIGUEZ, op. cit., p. 146.
515
Consituição democrática de 1967: passeatas e ocupação dos centros de ensino foram a tônica
principal da luta. Ancorado nas Medidas Prontas de Seguridad, a repressão respondeu com a
intervenção e a dissolução do Conselho de Ensino Secundário (Secundaria), expulsão de
professores, o aumento da ação violenta e ostensiva dos grupos de extrema-direita
(“estudantes de boas famílias que resistiam ao guevarismo”). A intervenção de Secundaria
feriu sua autonomia e gerou grandes manifestações apoiadas pela CNT, entre as quais, uma
greve geral de professores, funcionários e estudantes secundaristas e universitários. Estes,
tentando evitar a perda do ano letivo, promoveram as experiências de Liceos Populares, onde
professores e alunos passaram a desenvolver as atividades curriculares em locais sindicais,
clubes esportivos e paróquias.
203
O protagonismo dos pais constituiu uma importante novidade. Somaram-se aos
filhos nas suas reivindicações e deram-lhes apoio na exigência de liberdade para os estudantes
detidos, organizaram guardas noturnas nas escolas e pressionaram o Parlamento e as
autoridades oficiais pertinentes. Diante do impacto dessa mobilização, o governo teve que
recuar e a intervenção foi derrotada. De qualquer forma, o clima de tensionamento não
arrefeceu e o governo suspendeu as aulas dos liceos e do Instituto de Profesores Artigas
(IPA), de formação de professores, pelo resto do ano, com a alegação da existência de:
movimento sedicioso no interior do sistema de ensino, educação proselitista de contracursos
tendenciosos, transformação de estabelecimentos de ensino em focos de agitação e cooptação
de alunos, docentes que cooptam pais para a ação contra as autoridades.
204
Sobre os contracursos, as Forças Armadas diriam posteriormente que:
Los mismos fueron dictados en locales del Partido Comunista o locales de la
Iglesia Católica u otros cedidos por los elementos marxistas infiltrados en
estas organizaciones. Se invitaba a los alumnos a recibir la enseñanza que
ellos mismos no habían impartido optando por la promoción del caos. Los
jóvenes estudiantes eran sometidos a un verdadero “lavado de cerebro” en
los contracursos y como beneficio, los profesores marxistas acomodaron los
exámenes a quienes iban a éstas clases y aplazaban a los que por decisión
propia o de sus padres no fueron a los contracursos.
205
O filtro do anticomunismo e da DSN está explícito nesta leitura funcional e crua dos
contracursos. É inegável que houve um processo de radicalização entre os diversos
movimentos estudantis e alguns setores docentes nesse contexto. Constatou-se até
manifestações de autonomização de grupos mais radicais em relação às posições majoritárias.
203
Idem.
204
APPRATTO; ARTAGAVEYTIA, op. cit., p. 220.
205
COMANDO GENERAL DEL EJÉRCITO. Testimonio de una nación agredida. Montevideo, 1978. p. 229.
516
Mas foi o avanço do autoritarismo no ensino o que mobilizou e radicalizou posições e
setores.
206
O governo havia assumido uma prática intervencionista e repressora que coincidia
com as frustrações alimentadas pela crise econômica. O aumento de sumários contra
professores, os cortes orçamentários e o ataque ao direito de autonomia atestam a iniciativa
governamental de uma administração que vinculava ensino e DSN, e justificava suas ações
com o argumento de que defendia os jovens, principais alvos da subversão.
Tal política respondia as preocupações manifestadas pelos Estados Unidos com a
questão educacional da América Latina. Sob sua orientação e no contexto da “Aliança para o
Progresso”, os países latino-americanos haviam expulsado Cuba da Organização dos Estados
Americanos e aprovado a Carta de Punta del Este. Esta, na área do ensino, indicava a
necessidade de modernizar e homogeneizar o sistema para atender as exigências dos novos
programas econômicos e a configuração de uma política cultural de contra-insurreição
continental.
Octávio Ianni aponta que várias reformas educacionais implementadas logo depois,
em diversos países da América Latina, foram decorrência dessas diretrizes, e tinham como
características comuns a priorização do ensino técnico e profissional, a tecnificação do ensino
de humanidades e ciências sociais e a despolitização das relações e das organizações
educacionais nos níveis docentes e discentes.
207
No Uruguai, a situação não foi diferente. A pressão por mudanças no sistema de
ensino e a imposição de uma educação autoritária não iniciou, portanto, com a ditadura
cívico-militar. Durante o governo de Pacheco Areco, ficou muito claro o embate entre o poder
autonômico do sistema de ensino e a tentativa do Poder Executivo de enquadrá-lo. Mas foi
durante o ano de 1972 que esse conflito chegou ao seu apogeu. Foi quando o presidente
constitucional Bordaberry e seu Ministro de Educação e Cultura, Julio Maria Sanguinetti,
elaboraram um projeto de lei de educação finalmente aprovado em janeiro de 1973. Faltava
um ano para o golpe de Estado quando essa lei foi criada e faltavam seis meses quando foi
aprovada.
208
A Ley de Educación General foi um marco no processo de controle,
centralização e de reversão da qualidade do ensino. Foi também a fundamentação para um
novo modelo educativo. Considerando que o governo reprimiu todo foco divergente,
209
o
206
APPRATTO; ARTAGAVEYTIA, op. cit., p. 221.
207
IANNI, Octavio. Imperialismo e cultura. Petrópolis: Vozes, 1979.
208
Convicción, 29/05/84, p. 13.
209
A revista Para Todos, numa avaliação contemporânea sobre o entorno do debate da Ley de Educación
sublinha que foi desencadeada uma escalada de terrorismo contra o Ensino Público (terror ideológico e físico).
Além de todo tipo de repressão física e destruição material, sofria-se também a agressão da calúnia, das mentiras
e da deformação dos fatos por parte dos meios de imprensa oficialistas. Para Todos (Terrorismo contra la
517
caminho do autoritarismo e da repressão no setor da educação passou por essa lei:
A educação uruguaia, buscadora de homens críticos, criara as bases de uma
sociedade amplamente participativa. [...] Esta participação, agora
questionadora dessa velha ordem, começa a ser considerada perigosa por
aqueles que se negam a reconhecer a necessidade de mudanças profundas.
210
Para Victor Cayota,
211
o governo Bordaberry (ainda na fase “democrática”)
implementou uma legislação que contradizia as tradições que conformavam a maioria das leis
vigentes, colocando as bases de um Estado autoritário e policial que poderia exercer a
repressão em todos os planos da atividade nacional, com manutenção de uma fachada de
“legalidade”.
212
Assim ocorreu com a Ley de Educación, aprovada pelo Senado (18 votos a
favor e 11 em contra). Em termos gerais, a lei regulamentou, mediante novos dispositivos, o
ensino em todos seus níveis, abandonando, na prática, as idéias básicas que haviam norteado,
até então, a educação uruguaia. O novo enfoque, apesar das justificativas em contrário por
parte dos autores, coincidia, no terreno educativo, com os objetivos gerais da lógica da
Segurança Nacional.
213
A aprovação da lei foi antecedida por intenso debate. O reitor da Universidade, Oscar
Maggiolo, questionou fortemente, no Parlamento, a fundamentação da lei e a inspiração nos
modelos ditatoriais da Argentina e do Brasil apresentada nas considerações introdutórias do
projeto:
No entendemos cómo pueden tomarse los ejemplos de dos países que están
sometidos a dictaduras militares como base de una ley educacional, en
momentos en que el propio fundamento del proyecto establece que se debe
buscar una incidencia fundamental de los órganos de gobierno en el sistema
educacional.
214
O aparente estranhamento de Maggiolo é mais uma ironia: o objetivo principal da
proposta do Executivo era sabidamente acabar com a autonomia dos Conselhos que regiam
cada nível de ensino. A alusão às experiências dos países vizinhos era visto como provocação.
Para Maggiolo, a proposição de mudanças no sistema de ensino a partir de referências,
encobertas ou explícitas, de modelos autoritários beirava a irresponsabilidade. Sobretudo, por
enseñanza), n° 17, setiembre 1972. p. 17.
210
La Voz de la Mayoría, 12/07/84, p. 21. Nota: tradução do autor.
211
CAYOTA, Victor. Bajo el manto de la “Ley de Educación”. Cuadernos de Marcha, nº 67, noviembre 1972.
p. 12.
212
Idem, p. 11.
213
La Voz de la Mayoría, 12/07/84, p. 21.
214
Informe ante la Comisión de Instrucción Pública de la Cámara de Representantes. In: LEY DE EDUCACIÓN
GENERAL. Análisis Crítico. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria, 1972. p. 56.
518
ser o sistema uruguaio o recomendado como modelo pela própria UNESCO. Que uma
ditadura se espelhasse em outra, era compreensível. Mas que o governo de um regime
democrático se espelhasse, isso não era bom sinal. No fundo, tratava-se da existência de
projetos ou intenções que, não só confirmavam opções semelhantes, mas reforçavam o
entendimento da influência de uma matriz comum.
Maggiolo persistiu nas críticas e apontou outros elementos que considerava
perniciosos e que identificou como tendo raízes fascistas (referindo-se à legislação italiana de
1924), como o monopólio total da educação pelo Estado, o estabelecimento minucioso do que
era considerado ilícito para estudantes, alunos e funcionários e as penalidades pertinentes aos
docentes, funcionários e pais de estudantes.
215
Denunciou ainda o regime de urgência com
que a lei tramitou no Parlamento; espantou-se com a pressa para tratar de algo tão estrutural,
complexo e estratégico para o país e as futuras gerações. Considerando tudo isso, Maggiolo
concluiu, pela rejeição do projeto, por entender que não havia sentido em alterar “[...] un
sistema educacional que es [...] posiblemente lo más rescatable de todo el Uruguay”
216
por
outro com aquele teor.
Também é muito instigante ver como o Decano da Faculdade de Direito, Alberto
Ramón Real, analisou o entorno do enunciado da proposta da lei e a estratégia do governo
para aprová-la dentro das suas expectativas.
217
Para ele, havia uma lógica perversa na maneira
como agia o governo. Diante das mobilizações estudantis decorrentes da grave crise estrutural
e das respostas autoritárias (MPS, estado de guerra, leis especiais, jurisdição militar,
suspensão de garantias), a administração, com o pretexto de “combater a subversão”,
respondia com mais propaganda e com a organização de grupos parapoliciais de extrema-
direita, uniformizados ou não, e armados. Os jornais oficialistas denominavam os integrantes
destas organizções de estudantes “democratas” e “patriotas”. A esquerda caracterizava-os
como bandos “fascistas” arregimentados e instrumentalizados pelo governo.
Real desconfiava da explícita ineficiência do regime na repressão aos delitos
cometidos pela extrema-direita em comparação com o desempenho obtido contra os setores
progressistas. Para ele, a situação era evidente: o “lumpem” pago fazia as “tarefas sujas” da
repressão parapolicial.
218
Curiosamente, quando diminuíam as tensões de Secundaria, a
215
Idem, p. 66.
216
Idem, p. 77.
217
Trasfondo de un proyecto. In: LEY DE EDUCACIÓN GENERAL. Op. cit., p. 81.
218
Entre maio de 1971 e setembro de 1972, foram atacados (alguns mais de uma vez) os seguintes Liceos de
Montevidéu: 1, 2, 2b, 3, 5, 6, 6b, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 17, 17b, 18, 19, 26. Foram atacados por grupos vestidos de
civil, armados com armas de fogo, porretes e barras de ferro. Bateram em alunos, destroçaram objetos, vidros,
portas e escreveram palavras ameaçadoras como “comunistas ratas”, “muera el comunismo, viva la democracia”.
519
extrema-direita intensificava suas ações com o objetivo de manter e aumentar o “caos”; caos
que exigia, segundo a propaganda oficial, uma reforma do tipo autoritário e que era defendida
abertamente pelos setores conservadores e abastados da sociedade e aplaudida pela JUP.
Também é curioso que, no meio destas tensões, era apresentada a proposta governamental de
“despolitização” do ensino.
219
A intervenção e o fechamento de diversos estabelecimentos por
decreto, na administração Pacheco Areco, foram mecanismos de cerceamento e de
esvaziamento dos Conselhos de Ensino que, sob a ação das MPS do governo, viraram
instrumentos de “controle social” e promotoras do consenso e do conformismo:
220
Hay quienes suponen ingenuamente que la sanción de esta Ley traerá la paz
a los establecimientos de Enseñanza Secundaria. No va a traer la paz.
Esta es una Ley de guerra y como una ley de guerra ha sido pensada. Casi las
dos terceras partes de las disposiciones normativas de este proyecto de ley -
son normas penales, disciplinarias, y prohibitivas, son normas que contienen
amenazas, son normas que tipifican faltas y delitos, son normas que regulan
penas.
221
Nesse sentido, no artigo 28 (inciso 2 e 3) da lei, proíbe-se expressamente:
2) Realizar o participar en cualquier tipo o clase de actos, reuniones, salas,
asambleas, homenajes, plebiscitos y elecciones en las oficinas o
establecimientos de educación [...].
3) Colocar avisos, dibujos, emblemas, insignias, carteles, imágenes, leyendas
escritas o grabadas, arrojar volantes o realizar cualquier otra clase de
actividad o propaganda política, gremial o contraria a la moral o las buenas
costumbres, en las oficinas o establecimientos de educación.
A vitória de Bordaberry significou o continuismo e o aprofundamento do modelo
dirigido por Pacheco Areco, com o cuidado de preservar, na forma de lei, a política anterior
de uso sistemático de MPS. Em entrevista concedida no final da ditadura, Sanguinetti
justificava a aplicação da lei por considerar que, na época, a sociedade uruguaia estava
perturbada com a radicalização das tensões sociais. Discordando das críticas feitas ao espírito
da lei, Sanguinetti desresponsabilizava-se dos seus efeitos alegando que o problema foi o uso
Funcionários, professores e diretores foram ameaçados (“va a correr mucha sangre”). Suásticas foram
desenhadas muitas vezes. Palavras de ordem eram gritadas durante os ataques (“bolches a Rusia”, “mueran
tupamaros”, “viva la policía”). Feriram e mataram estudantes (Liceo 8, 12/08/72). Inúmeros domicílios de
estudantes e professores sofreram atentados, a maioria assumidos pela JUP. É importante ressaltar que isto
aconteceu em escolas secundaristas, onde as primeiras séries eram de estudantes que beiravam os 12 anos.
Informe apresentado pela Dirección General de Enseñanza Secundaria na Câmara de Senadores. In: LEY DE
EDUCACIÓN GENERAL. Op. cit., p. 149-156.
219
Trasfondo de un proyecto. In: LEY DE EDUCACIÓN GENERAL. Op. cit., p. 81.
220
Idem, p. 83.
221
Arturo Rodriguez Zorrilla. Mesa redonda: Ley de Educación General y Ley Orgánica de Secundaria.
Asamblea Nacional de Profesores, 25/12/72. In: LEY DE EDUCACIÓN GENERAL. Op. cit., p. 113.
520
que dela fez, posteriormente, a ditadura, o que contribuiu no esvaziamento cultural do país.
222
Essa tese é questionável, como se infere das reflexões e críticas que recebeu dos seus
contemporâneos.
Por exemplo, na avaliação de Victor Cayota, a lei comete um duplo erro inicial. O
primeiro, pretender atacar as conseqüências (as mobilizações estudantis e sindicais) e não as
causas das tensões (crise econômica, deterioração social, redução orçamentária, desemprego,
ação repressiva, etc.). O segundo, querer solucionar os problemas de mobilização estudantil
mediante normativas repressivas como as contidas na lei.
223
O artigo primeiro da referida lei afirmava que a meta essencial da política educativa
era:
[...] coordenar e armonizar la adecuada educación permanente de todo el
pueblo oriental, la continuidad del proceso educativo personal, la constante
superación de todos los miembros de la comunidad,
la defensa de la
soberanía nacional, el orden y la seguridad integral del Estado y el desarrollo
del país.
224
[grifo meu]
No inciso nono do artigo 10, isso era reforçado: “criar una conciencia activa en el
educando para la defensa de la soberanía nacional, el orden y la seguridad integral del Estado
[...].”
225
E era reafirmado, de acordo com os princípios da DSN, no artigo 27:
Es contraria a la Constitución de la República y a los fines de esta ley, toda
forma de enseñanza, educación o docencia pública o privada que atente
contra
la seguridad del Estado o el orden interno, instigue a cometer delitos,
a violar la Constitución o la ley, preconice la violencia como método o fin, o
sea mero instrumento de una política partidista de imposición totalitaria o de
denigración de las instituciones democráticas.
226
[grifo meu]
De forma geral, sob a sombra desta lei, o ensino foi subordinado ao poder político ao
eliminar a essência da autonomia e colocá-lo sob o controle estatal. Na medida em que se
impôs um Consejo Nacional de Educación integrado por cinco membros designados pelo
Presidente da República (dos quais somente dois deles precisavam ser professores), vinculou-
se a administração do ensino com interesses e relações político-partidárias. Por isso, Cayota
definia como sendo uma peça de humor negro o fato de constar, no artigo 27, que era contra a
Constituição “toda forma de enseñanza, educación o docencia” que fosse instrumento “de una
política partidista”, na medida em que o próprio Conselho, pela sua forma de existência, se
222
Convicción, 12/04/84.
223
CAYOTA, Victor. La enseñanza. In: SIJAU. Coloquios sobre Uruguay y Paraguay: la transición del
estado de excepción a la democracia. Montevideo: Banda Oriental, 1985. p. 66.
224
Idem.
225
Idem.
226
Idem.
521
ANEXO VII
Medo, insegurança, desconfiança...
Idéia desenvolvida a partir da história “O Delator”,
da peça Terror e Misériano III Reich, de Bertolt Brecht
Charge de Pancho
Fonte: Marcha, 16/06/72.
522
enquadrava dentro desse ilícito.
227
O reitor Maggiolo coincidia nessa crítica e reforçava o
significado da perda de autonomia. A existência de Conselhos que respondiam à autoridade
do poder político contradizia toda a legislação nacional vigente até então.
A lei dizia claramente que era proibido fazer proselitismo nos estabelecimentos de
ensino, embora esse termo fosse impreciso. Isso representava mais uma contradição da
proposta, segundo os críticos contemporâneos. Em última instância, questionava-se a falta de
isenção de quem devia julgar o que era proselitismo ou não - o Poder Executivo -, já que era
ele que implementava medidas de cerceamento da livre expressão de pensamento e que
considerava proselitismo analisar fenômenos como imperialismo, democracia, regimes
constitucionais, etc.
Da elaboração das políticas para o sistema de ensino, não participavam mais os
docentes, excluídos ao perder os três representantes que tinham no Conselho segundo a lei
anterior. Os estudantes também não tinham mais voz, até porque toda atividade envolvendo
debates ou participação era fortemente vigiada e perseguida. A mesma coisa acontecia com os
pais. Estes, não só perderam um papel de protagonistas nos debates sobre políticas
educacionais como foram pressionados a assumir um papel constrangedor: agir como
“colaboradores” das direções no disciplinamento dos estudantes.
A lei também servia de cobertura para a implementação de medidas repressivas
contra funcionários, alunos e professores, adotando o recurso da transferência como sanção.
Por outro lado, proibia qualquer forma de associação e de propaganda sindical. Uma medida
como esta, feria um dos princípios básicos do Estado de direito. Mas desconhecia também
que, na tradição sindical dos funcionários vinculados ao ensino, a reivindicação de
orçamentos para o ensino era uma atitude reconhecida pelo conjunto da sociedade, já que a
impactava como um todo, na medida em que a população beneficiada pela existência de um
ensino gratuito e de reconhecida qualidade era muito grande. Diante das crescentes carências
materiais do cotidiano escolar e universitário, era normal haver a expectativa de pressões de
estudantes e professores. Mas, com as novas regras, o governo visava impor o silêncio deles
frente a essa situação ou tornar ilegal seu comportamento para assim justificar sua repressão.
As funções de direção e de inspeção foram convertidas em cargos de confiança,
passíveis de serem revogados sumariamente, além de não se exigir mais, como condição para
preenchê-los, a formação docente. Os desdobramentos possíveis eram evidentes. Pela simples
leitura do texto da lei, tornava-se perceptível qual o papel e conduta que se esperava das
227
CAYOTA, Victor. Bajo el manto de la “Ley de Educación”. Cuadernos de Marcha, nº 67, noviembre 1972.
p. 12.
523
pessoas que viriam a desempenhar tais funções. Os cargos de direção foram transformados em
verdadeiros agentes da ordem no interior dos estabelecimentos de ensino.
228
Deviam “vigilar,
prevenir daños y hacer desistir a los educandos de cualquier actitud o comportamiento
incorrecto, reputado ilícito o prohibido”.
229
Também eram obrigados a “[...] dar cuenta de
inmediato a sus superiores de la existencia de ambientes perniciosos, inconvenientes,
peligrosos o de corrupción [...]”.
230
E a lei era taxativa quanto a postura a assumir: “[...] todos
los funcionarios están obligados a cumplir y hacer cumplir esta ley [...]”.
231
O artigo 38 ia
mais longe: não só obrigava os diretores a denunciar imediatamente a seus superiores todos os
delitos ou atividades ilícitas ou proibidas que pudessem afetar a ordem e o normal
funcionamento do serviço, como “[...] deberán también, requerir el auxilio de la fuerza
pública [...]”.
232
Na medida em que os inspetores e os diretores possuíam cargos revogáveis, sua
permanência na função era garantida pelo grau de eficiência que desempenhava nas ações de
controle, vigilância e delação, assim como na subserviência demonstrada aos Conselhos de
Educação, dos quais eram dependentes e subordinados.
233
Para Cayota (1972), tal medida era
coerente com o regime de terror global que se impartia e, particularmente, originava uma
função distorcida desde sua normatização. O regime interno dos liceos foi reestruturado
mediante essa mecânica em que funcionários atemorizados deviam cumprir com zelo a função
exigida, ou seja, assumir-se como eficientes e dóceis instrumentos da repressão. Mas com um
agravante: sendo precarizados, a insegurança dos cargos tornava-os mais ciosos das suas
obrigações. Quer dizer, desencadeavam uma mecânica repressiva própria, dentro dos limites
do horizonte que suas funções lhes possibilitava e articulados com o esquema maior de
controle que envolvia o sistema de ensino como um todo. O objetivo da lei parecia colocar
como premissa que havendo “directores obedientes se obteriam estudiantes y padres
obedientes”.
234
Para se ter uma idéia dos absurdos cometidos em nome desta lei autoritária, basta ver
um anúncio do Consejo Nacional de Educación - CONAE - (13/05/75), destinado à eleição de
cargos na Inspeção Departamental de Montevidéu, onde se estabelecia que o primeiro critério
a ser valorizado na escolha dos candidatos era pertencer à categoria “Esposas de Militares”; o
228
Cadernos do Terceiro Mundo, nov. 83, p. 50.
229
LEY DE EDUCACIÓN GENERAL. Análisis Crítico. Montevideo: Fundación de Cultura Universitaria,
1972. Art. 20.
230
Idem, Art. 21.
231
Idem, Art. 22.
232
Idem, Art. 38.
233
Idem, Art. 39 § 5.
524
segundo era ser “Esposa de Inspetor”; somente depois, aparecia o ser docente.
235
Uma das formas mais refinadas de cooptação idealizada pelos agentes do
autoritarismo em gestação foi a inclusão dos pais como co-responsáveis pelas ações dos
estudantes. Ou seja, os pais deviam introjetar uma postura de controladores da ordem, de
disciplinadores. A intenção do governo com estas medidas de refinamento autoritário era
muito pretenciosa: primeiro, reverter o processo de identificação ou aproximação de muitos
pais com o movimento estudantil; segundo, transformar os pais em co-partícipes no esforço
disciplinador policial em gestação:
Los padres, tutores y encargados de los educandos menores de edad, tienen
la obligación de colaborar en el cumplimiento de esta ley, y de reparar daños
morales y materiales causados por el acto o hecho del educando menor de
edad em perjuicio de los funcionarios del Ente, de los otros educandos o de
los establecimientos de educación.
236
Pior: além de responsabilidade, eram forçados a assumir obrigacões indenizatórias, e
eram chamados a desempenhar um papel de “colaboradores” da nova ordem:
Los padres, tutores y encargados de educandos, menores de edad, cuando lo
requieran los directores de los establecimientos de educación, estarán
obligados a prestar la máxima colaboración para prevenir daños y hacer
desisitir a los educandos menores, bajo su dependencia, de cualquier actitud
o comportamiento considerado ilícito o prohibido.
237
E as represálias chegavam ao extremo de:
En caso de insistencia injustificada [...] dispuesta por los directores de
establecimientos [...], los padres, tutores o tenedores de educandos quedarán
suspendidos en el derecho de administrar la asignación familiar y otros
beneficios sociales de que gozan en atención a la tenencia de aquéllos [...].
238
Inclusive, diante da reincidência do estudante, verificava-se a reincidência da
negligência do pai, o que, no projeto de lei, explicitava a possibilidade de perder a patria
potestad. Nesse projeto original, constava, como maior perversidade, a pressão sobre os pais,
visto que a reiteração da omissão dos mesmos poderia acarretar na perda da guarda do filho.
Na lei aprovada, essa alusão direta foi retirada, embora a ambigüidade de intervenção da
justiça não afastava essa possibilidade. O que constava era o fato de que, de acordo com o
artigo 279 B do Código Penal, a omissão fosse punida com castigos que variavam entre 3
234
La Voz de la Mayoría, 12/07/84, p. 21.
235
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 11.
236
LEY DE EDUCACIÓN GENERAL, op. cit., Art. 33.
237
Idem, Art. 34.
238
Idem, Art. 35.
525
meses e 4 anos de prisão!
Mais uma vez, reafirmava-se o caráter repressivo da lei:
De modo que al padre se le somete a todo este aparato de compulsión: se le
llama para ordenarle que ponga en vereda a su hijo toda vez que el director
del establecimiento educativo (funcionario removible sin expresión de causa,
hombre espejo de las preocupaciones del sistema de seguridad trasladado al
campo de la educación) entienda que corresponde hacerlo. Si el padre no
puede u omite injustificadamente hacerlo (¿y quién decide cuándo estará
justificado y cuándo no?) se le condena a la miseria a él y a su familia,
cortándole asignación familiar, hogar constituido y demás beneficios
sociales. Y si el menor insiste en ser rebelde y el padre insiste en no poder
encaminarlo, se le quitan los derechos de la patria potestad [...] y se le manda
preso. [...] el orden estatal conduce los derechos de la paternidad y los de la
libertad, y dispone de ellos drásticamente.
239
Portanto, os pais podiam ser penalizados se os filhos cometessem crimes como no
caso de solidarizar-se com as reivindicações que faziam seus próprios pais como cidadãos
explorados ou reprimidos, o que, em si, podia tornar-se uma dupla punição. O pai podia
deparar-se com um terrível paradoxo, o de “[...] considerar como delito en su hijo lo que para
él es un derecho.”
240
Para o governo, todas as mobilizações estudantis se reduziam a má
criação. Por isso, “delinea un aparato de reclutamiento del padre, centrado en esta opción: o
me ayudas a convencer a tu hijo de que se porte bien, o te voy desnudando de tus derechos y
acabo mandándote preso.”
241
Carlos Martínez Moreno diz que a aplicação dessas medidas
lembram “aquellas historias de delación entre padres e hijos, a que obligaba el nazismo”
242
como retratou exemplarmente Bertold Brecht, na história “O Delator”, da peça Terror e
Miséria no III Reich (ver a esse respeito, a charge do Anexo VII).
A percepção deste tipo de cenário leva Cayota a afirmar: “esto cada vez se parece
más a un código penal que a una ley de educación.”
243
Para o jurista Martínez Moreno, a
situação era ainda pior:
No es un Código Penal, porque el Código Penal establece con claridad qué
es lo lícito y qué es lo ilícito, y en la Ley de Educación se establecía una
vaga definición de lo prohibido y de lo permitido, quedando al arbitrio del
jerarca de turno decidir qué podían hacer los estudiantes y qué no podían
hacer.
244
239
¡Ojalá fuera un Código Penal! Cuadernos de Marcha, noviembre 1972 (Ley de Enseñanza). p. 21.
240
CAYOTA, Victor. Bajo el manto de la “Ley de Educación”. Cuadernos de Marcha, nº 67, noviembre 1972.
p. 14.
241
Idem, p. 20.
242
Idem, p. 21.
243
Idem.
244
MARTÍNEZ MORENO apud CAYOTA, Victor. La enseñanza. In: SIJAU. Coloquios sobre Uruguay y
Paraguay: la transición del estado de excepción a la democracia. Montevideo: Banda Oriental, 1985. op. cit.,
p. 65.
526
Da mesma forma, pronunciava-se Julio Castro ao analisar o projeto de lei. Concluía
que o mesmo contradizia a tradição educativa do país e coroava uma obsessão policial
repressiva de ameaças, castigos e expulsões. O estímulo à delação e à espionagem destruía o
alicerce da relação fraterna professor-aluno e correspondia a uma mentalidade de “caça às
bruxas”.
245
Portanto, esquematicamente, pode-se dizer que as críticas implícitas nas análises da
lei apontaram para as seguintes questões:
246
1) abandono da consulta às comunidades dos diversos setores do
ensino;
2) subordinação da educação ao poder político;
3) criação de uma engrenagem repressiva e proibitiva;
4) integração, através do CONAE, dos três níveis de ensino não-
universitário (primário, secundário e técnico);
5) militarização do ensino no país, através do CONAE; em cada Conselho,
Faculdade e instituição cultural pública, há um militar encarregado da
sua direção;
247
6) derrogação da Ley Orgánica (1958) para a Universidade;
7) anulação da autonomia em todos os Conselhos, subordinando-os ao
CONAE;
8) nomeação docente condicionada à confiança política e não à formação
pedagógica;
9) mudança do caráter dos cargos de inspetor e diretor (viram cargos de
confiança);
10) criação de artifícios para destituir professores e funcionários em casos
especiais;
245
CASTRO, Julio. La caza de brujas. Cuadernos de Marcha, noviembre 1972 (Ley de Enseñanza).
246
Informações obtidas a partir do artigo “La Enseñanza es del pueblo porque la defiende el pueblo”. La Voz de
la Mayoría, 12/07/84 e do material específico sobre educação do documento “Uruguay 1973/78” (Doc. cit.).
247
Para ilustrar esta situação: CONAE (Vice-reitor Coronel Julio R. Soto); Conselho de Educação Primária
(Subdiretor Geral Interventor coronel Juan C. Reissig); Conselho de Educação Técnica Profissional Superior
(Subdiretor Geral Interventor coronel Elbio Amorín); Universidade (Oficial de Enlace da ESMACO coronel
Mario Larrauri); Hospital Universitário (major Enrique Boix); Comissão Assessora de Planejamento Educativo
(coronel Guillermo Lopeteguy). Quanto ao Ministério de Educação e Cultura há o Diretor Geral (coronel Gabriel
Barba); Presidência do Conselho de Pesquisas Científicas e Técnicas (coronel Leonardo Pastorino); Vice-
presidência do Serviço Oficial de Difusão Rádio-elétrica (coronel Gustavo Ferrand). URUGUAY 1973-1978, op.
cit., p. 10.
527
11) abandono dos concursos (títulos e méritos) para preencher cargos de
professor;
12) ilegalização de toda atividade sindical de docentes e alunos;
13) repressão massiva de diretores, professores, estudantes e pais;
14) fomento da delação e da denúncia nos centros educativos e nos lares
estudantis.
A lei também suprimiu a representação docente dos Conselhos e eliminou a
Assembléia de Professores, que se reunia periodicamente com delegados secundaristas
eleitos. Tal Assembléia estudava e decidia sobre assuntos técnico-pedagógicos.
Como foi visto, a espiral autoritária não se restringiu ao sistema de ensino.
Simultaneamente, ocorreram outras ações repressivas que, com maior ou menor incidência,
também afetaram o setor cultural. A apreensão de milhares de livros, o fechamento de
diversos meios de comunicação, a instalação da censura, etc., são alguns exemplos concretos.
Em termos de perseguições aos movimentos sociais, a Federación de Estudiantes
Universitarios del Uruguay foi dissolvida por decreto, em 1º de dezembro de 1973, e, no 16
de abril de 1975, foi a vez da Federación de Profesores de Enseñanza Secundaria.
Sempre é importante frisar que a Ley de Educación foi aprovada por um Parlamento
receptível a um Executivo autoritário, mas ainda antes do golpe de Estado. Segundo
Campodónico, Massera & Sala, com a instalação da ditadura, em junho de 1973, iniciou-se a
reforma do sistema educativo. Em uma primeira etapa, que vai até 1975, elaborou-se a
reforma enquanto se desencadeavam as medidas repressivas e institucionais de
“descontaminação” mais imediatas, a fim de garantir o controle do mesmo. Na segunda etapa
(1975-1984), tentou-se reformular o sistema educativo procurando modificar profundamente
condutas, mentalidades e o caráter dos indivíduos.
248
Em relação à Universidade, o golpe de Estado e a Greve Geral decorrente, que tentou
resistir a ele sem sucesso, tornaram-na palco de inúmeros confrontos. Logo após a
oficialização do golpe, a Universidade se pronunciou através do Consejo Directivo Central:
El país ha sido sacudido por un decreto del Poder Ejecutivo mediante el cual,
con desprecio de la norma constitucional, disuelve el Parlamento y asume,
arbitrariamente, la totalidad del poder.
La Universidad de la República está historicamente comprometida en la
defensa de las libertades públicas, la soberanía nacional y el progreso social.
[...]
El camino que acaba de elegir el Poder Ejecutivo reafirma una vía que es
248
CAMPODÓNICO, Silvia; MASSERA, Ema; SALA, Niurka. Ideología y educación durante la dictadura.
Antecedentes, proyecto, consecuencias. Montevideo: Banda Oriental, 1991. p. 107.
528
todo lo contrario de lo que los más altos intereses populares reclaman. Se ha
optado por instaurar una dictadura que divide al país [...].
Ante estos sucesos, la Universidad de la República expresa serenamente que
no medirá sacrificios para dar cumplimiento a sus fines, que la identifican
con la felicidad pública, y no con la regresión y la barbarie.
Por tanto, el Consejo Directivo Central exhorta a todos los universitarios
cualesquiera sean sus tareas, a luchar conjuntamente con la totalidad del
pueblo - organizado en el movimeinto sindical, en los partidos políticos y en
otras instituciones y agrupaciones sociales sensibles al destino nacional -
contra el afianzamiento de la dictadura, por el restablecimeinto pleno de la
vigencia de las libertades y por la reconstrucción del país en un marco de
efectiva democracia política, sobre bases de convivencia harmónica y
participación de todos los orientales.[...]
249
Mesmo considerando a clareza e a objetividade do posicionamento da Universidade,
surpreendentemente, o agora governo ditatorial de Bordaberry optou por não intervir de
imediato e apostou nas eleições internas de setembro de 1973, definidas estatutariamente. O
Poder Executivo avaliou que podia permitir que as mesmas se realizassem para capitalizar
uma imagem positiva no exterior. Imaginava que, após o golpe de Estado, as candidaturas
orientadas à resistência democrática seriam superadas por aquelas alinhadas com a nova
ordem em instalação. Para garantir isso, impôs o voto secreto e obrigatório, fatores
considerados favoráveis ao regime (a convocação da “minoria silenciosa”). Entretanto, os
resultados foram bem diferentes das expectativas do governo: 80% dos votos optaram por
candidaturas de forte questionamento ao golpe de Estado enquanto 18% apoiaram listas
moderadas mas, igualmente, democráticas. Somente 2% votaram em branco; estes eleitores
foram identificados como a base aproximada de simpatia de que dispunha a ditadura dentro da
Universidade. Após a tenaz resistência da Greve Geral, as eleições universitárias mostravam,
publicamente, a persistência de outro foco de resistência ao golpe de Estado e à nova ordem.
Confirmados os resultados eleitorais, tornou-se evidente que o regime só aguardava um
pretexto para intervir na Universidade. E o mesmo ocorreu quando explodiu uma bomba
manipulada por um estudante no interior da Faculdade de Engenharia. Imediatamente, o
Reitor e os Decanos foram detidos e isolados durante mais de um mês. Um deles foi
processado e esteve preso durante 18 meses; a Universidade acabou sob intervenção e
iniciaram as perseguições aos docentes.
250
O próprio titular do Ministério de Educação e Cultura, coronel Edmundo Narancio,
assumiu o governo da Universidade como interventor. Durante a própria posse como ministro,
249
Declaración del Consejo Directivo Central de la Universidad de la República, 27/06/73. Apud, RICO,
Álvaro. 1968: El Liberalismo Conservador. Montevideo: Banda Oriental/Facultad de Humanidades y Ciencias,
1989. p. 64.
250
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 9.
529
enquanto procurava apresentar-se com um tom relativamente moderado e pedia um voto de
confiança à comunidade, mostrava-se duro com o alvo das suas ameaças: o ensino
fundamentado no “marxismo-leninismo”.
Yo no soy un troglodita, que piensa que eso no debe darse, que eso no debe
enseñarse, de ninguna manera. Eso debe enseñarse. Lo que no debe
realizarse es una enseñanza de tipo totalitaria que ignore todo lo demás fuera
del marxismo-leninismo que ha producido el pensamiento humano; que ha
llegado a invadir de temor los medios académicos, en que la gente no se
pronuncia por sus auténticas ideas, en que algunos me han confesado el
pudor que sienten por ocupar determinadas posiciones pero que las ocupan
por miedo. Todo eso señores, hay que concluirlo. Debe terminar. Eso no
significa cortarle la cabeza a nadie ni mucho menos. Ni métodos violentos ni
cosas por el estilo, porque tampoco ello está dentro de mi modalidad.
Creo que hay que abordarlo por medio de la persuasión y de una serie de
procedimientos que no son del caso mencionar en esta circunstancia pero
que se irán observando a través del trabajo a desarrollar en esta cartera. El
Evangelio dice: “por sus frutos conoceréis”, y yo estoy de acuerdo con ese
principio y quiero que se aplique a mí.
251
Apesar de apelar para o Evangelho e indicar que métodos violentos não combinavam
com ele, Narancio era parte do regime que desencadeava um cerceamento drástico: supressão
da autonomia e da co-gestão, destituição maciça de professores, eliminação do concurso como
forma de ingresso, designação direta de docentes (cargos de confiança) e funcionários, ambos
sujeitos aos já comentados certificados A, B e C, ilegalização da FEUU, e supressão de todas
as atividades de extensão universitária.
252
A função primordial que a ditadura visou implementar ao ensino em geral foi a
imposição da autoridade e dos valores da classe dominante procurando a fragmentação do
processo e a censura à discussão e à crítica intelectual. Como diz Germán Rama, a
característica central desta modalidade de dominação é a de “não fomentar nenhum tipo de
mobilização social, o que reduz significativamente o papel ativo da educação”.
253
Rama
resume as principais formas de repressão e modificação propostas pelo projeto militar na área
do ensino:
[...] Entre as ações inibitórias, cabe destacar a eliminação da autonomia
acadêmica e da liberdade de cátedra, a exclusão dos corpos docentes dos
indivíduos considerados ideologicamente adversos (impedindo-lhes, em
certos casos, o exercício de qualquer tipo de docência, inclusive a privada) e
251
NARANCIO apud RICO, Álvaro. La dictadura, hoy. In: MARCHESI, Aldo; MARKARIAN, Vania; RICO,
Álvaro; YAFFÉ, Jaime (comps.). El presente de la dictadura. Estudios y reflexiones a 30 años del golpe de
Estado en Uruguay. Montevideo: Trilce, 2004. p. 83.
252
Cadernos do Terceiro Mundo, nov. 83, p. 51.
253
RAMA, Germán et al. Desenvolvimento e educação na América Latina. São Paulo: Cortez/Autores
Associados, 1983. p. 78.
530
a expulsão de estudantes militantes ou com capacidade para liderar grupos
em confronto com o sistema. Entre as ações de reformulação merecem ser
citadas a restrição daqueles campos de conhecimento ideológico [...] e a
modificação dos conteúdos em certas disciplinas.
254
Para a consecução dos seus objetivos gerais, a nova ordem precisava atuar de tal
forma sobre o sistema de ensino que permitisse, como passos iniciais, apagar da memória
concepções não-autoritárias de ensino-aprendizagem. Para isso, era fundamental eliminar o
mecanismo de participação estudantil e docente e perseguir àqueles que eram seus “inimigos”
e os que não conseguia atrair para seu lado.
A violência contra as instituições de ensino e a perseguição contra milhares de
professores de todas as áreas e de estudantes não teve precedentes, desde o fechamento
temporário da Universidade até a suspensão de alguns cursos na área das Ciências Humanas.
De um dia para outro, as escolas públicas e os liceos tiveram seus diretores substituídos por
interventores militares ou civis. A perseguição contra os docentes atingiu números alarmantes.
Na faculdade de Ciências Econômicas, foram expulsos 25 profissionais, o Instituto de
Ciências Sociais da Faculdade de Direito foi fechado, na Faculdade de Humanidade e
Ciências, expulsou-se o corpo docente das áreas de História, Filosofia e Literatura Uruguaia.
Na faculdade de Arquitetura, foram destituídos 45% dos professores; na de Engenharia, 70%,
e, na de Agronomia, 85%. Muitos desses docentes foram presos (alguns mortos em prisão),
outros se afastaram por medo ou precaução, e outros tantos se exilaram.
255
Essa enorme leva
de professores qualificados foi substituída por profissionais sem preparação acadêmica e por
muitos militares, que passaram a exercer funções dentro das salas de aula.
Os docentes universitários remanescentes foram submetidos à exigência de
subscrever a Declaración de Fe Democrática, sob pena de destituição. Tal fato, constituía um
paradoxo para o pesquisador e para a perplexidade dos contemporâneos, pelo fato de que “[...]
un régimen que disolvió el parlamento por la fuerza y usurpó la voluntad popular reclamara la
adhesión... al sistema republicano democrático de gobierno”.
256
Segundo a análise realizada
no texto de denúncia denominado Uruguay 1973-1978,
[...] ante la opinión pública poco cultivada, [a exigência da Declaração de Fé
Democrática parecia ser] una política inspirada en las tradiciones nacionales
liberales. En ese momento proseguía aún en el cargo de presidente el Sr.
Bordaberry, el mismo titular que había sido electo antes del golpe de estado,
254
RAMA et al., op. cit., p. 74.
255
Ainda na Faculdade de Química, perderam seus cargos mais de 100 professores ou ajudantes (65% do total).
Na Veterinária, cerca de 45 docentes renunciaram ou foram destituídos. Na Faculdade de Medicina 250 docentes
renunciaram em solidariedade com os primeiros destituídos. URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 14.
256
Declaración de Fe Democrática. In: URUGUAY 1973-1978, idem.
531
y eso contribuía a dar una imagen de legitimidad al nuevo régimen.
Mas o documento, que também
[...] aludía a los partidos de izquierda y a todos los Sindicatos (inclusive la
Federación de Estudiantes y la Federación de Docentes Universitarios)
comprendía a la gran mayoría de docentes que habían pertenecido a alguna
de esas instituciones en épocas en que eran legales. La alternativa era mentir
declarando que no habían pertenecido (y ser entonces pasibles de prisión) o
negarse a firmar y ser, por tanto, destituídos. Muchos docentes se negaron a
firmar, muchos otros renunciaron.
257
A pesquisa científica se ressentiu fortemente nesse processo, tanto pela perda de uma
geração de pesquisadores empurrada para o exílio ou prisões quanto pela ausência e
impossibilidade de reposição da mesma. A crise completou-se com a paralisia das pesquisas
em andamento e com um sensível corte dos investimentos aplicados na Universidade,
responsável pela produção de quase toda a pesquisa básica e aplicada e pelo fornecimento de
assistência técnica a importantes setores industriais e agropecuários. Efetivamente, em 1972, a
Universidade representava perto de 9% do orçamento nacional. Em 1978, no mesmo período
em que os Ministérios de Defesa Nacional e do Interior absorviam mais de 50% daquele, a
Universidade era reduzida a 3%.
258
Os campos experimentais e os laboratórios sofreram com o abandono e a falta de
investimento e de manutenção, isso num país onde 90% das exportações provinham da
atividade agropecuária. Aliás, é do interventor da Faculdade de Agronomia a seguinte pérola:
“ [...] había que suprimir la investigación porque incomodaba a la enseñanza.”
259
Dentro
dessa perspectiva, aconteceram fatos surrealistas como o da estação experimental de
Paysandú, onde se criava um rebanho de ovinos selecionados. Após mais de 15 anos de
cuidadosas experiências genéticas, obteve-se alto grau de procriação. Com a desativação da
pesquisa, as experiências foram suspensas. Os animais foram entregues aos soldados da tropa
que ocupavam a estação, os quais comeram o rebanho geneticamente melhorado, fruto de
quinze árduos anos de pesquisa.
260
Na rede escolar, o afastamento de professores ocorreu sumariamente devido a
antecedentes penais, desinteresse governamental em prorrogar contratos, decisão policial ou
militar diante de antecedentes negativos, proselitismo comprovado ou participação em
atividades proibidas. Os novos professores contratados passaram pelo crivo da escolha
257
Idem.
258
Idem, p. 23.
259
Idem, p. 22.
260
Idem.
532
ideológica ou pessoal. Alguns recém formados, sem a possibilidade do concurso, nunca
conseguiram trabalhar.
261
Em contraposição, os professores de Educação Moral e Cívica e os
professores de sexto ano escolar (o último antes da passagem para o liceo) deviam ser de
extrema confiança, pois sobre eles recaia a importante função da conversão ideológica de
crianças e adolescentes, segundo as premissas da nova ordem e da DSN.
O setor educacional se transformou em um local de empreguismo; surgiram assim, os
cargos de “professores coordenadores”, “orientadores” e “professores para estudos vigiados”.
Em relação a estes últimos, havia certa ênfase nas áreas de História, Filosofia e Literatura.
Eles eram responsáveis pela elaboração do material didático existente nas escolas,
organização de reuniões com inspetores de sua matéria, funcionamento das bancas
examinadoras e “vigilância sobre o cumprimento da correção dos erros de grafia”.
Os manuais didáticos passaram a apresentar o Uruguai como sendo o resultado das
mais “puras tradições e valores da civilização ocidental”. Muitos assuntos foram vetados por
serem considerados subversivos e estavam proibidos em sala de aula (comunismo, fascismo,
Constituição, democracia, etc.). A censura sobre autores, livros e editoras se tornou explícita.
As bibliotecas das escolas e liceos recebiam um tratamento particular, pois eram percebidas
como fatores altamente estratégicos de controle sobre a leitura dos alunos. Milhares de livros,
fascículos e revistas foram requisitados das bibliotecas das instituições de ensino por
apresentarem idéias subversivas. Nesse sentido, um documento de Enseñanza Secundaria
destinado a todas as bibliotecas (16/05/75) estabelecia o seguinte:
1) Que los liceos y dependencias de Educación Secundaria deberán, vía
Dirección General, solicitar opinión favorable de la Comisión Asesora de
Libros de Texto, para aceptar cualquier ofrecimiento de publicación, con
excepción de los libros de texto autorizados.
2) Las direcciones liceales y la Biblioteca Central de Educación Secundaria
procederán a remitir en forma inmediata a la Dirección General del
Organismo, la totalidad de los libros, revistas, fascículos, periódicos, discos
y similares, cuyo contenido no se ajuste a los principios fundamentales de la
nacionalidad, en particular aquellos de tendencias marxistas.
3) Los señores Directores tomarán especial precaución de no limitar la
exclusión de publicaciones a las de aquellas de Ciencias Sociales,
verificando por el contrario también aquellos libros de ciencias exactas,
naturales e idiomas, en que puedan introducirse conceptos lesivos de las
coordenadas del pensamiento clásico u occidental.
4) Se tendrá presente, igualmente, que la indagatoria debe efectuarse
personalmente por los señores Directores y Subdirectores, y si lo desearen,
con el asesoramiento de personas de respetabilidad y criterio que ellos
designen bajo su responsabilidad.
5) Junto con el envío del material definitivamente nocivo, se remitirá una
261
Idem, p. 15.
533
nómina de aquellos textos respecto de los cuales la dirección liceal alberga
dudas.
262
O controle pretendido é completo; atinge os acervos das bibliotecas, as doações (e os
doadores, claro), etc.. Ao exigir o comprometimento e o colaboracionismo dos funcionários
do estabelecimento, a função do bibliotecário se reveste de especial importância. Ponto de
contato do sistema pretendido com estudantes, leitores, doadores, professores, pessoas
curiosas, não havia dúvida de que, se fosse colaboracionista, poderia prestar qualitativos
serviços para os serviços de inteligência como listas de freqüência de leitores, fichas
individuais com hábitos de leituras, informações precisas sobre solicitações de professores,
circulação de estudantes, intercâmbio de informações entre alunos, freqüência de leituras, etc.
Sua função podia ser estratégica tanto para o exercício discricionário dentro da instituição de
ensino quanto para o sistema repressivo global.
O coronel Julio R. Soto, Vice-reitor do CONAE, atacava agressivamente o sistema
de ensino anterior ao golpe de Estado reafirmando os princípios básicos da proposta
saneadora, que buscava a pacificação iniciada a partir de 1973 mediante um reordenamento
adequado do sistema educativo nacional que assegurasse a formação integral do homem
uruguaio de amanhã.
263
Dizia que o sistema educativo era alvo, desde a primeira metade do
século XX, dos ataques da maçonaria e do liberalismo, o que abrira espaço, posteriormente,
ao marxismo, deteriorando, ainda mais, os valores tradicionais. Para ele, a geração de
professores formados dentro desse contexto, no período anterior à irrupção saneadora das
Forças Armadas:
[...] no eran más que portadores de la escuela liberal en que se formaron
cuando estudiantes universitarios, y como tales, sinceros defensores de um
laicismo aberrante por su complicidad con el ateísmo de inspiración
masónica, que los convertía en ingenuos sostenedores de que “todas las ideas
son respetables” máxima estúpida que dio albergue a las corrientes marxistas
que por ese entonces ya habían comenzado su penetración.
264
Os objetivos básicos do setor educacional pensado pelos militares tinham como
premissas essenciais: nacionalismo (barulhento contra a importação de idéias de esquerda e
mudo diante da prostração aos centros capitalistas hegemônicos), integração, pátria, família,
honra, dignidade, etc. Havia uma pretensão de resgatar tradições superadas e congelar a
realidade do país, produzindo um imobilismo que evitasse a participação popular em qualquer
262
Resolución del Director General de Educación Secundaria, Básica y Superior. Datado em 16 de maio de
1975. Apud URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 19.
263
Jaque, 30/03/84, p. 18.
264
Idem, p. 16.
534
atividade (fora a produtiva).
Dentro dessa lógica, a relação ensino-aprendizagem e a apropriação do conhecimento
foram vistos como resultados de um processo linear, acumulativo e acrítico. O estímulo foi
direcionado para as ações de recepção, repetição e memorização. Não havia inter-
relacionamento entre as diversas áreas e dimensões constitutivas. A ciência era vista como
neutral, apolítica, asséptica. O esvaziamento das Ciências Sociais, da Filosofia e da História
foi visível. O aluno foi induzido a pensar que não tinha dúvidas e que o professor era
inquestionável. Na prática, inexistia o contraditório. O reforço dado a uma orientação
metodológica de cunho condutivista e tecnicista acentuou uma política tácita de desestímulo
das atividades de leitura, pesquisa e reflexão. Não só não alimentava a curiosidade como era
vista, pelo sistema, com muita desconfiança, quando não era motivo de suspeita. Por isso, os
estudantes estavam proibidos de fazer contatos com os docentes fora das horas de aula, como
na Faculdade de Engenharia, onde inclusive, se punia os estudantes que, em sala de aula,
faziam perguntas ao professor. O estudante devia aceitar a interpretação oficial e única, pois
outras interpretações ou pontos de vista não tinham vez. Na sala de aula, o aluno era induzido
a assumir uma postura contemplativa. No fundo, não era muito diferente da proposta global
que o regime tinha para o conjunto da sociedade. Fosse na escola, no jornal, no bairro ou num
jogo de futebol, os comportamentos desejados eram semelhantes: silêncio, disciplina,
aceitação e submissão à autoridade.
265
A função de controle sobre o comportamento dos alunos atingiu níveis inusitados.
Mesclando autoritarismo e um conservadorismo de fundo católico-franquista, os estudantes
sofreram a imposição de medidas “moralistas” e “construtivas”. Assim, foram obrigados a
usar crachás de identificação e a vestir, adequadamente, uniformes. As meninas foram
proibidas de vestir calças ou sapatos com plataforma e eram obrigadas a usar saias que
deviam chegar abaixo da altura dos joelhos. Os meninos não podiam usar cabelos compridos,
barba e bigode que ultrapassasse o canto da boca.
266
Parte dessas medidas, também atingiam
265
CAMPODÓNICO; MASSERA; SALA, op. cit., p. 93.
266
Sob a matéria intitulada PERMANENCIAS - Barbas y cabelleras de algunos activistas, publicada pelo jornal
El País em 1969, pode-se rastrear uma postura profundamente preconceituosa que a ditadura normatizaria anos
depois: “Parecería un hecho sumamente probado y comprobado, que el traje y en ocasiones la barba y la
cabellera tienen algo que ver con los instintos primarios de los hombres. Desde antiguo el hombre usó el traje
como defensa de los elementos climatéricos, eligiendo el traje más liviano en verano y usando prendas de mayor
abrigo en el invierno. [...] Los activistas de hoy, con su ropa desaliñada, sin corbata, mirando con recelo al bien
vestido, pinta una personalidad primitiva, infantil, pues aún no le han dado las estrellas que lo introducen en la
categoría de mando, donde exhibirá, si puede, su instinto viril. [...]
Si a todo ello agregamos las enormes melenas que usan, [...] se completa el cuadro de una personalidad que
psicológicamente no tiene nada de viril. Desde antiguo la cabellera era un atributo de gran jerarquía, en la
dinámica del amor en la mujer. [...]
En el hombre la gran cabellera no ha representado nunca la energía varonil, sino todo lo contrario. El hombre
535
os docentes. As calças jeans estavam terminantemente proibidas. Aliás, no tradicional Liceo
Zorrilla, o diretor-interventor de nome Velázquez assim justificou aos pais o porquê da
proibição dessa indumentária: “[...] de los pantalones se puede ir a las bombas, creando una
situación de peligrosidad.”
267
Entendiam os ideólogos do regime que barba, minissaia, roupas
coloridas, jeans e cabelos compridos eram fatores subversivos que ameaçavam a Segurança
Nacional e marcas reconhecíveis nos “inimigos internos” da nova ordem.
Circulares, ordens e boletins lembravam das sanções existentes para quem pretendia
burlar as novas normas. Passou-se a difundir a figura do “estudante infrator”, aquele que
apresentava um comportamento não desejado, o que agia sem responsabilidade e não
colaborava com as autoridades. Assim como dos presos, dos vizinhos, dos cidadãos, enfim, de
toda a sociedade cativa do Terror de Estado, também se esperava dos estudantes, dos
professores e dos funcionários das escolas, dos liceos e da Universidade a delação como
prática cotidiana e naturalizada. Para toda essa prática de controle e de sanções, contava-se,
dentro das escolas, com a figura do “vigilante”, funcionário que fiscalizava o cumprimento
das regulamentações sobre comportamento e aparência de estudantes, professores e
funcionários. Geralmente, as pessoas que desempenhavam essas funções eram policiais
aposentados.
268
Os docentes também sofriam com o controle da normativa administrativa. Os
aspectos formais da docência beiravam a obsessão, segundo Appratto & Artagaveytia. Havia
regras para a elaboração das atas dos exames, da solicitação de “temas de casa” e sobre como
combativo históricamente tenía la cabeza monda. En general, en los momentos de fuerza de los pueblos el
hombre se rapaba la cabeza, los soldados de Carlos V, por imitarle, se cortaban el cabello; en el pueblo
germánico de gran combatividad predominó también el pelo corto.
La introducción de las pelucas en los campos de batalla, llevadas por soldados nobles, coincidió con las
traiciones y deserciones. La gran cabellera no ha representado nunca la energía varonil, sino todo lo contrario.
[...]
La barba tiene también su historia. Los egipcios se la afeitaban y sólo la dejaban crecer en los períodos de duelo.
Algunos tiranos de hoy, que viven en permanente duelo, siguen fieles a la tradición egipcia. Thomas Fuller, ya
más tarde en 1608, la definía como ‘excremento ornamental que crece debajo del mentón’ [...]. No cabe duda
que el marxismo erró biológica y psicológicamente en presentar una personalidad con atuendo, barbas y
cabelleras tan particulares. [...]
El análisis de estos personajes nos confirman el concepto filosófico clásico que sostiene: no son las partes lo que
forman el todo, sino el todo que da ser a las partes, aunque en el caso que nos ocupa las partes son
indudablemente cómicas y el todo irresistiblemente risible.” El País, 03/02/69, p. 3. Apud, DEMASI, op. cit., p.
85. Portanto, barba e cabelo comprido, marcas de identidade da geração dos anos 60/70, são associadas à traição,
à covardia e à falta de virilidade. Talvez uma citação como essa possa parecer desnecessária, entretanto, cabe
lembrar que, quase na mesma época, o governador da California, Ronald Reagan, divertia a raivosa extrema-
direita californiana ao referir-se aos estudantes das manifestações de Berkeley como alguém que “usa os cabelos
como Tarzan, caminha como a Jane e fede como a Chita”. Mais uma vez, as conexões se autojustificam,
inclusive através da violência, do deboche e do menosprezo que, na prática, antecederam ações de violência
física em ambos os países.
267
La Voz de la Mayoría, 12/07/84, p. 20.
268
Convicción, 29/05/84.
536
corrigi-los. Por detrás disso tudo, havia uma intenção de controle e o estímulo da sensação de
desconfiança. Vigilância e obediência (ou não) foram códigos introjetados em toda a
sociedade e, em particular, nos estabelecimentos de ensino, onde as inúmeras limitações e
proibições podiam sufocar ou tornar insuportável o ambiente para a permanência de
adolescentes e jovens de espírito curioso, reflexivo e crítico. Ao ponto de que: “Revisando la
reglamentación da la impresión de que todo estaba proibido, salvo lo expresamente autorizado
por directores e inspectores”.
269
.
Nos anos 80, o movimento estudantil foi se recompondo e se cristalizou na
Asociación Social y Cultural de Estudiantes de la Enseñanza Pública (ASCEEP), cujas
bandeiras permanentes foram a retomada de um ensino democrático, a recuperação das
liberdades, da democracia, da anistia, de um modelo econômico nacional e popular, o fim
imediato da intervenção no ensino, a revogação da Ley de Educación e a recuperação da
autonomia e da co-gestão. A ditadura havia decretado que a geração universitária dos anos 70
era uma “geração perdida”. Por isso, desistiu de cooptá-la, o que, sim, procurou fazer com as
gerações mais novas. Assim, houve uma aposta no trabalho desenvolvido junto aos novos
estudantes e escolares. Esses que, entretanto, após uma década da implantação do novo
modelo, concluíram que o balanço final era extremamente negativo: organização autoritária e
vertical, eliminação dos mecanismos de participação estudantil e docente; queda do nível de
ensino; perseguição ideológica de professores e alunos da etapa anterior à intervenção e
ascenso maciço de pessoal adesista e desqualificado.
270
O retrocesso instituído com a Ley de Educación, aprofundado com a ditadura, as
ações repressivas e intervencionistas contra o entorno do ensino nos seus diversos níveis e a
brutal perseguição de estudantes e professores configurou sensível perda de qualidade na
pesquisa científica, na produção de conhecimento e na fundamentação de uma formação
historicamente laica e democrática. A proposta educativa da nova ordem era oposta aos
princípios fundadores do ensino público no país. A implementação de um projeto de ensino a
partir das premissas da DSN produziu um saldo devastador diante da experiência
anteriormente acumulada, em termos de qualidade da relação ensino-aprendizagem nas
dimensões filosófica, científica, política e, sobretudo, humanística.
O TDE, aplicado na área do ensino, combinou medidas repressivas diversas com
outras de disciplinamento e de controle. A imposição de normas disciplinares quase militares
nos estabelecimentos de ensino abrangeram todos os aspectos das atividades inerentes aos
269
APPRATTO; ARTAGAVEYTIA, op. cit., p. 239.
270
Cadernos do Terceiro Mundo, nov. 1983, p. 52.
537
mesmos. O espaço escolar e o público, em geral, foram atingidos por tais práticas coercitivas.
Os “semeadores de medo” eram percebidos por todos (Anexo IX). A destituição massiva, a
aposentadoria compulsória e a prisão de professores (e de alunos), combinados com a
certificação da Declaración de Fe Democrática, o recurso dos “vigilantes”, dos colaboradores
e dos delatores e a responsabilização dos pais pelo comportamento dos estudantes,
transformaram o cotidiano escolar e universitário num cenário de controle, desconfiança,
insegurança e temor.
É o medo do sumário, da destituição, da sanção, da perda do ano letivo ou da
acusação de asociación para delinquir. Isso sem contar os medos gerados pela aplicação das
outras modalidades do Terror de Estado: perseguição, seqüestro, prisão prolongada, tortura,
desaparecimento, execução. Tudo isto gera uma combustão que produz paralisia, isolamento e
diminuição sensível da consciência de cidadania e da solidariedade.
A esse respeito, Campodónico, Massera & Sala concluem que uma meta na qual o
Proceso foi bem sucedido foi na despolitização dos jovens, aliás, uma das metas dessas
ditaduras segundo as análises de Guillermo O’Donell.
271
Houve um corte entre essa geração e
as anteriores. Ela se sentiu sem identidade, “sem passado”, desorientada quanto às pautas de
conduta e valores. Muitos exacerbaram seu individualismo e/ou assumiram uma posição
endógena em relação à família. O silêncio como hábito, alimentado pela ameaça da censura e
da sanção conseqüente ou pela percepção da sobrevivência implícita na autocensura, foi
fortemente acentuado dentro dos estabelecimentos de ensino. O medo é um resultado visível
nessa geração - medo do futuro, de participar, de expressar sentimentos:
272
Miedo a la autoridad representada por los funcionarios desde la primera
hasta la última jerarquía. Esos miedos creaban una situación de inseguridad
frente a las diversas situaciones que se originaban en los centros de estudio y
se proyecta también como un miedo al futuro que aparece incierto. Todo esto
trae como consecuencias cambios en las actitudes de los alumnos, tales
como el silencio frente a los docentes y a sus compañeros, simulación,
deshonestidad, indiferencia, obediencia y aceptación acrítica del saber
recebido.
273
Sem dúvida, os diversos mecanismos repressivos do TDE e o projeto de refundação
educacional produziram um impacto profundo na área do ensino, considerando a experiência
acumulada e o estágio atingido nesse setor até meados dos anos 60. A dimensão das perdas é
de difícil aferição. Por isso, é necessário atenção a uma avaliação realizada no informe
271
O’DONELL, op. cit.
272
CAMPODÓNICO; MASSERA; SALA, op. cit., p. 163.
273
Idem, p. 162.
538
Uruguay 1973-1978 apresentado à UNESCO em 1978, 5 anos depois do início da ditadura.
Após descrever o panorama geral das perdas na área do ensino e da ciência, o informe
concluía que: “Aún cuando la dictadura no dure más de cinco años, sus consecuencias sobre
el nivel educacional del país, se sentirán por lo menos, durante 20 años.”
274
O resultado da
avaliação é de extrema gravidade. Entretanto, para precisar melhor o impacto negativo da
experiência, falta completar o quadro com uma pequena atualização de informação: a ditadura
não durou somente cinco anos: ela persistiria, ainda, por mais sete anos.
274
URUGUAY 1973-1978, op. cit., p. 24.
539
CAPÍTULO 6
MODALIDADES PARTICULARES DO
TERROR DE ESTADO URUGUAIO
A dor precisa, no lugar preciso, na proporção precisa.
Dan Mitrione
No los liquidamos cuando tuvimos la posibilidad, y encima tendremos que largarlos. Debemos
aprovechar el tiempo que nos queda para volverlos locos.
Mayor Arquímedes Maciel
Director do Penal de Libertad
Após ter apresentado um quadro mais amplo dos múltiplos elementos e ações que
compuseram a complexidade do Terror de Estado (TDE) aplicado pela ditadura de Segurança
Nacional (SN) no Uruguai, a partir de 1973, cabe agora a particularização daquelas
modalidades específicas da experiência deste país ou que ocuparam uma função de destaque
no conjunto da estrutura repressiva e da imposição da estabilização do medo. Contra os
“inimigos” foram utilizadas várias forma de repressão, entre elas, a tortura, os processos
judiciais iníquos, a reclusão em estabelecimentos penitenciários, a insuficiente assistência
médica, etc. Tais medidas comprometeram a sanidade física e mental dos detidos.
Já o mundo externo, sob uma “aparente” e ameaçadora vigilância, sofreu a síndrome
da “pedagogia do medo”; ou seja, o terror que escorria por todas as linhas do tecido social e
que gerava, como mecanismo de defesa, a indiferença e, talvez, a cultura da complacência:
“no te metas”; “si lo metieron es porque algo habrá hecho”; “aqui no pasó nada”. Neste
sentido, aplicava-se, objetivando a prevenção associada do corpo social, o medo e o
anestesiamento da capacidade de indignação (Anexo VIII).
Praticamente, todos aqueles que foram presos políticos nessa época foram
sistematicamente torturados. Sabe-se também que comandos uruguaios, auxiliados por
comandos dos países vizinhos, seqüestraram, torturaram, assassinaram e promoveram o
desaparecimento de pessoas. Tudo isto coroado por um alto grau de impunidade, uma vez que
tais medidas foram implementadas por funcionários públicos que dispunham da cobertura
direta das instituições governamentais. Uma eficiente estrutura política converteu a função
540
ANEXO VIII
“Inimigos Internos”
Cotidiano do medo: controle e disciplinamento
Fonte: Jornal 26 de Marzo, s.d. (2003), p. 2
Fonte: Riesgopaís
Año 1, n
o
8, 26/06/03, p. 30.
541
estatal de garantir a segurança do cidadão, no cumprimento de práticas repressivas. Cabe
ressaltar ainda, como já foi dito anteriormente, que as modalidades de violência, apontadas a
seguir, atingiram todo o conjunto da sociedade, não estando restrita somente aos setores de
oposição. Elas produziram um terror que, ao paralisar a mobilização social, auxiliou na
implementação de uma nova ordem política e econômica.
6.1 – O “GRANDE ENCARCERAMENTO”
O principal mecanismo para enfrentar e neutralizar a ativação social e política
promovida pelas organizações populares e revolucionárias existentes antes do golpe de 1973
foi o encarceramento massivo. Tal constatação ganha maior dimensão ao comprovar que,
comparativamente aos regimes de SN vizinhos, parece ser uma marca peculiar da ditadura
uruguaia esse tipo de encarceramento. Entretanto, a comprovação desta situação parece
constituir um certo paradoxo. Reconhecendo que o Terror de Estado uruguaio perseguiu,
constrangeu e torturou com tanta violência, como explicar, então, a preocupação em preservar
a vida dos prisioneiros? Nem a conhecida “lei de fuga”, forma encoberta de executar
sumariamente prisioneiros incômodos, foi utilizada, salvo exceções, como procedimento
rotineiro de extermínio (apesar de funcionar, sim, como artifício de ameaça aos presos na fase
dos interrogatórios). Por que motivo foi respeitada a vida do “inimigo”, diferentemente do que
aconteceu no Chile e, principalmente, na Argentina?
Entre as razões levantadas, podem-se destacar as seguintes. Primeiro, a elasticidade
da identificação do “inimigo interno”, por parte do Estado de SN, implicaria em um número
de fuzilamentos (exemplo da modalidade massiva da repressão chilena) ou desaparecimentos
(principal modalidade repressiva argentina) impossível de ser assimilada em uma sociedade
como a uruguaia, pela tradição democrática e pelo tamanho da população. Seria muito difícil
justificar a morte e o desaparecimento de milhares de pessoas pelo simples fato de terem
participado de organizações e partidos políticos até pouco tempo atrás reconhecidos como
legais e de longa tradição institucional. Mesmo com as condições do terror predominante
entre 1976 e 1980, amplos setores da sociedade não aceitavam as versões oficiais que
acusavam de subversivos indivíduos vinculados à Convención Nacional de Trabajadores
(CNT), à Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay (FEUU) ou às diversas
correntes da Frente Ampla. Para essa opinião pública já era difícil ter de aceitar a existência
do encarceramento massivo; execuções massivas e desaparecimentos, então, teriam sido
542
impensáveis.
1
Segundo, porque, havendo uma concentração de cerca de 50% da população em
Montevidéu, esta capital poderia tornar-se uma caixa de ressonância de difícil controle interno
e, provavelmente, impossível de ser abafada em caso de denúncias de repressão de tamanha
magnitude. Certamente, tal possibilidade geraria fortes pressões e ondas de protesto contra o
regime. Contudo, chama a atenção o fato de não ter havido a eliminação seletiva dos líderes
da oposição, fora os casos ocorridos em Buenos Aires em 1976.
Em terceiro lugar, também no que se refere às dimensões populacionais e territoriais
do Uruguai, seria muito difícil acobertar um grande extermínio, considerando um país onde as
distâncias são curtas e todos se conocen.
2
Uma quarta linha de argumentação vincula-se à tradição de uma cultura política
marcada por uma relativa tolerância e uma postura respeitosa frente à diferença. Tal
explicação faz parte do reforço da tradição democrática e liberal, alicerçada na possibilidade
de diálogo, característica política construída ao longo do século XX até aquele momento.
Em quinto lugar, existia, entre alguns setores golpistas, um certo receio da sanção
moral da comunidade internacional: o prestígio da herança do Uruguai liberal era um capital
político importante que poderia legitimar a nova ordem militar ou, pelo menos, atenuar as
críticas a ela.
Uma sexta explicação foi exposta apenas em meados de 1998, quando ao debater
com o senador José Mujica (ex-guerrilheiro), o contra-almirante Eladio Moll, causando certo
espanto, afirmou:
Tengo el orgullo de decir que usted está ahí y que sus amigos vivieron
porque existen unas Fuerzas Armadas orientales, ya que la orden de los
gringos era que no valía la pena que viviera ningún guerrillero después de
que se le sacara la información.
3
A declaração de Moll contém inúmeros elementos importantes para novas
considerações a respeito dos desaparecimentos e do fato de não ter ocorrido, no Uruguai,
assassinatos massivos, como em outros países. Em síntese, a linha de argumentação que se
extrai da leitura do texto do militar é a de que, diante da recomendação dos EUA de matar os
prisioneiros políticos na guerra contra-insurgente, a ditadura uruguaia optou por aplicar seus
próprios critérios e ignorar as recomendações estadunidenses. Moll avalia que tal atitude se
1
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Informe Sobre la Violación a los Derechos Humanos (1972-1985). Montevideo:
SERPAJ, 1989. p. 114.
2
Idem, p. 112.
3
Brecha, 24/07/98, p. 2.
543
baseou na argumentação citada no item quarto: a tradição de uma cultura política
democrática. Moll, como militar, associou seu argumento com o da figura histórica de maior
referência das Forças Armadas uruguaias: Artigas. No ensinamento Clemencia para los
vencidos, de Artigas, está a chave, disse Moll para resolver aquele dilema.
4
Independente da
verdade total ou parcial das declarações do contra-almirante Moll, é inegável que estas podem
contribuir na elaboração de novas hipóteses. Se as Forças Armadas uruguaias reagiram ou não
à recomendação dos EUA ou se tudo não passou de mais um diversionismo para melhorar a
imagem daquelas diante da opinião pública interna, fica no plano das questões em aberto da
análise do Tempo Presente e à espera da possibilidade de abertura de arquivos sobre a
repressão específicos. O que tem plausibilidade, entretanto, é a existência de recomendações
desse teor por parte do governo estadunidense. Embora não se conheçam documentos
específicos para o caso uruguaio é importante lembrar que, recentemente, foram
desclassificados novos documentos que confirmam a orientação dada pelo então chanceler
Henry Kissinger à ditadura argentina, em 1976, para que o massacre fosse rápido.
5
O método de detenção fazia parte da dinâmica do sistema repressivo e contribuía na
lógica de espalhar o medo. Em geral, o indivíduo era preso na sua residência, no seu local de
trabalho ou no meio da rua, quase sempre com um grande aparato, de forma ostensiva.
Imediatamente após a detenção, era levado a um local desconhecido. Sua legalização
enquanto preso se dava decorridas semanas ou meses após sua detenção. Neste tempo, o
detido sofria sessões de interrogatório e de tortura, aplicadas com total impunidade em função
do seqüestro clandestino, sendo transferido para diferentes centros de detenção (legais ou não)
e permanecendo incomunicável. A agressão física era simultânea a outras de ordem
psicológica e moral.
Nos casos de detenção no domicílio, apesar do impacto psicológico sofrido pelos
familiares, especialmente pelas crianças, havia algumas possibilidades de reação imediata, o
que, em muitas situações, podia ser a diferença entre a vida e a morte. A certeza imediata da
consumação da detenção, por parte das Forças Armadas, permitia às famílias ganhar tempo,
denunciar urgentemente o fato, conseguir advogado e divulgar, a quem quer que fosse, o
4
Idem.
5
Em outubro de 1976, encontraram-se, no Hotel Walford Astoria (Nova Yorque), Kissinger e Cesar Guzzetti,
chanceler argentino. Diante da exposição das medidas que a ditadura estava tomando para destruir às
organizações subversivas, Kissinger respondeu: “[...] queremos que tengan éxito. Yo soy de convicciones
chapadas a la antigua: creo que a los amigos hay que apoyarlos. Lo que no se entiende en Estados Unidos es que
ustedes están pasando una guerra civil. Se lee acerca de los problemas de derechos humanos, pero no sobre el
contexto.
Cuánto antes tengan éxito, mejor. El problema de los derechos humanos es cada vez mayor. [...]
Queremos una situación estable. No queremos causarles dificultades innecesarias.
Si pueden terminar antes de
que se renauden las sesiones del Congreso [dos EUA], mejor.” [grifo meu] “Luz Verde”. VERBITSKY,
544
acontecimento presenciado, prevenindo, inclusive, o entorno mais imediato e comprometido
do detido (companheiros). Em diversas ocasiões, era possível obter informações sobre o nome
de alguma autoridade - soldado ou unidade a que pertenciam os seqüestradores - ou algum
registro dos veículos utilizados na operação. Situação semelhante ocorria em caso de detenção
no local de trabalho. A possibilidade de reação imediata podia ser uma forma compensatória
da traumática experiência do seqüestro e da estigmatização sofrida por parte dos colegas ou
vizinhos que talvez tinham esta postura como um mecanismo de autodefesa, ou porque
simplesmente eram dos que assumiam o por algo será.
Todos estes aspectos estavam completamente ausentes em uma detenção na via
pública onde, em muitos casos, sequer existiam testemunhos. O anonimato encobria a ação,
fosse pelo medo ou pela falta concreta de informação.
6
Em quase metade dos casos, a
detenção ocorria mediante a realização de ratoneras (ocupação das casas de suspeitos e
montagem de uma ação de espera - cilada - que permitisse deter outras pessoas que acedessem
a ela). Foi o caso do conhecido seqüestro de Lílian Celiberti e de Universindo Rodrígues
Diaz, em Porto Alegre, em 1978. Em 30% dessas situações, ocorriam depredações no local da
detenção. Um outro elemento que surgiu dos depoimentos sobre essa metodologia de
operação foi a prática de roubos realizados durante ou posteriormente à detenção. O Servicio
Paz y Justicia (SERPAJ) avalia que 46% dos casos de detenção foram acompanhados de
apropriação indevida (seqüestro) de bens pertencentes aos detidos. A intensidade do confisco
variou de caso para caso, mas, quando ocorreu, representou um valor elevado. A freqüência
dos roubos evidenciou um padrão de ação, o que ajudou a esvaziar a tese da eventualidade ou
da autonomia do comando; foi, em realidade, um fenômeno habitual, previsto e tolerado pela
chefia das operações. Às vezes, após a detenção dos suspeitos, veículos militares voltavam ao
local do acontecimento e carregavam os objetos roubados.
7
O roubo de objetos e valores nas residências e sedes sindicais e partidárias que
sofreram as “batidas” da repressão constituíram delitos comuns. A apropriação de dinheiro,
imóveis, veículos, equipamentos, campo, gado e outros bens funcionou como estímulo para a
ação dos agentes repressivos, um “botim de guerra” a ser repartido pela unidade responsável
pela ação ou, então, como acerto a ser definido na instância superior. À medida que o tempo
passou e o número de operações cresceu, a ditadura procurou legalizar as apropriações,
sobretudo as referentes aos imóveis e aos veículos já que, de fato, tratava-se de um roubo que
Horacio. Kissinger pidió que la masacre fuera rápida. Página/12, 04/12/03.
6
SERPAJ, op. cit., p. 120.
7
Idem, p. 126.
545
deixava vestígios e abria possibilidades de futuras reclamações, pois persistiam, como provas,
registros de propriedade que, em outra conjuntura, poderiam servir de peça de denúncia,
acusação e condenação.
Sendo assim, embora a Constituição uruguaia proibisse o confisco por razões
políticas, o Conselho de Estado aprovou, em maio de 1975, a Lei Nº 14.373, que estabelecia a
pena de confisco de bens de suspeitos políticos por um procedimento muy expeditivo que se
desenvolve exclusivamente na esfera militar. A lei
1) dispõe a “incautação provisória” de bens móveis e imóveis, quando os
mesmos “possam ser ou tenham sido utilizados como meio próprio ou
impróprio, direto ou indireto, para preparar, concertar, propor ou executar”
delitos previstos na Ley de Seguridad del Estado.
E ainda acrescenta que
2) para chegar a tal medida é suficiente a “presunção” fundada de que os
bens serviram a alguns dos fins indicados e de que pertencem a alguns dos
partícipes no delito, não importando que se trate do autor, cúmplice ou ainda
encobridor.
3) a incautação provisória fica a cargo da polícia ou forças armadas atuantes,
as quais comunicarão o fato ao Juiz Militar, entregando este sua custódia
“legal” à unidade atuante ou a outra que creia conveniente.
4) posteriormente, com a sentença definitiva, a mesma sentença militar
decretará o confisco dos bens em questão, em cujo caso se transferirá de
forma definitiva o direito de propriedade ou se procederá ao leilão.
5) tem efeito retroativo e purificador, dispondo que o produto do leilão dos
“bens expropriados com anterioridade à vigência da presente lei”, se
destinará a pagar os custos da manutenção em prisão dos opositores
políticos.
6) o sistema pode funcionar contra inocentes ou culpáveis, já que a
incautación tem lugar imediatamente após cumprirem-se os procedimentos
de investigação ou detenção de suspeitos, sem esperar que a sentença
determine responsabilidades.
8
Na prática, com essa lei, foi estimulada a apropriação de propriedades e de objetos
tanto de particulares quanto de sindicatos e outras organizações (CNT, Sindicato Único
Nacional de la Construcción y Afines/SUNCA, Federación de Profesores de Secundaria,
jornal El Popular, etc.), entregando sua custódia a funcionários militares ou policiais ou a
suas unidades. Tudo isto funcionou através de um mecanismo muito simples previsto pela lei:
Para hechar a andar el mecanismo previsto por la ley basta que los agentes
represivos transmitan al Juez militar que tienen el convencimiento (ésta será
la “presunción fundada” que exige la ley) de que en un lugar determinado,
propiedad de algun activista de oposición, se efectuaron reuniones ilegales
8
MANERA LLUBERAS, Jorge. Reseña testimoniada. Collectif pour la Défense de Raul Sendic. Genebra,
1982. p. 114.
546
para atentar contra la seguridad del Estado, o que se trazaron planes al
respecto. El procedimiento no está sujeto a ningun control por parte de la
autoridad civil.
9
As “batidas” nem sempre concluíam na detenção de alguém. Muitas vezes eram
buscas intimidatórias de material subversivo (expressão ambígua que podia abranger
panfletos, livros, mimeógrafos, armas, etc.). Muitas delas eram aparatosas, com a chegada de
vários veículos militares carregados de soldados, que rapidamente cercavam a casa visada
num intenso movimento onde muitas casas vizinhas eram ocupadas sob os olhares assustados
ou curiosos da vizinhança. Numa verdadeira operação de guerra, que se podia extender de
vários minutos a algumas horas, o silêncio e o medo que pairavam no ar, antes da abordagem
final do objeto do cerco montado, marcavam uma expectativa de ansiedade e de insegurança.
A retirada dessas “tropas de ocupação”, após o operativo, distendia a situação, mas
comumente era acompanhada de ameaças vociferadas sobre a população espectadora. Além
da sensação de medo provocado na vizinhança pela ação militar, independente de alguém ser
detido ou não na operação, a família da moradia visada ficava marcada pelos seus vizinhos.
No mínimo, eram suspeitos de alguma coisa, eram perigosos, segundo o discurso oficial da
Doutrina de Segurança Nacional (DSN). O efeito intimidatório entrava em funcionamento.
Falar ou conviver com eles poderia ser interpretado como extensão da suspeita. O isolamento
e a desconfiança eram resultado do medo que o TDE inculcava através desses métodos que
violentavam as comunidades dos bairros e seus laços de fraternidade e solidariedade,
principalmente os populares, onde a presença de sindicalistas atraia esse tipo de ação. O
impacto era visível na escola (segregação das crianças das famílias visadas), no bar, no
armazém, na padaria, na feira, enfim, nos locais cotidianos da vida social das comunidades
barriales.
Em muitas ocasiões, a vergonha ou um sentimento de culpa acabavam introjetados
pelas famílias das vítimas. Inegavelmente, a detenção de uma pessoa abalava seu núcleo
familiar e seu círculo de amizades. Iniciava um período de variável duração caracterizado por
grande incerteza, nervosismo, desconfiança e, em muitos casos, a solidão e o afastamento de
pessoas próximas do entorno cotidiano (houve também casos de generosa solidariedade). A
procura pela localização do centro de detenção era estafante e a mentira, a falta de informação
e o diversionismo, métodos do TDE para aumentar o sofrimento dos que buscavam, eram
parte dos desafios e do desgaste a enfrentar.
10
Era comum que pessoas vinculadas ao detido
fossem constrangidas com ameaças de detenção, seguimento e vigilância ostensiva e
9
Idem, p. 115.
547
agressiva. Isso ocorria, sobretudo, com casais. A vítima detida era chantageada (e torturada)
com ameaças de ver a companheira ou companheiro igualmente detido e torturado. Tal
situação podia ocorrer também com outros familiares ou amigos.
11
Na metade dos casos em que a detenção ocorreu sem a presença de testemunhas, as
famílias se inteiraram da detenção dentro das 48 horas seguintes. As demais, em tempo
diverso, sendo que 5% soube dos fatos após transcorridos três meses da detenção. A difícil
situação da clandestinidade e do isolamento interno (compartimentação) enfrentadas por
muitas pessoas requeridas pela repressão é um fator que deve ser levado em conta ao avaliar
as condições dos seqüestros. Por outro lado, somente em 38% dos casos, os familiares tiveram
informações concretas sobre o destino dos detidos. O resto desconhecia o paradeiro, embora
pudesse inferir o local de detenção a partir de informações muitas vezes duvidosas.
12
Obtida a localização do detido, iniciava-se um duro caminho pelo acesso à visita,
momento chave para o preso e para a família. Para o primeiro porque era o atestado e o
reconhecimento, por parte das Forças Armadas, da sua existência na condição de preso
político. Os maus tratos não diminuíam por causa disso, mas o fim do caráter clandestino da
sua detenção, de certa forma, era um mecanismo de proteção contra a morte ou
desaparecimento. Para a família, era o fim de uma peregrinação – que podia vir a ter novas
etapas em casos de novos traslados. Por outro lado, recebiam-se as primeiras informações
sobre a saúde e a condição legal do detido. Entre 1972 e 1977, a maioria dos detidos recebeu a
primeira visita vários meses depois da confirmação e reconhecimento da sua prisão pelo
Poder Executivo. Quando o preso era colocado à disposição da Justiça Militar, deixava atrás
de si a terrível experiência do seqüestro, que podia ter durado meses e, em tese, o
interrogatório sob tortura e a deterioração física e psicológica. Estivera semanas ou meses
algemado, vendado, sem saber onde se encontrava, sem receber alimentos nem atendimento
mínimo para seu maltratado corpo. Certamente o detido, ao ser reconhecido como preso, tinha
consciência da situação de estar completamente indefeso. Por isso: “El prisionero puede
albergar la esperanza de que lo peor ya ha pasado, que allí al menos no recibiría golpes ni
estaría encapuchado.”
13
A partir desse momento, entra-se na fase do aprendizado da rotina do
cotidiano carcerário.
As Forças Armadas optaram, como solução policial, por um mecanismo repressivo
massivo: a imobilização do exército inimigo em um vasto operativo de encarceramento de
10
SERPAJ, op. cit., p. 129.
11
Idem, p. 131.
12
Idem, p. 129-130.
13
Idem, p. 204.
548
milhares de pessoas, a “prisão prolongada”, com um aparente cumprimento das formalidades
legais.
14
As denúncias no exterior sobre esta situação geraram, em 1979, uma dura resposta
do governo uruguaio. Pressionado pelas acusações de violação dos direitos humanos, o
coronel Silva Ledesma, ao reassumir a presidência do Supremo Tribunal Militar, enfatizou
que as Forças Armadas haviam estabilizado o país fazendo prisioneiros e respeitando a vida
destes. E, aludindo as acusações, assustava com sua franqueza: “El Uruguay tiene en este
momento 1600 problemas porque no tiene 1600 muertos.”
15
Talvez tenha havido uma certa
dose de cinismo nesta declaração, pois, no fundo, era uma forma de afirmar que os presos
políticos poderiam ter sido alvos de tortura sistemática, mas que, em última instância, estavam
vivos. Ou seja, independente das condições carcerárias, continuavam vivos e era isto que
importava. Era uma dádiva do regime.
O cotidiano dos grandes estabelecimentos de reclusão, particularmente o Penal de
Libertad (Estabelecimento Militar de Reclusão Nº 1 – EMR-1) e o feminino de Punta de
Rieles (Estabelecimento Militar de Reclusão Nº 2 – EMR-2) tinham em comum a
instabilidade permanente quanto à situação do tratamento recebido. Ocorre que os militares
impunham o tratamento como se fosse um movimento pendular, com momentos de “aperto” e
outros de “afrouxamento”. Isto é, um vaivém entre períodos de hostilidade extremada e de
farta distribuição de sanções (onde se atingia um tensionamento quase insustentável), seguido
de uma distensão de relativa calmaria, até reiniciar-se o ciclo.
16
Quanto aos objetivos da prisão prolongada e massiva, os efeitos obtidos
extrapolaram os limites da punição ao universo dos presos políticos e do seu entorno mais
imediato como se constatava em todas as ações repressivas. Essa, aliás, era a principal marca
registrada ou padrão do comportamento repressivo do TDE uruguaio. Efetivamente, se um
dos principais objetivos do TDE era sujeitar o conjunto do corpo social, o universo carcerário
implementado pela ditadura foi bem sucedido, pois projetou uma ameaça paralisante tanto
sobre os prisioneiros quanto sobre a sociedade como um todo.
17
O recurso da prisão prolongada tinha diversos objetivos. Como toda ação
desencadeada a partir da lógica do TDE, o primeiro objetivo era ameaçar tanto os diretamente
atingidos por aquele mecanismo específico (os presos políticos) quanto as pessoas situadas
fora dele. Não era pretensão da política carcerária restituir os presos à sociedade em melhores
condições. Pelo contrário, o intuito era destruí-los mediante sua decomposição moral, a perda
14
Idem, p. 114.
15
Idem.
16
Idem, p. 197.
17
Idem, p. 119.
549
da sua identidade psíquica e a eliminação das suas reservas éticas e políticas.
Outro objetivo consistia em anular completamente a capacidade mobilizadora do
prisioneiro mediante rigoroso confinamento, segregando-o do resto da sociedade. Este
isolamento imposto gerou atitudes e sentimentos entre a população carcerária que não eram
diferentes dos padrões individuais e coletivos constatados no conjunto da sociedade: o
silêncio, a submissão, a cumplicidade e a resignação. Em terceiro lugar, a aplicação de todo o
rigor da Justiça Militar fez com que os processados sofressem com uma expectativa de futuro
de inabilitação e, portanto, profundas restrições das atividades sócio-políticas. Em quarto
lugar, a ferocidade e eficiência do sistema correcional estruturado pelas Forças Armadas
amedrontava a sociedade e reduzira ao silêncio toda reivindicação de mudança.
18
Os números do “grande encarceramento” são de difícil precisão. Em 1984, o já
citado Presidente do Supremo Tribunal Militar, coronel Silva Ledesma, divulgou que a Justiça
Militar havia processado, até essa data, 4.933 pessoas. Porém, há um outro grupo de
importância numérica considerável que também deve ser levado em conta: são os detidos que
posteriormente recuperaram a liberdade sem ter sido processados. Entre eles, estão aqueles
detidos por poucas horas, seja por erro de identificação ou por “queda” após alguma
manifestação sem maiores conseqüências pessoais. Também devem ser computadas as
pessoas que estiveram presas durante vários meses e depois foram libertadas sem maiores
explicações a não ser a alegação do regime de Medidas Prontas de Seguridad.
19
Para
vislumbrar a intensidade do “grande encarceramento” vale a pena avaliar o seguinte quadro:
Relação de presos políticos no Uruguai por períodos
Período de detenção %
sem dado 1
antes de 1972 3
1972-1974 48
1975-1977 32
1978-1980 9
depois de 80 6
não corresponde 1
Total 100
Fonte: SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Informe Sobre la Violación a los
Derechos Humanos (1972-1985). Montevidéu: SERPAJ, 1989. p. 116.
Verifica-se que a grande concentração registrou-se no período compreendido entre a
declaração do “estado de guerra interna” (1972) e o plebiscito que rejeitou a continuidade
militar (1980). Uma primeira grande onda de prisões ocorreu entre 1972 e 1974, e centrou-se
18
Idem.
550
na militância do Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T). Uma segunda
onda ocorreu entre 1975 e 1977, tendo como foco as bases e lideranças do Partido Comunista
Uruguayo (PCU). Há pequenas organizações (Organización Popular Revolucionaria 33
Orientales/OPR33, Resistencia Obrera Estudiantil/ROE, etc.) afetadas em períodos diversos;
merecem destaque duas ondas repressivas contra a militância do Partido por la Victoria del
Pueblo (PVP), concentrada no segundo semestre de 1976 e outra contra militantes dos Grupos
de Acción Unificada (GAU) em 1977, ocorridas tanto no Uruguai quanto na comunidade
exilada na Argentina.
20
O SERPAJ, a partir de informações de ex-presos políticos, indica um número
aproximado de 3.700 detidos. Se for considerado só o número dos processados pela Justiça
Militar, se chega a uma relação de dezoito a cada 10.000 pessoas. Somando-se os que foram
detidos mas não processados, chega-se a uma proporção de 31 sobre 10.000, “o que faz do
Uruguai a nação que teve o maior número de presos políticos em relação a sua população”. O
relatório é categórico quanto à constatação da magnitude do fenômeno, o que permite
qualificá-lo como um “grande encarceramento” ocorrido entre 1972 e 1985”.
21
Aproximadamente 3.500 presos de um total de 4.933 processados pela Justiça Militar
passaram pelos penales (presídios) de Libertad e Punta de Rieles. O Penal de Libertad,
inaugurado em outubro de 1972, por onde passaram cerca de 2.873 presos políticos, chegou a
alojar, simultaneamente, 1.400 reclusos e uma guarda de 700 soldados.
22
Uma das suas
características era que parte da oficialidade e da tropa prestavam serviço durante períodos de
um mês, sendo majoritariamente originários do interior do país. Esta estratégia visava evitar a
familiarização da guarda com os prisioneiros e o afrouxamento do rigor na aplicação das
normas de controle e de repressão. Cada nova unidade que chegava ao presídio passava por
uma fase de adaptação às regras e às ordens específicas que ali imperavam. As regras e os
códigos trazidos das unidades de origem deviam adequar-se ao rigor da nova realidade. Para
os presos, a chegada dos novos efetivos também exigia novo aprendizado e adaptação, além
de poder confirmar a expectativa negativa do reencontro com antigos torturadores, o que
poderia agravar o quadro de paranóias persecutórias ou mesmo criar a expectativa do
recrudescimento do tratamento repressivo.
23
A penitenciária feminina de Punta de Rieles fora, anteriormente, um noviciado da
19
Idem, p. 116.
20
Idem, p. 115.
21
Idem, p. 116.
22
Idem, p. 197.
23
Idem, p. 202.
551
Companhia de Jesus que, adquirido pelas Forças Armadas em 1968, passou a recluir pessoas
detidas segundo os critérios das Medidas Prontas de Seguridad. Em janeiro de 1973, adquiriu
o estatuto de presídio feminino, recebendo as mulheres processadas por delitos políticos.
24
Era de responsabilidade do Exército e contava com uma tropa feminina e masculina de 300
efetivos. No seu interior havia uma Oficina de Informação e Administração das Reclusas que
gerenciava tudo o que dizia respeito às presas mas que, por sua vez, dependia da oficina do
Serviço de Inteligência (S2), onde se acumulava a informação de cada detida, seus
antecedentes, passagens anteriores por outras unidades militares, rede de relações familiares e
sociais, etc. Seus integrantes eram responsáveis pelas “saídas em comissão”, que consistiam
no transporte dos presos a centros de interrogatório.
25
Como necessidade peculiar do Penal de
Punta de Rieles, foi criada, em 1972, a Polícia Militar Feminina que, como guarda comum,
assumiu a segurança interna e a unidade das “coordenadoras”. Estas recebiam instrução
especial em Administração Carcerária e Inteligência e estavam incumbidas de manejar,
controlar e atualizar a informação dos expedientes de cada presa, mantinham contato com a
família, efetuavam a censura da correspondência e eram responsáveis pela revista das celas.
26
Considerando que havia uma coordenadora por cela (onde havia dez presas) e que ficavam
pelo menos um ano na função, o controle sobre a vida dos prisioneiros chegava aos mínimos
detalhes. Da mesma forma que no Penal de Libertad, no de Punta de Rieles as presas
femininas também sofriam a possibilidade de reencontrar as mesmas pessoas que haviam
participado da sua detenção, interrogatório e tortura.
27
É importante considerar que as fugas “espetaculares” que os tupamaros realizaram
em 1971 e 1972 do Penal de Punta Carretas e da Cárcel de Mujeres, ambos no centro de
Montevidéu, combinado com o aumento posterior do número de processados, levou as Forças
Armadas a habilitarem os presídios de maior segurança, Libertad, fora da capital, e Punta de
Rieles, na sua periferia. Simultaneamente e durante toda a ditadura, outros estabelecimentos
militares ou policiais foram utilizados como centros permanentes de detenção. Montou-se
uma complexa infra-estrutura física, potencializando ao máximo as dependências do interior
do país, bases aéreas e navais, delegacias de polícia, residências particulares expropriadas do
“inimigo” – transformadas em locais de detenção, tortura e interrogatório. A tal ponto se deu
importância ao encarceramento massivo no Uruguai que Eduardo Galeano, em novembro de
1977, escrevia, em tom irônico, do exílio:
24
Idem, p. 199.
25
Idem, p. 204.
26
Idem.
27
Idem.
552
No Uruguai é inaugurada uma prisão por mês. É o que os economistas
chamam de “plano de desenvolvimento”. Transformaram em prisões as
casernas, as delegacias de polícia, os navios abandonados, os velhos vagões
dos trens e até a casa de cada cidadão. Existem mais prisioneiros políticos
que prisioneiros de direito comum. O Uruguai possuía a maior proporção de
prisioneiros políticos do mundo.
28
Como lógica do “grande encarceramento”, o preso político ficava no interior do
estabelecimento, com um recreio diário muito curto, freqüentemente suspenso. Longos
confinamentos dentro da cela, do barraco ou da solitária eram comuns. Era o encerramento
quase total no ambiente “natural” da cela, do barraco. Os depoimentos colhidos pelo SERPAJ
indicam que havia um procedimento padrão para recepcionar os presos colocados à
disposição pelo Reglamento de Disciplina del Penal. No caso do Penal de Libertad, tratava-se
de um ritual que procurava ser inesquecível na memória do preso.
29
Gritos, empurrões,
xingamentos, exame físico e raspagem da cabeça eram parte da recepção, muitas vezes
completada com uma primeira “visita” à solitária, chamada de La Isla.
30
O preso passava a
sofrer o rigor de um sistema disciplinador que obrigava a acatar ordens dadas pela guarda,
assim como um regulamento interno nunca dado a conhecer.
La negativa a cumplir una orden será castigada con dureza: corte con el
mundo exterior; no recibe visita, no recibe correspondencia, no recibe el
paquete que envía la familia con alimentos u materiales para la manualidad.
Pérdida del recreo y reclusión en la celda. Si el castigo es mayor pasa a celda
de castigo por semanas o meses, donde es despojado de todas sus
pertenencias y se le recluye a la inactividad total.
31
Uma das características do sistema carcerário uruguaio durante a ditadura de SN foi a
procura da deterioração mental, psicológica, dos presos políticos. Além da aplicação de uma
rotina de violência e punição, destacou-se o desestímulo para o desenvolvimento de atividades
de trabalho produtivo. Pelo contrário, o fruto de alguma atividade manual ou intelectual era
destruído, obrigando o preso a um constante “fazer-desfazer”. A improdutividade forçada do
indivíduo ou a manutenção de períodos de proibição de atividades manuais foi mais uma
atitude racional do sistema que, ao priva-lo das operações mentais essenciais como pensar e
criar, reproduzia uma lógica de violência enunciada seguidamente por torturadores e
carcereiros: “já que não podemos matá-los, vamos torturá-los até enlouquecê-los.”
32
Desta
28
Versus, 16/11/77, p. 14.
29
SERPAJ, op. cit., p. 204.
30
Idem, p. 205.
31
Uruguay: Violaciones a los derechos humanos. Terrorismo de Estado y secuelas. Impunidad y derecho a la
verdad. Detenidos-desaparecidos: reclamo de los familiares, organizaciones sociales y políticas.
32
GIL, Daniel. El Terror y la Tortura. Montevideo: EPPAL, 1990. p. 79.
553
forma, o enlouquecimento visava quebrar toda resistência individual (inclusive induzindo ao
suicídio) e impor a renúncia de ideais e valores. Enquanto efeito, esse objetivo semeava ainda
mais o medo externo, dentro da lógica da consolidação da “pedagogia global do terror”.
Uma das formas mais concretas de agressão carcerária foi a procura da
despersonalização do preso. Para isso contribuíam a obrigação do uniforme-padrão cinza com
uma franja branca, sobre a qual contrastava o número de reclusão e uma fita de cor que
informava o andar e o setor a que pertencia o preso. O número passaria a ser o dado indicativo
fundamental: durante todo o período de reclusão, essa seria a única forma de reconhecimento
por parte dos militares. Os detidos que voltavam ao Penal (reprocessados) readquiriam o
mesmo número.
33
Um outro fator de despersonalização era a proibição de usar barba e a
obrigação de “rapar a zero” a cabeça a cada quinze dias. Condições semelhantes de
disciplinamento e comportamento impunham-se também às mulheres em Punta de Rieles (por
exemplo, no lugar da cabeça rapada usavam o cabelo bem curto).
No Penal de Libertad, havia dois presos por cela de espaço exíguo, o que, por si, já
era um fator tensionador, sobretudo havendo a possibilidade de que um dos dois tivesse
problemas mentais, tornando profundamente desgastante a situação do outro, além de
inviabilizar ou deteriorar o que poderia ser uma relação de diálogo e de convivência - fato que
podia se arrastar por anos. Os distúrbio de ordem psíquica, quando se manifestavam, não eram
curados, e sim, no máximo, controlados. De certa forma, pode-se dizer que eram desejados
pelo sistema repressivo, pois tornavam-se fonte continua de tensões e desequilíbrios para o
grupo de presos. A presença de um enfermo psíquico na mesma cela de um preso são tornava-
se uma experiência profundamente desgastante, pois aquele se convertia em um instrumento
de agressão para seu companheiro. Este não só sofria pela impotência de não saber como
ajudar o companheiro, como sofria e se irritava com o escárnio da guarda com o doente.
Assim o expressa David Campora, ex-preso político:
[...] Estar en la celda con un loco es muy duro, porque uno no es siquiatra ni
enfermo, y no sabe qué hacer, y generalmente hace cosas que no ayudan al
compañero enfermo o que incluso pueden ser perjudiciales, y uno está
siempre nervioso porque el compañero puede intentar suicidarse de noche
mientras uno está durmiendo... Es muy duro ver un ataque de locura:
compañeros que llegan a pasar dos o tres horas ladrando. Y por supuesto es
mucho peor todavía ver cómo el soldado se ríe del compañero que está
loco.
34
33
SERPAJ, op. cit., p. 205.
34
MADRES Y FAMILIARES DE PROCESADOS POR LA JUSTICIA MILITAR. Los cárceles militares del
Uruguay. Informe de salud. Montevideo, agosto 1984.
554
Por outro lado, diante da possibilidade de que, passado o impacto inicial, algumas
relações se harmonizassem como resultado da convivência e da relação humana, vinha a
ordem do traslado de um dos moradores da cela para outro setor do presídio. No depoimento
de Álvaro Jaume consta que:
En el Penal ni siquiera la ‘morada’ del preso es estable. Por ejemplo, una vez
que se ha armonizado la convivencia en una celda y que se ha entablado
relación humana, viene el traslado de uno de los integrantes para otro sector
del Penal. El preso vive como ‘un nómade’; siempre se lo está cambiando de
aquí para allá.
35
Toda atividade acontecida dentro da cela era rigorosamente vigiada através de visitas
(periódicas ou inesperadas) e do uso do visor da janela, que permitia o controle direto do
interior da cela desde o corredor.
Deve salientar-se também que o uso da tortura não cessava com a disponibilização
do detido à Justiça Militar e a transferência do mesmo ao estabelecimento de reclusão. Pelo
contrário, não se deve perder de vista que o sistema penitenciário foi montado com o objetivo
de aniquilar, indiretamente, os detidos, que deviam continuar sendo considerados e tratados
como inimigos até a morte. O ex-diretor do Penal de Libertad, major Arquimedes Maciel,
chegou a afirmar, como conta no depoimento a Eddy Kaufman, da Anistia Internacional,
diante da Comissão de Relações Internacionais da Câmara de Deputados dos EUA (27 de
junho de 1976), que: “No los liquidamos cuando tuvimos la posibilidad, y encima tendremos
que largarlos. Debemos aprovechar el tiempo que nos queda para volverlos locos”.
36
Tal frase
expressou concretamente o objetivo central que se perseguia nos cárceres militares: a
destruição psíquica planificada dos prisioneiros.
Nessa perspectiva, o primeiro passo era o isolamento, desconectando o preso do
mundo exterior e, em muitos casos, do seus próprios companheiros. Sobre esse indivíduo
isolado atuava a repressão, mediante a hostilidade individualizada e permanente. Assim
descreveu esta situação José Nieto, preso político durante doze anos no Penal de Libertad:
Los mecanismos empleados para esa destrucción son sutiles, disfrazados tras
una aparencia externa correcta en lo relativo a las condiciones físicas,
materiales e higiénicas del Penal. Por eso resultaba difícil hacer comprender
a las delegaciones del Comité Internacional de Cruz Roja en qué consistían
la represión y las condiciones inhumanas de la prisión. Estas consisten
fundamentalmente en una presión sicológica sistemática y prolongada a lo
largo de muchos años. [...] es difícil, para quién no lo vivió, imaginar hasta
qué punto puede deteriorar a una persona el hecho de que la insulten, la
35
Apud SERPAJ, op. cit., p. 206.
36
MADRES Y FAMILIARES DE PROCESADOS POR LA JUSTICIA MILITAR, op. cit., p. 5.
555
humillen y le golpeen la ventanilla de la celda varias veces en el día y en la
noche durante más de diez años.
37
Ou como afirma o Dr. Raúl Lombardi sobre a deterioração da saúde dos presos
decorrentes das condições de vida do Penal de Libertad:
Hay que llegar a comprender lo que es la situación de un individuo sometido
a un acoso constante durante años, desde que ingresa al penal hasta que se va
(y esto puede durar más de 12 años). Teniendo conciencia de que a uno se le
está vigilando permanentemente, sin un solo momento de privacidad (no
olvidemos que las celdas tienen mirillas por las que la guardia observa
regularmente, y cuando no lo hace, el preso adentro de la celda igual ‘debe’
suponer que lo está haciendo). Que durante todo este tiempo uno no puede
ejercer libremente la acción más elemental y cotidiana, como la de encender
o apagar una luz, o desplazarse de un lugar a otro sin pedir permiso, abrir
una puerta, etc. La posibilidad de decidir está prohibida a ese extremo, el
condicionamento de la vida es absoluto. Y así, año tras año. Sólo así se
puede entender cómo una población tan joven y sana terminaba al cabo del
tiempo con un envejecimiento, desgastada psíquicamente.
38
Por isso se diz que: “La patología que presenta la población carcelaria no
corresponde a gente de su edad en condiciones normales; es decir, que además del
envejecimiento prematuro se da una patología particular relacionada directamente con las
condiciones de vida en la cárcel”.
39
Sobre a alimentação da população carcerária, deve-se dizer que era precária e pouco
equilibrada, o que exigia a complementação através do esforço das famílias que entregavam
pacotes quinzenalmente, rigorosamente vistoriados e muitas vezes confiscados, contendo
doce, mel, açúcar, erva-mate, chá, tabaco, vitaminas, etc. No presídio feminino, permitia-se,
também uma ração semanal de queijo e fruta. Nos depoimentos sobre as duas principais
prisões, registra-se a existência de razoável quantidade e qualidade de alimentos, embora
fossem servidos frios; fora o fato do curto espaço de tempo para a refeição e a inexistência de
refeitórios.
40
De qualquer forma, tal situação contrasta com a dos detidos em centros de
interrogatório, onde a falta de comida e bebida é associada à dinâmica da tortura. Da mesma
forma, é uma situação muito diferente à enfrentada por aqueles líderes tupamaros,
considerados reféns do regime militar.
Quanto à higiene, as condições eram terríveis. O controle da água dentro das celas
era rigoroso. Havia proibição expressa de tomar banho ou lavar-se. O banho era coletivo e
semanal, tendo dia, hora e duração regulamentada. Os produtos de limpeza eram fornecidos
37
Idem, p. 6.
38
SERPAJ, op. cit., p. 245.
39
MADRES Y FAMILIARES DE PROCESADOS POR LA JUSTICIA MILITAR., op. cit., p. 1.
40
SERPAJ, op. cit., p. 206.
556
pelos familiares ou então adquiridos no depósito do presídio com dinheiro destes. Na situação
dos detidos não processados, a situação piorava muito. As más condições de higiene
facilitavam a propagação de doenças. Aliás, uma alta percentagem de presos políticos sofria
algum tipo de doença física ou psíquica, resultado da tortura ou das péssimas condições da
vida carcerária. As mais comuns, de cunho físico, eram: gastrite, úlcera, hipertensão, asma,
perda de peso, perda de dentes, epilepsia, doenças de pele, transtornos visuais (provocadas
pelo tempo longo sem ver à distância, com luz artificial e/ou na semi-escuridão). Entre as
alterações psíquicas destacaram-se: síndromes depressivas, alucinações, delírios permanentes,
distorções graves de conduta, paranóias, mania persecutória, perda de reflexos, descontrole
emocional, amnésia, tendência ao suicídio, insônia.
41
O controle sobre o horário de descanso era rigoroso, assim como os momentos de
formação e conferência, sempre muito curtos. O silêncio devia ser absoluto em determinado
período, mas só os presos eram obrigados a respeitá-lo. Em realidade, era muito comum uma
irrupção barulhenta da guarda, planejada pela administração carcerária, como forma de
punição perturbando o sono dos presos. Gritos, insultos e golpes contra as portas metálicas
eram a norma. Com isso, buscava-se perturbar qualquer possibilidade de “tranquilidade”,
descanso, descontração ou concentração (dependendo do caso) impondo, assim, uma situação
de desgastante alerta permanente. Somente 22% dos entrevistados pelo SERPAJ responderam
que tinham seus períodos de sono respeitados.
42
Uma das formas de manutenção do equilíbrio emocional e psicológico, por parte da
população detida, nas circunstâncias mais dissímiles, era a possibilidade de desenvolver
atividades manuais apesar das enormes restrições existentes no sistema carcerário. No caso
das prisões políticas do Uruguai, esse trabalho criativo que mantinha ativo o cérebro,
estimulava a aprendizagem, ocupava o tempo e desenvolvia atividades motoras quando era
permitido, também podia tornar-se motivo de repressão (pelo controle ou proibição da própria
atividade). Na medida em que o exercício físico era proibido, assim como a utilização das
aptidões individuais para realizar tarefas úteis para os demais, as atividades manuais dos
detidos, confinados em espaços reduzidos e com longuíssimas horas a ocupar, eram vistas
como forma de canalização de energia vital, o que certamente contribuía na distensão de
tantas frustrações e limitações. Porém, as restrições eram enormes. Havia um rígido controle
sobre as tarefas e as ferramentas de trabalho. Os presos deviam solicitar o material necessário
(couro, lã, tintas, ferramentas, lápis, osso, madeira) à administração; se liberado, o pedido era
41
MADRES Y FAMILIARES DE PROCESADOS POR LA JUSTICIA MILITAR., op. cit., p. 1.
42
SERPAJ, op. cit., p. 208.
557
repassado à família. Logo, mecanismos de controle e de censura entravam em ação; nem tudo
chegava às mãos dos detentos, fosse por segurança, fosse por punição.
A criatividade se transformou em instrumento de superação das restrições impostas,
tornando-se meio de vencer o embate cotidiano, que, enquanto desafio, adquiria especial
sentido para os presos ao permitir-lhes reafirmar sua condição humana (negada desde o início
da detenção). Ativavam mecanismos racionais e habilidades manuais. No fundo, essas
atividades e as ações para burlar os controles e as barreiras constituíram importante reforço de
saúde mental e de recuperação de uma individualidade, sempre ameaçada pelos mecanismos
despersonalizadores do complexo carcerário. Às vezes, estimulava-se essa atividade como
forma de obtenção de fundos para ajudar com as despesas da família; mas a saída desses
objetos dos presídios nem sempre era tão simples assim. Na paranóia da interminável guerra
anti-subversiva, alguns escalões militares entendiam que a venda ou distribuição desses
objetos artesanais “podía ser considerado un medio de ‘colaboración con la subversión’”.
43
Uma intensa censura restringia a criatividade. Eram proibidos temas considerados
tendenciosamente ideológicos como “a pomba de Picasso, o sol, a rosa, as mãos de Rodin, o
peixe, o Dom Quixote, o Pequeno Príncipe, a estrela” e todos os desenhos abstratos que
dificultavam a interpretação da leitura linear e simplista da censura militar. O critério era
extremamente elástico e arbitrário. O desenho de uma flor não podia sair do Penal, pois
parecia uma rosa (e esta podia lembrar a cor vermelha). Pássaros também eram proibidos;
lembravam a pomba (da paz) e pior, voavam, livres. Um preso teve censurado o desenho de
um barco. O censor interpretou que seu autor havia querido representar nele “os uruguaios
que abandonaram o país”, fato que talvez fosse entendido como um atentado à honra da nova
ordem. A mesma lógica era aplicada aos presentes que os pais, presos, podiam receber dos
seus filhos, o que aumentava a frustração e a impotência pelo efeito que a censura e a
apreensão dos objetos (desenhos, poesias, cartas) produziam nas crianças pequenas.
Um caso que apresentou uma resposta bem diferente e que se tornou muito
conhecido no ambiente dos psicanalistas que trabalham com experiências traumáticas deste
teor foi o de uma menina que, tendo diversos desenhos proibidos na entrada do Penal de
Libertad, encontrou uma forma extremamente criativa de burlar a guarda. Essa história foi
resgatada por Maren Viñar,
44
quem a denominou “Los ojos de los pájaros”:
43
Idem, p. 210.
44
VIÑAR, Maren; VIÑAR, Marcelo. Fracturas de Memoria. Crónicas para una memoria por venir.
Montevideo: Trilce, 1993. p. 20.
558
[Sofía] Tenía cinco años. Aún la veo. Su padre está preso. En cada visita,
Sofía le lleva los dibujos que contienen lo esencial de lo que quería decirle.
Sus dibujos son censurados sistemáticamente en la entrada. Un día, la mujer
de la guardia tacha con tinta negra las golondrinas que anuncian la llegada de
la primavera. “Está prohibido dibujar palomas”, le dice en tono severo.
Desde entonces, Sofía no dibuja más pájaros, pero dibuja numerosos pares
de pequeños círculos entre las ramas de los árboles.
Son los ojos de los pájaros que están escondidos.
A pequena Sofía, com seus cinco anos, vítima direta do TDE, aprendeu a enfrentá-lo
e a resisti-lo; mas, provavelmente, esta história é muito mais a exceção que confirma a regra.
O que não se deve perder de vista, entretanto, por mais patético que possa parecer, é que essas
limitações e a lógica dessa censura passaram pelas sugestões e orientações de psicólogos que
estavam a serviço do regime e trabalhavam inseridos no próprio sistema carcerário, em
sintonia com os interesses das Forças Armadas e afinados com o discurso da SN.
45
Como mais uma perversidade do sistema repressivo, o controle e a censura sobre a
produção dos presos justificavam permanentes inspeções das celas, em busca de material e de
instrumentos enquadrados como proibidos. O depoimento de Luis Alberto Estradet informa
que sua cela sofreu diversas buscas onde lhe retiraram uns barquinhos fabricados com palitos
de dente que lhe exigiam de quatro a cinco meses de trabalho “porque ahí podía haber
material escrito.”
46
Aliás, era muito comum a destruição das peças artesanais neste tipo de
ação, fato que podia agravar a instabilidade ou o desequilíbrio emocional. Era outra
modalidade de agressão contra o autor-detido: a negação do valor de semanas ou meses de
trabalho, do direito e do reconhecimento do trabalho intelectual.
Não há dúvida de que a expropriação ou destruição do trabalho realizado, em muitos
casos, contribuía na destruição psicológica do detido. Se a permissão para desenvolver algum
tipo de trabalho artesanal geradora de expectativas positivas, seu impedimento ou a destruição
do produto realizado aumentava a sensação de frustração, desqualificação e inutilidade do
próprio indivíduo, ou seja, reforçava sentimentos de baixa auto-estima e depressão. Caso
semelhante ocorria com promessas de atividades culturais ou de divulgação de informação,
que, concretamente, nunca eram cumpridas. O pianista argentino preso no Uruguai, Miguel
Angel Estrella, referido no capítulo anterior, ao comentar as proibições ou deformações das
atividades culturais permitidas, entendia que se tratava de uma política cujo funcionamento se
regia por
[...] dialéctica de nutrir la expectativa en el recluso y posteriormente
45
SERPAJ, op. cit., p. 210.
46
Idem.
