Download PDF
ads:
PATRICIA IRINA LOOSE DE MORAES
O AUTO DA COMPADECIDA: DO TEATRO À MINISSÉRIE
Marília
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PATRICIA IRINA LOOSE DE MORAES
O AUTO DA COMPADECIDA: DO TEATRO À MINISSÉRIE
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade de Marília.
Orientadora: Prof. Suely Fadul Vilibor
Flory.
Marília
2006
ads:
Moraes, Patrícia Irina Loose de
M827a O Auto da Compadecida: do teatro à minissérie./ Patrícia Irina
Loose de Moraes – Marília: UNIMAR, 2006.
141f
Dissertação (Mestrado em Mídia e Cultura) – Faculdade de
Comunicação , Educação e Turismo, Universidade de Marília,
Marília, 2006.
1. Comunicação 2. Arte popular 3. Carnavalização 4. Estética 1.
Moraes, Patrícia Irina Loose de II. O Auto da Compadecida: do
teatro à minissérie.
CDD – 302.2
PATRICIA IRINA LOOSE DE MORAES
O AUTO DA COMPADECIDA: DO TEATRO À MINISSÉRIE
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade de Marília.
Orientadora: Prof. Suely Fadul Vilibor
Flory
BANCA EXAMINADORA
Prof. Orientadora Dra. Suely Fadul Vilibor Flory
Prof. Dra. Ana Sílvia Lopes David Medola
Prof. Dra. Linda Bulik
Marília
2006
DEDICATÓRIA
A Ariano Suassuna, pelo respeito e amor às
raízes da cultura brasileira...
Meu verso acabou-se agora,
minha história verdadeira.
Toda vez que eu canto ele,
Vem dez mil-réis para a algibeira.
Hoje estou dando por cinco,
talvez não ache quem queira
Suassuna (2004, p. 189), cordel popular.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por abençoar a minha caminhada.
À Prof. Dra. Suely Fadul Vilibor Flory, minha orientadora, a quem deve as
pistas sem as quais esse trabalho não teria vindo à lume e também pelos
momentos agradáveis de nossos encontros.
Ao meu esposo Marcos e a meu filho Felipe, pela compreensão e pela
solidariedade.
Aos meus pais, Maria Helena e Valdemar, pela oportunidade e votos de
perseverança.
Ao meu irmão Fabrício e à cunhada Rosana, pelo apoio incondicional.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Xilogravura 9
Figura 2: Xilogravura: o enterro da cachorra 25
Figura 3: A Compadecida e os emblemas do Movimento Armorial por Manuel
Dantas Suassuna 63
Figura 4: O circo por Manuel Dantas Suassuna 79
Figura 5: A Compadecida e Jesus na literatura de Guel Arraes 101
Figura 6: João Grilo e Chico 130
Figura 7: Ariano Suassuna 134
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
I SUASSUNA E O RESGATE DO POPULAR – O AUTO 26
1.1 Contextualização 26
1.1.1 Arte e modernidade 29
1.2 Do teatro à minissérie: contextualização do Auto da Compadecida na
obra de Ariano Suassuna 44
1.3 Estado de arte: continuidade ou ruptura 55
II PERCURSO TEÓRICO 64
2.1 A questão da Estética da Recepção 64
2.2 A herança medieval 70
III A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS 80
3.1 Do texto teatral à minissérie: o processo de gênesis-mimesis 80
3.2 Discurso e ideologia: as limitações impostas pelo enquadramento 81
3.3 A construção das personagens: estudo das notas da produção 85
3.4 O cenário 98
IV O ESPAÇO COMO INTERAÇÃO COM O RECEPTOR 102
4.1 Da teatralidade a obra televisiva 106
4.1.1 Teleteatro 108
4.2 Contexto: as possibilidades na linguagem literária 112
4.3 O trabalho de Guel Arraes 123
4.3.1 O elenco: ficha técnica e trailer 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS 131
ANEXO 140
MORAES, Patrícia Irina Loose de. O Auto da Compadecida: do teatro a
minissérie. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de
Marília.
RESUMO
A transcodificação da peça teatral de Ariano Suassuna – O Auto da
Compadecida – para a minissérie de mesmo nome de Guel Arraes, exibida na
TV Globo em 2004 é uma leitura satírica e humorística da sabedoria popular e
uma denúncia séria das desigualdades e injustiças sociais e religiosas entre
opressores e oprimidos no microcosmo da região Nordeste, que em si resume
o que acontece em todo o Brasil. O Auto de Suassuna tem seu ponto alto na
carnavalização, na criação de um mundo às avessas que se concretiza num
julgamento final, onde os papéis dos personagens são subvertidos, passando o
malandro João Grilo a ser o salvador de todos, diante do tribunal composto por
Jesus, Nossa Senhora e o Diabo, numa visão cômica e compadecida da
fraqueza do homem e de suas vicissitudes numa terra madrasta. Essa
pesquisa observa a passagem do código teatral para o código televisivo – a
transmutação da peça para a televisão – através dos procedimentos teóricos
da Estética da Recepção, da intertextualidade à carnavalização, do leitor
implícito à interatividade com o receptor, providenciando o resgate do popular e
a preservação da memória nacional através do saber popular. Buscou-se
entender, no primeiro capítulo, o resgate do popular, a extensão da obra, do
texto/teatro à minissérie, a representatividade da farsa na obra do autor e o
estado de arte. O contexto da cultura e da arte são buscados para explicar as
manifestações ideológicas e a necessidade de fundar uma cultura nacional. O
segundo capítulo percorre, teoricamente, o contexto da carnavalização e a
redação com a cultura popular nordestina. A carnavalização e a ironia do
discurso propiciam uma leitura cômica e moralizante do cotidiano, que se
configura através de intertextos com a cultura popular. O questionamento da
construção das personagens do texto/teatro à minissérie, remetendo-nos à
reflexão do discurso e da ideologia, abordagem central do terceiro capítulo,
passa por uma discussão do enquadramento, da possibilidade de leitura do
racional e do irracional e sua produtividade para a recepção do “Auto da
Compadecida” tanto enquanto peça teatral como na sua transmutação em
minissérie. No quarto capítulo, configura-se a preocupação com a relação de
interação autor/receptor, observando-se estratégias de transposição e
transcodificação do texto/teatro à minissérie, do texto/teatro para a inserção da
obra na televisão (ou na linguagem televisiva). Ressalta-se o grande empenho
do autor, não somente em produzir uma obra, coerente com suas idéias de
preservação da memória cultural nacional, mas ainda fundando um movimento
atuante _ o “Movimento Amorial” _ que reúne os interessados em preservar as
raízes populares do Nordeste Brasileiro nas artes, literatura, música,
artesanato, dança, em suas mais diversas manifestações, envolvendo todos os
setores da sociedade.
Palavra-chave: comunicação, estética, carnavalização.
MORAES, Patrícia Irina Loose de. O Auto da Compadecida: do teatro a
minissérie. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade de
Marília.
ABSTRACT
The transcoding of Ariano Suassuna’s play – O Auto da Compadecida – into a
short with the same name by Guel Arraes, shown on Globo TV in 2004 is a
humoristic reading of the popular knowledge and a serious denunciation of
inequalities and social and religious injusticies between oppressors and
oppressed onto Northeast region microcosm, which resumes in itself what
happens all over Brazil. The play by Suassuna has its best witthin the
carnavalization, within the creation of a world upside down that renders
concrete within a final judgment, where the characters’ roles are subverted,
turning the clever João Grilo into the great redeemer, in front of the tribunal
made up by Jesus, Nossa Senhora and the Devil, onto a cosmic and pitiful
version of man’s weaknesses and his ups and downs onto a harsh land. This
research observe the changes from theater code to TV code – the
transmutation of the play for television – through theoretical procedures of
Esthetics of Reception, from intertextuality to carnavalization, from implicit
reader to interactivity whit the receptor, providing the rescue of popular and the
preservation of the national memory by popular knowledge. We tried to
understand, in the first chapter, the rescue of the popular, the extension of the
play, of the text/theater to the short, the representation of the farce into the
author’s work, and the art sense. The context of culture and art are focused to
explain the ideological manifestations, the need of founding a national culture.
The second chapter goes through, theoretically, the context of carnavalization
and the relation with the popular northeast culture. The carnavalization and
irony of a comic and moralizing reading of the daily what if represent through of
intertextuality with the popular culture. The questioning of the construction of the
characters from the text/theater to the short leading us to the reflection of the
logo and the ideology in Suassuna’s work is main approach in the third chapter.
It passes by a discussion of the framing, by a possibility of reading of the
rational and irrational, and its productivity for the reception of the “Auto da
Compadecida”, as a play, as in its transmutation into a short, in the fourth
chapter, we can see the preoccupation with the relation of interaction
author/receptor, observing strategies of transposition and transcoding of the
text/play to the short, of the text/play for the insertion of the play into the
television (or into television language). Emphasize, goes through ideological
field integrating the great author’s, effort not only in producing a work, coherent
with his ideas of preservation of national cultural memory, but even founding an
actuating group _ the “Armorial Movement”_ that reunites those who are keen
on preserving the popular roots of Brazilian Northeast in the arts, literature,
music, art craft, dance, in its more diversity manifestations, and involving all the
sectors of the society.