559
defraudarlo con la interrupción, la sanción y/o la proibición. La adjudicación
de trabajos que ellos llaman “concesiones”, en realidad son parte del
proyecto ‘esperanza-frustración’, siendo usados paralelamente por los
militares para calmar la denuncia de la opinión pública mundial. Así, por
ejemplo, dieron comunicados diciendo que nosotros dictábamos clases de
flauta, guitarra, telares, etc., que hacíamos gimnasia (debo aclarar que la
gimnasia estaba prohibida), que yo estudiaba el piano catorce horas por día
(jamás fue posible estudiar más de una hora y tomando precauciones); que
teníamos una información normal sobre las noticias del mundo, y que esas
noticias eran preparadas por los presos... En fin, un cúmulo de invenciones,
que pretendian dar la imagen de una ‘colonia de vacaciones’.
47
Situação semelhante, por mais contraditória que possa parecer, era vivida no interior
do Hospital Militar, muito mais uma extensão da estrutura e da lógica repressiva carcerária do
que um centro de atendimento médico para tratar dos graves problemas de saúde sofridos
pelos presos políticos. É evidente que aqueles que foram encaminhados a esse hospital
estavam em péssimas condições de saúde, fosse por ferimentos produzidos quando da
detenção, fosse por doenças graves. De qualquer forma, eram casos que exigiam tratamento
prolongado e específico. O Hospital Militar também recebia casos de emergência de detidos
recentes que se encontravam em situação muito grave durante a aplicação da “máquina”. No
local, fazia-se o atendimento de urgência e, logo após, o início da recuperação do “paciente”
e, para espanto deste, era devolvido ao centro de detenção originário, onde era retomado seu
tratamento; não o médico, claro, senão o do interrogatório.
48
A segurança, aspecto prioritário na vida carcerária, também o era no Hospital Militar
já que o preso para ali enviado, antes de assumir a condição de paciente, continuava, em
primeiro lugar, na condição de preso. As transferências eram solicitadas com a anuência da
autoridade médica do presídio ou do centro de detenção e somente quando constatada a
gravidade do caso. Deve-se lembrar que, naqueles estabelecimentos, o atendimento médico-
psicológico era de extrema superficialidade e irresponsabilidade. E assim devia ser: este era o
entendimento que as Forças Armadas tinham de como devia ser tratado o exército vencido.
Era de praxe uma espera de vários meses entre a solicitação de transferência ao
hospital e sua efetivação; conseqüentemente, agravava-se o padecimento da doença sem um
atendimento adequado. Ao confirmar-se a transferência, iniciava-se um período de incerteza
quanto a sua ocorrência. Finalmente, quando ocorria, o preso-paciente aguardava durante
horas o transporte e, durante o trajeto, era obrigado a permanecer em estrito silêncio, sem se
mover e com o olhar baixo (lembrando que eram casos de extrema gravidade). Dentro do
Hospital Militar, o regulamento para o preso-paciente era o mesmo do presídio. Não podia
47
Idem, p. 212.
560
falar, nem realizar trabalhos manuais, nem se emprestar artigos de higiene. Eram obrigados a
permanecer deitados, não podiam sentar-se e só podiam caminhar um por vez, com
autorização da guarda, que também outorgava permissão para ir ao banheiro. Houve o caso de
um preso-paciente que, ao voltar à penitenciária, foi punido com três dias de calabouço por
não ter cumprido o regulamento militar no hospital, ou seja, por não se ter parado diante da
presença de um cabo.
49
Embora o Hospital Militar fosse um dos hospitais melhor aparelhados do país - até
porque atendia a corporação militar e suas famílias -, para o preso-paciente, o atendimento, o
recebimento da medicação apropriada e o acompanhamento de especialista eram sempre
incertos. Havia exceções, é claro; entretanto, sua existência confirmava a regra. A
normalidade era o extravio de históricos clínicos, os doentes passando dias e até semanas sem
atendimento médico ou a alta hospitalar dada não por um médico, e sim por “ordens
superiores” de um oficial.
O médico militar era, em primeiro lugar, militar. Depois, médico. A obediência ao
superior, a ordem, a disciplina e a hierarquia esvaziavam seu compromisso com a Medicina e
com o próximo. Os relatos das vítimas da ditadura confirmam que, na grande maioria dos
casos, quando precisaram atendimento médico, foram tratados como presos e não como
doentes. E, se as ordens superiores contradiziam com os cuidados que exigia a condição do
preso doente, valiam as primeiras. Típica situação das ordens de alta dadas pela autoridade
responsável da sala do hospital onde eram tratados os presos políticos. Em função de critérios
de segurança ou administrativos, eles ignoravam a situação clínica do preso doente. Diante
desse fato, o médico militar obedecia, consentia e assinava a alta. O preso doente não tinha
direito de período pós-operatório ou de convalescência. Freqüentemente, era devolvido ao
local de detenção sem estar recuperado e, às vezes, sem sequer ter sido atendido.
Igualmente, a mesma disciplina militar é imposta aos enfermeiros e demais pessoas
do hospital, os quais são proibidos, sob ameaça, de qualquer tratamento amável com os presos
doentes. O pessoal do Hospital Militar é doutrinado para ver os doentes como inimigos e os
tratar como tais. Na sala 8, utilizada principalmente nos primeiros anos da repressão, as
restrições eram severas e as ameaças também:
[...] un soldado armado con un garrote de madera se paseaba continuamente
por la sala, y los insultos y provocaciones a los internados eran frecuentes.
En ocasiones, llegaba a golpear con la cachiporra los barrotes de las camas
48
MADRES Y FAMILIARES DE PROCESADOS POR LA JUSTICIA MILITAR., op. cit., p. 9.
49
Idem, p. 11.
561
mientras los prisioneros se hallaban durmiendo.
50
A omissão não era punida, mesmo quando suas conseqüências pudessem ser trágicas.
A família do preso continuava sofrendo todas as restrições de acesso ao mesmo que
encontrara no ambiente do presídio, só que numa situação pior, pois não tinha acesso à
informação médica e sofria com a incerteza da doença do familiar. Os médicos justificavam
sua negativa em dar informações pela condição de serem eles militares.
51
A condição de preso político não foi reconhecida pela Justiça Militar. O que
implicou em desconsiderar direitos internacionalmente aceitos. Tampouco tinham, apesar do
discurso da DSN, o reconhecimento como prisioneiros de guerra. Os conceitos de “guerra
interna” e de “inimigo interno”, repetidos até a exaustão nos discursos oficiais e doutrinários,
não eram reconhecidos juridicamente pelo próprio regime. O fato de estarem sob jurisdição
militar, significava que as sentenças proferidas careciam de valor legal, embora legitimadas
pela razão da força e justificadas pela DSN. O fiscal, a defesa designada, o juiz e o Supremo
Tribunal Militar pautavam-se pelos princípios da disciplina, da autoridade, da hierarquia e da
subordinação às Forças Armadas; para essa estrutura de poder e de comando, os “presos
políticos de fato” eram os inimigos derrotados que não eram reconhecidos como tais e,
portanto, não dispunham de mecanismos jurídicos de proteção que limitassem a ação
opressiva do TDE.
Curiosamente, porém, o tratamento que recebeu o “preso político de fato” era
diferente que o recebido pelo preso comum. Este último tinha direito de habeas corpus, livre
eleição da sua defesa, comunicação com o mundo externo e acesso aos estudos e aos meios de
comunicação. Situação singular, pois assim como não eram juridicamente reconhecidos como
os “presos políticos de fato”, tampouco recebiam o tratamento costumeiro, pelo fato de serem
“falsos presos comuns”. Assim, os prisioneiros identificados como “inimigos internos”
acabaram sendo os únicos civis julgados por tribunais militares. Isto significa que, fora do
terreno semântico, foram tratados, concretamente, pelo que verdadeiramente sempre
representaram à DSN: inimigos políticos.
52
Na denúncia apresentada diante do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas,
em Genebra, Gabriel Manera, filho do refém Jorge Manera Lluberas, lembrava que, no
Uruguai, toda possibilidade de recursos legais em defesa dos cidadãos estava limitada à
Justiça Militar e que os juízes militares eram parciais e encobriam os excessos e
50
SERPAJ, op. cit., p. 253.
51
MADRES Y FAMILIARES DE PROCESADOS POR LA JUSTICIA MILITAR, op. cit., p. 13.
52
IEPALA. Uruguay. Seguridad nacional y cárceles políticas. Madrid: IEPALA Editorial, 1984. p. 17.
562
arbitrariedades contra os detidos políticos cometidos pelos seus pares e companheiros de
armas. Eles eram os únicos que poderiam impedir os excessos, corrigir as arbitrariedades e
julgar os responsáveis. Portanto, acrescenta Manera: “Fuera [...] de la justicia militar, mi
padre no tiene a su alcance recurso alguno y dentro de ella, éstos no prosperan como lo
muestra la experiencia de los últimos 10 años.”
53
A recuperação da liberdade, quando acontecia, mantinha uma situação de
indefinição, de insegurança e de desconforto para o ex-preso. A mudança de estatuto não lhe
permitia, entretanto, recuperar os direitos civis e políticos. Recuperada a liberdade, continuava
sob vigilância e controle durante vários anos, sendo tratado quase sempre na condição de
suspeito de conspiração. Além disso, muitos dos ex-presos, ao abandonarem a prisão, foram
obrigados a indenizar o Estado pelo custo que teve em alojá-lo, alimentá-lo e vesti-lo durante
sua estadia na prisão. Um sarcasmo peculiar da racionalidade do sistema carcerário uruguaio e
da “eficiência” econômica da sua administração.
Por outro lado, os ex-presos eram obrigados, periodicamente, a apresentar-se numa
dependência militar ou policial previamente indicada. Ocorreram muitos casos de libertados
pela Justiça Militar que foram novamente presos quando cumpriam com essa obrigação. A
repetição da experiência do encarceramento reabria as feridas anteriores ou aumentava as que
persistiam, além de devolver a sensação de angústia aos familiares.
54
Portanto, considerando o anteriormente exposto, pode-se aferir que a grande
característica do sistema carcerário implementado pela ditadura uruguaia, foi a montagem de
uma estrutura portadora de uma lógica interna, que lembra uma espécie de grande campo de
concentração, o que levou as organizações de direitos humanos, após o levantamento do
funcionamento das grandes unidades carcerárias e das condições impostas aos presos
políticos, denominar esta modalidade repressiva de el gran encierro. A intencionalidade na
deterioração física e psicológica dos presos políticos contradiz a citada justificativa do contra-
almirante Moll de que os militares uruguaios, por respeitarem a vida do inimigo, produziram
poucos mortos e desaparecidos, em comparação com o Chile e a Argentina.
O sistema carcerário induziu suicídios (inclusive nos hospitais militares), assim como
produziu mortos como resultado direto da tortura e como acúmulo de maus tratos. A pesquisa
do SERPAJ chega a apontar que 50% da população masculina e 62% da feminina tiveram
conhecimento de tentativa de auto-eliminação (suicídio) de algum companheiro, mas é difícil
mensurar esse tipo de situação. Se o discurso dos agentes do regime expõe essa iniciativa
53
MANERA LLUBERAS, op. cit., 1982. p. 2.
54
SERPAJ, op. cit., p. 118.
563
(indução ao suicídio), consideradas as terríveis experiências nas prisões, o SERPAJ conclui
que, mesmo assim, as tentativas de auto-eliminação não foram numericamente
significativas.
55
Porém, as poucas que aconteceram tiveram grande impacto junto à população
carcerária. Oito casos foram avaliados como resultados de suicídio sem intervenção direta da
repressão. Mas deve-se supor que para essa condição contribuíram ações indiretas que
levaram ao desequilíbrio psíquico correspondente (sanções em celas de castigo,
prolongamento da prisão uma vez cumprida a pena, hostilidade psicológica e o isolamento).
56
É importante ressaltar que estes fatos não evidenciaram falhas no sistema, exceções ou
acidentes. Foram fruto consciente do entendimento da principal função do sistema carcerário:
destruir até o limite o inimigo derrotado, exaurindo-lhe a resistência política, moral, ética,
psicológica, anímica e física. Umas trinta pessoas detidas morreram na fase do interrogatório.
A entrega dos seus cadáveres, quando ocorreu, foi totalmente irregular: ataúdes lacrados,
certificados de óbito falsos ou errados, vigilância nos velórios.
Apesar dos fatos mais do que evidentes, o discurso oficial procurou induzir, no
exterior, a crença de uma situação idílica, vivenciada tanto pela sociedade em geral quanto
pelos detentos espalhados nas diferentes regiões do país. Neste sentido, o conselheiro de
Estado, Frederico García Capurro, em uma correspondência ao Albert Einstein College of
Medicine of New York, respondeu às preocupações do seu diretor sobre a situação dos presos
políticos, em outubro de 1979, dizendo que:
los
delincuentes por los que ustedes se interesan, no sólo gozan de todas las
garantías legales y humanas, sino que además
están alojados en cárceles
modernas de ‘cinco estrellas’, privilegio que no tienen nuestros delincuentes
comunes. [grifo meu]
57
Concluindo, é importante relacionar essa estrutura política e carcerária com o todo
maior do qual faz parte: a política repressiva da ditadura de SN, estruturada pela lógica do
TDE. É preciso compreender que essa modalidade repressiva articulou-se, combinou-se e
complementou-se com outras modalidades que fazem parte da mesma lógica que estruturou o
regime militar e seus interesses.
6.2 – A POLÍTICA DOS REFÉNS
55
Idem, p. 281.
56
Idem, p. 280.
564
Uma situação muito particular do sistema carcerário da ditadura uruguaia foi a
criação da condição de “reféns”. Essa condição foi um regime de detenção rigoroso aplicado a
determinados presos políticos, por mais de uma década, e que teve um caráter de ineditismo
se comparado às demais ditaduras de Segurança Nacional latino-americanas.
A origem deste fato está contextualizada nos meses imediatamente após o golpe de
Estado. Nesse momento, 9 homens e 8 mulheres, considerados pelas Forças Armadas como
sendo os principais dirigentes do MLN foram retirados dos presídios onde se encontravam
reclusos. Situação semelhante, mas por um período de tempo menor (dois anos, segundo o
relato de Vladimir Turiansky), ocorreu com algumas lideranças históricas da CNT e do
PCU.
58
Esses presos políticos, retirados de um universo carcerário opressivo, ao qual
estavam tentando se adaptar, foram obrigados, mais uma vez, a sofrer a incerteza do
desconhecido. Sua transferência se realizou sem destino conhecido, sem informação alguma
aos familiares, advogados defensores ou juízes militares encarregados dos respectivos
processos penais. Para se ter uma idéia do rigor e da duração desta nova situação, deve dizer-
se que o grupo masculino do MLN só retornaria ao Penal de Libertad, de onde foi retirado,
em abril de 1984, portanto, quase onze anos depois. Quanto às mulheres, sua condição de
refém perdurou até 1976. Literalmente, tratou-se de um seqüestro de prisioneiros do próprio
sistema prisional. E mesmo considerando o difícil cotidiano nos cárceres políticos do regime,
comparativamente, a condição de refém deve ser qualificada como sendo uma situação
subumana.
No dia 7 de setembro de 1973, as forças armadas seqüestraram do Penal de Libertad
(EMR-1) nove militantes do MLN-Tupamaros de reconhecida trajetória em movimentos
populares e na luta revolucionária: Raúl Sendic, Eleutério Fernández Huidobro, Jorge
Manera, Julio Marenales, José Mujica, Jorge Zabalza, Adolfo Wasem, Henry Engler e
Mauricio Rosencof. O grupo feminino foi retirado do Penal de Punta de Rieles (EMR-2) e era
integrado por Alba Antúnez, Estela Sánchez, Cristina Cabrera, Flavia Schilling (brasileira),
Graciela Dry, Jessie Macchi, Raquel Cabrera e Maria Elena Curbelo; após um ano, foi
agregada Elise Michelini.
59
Tempos depois, foram comunicados de que, a partir daquele
momento havia uma resolução oficial
60
que os identificava como reféns do regime
61
e que
57
IEPALA, op. cit., p. 20.
58
TURIANSKY, Wladimir. Apuntes contra la desmemoria. Recuerdos de la resistencia. Montevideo: Arca,
1988.
59
SERPAJ, op. cit, p. 235.
60
Existiu registro dessa resolução. Em 1979, um ex-oficial declarou ter visto, em 1975, no Batalhão de Infantaria
565
seriam imediatamente executados caso os remanescentes da organização realizassem alguma
ação. Um dos reféns, o escritor Mauricio Rosencof, relata que recebeu a informação da sua
nova condição através do major Nino Gavazzo:
Traigo una resolución del Comando General del Ejército: estás condenado a
muerte. Cualquier atentado que se produzca afuera vamos a limpiarte. Y vos
sabés que eso es muy fácil porque se simula una fuga y ya está. Esto no
puede salir de vos, no puede enterarse tu familia, porque vos a tu familia la
querés mucho, ¿no?
62
Alejandro Artucio foi o advogado de defesa do refém Manera Lluberas, entre 1969 e
1971; posteriormente, na época em que os líderes tupamaros foram retirados do Penal de
Libertad, virou preso político, como tantos defensores de detidos e prisioneiros políticos. Ele
conta como foi vivido esse fato desde dentro do sistema carcerário:
Una noche de setiembre de 1973, MANERA y otros reclusos considerados
como la dirección del Movimiento de Liberación Nacional (Tupamaros),
fueron sacados del E.M.R. N° 1 [Penal de Libertad] con destino
desconocido: empezaba la vida como rehenes. En los días que siguieron a
este hecho, algunos presos ubicados en diferentes sectores del Penal fueron
informados, en conversación oficiosa ante el Mayor de ejército que tenía a su
cargo la responsabilidad de los reclusos, que todos estos nueve prisioneros
constituían la garantía de las F.F.A.A., de que el M.L.N. (T) no emprendiera
acciones armadas; y que en caso de hacerlo existían órdenes superiores de
fusilarlos de inmediato. Siempre pensé, que el deseo de la oficialidad a cargo
del Penal , era de que esta amenaza se conociera entre la población
carcelaria y sobretodo trascendiera al exterior de la carcel. (Testemunho de
Alejandro Artucio, abril de 1982)
63
Portanto, a condição de reféns dos líderes da organização guerrilheira devia ser
expressamente divulgada e reafirmada com muito estardalhaço para, assim, paralisar qualquer
ação que os remanescentes do movimento tupamaro ainda pudessem desencadear. Essa
medida era parte de uma estratégia particular de contenção e de engessamento de ações
“vingativas” que pudessem ser tomadas contra autoridades ou funcionários do regime dentro
e, principalmente, fora do país, onde algumas células do MLN ainda permaneciam ativas. Se
Nº 4 (Colonia), onde estava detido Raul Sendic, uma instrução escrita colada na parede na qual se ordenava ao
oficial de serviço que, se o quartel fosse atacado, executasse imediatamente a Sendic. SERPAJ, op. cit., p. 235.
61
O critério da escolha dos reféns continua impreciso. Fernández Huidobro considera que, no caso dos homens,
foram escolhidos os líderes que haviam participado das conversações conhecidas como “Trégua Armada”, além
de Jorge Zabalza. No caso das mulheres, segundo consta no depoimento de Flávia Schilling, a escolha recaiu
sobre as guerrilheiras que haviam sido feridas no momento da prisão e que apresentavam seqüelas – graves, em
quase todos os casos – dos ferimentos. SCHILLING, Flávia. Querida liberdade. 2
a
ed. São Paulo: Global Editora,
1980. p. 26. Em entrevista concedida ao Coojornal, logo após sua libertação, Flávia Schilling acrescenta que no
seu caso pesou o fato da ditadura visar atingir seu pai, o jornalista Paulo Schilling, em processo de expulsão do
país naquele momento. Coojornal, n° 53, maio de 1980, p. 24.
62
Idem.
63
MANERA LLUBERAS, op. cit., p. 9.
566
ocorresse um atentado do MLN, simular-se-ia uma fuga e os reféns seriam mortos. Rosencof
afirma que: “Chantajeaban a los compañeros de afuera porque si hacian alguna acción,
nosotros pagábamos con nuestras vidas.”
64
Separados em grupos de três,
65
mas isolados entre si, circularam por diferentes
estabelecimentos militares do interior do país, seguindo um roteiro que, ciclicamente, fechava
um novo rodízio. A razão dos deslocamentos permanentes referia-se a uma estratégia do
Exército em dividir a responsabilidade da custódia entre todos os mandos, o que implicava em
torná-los cúmplices - uma forma inteligente de fazer tal divisão, mesmo a contragosto de
alguns poucos, e de tentar evitar surpresas no futuro. Calcula-se que, no caso do grupo
masculino, nos dez anos e meio que esteve submetido à condição de refém, cada trio foi
transferido de unidade militar, cerca de 45 vezes. A cada mudança, exigia-se do refém um
novo esforço de identificação do espaço, adaptação às novas condições, apreensão das pautas,
idiossincrasias da guarda local, etc.
Quanto ao grupo feminino, este foi distribuído em duplas (e, em alguns casos,
também individualmente) nas seguintes unidades: Artilharia 4 (cidade de San Ramón),
Batalhão de Infantaria 1 (“Florida”), Cavalaria 4 e Engenheiros 1. Ficavam por períodos de
até três meses, quando se estabelecia novo rodízio. O tratamento recebido no período foi o
mesmo sofrido pelos reféns masculinos: regime de calabouço, incomunicação total,
humilhações, simulações de fuzilamento, ameaças de estupro, agressões físicas, provocações
de todo tipo e transferências constantes e sem aviso prévio de um quartel para outro.
66
Em
1976, após mais de três anos nessas condições, as nove reféns foram devolvidas à
penitenciária feminina de Punta de Rieles, e, sem nenhuma explicação, terminou sua condição
de reféns das Forças Armadas.
Colocando a existência da condição de refém em perspectiva histórica, pode-se
afirmar que a mesma é aceita em determinadas conjunturas e dentro de uma certa lógica de
confronto bélico. Mais do que isso, uma política de reféns pode ser justificada como fator
militar tático e estratégico. Por outro lado, o estatuto de refém, pode referir-se a uma
circunstância que não necessariamente entra em choque com um tratamento correto,
“civilizado”. Ou seja, mesmo na situação de ilegalidade decorrente de uma presumível
“guerra interna”, segundo o discurso oficial da DSN, nada determina que, independente do
seu estatuto ilegal, o refém não pudesse receber um tratamento adequado, digno, com direito a
64
Rosencof apud, ISRAEL, Sergio. El enigma Trabal. Montevideo: Trilce, 2002. p. 117.
65
Os trios formados foram: Fernández Huidobro, Mujica e Rosencof; Engler, Wassen e Manera Lluberas;
Marenales, Sendic e Zabalza.
66
SCHILLING, op. cit., p. 26.
567
alimentação, material de leitura, trabalhos manuais, informação, recreios ao ar livre e
atendimento médico. Quer dizer, um tratamento digno de um ser humano, apesar da condição
imposta; um tratamento como era devido a qualquer preso ou detido, fosse onde fosse. O
respeito da situação humana do refém sempre foi uma condição historicamente reconhecida,
como bem lembra Samuel Blixen, já que se trata de “[...] una persona que queda en poder del
enemigo como garantía o fianza mientras de tramita la paz, un acuerdo, un tratado.”
67
O governo uruguaio, denunciado nos fóruns internacionais, refutou insistentemente a
existência dos reféns. Maria Elena Curbelo, uma das reféns femininas, após sua libertação
contrapôs seu próprio testemunho à postura mentirosa do governo, descrevendo como a
“política de reféns” visava matar lentamente através da destruição psíquica e física:
El rehén, es un compañero que vive en la mayor soledad e incomunicación;
no tiene noticias de otros presos como él, no sabe absolutamente nada del
mundo que lo rodea, no habla con nadie, ni siquiera con sus carceleros, no
oye otras voces humanas, no siente la risa de otra persona, no tiene con
quien compartir su alegría o tristeza, no tiene con quien discutir algo que le
preocupe. No tiene ningun tipo de vida social. EL REHEN ESTA
SEPULTADO EN VIDA y sus carceleros se proponen, de esta forma,
matarlo lentamente. Esta es la peor tortura vista jamás: es la tortura que
intenta destruir despacio, que intenta la destrucción lenta pero total de los
militantes, pesando además siempre sobre ellos la amenaza de que A
CUALQUIER ACCION DE SU PARTIDO U ORGANIZACION
POLITICA SERAN FUSILADOS. (Testemunho de Maria Helena
Curbelo)
68
Essa era, em definitivo, a lógica da política dos reféns. Essencialmente, seu maior
objetivo era garantir a destruição física e mental. A justificativa de que esse mecanismo
fornecia proteção aos funcionários do regime de ataques subversivos se mostrou, na melhor
das hipóteses, desproporcional ou descabida. O desencadeamento dos fatos e a relação de
forças no interior do sistema (entre governo e oposição armada), evidenciaram que usar reféns
para garantir a segurança dos quartéis era uma farsa. Até porque, depois do golpe de Estado,
sabia-se que o MLN já não dispunha de capacidade operativa para planejar e concretizar
ações desse porte. E mesmo que pudesse fazê-lo, sabia-se que isso, de forma geral, pioraria as
condições de sobrevivência dos quadros presos nos estabelecimentos penitenciários. A tal
ponto isso é verdadeiro que o regime, após ter ordenado o seqüestro dos reféns, não teve
como assumir publicamente essa prática repressiva de chantagem. Sem ter como justificar tal
situação, passou a negar sistematicamente a existência da figura do refém.
Por isso, Blixen se pergunta: os reféns serviram de hipotético freio para uma suposta
67
BLIXEN, Samuel. Sendic. Montevideo: Ediciones Trilce, 2000. p. 291.
568
invasão? Impediram o recrudescimento da guerrilha? Foram um “fator de dissuasão” para um
“bom comportamento” do resto dos presos? Foram o objeto predefinido para uma eventual
represália? Não, responde. E procura no plano psicológico do sistema uma explicação que
justifique a lógica da política de reféns:
Solo torturando, fastidiando, enloqueciendo a nueve individuos inermes, los
cómplices del terrorismo de Estado ahogaban sus propias culpas, fabricaban
demonios expiatorios, derivaban sus frustraciones, legitimaban sus
aberraciones. El mecanismo se retroalimentaba: debo odiarte a ti para no
odiarme a mi mismo por torturarte; puesto que te odio, puedo torturarte, sin
odiarme a mi mismo.
69
Entretanto, quando ocorreu o assassinato do coronel Trabal, em 1974, a ditadura
tentou aplicar ou pelo menos ameaçou aplicar a fórmula do “olho por olho, bala por bala”.
Trabal, até pouco tempo antes chefe do serviço de inteligência do Exército, estava
desempenhando funções de adido militar em Paris. Responsabilizando pela autoria do crime
uma desconhecida “Brigada Internacional Raul Sendic”, as Forças Armadas procuraram
incriminar imediatamente o MLN e procuraram capitalizar o fato para livrar-se dos reféns.
70
Rosencof, preso no quartel de Santa Clara del Olimar, recebeu a visita do major Gavazzo, que
lhe comunicou: “Vengo a comunicarle en nombre del Estado Mayor del Ejército que va a ser
condenado por la muerte del coronel Ramón Trabal em Paris.”
71
Rosencof depois soube que
tal plano não prosperou porque os reféns já haviam adquirido uma notoriedade que havia
perpassado as fronteiras do país. Temia-se, portanto, a reação internacional.
72
Israel aponta
que há uma versão que indica que Bordaberry se opôs à execução com medo de represálias
externas. Segundo o jornalista, teria havido uma votação e foi apenas por um voto de
diferença que os reféns não foram eliminados. Para compensar, as Forças Armadas decidiram
assassinar cinco detidos seqüestrados: Graciela Estefanell, Mirta Teresa Hernández, Maria de
lo Ángeles Corbo, Floreal García e Héctor Brum (só Hernández não pertencia ao MLN).
73
Sobre este fato, comenta-se que Bordaberry só havia conseguido diminuir o número de
68
MANERA LLUBERAS, op. cit., p. 40.
69
BLIXEN, op. cit., p. 291.
70
O inquérito da polícia francesa não chegou a nenhuma conclusão. O assassinato de Trabal é considerado, até
hoje, como “queima de arquivo” no marco da Operação Condor.
71
Israel recolheu depoimentos sobre um projeto de alguns membros do MLN no exterior para seqüestrar Trabal
e leva-lo a Cuba como parte de uma operação denominada “contra-reféns”. Seria a resposta do MLN ao
seqüestro dos dirigentes históricos da organização. A operação teria sido abortada antes do assassinato do
coronel. ISRAEL, op. cit., p. 20 e 117.
72
ISRAEL, op. cit., p. 20.
73
Todos haviam sido processados em 1971 e haviam sido desterrados para o Chile, mediante a chamada “opção
constitucional” contida nas MPS. Fugindo do golpe de Pinochet, foram para Buenos Aires. Posteriormente,
foram seqüestrados e trasladados clandestinamente ao Uruguai, onde acabaram executados.
569
execuções, já que o número proposto pelos militares era bem maior.
74
No testemunho dado ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, Gabriel
Manera, filho do refém Manera Lluberas, afirmou que a política de “tomada de reféns” visou
obstaculizar, condicionar e neutralizar a ação dos principais setores políticos e sociais de
oposição de esquerda. E que a persistência do seu pai e dos outros reféns em manter dentro do
presídio ideais e aspirações de um mundo melhor e mais justo, com capacidade de protesto e
rebeldia, foi o que levou o regime a procurar a “solução” de destruí-los fisicamente através de
um tratamento cruel, desumano e degradante.
75
Para Blixen, as justificativas oficiais ou informais do regime não esclarecem essa
conduta. Argumenta com dados e com a descrição do funcionamento da rotina carcerária para
demonstrar o despropósito da lógica do discurso oficial:
[...] durante once años, cuatro mil días con sus respectivas noches, fue
alimentada una maquinaria que ni por un minuto (y fueron 5.760.000
minutos) dejó de molestar, de provocar, de atosigar, de insultar y destratar a
nueve hombres que ni siquiera podían hablar entre sí, que no veían la luz del
día, que comían en el suelo, que defecaban en un balde. No hay delito que
justifique este tratamiento. Para una persona normal es dificil imaginar las
explicaciones que instalaron esa fábrica de la inhumanidad. La búsqueda es
extenuante: no hay coyuntura política, crisis interna, amenaza exterior que
explique la continuidad, la perseverancia de esa abyección.
76
Feitas essas considerações, Blixen conclui que só há uma explicação, “além da
vingança que retrata de corpo inteiro os vingadores”.
77
E é a de que, durante onze anos,
[...] los cuerpos especiales y las unidades militares que custodiaban a los
rehenes cobraron suculentas compensaciones suplementarias. [...] ese
refinado mecanismo de destrucción lenta, paulatina, progresiva de un ser
humano, era también y quizás en primer lugar, una cuestión de lucro.
78
Ou seja, era uma forma de garantir que as unidades do interior, assim como as novas
gerações de oficiais, pudessem ter seu quinhão no rico botim de guerra em que se constituia a
luta anti-subversiva.
Quanto à metodologia do confinamento dos reféns, ela foi levada ao extremo. A
incomunicabilidade referia-se tanto aos demais prisioneiros quanto à guarda – esta última
encarregada de dar ordens e maltratá-los. Havia especial preocupação em impedir as relações
entre eles e era terminantemente proibido às pessoas do lugar onde estavam presos estabelecer
74
ISRAEL, op. cit., p. 118.
75
MANERA LLUBERAS, op. cit.
76
BLIXEN, op. cit., p. 292.
77
Idem.
78
Idem.
570
qualquer tipo de contato. A comunicação com o exterior devia ser rigorosamente cortada. A
própria guarda era severamente vigiada; sanções e punições mais severas eram imputadas a
quem não obedecesse irrestritamente os regulamentos, sobretudo no que dizia respeito a
prisioneiros tão especiais.
A seqüência de trocas de guarda, substituição de oficiais e mudanças de quartéis só
pioravam o cotidiano dos presos. Quando finalmente tinham se apropriado ou re-apropriado
dos códigos de sobrevivência de cada estabelecimento, vinha uma nova transferência que
desarranjava seus mecanismos de defesa cotidiana; era necessário então refazê-los em função
das novas condições, o que exigia um bom tempo e muita concentração e determinação. Da
parte da guarda e dos oficiais, a “vigilância” era mais uma tarefa técnica a desempenhar,
ordens a cumprir rigorosamente respondendo a um mesmo padrão de violência: “La
metodología que usó el Ejército fue hacer participar a todos: enfermeros, médicos, oficiales,
tropa; todos tenían que ‘mojar’ de alguna manera, como garantía de que nadie pudiera decir:
‘fulano hizo’.”
79
A ausência de comunicação levou à perda de referências fundamentais de
tempo e de espaço, conduzindo tais presos a uma prática de “não existência”. A constante
vigilância eliminou toda possibilidade de privacidade mínima. A falta das necessárias relações
pessoais comprometeu a sanidade mental de indivíduos que viveram, por um longo período,
em um mundo de silêncio e de violência.
Completamente isolados nesse calvário carcerário, os reféns sofreram cotidianamente
um tratamento brutal, mesmo para os padrões aplicados pela política carcerária uruguaia.
Rosencof lembra a conversação entre um médico e o comandante da unidade de Santa Clara.
Sem saber que o refém os ouvia, o médico alertava o outro sobre as péssimas condições de
saúde dos presos: “Pero che, ¡esto es una barbaridad! Para tenerlos así es más humano que los
fusilen.”
80
Toda atividade física e mental foi proibida. As raras saídas ocorriam sempre com
capuz e algemas, procurando desumanizá-los. Seu estado de saúde era alarmante devido a
essas condições precaríssimas de sobrevivência e às torturas sofridas periodicamente,
enquanto que seu direito de defesa era sistematicamente negado.
81
Rosencof lembrava, anos
depois, que o clima enfrentado era de “[...] deterioro moral: el verdugueo, la humillación, la
tortura, se convirtieron en cotidianas y naturales.”
82
Adolfo Wasem, um dos reféns mais
79
ROSENCOF, Mauricio; FERNÁNDEZ HUIDOBRO, Eleuterio. Memorias del Calabozo. Montevideo,
Banda Oriental, 2000. vol. 1. p. 159.
80
Idem, p. 31.
81
IEPALA, op. cit., p. 130.
82
ROSENCOF; FERNÁNDEZ HUIDOBRO, op. cit., p. 159.
571
novos, escrevia a seus companheiros:
Sacando cuentas, he llegado a concluir que en total – sumando períodos que
van desde un par de meses hasta seis u ocho meses, he pasado entre cuatro o
cinco años de incomunicación total, a celda pelada, sin absolutamente nada,
ni libros, ni papel, ni mate, ni siquiera ropa o el colchón. (Carta de Adolfo
Wasem Alaniz, 23/8/84.)
83
A área física do confinamento individual podia apresentar pequenas variações que
não alteravam, porém, as terríveis restrições de espaço (celas com menos de 3 metros
quadrados), iluminação, ventilação e higiene. Em vários casos, as celas individuais haviam
servido, originalmente, para a detenção de soldados; ou seja, calabouços destinados à tropa,
com detenções que dificilmente superavam alguns dias. Mas as mesmas acabaram sendo
utilizadas para a reclusão de prisioneiros durante anos. Quase sempre algemados e
encapuzados, os reclusos sofriam com o espaço ínfimo,
84
a carência completa de serviços
sanitários e os poucos recreios que tiveram nesses anos todos. Quanto a alimentação, a
situação era dramática:
El preso debía comer las sobras de la comida de la tropa, y la cantidad de
ésta dependía de la “buena voluntad” del guardia de turno, pues no existe
ración, régimen o control alguno. La tropa, muchas veces no ingiere ese
alimento por su mala calidad. Algunos, incluso, simplemente cumplen el
turno y se alimentan después en sus casas. El preso come DIA Y NOCHE,
MESES Y AÑOS, un alimento que no podría ser comercializado jamás por
su malísima calidad. (Testemunho de Eufelio Miguel Pereda Alvarez)
85
Como dito anteriormente, sem recreios, isolados em celas individuais e sendo
proibido qualquer diálogo com os soldados, o silêncio imposto foi outra forma de tortura
combinada com a interdição da fala durante longos anos (fora o som proveniente das ordens,
“grunhidos” e sarcasmos da guarda e dos oficiais). Há registros da surpresa dos presos ao
ouvirem outras vozes, muito mais quando dirigidas a eles. Até o som da própria voz produz
estranhamento após longos períodos sem falar. Como acontecia, em certos casos, quando
recebiam as visitas que, apesar de serem bastante irregulares, eram “[...] la única oportunidad
83
WASEM, Adolfo. El Tupamaro. Montevideo: TAE, 1989. p. 36.
84
As condições dos locais de detenção dos reféns eram terríveis. O calabouço do Batalhão de Infantaria Nº 4 era
de 1,60 X 2 metros; o de Santa Clara de Olimar era de 1,20 X 1,25. Não dispunham de luminosidade e, se
houvesse alguma janela, esta permanecia sempre fechada. Alguns não possuíam energia elétrica nem condições
mínimas de ventilação. As condições sanitárias eram deploráveis. Um dos piores lugares de confinamento foi o
Regimento de Infantaria 2 (Durazno). Aqui, os reféns foram alojados em um poço de água desativado escavado a
mais de quatro metros de profundidade, onde a comida devia ser alcançada através de uma corda. Sem luz e com
a boca do poço freqüentemente tapada, a degradação do ambiente piorava por causa da humidade e dos
alagamentos produzidos quando chovia, deixando o preso com a água até o meio da perna durante dias.
SERPAJ, op. cit., p. 237.
85
MANERA LLUBERAS, op. cit., p. 26.
572
de conversar con alguien y mantener un encuentro humano pacífico.”
86
Para as famílias, a situação foi terrível. O ex-refém Fernández Huidobro infere que a
modalidade repressiva de clandestinização dos reféns foi uma política para aterrorizar as
famílias envolvidas e, a partir delas, à população em geral. A ditadura entendia que o núcleo
familiar dos reféns contaria o que sabia aos demais familiares, amigos, colegas e vizinhos do
bairro. Para Fernández Huidobro, o seqüestro realizado no contexto imediatamente posterior
ao golpe de Estado e aos ataques contra os sindicatos e a Universidade se somava às ações
que visavam impor rapidamente um primeiro choque de medo. Por isso, conclui: “Los
familiares van a ser víctimas del terrorismo implantado contra ellos, a través de nosotros.”
87
Além das represálias, constrangimentos, restrições e ameaças sofridas por todos os
núcleos familiares onde havia presos políticos, a peculiaridade de ser parente direto de alguém
na condição de refém acrescentava dificuldades. O primeiro desafio era encontrar o local de
detenção da pessoa. Como as transferências ocorriam sistematicamente e sem prévio aviso,
perdiam-se muitas viagens e visitas. As constantes transferências sofridas pelos trios
tupamaros (quarenta e cinco, aproximadamente) desorganizavam a precária estrutura montada
pelas famílias que se inteiravam da mudança ao não encontrar o preso visitado onde devia
estar. Em tese, a freqüência e a duração das visitas era de uma hora quinzenal, mas mudanças
imprevisíveis eram comuns por parte da autoridade carcerária. Também era corriqueiro serem
informados, ao se apresentar no local e horário previsto, que a visita fora suspensa por causa
de alguma sanção imposta ao preso por mau comportamento. Fato que gerava incerteza e
temor sobre os motivos da ausência e a duração da mesma. A longuíssima jornada de ida e
volta e todo o desgaste da mesma pesava como um grande fardo. Sem contar o impacto,
nesses encontros muito rápidos e sem contato físico, de encontrar o filho, pai, irmão ou
companheiro, em um estado físico e psicológico deplorável,
88
sempre algemado, com
ausência completa de higiene
89
e marcas de violência física e cansaço nos rostos cadavéricos.
Visto isso, é evidente que as condições em que ocorriam as visitas eram sempre muito tensas,
86
SERPAJ, op. cit., p. 237.
87
ROSENCOF; FERNÁNDEZ HUIDOBRO, op. cit., p. 33.
88
Vale a pena verificar essas condições nos relatos dos sobreviventes: “[...] [yo] tenía la cabeza rota, en esa
primera visita. Ellos no me habían atendido. Tenía una herida en la frente y la cabeza hinchada. [...] debía tener
muy sucia toda la zona por donde me había salido sangre, porque cuando mi familia se sentó frente a mí, leí el
terror en sus ojos”. (Depoimento de Fernández Huidobro)
Quanto a Mauricio Rosencof, seu pai, na prisão de Paso de los Toros, não o reconheceu quando o levaram a sua
presença, tais as condições em que se encontrava: “Pero yo vengo a ver a mi hijo; a él no lo conozco. Este no es
mi hijo. (Depoimento de Rosencof) Fonte: Idem, p. 35.
89
“Nosotros teníamos que oler mal. Y nuestra familia tiene que haber sentido ese mal olor. estábamos barbudos,
no nos habían afeitado, no nos habíamos bañado, nuestra ropa estaba impregnada.” Idem, p. 33.
573
difíceis.
90
O fato dos quartéis e centros de detenção, que faziam parte do circuito de
estabelecimentos destinados a “hospedar” os reféns da ditadura, estarem espalhados pelo
interior do país obrigava a longas jornadas de ônibus, que normalmente terminavam em
extensas caminhadas entre a estrada e o quartel. A seguir, esperas demoradas, geralmente sem
resguardo e nenhum conforto, agrediam os familiares. Particularmente penosas eram as
revistas de material e a proibição de entradas de itens, inseridos em listas que variavam de
visita a visita; da mesma forma, a apropriação de alguns objetos, comida e, o mais doloroso, a
muito rara correspondência. As constrangedoras revistas de pessoas eram sadicamente
reforçadas com sarcasmos e palavras vexatórias que os familiares eram obrigados a ouvir sem
poder reagir diante da permanente ameaça de represálias contra o recluso. Pior era ter que
ouvir as conversações acusatórias e propositalmente audíveis da guarda, jogando a culpa do
esforço e do sofrimento dos familiares visitantes sobre os detidos, filhos irresponsáveis,
criminosos e, por isso, merecidamente presos.
Há um dado que pode parecer insignificante, mas que é extremamente qualitativo do
drama vivido por aqueles que sofriam a penalização do entorno direto do refém: os pais,
visitas ininterruptas e incondicionais,
91
eram pessoas de idade relativamente avançada. Além
de terem que absorver a dor pelo filho preso e suas terríveis condições de sobrevivência,
sofriam a humilhação e o desrespeito imposto a eles, como objetivo militar de continuação de
90
O entorno físico do encontro era de um profundo constrangimento tanto para a visita quanto para o preso.
Tudo ocorrendo sob o olhar da guarda e a mira de armas ostensivamente mostradas. No quartel de Durazno,
preso e visita se viam o rosto por uma abertura de 20 X 30 centímetros. No quartel de Paso de los Toros, através
de grades separadas por uma distância de dois metros. SERPAJ, op. cit., p. 237.
Todo contato físico era proibido, inclusive beijos e abraços. O afeto devia ser transmitido na forma de olhares,
palavras, sorrisos e pequenos gestos codificados; tudo muito contido, muito discreto.
A visita das crianças, aguardada com grande expectativa por todos os presos, era uma experiência onde se
mesclavam a alegria e a dor. A exposição das crianças ao duro tratamento da guarda na aplicação das normas
vigentes de revista e de comportamento gerava sentimento de culpa nos presos. Além da vergonha sentida pelo
aspecto físico e pela falta de higiene. Alguns ficavam abalados de serem mostrados aos familiares após sessões
de tratamento violento. Há vários depoimentos dos reféns que descrevem que, após longos períodos de
isolamento, não eram reconhecidos nem pelos próprios pais ou filhos.
As presas podiam ter contato físico com os filhos de até 14 anos; no caso dos pais, a visita podia ser suspensa
em caso do preso demonstrar comportamento indecoroso, como, por exemplo,
abraçar os filhos,visto como
desvio de comportamento e promiscuidade: o preso era acusado de manosear a sus hijos. Fonte: Uruguay:
Violaciones a los derechos humanos. Terrorismo de Estado y secuelas. Impunidad y derecho a la verdad.
Detenidos-desaparecidos: reclamo de los familiares, organizaciones sociales y políticas.
91
A mãe de Fernández Huidobro, mulher de idade avançada, em determinado momento havia sido proibida pela
família de continuar peregrinando sozinha, mas ela fugia e deixava um bilhete: “Fui a ver al Ñato” [Fernández
Huidobro]. Uma vez, em Santa Clara, chegou com a cabeça sangrando e os óculos quebrados após ter caído do
trem. O filho não conseguiu convencê-la de que não voltasse mais. “Mientras me dejen verte, vengo
arrastrándome, aunque sea.” “Nunca me faltó,” lembra o ex-refém. ROSENCOF; FERNÁNDEZ HUIDOBRO,
op. cit., p. 36.
574
uma guerra que só as Forças Armadas podiam continuar identificando como real.
92
E o peso
disso tudo aumentava muito mais pela hostilidade particular que recebiam por serem pais ou
irmãos dos “temíveis” chefes subversivos.
Inegavelmente, a pressão e o mau trato da ditadura com o entorno familiar do refém
(e de todos os presos políticos), fazia parte da metodologia da política do TDE para destruir a
subversão reclusa. Com tanto controle e isolamento dentro do sistema carcerário, mesmo que
as visitas pudessem, em certos momentos, se tornarem irregulares ou esporádicas, eram a
única conexão do preso com o mundo real e com “a vida que eles haviam conhecido”.
Certamente que essas visitas podiam fazer a diferença entre resistência e vontade de
sobreviver ou prostração e loucura. Por isso o esforço do regime para dificultar ao extremo a
presença dessas pessoas. Exigir delas maiores sacrifícios e impor novas humilhações, eram
uma forma de punição, de aumentar a dor que eram obrigados a suportar. No final das contas,
porque haviam permitido que seus filhos se tornassem subversivos? Por isso, quando alguns
familiares desistiam das visitas ou ficavam impossibilitados de mantê-las, por saúde
alquebrada ou por idade avançada,
93
isto era, mesmo que localizado no microcosmos
individual de cada preso, mais uma vitória do regime.
Os advogados civis dos reféns tinham enormes dificuldades para comunicar-se com
eles; as visitas, quando não eram negadas, realizavam-se em condições intimidatórias para o
defensor. As mesmas eram direta e ostensivamente vigiadas por vários oficiais e soldados
armados a rigor, os quais gravavam a conversação, impedindo a mínima privacidade (isso
acontecia até nos encontros com os filhos pequenos). A assistência legal viu-se obstruída pela
constante pressão contra os advogados defensores, pressão tão ameaçadora que estes eram
obrigados não só a abandonar a defesa, mas, em muitos casos, o próprio país. De fato, se já
existia toda uma política de intimidação contra todo advogado constituído por famílias de
presos políticos, muito pior era ser defensor dos “terríveis” chefes tupamaros, vistos como
traidores das instituições (acusações constatadas nas declarações oficiais do regime). Como
92
O pai de Mauricio Rosencof, judeu-polonês, doente do coração, que perdera toda a família em Auschwitz, em
uma das tantas visitas aos cárceres e quartéis do interior do país, desmaiou após ter visto o filho em condições
lastimáveis. Rosencof lembra: “[...] salieron con la camilla. [...] El Viejo se había desmayado. Llegaron con la
camilla, y cuando vio que querían llevarlo para adentro, se negó. Extrajo una pastilla, le alcanzaron un vaso de
agua. El Viejo, tambaleando todavía, les dijo: ‘De ustedes no quiero ni agua’. Y con su tranquito sufrido se fue,
solo, hasta la carretera.” Idem, p. 35.
93
Reconhecidamente, em grau variado, os regimes de Segurança Nacional utilizaram a passagem do tempo a seu
favor. Esperando o esquecimento dos acontecimentos, precisavam neutralizar e isolar socialmente o entorno
familiar das vítimas da repressão. E esperar... considerando a média de idade tanto das vítimas presas, mortas
e/ou desaparecidas quanto dos seus pais, o regime aguardava que a passagem do tempo fizesse sua parte na
consolidação da nova ordem, impondo um silenciamento definitivo daquelas vozes, quase as únicas que, do
interior de cada país, clamavam pelos seus filhos.
575
ocorreu, por exemplo, no caso específico de Jorge Manera Lluberas: todos os advogados que
tentaram defendê-lo, coagidos, abandonaram sua defesa e acabaram presos ou exilados.
Inclusive o último deles, Dr. José L. Corbo, que o defendeu durante dois anos, nunca
conseguiu conversar com ele. Com o abandono da causa por parte dos advogados contratados,
a Justiça Militar nomeava, então, os defensores de ofício, os quais, salvo raras exceções,
assumiram uma função meramente formal, sem maior empenho ou envolvimento com a
causa, e sem informar à família sobre a evolução dos processos em andamento.
94
A diversidade de privações e torturas sofridas permanentemente pelos reféns mostra
o persistente uso de todo tipo de violência contra eles. O depoimento de um sub-oficial (a um
familiar de refém) descreve uma situação singular no Batalhão de Engenheiros Nº 3 (Paso de
los Toros), em 1973, e a repreensão contra a solidariedade ou tratamento mais humano por
parte de algum soldado (fato visto como fraqueza ou colaboração):
ENGLER, WASEM y MANERA [três dos reféns], a fines de 1973, eran
trasladados a un cerro cercano de piedras calcinadas, por orden superior.
Desnudos y vendados, se los estaqueaba de pies y manos sobre las rocas
calientes, a pleno sol. Cuando ya no soportaban más la sed y pedían agua, les
daban a beber agua con sal. También rociaban sus cuerpos con salmuera. Un
día, un soldado de 19 años, tuvo piedad cuando uno de ellos pidió agua, y le
dio de beber agua sin sal. Un oficial observó la acción y le comunicó su
arresto y castigo por insubordinación: a la mañana siguiente sería estaqueado
junto a los rehenes. Esa noche el soldado fue al cerro de las piedras, se
descalzó, y poniendo su fusil entre los pies, apretó el gatillo y se levantó la
tapa de los sesos.
95
Tudo o que dizia respeito à existência dos reféns foi sempre negado pela ditadura.
Pior, ironizavam-se as acusações e as denúncias feitas no exterior. Por exemplo, no caso
concreto de acusações sobre a situação de Manera Lluberas, o governo uruguaio respondia,
em julho de 1975 - portanto, dois anos depois de ter sido seqüestrado do Penal de Libertad -
que:
Las condiciones de alojamiento y alimentación que se proporcionan al
encausado son las mejores dentro de los establecimientos del país y
comparables a los mejores del mundo.
La atención médica es permanente y está respaldada por el servicio de las
Fuerzas Armadas con su principal [sic] el Hospital Central de las Fuerzas
Armadas [Hospital Militar], donde se hace la atención especial de los
reclusos. (Testemunho de Gabriel Manera)
96
A constatação de que a tortura é permanente e explícita em qualquer estabelecimento
94
SERPAJ, op. cit., p. 238.
95
MANERA LLUBERAS, op. cit., p. 19.
96
Idem, p. 44.
576
de detenção, tanto nos presídios, onde há uma população carcerária massiva, quanto nos
quartéis, onde estão reduzidos os reféns, é concreta. Mas a simples constatação comparativa
não é suficiente para apreender a situação à qual estavam submetidos os reféns. O testemunho
de David Cámpora, do MLN, é esclarecedor. Ao referir-se à guarda de Trinidad, a qual
adjetiva de sádica e de particularmente compromissada com a política repressiva sob seu
encargo, comenta o perfil dos novos oficiais que vão para essa unidade para “mostrar serviço”
e “fazer carreira”. Assim,
[...] son periodicamente llevados a Trinidad (por ser un cuartel del interior
del país, de condiciones duras de vida), grupos de oficiales recién recibidos
en la última promoción (alferez), “para que se hagan hombres”. Los
individuos que dentro de estos grupos, llegan fanatizados en su juventud y
con ansia de destacarse, son verdaderamente peligrosos. De ellos parten, la
más de las veces, las “ideas nuevas” para la vejación del preso, su
humillación o deshonra, para divertimento de la tropa o demás oficiales.
(Testemunho de David Cámpora)
97
Para Cámpora, uma estadia por uma dessas unidades era uma espécie de rito de
passagem, de estágio probatório. Diante deles estavam os temíveis chefes inimigos
derrotados, troféus da vitoriosa “guerra interna”, prostrados, humilhados, entregues à
constante sanha dos vencedores. Ali estavam os líderes que haviam ousado entregar o país ao
“comunismo internacional” e que haviam desafiado às Forças Armadas. Brincando com sua
família, como forma de amenizar a dureza das condições de sobrevivência, Flávia Schilling
aludia, em uma carta, a essa “distinção” que os reféns haviam recebido do sistema: “Façam o
favor de obedecer-me quando digo tal ou qual coisa. No fim das contas, estou aqui porque se
supõe que, além de um perigo para a sociedade, sou “cabeça” de não sei o quê, e que “não sei
quem” me respeita muito [...]”. (Carta de 15/05/74)
98
Tanto o comentário de Cámpora quanto o de Schilling apontam para uma
necessidade concreta do regime. Passados os anos de enfrentamento da luta armada, era
fundamental oferecer, às novas gerações de oficiais, outras “boas guerras”, para fazerem
carreiras e ganharem medalhas. Tornou-se estratégico, portanto, criar situações que servissem
de cenários de cooptação de novas lideranças emergentes e que os inserissem nos
compromissos assumidos pela oficialidade anterior. Era de especial interesse que os novos
oficiais tivessem reforçado o sentimento de pertencimento às Forças Armadas, assumindo
como suas as funções de preservar, como troféus, os mentores da subversão derrotada pela
oficialidade mais velha. Assim, se garantia a manutenção do processo de combate à guerrilha
97
Idem, p. 29.
98
SCHILLING, op. cit., p. 39.
577
que, dentro dessa lógica, não terminara com a vitória militar das forças de segurança, mas
devia continuar em uma nova fase, perseverando na vigilância e punição do exército
derrotado e recluso.
Por um lado, era mais um exemplo de divisão de responsabilidades com toda a
corporação, um dos objetivos permanentes das Forças Armadas. Neste caso, comprometendo
os oficiais mais novos, consolidando com significativo sucesso a captação dos seus corações e
mentes. Por outro lado, eles eram observados em ação, em “situação de guerra”, no
tratamento cotidiano com os reféns. Como nova fase da mesma e interminável “guerra
interna”, gerava-se uma situação em que se podia avaliar a fidelidade, a obediência, a
disciplina, o pulso forte com a tropa, a determinação e o respeito à hierarquia. Era quase um
curso intensivo de Moral e Cívica aplicado in loco. E, caso se constatassem contrariedades e
eventuais discordâncias, podiam-se tomar medidas corretivas de enquadramento ou prever e
evitar possíveis futuras dissidências.
Portanto, a importância do uso dos reféns também podia ser medida pelo papel que
cumpriam ao permitir medir o “fogueio” dos novos mandos e da tropa, fazendo tais oficiais
ganharem experiência, aprendendo a lidar com a subversão nesse prolongamento de “guerra
interna”, que ocorria agora no interior dos presídios, contra um exército reduzido e recluso,
onde o que estava em jogo era a “mera” sobrevivência física e a preservação da sanidade
mental por parte dos derrotados. Em resumo, era como oferecer uma chance para que a nova
oficialidade tivesse a sua “guerra interna” particular para projetar-se, ganhar sua glória, seus
troféus e seus estandartes, inaugurar placas e monumentos auto-laudatórios em praças
assépticas, enquanto dava-se prosseguimento à “grande cruzada” e à ocupação do país. E,
dentro dessa lógica, particularmente perversa foi a utilização de crianças, filhos de oficiais,
que, com a aprovação e o estímulo destes, hostilizavam reféns. Nas palavras de Fernández
Huidobro: “Se había llegado a esos extremos de bajeza inconcebible.” Ao que Rosencof
acrescenta: “Que oyéramos la voz de un soldado mofarse o insultar, entraba en las leyes del
juego, pero oír las voces de los niños amenazar, reírse, regocijarse como en un juego, era
macabro.” Para aqueles presos que sonhavam com a presença de crianças, um tormento destes
era inadmissível. “¿Como entender la mentalidad de padres que como elemento formativo le
daban a sus hijos esa tarea?”, rememora Rosencof. E Fernández Huidobro conclui: “Tarea
que, realizada, daba motivo de orgullo paternal... Se estaba entrenando a los hijos, desde
niños, para la tortura.”
99
O seqüestro dos chefes do exército derrotado era parte da estratégia desta
578
modalidade particular de “guerra interna” interminável; por isso a atenção especial que
mereciam os reféns. Especial atenção que implicou, comparativamente, maior grau de
intensidade repressiva que aquela, também extremamente opressiva, que existia nos presídios.
Um simples dado numérico comparativo ajuda na compreensão de toda essa lógica:
La situación en definitiva es concreta: mientras en una penitenciaría existe
una proporción media de un guardián o celador cada 20 presos, en el cuartel
la proporción es de 400 soldados para un rehén; soldados y suboficiales que
viven en la inactividad y que, adoctinados por la oficialidad, encuentran su
“diversión” y descarga en molestar al preso, asustarlo, mortificarlo, vejarlo
de palabra y de hecho. Es algo que, a poco de pensarlo unos instantes, resulta
tenebroso... Por ejemplo, con el rehén, hacerle ruido o patearle la puerta de
noche, meterle cosas en la comida, como hormigas o piedras, escupirle las
frazadas, ponerle espinas, piedras, excrementos, adentro del jergón que hace
las veces de colchón. (Testemunho de David Cámpora)
100
O testemunho de Cámpora é de valiosa pertinência porque, sendo um dos principais
dirigentes do MLN presos, só não conheceu as agruras da condição de refém. Isso lhe
permitiu comparar e diferenciar a situação dos detidos temporários nos quartéis e a dos presos
nas penitenciárias; e essas situações, com a dos reféns. Sem dúvida, a situação destes piorava
ainda mais por causa da mística existente sobre a organização e suas lideranças, ao ponto de
serem vistos como atração e alvo do sarcasmo e do sadismo desses quadros doutrinados nos
valores da DSN.
O seguinte diálogo entre Eleutério Fernández Huidobro (FH) e Mauricio Rosencof
(MR), lembrando o cotidiano do confinamento desde o “ventre da besta”, confirma a hipótese
do troféu e da importância da continuidade da guerra para a formação das novas gerações de
oficiais.
FH: A nosotros, ellos, com sus garras de variado tipo, quisieron eviscerarnos
el alma. Para lo que, por lo general, se necesita tiempo... Lentamente.
Tenazmente. Em busca de una destrucción sistemática, tediosa y
angustiante...
MR: Que además carecía de objeto.
FH: Carecía también de fin. De salida.
MR: De propósito. No querían de nosotros nada. Sólo destruirnos
lentamente.
FH: “Estos tienen que sufrir mucho más todavía”, solían decir, repitiéndolo
tanto que al fin era como un chiste sabido y viejo.
MR: Nueve años en una división significa que cada oficial termina
conociéndote íntimamente. Conociendo nuestros parientes. Nuestras
debilidades. Explotarlas. Hundir allí los fríos cuchillos.
FH: Nos conocían mejor que nuestros parientes.
MR: Nos tuvieron a su entera disposición nueve años.
99
ROSENCOF; FERNÁNDEZ HUIDOBRO, op. cit., p. 29-30.
100
MANERA; LLUBERAS, op. cit.
579
FH: Si sabían que un insulto te agredía más que otro, por allí entraban
buscando quebrar y deshacer.
MR: Tenían semanas, meses, años, lustros, décadas para hacerlo.
101
Os mesmos elementos existentes como norma de disciplinamento do universo
carcerário também eram encontrados na situação particular dos reféns. De forma geral, tratou-
se de uma experiência de “animalização” visando destruir as faculdades humanas, a estrutura
psicológica das consciências, impedindo o desenvolvimento de qualquer hábito de trabalho
produtivo, de higiene, de exercício físico, limitando toda informação, cerceando toda
possibilidade de informação e de comunicação ou de interação social.
Como lógico corolário após mais de uma década de tratamento desumano e de
extrema agressão psicológica, os reféns acumularam profundas seqüelas de deterioração.
Invariavelmente, todos experimentaram algum tipo de doença. O caso mais grave foi o de
Adolfo Wasem Alaniz,
102
que faleceu na prisão em decorrência da falta de atendimento
médico sistemático e adequado.
É muito curiosa a avaliação sobre a situação dos reféns feita por José Mujica, ex-
refém que, após a ditadura, se elegeu deputado e senador pela Frente Ampla. Ele avalia que as
Forças Armadas, ao instituir o seqüestro, cometeram um grave erro, pois, ao retirar os chefes
tupamaros do convívio do cárcere e dos companheiros presos, essas lideranças foram
poupadas do processo de auto-crítica e revisionismo que tomou conta dos militantes do MLN
presos. Mujica considera que se não tivesse ocorrido a retirada daquelas lideranças, os
chamados “viejos” (a velha direção, os “históricos”), certamente teriam sofrido críticas diante
da débâcle do movimento. Ao serem transformados em “reféns”, nas condições particulares
em que se deu essa condição e a luta épica pela sobrevivência, eles ficaram “além do bem e
do mal”.
Fue un error porque nos sacaron del hervidero, es decir, del Penal de
Libertad. Y con eso, en un proceso de desgaste interno que duró tantos años,
nos preservaron. La derrota es como la culpa, no la quiere nadie. Los
balances son necesarios, pero digamos que no son las cárceles los lugares
más adecuados para hacerlos. Con el correr de los años, la vida de la cárcel
va creando una sociedad fragmentada, subdividida, llena de las culpas que se
hechan los unos a los otros. Colmada de interpretaciones que cumplen el
101
ROSENCOF; FERNÁNDEZ HUIDOBRO, op. cit., p. 124.
102
O rigor extremado das condições carcerárias dos reféns contribuíram para a evolução de um câncer que
ocasionou a morte de Adolfo Wasem, em novembro de 1984, aos 37 anos. Desde abril de 1980, Wasem notara
um tumor no pescoço, sendo tratado com calmantes e antiinflamatórios. Um ano depois, foi traslado ao Hospital
Militar onde foi operado. Nesse período, recebeu aplicações de cobalto, fez análises de sangue e urina e tirou
radiografias. Posteriormente, o tratamento tornou-se esporádico, o que agravou o quadro geral. Finalmente, após
outra operação de um novo tumor no pescoço, foi internado no Hospital Militar onde veio a falecer. SERPAJ,
op. cit., p. 238.
580
papel de pulverizar al otro y antagonizar [...]. El error fue que nos sacaron de
todo eso. Razonaron bien como milicos. La nuestra era una organización, un
ejército, entonces pensaron que tenían que sacarle a los jefes. Fue así que
razonaron. Pero resulta que los jefes no eran intocables, éramos personas
comunes y corrientes, de modo que cuando nos trasladaron [...], cuando nos
apartaron de todos los demás, establecieron una categoría de compañeros
que no participaban de todo aquello y que, por lo tanto, constituían el único
punto de referencia que estaba más allá del bien y del mal. Fue un grueso
error de los milicos. A la hora de la verdad había un palito en la colmena
para que se aglutinaran, aun con diferencias.
103
A análise de Mujica levanta a hipótese de que, se eles não tivessem sido retirados do
Penal, teriam sofrido o desgaste da derrota entre seus companheiros, fosse pela
responsabilidade da liderança ou pelo embate com uma geração mais nova que tinha posições
pontuais diferentes. Ou seja, a hipótese militar apoiava-se no entendimento de que, se os
viejos não fossem separados do resto dos presos políticos, continuariam chefes do exército
vencido e isso os tornaria mais perigosos. Não se deram conta de que os fatores disciplina e
obediência, que certamente existiam no MLN, até por ser uma estrutura militar, eram,
entretanto, diferentes na corporação militar. Isto é, apesar de ser uma estrutura militar, o
funcionamento do MLN se pautava por uma flexibilização da lógica ordem-obediência, com
certeza intolerável para o rigor da lógica castrense. Além disso, havia um elemento distintivo
fundamental entre uma organização guerrilheira e um exército profissional: o fator político-
ideológico, o mesmo que, no momento da derrota, virava exigência de crítica, autocrítica e
reflexão. Mas os chefes tupamaros foram poupados disso. Conhecidos seus perfis e seus
históricos, seguramente afrontariam o debate, que acabou sendo bem intenso entre os demais.
Mujica reconhece: os viejos viraram reféns e se tornaram intocáveis e imunes à fragmentação,
à cizânia, ao fratricídio não só do cárcere, mas da clandestinidade e do exílio; viraram
referência de sobrevivência, de persistência de uma luta, de uma unidade.
Nosotros lo pasamos mal, muy mal, pero desde un punto de vista profundo,
fue un gran error [do regime]. Además, nos dieron una proyección
internacional. Los compañeros que se iban contribuían a que afuera se
conociera la forma en que nos tenían, con lo cual se constituyó como el eje
de un patrimonio común en el exterior. Entonces, recibir una actitud
diferenciada, aparentemente de castigo, de apartamiento de los demás
compañeros, también contribuyó a fortificar la imagen que se tenía sobre
nosotros fuera del país.
104
A reflexão de Mujica estimula vincular o fato de que a política repressiva dos
governos de Pacheco Areco, Bordaberry e o da ditadura propriamente dita, procuraram, além
103
CAMPODÓNICO, Miguel Angel. Mujica. Montevideo: Fin de Siglo, 1999. p. 125.
104
Idem, p. 126.
581
do aniquilamento militar da organização guerrilheira, efetuar um “apagamento” histórico do
mesmo, desde a “patética” proibição da sua nomeação pública, durante a gestão de Pacheco
Areco, até a política de “sumir” com a liderança seqüestrada (o que é diferente da prática do
desaparecimento concreto). O tratamento que a ditadura deu à informação sobre os reféns foi
ambígua. Aparentemente, queria-se impedir que a sociedade uruguaia soubesse o que ocorria
com eles, proibindo qualquer manifestação ou comentário ao seu respeito. Mas, por outro
lado, comentavam abertamente a operação de chantagem dentro dos presídios, onde existiam
redes de informação e de conexão da subversão presa com a clandestinidade e com o exílio.
Tornou-se de vital importância para o regime que se soubesse que os viejos estavam vivos.
Não eram desaparecidos. Mas estavam seqüestrados em lugar ignorado (pelo menos durante
um bom tempo). Era uma nova modalidade de clandestinização da sua detenção. Mas estavam
vivos; porém, essa era uma circunstância que podia mudar com uma simples ordem como
represália a ataques perpetrados contra as Forças Armadas.
Wasem Alaniz escreveu que foi em 1982 que soube a verdadeira condição que sofria
junto ao grupo de reféns. Ao chegar ao quartel do Regimento de Cavalaria Blindado 2, o
comandante da unidade, tenente coronel Conti, comunicou oficialmente:
No se confunda. Usted no tiene ningún derecho y está sometido totalmente a
la discrecionalidad de lo que yo disponga. Si las cosas fueran al revés
nosotros no la hubiéramos contado. Así que, por lo tanto usted debe
agradecer hasta el estar vivo. En consecuencia cada una de las órdenes que
yo de a su respecto debe interpretarse como una concesión, que puede ser
revocada en cualquier momento que yo lo quiera.¿Está claro? (Carta de
27/08/84)
105
Entretanto, como bem ressalta Mujica, o fator externo se tornou importante caixa de
ressonância e o exílio, as organizações internacionais vinculadas à defesa dos direitos
humanos e a solidariedade abrangente reverteram a intenção repressiva. Enquanto que os
tupamaros, de forma geral, entre tantos outros presos políticos, eram lembrados pelas difíceis
condições de sobrevivência nas prisões uruguaias, os reféns viraram uma espécie de mito.
Mito, muitas vezes, alimentado pela própria guarda que os cercava.
À medida que o tempo passou, sua localização se tornou relativamente pública, o que
permitiu um monitoramento mais eficiente e preciso. Suas condições de reclusão se tornaram
completamente injustificáveis e uma nova geração de jovens se formou dentro do contexto da
ditadura, mas, apesar das inúmeras restrições existentes, mantendo vinculações com o passado
imediato. Isso fez com que o resgate histórico da figura da liderança tupamara, transformada
105
WASEM, op. cit., p. 41.
582
em refém do regime, ganhasse enorme vitalidade, tornando-se bandeira particular entre tantas
outras. Tal fato impossibilitou que, nos estertores do regime militar, fossem executados ou
desaparecidos. Wasem lembraria até o fim o desabafo do tenente coronel Conti pouco antes
do término do estatuto de refém e da volta ao Penal de Libertad: “[...] en realidad con ustedes
tendríamos que haber hecho jabón”. (Carta de 27/8/84)
106
Essa frase contém uma dupla mensagem por detrás da amargura ou raiva de um
oficial arrependido por não terem sido tomadas medidas mais duras contra os reféns. Por um
lado, uma triste referência à insidiosa prática nazista do genocídio judeu centrado na alusão de
transformar os reféns em sabão, o que não deixa de chamar a atenção já que, na experiência
repressiva da ditadura uruguaia, não se encontram expressões anti-semitas como aquelas
verificadas, por exemplo, na ditadura argentina de Segurança Nacional. Por outro lado, a frase
explicita um arrependimento tardio e direto por não terem executado, em conjunturas mais
favoráveis para isso, a liderança tupamara. Deve ressaltar-se que a frase do tenente coronel
Conti foi enunciada quase ao final da ditadura, durante o processo de conversações políticas
prévio às eleições de 1984, o que torna mais grave suas palavras, pois seu profundo tom
ameaçador atesta a crença na imunidade e na impunidade sobre as ações individuais e
coletivas do regime militar. E tais palavras são o reconhecimento explícito da continuação da
hostilidade, da violência física e da indução à perda da sanidade mental dos reféns (e sobre os
presos políticos em geral), objetivo procurado insistentemente enquanto vigorou a lei da
ditadura e da DSN.
6.3 – A POLÍTICA DA TORTURA MASSIFICADA
Em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração sobre a
Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruéis, Inumanos ou
Degradantes. No seu artigo I constava que:
1- [...] se entenderá por tortura todo ato pelo qual um funcionário público, ou
outra pessoa a instigação sua, inflija intencionalmente a uma pessoa penas
ou sofrimentos graves, já sejam físicos ou mentais, com o fim de obter dela
ou de um terceiro informação ou uma confissão, de castigá-la por um ato que
tenha cometido, ou de intimidar a essa pessoa ou a outras. Não se
considerarão torturas as penas ou sofrimentos que sejam conseqüência
106
Idem.
583
unicamente da privação legítima da liberdade, ou sejam inerentes ou
incidentais a esta, na medida em que estejam em consonância com as Regras
Mínimas para o Tratamento dos Reclusos.
2- A tortura constitui uma forma agravada deliberada de trato ou pena cruel,
inumano e degradante.
107
Considerando a data e o enunciado desse documento, pode-se partir, como
preâmbulo da análise da disseminação da tortura durante o período ditatorial e os anos que o
precederam, do depoimento do ex-tenente Cooper:
Pregunta: ¿En Uruguay se tortura a los presos políticos?
Respuesta: Sí, efectivamente se tortura. Y digo más, la tortura en el seno de
las fuerzas armadas uruguayas existe desde el comienzo de la lucha
represiva; yo la ubico precisamente a partir de la intervención directa de las
fuerzas armadas en la problemática antisubversiva. Como es de
conocimiento, a partir del mes de setiembre del año 71. A partir de entonces,
hasta la fecha, considero que fue aplicada la tortura progresivamente.
P: ¿Como lo sabe usted?
R: Lo sé por haberla practicado personalmente, por haber presenciado, por
referencias militares y por presenciar estado físico de detenidos con
evidentes muestras de ser torturados.
P: ¿Se torturó indiscriminadamente?
R: Considero que indiscrimidamente. Se torturó y se sigue torturando [ano
1979].
108
Outro ex-agente do sistema, García Rivas, coincide nessa linha:
[No Uruguai] se detiene generalmente por sospechas o por ciertas
informaciones. Entonces los órganos de seguridad detienen a las personas
pero sin saber si es verdad. El método que se usa para saber si es verdad la
sospecha es el interrogatorio, o sea, la tortura. La tortura es sistemática. Ellos
dicen que para obtener informaciones es necesaria.
109
Os depoimentos anteriores corroboram a denúncia do ex-senador Wilson Ferreira
Aldunate ao jornal Le Monde, de Paris: “[...] o horror uruguaio é a aplicação sistemática da
tortura”.
110
Todos os presos políticos sofreram a experiência da tortura, não só na fase de
“interrogatório”, mas também após sua condenação, pois, durante os anos de cárcere,
continuavam expostos à reiteração daqueles métodos.
111
Viñar & Viñar propõem uma definição operativa de tortura:
107
Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruéis, Inumanos
ou Degradantes. Citado por SERPAJ, op. cit., p. 145.
108
SERPAJ. Testimonio Julio Cooper. T002.
109
VÍCTOR, J. Confesiones de un torturador. Barcelona: Laia, 1981. p. 38.
110
VEIGA FIALHO, A. Uruguai: um campo de concentração? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.
43.
111
IEPALA, op. cit., p. 21.
584
La tortura es todo dispositivo intencional, cualesquiera sean los medios
utilizados, puesto en práctica con la finalidad de destruir las creencias y
convicciones de la víctima para despojarla de la constelación identificatoria
que la constituye como sujeto. Ese dispositivo es aplicado por los agentes de
un sistema de poder totalitario y está destinado a la inmovilidad, a través del
miedo, de la sociedad gobernada.
112
Uma análise da Anistia Internacional lembra que os apologistas da tortura utilizam
como elemento justificador o clássico argumento da eficiência do método e da
responsabilidade dos governos de esmagar os terroristas ou os insurretos que comprometem a
vida de pessoas inocentes e põem em perigo a sociedade civil e o próprio Estado. O
sofrimento imposto a uma pessoa é aceito, por este raciocínio, na medida em que se defende
um bem superior, a maioria da população. Mas os fatos concretos indicam outra realidade: a
maioria das vítimas da tortura não possuem informação secreta para revelar. Em realidade, se
pratica a tortura para extrair confissões ou como advertência para não se opor ao governo.
113
É por isso que se alega que o fundamento teórico da tortura é o propósito de implicar
e intimidar outros, sejam estudantes, sindicalistas ou advogados.
114
Para impor o medo à
sociedade, é necessário que se saiba que a tortura é praticada, que se produza eco ao seu
respeito, que não existam dúvidas sobre qual é o tratamento que se aplica nos cárceres e da
impunidade que gozam os torturadores.
115
Os milhares de uruguaios que passaram pelos
centros de detenção e pelas prisões militares entre 1972 e 1985 sofreram castigos variados,
prolongados e desumanos, fato constatável pelas centenas de depoimentos de presos políticos
e de detidos temporários e pelos testemunhos de ex-integrantes das Forças Armadas, que
confirmaram sua existência de forma categórica:
P: ¿Los detenidos son siempre torturados o hay excepciones?
R: Se puede afirmar que todas las personas que son detenidas en el uruguay
son torturadas. No hay persona que no sea torturada. (Testemunho de Hugo
García Rivas)
116
La tortura era el método sistemático y rutinario de interrogatorios en todas
las dependencias de la DII [Dirección de Información e Inteligencia] y en las
Fuerzas Armadas, como pude comprobarlo personalmente.
117
Se bem é verdade que a tortura passou a ser aplicada aos presos políticos na década
de 60, deve reconhecer-se que a polícia uruguaia tinha longa tradição no mecanismo
112
VIÑAR; VINÃR, op. cit., p. 51.
113
AMNISTÍA INTERNACIONAL. Tortura: informe de Amnistía Internacional. Madrid: Editorial
Fundamentos, 1984. p. 6.
114
Idem, p. 4.
115
SERPAJ, op. cit., p. 148.
116
VÍCTOR, op. cit., p. 73.
585
repressivo contra presos comuns. O advento das Forças Armadas no cenário político, em
1972, tornou-a uma ferramenta estratégica da luta anti-subversiva, universalizando sua
utilização em todo o território nacional. Sua aplicação massiva e indiscriminada lhe deu
visibilidade como política repressiva de Estado, ou seja, como uma das modalidades do TDE.
Todos os organismos vinculados à repressão política entre 1972-1985 estiveram implicados
em maus tratos a milhares de pessoas, sempre sob o amparo da Justiça Militar e das leis de
exceção. Seu uso generalizado exigiu a subversão do direito e a negação das garantias reais
para os detidos.
A partir de 1967, o uso estatal da tortura foi denunciado pelo semanário Marcha e
outros jornais de oposição. Em dezembro de 1969, uma Comissão de Investigação do Senado
confirmava tal fato, porém, quatro meses depois, os acusados continuavam exercendo suas
funções, mesmo com o surgimento de novas denúncias. O documento final da Comissão
formulava acusações fundamentadas em provas concretas e concluía pela condenação dos
envolvidos. A veemência na conclusão do relatório era eloqüente:
La Comisión ha realizado, luego de su análisis de las declaraciones,
búsqueda de documentos y de los elementos de información que ha tenido,
un trabajo que aconseja que el Senado apruebe, porque entiende que va a
abrir el camino para que esta situación, que es realmente increíble que pueda
ocurrir en nuestro país, sea definitivamente desplazada y superada en el
sentido de respeto a la persona humana tal como siempre ha sido la tónica
del Estado y pueblo uruguayos.
118
Entretanto, apesar da tentativa do Senado de impedir que continuassem ocorrendo
fatos como esses, a tortura se institucionalizou e se generalizou como instrumento massivo do
terror de Estado, em 1972, no marco da gestação do Estado de Guerra Interno, quando a
passagem dos presos políticos à esfera da Justiça Militar tornou-se prática corriqueira. Com a
entrada em vigor da Ley de Seguridad del Estado e a outorgação de amplos poderes às forças
de segurança.
A clandestinização das detenções (seqüestros), a incomunicação dos detidos, a falta
de acesso das famílias à informação, o desconhecimento do habeas corpus e as ameaças
sofridas dos carcereiros realçavam a sensação de abandono e de impotência sofrida pelas
vítimas. Rosencof lembra que os algozes proferiam todo tipo de ameaças, sem se preocupar
117
CALACE, José. Quince años en el infierno. Montevideo: TAE, 1989. p. 14.
118
Torturas en el Uruguay - Comisión Especial Investigadora Sobre Violaciones de los Derechos Huamnos y
Comisión de Actos de Torturas a Detenidos y Regímenes de Detención Vejatorios a la Dígnidad Humana -
Torturas, Cuadernos de Marcha, nº 44, diciembre 1970, p. 74.
586
com a repercussão das mesmas, como se estivessem tratando com mortos.
119
Nessa mesma
linha, o dirigente comunista Jaime Perez destaca que os torturadores insistiam em deixar claro
aos detidos que eram os donos do tempo e da vida, que agiam com total impunidade e eram
imunes a aspectos éticos, religiosos ou políticos. Para eles, os detidos não eram ninguém.
120
Voltando ao texto da ONU sobre a tortura, destacam-se dois elementos centrais. Por
um lado, o envolvimento direto ou indireto do Estado, ordenando, justificando e encobrindo a
tortura. Independente do sadismo do torturador (o sujeito que executa e é responsável pela
ação), ele não pode ser dissociado da existência de um aparato que utiliza o Estado para
reprimir os dissidentes. Ou seja, ele é um instrumento da estrutura repressiva estatal, assim
como a tortura é parte de um projeto político e de um sistema de poder.
121
Portanto, é de
fundamental importância para a compreensão do TDE que: “Concentrados en el electrodo o
en la jeringuilla del torturador están el poder y la responsabilidad del Estado.
122
Por outro lado, a ONU qualifica as agressões infringidas, sejam de ordem física ou
psicológica. Reconhece a difusão crescente de métodos psicológicos de coação e de
perturbação mental dos detidos, como de fato ocorria nas ditaduras de Segurança Nacional do
Cone Sul. Mas, como dizem Viñar & Viñar,
123
isso não basta. A partir do prisma
psicanalítico, muitos autores registram outros fatores traumáticos decorrentes da prática da
tortura, difíceis de serem aferidos a priori; há um inventário de práticas conhecidas, tanto de
agressões físicas (fome, sede, brutalidade, etc.) como psíquicas (isolamento, privação
sensorial, perda da referência de tempo). Mas há uma frase que nos testemunhos das vítimas é
insistentemente reiterada: “Usted no sabe, no puede saber, es el horror.” Algo que não pode
ser nomeado toma o lugar do descritivo. O repertório das diferentes formas de violência não é
o que conta. O tempo infinito, o horror sem limite, as condições de isolamento, o
estranhamento, a solidão, a sucessão de mensagens fragmentárias e contraditórias que levam à
loucura descrita constituem elementos essenciais e ordenadores de uma nova lógica. É de
extrema importância esta ampliação do trauma da tortura e do impacto que produz no
conjunto da sociedade, como dizem os autores: “El calvario de decenas y centenares de
personas es suficiente para que la sociedad en su conjunto sea afectada”.
124
E, no caso
uruguaio, as alusões de que ali houve uma experiência de laboratório voltado à destruição das
119
SERPAJ, op. cit., p. 144.
120
Idem, p. 145.
121
VIÑAR; VIÑAR, op. cit., p. 50.
122
AMNISTÍA INTERNACIONAL, op. cit., p. 4.
123
VIÑAR; VIÑAR, op. cit.
124
Idem, p. 50.
587
pessoas são recorrentes.
125
Sem dúvida, a extensão de métodos como a privação sensorial, o
isolamento ou a agressão verbal produzem efeitos que, mesmo não deixando seqüelas
orgânicas imediatas, acabam, a longo prazo, tornando-se destrutivos para a saúde mental dos
prisioneiros.
Todos os presos políticos passaram pela “máquina” da tortura. O fim das garantias
individuais dos detidos criou a condição indispensável para que a tortura se transformasse em
recurso repressivo massivo e que a impunidade fosse o guarda-chuva protetor dos agentes
repressivos. No Uruguai, a tortura foi, em primeiro lugar, um instrumento político. Como
disse Veiga Fialho: “[...] a tortura nesse país é, também, um meio de governo”;
126
enquanto
mecanismo da política do TDE, perpassou toda a estrutura de poder estatal, como descreve
Daniel Rey Piuma em seu depoimento Un marino acusa:
Esto es política de estado, cuyas órdenes manan del Consejo de Seguridad
Nacional (bajo la presidencia del presidente de la República e integrado por
la Junta de Comandantes en Jefe); de este órgano de gobierno pasan a los
Ministerios de Defensa Nacional y del Interior. De allí van a los
comandantes en jefe de cada arma y a los jefes de Polícía. De aquí en
adelante, las órdenes se diseminan así; primeramente a los Comandos
Generales y a los 2°s Estados Mayores y de estos pasan a los cuerpos de
choque o combate, a los órganos de inteligencia y de investigaciones, que
queden abocados a esa tarea concreta (enfrentamientos, detenciones,
interrogatorios y reclusión de detenidos políticos).
127
A “máquina”, também conhecida como “máquina trituradora” ou “máquina de moer
carne”, era composta por uma rotina de procedimentos,
128
que iniciava com um período de
preparação (etapa de aclimatação), onde se procurava, de todas as formas, despersonalizar a
vítima, negando-lhe um nome, um rosto, uma voz. A falta de comunicação era o
complemento desta fase. Reduzido desta forma, podia ser alvo de qualquer tipo de
violência.
129
A incerteza do local onde se encontrava e os métodos psicológicos de castigo
faziam parte do universo de tortura para quem estava na situação de seqüestrado ou detido
para “interrogatório”. A dimensão e a duração da mesma variavam caso a caso. De qualquer
forma, não se pode perder de vista a universalização desse tratamento (da aplicação da
“máquina”).
125
Coojornal. Entrevista de Flávia Schilling. nº 53, maio 1980, p. 24.
126
VEIGA FIALHO, op. cit., p. 184.
127
REY PIUMA, Daniel. Un marino acusa. Montevideo: TAE, 1988. p. 46.
128
No estudo elaborado pelo SERPAJ, Ururguay: Nunca Más, mais de 26 tipos de torturas foram elencadas a
partir dos depoimentos de ex-presos políticos, o que serve como amostragem da variedade e da criatividade
desse tipo de violência. Ressalta-se também que a nudez aparece como traço geral na aplicação de muitas
modalidades de tortura, além de constituir, em si, um ato de violência freqüentemente aplicado.
129
Idem, p. 148.
588
Os presos políticos eram portadores, segundo o regime, de uma condição de
militantes comprometidos com a transformação da realidade na medida em que eram
indivíduos questionadores, ativos e solidários, qualidades proibidas pela nova ordem, que as
associava com práticas ilícitas e subversivas. Por isso, foram introduzidos no interior de um
processo repressivo, de uma maquinaria cuja finalidade era fazer deles sujeitos não-pensantes,
incapazes de determinar ou agir sozinhos e que tendeu a substituir seus valores por outros:
indiferença, desconfiança, impotência (passividade-resignação-aceitação), individualismo,
etc. Essa maquinaria, que funcionou como uma espécie de “fordização repressiva”, visou
despossuí-los de expectativa vital. Nesse sentido, um objetivo do cárcere político foi a
destruição física, psíquica e moral do detido mediante sua submissão; o arrependimento e/ou
cooptação deste seriam conseqüências muito bem-vindas.
130
Por isso, não surpreende que
García Rivas afirme que: “Toda persona que es detenida es inmediatamente torturada. Para
obtener informaciones.”
131
O ex-agente de inteligência faz alusões, ainda, a casos de pessoas detidas para
interrogatório que foram torturadas mesmo sem terem envolvimento algum com movimentos
de oposição ao regime. Isto porque a repressão atingia, com a mesma brutalidade, “culpados”
- “inimigos internos” - e “inocentes”. Estes últimos eram tratados como potenciais futuros
culpados, logo, potenciais futuros “inimigos internos”. Isto permite inferir que o uso
generalizado da tortura cumpria também um papel preventivo; torturar alguém para evitar
que, no futuro, viesse a cometer um crime de subversão. Daí a conclusão: “La tortura es una
regla normal.”
132
O SERPAJ, nas pesquisas para a elaboração do informe Uruguay Nunca
Más, chegou a dados eloqüentes: entre os ex-presos entrevistados, somente 1% entre os
homens e 2% entre as mulheres declararam que não haviam sido torturados.
133
Situação quase indescritível foi a das mulheres grávidas detidas, condição que não as
poupava da tortura. Há registros de casos de gravidez interrompida, ou seja, “hijos muertos
por la tortura.”
134
Uma prisioneira lembra que um dos seus interrogadores, sem o filtro do
capuz (fato aterrorizador pelas implicações óbvias de possível eliminação da vítima para
evitar futura identificação do repressor) lhe dizia: “[...] yo no le perdono a usted que esté
embarazada, porque no se le puede hacer todo lo que hubiera querido.”
135
Aliás, o grau de
impunidade que acompanhou o funcionamento do aparato repressivo foi tão grande que
130
GIL, op. cit., p. 122.
131
VICTOR, op. cit., p. 74.
132
Idem.
133
SERPAJ, op. cit., p. 143.
134
IEPALA, op. cit., p. 50.
589
alguns oficiais faziam questão de identificar-se às vítimas com o seu nome e a hierarquia que
possuíam.
136
Geralmente, essa fase terminava com a ocorrência do processo judicial ou a
liberação, o que gerava uma sensação de alívio, mesmo quando isso fosse relativo. O
sofrimento de agressões de níveis diferenciados de violência física ou psicológica perturbava
a percepção dos detidos, ao ponto de alguns elaborararem opiniões como: Depois me
deixaram encapuzado e não me torturaram mais, o que é, em si, uma avaliação
contraditória.
137
Mas esse era um dos pressupostos do funcionamento da máquina, impor ao
detido um jogo pendular que transtornava e gerava entendimentos paradoxais:
[...] a intervalos más o menos regulares entre las sesiones de tortura, los
verdugos dejan a la víctima un tiempo aparentemente vacío para permitir la
recuperación física mínima y la “reflexión” sobre las ventajas de la
capitulación. La marca de las sesiones de ahogo, picana, suspensión, golpes,
etc., actúan con gran intensidad como recuerdo anticipatorio del horror que
va a ser repetido.
138
De qualquer forma, quando o detido era processado, legalizado como preso político e
conduzido aos presídios, não deixava de ser torturado. Pelo contrário: o que ocorria era que os
métodos se tornavam mais refinados e apresentavam um caráter mais psicológico; ao diminuir
a intensidade de agressão física ao corpo, criava-se a falsa impressão de diminuição da
tortura.
Alvaro Jaume, detido em agosto de 1975 pela Tropa Aérea de Combate da Base
Boiso Lanza, lembra que, no discurso de “boas-vindas” que recebeu do comandante da
unidade, este afirmava:
Que estaban dispuestos a no maltratarme y no torturarme si yo confesaba y
colaboraba con ellos, diciendo todo lo que hacía y conocía. En cambio, si yo
me ponía “reacio” (término textual que empleó) no tendrían mas remedio
que torturarme. En un momento, me hizo levantar la capucha [capuz] y mirar
la pared. En ella estaba escrita la siguiente frase: “milicos torturadores y
asesinos”. “Pues bien” me dijo, “somos asesinos con quienes no se portan
como deben y no dicen la verdad”. Acto seguido, me muestra un garrote que
tiene la inscripción que sigue: “yo soy la verdad”. Y agrega: “Aquí, tarde o
temprano, todos cantan, así que si sos razonable, hablás ahora; si no, te
cagaremos a palos y se te irán todas las veleidades de ser un héroe de la
tortura, porque igual vas a hablar”. Luego dijo: “Nadie sabe dónde estás,
podemos igual tenerte un año sin ningún problema. Estás totalmente en
nuestras manos”. Su última afirmación fue: “Y si te obstinás, traeremos a tu
135
Idem.
136
Depoimento de Ariel Rogelio Soto Loureiro. “Cordero torturaba en Argentina”. Brecha, 05/10/01.
137
SERPAJ, op. cit., p. 146.
138
IEPALA, op. cit., p. 27.
590
esposa, hijos y familiares, y los torturaremos también”.
139
A onipotência do oficial repressor é visível. Ele se apresenta como senhor do destino
do detido; tudo sabe, tudo pode e dispõe de todo o tempo do mundo.
140
Pode-se ver a
objetividade explícita do torturador e o convite à colaboração e à delação como possibilidade
de sobrevivência. Para um militante formado no voluntarismo político e revolucionário, o
dilema de fraquejar durante o sofrimento das sessões de tortura e a percepção de que isso
pudesse ser subentendido como colaboracionismo aumentavam a tensão sofrida. Há diversos
registros de vítimas que não suportaram a tortura e acabaram se desestruturando
psicologicamente por não terem conseguido evitar dar algum tipo de informação. O sistema
repressivo, na sua sofisticação, contava com a imposição de tal dilema, o qual permitia
pressionar ainda mais à vítima e, na pior das hipóteses, obter informação sob tortura,
cooptando-a ou desestruturando-a, o que gerava um posterior sentimento de culpa pelas
prováveis “quedas” de companheiros, expressando um perverso deslocamento de
responsabilidade.
Efetivamente, na inversão da percepção da realidade induzida pela lógica da tortura,
os companheiros não “caiam” como resultado de informação arrancada através da aplicação
massiva de métodos desumanos (sob qualquer perspectiva) patrocinados pelo Terror de
Estado, e sim, pela fraqueza do torturado. O relato de Jaume é esclarecedor ao mostrar que a
postura do oficial corresponde a um padrão de comportamento deliberado de ação repressiva.
E se isto não é suficientemente assustador, a alusão de que o detido é um desaparecido
(portanto, alguém que está a completa mercê dos seus captores), ou a simples menção da
possibilidade de torturarem filhos, companheira ou pais do detido, se insere dentro da idéia do
horror, apontada anteriormente por Viñar & Viñar, como cenário aterrorizador e paralisante a
vislumbrar.
A explicitação ao detido de que acaba de ser oficialmente inscrito na categoria
“desaparecido” aumenta a expectativa da tortura e da morte, já que se lhe insinua que,
qualquer excesso no “interrogatório”, não exporá os responsáveis a nenhum tipo de punição,
pois, em último caso, podem apelar para um “suicídio” encobridor, com o aval legitimador de
médicos e juízes militares. Isto aumentou ainda mais a angústia da incerteza e da
insegurança.
141
As palavras dos carcereiros e dos torturadores ressoavam permanentemente:
139
SERPAJ, op. cit., p. 145.
140
IEPALA, op. cit., p. 23.
141
É exemplar o seqüestro do jornalista gaúcho Flávio Tavares, em julho de 1977, após ter passado pelo
embarque do aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, onde fora a serviço do jornal mexicano Excelsior. Tavares
havia sido banido do Brasil em 1969. O fato de não ter embarcado no avião que devia levá-lo a Buenos Aires,
591
“Nadie sabe que estás acá”; “Vos estás desaparecido”; “Vos no existís, no estás ni con los
vivos ni con los muertos”.
142
A certeza da impunidade e o agir como se não houvesse
nenhuma norma ou regra a respeitar ecoam dos testemunhos das pessoas seqüestradas e
torturadas: “No sos nadie”; “Nadie sabe nada de vos, así que podemos hacer con vos lo que
querramos”; “Tenemos todo el tiempo”.
143
Pensar a existência de uma aplicação metodológica da tortura pode parecer ousado
diante da diversidade de casos conhecidos e da percepção diferenciada de cada vítima quanto
a graus de intensidade sofrida, níveis de tolerância e entendimento do que seja essa prática.
Mas há dois elementos que justificam falar em uma metodologia de aplicação. Um é o fato de
ter sido um instrumento massivamente utilizado, como se confere nos relatos dos ex-agentes
repressivos citados. Outro, a existência de um padrão geral, independente das experiências
singulares. Os tipos de violência aplicadas durante as detenções podem ter variado nos
diversos casos, mas um fato é inegável: a existência da tortura como instrumento massivo da
política do TDE.
Nesse sentido, uma fase de aclimatação ao tratamento geral era marcada pela
aplicação de surras que funcionavam como ablandamiento. O estudo do IEPALA
144
indica
que, durante esse período, se procurava solapar o equilíbrio e a identidade da vítima, assim
como enfraquecê-la fisicamente e aumentar-lhe a sensação da incerteza e a exacerbação da
angústia das privações e do esgotamento. Desde o momento da sua detenção, o indivíduo era
algemado e encapuzado; essa era a condição em que permanecia, pelo menos, até a etapa da
vida carcerária. Calace comenta que a sede da DII, conhecido centro de tortura, era um
“depósito” de presos de outros centros de detenção que eram encaminhados para serem
“interrogados”; posteriormente, eram retirados, mas era freqüente que, diante de novas
informações que deviam ser checadas, fossem levados de volta.
145
Esgotada a possibilidade
de extrair ou aferir novas informações (o que poderia durar alguns meses), os presos
deixavam de ter utilidade para a DII; somente então eram encaminhados aos presídios via
mas tendo registrado sua saída do Uruguai, configurava a condição para o seqüestro perfeito. A repressão
uruguaia imaginou que ele seria dado como desaparecido em Buenos Aires. Tavares foi conscientizado do seu
seqüestro pelos captores. Além de ameaças e torturas, Tavares foi alvo de duas simulações de fuzilamento na
mesma noite. Simulações carregados de toda a angústia e a carga traumática do fuzilamento real, o que o levou a
escrever, nas suas memórias sobre os fatos que, no Uruguai, “fui seqüestrado, fuzilado e morri”. TAVARES,
Flávio. Memórias do Esquecimento: São Paulo: Globo, 1999. p. 252-254 e 271.
142
KORDON, Diana R. et al. La tortura em Argentina. In: KORDON, D.; EDELMAN, L. I.; Equipo de
Asistencia Psicológica de Madres de Plaza de Mayo. Efectos psicológicos de la repressión política. Buenos
Aires: Sudamericana/Planeta, 1987. p. 94.
143
KORDON, Diana.; EDELMAN, Lucila I. Efectos psicológicos de la represión política. II. In: KORDON, D.;
EDELMAN, L. I.; Equipo de Asistencia Psicológica de Madres de Plaza de Mayo. Idem, p. 166.
144
IEPALA, op. cit.
145
CALACE, op. cit., p. 14.
592
Justiça Militar.
Um outro fator violento que acompanhava o momento da detenção consistia na
expropriação de bens de uso pessoal como relógio, dinheiro, papéis, cinto, cordões dos
sapatos e quase toda a roupa. Para Lilian Celiberti, esse procedimento também fazia parte do
jogo de desestabilização emocional proposto pelo TDE. Durante a aplicação da sessão de
tortura “[...] aparecen las fotos, las preguntas, todas esas cosas, y cada uno de los tipos que
entra tiene una cosa mía puesta, un buzo, una pulsera. Si te llevaban a una pieza, en la mesa
había cosas que eran tuyas, lapiceras, libretas, monedero...”
146
Independente de serem
utilizadas conscientemente como instrumentos de aceleração da deterioração anímica do
detido, a expropriação desses objetos, fosse em caráter individual ou coletivo (do comando
encarregado da ação), respondia a uma necessidade do sistema repressivo. Este, através
dessas ações, permitia margem a que os envolvidos pudessem ter o seu quinhão dentro desse
botim de guerra constituído por objetos de uso pessoal, dinheiro, propriedades de todo tipo e,
na extrapolação sem precedentes de todo limite discricionário, o seqüestro e apropriação de
crianças.
A detenção foi o começo de um processo de imersão individual na dinâmica de um
mundo de obscuridão, solidão, silêncio e ruídos sem sentido. Aliás, silêncios e ruídos se
sucediam de forma caótica, pelo menos, até o aprendizado de certos códigos e a lógica do
funcionamento desses centros clandestinos de interrogatório: rádios a todo volume, latidos de
cães, insultos e risos dos funcionários repressivos, gritos e gemidos (reais ou gravados) de
outros detidos, etc. A supressão do rosto, do nome e da voz do detido, sua redução a “coisa”,
era o ponto alto dessa condição de estar indefeso. O ato de humilhar o preso e diminuir-lhe a
auto-estima tornava-o mais vulnerável para ser submetido à vontade dos captores. Não ver
um rosto pela existência de um capuz ou ignorar um nome eram condições necessárias para o
bom cumprimento da função de torturador, pois conferia, ao ato abjeto, o distanciamento da
impessoalidade.
A importância do encapuzamento, modalidade corriqueira da aplicação metodológica
e racional da tortura, estava em impossibilitar, ao detido, o reconhecimento dos rostos dos
captores e dos torturadores, além de aumentar a sensação de isolamento e de perda de
referência temporal e espacial. A presença do capuz produzia perturbações visuais, infecções
oculares, surdez, vertigem e sensação de asfixia. Psicologicamente, sofrendo de privação
sensorial, o detido dependia para tudo de uma voz de comando que lhe era externa. Na sessão
da Câmara de Representantes de 22 de junho de 1972, o deputado Daniel Sosa Dias afirmou
593
que o encapuzamento era “desconhecer a própria essência da alma humana”:
Si al interrogador o al torturador lo separamos del torturado por una máscara,
lo embolsamos y lo convertimos en un bulto, en una bolsa o en un número,
desaparece esa relación humana normal, esa comunicabilidad que dan los
ojos, la expresión del dolor o del afecto, que son tan fundamentales para
valorar a quien se tiene enfrente. Si aquéllo se convierte en un bulto o en una
bolsa o en un número, ya no es un ser humano. Entonces, nuestras
reacciones, nuestros malos instintos [...] quedan librados, porque aquel freno
inhibitorio que significa tener que ver al que hay que torturar, mortificar y
matar, no existe. Mas aún: hay otro freno inhibitorio que también se quiebra
porque el que tortura sabe que aquel hombre indefenso, atado y encapuchado
nunca le podrá pedir cuentas, porque no sabe quién es, ya que está protegido
por el anonimato.
147
O ex-torturador José Calace descreve sua iniciação na DII, quando tinha somente 18
anos e foi obrigado a bater num homem encapuzado. Ao apresentar-se no local combinado:
Luego de atravesar sombríos corredores, me ordenaron tomar asiento en una
pequeña salita. De pronto, traído a los empujones por varios, llegó un
hombre encapuchado. Sin más trámite, comenzaron a darle una feroz paliza.
Mis 18 años miraban atónitos. - ¡Vos, ¿qué mirás?!, gritó la voz de uno de
aquellos, alto, trajeado, mientras los golpes caían sobre los gemidos.
- No... Mire... Yo solo soy un funcionario... Un funcionario nuevo, contesté
asustado.
- ¡Bueno, bueno! Estos son los enemigos, me dijo señalando la capucha.
Quieren matar a tu madre. Te quieren matar a vos: ¡DAAALE! Y yo,
levantándome, le di.
148
Claramente verifica-se que o capuz funciona como um elemento da
despersonalização da tortura e facilitador do cumprimento de ordens, pelo menos daqueles
que, em algum momento, parecem ter demonstrado dúvida sobre o sentido de tal ação. Por
outro lado, a dor e o esgotamento realçavam a deterioração do corpo da vítima, fato
intensificado pela sensação de semi-asfixia e privação da visão produzidas pelo capuz. Fazia
parte do ablandamiento do detido, permanecer durante horas de pé, com as pernas abertas
(plantón), sem comer, sem tomar água, sem dormir, sem ir ao banheiro, sem poder
higienizar-se e exposto ao frio e à chuva. Sofria-se uma enorme solidão que se interrompia
somente quando, caído e extenuado, a vítima recebia uma aparente atenção do “bom” da
equipe de tortura: um copo de água, um prato de sopa e as palavras de que melhor faria se
aceitasse as exigências dos “interrogadores”. Falsa ilusão de tranqüilidade abruptamente
rompida com chutes e novos insultos.
149
146
CELIBERTI, Lilian; GARRIDO, Lucy. Mi habitación, mi celda. Montevideo: Arca, 1990. p. 32.
147
SERPAJ, op. cit., p. 153.
148
CALACE, op. cit., p. 9.
149
VIÑAR; VIÑAR, op. cit., p. 47.
594
Na fase do ablandamiento, estabelecia-se o duplo jogo do “bom” e do “mau
interrogador”. Era um estratagema que podia dar certo com detidos de “primeira viagem
(com os torturados mais experientes não surtia o mesmo efeito). Visando confundir o detido,
significativamente alquebrado, surgia a figura do “bom” torturador, aquele que após uma
sessão duríssima, mostrava-se compreensivo, preocupado com a saúde do “interrogado”. No
fundo, tentava ganhar sua confiança para obter o mesmo resultado visado com a aplicação da
tortura. Ele fazia parte da equipe de torturadores e desempenhava seu papel a rigor: ser uma
possibilidade de oferta de alívio para a vítima (um ancoradouro no meio da tempestade); mas
também era parte incontestável do mecanismo de obtenção de informação e de
desestruturação (“quebra”) da vítima.
Posteriormente ao ablande, as vítimas passavam a sofrer a “pesada” - nas
profundezas do sistema repressivo, o conjunto de métodos mais brutais de agressão física e
psicológica. Eram sessões onde participavam equipes numerosas, entre os quais havia
enfermeiros, médicos e psicólogos, que sinalizavam os limites do “interrogatório” para evitar
a morte do detido. Lilian Celiberti, ao ser perguntada se tinha dor e medo na tortura,
respondeu:
El miedo lo sentís en los intervalos. En los momentos concretos sólo sentís
dolor. El verdadero miedo es el que se siente cuando esa sesión de tortura
termina y vos sabés que va a comenzar la otra, o que no comienza nada y vos
igual la estás esperando, paralizada por esa sensación, tal vez la más terrible
que se pueda sentir.
É o sofrimento que resulta da ação pendular da aplicação da “máquina”, alternando
sessões de violência com períodos de espera.
En ese momento lo que más te duele es la humillación que significa estar
ahí, aullando, con el cuerpo embadurnado de mierda y saltando sin poder
controlarte, saltando sin que tu voluntad pueda impedirlo. El objetivo de la
tortura es ése: denigrarte como persona, que tu cuerpo, tu voluntad, pierdan
el control y te sientas un montón de carne, huesos, mierda y dolor y
miedo.
150
A ameaça de sofrer a “pesada” era paralisante e estava presente através de constantes
ameaças:
Para los guapos tenemos un tratamiento especial, vos elegís: o hablás ahora
o te aplicamos “la pesada”. Yo tengo todo el tiempo que quiera: una semana,
un mes, un año. Algunos aguantan más, otros menos; al final todos aflojan.
Vos ves lo que te conviene y me ahorrás trabajo y te ahorrás... el
150
CELIBERTI; GARRIDO, op. cit., p. 14.
595
tratamiento.
151
A humilhação e a violência sexual faziam parte da “pesada”. A nudez da vítima nas
sessões da “pesada” tornava a situação mais vexatória, opressiva e ameaçadora - muito mais
no caso das mulheres. O corpo do prisioneiro era convertido em espetáculo dos
torturadores.
152
O fator tempo foi um elemento importante do sistema de tortura e incidiu no clima de
incerteza e de insegurança da vítima desde o momento da detenção. Tratou-se de um tempo
indefinido, sem horários, datas ou prazos. Em poucos dias, o detido, sob pressão terrível,
perdia o controle da passagem do tempo.
153
Já, por parte dos agentes repressivos, o tempo era
manejado como elemento auxiliar das suas funções, estando presente nas sessões de tortura,
na incomunicação e na situação indefinida de uma expectativa incerta de ser legalizado
mediante apresentação à Justiça Militar e o posterior processamento. Mesmo quando definida
a prisão e a pena para cumprir, o regime criava subterfúgios para revisar as penalidades e
aumentá-las, retroativamente, ao seu bel prazer, de forma a tornar mais agonizante a situação
do preso político. Sem dúvida, o fator tempo jogava a favor do TDE.
Na experiência repressiva uruguaia, os mecanismos de tortura visavam extrair
informação, embora essa não fosse a finalidade exclusiva. O ex-agente García Rivas
reconhece essa prioridade: “Ellos [o regime] pretenden inculcarle al alumno que la tortura es
necesaria, absolutamente necesaria, para obtener informaciones. Si no, no se obtiene
información.” E acrescenta um dado já conhecido, mas que não deve ser escamoteado: “[...] la
tortura debe ser hecha en forma tal que no debe poner en peligro la vida de la persona. No por
el hecho de la vida de él mismo, sino por el hecho de que si esa persona se muere puede
llevarse información con ella.”
154
Ou seja, não havia preocupação com o ser humano que
estava sendo torturado; aliás, se assim fosse, a própria existência da tortura seria uma
contradição do sistema. O fato é que a lógica da tortura implicava na sobrevivência da vítima
para que essa ação pudesse ser reiniciada indefinidamente. Se o critério para isso era a
obtenção de informação ou a perpetuação da capacidade de provocar medo, pavor ou dor, isso
se tornava secundário. Por isso, era importante a presença de médicos, enfermeiros e
psicólogos nos centros de tortura; tratava-se do refinamento e sofisticação dos novos métodos
importados através dos fluxos da “pentagonização” e da oferta de especialistas em “técnicas
de interrogatório”, como no caso de Dan Mitrione. Quando este especialista definia a tortura
151
IEPALA, op. cit., p. 25.
152
Idem.
153
Idem, p. 22.
596
como sendo a aplicação da dor precisa, no lugar preciso, na proporção precisa, estabelecia
parâmetros de racionalidade e cientificidade para sua aplicação e, praticamente, dava o eixo
norteador da montagem e da aplicação massiva dessa modalidade de política de TDE,
embasando teoricamente o que García Rivas confirmava na prática.
Com essas diretrizes gerais, os carcereiros eram instruídos sobre as formas de buscar
a quebra da resistência física, psicológica e moral do prisioneiro. Assim, passavam-lhe
informações que aumentavam a incerteza e a insegurança quanto à localização espacial e
temporal; imergiam-no na ignorância da sua real situação; induziam-no a duvidar dos
companheiros. Estimulavam-lhe incertezas: se quem se aproximava era amigo ou inimigo; se
estava só ou acompanhado; se os seres queridos haviam sido detidos; se os companheiros
presos resistiram ou colaboraram; se o grupo político fora aniquilado, etc. Tudo isto fazia
parte da busca da submissão, da colaboração, da aceitação de confissões impostas.
155
Algumas das páginas mais escabrosas da metodologia repressiva vieram a público,
pela primeira vez, no final do ano de 2003, com a divulgação de fotografias do coronel Jorge
“Pajarito” Silveira, reconhecido como um dos maiores torturadores dos “anos de chumbo”
uruguaios. Imediatamente, foram divulgados depoimentos de vítimas desse militar que
participava de uma das unidades repressivas mais ferozes da ditadura e que havia agido tanto
no país quanto contra a comunidade exilada na Argentina. Os relatos sobre suas ações são
dramáticos e servem como pequeno exemplo do clima de tensão e da falta de limites que a
metodologia repressiva assumia a partir da modalidade da tortura. Entre eles veio a público o
de uma mulher que na época tinha 19 anos e que foi torturada, violentada e mostrada como
troféu aos seus parceiros de crimes.
156
A seguir, o semanário Brecha, trazia a público um pungente registro de um fato
acontecido poucos meses depois do plebiscito que rejeitou a proposta de reforma
constitucional pretendida pela ditadura (1980).
157
Vinte estudantes, com idades entre 15 e 17
anos, detidos durante a realização de manifestações relâmpagos, haviam sido levados e
torturados no local da DII. Seus agentes queriam informações para localizar uma máquina
impressora de panfletos. Para tanto, usaram o repertório padrão: “golpes, colgadas, plantones,
picana, submarino.
E anunciaram uma ameaça muito pior: “Esto no es nada. Cuando vengan
los duros, los yerbas [referência à “cor erva-mate” dos uniformes militares], ustedes van a
rogarnos que volvamos nosotros.” De fato, a chegada dos “duros” produziu um terror
154
VÍCTOR, op. cit., p. 66.
155
SERPAJ, op. cit., p. 150.
156
“No sólo fui torturada sino que también fui violada por el coronel Jorge Silveira”. La República, 20/11/03.
157
“El Coronel Jorge Silveira, violador de menores”. Brecha, 07/11/03.
597
particular: entraram no porão chutando, gritando, insultando. “Yo soy el jefe, soy el que
mando. Yo hago lo que quiero. Los cojo [fodo-os], los mato”, estas foram as palavras do
Coronel Jorge Silveira, conhecido pelo codinome Chimichurri, que sem rodeios avisou: “Acá
se van a volver todos putos.”
158
A medida que foram passando os dias, a prisão dos estudantes perdeu sentido; não
havia informação alguma para extrair-lhes; a violência sexual se tornou o objetivo exclusivo
da ação. Durante 41 dias. Como disse uma das vítimas: “[...] cuando te violan no tienen la
intención de interrogarte, no te violan para arrancarte secretos, te violan para denigrarte, para
quebrarte, y fundamentalmente porque son unos degenerados.” Blixen dirá, secamente: este é
Silveira, que “[...] además de torturar, desaparecer, robar niños y asesinar, solía violar y
agredir sexualmente a prisioneros adolescentes.
159
A protagonista do primeiro depoimento
expressa sua maior indignação:
La foto [publicada pela imprensa] me provocó indignación. Parece increíble.
Bueno está la Ley de Caducidad
160
[...]. Pero que este hombre haya llegado a
coronel, se haya retirado como coronel, que los galones que fue ganando los
fue ganando en democracia y que se los dieron por lo que hizo. Fue
premiado. Fue premiado sabiendo todas las atrocidades que hizo.
161
É a expressão diante de um resquício concreto do TDE e que, para além de outras
tantas e tão delicadas sensações, manifesta-se através da profunda indignação diante da
impunidade persistente e dos efeitos da desmemória. Na mesma direção aponta o alerta de
Blixen no final da sua matéria:
También conocido como “Pajarito”, “Siete Sierras”, “Óscar 7”, el mismo
que torturaba a los detenidos en Artillería en 1975 y ya pergeñaba una
extorsión para liberar prisioneros mediante el pago de dinero; el mismo que
operó en Buenos Aires y que ha sido acusado de la desaparición y asesinato
de decenas de uruguayos exiliados; el mismo que secuestró a María Claudia
de Gelman, y robó a la nieta del poeta Juan Gelman; el mismo que continuó
158
Idem.
159
Idem.
160
Nota do autor: refere-se a já comentada Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado, mais
conhecida como Ley de Caducidad. Esta lei foi aprovada por iniciativa do governo Sanguinetti, em outubro de
1986. Em linhas gerais, era a salvaguarda procurada pelas Forças Armadas para sentirem-se protegidas de
qualquer questionamento sobre sua atuação durante o período ditatorial. A reação de setores da sociedade civil
que não aceitavam aquilo que consideravam imoral e ilegal foi canalizada para a coleta de firmas que
permitissem apelar para o recurso constitucional plebiscitário. Apesar de todas as pressões contra, um grande
esforço de mobilização conseguiu atingir o quórum necessário para encaminhar a consulta. Em 1989, ocorreu o
plebiscito no qual, 57% dos cidadãos deram a vitória aos setores que optaram pela confirmação da Ley de
Caducidad. Para muitos analistas, o resultado da consulta popular consagroou a impunidade sob um marco de
legitimidade garantindo aos integrantes das Forças Armadas imunidade perpétua. Na obra La impunidad en
América Latina, do TRIBUNAL PERMANENTE DE LOS PUEBLOS. SESIÓN URUGUAY. 1990
(Montevideo, 1990), há diversas contribuições analisando tal problemática.
161
“No sólo fui torturada sino que también fui violada por el coronel Jorge Silveira”. La República, 20/11/03.
598
la tortura psicológica contra las presas políticas como responsable de la
cárcel de Punta de Rieles, el mismo Jorge Silveira es el Chimichurri que
violaba adolescentes en los sótanos de la calle Maldonado con el único
objetivo de satisfacer sus desviaciones.
Ése es el hombre al que la ley de caducidad le otorgó una impunidad para
todos sus crímenes; es el hombre que fue ascendido a coronel por Julio
María Sanguinetti en su primera presidencia; es el hombre que fue designado
por Sanguinetti, en su segunda presidencia, en el Estado Mayor del
Comandante del Ejército; es el hombre que el general Fernán Amado quería
tener como colaborador personal; es el hombre que comparte asados con el
senador Pablo Millor, con el diputado Daniel García Pintos y con el dirigente
pachequista Alberto Iglesias. Es el hombre a quien el presidente Jorge Batlle
dejará impune con respecto al asesinato de María Claudia [nora do poeta
argentino Juan Gelman], si decide incluir el caso en la ley de caducidad.
162
O depoimento do ex-tenente Julio César Cooper traz outros dados elucidativos a
respeito do funcionamento da tortura e da sua metodologia. Segundo ele, torturou durante o
ano de 1972 até o mês de novembro, quando se negou a continuar participando dos
interrogatórios e, por isso, sofreu inúmeras sanções, até ser passado para a reserva obrigatória,
em 1977. Em 1978, conseguiu asilo político na Suécia. Cooper afirma que no início estava
convencido de que ao detido havia que “[...] interrogarlo con el método que fuera, aunque
fuera violento. Sacarle información.” Para ele, a tortura era uma parte lógica do
interrogatório: “Yo consideraba que era lógico. Como no la iba a considerar lógica, si
nosotros veíamos que era la única forma de sacar información rápida. por eso la
valorábamos.”
163
Do interrogatório atuava “[...] toda la plana de oficiales, actuábamos todos. Todos
actuabam. [...] estimo [...] que el noventa por ciento de la oficialidad uruguaya [...] está
implicado directamente o indirectamente en la tortura.” Pergunta: “Cuando dice ‘directamente
o indirectamente implicados’, ¿puede precisar?” Resposta de Cooper: “Bien, directamente,
como elemento que aplica la tortura, e indirectamente me refiero al hombre que ostenta
responsabilidad, responsabilidad de mando, por ejemplo.”
164
García Rivas declarou, por sua
vez, que não conheceu ninguém que, diante da ordem de torturar, se negasse a fazê-lo; isso
significava ir preso, diz ele. Os altos mandos “[...] quieren que
todos participen en la tortura,
en los interrogatorios. Pienso que es para que después nadie pueda decir: ‘No, yo nunca
torturé’. Creo que es por eso.”
165
[grifo do autor]
Ainda sobre esse assunto, Cooper trouxe mais esclarecimentos. Diante da pergunta
de se não temiam ser penalizados pela justiça pela aplicação de torturas, respondeu:
162
“El Coronel Jorge Silveira, violador de menores”. Brecha, 07/11/03.
163
SERPAJ. Testemunho do tenente Cooper, op. cit., p. 2.
164
Idem.
599
“Teníamos el temor, pero a medida que iban pasando los hechos (y ya en ese momento había
habido muertes, en otros lugares, y no pasaba nada...), nosotros no creíamos que nos fueran a
parar.” E ao ser perguntado sobre como “[...] un oficial de carrera, como usted, de una familia
decente y honesta, de pronto empieza a torturar. Y usted no se consideraba un asesino. Como
usted aguantaba en su cabeza esa doble personalidad, de ser un torturador en el cuartel y una
persona decente fuera del cuartel?” Cooper respondeu:
Yo en los primeros momentos no encontraba contradicción, e incluso estaba
consciente de lo que estaba haciendo y conforme con lo que estaba haciendo.
Porque yo calibraba por un lado lo que yo hacía y, por otro, lo que hacían los
subversivos. Me parecía que era pagar con la misma moneda. Si yo
consideraba que los subversivos mataban, a veces a gente que no tenía nada
que ver, yo estaba aplicando una contramedida, aunque fuera denigrante de
mi parte [...].
Quando perguntado se a tortura se aplicava com o consentimento do comandante da
Unidade ou por ordem do comandante, Cooper disse:
Del comandante de la Unidad, y de arriba, de más arriba, venían las
permanentes órdenes, y directivas de que no se llegara a excesos en los
métodos de interrogatorios. Pero era un lavado de manos. Las órdenes
venían del Comando del Ejército, del Jefe de la Región, mismo del Jefe de la
Unidad. Que cuando estaba en el Casino lo decía muy convencido: “Cuidado
con los métodos violentos de interrogatorio. No llegar a excesos”. Pero
cuando se estaba aplicando el método, se allegaba y a veces permanecía unos
instantes y se iba.
Há uma questão particular colocada por Cooper: a remuneração pelos serviços
especiais prestados. Ele reconhece que as Forças Armadas passaram a receber uma
gratificação monetária pelo cumprimento dessas tarefas. Perguntado sobre se “Cree que ese
tipo de remuneración extraordinaria podía incentivar a mucha gente a hacer un tipo de cosas
fuera de lo normal, es decir, interrogatorios con tortura”, Cooper respondeu:
Creo que esa era la finalidad.[...] aquietar un poco el malestar de sentirse en
una situación económica bastante negativa. [...] En enero de 1973 fue el
primer golpe de estado. En enero de 1973, si mal no recuerdo, mi sueldo se
triplica.
166
Essas informações trazidas por Cooper permitem retomar a avaliação de Samuel
Blixen sobre a política de reféns, quando inferia que era uma estrutura que economicamente
servia para contentar ou premiar os oficiais e soldados diretamente vinculados à manutenção
daquela. Era uma forma de abrir canais de compensação econômica a certos setores das
165
VÍCTOR, op. cit., p. 73.
600
Forças Armadas. O próprio Cooper confirmava, em outro momento do extenso depoimento,
que a rápida ascensão de um oficial estava diretamente vinculada a sua eficiência e
rendimento nas funções desempenhadas, inclusive nas atividades repressivas e,
particularmente, na tortura. Portanto, a melhoria salarial e funcional, as promoções por
“mérito” e um melhor posicionamento na carreira militar, também podem ser vistos como
objetivos de interesse individual que justificam a disseminação da prática da tortura.
Diante da necessidade de sobreviver em condições tão adversas, ocorreram situações
que, descontextualizadas, podem ser difíceis de entender. Flávia Schilling, por exemplo,
aponta para uma das possibilidades de relações que surgiam dessa dinâmica infernal. Ao
comentar a tortura sofrida na Primeira Região Militar, descreve o tratamento recebido:
Aqui [Primeira Região Militar], cada oficial se especializa num preso, em
procurar seu ponto fraco. Isso é mútuo: o preso também procura o ponto
débil do seu torturador, e em poucas horas se cria uma relação de
dependência entre um e outro. O preso fica angustiado e inseguro quando
muda de torturador. Cria-se uma relação de simpatia, no sentido grego da
palavra ..., de sentir junto, de sofrer um com o outro. [...] De início me
disseram que o encarregado de me interrogar era o “Negro” e o jogo já
começou aí. Ficava com raiva quando outro se metia no meu interrogatório,
e o mesmo acontecia com ele. Me sentia pior ainda num interrogatório
quando falava o Negro, mas havia outros seis escutando. Inclusive porque
quebrar as perguntas e conversar fiado com um só é mais fácil do que com
três, quatro ou seis. Ainda que a palavra pareça estranha, existe mais
intimidade, o que humaniza um pouco a situação, personaliza. Cria uma
sensação de segurança. Em seguida a gente percebe a forma de ser do outro e
não há grande margem de surpresa.
167
De certa forma, aproxima-se do expressivo relato de Mario Benedetti “Pedro y el
Capitán”, onde estão frente a frente torturador e torturado, numa situação que evolui de tal
forma que os dois personagens, um diante do outro, expõem sua fragilidade, mostram os
limites que para ambos apresenta essa relação; tudo isso sem deixar de explicitar a dimensão
do horror, da dor e a responsabilidade de quem exerce o poder através da tortura, ou seja, sem
confundir ou perder de vista que há uma vítima sendo duramente torturada e há um torturador
que se esmera em cumprir sua tarefa e desempenhar seu papel.
Para a repressão, a tortura foi uma técnica global de guerra (interna); portanto, a
agressão à vítima devia ocorrer em “todos os flancos”. Para o TDE, a tortura devia não só
ampliar o volume de informação acumulada como reduzir o inimigo a um ser biológico
deteriorado nas suas dimensões psicológica, social e cultural.
168
166
SERPAJ. Testemunho do tenente Cooper, op. cit., p. 2.
167
SCHILLING, op. cit., p. 29.
168
IEPALA, op. cit., p. 30.
601
O alto grau de sofisticação técnica dessa modalidade repressiva era motivo de
orgulho para os policiais e militares uruguaios. García Rivas descreve a existência de uma
Escola de Inteligência que ministrava programas de inteligência e investigação para o pessoal
dos serviços de inteligência das Forças Armadas que, entre outras “disciplinas”, recebiam
instrução sobre interrogatórios e torturas e, posteriormente multiplicavam-na nas suas
unidades de origem.
169
Ao comentar sobre instrutores, Calace lembra que na DII, Homero
Vaz, “el Cabeza”, lhe ensinou a torturar. “El instruía a todos. Es un especialista, un
vocacional de la tortura.”
170
O “profissionalismo” dos torturadores foi resultado de seus “méritos”, bem como do
assessoramento internacional - em termos econômicos e teóricos. Uma vez “formados”, os
aprendizes uruguaios tornavam-se especialistas e repassavam seu conhecimento,
transformando o país em um grande centro de treinamento e aperfeiçoamento dos quadros de
outros regimes militares de SN. Pode-se citar, como exemplo, o caso de El Salvador,
171
Guatemala e Costa Rica, além do evidente intercâmbio com os países vizinhos do Cone
Sul.
172
É importante ressaltar que tais situações antecederam à organização da Operação
Condor. Quanto à qualidade dos especialistas nativos, García Rivas lembra que em 1979
houve um Simpósio sobre Inteligência, em Montevidéu, onde o governo uruguaio convidou
especialistas do mundo inteiro para palestrarem.
173
No mesmo, trataram-se questões
vinculadas à Inteligência a partir de uma perspectiva mundial. Diz Rivas que durante o
encontro ocorreu uma certa insatisfação sobre a qualidade dos palestrantes estrangeiros:
[...] el general Ballestrino pidió la palabra y dijo que ellos estaban ofreciendo
algo que era de nivel muy bajo. Que el Uruguay está a un nivel mucho más
alto de lo que ellos estaban ofreciendo y que tuvieran la amabilidad de
encarar el tema a otro nivel profesional.
174
É curiosa a constatação de orgulho e o fervor patriótico manifestado pelos oficiais
uruguaios em relação ao know-how adquirido pelo país sobre métodos de “interrogatório”.
García Rivas acrescenta que os oficiais uruguaios diziam que os especialistas estrangeiros
“[...] pensaban que iban a llegar acá y que nos iban a encontrar con un arco y una flecha a
169
VÍCTOR, op. cit., p. 65.
170
CALACE, op. cit., p. 13.
171
Um dos tantos que participou de aulas práticas ministradas por Dan Mitrione, no Uruguai, foi o comandante
Roberto D’Anbuisson, responsável por altos índices de violações dos direitos humanos em El Salvador, anos
depois.
172
VICTOR, op. cit., p. 63.
173
Entre os especialistas, Rivas lembra de Isaac Varón (Israel), Brian Jenkins (EUA), Mulder (Alemanha),
Ferracutti (Itália), Aaron Kats (EUA) e Carlos Martínez (México).
174
VÍCTOR, op. cit., p. 98.
602
nosotros y la cosa no es tan así.”
175
Estufando o peito, o general Hugo Medina lembraria, anos
depois, em 1983, que:
A estas Fuerzas Armadas las han venido a consultar desde otros países con
gran asiduidad para ver cómo hicieron para combatir la sedición y con que
elementos lucharon contra ella. Nosotros - y perdonen la falsa modestia -
somos escuela y elemento de consulta de muchos países amigos. Si Uds.
supieran la cantidad de países que han venido a nuestro Instituto para ver la
forma como conbatimos la sedición, tal vez se asombrarían.
176
Trocando em miúdos, era o orgulho da eficiência do TDE uruguaio.
Retomando a discussão sobre os objetivos do uso massivo da tortura e conferindo os
relatos dos ex-agentes do sistema, verifica-se o uso da mesma visando atingir, por um lado, a
dimensão individual (a vítima isolada); por outro, o corpo social como um todo. No que tange
à dimensão do indivíduo, cabe destacar, como principal objetivo e a partir do depoimento do
ex-tenente Cooper, a extração de máxima informação do detido, mas a confissão também era
visada:
P: ¿Que objetivo tuvo - y tiene - la tortura?
R: Bien, desde un principio estimo, por haberlo sentido personalmente, y por
haber percebido en la generalidad de los oficiales, que el objetivo de la
tortura era pura y exclusivamente el lograr la declaración del detenido.
P: ¿O sea, arrancar confesiones?
R: Arrancar confesiones [...].
177
Ainda em relação à dimensão individual, há um segundo objetivo: a obtenção da
confissão de delito (se a vítima alegasse, diante da justiça, ter confessado sob tortura,
certamente sofreria mais uma dose da “máquina”). Cooper diz que:
[...] dado [...] el método de aplicación de tortura, el mismo no dejaba
prácticamente ningún margen al detenido a manifestar su inocencia. [...]
Incluso considero que por una, por la condición humana del individuo, [...]
en muchos casos el detenido prefirió inventar, atribuirse responsabilidades
no reales, con tal de verse libre de la tortura.
178
Sem dúvida, a tortura levou muitos detidos a se assumirem como culpados de delitos
que sequer conheciam, mas era uma forma de tentar acabar com os castigos.
179
Um outro motivo para a aplicação desses métodos de violência foi a criação de uma
rotina de punição, de dor, de castigo e de humilhação do detido. Neste ponto, era evidente que
175
Idem.
176
General Hugo Medina, Actas del Diálogo Núm. 4 - p. 10, 16 de junho de 1983. Apud, IEPALA, op. cit., p.
22.
177
SERPAJ. Testimonio Julio Cooper, op. cit., p. 2.
178
Idem.
603
os funcionários repressivos sabiam que não havia mais informação a ser retirada. Logo,
tratava-se de aplicar a tortura pela tortura como rotina do processo (estar na “máquina”).
Tratava-se de castigo sistemático e permanente independente do objetivo de obter informação.
Fundamentalmente, este era o objetivo último em relação às vítimas: quebrar sua resistência
através da violência, da humilhação, da despersonalização. Em outras palavras, a destruição
física e psicológica do indivíduo.
Etimologicamente, a palavra tortura significava, na Idade Média, torcer o corpo,
estirá-lo até a confissão, inclusive com a conotação de suplício público e na forma de
espetáculo. Contemporaneamente, há outros métodos, mas seu objetivo continua sendo o
mesmo: torcer, desviar, quebrar o prisioneiro. Para atingir a eficiência desejada, tornava-se
necessário que o detido visualizasse os resultados físicos da ação da tortura em si mesmo, em
seus seres queridos ou em outros torturados; isso produzia efeitos desesperadores: “Así vas a
quedar vos” ou “Así estás vos”.
180
Marcelo Viñar elaborou o conceito de demolição para expressar a quebra do
indivíduo sob tortura. A demolição ocorre no momento em que o sofrimento provocado pela
agressão contra o corpo de um sujeito se traduz na experiência de desamparo. A intensificação
da dor física rompe todo vínculo afetivo com o mundo pessoal, e a percepção de um corpo
dolorido, despedaçado, totalmente a mercê do torturador faz desaparecer toda presença do
mundo que não seja centrada na experiência atual. É o momento da demolição, da quebra, da
loucura - metódica e cientificamente induzida - onde o mundo do torturado foi transformado
em uma realidade sinistra, cheia de vergonha, humilhação, urina, horror, dor, excrementos,
corpos e órgãos mutilados [...]. Todos os atos da prisão política estão articulados para levar o
sujeito a uma situação de desintegração. E, em diversos casos, a superação do desamparo, da
demolição ocorre com a submisão, a confissão ou a delação.
181
Como exemplos de demolição se pode citar o caso de um militante comunista que,
torturado, entregou muita gente. Em troca disso conseguiu que “o deixassem caminhar um
pouco” pelas dependências da DII dedicando-se a lustrar sapatos dos funcionários, pelo que
recebia gorjetas e ganhou a confiança do diretor. Nesse terrível processo de desconstrução e
reconstrução, acabou virando torturador, agindo, particularmente, nas “sessões” dos antigos
companheiros de luta.
182
Outro exemplo é o de outro militante comunista que, sob tortura, deu informações
179
SERPAJ, op. cit., p. 146.
180
KORDON, La tortura en Argentina, op. cit., p. 94.
181
VIÑAR; VIÑAR, op. cit., p. 40-43.
182
CALACE, op. cit., p. 18.
604
que levariam à queda de muitos companheiros. A seguir, assumiu uma postura de traidor,
colaborando ativamente com o regime e indo às ruas para entregar pontos e aparelhos. Foi tão
eficiente que ingressou formalmente na Departamento de Información e Inteligencia (DII) em
1980, chegando a estar, inclusive, a serviço dos EUA.
183
Um caso que ajuda a visualizar o paralelismo de situações e de objetivos com o
sistema repressivo brasileiro é o relatado pelo psiquiatra gaúcho Bruno Costa, detido e
torturado na Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo:
Paulo [nome fictício] identificou-se com seu agressor, incorporando-o para o
resto da sua vida. [...] Não abdicou de sua condição de revolucionário, pois
tornou-se um “salvador” de seus companheiros, mas tornou-se um policial a
serviço da ditadura.
184
Segundo Costa, Paulo entendia que, ao entregar seus companheiros, fazia-lhes um
favor, pois poupava-os de serem mortos no futuro:
[...] Àqueles que o chamavam de traidor respondia, com um ar de
superioridade, que sabia o que estava fazendo. Pensava que era o mesmo
Paulo de antes, o revolucionário, mas havia se transformado num
instrumento manipulado, [...] negava que estivesse atuando como um
policial. Não morreu fisicamente, mas desapareceu política e moralmente. A
pessoa de Paulo morreu, pois não era mais o mesmo de antes. [...]
Transformou-se numa caricatura de si mesmo. [...] É isso que as ditaduras
fazem com os seres humanos.
185
Junto com o enlouquecimento (como manifestara o major Arquímedes Maciel), a
indução ao suicídio foi uma outra metodologia utilizada para quebrar a resistência da vítima.
No depoimento citado sobre o torturador Silveira, descreve-se o caso de uma mulher que
apresentava sinais de distúrbios psíquicos e acabou sendo alvo de “tratamento especial”:
[...] había una compañera que estaba muy mal psíquicamente. [...] Le
gritaban, le decían cosas todo el tiempo, buscaban ponerla peor, sobre todo
de noche. La sancionaban, la aislaban, le sacaban la visita, trataban de que
estuviera cada vez peor. Comenzó a hacer intentos de suicidio. [...] metía los
dedos en los enchufes [tomadas]. [...] Venían de noche, yo los vi, la
insultaban, le decían de todo, la hacían arrodillar y besarles las botas. [...] se
ahorcó en una cadena de la ventana. Hicieron todo lo que pudieron para que
se matara.
186
Em diversos casos, a indução ao suicídio como objetivo do sistema repressivo
183
Idem.
184
CUNHA, Franklin; SOUZA, Blau & NEUBARTH, Fernando. (Org.). Médicos (pr)escrevem. Porto Alegre:
Sólivros, s. d.
185
Idem.
605
ocorreu anos depois do acontecimento do fato traumático. É o caso de uma das estudantes
torturadas e violentadas pela unidade do torturador Silveira no caso relatado por Samuel
Blixen: “peleó con sus fantasmas durante años y al final desistió de la pelea: se mató de un
balazo.
187
Plantando o terror no detido, procurava-se irradiar o mesmo através do seu entorno
imediato. A prática massificada da tortura, em relação à dimensão da sociedade, apontou para
a destruição da oposição política ao sistema,
188
considerada subversiva e identificada com
políticos, intelectuais, economistas e outros protagonistas seletos na resistência variada que a
nova ordem enfrentava no conjunto da sociedade. Em realidade, buscava-se impedir qualquer
forma global de questionamento e de confronto ao governo discricionário:
La tortura, la política de torturas, busca efectos secundarios que para el
régimen son de fundamental importancia para su sobrevivencia: el
desaparecimiento total de todos los adversarios políticos, silenciar para
siempre a todo el pueblo, hallar una respuesta de silencio para todas las
disposiciones gubernamentales, terminar para siempre con el diálogo con el
pueblo [...].
189
Portanto, como se infere das palavras de Rey Piúma, procurava-se a submissão da
sociedade.
Na lógica da “pedagogia do terror”, a tortura desempenhava seu papel tanto na
criação de medos e de horror, através das ações que lhe eram próprias, quanto na
complementaridade e na interação com as outras modalidade de TDE. Tratava-se da aplicação
de uma política de intimidação coletiva. Ao castigar à vítima, procurava-se dissuadir os
outros; um efeito expansivo projetava-se a partir dos centros de detenção (clandestinos ou
não), ao conjunto do tecido social. Visava-se paralisá-lo pelo terror, enfraquecendo os
movimentos de resistência ao regime ditatorial. Pode parecer paradoxal, mas a tortura,
utilizada para “fazer falar” (no plano individual), no coletivo buscava fazer calar a todos. Em
síntese, pessoas que nunca foram torturadas, mas que conheceram a existência da tortura,
desenvolveram formas inibitórias do pensamento, da ação ou da atuação.
190
A aplicação de torturas foi justificada, pelo sistema repressivo e seus agentes, de
várias formas. Uma argumentação clássica foi a da “obediência devida”: concordando ou não
com a ordem, era preciso cumpri-la. A indiferença pela situação da vítima e a ocorrência de
186
“No solo fui torturada sino que también fui violada por el coronel Jorge Silveira”. La República, 20/11/03.
187
“El Coronel Jorge Silveira, violador de menores”. Brecha, 07/11/03.
188
O depoimento de Rey é categórico: “Su fin último [da tortura], es la destrucción de la oposición política al
sistema [...] sinónimo de subversión [...] ‘antipatria’ y de terrorista.” REY PIUMA, op. cit., p. 45.
189
Idem.
190
KORDON, La tortura en Argentina, op. cit., p. 95.
606
requintes de sadismo por parte dos executores pioravam a situação das vítimas, mas isto não
deve ser visto como algo externo à política de tortura massiva.
Também havia o entendimento de que o preso era, em última instância, segundo as
diretrizes do governo e do Estado de SN, culpado de traição, era um inimigo e como tal devia
e merecia ser punido, de acordo com as rigorosas regras da “guerra interna”. Se a justificativa
anterior (a tese da obediência devida) assentava-se no princípio da disciplina da caserna, a que
considerava o preso um inimigo visava o convencimento dos funcionários encarregados das
práticas hediondas. Melhor do que alguém agir por cumprimento de uma ordem era agir por
convencimento de que isso era justo e certo.
Outra argumentação justificava a tortura como instrumento necessário e inevitável
em situações de “guerra”, para a obtenção de informação. Esta era a justificativa pragmática
dos estrategistas da “guerra interna”; a degeneração desta em “guerra suja” era lógica,
previsível, necessária e, finalmente, compreensível.
Na medida em que a extensão dessa prática a expôs como uma política repressiva de
Estado, o regime procurou rejeitar toda responsabilidade pela sua aplicação. Quando não teve
mais condições de negá-la, diante das evidências concretas, deslocou a responsabilidade ao
próprio “inimigo interno”. Assim, se o governo teve que ser mais duro e inflexível, a culpa era
da ameaça representada pela subversão. Uma outra saída foi apelar para o reconhecimento de
excessos individuais. O zelo demasiado ou a interpretação equivocada de orientações,
afirmavam as autoridades responsáveis, podiam ter produzido algumas situações consideradas
anômalas, uma espécie de repressão reativa (“agimos respondendo”).
Já no caso dos agentes responsáveis pela aplicação das diversas modalidades de
TDE, estes negavam seu envolvimento ou, quando acuados diante das evidências, acenavam
com o cumprimento de ordens. A vítima, considerada culpada por conspirar, era merecedora
de punição e, mesmo que o agente-torturador discordasse do tipo de punição, ele a aplicava
porque cumpria ordens. A complexidade do TDE é visível. Não só incidiu na forma de
violência brutal contra o “inimigo interno”, produziu medo e pânico no restante da sociedade,
como exerceu um grande poder de convencimento sobre seus agentes repressivos,
“naturalizando” suas ações e funções. Eles se tornaram cúmplices do sistema ao adotarem a
“racionalidade” das suas justificativas e o respeito dos valores da tradição militar (ordem,
disciplina, hierarquia, autoridade), num contexto de violenta postura anticonstitucional e
antidemocrática das Forças Armadas.
Os executores dessas ações foram, evidentemente, cúmplices do TDE. O Dr. Rodolfo
Schurmann Pacheco, nas suas Reflexiones para um juízo ético-médico, expressou que a
607
aplicação da tortura foi uma conduta ilícita convertida em um método indagatório
institucionalizado nos centros de detenção e no tratamento penitenciário. Seus promotores
foram interrogadores, julgadores e funcionários penitenciários - geralmente militares e
policiais; todos contaram com a co-participação ou o encobrimento de médicos, advogados e
políticos partidários do regime. O denominador comum destes agentes ou sujeitos passivos foi
sua condição de “funcionários públicos”.
191
Um último elemento a ser apresentado em relação à política de massificação da
tortura é o envolvimento de profissionais da área da saúde. Efetivamente, a participação de
médicos, psicólogos, psiquiatras e enfermeiros nos estabelecimentos de detenção e nas
sessões de tortura é um fato solidamente confirmado. A contribuição desses profissionais
permitiu maior eficácia nos “interrogatórios” e menos vestígios dos mesmos, ou seja,
forneceram elementos para que a aplicação da “máquina” fosse mais “limpa”. Isto foi
denunciado simultaneamente pela Anistia Internacional e pelo Comitê de Defesa dos Presos
Políticos no Uruguai, num importante dossiê intitulado “Psiquiatria, Medicina e
Repressão”.
192
O Sindicato Médico del Uruguay, posteriormente à ditadura, repercutiu esse fardo
traumático para os profissionais da área.
193
Se é bem verdade que naquele período o sindicato
sofreu intervenção, a Faculdade de Medicina foi agredida e seus docentes destituídos,
perseguidos ou obrigados a renunciar e que inúmeros médicos foram encarcerados, exilados,
assassinados e desaparecidos, o fato que mais abalou o corpo médico foi a constatação
paulatina - após a perplexidade e a descrença inicial - da participação de médicos em atos de
tortura dos prisioneiros do regime.
194
O envolvimento desses profissionais com o aparato repressor ocorreu tanto nas
experiências de “interrogatório” quanto nos procedimentos seguidos nos casos de morte, na
organização da vida carcerária ou no controle sanitário. Nos centros de detenção, médicos,
psicólogos e psiquiatras confeccionavam fichas dos detidos assinalando dados clínicos e
explicitando seus pontos débeis, o que permitia orientar e combinar os tipos de pressões
191
Apud MARTIRENA, Gregorio. Uruguay. La tortura y los médicos. Montevideo: Banda Oriental, 1987. p.
21.
192
Médicos protagonistas. Entrevistas narrativas sobre las condiciones de vida y de ética profesional bajo
la dictadura militar, de Horacio Riquelme. Obra elaborada sob os auspícios do Sindicato Médico del Uruguay e
do Colegio Médico de Chile. Montevideo: Banda Oriental, 1995. p. 184.
193
A Comissão de Ética do sindicato Médico del Uruguay julgou e expulsou por práticas inadequadas contra os
presos políticos, durante o período da ditadura, os médicos Eduardo Saiz Pedrini, Nelson Fornos Vera, Vladimir
Bracco, Hugo Díaz Agrelo e Nelson Marabotto.
194
En la senda de las preguntas correctas, do Dr. Jorge Lorenzo Otero, Presidente del Sindicato Médico del
Uruguay. Apresentação do livro: Médicos protagonistas. Entrevistas narrativas sobre las condiciones de
vida y de ética profesional bajo la dictadura militar, de Horacio Riquelme U. Op. cit.
608
psicológicas adequadas para minar a resistência do sujeito e induzi-lo a colaborar e fornecer
informações.
195
Na prática da tortura, ajudavam a obter maior controle sobre a vítima indicando aos
torturadores a dosagem certa da violência que podiam utilizar. Segundo o relatório do Comitê
de Defesa, todas as atitudes que o torturador deve tomar em relação à sua vítima são indicadas
por psicólogos ou psiquiatras. Como resultado de uma avaliação científica e da percepção das
cárceres políticas como sendo laboratórios de experiências, inúmeras ações são desenvolvidas
pelo TDE como forma de aumentar a eficiência do sistema repressivo. Assim, se há
permissões esporádicas para sessões de cinema ou de esporte, existem para serem suprimidas,
gerando frustração e abatimento, como também ocorria com as supressões de visitas. Por
outro lado, a aplicação de um sistema metódico de sanções e a difusão maciça de informação
falsa visando o desgaste e a confusão mental do detido, também são o resultado da
intervenção especializada dos psicólogos.
Há métodos mais sofisticados como a escuta obrigatória de gritos de tortura que
podem ser os do próprio preso ou de seus familiares ou companheiros, revivendo as sessões
de tortura sofridas ou fazendo-lhe tomar consciência antecipada do horror que lhe espera. A
assessoria dos especialistas estava presente também na adição de drogas às sessões de tortura
(curare, taquiflaxil, haloperidol, LSD, etc.).
196
O pertencimento de muitos desses profissionais às Forças Armadas e a alegação, de novo, da
obediência devida têm sido refutadas como justificativas do colaboracionismo com práticas repressivas. Foram
profissionais que sofreram uma dupla subordinação: uma profissional, decorrente do compromisso assumido na
conclusão dos seus estudos, e outra, militar. Quase sempre foi esta última que se impôs, o que foi utilizado para
justificar a participação na repressão, enquanto alegavam ser portadores de uma função meramente técnica e
dissociada do uso que das suas informações faziam as Forças Armadas.
197
Praticamente, é a retomada da tese da “obediência devida” tão exemplarmente
defendida, diante da Comissão Nacional de Ética Médica, pelo Dr. Nelson Marabotto
195
Calace lembra que na DII a única atenção médica que recebiam os detidos era do doutor Ruben Medina
Ramos, integrante da equipe de torturadores: “[...] siempre estaba, el doctor Medina Ramos para asesorar,
recuperar cuerpos demasiado estropeados y seguir...” CALACE, op. cit., p. 15.
Segundo García Rivas, na Escola de Inteligência, onde se impartia instrução sobre interrogatórios e torturas, o
doutor Scarabino supervisionava qualquer “problema” que pudesse ocorrer. Aliás, o próprio Dr. Scarabino
ministrava aulas de primeiros auxílios. VÍCTOR, op. cit., p. 68.
196
O uso de Curare provoca paralisia progressiva dos músculos, inclusive do sistema respiratório. O Taquiflaxil
provoca paralisia do mesmo tipo, mas permite que o preso esteja plenamente consciente enquanto dedos, mãos,
pernas, olhos, lábios e língua se paralisam. O Haloperidol, usado em altas doses, provoca perturbações
parkinsonianas e o LSD provoca alucinações. Dados do Comitê de Defesa dos Presos Políticos no Uruguai.
Apud VEIGA FIALHO, op. cit., p. 186.
197
Depoimento do médico militar Carlos Rivero: “Yo estaba circunscripto a mis funciones. Yo ignoraba algunos
aspectos y había algunos otros que yo no quería conocer [...] No eran mi asunto. Yo soy un médico.” SERPAJ,
op. cit., p. 302.
609
(personagem reconhecido em diversos depoimentos de sobreviventes), desresponsabilizando
os médicos militares dos seus atos e negando a conivência dos mesmos diante dos fatos
produzidos pela massiva ação repressiva:
La función del médico militar, en cualquier país del mundo y en cualquier
régimen político, es la de asesorar desde el punto de vista técnico al Jefe,
pero éste, en la última instancia, es responsable de lo que se haga o deje de
hacer en su unidad; el médico “es oficial del Estado Mayor del Jefe”, es
decir, es su asesor en los aspectos médicos.
198
Em realidade, verificou-se a subordinação do juramento hipocrático à hierarquia
militar. Até o início da década de 70, a maioria dos médicos da Sanidade das Forças Armadas
era constituída de civis. Posteriormente, a Lei Orgânica das Forças Armadas (Nº 14.157) e o
Art. 5º do Decreto 783/73, submeteram à tutela militar o exercício dos seus direitos e sua
obrigações gremiais.
199
Porém, mesmo o médico militar não deixa de ser médico nem perde
suas responsabilidades éticas por servir às Forças Armadas, e é por isso que os médicos que
participaram, ativa ou passivamente, da tortura de presos políticos violaram normas éticas
essenciais que deviam respeitar. Há uma responsabilidade coletiva por omissão de denúncia
por parte dos médicos militares.
200
Em virtude da profissão que exercem, os médicos têm compromissos humanitários
inalienáveis que transcendem interesses de cunho pessoal, econômico, político ou de
“segurança nacional”. Dentro dos princípios da ética da Medicina, cumprir ordens que
produziram violações aos deveres e obrigações da profissão constituiu uma obediência
indevida.
201
Desde o princípio, houve médicos que orientaram as técnicas de tortura e outros que
colaboraram, de uma ou outra forma, nos métodos de agressão psicológica, assessorando
sobre a maneira de combinar todas as formas para destruir as barreiras de resistência do
indivíduo, e obter , simultaneamente, informação.
202
Na investigação La Prisión Prolongada,
que entrevistou cerca de trezentos ex-presos políticos, especialistas do SERPAJ chegaram a
dados muito importantes quanto à colaboração direta de médicos no ato da aplicação de
tortura em centros de reclusão ou de detenção. Aferiu-se que 58% dos entrevistados
confirmaram a existência de intervenção médica nas sessões de tortura sofridas. Somados aos
12% que reconheceram a intervenção paramédica, obtém-se um índice de 70% de respostas
198
Idem, p. 303.
199
MARTINERA, op. cit., p. 13.
200
Idem, p. 14.
201
Idem, p. 23.
202
IEPALA, op. cit., p. 120.
610
comprovando a presença de pessoal específico efetuando controle médico antes, durante ou
depois da aplicação da tortura.
203
A responsabilização desses profissionais a partir das denúncias das vítimas foi
caracterizada pelas seguintes práticas:
a) entregar aos militares informações sobre os detentos, colhidas a partir de
exames clínicos, com o fim de utilizá-las em torturas e maus tratos;
b) realizar informes médicos ocultando as evidências de torturas;
c) omissão deliberada de assistência médica adequada devida aos presos feridos
ou doentes;
d) assinar falsos atestados de óbito dos presos políticos, ocultando, na maioria das
vezes, o motivo da morte.
e) participação nas sessões de tortura;
f) assessorar sobre a continuidade ou interrupção das sessões de tortura diante da
ameaça ou não de risco iminente de vida das vítimas.
204
Em relação aos psicólogos e psiquiatras, o documento Uruguay: Seguridad Nacional
y Cárceles Políticas, elaborado pela equipe do IEPALA, verificou as seguintes ações
concretas de atuação junto aos organismos de repressão:
a) Criar e manter uma situação de insegurança permanente que produza
distintos tipos de desequilíbrio mediante métodos de hostilização e
despersonalização. As suas orientações foram responsáveis de restruturações
globais; mudanças individuais de cela; inexistência de horários fixos de
comida, recreio e atividades em geral.
b) Estudar, analisar e avaliar o comportamento e as necessidades dos presos,
traduzindo os dados colhidos em quadros estatísticos orientadores para uma
otimização da associação medicamento-trabalho-recreio-esporte, a fim de
que o detido sentisse a falta destas coisas de maneira constante, enquanto se
mantinha a falsa aparência de que não se lhe privava delas.
c) Controlar (sem curar) o desequilíbrio psíquico, quando manifestado, para
transformá-lo em fonte contínua de tensões e desequilíbrios para o grupo.
d) Buscar a colaboração dos detidos com os carcereiros, tornando aqueles
informantes conscientes ou inconscientes (mediante a exploração de
situações de depressão e de tentativas de suicídio, chantageando com
promessa de recreios, redução de penas, etc.).
e) Organizar e administrar fichários detalhados dos detentos com
informações (relações familiares, nível ideológico, potencial de
agressividade, etc.), que permitissem posteriores experimentos com eles.
f) Fomentar o uso indiscriminado de psicofármacos, abrindo, assim,
203
SERPAJ, op. cit., p. 306.
204
MARTIRENA, op. cit.; SERPAJ, op. cit.
611
mediante indução de dependência, um novo flanco de vulnerabilidade do
detido.
g) Pesquisar e aplicar novos métodos de domesticação e desdobramento da
personalidade dos presos políticos.
h) Experimentar medicamentos desconhecidos do mercado.
205
A política da aplicação sistemática da tortura associou-se à política carcerária,
gerando dinâmicas que não foram simples somatórios das duas, e sim novas formas de
controle e domesticação. O papel dos profissionais da saúde que participaram organicamente
desse sistema repressivo mostra outras interfaces que extrapolaram a simples identificação das
responsabilidades do TDE junto à polícia e aos militares. Efetivamente, a rede que sustentou o
regime de SN foi integrada por inúmeros setores militares e civis (nem sempre visíveis) que
por concordância, disciplina e interesses pessoais ou profissionais, estavam inseridos nas
estruturas de dominação.
Para finalizar a descrição e a avaliação da dinâmica dantesca da política de
massificação da tortura, cabe mencionar que, assim como em outras situações, o regime
também se preocupou em eliminar vestígios da sua política repressiva clandestina
documentando álibis de bom tratamento ministrado nos centros de detenção, escritos do
próprio punho das vítimas. Herminia Santana, ex-presa política de 74 anos, também
denunciou, em 2003, ao torturador Jorge Silveira. E acrescentou um dado que expressa o
cinismo do regime, o de que os presos eram obrigados a firmar um documento onde a vítima
reconhecia não ter sofrido maus tratos. Diz Herminia:
Al sacarnos del infierno [local de tortura no Batalhão 13] nos hacían firmar
un papel en el que teníamos que decir que no habíamos sido torturados. Yo
les dije: no firmo, porque eso no es así, aquí me torturaron. Entonces
empezaron de nuevo con la tortura y me decían “tenés que firmar, tenés que
firmar”.
206
Portanto, exigia-se da vítima que assinasse um dos tantos documentos padronizados
que sonegavam a verdade dos fatos e acompanhavam a burocracia repressiva para serem
mostrados como prova contra as denúncias de maus tratos aplicados à população. O atestado
assinado por Hermínia
207
é o seguinte:
E.T. N° 000396
El secretario del Juzgado Militar de Primera Instancia de segundo turno
certifica que: Herminia Santana de Seoane, C.I: 1.392.566, fue condenada
por Sentencia de Segunda Instancia por la comisión de delitos previstos en
205
IEPALA, op. cit., p. 123-125.
206
“A Silveira le gustaba violar a la gente joven y a veces también a la vieja”. La República, 03/11/03.
207
Publicado pelo jornal La República, 03/11/03.
612
los artículos, 60 (V), 60 (I) inc. 6° y 60 (XII), todos del Código Penal
Militar, a la pena de cuatro (4) años de penitenciaría. La antes mencionada se
encuentra en libertad definitiva desde el día siete de setiembre de mil
novecientos ochenta (1980).
Se hace constar además, que se encuentran pendientes de pago las expensas
carcelarias (art. 119 y 120 de la Ley 14.416 del 28 de agosto de 1975). A
solicitud de la parte interesada y al solo efecto de ser presentado ante las
autoridades del Regimiento de Caballería N° 6, se expide el presente en
Montevideo a los veinte días de octubre de mil novecientos ochenta.
El secretario.
Tte. 1° (JM) Roberto Cabrera.
Veja-se que, além de uma confissão forçada, o documento informa sobre outra
perversão do sistema repressivo estatal, a cobrança por serviços prestados ao detento
(alimentação, estadia, etc.). Tal fato constava, efetivamente, no artigo 120 da Lei 14.416,
aprovada pelo Conselho de Estado:
Art. 120 - La obligación de indemnizar al Estado los gastos de alimentación,
vestido y alojamiento durante el proceso se liquidarán en el momento que
cese la detención del encausado, siempre que sea el resultado de una
sentencia condenatoria ejecutoriada.
Anteriomente, o ex-tenente Cooper também se havia manifestado quanto àquela
preocupação “administrativa” preventiva do regime :
P: ¿Hay algún procedimiento de despedida de un detenido en el cuartel?
R: El procedimiento de despedida al cabo del período de detención en un
cuartel
es algo que está implícito en la liberación del mismo o en la
evacuación del mismo y que
se cumple permanentemente y es la firma por
parte del detenido de una declaración de buen trato. En otras palabras, en la
misma el
detenido expresa que durante su permanencia en ese lugar, fue
objeto de buen trato de parte de los militares.
208
[grifo meu]
Os fatos relatados por Cooper e por Santana são mais um exemplo de como o regime
se preocupava em documentar afirmações (falsas), mas que servissem para, externamente,
negar a campanha de acusações contra a ditadura. Inserem-se dentro da mesma linha cínica da
informação oficial que afirmava que os reféns eram tratados como em hotéis de cinco estrelas.
Eram documentos para negar internamente as acusações previsíveis de maus tratos que, em
um futuro ainda indefinido (pós-ditadura), denunciariam a tortura como crime, exigindo
justiça.
208
SERPAJ. Testimonio Julio Cooper. op. cit.
613
CAPÍTULO 7
A POLÍTICA DOS DESAPARECIMENTOS E
O TERROR DE ESTADO
No hay desaparecidos en nuestro país.
Por lo menos no en lo que se entiende normalmente por ese término.
General Rapela (1984)
1
De Uruguay a los argentinos nos han cobrado todo [...].
Pero que no nos adjudiquen esas desapariciones.
A los que no murieron en Orletti nosotros los devolvimos.
Militar argentino ao jornal La República.
2
7.1 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA POLÍTICA DE
DESAPARECIMENTOS
A América Latina foi uma das regiões onde a política de desaparecimento como
método de Terror de Estado se impôs com maior impacto e eficiência. Tudo indica que surgiu
em conseqüência da doutrina contra-revolucionária elaborada pelos militares franceses a
partir das experiências coloniais, na Indochina e na Argélia. Organizações de direitos
humanos reconhecem que, desde os anos 60, a prática de desaparecimentos começou a
manifestar-se na Guatemala, palco inicial dessa modalidade repressiva na região, sobretudo a
partir da criação da Polícia Judicial, força especial de segurança que agia sem ordem judicial e
tinha poder de prisão de suspeitos que eram mantidos incomunicáveis por períodos
indefinidos. A Guatemala também foi “laboratório” de atuação de esquadrões da morte, que
marcavam suas ações com cartazes onde se destacava uma mão preta (daí o nome Mano
Negra dado a esses grupos armados). Tais cartazes eram parte da guerra psicológica que
procurava dissuadir a população de ajudar as organizações consideradas subversivas.
3
No
1
RAPELA apud CAETANO, Gerardo; RILLA, José. Breve historia de la dictadura. 2ª ed. Montevideo: Banda
Oriental, 1998. p. 139.
2
El “informante” que permitió encontrar a Simón Riquelo confirma el último vuelo de los uruguayos de Orletti.
Brecha, 09/06/02.
3
“Testemunho de Donald Duncan”. TRIBUNAL RUSSEL. Sesiones de Estocolmo y Roskilde. Madrid: Siglo
XXI, 1969, p. 235.
614
caso guatemalteco, como depois em outros países da América Latina, os desaparecimentos
vinham acompanhados de outras modalidades repressivas como seqüestros, tortura e ação
ostensiva de grupos de extermínio.
A Comissão de Esclarecimento Histórico, em 1996, concluiu que, após mais de trinta
anos de conflitos internos e violenta repressão, mais de duzentas mil pessoas foram mortas.
Desse total, quase trinta mil foram desaparecidas (sessenta mil segundo as organizações de
direitos humanos) e cerca de 440 aldeias indígenas foram eliminadas do mapa pela repressão
estatal. A comissão informou ainda que 93% dos casos foram de responsabilidade das forças
de segurança do Estado. Cabe salientar que o governo dos EUA, de crescente ingerência
interna desde que liderou a deposição do governo Jacobo Arbenz, em 1954, defendendo os
interesses da United Fruit, apoiou e sustentou os governos autoritários posteriores, como deu
suporte encoberto às unidades paramilitares ilegais de cunho estatal.
4
O desaparecimento de opositores ao regime como metodologia repressiva não foi
invenção original dos países da América Latina. Fazia parte da guerra psicológica que vinha
sendo travada na península indochinesa e que, desde os anos 50, os franceses intensificaram
na experiência colonial da Argélia. Missões francesas divulgaram, posteriormente, todo esse
conhecimento e know how acumulados a militares de outros países, inclusive os dos EUA. A
guerra travada pelos EUA no Vietnã foi o palco central de refinamento dessa prática, por
parte dos estrategistas militares norte-americanos, e o precedente mais imediato das políticas
desencadeadas pelas ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul. Mas um dos antecedentes
seminais foi o seqüestro e transporte de presos políticos, “no amparo da noite”, nos territórios
ocupados pela Alemanha nazista, que visava quebrar a resistência dos partisans e implantar o
terror no entorno das vítimas, de acordo com o Decreto Noite e Nevoeiro de 1942.
Precisar os antecedentes históricos do desaparecimento forçado de pessoas por parte
do Estado (agentes, pessoas ou grupos a seu serviço) é tarefa difícil. O direito internacional
humanitário se preocupou com o tema em fins da Segunda Guerra Mundial, mas
exclusivamente em relação aos casos de “desaparecimento em combate”, ignorando o
fenômeno do desaparecimento forçado de civis como política repressiva desencadeada pelo
nazismo e seus aliados contra as populações dos territórios ocupados.
4
CALLONI, Stella. Operación Cóndor: los años del lobo. Buenos Aires: Peña Lillo, 1999. p. 16.
615
7.1.1 - Um caso em aberto: os “desaparecidos” da Espanha franquista
Ao final da Segunda Guerra, os exilados republicanos espanhóis, que lutaram nas
filas antifascistas contra o nazismo, solicitaram aos aliados que acolhessem o pedido de
incluir a ditadura franquista entre os aliados do Eixo. Se isto tivesse ocorrido, ter-se-ia dado
visibilidade para uma prática de desaparecimento cronologicamente anterior àquelas
desencadeadas pela Alemanha nazista. Desde o levante da direita espanhola e do início da
guerra civil decorrente, em 1936, a Espanha foi sacudida por um conflito que teve, entre
outras modalidades de violência, os “passeios”, ações em que simpatizantes de uma facção
eram levados pelos partidários da outra para caminhadas, geralmente em horários noturnos,
em lugares ermos, despovoados, e então eram executados. O que durante muito tempo foi
considerado uma prática comum das vicissitudes da violência espanhola (vinganças pessoais,
revanchismos, desavenças da política local, etc.), acabou se configurando, posteriormente,
como situações desproporcionais entre os dois campos em confronto.
Se é bem verdade que do lado republicano isso acontecia, era em proporção muito
inferior em comparação ao lado franquista, além de ser motivado por questões individuais, de
grupos políticos ou como desencadeamento de uma onda de violência popular. Não era,
definitivamente, uma política de governo da Frente Popular, a qual, podia organizar
julgamentos e até condenar a morte alguns acusados de traição ou de sabotagem. Mas não se
pode esquecer que era o poder constituído, democraticamente eleito, que reagia diante da
traição, da insurreição golpista das Forças Armadas e da forte presença de forças invasoras.
Mas o fazia publicamente, como Estado agredido. O que pode ser ponderado é que, nas
regiões onde o golpe franquista foi resistido, grupos radicais que assumiram o comando local
em nome da revolução e do antifascismo, promoveram perseguições e execuções. Mas isto foi
decorrência também do esfacelamento regional do governo da Frente Popular.
Já no território que, paulatinamente, foi caindo nas mãos do franquismo, tornavam-se
cada vez mais concretas as evidências de que as execuções eram uma política deliberada de
Estado praticada pelo Exército e pela Falange Espanhola e justificada pela Igreja Católica,
como aponta o historiador britânico Paul Preston; ou seja, consistia numa verdadeira limpeza
dos simpatizantes da República.
5
Curiosamente, só nos últimos anos a sociedade espanhola
5
Ver: “Los Desaparecidos”, de Manuel Vázquez Montalbán, Interviú, 11/12/00. “Las llagas del franquismo”, de
Lisandro Otero, Rebelión, 20/06/04. Também os documentos “La represión en ambas zonas, características,
estudios y fiabilidad. Memoria Republicana”, elaborado pelo Foro por la Memoria em junho de 2004.
Disponível em: <http://www.pce.es/foroporlamemoria> Acesso em: 02 jul. 2004; La cuestión de la impunidad
en España y los crímenes franquistas, do Equipo Nizkor & Derechos Human Rights, de 01/05/04. Disponível
616
começou a ter noção dos milhares de cidadãos que foram seqüestrados, “passeados” e
enterrados em valas comuns e desconhecidas; pessoas desaparecidas que não foram mortas
em combate, mas retiradas dos cárceres, onde estavam presas sem julgamento, ou que
estavam na cota dos 10% de suspeitos de “rojillos” a serem eliminados, estabelecida pelos
oficiais golpistas quando suas tropas entravam nos vilarejos.
6
Portanto, os restos mortais das
vítimas acabaram sendo, em última instância, desaparecidos pelo franquismo. Informações e
denúncias de existência de fossas comuns, fuzilamentos massivos, existência de milhares de
famílias que perderam integrantes durante os anos do conflito interno e nos anos posteriores,
de feroz ajuste de conta patrocinado pelo centro do poder estatal, abalam a sociedade
espanhola mesmo após quase 70 anos após o início do conflito interno.
Setores importantes da sociedade, organizações de direitos humanos, fóruns em
defesa da memória e associações democráticas têm assumido o que passaram a considerar
como o caso dos “desaparecidos” espanhóis (entre os quais, o mais emblemático é Federico
García Lorca). A Asociación para la recuperación de la memoria Histórica levantou mais de
2 mil casos de desaparecimento de pessoas vítimas da repressão franquista entre os anos de
1936 e 1949. A denúncia e descoberta de valas comuns da Guerra Civil levaram, em 2002, o
Grupo de Trabalho sobre Desaparições Forçadas, vinculado ao Alto Comissariado para os
Direitos Humanos da ONU, a incluir a Espanha na lista de países que possuem
desaparecidos.
7
Uma das modalidades de desaparecimento sobre as quais se estão voltando pesquisas
recentes é o seqüestro e desaparecimento de mais ou menos 12 mil crianças, filhas de
republicanos executados pelo regime de Franco. Considerando a ausência do pai (morto,
perseguido, clandestino ou exilado) e o esfacelamento das famílias republicanas, essas
crianças foram obrigadas a acompanhar as mães quando encarceradas. Se estas eram
condenadas a penas muito longas ou à pena de morte, procedia-se à expropriação imediata. A
Igreja Católica colaborou e cooparticipou desta ação, encobrindo o encaminhamento das
crianças a orfanatos católicos e a famílias simpatizantes da nova ordem.
8
Há dados que
apontam que, em 1943, havia cerca de 12.042 crianças nessas condições e, portanto, sob tutela
do Estado, em centros religiosos e em estabelecimentos públicos. As crianças desaparecidas
em: <http://www.derechos.org/nizkor/espana/doc/impesp.html> Acesso em: 28 jun. 2004; e “La recuperación de
la memoria antifranquista”, de Carlos Cué, El País, Madrid, 20/09/04.
6
“¿Desaparecidos ou desperdigados?”, de Antonio Cruz González. Rebelión, 14/02/04.
7
“Las fosas de la represión fascista colocan a España en la lista de desaparecidos de la ONU”. Rebelión,
21/06/03.
8
Ley de 23 de noviembre de 1940 sobre Protección de Huérfanos. In: VINYES, Ricard; ARMENGOU, Moutse;
BELIS, Ricard. Los niños perdidos del franquismo. Barcelona: Plaza Janés, 2002. p. 218-222.
617
da Espanha não foram assassinadas - pelo menos não há prova ou testemunho disso -, mas
tampouco foram devolvidas às famílias ou aos pais verdadeiros (em caso de sobrevivência
destes). O Estado as fez desaparecerem, reeducou-as segundo os preceitos do novo regime e
expropriou-lhes sua origem, sua história e sua identidade.
9
É o que apontam Vynes,
Armengou & Belis:
[nuestros niños perdidos] Lo son en cuanto que “perdida” significa la
privación del derecho que tenían a ser formados por sus padres o familiares,
los cuales perdieron a su vez el derecho de criarlos según sus convicciones.
[...] también significó la desaparición física por un largo período de tiempo,
o para siempre. Este conjunto de situaciones fue el resultado de prácticas de
sustracción violenta amparadas por una legislación de naturaleza ideológica,
pero encubiertas y desfiguradas por una aparente intención misericordiosa de
protección a estos niños, una actuación imposible de realizar sin la muy
activa intervención de la Iglesia católica.
10
Comparando com o seqüestro e apropriação de crianças praticado pela ditadura
argentina das Juntas Militares, os autores concluem que, no caso espanhol, o desaparecimento
resultou da depuração produzida pelo Estado entre os vencidos. Tal ação não foi clandestina,
como no caso platino, mas foi um processo institucionalizado, legal, administrativo e
burocrático, perpetrado pela nova ordem e facilitador dos desaparecimentos.
11
Até então, a sociedade espanhola reconhecia como seus únicos cidadãos
desaparecidos somente os espanhóis atingidos pela voragem dos anos de chumbo latino-
americanos. O debate sobre a legitimidade da jurisdição espanhola para atuar nos crimes
cometidos contra seus cidadãos no Cone Sul conscientizou parte da sociedade do país sobre o
anestesiamento da sua própria história. Deste modo houve uma (re)descoberta de uma
situação específica vinculada à Guerra Civil e à ditadura franquista. Desde então,
apropriando-se do conceito e da identidade dessa figura histórica e concreta (a “ausência
presente”) do desaparecido, resultado das práticas repressivas das experiências latino-
americanas de Segurança Nacional, a sociedade espanhola vem travando a luta pela
recuperação da memória e da história das vítimas do TDE patrocinado pelo franquismo.
12
9
“España: Los 12 mil desaparecidos de Franco”. Rebelión, 21/04/02.
10
VINYES, ARMENGOU, BELIS, op. cit., p. 60.
11
Idem, p. 81.
12
O Congresso espanhol aprovou, em 20/11/02, por unanimidade, uma resolução de condenação ao franquismo e
de reconhecimento moral das vítimas da Guerra Civil Espanhola e do regime de Franco. Entre as medidas
aprovadas, está o apoio institucional às iniciativas destinadas à exumação de cadáveres não identificados do
conflito interno enterrados em fossas comuns espalhadas por todo o território espanhol.
618
7.1.2 - O Decreto Noite e Nevoeiro nazista
No caso das ditaduras de SN do Cone Sul, dois planos de ação repressivos se
estabeleceram: um publicamente legislado e outro de conteúdo secreto, portanto, clandestino,
gerando total impunidade. O não reconhecimento das ações repressivas e a
desresponsabilização sobre o destino das pessoas foram uma reedição das técnicas nazistas,
particularmente daquelas que resultaram da aplicação do Decreto Noite e Nevoeiro (Nacht
und Nebel Erlass).
13
O argentino Eduardo Luis Duhalde, especialista em direitos humanos, destaca que o
que aproxima essa modalidade repressiva específica do nazismo à dinâmica do TDE
promovido pelas ditaduras de Segurança Nacional (com ênfase no caso argentino) foi o
caráter altamente formal da metodologia empregada: ordens superiores, infra-estrutura,
logística, etc. E, sobretudo, na ação de “fazer desaparecer” em situações nas quais a repressão
foi totalmente ilegal e ilegítima.
14
Um antecedente direto do Decreto Noite e Nevoeiro, dentro do próprio nazismo, foi a
aplicação da ordem militar conhecida como “balanço do terror”. Em 1940, durante a ocupação
territorial de vários Estados europeus, Adolf Hitler ditou essa ordem que reprimia
severamente as execuções de autoridades e soldados alemães por parte das resistências locais.
Para cada militar alemão morto e de acordo com sua patente militar, exigia-se, como
represália, a execução de um número determinado de partisans e de civis. Essa ordem
implicava, na prática, a apreensão de reféns e a estruturação de um eficiente sistema de
desinformação sobre os mesmos, tanto no que se referia ao lugar de detenção quanto às
condições em que se encontravam. Essa ordem de Hitler é considerada, pelas organizações de
direitos humanos, como o primeiro precedente formal e institucional do sistema de
desaparição forçada.
Em 1941, Hitler colocou em prática outro decreto que estabelecia métodos para fazer
desaparecer os prisioneiros: o desvanecimento na noite e no nevoeiro. Hitler pensou que a
desaparição seria mais importante do que a execução dos “acusados” de conspiração, pois
haveria a vantagem de gerar menor resistência e evitar mártires. Tal decisão era tomada em
13
Esta afirmação está baseada nas reflexões de DUHALDE, Eduardo Luís. El Estado terrorista argentino.
Quince años después, una mirada crítica. Buenos Aires: Eudeba, 1999; FRONTALINI, Daniel; CAIATI,
María Cristina. El mito de la Guerra Sucia. Buenos Aires: CELS, 1984; D’ANDREA MORH, José L.
Memoria debida. La Escuela de las Américas y otras enseñanzas. In: FUERZAS ARMADAS Y
DERECHOS HUMANOS. ¿Es posible alcanzar el equilibrio? Sevilla: Gala Rebés/Mino y Dávila Editores/Al
Sur del Sur/Universidad Pablo de Olavide, 2000.
14
DUHALDE, op. cit., p. 52.
619
um contexto muito preciso. O ataque alemão à URSS produzira, como conseqüência, a
mobilização das organizações comunistas dos países ocupados na Europa Ocidental que, até
então, tinham ficado de “mãos amarradas” por causa do Tratado Molotov-Ribentrop (Pacto de
Não-Agressão Soviético-Alemão). Tais organizações passaram a desenvolver e intensificar
atividades de sabotagem e confronto contra as forças invasoras. A situação da França ocupada
se tornou paradigmática com o aumento considerável das operações do movimento de
resistência.
O procedimento de prender, julgar e condenar os responsáveis dos atentados foi
avaliado como moroso e ineficaz. A aplicação de penas de confinamento não evitava a
continuação de tais ações e não produzia efeitos psicológicos paralisantes entre a população
civil que servia de suporte e cobertura à resistência. Diante da persistência das ações de
sabotagem dos partisans, a cúpula militar alemã recomendou uma metodologia de “guerra
suja” para reverter esse quadro nas zonas ocupadas.
Nesse momento, a Alemanha enfrentava o grande desafio de deslocar o maior poder
de fogo possível para a frente russa sem perder capacidade de controle sobre os territórios
ocupados no oeste europeu. Para isto, era necessário enfrentar com rigor a resistência, pois
sua ação podia diminuir a confiança nazista e gerar insurreições de grande proporção; assim,
tornava-se essencial uma ação peremptória para eliminar os focos de contestação. O
Comandante em Chefe do Exército alemão, general Whilhelm Keitel, recomendava, em 23 de
julho de 1941:
Em vista da grande extensão das áreas ocupadas no Leste, as forças
disponíveis para propósitos de segurança somente serão suficientes se toda
resistência for castigada, não dentro de um processo legal dos culpados,
senão através da disseminação de tal terror [...], que toda disposição de
resistência entre o povo seja eliminada.
15
Hitler expediu, em 7 de dezembro de 1941, como ordem do Alto Comando do
Exército e assinado por Keitel, o Decreto Noite e Nevoeiro. A adoção do mesmo era
justificada pela necessidade de mudar o tratamento para com os culpados de violência contra
o Reich e as forças de ocupação. Encarceramentos e condenações a trabalhos forçados eram
vistos como inadequados para a defesa dos interesses da Alemanha e sinal de debilidade.
Exigiam-se, então, formas de dissuasão mais efetivas e duradouras. A diretriz de Keitel era
muito categórica a esse respeito:
Em tais casos a servidão penal ou mesmo uma sentença de prisão perpétua
15
Citado por DIETRICH, Heinz. “Chile y la ‘innovación básica’ del Führer. Rebelión, 13/09/03.
620
com trabalhos forçados serão considerados sinal de fraqueza. A repressão
eficaz e duradoura só pode ser obtida por meio da sentença de morte, ou
tomando-se providências que deixarão a família e a população incertas
quanto ao destino do infrator.
16
O objetivo do decreto era claro: deter as operações subterrâneas nos territórios
ocupados. A França acabou sendo o país mais visado, mas o decreto também foi aplicado na
Bélgica, Dinamarca, Noruega e Holanda. A “recomendação” do decreto era contundente. Se
não houvesse certeza de que, nos países ocupados, os suspeitos de pertencerem às redes de
sabotadores seriam condenados a morte e executados em até oito dias, devia-se apelar para o
recurso do desaparecimento (seqüestro) na “névoa da noite”, a transferência daqueles para
território alemão e a omissão de qualquer notícia a seu respeito, mesmo em caso de morte.
Considerava-se que esta modalidade produziria maior efeito intimidatório entre a população
civil, diferentemente do que estava ocorrendo, até então, com as condenações e
encarceramento dos “culpados” nos próprios países onde haviam ocorrido os atentados.
De acordo com a SS, Nacht (noite), correspondia ao esquecimento da vítima; Nebel,
nevoeiro, era a fumaça onde aquela se volatilizava completamente, o nevoeiro do ignorado.
17
Nisso consistia o denominado Princípio do Führer (Führer Prinzip) ou, nas palavras de Heinz
Dietrich, a “inovação básica” do Führer, como explicitava a contra-inteligência nazista, em
02/02/42, ao avaliar o decreto que permitia a desaparição dos acusados sem deixar rastro e
proibia fornecer informação de qualquer natureza sobre o paradeiro e destino dos acusados.
18
Ou seja, essas pessoas deviam ser evacuadas para o Reich, onde eram processadas por um
tribunal especial. Se isso não fosse factível, então eram preventivamente internadas em um
campo de concentração até o fim da guerra. Como o objetivo maior deste decreto era deixar
os familiares e os amigos do preso na incerteza sobre sua localização, era proibido, ao mesmo,
escrever cartas e receber visitas ou pacotes; por isso, em caso de morte, a família não era
comunicada. Portanto, os prisioneiros “noite e nevoeiro” (NN
19
), uma vez seqüestrados e
levados à Alemanha, acabavam completamente isolados do mundo externo. A entrega do
corpo para ser enterrado no lugar de origem da vítima não era recomendada, pois, segundo
afirmavam as diretrizes da contra-inteligência nazista, podia gerar manifestações indesejáveis.
Em resumo, a “inovação básica do decreto de Hitler era a criação do sistema de desaparições
forçadas”.
20
16
KAHN, Leo. Julgamento em Nüremberg: epílogo da tragédia. Rio de Janeiro: Renes, 1973. p. 132.
17
DIETRICH, op. cit.
18
Idem.
19
As letras NN eram costuradas no uniforme desses prisioneiros.
20
Idem.
621
A administração SS passou a designar todo detido condenado à deportação e à
desaparição com as letras NN. Posteriormente, essa designação se aplicou a outros presos
concentracionários. A sigla NN era utilizada, na Alemanha, anteriormente ao advento do
regime nazista. Um dicionário de 1881, o Dutch Wörterbuch de Jacob et Wilhem Grimm
definiam N.N. como sendo sinônimo de nome ignorado (latim: Nomen Nescio) ou que não
podia ser mencionado. Da mesma forma, o Grande Dicionário Alemão-Francês (Le Grand
Dictionnaire Allemand-Français) de Birman et G. Kister, publicado em 1920, também
associava a sigla N.N. a nomen nescio. Tudo indica que, no período da ascensão do nazismo,
o significado NN original teve uma interpretação popular figurada que simbolicamente
representava a mesma situação. Assim teria surgido a associação do NN com Nacht und Nebel
(Noite e Nevoeiro). O nome dado ao decreto hitleriano foi alusivo a essas situações. O mesmo
significado dessas duas letras continua sendo utilizado, atualmente, na Alemanha e em outros
países. Há indícios de que, durante os regimes de SN na Argentina e no Uruguai, foram
enterrados corpos de desaparecidos sob a sigla NN (no caso, com o sinônimo de Ningún
Nombre).
Roger Manvell
21
, no seu livro SS e Gestapo: a caveira sinistra, informa que, dentro
do nazismo, os homens que executavam o Decreto Noite e Nevoeiro visavam promover o
medo no seio da população. Quanto às vítimas, elas se sentiam mais indefesas diante do
desconhecimento do “tribunal” que deveriam enfrentar quanto das acusações imputadas. Da
mesma forma, como viria a ocorrer futuramente no Cone Sul, era comum que as detenções
fossem acompanhadas do confisco de propriedades e/ou multas de caráter punitivo.
22
Portanto, através desse decreto, os perigosos inimigos que enfraqueciam o controle
nazista nos territórios ocupados sofreram uma experiência inédita: não a da aplicação da
sentença de morte, mas a angústia implacável da incerteza na imersão em uma situação e
cenário explicável pelas metáforas da noite e do silêncio intermináveis, do homem que
desaparece na obscuridão para não mais ser visto. Concretamente, virava um prisioneiro sem
nome, de localização desconhecida e de condição de vivo ou morto, totalmente ignorada pela
própria família; era um NN. Na prática, deve-se reconhecer que, mesmo vivo após seu
seqüestro, o fato de não ter deixado rastro tornava sua situação de sobrevivência incerta; por
isso, diz-se que os prisioneiros do decreto “Noite e Nevoeiro” (concentrados nos campos de
Natzweiler e Gross-Rosen) estavam aniquilados em vida.
23
21
MANVELL, Roger. SS e Gestapo: a caveira sinistra. Rio de Janeiro: Renes, 1974.
22
Idem.
23
FRONTALINI, CAIATI, op. cit., p. 92.
622
Cabe registrar que o Tribunal de Nüremberg concluiu que as modalidades
repressivas derivadas da aplicação do Decreto Noite e Nevoeiro foram Crimes de Guerra e
Crimes contra a Humanidade, portanto, crimes de direito internacional. Wilhelm Keitel foi
responsabilizado pelos mesmos (entre outras acusações) e condenado à morte.
24
Os arquivos
nazistas apreendidos no final da guerra confirmaram a existência de vastíssima documentação
a respeito de ordens envolvendo ações vinculadas à aplicação do Decreto Noite e Nevoeiro,
especialmente em relação à manutenção de rigoroso segredo quanto aos locais em que as
vítimas eram enterradas.
25
Uma outra prática de extermínio com uma lógica semelhante foi a desenvolvida
pelos Einsatzgruppen (Grupos de Ação Especial), unidades operativas encarregadas da
eliminação de judeus, partisans e “elementos perigosos” no leste europeu; dada sua tarefa,
poderiam ser melhor definidos como Esquadrões de Extermínio. Seu antecedente direto foi
uma unidade de agentes da Gestapo que haviam combatido, juntamente com a polícia
austríaca, elementos antinazistas logo após a anexação da Áustria pela Alemanha (Anschluss).
Essa experiência foi rapidamente incorporada através da formação de unidades especialmente
organizadas pela chefia das SS
26
(Himmler e Heydrich) para acompanhar o avanço das tropas
alemãs na Tchecoslováquia (1938) e na Polônia (1939). No primeiro caso, foram instrumento
de repressão contra toda e qualquer tentativa de resistência da população civil, desencadeando
uma depuração política através do terror. No caso polonês, suas atribuições começaram a
assumir proporções maiores. Embora sua principal atribuição fosse a concentração da
comunidade judia-polonesa em ghettos, suas ações não se limitaram a isso.
Para evitar atritos resultantes da sobreposição de ordens, ações ou comandos, a
cúpula de poder nazista delimitou que o Exército não podia interferir nas zonas de retaguarda
e nas atividades dos Einsatzgruppen. A tarefa que Himmler havia encomendado a essas
unidades era o extermínio da intelligentsia polonesa; imaginava-se que, uma vez eliminada as
lideranças e a elite político-militar deste país, seria mais fácil derrotar a resistência. Tal
política de extermínio adquiriu um caráter massivo, e, finalizado seu objetivo mais
estratégico, a ação daquelas unidades concentrou todo seu poder de fogo sobre os judeus
poloneses.
24
LAZARD, Didier. O Processo de Nuremberg. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1965. p. 163; DUHALDE,
op. cit., p. 54.
25
SHIRER, William. Ascensão e queda do III Reich. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. V. 4, p. 39-
40.
26
SS: Sturmabteilung (Tropas de Proteção). Unidade originalmente formada como escolta de Hitler, em 1925.
Em 1939, foi transformada numa numerosa organização sob o comando de Heinrich Himmler, passando a
controlar a polícia, os sistemas penais, empreendimentos econômicos e unidades militares (as Waffen SS).
623
Ao iniciar a campanha militar contra a URSS, os Einsatzgruppen foram incumbidos
de acompanhar o avanço da ofensiva dos exércitos nazistas para executar uma ação de
limpeza racial e política. Em julho de 1941, Himmler recebeu a incumbência de impor a
ordem nos territórios soviéticos ocupados, com orientação de abandonar práticas jurídicas
legais e apelar para as ações eficientes do terror.
27
Organizados em quatro grandes unidades
(A, B, C e O)
28
e constituídas por agentes das SS e da Gestapo, os Einsatzgruppen tinham
ordens precisas: eliminar judeus e comissários políticos soviéticos (calcula-se em dois
milhões o número de suas vítimas).
29
Efetivamente, a missão deles era matar todos os
membros e funcionários do partido comunista assim como judeus, ciganos e os considerados
“doentes incuráveis”. Essas unidades se deslocavam com eficiente agilidade; iam na linha do
front para não dar tempo de fuga às vítimas. Sua ação dependia do apoio logístico e da
colaboração do Exército, o qual se comprometia a garantir o abastecimento de combustível e
de subsistências, além de colocar à disposição sua rede de ligações.
30
Para justificar a eliminação das lideranças e dos funcionários soviéticos, o Alto
Comando alemão difundiu que “deles se podia esperar que impusessem especial crueldade
aos prisioneiros de guerra alemães”, ou seja, era uma condenação preventiva por parte das
autoridades do Reich, por isso, os comunistas “deviam ser fuzilados ao serem presos”.
31
No
detalhamento dos inimigos considerados mais perigosos, Heydrich arrolou:
1) Altos funcionários do Comintern (Internacional Comunista, a organização
internacional do Partido Comunista); 2) funcionários de nível médio e
superior e “extremistas” do Partido Comunista, do Comitê Central e dos
comitês distritais e provinciais; 3) os comissários do povo; 4) judeus a
serviço do partido ou do governo; assim como outros elementos extremistas
(sabotadores, propagandistas, atiradores, assassinos, agitadores, etc.)
32
Portanto, foi em território soviético onde os Einsatzgruppen tiveram o campo
completamente livre para atuar. Acompanharam o avanço do exército, eliminando todo
suspeito de pertencer às listas que incluíam comissários políticos, partisans, judeus,
27
DELARUE, Jacques. História da Gestapo. 3
a
ed. Rio de Janeiro: Record, s. d.
28
Num total de quase 3.000 homens, os quatro Einsatzgruppen, cada um composto de 500 a 900 soldados,
dividiam-se em quatro ou cinco Einsatzkommandos (comandos de operação), com 70 a 100 homens; estes, por
sua vez, dividiam-se em Sonderkommandos, com 20 a 30 homens. CYTRYNOWICZ, Roney. Memória da
Barbárie: história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Nova Stella/Editora da
Universidade de São Paulo, 1990. p. 60.
29
SHIRER, op. cit., p. 43-45.
30
DELARUE, op. cit.
31
RHODES, Richard. Mestres da morte: a invenção do holocausto pela SS nazista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003. p. 27.
32
Idem.
624
insurgentes e “elementos indesejáveis”, categoria que permitia executar qualquer indivíduo.
33
Diferentemente do que ocorrera até então na Europa ocidental, o conflito bélico que a
Alemanha desencadeou no leste da Europa virou uma guerra total, de um caráter destrutivo
desconhecido até então, tanto na dimensão material e militar quanto humana. Isso fez com
que as políticas repressivas contra a população civil deixassem de ser seletivas, como no oeste
europeu, e assumissem o caráter de extermínio generalizado, o que ajuda a entender o
contraste quantitativo entre o número de vítimas produzidas na região se comparado com os
países ocidentais da Europa. Nos territórios soviéticos, o nazismo mudou sua política
repressiva. Aqui não se tratava de deslocar milhões de judeus para campos de concentração na
Europa central, e sim de eliminá-los no próprio lugar. E o caráter seletivo da aplicação do
Decreto Noite e Nevoeiro perdia sentido enquanto mecanismo de repressão das resistências
locais, porque, na URSS, todo civil foi visto como comunista, resistente e sabotador. Não se
tratava mais do desaparecimento de indivíduos ou pequenos grupos políticos ou de partisans,
mas de aldeias inteiras eliminadas, apagadas do mapa.
34
A semelhança do procedimento derivado da aplicação do decreto “Noite e Nevoeiro”
com a modalidade dos desaparecimentos promovidos pelos regimes de SN do Cone Sul chega
a ser surpreendente. Manvell descreveu o funcionamento do operativo decorrente daquele
decreto da seguinte forma:
[...] quaisquer pessoas a quem as autoridades julgassem perigosas para a
segurança alemã, independente da nacionalidade, podia ser presa e
desaparecer “na noite e no nevoeiro”, de modo que não pudesse haver
qualquer tipo de julgamento ou inquirição capaz de despertar sentimentos
locais. [...] A prisão, quando feita pela Gestapo, ocorria repentinamente e
quase sempre a horas mortas. O prisioneiro era arrastado de casa, jogado
dentro de um veículo e rapidamente levado para local ignorado. Nenhuma
súplica dos membros da sua família ou de quem quer que intercedesse em
seu benefício faria com que se conseguisse descobrir o que acontecera com
ele, ou mesmo seu paradeiro. Se fosse julgado, ele o seria na Alemanha, e
acabaria recebendo o tratamento dispensado aos prisioneiros da Gestapo Na
verdade, se não fosse sumariamente executado, não seria mais que um
número, definhando no fundo de uma cela da Gestapo, sujeito a
interrogatório intermitente e à tortura, ou então condenado a morrer devagar
num campo de concentração. [...] Nenhuma autoridade, na França ou no país
de origem do prisioneiro, qualquer que fosse ele, admitia conhecer alguma
coisa a respeito do que lhe tivesse acontecido. Nem a autoridade civil nem a
militar era responsável.
35
A semelhança de procedimentos chega a ser assustadora. Se no texto citado forem
33
WILLIAMSON, Gordon. Las SS: instrumento de terror de Hitler. 2
a
ed. Madrid: Editorial Ágata, 1999.
34
RHODES, op. cit.
35
MANVELL, op. cit., p. 77.
625
substituídas as menções à Gestapo por DINA, OBAN, SIDE ou OCOA,
36
e à Alemanha pelo
país do Cone Sul correspondente à instituição repressiva em questão, a leitura parecerá,
inclusive para um leitor bem informado, mais do que plausível. No Uruguai e na Argentina, a
identificação da prática de desaparecimentos com o decreto nazista é reconhecida, como
mostram os dois exemplos a seguir. No primeiro deles, o título de uma matéria do semanário
Brecha sobre o tema dos desaparecidos é, explicitamente, “En la noche y la niebla de los
desaparecidos”
37
O outro exemplo se refere à frase talhada na lápide de um túmulo, no
Cemitério de La Tablada, em Buenos Aires. Ali se encontram os restos mortais do filho do
poeta Juan Gelman, Marcelo Ariel Gelman, desaparecido (junto com a esposa e a filha
nascida em cativero) e posteriormente encontrado morto. Na lápide, a homenagem dos pais:
“Rescatado de la noche y de la niebla genocidas vive en sus ideales”
38
O texto de Manvell apresenta uma curiosidade que reforça a identificação da prática
repressiva dos desaparecimentos em tempos relativamente distantes. Manvell publicou o texto
original em 1969. Quer dizer, apesar da existência de alguns casos de desaparecimento na
Argentina (ditadura Onganía) e no Brasil, não se pode associá-los, nesse período, com uma
política deliberada de Estado. Fora do Cone Sul, há o caso da Guatemala, mas, na época,
ainda havia imprecisão entre o que eram dados relativos de um clima de violência geral que
assolava o país como um todo e o que podiam ser registros de uma dinâmica repressiva
específica.
O que surpreende na descrição de Manvell é o fato dele não poder estar influenciado
pela violência resultante da aplicação da DSN na América Latina, ainda muito desconhecida
ou abafada. Até porque, naquele momento, não havia atingido a dimensão política que
incorporaria com a evolução das experiências repressivas brasileira e paraguaia e as
posteriores ditaduras do Uruguai, Chile e Argentina. Logo, é importante realçar o não
condicionamento de Manvell no sentido de estabelecer paralelos e similitudes entre o nazismo
e os regimes de SN latino-americanos, o que dá mais isenção a sua descrição.
O seqüestro de crianças foi outra prática desenvolvida pelo nazismo. Embora por
critérios diversos e mantendo as devidas proporções, tal prática permite estabelecer um
paralelismo com a similar desenvolvida pelas ditaduras argentina e uruguaia. A relação entre
expansão territorial desejada (a conquista do “espaço vital”) e um fator demográfico
36
DINA (Dirección Nacional de Inteligencia - Chile), OBAN (Operação Bandeirantes - Brasil), SIDE (Servicio
de Inteligencia del Estado - Argentina), OCOA (Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas -
Uruguai) são algumas das estruturas da repressão clandestinida vinculadas direta ou indiretamente aos regimes
de Segurança Nacional latino-americanos.
37
Brecha, nº 171, 03/03/89, p. 2.
626
considerado insuficiente se combinaram com o entendimento de que a raça ariana estava
cercada por raças impuras e inferiores. Esta situação levou as autoridades do III Reich a
promover o seqüestro de crianças cujas características genéticas eram consideradas, segundo
eugenistas nazistas, aptas para serem germanizadas ou escravizadas. Crianças polonesas,
tchecas, russas, iugoslavas, etc. foram seqüestradas pelas SS. Só na Polônia, mais de 200 mil
crianças foram vítimas dessa prática e acabaram separadas das suas famílias.
39
O chefe
nazista Hanz Frank chegou a escrever no seu diário: “Quando penso que, com esses olhos
azuis e esses cabelos louros, elas falam polonês, custa-me a acreditar”.
40
Para levar adiante esse empreendimento, foram envolvidos inúmeros organismos
como o Comissariado do Reich para a Consolidação da Raça Germânica e o Departamento
Superior da Raça e do Povoamento (RUSHA).
41
De particular importância e vinculada à
RUSHA era a organização SS Lebensborn (Fontes da Vida). A mesma administrava uma
gigantesca maternidade estatal, que estimulava o “cruzamento” entre mulheres arianas e
jovens SS com finalidade procriativa. Também se encarregava das crianças seqüestradas de
até seis anos. Os critérios de idade eram bastante lógicos desde a perspectiva da apropriação.
Até essa idade, as crianças mostravam-se mais receptivas ao ensino da Weltanschaung
(concepção nazista de mundo); além disso, a ausência de recordações tornava mais fácil a
assimilação e a falsificação da identidade da criança. Aquilo que, posteriormente, nos países
platinos, as organizações de direitos humanos chamarão de apropriações.
Por outro lado, era necessário esconder dos pais adotivos a origem racial inferior da
criança adotada, pois isso entrava em choque com o discurso racial nazista. O discurso
repetido até a exaustão sobre o caráter inferior de outros povos europeus exigia que se
escondesse a origem de muitas crianças assimiladas por uma necessidade demográfica
deprimida. Os pais adotivos, pressionados pela própria carga ideológica do discurso racista do
nazismo, resistiam a adotar crianças de origem estrangeira e de pureza racial incerta. Sendo
assim, o Lebensborn escondia o fato de repartir crianças raptadas; em tese, todas eram
concebidas sob rigoroso “controle de qualidade” de sangue confiável ou, então, eram órfãs de
pais falecidos em função das vicissitudes da guerra. Após o seqüestro, a criança passava a ter
38
Filme: El despertar de L. Direção e roteiro de Poli Nardi. Argentina, 1999.
39
No Julgamento de Nüremberg, foram apresentadas provas que identificavam o seqüestro de 50 mil crianças
dos países da Europa central, 50 mil da Hungria (Rutênia) e mais de 100 mil jovens poloneses escravizados a
partir das Operações Forquilha e Barão Cigano. HILLEL, Marc. Em nome da raça. Os “haras” nazistas. Rio
de Janeiro: Hachette, 1975. p. 193.
40
HILLEL, op. cit., p. 193.
41
Instituição encarregada de administrar e executar os exames raciais. Decidia a escolha das crianças que deviam
ser raptadas ou que eram consideradas descartáveis (passíveis de serem exterminadas). Também determinava
quais as mulheres que deviam abortar e/ou ser esterilizadas.
627
uma identidade alemã e era reciclada num prazo de uns seis meses, “recebendo” um
patrimônio germânico constituído de uma data e local de nascimento, uma língua, um padrão
cultural e ideológico e a habilitação para ser inserida nas organizações e nas instituições
estatais de educação e recreação.
Em relação a muitas das meninas, a expectativa do Estado e das autoridades
responsáveis era de que servissem, a médio prazo, como ventres à disposição do III Reich.
Uma sobrevivente de Lódz (Polônia), Alycia Sosinka, menina seqüestrada na época, ouviu
das autoridades do local em que estava sendo reeducada: “Vocês porão no mundo dois ou três
alemães de boa raça e depois desaparecerão...”
42
Assim, as súditas estrangeiras, racialmente
“prestáveis”, eram conservadas ou eliminadas de acordo com as necessidades procriativas:
[...] a pequena Alycia de Lódz, feita mulher demasiado depressa, teria o
direito de dar à luz uma, duas ou três vezes numa clínica SS. Homens
minuciosamente selecionados encarregar-se-iam de engravidá-la por prazer
pessoal e por dever para com a pátria. Depois, um dia, um Dr. Ebner
43
de
plantão dar-lhe-ia uma injeção e Alycia teria deixado de existir. Assim se
apagaria para sempre todo vestígio de contribuição de sangue estrangeiro
para a obra de repovoamento ariano da futura Alemanha.
44
O seqüestro podia ser massivo ou individual. No primeiro caso, as crianças detidas
nas escolas ou reunidas nas praças das cidades e dos vilarejos dos territórios ocupados, eram
mandadas para campos de triagem, onde médicos e especialistas em higiene racial
determinavam as assimiláveis e as “não aproveitáveis” (algumas eram devolvidas, mas a
maioria terminava nos campos de extermínio). No caso do rapto individual, destacaram-se as
unidades das “irmãs pardas das SS”. Eram mulheres vestidas com uniformes dessa cor,
treinadas para localizar e identificar crianças passíveis de assimilação. Para tanto, eram
treinadas em estágios onde se especializavam no conhecimento e na identificação de
características raciais desejadas. Desses cursos, também faziam parte técnicas de
rastreamento, de abordagem e de seqüestro de crianças.
Como mecanismo de abordagem, as “irmãs pardas” usavam o expediente de oferecer
guloseimas enquanto simulavam uma conversa despretensiosa, a qual escondia um
interrogatório que coletava informações sobre pais, domicílio, cor de cabelos dos irmãos.
Desta maneira, as “irmãs pardas” peneiravam bairros, cidades, vilarejos e regiões, mapeando
os potenciais alvos de seqüestro. Essa era a primeira fase do processo de seqüestro e de
apropriação. A segunda, consistia em arrebatar a criança dos pais; geralmente, em
42
HILLEL, op. cit., p. 198.
43
Nota do autor: um dos médicos mais conhecidos do sistema Lebensborn.
44
HILLEL, op. cit., p. 200.
628
procedimentos noturnos. Como regra geral, os pais não voltavam a ver essas crianças. Em
certas situações, para evitar tumulto e reações hostis ostensivas, os pais eram eliminados no
momento do seqüestro. A última fase do processo consistia na intervenção de médicos
realizando minuciosos exames para detectar o caráter racial das vítimas e decidir sobre a
validade ou não da assimilação de cada caso. Eles decidiam o destino das crianças:
apropriação ou eliminação. A supressão dos vínculos paternos seria o objetivo imediato
implícito no trabalho de assimilação. Não foram raros os casos em que, mediante recursos de
ordem psicológica, as crianças seqüestradas desenvolveram um esquecimento (induzido)
muito rápido ou um sentimento de forte rejeição e ódio contra os pais biológicos. Situação
semelhante estimulada por algumas famílias apropriadoras, na Argentina, mais de trinta anos
depois.
Finalizando, cabe ressaltar o paralelismo entre determinadas práticas repressivas
nazistas e algumas modalidades existentes nas ditaduras de Segurança Nacional. Encerrada a
Segunda Guerra Mundial, algumas experiências de guerra suja e as práticas de terrorismo de
Estado acumuladas pelo nazismo foram incorporadas às práticas similares patrocinadas pelos
EUA e seus aliados da OTAN, para aplicar nas guerras de libertação nacional, tendo a Guerra
Fria como pano de fundo.
45
Especialistas nazistas em técnicas repressivas (seqüestros,
torturas e desaparições forçadas) foram cooptados para instruir, aperfeiçoar e atualizar as
forças repressivas. A percepção da ameaça soviética global e a difusão do macarthismo no
interior dos EUA levaram a CIA e a inteligência militar estadunidense a acelerar a
implementação de programas para a apropriação dos conhecimentos da contra-insurgência
nazista.
46
Tais comparações estão longe de expressarem uma relação simplista e ideológica;
ao contrário, o fato de respeitar a unicidade do fenômeno nazista, sua dimensão, suas
especificidades e seu contexto histórico concreto não impossibilita traçar a evolução das
modalidades repressivas analisadas e encontrar raízes sólidas, históricas, que se projetaram
sobre outros cenários geográficos e temporais.
7.1.3 - A Batalha de Argel: a repressão colonial francesa
A derrota francesa na Indochina, em 1954, levou o comando militar francês a avaliar
45
DIETRICH, Heinz. “Chile y la ‘innovación básica’ del Führer”. Rebelión, 13/09/03.
46
DIETRICH, op. cit., IANNI, Octavio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2004.
629
os motivos da débàcle. Comparando com outras experiências coloniais na região, como a
inglesa (Malásia), a estadunidense (Filipinas) e holandesa (Indonésia), alguns oficiais
franceses, entre os quais o coronel Charles Lacheroy, passaram a ler, analisar e assimilar as
teses da guerra revolucionária de Mao Tse Tung. A avaliação da derrota e a tentativa de
compreensão da estratégia implementada pelo inimigo levou os especialistas franceses à
elaboração de um sistema de luta que seria testado contra o movimento rebelde que lutava
pela independência da Argélia desde 1954. A experiência francesa contra a Frente de
Libertação Nacional (FLN) argelina acabou sendo a base da concepção contra-revolucionária
(contra-insurgente ou anti-subversiva) que acabou sendo divulgada a outros exércitos como
Doutrina Francesa.
A experiência indochinesa, onde foi aplicada a concepção de guerra revolucionária,
mostrou às tropas coloniais francesas como o inimigo se disseminava dentro da população.
Ou seja, a “subversão” se espalhava e crescia dentro da sociedade. Para destruí-la, era
necessário atingir sua organização político-administrativa. Para tanto, era fundamental a
obtenção de informações sobre o funcionamento, estrutura organizativa, hierarquia, bases de
atuação, fornecedores de recursos e de armas, assim como desconectar os rebeldes da
retaguarda que lhes dava suporte, isto é, a própria população.
Na medida em que a obtenção de informação passou a ter centralidade, foi montada
toda uma infra-estrutura que visou potencializar os mecanismos existentes para levar adiante
tal desafio. Através da ação psicológica e do controle da população, concretizou-se o
Dispositivo de Proteção Urbana que inovou na formulação de um sistema repressivo, que
seria refinado, posteriormente, na experiência da ditadura argentina, a partir de 1976. Através
desse sistema, as regiões urbanas onde existiam focos de ação da FLN, sobretudo em Argel,
tinham seu território divididos em zonas (política de zonificação) mediante a divisão dos
bairros em quadrículas (quadriculização). Por sua vez, os bairros eram fracionados em
unidades menores chamadas “ilhas”; estas se subdividiam em grupos de casas constituídas por
famílias e, na identificação da unidade menor, por indivíduos.
Para cada nível dessa engenharia de mapeamento e monitoramento do controle
social, havia um responsável que prestava contas às autoridades militares coloniais. Desta
forma, organizou-se um vastíssimo centro de informação a partir de fichas individuais, onde
constavam informações a respeito do cotidiano das pessoas, hábitos, horários, itinerários,
relações e outros dados considerados pertinentes no processamento da informação e da
produção de inteligência. Cada quadrícula era colocada sob a responsabilidade de unidades
militares específicas. Esta estrutura de controle se complementava com o estabelecimento de
630
uma rede de centros clandestinos de detenção e a organização de milícias armadas e grupos de
defesa que, a partir do interior da sociedade, funcionavam como antídotos ao trabalho de
cooptação que a guerrilha desenvolvia junto à população. Paralelamente, foram
desencadeadas ações de suporte da inteligência como a infiltração, a intoxicação da população
com informação diversionista, a reconversão de prisioneiros em colaboradores e a eliminação
seletiva de lideranças. Tudo isso constituiu a parafernália do “controle social da população”.
A partir da zonificação da cidade, a inteligência entrava em ação procurando
informação e detectando prováveis colaboradores ou setores passíveis de serem cooptados.
Um mecanismo aplicado regularmente foram as operações de rastrilhagem nas “ilhas”,
batidas policiais nas casas e detenções preventivas. Em 1957, o conflito se intensificou. Esse
foi o ano em que aconteceu a Batalha de Argel, quando, entre janeiro e setembro, a França
despejou mais de 400 mil soldados sobre a colônia e concentrou o controle da segurança e a
direção do combate contra a FLN, na 10ª Divisão de Pára-quedistas do coronel Massuh. Nesse
período, o bairro árabe de Casbah, centro de atuação urbana dos rebeldes, foi completamente
cercado pelas tropas coloniais; o chefe desse operativo foi o coronel Marcel Bigeard, quem
negou sempre que os métodos repressivos utilizados fossem ilegais. O fato é que, durante
anos, o cerco a Casbah e os métodos empregados para destruir a resistência foram
considerados tabu pelo próprio Estado francês.
A FLN organizara sua ação de resistência contra o poder colonial através de uma
estrutura hierárquica em forma de pirâmide, onde se inseriam pequenas células de três a cinco
membros. Somente um deles tinha contato com o integrante de uma outra célula e assim
sucessivamente. O objetivo da repressão era reconstituir toda a pirâmide até atingir o Estado
Maior da organização, o que reforçava o trabalho de inteligência. Era necessário prender e
interrogar toda pessoa que tivesse alguma informação que pudesse levar à identificação dos
rebeldes. O interrogatório passava a ser peça central para a detecção dos membros da célula;
uma vez reconstituída esta, devia-se descobrir qual dos seus integrantes era a conexão com a
rede da FLN. Na procura de informações para a montagem da estrutura piramidal da FLN,
iam surgindo nomes, células, outras células; o quebra-cabeça era montado e se afunilava até
cercar o núcleo do poder.
A estrutura encarregada de dar suporte ao coronel Massuh foi o 5º Departamento de
Ação Psicológica, dirigido por Roger Trinquier, considerado um dos principais estrategistas e
teóricos da Doutrina Francesa e assessorado pelo então capitão Paul Aussaresses, chefe de
inteligência e seu subordinado. Trinquier e Aussaresses defendiam a tese de que só havia duas
formas de obter informação. Uma, infiltrando a organização inimiga: apesar do alto risco de
631
fracassar a cobertura, quando bem sucedida, fornecia excelentes resultados. A outra forma era
o recurso à tortura,
47
principal recurso utilizado pela potência colonial na Batalha de Argel. E
esta foi vista como confronto ideal para a aplicação da estratégia da guerra contra-
revolucionária, que acabou assumindo um perfil de “guerra suja”.
48
O próprio coronel
Bigeard assumiu, explicitamente, a atuação repressiva ilegal:
Yo di la orden: ustedes deben actuar en forma contundente contra los que
colocan las bombas, interrogarlos duramente, no sacarles los ojos ni cortarles
las orejas pero aplicarles la picana [choque alétrico], electrodos para pasarles
corriente eléctrica.
49
As palavras de Bigeard demonstram preocupação com a eficiência do procedimento;
ou seja, se o objetivo era extrair informação, não se devia incorrer em excessos irreversíveis.
Daí a necessidade de utilizar profissionais competentes, controlados e eficientes. De certa
forma, nesta avaliação, está a base da futura proposição de “interrogatório científico”, limpo,
proposto, anos depois, pela geração de especialistas estadunidenses integrada, entre outros,
por Dan Mitrione.
A tortura foi assumida, pelas forças coloniais, com o argumento de ser o mecanismo
que, aplicado imediatamente após a detenção do suspeito, produzia melhores resultados. Os
estrategistas franceses entendiam que ninguém agüentava 24 horas de sofrimento contínuo;
era o tempo necessário para desmontar todas as defesas internas do torturado. Aplicado esse
tratamento, considerava-se que, finalmente, entregava informação, delatava, confessava.
Posteriormente, missões francesas de assessoramento de exércitos repressivos, viriam a
divulgar que a informação, e os mecanismos utilizados para obtê-la, haviam sido
fundamentais para enfrentar um inimigo revolucionário escondido no meio da população.
Sendo assim, a tortura, longe de ser um excesso do aparato repressivo, era encarada como o
instrumento mais adequado a ser utilizado dentro da racionalidade da eficiência da ação
contra-revolucionária.
A experiência repressiva da França na Argélia, alimentada pelos ensinamentos do
insucesso indochinês, aplicou também, como decorrência da lógica da “guerra suja”, uma
47
Frantz Fanon, na sua clássica obra Los condenados de la tierra, descreve com pertinência, no capítulo
intitulado “Guerra colonial y transtornos mentales”, um contundente painel sobre os mecanismos repressivos
aplicados e seu impacto psicológico na população. FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. 6
a
ed. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 1974.
48
PERVILLÉ, Guy. Terrorisme et torture: la Bataille d’Alger de 1957. L’Histoire, nº 214, p. 70-77, octobre
1997. WINOCK, Michel. Le scandale de la torture en Algérie. L’Histoire, nº 246, p. 18-19, septembre 2000.
Também; LEMOINE, Maurice. Dien Bien Phu, Alger, Buenos Aires. De la guerre coloniale au terrorisme d’Etat.
Le Monde diplomatique, n° 608, p. 32, novembre 2004.
49
“El rol francés en la guerra sucia. La letra con sangre”. Matéria e transcrição dos depoimentos apresentados no
documentário de Marie-Monique Robin, Escuadrones de la Muerte. La Escuela Francesa. Página 12, 03/09/03.
632
política de desaparecimentos de inimigos, visando gerar o medo e a incerteza junto à
população, com o objetivo de isolar a FLN do resto da sociedade. O general Aussaresses
reconheceu que as forças coloniais de segurança desapareceram 3.024 pessoas em Argel.
50
Ele tornou público ainda que as vítimas de torturas, uma vez que entregavam a informação
que possuíam, eram desaparecidas: “Una vez que había contado todo lo que sabía,
terminábamos con el. Ya no sentiría nada. Lo hacíamos desaparecer.”
51
Num eloqüente depoimento, um inspetor de polícia, ao comentar essa prática na
Argélia, lembrou que a brutalidade nem sempre cumpria o objetivo do interrogatório. No seu
entendimento, o fundamental era que a vítima tivesse esperança de sair daquela situação,
sobreviver à tortura. Era o fato de ter esperança de sair viva o que fazia a vítima falar, talvez
como sentimento condicionado de preservação. O inspetor concluía que “lo que hace falta,
sobre todo, es no dar al tipo la impresión de que no saldrá de nuestras manos.” Ou seja, o
destino da vítima estava selado, mas ela não podia desconfiar que, independente de colaborar
ou não no “interrogatório”, seria igualmente executada. Se desconfiasse disso, concluiria que
“para qué hablar si eso no le salvará la vida.”
52
O coronel Trinquier teorizou sobre o método de desaparecimento de inimigos e o
impacto que isso produzia no conjunto da população. Defendia tal prática como método de
aterrorizar aos cidadãos e induzi-los, sob o efeito do medo, a colaborar com a política
repressiva; na pior das hipóteses, esperava que se sonegaria solidariedade aos militantes da
FLN. Para Trinquier, as pessoas deviam saber que aqueles que caiam nas mãos do exército
francês desapareciam, deixavam de existir.
53
Uma das formas mais comuns de
desaparecimento foram os Crevettes Bigeard (Camarões Bigeard), antecedente dos “vôos da
morte” característicos do Río de la Plata, décadas depois. Bigeard, um dos oficiais coloniais
mais temidos, concebeu essa modalidade de desaparecimento. As vítimas, após perderem
interesse por parte dos “interrogadores”, tinham os pés cimentados em recipientes e eram
levadas por helicópteros e jogadas ao mar.
54
A experiência contra-revolucionária francesa foi ensinada na Escola de Guerra de
Paris, no Centro de Treinamento em Guerra Subversiva e também por missões francesas
interessadas. Entre os primeiros alunos, estiveram oficiais portugueses, israelenses e
50
VERBITSKY, Horacio. Argentina: “Estaban de acuerdo” - Bignone: la iglesia convalidó la tortura. Página 12,
04/09/03.
51
“El rol francés en la guerra sucia. La letra con sangre”. Matéria e transcrição dos depoimentos apresentados no
documentário de Marie-Monique Robin, Escuadrones de la Muerte. La Escuela Francesa. Página 12, 03/09/03.
52
FANON, op. cit., p. 247.
53
El derrotero de la contrarrevolución. Entrevista a Pierre Abramovici. Todo es Historia, nº 422, p. 20-23,
septiembre 2002.
633
argentinos. Estes últimos tinham contatos com os franceses desde meados da década de 50.
Efetivamente, o general Carlos José Rosas cursou a Escola de Guerra de Paris, tornando-se
entusiasta defensor da Doutrina Francesa, que passou a difundir entre seus pares. No ano de
1957, a Argentina acolheu uma missão integrada pelos tenentes coronéis Naurois, Badie e
Bentresque, missão que passou a ministrar cursos sobre Guerra Revolucionária e Contra-
revolucionária. Dentro desse intercâmbio, 120 militares argentinos viajaram à França, em
1958, e puderam observar in loco, na Argélia, a evolução da aplicação da Doutrina Francesa
contra os rebeldes da FLN.
No ano seguinte, os exércitos francês e argentino acordaram a criação de uma missão
francesa permanente, localizada na Escola Superior de Guerra, em Buenos Aires (onde já
havia uma missão dos EUA). Seus integrantes, veteranos da Batalha de Argel, difundiram a
doutrina e os métodos aplicados. Traduções dos livros do coronel Trinquier inundaram os
cursos, enquanto que a Revista Militar se tornava o órgão oficial de divulgação dos textos dos
especialistas franceses. Bentresque, por exemplo, explicava aos oficiais argentinos a
importância de infiltrar o inimigo, criar milícias de autodefesa e unidades contra-guerrilheiras
e de centralizar a inteligência no combate à subversão. E ressaltava, insistentemente, a
eficiência da utilização de métodos duros de interrogatório, fundamentais para detectar um
inimigo sem uniforme que o identificasse e imerso na população.
55
O reconhecimento da experiência francesa e a receptividade dos seus cursos foi tão
significativa que, em 1960, o ministro da Defesa, Pierre Messmer, foi contatado por
autoridades estadunidenses solicitando assessoramento e transmissão de conhecimentos sobre
guerra revolucionária. Os EUA estavam acompanhando, com preocupação, os acontecimentos
do Vietnã e à evolução dos desdobramentos do caso cubano. Trinquier, Aussaresses e outros
veteranos da Argélia foram distribuídos em distintas escolas militares dos EUA e passaram a
ensinar as técnicas repressivas desenvolvidas em Argel a alunos que as aplicariam no sudeste
asiático. Os textos e manuais da contra-revolução viraram leitura obrigatória e serviram de
base para a posterior Operação Phoenix, que a superpotência desencadearia no Vietnã. Um
oficial estadunidense lembra das aulas de Aussaresses:
[...] nos explicó la tortura. Tomaba un prisionero. En general lo convencía de
hablar. La mayoría hablaba. Pero al que no quería, lo sometía a sufrimientos
físicos, sufrimientos mortales que hacían que terminara por hablar.
Explicaba que si otro prisionero asistía a la sesión de tortura se convencía de
54
Idem.
55
OLIVEIRA-CÉZAR, María. El aprendizaje de la guerra contrarrevolucionaria. Todo es Historia, nº 435,
p.70-80, octubre 2003.
634
hablar porque sabía que sería el siguiente. El problema adicional era qué
hacer con el prisionero torturado. La respuesta de Aussaresses es que debían
ser ejecutados.
56
A partir do governo Kennedy, os especialistas franceses passaram a ministrar cursos
para a oficialidade latino-americana na Escola das Américas, no Panamá. Os Estados Unidos
começavam a assumir o papel de intermediários na difusão da Doutrina Francesa, tanto
diretamente, como nesses cursos, quanto indiretamente, passando a divulgar sua própria
experiência na Guerra do Vietnã; porém, a doutrina resultante sempre teve como base
importante a escola francesa. Curiosamente, junto à divulgação das obras de Jean Lartéguy
(Los Mercenários, Los Pretorianos e Los Centuriones), lidas particularmente pelos oficiais
platinos, o filme A Batalha de Argel (1965), do italiano Gillo Pontecorvo, foi utilizado de
forma paradoxal. Elaborado para ser um instrumento de denúncia contra as práticas coloniais
repressivas na Argélia, acabou sendo utilizado pelas escolas militares, em função do caráter
realista e didático das suas cenas, para instruir oficiais dos EUA e da América Latina.
Paul Aussaresses, importante protagonista na repressão contra a FLN, foi adido
militar no Brasil entre 1973 e 1975. Deste país, lembra ter tido “una relación muy estrecha
con los militares brasileños
,
57
que, segundo ele, deram considerável suporte ao golpe do
general Pinochet contra o governo Allende. Por sua vez, o general Manuel Contreras, ex-
chefe da DINA chilena, um dos mentores da Operação Condor, reconheceu que o oficial
francês treinou seus agentes em território brasileiro, na cidade de Manaus.
58
A confirmação
dessa afirmação poderia significar a existência de mais uma conexão da rede repressiva
conhecida, a qual teria como protagonistas setores da segurança francesa e, como objetivo, a
transmissão da sua doutrina sem intermediação dos EUA.
Em 1961, ocorreu o Primeiro Curso Interamericano de Guerra Contra-
Revolucionária. Foi organizado por especialistas franceses sob auspícios do governo
argentino e foi a culminância da influência das missões francesas na região. No evento,
participaram militares de 14 países, inclusive dos EUA. López Aufranc, oficial argentino
golpista em 1976, avaliou que “los americanos no sabían nada de la guerra revolucionaria.
Aprendieron al mismo tiempo que nosotros.
59
Militares uruguaios também participaram
desse curso. Independente do material francês de estudo da guerra contra-revolucionária que
circulava no país, o aperfeiçoamento era feito na Argentina. O treinamento recebido era o
56
Idem.
57
Idem.
58
VERBITSKY, Horacio. Discurso del método. Página 12, 31/08/03.
59
“El rol francés en la guerra sucia. La letra con sangre”. Matéria e transcrição dos depoimentos apresentados no
documentário de Marie-Monique Robin, Escuadrones de la Muerte. La Escuela Francesa. Página 12, 03/09/03.
635
mesmo que recebiam as Forças Armadas argentinas. O depoimento do general Daniel García,
ex-chefe do exército uruguaio, reforça isso: “Vimos mucho material francés. [...] Nosotros
concurrimos también a la Argentina a estudiar ese material francés de la experiencia de la
guerra de Argelia.”
60
Em meados da década de 70, nova missão francesa foi enviada à Argentina. Robert
Servant, veterano da Segunda Guerra, da Guerra da Indochina e do 5º Departamento de Ação
Psicológica na Argélia, chegou a Buenos Aires em 1974. Na Argélia, foi responsável pelos
interrogatórios dos “arrependidos” (ralliés). Pouco depois, a Triple A passou a ter assessoria
de membros da organização paramilitar clandestina Organisation Armée Secrete (OAS), que
haviam combatido na Argélia. O mais destacado foi Jean Charles Gardes, cujos homens
participaram no massacre de Ezeiza, no momento da volta de Perón do exílio.
61
Durante a ditadura inaugurada por Videla, diversos mecanismos repressivos que os
franceses haviam experimentado na Indochina e amadurecido na Argélia foram colocados em
prática. A zonificação territorial, a infiltração das organizações consideradas subversivas, a
política do desaparecimento e os “vôos da morte” foram métodos repressivos aprendidos com
os franceses e que acabaram sendo aplicados contra a população argentina e os refugiados
latino-americanos.
Um ex-ministro do Interior da ditadura, general Albano E. Harguindeguy,
reconheceu a importância da escola repressiva francesa ao afirmar que foi com ela que os
militares argentinos aprenderam técnicas de tortura e a prática dos desaparecimentos forçados
de pessoas. Os colegas franceses também recomendavam o uso do choque elétrico, mesmo
não o tendo ensinado.
7.1.4 - “Banhos de Sangue” e desaparecimentos no Vietnã
Uma outra experiência que serviu de antecedente para as práticas de Terror de Estado
na América Latina foi a violência desencadeada no Vietnã, primeiro pela França e,
posteriormente, pelos EUA. Como já foi visto, após a derrota definitiva na batalha de Dien-
Bien-Phu, o comando militar francês avaliou que seu colapso na península indochinesa
ocorreu por causa dos métodos utilizados para enfrentar o inimigo e passou a elaborar uma
60
Depoimento no programa especial Jorge Gestoso investiga: La Doble Desaparecida. CNN en Español, 2001.
61
LLUMÁ, Diego. La influencia francesa en los militares argentinos. Los maestros de la tortura. Todo es
Historia, nº 422, p. 6-16, septiembre 2002.
636
nova doutrina para enfrentar as resistências de libertação nacional, incorporando inclusive
novos padrões repressivos.
Derrotado com uma proposta de guerra convencional, o poder colonial francês
passou a destacar a configuração de um “inimigo interno” que, extrapolando o campo militar,
se fez presente em todos os campos de embate, inclusive no político e social. Para enfrentá-lo
com sucesso, era necessário responder com uma “guerra total” que abrangesse todas as
dimensões da sociedade. O argumento da nova contra-ofensiva residia no fato de que, caso o
poder político estivesse em perigo, os militares eram os únicos que dispunham de meios
suficientes para restabelecer a ordem. Essa foi a tese de Roger Trinquier e de outros
estrategistas da Contra-Insurgência. Além de priorizar as tarefas de inteligência e informação,
argumentavam também que, frente a uma situação de “emergência”, se devia impedir que o
prisioneiro pudesse acolher-se a um marco legal protetor cuja existência entorpecia a ação
militar; portanto, tal marco devia ser ignorado.
62
Essa foi a base da Doutrina da Contra-
Insurgência que depois seria aprofundada nas escolas militares dos EUA.
O envolvimento dos EUA no conflito indochinês é reconhecido como entorno para
outro antecedente de desaparição forçada; neste caso, essa prática repressiva foi associada à
guerra psicológica desencadeada pelos seus serviços de informação sobre a população
vietnamita. A utilização, pelos EUA, de psicólogos e antropólogos no conflito foi uma prática
publicamente denunciada pela sociedade civil estadunidense durante as massivas
mobilizações contra a guerra nos efervescentes anos 60. Aqueles profissionais realizaram
pesquisas in loco que permitiram concluir que o que mais afetava a moral da resistência
vietnamita não eram os devastadores ataques com napalm ou as assustadoras incursões de
helicópteros contra aldeias e vilarejos. Em realidade, o efeito psicológico mais efetivo contra
a população era o fato de não poder realizar os rituais fúnebres com os quais mostravam seu
luto e se despediam dos seus mortos. A impossibilidade de realizar a cerimônia de luto rompia
o elo cultural entre vivos e mortos, e a comunidade era tomada pela insegurança, tristeza e
depressão. Os antropólogos, satisfeitos com os efeitos dessa situação, chamaram essa tática de
guerra psicológica de “almas errantes”.
63
62
A aplicação da doutrina de contra-insurgência exigia ignorar o limite da lei, condição para a clandestinização
das detenções e dos locais de encarceramento. A necessidade de extrair informação com rapidez justificava a
aplicação sistemática da tortura, mas se devia impedir que o inimigo tivesse qualquer tipo de informação ou
contatos com advogados e a família.
Disponível em: <http://www.derechos.org/nizkor/espana/doc/impesp.html>, Equipo Nizkor Derechos - Humans
Rights - Acesso em: 24 set. 2003
63
RIQUELME, H. América do Sul: direitos humanos e saúde psicossocial. In: RIQUELME, H. (Editor) Era de
Névoas: direitos humanos, terrorismo de estado e saúde psicossocial na América Latina. São Paulo: EDUC,
1993. p. 35.
637
Para analisar a política repressiva desencadeada pelos EUA no Vietnã, Noam
Chomsky & Edward Herman utilizaram o conceito “banho de sangue” (bloodbath) para
referir-se aos atos de violência e de terror perpetrados contra a população civil.
64
Segundo
eles, os EUA, ao assumirem a “ação” salvacionista do mundo livre e dos aliados na região que
comungavam do seu “espírito” (Vietnã do Sul), diante do “banho de sangue” (atos de
violência e de terror) promovido pelo inimigo (Vietnã do Norte e Vietcong), exerceram seu
direito de defesa desencadeando, por sua vez, “banhos de sangue” benignos. Estes foram
difundidos junto à opinião pública como meritórios, necessários, construtivos ou sem
importância. Chomsky & Herman questionaram e mostraram que os chamados “banhos de
sangue” promovidos pelo inimigo haviam sido uma deformação de fatos (parcial ou
totalmente fictícios) por parte da mídia vinculada ao establishment dos EUA para justificar
uma ação militar em escala ilimitada.
65
O desaparecimento de vietcongues e de civis
inseriam-se como efeitos da aplicação do bloodbath.
66
Dentro dessa perspectiva, insere-se um depoimento sobre o Plano Delta (formação de
comandos especializados sob direção da CIA) e a tentativa de pacificação da zona sul. Os
estrategistas militares e os da Agência haviam concluído que de nada adiantava vencer a
Frente Nacional de Libertação se esta podia recuar aos povoados e reforçar sua infra-
estrutura. Era necessário passar para uma nova ação ofensiva que permitisse:
[...] detectar estos adversarios, intentar alejarlos del pueblo y encarcelarlos.
En el caso de que fuese imposible deshacerse de ellos mediante prisión sin
provocar disturbios, si se trataba de personas notables, cuyo arresto hubiese
representado el peligro de provocar una rebelión, quedaba el recurso del
asesinato. Se tomaron medidas para formar equipos de matones dispuestos a
todo. [...] Los ‘equipos de asesinato’ eran asunto de la CIA, se dijo por
entonces [...]. El proyecto habría de tener un carácter bastante clandestino.
67
Uma outra prática de terror sistemático promovida pelo Vietnã do Sul sob patrocínio
e orientação dos EUA foi a deportação maciça de população. Barcos excessivamente
carregados transportavam mulheres, crianças e velhos para regiões desconhecidas, sem
julgamento e sequer acusação conhecida. Em geral, nada se sabia das pessoas desaparecidas.
Nenhum “serviço” se mostrava competente para fornecer informações. Na realidade, o
segredo era a norma e cobria um sistema tentacular de isolamento e eliminação de opositores
64
CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Banhos de sangue. São Paulo: Difel, 1976.
65
Idem, p. 17-22.
66
Décadas depois, a superpotência refinaria seus argumentos recorrendo às possibilidades da novilíngua
orwelliana, alcunhando termos como efeitos colaterais e punições preventivas para continuar justificando sua
política de terrorismo de Estado internacional.
67
Testemunho de Donald Duncan. TRIBUNAL RUSSELL. Sesiones de Estocolmo y Roskilde, 1966.
638
e de repressão generalizada.
68
De todas as modalidades repressivas de bloodbath desenvolvidas pelos EUA no
Vietnã, a Operação Phoenix, caso paradigmático de terror seletivo, foi a mais assemelhada
aos desaparecimentos patrocinados pelas ditaduras do Cone Sul. O predecessor dessa
operação foi o Programa de Coordenação e de Exploração da Informação (ICEX), em meados
de 1967. O mesmo envolveu a CIA, o pessoal civil e militar dos EUA e, na execução, o
aparelho Exército-Informação-Polícia de Saigão. Esse programa virou Operação Phoenix em
agosto de 1968, com a recomendação precisa, por parte da Secretaria de Defesa, de que fosse
aplicado de forma mais vigorosa e eficiente e de que houvesse a manutenção do caráter
secreto (clandestino) das ações promovidas. Havia uma diretriz, muitas vezes desobedecida,
de que nenhum agente da CIA devia parecer envolvido nessas operações para não desagradar
os aliados dos EUA e os atores internacionais neutrais. Ou seja, em princípio, o trabalho sujo
devia ser realizado pelos aliados locais, mas isto nem sempre aconteceu.
Usando o recurso da metalinguagem para encobrir os verdadeiros objetivos da
operação, a coordenação da Operação Phoenix reconheceu, pouco tempo depois, a
neutralização de 84 mil “infra-estruturas Vietcong” (Viet Cong Infraestructure, VCI); entre
elas, 21 mil mortas. O governo de Saigão reivindicava, graças a Operação Phoenix, a morte de
40.994 civis suspeitos de serem inimigos, no período 1968-1971. A eliminação física de
pessoas suspeitas de integrarem a infra-estrutura do Vietcong era antecedida e acompanhada
de práticas de seqüestro, tortura, assassinato e desaparecimento da identidade da vítima. Essa
forma de terror clandestino era justificado com o clássico argumento da valiosa informação
que se obtinha. Na prática, a maior parte dessa informação sequer era aferida.
A dinâmica da operação resultava numa feroz mescla de violência incontrolável e de
corrupção alimentadas pelo oferecimento de recompensa em troca de cada VCI vivo (11 mil
dólares) ou morto (metade daquele valor). A tortura dos detidos era estimulada pela política
de prêmios e recompensas. A polícia de Saigão recomendava: “Se eles estiverem inocentes,
espanca-os até serem culpados.
69
A praticidade desta modalidade repressiva e sua
massividade tornou preferível eliminar o VCI in loco do que mantê-lo vivo. Havia outro
motivo para isso: a possibilidade do suspeito sequer ser suspeito, o que poderia gerar
constrangimento, sobretudo no caso de mulheres e crianças. Os coordenadores do programa
chegaram a estipular cotas mensais obrigatórias de eliminação de VCI. De regra, os
68
DERIVERY, François. Guerra e repressão: a hecatombe vietnamita. In: PERRAULT, Gilles (org.). O livro negro
do capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 150.
69
Isso era regra. A Operação Phoenix também serviu para encobrir vinganças particulares e extorsões que
visaram obtenção de resgates pecuniários em troca de pessoas seqüestradas.
639
assassinatos eram cometidos por criminosos, antigos comunistas recrutados pela CIA ou por
equipes dirigidas por ela e integradas por militares estadunidenses, chineses nacionalistas ou
mercenários tailandeses.
70
William Colby, diretor da CIA e mentor da Operação Phoenix, reconheceu, diante de
uma comissão do Senado dos EUA que investigava a existência de operações encobertas no
Vietnã, que o programa havia eliminado 20.587 suspeitos (o governo de Saigão reconheceria
40.994) e que a CIA tivera um papel nevrálgico nos assassinatos massivos. Diversos
depoimentos de soldados comprovaram o uso de tortura nos interrogatórios nas modalidades
de aplicação de choque elétrico, afogamento, simulação de explosão de granada, surras e
insultos, entre outras. A CIA, em contato direto com as forças policiais locais, deu suporte ou
executou, diretamente, tarefas de censura de correspondência, escutas telefônicas, divulgação
de listas de suspeitos e de hóspedes de hotéis, etc. Em contrapartida, contou com infra-
estrutura repressiva local para realizar detenções, obter informação através do uso sistemático
da tortura, identificar lideranças comunistas e aperfeiçoar os métodos de condução da guerra.