Key-words: communication, esthetics, carnavalization.
Xilogravura. FONTE: <http://images.google.com.br/imgres?imgrerl>
9
10
INTRODUÇÃO
A transcodificação da peça teatral de Ariano Suassuna O Auto da
Compadecida
para a minissérie de mesmo nome de Guel Arraes, exibida na TV
Globo
, em
1999
, é uma leitura humorística da sabedoria popular e uma denúncia
séria das desigualdades e injustiças sociais e religiosas entre opressores e
oprimidos no microcosmo da região Nordeste, que em si resume o que acontece em
todo o Brasil.
O Auto de Suassuna tem seu ponto alto na carnavalização, na criação de um
mundo às avessas que se concretiza no julgamento final, em que os papéis dos
personagens são subvertidos, passando o malandro João Grilo a ser o salvador de
todos, diante do tribunal composto por Jesus, Nossa Senhora e o Diabo, numa visão
cômi
ca e compadecida da fraqueza do homem e de suas vicissitudes numa terra
madrasta.
Es
ta
pesquisa analisa a passagem do código teatral para o código televisivo
a transmutação (BALOGH, 1996) da peça o Auto da Compadecida para uma
minissérie televisiva através dos procedimentos teóricos da Estética da Recepção,
da intertextualidade à carnavalização, do leitor implícito à interatividade com o
receptor, providenciando o resgate do popular e a preservação da memória nacional
através do saber popular.
A observação das ações e representações da cultura popular nordestina
constituem a base dos trabalhos de Ariano Suassuna. Em O Auto da Compadecida
,
a busca pela identificação da tradição popular e dos símbolos, que permeiam o
imaginário do nordestino, deixa transparecer uma preocupação maior, que não se
encerra nas particularidades do meio nordestino, mas culmina na investigação pela
consciência e edificação de uma cultura popular nacional.
11
Suassuna desperta explicitamente, no texto/teatro a necessidade de
diver
sificação discursiva. Esta deve ser capaz de suscitar elementos que
possibilitem uma confluência entre os horizontes de expectativas
do
autor/leitor,
da
obra/público e do código
/meio.
Sua obra
teatral
incorpora a construção da memória
nacional
,
realizando
uma fusão do individual e do coletivo, pelo encontro de um elo
conector comum
através do teatro popular
.
A temática religiosa assume, segundo Suassuna, a condição de ligação entre
as diferentes aglutinações sociais, capazes de interagir no cotidiano regi
onalista
nordestino,
além de simbolizar um elemento comum de significação, assumindo um
caráter nacional no cotidiano popular. A ampliação da leitura, do regional para uma
esfera mais ampla, torna-se possível pelo código comum da língua que, embora
guarde
diferenciações regionais, permite que os objetos, por mais nuanças
interpretativas que possam sugerir, quando reunidos num contexto, sejam passíveis
de compreensão em âmbito nacional.
O
Auto da Compadecida permite a existência de um ambiente em que se
fazem presentes o imaginário simbólico e o enfoque ideológico, que se
tran
scodificam gerando significação para um público-receptor, cujo repertório está
centrado na cultura popular brasileira.
Por que, para quem e como ilustrar o imaginário simbólico e a manifestação
ideológica? A primeira indagação justifica-se pela necessidade de extensão da arte.
A arte
não deve destinar
-
se apenas à elite, que muitas vezes encontra na literatura a
fuga, como diria LUCAS
1
(1976, p.49), um “lazer das elites”mas a todas as camadas
sociais, ou seja, ao povo em geral. A segunda questão surge da necessidade de
comunicar as possibilidades artísticas, desde o público erudito às massas e até
mesmo à sociedade de consumo. E por fim, o Auto modeliza uma construção
problematizada da sociedade, ilustrando-a num texto, que contempla a estética
carnavalizada das personagens no texto teatral, e num segundo momento possibilita
leituras da obra no cinema e na TV.
1
Lucas, Fábio.
O caráter social da leitura brasileira
. São Paulo: Quíron, 1976. p.49
.