Diante das acusações que lhe foram formuladas no Senado, Colby procurou
argumentar que a “Companhia” e a Operação Phoenix tentaram, na prática, limitar a guerra
suja existente: “Quanto aos ‘abusos injustificáveis’, tomamos de acordo com as autoridades
vietnamitas, as medidas necessárias para por cobro a esse gênero de disparates.”
71
Talvez
Colby estivesse referindo-se a situações como a notificada pela agência UPI, em 1971, onde
informava que funcionários locais da região do Delta haviam decidido executar
imediatamente 60% dos “suspeitos”; felizmente, os conselheiros estadunidenses haviam
conseguido persuadi-los a reduzir essa percentagem para 50%.
72
Como se pode ver,
resultados ínfimos para quem pretendia limitar a guerra suja. O que permite inferir que ou o
poder de pressão dos EUA sobre seu aliado Vietnã do Sul era insignificante ou, então, aquela
preocupação demonstrada nas palavras do homem-chave da CIA na região não passava de
retórica diversionista. Os fatos e documentos conhecidos sobre a Guerra do Vietnã não
deixam dúvida de que, sem os EUA, o Vietnã do Sul sequer teria existido.
O esforço diversionista e encobridor das autoridades estadunidenses foram
desmoralizadas pelas informações apresentados por Colby sobre a Operação Phoenix e a
metodologia de guerra suja aplicada contra os vietnamitas. Sem se propor a isso, suas palavras
foram suficientemente eloqüentes e esclarecedores:
70
CHOMSKY; HERMAN, op. cit., p. 79-84.
71
William Colby. Citado por CHOMSKY; HERMAN, op. cit., p. 80.
72
CHOMSKY; HERMAN, op. cit., p. 84.
640
Membro da audiência: ¿A cuántas personas se les dio muerte cuando usted
estuvo allí?
Colby: [...] En más de dos años y medio de realización del programa Fénix
fueron capturados 20.000 personas, convertidas en traidores 17.000 y
muertas 20.500. El 87% de las muertes fue ocasionado por las unidades
regulares y paramilitares y sólo el 13% por la policía y servicios análogos.
La gran mayoría pereció en los combates, tiroteos y emboscadas y los demás
fueron muertos durante las batidas de la policía. El programa Fénix
preconizaba la detención, por cuanto respetamos la vida humana. [Risos].
73
7.2 - A METODOLOGIA DOS DESAPARECIMENTOS
7.2.1 – O conceito de Desaparecido
A guisa de introdução, pode-se dizer que:
[...] num determinado momento, um homem, uma mulher, ou até crianças,
desaparecem. São arrancados, do meio da rua, são arrancados de suas casas e
de seus locais de trabalho e ninguém sabe mais informar. As indagações
pelos canais regulares, pelos meios judiciais, ou os reclamos da opinião
pública não têm eco. A grita das famílias não tem eco. E ninguém sabe
exatamente o que aconteceu.
74
O cenário apresentado por Hélio Silva é típico da política de desaparecimentos
vinculada às práticas repressivas das ditaduras de Segurança Nacional. Mais do que
desaparição, trata-se de “desaparição forçada”. Esta consiste no seqüestro de pessoas
praticado por órgãos governamentais (Forças Armadas e Polícia). Entretanto, o Estado rejeita
qualquer responsabilidade sobre tais atos e o Poder Judiciário recusa as denúncias realizadas
por parte da sociedade. De fato, a prática do desaparecimento esteve vinculada a detenções
ilegais e clandestinas perpetradas pelo Estado.
75
O termo “forçada” indica que a vítima não
desapareceu pela própria vontade. Ao contrário, na origem do fato que gerou o
desaparecimento forçado, houve uma situação ilegal, o seqüestro. A negação da detenção por
parte do Estado, apesar das denúncias de testemunhas ou a existência de fortes indícios que
apontavam para tal situação, gerou o surgimento da condição de detido-desaparecido. Na
prática, muitas destas vítimas de detenção ilegal e clandestina sobreviveram ao TDE após sua
73
Colby citado por SVÉLOV, B.; TARIN, O. La CIA: sindicato de violencia y terror. In: CIA Y
TERRORISMO INTERNACIONAL. Documentos, testimonios y hechos. Moscú: Progreso, 1985. p. 107.
74
SILVA, Hélio. Desaparecidos, criação da ditadura militar de 64. In: CABRAL, Reinaldo; LAPA, Ronaldo
(Org.). Desaparecidos Políticos. Prisões, seqüestros, assassinatos. Rio de Janeiro: Opção, 1979. p. 26.
75
SERPAJ. Uruguay Nunca Más Informe Sobre la Violación a los Derechos Humanos (1972-1985). Montevideo:
641
legalização (blanqueamento) como prisioneiros políticos. Foram detidos-desaparecidos
temporários, mas que, por razões diversas e imprecisas, foram legalizadas; nesses casos, tal
procedimento evitou que permanecessem naquela situação indefinida que o tempo e as
mudanças políticas da região demonstraram ser irreversíveis, definitivas (com exceção do
caso das crianças seqüestradas).
Concretamente, no final das ditaduras, salvo raríssimas exceções, os desaparecidos
não apareceram nem com a abertura das prisões nem com as leis de anistia que possibilitaram
o abandono dos esquemas protetores da clandestinidade ou do exílio. Isso significou
reconhecer que a possibilidade da existência de detidos-desaparecidos em mãos do Estado
havia deixado de existir. A partir daí, verificou-se que, diferentemente do ocorrido com
detidos-desaparecidos soltos ou legalizados como presos políticos, a maioria não voltou.
Passaram a ser denominados desaparecidos no sentido estrito ou, simplesmente, “os
desaparecidos”. Com o início da redemocratização, rapidamente concluiu-se que
desaparecimento era sinônimo de morte violenta (execução) cometida em nome do Estado e
da Segurança Nacional. A criação, na Argentina, da Comisión Nacional de los Desaparecidos
(CONADEP), o impacto dos testemunhos coletados, a divulgação das suas conclusões e o
julgamento e condenação das Juntas Militares daquele país pelos crimes cometidos
produziram um impacto profundo em todo o Cone Sul. Confirmava-se o pior cenário possível,
cenário esboçado anos antes, através de incessantes e incansáveis denúncias de sobreviventes,
fugitivos e familiares das vítimas. No caso uruguaio, produziu um duplo impacto. Por um
lado, o temor de que os casos semelhantes de desaparições ocorridas no Estado oriental
tivessem o mesmo desenlace que na Argentina. Por outro, a confirmação do destino (a morte)
das dezenas de uruguaios desaparecidos na Argentina sob a ação da coordenação repressiva
regional existente.
A partir da publicitação de denúncias, foi possível estabelecer, de regra, a existência
de quatro modalidades de desaparições:
a) Detidos-desaparecidos (temporários) libertados. Foram indivíduos seqüestrados
que sofreram um período de detenção clandestina em local desconhecido para
serem libertados posteriormente, não oficialmente. A libertação destas pessoas era
acompanhada de “recomendações” de não divulgar nada do que haviam sofrido,
presenciado ou ouvido e, sobretudo, de não registrar denúncias. Foi a exigência
SERPAJ, 1989. p. 285.
642
feita a Enrique Rodríguez Larreta.
76
Portanto, nesta categoria, estiveram muitas
pessoas que, tendo sido seqüestradas, não denunciaram tal fato após sua soltura,
pois essa foi a condição para a mesma e para sua sobrevivência. Da sua detenção,
sabe-se porque os famílias recorreram às organizações de direitos humanos
enquanto as vítimas permaneciam seqüestradas, mas, em geral, não efetuaram
denúncia. O temor de novos seqüestros e de ciclos de tortura e a possibilidade do
desaparecimento definitivo fizeram com que muitas dessas pessoas libertadas
partissem o mais rápido possível para o exílio.
b) Detidos-desaparecidos (temporários) “legalizados”. Foram indivíduos
seqüestrados cuja detenção foi legalizada com a admissão, por parte do Estado, do
estatuto de preso (político), encaminhados a estabelecimentos de reclusão legais e
colocados à disposição da Justiça Militar. O pouco contato disponível com
advogados ou familiares impediu que as informações que dispunham sobre o
período em que estiveram na condição de detidos-desaparecidos pudessem vir a
público imediatamente aos acontecimentos. Dessa forma, informações preciosas
que poderiam proteger ou resgatar outros detidos-desaparecidos em condições
muito adversas não puderam ser utilizadas para tal fim. Em geral, somente quando
concluía a pena imposta ou após o fim da ditadura, é que esse mosaico de
informações ganhava ressonância.
c) Detidos-desaparecidos propriamente ditos. Foram indivíduos seqüestrados que
permaneceram indefinidamente nessa situação. Desde sua detenção, deixou de
haver notícias sobre os mesmos, a não ser relatos e depoimentos de alguns
sobreviventes de centros de detenção onde aqueles foram vistos, ouvidos ou deles
se ouviu falar. O tempo de duração dessa condição foi indefinida. Eduardo Bleier,
por exemplo, esteve na condição de detido-desaparecido desde outubro de 1975;
durante anos, depoimentos desencontrados de sobreviventes dos centros
clandestinos de detenção informaram que Bleier fora visto vivo ainda no final de
1978. Porém, a Comissão para a Paz, nas suas conclusões, retificou a informação
conhecida: ele havia falecido em 1976. De qualquer forma, esteve vivo e
seqüestrado durante vários meses, enquanto o governo negava saber qualquer coisa
76
Cf. item 7.3.2 deste capítulo.
643
a seu respeito.
77
Terminada a ditadura, seu nome continuou integrando as listas de
desaparecidos, fato que passou a ser considerado sinônimo de morte violenta.
78
d) Crianças desaparecidas. Diferentemente da situação de adultos e jovens
desaparecidos, pode-se inferir que, em boa parte destes casos, as vítimas
sobreviveram. Há dois tipos de situações. Uma, a de crianças de pouca idade no
momento em que seus pais foram vítimas de ataque e seqüestro. Neste caso, as
crianças desapareceram junto com os adultos. Houve casos em que elas eram
abandonadas na residência atacada, com vizinhos ou, então, eram devolvidas à
família. A outra situação envolve crianças nascidas em cativeiro, nos centros
clandestinos de detenção. São filhas de mulheres cuja gravidez era de conhecimento
da família ou do círculo de colegas, amigos ou vizinhos. Considerando a regra geral
do comportamento da repressão nesses casos, a suspeição do nascimento dessas
crianças foi sempre quase uma certeza para os familiares e as organizações de
direitos humanos. Mas há também o caso de crianças nascidas em cativeiro de mães
cuja gravidez era desconhecida do entorno mais imediato. Nestas situações, fora
denúncias eventuais registradas por alguns sobreviventes, a falta de informação se
tornou um problema difícil de superar. Em todos esses casos, há uma forte
suposição de que os bebês tenham sobrevivido. Está comprovado que essas crianças
foram consideradas parte do “botim de guerra” da guerra suja. Sabe-se que, na
maioria dos casos, foram dadas a famílias vinculadas, direta ou indiretamente, à
repressão; por isso, aquelas que até agora não foram encontradas permanecem
vítimas de seqüestro e de apropriação da sua identidade.
De qualquer forma, em todas as situações possíveis, os detidos-desaparecidos
(temporários ou não) sempre foram desaparecidos-forçados. Mesmo que esta afirmação
pareça óbvia demais, tal fato deve ser ressaltado porque tais desaparições foram uma das
características fundamentais da situação de ilegalidade com que agiu o Terror de Estado. Via
de regra, os desaparecimentos produzidos pelos regimes de Segurança Nacional foram
resultado de seqüestros, torturas e assassinatos promovidos pelo Estado e contra a vontade das
vítimas.
77
SILVA, op. cit., p. 28.
78
CELS. El secuestro como método. CELS: Buenos Aires, s. d.; BAUMGARTNER, José Luis; DURAN
MATOS, Jorge; MAZZEO, Mario. Os desaparecidos. A história da repressão no Uruguai. Porto Alegre: Tchê,
1987. p. 31.
644
Houve o caso de colaboradores ou delatores que auxiliaram os aparelhos repressivos,
inclusive com responsabilidade direta em casos de desaparições ou execuções e que, depois,
por precaução e segurança, foram tirados de circulação e mandados para o exterior, recebendo
cobertura oficial que permitiu adulterar documentação e assumir nova identidade. Tal situação
foi mais um tipo de ação encoberta pelo próprio governo, como aconteceu nos casos muito
conhecidos do Cabo Anselmo, no Brasil, ou de Amodio Pérez, no Uruguay. É evidente que
estes casos não se incluem entre os desaparecidos políticos dos regimes repressivos de
Segurança Nacional. O sumiço desses “colaboradores/agentes infiltrados” foi uma ação
encoberta pelo Estado, ou seja, uma iniciativa assumida como razão de Estado. O porquê
dessas pessoas receberem esse apoio e tratamento e não terem acabado numa “queima de
arquivo” não é de conhecimento público nem está em questão neste trabalho. Somente se faz
menção a tais casos para ressaltar que não possuem relação com os desaparecimentos
políticos, assim como tais sumiços não se explicam por alguma atividade revanchista de
organizações atingidas por suas atividades de infiltração ou colaboração.
Para a Anistia Internacional, desaparecidas são aquelas pessoas “privadas de
liberdade por agentes do Estado, das que se oculta o paradeiro e se nega a privação de
liberdade”
79
Neste sentido, a organização afirma que a desaparição forçada é “uma política
onde o governo procura alcançar a máxima capacidade repressiva com um mínimo de
responsabilidade.”
80
Na medida em que se impede a aplicação dos dispositivos legais
estabelecidos que garantem a liberdade pessoal e a integridade física do indivíduo, cria-se
uma situação sui generis. A sociedade e a família que procuram informações, desconhecem a
localização e a sorte do detido. Mas quem conhece nega tal fato, ignora-o ou divulga
informações diversionistas.
81
Aliás, é recorrente o recurso desmobilizador dos organismos de segurança, lançando
pistas ou sugerindo hipóteses de que a pessoa procurada passou para a clandestinidade,
esqueceu o seu entorno ou abandonou o país. São informações “plantadas” que visam
produzir um efeito desmobilizador na reação dos familiares.
82
Ao contrário do que respondem
os agentes repressivos às indagações dos familiares, alguém sabe da localização e da sorte
sofrida pelo detido. E o que é mais importante: alguém decidiu o que devia ocorrer à vítima e
79
Programa de 14 pontos da Anistia Internacional para Prevenir as Desaparições Forçadas. In: AMNISTÍA
INTERNACIONAL. Desapariciones forzadas y homicidios políticos. La crisis de los derechos humanos en
los noventa. Manual para la acción. Madrid: Editorial Amnistía Internacional, 1994. p. 291.
80
SERPAJ, op. cit., p. 286.
81
Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 260.
82
Uruguay: Violaciones a los derechos humanos. Terrorismo de Estado y secuelas. Impunidad y derecho a la
verdad. Detenidos-desaparecidos: reclamos de los familiares, organizaciones y políticas. Montevideo, 1996.
645
ordenou segredo sobre o fato. Assim, pode-se afirmar que a sonegação de informações sobre
o destino das vítimas foi um componente importante e generalizado do processo de
desaparecimento justificado por razões de Segurança Nacional.
83
Na medida em que houve
responsabilidade de agentes estatais, o desaparecimento, enquanto modalidade repressiva,
pode ser considerado o estágio maior da política de TDE.
84
Em uma definição mais elaborada e conectada a fatos concretos, o político e
jornalista uruguaio Manuel Flores Mora afirmava que o desaparecimento:
[...] es el involuntario eufemismo con el cual se resume una frase substantiva
más extensa: detenidos sin intervención de la justicia, ni de la ley, ni
comprovación de fé de culpa o de inocencia, condenados a torturas salvajes
hasta la muerte en la inmensa mayoría de los casos, por agentes no
identificados, en lugares desconocidos, y enterrados anonimamente o
anonimamente lanzados al mar, sin constatación escrita de nombre, de culpa
o de fecha, ni aviso a los familiares ni a nadie [...].
85
Trata-se de uma definição de maior abrangência daquela enunciada pela Anistia
Internacional dando conta, de forma geral, das experiências concretas do Cone Sul, pois seu
grau de precisão e detalhamento não entra em contradição com as práticas de desaparecimento
aplicadas nos diferentes países. No Brasil, por exemplo, os documentos básicos das
organizações de direitos humanos têm definido essa prática de forma semelhante. Assim,
consideram o desaparecimento como a condição daquelas pessoas que, apesar de terem sido
seqüestradas, torturadas e assassinadas pelos órgãos de repressão, jamais tiveram suas prisões
e mortes assumidas pelas autoridades governamentais, as quais continuaram a considerá-las
como foragidas.
86
Por conseguinte, nada se sabe sobre os meandros do destino sofrido.
87
Tal
83
BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, 1987, op. cit., p. 31.
84
AMNISTÍA INTERNACIONAL, 1994, op. cit, p. 91.
85
Brecha, 03/03/89, p. 3.
86
Em outubro de 2004, essa discussão tomou conta de amplos setores da sociedade brasileira naquilo que se
denominou a “volta do caso Herzog” e o debate decorrente sobre a abertura dos arquivos da ditadura. Diante das
fotografias que mostravam um homem preso, bastante parecido com o jornalista morto sob tortura e cujo corpo
foi utilizado para criar a farsa de um enforcamento (suicídio) nas dependências do DOI-CODI, de São Paulo, o
Exército se manifestou imediatamente, com significativa truculência: “Quanto às mortes que teriam ocorrido
durante as operações, o Ministério de Defesa tem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos
que as comprovem [...]”. (Zero Hora, 19/10/04) É a saída clássica das ditaduras de Segurança Nacional. Primeiro
negam-se os fatos; depois, diante da persistência das denúncias, apontam a inexistência de documentos oficiais
comprobatórias. Ou seja, é a ausência do atestado oficial o que deslegitima as acusações, apesar das evidências
de testemunhos e depoimentos dos sobreviventes e de outras evidências. Por outro lado, é a própria estrutura
estatal, com grande peso da opinião das Forças Armadas, que continua bloqueando o acesso a esses documentos,
o que constitui um fardo constrangedor para os governos pós-ditadura. Especificamente, trata-se de mais um dos
fatores que expressam a persistência do entulho autoritário. A “volta do caso Herzog”, no Brasil, ocorre
exatamente após 40 anos do golpe de Estado de 1964, 20 anos depois do seu fim e 29 anos depois do “suicídio”
de Vladimir Herzog.
87
Ver: Dossiê dos Mortos e Desaparecidos (1984, p. 14) e Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir
de 1964 (1995, p. 28).
646
postura oficial mudou a partir de 1995, quando, com a aprovação da Lei 9.140, se passou a
reconhecer como sinônimo de desaparecido o termo morto oficial, o que, na prática, era o
reconhecimento público da morte, pelos órgãos repressivos estatais, de pessoas presas.
88
Portanto, são componentes da definição da condição de desaparecido as seguintes
premissas:
a) seqüestro ou detenção ilegal;
b) privação de liberdade;
c) execução de ações por agentes estatais, de forma aberta (policiais e militares) ou
encoberta (serviços de inteligência); também por grupos violentos de extrema
direita sem vinculação oficial com o Estado mas agindo sob suas ordens e proteção;
d) ocultamento do local de confinamento e da situação da vítima, pelas autoridades,
simultâneo à negação de que aquela estivesse sob sua custódia;
e) ocorrência de homicídio estando a vítima detida pelo vitimário;
f) ocultamento do cadáver e de qualquer informação a respeito dos acontecimentos
envolvendo a execução ou morte sob tortura da vítima.
89
O termo “desaparição” não é uma alusão literária, mas uma situação concreta: a de
uma pessoa que, a partir de determinado momento, desaparece, se volatiliza sem que fique
constância mínima da sua vida ou da sua morte, como expresso na anterior referência ao
antecedente nazista desaparecer na noite e no nevoeiro. Este é o efeito e a sensação que
produz tal prática repressiva: o de que a condição da vítima de seqüestro é indefinida; por
isso, diz-se que a desaparição é uma detenção incerta. Trata-se de um preso que não foi
condenado, que não teve defesa e, se estiver vivo, que não recebeu visita. A vítima foi
colocada em uma situação de absoluta falta de defesa pelos seus captores, pois, não
reconhecida sua detenção, fica totalmente a mercê daqueles. É o preso que nunca retorna.
90
A prática do desaparecimento alicerçou-se na impunidade que partia de uma ficção
idealizada e tornada premissa básica: se não havia corpo, não havia vítima; e se não havia
vítima, não havia crime. Com esta fórmula, o TDE procurou isentar-se das suas
responsabilidades diante dos familiares e do conjunto da sociedade e, simultaneamente, visou
evitar remorsos e arrependimentos dos executores da ação. Não havendo corpo, não se via o
resultado dos “interrogatórios” ou as marcas da execução. Sem o corpo, também não se via a
88
TELES, Janaína (Org.). Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2001. p. 159.
89
AMNISTÍA INTERNACIONAL,1994, op. cit., p. 91.
90
SERPAJ, op. cit., p. 286; MOLINA THEISSEN, A. L. La desaparición forzada de personas en América
647
tristeza e a indignação do entorno das vítimas em velórios e sepultamentos que não podiam
acontecer. Enfim, sem o corpo, o sentimento de culpa e a consciência pesada dos
“desaparecedores” ficavam anestesiados ou, talvez, menos tensionados.
91
A presença/ausência dos corpos dos desaparecidos assumiu uma condição metafórica
registrada nos diversos testemunhos e denúncias que tentaram conscientizar as sociedades
atingidas, tanto da dimensão da responsabilidade do Estado quanto do impacto coletivo
produzido. O grande paradoxo escondido por detrás dessa ação do TDE foi o fato de que os
cadáveres das vítimas portadores de sinais de identidade não podiam aparecer; aliás, não
deviam aparecer. Porém, na lógica da imposição da “pedagogia do medo”, era importante que
a população soubesse que as pessoas sumiam. Não se sabia, pelo menos durante algum tempo,
quem estava realmente desaparecido; a repressão tudo fez para não esclarecer essa situação,
não fornecendo nome, sobrenome, data, local de detenção, etc. O que fez foi fomentar e
reforçar os sinais que projetavam os desaparecidos como fator fantasmagórico, abstrato. A
sociedade podia desconhecer ou ter incertezas sobre quem havia desaparecido, mas sabia que
pessoas desapareciam e esse era o medo inculcado como ferramenta repressiva de
desmobilização geral.
O medo dos repressores em relação ao aparecimento de corpos de desaparecidos foi
notavelmente tratado pelo escritor gaúcho Luiz Fernando Veríssimo, numa crônica publicada
em outubro de 1982, momento em que apareciam cadáveres nas praias próximas da fronteira
do Brasil com o Uruguai. Eram parte dos “cadáveres” do Río de la Plata, que causavam
comoção a opinião pública de ambas as margens. As tentativas explicativas diversionistas das
autoridades uruguaias foram insuficientes para esconder o fato de que os restos mortais eram
de presos políticos torturados, assassinados e jogados ao mar pelas ditaduras platinas. O texto
de Veríssimo retratava a indignação e o impacto diante da constatação desses fatos:
Como na Argentina
Não é fácil eliminar um corpo. Uma vida é fácil. Uma vida é cada vez mais
fácil. Mas fica o corpo, como lixo. Um dos problemas desta civilização: o
que fazer com o próprio lixo. As carcaças de automóveis, as latas de cerveja,
os restos de matanças. O corpo bóia. O corpo vai dar na praia. O corpo brota
da terra, como na Argentina. O que fazer com ele? O corpo é como o lixo
atômico. Fica vivo. O corpo é como o plástico. Não desintegra. A carne
apodrece e ficam os ossos. Forno crematório não resolve. Ficam os dentes,
ficam as cinzas. Fica a memória. Ficam os parentes. Ficam as mães. Como
na Argentina.
Seria fácil se o corpo se extinguisse com a vida. A vida é um nada, acaba-se
Latina. KO’AGA ROÑE’ETA, Série VII, 1998.
91
DUHALDE, op. cit., p. 60.
648
com a vida com um botão ou com uma agulha. Mas fica o corpo, como um
estorvo. Os desaparecidos não desaparecem. Sempre há alguém sobrando,
sempre há alguém cobrando. As valas comuns não são de confiança. A terra
não aceita cadáver sem documento. Os corpos são devolvidos, mais cedo ou
mais tarde. A terra é protocolar, não quer ninguém antes do tempo. A terra
não quer ser cúmplice. Tapar os corpos com escombros não adianta. Sempre
sobra um pé, ou uma mãe. Sempre há um bisbilhoteiro, sempre há um
inconformado. Sempre há um vivo.
Os corpos brotam do chão, como na Argentina. Corpo não é reciclável.
Corpo não é reduzível. Poderia-se dissolver os corpos em ácido mas não
haveria ácido que chegasse para os assassinados do século. Valas mais
fundas, mais escombros, nada adianta. Sempre sobra um dedo acusando. O
corpo é como o nosso passado, não existe mais e não vai embora. Tentaram
largar o corpo no meio do mar e não deu certo. O corpo bóia. O corpo volta.
Tentaram forjar o protocolo - foi suicídio, estava fugindo - e o corpo
desmentia tudo. O corpo incomoda. O corpo faz muito silêncio. Consciência
não é biodegradável. Memória não apodrece. Ficam os dentes.
Os meios de acabar com a vida sofisticam-se. Mas ainda não resolveram
como acabar com o lixo. Os corpos brotam da terra, como na Argentina.
Mais cedo ou mais tarde os corpos brotam da terra, como na Argentina. Mais
cedo ou mais tarde os mortos brotam da terra.
92
Na mesma lógica da leitura metafórica de Veríssimo sobre a incessante emergência
de corpos, incomodando com sua presença, como vestígios mudos de algo que o poder não
pode explicar e que por isso deve tergiversar ou agir de forma diversionista, insere-se o
discurso de Hebe de Bonafini, das Madres de Plaza de Mayo, diante da Escuela de Mecánica
de la Armada (ESMA), a respeito do mesmo fato, os vôos da morte e os cadáveres devolvidos
pela água:
[...] Para nosotras no es nuevo lo que dice Scilingo [os vôos da morte sobre o
Río de la Plata],
que desgraciadamente sabíamos lo que pasaba.
Que comenzaron a tirar vivos a nuestros hijos [...].
Pero claro, los cadáveres volvían a aparecer.
Y esto, hoy, a tantos años de distancia,
nos hace pensar que vuelven y vuelven y vuelven
y esos cadáveres que aparecieron [...] por primera vez en las playas de Santa
Teresita, en Uruguay,
eran la muestra de que nuestros hijos vuelven todo el tiempo,
vuelven en cada uno que grita,
vuelven en cada uno que reclama,
viven en cada uno de ustedes.
Los quisieron enterrar y no pudieron.
Los tiraron vivos al mar y no pudieron.
Los quemaron con gomas y no pudieron.
Los enterraron abajo de las autopistas y no pudieron.
Nosotras, sus madres, que salimos a la calle, hace casi 18 años,
nunca pensábamos que hoy, en este lugar siniestro [diante da ESMA],
lo íbamos a decir,
92
Zero Hora, 04/11/82, p. 6.
649
asesinos hijos de mil puta,
los odiamos, los odiamos de lo más profundo...
93
Nos países onde ocorreram práticas estatais de desaparecimento, o envolvimento das
Forças Armadas foi evidente, principalmente do Exército, setor que reuniu melhores
condições para levar adiante essa prática: comando centralizado, agilidade operacional,
abrangência nacional, treinamento e armamento específico, disciplina, hierarquia e
obediência. Claro que também houve centralidade na participação dos serviços de informação,
normalmente vinculados às tarefas de mapeamento do inimigo interno, fornecimento de
informação às unidades envolvidas mais diretamente no combate à “subversão” e execução
dos interrogatórios. Igualmente, a estrutura policial teve atuação destacada; em alguns casos, a
guerra contra-revolucionária a teve como protagonista principal até sua substituição pelo
Exército. Não se pode perder de vista também a demanda de imediato apoio logístico exigido
nas ações desta modalidade repressiva: armas, munições, veículos (oficiais e encobertos),
equipamento de comunicações, rede de centros de detenção e de tortura, meios para desfazer-
se dos cadáveres, etc. Houve uma cadeia hierárquica envolvida, desde o oficial de maior
graduação que ordena a ação até o de menor cargo que executa ordens.
94
O detido-desaparecido é uma pessoa submetida a uma privação sensorial e motriz
generalizada. Está sempre encapuzado e de mãos amarradas. Falar lhe é estritamente proibido
e toda forma de comunicação ou qualquer outra infração dessas rigorosas normas resultam em
maior violência. Por outro lado, sua capacidade de movimentar-se é quase inexistente e sofre
com a profunda degradação imposta pelas péssimas condições de alimentação e de higiene.
Desconectado do mundo exterior, especula com a pouquíssima informação que capta de
outros companheiros de infortúnio ou da fala dos agentes repressores. A partir dos barulhos e
sons eventuais (sinos de escola, ruído de trens, trânsito pesado, etc.) procura adivinhar o local
em que pode estar detido. Desconfia que a família e os amigos ignoram o seqüestro e o local
de detenção e qualquer esperança de que alguém tenha registrado a detenção ou a chegada ao
centro de detenção se esvai diante da convicção com que os carcereiros e os torturadores
repetem incessantemente frases como “nadie sabe que estás acá”; “vos estás desaparecido”;
“vos no existís”; “no estás con los vivos ni con los muertos”. É neste sentido que Diana
Kordon afirma que “a pessoa desaparecida se volatiliza para o mundo e o mundo também se
volatiliza para ela”
95
93
Documentário Por estos ojos. El caso Mariano Zaffaroni. Direção e roteiro de Gonzalo Arijón & Virginia
Martínez. Uruguay/Francia, 1997.
94
AMNISTIA INTERNACIONAL, 1994, op. cit., p. 95.
95
KORDÓN apud MOLINA THEISSEN, 1998, op. cit., p. 94.
650
Um dos objetivos visados com a prática dos desaparecimentos foi projetar sobre as
pessoas do entorno do desaparecido uma constante incerteza. Está vivo ou morto? Fugiu ou se
exilou? A esposa de um desaparecido continua casada ou virou viúva? E o filho? É órfão?
Mas, e se o desaparecido voltar? O nome deve continuar constando na lista de chamada de
uma turma liceal ou universitária ou deve ser riscado? Tais situações de incerteza e de
indefinição geraram, em muitos casos, inércia. À medida que o tempo foi passando e que
ocorreu a divulgação de novos testemunhos sobre os “porões” das ditaduras, as famílias
atingidas viram-se diante de novas e desagradáveis situações. As que finalmente passaram a
aceitar a irreversibilidade do desaparecimento com vida do indivíduo sofreram as
repercussões jurídicas e econômicas dessa situação. A falta de um atestado de óbito impedia o
reconhecimento de mudança de estatuto civil para os esposos e os filhos, além de impedir a
abertura de trâmites sucessórios e de direitos de herança. As viúvas não recebiam a pensão
correspondente porque as autoridades não assumiam a morte do desaparecido.
96
Ou seja, as pessoas cuja existência havia sido suprimida pelo Estado na modalidade
repressiva do desaparecimento, tinham sua presença exigida (na forma de assinaturas) em
documentos impossíveis de serem preenchidos (permissões para filhos menores, atestados de
boa conduta, boletins escolares, etc.). É exemplar o caso da família Hobbas, uruguaios
residentes em Buenos Aires em 1976.
97
O casal e três filhos foram seqüestrados na Argentina.
Um quarto filho estava, no momento do seqüestro, com a avó, em Montevidéu. A mãe e as
crianças desapareceram. O pai teve legalizada sua condição de preso. Quando saiu de prisão
após ter cumprido a pena imposta, decidiu partir para o exílio. Antes disso, foi buscar o filho
que estava no Uruguai para levá-lo junto. A justiça uruguaia, porém, impediu a saída do
menor alegando que faltava a permissão da mãe. Na época, ela continuava desaparecida. Pai e
filho, únicos sobreviventes dessa tragédia, foram proibidos de viajar juntos porque a
burocracia do mesmo Estado repressor responsável pelo exílio da família e, indiretamente,
pelo seu desaparecimento, exigia a assinatura de uma mãe desaparecida que nunca mais
voltou. O pai partiu para o exílio onde morreu pouco depois. Até a maioridade, o filho
sobrevivente foi impossibilitado de sair do país. Nunca mais viu mãe ou pai.
A força da ausência-presença dos desaparecidos, potencializada pelas famílias e
pelas organizações de direitos humanos, geralmente se manifesta também como denúncia,
96
SILVA, Hélio, 1979, op. cit., p. 27.
97
Ver item 8.5 do capítulo 8°.
651
ANEXO IX
Charge de Santiago
Fonte: FERRI, Omar. Seqüestro no cone sul.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
652
utilizando formas simbólicas de referência que lembram presenças desfocadas,
volatilizadas e implícitas na idéia do Decreto Noite e Nevoeiro, como máscaras indefinidas,
silhuetas pontilhadas ou símbolos de interrogação. Vale lembrar a charge-homenagem do
cartunista Santiago às mães de desaparecidos (Anexo IX), charge que, partindo da figura da
Pietã do escultor Michelângelo, apresenta uma Virgem Maria chorando sobre a silhueta de um
Cristo pontilhado, desfocado, “desaparecido”. Da mesma forma, Barbosa Lima Sobrinho faz
alusão a esse caráter impreciso quando intitula um pequeno texto sobre os desaparecidos
“Rosto sem feições, figura sem nome”.
98
Tal fato lembra o título do relato autobiográfico do
jornalista argentino Jacobo Timerman sobre sua condição de detido-desaparecido temporário,
“Prisioneiro sem nome, cela sem número”.
99
Em todos os casos, há uma forte ênfase na
ausência das marcas de identidade junto com as imprecisões e a desumanização.
Um outro elemento inédito presente na desaparição forçada foi a desconexão, não só
da vida, mas também da morte. A vítima foi tratada como coisa, porque, no desaparecimento,
sequer houve o direito de resgatar sua identidade. Até o nome, aquilo que há de mais
intransferível e que singulariza o ser humano, foi expropriado. O sistema, ao decidir que devia
ser jogado ao mar ou ser cremado, visou desaparecer com qualquer vestígio da sua existência
e, mesmo quando foi enterrado clandestinamente, não passou de um registro impessoal, um
número qualquer (no Brasil) ou um NN (o Noite e Nevoeiro nazista ou o Ningún Nombre
platino).
100
A prática do desaparecimento expressa um fato que gera uma situação inédita em
termos de modalidades repressivas. Não se trata só de produzir a morte de alguém, mas
inclusive de negar a possibilidade de morrer como ser humano. Em realidade, o desaparecido
não é um não-morto. Porém, faltando o registro dos seus últimos momentos, desconhecendo-
se o “como, quem, quando e porquê” e, diante da ausência do local onde estão seus restos, o
desaparecido acaba sendo alguém privado da própria morte. E isto ocorre ao “desdibujar la
98
BARBOSA LIMA SOBRINHO. Rosto sem feições, figura sem nome. In: CABRAL, Reinaldo; LAPA,
Ronaldo (Org.). Desaparecidos Políticos. Prisões, seqüestros, assassinatos. Rio de Janeiro: Opção, 1979.
99
TIMERMAN, Jacobo. Prisioneiro sem nome, cela sem número. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.
100
Voltando a Barbosa Lima Sobrinho: “[...] ao totalitarismo não basta o sacrifício do adversário, do dissidente
que talvez não seja mais que um indiferente ao governo constituído, uma simples vítima da delação de interesses
que contra ele conspiram. O desaparecido dos comunicados de guerra ainda pode ser procurado. No
totalitarismo, a procura do desaparecido pode valer como ato de subversão ou a candidatura ao próprio
desaparecimento. O desaparecido não deixa esposa, nem filhos, nem amigos. Há que apagar tudo que possa
recordar sua memória ou sua vida, pois que, na verdade, responde pelo maior dos crimes possíveis, o crime de
haver nascido, para o qual não existe perdão, nem piedade, num regime em que todas as práticas tenham o
direito de cobrir-se com a bandeira sagrada da Segurança Nacional. Foi em nome dela que veio a surgir, na
crônica dos povos que se supunham civilizados, o rosto sem feições e a figura sem nome dos desaparecidos, a
quem se nega até mesmo o direito a uma lápide funerária ou, ainda menos do que isso, o direito a um atestado de
óbito.” BARBOSA LIMA SOBRINHO, op. cit., p. 28.
653
identidad de los cuerpos en los que la muerte puede dejar testimonio de que ése que murió
había tenido vida.
101
Como argumentou o próprio general Videla, ao tentar explicar diante de
câmaras de televisão, para jornalistas, o que era um desaparecido: “Mientras sean
desaparecidos no puede haber ningún tratamiento especial, es una incógnita, es un
desaparecido, no tiene entidad, no está muerto ni vivo, está desaparecido.
102
A morte genérica, diluída e cheia de imprecisões desumaniza a experiência de viver e
a falta de resposta, caso a caso, torna a incerteza uma ferida permanentemente exposta. A
privação da morte impacta a memória, e a suspensão indefinida do luto age sobre o
esquecimento e o anestesiamento individual e coletivo resultantes.
Findadas as ditaduras de Segurança Nacional, a persistência de desaparecidos e a
falta de esclarecimentos ou elucidamento das situações que os geraram levou à presunção de
que os mesmos haviam sido alvos de execuções extrajudiciais. Aliás, fatos que já haviam sido
denunciados durante a vigência das próprias ditaduras e confirmados, posteriormente, pelos
testemunhos colhidos pelas diversas Comissões da Verdade e da Justiça e pelos diversos
relatórios “Nunca Mais”. Em função disso, os desaparecimentos passaram a ser vistos como
“homicidios ilegítimos y deliberados, perpetrados por orden de un gobierno o con su
complicidad o consentimiento.
103
Quer dizer, foram execuções extrajudiciais e não acidentes
recorrentes de excessos ou obra de soldados ou policiais que agiram isoladamente. Foram
fatos previstos ou absorvidos dentro de uma rede de comando cujas decisões e ordens
emanaram de esferas governamentais.
104
7.2.2 – O desaparecimento como sistema
Enquanto modalidade de repressão, o desaparecimento se constituiu em um método
brutal, sem restrições legais, éticas ou humanitárias e associada a outras modalidades de
destruição de toda e qualquer oposição. Todos os governos implicados com práticas de
desaparecimento negaram seu envolvimento nos casos vindos a públicos ou tentaram
relativizar sua importância.
No caso argentino, os desaparecimentos foram justificados diante do convencimento
101
Héctor Schmucler citado por DUHALDE, 1999, op. cit., p. 60.
102
Aparecido. El llamado de la sangre. Programa Vida y Vuelta. Direção e roteiro: Jorge Bernardez. Buenos
Aires: Canal 7, 2003. Programa de TV.
103
AMNISTÍA INTERNACIONAL, 1994, op. cit., p. 93.
104
Idem.
654
das Forças Armadas da necessidade de eliminação física dos inimigos e sua posterior
desaparição. As “vantagens do método”, segundo elas, consistiam em: 1) evitar a reação
externa que poderiam produzir os fuzilamentos massivos;
105
2) evitar a reação interna de uma
sociedade despreparada para aplicação massiva ou seletiva da pena de morte; 3) obter
enormes vantagens sobre o inimigo; 4) possibilitar a aplicação massiva da pena de morte
(incluindo idosos e menores); 5) proteger erros e excessos e evitar ações das vítimas; 6) diluir
responsabilidades futuras.
106
O esquema se estruturou sob a forma do Paralelismo Global: a
existência de uma normativa global paralela e secreta, fundamentando a duplicidade de
atuação (legal e ilegal), de estruturas repressivas.
107
Essa duplicidade abrangeu decisões,
operações, investigações, detenções, aplicação de penas, execuções clandestinas, etc. Quase 9
mil pessoas foram desaparecidas na Argentina, segundo dados oficiais; a estimativa das
organizações de direitos humanos aponta para 30 mil, registrando a particularidade de que
mais de 500 eram crianças.
No caso brasileiro, a situação foi diferente. A pena de morte para crimes políticos foi
estabelecida pela Junta Militar, em 1969, através do Ato Institucional n° 14, após o seqüestro
do embaixador estadunidense Charles Elbrick, no Rio de Janeiro, efetuado por um comando
guerrilheiro. Entretanto, houve um recuo da aplicação “legal” da pena de morte aos inimigos
do regime e o que se viu foi a aplicação da pena de morte de fato a um certo número de
opositores do regime.
108
A dinâmica do desaparecimento se organizou através de estruturas
paralelas, mas reduzidas, e destinadas a cumprir objetivos específicos e seletivos. No Brasil, o
105
Videla explicou anos depois: “No, no se podía fusilar. Pongamos un número, pongamos cinco mil. La
sociedad argentina no se hubiera bancado los fusilamientos: ayer dos en Buenos Aires, hoy seis en Córdoba,
mañana cuatro en Rosario, y así hasta cinco mil. No había otra manera. Todos estuvimos de acuerdo en esto. Y
el que no estuvo de acuerdo se fue. ¿Dar a conocer donde están los restos? ¿Pero, qué es lo que podemos
señalar? ¿El mar, el río de la Plata, el Riachuelo? Se pensó, en su momento, dar a conocer las listas. Pero luego
se planteó: si se dan por muertos, enseguida vienen las preguntas que no se pueden responder: quién mató,
dónde, cómo.” Depoimento do general Videla, de 25/08/98, para María Soane e Vicente Muleiro. In: SEOANE,
María; MULEIRO, Vicente. El Dictador. La historia secreta y pública de Jorge Rafael Videla. Buenos Aires:
Editorial Sudamericana, 2001, p. 215.
106
DUSSEL, Inés; FINOCCHIO, Silvia; GOJMAN, Silvia. Haciendo Memoria en el País de Nunca Más. Buenos
Aires: EUDEBA, 1997. p. 23. Os dados divulgados pelas organizações de direitos humanos dão uma dimensão do
que identificam, no caso argentino, como um genocídio. Dos 30 mil desaparecidos, 80% tinham entre 16 e 35
anos. Calcula-se que aproximadamente 30% eram mulheres, destas, 10% estavam grávidas quando ocorreu seu
seqüestro (aproximadamente mil). Até 1997, de um total aproximado de 500 crianças sabidamente seqüestradas,
cerca de 50 haviam sido encontradas. Dessas, a metade voltou à convivência da família verdadeira; 13
continuavam com a família adotiva após mútuo acordo entre as partes; 7 foram confirmadas como assassinadas e
5 estavam sob disputa judicial. ARDITTI, R.; BRINTON, M. La labor de las Abuelas de Plaza de Mayo. In:
ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Restitución de niños. Buenos Aires: EUDEBA, 1997, p. 38. Em 2004,
Abuelas contabilizam a restituição de 79 identidades.
107
CELS. El caso argentino: desapariciones forzadas como instrumento básico y generalizado de una política.
La doctrina del paralelismo global. Su concepción y aplicación. Necesidad de su denuncia y condena.
Conclusiones y recomendaciones. Buenos Aires: 1981.
108
CABRAL; LAPA, op. cit., p. 20.
655
número oficial de mortos e desaparecidos é de 366 vítimas.
No caso chileno, a repressão estatal do período pinochetista foi realizada por agentes
ou pessoas diretamente a serviço do Estado. Em 1984, questionado sobre a existência de
desaparecidos no Chile, Pinochet desqualificou a importância dos mesmos ao compará-los
com a população do país: “De doze millones, dos mil, no es nada.”
109
O perfil das vítimas da
prática de desaparição-forçada atesta que a repressão teve um caráter fundamentalmente
político contra determinadas organizações políticas e sociais e contra uma geração de pessoas
comprometidas com os processos políticos de mudança social.
110
No Chile, embora continue
havendo uma grande polêmica a esse respeito, o número oficial de mortos e desaparecidos
ultrapassa as 3 mil vítimas. O maior número de casos de seqüestro, morte ou desaparecimento
ocorreu nas violentas jornadas repressivas que se seguiram à queda do governo socialista de
Allende.
O processo de desaparecimento de pessoas contou, via de regra, com as seguintes
etapas: a) seqüestro da vítima; b) transferência a um centro clandestino de detenção; c) prisão
ilegal; d) submetimento a torturas; e) extermínio ou, em poucos casos, a “legalização” da
situação da vítima.
111
Este esquema, elaborado a partir das características do caso argentino,
pode ser adequado ao Uruguai, com as ressalvas de que a transferência dos seqüestrados
também podia ser para estabelecimentos legais e que a relação entre os casos de detidos
assassinados ou legalizados pesou muito mais para a segunda alternativa.
Entre os elementos comuns das práticas de desaparecimento das ditaduras de SN do
Cone Sul, destacam-se: o trabalho da inteligência militar; pois, mesmo quando o operativo é
efetuado por grupos paramilitares, estes dificilmente estão dissociados da estrutura militar.
Outro elemento a considerar é o caráter centralizado do sistema; ele é dirigido desde o núcleo
de comando militar, em ordem descendente e hierárquico, através dos aparatos de
inteligência.
112
Por outro lado, é um sistema clandestino e encobre um aparato que inclui
grupos operativos, locais de reclusão, veículos, armamento, serviços de documentação,
pessoal da área da saúde, etc.
Uma preocupação do sistema foi o fracionamento do seu funcionamento de forma a
109
Programa Jorge Gestoso investiga: La Doble Desaparecida. CNN en Español, 2001.
110
PADILLA BALLESTEROS, Elías. La memoria y el olvido. Detenidos desaparecidos en Chile. Santiago:
Ediciones Orígenes, 1995.
111
PASCUAL, Alejandra L. Terrorismo de Estado. A Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2004. p. 62.
112
Deve salientar-se, porém, que a hierarquia da repressão, particularmente daquela que funcionava dentro de
uma dimensão encoberta, não era, necessariamente, a mesma da militar. As unidades que desempenhavam ações
operativas sob essa dimensão possuiam certa autonomia, o que podia gerar situações nas quais, oficiais inferiores
que delas faziam parte, tinham maior poder que outros de maior graduação mas que não estavam envolvidos
656
tornar mais fácil a desresponsabilização consciente dos envolvidos ou de despersonalizar a
tomada de decisões, dentro da lógica do cumprimento de ordens (obediência devida). Assim,
houve uma especialização de tarefas, uma divisão de trabalho. Os comandos de operações de
seqüestro agiam com base nas informações produzidas pela inteligência, encarregada de
interrogatórios, torturas, seguimentos e escutas. Outros, envolviam-se nos “traslados”
(execuções) ou desaparecimentos de cadáveres. A segmentação ocorria inclusive dentro das
unidades de detenção. A divisão de tarefas se mostrou mais complexa na experiência
argentina. Mas, guardadas as devidas proporções de escala, também se verificou no Uruguai.
Todavia, houve sobreposição de tarefas, sobretudo nos comandos uruguaios que agiram em
Buenos Aires. Pilar Calveiro resume assim as ações: os comandos operativos recebiam a
ordem de seqüestrar alguém cuja captura tinha sido decidida em outra instância, os oficiais de
inteligência recebiam um “pacote”, já encapuzado, e o faziam falar; os que se desfaziam deles
(os desaparecedores de cadáveres) compreendiam o último degrau do processo. A
fragmentação do trabalho desresponsabilizava o cumprimento de ordens e diminuía a
possibilidade de que alguém pudesse ser tomado pela dúvida da desobediência ou da
denúncia.
113
A política dos seqüestros sem fim - os desaparecimentos - foi uma decisão tomada
pelos chefes militares. O seqüestro e a posterior ausência de toda informação sobre o destino
das vítimas foi um método de detenção de pessoas bastante difundido e justificado “por
razões de Segurança Nacional”. Tal política estava implícita nos ensinamentos e nas diretrizes
dos cursos de contra-insurgência.
114
O seqüestro das vítimas, assim como a configuração da
detenção-desaparecimento, apontou para a “clandestinização” da repressão e o
reconhecimento de um alto grau de impunidade, conformando um mecanismo de extorsão,
tanto para o detido-desaparecido quanto para quem o procurava, bloqueado e imobilizado
diante de uma situação que impedia apelar aos dispositivos de defesa da liberdade e da
integridade física. A vítima, detida na sua casa (preferencialmente), no trabalho ou na rua,
geralmente diante de testemunhas, era privada de todo contato com o exterior, ficando isolada
e indefesa. Encapuzada, nua, submetida à violência sistemática, ficava a mercê dos
torturadores que, em tese, tinham semanas, meses, anos para desempenhar sua terrível tarefa.
A dinâmica dos seqüestros foi marcada por um certo padrão de ações ostensivas e
violentas. A unidade envolvida estava sempre fortemente armada e irrompia ostensivamente
nessas tarefas.
113
CALVEIRO, Pilar. Nuestras gloriosas Fuerzas Armadas. In: GELMÁN, Juan; LA MADRID, Mara. Ni el flaco
perdón de Dios. Hijos de desaparecidos. Buenos Aires: Planeta, 1997. p. 80.
114
DUHALDE, op. cit., p. 308.
657
com ameaças, gritos e atitudes violentas. Às vezes, eram precedidas por dias de seguimento e
vigilância (por vezes secreta, por vezes ostensiva). Em muitos casos, as ameaças se traduziam
em ações intimidatórias como disparos contra portas, janelas e móveis; não foram raras as
situações em que os alvos do operativo eram alvejados e até mortos. A duração das ações era
diversa. Podiam ser muito rápidas, caso dos operativos nos locais de trabalho, ou
relativamente longos, sobretudo nas residências, onde era comum que se montassem
ratoneras (armadilhas) à espera da provável chegada de novas vítimas. Nestes casos, ocorria
minuciosa revista do imóvel “tomado”, acompanhada de ação destrutiva, intimidatória e, em
certas ocasiões, do saque parcial ou geral do mesmo. Também houve a detenção de familiares
na qualidade de reféns, engendrando situações de violência e/ou constrangimento, como
forma de pressionar os “subversivos”.
Os seqüestros paralisavam a resposta de familiares e testemunhos, assim como da
população em geral, e debilitaram muito a possibilidade de auto-defesa ou de posturas
solidárias. Em realidade, o seqüestro foi um método repressivo de efeitos multiplicadores e
conseqüências profundas sobre todo o tecido social, inclusive atingindo setores que, em tese,
estavam distantes das vítimas. A ocultação dos fatos diluiu a individualização de
responsabilidades das autoridades governamentais e permitiu aos serviços de inteligência
maior mobilidade e desenvoltura, sem sofrer intervenção do judiciário, da imprensa, das
famílias ou dos advogados.
115
Conseqüentemente, a utilização do seqüestro como procedimento de detenção de
pessoas suspeitas de “subversão” apresentou diversas vantagens:
a) Permitiu manter a vítima, durante um período longo, isolada do mundo exterior,
privada de defesa e fora do controle judicial.
b) Possibilitou a aplicação sistemática e ilimitada da tortura física e psicológica durante
os interrogatórios. Um seqüestro onde a libertação do detido é incerta gera expectativas
de obter muita informação.
c) Estabeleceu prazos longos para resolução dos casos em questão (libertação,
legalização, eliminação do seqüestrado ou persistência da condição indefinida de
desaparecido), possibilitando o cumprimento do plano previsto sem temor a
complicações.
d) Permitiu maior eficiência aos operativos e garantiu, a seus executores, uma margem
115
CELS. El secuestro como método. Op. cit.. Também: CONADEP. Nunca Mais. Informe da Comissão
Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, 1984. p. 174.
658
significativa de impunidade.
e) Estabeleceu o reinado do terror, produto do aparato que envolveu os operativos,
completamente desproporcionais em relação às possibilidades defensivas das vítimas.
A ação dos órgãos repressivos do Estado se beneficiou da condição de clandestinos
de muitas das suas vítimas, pois tornava mais fácil ocultar o seqüestro e dava maior liberdade
às forças de segurança. Muitas das famílias atingidas ignoravam os pormenores da
clandestinidade dos filhos ou a existência de uma dupla identidade. Isso permitia às Forças
Armadas reforçar o aspecto da clandestinidade da vítima. Podiam alegar com maior facilidade
que nada sabiam a respeito daquela. E essa informação, plausível para os familiares, era
reforçada, mesmo quando a pessoa já tivesse sido presa ou, até, desaparecida. Na prática,
nessas condições, se a pessoa seqüestrada (detida) morresse na “máquina”, seria muito difícil
que alguém soubesse disso. Funcionando o pacto de silêncio entre aqueles que controlavam o
processo de execução, o fato viria a ser o de mais uma desaparição anônima e ninguém seria
responsabilizado por essa morte. O general argentino Benito Bignone, em uma das tantas
tentativas públicas de desresponsabilizar os militares no tema desaparecidos, afirmou que:
[...] los primeros que optan por desaparecer son ellos. [...] ellos pasan a la
clandestinidad, desaparecen. Se ponen nombres de guerra, tienen
documentos falsos y obran en la clandestinidad. O sea, para la sociedad no
existen. ¿Nos vamos a preocupar despues nosotros por identificarlos?
116
Distorcendo a essência dos acontecimentos e o significado do que seja um
desaparecimento político, Bignone desloca o eixo da questão e, paradoxalmente,
responsabiliza os desaparecidos pelo seu próprio desaparecimento. Não é muito diferente da
explicação dada pelo ex-chefe da DINA chilena, o general Manuel Contreras:
Están desaparecidos por una razón. En los combates urbanos, cuando los
individuos caían heridos o muertos eran retirados por los extremistas del
lugar y ellos los enterravan secretamente sin comunicarlo a su familia.
117
Aqui o deslocamento do foco aponta para os companheiros como algozes do
sofrimento provocado nos familiares de desaparecidos. O importante é não perder de vista a
lógica do sistema, independentemente destas tentativas diversionistas. Como a desaparição
encobre a autoria do acontecimento e o rastro da vítima, torna-se mais fácil alegar que não
houve preso nem cadáver. Por conseguinte, não houve vítima; logo, na argumentação do
116
VERBITSKY, Horacio. Argentina: Estaban de acuerdo - Bignone: la iglesia convalidó la tortura. Página 12,
04/09/03.
659
sistema, qualquer acusação a esse respeito permanece infundada.
A partir do seqüestro-detenção, ocorria o traslado para um local e um destino incerto.
Segundo indicam Baumgartner, Duran & Mazzeo, no Uruguai, até 1974, os detidos eram
levados a dependências legais das Forças Armadas. Posteriormente, se utilizou o recurso de
centros clandestinos de reclusão. Os mesmos eram clandestinos apenas para a opinião pública,
já que o seu funcionamento estava inserido na estrutura organizativa e repressiva das Fuerzas
Conjuntas. Quanto à Argentina, os seqüestrados, incluindo os uruguaios, desapareceram em
centros clandestinos como regra geral.
118
A partir do momento do seqüestro, iniciava-se um duro suplício. As vítimas perdiam
seus direitos básicos e eram privadas de qualquer comunicação com o mundo exterior. Eram
confinadas em locais desconhecidos, num clima de incerteza total quanto ao destino imediato.
No esquema do “inimigo interno”, o detido-desaparecido nem como bandido foi considerado,
pois não possuía nem o direito de conhecer sua sentença. Negaram-lhes a condição humana.
Foram tratados como se não tivessem sensibilidade, enquanto tentavam sobreviver ancorados
na memória dos pais, dos filhos, da esposa ou do marido. Foi lhes negado até o direito de estar
em algum lugar em uma determinada data. O desaparecido sequer poderia vir a ser enterrado,
pois não estava. Não estava nem está preso nem morto: simplesmente não está. Não está, não
é. Considerado um “não-ser”. Por isso, a condição e o estatuto do desaparecido foi inédito no
que diz respeito a ser vítima de uma dada estrutura repressiva, pois aquele não tinha direito a
ser processado nem julgado.
119
O mecanismo seqüestro-detenção contou com a vantagem de que, para os juízes, o
detido, como tal, não existia, tornando extremamente difícil a procura dos familiares e a
investigação dos fatos concretos. De fato, a desaparição exerceu um efeito desmobilizador na
família. Fosse por medo, por desconhecimento do ocorrido ou do tipo de envolvimento ou
militância do detido, fosse por não saber o que fazer ou a quem recorrer (caso,
principalmente, de famílias de origem muito humilde) ou por achar que assim era possível
proteger o familiar, o fato é que houve demora em agir. Ainda por cima, os organismos de
segurança, além de negar o seqüestro, sugeriam prováveis destinos da pessoa procurada (a
clandestinidade, o exílio, o abandono do núcleo familiar, etc.). Em muitos casos, estas
“informações” geravam também uma certa expectativa. Da mesma forma, as forças de
segurança permitiam que, em alguns casos, as famílias recebessem contatos telefônicos ou
117
Depoimento no programa especial Jorge Gestoso investiga: La Doble Desaparecida. CNN en Español, 2001.
118
BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 27.
119
CONADEP, op. cit., p. 3; SERPAJ, op. cit., p. 8 e p. 286.
660
cartas do detido (censuradas ou ditadas), em troca do compromisso de desistirem de continuar
procurando ou de fazer denúncia pública. A chantagem e a extorsão dos familiares dos
detidos-desaparecidos, onde a vida deste aparecia como moeda de troca, foram características
das práticas de desaparecimento e se somaram aos outros mecanismos inibitórios da ação
defensiva ou denunciatória. Tratava-se de um jogo de cartas marcadas onde o desaparecido e
seus familiares, estavam completamente desamparados.
120
Os familiares dos desaparecidos foram mantidos na ignorância, e, com freqüência, as
autoridades prolongaram a incerteza sobre a situação da vítima muito depois da sua morte.
Impediram os familiares de começar uma nova vida, de sofrer e superar o luto e de solucionar
questões jurídicas e práticas que dependiam do reconhecimento oficial do falecimento da
vítima (questões relativas a pensões ou heranças, por exemplo). Para a família, o desaparecido
não é uma lembrança, mas o resultado de um ato ilegal que, além de gerar dor, perpetua-se.
121
Suzana Lisbôa, da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos (Brasil), afirma que
“ter um familiar desaparecido é uma tortura permanente” e lembra que, configurada a situação
de desaparecidos dos seus filhos, algumas mães “jamais mudaram de casa ou de lugar, porque
para o coração de uma mãe, um filho desaparecido deve ser uma coisa que não cicatriza
jamais”.
122
Em todos os países onde ocorreram desaparecimentos políticos, registram-se fatos
semelhantes: pais e filhos que esperaram a volta dos filhos ou pais desaparecidos, mesmo
passados muitos anos do seqüestro, mantendo tudo como estava – o quarto, uma biblioteca, o
lugar na mesa, a roupa, etc. – como se o tempo estivesse congelado, apesar da passagem dos
anos.
123
É uma situação desesperadora. Os hábeas corpus ou recursos de amparo são
inoperantes: as autoridades negam a detenção - ainda quando ocorrida no próprio lar - não se
sabe o que fazer ou a quem recorrer; duvida-se até dos benefícios da busca. A esperança que
nasce e morre a cada dia, a negativa que se sabe falsa, o terror, a incapacidade de libertar o ser
120
SERPAJ, op. cit., p. 286.
121
AMNISTÍA INTERNACIONAL, op. cit., p. 92.
122
LISBÔA, Suzana. Testemunho sobre a repressão e os desaparecidos. In: X Jornada de Ensino de História e
Educação. GT de Ensino de História e Educação-ANPUH-RS/UNIFRA, Santa Maria, 2004.
123
Uma história marcante é a da família argentina Gatica, um casal e dois filhos seqüestrados em 1977. As
crianças foram apropriadas por famílias diferentes. O casal sobreviveu e se exilou em São Paulo, onde iniciou
incansável busca pelos filhos, fato que, surpreendentemente, teve desfecho feliz, 6 anos depois. Enquanto durava
a procura, o casal tivera outros dois filhos. Até encontrarem os filhos seqüestrados, a família teve a conduta de,
na hora das refeições, colocar, sempre, pratos e talheres para os filhos ausentes. Essa atitude tornou aquelas
terríveis ausências presentes e se tornou um mecanismo que impediu o esmorecimento na difícil busca pelas
crianças, além de lembrar, aos filhos menores, a existência de dois irmãos - a procurar - que faziam parte da
família. Depois que as crianças foram encontradas, durante um bom tempo, pelas noites, antes de dormir, a mãe
contava os filhos para ver se estavam todos. In: CONADEP. Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o
Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, s.d., p. 219; LIMA, 2004, (cap. 15).
661
querido que sofre sob um manto de silêncio. Os familiares vivem uma situação de impotência,
de incerteza, de angústia. A carta de Clelia Tejera Lisbôa, escrita 20 dias após a descoberta
dos restos mortais do filho, Luiz Eurico Lisbôa, é um testemunho disso. Desaparecido 7 anos
antes, Luiz Eurico havia sido enterrado como indigente e com outro nome numa vala do
Cemitério de Perus, em São Paulo. A carta expressa sentimentos de indignação, de raiva e de
tristeza de uma mãe diante do reconhecimento definitivo de que o filho havia sido morto pela
ditadura brasileira. Sua carta é uma vigorosa denúncia que permite uma aproximação ao
pungente drama dos familiares dos desaparecidos. Especificamente, destaco o seguinte trecho:
Os Torturadores Pagarão
Pelas noites de vigília que passei chorando a ausência de meu filho e a
incerteza do seu destino;
Pelos dias, horas e minutos que vivi, numa quase obsessão, esperando que
alguém chegasse, de repente, ao meu apartamento, para me dizer onde e
como ele estava;
Pelos sete anos que passei sem poder me concentrar em nada, porque em
minha mente só cabia sua imagem;
Pelo medo, que tantas vezes me assaltou, de tê-lo de volta inútil e deformado
pelas torturas;
[...]
Pela saudade mais cruel que me acompanhou ao longo destes sete anos e que
agora há de prolongar-se até o fim dos meus dias.
124
Os desaparecidos seguidos por morte sob a lógica do TDE constituem, juridicamente,
casos de execução extrajudicial. A Anistia Internacional, no seu programa de 14 pontos para
prevenir as execuções extrajudiciais, as define como homicídios ilegítimos e deliberados,
perpetrados por ordem de um governo, com sua cumplicidade ou seu consentimento.
125
Como
tal, toda execução extrajudicial, como o caso dos desaparecimentos, não é acidental, mas sim
deliberada e ilegítima. Não são obra de soldados ou agentes de polícia que agem
isoladamente. Existe alguém que, desde alguma esfera governamental, seja nacional, estatal
ou local, ordenou os homicídios ou os consentiu. Sendo assim, a combinação de ambos os
fatores – ilegitimidade e participação governamental – tornam a execução extrajudicial um
assassinato perpetrado ou consentido pelo Estado. Tanto as desaparições quanto as execuções
extrajudiciais nunca são obra de uma pessoa que atua de forma isolada. Há seqüestradores, há
centros de detenção clandestinos onde as vítimas são retidas, há executores, há autoridades
públicas mandantes ou coniventes.
126
Por isso, pensar o “desaparecimento” como sistema
124
Não choro de pena de meu filho. In: LISBÔA, Luiz Eurico Tejera. Condições ideais para o amor. Porto
Alegre: Sulina, 1999. p. 163-166.
125
AMNISTIA INTERNACIONAL, op. cit., p. 294.
126
Idem, p. 93 e 294.
662
implica em desconsiderar exceções ou ações individuais fortuitas. Significa inserir tal fato
dentro do processo de consolidação do TDE, numa dinâmica global, onde articularam-se
fatores, agentes, motivações e dinâmicas subordinadas.
Finalmente, cabe ressaltar que, como metodologia repressiva, o desaparecimento
gerou desdobramentos sobre todo o corpo social. Após atingir as vítimas diretas, agrediu as
pessoas mais próximas a elas ao manter expectativas da volta do ausente. Depois, confundiu a
sociedade como um todo, desinformando, semeando possibilidades diversionistas e
sonegando documentação – conseqüentemente, gerando incerteza sobre o que realmente
aconteceu. Por último, desapareceu o cadáver, impondo, ao conjunto da população que estava
parcialmente ciente da dimensão repressiva existente, um sentimento de impotência face a um
poder que executou ações ilegais sem maiores restrições ou controle legal.
127
As pessoas que
foram privadas da convivência temporária ou permanente dos ausentes também devem ser
contabilizadas como vítimas. Como síntese das dificuldades enfrentadas, tanto pelos que
tentavam sobreviver nas terríveis e adversas condições de detidos-desaparecidos quanto pelos
que buscavam desesperadamente qualquer pista sobre o paradeiro e situação daqueles, cabe o
registro da CONADEP:
[...] em nome da Segurança Nacional, milhares e milhares de seres humanos,
geralmente jovens e adolescentes até, passaram a integrar uma categoria
tétrica e fantasmagórica: a dos desaparecidos. [...]
Arrancados pela força, deixaram de ter presença civil. Quem, exatamente, os
tinha seqüestrado? Por quê? Onde estavam? Não havia resposta certa para
tais perguntas; as autoridades não ouviram falar deles, as cadeias não os
contavam entre seus detidos, a justiça desconhecia e os Habeas-Corpus só
eram respondidos com o silêncio. Em torno deles crescia um ominoso
silêncio. Jamais um seqüestrador preso, jamais uma cadeia clandestina
localizada, nunca uma sanção para os culpados de tais delitos. Transcorriam,
assim, dias, semanas, meses, anos de incertezas e dores de pais, mães e
filhos, todos na dependência de boatos, debatendo-se entre desesperadas
expectativas; inúmeras e inúteis diligências; pedidos a “influentes”, a oficiais
de alguma Arma recomendados por alguém, a bispos e capelães, a
Delegados. A resposta era sempre negativa.
128
Entre os casos de desaparecimento, merece especial menção o caso das crianças.
Estas, na grande maioria, foram seqüestradas durante o momento do rapto ou da morte dos
seus pais ou, então, nasceram no cárcere. Mais de 500 casos são reconhecidos, na Argentina
127
A destruição do corpo “[...] tem a ver com a metodologia do desaparecimento: primeiro foram as pessoas; o
não está alimentando a esperança de que o seqüestrado será colocado em liberdade, e haveria de retornar; depois,
a sonegação e a destruição da documentação [...], prolongando a incerteza sobre o que acontecera; e, finalmente,
os cadáveres sem nome, sem identidade, impelindo à psicose de ignorar o destino que coube ao ente querido [...];
um horror sem limites. In: CONADEP, op. cit., p. 174.
128
CONADEP, op. cit., p. 2; PASCUAL, op. cit., p. 63.
663
(onde aconteceu a grande maioria dos seqüestros registrados no Cone Sul), pela organização
das Abuelas de Plaza de Mayo, que, até hoje, denominam tais seqüestros como roubo ou
“botim de guerra”.
Dentro do contexto repressivo argentino, também foram seqüestradas e
desaparecidas quinze crianças uruguaias em ações das quais participaram comandos
repressivos da mesma nacionalidade (outra criança foi seqüestrada na Bolívia). Das quatorze
que recuperaram sua identidade, oito haviam sido apropriadas por famílias vinculadas, direta
ou indiretamente, ao sistema repressivo argentino. Duas delas, os irmãos Washington e
Beatriz Hobbas, provavelmente foram assassinadas. Além disso, há o caso de duas crianças
argentinas seqüestradas no Uruguai, Paula Logarés e María Macarena, esta última neta do
poeta argentino Juan Gelman. Outras tantas crianças uruguaias que também sofreram os
operativos de seqüestro dos pais salvaram-se por detalhe (testemunhas inconvenientes,
seqüestros ineficientes, reação fortuita de algum adulto seqüestrado, recaída “humanitária” de
algum seqüestrador, etc.) e foram abandonadas no local, com vizinhos, ou, estando detidas,
foram resgatadas pela ação imediata e decidida de familiares ou amigos.
O fato do desaparecimento e das apropriações terem acontecido majoritariamente na
Argentina exige conhecer a dinâmica e os objetivos que nortearam aquelas ações, embora se
saiba que o seqüestro de crianças uruguaias fez parte do que se denominou conexão
repressiva, ou seja, a articulação de modalidades de TDE, complementadas, encobertas e,
principalmente, executadas em conjunto pelas forças de segurança de ambos os países. De
qualquer forma, é importante lembrar que os irmãos Julien foram abandonados no Chile, que
Carla Rutila
129
foi seqüestrada na Bolívia e que os filhos de Lilian Celiberti, seqüestrados em
Porto Alegre, por detalhe não engrossaram a lista de crianças desaparecidas. Tudo isto
demonstra a co-participação ou conivência dos governos desses países e o alcance dessa
política internacional de seqüestros e apropriações. Um detalhe a considerar é que, embora
esta modalidade particular de política de desaparecimentos e de TDE se localizasse na
Argentina a partir do golpe de Estado de 1976, o uso desse mecanismo de terror, pelo menos
como ameaça, já era utilizado no Brasil em 1972. Criméia Schmidt de Almeida, companheira
de André Grabois, chegou a participar na Guerrilha do Araguaia, no Pará, local que
abandonou durante o ano de 1972, diante do seu adiantado estado de gravidez. Seqüestrada
129
Carla foi entregue à família do oficial Eduardo Ruffo, conhecido repressor argentino. A identificação se deu
através de uma fotografia utilizada pela avó junto aos meios de comunicação. Conta Samantha Viz Quadrat que
a própria menina teria se reconhecido, mas, com apenas 9 anos, foi convencida pela família apropriadora a
esquecer a história. QUADRAT, S. V. “O direito à identidade: a restituição de crianças apropriadas nos porões
das ditaduras militares do Cone Sul.” História, São Paulo, 22 (2): 2003, p. 173.
664
pela Operação Bandeirantes, foi levada a dependências do Ministério do Exército e teve seu
filho no Hospital da Guarnição Militar de Brasília. Enquanto seu filho não nascia, sofria todo
tipo de tortura física e, particularmente, psicológica. O oficial encarregado do “interrogatório”
constantemente ameaçava executá-la logo após o parto e pretendia apropriar o recém nascido.
Logo que a criança nasceu, a esposa do ministro do Exército, Orlando Geisel, mandou um
presentinho para o menino e um cartão parabenizando a mãe...
130
As crianças seqüestradas foram transformadas em parte do saque obtido na luta
contra a “subversão”. Segundo as avaliações dos grupos de especialistas que auxiliam as
organizações de familiares de desaparecidos nos seus países, as hipóteses utilizadas para
explicitar tal comportamento da repressão giram em torno de uma questão central: as crianças
arrancadas do convívio familiar e tornadas prisioneiras expressavam o endurecimento
extremado da repressão no sentido de apagar qualquer vestígio do “inimigo interno”. Essa é a
essência da transformação dos filhos dos “subversivos” em botim de guerra:
Nuestros niños y bebés secuestrados y nacidos en cautiverio, fueron criminal
y violentamente arrancados de los brazos de sus madres, padres, hermanos,
abuelas y abuelos y la mayoría continúa padeciendo el secuestro y la
desaparición. Están ilegalmente anotados o como propios o por medio de
adopciones fraudulentas, falseando sus padres, sus nombres, sus edades, la
forma y el lugar en que vinieron al mundo, quiénes asistieron su nacimiento;
es decir, apropriados, privados de su verdadera identidad, privados de su
origen, de su historia y de la historia de sus padres, privados del lugar que
ocupan en el deseo y en el afecto de los suyos, privados de las palabras, las
costumbres y los valores familiares, sustraídos de la posibilidad de
desenvolver sus vínculos identificatorios originarios y de la posibilidad de
autorreconocimiento y de reconocimiento de todo lo propio, tratados como
cosas de las que se dispone a voluntad, parte del saqueo y despojo de sus
hogares.
131
Segundo Eduardo Duhalde, o seqüestro de crianças deve ser inserido dentro da lógica
da guerra contra-revolucionária; portanto, vincula-se com a própria dinâmica do Terror de
Estado. Alguns dos seus objetivos são comuns aos de outras práticas repressivas, como a
difusão do terror entre a população. Mas há outros que são particulares desta modalidade: a)
vingar-se e castigar seus familiares; b) interrogar as crianças com discernimento; c) quebrar o
silêncio dos pais torturando os filhos; d) beneficiar-se com a apropriação das crianças como
“botim de guerra”; e) educá-las com uma ideologia contrária à dos pais.
132
A associação Abuelas de Plaza de Mayo entende que a apropriação de crianças
130
Depoimento de Criméia Schmidt de Almeida. Seminário Repressão e Violência. 40 anos do Movimento
Militar de 1964. Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
131
ABUELAS DE PLAZA DE MAYO, op. cit., p. 38.
132
DUHALDE, op. cit., p. 340.
665
seqüestradas ou nascidas em cativeiro corresponde ao estágio maior do TDE. Para apagar os
vestígios dessas crianças, utilizaram-se os recursos da ação encobridora da adoção,
procurando dar uma base legal ao rapto, ou, então, da apropriação direta, assumindo as
crianças como próprias, forjando documentos, datas e testemunhas. Tanto em um caso como
no outro, há uma infra-estrutura que visa legalizar a situação e da qual fazem parte médicos,
advogados, padres, hospitais, clínicas, cartórios, orfanatos, paróquias, etc. Particularizando as
situações, as Abuelas registraram quatro tipos de apropriações concretas:
a) Apropriados por seqüestradores, os quais intervieram diretamente na desaparição ou
assassinato dos pais e no roubo, desaparição e apropriação das crianças.
b) Apropriados por cúmplices, os quais tiveram uma intervenção direta no
desaparecimento-apropriação das crianças, embora sem ter vínculo direto no
desaparecimento dos pais. São apropriadores com cumplicidade no saque.
c) Apropriados por falsificadores, os quais, conhecendo a origem da criança, falseam
seu nome, seu nascimento, sua origem e sua história, registrando-os como próprios.
d) Apropriados por “adoção”, ou seja, quem “adotou” as crianças para que a instituição
de adoção encobrisse a apropriação.
133
Os denominados pais adotivos ou pseudo-pais – que, sabendo da origem, da
procedência e da filiação dessas crianças, se omitiram, silenciaram e participaram do
encobrimento e da apropriação de identidade – foram e continuam sendo protagonistas ou
cúmplices do desaparecimento daquelas. O mesmo vale para as instituições oficiais ou de
beneficência, visto que ambas deram cobertura de fachada legal ao seqüestro.
As crianças vítimas do saque, além de perderem o convívio familiar, perderam seus
pais (mortos ou desaparecidos) e, ao serem entregues, majoritariamente a famílias vinculadas
à repressão, perderam sua história, sua memória e sua identidade. Há também aquelas que
nasceram na prisão e das quais os familiares não possuem uma foto ou um registro que
possam seguir. Muitos depoimentos de sobreviventes confirmaram a existência de mulheres
grávidas seqüestradas vivas até o parto. Somente depois, tudo indica, recebiam o mesmo
destino daqueles que estavam desaparecendo, ou seja, eram “trasladadas” (eufemismo
utilizado pela repressão para definir o assassinato seguido de desaparecimento). Em realidade,
desde a chegada da mulher grávida no centro de detenção, seu destino estava decidido. Aliás,
133
ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. El secuestro. Apropriación de niños y su restitución. In: ABUELAS DE
PLAZA DE MAYO, 1997, p. 40.
666
de ambos, mãe e filho. Para a mãe, o traslado Para o filho, a dúvida. Em nenhum caso,
poderia ser entregue à família: isso constituiria uma prova concreta do destino sofrido pela
mãe.
134
A grande maioria dessas crianças sobreviveu, e hoje são jovens que continuam
ignorando sua história pessoal, e perpetuando como troféus da “guerra interna”.
135
A noção de que elas faziam parte do “botim de guerra” advém do entendimento de
que as crianças seqüestradas, talvez em função do meio social de origem, eram valorizadas
por serem intelectualmente muito espertas e fisicamente saudáveis. Trata-se de uma forte
hipótese manejada pelas organizações de direitos humanos para tentar entender o critério dos
agentes repressivos e dar inteligibilidade ao processo de seqüestro-adoção/apropriação por
casais vinculados ou do entorno dos serviços do TDE.
136
Em relação às mulheres grávidas, a situação afrontada foi de uma perversidade sem
limite. Desde que era feita prisioneira, estava condenada à morte, embora tivesse uma
sobrevida garantida pelo filho que carregava no ventre. O nascimento do filho era a certeza de
que o seu tempo findara. Era a condenação da mãe. Como diz Duhalde:
Solamente espíritus abyectos pudieron imaginar tal procedimiento siniestro,
especialmente con los hijos por nacer [...] El calvario de aquellas madres es
inenarrable: el saber que el hijo que tiene en sus entrañas lo perderá al nacer,
pero que también ello importará su propria muerte, es de una crueldad
infinita.
137
Em realidade, eram duas mortes. A da mãe, assassinada, e a morte simbólica do
recém nascido e de tudo aquilo que ele era portador – sua identidade, o convívio com os pais e
a experiência familiar. O TDE extirpava e ocultava essa identidade, trocava-a por outra, de
signo oposto. A criança seqüestrada ou nascida em cativeiro, paradoxalmente, de filha de
militantes passava a ser filha de repressores, tinha sua identidade apropriada e sua história
falsificada. Era a perversão do ocultamento escondendo uma criança roubada dos pais
verdadeiros.
138
O trabalho de Abuelas e das outras organizações de direitos humanos permitiu
estabelecer um padrão metodológico para entender o roubo das crianças e a transformação das
mesmas em prisioneiras e apropriadas, com o objetivo de aumentar o efeito repressivo e
aterrorizador contra a sociedade. Partindo da premissa de que os defensores da DSN
entendiam que o comunismo era uma questão biológica, fato expresso tanto nos textos
134
DUHALDE, 1999, op. cit., p. 345.
135
CELS. Los Niños Desaparecidos. CELS: Buenos Aires, s.d.
136
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p. 295.
137
DUHALDE, op. cit., p. 61.
138
Idem, p. 62.
667
doutrinários quanto nos que versam sobre geopolítica, essas crianças filhas de subversivos
deviam ser arrancadas dos pais para salvá-las, como bem expressou o ex-chefe da polícia de
Buenos Aires, Ramon Camps:
A los hijos de los subversivos los entregamos a organismos de beneficencia
para que les encontraran nuevos padres, ya que los padres subversivos
educan a sus hijos en la subversión.
139
Há um outro dado implícito na afirmação de Camps. A biologização do comunismo
e do “inimigo interno” justificava a apropriação dos seus filhos não só para que estes
tivessem uma segunda chance, mas, sobretudo, para consumar a vitória completa. Era a
forma de apagar todo rastro daquelas raízes familiares “subversivas”, impedir sua
sobrevivência e sua reprodução.
140
Por outro lado, há uma pergunta que deve ser feita e que diz respeito ao porquê de
algumas crianças terem sido mortas enquanto outras foram imersas na política de seqüestro e
“botim de guerra” O mesmo Camps afirmava que: “Personalmente no eliminé a ningún
niño.”
141
Na palavra “pessoalmente”, está implícito o fato de que outros o faziam. Fatores
aleatórios ou conjunturais – entregas prometidas, violência excessiva, “acidente” no
operativo – são explicações possíveis a se levar em conta.
Treze crianças filhas de cidadãos uruguaios desapareceram na Argentina; algumas
nasceram em cativeiro. Pode-se alegar que, em termos absolutos, tais dados são inexpressivos.
Porém, deve ressaltar-se a relação de escala que deve mediar tais acontecimentos no Uruguai
com o específico perfil demográfico do país, onde metade da população está concentrada em
Montevidéu. Isto produz um eco muito especial diante de fatos de impacto como no caso dos
desaparecimentos, especialmente o seqüestro de crianças. De fato, as fotografias de Mariana
Zaffaroni e de Simon Riquelo são conhecidas por quase toda a população, até porque se
tornaram emblemas da Comisión Nacional Pro-Refrendum, que mobilizou a população, em
1989, para o plebiscito em que a cidadania se pronunciou em relação à lei que anistiava os
crimes cometidos pela ditadura (Ley de Caducidad). Cartazes com os olhos de Mariana e a
frase Por estos ojos inundaram as cidades, assim como a fotografia de Simón Riquelo. A mãe
deste, Sara Méndez, teve censurada, pelo governo Sanguinetti, a seguinte mensagem
destinada à população:
139
Dignidad, 22/02/84, p. 21.
140
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p. 295.
141
CHEVANCE-BERTIN, M. P. Memoria para lo impensable. El caso de los hijos de desaparecidos argentinos
robados por militares o policías. In: ABUELAS DE PLAZA DE MAYO, op. cit., p. 153.
668
TESTIMONIO DE UNA MADRE
Mi nombre es Sara Méndez. Cuando mi hijo Simón tenía apenas 20 días fue
arrancado de mis brazos. Hasta hoy no lo he podido encontrar: la ley de
caducidad me impide investigar. Mi corazón dice que Simón está vivo.
Usted este domingo, ¿me ayudará a encontrar a mi hijo?
vote verde
Para que nunca mas falten sonrisas en las familias uruguayas.
142
Uma outra perspectiva para avaliar o impacto do drama das famílias uruguaias que
tiveram crianças seqüestradas é através da estatística. Considerando que se reconhece a
existência de 183 desaparecidos uruguaios, inclusive 13 crianças (além de quatro casos de
crianças que supostamente nasceram em cativeiro),
143
na comparação com os 30 mil
desaparecidos argentinos (dos quais cerca de 500 crianças), obtém-se as seguintes proporções:
para cada adulto uruguaio desaparecido, há 170 argentinos, mas há uma criança uruguaia
desaparecida para 38 argentinas. Na Argentina, há uma criança desaparecida para cada 54
adultos, enquanto que, no Uruguai, a relação é de uma criança para 13 adultos. Finalmente, as
crianças argentinas desaparecidas correspondem a 1,6% do total de desaparecidos do país.
Entre os uruguaios, as crianças desaparecidas correspondem a 7,6% do total de desaparecidos.
Claro que esses dados são aproximativos, pois falta maior precisão nas informações
reconhecidas pelas organizações de direitos humanos, mas isso é secundário. Considerando o
forte impacto do trágico saldo dos seqüestros de crianças ocorridos na Argentina,
mundialmente reconhecido, pode-se ter, mesmo que por comparação, uma avaliação do
significado que teve o caso das crianças orientais junto à população do Uruguai. O poeta
Mauricio Rosencof afirma que a repressão uruguaia promoveu “[...] un tráfico de niños y un
tráfico de vientres [...].”
144
Não é por acaso que o tema desaparecidos e, particularmente,
crianças desaparecidas, motivou dezenas de canções, peças de teatro, poemas, recitais de
“murgas” e livros. Virou um tema universal na agenda de uma grande parcela da população
do país.
145
Provavelmente, todas as crianças foram desaparecidas em ações onde direta ou
indiretamente participaram agentes da ditadura uruguaia. Mesmo assim, José Nino Gavazzo,
um dos principais oficiais uruguaios envolvidos nas operações de eliminação, seqüestro e
desaparecimento de uruguaios na Argentina, afirmou a Sara Méndez, ao arrancar-lhe dos
142
Panfleto de divulgação dos setores favoráveis à rejeição da Ley de Caducidad.
143
São os dados atualizados pelo recente INFORME DE MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS
DETENIDOS DESAPARECIDOS. A todos ellos. Montevideo: 2004.
144
BUTAZZONI, Fernando. Seregni-Rosencof. Mano a mano. 3ª ed. Montevideo: Aguilar, 2003. p. 379.
145
Na música popular uruguaia, tornaram-se clássicas, entre outras, canções como Despedida del Gran Tuleque
(Mauricio Rosencof e Jaime Roos), Angelitos (José Carbajal) e Mariana (Murga Falta y Resto).
669
braços o pequeno Simón, filho de 20 dias de vida: Esta guerra no es contra los niños Esta
frase se transformou em todo um símbolo da guerra suja e do Terror de Estado uruguaio. Sara
e Simón, separados em 1976, só voltaram a se reencontrar em 2002, 27 anos depois.
A experiência acumulada na Argentina de dezenas de casos de localização e
restituição de menores se fortaleceu com o desenvolvimento científico da prova de
abuelidad.
146
Na Argentina, desde 1987, existe o Banco Nacional de Datos Genéticos de
Parientes de Niños Desaparecidos (Banco Genético), verdadeiro banco de mapas de DNA
dos familiares dos desaparecidos políticos, fundamental para viabilizar as restituições de
identidade no presente e, sobretudo, no futuro.
147
A existência dessa instituição permitiu
resolver uma questão de ordem prática: a passagem do tempo e a morte dos avós; ou seja,
mesmo depois da morte destes, toda criança ou adulto, poderá elucidar o secreto das suas
origens.
148
Houve casos de adolescentes que se apresentaram de espontânea vontade diante de
dúvidas sobre suas origens; alguns eram filhos de desaparecidos.
149
A existência do
denominado Banco Genético ajudou também a dirimir dúvidas de pais que haviam adotado
crianças em instituições específicas naqueles anos e que puderam verificar que não eram
filhos de desaparecidos.
150
A violência contra as crianças, instrumento indireto para atingir os pais
“subversivos”, foi uma prática dos mecanismos repressivos do TDE que potencializou as
possíveis contradições existentes no interior das famílias. Assim foi no constrangimento
imposto àquelas que visitavam os pais, presos políticos do regime, bem como na
146
“La prueba de abuelidad comienza con un análisis de la sangre de los abuelos/as (tíos o tías) y del niño/a en
cuestión. Observando ciertos ‘marcadores’ genéticos, es posibble determinar si algunas combinaciones de los
mismos fueron heredadas de los/as abuelos/as, o bien si aparecen por azar. Teniendo en cuenta la distribución
conocida de los ‘marcadores’ genéticos en la población argentina, es posible probar que una criatura proviene de
una familia determinada, con una precisión de hasta un 99,95%.” In: ARDITTI, Aita; BRINTON LIKES, M. La
labor de las Abuelas de Plaza de Mayo. In: ABUELAS DE PLAZA DE MAYO, 1997, op. cit., p. 116.
147
O banco funciona como um verdadeiro acervo onde os documentos são as amostras de sangue que podem
permitir examinar e comparar os processos futuros de restituição de identidade. O banco genético permite que
fique o registro do mapa genético para a posteridade; se um caso for resolvido somente daqui a algumas décadas,
será possível comparar as informações do material genético daquela pessoa ou daqueles restos mortais com os do
“acervo” armazenado. ABUELAS DE PLAZA DE MAYO. Banco Nacional de Datos Genéticos: una
contribución de la ciencia a la identificación de personas. Buenos Aires, 1991.
148
As avós e os psicólogos que trabalham em conjunto insistem no seguinte ponto: mesmo que as pessoas
tomem consciência de sua verdadeira história de desaparecidos anos após a morte dos familiares mais diretos, é
importante que saibam que “nunca la mamá los abandonó, todo el contrario, fueron arrancados violentamente de
los brazos de las madres en el momento de nacer.” Fonte: Aparecido. El llamado de la sangre. Programa Vida y
Vuelta. Dirección y Guión: Jorge Bernardez. Exibido pelo Canal 7 de Buenos Aires, em 2003.
149
É o caso de Horacio Pietragalla, o 75° filho restituído à família biológica, que procurou a Comisión Nacional
por la Identidad por iniciativa própria. Seqüestrado com 5 meses, reencontrou sua verdadeira identidade aos 27
anos, em maio de 2003. Sua iniciativa confirma a aposta feita por Abuelas de Plaza de Mayo, de que um dia
“nuestros nietos van a venir a buscarnos a nosotras.” (Rosa T. de Roisinblit, vicepresidente da organização).
Fonte: Aparecido. El llamado de la sangre. Programa Vida y Vuelta. Dirección y Guión: Jorge Bernardez.
Exibido pelo Canal 7 de Buenos Aires, em 2003.
670
marginalização sofrida na escola e no bairro com a exposição pública dessa situação. O
próprio conflito interno que se alojou nas cabeças de muitas crianças diante de uma situação
difícil de ser entendida, assim como o embate entre os sentimentos em relação aos pais e a
propaganda que os transformava em inimigos perigosos, levou algumas a desenvolver
sentimentos de rejeição e culpabilização dos pais pela discriminação sofrida. Tais
sentimentos eram agravados pelas ausências prolongadas, mudanças de domicílio e de escola,
falta de companhia, sensação de desamparo, etc.
Mas houve também o uso direto da violência física e psicológica contra elas. Na
Argentina, levantaram-se inúmeros testemunhos de crianças que foram utilizadas para
chantagear os pais detidos, inclusive sendo torturadas diante deles.
151
Outras foram fuziladas
junto aos pais. Chevance-Bertin se refere a um menino de 10 anos que, em 1976, foi levado
vendado e algemado junto com os pais; testemunhas declararam ter ouvido de um dos
seqüestradores: “Es mejor que te matemos para que no crezcas”. A família inteira
desapareceu. A idade foi um fator que selou o destino de algumas crianças. A capacidade de
lembrar, de articular essa lembrança e de identificar pistas do seqüestro se tornaram fatores
indesejados em uma ação de apropriação, o que se tornou determinante no momento de
avaliar as vítimas passíveis de rapto. Provavelmente, foi isto o que determinou o
desaparecimento (reconhecido como provável execução) dos irmãos uruguaios Beatriz e
Fernando Hobbas (de 16 e 13 anos, respectivamente).
A fúria repressiva não poupou os adolescentes, como se constatou no caso dos
estudantes secundaristas da cidade de La Plata desaparecidos na operação conhecida como La
noche de los Lápices, em 1976, ou o citado Floreal Avellaneda, cujo corpo apareceu no
litoral uruguaio.
152
No Uruguai, a ditadura usou da violência sistemática contra os
secundaristas. Um caso recentemente denunciado pelo semanário Brecha lembra a detenção e
tortura de 29 crianças e adolescentes, entre 13 e 17 anos, na cidade de Treinta y Tres, em
abril de 1975, sob a supervisão do posterior presidente da ditadura, o general Gregorio
Álvarez.
153
150
CHEVANCE-BERTIN, op. cit., p. 159.
151
Situações como esta não são exclusividade da experiência repressiva na Argentina. No Brasil, há registros de
casos semelhantes, inclusive com bebês. Depoimento de Avelino Capitani, em 30/04/04. Projeto Memória
Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS. Também há o registro do jornalista Antonio Carlos Fon: Tortura.
A história da repressão política no Brasil. São Paulo: Global, 1979. p. 39.
152
CELS. Adolescentes Detenidos-Desaparecidos. CELS: Buenos Aires, s. d.
153
A notícia destaca a detenção de 38 jóvenes comunistas,[…] entre ellos 29 niños y adolescentes cuyas edades
oscilaban entre los 13 y 17 años. Há o depoimento de três mulheres que na época tinham 13, 14 e 16 anos e que
sofreram as modalidades de tortura conhecidas como choque elétrico, submarino seco e telefone, entre outras
formas de violência. “Tres testimonios de otra infamia. La picana entre juguetes y muñecas”. Matéria de Jorge
Velázquez. Brecha, 16/04/04, p. 24.
671
Como já foi dito, um dos fatores mais importantes para explicar a eficiência da
prática de desaparecimentos foi o contexto geral de impunidade para os agentes do Estado
repressivo nos atos de TDE. Por sua vez, isso aumentou a sensação de impotência das vítimas
e do seu entorno. O contexto de impunidade foi a base para as ações repressivas arbitrárias,
como no caso das detenções-desaparecimentos, numa demonstração ostensiva, por parte dos
executores do TDE, de que possuíam imunidade perpétua e jamais prestariam contas pelos
seus atos. Protegidos por essa “armadura” que tornava pouco crível que sofressem exigência
de sanções ou reparações, os agentes repressivos tiveram mais sucesso no objetivo de
imobilizar e amedrontar a sociedade frente a uma repressão exercida sem restrições.
154
O contexto de impunidade foi obtido através da aprovação de leis que protegeram os
agentes repressivos garantindo imunidade para seus atos e obstruindo iniciativas que
exigissem medidas reparatórias e a aplicação de justiça. Ou seja, imunidade para as ações
repressivas sob o “guarda-chuva” protetor da obediência devida às ordens superiores e no
cumprimento do dever. O medo, a hostilização e as ameaças de morte e de desaparecimento
refrearam o embate por informação e aplicação da justiça, fortalecendo a sensação da
impunidade. O papel subordinado ou associado aos interesses do TDE desempenhado pelos
meios de comunicação serviu para informar, desinformar, cooptar, e desqualificar os
“detratores” dos governos de força, como ocorreu no caso das mães argentinas de
desaparecidos, tratadas de Locas, ou organizações internacionais de direitos humanos, vistas
sempre com a intenção de fomentar sentimentos revanchistas.
155
A impunidade também justifica atitudes irresponsáveis como o mentir
deliberadamente aos familiares que procuram desesperadamente alguma informação sobre o
destino da vítima. Pistas absurdas são oferecidas como iscas diversionistas. O Estado se
pronuncia: “Los desaparecidos están en Cuba o en Nicaragua”; “fueron secuestrados por la
guerrilla”; não existem desaparecidos, “son una invención de los subversivos”.
156
No caso particular das crianças, a impunidade sobre essas ações criminosas
extrapolou os marcos do botim de guerra do TDE. O seqüestro e a apropriação de crianças,
sem motivações políticas, também encontra registro no tempo da ditadura uruguaia;
157
é uma
154
CONADEP, op. cit., p. 175.
155
AMNISTÍA INTERNACIONAL, op. cit., p. 96.
156
MOLINA THEISSEN, op. cit.
157
É o caso de Pedro Andrés Rivadavia, nascido em Montevidéu em 1973 e que foi seqüestrado em 1976 pelo
próprio pai, custódia de um coronel das Forças Conjuntas que intermediou a entrega da criança de 4 anos a uma
família conhecida na cidade de Las Piedras. Ao tentar recorrer à Justiça, a mãe foi ameaçada pelo militar.
Segundo o depoimento do pai, “[...] el coronel mandó a las Fuerzas Conjuntas [...]. Y ahí la pararon a ella. Y ella
se quedó quietita, porque en esa época estaba la dictadura y... bueno.” Mãe e filho somente se encontraram vinte
anos depois. “La increíble historia de cómo Pedro R. recuperó su nombre”. In: Revista Postdata, N. 97, 19 de
672
das conseqüências da banalização da violência e do desconhecimento da justiça que
persistiriam no período posterior à recuperação do cenário democrático.
A complexidade da impunidade é mais do que um efeito residual da aplicação de
políticas de TDE. Ela é uma característica e uma condição para a projeção eficiente daquele
sobre o conjunto da sociedade. Como bem lembra a Anistia Internacional, acaba sendo um
fator comum a todas as experiências repressivas, embora com pontual contundência nos casos
de desaparecimentos e de seqüestro e apropriação de crianças, pois eles expressam uma ação
que, como crime, persiste no tempo.
7.3 – O DESAPARECIMENTO COMO PRÁTICA DO TERROR DE ESTADO
NO URUGUAI
O desaparecimento político foi uma das modalidades de TDE sofridas pela sociedade
uruguaia. Até 1975, a ênfase repressiva mais evidente foi o aprisionamento massivo e a
aplicação da tortura. Embora essa característica da experiência repressiva uruguaia não tenha
sofrido maiores alterações nos anos seguintes, foi acrescida da intensificação dos
desaparecimentos. A radicalização na política argentina, desde o final do governo Isabel
Perón, teve reflexos na situação da ditadura uruguaia ao atingir vigorosamente os setores que,
exilados naquele país, realizavam intensa atividade de denúncia e de apelo à solidariedade
internacional. A dinâmica repressiva argentina ecoou no Uruguai. A verdade é que, talvez
pelo entendimento de que a ascensão de Videla ao poder fechava o Cone Sul em um enorme
círculo repressivo, como se fosse um gigantesco quartel, ou talvez pela influência dos padrões
repressivos argentinos, o fato é que, após 1975, a repressão uruguaia também passou a agir na
lógica de uma “operação final”, embora em escala muito menor que a do país vizinho, contra
os sobreviventes da resistência política, sobretudo através da ação dos comandos que agiam
do outro lado do Río de la Plata, a procura de “inimigos internos” exilados.
Curiosamente, nessa época, o Cone Sul parecia ser afetado por um processo
permanente de retro-alimentação, pois, por sua vez, o Uruguai de Bordaberry havia sido uma
espécie de laboratório de observação para outros países da região. Por exemplo, um dos
principais protagonistas da posterior ditadura argentina, o então coronel Albano
Harguindeguy, desempenhou funções de adido militar na embaixada de Montevidéu até 1972,
julio de 1996.
673
sendo um observador privilegiado da aplicação da ação repressiva do governo uruguaio.
Inclusive, estabeleceu forte vínculo com a inteligência militar local, fato que se mostraria
muito útil quando do estabelecimento da futura coordenação repressiva.
158
Portanto, desde o início de 1976, se começou a impor uma nova modalidade de ação,
que exigia alta dose de planejamento e que era semelhante àquela que ocorria na Argentina.
Eram detenções deliberadamente secretas, realizadas em qualquer lugar, por grupos que
funcionavam como verdadeiros comandos.
159
A política repressiva na modalidade
desaparecimentos enquanto não legalizava a situação das vítimas, impunha um cotidiano de
horror e tortura. Esse período de estadia, nessa forma de “limbo” expresso nas palavras “no
están, no son...”, durava, geralmente, várias semanas - segundo o SERPAJ, não menos de
duas semanas e chegando, em casos extremos, a 32 semanas.
160
A situação, uma vez
legalizada, acabava com a incerteza do futuro imediato e tranqüilizava a família (isto deve ser
relativizado no sentido de que a condição de preso político, por pior que fosse, era muito mais
segura que a condição de detido-desaparecido). É importante esclarecer que, ao ocorrer a
legalização, o Estado e seus órgãos repressivos não reconheciam o período anterior de
seqüestro da vítima nem o local onde estivera detida.
Configurada a detenção, as pessoas eram levadas a um dos mais de 50 centros de
detenção, legais ou clandestinos, identificados pelos depoimentos de sobreviventes. Em todos
esses centros, a tortura era parte do tratamento cotidiano imposto ao detido. Era o momento de
aplicação dos primeiros interrogatórios e de encaminhamento do prontuário de legalização
dos presos junto à Justiça Militar. Era comum que os detidos fossem obrigados a circular em
várias dessas unidades de detenção para sofrerem acareação de outros presos. Até 1974, os
detidos eram conduzidos a dependências legais das Forças Armadas. Depois, generalizou-se o
seqüestro em centros clandestinos de reclusão, nos quais nem o pessoal de serviço nem os
automóveis utilizados eram identificáveis. A vantagem de dispor de locais com este perfil
consistia no fato de manter os detidos sem pressão de controle externo, o que garantia uma
grande margem de segurança e de impunidade. Outro objetivo era impedir ou criar obstáculos
para o reconhecimento do local por parte dos detidos após sua libertação, caso efetuassem
denúncia.
Sobre os desaparecidos no Uruguai, há registros de testemunhos que informaram tê-
los visto ou ouvido, quando detidos, em diversas ocasiões, inclusive permitindo precisar, em
158
PAOLETTI, Alipio. Como los nazis, como en Vietnam. Buenos Aires: Editorial Contrapunto, 1987. p. 345.
159
Como característica do caso uruguaio, cabe ressaltar que esta metodologia fez mais de cem detenções
forçadas nas décadas de 60 e 70; alguns desses casos tornaram-se desaparecimentos definitivos.
160
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p. 287.
674
vários casos, o local e o momento do último contato ou registro de presença. Alguns
desaparecidos foram vistos no hospital das Forças Armadas em estado gravíssimo. São esses
mesmos registros que permitiram levantar a identidade dos agentes repressivos envolvidos
nos procedimentos de seqüestro, detenção e interrogatório, e cujos nomes fazem parte das
listas de conhecimento público disponibilizadas pelas organizações de direitos humanos.
161
A procura pelos detidos-desaparecidos sempre foi um esforço desgastante,
desestimulado pelo regime que respondia com ameaças. Em alguns casos, as autoridades
afirmavam que certas pessoas, consideradas detidas pelos familiares, estavam no exílio.
Outras vezes, após a solicitação de informação sobre um caso determinado, publicitavam o
pedido de prisão sobre essa pessoa. Tal ação poderia ter várias finalidades: efeito
diversionista, preparação de blanqueo – legalização da prisão –, propiciar uma morte em
“combate” ou na “tentativa de fuga”. Muitas vezes, tentou-se chantagear a pessoa que
procurava o detido exigindo-lhe atitudes colaboracionistas (apresentar listas com nomes de
amigos da vítima, endereços, telefones, anotações). Muitas famílias foram vítimas
inconscientes dessa indução ao colaboracionismo praticado pelos órgãos repressivos. Já para
outras mais esclarecidas quanto ao significado real da proposição “informar para facilitar as
investigações”, ter consciência da real situação significava sofrer os efeitos de uma forma de
tortura psicológica. O tormento da dúvida de entregar (ou não) as informações solicitadas em
troca de pistas para localizar (ou não) o desaparecido procurado levava os familiares a
debater-se, com todo o sofrimento, diante do dilema do que era ético ou não. Desgastados
com a perda, a ausência e o isolamento de que eram objeto, eram defrontados frente a uma
responsabilidade que não lhes pertencia, como se da sua atitude dependesse o destino (vida ou
morte) do desaparecido. O remorso de não ter feito o suficiente ou a suspeita de ter
prejudicado alguém acompanharam muitas pessoas, num sentimento de culpa irreversível.
A impunidade foi o corolário essencial para o funcionamento das políticas de
desaparecimento e homicídios políticos. O caráter clandestino da ação era a garantia da
impunidade que viria a envolver, posteriormente, as tentativas frustradas de elucidamento dos
fatos e das responsabilidades. A impunidade foi se consolidando junto à sociedade atingida
como seqüela da cultura do medo objetivada pelas ditaduras. A hostilização e as ameaças
sempre presentes de seqüestro, morte e desaparecimento contra aquelas pessoas que
procuravam reconstituir ou denunciar os fatos foram práticas corriqueiras. Da mesma forma,
161
Uruguay: Violaciones a los derechos humanos. Terrorismo de Estado y secuelas. Impunidad y derecho a la
verdad. Detenidos-desaparecidos: reclamo de los familiares, organizaciones sociales y políticas. Montevideo,
1996.
675
ocorreu o enfraquecimento, destruição, controle ou desqualificação de organizações e
instituições que poderiam recolher ou tomar tais iniciativas, como as associações de direitos
humanos, a imprensa, o poder judiciário ou o ministério público.
162
Outro mecanismo
eficiente que contribuiu para consolidar a impunidade dos crimes de Estado e a sensação de
impotência decorrente nas vítimas demandantes foi a aprovação de leis e de outros
mecanismos jurídicos que garantiram imunidade aos responsáveis e que obstruíram ações na
justiça. Tudo isso conspirou contra a procura de informação dos desaparecidos.
A Comisión para la Paz, por iniciativa do governo Jorge Batlle, em agosto de 2000,
pretendeu colocar um ponto final quanto às demandas por informação da sociedade sobre o
tema Desaparecidos. Numa primeira apresentação de dados parciais, em novembro de 2001,
esclarecera o caso de oito desaparecidos que haviam falecido, em decorrência de torturas,
durante a ditadura. Sendo uma primeira posição oficial assumida por um governo, tal
informação se contrapôs ao discurso oficial sustentado inclusive pelos governo democráticos
posteriores à ditadura militar, ou seja, a dúvida sobre a existência de desaparecidos e o crédito
à argumentação das forças repressivas de que alguns “estariam no exterior”. Nesse primeiro
informe oficial, a Comissão reconhecia que essas pessoas “[...] murieron como consecuencia
de apremios físicos [...]” e entende que, como circunstâncias finais, “no existen casos de
ejecuciones, sino torturas.
163
No relatório final apresentado publicamente no 10 de abril de
2003, a Comissão reconheceu que no Uruguai houve terrorismo de Estado, coordenação
repressiva, tratamento humilhante aos detidos, desaparecimentos e assassinatos.
164
A maior
parte dos casos esclarecidos, salvo exceções,
165
confirmaram, de forma geral, a informação
geral que já era de conhecimento dos familiares. A Comissão reconheceu o direito das
famílias divulgarem ou não as informações concretas recebidas em cada caso, fato que
resultou em posturas diversas. Eduardo Pirotto, integrante do SERPAJ e assessor da
Asociación de Madres y Familiares de Uruguayos Desaparecidos defendeu o tornar público
tais fatos, por mais dramáticos que fossem. Segundo Pirotto, é salutar para uma sociedade
162
AMNISTÍA INTERNACIONAL, op. cit., p. 96.
163
“Comisión para la Paz: 8 desaparecidos torturados y asesinados por las FFAA”. La República, 16/11/01, p. 2.
164
Bastante polêmica e de trajetória conturbada, a Comissão e seu trabalho foram recebidas com certa frustração,
sobretudo pelas organizações de direitos humanos, as quais contestam parte das suas conclusões e consideram
insuficientes as informações colhidas. O semanário Brecha conclui, a partir da publicitação do relatório final,
que: “Hace diez años el informe hubiera sido un aporte sustancial, como motor de la investigación. Hoy es un
pobre resultado que servirá, como dicen los familiares, de ‘punto de reinicio’ en el esclarecimiento de nuestro
pasado reciente, en la medida en que la contemplación de los logros no paralice la voluntad.” Fonte: “El informe
final de la Comisión para la Paz: Todo desaparecido se desvanece en el aire.” Brecha, 11/04/03, p. 3.
165
Por exemplo, no caso da família de Amelia Sanjurjo, desaparecida em 1977 aos 40 anos de idade. A família
desconhecia que o seqüestro ocorrera na própria residência e que estava grávida do primeiro filho. In: “La
Comisión informó que Amelia Sanjurjo estaba embarazada al morir por torturas”. La República, 18/11/01, p. 3.
676
saber, a partir do próprio Estado, que as denúncias que marcaram historicamente a luta e a
atuação das famílias e das diversas entidades de direitos humanos não foram invenção.
166
7.3.1 – Os desaparecidos uruguaios
Segundo o SERPAJ, duas situações gerais marcaram os desaparecimentos contra
cidadãos uruguaios. A primeira, o procedimento de detenção ocorrida na residência, no local
de trabalho ou em lugares públicos, efetuado por agentes repressivos que se identificaram,
fato este devidamente registrado por testemunhas dos acontecimentos. Nestes casos, as
operações de detenção em si não eram secretas. Secreto era o local de detenção onde a pessoa
detida era levada. A detenção havia sido pública, mas a falta de informação sobre o destino da
vítima configurava um quadro de seqüestro. Quando a detenção era acompanhada de uma
autorização para que a família entregasse roupa e medicamentos para o detido, gerava
expectativas de posteriores informações sobre local de detenção, regras de visitas ou
oficialização de processo penal. Entretanto, se os dias passavam e se configurava a situação
de desaparecimento, as autoridades correspondentes passavam a negar a posse de tal detido ou
a existência de qualquer registro de detenção. Diante da pressão dos familiares e das
testemunhas, a resposta oficial variou entre o hermetismo absoluto até a divulgação de que o
detido fugira. A segunda situação resultou de uma ação previamente planejada. As vítimas
foram capturadas na via pública, em operações deliberadamente secretas, nas quais agentes
vestidos de civis utilizavam veículos particulares. Esta modalidade de detenção foi a que
atingiu a maioria dos uruguaios desaparecidos na Argentina, enquanto que, no Uruguai, foi
preponderante sobretudo durante a administração do general Gregorio Álvarez.
167
O primeiro cidadão desaparecido no Uruguai foi Abel Adán Ayala, militante do
MLN-tupamaros, seqüestrado pelo Esquadrão da Morte em 1971. Ayala foi o primeiro de
uma listagem que, segundo a Comisión Investigadora sobre Situación de Personas
Desaparecidas y Hechos que la Motivaron, registrou 168 desaparecidos entre 1971 e 1981.
Desse total, eram 118 homens, 38 mulheres e 8 crianças; 32 casos ocorreram no Uruguai, 127
na Argentina, 3 no Chile e 2 no Paraguai.
168
Tais dados sofreram posteriores correções em
função de novos aportes de testemunhas e elucidamento de casos que ainda estavam em
166
“¿Por qué dar a conocer testimonios desgarradores?” La República, 18/11/01, p. 3.
167
Nos primeiros 6 meses dessa administração, mais de cem pessoas estiveram na condição de detidos
desaparecidos. Três delas em caráter definitivo. In: SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p. 287.
677
aberto. Em março de 1973, desapareceu Roberto Gomensoro, detido por militares vestidos de
civis. Veja-se que tanto Gomensoro quanto Ayala desapareceram antes do golpe de Estado de
junho de 1973. Portanto, desaparecimentos acontecidos durante os regimes “democráticos” de
Pacheco Areco e Bordaberry.
169
Os outros casos correspondem ao período da ditadura. Há
também suspeitas da existência de outros casos sobre os quais, entretanto, faltam evidências
mais concretas para serem incorporados nessas listas. Um caso recentemente tornado público
através do jornal La República, em março de 2003, é o do militante do PCU, Urano Miranda.
Este teria voltado do exílio, em 1981, de forma clandestina e retomado a militância política.
Sobre sua volta, há registros de familiares e companheiros. Também foi testemunhada sua
presença em um centro de detenção em 1983. Segundo o jornal, Miranda seria, então, o
último desaparecido da ditadura. A família denunciou seu caso, diante de organizações de
direitos humanos, somente em 2002. La República lembra que tal desaparecimento teria
ocorrido em um contexto de eleições internas dos partidos legalizados e de anunciada retirada
militar.
170
Em relação aos casos ocorridos após 1980 é importante considerar que já havia
ocorrido o Plebiscito sobre a proposta constitucional das Forças Armadas. O clima
plebiscitário anterior e a participação política da população, por mínima que tivesse sido e
com todos os limites e entraves impostos desde a cúpula da ditadura, auspiciavam uma
expectativa de abertura. Porém, não só ela não se concretizou como houve um refluxo no
caráter repressivo do regime. No período imediatamente posterior, enquanto ocorriam as
eleições internas dos partidos políticos tradicionais, circulava, sob pressão internacional, a
denúncia da existência de cerca de setenta desaparecidos, logo reconhecidos pelo Poder
Executivo como detidos pelas Forças Armadas (ou seja, pessoas seqüestradas que foram
blanqueados); entretanto, nenhum dos casos apresentados no quadro acima para os anos de
1981/1982 faziam parte dessa lista.
171
O fluxo inicial do exílio uruguaio (que começa no período Pacheco, mas se
intensifica consideravelmente depois) acompanhou a experiência anterior das vítimas de
outras ditaduras de SN latino-americanas. Ou seja, acompanhou a tendência de fixar-se nos
países democráticos mais próximos, mesmo que estivessem enfrentando situações internas
efervescentes e procurando condições razoáveis de segurança enquanto aguardavam uma
mudança de expectativas que possibilitasse, a médio prazo, a volta ao país. Foi assim que um
168
Idem, p. 285.
169
BAUMGARTNER; DURAN; MAZZEO, op. cit., p. 32.
170
“Urano Miranda, el último desaparecido de la dictadura”. La República, 15/03/03, p. 3.
171
BAUMGARTNER; DURAN; MAZZEO, op. cit., p. 33.
678
contingente importante de exilados uruguaios viu e sofreu a queda de Salvador Allende e do
governo da Unidad Popular, pouco depois do golpe de Estado uruguaio. Posteriormente,
dezenas de milhares, acabaram cercados quando a violência argentina explodiu durante os
anos de Isabel Perón, antecipando a política de extermínio que tomaria conta daquele país em
março de 1976, com a instalação da Junta Militar e do Proceso de Reorganización Nacional.
Com o fim da frágil democracia peronista, o Cone Sul fechou-se sob os marcos da DSN. A
repressão desconheceu fronteiras e fez-se transnacional; o pedido de asilo político perdeu
sentido. O intercâmbio de prisioneiros políticos e a perseguição dos exilados constituiu prática
comum e combinada das ditaduras da região.
Os desaparecimentos no Uruguai seguiram a regra geral das outras experiências do
Cone Sul. Os primeiros casos de detenção foram realizados por agentes identificados que,
diante de testemunhas, levavam as pessoas para prestar depoimento, sonegando dados sobre o
local de detenção.
172
O Estado negou o seqüestro e procurou confundir toda ação de busca de
informação. O desaparecimento, a ação clandestina e o anonimato dos responsáveis foi parte
dessa metodologia repressiva. Entre os casos mais ilustrativos dessas operações, estão os de
Julio Castro e de Elena Quinteros.
O caso do professor e jornalista Julio Castro é emblemático. Conhecido pela intensa
colaboração com o semanário Marcha, Castro permanecia no país em 1977, mesmo após o
fechamento do jornal e da partida para o exílio do diretor Carlos Quijano. Havia sido vítima
de seguimentos e pedido de informações. No 1° de agosto desse ano, foi seqüestrado. Por ser
uma figura pública, apesar do clima discricionário existente, houve pressão para que as
autoridades se explicassem. Mesmo assim, diante da denúncia imediata do fato, somente dois
meses depois, a Polícia de Montevidéu divulgou um comunicado, através da imprensa,
pedindo a colaboração da população para encontrá-lo. Uma semana depois, um comunicado
oficial afirmava que Julio Castro havia ido a Buenos Aires no vôo n° 159 de PLUNA (linha
aérea uruguaia), poltrona D, que partira do Aeroporto de Carrasco no 22 de agosto de 1977 às
16:30 horas. Tal informação, em realidade, não passava de uma pista diversionista que visava
destensionar as pressões sobre as autoridades uruguaias. Até porque Julio Castro não era
conhecido só no meio jornalístico; como pedagogo era internacionalmente renomado e mais
de uma vez participara de missões da UNESCO. Concretamente, descobriu-se que o nome de
172
Casos como o de Ayala foram exceção. O mesmo foi perpetrado por um dos vários esquadrões da morte (o
Comando Caza Tupamaros – CCT), que, antes do golpe de Estado, agiam clandestinamente no país procurando
fazer o maior estardalhaço possível para criar pânico entre a população. Geralmente, seqüestravam e executavam
a vítima no ato, chamando para si o acontecimento. O desaparecimento do inimigo e o anonimato que decorria
desse fato não fazia parte nem da lógica nem dos objetivos dos grupos paramilitares.
679
Castro não fazia parte da lista de passageiros do vôo 159 nem havia indícios da sua entrada na
Argentina.
173
Foi então que, diante das evidências em contrário, a solidariedade repressiva entrou
em ação; poucos dias depois, o governo argentino reconheceu que Castro, de fato, tinha
entrado no país, isentando as Forças Armadas uruguaias de alguma responsabilidade no caso.
Imaginava-se que, com a confirmação da versão oficial da ditadura uruguaia, encerrava-se o
assunto.
174
Entretanto, se descobriu, logo a seguir, que, por causa de mal tempo, o avião
voltara a Montevidéu sem aterrissar em Buenos Aires. Posteriormente, dois testemunhos
confirmaram o seqüestro do jornalista e sua presença em um centro de detenção clandestino.
O ex-tenente Julio César Barboza, em diversos depoimentos posteriores, informou ter
participado da operação de detenção de Castro, detalhando o procedimento e informando o
local onde foi levado.
175
Da mesma forma, o jornalista brasileiro Flávio Tavares, detido
naquele momento no Uruguai sob acusação de tentar sair do país com material subversivo,
testemunhou que passou alguns dias sendo torturado no mesmo local onde, segundo Barboza,
havia sido levado Julio Castro. Tavares apresentou indícios concretos da presença e da piora
das condições de saúde de Castro.
176
Tavares ouviu o nome da vítima ser citado e trechos de
conversa e gemidos - sinais claros de deterioração do aludido - no centro de detenção em que
ambos se encontravam. Ou seja, enquanto o governo indicava que ignorava onde estava Julio
Castro, este era torturado por funcionários da estrutura repressiva do mesmo governo que
continuava insistindo com a farsa do abandono do país. Julio Castro está desaparecido até
hoje.
177
Elena Quinteros, professora primária e militante histórica da Federación Anarquista
Uruguaya (FAU), do sindicato de professores e, posteriormente, fundadora do Partido por la
Victoria del Pueblo (PVP), foi detida provavelmente no 26 de junho de 1976. Sabendo da
perseguição que seus companheiros estavam sofrendo na Argentina e imaginando o provável
173
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p. 292.
174
Em dezembro de 1977, o Ministerio de Relaciones Exteriores y Cultura argentino informou, textualmente:
“En lista pasajeros vuelo 159 PLUNA del 22 setiembre figuraba en efecto Sr. Julio Castro, Cédula Identidad
uruguaya N. -, nacido 13 noviembre 1908, quien no se presentó al embarque en el Aeropuerto de la ciudad de
Montevideo. En consecuencia no registra ingreso a Argentina en esa fecha ni tampoco en ninguna otra
posterior.” Entretanto, como conseqüência do acordado com as autoridades uruguaias, houve uma retificação de
informação afirmando, que, de fato, Castro havia entrado em território argentino como turista, mas que tal fato
havia passado “desapercebido”. Aparentemente fora um descuido; logo em 1977, ano de intensa colaboração
repressiva entre os dois países. In: Coordinadoría de Sindicatos de la Enseñanza (CSEU). Vivos los llevaron
vivos los queremos. Montevideo: Comisión de Derechos Humanos, s. d.
175
Idem.
176
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p. 293.
177
SERPAJ, idem, p. 30-32. Também: TAVARES, Flávio. Depoimento. Projeto Memória Digital. Acervo da
Luta Contra a Ditadura/TVE-RS. Em 26/06/04.
680
destino que lhe estava reservado, acenou aos seus captores com a possibilidade de fazer
contato na rua. Em realidade, fazia tempo que havia maquinado uma forma de escapar da
repressão, caso fosse detida.
178
Sendo assim, no 28 de junho, foi levada ao local onde devia
acontecer o suposto contato. Enquanto caminhava a espera do mesmo, estando vigiada a curta
distância, conseguiu pular o muro do prédio da Embaixada da Venezuela e pediu asilo
político. Porém, seus captores invadiram o espaço diplomático e dali a retiraram enquanto ela
gritava seu nome e o nome do captor. Funcionários venezuelanos foram agredidos e não
conseguiram evitar o seqüestro realizado no interior da sede diplomática. Imediatamente
entraram em ação automóveis particulares e militares, apostados para a ação prevista, e
fugiram com Elena Quinteros. Isso ocorreu diante de vários funcionários do corpo
diplomático e de vários uruguaios asilados que reconheceram um dos captores.
179
Apesar do
enérgico protesto do Embaixador Julio Ramos pela violação da sede diplomática, o governo
uruguaio negou, através das Fuerzas Conjuntas e do Ministério de Relações Exteriores, a
autoria do incidente e qualquer responsabilidade sobre o mesmo. Diante da negativa da
ditadura em atender a exigência de restituir a pessoa sequestrada da embaixada, a Venezuela
rompeu relações com o Uruguai, situação que perdurou até o final da ditadura e que
repercutiu significativamente no plano internacional.
180
Quanto a Elena Quinteros, vários
depoimentos de sobreviventes do 13° Batalhão de Infantaria Blindado indicam que sofreu
terríveis torturas. Em março de 1979, Carlos Giambruno, embaixador e representante
uruguaio diante da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, sob intensa pressão
internacional, comunicou a Tota Quinteros, mãe de Elena, que sua filha estava viva.
Entretanto, em março de 1982, 7 anos após o seqüestro, o governo informava que Elena
Quinteros continuava sendo procurada desde o 8 de março de 1975 e rechaçava, por
178
OLIVEIRA, R.; MÉNDEZ, S. Secuestro en la Embajada. El caso de la maestra Elena Quinteros.
Montevideo: Cátedra Tota Quinteros. Fundación Rosa Luxemburgo, 2003, p. 41 e 43. Também: SILVA, A.
Crónicas de noches de sueños y de pesadillas. Montevideo: TAE. p. 9.
179
Depoimento de Miguel Millán e de Alberto Grille. “La versión de los testigos presenciales. Así fue el
secuestro”. Revista Caras y Caretas, n. 64, 25/10/02, p. 7-8.
180
Embora a firme decisão diplomática da Venezuela não revertesse a situação e o destino de Elena Quinteros,
contribuiu para ampliar o impacto das denúncias internacionais sobre os perseguidos polícos do Cone Sul. Cabe
mencionar também a atitude solidária das embaixadas mexicanas diante dos golpes de Estado na Argentina e,
principalmente, no Uruguai e no Chile. No caso uruguaio calcula-se que a Embaixada do México tenha asilado
mais ou menos 600 pessoas, tendo alojado, simultaneamente, mais de 200 dentro de um prédio que não passava
de uma grande casa, sem infra-estrutura alguma para enfrentar esse desafio enquanto se planejava a saída dessas
pessoas. Há relatos de atitudes de luta corporal de funcionários mexicanos contra policiais que tentavam impedir
a chegada de perseguidos políticos até as dependências do Consulado. (Fonte: “La embajada de México, un
refugio en tiempos de Cóndor”. Entrevista com Silvia Dutrénit. Brecha, 16/1101, p. 22) Existe inclusive o caso
de uma mulher grávida asilada que teve seu filho em um hospital uruguaio sob proteção mexicana. Tal fato foi
manchete nos jornais mexicanos: Nace una mexicana en territorio uruguayo. Depoimento de Sergio Márquez.
Taller: “Uruguayos, dónde fueron a parar. Del Exilio y el reencuentro”, 25/06/03. Seminário: A 30 años del
golpe / 1973-2003 voces, memorias y reflexiones sobre el golpe de estado y la dictadura en el Uruguay.
681
infundadas, as acusações de participação no seqüestro.
181
Tota Quinteros, militante do PVP e
um dos maiores símbolos da luta pelos desaparecidos e contra a ditadura, sofreu, como
represália, o arrombamento e saque da sua residência, a sonegação da aposentadoria e da
pensão de viuvez a que tinha direito (inclusive, nos governos pós-ditadura) e viu o
apartamento de Elena ser apropriado pela Divisão N° 1 do Exército.
182
Atualmente, há um processo em andamento contra o então Ministro das Relações
Exteriores do Uruguai, Juan Carlos Blanco, que, pelo fato de ser civil, não está protegido pela
Ley de Caducidad que anistiou os militares. Pelo caso Elena Quinteros, o ex-ministro estava
sendo acusado de ser co-autor do delito de privação de liberdade.
183
Uma das principais peças
da acusação é um memorandum por ele assinado e datado em 2 de julho de 1976.
Denominado Conducta a seguir frente al caso Venezuela desde el punto de vista de las
relaciones internacionales, devia balizar a discussão no interior do COSENA, do qual ele
também era membro. O documento propunha discutir duas alternativas de ação desdobradas
em pontos favoráveis e desfavoráveis: “a) entregar a la mujer; b) no entregar a la mujer.” Isto
acontecia no momento em que o governo negava qualquer envolvimento no seqüestro e dizia
ignorar o seu destino. A acusação é taxativa: “¿cómo es posible devolver a quien no se tiene?”
A postura de Blanco, tanto como integrante do COSENA quanto do estratégico ministério,
favoreceu a ação ilegal das forças de segurança.
184
A situação de Blanco piorou quando a Comisión para la Paz entregou o informe
final sobre os desaparecimentos. No anexo sobre Elena Quinteros, concluía,
peremptoriamente, que esta havia sido executada mediante disparo de arma de fogo, no início
de novembro de 1976. A partir daí, colocaram-se duas questões. A primeira, as acusações
contra Blanco extrapolavam o delito de privação de liberdade: “Ya no puede hablarse de un
delito de privación de libertad, porque ésta cesó con la muerte de la víctima, sino de un delito
de homicidio muy especialmente agravado que, en concepto de la Fiscalía también cabe
atribuirle a Blanco en carácter de coautor.”
185
A segunda, de acordo com as conclusões da
Comissão, reside no fato de que a morte de Elena Quinteros, por execução direta, foi um caso
de exceção. O esclarecimento de várias mortes de detidos-desaparecidos confirmam que essas
Montevidéu, 2003.
181
“Reseña de una infamia” Brecha, 12/01/01.
182
SILVA, Alberto. Perdidos en el Bosque. Montevideo: Familiares de Detenidos-Desaparecidos, 1989. p. 33.
183
Textualmente Blanco foi acusado de “[...] haber conocido ex post facto la captura de la víctima, el haber
podido incidir en mayor o menor grado para su liberación y el haber cavilado prolijamente la acción a seguir, en
base a un cálculo aproximativo de ventajas y deventajas políticas de cada una de las opciones. Fonte: “La
sentencia judicial que confirma el proceso del canciller de la dictadura”. La República, 02/04/03.
184
Idem.
185
Idem.
682
ocorreram sob efeito da tortura. A pergunta que deve ser respondida é o porquê da execução
dessa vítima se o extermínio não foi uma prática deliberada. A resposta está no fato de que,
diferente de outros detidos-desaparecidos que depois foram blanqueados (legalizados), sendo
processados e encaminhados às prisões políticas, a situação de Elena não admitia essa
hipótese. Se fosse reconhecido seu seqüestro, teria que ser imediatamente libertada pela
pressão internacional exercida pela Venezuela, além da ditadura ter que assumir o escândalo
de ter invadido território diplomático. Ou seja, caso fosse admitida a prisão de Elena, ela não
passaria anos reclusa sofrendo as arbitrariedades e as limitações de todo tipo que sofriam os
presos políticos nem poderia ser induzida ao suicídio ou à sujeição à política carcerária do
“enlouquecimento”. É aqui que se deve fazer a conexão com as alternativas apontadas por
Blanco no citado memorandum e entender, no sentido mais profundo, a transcendência da
decisão tomada.
Quando o então ministro levantou a alternativa de Entregar a la mujer, apresentou,
imediatamente, as desvantagens que isso poderia acarretar entre as quais o fato de que “[...]
reconoceríamos la comisión de un acto ilícito, ‘la mujer’ podría hacer declaraciones en
nuestra contra y los elementos anteriores podrían ser explotados en una campaña contra
nosotros.” Ou seja, por razões de (Terror de) Estado se optou por No entregar a la mujer. A
cúpula do poder decidiu a eliminação física de Elena Quinteros como forma de continuar
insistindo na farsa do desconhecimento da sua situação, localização e destino.
186
Quando
Giambruno, em 1979, confidenciou a Tota, quem continuava procurando desesperadamente
por Elena, que sua filha estava viva, em realidade, escondia o fato de que havia sido
assassinada há quase 3 anos.
Os casos Julio Castro e Elena Quinteros são extremamente pedagógicos para
ressaltar que, além da mentira e da sonegação de informação, houve outro mecanismo
freqüentemente utilizado pelas ditaduras de Segurança Nacional, o diversionismo.
Diversionismo, mentira e sonegação de informação foram práticas costumeiras, como
exemplificado nos casos anteriormente citados, e, de forma parecida ou até igual, se
manifestaram nas estratégias repressivas das demais ditaduras de Segurança Nacional.
187
186
“Pronunciamento de la Representante del Ministerio Público”. La República, 05/06/03.
187
Como, por exemplo, no depoimento da brasileira Suzana Lisbôa, a qual, em 1979, encontrou os restos mortais
do companheiro Luiz Eurico Lisbôa, desaparecido desde 1972, ao lembrar que: “[...] apesar de muitas vezes eu
ainda sonhar com as evasivas que me foram dadas pela repressão, na época, as histórias que nos contavam de
onde poderiam estar [...]. Eu, quando achei o corpo do Luiz Eurico, tinha uma informação que me tinha sido
dada pelo Otávio Medeiros, na época chefe do SNI [...], de que Luiz Eurico estava em Montevidéu, casado, com
outra família [...]. Eu estava de mala pronta para ir a Montevidéu quando encontrei o Iço [apelido de Luiz
Eurico] no Cemitério de Perus [São Paulo]. Esta tentativa constante deles fazer que a gente acreditasse que os
desaparecidos, de fato, estavam vivos, se transforma numa tortura permanente [...].” Testemunho sobre a
683
7.3.2 – A dinâmica dos desaparecimentos no Uruguai
A política de desaparecimentos apresenta uma série de objetivos; parte deles,
inclusive, possuem paralelo com outras modalidades repressivas. Seus objetivos gerais foram:
1) Reprimir, impedir, dificultar a oposição ou a dissidência eliminando redes
organizativas, bases de sustentação, mecanismos de informação e denúncia, etc. Ou
seja, isolar os movimentos sociais de oposição e o questionamento do sistema. As forças
de segurança tornavam presente, para aqueles que ainda resistiam desde a
clandestinidade, que estes poderiam ser vítimas dessa modalidade repressiva, a qual
poderia gerar seríssimos problemas (verdadeiras punições) para suas famílias.
188
2) Atingir as pessoas do entorno (familiares e amigos) daquela diretamente visada.
Neste sentido, o desaparecimento funcionava como verdadeira ação de extorsão,
retardando e/ou bloqueando uma ação defensiva contra essa violência. Inegavelmente, o
Terror de Estado procurou projetar na família e no círculo de amigos e de colegas do
desaparecido a incerteza, a autocensura e o medo paralisante. De tal forma isso se
generalizou no Cone Sul (e em outras regiões onde aconteceram casos semelhantes de
desaparecimentos), que o direito internacional acabou reconhecendo que os familiares
próximos da vítima de um “desaparecimento” também estão submetidos à tortura ou
outros maus tratos.
189
Por detrás dessa ação, visava-se a sociedade em geral, tentando
impedir a manifestação das formas de solidariedade da população com as vítimas e suas
famílias.
190
3) Explicitar, junto à população, o fator impunidade mediante a introjeção do
entendimento de que não havia mecanismos possíveis de proteção diante de um poder
repressão e os desaparecidos. X Jornada de Ensino de História e Educação. GT de Ensino de História e
Educação-ANPUH-RS/UNIFRA. Santa Maria/RS, 2004.
188
Projeto de Convenção Internacional sobre Desaparição Forçada de Pessoas, elaborado pela Federação Latino-
americana de Associações de Familiares de Desaparecidos. Apud SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Op. cit., p.
285.
189
O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1983, reconheceu que, no caso Elena Quinteros, sua
mãe “[...] é também vítima das violações do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos”. In: AMNISTÍA
INTERNACIONAL, op. cit., p. 239.
190
CONADEP, op. cit., p. 174.
684
repressivo exercido sem limites. Toda ação defensiva legal se tornava impotente, pois
inexistiam recursos políticos, sociais ou jurídicos aos quais apelar. De certa forma,
tratava-se de convencer a população da inevitabilidade dos acontecimentos.
191
4) Impedir responsabilizações futuras bloqueando as possibilidades de levar a cabo
investigações que pudessem recompor os fatos concretos. Tanto o ocultamento de ações
ilegais quanto de cadáveres diluíram as responsabilidades individuais na direção ou na
execução dessas tarefas.
192
5) Desumanizar os indivíduos e os grupos sociais através da imposição de um cotidiano
onde a violência foi banalizada. Com isso, parte da sociedade perdeu a capacidade de
indignar-se diante dos crimes cometidos pelo Estado e se recolheu a uma “aceitação”
dos fatos, ao auto-silenciamento, à não-denúncia. Pode-se alegar que a dimensão deste
comportamento, no Uruguai, foi pequena; mas o impacto que teve junto à coletividade
uruguaia exilada ou emigrada na Argentina e aos seus familiares, amigos e colegas que
permaneceram no Uruguai foi significativa.
Quanto aos principais objetivos específicos da política de desaparecimentos, estes
foram:
1) Destruir todo vestígio do corpo ou da sua identificação, parte essencial da
metodologia do desaparecimento. O desaparecimento das pessoas e a resposta oficial
padrão, o “não está” (detido), manteve a esperança da volta da pessoa para parentes e
amigos. Mas o passar do tempo e a destruição de vestígios e documentos que podiam
permitir o rastreamento do detido alimentaram a incerteza sobre os acontecimentos e o
destino do mesmo. E, quando ocorreu a descoberta de cadáveres sem nome, tal fato
aumentou a ansiedade causada pelo destino que coube ao familiar procurado.
193
2) Passar violenta mensagem à sociedade, particularmente aos setores que mantivessem
potencialidade de persistir em posições críticas contra o governo. O desaparecimento de
lideranças desses coletivos gerou temor nos prováveis sucessores. Ou seja, o
191
Idem, p. 175.
192
Idem, p. 174; PASCUAL, op. cit., p. 89.
193
CONADEP, op. cit., p. 174.
685
desaparecimento podia ser aplicado a todo aquele que insistisse em atitudes
consideradas subversivas, com a extensão ao seu entorno das seqüelas decorrentes da
aplicação de tal mecanismo repressivo.
3) Utilizar o desaparecimento como instrumento de terror que paralisou a reação
defensiva do entorno dos atingidos e impediu a solidariedade da população, os
protestos, as reclamações e até as denúncias, tanto no interior do país quanto no
exterior. Como já foi dito, é plausível pensar que alguns casos de desaparecimento não
foram comunicados pelo fato que aqueles que deviam ter tomado tal iniciativa tiveram
medo, ignoravam a militância do familiar, estavam geograficamente isolados, eram
pessoas muito simples e ignorantes da política e da dinâmica de acontecimentos do país
ou, então, pela convicção de que nada poderia ser feito.
194
Da mesma forma, poder-se-ia
acrescentar o caso daqueles que não reagiram por acharem que, agindo assim, talvez
destensionassem condições adversas que pudessem estar sendo enfrentadas pelo detido-
desaparecido, poupando-o, então, de um reforço punitivo contra ele.
A metodologia do desaparecimento é extremamente complexa, pois implica em
seqüência de ações entre as quais podem estar compreendidas vigilância, seguimento,
montagem de armadilhas com retenção temporal de familiares, saque, seqüestro, detenção,
interrogatório/tortura, execução, desaparecimento, encobrimento, etc. Por isso, é considerado
um dos métodos de repressão política mais desumanos, sem freios legais, morais ou
humanitários.
195
Muitas vezes, o seqüestro na própria residência era antecipado pela preparação de
uma ratonera (ratoeira) à espera da vítima ou de pessoas do meio clandestino da mesma ou
que constavam em listas de procurados. Em todos os casos, os familiares eram tomados como
reféns, bem como outras pessoas que tivessem a fatalidade de aparecer no local. Essa espera
podia durar algumas horas e até alguns dias, o que tornava a ocupação do local uma ação
contínua com renovação da guarda, como registra Rosa Martínez, que teve a casa revistada e
ocupada por quatro agentes repressivos, durante seis dias, à espera do marido, posteriormente
desaparecido.
196
Fez parte do sistema de detenções o esquema já citado de saque das vítimas, saque
194
PASCUAL, op. cit., p. 64.
195
Brecha, 03/03/89, p. 3.
196
SERPAJ. La Desaparición Forzada en el Uruguay. Op. cit., p. 21.
686
este considerado pelas forças repressivas como “presa de guerra”. Elisa Brieba, mãe do
desaparecido Juan Manuel Brieba, esteve detida junto com o filho durante um mês. Ao voltar
à casa abandonada, os vizinhos informaram-lhe que a mesma havia sido saqueada: “me doy
cuenta que se han llevado todo; desde las herramientas del taller [Brieba era carpinteiro] hasta
una cafetera de aluminio, la heladera, la estufa, el primus, sábanas, frazadas, todo...
197
.
No 20 de abril de 1974, as Fuerzas Conjuntas realizam uma operação contra o
apartamento de Washington Barrios, onde morreram três mulheres (uma delas grávida). Logo
a seguir, realizou-se o saque, assim contado pela irmã de Barrios, na época, uma menina de 10
anos:
Al mediodía llegaron varios camiones del ejército con soldados y
comenzaron a llevarse todo el mobiliario. Lo primero que se llevaron fue la
puerta, retiraron hasta los tapones y las tapas de las llaves de encender las
luces. Recuerdo cuando se llevaron la máquina de coser y el colchón del sofá
cama que estaba en el lugar donde las asesinaron. [...] lo que no pudieron
llevarse, como el placard del dormitorio, lo rompieron.
198
Cabe lembrar também que parte da rede dos locais clandestinos de detenção do
aparato repressivo haviam sido expropriadas de organizações políticas e sociais consideradas
subversivas. Similarmente, o saque foi um procedimento generalizado aplicado pela política
de TDE na Argentina, muito mais do que foi no Uruguai. Mas os comandos uruguaios que
agiram no outro país assumiram uma postura semelhante a que lá imperava. Um dos casos
mais destacados envolveu o grupo de uruguaios seqüestrados para participarem da farsa da
“invasão”. Rodríguez Larreta, no seu depoimento, denunciou que o produto dos saques das
famílias atingidas foi cuidadosamente condicionado para ser transportado para o Uruguai:
“[...] entre lo robado había autos desarmados, heladeras, televisores, máquinas de escribir y
calcular, artículos electrodomésticos, vajillas, bicicletas, libros, etc.”
199
Rodríguez Larreta
denunciou também que, em janeiro de 1977, voltou a Buenos Aires, esteve no apartamento da
nora - ainda seqüestrada no Uruguai na condição de integrante da “Operação Invasão” - e
verificou que fora saqueado. A seguir, pagou as prestações atrasadas do condomínio. Depois,
ele partiu para a Europa em uma campanha de denúncias sobre o que vivera e a situação das
outras pessoas envolvidas na “Operação Invasão”. Mais tarde, soube que o pai da nora
encontrara, no apartamento citado, uma faixa do Exército que dizia “clausurado”. Assustado,
foi embora. Rodriguez Larreta voltou à Argentina, no início do governo Alfonsín para prestar
197
Idem, p. 12.
198
SILVA, op. cit., p. 47.
199
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron. Testimonios de Víctimas:
Enrique Rodríguez Larreta. Londres, 18/03/77.
687
testemunho na CONADEP. Então descobriu que, em 1983, um indivíduo, apresentando uma
carteira de identidade verdadeira da sua nora, cedera os direitos sobre o imóvel a um terceiro,
que por sua vez, o escriturou e o vendeu a uma outra pessoa, um dia antes da posse do
presidente Alfonsín.
200
Um dos componentes mais importantes desta metodologia repressiva foi o fator
clandestinidade, presente tanto na forma dessa ação repressiva estatal quanto na condição de
sobrevivência de boa parte dos indivíduos visados. Quando os órgãos de segurança prendiam
uma pessoa imersa na clandestinidade (ou semi-clandestina), tornava-se muito mais difícil a
percepção e denúncia desse fato. Na clandestinidade, o conhecimento da detenção ou a
suspeita da queda podia demorar para romper os limites de marginalização existentes para o
clandestino. Ou seja, fora as pessoas do entorno clandestino da vítima, a notícia da detenção
podia demorar para ser conhecida e repercutida pela família e pela sociedade. Inegavelmente,
tal fato representou uma grande vantagem para os órgãos de repressão, que dispunham, assim,
de condições favoráveis para exercerem total pressão sobre o detido-desaparecido; estes
ficavam à completa mercê dos captores, isolados, desprovidos de toda proteção, “sofrem o
que percebem como a horrível certeza de que ninguém no exterior pode socorrê-los. Devem
afrontar a perspectiva de que serão mortos e, de fato, assim é como ocorre com muitos”.
201
Por outro lado, a seqüência seqüestro-traslado-detenção-tortura foi a regra para os
desaparecidos e ex-desaparecidos. Para a vítima, o desconhecimento sobre seu destino e o
caráter ilegal da detenção criavam a expectativa de uma tortura devastadora. Aliás, a
modalidade desaparecimento esteve profundamente imbricada às outras modalidades
repressivas estatais. É plausível pensar que o detido-desaparecido sofreu uma tortura muito
mais intensa que aquela sofrida, fora casos de exceção, pelos presos políticos legalizados.
Certamente que torturar alguém que estava na situação de “não ser, não está” podia ser, para o
torturador, um estímulo maior para ultrapassar o limite estabelecido. Sem dúvida, nesses
casos, o horizonte de impunidade desenhado diante do torturador se ampliava
consideravelmente. Considerando que, para a justiça e para a imprensa tal detido não existia, a
aplicação de torturas sem limite podia continuar desde que não se tornasse pública. Assim, se
o detido morresse durante a tortura, no pasa nada, simplesmente seria mais um desaparecido.
Os efeitos da política carcerária do sistema atingiram o detido-desaparecido de forma
mais drástica. Primeiro, porque, em hipótese alguma, recebia visitas. Segundo, porque ele se
200
Depoimento de Enrique Rodríguez Larreta no Juicio a las Juntas, organizado pela CONADEP. Buenos Aires,
17/06/85. In: D’ANDREA MOHR, José L. Memoria Debida. Buenos Aires: Ed. Colihue, 1999. CD-ROM.
201
AMNISTÍA INTERNACIONAL, op. cit., p. 92.
688
encontrava em centros de detenção clandestinos imerso sob uma dinâmica dantesca de gritos,
tortura, dor, cheiros, ação frenética da guarda e dos torturadores, etc. Um elemento particular
que dificultava ainda mais suas condições de sobrevivência era a possibilidade real de morte
imediata. Isso podia justificar um tratamento ainda mais desumano (se é possível medir tal
situação), com maior dose de violência e a conseqüente aceleração da deterioração da
capacidade de resistência. De qualquer forma, se o detido-desaparecido, na melhor das
hipóteses, fosse blanqueado como preso político, a legalidade dessa condição lhe garantia,
minimamente, a possibilidade da sobrevivência; contudo, permaneceria exposto às práticas
repressivas da política carcerária até terminar de cumprir a pena imputada.
A sonegação de informação foi um dos recursos fundamentais da metodologia do
desaparecimento e foi justificada em nome da Segurança Nacional e do combate à subversão.
Não só se negou informação a quem procurava. Muitos daqueles que haviam sido
seqüestrados por erro ou em detenções coletivas e contra os quais não se comprovou alguma
conexão com as pessoas procuradas, apesar de terem sofrido a situação de detidos-
desaparecidos, posteriormente foram libertados. Tal fato ocorreu de forma não oficial e sem
maiores explicações; na prática, era como se o seqüestro nunca tivesse acontecido. Mas a
condição para a libertação dessas pessoas foi que não fizessem qualquer denúncia. Não foram
poucos os que, por medo de represálias, acataram tal orientação, reforçando, com tal atitude -
até compreensível -, os objetivos da repressão. De fato, o terror e as ameaças paralisaram
muitas vítimas que sobreviveram, impedindo que efetuassem as denúncias pertinentes. E, na
percepção de uma imunidade vista como uma ameaça latente e constante, parte deles optou
pelo exílio.
A maior parte das vítimas de desaparecimento político foram vítimas também da
aplicação de tortura e da execução extrajudicial. Neste sentido, a desaparição do cadáver ou
mesmo a aparição de um cadáver sem condições de ser identificado contribuiu para que
persistisse o mistério sobre as circunstâncias do homicídio da vítima. Em suma, a desaparição
encobriu uma execução extrajudicial, e esta permitiu a perpetuação da desaparição.
202
O diversionismo foi outro componente importante das políticas repressivas do TDE,
particularmente, dos desaparecimentos; neste caso, tal recurso ganha uma conotação muito
mais delicada pelo fato de que se torna muito mais difícil comprovar ou contrapor as
informações oficiais. Além da falta de respostas para suas denúncias e para a procura de
notícias, os familiares dos detidos-desaparecidos sofreram com o reconhecimento de respostas
falsas (mentirosas) e com as já apontadas informações “plantadas”, diversionistas - ou seja,
689
informações sobre pistas falsas que tinham como intuito dificultar ainda mais a possibilidade
de encontrar registros fidedignos do acontecido -, e adiavam, persistentemente, o
estabelecimento de mecanismos de defesa que protegessem o familiar seqüestrado. Um dos
diversionismos mais comuns, o abandono do país por parte da pessoa procurada pela sua
família, foi utilizado para responder aos familiares do professor da Faculdade de Direito,
Fernando Miranda Perez, levado para interrogatório (em 30/11/75). Diante da denúncia
apresentada pela esposa do detido, o Sub-Comisario Márquez respondeu num documento
devidamente assinado, que:
1- La Policía en ningún momento detuvo al Sr. Fernando Miranda.
2- Consultadas las Fuerzas Conjuntas, manifestaron no haber hecho
procedimiento con el aludido Fernando Miranda Perez.
3- Que la policía se preocupa desde la primera denuncia en aclarar este
secuestro o presunto secuestro.
4-
Que durante la investigación realizada se pudo constatar que Fernando
Miranda Perez hizo abandono del país el día 11 de febrero de 1976 a la hora
22, según consta en la lista del Ferry Boat-Gral. José Artigas con el n.
208.
203
[grifo meu]
É importante considerar que a credibilidade, mesmo temporária, de uma ação deste
tipo exige que o álibi apresentado seja plausível, o que significa a confirmação do simulacro
por parte das empresas ou indivíduos que se prestam para colaborar corroborando essa versão.
A mesma explicação do abandono do país foi dada no caso de Lorenzo Escudero Matos, que,
segundo a versão oficial, também teria fugido para Buenos Aires; entretanto, sua voz foi
reconhecida no Batalhão 13° de Infantaria.
Exemplo de diversionismo é o que registra o depoimento prestado por Tota
Quinteros na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No citado caso da filha Elena,
desaparecida, Tota lembrou que o representante do Uruguai na ONU lhe havia informado, em
março de 1979, que aquela “continuava prisioneira, mas que se procurava uma fórmula (por
parte do governo) para que ela saísse do país, possivelmente através da fronteira com o Brasil
ou a Argentina”. Segundo Tota, o aceno do reaparecimento da filha seria uma manobra com o
objetivo de demovê-la da intenção de denunciar o regime uruguaio perante as Nações
Unidas.
204
A “lei da fuga”, expediente de eliminação de presos políticos bastante conhecido nas
experiências repressivas do Cone Sul, também foi utilizado para justificar a eliminação de
202
Idem.
203
Idem, p. 13.
204
OAB: Depoimento de Maria del Carmen Almeida Quinteros. Rio de Janeiro, 27/10/80. Acervo Pessoal Omar
Ferri (APOF) Acervo da Luta contra a Ditadura, Rio Grande do Sul.
690
casos de desaparecidos. Assim ocorreu com Ubagesner Chavez Sosa; sua esposa esteve 23
vezes na base aérea de Boiso Lanza, onde as autoridades responsáveis negaram sempre que ali
estivesse detido, apesar de testemunhos que afirmavam o contrário. Finalmente, um cabo de
sobrenome Pedroso reconheceu que, de fato, essa pessoa lá estivera preso, mas que havia
fugido durante um operativo de rua. Essa acabou sendo a versão oficial para o
desaparecimento de Chavez Sosa.
205
Outra ação diversionista muito divulgada na sua época foi a correspondente aos
cadáveres do Rio de la Plata. Entre 1976 e 1979, apareceram mais de 20 corpos sobre a faixa
litorânea compreendida entre as cidades de Colonia e do Chuy. Na época, insistiu-se muito na
versão de que se tratava de indivíduos de traços orientais, provavelmente de algum navio
acidentado ou de um amotinamento de tripulação seguido de mortes, fato que teria ocorrido
perto do limite das águas de jurisdição uruguaia. O governo procurou fazer um esclarecimento
público antes de que se espalhassem perguntas embaraçosas:
O Comando Geral da Armada faz saber à população que os cinco cadáveres
aparecidos na costa do departamento de Rocha são presumivelmente de
nacionalidade chinesa ou de outro país asiático, que estiveram no mar entre
20 ou 30 dias, pelo que são totalmente irreconhecíveis.
Que apresentam sinais de violência e têm as mãos amarradas às costas.
Presume-se que foram jogados ao mar de algum barco.
206
O mais interessante deste comunicado oficial é que nele mesmo se afirma que o
governo trouxe a informação para evitar que as pessoas fizessem ilações descabidas:
As mencionadas pontualizações realizam-se a fim de evitar diferentes
comentários que em casos desta natureza geram-se facilmente, conduzindo a
população a conclusões errôneas.
207
A publicação de fotografias mostrando corpos em adiantado estado de decomposição
parecia corroborar a informação oficial. Posteriormente vieram a público os depoimentos do
fotógrafo da Prefectura Naval e ex-marinheiro Daniel Rey Piuma
208
e, mais recentemente, o
do militar argentino Francisco Scilingo,
209
os quais permitiram desmontar os argumentos
oficias e, ao mesmo tempo, montar esse quebra-cabeça.
O diversionismo esteve contemplado na argumentação dada pelas autoridades
uruguaias de que os primeiros cadáveres que haviam aparecido pertenciam a algum navio de
205
SERPAJ, op. cit., p. 18.
206
BAUMGARTNER; DURAN; MAZZEO, op. cit., p. 216.
207
Idem.
208
REY PIUMA, Daniel. Los crímenes del Río de la Plata. Córdoba: El Cid Editor, 1984; REY PIUMA, Daniel.
Un marino acusa. Montevideo: TAE, 1988.
691
tripulação de traços orientais. Era a denominada “teoria coreana”, sustentada na presença
efetiva de pesqueiros daquela origem operando próximo às águas territoriais uruguaias e nos
traços orientais destacados por um médico forense. Uma outra hipótese se sustentava no fato
de que, naqueles dias, alguns marinheiros coreanos se haviam envolvido em violentas brigas
na zona portuária de Montevidéu, ou seja, ressaltava-se um caráter violento que poderia ser a
causa da morte de alguns deles. Entretanto, inexistia registro algum de navio navegando à
deriva ou que tivesse enfrentado amotinamento ou briga generalizada da sua tripulação nas
proximidades ou dentro do limite das águas uruguaias. Enquanto isso, o tempo passava, os
cadáveres continuavam aparecendo (uns 40, entre 1976 e 1979) e ficava evidente que os
apontados “traços orientais” não passavam do efeito produzido pelo grau de decomposição
dos mesmos.
210
Neste ponto, é importante conferir o que dizia a imprensa, evidentemente induzida
pela informação oficial; certamente, parte dela cumpria sua parte no encobrimento oficial do
que realmente sucedia. Anotações pessoais de Rey Piuma, fotógrafo da Prefectura Naval,
sobre cada caso de corpos aparecidos, permitem descobrir como a imprensa escrita repercutia
as informações oficiais “plantadas” pela ditadura, contribuindo, assim, para o ocultamento dos
fatos. Diante dos primeiros cadáveres, as manchetes dos jornais especularam com “motins a
bordo”, “orgias em alto mar”, “vingança de bandos de bandidos”, “crime em navio pirata”,
“execução de integrantes do Exército Vermelho Japonês”, “acerto entre mafiosos”, “brigas de
narcotraficantes”, etc.
211
Entretanto, na medida em que os cadáveres iam se acumulando, começaram a
aparecer alguns vestígios junto com os restos mortais: moedas, caixas de fósforos, cigarros,
pentes, etiquetas de roupa. Eram de origem argentina. Um dos corpos foi identificado por uma
tatuagem; era o de Floreal Avellaneda, um garoto argentino de 14 anos. O laudo médico
realizado em Montevidéu demonstrou que fora barbaramente assassinado. Também se obteve
uma carteira de identidade argentina junto aos restos de um cadáver feminino: pertencia a
María Cristina Cámpora. O governo uruguaio passou a ter dificuldade para manter a farsa que
permitia encobrir a ação de extermínio e de desova de cadáveres realizada do outro lado do
Río de la Plata. Diante da denúncia de exilados uruguaios em Paris de que quatro cadáveres
de recente aparição pertenciam a compatriotas, o governo se apressou em desmentir que se
tratassem de cidadãos uruguaios.
209
VERBITSKY, Horacio. El Vuelo. Buenos Aires: Planeta, 1995.
210
“Confirmado: Los mataban y atados los tiraban al Paraná”. Jornal Dignidad, 22/02/84, p. 11.
211
REY PIUMA, Un marino acusa. Op. cit., p. 128, 135 e 141; REY PIUMA, Los crímenes del Río de la Plata.
Op. cit., p. 63.
692
As informações apresentadas por Daniel Rey Piuma se transformaram na maior fonte
documentada sobre o assunto, visto a precisão das suas anotações pessoais, o farto material
fotográfico e as cópias de documentos retirados da Prefectura Naval uruguaia. Rey Piuma
confirmou o que se desconfiava: nenhum cadáver tinha traços asiáticos. Lembrou que, na
região, há um fenômeno de maré e de pressão de correntes oceânicas que faz com que os
fluxos das águas dos rios Paraná e Uruguai passem por todo o litoral do país. Resíduos, restos
calcários e plantas são depositados num litoral que se estende por centenas de quilômetros.
Considerando a informação de Rey Piuma de que todos os cadáveres estavam de mãos e
pernas amarradas e apresentavam marcas evidentes de feridas e torturas, não era muito difícil
concluir sobre a origem dos corpos.
212
Restos ósseos foram encontrados nas areias das praias
do litoral leste e no fundo do porto de Montevidéu. Como diz Paoletti
213
, os cadáveres não
eram de coreanos, de japoneses ou de uruguaios. E a ditadura argentina fez de conta que não
era com ela.
214
Há fortes suspeitas que alguns dos uruguaios desaparecidos na Argentina
tenham tido o mesmo fim.
215
Um outro tema explorado como informação “plantada” foram supostas invasões do
território uruguaio por parte de “subversivos” exilados voltando para reorganizar focos
armados contra o regime. Pelo menos há dois casos onde tal recurso foi utilizado. O primeiro,
em 1976, de um grupo de uruguaios detidos-desaparecidos na Argentina (“Operação
Invasão”); outro, o acontecimento envolvendo Lilian Celiberti e Universindo Díaz, em 1978.
212
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron Parte II. Testimonios
recogidos de víctimas y represores. Testimonio de Daniel Rey Piuma, enero de 1981.
213
PAOLETTI, op. cit., p. 80.
214
Rey Piuma ouviu do cabo argentino Víctor Pena e funcionário do Servicio de Inteligencia de la Prefectura
Naval Argentina (SIPNA), o qual desempenhava funções no Uruguai, que os cadáveres pertenciam a presos
políticos mortos na Prefectura Naval argentina e desde helicópteros da mesma unidade eram jogados no Rio
Paraná amarrados e com pesos no corpo. O mesmo método era utilizado com detidos vivos, que eram sedados
antes de embarcar. Em determinada ocasião, segundo Pena, haviam recebido ordens superiores de suspender a
tortura porque “se les había ido la mano con más de 100 personas que no tenían nada que ver. Personas que
empezaban a interrogar, seguían interrogando, interrogando, interrogando, hasta que se les morían.” (idem).
Pena, sabendo do esforço das autoridades uruguaias em ocultar o que havia de fato por detrás dos cadáveres
devolvidos pela maré, rindo, teria dito: “como les jodimos la vida a ustedes”, fazendo alusão à necessidade de
esconder ou tergiversar os fatos. REY PIUMA, Un marino acusa. op. cit., p. 121.
215
O gaúcho Indio Vargas afirma que esse foi o destino do brasileiro Edmur Péricles de Camargo, dirigente da
organização Marx, Mao, Marighella e Guevara (M3G). Edmur, teria sido preso por militares brasileiros no Chile,
logo após o golpe de Pinochet, colocado num avião da Força Aérea Brasileira no Uruguai e jogado ao mar. Além
da suposição de ter sido vítima da metodologia dos vôos da morte, seu assassinato seria mais um exemplo
concreto da conexão repressiva do Cone Sul. Depoimento tomado em 10/10/03. Projeto Memória Digital.
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Uma versão apoiada em registros do Ministério da Marinha brasileira indica
que teria desaparecido em 11 de julho de 1974, após ter sido preso por autoridades brasileiras e argentinas depois
que seu avião pousou em Buenos Aires, em viagem do Chile para o Uruguai, quando estaria voltando
clandestinamente ao Brasil. In: DOSSIÊ DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS A PARTIR DE
1964. Pernambuco: CEPE, 1995. p. 287. Nilson Mariano, baseado em documentos oficiais argentinos, aponta
seu desaparecimento em Buenos Aires no início de dezembro de 1973. In: MARIANO, Nilson. As Garras do
Condor. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 81.
693
Em relação ao primeiro, a versão oficial das Forças Armadas, amplamente divulgada
junto à população, dava conta de que a subversão se rearticulara em Buenos Aires, durante o
ano de 1976, e preparava nova ameaça terrorista contra o Uruguai, agora por detrás de uma
nova organização, o PVP. O ponto crucial da farsa montada residia na seguinte afirmação:
“En Buenos Aires realizaban auto-secuestros, denunciándolos después a las autoridades
argentinas, mientras los secuestrados pasaban a ejecutar las actividades clandestinas
proyectadas en el Uruguay.
216
Portanto, esses exilados estariam no Uruguai preparando e
executando diversas ações enquanto seus nomes apareciam nas listas de pessoas
desaparecidas na Argentina. Segundo a versão oficial, através de uma eficiente operação
militar e de inteligência, as Forças Armadas uruguaias descobriram e capturaram diversos
locais dos “subversivos”, inclusive o chalé Susy, num balneário próximo a Montevidéu,
principal centro operativo da organização. Ali as Forças Armadas convocaram a imprensa
nacional e estrangeira e mostraram a dimensão da ameaça: importante arsenal, munição
abundante e farto material de propaganda. Informou-se que 62 pessoas haviam sido detidas e
apresentou-se o nome de várias delas; algumas, inclusive, foram mostradas aos jornalistas no
mesmo local. Essa foi a versão oficial dos fatos.
Porém, a realidade foi bem diferente. Segundo Carlos Amorín, o embaixador
estadunidense, Ernest Siracusa alertara aos militares de que, com a crescente importância da
questão direitos humanos na agenda da política interna do seu país, dificilmente os EUA
manteriam a ajuda militar ao Uruguai; segundo ele, somente um fato que produzisse muito
impacto junto à opinião pública poderia reverter tal situação. Amorín reproduz o diálogo que
houve:
Contra-almirante Sanjurjo: ¿Hay alguna posibilidad de influir en esta
decisión? ¿Se puede sacar a Uruguay de esa lista?
Embaixador Siracusa: No quiero engañarlos: es casi imposible, pero se
puede intentar. Habría que demostrar que el país se encuentra en peligro real,
que está siendo atacado por grupos bien organizados, poderosos en gente,
armas y dinero. En todo caso, cualquier acción que se ejecute debe ser muy
espectacular e incuestionable.
217
Em julho de 1976, houve uma grande onda de prisões de uruguaios em Buenos
Aires, principalmente de militantes do PVP ou vinculados à CNT. Tal ação fez parte das
operações coordenadas entre as forças de segurança de ambos os países; as vítimas
identificaram oficiais do Exército uruguaio (vinculados ao OCOA) e outros do Serviço de
216
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al Pueblo Uruguayo. T II. El Proceso
Político. Montevideo: 1978. p. 226.
217
AMORÍN, Carlos. Sara - Buscando a Simón. Montevideo: Ediciones de Brecha, 1996. p. 41.
694
Inteligência (Divisão 300).
218
Os seqüestrados foram levados ao centro clandestino de
Automotores Orletti. Simultaneamente, as bases do PVP também eram atingidas em
Montevidéu. No 25 de julho, 24 dos detidos-desaparecidos em Orletti foram levados para
Montevidéu. Ali receberam uma estranha proposta: assumiam a farsa de ter sido detidos no
Uruguai ou então seriam devolvidos à Argentina para serem executados. Frente a essas
opções, os seqüestrados não tiveram alternativa. A encenação partiria da descoberta, pelas
Forças Armadas, de um plano subversivo de invasão. Depois, ocorreriam operações militares
em hotéis e em um centro subversivo, nas proximidades da capital, onde seriam presos
inúmeros “invasores”.
Para entender esta sofisticada operação, torna-se necessário contextualizar os fatos.
Nesse momento, James Carter, que venceria o pleito presidencial estadunidense em
novembro daquele ano, projetava-se como forte candidato criticando a gestão republicana e
seu apoio incondicional a regimes ditatoriais. A pressão contra os regimes que
desrespeitavam os direitos humanos estava na ordem do dia do Congresso daquele país; uma
emenda do congressista Koch (aprovada em agosto de 1976) exigia a suspensão imediata de
ajuda econômica às ditaduras do Cone Sul. Por isso, os estrategistas da ditadura uruguaia
apostaram que o “reforço” de uma ameaça comunista poderia reverter a posição da opinião
pública internacional e aliviar a pressão estadunidense. Esta foi a finalidade da encenação da
“Operação Invasão”. Aliás, especula-se que provavelmente foi essa necessidade da ditadura
uruguaia que fez com que o grupo “invasor” tivesse um destino diferente daquele sofrido por
outros uruguaios seqüestrados na Argentina e que passaram a constar nas listas definitivas de
desaparecidos.
219
Em outubro de 1976, desenrolou-se a farsa da “invasão”: com todo estardalhaço,
foram feitas inúmeras operações de busca em Montevidéu. Comunicados militares,
amplamente divulgados, deram conta da prisão de 62 pessoas vinculadas à ação subversiva
(somente 29 foram apresentadas, o que faz pensar que os demais, também detidos na
Argentina, acabaram desaparecendo). No chalé Susy, foi convocada uma coletiva de
imprensa onde se mostraram sinais evidentes de nova ameaça “subversiva” e alguns dos
detidos. Em realidade, nas semanas anteriores à deflagração da ação militar, homens e
mulheres dos serviços de inteligência, vestidos de civil, circulavam de forma suspeita no
chalé e nas ruas próximas. A idéia era de criar um clima de atividades suspeitas que
218
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron. Testimonio Colectivo de
nove das pessoas seqüestradas em Buenos Aires, entre o 13 e 14 de julho de 1976. S. l., s. d.
219
OLIVEIRA, Raúl; MÉNDEZ, Sara. Secuestro en la embajada. El caso de la maestra Elena Quinteros.
Montevideo: Edición de la Cátedra Tota Quinteros/Fundación Rosa Luxemburgo, 2003.
695
pudessem ser confirmadas por vizinhos desconfiados e observadores, para garantir a
credibilidade que a história exigia. A montagem foi ocultada com convicção:
El centro principal de operaciones de esta banda en el Uruguay era el chalet
“Susy”, en el Balneario Shangrilá [...] con esconderijos subterráneos de
grandes dimensiones que permitían el cómodo funcionamento de imprentas.
[...] fueron incautadas numerosas armas (pistolas, revólveres,
submetralladoras PAM, con inscripciones del Ejército Argentino, y otra UZI,
escopetas, una de ellas de caño recortado, y la munición correspondiente, así
como abundante material de propaganda subversiva [...].
220
Tudo isso só foi desmentido a partir da denúncia de Enrique Rodríguez Larreta, o
qual, ao procurar pelo filho desaparecido em Buenos Aires, caiu na mesma ação repressiva.
Após vários meses de prisão, já em Montevidéu, foi libertado diante da inexistência de
qualquer acusação contra ele. Conhecedor privilegiado dos pormenores que tinham envolvido
essa farsa, denunciou o caso nos tribunais internacionais. Na condição de detido-
desaparecido, entre julho e dezembro de 1976, Rodriguez Larreta ofereceu importante
testemunho,
221
que rendeu abundante informação sobre vários temas: o funcionamento da
conexão repressiva argentino-uruguaia, o centro clandestino de detenção Automotores Orletti,
a tortura, pessoas que acabaram definitivamente desaparecidas, compatriotas desaparecidos
na Argentina e que depois foram detidos e processados no Uruguai (os “invasores”), além de
informações sobre a “invasão” em si. No seu depoimento contou que, no 26 de julho, um
grupo foi trasladado à Base Militar ao lado do Aeroparque (Buenos Aires). Ali embarcaram
em um avião que alguns detidos reconheceram como sendo da PLUNA. Uma hora depois,
desciam na Base Aérea Militar contígua, ao Aeroporto de Carrasco (Montevidéu). O
depoente lembra que a farsa da qual deviam participar foi informada aos presos escolhidos
pelo major Gavazzo:
1) Que ellos - las fuerzas especiales de seguridad - nos habían salvado la
vida al rescatarnos de los asesinos argentinos que “nos querían mandar arriba
a tocar el arpa con San Pedro”.
222
2) Que por lo tanto debíamos contribuir a que se justificara nuestra presencia
en el Uruguay, para lo cual debíamos prestarnos a simular una tentativa de
220
Idem.
221
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron. Testimonios de Víctimas:
Enrique Rodríguez Larreta. Londres, 18/03/77. Rodríguez Larreta prestou inúmeros testemunhos diante da
imprensa internacional, da Comissão Internacional de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos
(CIDH) e junto ao Alto Comissionado das Nações Unidas; este último foi publicado no livro: VEIGA FIALHO,
A. Uruguai: um campo de concentração? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
222
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron. Testimonios de Víctimas:
Enrique Rodríguez Larreta. Londres, 18/03/77. A respeito desses acontecimentos, Gavazzo teria afirmado: “No
olviden que nadie sabe que están acá. Oficialmente ustedes no existen como prisioneros.” In: AMORÍN, op. cit.,
p. 63. É a argumentação que expressa em essência a idéia do que é um detido-desaparecido.
696
invasión armada por un grupo guerrillero, que había ingresado
clandestinamente a la altura del Río Negro, donde sería sorprendido por
tropas uruguayas. Si admitíamos estos hechos, nos correspondería una pena
comprendida entre los 15 y los 20 años de prisión. Para presionar, insiste en
recordar que si bien nos habían salvado la vida, estábamos exclusivamente
en sus manos y nadie conocía nuestro paradero. [...]
223
Também deviam admitir que as campanhas de denúncias realizadas no exterior
sobre seqüestros e desaparições de uruguaios na Argentina eram infundadas.
Conhecida a farsa, o grupo se negou a participar da mesma e a assinar confissões já
preparadas. Os seqüestrados considerados líderes daquela atitude foram retirados
violentamente para serem executados. Horas depois, entretanto, foram devolvidos com vida
após sofrerem violenta sessão de tortura. Posteriormente houve nova proposição: a prisão não
seria no momento de “invadirem” o país, mas em uma residência da capital onde seria
descoberta uma reunião fortemente armada. Em troca, seriam blanqueados e condenados a
mais de 15 anos de prisão. A resistência dos presos continuou por vários dias.
Enquanto se tentava obter a “cooperação” dos detidos, no dia 4 de agosto circularam
informações, em Washington, da queda de um comando “subversivo” vindo da Argentina, o
que ameaçava diretamente a segurança interna do país. A fonte dessa informação era a
Embaixada dos EUA em Montevidéu, que estava a par da operação em andamento, mas que
se havia antecipado para evitar a votação do corte de ajuda militar à ditadura.
224
Era uma
tentativa de barrar a apresentação de informações sobre o desrespeito aos direitos humanos
no Uruguai. Tal atitude tomou o comando militar uruguaio de surpresa. O mesmo se queixou
ao embaixador: como era possível que o governo dos EUA divulgasse a prisão dos
“subversivos” se, oficialmente, as mesmas não tinham ocorrido?
225
Quanto aos seqüestrados, finalmente houve um acerto em outubro: “[...] todos
aceptaron cooperar en el montaje de un supuesto operativo de invasión a cambio de que
fuesen reconocidos públicamente como prisioneros, lo que, en esas circunstancias, parecía la
única forma de conservar la vida.”
226
Os seqüestrados com maior militância política foram
“detidos” no chalé alugado anteriormente por um oficial do comando que agia em Buenos
Aires. Para impressionar ainda mais os vizinhos, a guarda que vigiava o traslado do grupo
também foi presa ostensivamente, para dar a impressão de tratar-se de um pequeno exército
“subversivo”. A ação que culminou com a ocupação da casa foi frenética e assistida por
223
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron. Testimonios de Víctimas:
Enrique Rodríguez Larreta. Londres, 18/03/77.
224
HACKL, Erich. Sara y Simón. Una historia sin fin. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 1998. p. 63.
225
AMORÍN, op. cit., p. 58.
226
Idem, p. 66.
697
inúmeras pessoas que, caso fosse necessário, poderiam testemunhar e legitimar a versão
oficial. Sara Méndez, uma das “invasoras” obrigada a participar da encenação, lembra que,
após a entrada do comando de assalto dentro da casa, um capitão fechou a porta com força e
se jogou em um sofá, dando risada e exclamando: “Esto es una payasada, pero es
divertidísimo.” E, sorrindo para seus companheiros, acrescentou: “Bueno, ahora a robar lo
que sea posible, como siempre. Si no, ¿quién va a creer que esto fue un allanamiento en
serio?”
227
A encenação continuou naquela noite com a queda de outros seqüestrados que foram
localizados em hotéis cêntricos portando documentação falsa. Entretanto, relata Larreta:
[...] esas personas nunca salieron de la habitación-celda donde estábamos.
Quienes se registraron en los hoteles con los supuestos documentos falsos
fueron policías militares femeninas y soldados de la llamada “División 300”.
Los documentos falsos fueron elaborados por los proprios oficiales de esa
“División”, en la casa que estábamos.
228
Rodríguez Larreta acrescentou que, após o fato encenado, começaram as atividades
de legalização destes até então detidos-desaparecidos, como parte do acordo. A passagem
para a Justiça Militar significava, para quase todos eles, uma dura e irremediável condenação,
todavia, era uma situação preferida, pois colocava fim a angústia de ser um seqüestrado e
detido-desaparecido. Quanto a ele, foi libertado pouco depois. Nada havia contra ele, como
relatara ao próprio major Gavazzo quando este lhe tinha proposto participar da montagem da
farsa da invasão:
[...] a esta altura todos saben que no pertenezco a ninguna organización
política, ya que nadie me ha acusado de ello ni existe ninguna prueba que me
relacione, directa o indirectamente, con tales organizaciones. Sin embargo,
desde hace dos meses se me ha destratado, se me ha torturado, se me ha
mantenido esposado y vendado, comiendo mal, durmiendo en el suelo con
una frazada mugrienta, sin noticias de mi familia, que debe darme por
muerto. Y todo sin que ni siquiera se me acuse da haber cometido algún
delito, por la arbitrariedad total con que actúan mis captores. Carezco de
antecedentes penales de clase alguna y si se me ha secuestrado y enviado a la
fuerza al Uruguay es por el solo hecho de haberme encontrado en Buenos
Aires buscando a mi hijo desaparecido, con todos mis documentos en regla y
dando los pasos que la Constitución y la ley me permitían.
229
Seu nome não apareceu na encenação da “invasão” pois, sendo uma figura
conhecida, seria evidente a farsa da montagem. Por outro lado, todos os seqüestrados eram
227
Idem, p. 73.
228
SIJAU. Situación de las personas desaparecidas y los hechos que la motivaron. Testimonios de Víctimas:
Enrique Rodríguez Larreta. Londres, 18/03/77.
229
Idem.
698
testemunhas da sua detenção ilegal. No seu depoimento, lembrou ainda que as Forças
Amadas informaram à opinião pública que haviam prendido 62 subversivos; porém, somente
apresentaram-se os nomes do grupo trazido de Buenos Aires. Larreta ignorava, no momento
das primeiras denúncias, que outra onda de seqüestro de uruguaios tinha acontecido na
Argentina e que quase todos acabariam desaparecidos.
230
Vários anos passaram para que se armasse todo este quebra-cabeça; atualmente, há
uma forte suspeita que parte desse grupo devia ter acompanhado a remessa da “Operação
Invasão” para completar a lista dos 62 envolvidos na “conspiração subversiva”, segundo
constou na versão que a ditadura espalhou junto à opinião pública. Mas, se a viagem ocorreu,
o grupo não chegou. E o que até então era considerado fato consumado - ou seja, que aquelas
pessoas haviam sido desaparecidas na Argentina - passou a ser questionado, fortalecendo
outra hipótese, a de que os militares argentinos entregaram-nos à repressão uruguaia e esta,
por conseguinte, teria sido responsável pelo seu desaparecimento. Tal hipótese foi bastante
repercutida pelo jornal La República, que publicou, em 02/09/02,
231
uma reportagem onde se
descreve o desembarque, em solo uruguaio, de quatorze a dezesseis civis encapuzados, de um
avião do Transporte Aéreo Militar Uruguayo (TAMU), em outubro de 1976, procedente do
oeste de acordo com uma testemunha presencial. Segundo o jornal, poderiam ser os últimos
uruguaios que ainda estavam detidos em Automotores Orletti quando se decidiu pelo seu
fechamento,
232
como indicavam outras duas fontes, Luis Bertazzo, sobrevivente argentino de
Orletti, e um repressor, também argentino, que fez questão de acentuar o fato de que os
últimos orientais detidos naquele centro clandestino de detenção foram entregues aos
militares uruguaios e trasladados a Montevidéu:
De Uruguay a los argentinos nos han cobrado todo y mucho ha salido a la
luz. Pero que no nos adjudiquen esas desapariciones. A los que no murieron
en Orletti nosotros los devolvimos. No sabíamos que los del primer viaje
estaban vivos, así que cuando cerraba Orletti se planificó otro viaje grande
en el que se incluyó a todos los que quedaban.
233
230
O próprio Rodríguez Larreta alude à possibilidade de conexão entre esses desaparecidos e a “Operação
Invasão”. Depoimento de Enrique Rodríguez Larreta no Juicio a las Juntas, organizado pela CONADEP. Buenos
Aires, 17/06/85. In: D’ANDREA MOHR, José L. Memoria Debida. Buenos Aires: Ed. Colihue, 1999. CD-
ROM.
231
“Testigo afirma que en ocutbre de 1976 vio llegar el vuelo N° 511 de TAMU con civiles encapuchados”. La
República, 02/09/02, p. 2.
232
O fechamento foi decidido por um fato imprevisto, a fuga de um casal argentino detido nesse local - José
Ramón Morales e a esposa Graciela - após terem burlado à guarda. O casal conseguiu fugir para o México, onde
denunciaram tudo o que sabiam e presenciaram no que ficou conhecido como a sede da Operação Condor na
Argentina.
233
El “informante”que permitió encontrar a Simón Riquelo confirma el último vuelo de los uruguayos de Orletti.
Brecha, 09/06/02.
699
Provavelmente, esse grupo seria parte do que deveria completar a lista da “Operação
Invasão”. Se foram mortos e desaparecidos na Argentina durante o vôo (reproduzindo os
“vôos da morte” argentinos) ou dentro do próprio Uruguai, isso ainda é matéria de discussão;
o que cada vez se tornam mais sólidas são as evidências da responsabilidade de militares
uruguaios na tomada da decisão final.
De qualquer forma, a encenação da nova ameaça subversiva fracassou; não foi
suficiente para impedir o corte de ajuda militar dos EUA, fato que ocorreu após a vitória de
James Carter, em novembro de 1976. O embaixador Ernest Siracusa, acusado de estar muito
envolvido com a ditadura uruguaia, foi substituído em abril de 1977. Ao não atingir seu
objetivo principal, a “Operação Invasão” se transformou em um grande fracasso. Pior, não
era possível voltar atrás; o nome dos “invasores” já havia sido divulgado, ou seja, tornaram-
se potenciais testemunhas sobre as operações desenvolvidas na Argentina (seqüestros,
desaparecimentos, repatriação clandestina e a fraude da invasão).
234
Ainda dentro da vinculação com a discussão do elemento diversionista, cabe
mencionar que, recentemente, houve acirrado debate em volta da informação apresentada pela
Comisión para la Paz de que os cidadãos desaparecidos no Uruguai haviam sido todos
enterrados num quartel próximo a Montevidéu (na região de Toledo), desenterrados em 1984
por um oficial do Exército já falecido e cremados em fornos que o mesmo teria
disponibilizado para tal fim, espalhando as cinzas no Río de la Plata. O semanário Brecha foi
muito eloqüente na sua avaliação: “Esta es la inaudita versión que sustenta el informe de la
Comisión para la Paz en la que el Poder Ejecutivo pretende fundamentar una solución de
punto final.” A autora do texto, a jornalista Ivonne Trías, familiar de uma desaparecida,
concluiu que se trata de uma versão improvável e sórdida onde “los desaparecidos fueron
vueltos a desaparecer.
235
Uma última indagação é sobre qual foi o provável destino dos detidos-desaparecidos
no Uruguai. Uma primeira pista surgiu em junho de 1985, quando o ex-soldado Ariel López
Silva, do Batalhão 13° de Infantaria, apresentou denúncia junto ao Juzgado de 3er. Turno,
onde afirmava que:
A mediados de 1976 y a mediados de 1977 el Tte. 1° García, alias “Gorrión”
me ordenó cavar en la tierra para sepultar cuerpos humanos. Luego de
arrojar el cuerpo que estaba tapado con una frazada o lienzo, le echaban cal
viva para disolverlo y después lo tapaban con tierra. Posteriormente me
234
AMORÍN, op. cit., p. 78.
235
Matéria de Ivonne Trias: “El informe de la Comisión para la Paz: Todo desaparecido se desvanece en el aire”.
Brecha, 11/02/03, p. 2.
700
ordenaban abrir las tumbas para verificar si la cal había producido su
efecto.
236
Em fevereiro de 1996, a revista Posdata informou, a partir de uma importante fonte
militar (não revelada), que mais ou menos 32 detidos-desaparecidos haviam sido enterrados
em prédios de quartéis das Forças Armadas. A matéria não precisava datas, mas acrescentava
que todos teriam morrido durante os “interrogatórios”. Para o ocultamento dos cadáveres,
teriam sido cavados poços verticais onde os mesmos foram colocados verticalmente. Em
cima, plantavam, freqüentemente, uma árvore, e por isso tal ação recebeu o nome de
Operación Zanahoria Muitos desses corpos teriam sido, posteriormente, removidos desses
lugares.
237
Anos depois, em 2004, o jornal La República
238
publicava matéria que indicava que,
em fins de 1984, nas vésperas da volta da democracia, a ditadura procurou limpar vestígios da
existência de enterros clandestinos em unidades militares que, por algum motivo, teriam
ficado expostas - caso do Batalhão 13° de Infantaria. Assim, procedeu-se à remoção de
cadáveres localizados no interior dessas próprias unidades militares. Tudo indica que se
tratava da mesma Operación Zanahoria, só que com a realocação dos restos mortais em
unidades militares menos visadas como, por exemplo, o Batalhão 14°, em Toledo.
239
Documentos comprovam que, em 1984, o Ministério de Trabalho e Obras Públicas realizou
obras nas unidades citadas (há registros de obras em outras unidades militares, o que levanta
suspeita de ser, então, uma metodologia de encobrimento).
240
A Comisión para la Paz
constatou que pelo menos oito presos políticos morreram no Batalhão 13° de Infantaria, além
da informação de que outros dois desaparecidos teriam sido, de fato, enterrados ali.
A Comisión para la Paz, no seu relatório final, apresentou também uma informação
que tem sido parcialmente questionada pela sociedade. O documento diz:
Los restos de todas las personas desaparecidas que fallecieron a partir de
1973 - 25 en total - habrían sido exhumados hacia fines de 1984, incinerados
o cremados mediante la utilización de calderas u hornos de fabricación
informal alimentados con formas adicionales de combustión y arrojados
finalmente al Río de la Plata, en una zona cercana al barrio Paso de la Arena
236
SERPAJ. La Desaparición Forzada en el Uruguay. Op. cit., p. 21.
237
“Desaparecidos enterrados en los cuarteles. Pista clave para una investigación pendiente”. Brecha, 24/02/96.
238
“PIT-CNT presentará a la Justicia penal testimonio sobre hallazgo de restos de ropa en el Batallón 13”. La
República, 23/08/04.
239
A fonte dessas informações era constituída de depoimentos de alguns oficiais ao senador Rafael Michelini,
em 1997. Os mesmos estavam descontentes com a herança da “guerra suja” que deviam carregar. In:
MARIANO, Nilson C. Operación Cóndor. Terrorismo de Estado en el Cono Sur. Buenos Aires: Lohlé-Lumen,
1998. p. 62.
240
“Primeros indicios de la Operación Zanahoria”. La República, 05/09/04.
701
que ha sido ubicada y señalada con precisión.
241
A Comissão também informou ter recebido outra versão onde se assinala que todos
os mortos foram enterrados no mesmo local, o quartel do Batalhão 14°, em Toledo.
Posteriormente, quando do fim da ditadura, teriam sido desenterrados por ordem de um oficial
já falecido. O mesmo oficial teria conseguido os fornos crematórios para fazer desaparecer as
provas ósseas. As cinzas resultantes teriam sido jogadas nas águas do Río de la Plata. Se tal
fato fosse verdadeiro, confirmaria as denúncias das organizações de direitos humanos, que,
durante anos, acusaram de cumplicidade os governos democráticos pós-ditaduras por
impedirem a investigação de denúncias conhecidas, desde meados da década de 80, sobre a
existência de corpos enterrados em alguns quartéis.
242
Em relação a essa questão, a Asociación de Madres y Familiares de Uruguayos
Detenidos-Desaparecidos manifestou que, se confirmada essa versão (enterros, desenterros e
cremações),
[...] se habría necesitado no únicamente la aprobación de los autores del
golpe de Estado de 1973, bajo cuya autoridad fueron detenidos ilegalmente,
sino de integrantes de las juntas de comandantes en jefe muy posteriores a la
fecha de su desaparición. Nos preguntamos: ¿pudieron los autores
intelectuales y materiales de esa atroz acción con eliminación de pruebas no
contar con aval político alguno?
¿Cuándo fue decidida y cuándo implementada? Ante esta versión
planteamos la exigencia de que para confirmarla o desmentirla se actúe
judicialmente con todas las consecuencias que esta acción conlleve.
243
Somente no ano de 2005, com o governo de Tabaré Vázquez, presidente eleito pela
Frente Ampla, diante de fortes indícios de que aquelas denúncias pudessem ser verdadeiras,
foram iniciados trabalhos para esclarecer tais fatos e dar uma resposta definitiva aos
familiares dos desaparecidos.
241
Informe final de la Comisión para la Paz. Montevideo, 10 de abril de 2003. (B.3 - El destino de los restos -
52/e).
242
Brecha, 11/03/03, p. 2.
243
Idem, p. 3.
702
CAPÍTULO 8
CONEXÕES EXTERNAS:
A COORDENAÇÃO REPRESSIVA
[...] esta guerra no es contra los niños.
Mayor Gavazzo
1
Abuelita ¿todavía seguís buscando a mis papitos verdaderos? [...]
Abuela, yo quiero volver a mis papis [...].
Pero abuelita, ¿qué vamos a hacer con estos papás de Chile que tenemos ahora
y a los que también queremos mucho?
Anatole, 7 anos
2
A Operação Condor não foi o início da colaboração efetiva entre os sistemas
repressivos do Cone Sul. Em realidade, foi um mecanismo de continuidade, embora num
âmbito mais complexo, sofisticado e, certamente, mais letal. Na prática, foi montada sobre
uma longa tradição de cooperação subterrânea entre polícias e militares da região. De fato, na
experiência das ditaduras de Segurança Nacional, a aplicação da metodologia repressiva ilegal
extrapolou fronteiras nacionais; o monitoramento, a espionagem, o seguimento e a
perseguição implacável extra-fronteira contou com o auxílio dos organismos de segurança dos
países limítrofes. A colaboração e a reciprocidade de “favores” foi uma característica comum.
A tradição histórica do direito de asilo e do reconhecimento do estatuto de refugiado
político foram ignorados; inclusive, foram negadas as situações reconhecidas anteriormente
pelos governos democráticos derrubados pelos diversos golpes de Estado. Enquanto tornavam
ilegal e dramática a situação dos exilados, mesmo nos casos de pessoas que se encontravam
sob a proteção das Nações Unidas através do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), os “novos donos do poder” fechavam os olhos diante da presença
ilegal de agentes repressores estrangeiros agindo impunemente em verdadeiras “caçadas”
contra tais exilados.
Um dado a ser considerado é que, desde a instauração da ditadura no Brasil, havia
1
INFORME DE MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS DETENIDOS DESAPARECIDOS. A todos
ellos. Montevideo, 2004. p. 203.
2
SILVA, Alberto. Perdidos en el bosque. Montevideo: Familiares de Detenidos-Desaparecidos, 1989. p. 151.
703
troca de informação sobre os exilados brasileiros entre o governo desse país e os dos países
vizinhos, mesmo onde estava vigente o Estado de direito, como no caso uruguaio. Na fase do
governo Pacheco Areco o intercâmbio se intensificou e mudou de perfil; a partir desse
momento também começa a haver significativa demanda das autoridades uruguaias,
principalmente a respeito de supostos integrantes do Movimiento de Liberación Nacional-
Tupamaro (MLN-T) e de outras organizações consideradas ilegais que poderiam estar
circulando e agindo a partir do território brasileiro.
A documentação sobre a Secretaria de Segurança Pública existente no Acervo da
Luta Contra a Ditadura confirma a existência de importante fluxo de informação entre tais
países nos anos 60 e 70. O corpo documental, apesar das lacunas temporais/espaciais e da
fragmentação das séries existentes, expressa, quanto à informação solicitada, padrões de
colheita, codificação, organização e divulgação do material, áreas de atuação e de interesse da
comunidade de informação brasileira e traços da rede internacional. Entre os documentos, há
relatórios sobre entrada ou possibilidades de presença de estrangeiros procurados pelos
serviços de inteligência dos seus países. Há também uma gama de pedidos de informação,
busca e localização, informações sobre expulsão de estrangeiros, divulgação de brasileiros
exilados e informações sobre suas atividades no exterior, etc. Portanto, antes da existência
formal da Operação Condor, já funcionava, entre os serviços de informação, uma rede de
contatos e controle no âmbito estatal, contando com a participação de países que ainda viviam
sob regimes democráticos, embora em franco processo de deterioração, caso do Uruguai até
1973.
3
Assim como havia essa cooperação entre governos de regimes com afinidade
ideológica, também se utilizavam os serviços de inteligência contra aqueles considerados
potenciais focos de subversão continental. Veja-se, por exemplo, este documento do
Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), datado em 1972:
DOPS/RS - Divisão de Busca e Coleta de Informações
18/04/72
Assunto: LAN-CHILE
CONFIDENCIAL
ORDEM DE BUSCA Nº 370/72 - DOPS/RS
1. DADOS CONHECIDOS
1.1 - A Companhia Linhas Aéreas Chilenas - LAN-CHILE está autorizada a
3
Ver, especialmente, no Acervo da Luta Contra a Ditadura, o Fundo Documental: Secretaria de Segurança
Pública – Sub-fundo: Polícia Civil / Departamento de Polícia do Interior / Delegacias Regionais / SOPS. Série nº
1 Coleta e Processamento de Informações, Sub-séries nº 1 e nº 2.
704
operar no território brasileiro.
1.2 - A Direção Geral da Companhia já tomou providências para instalar
Agências em algumas capitais brasileiras.
1.3 - Consta que as agências serão aproveitadas como cobertura para
atividades de informações do governo chileno.
2. DADOS SOLICITADOS
2.1 - Endereço das Agências instaladas na área, se houver.
2.2 - Nome e qualificação dos funcionários.
2.3 - Nome e qualificação dos funcionários; e
2.4 - Outros dados julgados úteis.
4
O mesmo documento confirma a postura de vigilância e espionagem sobre as ações
diretas ou indiretas do governo Allende no Brasil, partindo da premissa de que o mesmo faz
parte da estratégia de expansão do Comunismo Internacional. São indícios de alinhamento dos
governos que se consideravam agredidos pelos focos subversivos de contestação interna
(guerrilha, partidos políticos de esquerda, organizações sindicais e estudantis, etc.) e que
colaboravam entre si contra esses inimigos internos. Durante a fase de amadurecimento dos
golpes de Estado que instalaram as ditaduras de SN, já era perceptível a existência de uma
diretriz comum entre os governos da região de clara orientação anticomunista: o “inimigo
interno” de cada um deles tornava-se alvo dos demais.
5
8.1 – A REPRESSÃO EXTRATERRITORIAL
Nos anos 60, o intercâmbio de informação e os procedimentos de vigilância dos
potenciais “inimigos internos” e das comunidades exiladas espalhadas pelo Cone Sul se
intensificaram. A pressão das ditaduras brasileira e paraguaia levou o governo uruguaio a
limitar a mobilidade dos exilados, fato sintetizado no confinamento de Leonel Brizola, em
1965, na cidade balneária de Atlântida, onde, em tese, lhe eram reduzidas as possibilidades de
contatos com os denominados “pombos correios”
6
e tornava-se mais fácil vigiá-lo.
Com o advento dos golpes de Estado no Uruguai e no Chile, em 1973, houve espaço
para a realização de operações repressivas com forças de segurança dos governos dos países
vizinhos com os quais existia afinidade política. Direta ou indiretamente, unidades repressivas
4
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Material 8ª e 9ª DPM / ORIGEM DOPS/RS - Divisão de Busca e Coleta
de Informações / Data: 18/04/72.
5
SERPAJ. Uruguay Nunca Más. Informe Sobre la Violación a los Derechos Humanos (1972-1985).
Montevideo: SERPAJ, 1989, p. 30.
6
Nome dado às pessoas que levavam informação do Brasil a Brizola e que retornavam com orientações para
705
de um país passaram a agir em território vizinho. À medida que cresceu o mosaico de
ditaduras, foi se definindo um enorme espaço sem fronteiras e sem proteção legal para aquelas
pessoas que, pensando estar protegidas da perseguição repressiva sofrida nos países de
origem, continuaram sofrendo verdadeiras “caçadas humanas”. Ações ilegais foram
produzidas pelo inter-relacionamento de grupos anti-subversivos, os do país onde ocorriam
tais arbítrios e os do país de origem dos exilados visados. A clandestinidade dessas ações foi
condição para sua eficiência, deflagrando o terror entre os coletivos atingidos e tornando
muito difícil toda e qualquer denúncia, pois, a priori, a denúncia de comandos estrangeiros
agindo com toda liberdade no interior de um país era peremptoriamente negada pelos
governos, os quais enfatizavam que sob nenhuma hipótese permitiriam agressões à soberania
nacional.
O uso do seqüestro, da detenção clandestina e da tortura das vítimas nos
procedimentos dos comandos repressivos reproduziu o que já ocorria no interior das ditaduras
da região. Entretanto, o assassinato e a desaparição forçada dos exilados políticos adquiriram
uma proporção muito maior que a sofrida nos países de origem (com exceção da Argentina).
Efetivamente, esse foi o destino da maioria dos estrangeiros vítimas da repressão
internacionalizada, particularmente dos uruguaios. Isso se explica pelo próprio caráter ilegal
da ação dos comandos de extermínio agindo em território estrangeiro, fato difícil de assumir,
diante do cenário e das leis internacionais, até para as ditaduras de SN.
A articulação repressiva, que já funcionava entre alguns países, foi formalizada em
novembro de 1975, durante a XI Reunião de Chefes de Estado Maior dos exércitos latino-
americanos (com exceção de Cuba), em Montevidéu. (Na mesma época, já se estava
desenhando a Operação Condor). A posterior incorporação da Argentina ao sistema
repressivo multinacional fechou o cerco. Não só os perseguidos políticos ficaram mais ilhados
no interior dos seus respectivos países com o fechamento de fronteiras e de rotas de fuga
diante da impossibilidade concreta de acessar “terras livres” contíguas, como também o cerco
crescente comprimiu o exílio latino-americano na Argentina, produzindo efeitos devastadores
a partir de março de 1976. Neste país, a coordenação repressiva viabilizou condições para a
expulsão de enormes levas de opositores e para a eliminação física de todo aquele que se
fizesse necessário.
7
No caso uruguaio, desde que se consolidou o golpe de estado promovido por
Bordaberry, em 1973, intensificaram-se a realização de operações repressivas nos países
seus simpatizantes.
7
CELS. Uruguay-Argentina: Coordinación represiva. Buenos Aires, s. d., p. 19.
706
vizinhos onde existiam condições de acobertamento. Policiais e militares agiram, direta ou
indiretamente, em território argentino, chileno, brasileiro e paraguaio; é importante registrar
que o fator reciprocidade foi respeitado sempre que solicitado, fato constatado com a detenção
e devolução de cidadãos argentinos que estavam no Uruguai. Aliás, o Centro de Estudios
Legales (CELS), nas análises sobre a perseguição de estrangeiros por parte da ditadura
argentina, lembra que os uruguaios que lá desapareceram possuíam estatuto de refugiados
(sob a proteção do ACNUR) e alguns estavam legalmente radicados. A decisão de realizar
ações conjuntas com a ditadura uruguaia, eliminando opositores que haviam buscado refúgio
(direito constitucionalmente garantido até então) e que não intervinham na vida política
argentina, desmente os argumentos sobre a necessidade e a inevitabilidade da “guerra suja” ou
da “salvação nacional”. A justificativa de que a repressão foi o efeito de “conspiradores”,
“combates” ou “movimentos subversivos” cai por terra diante do fato concreto de que a maior
parte das vítimas uruguaias, assim como de outros latino-americanos que sofreram o mesmo
destino, viviam legalmente em território argentino, o que certamente facilitou a repressão dos
comandos locais e estrangeiros sobre eles.
8
Com a mesma impunidade que as Forças Armadas uruguaias agiam na Argentina,
forças argentinas faziam o mesmo no Uruguai. Houve analogia na metodologia de ação das
unidades de segurança dos dois países platinos. Essa unidade de ação também se verificou na
colaboração com agentes repressivos do Brasil, do Chile e do Paraguai. Por exemplo, diversos
exilados chilenos seqüestrados na Argentina foram vistos, posteriormente, em campos de
detenção clandestina no Chile. Igualmente, a ditadura Stroessner seqüestrou e trasladou para a
Argentina diversos fugitivos daquele país. Dois deles eram uruguaios que, embora
aguardando em Buenos Aires instruções do governo sueco - que já havia decidido pela sua
acolhida como refugiados -, haviam ido para o Paraguai, provavelmente tentando obter
documentos falsos para a retirada de outros companheiros em situação crítica na Argentina.
Ambos, em maio de 1977, foram devolvidos clandestinamente através de um avião militar
argentino. Considera-se que um deles, Gustavo Inzaurralde, posteriormente, foi entregue aos
militares uruguaios.
Diversas fontes corroboram a existência dessa colaboração, tanto no que se refere à
transmissão de informação quanto à detenção de pessoas requeridas. O ex-marinheiro
uruguaio Daniel Rey Piuma confirmou que os serviços de inteligência do Uruguai tinham
listas de cidadãos brasileiros, argentinos e paraguaios procurados nos seus respectivos países,
8
Idem, p. 3.
707
assim como estes recebiam as listas de requeridos no Uruguai.
9
Da mesma forma, o general
Otto Paladino, Secretário de Informações do Estado argentino de destacada atuação no centro
clandestino Automotores Orletti, informou que oficiais uruguaios, bolivianos, brasileiros,
paraguaios e peruanos procuravam informações sobre cidadãos perseguidos nos seus países.
10
Refletindo indignação diante do seqüestro de quatro cidadãos uruguaios em Porto
Alegre, em 1978, o semanário brasileiro Movimento manifestava que:
Uma verdadeira rede de vergonha e crimes, hoje flagrada em plena ação no
Brasil, que se auto-denomina de “Internacional de Polícias” e não respeita
fronteiras, não reconhece os mínimos direitos humanos, se tornou no mais
vivo elo entre as nações, principalmente nos últimos 6 anos.
11
Tais fatos são expressão dessa internacionalização do TDE que se resguardou sob a
afinidade de interesses econômicos e na identidade de modelos políticos. A concretização da
coordenação repressiva foi possível a partir do momento em que as Forças Armadas da região
extrapolaram a função de proteção das fronteiras territoriais e passaram a incorporar a idéia de
fronteiras ideológicas ventiladas através dos diversos mecanismos de “pentagonização” dos
exércitos latino-americanos. Foi a assimilação dessa idéia que promoveu a percepção de um
território único visto como campo de batalha produzido pela agressão do comunismo
internacional.
12
Um dos primeiros esforços em sistematizar o significado do que foi essa
coordenação repressiva está contido no Informe Nunca Mais da Comissão Nacional Sobre o
Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) na Argentina, publicado em 1984. Ali se diz que:
Juntamente com a atividade repressiva ilegal realizada dentro dos limites do
território-nacional, deve-se destacar que as atividades de perseguição não
conheceram limitação de fronteiras geográficas, contando para isso com a
colaboração dos organismos de Segurança de países limítrofes que, com
9
Rey Piuma completa a informação: “Havia listas de aproximadamente 2.600 requeridos dos ‘oficiais’
uruguaios, e uma lista ‘confidencial’ de requeridos cujo pedido de captura não foi dado a conhecer à opinião
pública (como têm o costume de fazer as Forças Armadas uruguaias). [...] Quando o fato tem uma cruz vermelha
é porque a pessoa está morta. [...] Quando tem um círculo azul é porque já está detida”. BAUMGARTNER, José
Luis; DURAN MATOS, Jorge; MAZZEO, Mario. Os desaparecidos. A história da repressão no Uruguai. Porto
Alegre: Tchê, 1987, p. 211.
10
Idem, p. 337.
11
“Brasil também ajudou a prender e bater lá fora”. Movimento, 5 a 11 fevereiro de 1979.
12
Os militares argentinos, ao avaliar a eficiência da aplicação da coordenação repressiva no interior do país,
aprofundaram os marcos da DSN e desenvolveram a Doutrina da Segurança Continental. Esta extrapolou os
marcos da assistência recíproca defendida pelo TIAR diante das agressões externas à região. Efetivamente,
acrescentou àquela incumbência o combate às resistências internas contra os regimes repressivos da América
Latina. A aplicação concreta dessa doutrina ocorreu na América Central na primeira metade dos anos 80. A
ditadura argentina, em acordo com a política externa da administração Reagan (fora o período do conflito
envolvendo as ilhas Malvinas), forneceu intensa colaboração aos governos de El Salvador, Guatemala e
Honduras, assim como à guerrilha dos Contra na Nicarágua sandinista. DUHALDE, Eduardo Luís. El Estado
terrorista argentino. Quince años después, una mirada crítica. Buenos Aires: Eudeba, 1999. p. 285.
708
características de reciprocidade, efetuavam prisão de pessoas sem respeitar
qualquer ordem legal, numa violação patente de tratados e convenções
internacionais assinados por nosso país sobre o direito de asilo e refúgio
político. Inclusive agentes repressores estrangeiros dentro de nosso território,
prendendo cidadãos uruguaios, paraguaios, bolivianos e de outras
nacionalidades.
13
A coordenação repressiva se inseriu no interior de um plano aprovado por cúpulas
militares; em alguns casos, mesmo antes da tomada do poder político. A principal
característica do sistema adotado foi a clandestinidade das ações. O seqüestro, a detenção de
pessoas, seu desaparecimento e a rejeição de qualquer responsabilidade dos organismos
envolvidos constituem o instrumento chave do método concebido para gerar o pânico entre as
comunidades exiladas. No fundo, tratou-se da exportação dos métodos repressivos que o
TDE aplicava internamente, como o uso da tortura, o ocultamento da informação, a criação
de um clima de medo, a marginalização ou submissão do Poder Judiciário, a incerteza das
famílias e a indução à confusão deliberada da opinião pública mediante mecanismos
diversionistas. A extrapolação dessas ações além-fronteiras gerou a necessidade de
estabelecer relações mais complexas, coordenadas com as autoridades e os grupos de tarefas.
Na prática, a coordenação repressiva foi muito mais do que obter conivência ou
liberdade de ação (“carta branca”) do Poder Executivo local. No caso da ação da repressão
uruguaia na Argentina, foram estabelecidas diretrizes comuns que pautaram a produção e o
uso comum de informação (o que é muito mais complexo do que o simples intercâmbio), a
formação de unidades conjuntas, a definição de elementos de ligação e a utilização de centros
clandestinos de detenção específicos onde desapareceram inúmeras vítimas (chupaderos).
Antes de aprofundarmos o caso concreto dos uruguaios perseguidos no exterior
durante o período da ditadura, é necessário apresentar o quadro de colaboração do governo
uruguaio com as ditaduras da região, durante a década de 60, portanto, ainda sob a vigência
de um regime democrático.
8.2 – CONEXÕES ANTERIORES ÀS DITADURAS DE SEGURANÇA
NACIONAL
O estabelecimento de centenas de exilados brasileiros no Uruguai, após o golpe que
derrubou o presidente do Brasil, João Goulart, em 1964, iniciou uma política de aproximação
13
CONADEP. Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina.
709
da repressão brasileira com alguns setores das forças de segurança uruguaia. A presença de
destacadas figuras da política brasileira como Leonel Brizola ou o próprio presidente deposto,
tornou a cidade de Montevidéu um verdadeiro santuário da resistência à ditadura. Encontros
públicos, manifestações de apoio, contatos com os setores democráticos uruguaios e a
intensificação das viagens dos “pombos-correio” de Brizola atraíram a atenção do serviço de
inteligência e de espionagem brasileiras. Através de esquemas de controle e monitoramento
dos exilados, inúmeros informes foram elaborados pela comunidade de informações. Assim,
levantaram-se informações sobre cidadãos brasileiros que contatavam os exilados, a detecção
de rotas utilizadas por esses contatos, a infra-estrutura de apoio na zona de fronteira, a
provável volta de “subversivos” ao Brasil, etc., como se pode observar nos documentos a
seguir:
SSP/RS - SCI
06/04/67
Assunto: Atividades Subversivas no Brasil - GUALTER de Castro Mello
ORDEM DE BUSCA Nº 26/67 - SCI/RS
SECRETO
1. DADOS CONHECIDOS
a. O asilado brasileiro no Uruguai, GUALTER DE CASTRO MELLO,
reingressou em território Nacional à 1º Mar 67.
b. O marginado viajou dentro de um esquema terrorista comandado por
LEONEL BRIZOLA.
2. PROVIDÊNCIAS SOLICITADAS:
a. Verificar a presença de GUALTER no setor das Regionais. [...]
14
......................................................................................................................
SSP/RS - SCI
24/04/67
Assunto: Asilado Brasileiro - PAULO MELO BASTOS
ORDEM DE BUSCA Nº 35/67 - SCI/RS
SECRETO
1. INFORME
- Há vários dias que o asilado PAULO MELO BASTOS não é visto
circulando na cidade de MONTEVIDÉU (ROU).
- Acredita-se que MELO BASTOS tenha viajado clandestinamente para o
Brasil ou para algum país da órbita socialista.
2. PROVIDÊNCIAS SOLICITADAS:
Observar e informar qualquer movimento de asilados no interior do RGS,
assim como qualquer assunto relativo aos mesmos, que por ventura seja
comentado nas áreas regionais.
15
......................................................................................................................
Porto Alegre: L&PM, s. d., p. 190.
14
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Lagoa Vermelha/SOPS /
SOPS/LV - 1.2.891.10.4
15
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Rio Grande/SOPS / SOPS/RG
- 1.2.894.10.4
710
Secretaria de Segurança Pública do RGS - Serviço Centralizado de
Informações
26/10/67
Assunto: Asilados Brasileiros No Uruguai - ARTUR PAULO DE SOUZA
GIACOMINI
ORDEM DE BUSCA Nº 307/67 - SCI/RS
1. DADOS CONHECIDOS
“a) Encontra-se no Estado do RIO GRANDE DO SUL o elemento ARTUR
PAULO DE SOUZA GIACOMINI, vinculado ao grupo de asilados que, no
URUGUAI, segue a orientação do asilado LEONEL BRIZOLA.
b) O marginado, que pode estar em PORTO ALEGRE, abandonou o
URUGUAI para cumprir missão que lhe foi confiada por BRIZOLA”.
2. PROVIDÊNCIAS SOLICITADAS:
- Detenção de ARTUR, informando a este serviço.
16
Nos três documentos acima, a informação de que as pessoas citadas teriam entrado
no Brasil não parte de nenhum controle policial fronteiriço, até porque se tratam de ações
clandestinas ou encobertas com documentação falsa. Mas é informação recebida do governo
do Uruguai, produto da atividade de monitoramento. Na prática, tal monitoramento podia
resultar da ação de vigilância de unidades de inteligência brasileiras que agiam com a
conivência das autoridades policiais do país vizinho ou, então, tratava-se de informação
fornecida pelo próprio Uruguai. De uma ou de outra forma, a fluidez de informação confirma
a existência concreta de conexão.
Para citar um exemplo, o coronel Pedro Alvarez procurou proteção em Montevidéu
logo após o golpe de Estado que derrubou João Goulart. Ele lembra que, junto com outros
exilados, eram ostensivamente vigiados pela polícia uruguaia. Segundo ele, o chefe da Polícia
de Montevidéu, Alejandro Otero (denunciado como agente da CIA por Philip Agee),
obrigava-os a apresentar-se às autoridades quase que diariamente (em vez de a cada quinze
dias, como era de praxe nessas situações). As informações colhidas eram retransmitidas a
oficiais brasileiros que periodicamente se reuniam com Otero.
17
O colaboracionismo com a ditadura brasileira também registra a “entrega” de
exilados no Uruguai, durante o governo de Pacheco Areco, como nos casos do jornalista Jorge
de Miranda Jordão
18
e do professor Wilson Barboza do Nascimento.
19
16
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Lagoa Vermelha/SOPS /
SOPS/LV - 1.2.922.10.4
17
Depoimento do coronel Pedro Alvarez, 15/08/03. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura.
18
Segundo Flávio Tavares, Nascimento foi seqüestrado em Montevidéu pelo mesmo delegado Otero que
constrangia o coronel Alvarez; levado à fronteira foi oficialmente “solto” na ponte divisória sobre o rio Jaguarão
e, ao chegar ao lado brasileiro, foi imediatamente preso. TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São
Paulo: Globo, 1999. p. 112.
19
Ver nota 25 deste mesmo capítulo.
711
Também a diplomacia incidiu nesse processo de colaboração repressiva. Ferreira
Aldunate lembrava que, desde o golpe de 1964, o Brasil pressionava o governo uruguaio para
que limitasse a mobilidade de Brizola e Goulart dentro do seu território. A tal ponto isso
ocorreu que chegou a utilizar mecanismos de pressão comercial. Foi assim que o embaixador
Manoel Pio Correia condicionou a compra de trigo uruguaio à tomada de alguma atitude
contra os notórios exilados porque, segundo interpretação do Itamaraty, estes desenvolviam
intensa agenda política no país vizinho. Finalmente, a pressão se mostrou bem sucedida: como
já foi dito, Brizola acabou confinado na cidade de Atlântida, em 1965.
20
Os documentos do DOPS registram que, em 1967, parte das preocupações da
ditadura brasileira referente aos exilados relacionava-se com a preparação de um provável
foco guerrilheiro no entorno do Marechal Aragão e de Emanuel Nicoll, sob orientação das
diretrizes emanadas da Conferência da OLAS e com o envolvimento de remanescentes do
antigo movimento dos marinheiros que se haviam aproximado de Goulart durante seu
governo. Marcado por essas preocupações, em maio de 1967 circulou, entre os organismos de
segurança do Brasil, extenso documento sobre uma ofensiva de 3 mil guerrilheiros treinados
em Cuba que deveriam convulsionar a América Latina a partir de uma nova estratégia
liderada por Ernesto Che Guevara.
21
Como curiosidade, informa-se que a operação estaria
sendo financiada, entre outros, por Perón e Juscelino Kubitscheck, em troca de acordos
políticos posteriores. O sul do Brasil seria uma das zonas visadas:
Os líderes comunistas brasileiros que se encontram exilados no URUGUAI,
também participam desse amplo movimento subversivo. Segundo foi
informado, o Quartel-General desses líderes é o Sanatório de SAN JOSÉ DE
CANELONES, no URUGUAI.
22
A fonte desse documento veiculado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio
Grande do Sul é assinalado como sendo ONDA e, provavelmente, refere-se a algum
informante que operava no interior da extinta empresa estatal de transporte terrestre de
passageiros uruguaia, que durante décadas operou a linha Uruguai-Brasil. Anos depois,
instalada a ditadura no Uruguai, foi comum a utilização de empresas públicas para dar suporte
e cobertura às ações repressivas, o que permite pensar que talvez, em 1967, já estivesse
havendo algum processo de infiltração.
Com a escalada repressiva promovida no Brasil a partir da imposição do Ato
20
“Tortura tipo exportação”. IstoÉ, 14/02/79, p. 28-34.
21
Assunto: Guerrilhas na América Latina. Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança
Pública / Subfundo: Polícia Civil / Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia
Regional de Lagoa Vermelha/SOPS / SOPS/LV - 1.1.528.6.3
712
Institucional N° 5 (AI-5), a cooperação entre as forças de segurança brasileira e a polícia
uruguaia aumentou. Novas levas de cidadãos brasileiros procuraram refúgio no Uruguai. No
23 de novembro de 1969, refletindo a preocupação com a persistência de boatos sobre a
presença de agentes estrangeiros no país, Marcha publicava uma matéria intitulada Uruguay-
Brasil: el fin de las fronteras policiales, onde denunciava o recrudescimento da repressão no
Brasil e informava que doze brasileiros haviam solicitado asilo político no Uruguai.
23
Tamanha era a preocupação que o Secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, coronel
Jaime Mariath, informou aos generais uruguaios que guerrilheiros brasileiros, interessados em
desestabilizar o sul do Brasil, conspiravam no Uruguai e pediu ainda a captura de Cláudio
Antônio Weyne Gutiérrez, vinculado a um grupo dissidente do Partido Comunista
Brasileiro
24
.
Gutiérrez, no seu livro A Guerrilha Brancaleone, lembra que a situação dos
brasileiros que se encontravam no Uruguai, em 1969, não era nada confortável. A
administração Pacheco Areco, marcada por forte espiral autoritária, não lhes reconhecia o
estatuto de asilado. Vários brasileiros haviam sido detidos pelos órgãos de segurança. Filho de
pai uruguaio, Gutiérrez havia solicitado a cidadania uruguaia. Entretanto, em 19 de novembro
daquele ano, foi detido junto com o paulista Euclides Garcia Paes. Num pequeno texto escrito
em um bilhete (dinheiro), conseguiram denunciar sua prisão ilegal, tornando pública sua
história. Durante esse périplo, Gutiérrez e Paes souberam de outro brasileiro que também
estava preso e de outro que tinha sido deportado.
25
A prisão de Gutiérrez foi associada às
quedas da Ação Libertadora Nacional (ALN) no Brasil, provavelmente a de Frei Betto (em
Porto Alegre). O próprio Fleury (da Operação Bandeirantes) teria se deslocado para
Montevidéu para acompanhar a implosão do esquema no Uruguai.
26
Apesar de que, nesse
momento, a imprensa uruguaia repercutia as prisões dos brasileiros, Gutiérrez, temendo uma
imediata deportação, cortou profundamente o braço esquerdo, sendo levado urgentemente a
uma clínica do Sindicato Médico del Uruguay, de onde conseguiu contatar seu advogado. A
22
Idem.
23
“Uruguay-Brasil: el fin de las fronteras policiales”. Matéria publicada no semanário Marcha em 23/11/69.
Citada por Paulo Schilling na obra El Expansionismo brasileño (México: El Cid Editor, 1978).
24
GUTIÉRREZ, Cláudio Antônio Weyne. A guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Editora Proletra, 1999, p.
93.
25
Refere-se, respectivamente, a Caio Venâncio Martins, estudante paulista, e ao professor de História carioca
Wilson Barboza do Nascimento, ligado à Ação Libertadora Nacional (ALN). Idem.
26
Idem, p. 92-95. Embora existam rumores ou versões de depoentes que afirmam ser verdadeira a informação
sobre a presença do delegado Sérgio Paranhos Fleury em Montevidéu, não consegui confirmar tal fato. O Jornal
do Brasil de 06/02/79 informa, na página 6, que “a polícia brasileira participou das torturas no Uruguai, esteve
presente nas salas de interrogatório há algum tempo. O delegado Sérgio Fleury participou, junto com militares
uruguaios, da invasão da Universidade de Montevidéu em 1968”.
713
tentativa de deportação de um cidadão uruguaio teve grande recepção na imprensa de
esquerda do país, abortando sua devolução à ditadura brasileira. Posteriormente confinado no
Hospital Militar (onde ficaria perto de 50 dias), Gutiérrez percebeu que era observado por
pessoas que “não conseguiam disfarçar um sofrível portunhol. Sem dúvida, eram policiais ou
militares brasileiros. Para seu desespero, a caça lhes escapara das mãos”.
27
Gutiérrez avalia
que a exposição pública da sua situação implodiu o acordo de devolução de perseguidos
políticos entre os governos da região, tornando desconfortável sua residência no Uruguai.
Um importante elemento para a compreensão do grau de intercâmbio e de
colaboracionismo entre o Uruguai de Pacheco Areco e a ditadura brasileira foi a presença e
trajetória, na região, do agente estadunidense Dan Mitrione. No Brasil, Mitrione passou por
várias cidades instruindo na aplicação de novas técnicas de “interrogatório”. Particularmente,
desenvolveu métodos para rápida obtenção de informação trabalhando em ambientes
assépticos e procurando não perder o “paciente”. Sua passagem pelo Brasil foi registrada pelo
importante trabalho do jornalista Langguth.
28
Percival de Souza informa que havia um certo
desconforto entre alguns policiais do DOPS paulista, entre os quais estava o delegado Fleury,
por serem obrigados a passar por esses cursos de “atualização”, que consideraram
irrelevantes.
29
Simultaneamente, a partir de 1969, o Brasil recebia militares de todo o Cone Sul para
realização de cursos teóricos e de instrução. Segundo o ex-agente do serviço de inteligência
de São Paulo e do Comando Militar do Planalto, Marival Chaves,
[...] muitos guerrilheiros brasileiros, sem sabê-lo, eram seguidos por equipes
conjuntas de militares brasileiros e estrangeiros no Rio de Janeiro e São
Paulo. Essas equipes acompanhavam seus movimentos e contatos, vigiavam
suas casas e recolhiam dados que depois se utilizavam na repressão.
30
A transferência de Mitrione para o Uruguai, em 1969, possibilitou a ida a
Montevidéu de integrantes dos “Esquadrões da Morte” brasileiros para colaborar no
treinamento que o agente do FBI promovia junto as forças de segurança uruguaias. Assim,
27
GUTIÉRREZ, op. cit., p. 95.
28
LANGGUTH, A. J. A face oculta do terror. São Paulo: Círculo do Livro, s. d.
29
“O delegado Sérgio Fleury chegou a considerar-se ofendido, achando um absurdo alguém imaginar que ele
pudesse ser aluno de outro, ainda mais de gente de fora, sobre as formas eficientes de conseguir informações
bem depressa. Foi assim até o dia em que um policial segredou ter saído do DOPS muito cansado e ter precisado,
ao chegar em casa, que sua mulher providenciasse imersão de seus pés e mãos em salmoura. Estavam inchados
de tanto que ele batera num prisioneiro. Esse agente interessou-se pelas técnicas, principalmente a aplicação de
choques elétricos”. SOUZA, Percival de. Autópsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos
Fleury. São Paulo: Globo, 2000. p. 481.
30
BOCCIA PAZ, Alfredo et al. En los sótanos de los generales. Los documentos ocultos del operativo
Condor. Asunción: Expolibro/Servilibro, 2002, p. 61.
714
paralelamente e sob a cobertura invisível dos EUA, criavam-se as condições para a conexão e
futura coordenação entre os grupos militares, policiais e parapoliciais da região.
31
O governo Pacheco Areco, além de manter programas de cooperação anti-subversiva
com o Brasil de Costa e Silva e de Médici, também estabeleceu conexões semelhantes com a
Argentina de Levingston e de Lanusse. Cabe sempre lembrar que, apesar do crescente
autoritarismo assumido por aquele governo, o Uruguai ainda era uma democracia.
A partir do final dos anos 60 e início dos 70, a documentação do DOPS pesquisada
registra significativo crescimento de informes que dizem respeito às organizações de esquerda
uruguaias, tanto da Frente Ampla como, sobretudo, das organizações armadas,
particularmente dos tupamaros. Os sistemas repressivos de ambos os países começam a
assinalar com maior intensidade os pontos de contato entre os “subversivos” de cada país.
Talvez o documento que melhor reflete isto seja o seguinte radiograma:
RADIOGRAMA
PROCEDÊNCIA P. ALEGRE RS Nº 400 PLS 40 DATA 07/12/70 HRS
13.30
RESERVADO URGENTE
[...] MANTER RIGOROSO CONTROLE FRONTEIRA VIRTUDE
CARLOS LAMARCA TER SE DESLOCADO URUGUAI FINALIDADE
TRAZER BRAZIL COMO REFÉM VG CONSUL GOMIDE PT
MANTENHA DOPS ET DCI INFORMADO QUALQUER INFORME
SOBRE O ASSUNTO [...]
32
Sem ter como questionar a plausibilidade da informação, chama a atenção o alerta
feito da conexão mais concreta entre o grupo de Lamarca e os tupamaros, justamente no que
diz respeito a um dos acontecimentos que melhor desnudam a participação brasileira no apoio
à luta contra-insurgente nos países vizinhos: o seqüestro, como represália, do cônsul brasileiro
em Montevidéu, Dias Gomide.
Aliás, sobre esse fato, há um outro radiograma anterior, de 15/08/70, encaminhado
aos Delegados Regionais e Polícia do Interior do RS:
[...] INFORMO EXERCITO EXPEDIU SUAS UNIDADES
SUBORDINADAS SEGUINTE RD MINISTRO DETERMINA QUE OS
RADIOS VG TV VG ET JORNAIS VG SUSPENDAM QUAISQUER
COMENTARIOS ALARMANTES REFERENTES AO URUGUAI PT AS
NOTICIAS DEVEM SER SUMARIAS ET SEM COMENTARIOS PT
JORNAIS DEVEM ELIMINAR MANCHETES ESCANDALOSAS PT
PARA O CUMPRIMENTO DESSAS DETERMINAÇ
ÕES DEVE SER
31
Idem, p. 74.
32
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Lagoa Vermelha/SOPS /
SOPS/LV - 1.2.1009.11.4
715
EMPREGADA A MAXIMA ENERGIA PT DE ORDEM DO SR
PRESIDENTE DEVE SER EVITADA A MINIMA PERTURBAÇÃO DA
ORDEM PT MIN EX RECOMENDA AINDA NÃO DEVE SER
NOTICIADO QUALQUER PRONUNCIAMENTO DE ASILADOS
SOBRE PROBLEMA DE LIBERAÇÃO NOSSO CONSUL NO URUGUAI
PT VG FATO SE PRENDE INFORMAÇÕES GOVERNO DAQUELE
PAIS DE BRIZOLA TENTOU TAL PROCEDIMENTO PT GEN MILTON
RESP CH GAB MIN EX PT SR SECRETARIO ESCLARECE QUE TAL
INTERVENÇÃO DEVE CABER VG EM PRINCIPIO VG AUTORIDADE
FEDERAL MILITAR OU POLICIA FEDERAL VG SO INTERVINDO A
POLICIA CIVIL ESTADUAL PARA CUMPRIR TAL DECISÃO
QUANDO NÃO HOUVER AQUELAS AUTORIDADES SUA AREA
JURISDIÇÃO
33
A orientação do governo brasileiro é de impedir que os exilados utilizem o fato para
questionarem tanto a colaboração desse governo com o de Pacheco Areco, assim como a
situação interna de cada um dos países. Veja-se também que é dito que é o governo uruguaio
quem alerta para o uso político que do seqüestro estariam tirando figuras como Brizola.
Uma outra conexão existente entre o Brasil e o Uruguai se estabeleceu a partir de
1971, quando a recém criada Escola Nacional de Informações (ESNI) desenvolveu um know-
how assimilado pelos órgãos de informação das Forças Armadas e polícias e passou a
exportá-lo para os demais países do Cone Sul. Agentes de informações desses países cursaram
a ESNI, em Brasília, tendo aulas ministradas por alunos de cursos de guerrilha em Cuba e ex-
integrantes de organizações de esquerda. O cabo Anselmo (ex-Vanguarda Popular
Revolucionária-VPR), convertido em espião dos seus ex-companheiros, teria sido um dos
instrutores desses cursos, onde alunos e professores sempre usavam capuz. Através de tais
cursos, o Serviço Nacional de Informações (SNI) conseguiu acumular e compilar
importantíssima informação para destruir as iniciativas das organizações que pretendiam
retornar à luta armada contra a ditadura brasileira.
34
8.3 – O URUGUAI NO MARCO DA OPERAÇÃO CONDOR
A Operação Condor foi o mecanismo de articulação subterrânea do Terror de Estado
existente no Cone Sul, remetendo à internacionalização do mesmo, do extermínio e da
impunidade dos regimes militares e seus sistemas de sustentação civil.
33
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Lagoa Vermelha/SOPS /
SOPS/LV - 1.-102.1.1
34
SOUZA, op. cit., p. 477.
716
Operación Cóndor, significa “continentalización” de las acciones terroristas
que se manejan desde Washington. [...] ‘El cóndor’ en este caso, cumple la
función de ave de rapiña. La colaboración entre los servicios secretos de las
dictaduras latinoamericanas dio a luz a esta ave de rapiña. En un principio
colaboraron entre sí sólo algunos regímenes dictatoriales, hoy se habla ya de
una organización general para todo el hemisferio occidental, que actúa bajo
la égida de la CIA.
35
Já o professor Martín Almada, ex-preso político da ditadura paraguaia e descobridor
dos arquivos da polícia política de Stroessner (“Arquivos do Horror”), com importante
documentação sobre o operativo internacional, define a Operação Condor nos seguintes
termos:
Se trata de una siniestra red de la muerte concebida por el general chileno
Pinochet y aplicada por su inmediato inferior, general Manuel Contreras en
la década del 70. Inicialmente, fue para neutralizar a los enemigos del
régimen golpista militar. Dado el éxito del dicho plan estratégico militar que
contó con el decidido apoyo de Henry Kissinger, Secretario de Estado y del
general Vernon Walter, Director Adjunto de la CIA, se amplió la Red contra
todos los enemigos de la “civilización occidental y cristiana.
36
É paradoxal que essa articulação repressiva se tenha apropriado da figura do condor,
símbolo figurado e emblemático da resistência de uma identidade latino-americana, presente
em canções e poemas, colocado muitas vezes como contraponto da águia “estadunidense”.
37
A prática repressiva acabou reforçando as características predadoras do condor (a maior ave
de rapina) e a longa envergadura das suas asas, das quais nenhuma presa parece estar
suficientemente distante para sentir-se a salvo do seu arrasador ataque (alusão direta à
conexão repressiva internacional).
Os antecedentes da operação apontam para os anos 60, quando o Pentágono e a CIA,
via contra-insurgência, procuraram acabar com a influência da Revolução Cubana na região.
Há indícios de que em 1963 começou a montagem de uma rede de produção e distribuição de
narcóticos vinculadas à máfia – semelhante à criada no Sudeste Asiático nos anos 50 e 60,
para desestabilizar os países socialistas da região –, com o intuito de gerar uma fonte de
financiamento para as futuras ações de contra-insurgência. No final de 1964, Philip Agee,
agente da CIA na América Latina, denunciou o início da operação na Bolívia. Lá, os generais
35
Volodia Teitelboim, apud CALLONI, S. Los años del lobo. Operación Cóndor. Buenos Aires: Peña Lillo,
Ediciones Continente, 1999. p. 22.
36
ALMADA, Martín. Un sueño libertario que terminó en una pesadilla: El Operativo Cóndor. Palestra
apresentada na mesa Terror de Estado: alvos, seqüelas, impunidade. A História bem contada. Organizada pela
Comissão do Acervo da Luta contra a Ditadura. II Fórum Social Mundial de Porto Alegre, 2002.
37
Caso da canção “Contrapunto entre el águila americana y el cóndor chileno”, gravado pelo grupo Quilapayun.
Registro fonográfico “Quilapayun 3”, EMI, 1979.
717
Barrientos e Banzer, também vinculados à “Companhia”, armaram uma primeira rede. A
produção de coca financiou grupos paramilitares que já agiam no Cone Sul desde o início da
década; parte dos seus membros se incorporou, depois, aos grupos operativos militares
quando estes tomaram o poder. Tais organizações paramilitares foram constituídas segundo o
criminoso modelo do Plano Phoenix (1966), aplicado no Vietnã pelo diretor da CIA William
Colby. Foi o caso do grupo Patria y Libertad, no Chile, da Alianza Anticomunista Argentina
(AAA) e de outros grupos que exterminaram centenas de lideranças e militantes populares
antecipando os crimes cometidos nos anos seguintes, inclusive os relacionados à Operação
Condor (que, enquanto organização, surgiria em meados dos anos 70).
A política repressiva dirigida pelo Pentágono e pela CIA com a cumplicidade dos
militares e grupos paramilitares locais implementou-se com o feroz anticomunismo, mas
também, curiosamente, contra o narcotráfico.
38
Enquanto os EUA financiavam Banzer,
assinavam na Argentina um Acordo de Entendimento para combater o narcotráfico,
posteriormente ratificado pelo ministro de Bem-estar Social, José López Rega - fundador das
AAA e membro da loja maçônica fascista P2. A execução da política antidrogas acabou nas
mãos do chefe da polícia federal, Alberto Villar, destacado repressor e também fundador das
AAA. Paradoxalmente, os que deviam combater o tráfico de drogas eram os mesmos que por
ele eram financiados. A jornalista Stella Calloni
39
informa que, entre 1971 e 1973, houve
inclusive um Plano Condor vinculado ao combate do narcotráfico, que caracterizou-se por
também desrespeitar regras e leis locais.
Em março de 1974, autoridades policiais do Chile, Uruguai e Bolívia reuniram-se, na
Argentina, com Villar. Este país estava servindo de exílio para milhares de latino-americanos
e os regimes ditatoriais vizinhos mostraram-se preocupados com o que entenderam ser a
proliferação de focos subversivos promovidos pelos seus exilados dentro do território que os
acolhia; sendo assim, solicitavam equacionar algumas medidas que permitissem a colaboração
das autoridades policiais locais para eliminá-los. Nesse momento, já se ventilavam propostas
que resultassem da ampliação do esforço colaboracionista como infiltrar agentes secretos nas
embaixadas, conectados aos órgãos de segurança locais, estabelecendo uma central de
38
Historicamente, a existência do narcotráfico na região acaba sendo um fator legitimador da intervenção dos
EUA em diversos países onde se verifica a existência da rede; o argumento é que a população daquele país acaba
sendo vítima desse comércio que afeta as bases morais da sociedade. O que se esconde da opinião pública,
entretanto, são as relações obscuras, invisíveis, entre o narcotráfico e a CIA e outras agências de segurança e de
espionagem dos EUA. Por um lado, forçam-se evidências para mostrar a existência de conexões de governos ou
de organizações regionais de perfil antiimperialista e/ou “progressista”, o que pode justificar pressões contra os
mesmos. Por outro, de forma encoberta, o narcotráfico tem sido utilizado como forma de lavar dinheiro e obter
linhas de financiamento para as ações clandestinas e ilegais da CIA e dos EUA na região.
39
CALLONI, op. cit.
718
informações para processamento e divulgação de toda informação colhida, além de dispor
imunidade para agentes que atravessassem fronteiras cumprindo funções anti-subversivas.
40
Diante das solicitações dos países vizinhos, Villar respondeu que a polícia argentina se
ocuparia dos estrangeiros que preocupavam àqueles.
A avaliação positiva sobre as colaborações exitosas obtidas nessa solidariedade
interditaduras e delas com a Argentina estimulou o nascimento da Operação Condor. Entre
tais êxitos, constavam o assassinato, em Buenos Aires (setembro de 1974), do general chileno
e ex-ministro do governo Allende, Carlos Prats
41
, e sua esposa. Exilado na Argentina desde o
fim do governo da Unidad Popular, teve seu carro explodido por uma bomba acionada por
controle remoto. No ano seguinte, ocorria a frustrada Operación Colombo, tentativa de
blanquear a morte de 119 militantes chilenos (assassinados e desaparecidos pela Dirección de
Inteligencia Nacional-DINA), em território argentino, como se tivessem sido vítimas de lutas
internas de exilados ou de estarem combatendo junto com as guerrilhas do país vizinho.
42
Entre os antecedentes da Operação Condor, há um caso pouco esclarecido até hoje e
que diz respeito diretamente à ditadura uruguaia. Em dezembro de 1974, foi assassinado o
coronel Ramón Trabal, adido militar uruguaio em Paris, militar considerado pouco confiável
pelos núcleos duros do sistema. Trabal havia tido papel peculiar em alguns acontecimentos
recentes do país. Tinha sido uma figura importante no serviço de inteligência anti-subversivo,
assim como havia estimulado as “negociações” com os chefes tupamaros, em 1972. Também
havia sido da sua autoria os controversos Comunicados 4 e 7 de fevereiro de 1973.
A versão oficial sobre seu assassinato informou que Trabal fora vítima de uma
desconhecida Brigada Internacional Raul Sendic. O MLN negou qualquer vínculo com o
atentado e nunca se encontraram evidências de que a autoria do mesmo fosse de alguma
organização de esquerda. Tudo indica que Trabal foi vítima de uma ação encomendada pelos
militares uruguaios. Ou tinha virado um personagem incômodo para o regime (embora seja
40
ABRAMOVICI, Pierre. O pesadelo da “operação Condor”. Le Monde Diplomatique. Edição brasileira, n° 16,
maio 2001.
41
Prats foi o principal representante da linha constitucionalista das Forças Armadas chilenas após o assassinato
do chefe do Exército, general René Schneider, logo após a vitória eleitoral de Salvador Allende. O general Prats
foi Ministro de Defesa e comandante chefe do Exército durante o governo da Unidade Popular. Acabou sendo
substituído no cargo pelo general Pinochet, poucas semanas antes do golpe de 11 de setembro. Tal fato tem sido
considerado por alguns autores como uma concessão de Allende aos setores golpistas que haviam tentado
derrubá-lo pouco tempo antes. Depois do golpe, Prats se exilou na Argentina onde se transformou numa das
principais referências do exílio chileno até ser alcançado pelo Condor.
42
O motivo essencial da Operación Colombo consistia em que: “en Chile había familiares de desaparecidos que
los reclamaban y no había cadáveres que mostrar. Y lo que sobraba en Argentina eran cadáveres. Diariamente la
Triple A asesinaba, quemaba, destrozaba y destruía huellas digitales.” BOCCIA, op. cit., p. 102. Manuel
Contreras solicitou à repressão argentina que apresentasse cadáveres com carteiras de identidade chilenas para
induzir aos familiares das vítimas da DINA de que as mesmas haviam “caído” no exterior.
719
questionável pensar que fosse um militar constitucionalista), ou então foi um caso de queima de
arquivo. A ditadura uruguaia, para convencer a população de que a autoria do assassinato de
Trabal estava conectada com o MLN, apresentou, no dia seguinte, cinco cadáveres encontrados
na localidade de Soca pertencentes a integrantes da organização guerrilheira que haviam
desaparecido um mês antes em Buenos Aires (junto com o menino Amaral García, de três anos
de idade, apropriado desde aquele momento). A intenção da ditadura com esse múltiplo
homicídio foi simular uma ação de represália contra os tupamaros pelo crime que estes teriam
cometido contra Trabal.