12
A arte pretendida, no texto/teatro de Suassuna, alerta, chama a atenção e
quer causar repúdio quanto à condição social do brasileiro. O texto utiliza como
estratégia estética
a carnavalização
2
que exalta a
comicidade
e a
inversão de papéis
sociais,
interioriza
ndo
uma discussão
,
cujo compasso de assimilação é mais lento na
massa
e mais intenso entre as elites e a parcela da população mais refinada
culturalmente. Esta interiorização é mais profunda no teatro e menor na televisão
como podemos verificar na minissérie televisiva, dirigida por
ARRAES
3
, que será
analisada em nosso estudo. A televisão por ser uma mídia de massa não consegue
verticalizar e aprofundar seus produtos, sem o risco de não ser compreendida por
grande número de telespectadores. Talvez por essa razão a minissérie, “Hoje é dia
de Maria”, tenha ficado tão hermética para a maioria. O mesmo aconteceu com
algumas cenas da
minissérie
“Os Maias
4
.
Suassuna atenta para a representação dos símbolos e seus constituintes no
imaginário da coletividade. O estudo de sua literatura teatral nos remete a
identificação de uma identidade coletiva
que
assegura
, a perpetuação de uma
cultura popular, e o resgate da memória nacional sustentadas pela representação
dos símbolos regionais, e/ou universais, presentes em uma dada sociedade. Ao
serem destacados no A
uto
da Compadecida
, passam a reforçar o discurso simbólico
da disjunção social de uma sociedade de classes. Os símbolos no discurso de
Suassuna convidam-
nos
a ler, nas entrelinhas do percurso narrativo, a diversidade
cultural implícita na trama.
Para quem, para que público? Para o leitor ideal, para o arquileitor? Do leitor
da elite ao da massa, Suassuna entende que a arte deve ser disseminada, para que
possa ser entendida e preservada no contexto social, como memória integrante do
processo histórico. E como realizar tal proeza? Através da manipulação e
transposição dos códigos, por meio do estilo literário da narrativa fictícia, respaldada
pela instituição de um percurso carnavalizado, tão presente nos autos medievais,
que reaparecem em inúmeros intertextos, marca estilística de Suassuna que busca,
nas raízes da cultura portugue
sa, a formação da tradição brasileira
.
2
Termo creditado a BAKHTIN (198) que define
o discurso burlesco como recurso estético.
3
Miguel Arraes de Alencar Filho iniciou sua carreira em Paris no Comitê do Filme Etnográfico dirigido
por Jean Rouch, mestre em cinema verdade.
4
Sobre
a minissérie “Hoje é dia de Maria” e “Os Maias”, consultar a Globo Filmes.com
13
O modelo eleito por Suassuna para propagação da arte como resgate
da
memória nacional, passa pela arte do povo, com a incorporação da
narrativa
popular, com o resgate dos cordéis populares ao texto/teatro, modal
idade
oral,
que
contribui
com vários trabalhos da literatura nacional, entre os quais O Auto da
Compadecida
, datado de 1955. Por que o teatro? Ao realizarmos uma busca
estatística sobre os níveis de escolaridade do Brasil e em especial no Nordeste, não
será difícil constatar que o veículo de comunicação mais viável naquele contexto é a
transmissão
oral.
Como chamar a atenção do público? O discurso erudito, com vocabulário
elaborado
, dificultaria a inclusão cultural das classes sociais, principalmente as
menos favorecidas. A saída foi a inclusão do vocabulário como fio condutor,
reforçado
pela carnavalização, que satiriza, ironiza e cria as lacunas necessárias
para a construção
da
significação individual. Acresce
nte
-se, também, a plasticidade
circense, a substituição do vocábulo erudito por um dito popular, pois a intenção é
atender a uma demanda diversificada.
A carnavalização permite alegorizar as personagens no texto/teatro, e o
interlocutor
, o receptor da mensagem, dialoga com as personagens e com o
contexto. O interlocutor acaba
interagindo com
a voz do autor no texto:
é o momento
de
sua
participação
ativa na obra
. S
ua leitura
direciona o preenchimento das lacunas
do texto e convida, ideologicamente, o p
úblico
à reflexão, viabiliza
ndo
a
concretização do texto, através da decodificação da mensagem
desencadeando
concretização
da leitura ou absorção
do texto
.
Quem representa Suassuna como interlocutor é o palhaço. O alter ego do
autor, no teatro, tradi
cion
almente, se traveste em
personagens
aparentemente
insignificantes: o bobo, os empregados, como nas obras de Gil Vicente (o parvo) e
Moliére (Mairotte as empregadas). Essas são p
ersonage
ns
que, nos autos
medievais
, presentifica-se na figura do Arlequim, que embora tenha evoluído
conforme as exigências da sociedade de consumo
é
elemento presente também nos
circos contemporâneos. A presença desse elemento no texto/teatro permite a
existência da interatividade, que cumpre a função de preencher as lacunas de
significação. A ilustração ocorre quando as ações e representações compõem um
14
contexto discursivo, permitindo a coexistência dos símbolos e da ideologia, que
acabam
por envolver o receptor.