43
Tais atentados, promovidos por comandos dos próprios países das vítimas, serviram
como antecedentes da Operação Condor e para demonstrar que as dificuldades e os riscos
dessas ações só poderiam ser superadas com a cooperação subterrânea e articulada das forças
repressivas regionais.
Junto ao balanço positivo na avaliação da eficiência da maioria das iniciativas de
colaboração repressiva bilateral, acrescentou-se a justificativa para a deflagração da grande
articulação repressiva regional. Desde 1973, circulavam informações de que algumas
organizações armadas latino-americanas estavam juntando esforços para coordenar ações
conjuntas. Denominada Junta Coordenadora Revolucionaria (JCR), ela era integrada pelos
tupamaros, pelo argentino Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), pelo chileno Movimiento
de Izquierda Revolucionaria (MIR) e pelo boliviano Ejército de Libertación Nacional. A
coordenação central dessa articulação de guerrilhas era no Chile, mas com a queda de Allende,
foi transferida para a Argentina. É bem verdade que a JCR não chegou a atingir uma fase
plenamente operativa, e que sua existência foi muito bem utilizada como argumentação para a
organização da Operação Condor.
44
Tudo indica que a Operação Condor começou a tomar forma nos contatos que o chefe
da DINA, Manuel Contreras, estabeleceu ao longo de 1975 junto aos organismos de segurança
de diversos países latino-americanos e dos EUA. O regime Pinochet era, na época, a ditadura que
enfrentava maior oposição no exterior em função de uma forte campanha de denúncia promovida
pelos sobreviventes do governo Allende e pelo exílio chileno. A missão de Contreras, portanto,
43
Idem, p. 68.
44
Idem, p. 128. Merece registro o depoimento do ex-Ministro do Exército brasileiro durante o governo Sarney
(1985-1990), general Leônidas Pires Gonçalves: “Nos dias de hoje ficam aí falando da célebre ‘Operação
Condor’. Sempre digo, é uma lei antiga, de física, que ‘a toda ação corresponde uma reação igual em sentido
contrário’ [...]. Se a orientação e o apoio dessas operações vinham de fora - vinham da Rússia e da China, via
Cuba ou Uruguai - enfim, era um movimento internacional integrado, o que há de estranho no fato de o Cone Sul
se reunir para colocar um “basta” a isso, com troca de informações, já que todos eram atingidos? Então, isso é
um verdadeiro absurdo, é um desses outros clichês que a mídia cria para nos ofender, até hoje, sem nenhuma
razão.” In: MOTTA, Aricildes de Morães (Coord. geral). 1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e a
720
tinha um ponto fundamental: convencer os pares regionais a criar uma força especial para
silenciar a pressão dos exilados. Feitas as articulações, ocorreu, no final de 1975, em Santiago do
Chile, a Primeira Reunião Interamericana de Inteligência Nacional, à qual compareceram
delegações da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai; o Brasil mandou uma delegação
em qualidade de observadora (somente se integraria à coordenação repressiva em 1976).
45
No
encontro, foi proposta a formação de um banco de dados com informações sobre indivíduos e
organizações vinculadas a esquemas de resistência às ditaduras, um sistema de código
46
compartilhado e que devia ser financiado, alimentado e gerenciado pelos serviços de segurança
dos paísses interessados. O nome Cóndor foi sugerido pela delegação uruguaia como
homenagem ao país anfitrião.
Na ata de fechamento do encontro, constou que devia-se habilitar “en las embajadas de
nuestros países, la presencia de personal de inteligencia nacional o similares para enlaces directos
y personales, plenamente acreditados ante los ‘servicios’.
47
De fato, em documento de 1978, o
general paraguaio Guanes Serrano informava a Stroessner que as trocas de prisioneiros
ocorreriam entre os serviços de inteligência e que os adidos militares das embaixadas atuariam
como elementos de ligação, sendo os canais através dos quais circulariam os informes de
inteligência.
48
Nas semanas seguintes ao primeiro encontro, intensificaram-se os encontros bilaterais
onde as negociações foram sendo aprofundadas. Durante a XI Reunião de Chefes de Estado
Maior dos exércitos americanos em Montevidéu, ainda em 1975, deu-se forma orgânica ao que
até então eram relações bilaterais e quase informais da conexão repressiva. Estavam
estabelecidos os principais objetivos da Operação Condor:
- coordenação, cooperação e aprofundamento do combate anti-subversivo;
- levantamento, intercâmbio e armazenamento de informações e inteligência sobre
atividades dos “inimigos internos”;
- deslocamento clandestino de agentes e realização de operações conjuntas contra
sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. T. 1, p. 92.
45
Os chefes das delegações presentes foram: coronel Manuel Contreras (Chile), capitão Jorge Casas (Argentina),
major Carlos Mena (Bolívia), coronel Jorge Fons (Uruguai) e coronel Benito Guanes (Paraguai). DINGES, John.
Os anos do Condor. Uma década de terrorismo internacional no Cone Sul. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005. p. 37.
46
O código do “Condor” estabelecia a seguinte correspondência de letras: a=B, b=Q, c=Z, d=Y, e=Z, f=A, g=U,
h=I, i=X, j=B, k=P, l=M, m=A, n=J, o=V, p=G, q=K, r=T, s=F, t=W, u=L, v=N, w=E, x=S, y=H, e z=O. As
mensagens eram escritas sempre com letras maiúsculas aglutinadas em seqüências de cinco.
47
“La Operación Cóndor: El compromiso de la muerte.” Posdata, n° 248, 02/07/99. p. 86.
48
CALLONI, Stella. Los archivos del horror del Operativo Cóndor. Equipo Nizkor, 8 de agosto de 1998.
Disponível em: <http://www.derechos.org/nizkor/arg>
721
elementos “terroristas” nos países membros;
- formação de equipes especiais dos países membros para viajar a qualquer país não-
membro a fim de realizar ações, inclusive assassinatos, contra “terroristas” ou aqueles
que apoiam organizações “terroristas” dos países membros da Operação Condor;
- obter cobertura e cooperação internacional para atingir opositores refugiados além
fronteiras;
- manutenção da troca de informações e inteligência;
- intensificação das medidas de segurança nas fronteiras;
- propiciar interrogatórios conjuntos aos presos.
Para realizar as operações de encobrimento com maior eficiência, foram criadas
empresas fantasmas ou foram instrumentalizadas algumas estatais para garantir a clandestinidade
das ações. A documentação conhecida sobre o “Condor” registra que, por exemplo, o Chile e o
Paraguai tiveram a sua disposição as linhas aéreas estatais (LAN CHILE e Lineas Aéreas
Paraguayas, respectivamente), o serviço de correio e a infra-estrutura das respectivas
chancelarias. Sabe-se que no Chile foram criadas mais de trinta empresas fantasmas que foram
colocadas a disposição das necessidades operativas e de cobertura da DINA. A disponibilização
de recursos econômicos e financeiros visou sentar as bases para criar mecanismos de proteção
aos agentes secretos.
49
A garra do Condor agiu na Europa, em Roma, no atentado contra o ex-deputado do
PDC chileno Bernardo Leighton (outubro de 1975). Em 1976, foram assassinados em Buenos
Aires os parlamentares uruguaios Héctor Gutiérrez Ruiz e Zelmar Michelini (ambos em 18/05) e
o ex-presidente boliviano general Juan José Torres (02/06). Desta forma, a Operação Condor
passou a ser expressão da “continentalização” do Terror de Estado, constituindo-se num esquema
encoberto pela CIA, sustentado na colaboração direta entre os serviços secretos dos regimes
militares. A articulação destes últimos, entretanto, ganhou certa autonomia diante da Agência
Central, o que, evidentemente, desagradou a Washington, principalmente quando ocorreu o
assassinato de Orlando Letelier (21/09/76), ex-ministro de Allende, nos EUA. Neste fato, a
49
Esteban Cuyas informa que o objetivo era o de construir uma estrutura como a nazista ODESSA. Em 1992,
segundo ele, foi descoberta, no Chile, uma confraria denominada Sociedad Benefectora. A mesma era integrada
por oficiais e agentes de inteligência militar e havia sido criada para servir de proteção para aqueles e seus
familiares, em situações de premência, como no caso de pressão judicial ou denúncias públicas incontornáveis.
Assim, a confraria facilitava a rápida obtenção de documentos (carteiras de identidade, passaportes, vistos de
residência em outros países), transferência de recursos financeiros, disponibilização de rotas de fuga,
reconversão de identidade, etc. O responsável pela mesma era o general Vicente Rodríguez. CUYAS, Esteban.
La Operación Cóndor: El Terrorismo de Estado de alcance trasnacional. KO’AGA ROÑE’ETA se.vii
(1996) - <http://www.derechos.org/vii/1/cuyas.html>
722
Operação Condor, ousadamente, usou quadros e conexões da própria CIA (como Michael
Townley, ex-agente que também havia participado do atentado contra Prats, junto com alguns
agentes cubanos anticastristas). Com o passar dos anos, a coordenação repressiva se estendeu a
Equador, Peru
50
e América Central. Diversos atentados e tentativas frustradas ocorreram não só
no território dos países membros, mas também contra as comunidades exiladas no México,
Espanha, França, Itália, Portugal, etc, numa articulação crescente do “Condor” com grupos
europeus de extrema direita e cubanos anticastristas.
Enquanto esquema de conexão repressiva continental, a Operação Condor visou a
cooperação mútua, a perseguição e a detenção com entrega clandestina de opositores aos países
de origem. O período de maior atividade foi o biênio 1976-77. Para que essa articulação
funcionasse, era fundamental a pré-existência de um marco de íntima afinidade política,
econômica e ideológica. A Operação Condor seguiu a mesma metodologia da repressão interna
aplicada nos diferentes regimes de SN (privação ilegítima de liberdade, abuso de autoridade,
maus tratos, homicídios e desaparecimentos), embora o intercâmbio de experiências permitisse
ampliar ou sofisticar as ações desenvolvidas. Assim como ocorria com os casos nacionais de
repressão interna, a Operação Condor também foi negada pelos seus responsáveis e pelas altas
autoridades dos regimes de SN. Atentados, seqüestros, desaparecimentos ou entregas foram
sempre negados ou então sofreram o diversionismo induzido para mascarar responsabilidades e
colaboracionismos. Diante de denúncias ou de falhas do esquema de segurança da própria
unidade repressiva, houve a institucionalização da mentira. A conexão repressiva se sustentou
também sobre a lógica do silêncio cúmplice, garantia de impunidade dos respectivos aparatos
repressivos. Por outro lado, também serviu como linha auxiliar para viabilizar a fuga e o
ocultamento de diversos torturadores quando se restabeleceram as frágeis democracias da região,
como ocorreu com vários apropriadores argentinos de crianças filhas de desaparecidos.
Nos anos 90, o julgamento e prisão do ex-chefe da DINA, Manuel Contreras,
elemento chave do “Condor”, expôs as articulações da operação com a CIA. O próprio ex-
presidente George Bush, diretor da agência quando do atentado contra Letelier (onde morreu
uma cidadã norte-americana), foi acusado por Contreras de estar envolvido. A publicação dos
50
Em junho de 1980, Noemí Gianetti de Molfino, integrante de Madres de Plaza de Mayo, foi seqüestrada junto
com outras três pessoas, em Lima, onde procurava pistas do filho desaparecido, por um comando de militares
peruanos e argentinos. Estes armaram sofisticada ação para que a responsabilidade da ação e posterior
assassinato caíssem sobre a comunidade exilada na Espanha, envolvida em intensa campanha de denúncia e
pressão junto ao governo espanhol sobre violação dos direitos humanos na Argentina. Gianetti de Molfini foi
encontrada envenenada em Madri um mês após ter sido seqüestrada no Peru. Havia entrado na Espanha com
documentação falsa. Supõe-se que seus seqüestradores ofereceram libertá-la se aceitasse viajar à Europa com
documentação falsa. A “versão oficial” dos fatos indicou que a vítima fugiu e acabou ultimada por um “ajuste de
contas” entre exilados. “El Cóndor atacó también en España.” Rebelión, 29/08/04.
723
arquivos encontrados no Paraguai em 1992, a abertura dos arquivos da CIA sobre o Caso
Pinochet e a pressão sobre os governos do Cone Sul, talvez esclareçam outros casos onde
alguns setores levantam suspeitas (nunca confirmadas) de atentados, como nas mortes de
Juscelino Kubitschek, João Goulart, Jaime Roldos e Omar Torrijos (estes dois últimos,
vítimas de acidentes aéreos - avionazos).
51
A sobrevivência dos esquemas do “Condor” foi confirmada quando desapareceu, no
Uruguai, o químico chileno e ex-agente da DINA, Eugenio Berríos. De passado nebuloso,
Berríos havia trabalhado para as forças de segurança de Pinochet produzindo explosivos e
desenvolvendo o gás Sarin. Conhecedor de detalhes do atentado que vitimara Letelier em
Washington, quando foi convocado pela justiça para depor sobre esse caso, temendo que sua
instabilidade emocional o levasse a incriminar Contreras e Pinochet, por ordem superior, foi
retirado do Chile em 1991. A desaparição de Berríos, seu ressurgimento e nova desaparição,
revelam a persistência de uma rede clandestina vinculada ao macro-esquema “Condor”.
Berríos saiu do Chile com quatro passaportes diferentes (argentino, brasileiro, chileno e
uruguaio), atravessou fronteiras internacionais sem nenhum contratempo e foi instalado no
Uruguai onde, ao perceber que se havia tornado um inconveniente “arquivo vivo” de
informação, passou a sentir-se ameaçado pela própria segurança que o protegia e procurou
evadir-se dela.
Em novembro de 1992, no pequeno balneário de Parque del Plata, com a certeza de
que Pinochet havia decretado sua execução, tentou fugir; porém, acabou seqüestrado numa
ação integrada por agentes chilenos e uruguaios e que foi testemunhada inclusive por um
agente policial local que, desconhecendo o que ocorria, tentou interceder. Desaparecido
Berríos, criaram-se estratégias diversionistas para demonstrar que estava vivendo na Europa
com nova identidade. O fato é que, em abril de 1995, seus restos mortais foram encontrados
enterrados em outro balneário perto da capital uruguaia. Em 1° de fevereiro de 1996, o jornal
La República publicava um informe secreto das Forças Armadas chilenas encontrado no
Uruguai com carimbo do Ministério de Defesa local, onde constava que Berríos havia entrado
no país no marco do compromisso “Pacto Cóndor Sur”. Tratava-se de uma operação
encoberta entre o adido militar uruguaio em Santiago, coronel Héctor Lluis, e seu par chileno
em Montevidéu, coronel Emilio Timmerma Unduriaga, reforçando parte do esquema
51
Há outro esquema repressivo latino-americano que derivou diretamente da Operação Condor, o denominado
Plano Banzer. Foi uma ação proposta pelo então ditador da Bolívia visando erradicar os religiosos adeptos da
Teologia da Libertação. Resultou na execução de centenas de padres, freiras, bispos e leigos de comunidades
religiosas. O ponto alto desta coordenacão repressiva foi o assassinato do arcebispo Oscar Romero, de El
Salvador, em 1980. ABRAMOVICI, Pierre. O pesadelo da “operação Condor”. Le Monde Diplomatique. Edição
724
“Condor” de utilizar os adidos militares das embaixadas como coluna vertebral da
transmissão e conexão de informação e diretrizes. Entre outros detalhes, o documento
informava que:
Referente a la unidad de operación-enlace dispuesto por la protectora de ex
agentes de seguridad, el servicio exterior dispondrá la distracción en especial
en el marco del compromiso del ‘Pacto Cóndor Sur’, como asimismo se
trasladará el envío de la información desvirtuada desde Milano, Beirut,
Libia, Sudáfrica, Lisboa; con el apoyo incondicional de la hermandad del
Uruguay conforme a un instructivo a cargo del coronel Rodríguez, despacho
de la ajuda económica responsable. [...]
52
A peculiaridade do caso Berríos é que ele ocorreu sete anos após a recuperação da
democracia no Uruguai e com Pinochet tendo abandonado o Poder Executivo chileno, o que
demonstra, além da fragilidade democrática vivida na região, naquele momento, a vigência
dos compromissos e articulações do “Condor”. O encontro casual do corpo do ex-agente da
DINA reafirma que tanto o seu assassinato quanto seu desaparecimento foram a culminância
de um operativo que mostrou a complexidade e a amplidão das instâncias implicadas. A
repercussão do fato na imprensa tornou pública a manutenção da rede de compromissos e de
coordenação repressiva. No caso uruguaio, houve a participação de militares que deram
proteção, apoio logístico e cobertura ao comando chileno que cercou Berríos. Além disso,
houve participação de autoridades militares, com incisiva atuação no momento em que a ação
clandestina do seqüestro quase foi abortada pela atitude da polícia do local onde ocorreu o
fato. Tal comportamento atestou a fragilidade da democracia existente diante de um poder
militar paralelo e autônomo. O constrangedor silêncio do presidente da época, Luis Alberto
Lacalle, e do posterior, Julio María Sanguinetti, em relação ao caso Berríos escondeu que
nenhum dos dois enfrentou a pressão da alta oficialidade uruguaia que respaldou os
subordinados envolvidos naqueles eventos. Os militares mandaram um recado: não aceitavam
intromissão civil. E o presidente Lacalle, esquecendo a soberania nacional e os princípios
democráticos, endossou que era um problema interno entre chilenos.
A descoberta dos arquivos da polícia paraguaia (Arquivo do Horror), em 1992,
permitiu verificar as conexões comprometedoras entre os países da região na grande operação
repressiva. No final de 1992, no Paraguai, o professor e ex-preso político Martín Almada,
acompanhado de representantes do Poder Judiciário, encontrou em Lambaré, subúrbio de
Assunção, um enorme arquivo policial com documentação sobre a repressão durante a
brasileira, n° 16, maio 2001.
52
CALLONI, Operación Cóndor: los años del lobo. Op. cit., cap. 16.
725
ditadura Stroessner, assim como informações a respeito das outras ditaduras do Cone Sul e da
cooperação norte-americana com as mesmas. Segundo a jornalista Stella Calloni, o arquivo
possui cerca de 700 mil folhas referentes à atuação da ditadura Stroessner, 740 livros
encadernados e classificados, 115 livros de Novedades de Guardia, 204 caixas de papelão
com documentos diversos, 574 pastas (com informações sobre partidos políticos, sindicatos,
mapas, controles), duas mil carteiras de identidade e passaportes, umas 10 mil fotografias (de
detidos, atos políticos, acontecimentos familiares, perseguições) e 543 fitas cassetes com
gravações de palestras, conferências, discursos, programas de rádio e “escutas” grampeadas.
53
Em novembro de 1997, a justiça espanhola, que havia acolhido denúncias de crimes
cometidos contra cidadãos espanhóis durante o período das ditaduras do Cone Sul,
pronunciou-se em relação à Operação Condor qualificando como organização criminosa de
associação ilícita responsável por assassinatos, lesões e detenções ilegais que resultaram, na
maioria dos casos, em desaparições forçadas. Afirmava que era sustentada na estrutura militar
e na infra-estrutura proporcionada pelas ditaduras e que possuía atividade oculta, ilegal,
paralela à organização institucional e se caracterizava, também, pela permanência no tempo.
54
Entre os documentos do Arquivo do Horror, foram encontrados registros de
solicitações da ditadura uruguaia sobre refugiados no Paraguai; as fotografias dessas pessoas
foram espalhadas pelas delegacias de polícia. Os casos mais documentados são os de Gustavo
Inzaurralde e Nelson Santana Scotto, do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), presos em
março de 1977 em Assunção (fato já citado). Um documento da Dirección de Investigaciones
da polícia paraguaia, de 6 de abril de 1977,
55
menciona a presença de agentes do serviço de
inteligência uruguaio trabalhando junto a seus similares paraguaios nos interrogatórios e no
processamento da informação extraída dos detidos:
Por información recepcionada de la Policía de Asunción se tomó
conocimiento de la detención de las siguientes personas: LOGOLU SO DI
MARTINO ALEJANDRO JOSE, LANDI GIL DORA MARTA,
SANTANA SCOTTO NELSON RODOLFO, NELL JORGE,
INSAURRALDE MELLIAR GUSTAVO EDISON quienes
presumiblemente se encontrarían involucrados junto con otros ciudadanos
paraguayos en la confección venta y uso de documentos apócrifos que serían
utilizados para la salida del país.
Constituídos en ésta se toma contacto con la Jefatura del Departamento II de
53
CALLONI, op. cit. Ver também: MARIANO, Nilson C. Operación Cóndor. Terrorismo de Estado en el
Cono Sur. Buenos Aires: Lohlé-Lumen, 1998. BLIXEN, Samuel. El vientre del Cóndor. Del Archivo del
Terror al caso Berríos. Montevideo: Ediciones de Brecha, 1994.
54
Auto de la Sala de lo Penal de la Audiencia Nacional, 05/11/97. In: GUTIÉRREZ CONTRERAS, J. C.;
VILLEGAS DÍAZ, M. Derechos Humanos y Desaparecidos en Dictaduras Militares. KO’AGA ROÑE’ETA
se.vii (1999). Disponível em <http: //www.derechos.org/koaga/vii/contreras.html>. Acesso em 10/10/2001.
55
Doc. Resumen de actividades ICIA dias 5/6 abril 1977. Apresentado por BOCCIA, op. cit., p. 249.
726
Inteligencia del Ejército, encontrandose presentes en la oportunidad,
personal del Servicio de Inteligencia de la República del Uruguay. [...]
56
Outro documento, de 9 de abril, informa que Inzaurralde confessou ser o principal
líder do PVP.
57
Inzaurralde e Santana haviam ido a Assunção para conseguir documentos
falsos paraguaios que permitissem tentar retirar dezenas de companheiros completamente
acuados na Argentina. Detectados e presos pelas forças de segurança paraguaias junto com os
três argentinos citados, foram alvo de “interrogatórios”, dos quais participou o major Carlos
Calcagno, da comunidade de informações uruguaia, assim como agentes argentinos.
Outro ofício, de 16 de maio de 1977,
58
mostra o Director de Política y Afines
(pertencente ao Departamento de Investigaciones do Paraguai) confirmando aos seus
superiores que Inzaurralde e Santana foram enviados, em um avião da marinha argentina
pilotado pelo capitão-de-corveta José Abdala, para Buenos Aires, junto com outros três
argentinos capturados no Paraguai:
Tengo el honor de dirigirme a esa superioridad, con el objeto de elevar a su
conocimiento que en el día de la fecha, siendo las 16.34 horas, en un avión
bí-reactor de la Armada Argentina, con matrícula 7-7-30 - 0653, pilotado por
el Capitán de Corbeta José Abdala [...] con destino a la ciudad de Buenos
Aires (R.A.), los siguientes detenidos: GUSTAVO EDISON
INSAURRALDE (uruguayo), NELSON RODOLFO SANTANA SCOTTO
(uruguayo), JOSÉ NELL (argentino), ALEJANDRO JODE LOGOLUSO
(argentino) y DORA MARTA LANDI GIL (argentina). Las mencionadas
personas fueron entregadas por conducto de esta Dirección, en presencia del
Cnel. D. E. M. Don BENITO GUANES y del Cap. de Fragata LAZARO
SOSA, al Tte. 1° JOSE MONTENEGRO y JUAN MANUEL BERRET,
ambos del “S.I.D.E.” (Servicio de Inteligencia del Ejército) [argentino].
59
Posteriormente, todos essas pessoas sequestradas foram consideradas desaparecidas.
No Uruguai, o organismo que centralizou as atividades do “Condor” foi o Organismo
Coordinador de Operaciones Antisubversivas (OCOA). Comandado pelo major José Nino
Gavazzo, o OCOA teve participação na eliminação de mais ou menos 135 uruguaios
refugiados na Argentina. Automotores Orletti foi o centro clandestino a partir do qual operou
a OCOA na Argentina e era administrado por militares e policiais dos dois países. Pelo lado
do Uruguai, respondiam o diretor do Servicio de Inteligencia y Defensa (SID), general
Amauri Prantl e o major Nino Gavazzo; pela contraparte argentina, o diretor do Servicio de
Inteligencia de Estado (SIDE), general Otto Paladino e o agente Aníbal Gordon.
60
O chefe
56
Idem, p. 250.
57
MARIANO, op. cit., p. 67.
58
Doc. Objeto: Elevar informe. Apresentado por BOCCIA, op. cit., p. 252.
59
Idem.
60
MARIANO, op. cit, p. 66.
727
supremo da Operação Condor no Uruguai, o “Condor 1”, foi o ex-comandante em chefe do
Exército, tenente general Julio César Vadora,
61
responsável por essa arma nos anos em que
ocorreu a maioria dos desaparecimentos e em que foram assassinados os parlamentares
Michelini e Gutiérrez Ruiz junto com o casal Whitelaw-Barredo (todos em Buenos Aires), e
do coronel Ramón Trabal em Paris. Vadora foi a autoridade militar escolhida pelo governo
estadunidense para que seu embaixador no Uruguai, Ernest Siracusa, estabelecesse
permanente conexão, pois, segundo o Departamento de Estado, ele era a pessoa indicada para
trocar informação a respeito da Operação Condor, já que esta parecia ser desconhecida por
Bordaberry e por seu sucessor.
62
Discursando na homenagem aos 25 anos da morte do general Mario Aguerrondo,
fundador da Loja dos Tenentes de Artigas e conspirador e golpista de extrema direita desde o
início dos anos 60, Vadora afirmou seu orgulho por “[...] lograr que el Ejército que tanto
quería fuera cada vez más sólido y profesional, con esa visión que iba mas allá del entorno y
que abarcaba todo el panorama internacional.
63
E, mostrando a postura de profunda
intransigência que caracterizou sua trajetória e a das Forças Armadas uruguaias, concluiu:
[...] debimos derramar la sangre de muchas vidas para salvar la eficacia y la
esencia misma de la patria, cuando se pretendía su destrucción por la acción
de unos pocos, la complacencia de otros, la ignorancia e irresponsabilidad de
algunos y la inacción de la gran mayoría.
64
Outro nome importante da repressão uruguaia vinculada à repressão internacional foi
o ex-comisário de polícia Hugo Campos Hermida, o qual recebeu treinamento da Oficina de
Segurança Pública estadunidense (OPS) em cursos sobre investigações criminosas e
segurança, entre dezembro de 1970 e abril de 1971, e trabalhou com Dan Mitrione quando
este esteve no Uruguai. Sua trajetória se confunde com as ações de suporte e conexão dos
Estados Unidos à política repressiva da região. Envolvido nas atividades repressivas
clandestinas contra a comunidade exilada na Argentina, sua extradição foi uma das solicitadas
pela justiça daquele país.
65
Dentro do conjunto de documentos concernentes ao DOPS-RS existentes no Acervo
61
A justiça argentina requereu sua presença pelos crimes cometidos naquele país contra cidadãos uruguaios, no
marco da Operação Condor. Vadora faleceu em janeiro de 2005 defendendo a mesma postura de inflexibilidade
contra qualquer ato reivindicatório de justiça ou de fornecimento de informações para as famílias das vítimas da
ditadura.
62
Cf. p. 800 no que concerne à nota 227. Também “El cóndor volvió a batir sus alas en el cementerio.” Andrés
Capelán/COMCOSUR. Rebelión, 16/09/02.
63
Idem.
64
Idem.
65
Documento desclassificado do Departamento de Estado dos EUA citado no artigo “Uruguay en el Plano
Cóndor: Estados Unidos confirma la historia no oficial”. Brecha, n° 823, 07/09/01.
728
da Luta Contra a Ditadura, há alguns documentos referentes ao intercâmbio de informação
entre a ditadura brasileira e as demais do Cone Sul, no período de vigência da Operação
Condor. Mesmo considerando que a documentação existente é uma pequena fração da que
circulou e da que deve ter sido processada nesse organismo, pode-se estabelecer algumas
regularidades. No que diz respeito ao Uruguai, parte dos documentos existentes são
originários do Ministério do Exército brasileiro. Predominam Pedidos de Busca de listas de
pessoas procuradas no Uruguai e/ou suspeitas de estarem no Brasil, confirmando a
informação de Daniel Rey Piuma sobre o intercâmbio de listas de requeridos em cada país.
Por exemplo:
Ministério do Exército / III Exército
15/10/76
Assunto: Cidadãos Uruguaios Envolvidos em Subversão
Confidencial
PEDIDO DE BUSCA Nº 52/76 S/2
1. DADOS CONHECIDOS
Os abaixo relacionados,
cidadãos uruguaios processados e procurados pela
prática de atividades subversivas no URUGUAI, para cuja captura as
autoridades do país estão solicitando colaboração:
- PABLO VIRGILIO CARLAVARO BOTIERO
- CARLOS RAFAEL PIRIZ MAC COLL
- ALBERTO PEREZ PEREZ
- MARIO HECTOR OTERO GARCIA
- SANTOS IGNACIO ARBIZA AGUIRRE
- ALFREDO MARIO ERRANDONEA GUTIERREZ
- ALVARO CESAR PORTILLO RODRIGUEZ
- BRENDA BOGILACCINI BADANO
- VICTOR HUGO ABELARDO GALEANO
2. DADOS SOLICITADOS:
a. Informar a eventual presença de qualquer dos nominados na área dessa
DRP [Delegacia Regional de Polícia].
b. Acrescentar outros dados julgados necessários.
66
[grifo meu]
Há outros onze documentos semelhantes compreendidos entre 1976 e 1979, nas
caixas correspondentes às diversas Delegacias Regionais do Rio Grande do Sul. Neles,
constam 108 nomes de cidadãos procurados pela ditadura uruguaia e se pede a colaboração
das autoridades brasileiras diante da possibilidade de que eles estejam dentro do seu
território. Alguns desses documentos trazem dados complementares sobre as pessoas listadas
(data de nascimento, carteira de identidade uruguaia, endereço, cor de olhos, pele e cabelos,
etc.).
67
66
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Caxias do Sul/SOPS /
SOPS/CX - 1.1.54.2.1
67
Dos 12 documentos citados, 7 são considerados Confidenciais, 3 solicitam contatar o DOPS com urgência e 3
729
As interconexões entre os regimes da região aparecem, às vezes, de forma sutil
como na seguinte mensagem:
Ministério do Exército / III Exército
23/08/76
Assunto: Passaportes Chilenos
Confidencial
INFORMAÇÃO Nº 102/76 S/2
A Embaixada do CHILE, no URUGUAI, comunicou ao Ministério das
Relações Exteriores Uruguaio (MONTEVIDÉU), em 10 Jan p.p., que os
passaportes diplomáticos chilenos levarão colada na página número/cinco,
uma plaqueta de cobre com o escudo do CHILE e a legenda “Ministério de
Relações Exteriores”.
Assim sendo, todo passaporte diplomático chileno que não leve a
mencionada plaqueta, deverá ser considerado falso.
68
A divulgação da informação, de fundo reservada é realizada por outro sócio do
Condor, no caso em questão, o Uruguai. Isso talvez fosse motivado pela necessidade de burlar
algum esquema de contra-informação da resistência chilena sobre o Ministério de Relações
Exteriores do governo Pinochet ou, então, porque houvesse alguma operação montada para
acontecer no Brasil e um aviso direto poderia colocá-la em risco. Muito mais explícita é esta
seqüência de documentos:
DOPS/RS
06/01/76
Assunto: Oscar Perez
Confidencial
PEDIDO DE BUSCA Nº 016/76/DBCI/DOPS/RS
1. DADOS CONHECIDOS
1.1. O nominado é uruguaio, sem outros dados de qualificação.
2. DADOS SOLICITADOS:
2.1. Informar se o nominado está preso na área.
2.2. Atendimento com brevidade.
2.3. Outros dados julgados úteis.
69
A resposta não demorou muito:
informam que é uma solicitação de ajuda por parte do governo uruguaio. Os títulos preenchidos no item Assunto
são variações de Elementos/Subversivos/Agentes do Comunismo procurados no Uruguai. Ver: Acervo da Luta
Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil / Departamento de Polícia
do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de: Caxias do Sul (SOPS/CX 1.1.54.2.1, SOPS/CX
1.1.55.2.1 e SOPS/CX 1.1.59.2.1); Cruz Alta (SPOPS/CA 1.1.19.2.1 e SOPS/CA 1.-1.22.2.1); Lagoa Vermelha
(SOPS/LV 1.1.799.8.3 e SOPS/LV 1.1.799.8.3).
68
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 15ª Região Policial / Delegacia Regional de Caxias do Sul/SOPS /
SOPS/CX - 1.1.48.2.1
69
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 7ª Região Policial / Delegacia Regional de Rio Grande/SOPS / SOPS/RG -
1.1.381.3.1
730
DOPS/RS / 7ª Delegacia Regional de Polícia
21/01/76
Assunto: Oscar Perez
Reservado
INFORMAÇÃO 03/76
Em atenção ao PB [Pedido de Busca] da Referência, transcrevemos o
Radiograma Nº 50/76, recebido da D.P. de Santa Vitória do Palmar, como
segue:
“INFORMAMOS QUE OSCAR PEREZ FOI PRESO PELO EXÉRCITO A
CERCA DE 2 MESES ATRÁS VG E ENTREGUE MEDIANTE RECIBO
LOGO EM SEGUIDA A POLÍCIA URUGUAIA PT SDS - BEL.
ALAMYR U. G. MADRUGA - DEL. POLÍCIA”
É a informação.
70
Dentre os documentos levantados e analisados do Fundo da Secretaria da Segurança
Pública, do Acervo da Luta Contra a Ditadura, os que se referem a Oscar Perez são os mais
explícitos quanto à conexão repressiva. E, considerando a solicitação anterior de dados a
respeito do citado, fica claro que o Exército agiu com autonomia e só informou sobre aquele
procedimento quando feito o pedido, o que permite inferir que essa era a dinâmica normal de
funcionamento frente a casos similares.
Outro documento que chama a atenção é um Pedido de Busca do Ministério do
Exército relacionado com suposta ajuda financeira do MLN-Tupamaros ao Coojornal (jornal
mensal de Porto Alegre que se insere dentro da denominada “imprensa nanica” de resistência
à ditadura brasileira).
71
Como contrapartida, o Coojornal “[...] deveria apresentar, em seus
artigos, periodicamente, uma imagem favorável dos tupamaros e contrária do Governo
Uruguaio”. O documento explicita uma complexa trama envolvendo o MLN, a jornalista
Zélia Leal, o exilado brasileiro João Quartin e o representante do Secretariado Internacional
de Juristas por la Amnistía en el Uruguay (SIJAU), da Federação Internacional dos Direitos
Humanos e do Movimento de Juristas Católicos, Jean Louis Weil. Como prova de tal
conexão, aponta-se que, em novembro de 1978, o Coojornal publicou, como matéria de capa,
uma reportagem sobre as mudanças políticas do MLN-T e que, no mês seguinte, saiu um
número especial sobre o seqüestro ocorrido em Porto Alegre e sobre a prisão de Flávia
Schilling no Uruguai.
72
70
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 7ª Região Policial / Delegacia Regional de Rio Grande/SOPS / SOPS/RG
- 1.1.210.2.1
71
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 7ª Região Policial / Delegacia Regional de Rio Grande/SOPS / Assunto:
Auxílio Financeiro dos Tupamaros ao “COOJORNAL”/ SOPS/RG - 1.1.210.2.1
72
Refere-se às matérias “Ex-Tupamaros” e “Terrible Libertad” de Zélia Leal, publicadas na edição de novembro
de 1978, p. 33-37. Uma jornalista que trabalhava no Coojornal na época citada afirmou ao autor que, de fato,
houve contribuição pecuniária que permitiu a impressão da edição que publicava a matéria sobre os tupamaros.
Naquele momento, a cooperativa responsável pelo jornal estaria enfrentando dificuldades de caixa. Quanto aos
731
Outro alvo de preocupação foi a constatação de que cidadãos uruguaios e argentinos
foragidos estariam sendo empregados em faculdades particulares. Pior: “Consta que
professores brasileiros estariam sendo preteridos pelos estrangeiros”.
73
Solicitada a
verificação de quem eram os professores estrangeiros que lecionavam naquelas instituições,
aparece uma listagem dos estrangeiros que desempenhavam funções de professor na
Fundação Universitária de Rio Grande (FURG).
74
Por outro lado, o monitoramento da
circulação de estrangeiros suspeitos fluía de um lado a outro da fronteira, através da rede de
informação:
Ministério do Exército
28/07/77
Assunto: MANUEL LOPES SORDI - VIAGEM DE URUGUAIO AO RS
PEDIDO DE BUSCA Nº 048 - S/2
1. DADOS CONHECIDOS
a. O médico uruguaio MANUEL LOPES SORDI, viaja freqüentemente ao
RIO GRANDE DO SUL, a fim de ministrar aulas a vários médicos
uruguaios, residentes nesse Estado.
b. O marginado foi aluno do DR. SICCA BLANCO, ex-professor da
Faculdade de Medicina do Uruguai, e que registra antecedentes.
c. É sabido que no RS trabalham alguns médicos exonerados no URUGUAI
por serem reconhecidamente comunistas.
d. O marginado poderá estar atuando como pombo-correio de alguma
organização subversiva.
2. DADOS SOLICITADOS:
a. Presença de atividades do nominado na área desse OI.
b. Remessa do nome dos médicos uruguaios residentes na área.
75
Outros documentos apontam para: a relação entre roubos de armas e a reorganização
de grupos guerrilheiros brasileiros ou uruguaios; suspeitas da expansão de um esquema de
infiltração de propaganda e de recursos financeiros de grupos “subversivos” do Uruguai para
tupamaros, a organização procurava há muito tempo um espaço na imprensa regional que ecoasse junto à
comunidade de exilados latino-americanos, e o Coojornal tinha um perfil de jornal de resistência e preocupado
com a temática latino-americana. Quanto à edição sobre o seqüestro, certamente que a empresa aproveitou
sobras de matérias sobre a ditadura uruguaia e mesclou tino comercial com postura ética e profissional ao
denunciar os fatos e o envolvimento da polícia gaúcha. Tal fato tinha todas as características para atrair a atenção
do Coojornal. Por isso, a suposição expressa no documento sobre uma campanha contra a ditadura uruguaia não
faz sentido. Efetivamente, denunciavam-se os regimes repressores do Cone Sul, a participação de agentes
brasileiros na conexão repressiva internacional e a existência de presos políticos brasileiros nos outros países
(enfatizando os casos de Flávia Schilling e Haroldo Collares). E se o seqüestro, ocorrido no mês da publicação
da matéria sobre os tupamaros, demandou uma edição especial sobre os acontecimentos de Porto Alegre e a
situação do Uruguai, resultou de fato jornalístico.
73
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 7ª Região Policial / Delegacia Regional de Rio Grande/SOPS / SOPS/RG -
1.1.245.
74
Idem, SOPS/RG - 1.1.275.2.1
75
Acervo da Luta Contra a Ditadura / Fundo: Secretaria da Segurança Pública / Subfundo: Polícia Civil /
Departamento de Polícia do Interior / 7ª Região Policial / Delegacia Regional de Rio Grande/SOPS / SOPS/RG
- 1.1.329.3.1
732
o Brasil, através dos serviços da Scandinavian Airlines System (SAS); denúncias da
existência de uma rota de fuga de cidadãos uruguaios (Santa Vitória do Palmar-Porto Alegre-
Rio de Janeiro); possibilidades de atentados perpetrados por uruguaios em regiões
fronteiriças; etc. A conexão Brasil-Uruguai também está presente na documentação do
Arquivo do Horror como, por exemplo, no caso de um informe brasileiro anunciando a
interceptação, por um radioamador brasileiro, de mensagens do MLN-tupamaros a respeito de
um carregamento de armas no porto paulista de São Sebastião, que seguiria por terra até a
fronteira uruguaia.
76
A dissolução da DINA, em 1977, e a relativa pressão da administração Carter frente
à questão dos direitos humanos na região
77
enfraqueceram a Operação Condor. Porém, ela
persistiu até o final do período das ditaduras e ainda incorporou outros países. No período das
transições democráticas, sobreviveram redes de coordenação entre as agências repressivas
que, em boa parte, permaneceram inalteradas. A detenção, o desaparecimento e o assassinato,
entre 1993 e 1995, do químico e ex-agente da DINA, Eugenio Berríos, no Uruguai, como já
foi demonstrado, constituiu uma clara demonstração da persistência dessa rede secreta, suas
conexões e dos esforços de encobertamento.
No ano de 2001, houve importante pronunciamento da justiça argentina diante da
petição encaminhada por seis vítimas da Operação Condor naquele país, entre as quais a
uruguaia Sara Méndez. O juiz Rodolfo Canicoba Corral acolheu o pedido e, após meses de
intensa análise das provas documentais e dos depoimentos colhidos anos antes pela
CONADEP, publicou o Exhorto
78
, onde reconheceu que a Operação Condor implicou na:
- Associação Ilícita entre os imputados de hierarquia política ou militar superior para
cometer delitos de seqüestro agravado, aplicação de tormentos, homicídio e
desaparição forçada de pessoas no território dos países envolvidos e mediante o uso
criminoso do aparato do Estado respectivo.
- Existência de uma ação criminosa contra a ordem constitucional de cada um dos
Estados membros, ao coordenar ações tendentes a suprimir e/ou manter a supressão -
no território de cada um deles - das instituições representativas, tendo-se apoiado
para isso de forma recíproca na continuidade dos regimes usurpadores.
76
“A sombra do condor”. Marcelo Bauer & Jaime Brener. IstoÉ, n° 1223, 10/03/93, p. 57.
77
Segundo John Dinges, “as mensagens em favor dos direitos humanos e da democracia eram abafadas em
comparação com os toques de clarim para deter o comunismo a qualquer custo. Os sinais estavam misturados, na
melhor das hipóteses. Eram cínicos e intencionalmente ambíguos, na pior delas”. DINGES, op. cit., p. 19.
78
Exhorto del juez Rodolfo Canicoba Corral para la captura de los militares José Nino Gavazzo, Manuel
733
- Existência de uma ação criminosa contra a soberania e a integridade territorial de
cada uma das partes integrantes do “Plano Condor”, tendente a suprimir, mediante
ações militares ou paramilitares clandestinas, o direito de asilo [constitucionalmente
reconhecido] para assegurar a impunidade.
- Ação criminosa para assegurar a impunidade dos crimes que constituíram o objetivo
do “Plano Condor”, o que se traduziu na desinformação sistemática e na destruição
ou ocultamento de provas, praticados pelos organismos estatais, coordenada em
escala internacional.
Diante disso, Canicoba Corral definiu o “Plano Condor” como sendo uma vasta
organização criminosa que, baseado num acordo do máximo nível político e militar
envolvendo os Estados argentino, chileno, uruguaio, paraguaio, boliviano e brasileiro, com
sede no Chile, atuou no Cone Sul visando o seqüestro ilegal de pessoas, sua desaparição,
morte e/ou tormento, sem importar limites territoriais ou nacionalidades das vítimas. Desse
acordo, surgiu o compromisso de obter, intercambiar e organizar informação de inteligência e
realizar operações conjuntas contra alvos definidos em todos os países membros, prevendo o
traslado das vítimas de um país a outro.
Em relação ao caso específico referente às denúncias de presença de comandos
uruguaios na repressão promovida na Argentina durante a ditadura, o juiz baseou-se em 26
depoimentos, correspondentes a vítimas uruguaias, coletados no marco do esforço da
CONADEP, em 1984. A partir do processamento de toda informação disponível até aquele
momento sobre a macro-articulação da Operação Condor, e sobre a percepção da participação
dos órgãos de segurança da ditadura uruguaia na comunidade exilada na Argentina, Canicoba
Corral resolveu:
1) Solicitar la concesión de la Detención Provisional o Preventiva con miras
a la Extradición de los Ciudadanos Uruguayos; José Nino Gavazzo, Manuel
Cordero, Jorge Silveira y Hugo Campos Hermida.
2) A los efectos sindicados en el punto que antecede; Líbrese Exhorto
Internacional al Sr. Magistrado con Jurisdicción y Competencia en materia
de Extradiciones Internacionales de la Ciudad de Montevideo; República
Oriental del Uruguay.
[...]
3) Ordenar la Captura Internacional de los Ciudadanos Uruguayos; José
Nino Gavazzo, Manuel Cordero, Jorge Silveira y, Hugo Campos Hermida,
con basamento en la totalidad de las manifestaciones expuestas en lo extenso
del resolutorio presente.
En consecuencia a lo ordenado en el párrafo antecedente; Líbrese oficio al
Cordero, Jorge Siveira y Hugo Campos Hermida. Buenos Aires, 21 de junho de 2001.
734
Sr. Titular del departamento INTERPOL de la Policía Federal Argentina,
con el objeto de hacer saber lo ordenado en el presente auto fundado, y más
precisamente en el punto dispositivo nro. 3° constitutivo del presente.
4) Notifíquese, Protocolísece y Firme que sea
Cúmplase.
Ante mi.
Essa primeira condenação de militares uruguaios pela sua participação em ações
vinculadas à Operação Condor, considerada organização criminosa resultante de acordo do
máximo nível político e militar dos Estados envolvidos, é o reconhecimento da
internacionalização do TDE e da sua condenação. Considerando a lógica da Operação Condor
e o período em que formalmente se iniciaram seus operativos, pode-se afirmar que quase
todos os uruguaios que sofreram no exterior atos de seqüestro, assassinato e/ou
desaparecimento foram vítimas de uma coordenação repressiva que se alimentou das
experiências anteriores e se abrigou dentro do guarda-chuvas das diretrizes emanadas das
reuniões que delinearam a internacionalização da coordenação repressiva dos regimes de SN.
8.4 - NO “OLHO DO FURACÃO”: URUGUAIOS REPRIMIDOS NO
EXTERIOR, ESTRANGEIROS REPRIMIDOS NO URUGUAI
Com o golpe de Estado promovido por Bordaberry e pelas Forças Armadas, a
Argentina se tornou um santuário para milhares de perseguidos políticos uruguaios. Outros
tantos que estavam no Chile de Allende também fugiram para lá, junto com milhares de
chilenos, após o golpe de Pinochet. A comunidade de exilados orientais na Argentina
aproveitou a curta e tênue primavera democrática deste país para multiplicar contatos
políticos e desenvolver intensa campanha de denúncia contra as arbitrariedades do regime
uruguaio. Entretanto, a violência contra eles iniciou-se antes do golpe da Junta Militar, na
violenta voragem que marcou o governo de Isabel Perón e onde os esquadrões de extrema
direita da Triple A semeavam o pânico entre os setores de esquerda locais e os latino-
americanos exilados.
79
79
De 1974 até o advento da ditadura argentina, foram assassinados onze cidadãos uruguaios, outros cinco foram
desaparecidos (inclusive uma criança). Alguns detidos foram enviados ao Uruguai e há o caso dos cinco
integrantes do MLN detidos-desaparecidos na Argentina que apareceram assassinados no Uruguai (“crime de
Soca”) como fato diversionista vinculado ao assassinato do coronel Ramón Trabal em Paris (Cf. notas 71 a 73 do
capítulo 6). Nesse período, já se registrava a presença de organismos de segurança uruguaios no vizinho país
platino.
735
Mesmo assim, até março de 1976, Buenos Aires parecia ser o lugar mais adequado
para continuar a luta de resistência contra a ditadura uruguaia. Havia uma tradição histórica de
presença de exilados de um país no outro e que sempre havia sido respeitada desde que não
houvesse envolvimento com a dinâmica da política interna. Por outro lado, Buenos Aires
comportava, nesses anos, uma significativa população de orientais. Estavam aqueles que
haviam sido obrigados a abandonar o país por questões de ordem político-ideológica diante do
endurecimento do regime; destes, muitos haviam conseguido o estatuto de refugiado ou eram
exilados legalmente estabelecidos, mas havia outros tantos que permaneciam em situação de
ilegalidade. E existia uma grande massa de uruguaios que deixara o país em busca de
melhores condições econômicas de sobrevivência; parte importante desse fluxo migratório
estabelecera-se na Argentina.
Tudo isso tornava fluida e próxima a conexão entre a sociedade uruguaia e a
comunidade radicada na Argentina. O intercâmbio turístico, a procura de opções de trabalho,
a reconhecida relação cultural e um acentuado consumo de programas de televisão e de
jornais argentinos tornavam os avatares da dinâmica política e social argentina, sobretudo de
Buenos Aires, bastante conhecidos da sociedade uruguaia. Durante o período da ditadura,
eram muitas as famílias uruguaias que tinham conhecidos no país vizinho. De certa forma,
Buenos Aires tornara-se um pequeno microcosmo uruguaio. Se tal afirmação parece
exagerada, cabe lembrar que, naquela época, provavelmente, a capital argentina era a cidade
que tinha o maior número de uruguaios, fora Montevidéu. Toda esta apreciação se torna
necessária para poder dimensionar melhor o poderoso impacto que teve, tanto na Argentina
quanto no Uruguai, a ação repressiva deste país contra a coletividade oriental afixada no
território argentino.
A perseguição de exilados iniciou antes do golpe de Estado que impôs a Primeira
Junta Militar, em 1976. De fato, a deterioração da mediação política e da presença
institucional durante o período de Isabel Perón atestou o crescimento da atividade paramilitar
centralizada nos esquadrões de extermínio da Triple A, vinculados ao ministro de Bem-Estar
Social, José López Rega. Os alvos dessa violência eram a esquerda argentina em geral - a
peronista em particular - e, também, os exilados latino-americanos - sobretudo as
comunidades uruguaia e chilena. Pode-se dizer, entretanto, que a anuência dessa ação tinha
sido dada pelo próprio Juan Domingo Perón antes de falecer. Perón havia esclarecido ao
subdiretor da CIA, general Vernon Walters, que os temores de Washington de uma
radicalização à esquerda do seu governo não tinham o menor fundamento; pelo contrário, o
presidente da Argentina estava empenhado em conter os grupos radicais. O Departamento de
736
Estado confirmou que, desde março de 1974,
[...] Perón autorizó a la Policía Federal Argentina y a los servicios de
inteligencia argentinos a cooperar con la inteligencia chilena en la detención
de los extremistas chilenos exiliados en la Argentina. Arreglos similares
habían sido dispuestos con los servicios de seguridad de Bolivia, Uruguay y
Brasil. Esta cooperación entre las fuerzas de seguridad aparentemente
incluye la autorización para que funcionarios extranjeros operen dentro de la
Argentina contra sus connacionales exiliados que utilizan ese país como base
para operaciones de insurrección. Esta autoridad supuestamente incluye el
arresto de tales exiliados y su traslado al país de origen sin recurrir a
procedimientos legales.
80
Portanto, clara alusão das práticas que depois sobrepujarão o controle civil e,
definitivamente, carcomirão uma democracia em acelerado processo de decomposição.
A coordenação da atividade repressiva dos comandos uruguaios na Argentina esteve
a cargo da OCOA
81
e, secundariamente, do SID;
82
esta iniciara atividades naquele país antes
do golpe de 1976. Desde o início, contou com ótimas relações e sólida colaboração da SIDE
argentina e da Polícia Federal local, que forneceram apoio logístico em comunicações, locais
clandestinos de detenção e de identificaçào, automóveis, uniformes e documentação. As
denúncias no exterior de Enrique Rodríguez Larreta
83
e de Washington “Perro” Perez,
sobreviventes da ação repressiva, permitiram explicitar a dinâmica e a estrutura de
Automotores Orletti, a coordenação repressiva uruguaio-argentina e o protagonismo dos
comandos uruguaios do OCOA e da SID.
Um dos fatos que adquiriu maior relevância foi o seqüestro e posterior assassinato do
ex-Presidente da Câmara de Deputados do Uruguai e representante do Partido Blanco, Héctor
Gutiérrez Ruiz, e do senador da Frente Ampla e ex-ministro do governo Gestido, Zelmar
Michelini. Seqüestrados no 18 de maio de 1976, seus cadáveres apareceram três dias depois
dentro de um automóvel, junto com o de dois ex-tupamaros, o casal William Whitelaw e
Rosario Barredo, como forma de forçar conexões entre aqueles e o MLN. Os três filhos de
Rosario Barredo estiveram seqüestrados durante oito dias e acabaram libertados sob a pressão
da imprensa e da opinião pública.
Os seqüestros de Michelini e Gutiérrez Ruiz ocorreram de forma ostensiva.
80
Summary of Argentine Law and Practice on Terrorism. Documento desclassificado do Departamento de
Estado. Citado por ANDERSEN, Martin. Dossier secreto. El mito de la “guerra sucia”. Buenos Aires:
Sudamericana, 2000. p. 135.
81
O pessoal da OCOA usava códigos de identificação com o nome Oscar (Oscar 1, Oscar 2, etc.).
82
Fundamentalmente, a denominada División 300 tinha a peculiaridade de seus membros se distinguirem pela
numeração do 301 ao 350, correspondendo a ordem crescente aos cargos de maior importância hierárquica. Por
exemplo, o 301 era o tenente coronel Juan Rodríguez Buratti; o 302, major José “Nino” Gavazzo; 303, major
Manoel Cordeiro; 304, major Enrique Martínez; 305, major Ricardo Medina; etc.
737
Entretanto, não apareceu nenhum policial como tampouco responderam as guardas de
diversas embaixadas e consulados nas proximidades dos locais dos acontecimentos. À luz do
que se conhece hoje sobre os objetivos e a dinâmica da Operação Condor, ficam claras as
motivações para a execução dos parlamentares. Além de serem figuras emblemáticas do exílio
oriental e de transcendência na campanha internacional de denúncias contra os abusos de todo
tipo cometidos pela ditadura, seus assassinatos visavam projetar o terror e a insegurança sobre
todos os exilados latino-americanos e os setores chaves da própria sociedade argentina. Se,
para a coletividade uruguaia, representavam perdas irreparáveis, para a resistência argentina e
o exílio latino-americano em geral, o recado era duplamente claro: ninguém tinha imunidade
diante do TDE, e a Argentina, definitivamente, havia deixado de ser território seguro.
84
Michelini e Gutiérrez Ruiz foram assassinados em ações caracterizadas pelo estardalhaço e
pela ostentação de impunidade, como se fosse na vitrine de uma loja no centro de Buenos
Aires, para que não houvesse dúvida sobre a inexistência de limites da ação repressiva. Com
esse duplo crime, pretendia-se silenciar o exílio uruguaio, obrigando-o a renunciar a toda
manifestação política e a abandonar o inseguro Cone Sul.
Tudo indica que o assassinato de Michelini e de Gutiérrez Ruiz foi tramado pelos
setores mais duros do regime uruguaio. No ano de 1976, discutia-se a sucessão do presidente
Bordaberry e a possibilidade de normalizar a vida institucional do país. Um grupo de
tecnocratas e políticos vinculados ao entorno do ministro de Economia, Alejandro Vegh
Villegas, desejavam uma redemocratização com restrições. Para tanto, Vegh Villegas chegou
a entrevistar-se, na Argentina, com Ferreira Aldunate, também exilado desde o golpe de
Estado no Uruguai, com Gutiérrez Ruiz e Michelini; tais conversações desagradaram aos
generais da linha dura (Prantl, Christi, Paulós, etc.). Alvos exemplares para o Condor,
Michelini e Gutiérrez Ruiz teriam sido executados justamente para abortar as tentativas de
negociação.
85
Ferreira Aldunate sobreviveu por detalhes; tendo sido procurado pelos
seqüestradores, conseguiu asilar-se a tempo em uma embaixada.
Uma outra motivação para o assassinato dos legisladores (que não se contrapõe à
anterior), decorre do fato de que dez dias antes do seqüestro, o chanceler da ditadura uruguaia,
o civil Juan Carlos Blanco, reuniu-se com seu par argentino, contra-almirante César Augusto
Guzzetti, acusando aqueles parlamentares de terem conexões diretas com os tupamaros. Tal
83
Ver capítulo 7, item 7.3.
84
Poucos dias depois, seria assassinado outro ilustre exilado, o ex-presidente da Bolívia, general Juan José
Torres, mais uma grande referência do exílio latino-americano.
85
TROBO, Claudio. Asesinato de Estado. ¿Quién mato a Michelini y Gutiérrez Ruiz? Montevideo: Ediciones
del Caballo Perdido, 2003.
738
acusação, na Argentina de Videla, correspondia, na prática, a uma verdadeira condenação à
morte. A presumível conexão ajuda a entender a presença dos cadáveres do casal Whitelaw-
Barredo. Blanco teria sugerido também que era conveniente confinar em local distante a
Michelini e Ferreira Aldunate. Mas havia uma outra questão que preocupava ao governo de
Bordaberry. Era preciso impedir que Michelini e Gutiérrez Ruiz denunciassem diante do
Congresso dos EUA a violação de direitos humanos no Uruguai.
86
A ditadura, em fins de
1975, recebera informação do próprio embaixador estadunidense, Ernest Siracusa, de que
Michelini solicitara, junto à embaixada dos EUA na Argentina, um visto de entrada para
viajar àquele país. A chancelaria reagiu rapidamente anulando os passaportes dos
parlamentares e comunicando a medida ao governo argentino. Com isso, evitava que
pudessem viajar aos EUA e abandonar a Argentina.
Um mês depois, Ferreira Aldunate, sobrevivente da ação que vitimou seus colegas
parlamentares, denunciou a situação do Uruguai no Congresso dos EUA e apontou críticas ao
que entendia ser apoio explícito da administração estadunidense à ditadura uruguaia:
[...] Debe ser muy irregular, para decir lo menos posible, que un embajador
en un país, otro que no es en el cual una solicitud de visa se está efectuando,
informe al gobierno de ese segundo país de tal hecho. El señor Michelini
solicitó su visa en Argentina, y fue el embajador americano en Uruguay
quien corrió a informar al gobierno uruguayo que la visa iba a ser otorgada
porque no había razones para negarla. [...] El gobierno uruguayo tomó los
documentos de viajar del señor Michelini y no le permitieron huir hacia la
seguridad. Se aseguraron así de que lo pudieran asesinar. La evidencia de la
intervención de los Estados Unidos en este caso proviene de una carta del
departamento de Estado.
87
Com o teor desse discurso, Ferreira Aldunate forneceu munição ao deputado
democrata Edward Koch para elaborar um projeto de lei que suprimisse a ajuda militar à
ditadura uruguaia. Enquanto o projeto tramitava, o embaixador Siracusa informava sobre o
mesmo às Forças Armadas do Uruguai, sugerindo alguma iniciativa de grandes proporções
para reverter a tendência de aprovação daquele projeto. As autoridades uruguaias reagiram
chamando de infundadas as denúncias apresentadas por Ferreira Aldunate e alegaram que o
país ainda era vulnerável à ameaça do comunismo internacional. A cartada final da ditadura
foi apresentar-se como vítima de nova agressão, inventando a “Operação Invasão”, cuja farsa
86
“El canciller de los verdugos. Con la conciencia en Blanco.” Matéria de Titina Núñez. Brecha, 25/10/02. p. 6.
Também “Una votación dividida en la cúpula de la dictadura”. Matéria de Samuel Blixen. Brecha, 17/05/02, p.
6.
87
Trechos do discurso de Ferreira Aldunate diante do Congresso dos EUA em junho e julho de 1976. In:
ALFONSO, Álvaro. Jugando a las escondidas. Conversaciones secretas entre tupamaros y militares.
Montevideo: Altamira, 2004. p. 86.
739
acabou se tornando pública algum tempo depois e que não evitou a aprovação do Congresso
norte-americano da proposta apresentada por Koch.
Há uma polêmica aberta, em relação aos assassinatos de Michelini, Gutiérrez Ruiz e
o casal Whitelaw-Barredo, quanto à responsabilidade última dos mesmos. Blixen, em mais de
uma oportunidade, escreveu que foram os civis Juan María Bordaberry, Juan carlos Blanco e
a cúpula militar de então os responsáveis pelo destino das vítimas, pois eles representavam o
máximo centro de decisões político-militar. Logo, foi um crime de Estado.
88
No processo
formalizado pelas famílias dos parlamentares, aponta-se os nomes dos principais implicados
de cada parte e o fato de ter sido uma operação repressiva conjunta. Por outro lado, o filho de
Michelini, o também senador Rafael Michelini, durante anos juntou pistas e depoimentos que
indicam que a responsabilidade da execução foi das forças de segurança do Uruguai.
Tudo indica que o seqüestro antecederia o traslado para o Uruguai, uma vez
divulgada e documentada a conexão dos legisladores com o MLN. Mas, no dia seguinte ao
seqüestro, o jornal La Opinión publicou uma carta escrita por Michelini em 5 de maio, onde
afirmava que se aparecesse detido “en algun lugar del territorio uruguayo, es porque he sido
llevado en forma arbitraria, inconsulta y forzada.” A publicação do temor do senador de
provável seqüestro inviabilizou o plano e deve ter provocado mudança de rumos. Houve uma
decisão pela execução, confirmada com a descoberta dos quatro corpos em 22 de maio.
Segundo informações colhidas junto à Comissão Investigadora da Câmara de
representantes uruguaia, em 1985 (logo após o fim da ditadura), teria circulado, em âmbito
restrito, uma carta sem assinatura com informações sigilosas sobre uma reunião que decidiu o
destino de Michelini e Gutiérrez Ruiz. Da elaboração da carta, teriam participado o presidente
da República, os ministros do Interior e de Defesa e os três comandantes em chefe das Forças
Armadas, (ou seja, os membros do Conselho de Segurança Nacional), além de um coronel
argentino, que esperava o comunicado final. O teor dessa carta foi apresentado pelo então
senador Alberto Zumarán e pelo arcebispo de Montevideo, monsenhor Partelli; segundo eles,
outras proeminentes figuras públicas também a teriam recebido. Nas palavras de Zumarán, a
carta dizia que
[...] en esa reunión se habría decidido la muerte de Gutiérrez Ruiz y
Michelini y que habría contado con el voto contrario del presidente de la
República y del Comandante en jefe de la Fuerza Aérea, y el voto favorable
de los demás miembros que estaban en esa reunión.
89
88
“Zelmar y el ‘Toba’, crímenes de Estado”. Brecha, 16/04/04, p. 40. Também: TROBO, op. cit.
89
As pessoas presentes na reunião eram: presidente da República, Juan María Bordaberry; ministro do Interior,
general Hugo Linares; ministro de Defesa, Walter Ravena; comandante do Exército, general Julio César Vadora;
740
A informação sobre a suposta votação era do conhecimento de Wilson Ferreira
Aldunate, logo após os assassinatos ocorridos. Seu filho, Juan Raúl Ferreira, corroborou que o
então senador exilado referiu-se à votação no COSENA em uma conferência de imprensa na
sede da própria ONU, em junho de 1976. Segundo Ferreira, “Wilson decía que perdimos 4 a
2”, referindo-se ao resultado da votação secreta.
90
Em 2002, quando essa informação veio a
público, procurado para esclarecer o fato, o ex-presidente e ex-ditador Bordaberry foi
taxativo: “Quien piense que voté matar a Michelini y Gutiérrez Ruiz ‘es un hijo de puta’.”
91
Uma conseqüência importante do assassinato de Michelini e de Gutiérrez Ruiz foi
que o alcance do impacto internacional do crime extrapolou as previsões mais pessimistas
feitas pela coordenação repressiva. Houve também importante desgaste político do governo
argentino que, entretanto, na sua essência, não realizou correção de rota; pelo contrário, esse
crime parecia anunciar o que viria a seguir. Mas houve uma mudança significativa na
metodologia repressiva utilizada até então contra os cidadãos uruguaios perseguidos (fossem
refugiados ou legalmente radicados). O assassinato político, método que parecia gerar
comoção e denúncia imediata, foi substituído pela desaparição forçada.
Concretamente, entre setembro de 1974 e março de 1979, desapareceram mais de
140 cidadãos uruguaios na Argentina. Inúmeros testemunhos dão conta da ativa colaboração
das forças de segurança argentinas para com suas similares uruguaias, nas operações em que
desapareceram aqueles cidadãos. A imensa maioria foi detida quando existiam regimes
ditatoriais nos dois países, o que, evidentemente, favoreceu a realização de operações
conjuntas das forças repressivas de ambos em seus respectivos territórios.
Segundo o SERPAJ,
92
a maior parte dos uruguaios desaparecidos na Argentina
haviam abandonado o país de origem por razões políticas; muitos haviam sido processados ou
eram requeridos pela Justiça Militar enquanto outros haviam recebido ordem de captura.
Alguns haviam recebido o estatuto de refugiados por parte da ACNUR. A maioria havia
desenvolvido atividades políticas ou sindicais no Uruguai e poucos se vinculavam a
movimentos sociais ou organizações políticas na Argentina. Alguns foram detidos sem
motivo aparente ou por serem parentes de pessoas visadas. Scott Myers diz que vários
integrantes do MLN-tupamaros haviam entrado clandestinamente na Argentina,
incorporando-se, no interior, à guerrilha, dentro, possivelmente, do acordo que havia
comandante da Armada, vice-almirante Víctor González Ibargoyen e chefe da Força Aérea, brigadeiro Dante
Paladini.
90
“Wilson decía que perdimos 4 a 2”. La República, 25/05/02, p. 8.
91
La República, 21/05/02, p. 4.
741
originado a Junta Coordenadora Revolucionária. Embora não apresente dados, conclui que
nenhum guerrilheiro tupamaro capturado como integrante do ERP (argentino) sobreviveu.
Informações a seu respeito eram parte do intercâmbio de inteligência que ocorria dentro do
marco da Operação Condor.
93
A oficina mecânica Automotores Orletti foi a fachada que escondeu o centro
clandestino de detenções e chupadero, além de ser a principal base de operações dos
comandos repressivos uruguaios que agiram na Argentina, sob a cobertura da coordenação
repressiva binacional. Sobreviventes relatam que a palavra em código que permitia abrir a
pesada porta metálica que permitia o acesso dos veículos era Sésamo (pertinente alusão à
caverna dos ladrões da história de Ali Babá). Alguns autores consideram que foi a maior base
do Condor naquele país; latino-americanos de outras nacionalidades também estiveram ali
detidos, e vários acabaram desaparecidos. A autoridade responsável pelo local, em última
instância, foi o general Otto Paladino, mas o chefe direto foi o paramilitar Aníbal “Jovato”
Gordon, secundado pelos oficiais do SIDE Eduardo Rulfo e Juan Rodríguez. Automotores
Orletti funcionou entre maio e novembro de 1976 (talvez até o início de 1977).
Os latino-americanos que ali estiveram seqüestrados foram “interrogados” por
militares da mesma nacionalidade. Mas Orletti funcionou, principalmente, como base de
operações da repressão uruguaia e centro de conexão entre a SIDE argentina e a OCOA
uruguaia, sob o comando de Gavazzo, responsável pela maior parte dos seqüestros de
uruguaios. Outros agentes uruguaios que atuaram em Automotores Orletti foram os majores
Manuel Cordero, Enrique Martínez, Jorge Silveira e o oficial de inteligência Héctor Campos
Hermida.
94
Dezenas de uruguaios passaram por esse centro clandestino. Muitos foram
desaparecidos, outros foram devolvidos ao Uruguai (“Operação Invasão”); ali estiveram
diversas crianças que acabaram apropriadas, e dessa base partiram os comandos que
ultimaram os parlamentares Michelini e Gutiérres Ruiz.
Em novembro de 1976, um casal argentino conseguiu fugir.
95
Pouco tempo depois,
diante dos riscos de que o local fosse descoberto (fato que ocorreu quando os fugitivos
chegaram ao exterior e efetivaram a denúncia), Automotores Orletti foi desativado e seus
prisioneiros “trasladados” (geralmente, eufemismo de desaparecidos).
96
Outros locais, então,
foram colocados a disposição da coordenacão repressiva platina. Assim ocorreu com outro
92
SERPAJ, op. cit.
93
MYERS, Scott. Los Años Oscuros 1967-1987. Montevideo: Editorial Latina, 1997. p. 147.
94
REY PIUMA, Daniel. Los crímenes del Río de la Plata. Córdoba: El Cid Editor, 1984. p. 36.
95
Cf. nota 232 do capítulo 7.
96
SILVA, Alberto. 1973 - 27 de junio - 2003 para no olvidar el golpe de estado para muestra basta un
742
chupadero, o Pozo de Banfield, onde parte do prédio estava reservado para as vítimas
uruguaias, sob cuidados de militares da OCOA. Também no Pozo de Quilmes houve detenção
clandestina de uruguaios posteriormente desaparecidos. Tanto os agentes a cargo dos detidos
quanto os “interrogadores” eram de nacionalidade uruguaia.
97
Duas grandes ondas de seqüestros e desaparições de uruguaios aconteceram entre
junho e setembro de 1976, visando desarticular as organizações de oposição que estavam sob
ataque no Uruguai. Entre junho e setembro, mais ou menos 70 pessoas foram seqüestradas, a
maioria pertencente ao Partido por la Victoria del Pueblo (PVP) cujas bases foram
desarticuladas. Uma outra onda ocorreu no segundo semestre de 1977 e foi dirigida,
fundamentalmente, contra os membros dos Grupos de Acción Unificada (GAU); depoimentos
de sobreviventes argentinos
98
indicam que as vítimas dessa onda de seqüestro estiveram
concentrados nos centros de detenção e desaparecimento conhecidos como Pozo de Banfield e
Pozo de Quilmes.
Um pequeno número de uruguaios seqüestrados na Argentina reapareceu nas prisões
do Uruguai. Cabe mencionar que, desde meados de 1974, os serviços de inteligência uruguaia
já atuavam livremente em território argentino, reprimindo os exilados. Simultaneamente à
repressão contra os exilados, membros das organizações políticas citadas também eram
seqüestrados em Montevidéu; entretanto, enquanto a grande maioria destes eram colocados à
disposição da Justiça Militar, processados e legalizados na condição de presos, muitos dos que
“caíram” na Argentina foram transformados em desaparecidos definitivos. É possível que o
governo uruguaio, após a pouco crível história da “Operação Invasão” de 1976, não quisesse
mais correr os riscos de uma nova transferência secreta de prisioneiros, evitando assim, ser
desmoralizado
99
. Ao fazer esta opção, teve responsabilidade direta ou indireta sobre o destino
botón de la A a la Z. Montevideo: La Rueda de Amargueando, 2003. p. 50.
97
Anexo de datos históricos referidos a la desaparición de Carolina Barrientos de Carneiro da Fontoura.
Disponível em: <http://www.tau.org/familiares/Barrientos-de-Carneiro.rtf>. Acesso em 17/07/2003.
98
Depoimento de Washington Rodríguez. “[...] no Pozo de Quilmes [...] vejo um grupo de 22 uruguaios presos.
Os interrogadores eram uruguaios, oficiais pertencentes à OCOA, o interrogatório girava em torno de atividades
no Uruguai. Os próprios guardas nos disseram que os uruguaios estavam a cargo do pessoal militar dessa
nacionalidade.” CONADEP, op. cit., p. 196.
99
Carlos Amorín relata que, quando o major Gavazzo voltou de Montevidéu com a notícia de que mais de 20
uruguaios seqüestrados seriam repatriados (para utilizá-los na planejada “invasão”), houve dura discussão entre
os oficiais de ambas nacionalidades que operavam conjuntamente em Automotores Orletti. Os argentinos
exigiam que se respeitasse um acordo anterior entre ambas partes de que não haveria sobreviventes.
Consideravam a atitude do governo uruguaio um grave e ameaçador precedente que poderia constituir-se em
futuro risco para a segurança (impunidade e imunidade) dos operativos. AMORÍN, Carlos. Sara - Buscando a
Simón. Montevideo: Ediciones de Brecha, 1996. p. 44. O ex-refém Jo Mujica avalia que as Forças Armadas
uruguaias visavam destruir psicologicamente os inimigos em cativeiro. Mas isso era bem diferente do que
ocorria na Argentina. Mujica lembra que, durante uma visita de oficiais argentinos em um quartel de Rocha onde
ele e outros chefes tupamaros estavam presos na condição de reféns, aqueles comentaram a um capitão local:
“tipos como éste, allá en la Argentina, estarían diez metros bajo agua.” CAMPODÓNICO, Miguel Angel.
743
dos opositores que agiam na Argentina.
100
Quanto à existência de um plano “subversivo” de invasão do país, o fracasso do
convencimento da opinião pública interna e externa esvaziou a tentativa de “criar” um fato
que reforçasse o argumento de manter a militarização da sociedade, e a escalada repressiva
diante da reedição da ameaça do (novo) “inimigo interno”. Como a encenação não surtiu o
efeito desejado, a ditadura não pode aproveitar a experiência. Segundo o SERPAJ, não mais
podendo legalizar os uruguaios seqüestrados em Buenos Aires pela repressão uruguaia sem
expor a estrutura ilegal, clandestina e terrorista, não restou à ditadura outra opção a não ser o
desaparecimento da oposição residente no país vizinho.
101
As autoridades uruguaias responsáveis pelo combate à “subversão” sempre negaram
sua vinculação com seqüestros, assassinatos e desaparecimentos de compatriotas na
Argentina. À medida que depoimentos e relatos de sobreviventes se tornaram públicos, tais
autoridades tentaram direcionar a responsabilidade sobre o destino final das vítimas ao
governo argentino, inclusive alegando que as metodologias repressivas das experiências
internas de cada país eram motivo suficiente para confirmar que a repressão uruguaia não
exterminava. Entretanto, o fechamento de Automotores Orletti colocou uma delicada questão:
o que havia ocorrido com os uruguaios que haviam sido vítimas de seqüestro depois do
traslado dos participantes da “Operação Invasão” e que haviam sido vistos, segundo
depoimentos de outros detidos, no local? Os militares uruguaios sempre afirmaram que foram
as autoridades argentinas que decidiram tal impasse (la disposición final). É importante
considerar que tal decisão ocorreu poucas semanas após o envio do grupo da “invasão” e que
os militares argentinos haviam concordado em entregar os 22 detidos-desaparecidos, porque
acreditavam que a ditadura uruguaia havia decidido sua disposición final, ou seja, sua
execução.
O jornalista Roger Rodríguez, do jornal La República, indica que, segundo uma
importante fonte vinculada a repressão argentina,
102
o último grupo de uruguaios que
desapareceu em Automotores Orletti (cerca de 27 indivíduos), foi entregue às Forças Armadas
uruguaias e levado ao país de origem. Com certa indignação, a fonte teria pronunciado que:
De Uruguay a los argentinos nos han cobrado todo y mucho ha salido a luz.
Pero que no nos adjudiquen esas desapariciones. A los que no murieron en
Mujica. Montevideo: Fin de Siglo, 1999. p. 127.
100
SERPAJ, op. cit, p. 294.
101
Idem.
102
É a mesma fonte que deu pistas concretas para encontrar a Simón Riquelo e à neta do poeta Juan Gelman,
apropriados quando crianças. Soube depois que era Eduardo Ruffo, o mesmo agente da SIDE argentina que se
havia apropriado da menina uruguaio-argentina Carla Rutilo, desaparecida, assim como os pais, na Bolívia.
744
Orletti nosotros los devolvimos. No sabíamos que los del primer viaje
estaban vivos, así que cuando cerraba Orletti se planificó otro viaje grande
en el que se incluyó a todos los que quedaban, incluso cinco argentinos. No
participé en la entrega, pero creo que a esos últimos tienen que buscarlos en
Uruguay.
103
Em outra matéria,
104
Roger Rodríguez registrou nova entrevista com o mesmo
informante, o qual reafirmou que as vítimas foram embarcadas no Aeroparque de Buenos
Aires, durante a noite do domingo 4 e a segunda-feira 5 de outubro, em uma operação
dirigida pelo major Gavazzo. Diante desses dados, Rodríguez estabeleceu algumas hipóteses:
- esses uruguaios (considerados, até então, como desaparecidos na Argentina) não
receberam disposición final naquele país, o que ajuda a explicar o fato das equipes de
antropologia forense argentina nunca terem identificado os restos de nenhum deles.
- dificilmente teriam sido vítimas da metodologia dos “vôos da morte” (jogar as vítimas
nas águas do Río de la Plata ou no Oceano Atlântico). Um militar que prestou
depoimento à Comisión para la Paz afirmou que o Uruguai não possuía, na época em
que foram perpetrados esses crimes, aviões tipo Hércules, que permitiam lançar pessoas
em pleno vôo (como fez a repressão argentina). A frase do militar uruguaio foi taxativa:
“En Uruguay estaban los Fairchild y, si uno abre su puerta, el avión se cae.”
105
- a opção restante é a de que aquelas pessoas chegaram ao Uruguai e então receberam a
disposición final, o que permite pensar na existência de cemitérios clandestinos, dando
mais argumentos para as suspeitas de que em alguns quartéis utilizados como centros
de detenção clandestina houve remoção de terra após o fim da ditadura.
106
Em relação a essas informações, Samuel Blixen
107
acrescenta que, caso se confirme
o segundo vôo para o Uruguai, caem por terra, definitivamente, as argumentações sustentadas
103
La República, 17/10/02, p. 2 e 3.
104
RODRIGUEZ, Roger. “El ‘informante’ que permitió encontrar a Simón Riquelo confirma el último vuelo de
los uruguayos de Orletti”. Brecha, n° 851, 09/06/02.
105
Idem. Esta é uma questão em aberto. Há outra informação que afirma que a aeronâutica dispunha sim de um
avião equipado com o dispositivo que permitia abrir a porta durante o vôo.
106
Ver: OLIVEIRA, Raúl; MÉNDEZ, Sara. Secuestro en la embajada. El caso de la maestra Elena
Quinteros. Montevideo: Edición de la Cátedra Tota Quinteros/Fundación Rosa Luxemburgo, 2003. Também:
PANARIO, Daniel; GUTIÉRREZ, Ofelia; ONEGA, Elizabeth. Estudio geoarqueológico de Batallón n
o
13.
Recuperando la memoria. Montevideo: Asociación de Docentes de la Universidad de la República ADUR-
FDUU, 2004.
107
BLIXEN, Samuel. “Expedientes cuidadosamente perdidos”. Publicada originalmente em Brecha. Rebelión,
745
durante décadas pelas Forças Armadas após o desvelamento da farsa da “Operação Invasão”.
Apesar do revés sofrido, haviam aproveitado a divulgação dos repatriados de Orletti como
“prova” de que os comandos que agiam em Buenos Aires, em realidade, haviam “resgatado”
e salvado da morte os prisioneiros uruguaios que estavam nas mãos dos “assassinos
argentinos”. Era a sugestão que se deixava em aberto sobre o destino da outra leva de Orletti;
com isso, defendiam o argumento de que, no Uruguai, não havia ocorrido execução
sistemática de presos.
108
A confirmação da existência desse segundo vôo
109
pode ajudar a entender, mesmo
que em parte, a essência do “pacto de silêncio” entre os militares envolvidos com a
coordenação repressiva da Operação Condor, além de fragilizar sensivelmente os argumentos
clássicos de que “cumpriram seu dever”, de que a morte de detidos foi ocasionada pelo fato
de que “a alguno se le fue la mano en el interrogatorio”, ou de que a responsabilidade das
desaparições foi da repressão argentina.
110
Um capítulo a parte no tema da coordenação repressiva concerne ao desaparecimento
e à apropriação de crianças.
111
Dezesseis crianças uruguaias foram seqüestradas na Argentina
e supõe-se que outras três possam ter nascido em cativeiro; por outro lado, duas meninas
argentinas foram desaparecidas no Uruguai. O seqüestro de crianças uruguaias na Argentina
seguiu a mesma lógica dos casos semelhantes que lá ocorreram. Contudo, em quase todos os
casos, houve uma ação conjunta de seqüestradores de ambos os países. Apesar de um dos
principais responsáveis pela atuação dos comandos uruguaios no país vizinho, o major José
Nino Gavazzo, tivesse afirmado à detida Sara Méndez que “esta guerra no es contra los
03/02/02.
108
Idem.
109
No final de 2004, veio a público o Informe de Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos
com o título A todos ellos. O mesmo se constitui em um valioso instrumento de informação atualizada sobre os
casos de mortes e desaparecimentos produzidos pelo Terror de Estado uruguaio, incorporando os dados das
diversas iniciativas de esclarecimento, desde o seminal Uruguay: Nunca Más até o relatório da Comisión para
la Paz. A organização de Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos incorpora, nas
informações correspondentes a todas as vítimas de Automotores Orletti que fazem parte do provável segundo
vôo ao Uruguai, o seguinte acrécimo: DESAPARECIDO. Existen indicios que fue trasladado a Uruguay.
CONDOR.
110
Novas informações levantadas pela imprensa, nos primeiros meses de 2005, praticamente confirmam a
existência de um segundo vôo e apontam para a possibilidade de que tenha ocorrido um terceiro envio de
detidos-desaparecidos de Buenos Aires a Montevidéu. Ver as seguintes matérias do jornal La República: “En el
Batallón 14, junto a María Claudia, estarían los desaparecidos del ‘2° vuelo’” (07/08/05); “Uruguayos
secuestrados en Argentina en setiembre de 1976 fueron ejecutados y enterrados en Uruguay” (11/08/05);
“Margarita Michelini descarta que aviadores desconocieran el traslado de presos” (15/08/05); “Armada buscará
‘profundizar investigación de la desaparición de los GAU en Argentina”(15/08/05); “Habría habido más de tres o
cuatro ‘vuelos de la muerte’” (22/08/05); “Los responsables del segundo vuelo son Amaury Prantl, Gavazzo y
Cordero” (05/09/05).
111
Ver, também, o capítulo 7, item 7.2.2.
746
niños”,
112
na hora de separá-la do filho de 20 dias, os fatos desmascararam essas palavras.
Sara Méndez só reencontrou o filho Simon Riquelo 27 anos depois; é um dos raros casos de
sobrevivência de uma gestante desaparecida temporariamente que sobreviveu ao seqüestro,
desaparecimento e apropriação do filho.
113
Várias crianças seqüestradas foram recuperadas,
sofrendo, em alguns casos, situações traumáticas no reencontro com as famílias verdadeiras.
O que se deve destacar é que, em um pequeno país como o Uruguai, de reduzida população, a
história do seqüestro dessas crianças, assim como o esforço das famílias que as procuraram,
marcou fortemente a sociedade.
A partir da onda de seqüestros desencadeada desde junho de 1976 (que
correspondem à parte daqueles que foram utilizados na “Operação Invasão”), conseguiu-se
levantar informação e provas sólidas de que estava sendo utilizado um programa sistemático
de coordenação repressiva entre as Forças Armadas de ambos os países. Imediatamente,
embora com a dificuldade colocada pela metodologia de ação desconhecida, mobilizaram-se
os familiares, o ACNUR e as organizações internacionais de direitos humanos. “El único que
no hizo nada fue el gobierno uruguayo, limitándose a declarar, a través de Hamlet Reyes,
presidente del Consejo de Estado, que ‘eso no les atañía porque eran sucesos fuera del
país.’”
114
Às declarações dos sobreviventes das ondas de seqüestro, põe-se em evidência a
invalidez das interpretações que esgrimiam os militares argentinos de que os
desaparecimentos resultavam como conseqüência da suposta “guerra suja”. A metodologia
empregada contra o exílio uruguaio mostra claramente que se tratou de uma verdadeira caçada
humana sustentada no critério da defesa das fronteiras ideológicas da DSN, em completo
desacordo com os mínimos princípios democráticos e com a percepção de respeito da
soberania nacional.
A motivação doutrinária dessa modalidade repressiva não pode esconder a existência
de outras motivações (bem utilitárias, aliás): na sombra da repressão ilegal, promoveu-se a
lucrativa iniciativa do roubo e da extorsão, práticas dos comandos repressivos aproveitando a
desolação do cenário de horror e silêncio resultante da sua ação. A dupla percepção
impunidade-imunidade que aquelas unidades tinham sobre sua atuação clandestina apontou
outro critério que reforçou a ferocidade da caçada (evitar testemunhos para facilitar a
112
Testimonio de Sara Méndez no Julgamento contra os Comandantes argentinos, em 1985. INFORME DE
MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS DETENIDOS DESAPARECIDOS. A todos ellos. Op. cit., p.
203.
113
AMORÍN, op. cit.
114
CELS, op. cit.
747
apropriação de bens materiais) e que, em certos casos, se converteu em um fim em si.
Além do saque, marca dessas ações repressivas, houve também casos de chantagem.
O caso mais exemplar, nesse sentido, envolveu a estrutura do PVP, tão visada em 1976. Entre
os uruguaios seqüestrados na onda de seqüestros da “Operação Invasão”, estavam os líderes
históricos do movimento operário de raiz anarquista vinculados à Convención Nacional de
Trabajadores (CNT) e ao PVP, Gerardo Gatti e León Duarte. Seqüestrados e detidos em
Automotores Orletti, foram vítimas de chantagem por parte do comando coordenado que ali
atuou, o qual tinha informações sobre certa soma de dinheiro que a organização dispunha para
sua infra-estrutura e para proteger os militantes clandestinos. Para tanto, foi detido um outro
líder sindical, Washington “Perro” Pérez, para que servisse de mensageiro entre a repressão e
o PVP na clandestinidade. Pérez, seqüestrado, foi levado de encontro a Gatti, para dar
constância de que estava vivo, embora com graves ferimentos. Os captores, então,
apresentaram sua base de negociação:
Sus captores deseaban ahora que yo me comunicara con compañeros de
Gerardo para conseguir el canje de la libertad de éste y otros refugiados
uruguayos secuestrados, contra una gruesa suma de dinero. La idea de los
extorsionadores era que la suma fuera recaudada en Europa, por parte de
sindicatos y grupos afines.
115
Os seqüestradores exigiam dois milhões de dólares. Pérez foi levado em diversas
oportunidades a Automotores Orletti. Para demonstrar que Gatti estava vivo, os
seqüestradores tiraram uma foto dele com Gatti e um jornal do dia (a única foto conhecida de
um detido nesse centro clandestino). As negociações se arrastaram durante dias; em
determinado momento, interromperam-se os contatos. Posteriormente, o agente uruguaio
Campos Hermida voltou a buscá-lo, mas não mais para negociar o resgate de Gatti: “ese
asunto está liquidado”, afirmou o repressor. Agora a negociação era pela vida do outro
dirigente, León Duarte. Este, também emssimo estado, recomendou a Pérez que fugisse do
país, coisa que ele fez imediatamente. Duarte e Gatti permaneceram desaparecidos desde
então. Poucas semanas depois, Gavazzo e seus comandados conseguiram por as mãos no
dinheiro do PVP, ao prenderem Alberto Mechosos e Adalberto Soba, também
desaparecidos.
116
Durante 1978, diminui o ritmo de operações contra uruguaios na Argentina, talvez
porque a ACNUR obteve sucesso em encontrar acolhida para os mesmos na Europa e no
115
Testimonio de Washington Pérez. Alvesta (Suécia), 01/09/76. CELS, op. cit.
116
BLIXEN, Samuel. “Uruguay en el Plán Cóndor. Memorias de Orletti: en nombre de la patria y con ánimo de
lucro.” Brecha, n° 823, 07/09/01.
748
México. O último desaparecimento de um cidadão uruguaio naquele país ocorreu em 1979.
No Chile, os acontecimentos que se sucederam à derrubada do governo Allende
produziram vítimas uruguaias. O SERPAJ recebeu testemunhos de uruguaios residentes no
Chile que asseguraram ter visto no consulado uruguaio conhecidos oficiais das Fuerzas
Conjuntas que se haviam deslocado até lá com listas de pessoas requeridas no Uruguai, as
quais eram confrontadas com os documentos das pessoas que procuravam os serviços do
consulado. No final do ano 2000, militares chilenos apresentaram ao governo Lagos
informação sobre o destino de duzentos detidos-desaparecidos no Chile, todos devidamente
identificados, dos quais 150 foram assassinados e jogados ao mar, rios e lagos.
117
Entre eles,
confirmou-se a presença de quatro cidadãos uruguaios.
Dados de sobreviventes e de organizações de direitos humanos identificam o
desaparecimento de oito cidadãos uruguaios no Chile de Pinochet e a morte de outros quatro.
Recente documento desclassificado pelos EUA, reconhece, um nono caso de
desaparecimento, assim como a participação de agentes uruguaios (e argentinos e brasileiros)
nos “interrogatórios” de militantes da esquerda chilena.
118
A conexão repressiva Uruguai-Chile remete-se ao assessoramento prestado por
militares uruguaios aos serviços de inteligência chilena para identificar refugiados orientais,
logo após a queda do governo da Unidad Popular, fato confirmado por diversos exilados.
Pedro Aranco, um nome conhecido no sistema repressivo uruguaio, foi adido militar na
embaixada de Santiago, e esse cargo tinha centralidade na conexão de informação dos
sistemas de inteligência regional estabelecida pela macrocoordenação da Operação Condor.
Por outro lado, são de domínio público as estreitas relações e afinidades ideológicas entre
Bordaberry e Pinochet.
O Chile foi também o país receptor dos pequenos irmãos Julien, seqüestrados em
Buenos Aires (na mesma ação em que foram mortos seus pais), levados para um centro
clandestino de Montevidéu e, por fim, abandonados em Valparaiso. Ou seja, um comando
atravessou fronteiras com crianças, entrou no país, saiu, abandonou as crianças e o governo
chileno não detectou nada.
Finalmente, a conexão uruguaio-chilena sob as asas do Condor extrapolou a
cronologia das ditaduras e se manifestou fortemente nos anos 90. O caso Berríos implicou no
traslado clandestino de um importante ex-agente da DINA, em 1992, ao Uruguai.
117
Os dados adjuntos correspondem a número de ficha, nome, região e data de detenção, organismo responsável,
local de detenção e destino final. Comunicado de Prensa de Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos-
Desaparecidos. Montevideo, 10 de enero de 2001.
118
BLIXEN, Samuel. “Serían nueve los uruguayos desaparecidos en Chile”. Brecha, 16/11/01, p. 13.
749
Posteriormente, houve um seqüestro seguido de execução e desaparecimento, em um
operativo coordenado pelos oficiais de inteligência, o coronel uruguaio Thomas Casella e o
capitão chileno Carlos Herrera Jiménez, mostrando a fluidez dessa coordenação repressiva
binacional.
119
Em relação ao Paraguai, há o desaparecimento já comentado de Gustavo Inzaurralde
e Nelson Santana Scotto.
120
Na Bolívia, em abril de 1976, foram detidas a argentina Graciela
Rutilo e sua filha Carla (de nove meses). A mãe da criança foi torturada nas dependências do
Departamento del Orden Político e do Ministério do Interior, inclusive por repressores
argentinos. Mãe e filha foram entregues ao país de origem. Graciela desapareceu e Carla foi
apropriada por Eduardo Rulfo, um dos torturadores responsáveis por Automotores Orletti. O
pai da menina, o uruguaio Enrique Lucas Lopez, morreu sob tortura na Bolívia, em setembro
de 1976.
A reciprocidade foi uma característica da relação entre os regimes de SN e foi
formalmente instituída no marco da Operação Condor. O Uruguai também foi palco da
coordenação repressiva contra cidadãos estrangeiros. A conexão argentina foi a mais presente.
A entrada no Uruguai de agentes argentinos com documentação encoberta e imunes a
qualquer controle interno foi uma constante, como no caso de Aníbal Gordon, um dos
principais repressores argentinos de Automotores Orletti e grande colaborador dos comandos
uruguaios que agiam na Argentina. Gordon atuou no Uruguai com documentação que o
identificava como oficial da marinha local.
121
Adolfo Scilingo, o ex-oficial da Armada
argentina que confirmou os “vôos da morte” (dos quais participou),
122
informou que sabia das
atividades de oficiais da Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA) em Montevidéu. Ele
mesmo havia disponibilizado diversos veículos, utilizados em “passeios” no Uruguai, em
1977, os quais permitiram seqüestrar militantes montoneros que, com a colaboração dos
Fuzileiros Navais (FUSNA) locais, foram entregues à ESMA e, posteriormente (com a
exceção de Jaime Dri, que fugiu
123
), acabaram desaparecidos.
124
Entre os casos de seqüestros e desaparecimentos de cidadãos argentinos registra-se o
caso dos irmãos Epelbaum. Em novembro de 1976, os irmãos Claudio e Lila Epelbaum foram
119
Cf. o item 8.3 (O Uruguai no marco da Operação Condor).
120
Ver o item 7.3 (capítulo 7).
121
SERPAJ, op. cit, p. 337.
122
VERBITSKY, Horacio. El vuelo. Buenos Aires: Planeta, 1995.
123
Jaime Dri, ex-deputado peronista da Província do Chaco, foi seqüestrado em Montevidéu, onde estava
escondido, em dezembro de 1977. Após ter sido torturado em um centro, que não identificou, foi entregue à
repressão argentina. Após ter perambulado por diversos centros de detenção clandestina, conseguiu fugir em
junho do ano seguinte.
124
BLIXEN, Samuel. “Trócoli supo todo sobre los desaparecidos”. Brecha, n° 549, 07/06/96.
750
seqüestrados na cidade balneária de Punta del Eeste. Como um outro irmão havia
desaparecido na Argentina, anteriormente, a mãe havia sugerido que se mudassem para o
balneário uruguaio. O seguimento ostensivo feito por dois carros de placas argentinas levou à
solicitação de proteção policial. Porém, o seqüestro foi consumado e a mãe denunciou o caso
junto à autoridade policial da cidade de Maldonado, a qual reconheceu que os filhos talvez
“{...] podían haber sido secuestrados por un comando argentino.” Anos depois, um
sobrevivente testemunhou a presença de ambos, em uma data posterior ao seqüestro, no
centro de detenção clandestino El Banco, na Argentina.
125
Outro caso muito particular foi o da família argentina Logares. Em maio de 1978,
Claudio Logares, Mónica Grispón e a filha Paula (de dois anos de idade), foram seqüestrados
em Montevidéu, onde residiam desde o ano anterior. O casal foi visto no Pozo de Banfield e,
posteriormente, desapareceu. A menina Paula foi apropriada por uma autoridade policial da
Província de Buenos Aires; após oito anos do seqüestro, foi restituída à verdadeira família a
partir de gestões da Abuelas de Plaza de Mayo.
126
Seu caso foi esclarecedor sobre a
colaboração repressiva e quanto à tipificação dos crimes de subtração e troca de identidade.
Cidadãos brasileiros também foram vítimas da repressão no Uruguai. Desde que se
formou a comunidade de exilados brasileiros no país, logo após o golpe que derrubou o
governo João Goulart, agentes dos serviços de inteligência do Brasil eram vistos realizando
atividades de seguimento e espionagem, por vezes até ostensivas. A deterioração da
democracia uruguaia foi acompanhada pela presença de indivíduos que, supostamente,
pertenciam ao Esquadrão da Morte brasileiro. Diversos depoimentos indicam que o temido
delegado Sérgio Paranhos Fleury foi visto em Montevidéu. Essas denúncias aumentaram
durante os cursos de instrução ministrados por Dan Mitrione, e devido aos acontecimentos
envolvendo o seqüestro do cônsul brasileiro Dias Gomide pelos tupamaros. Com a
interrupção democrática, em 1973, o intercâmbio se tornou mais profícuo, ao ponto de,
125
SERPAJ, op. cit., p. 339.
126
Sob os delitos de alteração do estado civil de uma menor de 10 anos e por falsidade ideológica em
instrumento público (Certidão de Nascimento), sofreram prisão preventiva o casal apropriador e o médico que
falsificou a data do nascimento. CONADEP, op. cit., p. 192.
751
752
segundo alguns depoimentos, agentes brasileiros participarem de ações contra militantes
uruguaios.
127
Um caso que transcendeu fronteiras foi o protagonizado pelo jornalista Flávio
Tavares, exilado no México e trabalhando para o jornal Excelsior daquele país. Tavares foi
seqüestrado em Montevidéu quando, após realizar gestões para libertar um correspondente
colega de jornal que estava preso, preparava-se para embarcar no Aeroporto de Carrasco.
Agentes da OCOA realizaram o seqüestro perfeito, pois o prenderam após ter passado pela
Imigração, portanto, após ter devolvido o visto de permanência no país; teoricamente, havia
abandonado oficialmente território uruguaio. Logo, sua desaparição seria, presumivelmente,
vinculada à dinâmica da repressão argentina. Tendo passado pela experiência de sofrer dois
fuzilamentos simulados e outras modalidades de tortura, Tavares foi oferecido pela ditadura
uruguaia à ditadura brasileira.
128
Considerando que o jornalista havia sido um dos presos
políticos brasileiros trocados pela liberdade do embaixador estadunidense seqüestrado no
Brasil, Charles Ellbrick, e que o tratamento dado aos banidos que voltavam ao país era a
execução, o destino de Tavares estava definido. Um agente mandado para contatar as
autoridades brasileiras na sexta-feira não encontrou ninguém e teve que esperar até a segunda-
feira. Nesse meio tempo, o jornal Estado de São Paulo denunciou o caso e tornou público o
seqüestro de Tavares inviabilizando, provavelmente, a aceitação da oferta uruguaia. Após
estar nove dias detido-desaparecido, Tavares foi colocado à disposição da Justiça Militar,
acusado de espionagem, e foi legalizado como preso, situação da qual saiu após importantes
manifestações internacionais de denúncia da sua condição. Acabou expulso no 23 de janeiro
de 1978, dois dias antes da visita oficial do general Geisel ao Uruguai.
Embora os casos de Flávio Tavares e de Flávia Schilling tenham sido os mais
conhecidos, outros brasileiros estiveram presos no Uruguai. É o caso do ex-fotógrafo Antônio
Pires da Silva, preso durante cinco meses e vítima de permanentes torturas. Por questões de
127
Caso de Carlos Aguilera, detido em uma ratonera que visava capturar a Amelia Sanjurjo (posteriormente
desaparecida): “Estavam à paisana; não os conhecia. Tinham um sotaque estrangeiro; eram brasileiros; eram
pardos”. BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 23.
128
Informação de Juan Mintegui durante depoimento de Flávio Tavares. Projeto Memória Digital. Acervo da
Luta Contra a Ditadura, 26/06/04. A família de Mintegui estava, na época, exilada no Uruguai e, por relações
políticas e de amizade com a vítima, acompanhou aqueles eventos de forma muito próxima.
O próprio Tavares, em entrevista realizada logo após sua libertação, reconhecia essa iniciativa do governo
uruguaio: “[...] fui seqüestrado pelo exército na noite de 14 de julho de 1977 para ser entregue ao exército
brasileiro. [...] No dia seguinte à minha prisão, um emissário do governo uruguaio foi ao Rio de Janeiro para
combinar os detalhes da minha entrega ao Governo brasileiro. Mas a resposta deste, na 5ª feira, foi mandar que
ele aguardasse uma decisão até a 2ª feira e neste dia a resposta foi negativa. No entanto, o governo brasileiro
entregou a esse senhor um longo dossiê sobre mim, que ele trouxe ao Uruguai e sobre o qual fui interrogado no
dia seguinte. Era um dossiê sobre as minhas atividades no Brasil desde o tempo de estudante, e principalmente
sobre as minhas atividades na Imprensa, sobre as coisas que eu tinha escrito nos últimos tempos no jornal O
753
índole pessoal e profissional, Silva foi trabalhar na cidade de San Javier (Departamento de
Río Negro), em 1984. Lá, as Fuerzas Conjuntas detectaram um esquema de estocamento de
armas que, supostamente, estaria vinculado à volta do exílio do líder do Partido Blanco,
Wilson Ferreira Aldunate. Silva, acusado de estar envolvido nessa ação, acabou preso.
Transferido para o 9º Batalhão de Infantaria de Fray Bentos, acabou sendo testemunho de um
fato que impactou a sociedade uruguaia: a morte sob tortura do médico Vladimir Roslik,
129
fato acontecido no final da ditadura e cuja resolução permitiu verificar a persistência do
Terror de Estado nas vésperas das eleições e o encobrimento dos motivos reais da sua
morte.
130
Silva foi processado e condenado por subversão. Foi transferido para o presídio de
Libertad, onde encontrou outro brasileiro preso. Em função das torturas sofridas, Silva foi
internado no Hospital Militar, em Montevidéu. A ausência de provas contra ele foi
denunciada por organizações de direitos humanos. Depois da imprensa brasileira divulgar o
caso, ele foi levado rapidamente à fronteira Rivera-Livramento e foi libertado, no dia 5 de
setembro de 1984, após ter sido advertido: “fica de boca calada, pois do contrário serás
liquidado pelos comunistas”.
131
Ainda em Livramento, Silva foi examinado por um médico,
que constatou as torturas sofridas. Curiosamente, quando no ano seguinte decidiu processar o
governo uruguaio pelo tratamento recebido, teve enormes dificuldades para que a Secretaria
de Segurança do Estado do Rio Grande do Sul lhe fornecesse aquele laudo. Em 1986, depois
do fim das ditaduras no Uruguai e no Brasil, Silva se preparava para depor diante da justiça
uruguaia no caso Roslik e encaminhar seu pedido de indenização ao Estado daquele país
quando o governo Sanguinetti aprovou a Ley de Caducidad, anistiando todas as
responsabilidades repressivas cometidas pelos militares durante a ditadura e bloqueando o
acesso às instâncias legais, tanto como meio de reparação às vítimas quanto para conhecer a
verdade e exigir justiça.
132
Silva conheceu em Libertad outro brasileiro preso, Rubem Malikovsky. Natural de
Estado de São Paulo.” LEIRIA, Luiz. “Fuzilado”. Versus, São Paulo, nº 19, março/abril 1978, p. 3-5.
129
No povoado de San Javier, havia uma pequena comunidade russa na qual se destacava o médico Roslik. O
fato de ter sobrenome russo (sua família chegara de lá em 1913) e de ter estudado medicina em Moscou o
transformou em um potencial “inimigo interno”. Durante o ano de 1980, esteve preso em Libertad. Autoridades
militares e médicos tentaram encobrir, sem sucesso, a sua morte sob tortura, ocorrida em 1984.
130
“Militares uruguaios liberam aqui brasileiro torturado em Montevidéu”. Jornal A PLATEIA. Livramento,
06/09/84, matéria de capa.
131
“Salvem Malikovsky”. Jornal A PLATEIA. Livramento, 08/09/84, s. p. O jornal comenta ainda um insólito
pedido de Silva à imprensa antes de abandonar Livramento: “Não digam que vou para casa, pois eles andam me
seguindo. Diz que fui para o Rio de Janeiro, falar com o doutor Brizola. É para deixar os milicos mais bravos
pois eles não gostam do Brizola desde que ele condecorou o Sendic”.
132
“Brasileiro volta ao Uruguai para denunciar toda tortura”. Zero Hora, 12/12/86, p. 21.
754
Santa Cruz, Rio Grande do Sul, foi preso no Uruguai em função de suas atividades junto aos
cañeros e suas ligações com Raúl Sendic. Foi condenado a trinta anos de prisão. Um outro
brasileiro preso foi o veterinário Haroldo Collares. Fazendeiro estabelecido em Tacuarembó,
foi detido em junho de 1972 sob acusação de subversão. Todos seus bens foram seqüestrados
(automóvel, avião, barco da sua empresa de pesca); sua esposa, sem crédito bancário e sem
bens, teve que fechar a empresa de pesca e uma clínica veterinária da família. Condenado a
nove anos de prisão, a família registrou a alegação recebida da autoridade responsável de que,
como pescava na represa da Hidrelétrica Gabriel Terra, poderia sabotar o país deixando-o
completamente na escuridão. Em realidade, Collares havia sido candidato à prefeitura de
Tacuarembó, em 1971, pela Frente Ampla. Conhecia diversos políticos esquerdistas, inclusive
o general Seregni. Sua mãe procurou ajuda das autoridades brasileiras no Uruguai até que
ouviu, de um funcionário graduado: “Minha senhora, pare com isso; não adianta, nós temos
horror de subversivos”.
133
Outros casos mostram o grau de truculência e de impunidade, mesmo quando o
motivo da ação policial parece distante de ser de índole política. Foi o caso do uruguaio
Asdrúbal Moreira Fontoura Cardoso,
134
que estava radicado há mais de dez anos no
Município de Livramento. Cinco policiais uruguaios o prenderam no seu “bolicho”, na
localidade de Coxilha Negra, a oitenta metros da fronteira, e o confinaram, durante dois dias,
na prisão do povoado de Tranqueras, no Uruguai. Cardoso revelou depois que fora preso por
suspeita de roubo de gado de um proprietário uruguaio cujas terras eram lindeiras com as da
vítima. Quando lembrou aos policiais que era comum que suas poucas vacas e cavalos se
misturassem com as do vizinho, passou a apanhar, como se aquilo fosse uma confissão de
culpa. Foi quando lembrou da existência de um acordo informal existente entre as autoridades
policiais fronteiriças (provavelmente de antes das ditaduras) de que, em caso de roubo de
gado, havia uma faixa de dez quilômetros de cada lado da linha de fronteira, liberada para a
atuação dos policiais do outro país. A pressão dos vereadores de oposição de Livramento
sobre as autoridades estaduais e nacionais conseguiu que a vítima fosse libertada em Rivera,
mediante assinatura de uma declaração de que a detenção havia ocorrido na linha divisória da
fronteira, mascarando que se havia tratado de um seqüestro e de que havia ocorrido dentro do
território brasileiro. De fato, na comunidade de Livramento, foram registrados vários
seqüestros de uruguaios com vistos de permanência no Brasil. Provavelmente, tal fato ocorreu
133
“Há outro brasileiro preso em Montevidéu”. Coojornal, Ano IV, Nº 36, dezembro de 1978, p. 16.
134
“Seqüestro: Polícia uruguaia fala em roubo de gado”. Transcrição de notícia de jornal sem identificação.
Acervo Pessoal Omar Ferri (APOF). Acervo da Luta Contra a Ditadura.
755
também em outros pontos da fronteira. Entre 1977 e 1978, há vários casos desse tipo. A
libertação das pessoas ocorreu sempre sob pressão e mobilização da comunidade e da Câmara
de Vereadores, apesar da inoperância e conivência das autoridades interventoras e da Polícia
Federal brasileira.
135
8.4.1 - Coordenação repressiva em Porto Alegre: “o caso Lilian – Universindo”
As conexões da ditadura brasileira com a repressão regional também existiram. Uma
matéria do Jornal Movimento, de fevereiro de 1979, centrada no seqüestro dos uruguaios em
Porto Alegre, lista alguns dos fatos que lembram esse envolvimento.
136
Entre os fatos, a
instrução de torturadores da DINA por especialistas brasileiros, e a presença de aviões da
Força Aérea Brasileira (FAB) para recolher refugiados detidos no Estádio Nacional de
Santiago do Chile. Poucos meses antes do seqüestro de Porto Alegre, o cidadão argentino
Norberto Armando Habegger desaparecia no aeroporto do Galeão antes de embarcar para
Madri.
137
No mesmo local, em 1980, foram capturados os argentinos Horacio Campliglia e
Mónica Pinus, os quais foram entregues à ditadura argentina, que, posteriormente, os
desapareceu. No mesmo ano, desapareceram o padre argentino Jorge Adur e o estudante
Lorenzo Viñas, talvez no Rio Grande do Sul, num local próximo de Uruguaiana.
138
Embora sem a mesma importância da Argentina, no sul do Brasil houve significativa
atividade do exílio latino-americano, sobretudo após a implantação da ditadura argentina. No
início dos anos 80, Porto Alegre foi uma das rotas de encontro do exílio uruguaio com a
população interna. Atividades políticas e shows musicais marcaram os últimos anos da
ditadura. Entre elas, a mencionada presença de Wilson Ferreira Aldunate num simpósio sobre
as formas de Estado, promovido pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
e a presença de músicos como Los Olimareños, Alfredo Zitarrosa e Daniel Viglietti,
expressões maiúsculas da cultura popular uruguaia da época, todos exilados e que atraíam
caravanas, as quais, apesar de todos os entraves, vinham de vários pontos do país vizinho. São
135
Casos de: Edgar Alonso Mendonça, proprietário de uma fábrica de farinha de ossos, preso durante mais de
um mês em cárceres uruguaias; Pedro Octávio Araújo, comerciante detido durante seis meses e seu funcionário
Alberto dos Santos (um mês detido); Juan W. Proti, comerciante, preso durante uma semana. Todos foram
detidos e torturados sob acusação de vinculação ao contrabando de gado na fronteira. Idem.
136
ALMEIDA FILHO, Hamilton; TEIXEIRA, Mônica. “Brasil também ajudou a prender e bater lá fora.” Jornal
Movimento, 5 a 11/02/79.
137
“Tortura tipo exportação”. IstoÉ, 14 de fevereiro de 1979, p. 28-34.
138
BOCCIA PAZ, op. cit., p. 217.
756
evidentes as conotações políticas que adquiriam tais acontecimentos, o que implica em pensar
na rede de espionagem que se montava para levantar listas de participantes: grampeando
telefones, vigiando as companhias de transporte de passageiros que realizavam o trajeto Porto
Alegre-Montevideú (ONDA e TTL), as conexões aéreas e hotéis que poderiam alojar esse
contingente. A cidade era um centro de denúncias contra a ditadura uruguaia. A imprensa
repercutia notícias do contexto platino enquanto cresciam as campanhas pela libertação dos
brasileiros Flávia Schilling e Flávio Tavares, às quais se somaria, depois, a que reivindicaria a
liberdade de Lilian Celiberti e Universindo Diaz, uruguaios seqüestrados nas ruas de Porto
Alegre, no 12 de novembro de 1978, por um comando binacional que agiu sob a dinâmica
recomendada pela Operação Condor.
A conexão entre as comunidades de informações dos dois países sempre foi ativa.
Um dos casos mais conhecidos foi o denunciado pelo presidente do Movimento de Justiça e
Direitos Humanos (MJDH) de Porto Alegre, Jair Krischke, sobre a espionagem das atividades
desenvolvidas por Ferreira Aldunate no Brasil, em 1983. Os dados levantados pela
inteligência brasileira foram entregues às autoridades diplomáticas do Uruguai no Brasil que,
por sua vez, encaminhou ao governo de Gregorio Álvarez. Junto eram anexadas as listas de
passageiros da ONDA e do TTL dos dias em que teriam acontecido os encontros e a lista de
hóspedes do Hotel Conceição II e do City Hotel.
139
Sobrevivente da ação do Condor que
executara Michelini e Gutiérrez Ruiz, Ferreira Aldunate, era, possivelmente, o político de
maior projeção do exílio uruguaio e seus passos eram acompanhados com muita atenção pela
ditadura.
Outro caso que espelha até onde se deu a presença de agentes de inteligência dos
outros países dentro do Brasil foi relatado pela revista Istoé, em 1979. A fonte era um cidadão
argentino detido no interior do Rio Grande do Sul, interrogado em Porto Alegre e que afirmou
ter presenciado uma situação bastante bizarra:
Na mesma cela, encontravam-se dois uruguaios, detidos sob suspeita de
subversão. Durante duas semanas eles foram interrogados e torturados. Até
que veio a informação de Montevidéu: os dois eram policiais uruguaios à
procura de subversivos no Brasil.
140
De todas as situações conhecidas sobre esta vertente da coordenação repressiva
139
Em função dessas denúncias, após a ditadura, o cônsul uruguaio de Porto Alegre, Raúl Liard, foi destituído
pelo governo Sanguinetti, mas nada aconteceu com o embaixador Alfredo Platas, que, segundo a documentação
levantada por Krischke, além de ser o superior, também sabia da operação de espionagem. “Entrevista: Habla
Jair Krischke, el denunciante del espionaje contra Wilson Ferreira Aldunate en 1983”. La República,
31/05/2003, p. 8.
140
“Tortura tipo exportação”. IstoÉ, 14 de fevereiro de 1979, p. 28-34.
757
regional, nenhuma produziu tanto impacto quanto o seqüestro de Lilian Celiberti e de
Universindo Diaz, vinculados ao PVP, e dos filhos de Lilian, Francesca e Camilo, em uma
ação que foi resultado de uma operação conjunta entre um comando uruguaio
141
e policiais do
Estado do Rio Grande do Sul.
142
O casal morava em Porto Alegre havia alguns meses; seu
principal objetivo era elaborar um dossiê sobre violações de direitos humanos no Uruguai.
Após a desetruturação dos núcleos que permaneciam na Argentina, com a terrível repressão
que se abateu sobre eles em 1976, o PVP tentava potencializar um canal de contato com os
companheiros do interior do Uruguai, a partir do Brasil. O fortalecimento da oposição, a
retomada de atividades sindicais e a liberdade de imprensa tornavam o Brasil, aparentemente,
uma opção menos perigosa para realizar o trabalho de denúncia da ditadura uruguaia; por isso,
a escolha de Porto Alegre. Anos mais tarde, Lilian Celiberti diria:
Cuando fuimos hacia Porto Alegre, teníamos cierta noción de que había
cooperación entre las fuerzas policiales del Cono Sur. Pero no teníamos muy
claro que el Brasil estuviese como la Argentina, donde había una guerra de
exterminio. Pensábamos que habría mayor limitación para que los policiales
uruguayos actuaran en Brasil.
143
Lícia Peres, na época no Movimento Feminino pela Anistia do Rio Grande do Sul,
lembra que poucos dias antes de tornar-se público o seqüestro dos uruguaios, uma mulher
com sotaque carregado havia contatado o movimento marcando um contato. Mas houve
desencontro de horários; Lilian chegou antes do acordado e, muito nervosa, entregou um
caderno cheio de anotações para a dona da casa onde deveria ocorrer o contato. Logo depois,
houve o seqüestro e o caderno contendo informações sobre a repressão uruguaia
(provavelmente um rascunho ou o próprio dossiê que estava sendo elaborado) foi levado para
São Paulo, onde se avaliou que havia maior potencial para fazer as denúncias.
144
Para o estudo do caso Lilian-Universindo, é de fundamental importância o Arquivo
Pessoal Omar Ferri (APOF) pertencente ao Acervo da Luta contra a Ditadura. Ferri foi o
advogado representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contratado pela família
para acompanhar passo a passo a evolução do caso. Os documentos e toda a informação que
foi juntada formou esse acervo que contém centenas de documentos e notas de jornais
141
As denúncias do ex-soldado Hugo García Rivas confirmaram a participação dos seguintes oficiais uruguaios
na Operação “Zapato Roto”: coronel Calixto de Armas, major José Bassani, major Carlos Rosel, capitão Glauco
Yannone, capitão Eduardo Ferro e capitão Eduardo Ramos.
142
Os policiais gaúchos envolvidos, entre outros, foram Pedro Seelig, Orandir Portassi Lucas (mais conhecido
como Didi Pedalada, ex-jogador de futebol do Internacional de Porto Alegre), João Augusto da Rosa e Janito
Kepler.
143
MARIANO, op. cit., p. 68.
144
Depoimento de Lícia Peres, 19/06/04. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura.
758
centralizados no seqüestro e no debate político-jurídico gerado ao seu respeito. Neste fundo
documental, há depoimentos, correspondência, inquéritos administrativos contra os
funcionários gaúchos envolvidos, material da imprensa internacional, registro das campanhas
de denúncia do seqüestro e de libertação das vítimas, anotações pessoais do advogado, etc.
Além da documentação específica, há material sobre a repressão geral da ditadura uruguaia,
particularmente sobre desaparecimentos, e seqüestro de crianças no Uruguai e em países
vizinhos. São informações muito ricas para montar o painel do funcionamento do sistema
repressivo e o esforço por encobri-lo. A documentação extrapola o caso pontual e permite
visualizar o fenômeno e suas implicações no cenário ampliado do Cone Sul.
Lilian e Universindo sofreram um seqüestro que seguiu a metodologia daqueles
realizados na Argentina sob a lógica da Operação Condor, inclusive envolvendo ganhos
“extras” para os participantes da missão. O exilado uruguaio William Quinteros
Vasconcellos, em extensa matéria publicada no Jornal do Brasil poucos meses depois,
denunciava que as operações de seqüestro incluíam preços de resgate:
Soubemos que o preço de Lilian e de Universindo foi de 3 mil dólares cada
um. Foi um preço especial pela importância que davam à operação. Sabemos
que o preço atual pelo seqüestro de um uruguaio no exterior é de 1 mil 200
dólares.
145
O seqüestro, efetuado pela Compañia de Contrainformaciones del Ejército uruguaio,
fazia parte da Operación Zapato Roto,
146
complexo procedimento para deter os militantes do
PVP residentes no Brasil.
147
Um mês antes do seqüestro, o coronel Calixto de Armas, chefe
do Departamento II do Estado-Maior do Exército uruguaio, contatou o general Paulo de
Campos Paiva, chefe do Estado-Maior do III Exército brasileiro, sediado em Porto Alegre,
informando-o da necessidade da ação e solicitando colaboração. O general Paiva, por sua vez,
contatou o Centro de Informação do Exército (CIEx) em Brasília. Este deu sinal verde para a
operação. Para colaborar com o comando uruguaio, foi notificado o DOPS e seu mais
“eficiente” profissional: o delegado Pedro Seelig. A ação tinha tudo para dar certo. A tarefa
simples de prender um casal de uruguaios e duas crianças, na capital gaúcha, seria executada
por profissionais de reconhecida experiência: do lado uruguaio, uma organização que
acumulava mais de 150 seqüestros bem sucedidos na Argentina; do lado brasileiro, a
comprovada eficiência do DOPS e do delegado Seelig. Entretanto, a ação se transformou em
145
“Uruguaio avisou que militares preparavam seqüestro”. Jornal do Brasil, 06/02/79.
146
O objetivo principal era prender Hugo Cores, principal liderança do PVP, escondido em São Paulo e a quem
estavam vinculados Lilian e Universindo. O hábito de Cores de usar sapatos bem gastos teria motivado o nome
em código da operação. BOCCIA, op. cit, p. 220.
759
um dos maiores fracassos da história das conexões repressivas de SN da região. Os
repressores brasileiros desconheciam a existência de crianças junto ao casal e não sabiam bem
o que fazer diante disso, ao contrário dos uruguaios, para os quais isso não fazia diferença. Já
os repressores uruguaios não contavam com a interferência da imprensa no meio da operação,
fato que, nas experiências platinas, era quase impossível de ocorrer, dadas as condições
repressivas explícitas existentes.
148
Informações obtidas depois de “interrogatórios” aplicados a membros do PVP
detidos no Uruguai apontaram indícios da existência de importantes contatos nucleados no
Brasil. A troca de informações iniciais entre a Compañia de Contrainformaciones e a polícia
de Porto Alegre foi o ponto de partida para viabilizar a ação. Uma base de operações foi
instalada próximo à fronteira Chuy-Chui, no Parque de Santa Teresa. Segundo o depoimento
do ex-agente da Compañia, “a Polícia Federal brasileira levou os oficiais Ferro e Yannone
para Porto Alegre com três detidos [do PVP], em veículos brasileiros”.
149
O casal e as crianças foram seqüestradas e levadas ao Palácio da Polícia onde os
adultos foram torturados. Posteriormente, foram levados até a fronteira onde voltaram a ser
torturados. O seqüestrador Glauco Giannone ameaçou Lilian: “Esta está de viva, no hay que
darle más pelota, vamos a actuar. ¡Total! Aquí termina el viaje. [...] Uno más al Río de la
Plata”.
150
Durante a viagem, Lilian pensou num plano que permitisse ganhar tempo e salvar
suas vidas. Meses depois, num bilhete que Lilian conseguiu “contrabandear” para sua mãe,
contou detalhes das peripécias vividas e da difícil decisão que chegara a tomar:
Querida Mamá:
[...] vinimos juntos a la frontera, allí me bajaron y me dijeron: o
“desaparecido” o colaborás. Yo por supuesto dije colaboro. [...] En P. A. me
quise suicidar pero no lo logré. En fin, quiero que te quedes tranquila, [...] ya
pasó lo peor, del proceso no me salvo pero es mejor que ser
desaparecido.[...]
151
Especulando, Lilian convenceu os seqüestradores de que esperava a visita de um
quadro importante da sua organização em Porto Alegre. Separada de seus filhos, sobre os
quais só voltaria a ter notícias dois meses depois,
152
foi trazida de volta a Porto Alegre para
147
SERPAJ. Op. cit, p. 341.
148
“O peso militar mudou os rumos do caso”. Zero Hora, Caderno Especial, 22/11/93, p. 3.
149
BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 237.
150
CELIBERTI, L.; GARRIDO, L. Mi habitación, mi celda. Montevideo: ARCA, 1990. p. 19.
151
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Arquivo Pessoal Omar Ferri (APOF). Bilhete de Lilian Celiberti escrito
com agulha sobre papel aluminizado de carteira de cigarro. Datado em 13 de janeiro de 1979.
152
A incerteza sobre o destino das crianças corroía a Lilian. Era consciente do que tinha acontecido com as
crianças seqüestradas na Argentina um ano antes. Os irmãos Julien, Mariana Zaffaroni e Simón Riquelo eram
filhos de companheiros e amigos do PVP. Na época do seqüestro, Francesca tinha três anos e Camilo nove.
760
preparar uma ratonera no seu apartamento, fato abortado diante da chegada dos jornalistas
Luis Cláudio Cunha e João Batista Scalco, da sucursal da revista Veja, alertados por um
telefonema de São Paulo de que alguma coisa estranha acontecia naquele endereço.
153
Retirada às pressas do apartamento, Lilian foi levada para o Palácio da Polícia e, a
seguir, à cidade de Rivera, no Uruguai, onde foi recebida pelo capitão Rosell e pelo major
Bassani que, furiosos, lhe disseram: “Nos cagaste”. Depois veio a ameaça mais direta: “A vos
nunca te tiraron de un avión, ¿no?”
154
Enquanto isso, a denúncia dos jornalistas repercutiu
imediatamente visto a postura da seção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
com Omar Ferri, e do Movimento de Justiça de Direitos Humanos (MJDH), com Jair
Krischke.
Aqui cabe um parêntese. No caso Lilian, seus seqüestradores a ameaçaram em
executá-la fazendo alusão direta aos cadáveres de vítimas da repressão argentina que haviam
aparecido no litoral uruguaio depois dos “vôos da morte”. Independente do envolvimento
direto de repressores uruguaios nessas práticas da ditadura argentina (questão ainda em
aberto), a postura dos seqüestradores demonstra, no mínimo, o conhecimento e o uso dessa
metodologia de desaparecimento como recurso assustador do aparato repressivo. Em relação a
isso, Lilian Celiberti consegue discernir dois comportamentos diferentes entre os captores
brasileiros e os uruguaios:
La desaparición era el principal enemigo contra el que luchar. Frente a él
veía dos comportamientos en mis captores. Los militares uruguayos me lo
daban a entender como algo factible, por la misma forma del operativo: si
nos detenían ilegalmente en Brasil, lo más fácil era hacernos desaparecer (a
esa altura había ya cerca de cien desaparecidos), y más aún si en el medio
estaban dos niños que complicaban bastante las explicaciones del hecho. Por
otro lado, en los policías brasileños me parecía captar como interés principal
el que rápidamente nos sacaran del país, desembarazarse de nosotros cuanto
antes porque eran más sensibles a las conscuencias. No desde el punto de
vista humano sino debido al momento político de Brasil. [...] La actitud de
Quando soube que ambos estavam com os avós, teve certeza que sua estratégia tinha dado certo e havia
sobrevivido à metodologia dos comandos que operavam impunemente em solo estrangeiro. Sua alegria
transbordou: “Querido míos, no saben la alegría del día de hoy al saber de Cami y Francesca, creí volverme loca
desde el 13/11 no sabía nada de ellos. [...] les hice unos muñequitos de pan y los adoro. [...] Espero que estén
contentos con los abuelos y que se porten bien [...]. Hoy cambia el mundo para mi [...]. ... espero que no sea papá
y mamá [Lilian refere-se a seus pais], demasiado peso para ustedes, pero les pido que les den todo el cariño del
mundo y que me perdonen todo lo que les hago sufrir, pero por mí no se preocupen, tengo buen ánimo aunque
ahora de alegría tenga ganas de llorar a gritos. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Arquivo Pessoal Omar Ferri
(APOF). Bilhete de Lilian Celiberti, 4 de janeiro de 1979.
153
SERPAJ, op. cit., p. 342. A ausência de contato telefônico de Lilian com determinado local, previamente
combinado, alertou o dispositivo de segurança da sua organização. Durante o período em que a ratonera esteve
montada, um telegrama chegado de Paris foi respondido com uma chamada telefônica de Lilian (diante dos
seqüestradores) o suficientemente ambígua para que a organização desconfiasse e acionasse a imprensa.
CELIBERTI; GARRIDO, op. cit., p. 25.
154
Idem, op. cit., p. 33.
761
ambos aparatos represivos conmigo era bastante diferente. Mientras los
brasileños querían hacerme sentir una cierta normalidad en el episodio y
cuidaban las formas del trato (al menos delante de mis hijos), a los
uruguayos estas cosas les importaban bien poco y había un tono siempre
amenazante en sus intevenciones.
155
A avaliação de Lilian sobre o contexto brasileiro no final de 1978, estava correta; o
regime mostrava uma certa preocupação dos militares em manter uma fachada legal. Por isso
causou uma certa surpresa a forma como se envolveu a polícia gaúcha na operação:
Lo más extraño era que hubieran hecho todo ese operativo de apoyo a la
dictadura uruguaya (como implicaba que el DOPS pusiera sus hombres, sus
vehículos, su infraestrutctura y hasta sus aparatos de tortura) para
simplemente detener a dos personas y dos menores
156
Em função da cobertura que a imprensa brasileira deu ao caso, a ditadura uruguaia
teve que “legalizar” a situação dos seqüestrados. Assim, Lilian e Universindo “reapareceram
presos no Uruguai. Segundo um comunicado oficial, haviam sido presos ao invadir o país
através da fronteira brasileira com o objetivo de iniciar um novo foco subversivo (as Forças
Armadas uruguaias reeditavam a farsa da invasão subversiva – a “Operação Invasão”- ao
país):
[Las Fuerzas Conjuntas] Informan a la población que Universindo Rodríguez
Díaz, Lilian Celiberti Rosas y los dos menores hijos de ésta, fueron
detenidos al pretender ingresar clandestinamente al Uruguay, portando
documentos falsos, trayendo material de propaganda subversiva, así como
importante armamento.
157
Em relação a esse comunicado, Hugo García Rivas, agente que desertou da
Compañia após o seqüestro de Lilian e Universindo, ajudou a desmontar essa nova farsa, fato
importante se for considerado que os seqüestrados, únicos que poderiam fazê-lo, estavam
presos e incomunicáveis. García Rivas, que havia participado da operação, esclareceu:
Todo esto es mentira. El armamento era de la misma ‘compañia’, los
documentos falsos se los preparó la “compañia”. Yo les saqué las fotos, les
saqué las huellas dactilares a ellos.
158
Em Porto Alegre, logo começou a circular uma versão de que não teria havido
seqüestro e de que as quatro pessoas teriam viajado de Porto Alegre para Bagé entre os dias
17 e 21 de novembro. Isso se adequaria à versão diversionista uruguaia de que quatro
155
Idem, p. 16.
156
Idem.
157
SILVA, Perdidos en el Bosque. Op. cit. 23.
158
LEE GARDO, Mauricio. Confesiones para un genocidio. Montevideo: TAE, 1987, p. 81.
762
subversivos teriam invadido o país - retomando o modelo da “invasão” malograda em 1976
com o grupo transferido de Buenos Aires. Paralelamente, a Polícia Federal informava que os
uruguaios portavam documentos falsos e divulgava um radiograma dos seus agentes na cidade
de Bagé, o qual registrava o depoimento de um motorista de táxi que afirmava ter
transportado o casal e as crianças até a rodoviária onde teriam embarcado em um ônibus da
empresa Lima que fazia o trajeto Bagé-Melo. A Polícia Federal também apresentou a lista de
passageiros, onde constavam os nomes também arrolados nos tais documentos falsos
identificados pelo mesmo órgão. A divulgação de uso de documentação falsa era diretriz dos
serviços de inteligência uruguaios para convencer a opinião pública de que a entrada
clandestina era a maior evidência da tese da invasão. O cobrador e o motorista do ônibus
confirmavam a versão da Polícia Federal: os uruguaios haviam saído do país por espontânea
vontade e sem nenhuma escolta. Isto permitia ao coronel Moacyr Coelho, diretor da Polícia
Federal, afirmar que: “O casal uruguaio não foi seqüestrado. Saiu espontaneamente do país. O
caso está encerrado”.
159
Mas, curiosamente, o funcionário da alfândega uruguaia na divisa
não tinha nenhum registro sobre a entrada daquelas pessoas, com nome falso ou verdadeiro.
E, enquanto as Fuerzas Conjuntas afirmavam que os invasores haviam sido detidos em
Aceguá, o cobrador do ônibus afirmava que haviam desembarcado em Melo. No meio de
tantas contradições, veio a público, posteriormente, que o motorista de táxi que dizia ter
levado os uruguaios até a rodoviária, havia sofrido ameaças por parte da Polícia Federal para
que confirmasse essa versão.
O fato é que, na montagem desta farsa diversionista, o governo uruguaio contou com
a esforçada colaboração do governo brasileiro.
160
Num caderno especial elaborado para os
quinze anos do seqüestro, o jornal Zero Hora afirmava que a farsa de Bagé havia sido
montada no Estado-Maior do III Exército, na presença do próprio chefe do SNI, Otávio
Medeiros, o qual se deslocou urgentemente para o sul quando vazaram as primeiras
informações do seqüestro.
161
Quase um mês depois do desfecho da operação binacional, o
comandante do III Exército brasileiro, general Samuel Alves Corrêa, insistia: “Seqüestro?
159
“Palavras”. Zero Hora, Caderno Especial, 22/11/93, p. 2.
160
FERRI, Omar. Seqüestro no Cone Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. cap. 17.
161
Da montagem do foco diversionista participaram o general Paulo de Campos Paiva (chefe do Estado-Maior
do III Exército e vinculado ao serviço secreto militar), coronel Moacyr Coelho (diretor da Polícia Federal),
coronel Luiz Macksen de Castro Rodrigues (superintendente da Polícia Federal), coronel Carlos Alberto Ponzi
(chefe da Agência do SNI em Porto Alegre) e, provavelmente, o coronel Brilhante Ustra (comandante do 16°
Grupamento de Artilharia de Campanha de São Leopoldo). Segundo a matéria, Ustra teria sido peça fundamental
na manobra de despiste para reduzir o impacto do seqüestro: a chamada ‘farsa de Bagé’. “Uma farsa para
resguardar o regime”. Zero Hora, Caderno Especial, 22/11/93, p. 2.
763
Que seqüestro?”.
162
Na medida em que Lilian e Universindo estavam incomunicáveis e o governo
uruguaio sequer se pronunciava a respeito dos acontecimentos, impondo rigoroso controle
interno de informação, as autoridades brasileiras e gaúchas insistiam na tese de que não havia
ocorrido seqüestro algum no Rio Grande do Sul. Até o dia em que o menino Camilo, já na
casa dos avós, lembrou a um jornalista gaúcho que, após serem detidos, eles haviam estado
em um prédio que permitia ver da janela un arroyito. Era a confirmação mais concreta do que
tinha acontecido e da conexão binacional: Camilo, de nove anos, havia identificado o prédio
do Palácio da Polícia de Porto Alegre, situado sobre a avenida João Pessoa e, lateralmente,
sobre a movimentada avenida Ipiranga, assim denominada porque suas duas vias
acompanham as margens do arroio Ipiranga.
Um dos fatos mais obscuros do seqüestro relaciona-se com uma funcionária do
DOPS com a qual os quatro uruguaios tiveram contato quando estiveram presos no Palácio da
Polícia, em Porto Alegre. Lilian conta o seguinte:
Una mujer vino a cuidarnos. Le conté de las desapariciones de niños en la
Argentina y le pedí que llamara a mis padres en Montevideo y les avisara lo
que estaba pasando. No parecía adiestrada en la represión y el odio: era,
simplemente, una mujer sumisa y habituada a pensar, como mucha gente,
que ‘todo el que va preso, por algo será’. No se atrevió a hacer nada, pero
tiempo después, cuando se inició la investigación del secuestro y se
empezaron a descubrir las cosas, llamó a nuestro abogado diciendo que
quería declarar. Extrañamente, antes de que se presentara a hacerlo, murió, y
más extrañamente, a su velatorio asistieron (pese a ser una funcionaria de
bajo escalafón), todos los jefes de la Policía de Porto Alegre y fue enterrada
con honores.
163
Esta funcionária, Faustina Elenira Severino, havia sido identificada através de uma
fotografia por Camilo, em Montevidéu, como sendo uma das mulheres que tinham ficado
com eles “[...] num prédio grande que ficava na frente de um riozinho com duas ruas, uma de
cada lado” [o prédio era o Palácio da Polícia de Porto Alegre]. No livro que conta a história
do seqüestro, Omar Ferri lembra que Faustina Elenira Severino faleceu cinco dias após ter
prestado depoimento na Assembléia Legislativa e que seu enterro teve uma participação
pouco usual de autoridades, entre as quais: Comandante do III Exército, Governador e Vice-
Governador do Estado, Chefe do Estado Maior do III Exército, Secretário da Segurança
Pública, Superintendente dos Serviços Policiais, Comandante Geral da Brigada Militar,
162
“Palavras”. Zero Hora, Caderno Especial, 22/11/93, p. 2.
163
CELIBERTI; GARRIDO, op. cit, p. 15.
764
Diretor de Informática da Polícia Civil, Diretor do DOPS, etc.
164
Em uma carta a Mirtha
Celiberti (irmã de Lilian), Omar Ferri comentou a respeito da morte da funcionária: “Creio
que a escrivã do DOPS morreu por pressões do próprio órgão e não tenho dúvidas que foi ela
a autora dos telefonemas anônimos
165
informando sobre as crianças.”
166
Para Ferri, a
[...] compacta presença do mundo militar, administrativo e policial [...] tinha
apenas um significado: o sistema emprestava sua presença para o enterro de
uma funcionária que, sem qualquer culpa, fora envolvida num lamentável
crime em que o maior culpado, indubitavelmente, era o próprio sistema.
167
Poucos meses depois de conhecidos os fatos do seqüestro dos uruguaios veio a
público a história de Nelson Rolim de Moura, ocorrida três anos antes e que vinha a
confirmar o grau de colaboração entre as ditaduras do Uruguai e do Brasil. Moura reconheceu
ter estado no local onde se denunciava que havia estado detida Celiberti. Por precaução,
havia morado na Argentina durante certo tempo após ter presidido o Centro de Estudantes
Universitários de Engenharia da UFRGS. Em 1975, voltava de viagem de Buenos Aires a
Porto Alegre quando foi detido em Colônia junto com uma amiga. Na bagagem, foram
encontrados e apropriados livros e discos considerados subversivos. Durante quinze dias,
sofreram agressões e interrogatórios. Tentaram arrancar-lhes confissões de vinculação a
algum dos movimentos armados da região. Moura afirmava que só tinha militância no Setor
Jovem do MDB. Passaram por diversos centros de detenção, inclusive por La Casona de
Punta Gorda, onde estiveram os uruguaios seqüestrados em Buenos Aires. Devolvidos
clandestinamente ao Brasil, ao chegar no aeroporto Salgado Filho de Porto Alegre, foram
recebidos pela Polícia Federal. Um dia depois foram interrogados pelo delegado Edgar
Fucks, Coordenador Geral do Departamento de Polícia Federal do Rio Grande do Sul (o
mesmo que viria a presidir o inquérito sobre o seqüestro dos uruguaios). Nos interrogatórios
que veio a sofrer, foram utilizados os materiais que lhe haviam sido retirados no Uruguai. “O
delegado Fucks apresentou-me até mesmo manuscritos que me pertenciam e estavam em
minhas malas” e recomendou não prestar mais declarações à imprensa, “[...] o que cumpri à
164
FERRI, op. cit., p. 126.
165
Ferri se refere a dois telefonemas anônimos recebidos na sua casa e que sinteticamente informavam sobre a
situação das crianças. No seu livro, avalia os motivos que levaram a funcionária a se expor dessa forma: “Havia
alguém que, próxima a alguns acontecimentos ligados ao fato, compungia-se como se também fosse mãe.
Deverá ter pensado que era uma injustiça o que estavam fazendo com as crianças, que não custaria nada dar uma
ajuda, pois nada tinham culpa. E como, embora involuntariamente, estivesse envolvida, sua consciência
provavelmente a incomodava. Na luta entre o bem e o mal, finalmente tomou sua decisão. Não precisava mais do
que um telefone”. Idem, p. 46.
166
Acervo da Luta Contra a Ditadura. Arquivo Pessoal Omar Ferri, 18 de maio de 1979.
167
FERRI, op. cit., p. 127.
765
risca temendo represálias tão habituais naqueles tempos”.
168
O seqüestro de Porto Alegre produziu desdobramentos. Primeiro, mostrou a vigência
geográfica do Condor; foi, em todos os sentidos, uma operação típica do grande acordo
repressivo regional. Segundo, ao mostrar o grau de impunidade com que agiam os comandos
operativos de um país no interior de outro, atestava a enorme fragilidade das vítimas e
potenciais vítimas, sem proteção alguma do Estado em que estavam legalmente inseridas.
Terceiro, demonstrou o grau de envolvimento de toda a estrutura de poder - as presenças
ilustres no funeral da funcionária do DOPS aponta nessa direção. Quarto, surpreende o grau
de sintonia envolvendo as Forças Armadas de ambos os países, com particular destaque para
a Polícia Federal - o fato do diretor do SNI ter ido a Porto Alegre especialmente para
publicitar um fato diversionista que estivesse de acordo com a farsa tornada pública no
Uruguai mostra comprometimento e solidariedade repressiva.
Um ano e meio depois, após minucioso planejamento, acontecia a deserção do
agente Hugo García Rivas da Compañia de Contrainformaciones del Ejército do Uruguai.
Em troca de ser escondido durante alguns dias em Porto Alegre, enquanto aguardava um
salvoconduto para viajar para Europa, forneceu inúmeras informações documentadas sobre os
“porões” da ditadura uruguaia, inclusive aportando dados e detalhes qualitativos do seqüestro
de Lilian e Universindo e da montagem dessa operação repressiva binacional.
Inegavelmente, a irrupção dos jornalistas no local da ratonera abortou a tocaia para
prender os contatos do PVP, limitou as possibilidades de sucesso da ação repressiva e
permitiu a sobrevivência dos quatro seqüestrados. A veiculação, pela imprensa brasileira, do
seqüestro dos adultos impediu que pudessem ser colocados a disposición final ou trasladados
(termos da novilíngua da coordenação repressiva identificando os desaparecimentos). Apesar
de “reaparecerem” presos no Uruguai, Lilian e Universindo sobreviveram. Quanto às
crianças, se não fosse a rápida intervenção da família alertada pela imprensa, considerando a
idade de ambos, possivelmente teriam se tornado “botim de guerra” e sofrido o destino do
desaparecimento, da supressão das suas identidades e da apropriação dos seus corpos e da sua
vida. As crianças foram entregues aos avós em 25 de novembro. Durante treze dias, estiveram
seqüestradas e foram usadas como reféns para exigir que a mãe colaborasse; portanto, durante
esse tempo, Francesca, de três anos, e Camilo, de nove, foram detidos-desaparecidos.
Lilian e Universindo foram libertados da prisão em novembro de 1983. Depois,
processaram o Estado do Rio Grande do Sul e, em 1995, foram indenizados pela
168
“Brasileiro ficou preso na mesma prisão de Lilian!”. Movimento, 12 a 18/02/79.
766
responsabilidade do mesmo no seqüestro sofrido.
169
Do lado uruguaio, a Ley de Caducidad
garantiu a impunidade dos seus repressores e a desresponsabilização do Estado.
8.5 - A POLÍTICA DE APROPRIAÇÃO DE CRIANÇAS
A violência contra crianças também marcou a etapa repressiva. Milhares delas foram
obrigadas a conviver com famílias separadas e a sofrer com a satanização dos entes queridos,
o isolamento e a marginalização sentida na escola, na vizinhança ou na própria família.
Milhares delas sofreram com a prisão dos pais, com a imersão na clandestinidade ou
partilharam, em condições sempre muito difíceis, os caminhos do exílio. Todas essas crianças
sofreram as conseqüências de uma dinâmica que as colheu como vítimas, nos influxos de uma
lógica que tiveram de suportar irremediavelmente e com múltiplas perdas e incompreensões.
Entre todas elas, está o caso particular dos filhos de mortos e desaparecidos. Além de
terem passado por algumas das experiências traumáticas citadas, essas crianças foram vítimas
de uma outra, marcada por elementos muito particulares, que colocam, de forma mais
complexa, a dimensão da irreparabilidade das perdas. Entretanto, há um caso que extrapola
esses limites já tão extremados, o das crianças que foram seqüestradas, desaparecidas e
apropriadas. Na sua grande maioria, são filhos de pais assassinados e desaparecidos, mesmo
que não tenham consciência disso (no caso dos que permanecem seqüestrados), nem lembrem
da experiência traumática do seqüestro sofrido. A apropriação de crianças, em diversos casos,
esteve vinculada ao comércio das mesmas (por dinheiro, por troca de favores ou por algum
tipo de vantagem pessoal). A apropriação de crianças, nas experiências dos regimes de SN,
significa a existência de um mecanismo de seqüestro-desaparecimento-apropriação
resguardado na permissividade e/ou cumplicidade do centro do poder estatal, permitindo que
um ser indefeso fosse arrancado do convívio dos pais, e tivesse um nome e uma história
imposta, apagando, assim, todo seu passado.
170
Transformadas em “botim de guerra”, a procura das crianças apropriadas tem
constituído um dos maiores desafios para superar essa profunda ferida aberta do passado
recente uruguaio. O informe A Todos Ellos, publicado em 2004, aponta um total de dezesseis
crianças uruguaias seqüestradas e desaparecidas, quinze na Argentina e uma na Bolívia.
169
Em 1980, foram processados os policiais gaúchos Didi Pedalada e João Augusto da Rosa por participação no
seqüestro.
170
MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS DETENIDOS DESAPARECIDOS. A Todos Ellos.
767
Delas, duas permanecem desaparecidas (os irmãos Beatriz e Washington Hernández Hobbas);
as demais foram encontradas e tiveram restituição de identidade, inclusive três que nasceram
em cativeiro (María de las Mercedes Gallo Sanz, Carlos D’Elía Casco e María Victoria
Moyano Artigas). Outras quatro crianças podem ter nascido em cativeiro, e há duas de
nacionalidade argentina que foram seqüestradas no Uruguai (Paula Logares e María Macarena
Gelman).
A explicação para os motivos que levaram ao seqüestro de crianças podem ser
diversos, mas todos eles estão vinculados à percepção de uma impunidade vista como
perpétua pelo sistema repressor. Para Eduardo Duhalde
171
podem ser destacados vários
objetivos por detrás dessa operação. Apesar dele analisar o caso argentino, suas conclusões
são de extrema importância pois os seqüestros de crianças uruguaias estão associados e
vinculados àquele contexto e dinâmica. Duhalde aponta que para o aparato repressivo o
seqüestro de crianças visa:
1) Produzir o terror na população. Mostrar, assim, que nem as crianças escapavam da
“guerra suja” desencadeada a partir do Estado, em uma extrapolação quase que infinita
da flexibilização do conceito “inimigo interno”; mesmo considerando que quase todos
os casos ocorreram na Argentina, os casos de seqüestro de crianças marcaram
profundamente a sociedade uruguaia.
2) Vingar-se e fustigar seus familiares. O caso dos irmãos Hernández Hobbas é
considerado paradigmático desta hipótese. Com o pai detido e a mãe e uma irmã
seqüestrada alguns dias antes, Beatriz e Washington, que desde então estavam com
famílias diferentes, também acabaram seqüestrados sem nenhuma outra explicação
que não fosse pressionar os pais, consumar uma ação incompleta ou, então, explicitar
uma ação exemplar que impactasse nos círculos perseguidos.
3) Interrogar as crianças com discernimento. A extração de informação foi um dos
motores que impulsionou a máquina repressiva, inclusive justificando o que entendiam
ser excesso de zelo no trabalho de alguns “interrogadores” (morte sob tortura). Há
inúmeros depoimentos de crianças que lembram da irrupção violenta de soldados
fardados e à paisana, em operações de procura de militantes, e saque de suas
residências. Além de dirigir-se às crianças de forma ameaçadora, tentavam intimidá-
las com perguntas e cenas agressivas ou deixando recados para os adultos que
Informe de Madres y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos. Montevideo: 2004. p. 526.
171
DUHALDE, op. cit.
768
procuravam, acenando com a volta da operação e com a morte dos procurados.
Curiosamente, houve presença feminina cuidando de crianças durante a fase do
seqüestro em que o destino dessas ainda não havia sido decidido; uma espécie de “tia”,
segundo as palavras de Anatole Julien ou de Camilo Celiberti. Provavelmente, a
utilização de uma figura feminina procurava neutralizar o clima de violência a que
estavam submetidas, induzindo-os a uma menor resistência contra alguém que podia
lembrar a figura materna. Estas mulheres desempenhavam um papel chave para tirar
informação das crianças, ganhar sua confiança, dar-lhes a falsa impressão de proteção
e, quem sabe, de um tratamento mais delicado. Assim como a dupla bom e mau
torturador, a “tia” representava um papel funcional: ganhar a confiança dos meninos
seqüestrados, deixando-os mais a vontade, dentro dos limites da situação extrema que
viviam, para obter algum tipo de informação.
4) Quebrar o silêncio dos pais, torturando os filhos. O uso da figura dos filhos como
recurso de chantagem foi muito usada pelas forças de segurança. Ameaças de agressão
física, de morte e de seqüestro contra crianças foram recorrentes. Muitos depoimentos
de sobreviventes das sessões de tortura lembram disso como forte experiência
traumática. O medo de que os filhos caíssem nas mãos dos torturadores e sofressem
qualquer tipo de violência foi um sentimento altamente desestabilizador para as
pessoas perseguidas. O pavor de se ver torturado diante dos filhos, de vê-los sendo
torturados na sua frente ou de imaginar tal possibilidade foi uma marca carregada
pelos detidos. A introdução de uma pretensa metodologia científica nos interrogatórios
teve na tortura psicológica um dos principais campos de desenvolvimento e, dentro
dessa prática, um dos mecanismos amplamente utilizados foi a utilização de gravações
com vozes e gritos que pareciam ser dos filhos, dos pais ou de outras pessoas próximas
dos detidos no momento em que, supostamente, sofriam a tortura. Existem alguns
registros que indicam que isso pode ter ocorrido. Houve ainda a situação de
constrangimento vivida nas visitas aos pais nos cárceres onde estavam legalmente
detidos. Muitas vezes, essa experiência de contato foi abalada pela instrumentalização
da visita como meio de tortura, agredindo visitantes e visitados. Os presos, dentro da
lógica de aumentar sua desestabilização emocional (el enloquecimiento); as crianças,
sendo induzidas a canalizar a sensação de violência e frustração, sofrida nesses
encontros, contra os próprios pais, rechaçando seu entorno e sua história. Esta
estratégia era orientada e avalizada pelos psicólogos do regime.
5) Beneficiar-se com as crianças como “botim de guerra”. Crianças de pouca idade
769
seqüestradas em operações, em que seus pais foram mortos ou detidos, acabaram
desaparecidas e transformadas no produto mais perverso do saque a ser repartido pelos
comandos repressivos, como moderna modalidade de pirataria. Os casos de Mariana
Zaffaroni e de Carla Rutilo explicitam a apropriação realizada por agentes diretamente
envolvidos com a repressão. A falta de pistas, a solidariedade entre seqüestradores e
apropriadores e a impunidade garantida desde a cúpula do Estado (situação mantida
pelos governos eleitos pós-ditadura) tornaram uma tarefa titânica a reconstrução do
quebra-cabeça que originou a apropriação, iniciativa assumida pelos familiares e pelas
organizações de direitos humanos, diante do descaso das autoridades. Porém, muitos
mais obstáculos existem na tentativa de recompor a história daqueles que sabidamente
nasceram em cativeiro ou dos que se supõe que tenham nascido. Neste caso, com um
componente particularmente muito perverso: a manutenção das mães grávidas
plenamente conscientes de que viveriam enquanto durasse a gestação, certamente
enfrentando emoções muito contraditórias derivadas do fato de que o nascimento da
criança correspondia a sua execução, condição necessária para proceder à apropriação
do “botim de guerra”. Mães que sentiram as crianças nos seus ventres, sabedoras de
que o contato futuro com elas estava completamente interditado e que essa única,
intensa, contraditória e curta relação seria apagada. Mães reduzidas a simples ventres
fecundos e cujos rastos seriam apagados para que esse “botim de guerra” pudesse
receber a implantação de uma memória e de uma história falsa, como ocorreu com a
mãe de María Victoria, María Asunción Artigas, detida com dois meses e meio de
gestação e sobrevivendo como uma espécie de “incubadora” por mais seis meses.
Concluída a sua “tarefa”, desapareceu. María Vitoria teve sua identidade restituída dez
anos depois.
6) Educar os filhos menores com uma ideologia contrária à dos pais. Este objetivo do
seqüestro e da apropriação está emoldurada na emblemática frase já citada de Ramón
Camps: “A los hijos de los subversivos los entregamos a organismos de beneficiencia
para que les encontrasen nuevos padres, ya que los padres subversivos educan a sus
hijos en la subversión.
172
Trata-se de um dos maiores sintomas de intolerância
manifestado no interior dos regimes de DSN, espécie de corolário justificador, em
última essência, das atitudes e das ações dos cidadãos iluminados que defenderam, a
todo custo (e a qualquer preço) os sagrados valores civilizacionais do “ocidente cristão
e democrático”.
770
Há quem argumente que o tipo de violência implícita no seqüestro e apropriação de
uma criança dos seus pais e do seu entorno imediato gera uma desconstrução da sua história
vivida, da sua pré-história (a herança culturalmente transmitida de experiências acumuladas
pelos pais e avós) e da sua identidade. A psicanalista Marisa Punta Rodulfo,
173
por exemplo,
defende uma tese polêmica que diz que toda criança em gestação ou nascida de mãe em
cativeiro vítima de tortura deve ser considerada como criança em cativeiro e torturada, pois o
traumatismo físico e psíquico sofrido pela mãe foi trasladado ao feto ou ao recém nascido.
174
A falta de conhecimento específico nos impede de incidir no debate, mas o registro do mesmo
mostra a complexidade da questão e a existência de desdobramentos e de implicações
produzidos pelo Terror de Estado que são quase invisíveis e que só podem ser identificados e
aferidos a longo prazo.
Na perspectiva psicanalítica dos autores que temos trabalhado (Horacio Riquelme,
Diana Kordon, Daniel Gil, o casal Viñar), entende-se que, no momento da ocorrência do
seqüestro, a criança e sua família sofrem uma multiplicidade de ações violentas: a separação
da mãe da sua descendência; o desaparecimento da mãe para anular qualquer traço de filiação;
a separação da criança dos seus progenitores e do resto da família; a posse da criança (corpo e
mente). Uma criança cuja história e pré-história lhe são impedidas de serem conhecidas sofre
um mecanismo de mutilação da sua subjetividade; num futuro não muito distante, terá
dificuldade para encontrar-se como sujeito (meio social, meio familiar, etc.); sofre com isso
uma espécie de descontinuidade do seu processo histórico, uma interrupção de uma trama
generacional.
175
Por outro lado, a expropriação da identidade, da história e da pré-história da criança,
realizada pelo apropriador, tornam-na permanentemente refém de uma falsificação que deve
estar sendo reforçada incessantemente. Portanto, reforça Punta Radulfo, ocultar à criança sua
história e a história das suas origens produzem uma ruptura generacional, e o falseamento
sistemático da verdade é compensado com a implantação de memórias falsas providas pelos
apropriadores. Como conseqüência, gera-se uma situação de extrema delicadeza. As crianças
que tiveram suas recordações e sua história expropriadas, quando adultas não conseguirão
lembrar fatos vividos com pequena idade e que lhes foram escamoteados. Mas a memória
172
Dignidad, 22/02/84, p. 21.
173
PUNTA RODULFO, Marisa. Trauma, memoria e historización: Los niños desaparecidos víctimas de la
dictadura militar. In: ULRIKSEN DE VIÑAR, Mauren (comp.). Memoria Social. Fragmentaciones y
responsabilidades. Montevideo: Trilce, 2001.
174
Idem, p. 90.
771
desse escamoteamento pode vir a manifestar-se de outras formas como uma característica
patológica de caráter, doença psicossomática, depressão inexplicável, etc.
176
A experiência
traumática da desaparição da mãe, do próprio seqüestro do menor e da conseqüente
expropriação da sua história podem produzir danos não só nas pessoas diretamente envolvidas
(crianças, pais, irmãos), como também podem manifestar-se física e psiquicamente nas
gerações futuras. Isso pode ser afirmado a partir das experiências das crianças que tiveram sua
condição de expropriadas reconhecida, independente da restituição de identidade.
Mas há dúvidas sobre o que ocorre com as crianças que são fruto de uma
expropriação escondida, de uma origem “plantada”, de uma “pré-história” ignorada e que
permanecem nessa situação. É impossível aferir quanto a experiência traumática vivida mas
não-lembrada/não-conhecida incide no seu comportamento de adolescente ou de adulto; até
onde vivem uma vida “normal”; até onde não apresentam atitudes comportamentais ou
distúrbios de personalidade que podem estar relacionadas com tantas perdas. Aliás, atitudes e
comportamentos que, se cotejados com a experiência traumática vivida, talvez pudessem
adquirir inteligibilidade. Mas essa também continua sendo uma história em aberto, pois se o
seqüestro da identidade permanece, também permanece a possibilidade de que mais dia,
menos dia, essas vítimas possam vir a conhecer a história da sua verdadeira origem.
A seguir, apontamos alguns dos casos mais emblemáticos que envolvem o seqüestro
e a apropriação de crianças uruguaias dentro do marco da coordenação repressiva da
Operação Condor. Um dos primeiros casos denunciados e talvez o que melhor mostrou os
mecanismos e o alcance da coordenação repressiva envolveu os irmãos Anatole (4 anos) e
Eva Julien (1 ano). Seus pais, Roger Julien e Victoria Grisonas, encontravam-se em Buenos
Aires e eram vinculados ao PVP. Em setembro de 1976, sua casa foi invadida, os adultos
metralhados e as crianças, escondidas na banheira pelo pai, foram seqüestradas. Todos
desapareceram. A família perdeu a pista dos quatro até agosto de 1979, quando o Cardeal de
São Paulo, Paulo Evaristo Arns, a partir de informações recebidas e conferidas pelo grupo
CLAMOR, anunciava que os meninos haviam sido encontrados em Valparaíso (Chile). O
relato fragmentado de Anatole e seu sotaque caracteristicamente platino já haviam permitido,
às pessoas que com eles se envolveram no Chile, levantar algumas hipóteses sobre o que
podia ter acontecido com as crianças. Posteriomente, o menino conseguiu lembrar de novos
fatos que, com o passar do tempo, permitiram armar parcialmente um complexo quebra-
cabeça. Mas somente o relato trazido pelos presos políticos, ao sair das prisões, permitiu
175
Idem, p. 94.
176
Idem, p. 96.
772
responder uma das grandes incógnitas da história dos irmãos. Onde tinham estado entre
setembro e dezembro de 1976?
Os relatos de presos políticos, quando saíram do confinamento, trouxeram novidades.
Os irmãos Julien haviam sido vistos no centro clandestino do SID, em Montevidéu. Portanto,
após serem seqüestradas em Buenos Aires, as crianças foram levadas a Montevidéu e,
posteriormente, abandonadas em uma praça da cidade chilena de Valparaíso. Depois, foram
recolhidas por uma instituição de menores e adotados por um casal chileno sem vinculação
alguma com o setor repressivo. Seu seqüestro é um dos casos mais notórios do funcionamento
da internacioalização repressiva. Seqüestrados dentro da lógica de colaboração entre as forças
de segurança argentina e uruguaia, acabaram abandonadas no Chile. Menores não
acompanhados dos pais só podiam entrar no Chile se o acompanhante mostrasse uma
autorização do pai, autorização que, no caso Julien, não existia. Tampouco existia o carnê de
identidade, outro documento exigido nos postos de entrada, mesmo no caso de menores. E
quando do seu aparecimento em Valparaíso, as autoridades chilenas não demonstraram
nenhum estranhamento pela presença daquelas crianças que reconhecidamente tinham sotaque
platino nem investigaram a hipótese de que fossem filhos de presos ou refugiados políticos,
como se ventilou no entorno do caso.
Duas questões permanecem nebulosas. Os motivos que expliquem o porquê de
abandonar as crianças no Chile até hoje não foram esclarecidas. Talvez o fato de serem dois
irmãos induziu uma avaliação de ser muito arriscado encobri-los, segundo a lógica da
metodologia repressiva assumida em Buenos Aires. A distância talvez tenha sido um dos
fatores considerados, além, certamente, da cobertura da ditadura Pinochet. De qualquer forma,
surpreende a transferência para o Chile, assim como seu abandono em uma praça pública em
vez de uma ação de venda ou doação como a maioria dos casos em que as crianças foram
tratadas como botim de guerra. Um comentário do major Gavazzo indicaria que os irmãos
Julien eram uma entrega a ser feita que, por algum motivo, não aconteceu, obrigando a uma
solução de emergência.
177
A exepcionalidade do caso também mantém como pergunta sem
resposta o porquê de levar o “botim” a Montevidéu (talvez por não saberem como proceder
com as crianças ou uma contra-ordem de correção de rumo). Uma outra pista nunca
esclarecida corresponde a uma informação que dera Anatole logo após levado ao orfanato.
Eles tinham sido levados em um carro enorme com mais duas meninas (este dado é impreciso,
poderia ser uma só). Considerada a origem dos irmãos Julien e a ação encoberta em que foram
177
BLIXEN, Samuel. “La CIA reveló un caso hasta ahora no conocido: Serían nueve los uruguayos
desaparecidos en Chile”. Brecha, 16/11/01, p. 13.
773
evolvidos, tal afirmação sempre levantou a expectativa de que se trataria de outro caso de
criança seqüestrada, mas, até hoje, não existem elementos concretos que permitam dirimir
essa dúvida ou se não passou de uma lembrança imprecisa de um menino de quatro anos.
A identificação das crianças expôs a delicadeza do caso. A revista Istoé, na matéria
que comentava o fato, apontava para a dificuldade de encontrar uma solução de consenso após
os contatos das famílias adotiva e biológica:
Não há, não pode haver final feliz para uma história como esta. A avó, o
casal chileno, as crianças, seus pais, todos são vítimas de um criminoso sem
rosto e sem nome – um sistema de repressão multinacional. É por isso que a
longa busca de dona Angélica [a avó biológica] não terminou em paz. Ela
tem o direito natural de ficar com os netos, sangue do seu sangue. O casal
chileno tem pelas crianças o amor de pais verdadeiros – e também quer
conservá-las.
178
Enquanto isso, a Embaixada uruguaia no Chile, diante da publicitação do caso,
manteve-se distante, retirando importância à repercussão que o mesmo obtivera na imprensa
local e internacional. O embaixador, brigadeiro Dante Paladini, desqualificou a ação das
organizações envolvidas no esclarecimento dessa história: “[...] No hay que descartar un
posible objetivo político y de fines no muy claros en el asunto de los niños encontrados en
Valparaíso. [...] El caso es posiblemente una tentativa de deteriorar las relaciones entre Chile
y Uruguay.”
179
À procura desesperada dos avós somava-se o trauma que estava gravado no
inconsciente das crianças. Psicólogos alertaram que a separação dos pais adotivos poderia
criar ou aumentar a situação traumática, como perder os pais por uma segunda vez.
Finalmente, com enorme desprendimento e compreensão da família biológica, foi feito um
acordo com a família adotiva. Segundo este, Anatole e Lucia Eva continuariam morando com
a família adotiva, manteriam seus verdadeiros nomes e poderiam visitar seus avós, no
Uruguai, com a proteção do ACNUR. Mas havia um item “perturbador”, a solução encontrada
e recomendada por psicólogos, pelas entidades de direitos humanos e pela Igreja chilena era
de que, em caso de reaparecimento de seus pais verdadeiros, as crianças voltariam para eles
imediatamente.
180
Esta situação motivou uma pergunta de Anatole, de extrema complexidade
para a cabeça de um menino com dificuldade de entender e abstrair tudo o que tinha sofrido.
Ao viajar pela primeira vez a Montevidéu e começar a ter contato com fatos, fotos, histórias e
178
ROSSI, Clóvis & CARVALHO, Ricardo. “Órfãos pela repressão”. Isto É, 08/08/79, p. 27.
179
Compañero. Publicação do PVP na clandestinidade e no exílio. Sem dados. Acervo da Luta Contra a
Ditadura. APOF.
180
Clamor, nº 8, Ano II, dezembro 1979.
774
amigos dos pais biológicos, perguntou a avó:
- Abuelita ¿todavía seguís buscando a mis papitos verdaderos?
- Sí, todavía los seguimos buscando y si algún día estos abuelitos ya no están
más, tus tíos o tus primos continuarán buscándolos.
- Abuela, yo quiero volver a mis papis, quiero volver a jugar con mamá,
quiero que papá vuelva a llevarme al zoológico. Pero abuelita, ¿qué vamos a
hacer con estos papás de Chile que tenemos ahora y a los que también
queremos mucho?
181
O caso dos irmãos Julien foi a demonstração concreta de que a coordenação
repressiva não tinha limites para suas ações. Sob as justificativas da Segurança Nacional, duas
crianças foram tratadas como inimigas e no seu seqüestro, transporte e ocultamento, se
envolveram três ditaduras da região agindo articuladamente dentro dos marcos estabelecidos
pela Operação Condor.
O caso Mariana Zaffaroni foi um dos que mais comoveu a sociedade uruguaia. A
menina foi seqüestrada junto com os pais, em 1976, em Buenos Aires. Tinha um ano e meio
de idade. Após anos de procura das avós, Mariana foi localizada com um casal de
apropriadores argentinos. Através da justiça, a família biológica tentou recuperar a menina.
Enquanto seguiam os trâmites na justiça, a avó María Ester recebeu duas cartas extensas,
assinadas por Daniela Furci, o nome dado pelos apropriadores de Mariana. Foi mais uma
agressão contra a família biológica e, particularmente, contra essa avó. Mariana, na época,
tinha nove anos e era evidente que as cartas, que emitiam complexos conceitos políticos,
filosóficos e morais e citações bíblicas, bem de acordo com as diretrizes da DSN, só podiam
ser da autoria do seqüestrador. A inverossimilidade das acusações torna patéticas as críticas
expressadas nas mesmas, mas junto a isso vinha toda uma alusão à vida familiar da menina
que certamente atingiu a família biológica e, certamente, aos avós de Mariana, pela referência
constante aos pais e às avós que verdadeiramente não o eram, pois referia-se à família
apropriadora. Numa dessas cartas, datada em 21/01/85,
182
dizia:
[...] Cuanto odio sentirá Ud. por mí y por mi familia, claro mis papis me
enseñan lo mejor y me educan como buenos cristianos que son. No me
imaginan usando uniforme y recibir instrucción militar aceptando las
enseñanzas y doctrinas de algún Partido, como Ud. les habrá inculcado a sus
hijos. Esto se lo digo por simple deducción... si no explíqueme qué hacían en
mí país su hija y su yerno en vez de estar en el Uruguay, unidos todos en el
seno familiar, ¿quiénes eran? ... ¿guerrilleros? [...].
181
SILVA, Perdidos en el bosque. Op. cit., p. 151.
182
SALABERRY, Mariela. Mariana, tu y nosotros. Montevideo: Banda Oriental, 1993. p. 141-145.
775
Há várias passagens em que a suposta Mariana/Daniela conta detalhes do seu dia a
dia, reforçando o amor recíproco que sentem ela, mãe e pai. E querendo produzir dor
profunda, escreve:
A las 12.00 del mediodía - como siempre - llama la ABUELA DELIA y casi
hace las mismas preguntas que a las 13.00hs. me hace la ABUELA
ZULEMA... Como estás mi amor?... estás jugando?... tomaste toda la
leche?... almorzaste, yo a todo respondo en forma afirmativa y luego les
corto, sin antes mandarles 1.000.000 de besos - entendió bien señora,
1.000.000 de besos para mis ABUELAS.
Quando a Justiça se pronunciou a favor da prisão dos Furci, eles fugiram para o
Paraguai, levando a menina. Mariana foi seqüestrada pela segunda vez. Casos de famílias de
repressores e apropriadores que fugiram para o Paraguai, após o fim da ditadura argentina,
temendo a ação da justiça diante dos crimes cometidos, foi um sinal bem claro da
sobrevivência das redes protetoras vinculadas à coordenação repressiva do Condor e a
confiança na imobilidade da ditadura Stroessner, garantindo segurança e nova documentação
para a imersão dessas famílias em um processo de blanqueamiento de identidade. Assim, os
Furci sumiram sem deixar rastos, protegidos pelo esquema repressivo regional, que se
mantinha intocável, escondidos no Paraguai. Com a facilitação de documentos fornecidos por
antigos colaboradores, assumiram nova identidade. Diante da passagem do tempo, as avós
María Ester e Martha quiseram deixar algum registro para a menina; passaram a escrever-lhe
cartas para que em algum futuro, distante ou não, pudesse saber delas, dos seus sentimentos e
dos seus verdadeiros pais:
Mariana:
Si por casualidad puedes leer esto o alguna persona conocida te lo puede
transmitir, yo quisiera que tú supieras que fuiste esperada con mucho amor
por tu madre, tu padre y toda tu familia.
Tus padres no te abandonaron. Tus abuelas te buscamos desde el primer
momento. [...]
Mariana, no podemos hacer nada de esto. Sólo juntar nuestros recuerdos,
escribírtelos y hacértelos llegar como un regalo, para que cuando lo llegues a
leer - porque llegará ese día - veas en estas líneas tu presencia constante en
nuestras vidas y el anhelo sin límite de compartir tu existencia.
183
Passaram-se outros tantos anos até que a pista dos Furci fosse retomada. Finalmente
isso aconteceu e o casal apropriador foi encontrado e julgado. Em 1993, a justiça se
pronunciou: sete anos de prisão para o homem e três para a mulher. Porém, não houve o final
feliz desejado pelas avós. A reação de Mariana foi o oposto ao que elas imaginavam. Mariana
776
rejeitava sua verdadeira história, seu nome; não queria ter contato com a família biológica e
manifestava carinho pelos pais apropriadores. Obrigada pela justiça, aos 18 anos fez o teste de
sangue que confirmou o que já se sabia. Foi a justiça também que lhe restituiu seu verdadeiro
nome, mas não conseguiu restituir-lhe os sentimentos que naturalmente teria desenvolvido se
não tivesse sido vítima de um crime dessa magnitude. O juiz Marquevich lembra que ordenou
ao Registro Nacional de las Personas para que mudasse o nome da jovem. Daniela Romina
Furci devia deixar de existir para que Mariana tivesse sua identidade restituída. Sabedor do
drama íntimo da menina afirmou: “Es un acto que parece administrativo, formal. Pero es
como una muerte. Esa persona ya no está más.”
184
Estela de Carlotto, presidente de Abuelas
de Plaza de Mayo, na ocasião, opinou de forma diferente:
La primera muerte de Mariana y de todos los chicos es la apropriación. Ahí
la hacen desaparecer y los hacen nacer falsamente. Al devolverle la
identidad nosotros no decimos que mataron a Romina Furci, decimos que
revivieron a Mariana. Vuelve la vida.
185
A reação de Mariana foi marcada por incertezas, dúvidas e rejeição. No secundário,
teve que elaborar uma redação cujo título era Una joven busca empleo. O resultado é um
complexo testemunho sobre as dificuldades de Mariana e de toda uma geração que teve que
conviver com um mundo construído sob alicerces falsos que estava desmoronando e outro
novo, mas completamente desconhecido.
186
Un hombre uniformado de gris me preguntó: “¿Nombre y apellido?” ¿qué
hubiera contestado? ¿Que durante toda mi vida mi gente me llamó Daniela
Furci; pero que ahora hay gente que dice que me llamo Mariana Zaffaroni
Islas? ¿Que el nombre que llevé durante toda mi vida y que me dieron mis
padres - que ahora están presos por habérmelo dado - no es legalmente el
mío? Preferí sentirme ilegal antes que traidora. Así que respondí: Daniela
Romina Furci. “¿Nacionalidad?” Soy argentina. Pero tengo dos orígenes
diferentes. Uno de padres uruguayos, subversivos. El otro de padres
argentinos. Mi padre luchaba del otro lado. Un día yo llegué a él y él eligió
entre pegarme un tiro en la cabeza o cuidarme como la hija que nunca pudo
tener. Su humanidad y su deseo de ser el mejor padre del mundo lo llevó a la
segunda opción. Ahora lo está pagando como si me hubiera matado. [...]
187
Mariana responsabilizou a família biológica pela prisão do casal Furci e continuou
vivendo com a avó materna adotiva. Após anos desejando abraçá-la, as avós e as tias
183
Carta de María Ester Gatti. In: SILVA, Perdidos en el bosque. Op. cit., p. 39.
184
Revista Trespuntos, 29/07/98, p. 32.
185
Idem.
186
Situação de outras crianças apropriadas cujos pais foram mortos ou desaparecidos pelas ditaduras e cujas
histórias ou detalhes da sua luta lhes eram desconhecidos, fosse por sentimento protetor de quem delas tomou
conta, ou por discordar daqueles jovens idealistas.
187
Revista Trespuntos, 29/07/98, p. 31.
777
biológicas descobriram que a moça de 18 anos que tinham na sua frente, no Juzgado de San
Isidro (Buenos Aires), estava muito distante das fotografias e das lembranças que tinham
motivado sua procura incessante, procura que fora um verdadeiro símbolo para a sociedade
uruguaia durante a campanha do plebiscito convocado para reverter a anistia aos crimes de
Estado, em 1989. As seqüelas do seqüestro e da apropriação, neste caso, foram resultado das
práticas mais perversas do TDE, implementadas para que não tivessem somente efeitos no
momento da sua aplicação, mas que se multiplicassem sobre o tempo futuro e sobre as
gerações futuras. Aos olhos de Mariana, seus pais adotivos não são apropriadores, que
ficaram com ela a partir de uma delicada premissa anterior - a de que seus verdadeiros pais
foram assassinados pelo mesmo regime que encobriu e encorajou seu seqüestro, regime que
contou diretamente em suas fileiras repressores como Furci.
No Juzgado, o encontro citado das avós e das tias com Mariana foi muito duro. A
jovem tão procurada, tão querida pela família biológica, teve uma atitude fria e distante; nem
no pior dos pesadelos as avós poderiam imaginar a rejeição que encontraram.
Mariana: ¿Y si no me hubieran buscado?
Tía Cecilia: ¿Qué hubieras pensado tú, después que te enterás que tenías una
familia, si esa familia te hubiera dejado abandonada y no te hubiera
buscado? ¿Qué hubieras pensado?
Mariana: ¿Y nunca pensaron en mí, nunca pensaron en mí dolor?
Abuela Maria Ester: ¡Cómo no! Si habremos pensado en ti que te estuvimos
buscando 16 años. Permanentemente. Y ahora comprendemos el dolor y la
confusión que deberás estar sintiendo. Pero tú, ¿alguna vez pensaste en
nosotros? ¿Pensaste que nos mataron los hijos? ¿Pensaste que lo único que
nos dejaron sos tú? Y Marta [a outra avó biológica] tiene más hijos y más
nietos. Pero yo, ahora, lo único que me queda sos tú.
188
No meio de tanta dor, a avó María Ester chegou a externar o seguinte: “Pienso que
Mariana en algún momento va a cambiar; cuando sea mayor, cuando sea madre, quizá. Va a
sentir otros sentimientos, distintos a los que tiene ahora. Claro que yo ya no voy a estar, sus
tiempos son distintos a los míos.”
189
De fato, o tempo passou. Mariana se formou em Direito
e teve uma filha. E a esperança da avó María Ester parcialmente se concretizou. A
maternidade fez Mariana recapacitar. Provavelmente, lembrou da mãe, o que a motivou a
aproximar-se da antiga família e a procurar os avós verdadeiros, mesmo que para estabelecer
uma relação marcada por sentimentos divididos, desconfiança e contradições. Entretanto,
pouco tempo restou. Durante 17 anos foi procurada e, quando sua verdadeira identidade foi
restituída, seguiram-se anos de rejeição. Quando decidiu tomar a iniciativa, os avôs já haviam
188
SALABERRY, op. cit., p. 100.
189
Revista Trespuntos, 29/07/98, p. 31.
778
falecido, e a avó Martha mal conseguia abraçar a neta e a bisneta, falecendo pouco depois.
190
O caso Mariana reflete um dos maiores traumas produzidos pelas políticas
repressivas de Estado. Para a família que viveu a violência, tratou-se de perdas humanas
irrecuperáveis, da perda de tempo atrás da ilusão do reencontro da neta e sobrinha. E quando
ele aconteceu, foi muito diferente do que se imaginava. Devem aceitar que é uma pessoa
dividida; devem aceitar dividi-la com pessoas que foram responsáveis pelo seu seqüestro e
apropriação, talvez até responsáveis pela morte dos pais verdadeiros; devem aceitar que lhe
devem dar tempo, um tempo indefinido, que é o do seu amadurecimento para enfrentar tudo
isso, mas que pode ser fatal para os mais velhos. É a dor de múltiplas perdas. Para a
criança/adolescente/jovem, uma terrível situação de descobertas que lhe exige muito. Perdas,
descobertas, decepções, angústia, sentimentos divididos, todo um sistema de valores e uma
estrutura familiar que se desmorona como um castelo de cartas e, como saldo, a penosa
reconstituição de tudo isso.
A experiência traumática existente no caso Mariana Zaffaroni, que também se
encontra de forma diversa nas demais situações semelhantes, possui vários níveis a
considerar. Por um lado, é inegável que o Terror de Estado devastou o real entorno de
Mariana sem ela ter plena noção disso. Depois, ela continuou sofrendo uma violência
invisível através da perpetuação da apropriação e da sonegação da sua identidade. Ao
tornarem-se públicos os crimes cometidos (seqüestro e apropriação) Mariana/Daniela viu o
seu entorno (sustentado em crimes e mentiras) brutalmente agredido e, desconhecendo o
motivo originário, reagiu defensivamente procurando protegê-lo. Por outro lado, a violência
interminável sofrida pelas famílias que procuraram. Perderam os filhos, provavelmente de
forma brutal, e perseguiram incessantemente toda e qualquer pista que pudesse levar à
criança, último vestígio do que restou dos projetos dos filhos. Os mais velhos, consumiram a
energia dos seus últimos anos, num mano a mano contra a passagem do tempo. Angústias,
incertezas, a constatação da impunidade e a solidão diante do Estado e da justiça acentuaram
as dificuldades. Finalmente, um pouco afastada da centralidade desses protagonistas mas não
por isso secundária, uma violência que atingiu em cheio o coletivo do entorno desse drama; a
sociedade como um todo também foi abalada por tantas contrariedades a superar no
reencontro da família e da criança procurada. As frustrações e a tristeza diante das fugas dos
Furci e a impotência diante da frustração das expectativas de um reencontro feliz que não se
confirmou ou que, na melhor das hipóteses, foi bem diferente e muito mais contraditório do
190
LIMA, Samarone. Clamor. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 203.
779
que se imaginara. A prolongação dessa dor coletiva encontrada em amplos setores da
sociedade uruguaia é a confirmação da eficiência do TDE ao conseguir projetar
desdobramentos da sua ação particular, contra o alvo maior visado pela implantação da
pedagogia do medo.
É provável que Mariana, na lenta e difícil aproximação da família verdadeira e ao
tomar consciência do significado da sua procura e da dimensão do drama e do esforço vivido
pelos avós verdadeiros, talvez tenha sentido remorsos por ter demorado os abraços
aguardados. Porém, Mariana não é culpada disso; não sendo a única vítima dessa história, ela
sempre foi e será a maior vítima desse processo.
Outro caso muito particular envolve os irmãos Hernández Hobbas. Em dezembro de
1998 foi identificada e recuperada em Buenos Aires, Andrea Hernández Hobbas, de 26 anos,
filha de Nelson Hernández e Lourdes Hobbas. O casal refugiara-se na Argentina com seus
quatro filhos. Em 1976 o pai foi detido e processado pela justiça argentina. Em fevereiro de
1977, a mãe, vinculada à organização montoneros, foi seqüestrada. Os filhos foram divididos
e ficaram com companheiros vinculados àquela organização. A exceção foi Esteban, de 11
anos, que ficou com um amigo do avô materno. Algum tempo depois, Esteban recebeu a
visita de civis atrás de informação sobre amigos da mãe (nomes e números de telefones).
Como o menino não colaborou, trouxeram-lhe a própria mãe, detida, para que ele falasse (a
lógica de ameaçar pai diante de filho ou vice-versa), fato que não mudou o comportamento de
Esteban, o qual havia recebido essa orientação da própria mãe, prevendo uma situação futura
parecida. Antes de retirar-se, a mãe pediu ao responsável pelo filho que o enviasse à família
paterna, em Montevidéu. Enquanto isso, Beatriz e Washington foram detidos com dois dias de
diferença, em julho do mesmo ano. Foram detidos com outras pessoas, mas alguém que os
conhecia afirmou que os irmãos estavam juntos em um dos automóveis usados no operativo.
Nunca mais apareceram. A pequena Andrea ficou com um casal amigo que logo teve que
partir para o exílio; deixaram-na, então, com um casal vizinho que posteriormente a adotou e
mudou seu nome, o que dificultou sua procura.
Quando o pai saiu da prisão, encontrou toda a família dizimada. Inseguro na
Argentina e no Uruguai, onde alguém com seus antecedentes permanecia suspeito para
sempre, decidiu partir para o exílio europeu com Esteban, único sobrevivente da sua família.
Porém, a ditadura uruguaia impediu que o menino viajasse, alegando que precisava da
permissão da mãe para viajar ao exterior e, insensível, desconheceu completamente sua
situação de desaparecida. O pai partiu e morreu em 1978. Esteban teve que conviver durante
21 anos com o sofrimento de ter tido o pai falecido no exílio após dura prisão, além da dor
780
pelo desaparecimento da mãe e dos três irmãos. Em 1998 reapareceu Andrea; a família
adotiva havia agido com ela como apropriadora: lhe havia negado sua história, suprimira-lhe
o estado civil, criara-a sem memória. O pai adotivo, antes de morrer, contou a Andrea, que
então já tinha um filho, seu verdadeiro sobrenome, mas a mãe adotiva se negou a dar maiores
informações. Andrea procurou Abuelas suspeitando ser filha de desaparecidos, o que permitiu
que recuperasse sua identidade e se reencontrasse com seu irmão.
191
Merece menção, também, o que se denominou caso Gelman, ou seja, o esforço do
poeta argentino para encontrar sua neta, uma criança nascida em cativeiro, filha de Marcelo
Gelman e de María Claudia García Irureta Goyena. Este caso se reveste de importância por
ser um dos dois casos de seqüestro de criança argentina e a única apropriação acontecida no
Uruguai. Em agosto de 1976, o casal argentino Marcelo e María Claudia, grávida de sete
meses, foram seqüestrados em Buenos Aires por um comando da SIDE. O cadáver de
Marcelo foi encontrado dentro de um barril cheio de cimento no fundo de um canal, na zona
do Tigre, em Buenos Aires. Na persistência pela procura da nora e da criança que devia ter
nascido, Gelman recolheu o depoimento de um sobrevivente de Automotores Orletti que
indicava que Maria Claudia teria sido levada de lá para o Uruguai. Uma sobrevivente
uruguaia de Orletti, Mónica Soliño, refém da “Operação Invasão”, confirmou ter visto María
Cáudia tanto no centro de detenção clandestino de Buenos Aires quanto, depois, na sede do
SID, em Montevidéu. Provavelmente, foi levada ao Uruguai por equívoco em função dos
comandos que agiam na Argentina terem confundido a jovem com requeridos uruguaios de
sobrenome Irureta Goyena. María Claudia foi levada de Automotores Orletti para Montevidéu
(entre 30/09 e 01/10/76), junto com os irmãos Julien, custodiados por Gavazzo e Rodríguez
Buratti. Os três estiveram na sede do SID. Depois, os irmãos foram levados a Valparaíso e
María Claudia para o Hospital Militar de Montevidéu, onde ficou até o nascimento da criança,
uma menina. Segundo o depoimento do já citado Julio César Barboza Plá, a criança deve ter
nascido depois de outubro de 1976.
192
Depois, os oficiais Rodríguez Buratti e José Arab
levaram as duas. Nesse momento, Rodríguez Buratti teria comentado: “A veces hay que hacer
cosas enbromadas.”
193
Logo depois, os registros da jovem argentina se perderam por muitos
anos. As investigações que permitiram a Juan Gelman armar o quebra-cabeça repercutiram na
imprensa. O jornal La República indicava que após sofrer o roubo da menina, María Cláudia
havia sido levada a outro centro de detenção clandestino, onde teria sido executada pelo
191
“El caso de Andrea Hobbas conmociona a la Argentina”. La República, Montevideo, 08/02/03, p. 5.
192
SERPAJ. op. cit, p. 288.
193
No depoimento de Julio César Barboza Plá, a frase aparece como sendo de Arab (idem).
781
capitão Ricardo Medina Blanco.
194
Quanto à criança, os oficiais Jorge “pajarito” Silveira e
Ricardo Medina a entregaram à família que a inscreveu como filha legítima.
195
Durante sua gestão, o presidente Sanguinetti negou qualquer ajuda ao poeta enquanto
uma enorme campanha internacional de intelectuais e de artistas pressionavam o governo
uruguaio. No ano de 2000, finalmente, Juan Gelman encontrou a neta, de 23 anos. Ela morava
no Uruguai e havia sido criada por um policial desvinculado da repressão. Tal fato foi o dado
concreto para desmistificar uma série de afirmações oficiais, das Forças Armadas e da própria
autoridade presidencial, que até então, contrariando inúmeros depoimentos de diversas
origens e pistas variadas, insistiam na tese de que, no Uruguai, o combate à “subversão” tinha
sido qualitativamente diferente do que havia sido em outros países do Cone Sul,
marcadamente da Argentina. El Uruguay es diferente, disseram, enquanto responsabilizavam
a ditadura vizinha pela morte e desaparecimento de dezenas de cidadãos uruguaios.
A elucidação do caso Gelman permitiu esclarecer que, no Uruguai, uma criança
nasceu em cativeiro e que sua mãe foi tratada como “incubadora”. A presença de uma cidadã
argentina seqüestrada em Buenos Aires, levada clandestinamente ao Uruguai, onde foi
mantida como detida-desaparecida e, provavelmente, assassinada e definitivamente
desaparecida, confirma o intercâmbio de ações e informações da coordenação repressiva
binacional demarcada sob a Operação Condor. A configuração dessa operação implica em
reconhecer a existência de uma infra-estrutura de centros clandestinos de detenção, forças de
segurança, hospitais e pessoal civil também envolvido com a coordenação repressiva
internacional. A situação de María Claudia foi a de uma jovem argentina que sempre esteve
em cativeiro no Uruguai e que, portanto, não desempenhou nenhum tipo de atividade
relacionada com a política interna uruguaia. Sua morte não encontra sustentação em nenhuma
justificativa da DSN. Como teria seu filho roubado, deveria ser executada para que nunca
pudesse denunciar tal crime nem os que presenciou durante o período de gestação. Em
síntese, el Uruguay no fue diferente. O TDE uruguaio, além de ser responsável pela repressão
sofrida pelos cidadãos exilados em outros países da região, seqüestrou e apropriou crianças no
seu território (os irmãos Julien sofreram a mesma condição durante um tempo indefinido),
executou uma mãe estrangeira e deu cobertura permanente para todos os envolvidos,
assumindo essas ações como políticas de Estado. Como a impunidade permaneceu nas
décadas seguintes, os governos posteriores se tornaram reféns dessa lógica; mas também
194
“Juez Mirabal comenzó a recabar testimonios sobre la desaparición de la nuera de Gelman”. La República,
19/02/03, p. 2.
195
Estas informações foram retiradas, principalmente, da matéria de Samuel Blixen, “La mentira no pagó”,
publicada em Brecha, em 07/04/00.
782
foram coniventes.
Finalmente, cabe citar o caso Simón Riquelo, outro que impactou muito os
rioplatenses em função de alguns aspectos muito particulares. Primeiro, sua mãe, Sara
Méndez, uruguaia seqüestrada na Argentina e envolvida na farsa da “Operação Invasão”, é
uma das poucas mães que sobreviveu ao seqüestro do próprio filho (a única dos casos
envolvendo apropriação de crianças uruguaias). Segundo, o pequeno Simón foi seqüestrado
com vinte dias de vida. Terceiro, no momento em que Simón era arrancado dos braços de
Sara, o repressor Gavazzo, para tranqüilizar a mãe que vinha sofrendo uma dura detenção
clandestina e que enfrentaria depois longa prisão legal, disse-lhe, cinicamente, a frase lapidar
(já referida): “No se preocupe señora, esta guerra no es contra los niños”
196
, garantindo que o
bebê seria entregue à família. Quarto, estando presa, Sara teve que enfrentar permanentemente
a ausência de uma criança que, diferente dos filhos de outras presas, nunca poderia visitá-la e
cuja ausência lhe era lembrada pelo sistema carcerário como forma de reforçar a tortura de
viver com essa perda. As próprias companheiras de prisão relatam situações de tortura
psicológica que eram destinadas a ela mas que atingiam o conjunto das presas. O já
comentado Jorge “pajarito” Silveira, encarregado do S2 (inteligência) no presídio feminino de
Punta de Rieles, costumava levar seu filho de mais ou menos dois anos às festas que faziam
perto da cela. “Nosotras pensábamos que era una forma de presionarnos, era un hostigamiento
en especial contra Sara.” Conta-se que, de mãos dadas com o menino, uma vez entrou no
barraco das presas e mostrado-o disse-lhes: “La edad de mi hijo debe ser la que tiene el hijo
de Sara, ¿no?” Ninguém contestou nada. “¿Qué le podias contestar a algo así?”
197
Quinto,
desde que saiu da prisão, Sara Méndez lutou incansavelmente à procura do seu filho, apesar
do completo descaso e das obstruções colocadas pelas autoridades de quatro governos
democraticamente eleitos. Sexto, em 1989, na campanha do Plebiscito sobre a Ley de
Caducidad, Simón Riquelo e Mariana Zaffaroni foram os principais símbolos escolhidos
pelos críticos da anistia aos militares. Sétimo, nas suas investigações, Sara chegou a ter fortes
indícios de que havia identificado a Simón; durante anos, diante da ausência do apoio
institucional do Poder Executivo e da justiça uruguaia e frente à negativa da família do
suposto Simón em permitir o teste de DNA que dirimisse as dúvidas, Sara cultivou
expectativas como quase certezas. Finalmente, o rapaz fez o teste. A pessoa que durante anos
Sara imaginou ser Simón (um rosto, um corpo, uma voz, um nome, mesmo que falso), não era
196
Testimonio de Sara Méndez no Julgamento contra os Comandantes argentinos, em 1985. Informe de Madres
y Familiares de Uruguayos Detenidos Desaparecidos. A todos ellos. Montevideo, 2004, p. 203.
197
“No sólo fui torturada sino que también fui violada por el coronel Jorge Silveira”. La República, 20/11/03.
783
seu filho. Era como se estivesse ocorrendo uma segunda desaparição de Simón Riquelo:
Otra de las tremendas canalladas de estos años consistió en que durante 15
años se dejó que Sara Méndez y también primero su compañero antes de
fallecer pensaran que habían encontrado a quien era su hijo, e intentaran por
todos los medios jurídicos posibles y tropezaran también con todos los
obstáculos jurídicos imaginables e inimaginables y después resultaba que no
lo era y de que aparentemente se sabía que no lo era [...].
198
Finalmente, em 2003, após 27 anos de separação forçada, Sara e Simón se
reencontraram; puderam retomar uma estreita relação interrompida quando o então pequeno
Simón tinha vinte dias de vida.
Poucos dias depois de confirmar-se publicamente o aparecimento de Simón Riquelo,
seu primo Daniel Gatti
199
lhe escreveu publicamente a seguinte carta. Optei por apresentá-la
integralmente por dois motivos. Primeiro, pela complexidade e riqueza que ela possui ao
desenhar as múltiplas dimensões de um drama humano terrivelmente amplificado pela
dinâmica da política de TDE no momento em que foi aplicada. Segundo, é muito difícil fazer
uma síntese de tudo o que ela comporta, pois cada leitor é tocado de forma diversa. Até
porque é o primeiro contato entre dois primos, um, filho de desaparecido; o outro, um
desaparecido que acaba de ter a identidade restituída. Um, teve o pai desaparecido; o outro,
nunca conhecerá o seu. Tanto os protagonistas apresentados no texto quanto o autor e o
destinatário continuam sendo vítimas de uma política residual, direta ou indireta, de Terror de
Estado, que persiste graças à conivência, à impunidade e à desmemória.
A Simón, com Mauro al fondo
De vértigo. Entre reuniones familiares domingueras, cada vez más
espaciadas a medida que los setenta reemplazaban a los sesenta, alguna ida
al Estadio a ver a Peñarol, el gran paréntesis de Buenos Aires, los encuentros
de minutos una vez llegados a Europa, en París, en Barcelona, casi siempre
demasiado mediados por “la política”. Así conocí a Mauricio, tu padre, mi
tío. Siempre apurados, sin tiempo.
Todas estas cosas dejan marcas, costras que uno lleva adentro y que a él,
como a todos nosotros, lo marcaron. Tu ausencia le pesó siempre, no dejó de
buscarte, a veces mal, a veces bien. Nunca me cerró la imagen que de él
198
Doctor A. Pérez Pérez, catedrático de Direito Constitucional da Universidad de la República. Mesa redonda
final do Seminário La Memoria y el Futuro: Las Comisiones de la Verdad en la experiencia internacional. In:
MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS DETENIDOS DESAPARECIDOS. La Memoria y el Futuro.
Montevideo: 2002. p. 133.
199
Daniel Gatti é filho de Gerardo Gatti, líder do PVP e militante histórico da Federación Anarquista del
Uruguay seqüestrado em Buenos Aires e que antes de ser desaparecido em Automotores Orletti sofreu a
chantagem do comando repressivo binacional que exigia dois milhões de dólares por sua libertação (cf. p. 719).
Gerardo Gatti era irmão de Mauricio Gatti, pai de Simón, que pertencia à direção do PVP e que participou da
difícil tomada de decisão de não negociar com os seqüestradores. Mauricio Gatti morreu em 1992, onze anos
antes de que Simón fosse reencontrado.
784
mismo se empeñaba en mostrar de “cuadro político”, de dirigente. Mauro era
un blando, en el mejor sentido de la palabra. Disfrazado de duro. En otra
época, en otra circunstancia, podría haber sido un bon vivant, si caben
extrapolaciones así, que pueden sonar hasta estúpidas. Le gustaba vivir,
aunque coqueteaba desde hace mucho con la muerte. Vivía sumergido en esa
frontera, que a veces lo llevaba (me lo dijo en una de las pocas veces en que
nos abrimos, creo que fue en Barcelona, a comienzos de los ochenta, en una
recorrida por boliches catalanes, yo tenía poco más de veinte años) a desear
vivir al límite, a no saber existir de otra manera. Se callaba, explotaba, se
mamaba, hería a otros, jodía, quería bien a veces, quería mal muchas otras.
Podría haber sido (capaz que lo era) un gran seductor. Recuerdo cómo una
vez, con él ya muerto – hacia poco que yo había regresado a Montevideo -,
Felipe, tu medio hermano – tan parecido físicamente a él, como también se
le parece tu otra media hermana, Paula – me miró sorprendido cuando le
conté que Mauricio gritaba como loco en la cancha, puteaba y sufría con
Peñarol, como cualquier hincha, como el propio Felipe. Me pareció que él no
podía creerlo, porque no lo veía así. Era una anécdota de muchos años atrás,
una de las pocas veces que nos divertimos juntos, pero no creo que hubiera
sido demasiado diferente en los últimos años, si se lo hubiera permitido.
Gran devorador de libros policiales, gran carnavalero (de chico tocaba el
tamboril, salía con las murgas, se pintaba la cara), le hubiera gustado escribir
(“si me diera el cuero y el tiempo”, me dijo) una novela negra ambientada en
Montevideo, entre las calles del barrio Sur, el de los negros de por aquí.
El drama siempre rondaba. Nos rondaba. A él de una manera, a mí de otra,
pero lo dos elegíamos, como en un pacto tácito, no hablar de él. Estaba ahí.
A veces él rompía el silencio y lo hacía explícito. Cuando a fines de los
ochenta pudo por fin volver a la cerámica (me dijo una vez, cuando se
preguntaba cómo hubiera sido su vida de no haber pasado años clandestino o
preso, siempre al límite, que le hubiera gustado dedicarse a “garabatear”)
entre lo primero que torpemente “le salió” había una especie de vasija con un
agujero posterior. El agujero era el balazo con el que imaginaba habían
liquidado a su hermano Gerardo, tu tío, mi padre. “No podían haberlo hecho
de otra manera. Por atrás”, decía. La obsesión permanente del hermano.
Martirizado. Abandonado. Su “culpa” por haberse salvado. Su culpa también
por haber estado entre quienes decidieron, en aquel junio de 1976 en que vos
naciste, pagar los dos millones de dólares que por la vida de tu tío-mi padre
pedían las mismas bestias que a vos te arrancaron a tu madre y te
abandonaron en un moisés. Motivos suficientes tenía para pensar que
efectivamente ni los dos millones – ni cuatro, ni diez, ni veinte – iban a hacer
que a su hermano, tu tío, mi padre, lo devolvieran a la vida. Desde su
cautiverio, el propio Gerardo, tu tío, mi padre, había hecho saber que nunca
iban a liberarlo. ¿Pero, y si no? La duda siempre le quedó a Mauro. Otra
bestialidad de las bestias, una duda con la que tu padre vivió los 15 años que
le quedaron.
Y la impronta anarca, que pese a los sueños rotos, las derrotas múltiples, las
nuevas lecturas que hubiera podido hacer y que lo llevaron por derroteros en
los que nunca creyó demasiado, no terminó de perder. Mas bien reafirmó, tal
vez precisamente a raíz de esas mismas derrotas. El suyo era un anarquismo
más del cuore que teórico, más vivido desde adentro, de una rebelión casi
instintiva ante las injusticias sociales, de la bronca, del deseo de construir
algo diferente. Se hubiera sentido bien, creo, en esa Argentina comunera
“tuya” de ahora, de las asambleas barriales, de los piquetes, de los
cacerolazos.
Digo “tuya” y paro. ¿Qué sé yo de “tu” Argentina? ¿Qué sé yo de vos, vos
de mi? Intuyo que puedo estar errándole al tono, al fondo, al tono y al fondo
785
juntos, de esta carta. Que esté hablándote en chino. No sólo las edades, las
historias son muy distintas, y transmitirlas para hacerlas “una” es hasta
indeseable a esta altura del partido. Otra de las bestialidades de las bestias:
ese verdadero embarrar la cancha que en otros casos hizo por momentos casi
imposible que se “tocaran”, que se rozaran incluso, las historias. Habrá que
ver. Parece que el comienzo es bueno.
200
A metodologia repressiva de seqüestro, desaparecimento e apropriação de crianças
talvez seja, entre tantas outras desenvolvidas pelos regimes de Segurança Nacional, a que
produziu maiores feridas, na medida em que é um crime cuja gravidade se multiplica, pois
continua acontecendo permantemente, no caso de alguém que continua seqüestrado e sofre a
persistência de ter sua identidade sonegada, mas que também se reflete nos casos onde
ocorreu a restituição de identidade. Comparativamente, se a condição de desaparecido
termina com a aparição dos restos mortais, no caso das crianças apropriadas, recuperadas ou
não, os efeitos dessa apropriação continuam, provavelmente para sempre.
201
A sociedade uruguaia viveu e vive o desaparecimento-apropriação de crianças com
um sentimento muito forte. Num primeiro momento, enquanto pouco se sabia sobre essas
experiências, uma postura de denúncia marcada pela indignação e pela raiva e a completa
solidariedade às famílias que procuravam era um efeito mobilizador. A restituição de
identidade das primeiras crianças encontradas como os irmãos Julien, Amaral García e a
menina María Victoria reforçaram a procura. E se, por um lado, havia o registro da tragédia
dos pais, por outro, a relação que se estabeleceu entre as crianças restituídas e as famílias
biológicas, particularmente com os avós, remarcavam a idéia de, após tanta dor, existir a
possibilidade de um final feliz. O que fez com que o prolongamento da agonia do não-
reencontro nos casos emblemáticos de Mariana Zaffaroni e Simón Riquelo fosse compensado
pelo entendimento, cada vez mais amplificado no conjunto da sociedade, da justeza da luta
pela sua procura. O ponto alto dessa relação foi o Referendum de 1989. A utilização da
imagem dos olhos de Mariana e a foto do pequeno Simón foram fatores de mobilização da
campanha contra a Ley de Impunidad. Mesmo com a sentida derrota do voto verde, que
representava a posição contra aquela lei, a persistência do seqüestro das crianças manteve
uma solidariedade incondicional de parte da população. Por um lado, solidariedade aos que
procuravam: às avós, que procuravam com insistência diante de uma difícil luta contra o
tempo; à Sara Méndez, a mãe que sobrevivera ao seqüestro do filho de vinte dias; aos demais
familiares e amigos. Por outro lado, solidariedade às crianças apropriadas. Mesmo para parte
200
GATTI, Daniel. A Simón, con Mauro al fondo. Brecha, 23/03/02, contratapa.
201
MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS DETENIDOS DESAPARECIDOS. A Todos Ellos. Op. cit.,
p. 528.
786
dos setores que, de alguma forma, aceitavam as teses defendidas pelos responsáveis do TDE
(a teoria dos dois demônios, o por algo será, etc.), o seqüestro das crianças e sua apropriação
era um fato difícil de justificar. Mantinha-se a expectativa de que, se o reencontro fosse
possível, seria recompensador para uns e outros; a idéia de final feliz permanecia, embora o
tempo de contato perdido e o fato de que a passagem dos anos jogavam contra a geração dos
avôs.
Nos anos 90, entretanto, novos casos de restituição mostraram como eram
complexas as marcas produzidas pela experiência traumática. Agora eram encontrados jovens
ou adultos, muitos dos quais não pareciam guardar traços das crianças das fotos. As famílias
e as organizações de direitos humanos sempre estiveram desassistidas por um Estado ausente
e omisso das suas responsabilidades passadas (os crimes de Estado) e presentes (acolher essas
demandas pontuais da cidadania). Pior, o ônus da investigação, da prova e do enfrentamento
contra o ocultamento e a mentira ficava como responsabilidade das vítimas que
procuravam.
202
Vítimas não de crimes ocorridos há trinta anos atrás, mas crimes que se
reproduziam a cada instante, pois o crime de desaparecimento e o de apropriação de crianças
são imprescriptíveis. Vítimas que tiveram de enfrentar novos desafios e situações
imponderáveis.
As avós e os familiares tiveram que compreender que, em toda restituição, pode
estar ocorrendo uma nova separação (mesmo que de uma relação sustentada sobre uma base
de mentiras e experiências traumáticas) e que a descoberta do que ocorreu aos pais
verdadeiros representa um novo choque emocional, da mesma forma que saber o quanto a
família de criação estava envolvida nisso. Talvez o maior desafio para quem procura tenha
sido enfrentar a dolorosa situação de que o “final feliz” tão aguardado foi, em muitos casos,
uma ilusão, um desejo distante das situações concretas que se apresentaram caso a caso, e ter
que aceitar que essas crianças que foram seqüestradas e mantidas desaparecidas pelos pais
apropriadores, podiam ainda sentir carinho por eles, mesmo após tamanha descoberta. Como
diz Mariana, quando tenta justificar a continuidade da sua relação com Furci: ele a salvou por
amor, para que não fosse executada. Mariana descontextualiza tudo o que ocorreu,
desconsidera o protagonismo do repressor Furci. Como apropriada, tornou-se refém desde
que foi arrancada dos braços dos seus pais, tornando-se também refém das suas emoções,
202
Não só das famílias remanescentes que procuram suas crianças, mas de adultos que, desconfiando das suas
origens, se aproximaram das organizações de direitos humanos, confirmando a profecia das Abuelas de Plaza de
Mayo quando, apostando nas campanhas pedagógicas de conscientização que desenvolviam junto à sociedade,
afirmavam que chegaria o dia em que os netos procurariam as avós. Tais casos têm sido cada vez mais
freqüentes e a uruguaia Andrea Hernández Hobbas é exemplo disso.
787
através de um sentimento de gratidão ou de fidelidade que, visto de fora, parece irracional
(fidelidade explicitada no texto escrito no secundário). São muitos os casos como esse,
embora, como situação em aberto, é possível que possa mudar, que seja uma etapa de
transição acompanhando o amadurecimento da vítima: a necessidade de procurar maiores
informações sobre essa história vivida, tão peculiar e difícil de ser compreendida, na medida
em que se descobre algumas características e afinidades dos pais biológicos e da “nova”
família.
Portanto, os familiares que procuraram tiveram que aprender com as multifacetadas
respostas que colhiam de cada indivíduo que recuperava sua identidade; entender o problema
desde a perspectiva dos apropriados, suas reações de dubiedade, insegurança, revolta,
rejeição, culpa por parecer ingrato com quem o “acolheu”. Sem dúvida, casos de medo frente
a um presente confuso e a um futuro imprevisível após a erosão de um passado de valores,
afetos e certezas, baseados em relações que a sociedade denunciava como criminosas. E a
persistência de uma certa confusão mental ou de uma aparente dupla identidade entre quem
foi e quem é, como tentando transitar dois mundos que são excludentes; isso é extremamente
difícil de sustentar por quem sofreu apropriação (diferente dos que foram adotados por
famílias que desconheciam sua origem). Amaral García diz que, às vezes, tem a sensação de
estar em Buenos Aires e ser de novo Juan Manuel; Anatole Julien lembra que, quando
começou a viajar para o Uruguai, após o reencontro com sua família biológica, soube que lá
ele era conhecido como Anatole Boris Julien Grisonas, enquanto que no Chile permanecia
como Anatole Alejandro Larrabeiti Yañez. Mariana Zaffaroni manifestou muitas vezes que
continuava Daniela Furci e que considerava uma violência ser obrigada a trocar de nome.
203
Apesar da frase de Gavazzo de que “esta guerra no es contra los niños”, os fatos
demonstraram o contrário e confirmaram que essa modalidade repressiva foi uma política de
Estado. As responsabilidades das altas autoridades da ditadura são mútiplas. O Estado
uruguaio prendeu crianças e as manteve seqüestradas, por tempo variável, como no caso dos
irmãos Julien, dos filhos de Lilian Celiberti ou dos irmãos Whitelaw Barredo (estes, na
Argentina). Houve uma infra-estrutura estatal que permitiu que isso acontecesse e foi
constituída de centros clandestinos de detenção, hospitais, veículos para transporte,
fornecimento de documentos falsos, assim como recursos humanos específicos, onde se
destacaram seqüestradores, apropriadores, soldados, enfermeiros, médicos, psicólogos,
carcereiros, “tias” (provavelmente mulheres policiais), funcionários aduaneiros, etc.
203
MADRES Y FAMILIARES DE URUGUAYOS DETENIDOS DESAPARECIDOS. A Todos Ellos. Op. cit.;
LIMA, op. cit.
788
No Uruguai, uma jovem argentina, grávida, seqüestrada clandestinamente no seu
país, foi recebida e permaneceu nessa condição em um cativeiro uruguaio. Teve uma filha no
Hospital Militar de Montevidéu que lhe foi arrancada das suas mãos; depois, foi executada. A
criança seqüestrada foi entregue a uma família uruguaia. Todos os envolvidos pelo seqüestro
da criança, a entrega da mesma e a execução da mãe estão devidamente identificados e
pertencem às Forças Armadas uruguaias. Uma outra criança argentina (Paula Logares) foi
sequestrada junto com os pais, legalmente estabelecidos no Uruguai, e levada
clandestinamente para a Argentina, onde foi apropriada.
Inúmeras crianças foram expostas ao trauma de ver seus pais sendo detidos ou
mortos por forças de segurança uruguaia, tanto no Uruguai quanto na Argentina. Algumas
delas sofreram o acréscimo do próprio seqüestro. Muitas mães grávidas, além de sofrerem o
cativeiro, também sofreram a tortura; de acordo com as citadas considerações de Punta
Rodulfo, os filhos em gestação também foram vítimas das mesmas agressões. Por outro lado,
comandos uruguaios trasladaram da Argentina para o Uruguai os até então desaparecidos pais
do menino Amaral García (também desaparecido) e os executaram para dar veracidade à
farsa do crime de Soca. Comandos uruguaios estiveram diretamente envolvidos no
desaparecimento dos pais dos irmãos Julien, de Mariana Zaffaroni, de Carlos D’Elía Casco,
María de las Mercedes (Carmen) Sanz e de María Victoria Moyano Artigas. E o único irmão
Hernández Hobbas que não havia sido desaparecido, foi impedido pela ditadura uruguaia de
partir para o exílio com seu pai, recém liberado da prisão argentina, porque faltava a
autorização da mãe desaparecida.
Todas as crianças uruguaias seqüestradas, desaparecidas e apropriadas e aquelas
argentinas que tiveram o mesmo destino no Uruguai foram vítimas da lógica de atuação da
Operação Condor, evidentemente que junto a seus pais. Chama a atenção, mesmo no caso
destas situações de por si tão particulares, a ação de comandos uruguaios que seqüestraram
crianças em outros países e atravessaram fronteiras impunemente. É o caso dos filhos de
Lilian Celiberti, seqüestrados no Brasil e levados clandestinamente como reféns para o
Uruguai, e dos irmãos Julien, seqüestrados na Argentina, levados para o Uruguai e,
posteriormente, abandonados no Chile após uma provável entrega mal sucedida. Nesses
casos, às dificuldades colocadas pela dinâmica do desaparecimento acrescia-se o traslado
clandestino (sobretudo no caso Julien) feito a outro país.
Há uma responsabilidade particular do Estado pela falta de cooperação e
obstaculização impostas às demandas apresentadas pelos familiares. Como no exemplo de
Sara Méndez, quem sem apoio do Estado nem da justiça procurou pelo filho durante anos até
789
acreditar que o tinha encontrado; durante anos alimentou a falsa expectativa de que o jovem
em questão fosse Simón. Ao não agir no esclarecimento da situação, com as ferramentas
legais que possuía e que teriam permitido esclarecer as informações que apresentava Sara, as
autoridades teriam impedido que durante tantos e tantos anos Sara cultivasse a falsa ilusão de
ter encontrado o filho seqüestrado com vinte dias de vida. Embora possa ser vista como
questão particular, o caso Sara-Simón mostra como se move essa combinação de impunidade,
inércia, conivência e cumplicidade, legado de um TDE que ainda encontra significativos
remanescentes no interior das Forças Armadas e do sistema político.
A cúpula militar uruguaia, durante e depois do fim da ditadura, ao procurar eximir-
se de qualquer responsabilidade, assumiu diversas atitudes. Primeiro, desconheceu qualquer
denúncia envolvendo o desaparecimento das crianças. Depois, assumiu a conhecida face
diversionista de culpabilizar a ditadura argentina. Posteriormente, assumiu o ocultamento de
informação considerando que toda pretensão em contrário era manifestação de revanchismo e
que a Ley de Caducidad havia resolvido esse passado; ao fazer isso, reforçavam a
impunidade, um dos principais legados da ditadura à retomada democrática que se seguiu.
Mesmo considerando que atos de seqüestro, desaparecimento e de apropriação são crimes
imprescriptíveis.
Após quatro administrações democraticamente eleitas,
204
nada fez a esfera estatal
para esclarecer as situações das crianças uruguaias seqüestradas e apropriadas na Argentina
nem das argentinas desaparecidas no Uruguai. Tanto os casos esclarecidos (parcialmente ou
não) quanto as informações existentes sobre possíveis crianças que possam ter nascido em
cativeiro resultaram dos esforços dos familiares, das organizações de direitos humanos e da
sociedade civil. Quanto aos pedidos de cooperação da justiça argentina à extradição de
militares e policiais uruguaios acusados e condenados por terem agido naquele país dentro da
lógica da conexão repressiva binacional, os governos uruguaios ignoraram tais solicitações.
Os desdobramentos da prática dos seqüestros e da apropriação de crianças
permanecem nos traumas gerados e nos que, potencialmente, podem vir a manifestar-se. O
seqüestro da (curta) história comum da criança com seus pais biológicos e da pré-história
(experiências acumuladas transmitidas pela família) podem explicitar seqüelas em qualquer
momento da vida biológica da pessoa e até na sua descendência. Por isso, o Terror de Estado
204
Julio María Sanguinetti (1985-1989); Luis Alberto Lacalle (1990-1994); Julio María Sanguinetti (1995-1999)
e Jorge Batlle (2000-2004). O presidente Batlle, embora de forma geral também tenha recebido duras críticas em
relação à política da sua administração diante das demandas existentes a respeito dos tempos da ditadura, ajudou
a esclarecer o caso do suposto “Simón”, e seu governo teve a iniciativa de propor o trabalho da Comisión para la
Paz.
790
teve, nesta prática repressiva, particular contundência. Combinada com as marcas da
impunidade e da imunidade pretensamente eternas, seus desdobramentos sobrepassaram a
cronologia da ditadura para tornar reféns e também participantes (por conveniência,
conivência ou cumplicidade) os governos eleitos desde 1984. Os seqüestros e as apropriações
– além da falta de esclarecimento quanto a estas - permanecem como feridas expostas. Não
do passado, mas de um vigente passado-presente.
8.6 - OS ESTADOS UNIDOS DIANTE DA INTERNACIONALIZAÇÃO
REPRESSIVA
Retomando algumas considerações apontadas no segundo capítulo, pode-se afirmar
que o papel desempenhado pelos EUA diante dos acontecimentos que afetaram a política
interna uruguaia entre as décadas de 60 e 80 extrapolou amplamente os limites de mentor
ideológico ou de sustentáculo político dos seus aliados. Dentro do contexto da Guerra Fria, os
EUA proporcionaram instrução militar, orientação ideológica e ajuda material àqueles setores
que consideravam os mais preparados para barrar a expansão insurgente na região. O uso
deliberado de programas de assistência, missões das agências de informação e missões
diplomáticas foram uma constante no relacionamento estabelecido pela superpotência na
procura de salvaguardas para seus interesses estratégicos e na sustentação e no fortalecimento
da posição dos seus aliados. Segundo Clara Aldrighi, a orientação dos EUA foi no sentido de
projetar três linhas de defesa contra o comunismo. A primeira, fortalecendo a polícia; a
segunda, a união entre o esforço policial e o militar; e a terceira, diante do fracasso das
anteriores, a intervenção direta das Forças Armadas para preservar a Segurança Nacional.
205
Os EUA proporcionaram base doutrinária, financiamento e assistência técnica à
estrutura estatal para enfrentar o desafio da contra-insurgência. Assim, correspondeu à CIA
uma atuação mais intensa e direta, desempenhando funções estratégicas de ligação com
segmentos da segurança local. Igualmente, propiciou encontros de intercâmbio entre
funcionários de segurança argentinos e uruguaios para combinar estratégias de vigilância dos
exilados políticos, intermediou reuniões entre os dirigentes dos esquadrões da morte
brasileiros com autoridades policiais dos países platinos e forneceu equipamentos de tortura
elétrica e assessoria sobre a utilização dessas “ferramentas”, transmitindo suas experiências
205
ALDRIGHI, Clara. La injerencia de Estados Unidos en el proceso hacia el golpe de Estado. Informes de la
misión de Seguridad Pública y la embajada en Montevideo (1968-1973). In: MARCHESI; MARKARIÁN;
RICO; YAFFÉ. El presente de la dictadura. estudios y reflexiones a 30 años del golpe de Estado en
791
científicas sobre as doses de choque elétrico que o corpo humano poderia resistir.
206
Mas ela não foi a única agência a intervir na política interna do Uruguai. Também o
FBI e as próprias atividades desenvolvidas desde a embaixada estadunidense propiciaram um
complexo emaranhado de relações visíveis e ocultas. Muitas vezes, essas unidades rivalizaram
entre si e, indiretamente, procuravam prejudicar-se. Em realidade, CIA e FBI participavam de
uma disputa invisível que se repetia em outras comarcas representando, respectivamente,
Departamento de Defesa (Pentágono) e Departamento de Estado. O prestígio advindo das
atividades desenvolvidas pelas agências subordinadas podia ser capitalizado como maior
participação na formulação das diretrizes da política externa norte-americana.
207
Para conhecer a ação das agências de inteligência dos EUA no Uruguai, as maiores
fontes são os relatos de dois agentes que trabalharam dentro dessa estrutura, Philip Agee, que
entre 1964 e 1967 esteve lotado na estação uruguaia e que desertaria anos depois, e Manuel
Hevia, agente cubano infiltrado na “Companhia”. As denúncias de Agee contribuíram para
que fossem conhecidas as diretrizes gerais prioritárias da CIA, assim como sua metodologia
de ação: 1) busca de informações sobre organizações comunistas (espionagem de embaixadas
de países socialistas e infiltração de organizações políticas e sociais locais de esquerda e do
exílio argentino e paraguaio); 2) conectar-se com serviços de segurança local
(complementação da capacidade operativa da Compañia, intercâmbio de informação com a
inteligência local, capacitação das forças de segurança local); 3) disseminação de propaganda
pró-EUA e anticomunista (infiltração de organizações sociais, abertura de canais com
imprensa).
208
Agee também apresentou significativa informação sobre agentes locais
contratados que estavam na lista de pagamento regular da CIA ou de organismos vinculados;
entre eles, apontou ministros, militares, policiais, empresários e até um presidente da
República.
209
Manuel Hevia, nas suas apreciações sobre as atividades da CIA, expôs
principalmente a forma como se procedeu para a instalação de uma rede de
radiocomunicações centralizada na Jefatura de Policía, dentro da lógica da sua
potencialização para cumprir o papel de primeira linha de defesa contra o comunismo.
Também descreveu a estruturação do treinamento de oficiais da polícia em todo o país,
simultaneamente ao desenvolvimento de uma linha de atuação, induzindo à corrupção de
Uruguay. Montevideo: Trilce, 2004. p. 35.
206
LANGGUTH, op. cit., p. 133 e 232.
207
HEVIA, Manuel. Pasaporte 11333 - Uruguay... ocho años con la CIA. Montevideo: Suplemento de
Liberación Nacional, 1985.
208
AGEE, Philip. Dentro da “Companhia”. Diário da CIA. São Paulo: Círculo do Livro, s. d., p. 342-344.
792
alguns setores da estrutura estatal de segurança mediante a entrega de regalos e doações a
organismos e a oficiais. Hevia participou ainda da organização do Departamento de
Información e Inteligencia (DII), da criação de um aparelho clandestino no seu interior e teve
rápido contato com Dan Mitrione e suas aulas de aplicação de torturas durante os
interrogatórios.
Em 1965, as autoridades diplomáticas dos EUA no país decidiram intensificar ações
para evitar que em um futuro próximo se constituísse um governo hostil. Nesse ano, Adolph
Saenz assumiu a direção do Programa de Segurança Pública (PSP) vinculado à Agência
Internacional de Desenvolvimento (AID) e subordinado à embaixada em Montevidéu.
Iniciaram-se, assim, as atividades para fortalecer e modernizar a inteligência policial. Dentro
do programa, policiais uruguaios realizaram cursos de aperfeiçoamento anti-subversivo e
antidistúrbio na Academia Internacional de Polícia (IPA), em Washington; por sua vez,
serviram de correia de transmissão para novas gerações de policiais, ministrando cursos
dentro do próprio país.
Paralelamente, como apontara Agee, encaminharam-se ações concretas de infiltração
nos movimentos operário e estudantil, financiando o surgimento de entidades paralelas
encobertas pelos interesses dos EUA. Da mesma forma, houve forte utilização dos meios de
comunicação, sobretudo na imprensa escrita, contribuindo economicamente com aqueles
jornais considerados “amigos”. A propaganda anticomunista se sustentou através do
pagamento de jornalistas e empresários, assim como do pagamento de matérias para
publicação.
210
Desde 1967, William Cantrell, agente da CIA encoberto como funcionário da
AID, deu continuidade no processo de equipar e tornar mais eficiente a ação policial. À
medida que isso ocorria, aumentava a ingerência indireta dos EUA sobre o comando de
decisões da polícia uruguaia e de alguns setores que se tornaram estratégicos na luta contra-
insurgente. Dados e informações colhidos e processados pela estrutura policial local passaram
a ser enviados para o Conselho de Segurança dos EUA, alimentando a enorme base de dados
sobre o movimento comunista internacional que lá estava sendo montado. Cantrell,
especificamente, foi o responsável pela montagem da DII.
Em 1968, sob a cobertura do PSP, Cantrell, Saenz e Caesar Bernal solidificaram os
contatos com as autoridades policiais e com os Ministérios de Defesa e do Interior. O PSP
garantia cursos permanentes de instrução dos recursos humanos, de modernização e
209
Idem, Apêndice I.
210
FERNÁNDEZ, Wílson. El gran culpable. La responsabilidad de los EE.UU. en el Proceso militar
uruguayo. Montevideo: Atenea, 1986, p. 144.
793
ampliação da estrutura de inteligência e informação assim como o abastecimento de
armamento, munição, veículos, rádios e outros apetrechos necessários para a manutenção
eficiente dos cursos e para o abastecimento das unidades no combate contra a guerrilha.
Simultaneamente, o Grupo Militar da Embaixada (MILGP) articulava um trabalho
semelhante junto aos militares e tentava convencê-los das vantagens da atuação articulada,
conjunta e coordenada junto à polícia. Foi necessário um esforço concentrado dirigido pelo
próprio embaixador e seu adido militar para que, após diversas reuniões, obtivessem anuência
dos chefes das três armas, das altas autoridades policiais e dos ministros de Defesa e do
Interior. Entrou em vigor, então, o Programa de Assistência Militar (MAP), um vasto
esquema de aperfeiçoamento, treinamento, instrução e capacitação material voltado também
para a defesa da Segurança Nacional. Um dos seus primeiros resultados foi capacitar soldados
da Marinha para ocuparem instalações de empresas públicas, enfrentar os trabalhadores que
haviam desencadeado greves e ocupações dos locais de trabalho e impor sua militarização
segundo constava na legislação das Medidas Prontas de Seguridad.
Também como conseqüência desse entendimento do esforço anti-subversivo
concentrado e conjunto, a AID, através do MAP, financiou um Centro de Informações e
Comunicações de âmbito nacional instalado no Ministério da Defesa; da mesma forma, havia
sido instalada uma rede radiotelefônica que conectava a presidência da República, os
Ministérios do Interior e de Defesa, os comandos das três armas e a Polícia.
211
Dentro do
guarda-chuva do MAP, os EUA forneceram equipamento militar e serviços em caráter de
doação ou de empréstimo sem ônus para o governo uruguaio, através de outras linhas
específicas de auxílio pelo esforço que o país, ancorado na lógica da Guerra Fria, fazia. Da
mesma forma, o material militar excedente nos EUA também era entregue aos países
beneficiados com o programa.
Seguindo a orientação dos EUA, em fevereiro de 1971, todas as forças de segurança
decidiram constituir um comitê de coordenação de alto nível para a luta anti-subversiva e foi
decidido que a DII seria o organismo de coordenação das inteligências das diversas forças de
segurança. Casualmente, as atividades da DII eram monitoradas pela CIA e pela embaixada
dos EUA, que possuíam agentes infiltrados dentro da sua estrutura (como havia denunciado
Manuel Hevia). A publicitação do caso Mitrione mostrou como a CIA havia intensificado
suas ações no Uruguai e encoberto agentes dentro das altas estruturas de segurança locais.
Instrutor dos militares em interrogatórios e torturas, Mitrione esteve “oculto” dentro dos
programas de assessoria técnica da AID.
794
Mantendo a tradição, que ocorria desde o início dos anos 60, de enviar militares para
cursos de aperfeiçoamento na Escola das Américas, no Panamá, e nas unidades militares em
território estadunidense,
212
procurou-se aumentar o número de pessoas envolvidas com essa
qualificação. Com a possibilidade de oferecer cursos no Uruguai e com o estreitamento entre
as agências dos EUA e os comandos de segurança do país, intensificou-se a transmissão da
base de idéias que compunham a DSN, o que implicou em avançado processo de doutrinação
das Forças Armadas uruguaias. Para Aldrighi, isso ocorreu três anos antes de que a ofensiva
guerrilheira justificasse politicamente, em setembro de 1971, a virada institucional do rol de
defesa externa para o de defesa interna.
213
Em essência, era a conformação da “segunda linha
de defesa” e ela ganhou projeção quando o governo Pacheco Areco designou as Fuerzas
Conjuntas para centralizarem a ação contra a guerrilha.
Como já foi visto, os EUA monitoraram de perto tudo o que concernia ao processo
eleitoral de 1971. Mais do que isso, estavam a par e estimulavam os planos brasileiros de
intervenção no Uruguai caso ocorresse uma hipotética vitória do Frente Ampla. A única
condição colocada era a de ter a anuência da Argentina. A troca de correspondência entre o
Departamento de Estado e as diversas embaixadas na região mostram a obtenção e circulação
de informação, assim como a orientação para estimular os contatos entre militares brasileiros
e argentinos a esse respeito.
Por outro lado, apesar da derrota eleitoral do Frente Ampla em 1971, os informes
entre a embaixada de Montevidéu e Washington mostram uma preocupação crescente com a
força político-partidária. Na avaliação dos seus estrategistas, os EUA reconheciam que o
principal inimigo era o Frente Ampla e não a guerrilha tupamara. Tais projeções baseavam-se
na avaliação das condições históricas daquele momento e nas tendências da evolução da
conjuntura.
214
Assim, sabiam:
211
ALDRIGHI, op. cit., p. 37.
212
O Informe A Todos Ellos apresenta em anexo uma relação de 94 militares e policiais reconhecidos por
inúmeros depoimentos como vinculados à coordenação repressiva. São somente os casos onde há absolutamente
certeza, critério sempre privilegiado pelas organizações de direitos humanos, para evitar injustiças e para evitar
um desmentido que possa desqualificar a denúncia como um todo. Desses 94 repressores, 27 estiveram na Escola
das Américas. Eles se repartiram nos seguintes cursos: Operações de Inteligência, Operações de Segurança
Interna, Inteligência Militar, Inteligência, Orientação para Cadetes, Gerente de Administração Policial, Contra-
Insurgência, Curso Especial para Cadetes, Combate Básico de Contra-Insurgência e Inteligência Militar Naval.
Estes dados são meramente ilustrativos, já que centenas de militares e policiais uruguaios participaram desses
cursos entre as décadas de 60 e 70. Mas cabe registrar mais esta responsabilidade e conexão vinculatória dos
EUA.
213
ALDRIGHI, Clara. op. cit., p. 36.
214
Country Analysis and Strategy Paper-Uruguay. Documento de análise de conjuntura e projeções para os anos
fiscais de 1973 e 1974 elaborado pela Embaixada de Montevidéu em 23/02/72. Citado por ALDRIGHI, op. cit.,
795
1) que a inteligência das forças de segurança, desde o início de 1972, havia infiltrado a
guerrilha e possuía informações estratégicas que seriam usadas massivamente assim que
as condições estivessem dadas (o que de fato ocorreu a partir do 14 de abril de 1972).
Importantes bases do MLN haviam sido detectadas e a inteligência policial acumulava e
processava informação e permanecia vigilante aguardando a ocasião propícia para
atacar junto com as demais Fuerzas Conjuntas. Aliás, posteriormente ao início da
campanha final contra os tupamaros, a embaixada estadunidense comemorava a
eficiência demonstrada pela inteligência, pois era o atestado da qualidade dos cursos
ministrados na esfera da AID e das orientações anti-subversivas desenhadas pelos EUA.
2) que o programa eleitoral do presidente Bordaberry (seu aliado), se aplicado, acirraria
as contradições sócio-econômicas e acentuaria a deterioração das condições de
sobrevivência de fatias crescentes de população. Isto poderia implicar em futura opção
eleitoral à esquerda, fato que era avaliado como possível de acontecer nas eleições
previstas para 1976. É importante frisar que as preocupações norte-americanas com a
evolução da política interna do Uruguai diziam respeito, sobretudo, ao que entendiam
ser um potencial fator de desestabilizador regional e de projeção de contaminação sobre
as regiões fronteiriças do Brasil e da Argentina.
Tendo em perspectivas essas projeções, concluiu-se que se devia aumentar o
monitoramento e a infiltração de organizações legais de esquerda (partidárias, sindicais,
estudantis, culturais) e estimular as potenciais contradições internas da Frente Ampla com o
intuito de desgastá-la e desacreditá-la junto à população; em outra ordem de coisas, era
necessário intensificar a atividade coordenada das agências estadunidenses com as similares
locais. Nesse sentido, foram importantes as confissões feitas por Nelson Bardesio aos
tupamaros. Vinculado ao Esquadrão da Morte,
215
Bardesio, fotógrafo da polícia, foi
seqüestrado pela guerrilha e forneceu significativa e pormenorizada informação sobre a
existência do esquadrão, seus integrantes, sua inserção na linha de montagem repressiva
estatal e as vinculações com os EUA. Esse material foi passado a alguns legisladores que
fizeram denúncias no Parlamento. Parte das informações fornecidas por Bardesio circularam,
nesse ano, em um documento do MLN, um Aviso a la Población. No mesmo, faziam-se
referências explícitas do grau de conexão entre a embaixada norte-americana e a polícia
p. 40.
215
LANGGUTH, op. cit., p. 234.
796
uruguaia:
Esta embaixada mantém contatos “secretos” com a Chefatura de Polícia
através do subcomissário Raul La Paz, chefe do arquivo de Inteligência que,
por sua vez, depende do inspetor Víctor Castiglioni. O subcomissário La Paz
prepara o “correio diário” para a embaixada estadunidense, que consta de:
relação de antecedentes pedidos por esta, cópias de todos os registros do dia,
cópias de todas as informações processadas na Chefatura e fitas magnéticas
de chamadas telefônicas. O funcionário que leva o correio de e para a
Embaixada é Walter Getulio Werner Chaparro (aliás, o Boi) acompanhado
de um segurança e de um chofer num jipe preto entre 9 e 12 horas da manhã
todos os dias. Este correio se realiza com pleno conhecimento do Chefe de
Polícia e do Ministério do Interior.
216
A visibilidade de agentes de origem estadunidense ou de agentes contratados
preocupou as autoridades da embaixada, sobretudo após o golpe de Bordaberry quando, em
tese, iniciava-se o momento de reenquadramento da sociedade, fato tão almejado desde
Washington. O número de funcionários da Embaixada dos EUA era desproporcional. Nesse
momento, havia mais de cem estadunidenses vinculados a agências de espionagem; os
funcionários contratados eram mais de 360. Tendo atingido o objetivo visado (estimular e
apoiar o golpe de Estado), tornava-se necessário promover uma correção de rumo, pois não se
justificava a manutenção de tamanha estrutura. Até porque, com as Forças Armadas uruguaias
assumindo a “terceira linha de defesa” no combate contra a “subversão”, previam-se maiores
facilidades contra qualquer foco subversivo remanescente.
217
Logo após o golpe houve uma mudança significativa na Embaixada dos EUA.
Charles Adair, que havia desempenhado eficiente trabalho na sua direção, era substituído por
Ernest Siracusa, que apresentava um currículum funcional que coincidia com intensa ação de
conspiração e de desestabilização de governos latino-americanos de perfil nacionalista ou de
centro-esquerda. Siracusa fora cônsul na Guatemala (1946-1949), funcionário nas embaixadas
da Argentina (1952-1955), Brasil (durante o governo Goulart) e Peru (final dos anos 60) e
embaixador na Bolívia (1969-1973); daí passou para o Uruguai. Quer dizer que, direta ou
indiretamente, viveu as derrocadas de Arbenz, Perón, Goulart, Alvarado e Torres.
218
Coerentemente com sua trajetória, Siracusa estabeleceu sólidas relações com a ditadura
uruguaia, dando-lhe suporte nas áreas de segurança, inteligência, assumindo sua defesa no
âmbito da diplomacia internacional, aparando críticas de setores democráticos no interior dos
EUA e dos canais internacionais utilizados pelo exílio uruguaio.
216
Citado por BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 67.
217
ALDRIGHI, op. cit., p. 46.
218
FERNÁNDEZ, op. cit., p. 148.
797
Quando, em agosto de 2001, o Departamento de Estado dos EUA desclassificou
4.677 documentos sobre a repressão Argentina (Argentina Project), inseriu dentro deles 866
que se referiam a acontecimentos envolvendo o Uruguai ou sua comunidade exilada na
Argentina. Tal documentação tornou público o fato de que os EUA tinham pleno
conhecimento dos meandros das ações e das modalidades repressivas implementadas pela
ditadura e seus agentes. Esse acervo documental foi organizado pelo National Security
Archives (vinculado à Universidade George Washington), a maior organização não-
governamental especializada na desclassificação de documentos secretos norte-americanos
sobre a repressão na América Latina e sob a supervisão do pesquisador chileno Carlos
Osorio, responsável pela documentação específica sobre Argentina, Paraguai e Uruguai,
quem impetrou um Freedom Of Information Act (petição formal de informação) ao
Departamento de Estado. O material faz referência a casos de tortura em centros clandestinos
de detenção, assassinatos e desaparições como uma política de contra-insurgência
estabelecida pelas ditaduras. Também apresenta a cooperação entre as agências de
inteligência da Argentina, do Chile, do Brasil e do Uruguai em detenções ilegais e
transferências clandestinas sob a dominação da chamada Operação Condor. Por outro lado, o
teor da documentação confirma o conhecimento preciso que as diversas administrações dos
EUA sempre tiveram conhecimento sobre as violações de direitos humanos que se
produziram durante todos esses anos na região.
Parte dos documentos que circulavam na rede de informação estadunidense eram
materiais recolhidos de organizações que denunciavam abusos de poder, crimes, perseguição
política, etc. O fato de que eles fossem conhecidos pelas autoridades dos EUA demonstra que,
independente da sua participação direta ou indireta nos esquemas de SN na região, tinham
informações bastante precisas do que estava ocorrendo nos porões das ditaduras da região.