Pensar
O
Auto da Compadecida implica em pensar a arte e as poss
ib
ilidades
de leitores que poderão surgir. A adaptação da obra para a TV, no formato
minissérie, criou a necessidade de observar a oralidade e o teatro popular nas sua
s
diferentes
possibilidades visuais, geradas no pluralismo das mídias, desencadea
ndo
o questionamento de
como
a arte e as mídias podem e devem realizar o resgate
da memória nacional.
A problemática maior consiste na indagação do existir ou não arte na
produção televisiva de
O
Auto da Compadecida
. A fundamentação de que a obra é a
representa
ção da arte nacional passa a confirmar-se no momento em que se
observa a pertinência do diálogo intertextual entre as memórias populares, outras
obras do autor e as músicas populares, que buscam nas raízes nacionais a
interatividade
com o
contexto sócio
-
cu
ltural.
A versão televisiva aqui estudada compreende a versão adaptada pela Globo
Filmes, disponibilizada num primeiro momento no formato de minissérie, que
posteriormente
foi adaptado para o cinema e DVD. A introdução da obra no formato
minissérie atendia às expectativas, segundo Guel Arraes, de um projeto que a
emissora idealizou, introduzindo obras da literatura nacional na mídia televisionada,
como por exemplo, Os Maias de Eça de Queiroz, A Muralha de D
inah
Silveira de
Queiroz e Lisbela e o prisioneiro de Osmam Lins (versão adaptada para o cinema e
não para a TV),
entre outras.
O teatro de Suassuna tem como sua primeira produção, em 1953, a peça
O
castigo da soberba, em 1954 O rico e o avarento, cuja inspiração foi buscada nos
autos vicentinos, cujos temas discutiam valores morais de caráter religioso cristã
o,
precisamente os pecados capitais, o teatro passa a ser adotado como um plano de
ação, que propunha discutir e educar simultaneamente. Em
1955
nasce
a peça
O
Auto da Compadecida, que proporcionaria a Ariana Suassuna o reconhecimento de
seu valor artístico por parte da crítica literária pela aprimoração da leitura vicentina
em seus trabalhos
.
15
Os autos, segundo Cascudo (1988, p.85), surgiram aproximadamente no
século XII, e representavam teatralmente o enredo popular, através da música e dos
cantos religiosos, principalmente nas datas religiosas como a Páscoa e Natal.
Quando avaliada a audiência (o elevado público) e a percepção (eficácia de
absorção da mensagem) que o gênero provocava sob os receptores, o a
uto
migra
da proposta de encenação e memorização dos rituais cristãos católicos a
realidade
de comunicação visual, como instrumento de catequização. A discussão da moral e
dos preceitos católicos
articulava
-se numa mensagem, cujo estilo lingüísti
co,
alicerçava-se nos modos rudes e simplórios de se falar da população, que por sua
vez se encontrava privada dos meios e modos literários. Est
a
era
a proposta
existe
nte naquele momento, a que representava uma possibilidade de
comunicação
catequética (ide
ológica)
junto aos não letrados.
Cunha (1986, p.
85
) pontua que no século XVI os autos eram estruturados
como uma cerimônia em que se proclamavam e executavam as sentenças do
Tribunal da Inquisição”. Ao retomarmos as leituras da notas de Cascudo a respe
ito
dos autos, observamos que a inexistência de um texto culto não incita um vocábulo
burlesco, uma vez que tratavam a pratica cristã. Ao contrário do auto, teremos o
surgimento da farsa, que institui um novo gênero teatral, principalmente no século
XV com
os trabalhos Gil Vicente (1438
-
1481, aproximadamente).
A farsa, segundo a definição de Cunha (1986, p.) é a “peça cômica de ação
vivaz e irreverente [...] coisa burlesca”. Ao contrário dos autos
cujos
textos retratam a
moralidade e a devoção
,
as farsas propunham uma alegorização
lingüística
rude
,
abordando costumes e desajustes sociais
. Autores como
Gil Vicente criam
pe
ças em
ambos os gêneros, do trágico ao tragicômico. A exemplo do auto, Gil Vicente
escreveu peças como o Auto da visitação ou Monólogo do Vaqueiro
(1502)
,
o
Auto
da Barca do Inferno que segue uma trilogia em que propõe a discussão da Barca do
Inferno
(1514)
,
Barca do Purgatório
(1518)
e a Barca da Glória
(1519)
entre outros
5
.
Entre as farsas temos a
farsa
Quem tem farelos (1505) e a Farsa de Inês Pereira
(1523)
6
.
5
Sobre a cronologia das peças (autos
e farsas)
,
consultar PASSONI (1995
,
p.7
-
8)
.
6
Idem
16
Suassuna segue o paradigma de Gil Vicente, quando transita entre o auto e a
farsa. Em o A
uto
da Compadecida temos um problema de classificação do gênero,
pois, há simultaneamente, auto e farsa. Embora o tema esteja cent
rado na ilustração
da moral e da religiosidade, a construção da fala do personagem João Grilo, suscita
o texto estruturado em farsa e é observada por Raimundo Carrero (apud, Suassuna,
2004, p.223) quando aponta que o “[...] no
Auto
, conseguiu unir, num tempo, os
teatros religioso e popular, o que oferece belo efeito cênico e compõe a perfeita
transição entre o erudito e o popular”. A classificação do texto em auto se justifica
quando aprofundamos a leitura da temática religiosa no texto
.
O auto da
Co
mpad
ecida
, a Igreja é tomada como a estalajadeira, apresentada no Auto da
Lusitânia de Gil Vicente (1532), que representa o local de recuperação dos
peregrinos ao longo da trajetória humana. Esta influência que Suassuna sofre de Gil
Vicente é ilustrada por Guel Arraes no final da minissérie, no julgamento de João
Grilo quando a Compadecida surge intercedendo por ele alegando que João Grilo é
mais um dos tantos seres humilhados e abandonados que pedem socorro ou
perdão pelos pecados cometidos que se justificam pela condição de vida indigna,
neste momento a construção de cenas que retratam os milhares de brasileiros
que vivem na linha de miséria. A fala da Compadecida reafirma a ilustração da
miséria e a substâ
ncia
do apelo religioso ao burlesco: João foi um pobre como nós,
meu filho. Teve que suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como
a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.
(Suassuna, 2004, p. 170)
Quanto
às
críticas literárias podemos encontrar a de Sábato Magaldi
7
,
re
gistrada por COUTINHO (2001, p.1539), que atribui à obra O Auto da
Compadecida
a condição de ser “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”,
e prossegue salientando que o texto/teatro:
Aproxima
-se o texto dos autos vicentinos ou dos `milagremais antigos de
Nossa Senhora, e contrastando com o sabor arcaico, dá ao diálogo a
espontaneidade da improvisação e a estrutura dramática a idéia de que é
algo que se constrói ‘a vista do público, para no final sentir-se a solidez
arquitetônica.
Esse caráter de espontaneidade e improvisação está presente tanto nos
autos medievais, como no cotidiano do nordestino. A identificação de tal similitude é
7
Crítico literário e crítico teatral com atuação na mídia impressa.
17
perceptível na literatura de cordel, na música e na pintura nordestina. A literatura de
cordel recebe esta denominação devido ao fato dos poemas e histórias populares
serem expostos à venda em praça pública
,
pendurados em cordões. É marcado pelo
conteúdo popular, contextualizado no dia-a-dia, nas histórias e fatos diários, reais ou
fic
cionais
, concretizando-
se
a oralidade nas narrativas do imaginário popular.
O imaginário
8
popular
se
faz presente
de diversas maneiras, por exemplo,
nas
composições musicais ilustrada por instrumentos, como por exemplo, o pife ou
pífar
o, difuso no meio popular do nordestino. A apresentação de grupos de pífar
os
ocorre
, predominantemente, em praça pública e segundo CASCUDO (2000, p.
612
),
o grupo “[
...
] consiste de três pifes de taboca, bombo, tambor, caixa e um par de
pratos”.
O elemento musical está presente na estrutura dos autos, principalmente
n
os
autos portugueses que
contemplavam
músicas e coreografias simples que
cantavam os motivos religiosos, no nordeste a dança e os cantos religiosos estão
difusos no imaginário popular, principalmente quando considerada uma realidade em
que
cada cultura tem seu próprio imaginário, a diversidade de culturas e raças no
Brasil compõe um complexo imaginário, em constante movimento de transformação,
fusão e fragmentação
.
Esse complexo e diversificado meio cultural que mescla o
imaginário de diferentes culturas e povos retrata um resgate da arte. Para Suassuna
a arte, na música, no teatro e na dança ainda mantém características observadas
no
teatro religioso na Europa a partir do século XII que mesclavam as cenas do
cotidiano com passagens bíblicas, de maneira a ilustrar a aplicação dos preceitos
religiosos, em prol da preservação da moral. Geralmente as encenações sacras e os
autos eram encenados nas portas principais das igrejas ou em seu interior, quando
destinados à nobreza eram encenados nas casas nobres ou palácios, sempre ao
som de instrumentos musicais, cantos e danças simples.