Por exemplo, em 1976, circulava um documento produzido pela Anistia Internacional que
relatava 22 casos conhecidos de pessoas mortas sob tortura, entre 1972 e 1975, em território
uruguaio.
219
O mesmo continha amplas denúncias sobre situações de detenção das vítimas,
seu perfil (entorno social, político e sindical), locais de detenção, tipologia das torturas
aplicadas caso a caso assim como os falsos comunicados oficiais sobre as mortes (suicídios,
resistência à prisão, tentativa de fuga). Estas informações, portanto, eram do domínio das
autoridades dos EUA, particularmente dos funcionários das embaixadas e dos consulados,
além dos agentes de inteligência.
219
Tortures to Death in Uruguay 22 Know Cases. Amnesty International, Londres, january 1976. Documento
desclassificado pelo Departamento de Estado. (Argentina Project)
798
Da mesma forma, há a vigilância sobre grupos de denúncia que se organizam no
exterior como um Comité de Defensa por los Prisioneros Políticos del Uruguay (C.D.P.P.U.),
que procura organizar a comunidade uruguaia nos Estados Unidos como instrumento de
denúncia junto à opinião pública local e de pressão sobre Washington. Seu boletim
informando sobre as execuções de Michelini e Gutiérrez Ruiz e divulgando informações da
imprensa européia a respeito dos cadáveres do Río de la Plata foi objeto de acompanhamento,
principalmente por avaliações sobre o andamento da Emenda Koch e, provavelmente, pelo
teor da convocatória apresentada no seu editorial:
[...] Es muy notoria, la indiferencia de los uruguayos en E.E.U.U., con
respecto a la situación que reina en nuestra patria, y no nos extrañará que
más de un compatriota nos difame y defienda la posición del gobierno
fascista uruguayo. Confiamos que a través de nuestra campaña, tomen
conciencia y se identifiquen con nuestra lucha.
Hasta cuándo nuestra indiferencia nos hara cómplices de los actos criminales
que sufre nuestro pueblo. Cómo podemos mantenernos de brazos cruzados,
viendo como nuestros familiares y amigos son encarcelados, torturados y
asesinados por los verdugos del régimen dictatorial. [...]
220
É difícil medir a ajuda material, no quesito segurança, que os EUA concederam,
direta ou indiretamente, aos seus aliados no Uruguai. Em todo caso, há dados apreciáveis:
Entre 1946 y 1970 Uruguay recibió un promedio anual de 1.900.000 dólares
a título de ayuda militar. A partir de 1971 y hasta 1975 ese promedio
aumentó a 5.600.000 dólares. Un incremento mayor había experimentado el
rubro compra de material militar estadounidense - en general en condiciones
“muy generosas”-, que desde 1950 hasta 1969 había totalizado 2.800.000
dólares, y sólo entre 1970 y 1972 acumuló 7.600.000 dólares. Para 1977 el
gobierno uruguayo preveía solicitar 7.500.000 dólares como ayuda
militar.
221
O grau de precisão das informações manejadas pelo governo dos EUA transparecem
nos seus documentos internos como no memorando South Americac [sic] Southern Cone
Security Practices, da embaixada de Buenos Aires ao Departamento de Estado (23/07/76).
Neste substancial documento, confirma-se que os EUA estão cientes: da existência de uma
organização regional para eliminar exilados; da cooperação e intercâmbio de informação
(cita-se a expressão Operação Condor); da presença de forças de segurança chilenas e
uruguaias na Argentina; de que essas ações são justificadas pela existência da JCR. Ainda há
um esclarecimento sobre a vinculação dos esquadrões da morte (Triple A) com o governo
argentino (reconhece que seus integrantes são funcionários do governo). E há a explicitação
220
Informes de “Uruguay”. Comité de Defensa por los Prisioneros Políticos del Uruguay, n° 1, junio de 1976.
Documento desclassificado pelo Departamento de Estado. (Argentina Project)
799
da presença de um major do serviço de inteligência militar uruguaio cooperando com seus
pares argentinos nas operações antiterroristas.
222
Outro documento desclassificado, datado de 18 de agosto de 1976, do Departamento
de Estado para as embaixadas em Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, La Paz, Brasília e
Assunção mostra que os EUA conheciam a existência da Operação Condor, ainda no governo
Ford.
223
Mostravam-se compreensivos com as necessidades de algumas ditaduras mas
estavam apreensivos com os atentados políticos:
1. Ud. Está enterado de diversos (tachado) informes sobre la “Operación
Cóndor”. La coordinación de información de seguridad e inteligencia es
probablemente comprensible. Sin embargo, los gobiernos han planeado y
dirigido asesinatos dentro y fuera de los países integrantes de Cóndor lo que
tiene las más graves implicancias que deben ser enfrentadas directamente y
con rapidez.
2. Para lograr la forma más efectiva de presentar nuestra preocupación ante
los gobiernos involucrados, aconsejamos:
b- que deseamos demostrar en nuestras discusiones con ellos nuestra
comprensión sobre las reales preocupaciones de esos gobiernos y las
amenazas que enfrentan en el plano de la seguridad. [...]
224
Após essas considerações gerais para todos os embaixadores, o Departamento de
Estado passa a especificar as orientações. Por exemplo, uma orientação comum para os casos
que mais preocupam está referido no terceiro ponto:
3. Para Buenos Aires, Montevideo y Santiago: Ud. deberá conseguir tan
pronto como sea posible una reunión al más alto nivel pertinente. De
preferencia con el Jefe de Estado para presentarle los siguientes asuntos:
a. El gobierno de los Estados Unidos está enterado a través de distintas
fuentes, que incluyen altos funcionarios de gobierno, que existe un grado de
intercambio de información y de coordinación entre los diversos países del
Cono Sur para enfrentar las actividades subversivas en la región.
Esto lo
consideramos útil. [grifo meu]
b. Existen, sin embargo, rumores de que esa cooperación puede extenderse
mas allá del intercambio de información hasta incluir planes para el
asesinato de subversivos, políticos y figuras prominentes tanto dentro de las
fronteras nacionales de los países del cono sur como fuera de ellas;
[...]
d. Actividades antiterroristas de ese tipo exacerbarían aún más las críticas de
la opinión pública mundial contra los gobiernos involucrados;
225
É curioso constatar que, apesar do alerta, as ações da Operação Condor não pararam.
221
AMORÍN, op. cit., p. 78.
222
Subject: South Americac [sic] Southern Cone Security Practices. Memorando da Embaixada de Buenos Aires
para o Departamento de Estado, 23/07/76. Documento Desclassificado do Departamento de Estado.
(Argentina Project).
223
Departamento de Estado, 18 de agosto de 1976. Apresentado por BOCCIA, op. cit., p. 165.
224
Idem.
225
Idem.
800
As grandes ondas repressivas contra os uruguaios em Buenos Aires recém estavam iniciando.
Pode-se alegar, porém, que a situação argentina era um caso muito particular e a repressão
sofrida ali pelos uruguaios foi uma sobreposição de duas dinâmicas repressivas nacionais. Tal
avaliação tem certa pertinência. Mas, de qualquer forma, a maior preocupação dos EUA era o
fato de que as asas do Condor extrapolassem o Cone Sul, como acabou ocorrendo no caso do
assassinato do ex-ministro chileno Letelier.
226
Ainda em relação ao documento citado, logo é apresentada uma diretriz específica
para cada embaixador. No caso do Uruguai, a orientação especifica o seguinte:
4. [Específico para a Argentina]
5. Para Montevideo: asumimos que el mejor camino de acercamiento es el
general Vadora antes que otro que actúe como Presidente o que el Presidente
designado que notoriamente no sabe nada acerca de la Operación Cóndor y
que, en todo caso, tendría poca influencia en esta situación. Ud. Puede
conversar acerca del punto d del párrafo 4 sobre intercambio de información
si lo considera apropriado. [Refere-se a sostener intercambios periódicos de
información con el gobierno [...] sobre temas generales y modalidades de la
acción de los comunistas y otros terroristas en el hemisferio si a ese gobierno
le interesa]
227
A orientação para a embaixada em Montevidéu estabelece duas questões
fundamentais. Uma, a identidade do interlocutor da Operação Condor no país, o general
Vadora. A outra, a plena certeza de que a autoridade civil nesse momento não é
representativa para um diálogo de alto nível. Isso pode ser em função da recente crise que
gerou a substituição de Bordaberry e a situação de indefinição sobre seu substituto civil. De
qualquer forma, o Departamento de Estado mostrava não só estar bem informado como,
também, demonstrava ter familiaridade e trânsito fluído com os setores estratégicos.
Uma orientação geral de extrema importância a todas as embaixadas foi colocada no
décimo ponto do mesmo documento:
Ud. debe tener la seguridad de que ninguna agencia del gobierno de los
Estados Unidos se encuentra involucrada en forma alguna en intercambio de
información o de antecedentes sobre individuos subversivos en alguno de los
países em referencia. [...]
Evidentemente, essa orientação não encontrava eco na realidade e visava, acima de
226
O crime contra o ex-ministro de Allende, Orlando Letelier, em Washington, quando morreu também uma
cidadã estadunidense (sua secretária). O fato ocorreu no mês seguinte à data desta correspondência. Em fevereiro
de 1980, a imprensa dos EUA tornava público que a CIA havia ocultado os agentes cubanos utilizados naquela
ação. Ficavam assim expostas as conexões da Companhia com os regimes de SN em ações contra alvos políticos
fora dos territórios nacionais. Pior, essas ações podiam acontecer longe da região, inclusive, em Washington.
CALLONI, op. cit., p. 25.
227
Departamento de Estado, 18 de agosto de 1976. Apresentado por BOCCIA, op. cit., p. 165.
801
tudo, garantir um posicionamento homogêneo da diplomacia estadunidense na região.
Efetivamente, desmentindo aquelas palavras, em junho de 1975, o FBI, articulado com os
serviços de inteligência argentina e paraguaia, passou valiosas informações à DINA sobre o
chileno Jorge Fuentes, militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria e quadro da
Junta Coordenadora Revolucionaria (JCR).
228
Fuentes acabou desaparecido.
Em setembro de 1976, os EUA conheciam em detalhes o que era o propósito da
Operação Condor; o informe do agente do FBI, Robert Scherrer, não deixava margem para
dúvidas. Dizia que:
“Operación Cóndor” es el nombre en clave de un acuerdo de cooperación
para recopilación, intercambio y almacenamiento de datos de inteligencia
concernientes a los llamados “izquierdistas”, comunistas y marxistas
establecido recientemente en cooperación entre los servicios de inteligencia
de América del Sur para eliminar las actividades terroristas marxistas en el
área. Adicionalmente, la “Operación Cóndor” mantiene operaciones
conjuntas contra blancos terroristas en los países miembros de la “Operación
Cóndor”. [...]
Los países miembros que demuestran mayor entusiasmo a esta fecha son
Argentina, Uruguay y Chile. Los últimos tres países se han comprometido a
operar en conjunto, principalmente en Argentina, contra blancos terroristas.
[...]
229
Scherrer acrescentava também sobre o que seria uma etapa mais sofisticada do
operativo:
La tercera fase, la más confidencial de la “Operación Cóndor”, incluye la
formación de equipos especiales de los países miembros preparados para
trasladarse a cualquier parte del mundo, a países no miembros del acuerdo
para llevar a cabo sanciones y hasta asesinatos contra terroristas o partidarios
de organizaciones terroristas de los países miembros de la “Operación
Cóndor”. Por ejemplo, si en un país europeo se ha detectado a un terrorista o
a un partidario de una organización terrorista de un país miembro de la
“Operación Cóndor”, un equipo especial será enviado a localizar y reconocer
el blanco. Cuando la operación de vigilancia haya terminado, un segundo
equipo de la “Operación Cóndor” viajaría a llevar a cabo la sanción real
contra el blanco. Equipos especiales que usarían documentación falsa de los
países miembros de la “Operación Cóndor” podrían estar formados
exclusivamente por individuos de una sola nación miembro o pueden estar
compuestos por un grupo mixto proveniente de varios países miembros de la
“Operación Cóndor”.
Este documento acabou se transformando em peça fundamental na sustentação da
228
Carta de Robert Scherrer (agente do FBI para América do Sul estabelecido na Argentina), ao general Ernesto
Baeza Michelsen, Diretor Geral de Investigações do Chile, em 6 de junho de 1975. In: “El FBI colaboró con la
Operación Cóndor”. Ernesto Carmona. Rebelión, s. d..
229
Documento desclassificado pelo Departamento de Estado em 28/09/96. “CHILBOM / CONDOR”. datado em
28/09/76. Apresentado por BOCCIA, op. cit., p. 172.
802
resolução judicial do juiz argentino Canicoba Corral de 21/06/01, onde exigiu a extradição
dos oficiais uruguaios Gavazzo, Cordero, Silveira e Campos Hermida pelos crimes cometidos
contra cidadãos uruguaios em território argentino.
Em outubro de 1976, o secretário de Estado Henry Kissinger se reuniu com o
chanceler argentino César Augusto Guzzetti em um momento delicado em que o governo
republicano estava sendo pressionado pelas organizações de direitos humanos, pelo Partido
Democrata e pela opinião pública a condenar as ditaduras da América do Sul. Kissinger
tentou tranqüilizar Guzzetti:
Básicamente, lo que queremos es que triunfen. Tengo una visión anticuada
de que hay que apoyar a los amigos. Lo que no se comprende en Estados
Unidos es que tengan una guerra civil. Leemos sobre los problemas de
derechos humanos pero no el contexto. Cuanto más rápido triunfen,
mejor.
230
Tais afirmações foram consideradas por Guzzetti como a aprovação do governo dos
EUA ao programa e ao cronograma da política de “saneamento”. Portanto, os EUA sempre
souberam o que estava ocorrendo na Argentina. Essa luz verde sinalizada por Kissinger ao
aparato repressivo argentino deve ser considerada como extensível a todos os estrangeiros
que foram vitimados sob a mesma lógica naquele país. Ou seja, se há responsabilidade do
segundo homem do governo estadunidense nesses fatos, ela não se restringe às vítimas
argentinas, mas envolve todas aquelas que foram seqüestradas, torturadas, desaparecidas,
assassinadas e apropriadas sob a sombra da coordenação repressiva e sob as asas do Condor.
Em agosto de 1976, ocorreu o encontro do embaixador Siracusa com o tenente
general Vadora, Comandante em Chefe do Exército e considerado o Condor n° 1 do Uruguai,
e o general Luis Queirolo, Chefe do Estado-Maior do Exército. No mesmo, Siracusa passou
aos militares uruguaios as sugestões do governo estadunidense no sentido de “suspender
torturas, acelerar processos judiciais, melhorar a imagem do Uruguai e convidar observadores
internacionais para verificar progressos na área dos direitos humanos”.
231
Tudo isso para
tentar reverter uma imagem muito forte que se havia construído do país, no cenário externo,
como violador dos direitos humanos, fato alimentado pelas denúncias de organizações
específicas, pela imprensa e pela opinião pública. Ironicamente, essas sugestões para
melhorar a imagem do Uruguai eram feitas no momento em que se desencadeava violenta
230
Memorando do 07/10/76. Documento desclassificado pelo Departamento de Estado dos EUA. La República,
06/12/03, p. 23.
231
“Desaclasifican documentos sobre la dictadura uruguaya”. Rebelión, 24/08/02.
803
onda repressiva sobre a comunidade exilada no país vizinho. Siracusa registrou
232
textualmente:
Expliqué que tanto yo como mi embajada habíamos tratado de presentar la
más precisa, objetiva y honesta información que pudimos obtener a mi
gobierno, incluyendo tanto lo malo como lo bueno. El hecho de que nuestros
informes fueran considerablemente diferentes, de aquellos otros que
acusaban a Uruguay de violaciones, habían concluido en acusaciones para
mi embajada y para mí, de estar defendiendo a Uruguay.
Siracusa refere-se aqui a críticas que havia recebido da imprensa do seu país. Em
abril de 1976, o Washington Post denunciara a omissão do embaixador diante das denúncias
sobre violação dos direitos humanos e sua reação de solicitar represálias contra a postura
inamistosa de certos jornalistas cujas afirmações eram exageradas, distorcidas e injuriosas
contra “nuestros amigos, nuestras relaciones y nuestros esfuerzos por desenvolver una
influencia provechosa.”
233
Porém, poucos dias depois da repercussão na imprensa dos EUA,
as palavras de Siracusa eram contestadas pela campanha mundial de denúncia contra a
ditadura uruguaia, campanha desencadeada pela Anistia Internacional. Tratava-se de um
verdadeiro marco, pois era a primeira vez que a organização questionava um governo
individualmente considerado.
234
Voltando ao documento resultante do encontro do embaixador Siracusa com os
militares uruguaios, o embaixador se mostrou compreensivo com as medidas assumidas pelo
governo no combate à subversão, mas expressou sua apreensão frente às dificuldades
enfrentadas por causa das denúncias efetuadas por organizações de direitos humanos, pelo
impacto disso junto à imprensa, à opinião pública internacional e à capitalização desse tema
por parte do opositor Partido Democrata, no debate interno dos EUA.
Les dejé establecido muy francamente que [...] estaba claro para mí que
todos aquellos que están atacando a Uruguay, en el tema de los derechos
humanos, están claramente ganando la batalla.
Siracusa sugeriu, então, uma mudança de postura para reverter as críticas e um
posterior convite à Cruz Vermelha e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para
visitarem o país e verificarem a correção de rumo quanto a uma política de direitos humanos.
É evidente que se tratava de uma conversação entre governos amigos onde um tenta mostrar
232
Human rights discussion with Lt. Gen. Vadora and Gen. Queirolo, 07/08/76. Documento desclassificado
pelo Departamento de Estado. (Argentina Project). Conhecido como “El Informe Siracusa: Intervención
estadounidense en Uruguay en 1976”. Rebelión, 24/08/02.
233
FERNÁNDEZ, op. cit., p. 148.
234
Idem.
804
ao outro dificuldades conjunturais que devem ser consideradas e as vantagens de uma
correção de rumo. Nesse ponto da exposição, o embaixador toca em uma questão
fundamental:
[...] les expuse las razones por las que no había aceptado la invitación del
gobierno uruguayo para visitar las prisiones el mes pasado. Expliqué
también que los informes generalmente favorables que había recibido de mis
colegas, que las habían visitado, no me sorprendían. Pero, les dije: lo que a
mí me preocupa, y que preocupa también a quienes visitaron las cárceles, no
es la condición ni el tratamiento de la gente que está en las prisiones para
hombres y mujeres vinculados a la subversión, sino
lo que les ocurría desde
el momento de su arresto hasta que llegaban a dichas cárceles. Es este el
punto más criticado y, frente a ello, la visita a las cárceles no abre ninguna
luz. [grifo meu]
Destas palavras, desdobram-se duas reflexões necessárias. A primeira refere-se ao
comentário feito por Siracusa quanto à boa avaliação dos seus colegas sobre as condições
carcerárias dos presos políticos uruguaios: no me sorprendían. Isto pode significar duas
coisas diferentes. Uma, o reconhecimento de que a política carcerária da ditadura preserva a
integridade física e psicológica dos detidos. Mas esta é uma afirmação que não se sustenta
diante dos fatos. As mesmas denúncias internacionais que tanto preocupam Siracusa
registram a péssima infra-estrutura física, médica e sanitária, assim como o brutal tratamento
dispensado aos presos e seus familiares. Já estava sendo denunciada a essência do Grande
Encarceramento. Pelo contrário, as poucas inspeções que a ditadura permitiu foram
manipuladas, pois se visitavam unidades cuidadosamente preparadas para isso, com
condições ideais de infra-estrutura e onde o tratamento dado aos presos respeitava as
diretrizes da legislação internacional. Ora, sabidamente, isto não era usual no Uruguai. Logo,
o no me sorprendían de Siracusa não se referia ao entendimento de que havia um esforço das
autoridades em melhorar as condições carcerárias do país, e sim talvez ao sucesso da
encenação presenciada pelos visitantes. Seja por ingenuidade ou por cinismo, nega-se a
tortura, a indução ao suicídio, ao enlouquecimento e o péssimo tratamento destinado aos
familiares, etc. Em síntese, a real situação carcerária do país não é motivo de preocupação.
A segunda reflexão relaciona-se com uma situação bem concreta destacada por
Siracusa. Quando ele diz que sua preocupação não é com a situação dos presos no sistema
carcerário “[...] sino lo que les ocurría desde el momento de su arresto hasta que llegaban a
dichas cárceles”, ele torna explícito que é consciente da existência da condição de detido-
desaparecido. Ou seja, sem citar, expressa sua preocupação com seqüestros, detenções
clandestinas, aplicação de tortura física e psicológica e desaparecimentos. É o
805
reconhecimento cabal de que os EUA, através de um funcionário do primeiro escalão
diplomático e de seus minuciosos relatórios, já sabiam da prática de “jogar” cidadãos nesse
limbo que era a situação-limite do tempo indefinido, da Noite e Nevoeiro, fosse essa uma
situação transitória ou definitiva.
Siracusa tentou de todas as formas obstruir os pedidos de informação do Congresso
dos EUA quando começou a tramitar a Emenda Koch, que, antecipando-se a futura
orientação da administração Carter, propôs sustar toda e qualquer ajuda ao Uruguai enquanto
não se alterasse o quadro de violação dos direitos humanos. A reprovação à posição
incondicional do embaixador em relação à ditadura uruguaia chegou ao ponto do presidente
do Council on Hemispheric Affairs (COHA), Laurence Birns, após a aprovação da Emenda
Koch, afirmar que Siracusa era “[...] un abogado del presente régimen uruguayo más que
representante de los mejores intereses de los EUA.” E arrematava : “Mr. Siracusa es el mayor
apologista para uno de los más espantosos y crueles estados de la región.”
235
A aprovação da Emenda Koch e a ascensão da administração Carter trouxe evidente
desgaste político e certo isolamento nas relações internacionais. Entretanto, no sentido mais
concreto, pouco efeito direto tiveram tais pressões no sentido de diminuir o caráter repressivo
do regime. Pelo contrário, 1977 e 1978 foram anos de novas ondas de seqüestros e
desaparecimentos de exilados na Argentina dentro dos operativos da coordenação repressiva
binacional. Houve sim a diminuição dos programas militares de ajuda ou de condições de
financiamento. Entretanto, o abastecimento de apetrechos militares continuou através de
compras à vista, situação onde o critério direitos humanos não parece ter repercutido muito
contra a ditadura, e através da troca de fornecedor. Durante o período Carter aumentam as
compras de material militar à Argentina e ao Brasil sob a chancela dos EUA.
236
Finalizando, o envolvimento dos EUA com a dinâmica repressiva que se instalou em
ambas as margens do Río de la Plata foi significativo e, no caso uruguaio, manifestou-se
desde os anos de deterioração do sistema democrático na década de 60. Houve um
acompanhamento e monitoramento de tudo o que ocorria, fato demonstrado pelo volume de
informação que circulava na rede formada pelas embaixadas regionais, Departamento de
Estado e Pentágono. Da mesma forma, deve salientar-se o fornecimento de informação sobre
alvos da ditadura uruguaia através das conexões montadas com a inteligência local. A
utilização da embaixada em Montevidéu como base permanente de atuação/conexão teve seu
ápice na gestão Siracusa, mas é inegável que extrapolou, nessas funções, o período da sua
235
COHA attacks Action of U.S. Diplomat in Uruguay, 19/11/76. Citado por FERNÁNDEZ, op. cit., p. 150.
236
Idem, p. 171-173
806
administração.
O envolvimento na Operação Condor dá uma conotação específica a esta
modalidade de intervenção pelo significado de extrapolar fronteiras e coordenar uma ação
muito mais complexa e de responsabilidades muito maiores, já que o alcance desses
operativos sobrepassaram os limites físicos do Cone Sul e atingiram a Europa e o próprio
território dos EUA. Por outro lado, houve a transmissão de know-how por parte da CIA, a
conexão com os grupos operativos que historicamente ela utilizava para seus atentados (a
máfia cubana e o narcotráfico, por exemplo), houve suporte material e diplomático
(principalmente nas ligações de Kissinger com as ditaduras argentina e chilena). A grande
maioria dos uruguaios desaparecidos temporariamente ou definitivamente na Argentina
sofreram essa violência sob o marco dessa macro-coordenação repressiva internacional.
A base da doutrinação, da instrução e do aperfeiçoamento técnico dos executores da
política de contra-insurgente foi ministrada pelos EUA desde os anos 60, através das missões
especiais que visitavam os países ou das bolsas e cursos oferecidos em território
estadunidense. Destaque especial merece a participação de Dan Mitrione e sua contribuição
“científica” para agilizar a eficiência dos interrogatórios. Assim como a facilitação e
coordenação de conexões entre forças policiais do Uruguai e da Argentina e delas com o
Esquadrão da Morte brasileiro.
A instalação de bases operativas de inteligência e informação, através de agências
que se conectaram com as estruturas repressivas locais, permitiu o acesso a bases de dados
(que deviam ser restritos às forças uruguaias), a infiltração de agentes e a promoção da
corrupção em altos escalões do poder civil e policial. Por outro lado, o desenvolvimento de
ações integradas e encobertas com as forças locais contra os movimentos sociais e as
organizações políticas do país: interferências que impedissem a consolidação de um núcleo
político-partidário de esquerda.
Da mesma forma, o financiamento da modernização das forças de segurança do
Uruguai, através dos Programas de Assistência Policial e Militar e do fornecimento e vendas
de equipamentos e armamentos. Deste modo, visava-se aumentar a eficiência das forças
locais nos papéis a desempenhar na guerra interna e no “acompanhamento” das embaixadas
dos países socialistas.
Existia um apoio indireto com o silenciamento ou explícito desconhecimento ou
rejeição das denúncias internacionais ou dos pedidos de informação destinados a sua
embaixada. A orientação dada aos aliados locais quanto a questões de caráter político ou de
políticas de direitos humanos, por exemplo, foi posição militante que forneceu respaldo
807
diplomático, com exceção do período Carter.
808
CONCLUSÃO
En el mundo América
en América Uruguay
en Uruguay un penal
en el penal una celda
en la celda un preso
en el preso un sueño
en el sueño una paloma
en la paloma la libertad.
Rodrigo, 10 anos
1
A democracia uruguaia sofreu um acentuado processo de deterioração durante a
década de 60, particularmente a partir da administração Pacheco Areco. A configuração de
um quadro de autoritarismo foi o marco para enfrentar o descontentamento social crescente,
resultante do esgotamento do modelo econômico que vigorou no país nas décadas
precedentes. Simultaneamente, a imposição de novas orientações que apontavam para a
dependência, cada vez maior, dos centros financeiros internacionais e de mudanças que
envolviam o enxugamento estatal e o corte orçamentário nas políticas sociais, com a
conseqüente perda de qualidade dos serviços públicos prestados, intensificou a mobilização
política dos setores da sociedade que se viram prejudicados e perceberam um futuro
comprometido quanto às possibilidades de melhoria das condições de vida.
Diante desses desafios, o governo respondeu com o endurecimento da ação policial e
a utilização recorrente de instrumentos repressivos em detrimento da procura de diálogo e da
negociação política. Nesse cenário, a banalização das MPS, a decretação da militarização dos
trabalhadores do setor público, a ação ostensiva do Esquadrão da Morte, a conivência das
autoridades frente à violência dos grupos de extrema direita, a incorporação da tortura como
método usual de “interrogatório”, a censura da imprensa de oposição e o assassinato de
estudantes e trabalhadores por agentes legais ou encobertos foram sintomas de uma
democracia convalescente. Por outro lado, atestaram o desencadeamento, por parte do
governo, de uma espiral repressiva afinada com os fins últimos implícitos nas recomendações
da DSN, principalmente na associação de todo questionamento do status quo como foco
1
Libertad. Poema de Rodrigo, menino de dez anos, filho do exílio.”Los hijos de la lucha”. Las Bases, enero de
1985, p. 13.
809
“subversivo” a ser eliminado.
A irrupção da guerrilha tornou mais dramático esse panorama político. O governo
acentuou o uso da violência para impor medidas impopulares e enfrentar a contestação dos
movimentos sociais e da oposição parlamentar. Em 1971, a acumulação de forças sintetizadas
na formação da Frente Ampla impactou e assustou ainda mais o poder dominante, temeroso
das possibilidades eleitorais da coalizão política de esquerda. Inegavelmente, as posturas e
ações assumidas pela administração Pacheco Areco, produziram efeitos que tiveram decisiva
participação na decomposição da frágil democracia. A espiral autoritária e repressiva sofrida
pela sociedade uruguaia no final dos anos 60 teve como principal responsável um governo
que optou pelo uso da força em detrimento da tradição de diálogo e de busca de pactos
político-partidários ou sociais. Pacheco Areco, embora derrotado nas suas pretensões de
reeleição, viu Bordaberry, o candidato apoiado pela sua corrente política, ser vencedor.
Porém, era uma vitória muito abaixo das expectativas, o que comprometia, de saída, a
governabilidade do país, principalmente se considerarmos que os homens do novo governo
não apostavam no diálogo com o Parlamento.
Se na gestão Pacheco Areco as relações entre os Três Poderes foram conturbadas -
sobretudo por iniciativa do Poder Executivo em esvaziar o Poder Legislativo como espaço da
mediação política -, com a vitória de Juan María Bordaberry, as expectativas de correção de
rumo não eram encorajadoras se considerado o menosprezo que o setor vencedor tinha pelas
regras democráticas e pelo equilíbrio de poderes. A trajetória dos setores que haviam
assumido cargos no governo em 1968 e que permaneceram como continuismo a partir da
vitória de Bordaberry, deixavam antever a possibilidade de uma saída inconstitucional, mais
drástica do que a instrumentalização das MPS permitia. A divulgação da DSN e da sua
interpretação pelas autoridades militares, policiais e civis uruguaias fez parte do esforço de
enquadramento das tensões sociais internas existentes e, simultaneamente, de incorporação do
país à lógica da defesa hemisférica, patrocinada pelos EUA durante a Guerra Fria a partir do
entendimento de que a América Latina era território vital para a segurança externa
estadunidense.
* * * * * * * * * *
A deterioração da situação econômica do Uruguai e o agravamento das
conseqüências sociais e políticas derivadas foram simultâneos ao aumento das pressões que os
EUA exerceram sobre os governos da região para garantir seus interesses econômicos e
810
geopolíticos, especialmente a partir da Revolução Cubana. Neste sentido, é importante
reafirmar a ação de “pentagonização” da América Latina, que apesar de ter raízes na crise
internacional dos anos 30 se acentuou durante a Segunda Guerra Mundial e se intensificou,
ainda mais, no contexto da Guerra Fria. A ajuda militar dos EUA aos governos aliados ou
“amigos” através de doação ou venda de material bélico e treinamento militar persisitiu, de
forma geral, até o final dos regimes de SN e foi fundamentada, pelo establishment dos EUA,
de duas formas. Em primeiro lugar, através dos argumentos da DSN quanto à sobreposição e à
complementação da segurança externa norte-americana com a segurança interna da região
mediante a percepção de uma ameaça comunista de âmbito local, o que levou a reconverter a
estratégia de defesa hemisférica contra um inimigo externo em segurança interna de cada país
contra essa ameaça, mais perigosa e imediata, dentro das próprias fronteiras nacionais. Em
segundo lugar, através dos programas de ajuda, possibilitou-se que os EUA se desobrigassem
de uma intervenção direta em grande escala como a custosa experiência no Sudeste Asiático.
Um envolvimento semelhante e simultâneo naquela região e na América Latina poderia ter
constituído um fator de altíssimo risco para a estabilidade da superpotência. Portanto, as
linhas de auxílio foram vitais para sustentar os aliados regionais e permitir, aos EUA,
prudente distanciamento dos acontecimentos da região.
Os fatos acabaram confirmando a tese de Martha Huggins de que a crescente
militarização da América Latina resultou também da natureza da ajuda militar dos EUA.
Efetivamente, a contribuição das escolas policiais e militares estadunidenses, em vez de tornar
as forças de segurança locais mais humanitárias e respeitosas dos direitos humanos,
paradoxalmente, produziram um comportamento oposto. Em vez de promover a democracia e
a justiça na região - cuja defesa diante do “inimigo interno” foi justificada como uma atitude
de coerência com os princípios e o código de valores inerentes ao mundo ocidental -, os
planos e programas de segurança interna transformaram as polícias e os exércitos latino-
americanos em forças auxiliares a serviço dos interesses dos EUA. Chamadas a proteger o
capital e a propriedade privada, a irrupção das Forças Armadas na ordem interna foi
antecedida por mecanismos políticos e jurídicos que reconheciam a deterioração das relações
internas e justificavam a intervenção autoritária em andamento. Ao priorizar a segurança, os
governos tiveram que reconverter seu potencial militar de acordo com os desafios da “guerra
interna”. Inegavelmente, a necessidade de restringir o impacto da Revolução Cubana levou os
EUA a aprofundar o processo de “pentagonização” e a qualificar os governos da região na
ação anti-subversiva. A avaliação dos desdobramentos do processo cubano definiu a
promoção do desenvolvimento econômico e da modernização da sociedade latino-americana
811
nos moldes apregoados pela ALPRO, paralelamente à proposição da contra-insurgência,
opção preponderante a médio prazo, sempre ressaltando que sua atitude decorria da
necessidade de fortalecer a democracia latino-americana.
A reformulação da estratégia militar dos EUA para a América Latina exigiu o
esclarecimento dos militares de cada país amigo sobre qual o armamento mais adequado para
enfrentar os desafios da guerrilha e da insurreição popular. Armas com enorme poder de fogo
não eram recomendados para o combate contra-insurgente, porque, para enfrentar a “guerra
interna”, tal armamento era ineficiente; segundo, porque, dentro das orientações da ALPRO, a
aquisição de tal equipamento não devia comprometer os recursos destinados ao combate das
mazelas sociais do sistema, através da criação de empregos e da melhoria da prestação de
serviços sociais estatais. A ALPRO considerava esta estratégia prioritária para a contenção de
focos de descontentamento social (alvos de infiltração “subversiva”).
O assassinato do presidente Kennedy não alterou, na sua essência, a política externa
dos EUA na região, embora os insucessos da ALPRO e a radicalização social crescente
reforçassem a estratégia contra-insurgente. A administração Johnson assumiu uma política
mais agressiva. A possibilidade de “cubanização” da América Latina foi considerada
inaceitável pelos EUA, que, dentro desse marco, respaldaram o golpe de Estado no Brasil e
promoveram a invasão da República Dominicana (1965), fatos em sintonia com sua crescente
e brutal intervenção no Vietnã, sob o interesse direto dos setores monopólicos estruturados no
CMI.
Por outro lado, deve-se lembrar que a formação e treinamento dos oficiais latino-
americanos teve um componente adicional: a incorporação de muitos deles, em um futuro
próximo, em cargos e funções estratégicas nos seus respectivos países (como de fato ocorreu).
A otimização das relações e da convivência desses oficiais com militares estadunidenses,
durante seu treinamento, possibilitaram a introjeção de valores do american way of life, o que
potencializou as futuras relações entre os EUA e os respectivos países latino-americanos -
inclusive, na lógica de garantir mercados. Seja pelo convencimento doutrinário ou pelo
pragmatismo do apoio estadunidense à futura colocação estratégica desses oficiais na linha de
comando, as benesses do “intercâmbio”, apesar de nem todos os alunos serem cooptados,
foram mútiplas. Na sua instrumentalização mais estratégica, permitiu - além tê-los como
clientes cativos de equipamentos militares - depurar as Forças Armadas locais de oficiais
pouco confiáveis ou reconhecidamente hostis às orientações da superpotência e às diretrizes
da DSN. O fato é que a maior parte dos militares que passaram pelos cursos ministrados sob
orientação dos EUA participaram dos golpes de Estado em seus respectivos países ou
812
somaram-se à direção dos regimes de SN já existentes. Portanto, pode-se afirmar que aquelas
escolas de treinamento e de instrução, a começar pela mais representativa de todas, a Escola
das Américas, se constituíram, no mínimo, em “celeiro de peças de reposição” dos quadros
militares dirigentes bem como em correia de transmissão do novo papel destinado às Forças
Armadas. Papel este imbuído, em linhas gerais, dos valores e objetivos cultivados através da
DSN.
O protagonismo político desses oficias no futuro foi um fator com o qual os EUA
puderam contar na hora de reafirmar os compromissos comuns em defesa da segurança
interna. Tal protagonismo se combinou com o reconhecimento, de parte significativa da
opinião pública, da falência de um sistema político que não evitou a crise que propiciou a
derrubada dos sistemas democráticos e a implantação do autoritarismo. No vácuo do crescente
desprestígio de grande parte do sistema político, os setores militares golpistas se apresentaram
como moralmente legitimados para impor a ordem e assumir a responsabilidade na condução
dos ideais e objetivos da Nação, abandonada pelas elites civis “incompetentes” e
“antipatrióticas”.
Os oficiais que se submeteram aos programas de treinamento não foram o único
mecanismo de influência estadunidense. Houve também a ação desempenhada pelos seus
adidos militares nas missões sediadas nas embaixadas espalhadas na região. Esses quadros,
em geral, estiveram em contato direto com contrapartes locais, alimentando circuitos - pouco
visíveis - de informação e colaborando com seus interlocutores, sobretudo em momentos de
acirramento interno. Esses funcionários militares desempenharam variada gama de tarefas:
informação, treinamento de unidades locais, promoção e venda de armamento, espionagem,
etc. Ou seja, estiveram imbuídos de um duplo caráter estratégico: a defesa dos interesses dos
EUA e o exercício de influente papel na orientação das políticas interna e externa do país
hospedeiro. Seu papel de ligação ou sua atuação direta foi perceptível em vários dos golpes de
Estado que culminaram na implantação e consolidação de Estados de Segurança Nacional na
América Latina.
Em síntese, o CMI e a DSN formaram a estrutura material e ideológica que embasou
o funcionamento dos outros mecanismos da “pentagonização”, tanto daqueles vinculados à
correia de transmissão militar (as escolas de instrução contra-insurgente e a rede de atividades
encobertas controlada pela CIA), quanto dos relacionados à política (caso das proposições da
ALPRO ou das recomendações da Missão Rockefeller). Esses foram os principais fatores
externos que interagiram com as dinâmicas internas dos diversos países da América Latina no
contexto dos anos 60 a 80 - em alguns casos e em certos contextos, como elementos
813
dominantes; em outros, como complementares.
* * * * * * * * * *
O TDE resultante da dinâmica capitalista, de forma geral, é um sistema de
dominação e disciplinamento ao qual recorrem os setores economicamente dominantes, em
determinadas conjunturas, quando se sentem fortemente questionados e ameaçados. A
intensificação da ação das instituições coercitivas estatais e o crescimento do fluxo de
informação produzido pelos serviços de inteligência - cujo controle é cada vez mais
centralizado pelo centro decisório do próprio Estado - são concomitantes ao desequilíbrio na
relação entre poderes e ao enfraquecimento dos meios de fiscalização e de informação da
sociedade civil; tais fatos evidenciam um componente autoritário em gestação. Uma
administração assume a implementação de um TDE a medida que, ao exercer o poder,
potencializa todos os mecanismos, âmbitos e recursos que estão a sua disposição, a partir de
uma lógica de controle e de uso ostensivo de medidas repressivas, atropelando os limites
constitucionais democraticamente estabelecidos sem sofrer controle ou restrição de nenhuma
instituição que ainda responda, de alguma forma, à sociedade civil.
Dentro da perspectiva da DSN e da luta contra-subversiva, a violência estatal foi
justificada, na lógica analisada por Chomsky & Herman, como terror benigno e banhos de
sangue (bloodbath) saneadores, imprescindíveis e salutares, pois eliminavam os elementos
“comunistas” e “antidemocráticos”, fosse no Vietnã, no Camboja ou na América Latina. O
caráter salvacionista do TDE procurava diluir o teor dos meios empregados para garantir a
proteção da civilização democrática, ocidental e cristã, em uma clara atuação estatal onde os
fins justificam os meios. Portanto, as conseqüências decorrentes desse entendimento,
lamentadas ou não, foram reconhecidas como corretas e absorvidas pelo sistema.
O TDE, como sistema específico de poder, deve enfrentar uma escala de desafios.
Em primeiro lugar, a eliminação dos focos mais ameaçadores para os interesses que defende;
no caso da DSN, o “inimigo interno” associado com a sedição ou a subversão. Em segundo
lugar, o enquadramento geral da população, inclusive o setor considerado mais refratário -
que, ao persistir nessa postura sofrerá medidas mais extremadas - ao novo padrão de
comportamento político desejado e à obediência às diretrizes dos setores que assumiram o
controle do poder. Em terceiro lugar, molda as instituições a fim de obter, mediante
cooptação, uma obediência voluntária e adesista a partir de uma refundação nacional segundo
a imposição de novos princípios norteadores tomados e interpretados da DSN.
814
A organização de uma “violência organizada”, de caráter clandestino, múltipla e
onde se faz uso arbitrário dos mecanismos coercitivos legais, se contrapõe à violência
institucional estatal e legal. A “violência organizada” está presente em todos os níveis e
dimensões de atuação de um sistema estatal investido de TDE. Sua aplicação concreta produz
situações que variam entre um violento disciplinamento e a “institucionalização do horror”. É
o resultado daquilo que Miguel Bonasso identifica como apelação a métodos não
convencionais, de forma extensiva e intensiva, para aniquilar a oposição política e o protesto
social.
2
À utilização de recursos estatais tradicionais como autoridade, prestígio, castigo,
reabilitação, privilégios ou corrupção, o TDE acrescenta novos mecanismos coercitivos,
repressivos e de controle, assim como modernos recursos de persuasão e dissuasão, o que inclui
o uso de novidades tecnológicas para tal fim e as novas contribuições no campo da contra-
insurgência (inteligência, espionagem, tortura, interrogatórios).
Na sua dinâmica de funcionamento, o TDE atinge tanto alvos selecionados (em
função de determinados critérios), quanto aleatórios (indiscriminados). Isto pode ser
explicado pela flexibilidade do uso da figura do “inimigo interno”, que pode ser tanto alguém
de perfil bem definido como um alvo indicado por critérios tão genéricos e imprecisos que
qualquer individuo pode acabar exposto. Diante dessa imprecisão, praticamente toda a
população vira alvo potencial, o que aumenta seu desconcerto, situação que pode ser desejada
pelo TDE. Tal fato deve ser reforçado: o TDE de SN se apoiou fortemente no reconhecimento
da existência de uma “guerra interna” contra um inimigo hipotético, mutável, infiltrado no
conjunto da sociedade, o que foi utilizado como justificativa para uma atitude de alerta
constante, por parte do Estado, que escondeu, na prática, um clima de ameaça contínua sobre
toda a sociedade. A amplitude multidimensional desse alerta perturbou as situações mais
cotidianas dos cidadãos, ao alterar pautas de conduta social e tornar rotineiras as formas de
controle, naturalizando-as e disseminando-as tanto na dimensão pública do exercício da
cidadania (espaços escolares, profissionais, de lazer, etc.), quanto no âmbito privado (o medo
existente até “dentro de casa”).
A paralisia da oposição pelo medo e pelo silêncio gerou, de forma significativa, uma
“cultura do medo”, onde as pessoas introjetaram sentimentos de culpa, procuraram formas de
escapismo e abandonaram ações de solidariedade. Em nome da sobrevivência cotidiana, em
tempos de medo e de repressão, fomentaram-se a cautela, o silêncio e a introspecção. O
caráter clandestino do sistema repressivo, sem dúvida, contribuiu para neutralizar respostas
2
BONASSO, Miguel. Prefacio. In: PIETERSE, Jan et al. Terrorismo de Estado. El papel internacional de
EE.UU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 9.
815
imediatas da sociedade política e civil aumentando o efeito psicológico da violência estatal ao
torná-la anônima e onipresente e preservando o governo das denúncias que lhe foram
imputadas sobre a violação dos direitos humanos. A percepção dessa repressão gerou, nos
atingidos, a sensação de abandono diante de uma situação marcada pela perda de
solidariedade e forte presença da impunidade e da injustiça, o que multiplicou, ainda mais, a
insegurança e a atmosfera de medo geradoras de inércia e de imobilismo. De fato, os cidadãos
que se sentiram indiretamente ameaçados foram alvo particular da aplicação da “pedagogia do
medo”, pre-condição para a incapacidade de ação e o estabelecimento de uma “cultura do
medo”.
* * * * * * * * * *
A seguir, passo a responder as hipóteses suscitadas na introdução deste trabalho:
1) A aplicação das diretrizes da DSN conformou a escalada repressiva
caracterizada como TDE.
O Terror de Estado foi a essência da ditadura de Segurança Nacional uruguaia.
Embora algumas das suas premissas e mecanismos jurídicos e repressivos já tivessem sido
experimentadas nas administrações Pacheco Areco e Bordaberry (durante sua fase “legal”),
foi a partir da irrupção das Forças Armadas no cenário nacional que o TDE começou a ser
implementado de forma global, fato que permitiu o ordenamento da sociedade segundo os
objetivos e os critérios da DSN. Isto ocorreu não só a partir de junho de 1973, mas desde o
mês de fevereiro anterior, quando houve a subordinação do presidente Bordaberry à
autoridade das Forças Armadas.
Apoiado nas análises de Josep Comblin e de Jellinek & Ledesma, entre outros, pode-se
afirmar que a DSN assumiu um papel central na estruturação do regime. As Forças Armadas
funcionaram como ordenadoras do sistema social diante da falência das instituições da
democracia representativa e do sistema político em geral, além de serem a garantia suprema da
unidade nacional ameaçada pelos efeitos desagregadores do “perigo comunista”. A DSN, ao ser
incorporada como fundamento teórico da proteção da sociedade nacional a partir de um Estado
que precisava esconder sua essência antidemocrática, configurou um “estado de guerra
permanente” contra o suposto e difuso “inimigo interno”. Embora os defensores da doutrina
816
proclamassem agir em defesa da democracia, consideravam, no fundo, que esse regime era fonte
geradora de desordens por permitir manifestações dos setores desconformes com a ordem
vigente, a qual devia ser protegida através de todos os meios disponíveis.
A liquidação dos projetos de mudança social existentes antes dos golpes de Estado e o
disciplinamento da força de trabalho, em particular, e da sociedade, em geral, fatores de atração
de capital internacional, eram escamoteados no discurso da defesa da ordem, da estabilidade
político-social, da nação ameaçada pelo “comunismo”, das liberdades e da civilização ocidental.
A responsabilização do setor político pela crise existente servia de argumento a favor do novo
papel que deviam assumir as Forças Armadas para a realização dos objetivos nacionais que
estavam, em tese, acima de interesses particulares de qualquer tipo (de classe, partidários,
religiosos, etc.). A proteção da propriedade privada e dos interesses capitalistas foram associados
como inerentes ao modo de vida da sociedade uruguaia, devidamente inserida no campo da
denominada civilização ocidental, democrática e cristã.
A aplicação das premissas da DSN destruiu as bases da democracia representativa com
o fechamento do Parlamento, o controle sobre o Poder Judiciário, a interdição dos partidos
políticos, a imposição generalizada da censura, a violação sistemática dos direitos humanos e
uma repressão brutal contra toda oposição. O cenário da “guerra interna” descoberta pelos
setores golpistas extrapolou as ruas, as fábricas ou os liceos, projetando-se até nos cárceres
políticos ao encarar a população prisioneira como um “exército cativo”, cujas mentes eram alvos
de novas batalhas provocadas pelo exército vencedor com o intuito de atingir a sanidade mental
dos presos políticos.
2) A montagem, a manutenção e a qualificação das estruturas repressivas do Estado
receberam significativa cooperação e suporte do governo dos EUA.
A principal vinculação que os EUA estabeleceram com a América Latina foi a
transmissão da DSN e da experiência acumulada na luta contra-insurgente alimentada pelas
ações francesas na Indochina e na Argélia e dos próprios EUA no Vietnã, a formação de
gerações de futuros oficiais que serviram de futuros elementos de ligação e o fundamental
suporte material e diplomático. O anticomunismo se tornou o principal ponto doutrinário de
cooptação e adesão de jovens oficiais policiais e militares que assumiram uma postura
acentuadamente hostil diante de propostas de mudanças reformistas ou revolucionárias. Os
EUA deram toda cobertura aos golpes de Estado promovidos pelos setores de direita. Não só
817
apoiaram como estimularam os “semeadores de medo”. A conivência do governo
estadunidense com as práticas de TDE já era antiga e vinha sendo testada em ações pontuais
em que agiam os agentes da CIA sediados no Uruguai. Efetivamente, o envolvimento dos
EUA nos eventos internos do Uruguai, fato registrado desde os anos 50, extrapolou o papel de
simples observador, assumindo uma postura de interferência concreta, fato confirmado pelos
relatos dos ex-agentes da CIA Philip Agee e Manuel Hevia. Durante os anos 60, praticaram
intensa espionagem de embaixadas de países socialistas, além de vigilância de visitantes
estrangeiros suspeitos de serem agentes comunistas. Também tiveram contatos permanentes
com autoridades uruguaias, participaram da montagem de organizações e empresas que
deviam cumprir função de “fachada” e infiltraram agentes nos setores estratégicos da
administração local; tais atividades foram financiadas através de fluxos de dinheiro encoberto
controlado pela CIA, ou por linhas de financiamento da AID.
A conjuntura pré-eleitoral de 1971 mostrou, a partir da documentação desclassificada
pelos EUA, que a intervenção não se restringiu às ações da “Companhia” (um dos
mecanismos mais eficientes e agressivos da política de “pentagonização”), mas que o próprio
governo norte-americano interveio institucionalmente, pressionando e/ou orientando
abertamente através da sua rede de embaixadas na região, da Secretaria de Estado e do
Conselho de Segurança Nacional. A correspondência interna das embaixadas estadunidenses
na região e delas com o Departamento de Estado, confirmaram que, para evitar a ascensão da
Frente Ampla, os EUA apoiaram os governos Pacheco Areco e Bordaberry. A utilização da
embaixada de Montevidéu como base permanente de atuação/conexão/pressão teve seu ápice
na gestão Siracusa, mas é inegável que ela desempenhou o mesmo papel em outras
administrações. Da mesma forma, sabe-se, hoje, através dos documentos desclassificados, de
alguns pormenores da negociação da operação militar brasileira que foi montada para intervir
no Uruguai caso a Frente Ampla triunfasse nas eleições de 1971. Os EUA não só conheciam o
plano como o encorajaram e procuraram aparar as arestas entre Brasil e Argentina para evitar
a desestabilização regional. O coronel Dickson Grael corroborou, inclusive, a presença de
oficiais estadunidenses na zona onde estavam concentradas as unidades brasileiras preparadas
para tal ação.
O trabalho de doutrinação, de instrução e de aperfeiçoamento técnico dos executores
da política contra-insurgente ministrada pelos EUA, desde os anos 60, através das missões
especiais que visitavam os países ou de bolsas de estudo oferecidas para participar de cursos
em seu território, fez parte dessa relação. De forma muito particular, se destacou, nesse
contexto de colaboração, a participação de Dan Mitrione, expert em tortura científica, que
818
procurou tornar mais eficiente a ação das unidades envolvidas diretamente na luta
antisubversiva.
Outra grande contribuição foi a instalação de bases operativas de inteligência e de
informação que se conectavam com as estruturas repressivas locais, permitindo o acesso a
bases de dados (em tese, de conhecimento restrito das forças de segurança uruguaias), além da
infiltração de agentes e a promoção da corrupção em altos escalões do poder civil e policial,
assim como a realização de ações integradas e encobertas com as forças locais contra os
movimentos sociais e as organizações políticas de esquerda. Igualmente, foi estratégico o
financiamento da modernização das forças de segurança através dos diversos Programas de
Assistência Policial e Militar associados ao fornecimento e venda de equipamentos e
armamentos (duplo interesse dos EUA: estratégico e comercial).
Finalmente, houve um apoio diplomático indireto com a obstrução ou o
desconhecimento de denúncias realizadas contra a ditadura uruguaia em fóruns internacionais,
além do silêncio explícito diante dos pedidos de informação solicitados as suas embaixadas e
consulados. Tal fato fica bem evidente ao verificar que através da sua rede internacional de
informação (embaixadas, consulados, secretarias, Pentágono) circulavam muitos dos
documentos de denúncia apresentados pela oposição uruguaia no exílio, o que mostra, que
não eram ignorantes do que ocorria e nem se omitiram; eram sim, coniventes e co-partícipes.
Como corolário da vinculação estadunidense com o regime repressivo uruguaio, deve constar
também o papel que assumiu na Operação Condor, através das articulações promovidas pela
CIA, do envolvimento de agentes a ela vinculados - com transmissão de know-how e
auxiliando a conexão dos grupos operativos dos países envolvidos - e a disponibilização das
suas informações para a eficiência da coordenação repressiva internacional. Ou seja, os
Estados Unidos desempenharam um protagonismo central, oferecendo apoio e colaboraçao às
ditaduras de SN da América Latina.
3) Certas práticas de TDE foram implementadas durante os anos anteriores à
imposição da ditadura, sob um Estado de direito em franco processo de deterioração.
Houve uma linha de continuidade entre os governos “constitucionais” de Pacheco
Areco e de Bordaberry quanto a uma escalada autoritária que evoluiu desde a posse do
primeiro, em dezembrro de 1967, e que se conformou como sistema complexo e global
durante a ditadura de SN iniciada pelo segundo, a qual se extendeu até o início de 1985. Tal
819
afirmação não implica em reconhecer como iguais, na sua essência, aquelas administrações
autoritárias - mas ainda sob regime democrático, apesar da visível fragilidade do mesmo -
com o regime ditatorial que se instalou em junho de 1973. Entretanto, o estudo do período, a
partir da consulta documental e dos depoimentos dos protagonistas, permite identificar
importantes conexões dentro da perspectiva do esboço do TDE.
Houve evidente deterioração das relações políticas com a despolitização e
despartidização do ministério de Pacheco Areco, o qual se revestiu de acentuado perfil
tecnocrata e desenvolveu forte vinculação com o setor financeiro e com a tradicional
oligarquia rural. A dissolução de partidos políticos e de organizações de esquerda, o
fechamento temporário ou definitivo de jornais de oposição e o uso indiscriminado e
inconstitucional das MPS, definiram a forma de atuação do Poder Executivo. A militarização
dos trabalhadores de OSE, UTE, ANCAP, das empresas frigoríficas e do setor bancário
antecipou o forte processo de enquadramento do conjunto da classe trabalhadora,
particularmente, a direção da CNT. A impunidade da JUP, do Comando Caza Tupamaros, do
Esquadrão da Morte, as mortes dos estudantes Liber Arce, Hugo de los Santos e Susana
Pintos, entre outras, além dos desaparecimentos de Ayala, Castagnetto e Gomensoro foram a
expressão do início de uma mudança na metodologia repressiva - novos métodos repressivos
que ainda não eram utilizados de forma sistemâtica mas que constituíam sinistros
antecedentes do que estava por vir.
Quando se afirma que a ditadura civil-militar se configurou, definitivamente, em
junho de 1973, mas que, como ameaça potencial, foi se gestando desde 1968, é porque se
entende que parte da estrutura jurídica, administrativa e normativa que embasou o TDE foi
sendo montada previamente. É o que ocorreu com a tentativa de acabar com a autonomia do
sistema de ensino através da malsucedida CONSUPEN. Por outro lado, a aprovação do
Estado de Guerra Interno (abril de 1972) e da Ley de Seguridad del Estado (julho de 1972)
constituíram verdadeiros guarda-chuvas jurídicos para o desencadeamento de uma inédita
ofensiva repressiva estatal. O maior exemplo de vinculação da violência estatal anterior ao
golpe de Estado, com a montagem da estrutura do TDE, que tomou conta do país durante o
período de exceção, foi o chamado que o poder civil fez às Forças Armadas para que
assumissem o comando da luta contra-insurgente em setembro de 1971, após a fuga massiva
de tupamaros do cárcere de Punta Carretas - poucas semanas antes do pleito eleitoral. À
imediata criação da ESMACO e da JCJ, seguiu-se intenso trabalho de inteligência militar,
com operações de vigilância, obtenção e processamento de informação e mapeamento da rede
de infra-estrutura do MLN, o que se mostrou extremamente eficiente nas jornadas posteriores
820
ao 14 de abril de 1972 (quando houve dura resposta militar à fracassada ofensiva tupamara).
Nesse momento, as Forças Armadas destruíram a organização guerrilheira e, literalmente,
ocuparam o país.
Portanto, se não se pode falar da existência de um TDE propriamente dito nos
períodos Pacheco Areco e Bordaberry, entretanto, foi inegável, o recurso a práticas de TDE
(tortura, organizações paramilitares, desaparecimentos, proibição de palavras, etc.), ampliadas
e utilizadas sistematicamente durante a ditadura. Neste sentido, houve sim acúmulo de
experiência e de situações que prepararam a rotina do medo e do silêncio que, em dimensões
bem maiores, foram implementadas, posteriormente, no contexto da ditadura.
4) A destruição física, psicológica e/ou política do “ inimigo interno” não resultou
de uma justificada “guerra civil”, mas de uma opção deliberada do TDE.
Embora o discurso da DSN identificasse a guerrilha como o “inimigo interno” por
excelência, num discurso em que o anticomunismo e o antimarxismo também eram suportes
basicos da doutrina, viu-se, na prática, que esses não eram os únicos inimigos que deviam ser
destruídos.
É inquestionável que a guerrilha preocupou sensivelmente às forças do
establishment. Porém, considerando que sua destruição não significou o recuo de tendências
golpistas, pode-se afirmar que o principal objetivo da ação do TDE em gestação passou a ser,
a partir das mobilizações e manifestações do ano eleitoral, a recém criada Frente Ampla. A
grande capacidade de mobilização, o impacto que seu apelo produziu nos jovens - muitos dos
quais ainda não eram eleitores - e os resultados colhidos nas urnas, com formação de
importante bancada parlamentar, tornaram a coalizão de esquerda o grande alvo a ser
atingido. Isto ocorreu também porque a Frente Ampla atraiu a simpatia política dos cidadãos
que participavam de outras modalidades de luta, como espécie de dupla militância (partidária,
sindical, estudantil ou armada). Assim, os motivos que colocaram a frente de esquerda como
alvo fundamental do TDE foram vários. Um deles foi o impacto eleitoral produzido (apesar da
derrota), pois teve importante vitalidade, apesar da curtíssima existência. Outro motivo foi o
fato inédito de conseguir abranger quase toda a esquerda do país. O dinamismo que resultou
da vibração política da militância dos Comitês de Base foi outro fator. A partir dos resultados
eleitorais, tendo recebido quase 20% dos votos nacionais e eleito uma importante e combativa
representação legislativa, a Frente Ampla passou a representar uma proposta de grandes
821
possibilidades futuras, ainda mais por contar com uma militância jovem conectada
organicamente aos movimentos sociais. Tudo isto fazia da nova força política uma temível
opositora.
Considerando as forças sociais e políticas que atuavam na Frente Ampla, no MLN,
na CNT e nos movimentos sociais, torna-se evidente que o alvo indireto dos representantes da
DSN no país eram as grandes camadas sociais que vinham organizando-se, articulando-se e
assumindo posturas questionadoras das políticas conservadoras implementadas desde o
Estado. Tratou-se de um difícil desafio enfrentado pelos setores dominantes. A qualidade
política e as experiências sociais acumuladas dos setores que confluiam nos princípios gerais
que norteavam a Frente Ampla, a CNT, a FEUU e até o MLN (neste último caso, quanto aos
princípios gerais, não quanto aos métodos utilizados) só podiam ser enfrentados mediante um
sistema repressivo de características inéditas, um sistema de Terror de Estado.
O amplo espectro que compunham os setores sociais e políticos favoráveis a
mudanças qualitativas na dinâmica social acabou sendo incorporado na fórmula do “inimigo
interno” da DSN. Logo, a guerra interna tão necessária para o saneamento da sociedade
atingida pelo “vírus” do comunismo, do marxismo, da subversão e do tupamaraje, teve de ser
uma guerra de grandes proporções (no âmbito temporal, geográfico, societário e geracional) e
com etapas escolhidas a priori segundo uma hierarquia de objetivos e inimigos definidos por
critérios de periculosidade mais imediata: 1ª) as organizações guerrilheiras; 2ª) as
organizações e os partidos políticos de esquerda e as instituições democráticas; 3ª) as
tentativas de reorganização e de reativação popular.
No âmbito das instituições e das organizações políticas e sociais consideradas
responsáveis pela crise dos anos 60 e do crescimento do clima “subversivo”, o novo regime
agiu com ferocidade. O fechamento do Parlamento, a proibição dos partidos políticos (e a
extinção dos partidos de esquerda), as intervenções nas instituições estatais de ensino e nos
governos departamentales e a proscrição da CNT e da FEUU foram algumas das medidas de
destruição do Estado de direito e da tradição democrática do país. Nesses aspectos, o TDE
agiu de forma deliberada, mas seguindo um cronograma planificado e sustentado pelas
instituições criadas pela nova ordem para conferir legitimidade ao processo refundacional
pretendido.
Quanto à população, sua grande maioria foi vítima da interrupção da vida
democrática e do cancelamento dos direitos políticos e civis. Em relação aos considerados
“subversivos”, a DSN lhes atribuiu a condição de traidores. Sendo de extrema periculosidade
para a sobrevivência da Nação - eixo central das preocupações dos defensores da DSN -, seu
822
destino era fugir do país ou ser alvo da repressão desencadeada.
A banalização da morte de estudantes e trabalhadores, desde 1968, mostra a evolução
da perda de limites na atuação da violência estatal. O uso massivo da tortura abriu a
possibilidade das mortes por “excessos” cometidos. A indução ao suicídio e as execuções
durante “tentativas de fuga” foram outro recurso que confirma uma prática de destruição que
pode ser considerada indireta, já que o objetivo principal “desejado” não era, necessariamente,
a morte. As péssimas condições da população carcerária e a falta de atendimento médico
foram outros fatores que devem ser contemplados ao avaliar um comportamento deliberado
do sistema magistralmente sintetizado na idéia e na ação de enlouquecer os presos.
Outro elemento fundamental que deve ser registrado refere-se à verdadeira “caçada
humana” promovida contra os exilados nos países vizinhos, a qual produziu inúmeros
seqüestros e desaparecimentos temporários ou definitivos. Mesmo quando tais fatos ocorriam
em países vizinhos, houve ali, nessas situações específicas, a marca registrada da atuação de
unidades repressivas uruguaias que participaram diretamente contra os exilados sob a lógica
da hierarquia e da obediência devida; ou seja, agiram em ações estatais extra-fronteiriças,
inclusive nos assassinatos dos parlamentares Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz, na
Argentina. Não se deve esquecer também os desaparecimentos no próprio território uruguaio
e que, pelo menos nos casos de Elena Quinteros e de María Claudia García, foram precedidos
de execução sumária.
Há também os casos de crianças seqüestradas com envolvimento de funcionários
uruguaios, bem como fortes suspeitas da existência de pelo menos um vôo da morte, com o
traslado de algumas dezenas de cidadãos orientais de Buenos Aires e que foram desaparecidos
pelas Forças Armadas uruguaias. Todos estes fatos confirmam que o TDE uruguaio praticou,
efetivamente, a eliminação política de políticos e partidos políticos (com milhares de cidadãos
que perderam seus direitos políticos). Também produziu a destruição psicológica, como ação
deliberada nos cárceres políticos, o que se confirma nos distúrbios profundos que marcam, até
hoje, as vítimas sobreviventes das sessões de tortura ou das angústias produzidas nos
intermináveis exílio e insílio, nas duras condições da clandestinidade e nas frustradas
esperanças dos filhos e dos pais de desaparecidos (a manifestação de tais seqüelas estão
presentes nos estudos de Mauren e Mauricio Viñar, por exemplo). Houve, ainda, a destruição
de identidades correspondentes às famílias biológicas das crianças seqüestradas dentro e fora
do país; da mesma forma, as execuções dos seqüestrados-desaparecidos (considerando aqui as
mesmas responsabilidades pelas mortes ocorridas sob tortura, já que, embora possam ter sido
provocadas por “excessos”, estes resultaram de práticas onde o risco de vida da vítima sempre
823
foi inerente à aplicação dessa metodologia de violência - dadas as condições gerais dessa
modalidade repressiva. Deve computar-se, ainda neste item, a eliminação dos rastos e dos
cadáveres dos desaparecidos, pois corresponde a uma outra modalidade de crime estatal
hediondo que atinge, especialmente, os familiares que procuram respostas. Portanto, a
necessidade de implementar as diretrizes da SN exigiu o confronto total com a oposição, numa
luta sem concessões nem negociações e que só devia terminar com a destruição total e
permanente do adversário.
Finalmente, cabe ressaltar que o aparato estatal, ao extrapolar os limites coercitivos
constitucionais, reconheceu que os mecanismos legais eram insuficientes na ação persuasiva
contra tamanho descontentamento social. O recurso ao TDE e a intensidade da sua
implementação esteve diretamente relacionada à dimensão da percepção da ameaça a que se
viram expostos os setores dominantes frente ao questionamento popular do sistema de
legitimidade em que se fundamentava a relação de dominação existente.
5) O TDE, aplicado com pretensões “pedagógicas” através da “violência
irradiada”, objetivou a conformação de uma “cultura de terror”, “de medo”, de efeitos
devastadores, os quais, em diversos aspectos, se projetaram, inclusive no período posterior à
ditadura, como “entulho autoritário”.
Pode considerar-se que a política de TDE implementada pela ditadura de SN teve
alvos imediatos específicos (a guerrilha tupamara, os partidos de esquerda, as direções das
organizações sociais, etc.). Mas é evidente que, de forma indireta, sua mira estava nas grandes
parcelas da população por detrás das massivas manifestações sociais de descontentamento
contra o governo e seus postulados. Houve, de fato, uma política estatal de intimidação
coletiva que se disseminou rapidamente através dos canais condutores da “violência
irradiada” e da nova normatização da rotina dos cidadãos a partir do esforço de refundação
institucional e de imposição de princípios, que deviam pautar as relações entre os cidadãos e
destes com o Estado e a Nação. Tudo isto acompanhado por um conjunto de iniciativas que
estruturaram uma intensa atividade propagandística - onde se destacaram as peças produzidas
pela DINARP -, o que contribuiu na tentativa de modificar o sistema de idéias e valores
vigentes. Acrescente-se a isso o funcionamento de uma ferrenha censura impedindo o acesso
à informação e à interpretação crítica da mesma juntamente com o colaboracionismo de
importantes meios de comunicação reforçando as atitudes e justificativas da ditadura,
824
cooptando simpatias para ela ou, então, reforçando um quadro de alienação sobre o entorno
imediato. Como conseqüência disso, a ditadura obteve bastante sucesso. As sensações de
medo e de paralisia atingiram, parcialmente, a população, o que facilitou a manutenção do
status quo. A introjeção do silêncio induzido foi um dos comportamentos coletivos
estimulados e desejados; resíduo direto da censura e da auto-censura, tal situação acabou
sendo uma forma indireta de colaboração com a repressão estatal.
O medo de constar nas listas de procurados, de cair nas categorias B ou C de
classificação de cidadãos, de ser pego sem documentos num simples passeio pela cidade ou de
ter seu rosto identificado em fotografias de manifestações ocorridas durante o regime
democrático funcionou, em muitos casos, como elemento paralisador.
Outro elemento que alimentou a “cultura do medo” foi a sensação explícita da
existência da impunidade para os agentes repressivos, amplificando o sentimento de
impotência das vítimas diretas e do seu entorno. O contexto de impunidade foi a base para o
comportamento arbitrário e ostensivo dos executores do TDE, permitindo-lhes fazer alarde de
uma espécie de “imunidade perpétua” que os desobrigava de prestar contas a alguém, mesmo
à justiça. A imunidade para as ações repressivas foi fomentada sob a proteção do
cumprimento do dever, ou seja, o “guarda-chuva” da tese da obediência devida. As ameaças
de hostilização, de tortura, de morte e de desaparecimento da vítima direta ou da própria
pessoa que enfrentava o desaparecimento de um familiar ou de um amigo, refreou a
mobilização por informação e aplicação de justiça, fortalecendo a sensação da impunidade.
Da mesma forma, a impunidade também justificou profusão de mentiras e pistas
diversionistas fornecidas deliberadamente aos familiares que procuravam informações sobre o
destino das vítimas.
A forma como foram negociados os termos da transição democrática e a anistia aos
crimes de Estado, garantidos durante o primeiro governo Sanguinetti (Ley de Caducidad) e
confirmada pelo plebiscito de 1989, reafirmou a sensação de imunidade perpétua contra todos
os envolvidos nos crimes da ditadura, fato ressaltado pela negativa de todos os governos
democráticos, até 2004, em levar adiante o esclarecimento das condições da morte e
desapareciemtno de cada cidadão uruguaio, a localização dos restos mortais dos
desaparecidos e o esclarecimento dos seqüestros de crianças - exigências constantes no artigo
4 da Ley de Caducidad confirmada pelo voto cidadão. A presença de torturadores,
seqüestradores e desaparecedores em cargos públicos, assessorando políticos e beneficiando-
se de vantagens computadas durante a “guerra suja”, é um dos aspectos que corroboram a
persistência de um entulho autoritário, assim como a existência de um liceo que continua
825
levando o nome de um chefe do Esquadrão da Morte. A construção de um luxuoso shopping
center no local do antigo cárcere de Punta Carretas, mantendo as paredes externas da prisão e
as torres da entrada como curiosidade estética, também é uma expressão - cínica, neste caso -,
da impunidade e da imunidade dos vencedores.
Em resumo, a forte presença da impunidade é mais do que um efeito residual da
aplicação de políticas de TDE (seqüelas de torturas, expropriação de bens, perda de anos
computados para efeitos de aposentadoria, etc.). Ela é uma característica e uma condição para
a projeção eficiente daquele TDE sobre o conjunto da sociedade; projeção contundente diante
da falta de informações, explicações e responsabilizações, particularmente, no caso dos
desaparecidos e do seqüestro e apropriação de crianças - crimes que não prescrevem, que
persistem no tempo, a cada dia. Mas a projeção da impunidade é mais nociva, para a
sociedade, pelas dúvidas que gera em relação à Democracia e pelas incertezas quanto às
instituições que dela fazem parte, particularmente, a policial e a militar, vistas com profunda
desconfiança pela população, até porque, após o fim da ditadura, não houve nenhuma
depuração de pessoal, de lideranças, de princípios doutrinários, nem manifestação de
arrependimento ou pedido de perdão pelos crimes cometidos.
6) O fenômeno dos seqüestros associados aos desaparecimentos, como prática do
TDE, constituiu-se na especificidade mais refinada e complexa da política repressiva do
regime de SN uruguaio.
O fenômeno dos desaparecimentos, modalidade peculiar do TDE no Uruguai,
revestiu-se de um caráter muito particular. O redimensionamento do mesmo ocorreu com o
maior conhecimento dos fatos e de informações cujo acesso foi permanentemente
obstaculizado durante a própria ditadura e, inclusive, nas administrações democráticas
vigentes até 2004. No atual estágio de conhecimento, é possível afirmar que as execuções
seguidas de desaparecimento dos cadáveres, cometidos pelo TDE, se diluíram na sinistra
figura da “noite e nevoeiro”; os desaparecimentos produziram mortes genéricas, cheias de
imprecisões, diversionistas e geradoras de situações profundamente perversas ao permitir que
a falta de respostas e a incerteza ao seu respeito se projetassem como feridas
permanentemente expostas. A política de desaparecimento de pessoas confirma a existência
de um elo orgânico de ligação entre o sistema de TDE e a DSN, já que esta, ao definir um
campo de atuação e uma metodologia muito flexível de enfrentamento do “inimigo interno” e
826
da “guerra interna”, justificada como “guerra total” e transformada em “guerra suja” - fato
particularmente evidenciado na ação dos grupos operativos repressivos uruguaios na
Argentina -, abriu a possibilidade da instrumentalização daquele método repressivo.
Enquanto modalidade singular, a experiência dos desaparecimentos foi perpassada
pelos métodos e pelas características das outras modalidades de combate à “subversão”, como
foi visto em relação à tortura e ao encarceramento. Invertendo a leitura, pode-se afirmar que,
no caso dos detidos-desaparecidos uruguaios, além de terem sofrido a violência e as seqüelas
do seqüestro e da tortura, sofreram, é óbvio, a violência característica e implícita da política
de desaparecimento com todas as implicações que isso gerou, a posteriori, aos familiares e à
sociedade como um todo. Deve-se lembrar que na prática de desaparecimento implementada
pela ditadura dentro do seu próprio território e aquela que, em seu nome, foi desenvolvida por
comandos fora das fronteiras nacionais, o número de vítimas seqüestradas foi superior aos
casos de desaparecimento definitivo; significa dizer que, para efeitos do registro histórico,
também devem ser contabilizados, nesta rubrica do TDE, os casos de desaparecidos
temporários.
De todas as modalidades de TDE, o desaparecimento foi a que produziu maior
impacto na sociedade, pois criou uma figura inédita e paradoxal, a do ausente-presente, que
acabou tendo uma importância política destacada e que foi validada pelas parcelas da
sociedade que não o esqueceram e exigiram respostas ao seu respeito durante todos estes
anos. Por outro lado, ao confirmar-se a frustração de uma expectativa de volta que não se
concretizou e sobre a qual a ditadura nada explicou, nem os governos posteriores (tornando-
se, no mínimo, coniventes com a situação gerada), se reforçou a presença da ausência,
motivação muito forte para um pequeno país de pequena e concentrada população.
Essa metodologia repressiva multiplicou o universo das vítimas propriamente ditas
pelos desdobramentos que gerou sobre os outros, ampliando a punição individual (de cada
caso) aos familiares, aos amigos, aos colegas, etc. A falta de informação, de memória, de um
detido, de um corpo, de um enterro e de justiça, repercutiu, de forma muito negativa, sobre
um espectro social maior. Persistem as feridas abertas, alimentadas pelos fatos contados nos
fragmentos de histórias testemunhadas por terceiros (sobreviventes, agentes da repressão,
testemunhas) que não terminam de fechar diante do silêncio e dos compromissos de (razão
de) Estado e da falta de vontade política em esclarecer os fatos. Entre essas feridas, estão os
casos das crianças uruguaias desaparecidas, histórias hoje parcialmente reconstituídas, na
maioria dos casos, mas que continuam gerando sentimentos de impotência, pois, mesmo
quando ocorre a restituição da identidade expropriada, persistem delicadas seqüelas e chances
827
de que ocorram novas experiências traumáticas (como no caso paradigmático de Mariana
Zaffaroni) e pelas demandas que essas crianças “recuperadas” passam a ter diante da
percepção da história confiscada, dos anos seqüestrados, das possibilidades de experiências
que lhes foram negadas, etc.
Como metodologia repressiva, o desaparecimento se projetou sobre todo o corpo
social. Após atingir as vítimas diretas, envolveu, ameaçou e agrediu as pessoas mais próximas
a elas, ao manter expectativas da volta do ausente. Depois, o TDE visou confundir a
sociedade desinformando, semeando diversionismos, sonegando documentação e gerando
incertezas sobre os fatos acontecidos. Por último, desapareceu o cadáver, impondo à
população que estava ciente da dinâmica autoritária e que a vivia no seu cotidiano um
sentimento de impotência e de fragilidade extrema.
O regime ainda procurou induzir um sentimento de culpa naquelas pessoas mais
próximas da vítima. A propaganda do regime atingiu de forma cruel, especialmente, os pais
das vítimas, com perguntas divulgadas com estardalhaço na grande imprensa: ¿como educó a
su hijo?; ¿sabe dónde está su hijo en este momento? Não saber como reagir diante da suspeita
do seqüestro ou ser alvo de dúvidas quanto ao comportamento a assumir foram outras formas
de desestabilizar o entorno das vítimas diretas. Por outro lado, a propaganda do regime
tornava o desaparecimento uma prova irrefutável da culpabilidade da vítima. O TDE induziu,
na consciência social, que os desaparecidos eram responsáveis pela sua situação, por causa da
sua condição clandestina e sua militância “subversiva". Simultaneamente, sugeria-se também
a falsa ilusão de que o desaparecido estava, em realidade, seguro e protegido; sua não
visibilidade era evidência disso.
A modalidade do desaparecimento, enquanto TDE, exigiu um enorme esforço em
extensão e complexidade para articular todos os elementos que o constituíram. Sua
operacionalidade determinou a existência de uma rede que lhe permitiu ser eficiente, versátil,
ágil, funcional e ameaçadora. Portanto, a avaliação sobre o impacto da existência de
desaparecidos e de práticas de desaparecimentos não pode restringir-se a uma contabilidade
numérica de vítimas nem ao funcionamento “racional” de uma dada modalidade de violência.
Torna-se necessário entender que, para ser uma ação eficiente, foi necessário a existência de
múltiplas condições para que pudesse funcionar como uma estrutura invisível, dissimulada e
clandestina, e uma cobertura estatal (dos setores dominantes internos e do governo dos EUA).
Para que o seu funcionamento pudesse ocorrer com segurança (ou seja, com impunidade), foi
necessário um esforço de ameaças implícitas ou explícitas e apoio de setores políticos, juízes,
imprensa e outros setores que permitiram que, vinte anos após o fim da ditadura, muito pouco
828
se tenha avançado no esclarecimento dos casos conhecidos. E, quando isto ocorreu, nunca foi
por ação dos governos democráticos, e sim, pela luta dos familiares e das organizações de
direitos humanos.
7) Os desaparecimentos ocorreram não só como “excessos” cometidos durante o
processo de extração de informações (em casos particulares), mas também como evolução de
uma prática repressiva que, sem ser a marca repressiva principal do regime, configurou-se
como política de Estado.
Os seqüestros-desaparecimentos definitivos constituíram, juridicamente, casos de
execução estatal extrajudicial. A partir do centro do regime, estruturas e funcionários
repressivos agiram dentro da lógica da “violência organizada”, característica do TDE
uruguaio, dentro e fora do país, antes do golpe de Estado e durante a ditadura, e contando com
encobrimento permanente e persistente após o final do período ditatorial, como projeção do
TDE nesse aspecto particular. A ilegitimidade da ação e o envolvimento governamental
tornaram a execução extrajudicial um assassinato perpetrado ou consentido pelo Estado, ou
seja, salvo exceções, não foram obra de pessoas que agiram de forma autônoma. Houve
seqüestradores, houve centros de detenção clandestinos onde as vítimas foram retidas, houve
executores, houve autoridades públicas mandantes ou coniventes. Por isso, o
“desaparecimento” deve ser contextualizado no processo de consolidação e de atuação do
TDE.
A destruição de vestígios e documentos que pudessem permitir o rastreamento do
detido foi parte essencial da metodologia do desaparecimento; com isso, procurou-se “apagar”
a ocorrência da ação de seqüestro, detenção ilegal e aplicação de tortura. O regime utilizou o
desaparecimento como instrumento de terror que paralisou a reação defensiva do entorno dos
atingidos e impediu a solidariedade da população, os protestos, as reclamações e até as
denúncias.
O Estado implementou a base da infra-estrutura física e de recursos materiais, além
de ter fornecido a cobertura política necessária. A existência dessa modalidade repressiva
implicou na disponibilidade desses recursos materiais para sustentar e treinar os membros dos
grupos operativos e seus armamentos, montar as redes de centros clandestinos, formar uma
frota de veículos “ilegais”, fornecer falsa documentação, deslocar funcionários públicos para
o desempenho de funções ilegais (policiais, oficiais, médicos, etc.), dar cobertura política e
829
legal, dispor da Justiça Militar, impor a censura de informações, apoiar logisticamente e
materialmente a atuação de comandos fora do país, estabelecer os marcos para a sedimentação
da impunidade, alimentar falsas expectativas, garantir a “anistia” aos agentes repressivos
(impunidade futura), etc. Em relação ao seqüestro de crianças, além da existência de todas
essas condições, o Estado garantiu a indefinição na resolução dos seqüestros, a impunidade
dos seqüestradores, a sonegação de informações que poderiam levar ao esclarecimento dos
casos.
Por outro lado, o regime uruguaio utilizou todas as conexões diplomáticas possíveis
para abafar as denúncias no exterior e articular e compartir, com os regimes amigos,
argumentos plausíveis, como ficou claramente demonstrado nos exemplos dos seqüestros de
Julio Castro e a mentira do seu embarque para Buenos Aires (falsidade corroborada, num
primeiro momento, pela ditadura argentina) e de Lilian Celiberti e Universindo Diaz (com a
complacência e colaboração da ditadura brasileira). Ressalte-se também a colaboração e
cooparticipação da repressão uruguaia em território nacional seqüestrando ou permitindo o
seqüestro de cidadãos argentinos perseguidos no seu país de origem, vários dos quais
acabaram desaparecidos.
Finalmente, embora muita pesquisa seja ainda necessária, crescem os indícios da
eliminação de dezenas de cidadãos uruguaios que foram seqüestrados na Argentina e que
devem ter sido eliminados e desaparecidos em território uruguaio como variante dos vôos da
morte. Em síntese, além da responsabilidade nos crimes cometidos durante a ditadura (e os
ocorridos desde 1968), o Estado uruguaio se omitiu de qualquer iniciativa de esclarecimento,
frisando, mais uma vez, a necessidade de incluir, no presente estudo, os governos
democráticos que administraram o país entre 1985 e 2004.
8) O regime de Segurança Nacional uruguaio agiu além das suas fronteiras,
participou e se articulou com outros esquemas repressivos do Cone Sul, compondo uma vasta
rede de integração e cooperação (a coordenação repressiva internacional), esquemas
articulados juntamente com os EUA.
Sobre esta questão, ainda faltam mais informações, devido, principalmente, ao
deconhecimento da existência de arquivos repressivos uruguaios. Mesmo assim, o que se
conhece sobre algumas operações em particular, confirmam a ativa presença uruguaia na
Operação Condor, coordenação repressiva internacional que teve permanente participação da
830
CIA e da rede constituída por adidos militares e funcionários diplomáticos (só para lembrar, a
frase de Kissinger ao chanceler argentino Guzzetti: “Façam, mas façam rápido”.
Especificamente, podem ser citados vários exemplos. Em primeiro lugar, os casos produzidos
pelo enorme dispositivo repressivo que conectou os comandos uruguaios que atuaram na
Argentina com as forças repressivas locais. Ao seqüestro, detenção, desaparecimento e
execução de inúmeros cidadãos orientais, deve-se acrescentar a participação direta (na
maioria dos casos) ou indireta no seqüestro e na apropriação de identidade de dezesseis
crianças uruguaias e de duas argentinas, além do intercâmbio de prisioneiros e as ações de
roubo, cujo botim era repartido entre os integrantes dos comandos binacionais que atuavam
contra a comunidade uruguaia. Em Buenos Aires, os centros clandestinos de detenção
Automotores Orletti e Pozo de Banfield foram os locais de atuação dos comandos orientais no
país vizinho. O traslado, em 1976, do grupo de detidos que devia simular uma “invasão” ao
Uruguai sintetiza o grau de complexidade, colaboração, intercâmbio e coordenação da
conexão repressiva existente entre as ditaduras do Uruguai e da Argentina sob a sombra do
Condor.
Em segundo lugar, pode-se lembrar o seqüestro dos irmãos Julien em Buenos Aires,
seu traslado ao Uruguai e seu posterior abandono no Chile: esse caso registra a articulação
com a ditadura Pinochet. Em terceiro lugar, está o já citado caso Lilian Celiberti e
Universindo Diaz, caso muito divulgado na época de solidariedade e colaboração da ditadura
brasileira, não só na acão do seqüestro, mas, posteriormente, tentando confirmar a versão (a
farsa) divulgada sobre o caso pela ditadura uruguaia. Finalmente, há o caso de Eugenio
Berríos, já na fase de recuperação democrática no Uruguai, quando oficiais uruguaios
colaboraram com a repressão chilena na eliminação do químico, antigo colaborador do
general Pinochet, em território oriental. Todos estes fatos evidenciam o grau de envolvimento
da ditadura uruguaia com suas similares na região.
Inegavelmente, a ditadura uruguaia se beneficiou da colaboração e do auxílio dos
organismos de segurança dos países vizinhos nas tarefas de monitoramento, de espionagem e
de perseguição implacável extra-fronteira. Por sua vez, ofereceu reciprocidade de “favores”.
A repressão e o cerceamento de asilados, exilados ou estrangeiros que simplesmente tentavam
sobreviver, em condições de legalidade ou de semilegalidade, e que foram vítimas dessas
verdadeiras “caçadas” que contra eles dirigiram agentes repressores estrangeiros que agiam
impunemente. O que é importante frisar, para concluir, é que a coordenação repressiva se
inseriu no interior de um plano aprovado pelo centro do poder; no caso uruguaio, a
responsabilidade pertence à cúpula militar e aos civis representados, entre outros, pelo
831
presidente Bordaberry, antes de ser afastado do cargo, o chanceler Juan Carlos Blanco e os
representantes do Consejo del Estado.
9) O TDE não se restringiu às práticas de repressão física ou psicológica, mas
perpassou toda a sociedade e, simultaneamente, instrumentalizou as instituições estatais,
subordinou o Poder Judiciário, anulou o Poder Legislativo, controlou os meios de
comunicação, interveio na rede de ensino e calou fundo nas relações cotidianas.
Enquanto sistema de dominação do regime de SN, o TDE se expressou na forma de
intervenção, reconversão ou proibição das instituições que constituíam o aparato estatal
uruguaio. A proibição e a proscrição de partidos e a clausura do Parlamento eleito anulou o
Poder Legislativo em todas as instâncias nacionais e, conseqüentemente, a rotina eleitoral e a
manifestação cidadã por meio dos seus representantes. A única exceção foi o Plebiscito de
1980 quando, no afã de procurar legitimação, a ditadura recolheu a rejeição popular ao seu
projeto continuista de reforma constitucional, o que se tornou um ponto de clivagem para a
reativação política da oposição nos anos seguintes. O Poder Legislativo foi substituído por
uma simulação grosseira denominada Conselho da Nação, nomeado diretamente pelo núcleo
do poder.
Por sua vez, a análise dos Atos Institucionais revela um padrão do regime: o de
eliminar os direitos e as garantias que protegiam a população diante de possibilidades de
excesso estatal e o esvaziamento das instâncias de representação e defesa da sociedade.
Quanto à Justiça Militar, esta se constituiu em outro instrumento do regime na luta contra a
“subversão” e na pretendida refundação estatal. Comportando-se como correia de transmissão
do Comando Militar, usurpou o lugar da Justiça Civil, interpretou a Constituição segundo os
cânones da hierarquia e da disciplina militar, o que convinha às Forças Armadas, e abandonou
ou tornou sem efeito o que não tinha utilidade. Por tudo isso, a Justiça Militar se configurou
como perversão do Direito e da Justiça, ambos subordinados a uma visão hierárquica,
disciplinada e obediente e à imposição de mecanismos ilegais, como os expedientes
submersos e o direito da força e da tortura.
A política de reestruturação da administração pública se combinou com um sistema
sofisticado de depuração que mesclou antigas fórmulas com outras inovadoras, criativas e
originais. Nenhum outro regime de Segurança Nacional contemporâneo elaborou uma
classificação da sociedade como o uruguaio, onde se exigiram declarações de “fé
832
democrática” e a temida classificação das pessoas nas categorias A, B e C, multiplicando as
seqüelas das milhares de demissões massivas e os efeitos negativos da perda de qualidade na
prestação de serviços estatais. Tais seqüelas são parte, também, das perdas irreparáveis
promovidas pelo TDE uruguaio contra aquelas gerações e as subseqüentes; fazem parte do
legado profundo deixado pela ditadura, embora isso nem sempre seja computado no balanço
do período.
A intervenção da ditadura no campo da cultura complementou o esforço de
enquadramento verificado na rede de ensino pois, entre outros aspectos, acarretou a perda da
criatividade vital e a imposição de um clima pesaroso que contrastou com um passado não
muito longínquo de efervescência cultural. O oportunismo, o adesismo e o oficialismo,
marcas dos novos tempos, foram formas de ascensão e de reconhecimento institucional,
sintomas de uma decomposição cultural que se aprofundou sob o impulso da contra-
insurgência e do disciplinamento do comportamento social. Censura e autocensura foram
registros dessa sociedade, e a combinação de medidas essencialmente repressivas com outras
de asfixia econômica se mostraram sensivelmente eficientes no fechamento de empresas
jornalísticas e editoriais de perfil opositor.
O TDE, aplicado na área do ensino, combinou repressão, disciplina e controle,
atingindo, nos diversos estabelecimentos, todos os aspectos das atividades inerentes aos
mesmos. Os “semeadores de medo” produziram destituições massivas, aposentadorias
compulsórias, abandonos de cargo e prisões de professores e de alunos. A presença
intimidatória de “vigilantes”, colaboradores, delatores e a responsabilização dos pais pelo
comportamento dos estudantes tornaram o cotidiano escolar e universitário um cenário de
insegurança, temor e apatia. A imposição da Ley de Educación aprofundou a intervenção nas
instituições e acentuou a perda de qualidade na produção de conhecimento na Universidade e
na relação ensino-aprendizagem na rede escolar. A proposta “educativa” da nova ordem, a
partir das premissas da DSN, na contramão da tradição dos princípios fundadores do ensino
público no país, produziu, de forma geral, um retrocesso devastador, particularmente, nas
áreas das ciências humanas.
A interferência e mudança de programas de ensino em praticamente todas as áreas e
o filtro sobre as bibliografias utilizadas consumaram pontual violência na tradição de um
ensino laico, crítico e de qualidade, que tinha sido fundamental para a inclusão qualificada
dos filhos dos setores populares no processo de modernização e politização da sociedade
uruguaia no transcurso do século XX. A substituição de valores e princípios pertencentes a
uma tradição de origem iluminista por outros, derivados de concepções conservadoras do
833
catolicismo franquista, ou da pretensa modernidade da DSN, foi acompanhada por uma visão
esquemática da produção do conhecimento, sendo este tratado como dogma e não como
produto da curiosidade intelectual, do contraditório, do debate ou do trabalho coletivo,
posturas inaceitáveis para uma filosofia de ensino onde o “professor” incorporava a
autoridade e era o transmisor de uma verdade inquestionável. O condutivismo e o tecnicismo,
associados a um constante patrulhamento, fizeram parte da estratégia de formar as novas
gerações de estudantes segundo as diretrizes da nova ordem.
A repressão cultural e a repressão à liberdade de expressão se alimentaram da
ausência de garantias mínimas e do reconhecimento concreto do grau de impunidade que
protegeu a estrutura repressiva estatal e seus funcionários. Mas, na avaliação global, não se
pode escamotear a eficiência de uma repressão silenciosa, impossível de quantificar, e que
contribuiu decisivamente para a gestação da “cultura do medo” e da autocensura que
perpassou tanto os produtores culturais e os artistas quanto o público receptor. Em síntese, a
essência das diversas reestruturações implementadas pelo novo regime foram a reorganização
societária, não através da norma constitucional anterior, e sim de uma outra, fundamentada
nas diretrizes da DSN.
10) A idéia de “guerra interna” (vinculada à necessidade permanente de identificar
novos “inimigos internos”) se projetou além do combate contra as organizações
guerrilheiras nas ruas e outros focos de resistência e foi canalizada para o interior dos
cárceres (outro cenário da guerra, segundo as autoridades da ditadura), para o cenário do
exílio e para todo o território nacional, espécie de “grande prisão” para o amedrontamento
da sociedade como um todo.
O alto índice de presos políticos legalizados existentes no Uruguai durante a ditadura
de SN é um indício de que tal situação correspondeu a uma decidida política de Estado. É
recorrente a afirmação das organizações de direitos humanos internacionais de que o Uruguai
foi o país da região que teve a maior proporção de população encarcerada por perseguição
política. Tal fato obrigou as autoridades a reestruturar o sistema penitenciário existente até
então, com a incorporação de duas novas e enormes unidades carcerárias, o EMR-1 (Libertad) e
o correspondente feminino, o EMR-2 (Punta de Rieles), além da utilização de presídios menores
e da infra-estrutura dos quartéis militares espalhados por todo o país, tanto como depósitos
regionais eventuais ou permanentes quanto para servirem de receptáculos incluídos nos rodízios
834
dos “reféns”. Deve mencionar-se ainda, como importante local de detenção, a sede policial de
Jefatura Central, no centro da capital, onde houve um pequeno mas específico grupo de detidos
que ali estiveram durante quase toda a ditadura: os oficiais das Forças Armadas identificados
com a Frente Ampla, inclusive seu candidato a presidente, em 1971, o general Líber Seregni.
Testemunhos sobre as condições gerais existentes em todos esses estabelecimentos de
detenção (refiro-me somente aos legais) confirmam a existência de um sistema de controle com
normas e regras rigorosas e códigos disciplinares “pedagógicos” que tornavam a situação muito
mais difícil de ser suportada. Provocações faziam parte da tentativa de desestabilização
emocional dos detentos, induzindo-os a cometer “faltas”. Por outro lado, o manejo de fases de
tensão e de destensionamento foi realizado, segundo confirmam os depoimentos colhidos pelo
SERPAJ, com o intuito de dificultar a apreensão das regras e de uma certa rotina que pudesse
ser controlada pelos presos. O uso da população reclusa para experimentos de fundo
psicológico, inclusive com aplicação de produtos químico-farmacéuticos (de efeitos colaterais
pouco conhecidos), para avaliar comportamentos - fatos também denunciados em informes da
época sobre saúde carcerária - denotam o menosprezo da ditadura com os presos em geral e o
estado permanente de punição sobre os presos políticos: apesar de derrotados, detidos e
punidos, continuavam sendo o “inimigo interno”. Por tal motivo, eram alvos da indução ao
suicídio, do mal-estar vivenciado junto com seus familiares nos constrangimentos impostos
durante as visitas e, acima de tudo, sofriam a ação direta ou indireta de enlouquecimento que
sobre eles promoveram as autoridades penitenciárias.
O caso dos reféns torna ainda mais explícita a forma como o regime encarou o inimigo
derrotado, já que foram permanentemente hostilizados e utilizados como verdadeiros escudos
humanos contra a possibilidade de ações da oposição contra as autoridades do regime. Os reféns
foram oferecidos também como cobiçado botim a ser mostrado às novas gerações de militares
que, não tendo vivido a vitoriosa campanha antisubversiva, podiam dela fazer parte assumindo a
responsabilidade da vigilância sobre o exército inimigo cativo e sobre seus “temíveis” chefes.
De qualquer maneira, os governos de Pacheco Areco, Bordaberry e da própria ditadura
procuraram o aniquilamento militar da organização guerrilheira e um certo “apagamento”
histórico da sua existência, desde a bizarra proibição da sua nomeação pública na gestão
Pacheco Areco até o sumiço da sua liderança seqüestrada e transformada em refém. A
ambigüidade com que a ditadura tratou a informação sobre os reféns mostra um aparente
paradoxo. Por um lado, tentou impedir que seu destino fosse conhecido proibindo qualquer
manifestação a seu respeito. Por outro lado, precisou divulgar a chantagem entre os núcleos
opositores persistentes na clandestinidade, no exílio e dentro daquelas prisões onde estavam
835
prisioneiros outros dirigentes.
A ditadura uruguaia inovou nas políticas de TDE com a transformação dos chefes
inimigos presos, mas seqüestrados do próprio sistema carcerário legal, em reféns detidos em
locais desconhecidos como escudos humanos, prática completamente ilegal que se prolongou
por quase uma década. Nem para os presos políticos em geral, muito menos para os reféns,
houve alguma observação quanto às recomendações da legislação internacional sobre as
condições que deviam existir no caso de presos políticos ou de prisioneiros de guerra (sendo
coerentes com a interpretação de “guerra interna” da própria DSN).
O regime combateu também os focos “subversivos” mais ativos que detectou junto
ao exílio uruguaio nos países vizinhos. O rastro do Condor permite comprovar ações no Chile,
Paraguai, Brasil e, sobretudo, na Argentina. Elas contaram com a participação direta de
agentes ou comandos uruguaios ou, então, de unidades de segurança dos países citados, mas
com informação e orientações passadas pelas autoridades orientais. A cronologia dos golpes
de Estado contra as democracias do Cone Sul conferiu um dramatismo particular aos coletivos
exilados. A apreensão atingiu a comunidade exilada no Chile, vítima da violência que
acompanhou a queda do presidente Alllende e que deixou um saldo de centenas de exilados
detidos e outros onze mortos ou desaparecidos, antecipando a armadilha mortal em que se
veriam enredados, na Argentina, milhares de uruguaios, depois de março de 1976. Nesse país,
o último para onde se dirigiram os perseguidos políticos que não conseguiram fugir do Cone
Sul, a falta de recursos materiais, a indisponibilidade de documentação legal, a rejeição de
salvo-condutos vigentes pelas forças golpistas, a inexistência de fronteiras terrestres com
outros países democráticos e, acima de tudo, a condição de exilados desses indivíduos e o
envolvimento de alguns deles com organizações esquerdistas locais foram fatores que
definiram o destino de muitas vítimas.
O número de cidadãos uruguaios desaparecidos e de crianças seqüestradas na
Argentina foi maior do que no próprio Uruguai. Reconhecendo a dinâmica da coordenação
repressiva argentino-uruguaia e a presença sistemática de comandos orientais naquele país, se
pode ter um quadro do cenário de medo, angústia e exposição com que se defrontou a
comunidade exilada. Se o caso argentino é, de longe, o que mais afetou o exílio uruguaio,
cabe salientar, de novo, que ações na modalidade Condor ou em coordenações binacionais
anteriores ocorreram em outros países da região. Uma sensação de vigilância e de angústia
também se projetou sobre as comunidades exiladas em lugares mais distantes - na Europa, nos
EUA, no México ou na Venezuela - onde persistia o medo de represálias contra os familiares
e amigos que permaneciam no Uruguai - fato que, evidentemente, a ditadura também
836
explorou.
* * * * * * * * * * *
A inconclusão dos processos analisados constitui uma das característica do Tempo
Presente. Em relação às pesquisas sobre os regimes de SN do Cone Sul, são conhecidas as
limitações derivadas da inacessibilidade dos arquivos repressivos, o que produz a sonegação
de preciosa informação quanto a aspectos pontuais que conformam lacunas difíceis de serem
preenchidas pois implicam em informações estatais interditadas pelo silêncio institucional;
esta tem sido a situação do Uruguai até 2004. Desde o início de 2005, o novo governo da
Frente Ampla tem promovido uma série de iniciativas que podem ajudar, a médio prazo, a
responder às demandas históricas da sociedade uruguaia quanto às questões em aberto que
envolvem o antigo regime de exceção. A disponibilização desses documentos e das
informações contidas podem apontar registros de imprecisões, exigir correções pontuais,
readequação da importância de certos fatos ou necessidade de reavaliação de certas
afirmações. Provavelmente, no que diz respeito às grandes tendências, não devem provocar
guinadas radicais nas pesquisas em andamento, embora essa possibilidade também seja
contemplada pela lógica do Tempo Presente; se é bem verdade que falta muito por conhecer
sobre essas experiências repressivas, as tendências gerais e a essência das mesmas são
conhecidas, o que não significa dizer que a abertura de arquivos oficiais não possam
apresentar dados qualitativos que exijam correções na precisão de algumas análises.
A problemática do Tempo Presente se vincula a uma outra questão, também
fundamental: a tensão entre o lembrar e a desmemória. No caso das ditaduras latino-
americanas recentes, a questão da desmemória tem sido um dos aspectos centrais na complexa
relação lembrar-esquecer, ao mesmo tempo que tem explicitado o desconhecimento de parte
desse passado diante da impossibilidade concreta de conhecer e acessar certos fatos que
deveriam permitir a elaboração e a seleção de lembranças. Sem dúvida, a desmemória tem
sido sinônimo de silêncio ou de apagamento da memória; mas, simultaneamente, também tem
sido o silêncio e o apagamento de parte da própria história recente.
A análise da temática da memória permite reconhecer a existência do esquecimento,
dos silêncios e dos não-ditos. O esquecimento pode resultar de uma opção individual ou
coletiva de restringir certas lembranças ao essencial. Mas pode também servir para uma ação
qualitativamente diferente, a de ocultar. Diante disso, é sempre útil a fórmula que propõe
837
Peter Burke: “quem quer que quem esqueça o quê e por quê”.
3
Esta fórmula de desnudamento
dos interesses concretos permite entender a amnésia social, os atos de esquecimento e os
interesses dos protagonistas no embate.
Para que a memória tenha significado para o ser humano, este deve esquecer a maior
parte do que viu, ouviu e experimentou. Essa é uma condição básica do lembrar. Além de
classificar, combinar e destacar lembranças o ser humano deve poder esquecer. O
esquecimento deve ser uma opção, principalmente no que diz respeito a experiências
traumáticas como a tortura, o seqüestro, os expurgos, os fuzilamentos simulados, os
desaparecimentos, as prisões, o exílio, o insílio, o desexílio, as detenções clandestinas, o
“botim de guerra”, as execuções e outras modalidades de violência repressiva estatal, todas
elas políticas de TDE encontradas, de forma geral, nos regimes de SN do Cone Sul e,
particularmente, no Uruguai. Esta é a conclusão de especialistas como Mauren e Marcelo
Viñar, Daniel Gil, Diana Kordón e Horacio Riquelme, os quais, há anos, acumulam
experiência no tratamento e na recuperação de pessoas que tiveram essas vivências
traumáticas.
Inegavelmente, os regimes de SN, com as suas conhecidas motivações repressivas de
controle, de censura e de enquadramento de memórias e de consciências, fomentaram um
“esquecimento organizado”, o que se consolidou com o encaminhamento de leis de anistia ou
similares, que tentaram impor um esquecimento institucional da violência executada dentro da
dinâmica do TDE. Se esse esquecimento institucional se expressou na forma da anistia, a
impunidade, a corrupção, a banalização da violência e o imobilismo foram efeitos da tentativa
de impor uma “amnésia coletiva” sobre a sociedade civil.
Paralelamente, os defensores da desmemória do TDE apostaram, com relativo
sucesso, na apatia resultante da combinação singular dos efeitos (nem tão) residuais da
“cultura do medo” (implementada durante a ditadura) com a “cultura da desesperança”
(resultante dos efeitos da onda neoliberal). Também apostaram na ação do tempo,
desmobilizando pressões e isolando sobreviventes e vítimas. Ou seja, a espera de que a
passagem do tempo silenciasse os sobreviventes e os familiares das vítimas atingidas. Em
relação aos desaparecidos, a morte daquela geração configuraria, segundo aquelas previsões, a
ausência definitiva de tal caixa de ressonância; o decorrente silêncio apagaria o último
vestígio da luta pela memória dos desaparecidos, configurando um “desaparecimento” final
das vítimas concretas assim como de toda discussão a esse respeito.
3
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 73.
838
No Uruguai, tal situação, pretendida já no primeiro governo Sanguinetti com a Ley
de Caducidad, foi resistida durante a segunda metade dos anos 80. A derrota plebiscitária dos
cidadãos que eram contrários a aprovação daquela lei conformou um quadro de profunda
frustração e de recuo da posição contrária ao esquecimento e à aceitação da impunidade
institucional dos crimes do TDE e dos responsáveis por eles gerando uma sensação de
marcada solidão das vítimas diretas do sistema repressivo, particularmente, dos familiares dos
mortos e desaparecidos.
Com a justificativa de que a exigência de esclarecimento dos crimes mais graves
cometidos pelo TDE era sinal de revanchismo e fonte de instabilidade, os governos
posteriores de Lacalle, Sanguinetti (de novo) e Batlle mantiveram as teses de que era
necessário olhar para o futuro e deixar de olhar para o passado, além da tese de que já era hora
de acabar com a divisão entre uruguaios. Na prática, tais palavras, além de demonstrarem
profunda falta de sensibilidade, indicaram uma grande incompreensão quanto à dimensão e ao
grau de complexidade do que foi o sistema de TDE aplicado pelo regime de SN. Com tais
atitudes, a história, a memória, a justiça, as vítimas da dinâmica repressiva e as novas
gerações continuaram sendo atingidas, agora, pela conivência dessas elites políticas com a
persistência dos desdobramentos indiretos gerados pelo TDE. A institucionalização do
silêncio oficial e a tentativa de suprimir a memória coletiva tornaram esta palco de batalha
política.
François Bédarida,
4
nessa perspectiva, lembra que o historiador não pode omitir-se
quando experiências históricas traumáticas são atingidas por um processo de questionamento
de fundo negacionista. Embora ele se refira especificamente ao caso nazista, pode-se traçar
um paralelo entre a tentativa de “apagamento” daquela experiência histórica e a das ditaduras
de Segurança Nacional. Estas também apelaram para fórmulas conhecidas de
desresponsabilização dos seus atos. Ignoraram acusações concretas, negaram fatos, geraram
pistas falsas, mentiram, assumiram posturas negacionistas, impuseram anistias protetoras e,
em tempos de democracia, garantiram a impunidade das suas decisões. Bédarida argumenta
que, diante de tais fatos, o saber do historiador deve extrapolar as fronteiras do cenário
acadêmico e deve intervir na esfera pública a fim de pronunciar-se diante das manifestaçòes
de processos negacionistas dirigidos por “falsificadores da história”.
5
4
BÉDARIDA, François. As responsabilidades do Historiador Expert. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique
(Org.). Passados Recompostos. Campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora FGV,
1998.
5
Idem, p. 146.
839
* * * * * * * * * *
O TDE se constituiu na essência da ditadura civil-militar uruguaia de SN. Sua
implementação objetivou o reordenamento do sistema social, tanto no sentido de atingir os
setores considerados “inimigos”, segundo as diretrizes emanadas da DSN, quanto na
necessidade de imobilizar, disciplinar e anestesiar o conjunto da população em geral.
Na prática, tomando como pretexto a luta contra os “elementos subversivos”, os
setores que articularam o golpe de Estado desencadearam uma violência abrangente,
complexa e global. Na medida em que partiu do próprio Estado a utilização de modalidades
repressivas como a tortura, a execução, o seqüestro e a reclusão massiva, tudo à margem do
controle dos outros poderes, da imprensa, dos partidos políticos, dos cidadãos, etc., a
sociedade ficou gravemente exposta aos ditames de um sistema de violência que se constituiu
como TDE. Viabilizou-se, assim, uma das principais finalidades do TDE, a disseminação,
dissimulada ou não, de uma “cultura do medo” que procurou imobilizar, isolar e desativar os
setores que ainda mantinham possibilidades de organização. Na sua essência, o TDE foi uma
estrutura eficientemente concebida e dirigida para explicitar a acentuada vulnerabilidade da
sociedade; o objetivo foi claro: dissuadí-la e paralizá-la. Não só se procurou evitar a ameaça
ao establishment, constituída pelas mobilizações populares anteriores ao golpe, como também
se objetivou a anulação política de amplos setores sociais; foi nessa lógica que se impôs o
projeto de reordenamento social e econômico dos setores dominantes, mediante violenta
intervenção das Forças Armadas, vencedoras da “guerra interna” contra o “inimigo interno”
subversivo.
Os mecanismos implementados pela violência estatal visaram quebrar a espinha
dorsal das organizações sociais e políticas e dos indivíduos que, de alguma maneira,
ofereciam resistência ao projeto em andamento; impuseram também, em pouco tempo, formas
anestésicas de convivência, fosse pela “cultura do medo”, pela autocensura ou pela
possibilidade de cooptação. A apatia e a autocensura ficaram como rescaldos do temor da
volta do recurso à força e condicionaram e/ou inviabilizaram ações políticas mais incisivas de
resistência, de questionamento e de identificação das responsabilidades do passado recente
procurando atingir a elaboração da memória histórica e a própria análise histórica.
A configuração de um sistema de TDE no Uruguai não pode ficar restrito à constatação
da promoção de seqüestros e desaparecimentos de crianças e adultos, por mais perverso que isso
possa parecer. Nem sequer à imposição de uma política de aplicação massiva de tortura. A
percepção do funcionamento e vigência do TDE se pauta não pela existência da brutalidade
840
repressiva pontual, por si característica da sua dinâmica, mas pela idéia mais sofisticada de
“violência organizada” que se estende por todas as instituições existentes, tornando-as
mecanismos de multiplicação de formas de controle, de ostentação de poder, de impunidade e
deixando-se perceber na escola, na televisão, no estádio de futebol, em qualquer repartição
pública, na forma de atuação do guarda de trânsito, no fomento do colaboracionismo, da delação,
no estímulo do medo, da censura, da infiltração, na desconfiança dos novos vizinhos. O TDE
está presente quando promove seqüestros ou desaparece adultos e crianças; mas também está
quando o Estado nada faz para acolher as demandas dos cidadãos que procuram seus familiares
desaparecidos ou quando assume que não lhe interessa o destino dos seus cidadãos que estão
sendo eliminados em um país vizinho. Ou esse Estado é conivente com esses fatos, ou está
associado a eles, ou, singelamente, desconsidera-os como crimes. O TDE engloba tudo isso, as
práticas restritivas no plano civil e político e as políticas repressivas mais diretas e violentas. E
impõe a ordem, a autoridade e, diante de algum questionamento da sociedade civil que aponte
para a exigência de justiça, consagra a impunidade.
Portanto, a essência do TDE que se implantou no Uruguai não se restringiu ao uso
intensivo da tortura ou aos milhares de presos políticos que sofreram o “grande
encarceramento”, mas sim na abrangência, na multiplicidade, na articulação e na
complementação de iniciativas que atingiram a população nas mais variadas relações que ela
mantinha com as instituições estatais. Foi isto o que, de fato, caracterizou a dinâmica do TDE
aplicado no Uruguai, seu caráter global, extensivo, abrangente, prolongado, indiscriminado,
retroativo, preventivo, extraterritorial e persistente. Foi a sobreposição de tantas modalidades
repressivas e iniciativas discricionárias que tornaram esses anos da história do país um
período particularmente “cinzento”, opressivo e, para quem o sofreu, inesquecível.
841
ARQUIVOS E FONTES CONSULTADAS
A) ARQUIVOS CONSULTADOS
1) Acervo da Luta Contra a Ditadura - Rio Grande do Sul
a) Fundos Documentais: Documentos da Secretaria de Segurança Pública - SOPS (Rio Grande, Lagoa Vermelha,
Caxias do Sul, Cachoeira do Sul, Lajeado, Cruz Alta, Erexim, Osório, Santo Ângelo, Porto Alegre).
b) Arquivo Pessoal Omar Ferri
c) Acervo Projeto Memória Digital
2) Centro de Documentación “Luis Pérez Aguirre” (SERPAJ-Uruguay)
a) Documentação diversa
b) Documentos do Secretariat International des Juristes pour l’Amnistie en Uruguay
(SIJAU)
c) CLAMOR - Boletim de Direitos Humanos (CNBB)
3) Arquivos Eletrônicos principais
- Brecha en internet - <http://www.brecha.com.uy>
- Centro de Estudios Legales - <http://www.cels.org.ar>
- Equipo Nizkor - <http://www.derechos.org/nizkor>
- La República - <http://www.larepublica21.com>
- Nunca Más - <http://www.nuncamas.org>
- Poder Legislativo República Oriental del Uruguay - <http://www.parlamento.gub.uy>
- U.S. Dept. of State FOIA Electronic Reading Room - <http://www.foia.state.gov>
4) Arquivos Eletrônicos secundários
- Abuelas Plaza de Mayo - <http://www.wamani.apc.org-abuelas>
- Antecedentes, desaparecidos y víctimas de violaciones de los Derechos Humanos en
México (AFEDEM). <http://www.laneta.apc.org/afadem-fedefam/historia.htm>
- Asociación Madres de Plaza de Mayo - <http://www.madres.org>
- Montevideo.com - <http://www.montevideo.com.uy>
- Página12/Web - <http://www.pagina12.com.ar>
- Rebelión – <http://www.rebelion.org>
- Servicio Paz y Justicia - <http://www.serpaj.com.uy>
- SOAW - <http://www.soaw.org>
- The Avalon Project: Nazi Conspiracy and Agression. Volume 7. –
<http://www.yale.edu/lawweb/avalon/imt/document/l-90.htm>
842
B) FONTES CONSULTADAS
1) Jornais
A) Brecha (Uruguai)
B) La República (Uruguai)
C) Marcha (Uruguai)
D) La Semana - Suplemento de El Día - (Uruguai)
E) Coojornal (Brasil)
F) Zero Hora (Brasil)
2) Revistas
A) Cuadernos de Marcha (Uruguai)
B) Guambia (Uruguai)
C) Postdata (Uruguai)
D) Veja (Brasil) – 1977-1991
E) Cadernos do Terceiro Mundo (Brasil)
F) Isto É (Brasil)
G) El Viejo Topo (Espanha)
3) Documentários / Filmes / Áudio
Alto el fuego III. El golpe del siglo. Audição de fragmentos de entrevistas e depoimentos dos
protagonistas dos acontecimentos que levaram ao golpe de Estado de 1973. Pesquisa e
organização: Nelson Caula e Alberto Silva. Montevideo: La República, 1999. 2
volumes, Cd.
Aparecido. El llamado de la sangre. Programa Vida y Vuelta. Direção e roteiro: Jorge
Bernardez. Buenos Aires: Canal 7, 2003. Programa de TV.
Daniel Rey Piuma. Un marinero acusa! Entrevista con Sonia Brescia. Programa Hoy X
Hoy, 9 de marzo de 2001. Montevideo: Comisión de Propaganda del MLN-T. Programa
de TV.
El despertar de L. Direção e roteiro: Poli Nardi. Argentina, 1999.
Jorge Gestoso investiga: La Doble Desaparecida. CNN en Español, 2001. Programa de TV.
Por estos ojos. El caso Mariana Zaffaroni. Direção e roteiro: Gonzalo Arijón & Virginia
Martínez. Uruguay/Francia, 1997.
Tupamaros. Direção: Jan Lindquist. Suécia, 1972. Comisión de Propaganda del MLN-T.
Y cuando sea grande. Niños uruguayos desaparecidos y reencontrados. Realização do
grupo anônimo Cine Independiente del Uruguay. Uruguay/Brasil, 1982.
4) Depoimentos
843
ALMEIDA, Criméia Schmidt de. SEMINÁRIO REPRESSÃO E VIOLÊNCIA. 40 ANOS DO
MOVIMENTO MILITAR DE 1964. Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2004.
ALVAREZ, Pedro. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 15/08/03.
CAPITANI, Avelino. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 30/04/04.
COSTA, Bruno. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 12/09/03.
FERRI, Omar. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 22/08/03.
GUTIERREZ, Cláudio. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS,
16/01/04.
KRISCHCKE, Jair. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 30/04/04.
LISBÔA, Suzana. Testemunho sobre a repressão e os desaparecidos. In: X JORNADA DE
ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO. GT de Ensino de História e Educação –
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PERES, Lícia. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 19/06/04.
TAVARES, Flávio. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 26/06/04.
VARGAS, Índio. Projeto Memória Digital. Acervo da Luta Contra a Ditadura/RS, 10/10/03.
5) Bibliografia
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BOTTOMORE, Tom (edit.). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge
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