Em
O Auto da Compadecida, os
elementos
musicais e coreográficos simples
(o encerramento da minissérie contempla este contexto), podem ser visualizados na
leitura de
Arraes
, que busca incorporar elementos da música regional para
ampliar o
impacto da significação. As danças da Folia de Reis e do Congado, por exemplo,
8
Para Patlagean (apud, LE GOFF, 1998, p.291), “O domínio do imaginário é construído pelo conjunto
das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos
encadeamentos dedutivos que estas autorizam.
18
são
elementos comuns ao repertório do nordestino e compõe o repertório cultural
desta parcela da população brasileira. A soma de repertório e a prática vivida por
intermédio da ritualização constituem, conforme aponta FLORY (1997, p.40-
43)
, a
comunidade discursiva. Mas, de se ressaltar o fato de que as fronteiras que
cerceiam as comunidades discursivas, no caso específico do A
uto
,
transpõem
-
se
no
momento em que se submetem a contextualização do símbolo universal, no caso, a
religiosidade representada pelas figuras do Diabo, de Emanuel (Jesus), e Maria,
principalmente da última. As personagens elevam-se à categoria de elementos de
conexão universal, principalmente por estarem representando uma passagem da
literatura bíblica universal, “o juízo final”.
Música e religiosidade ressaltam-se como o duo utilizado na ritualização da
catequese moral. As igrejas serviam de palco para as apresentações dos autos, e
como continham personagens comuns à comunidade discursiva da Igreja Católica,
como os Santos, Maria, Jesus e o Diabo, a encenação tornava-se mais intensa e
materializava o teor catequético quando ritualizada em território católico. Uma vez
pensada a estética da linguagem, admitia-se o simplório, mas nunca o grotesco. Os
palcos geralmente eram improvisados nas entradas principais das igrejas, que
geralmente dispunham de degraus carregados de significação. Os
degraus
representam as dificuldades, as escolhas, o livre arbítrio e sugeriam o rompimento
,
entre o sagrado e o profano. O texto musical também catequético convidava a
regeneração moral, reforçando o teor emotivo do texto teatral. No Auto da
Compadecida
, o elemento musical regional passa a ser incorporado à obra com o
propósito de disseminar, divulgar e caracterizar. A música erudita dificilmente seria
assimilada com o teor tal como o da música regional, de raízes, que reproduz, cria
recria temas
religiosos
. A arte e a criatividade nordestina são incorporadas ao
Auto
da Compadecida
de maneira a demonstrar que uma sociedade aculturada também é
capaz de produzir e gerar signi
ficação
, mesmo que ideologicamente influenciada
.
A
música proveniente de instrumentos rudes, confeccionados com matéria prima
regional,
como o pífaro,
preenchem
a lacuna emotiva, completando a significação do
texto
.
Ao considerarmos o geo-espaço do nordestino, a diversificação da fauna e
flora (que embora diversa não permite, principalmente no interior o crescimento
econômico), a concentração de renda por uma minoria e o compartilhar da pobreza
pela maioria, passamos a entender como é relevante o aspecto de criação popular,
19
e de incorporação da arte popular, pois acaba se revelando como uma das poucas
possibilidade efetivas de produção de um povo, receptor privilegiado da mensagem
teatral popular.
P
ode
-se observar, como exemplo, o uso da taboca, popularmente conhecida
como bambu ou taquara, matéria-prima para a manufatura de um instrumento que
se assemelha ao flautim, uma vez que no espaço de penúria nordestino a
transformação do bambu é ainda economicamente viável. O pife pode ser entendido
como um escape, uma saída perante a exclusão cultural da massa. No teatro de
Suassuna o pife ou pífaro é introduzido no contexto erudito, juntamente com
elementos populares
,
como os provérbios, ditos e crenças, que viabilizam através de
estratégias e artifícios, a construção de uma narrativa teatral onde o receptor é
previsto pelo próprio texto decodific
ando
a mensagem através de suas projeções
interpretativas.
Outros elementos
, por exemplo, a xilogravura, também registra a presença do
imaginário popular e incorpora-
se
ao texto pelo viés da cultura popular nordestina. A
xilogravura também assume caráter popular e, embora tenha sido incorporada,
historicamente, como fonte tipográfica pelos colonizadores, torna viável a ilustração
dos cordéis, estabelecendo a comunicação visual da literatura popular, da arte
popular.
uma nitidez na realidade do nordestino que nos permite entender que
inexiste o enquadramento do determinismo geográfico e biológico, como aponta
LARAIA (2003, p.17),
condicionado
grupos a diferenças culturais. LARAIA
aponta
que a endoculturação
9
possibilitou a capacidade de plasticidade de vários povos, a
realidade da cultura nordestina não é diferente.
A plasticidade passa a ser visualizada na composição musical por meio do
flautim
, criado com material nacional (flora nativa), a taquara, e da reprodução visual
(gráfica) tornou-se realid
ade
através da implantação da xilogravura, técnica oriental
9
Para Laiara o meio (composto pelo conjunto de regras e práticas) ao qual um indivíduo está exposto
o sujeita a uma dada condição de aprendizagem e interdisciplinaridade. Esse processo de
aprendizagem é entendido como endoculturação.
20
que aprimorou o carimbo. A abundância de madeira, que permitia a confecção de
carimbos
e a possibilidade de extração de tinta das árvores brasileiras como o pau-
brasil,
possibilitou uma div
ersific
ação das ilustrações, uma técnica menos onerosa e
que permitia a divulgação de folhetins no nordeste popularmente conhecidos por
cordéis
.
A xilogravura é uma arte, um artesanato que permite a um momento de
contemplação, e esta observação não deve atrelar
-s
e ao fato de que fatores naturais
como madeira e tinta propiciam a possibilidade de existência da
plasticidade
migrar do flautim convencional de metal para a forma stica de madeira (do
elemento nobre ao popular), o objeto em si enseja a arte, a possibilidade de
mutação e variação dos objetos que tal percepção plástica permite. A possibilidade
da plasticidade mostra que quando reunidos num contexto, estes objetos
facilitam
a
comunicação
estabelecendo uma significação compreensível para o povo, num
contex
to
regional
, independente
da classe social
.
O teatro de Ariano Suassuna contempla a intertextualidade,
configurando
-
se
um processo de re-
leitura
que, segundo FLORY (1997, p.40), torna possível ao
receptor
ler o texto de origem no texto lido. No Auto da C
ompadecida
, por exemplo,
outras
passagens, bíblicas ou não, são incorporadas pelo autor em sua obra.
O
leitor, ainda que não tenha lido a Bíblia, estará “lendo” os versículos do Juízo Final,
na passagem do julgamento das personagens, após sua morte na terr
a.
O receptor
passa a assimilar outras leituras no texto de Suassuna bem como no imagético d
o
teatro e
d
as versões televisivas.
O Auto da Compadecida traduz-se no esforço de recuperar no texto teatral o
que
ORTIZ (2003, p.135) propõe enquanto “cultura p
opular
”, que se institui pela
memória coletiva, mantida por uma memorização que deve admitir um processo
contínuo de mutações culturais, que
fluem
nas vivências coletivas, firmadas no
tradicionalismo.
A memória nacional
faz
-
se
pela memória popular, pela manutenção dos ritos,
das práticas e representações, presentificadas pela intertextualidade de outros
textos, orais ou escritos, que se transmitem de geração a geração. A inexistência de
cronologia no contexto do texto/teatro faz com que os sujeitos excedam datas,
nomes, heróis e marcos históricos, tudo em justificativa do processo histórico que
21
busca a manutenção da cultura popular que apenas existe se houver memória
nacional.
Quando observamos a obra de
Suassuna
é possível perceber a
preocupação quanto a forma e o conteúdo de suas composições, considerando que
as
representações teatrais, a arte, o folclore, a pintura e os costumes conservam-
se
como memória coletiva. Segundo ORTIZ (2003, p.135), “a memória popular (seria
mais correto colocar no plural) deve, portanto se transformar em vivência, pois
somente desta forma fica assegurada sua permanência através das representações
teatrais”.
Esse tom comparativo entre vivência e memória nacional no trabalho de
Suassuna torna-se realidade através do teatro, onde existe a proposta do resgate
das origens populares, de reviver e convidar o povo a ver e a interagir. A tradução, a
leitura
e
a interação conforme DINIZ (2003, p.13), eleva os textos como “signos uns
do
s outros”.
Lê-
se uma coisa que significa outra:
Essa
nova conceituação de tradução mostra-se relevante para todos os
textos que possam considerar como transposição de outros, pertençam ou
não à linguagem verbal. As inter-relações entre a literatura, o teatro e as
demais artes, podem pois, ser estudadas como formas de traduções ou
transposições intersemióticas entre textos de códigos diversos _ aqui
incluídas as relações entre o cinema e a literatura
[
...
].
Embora
essa
pesquisa não contemple o estudo do texto/cinema, a leitura
televisiva exige elementos próprios da mídia visual, diferentes do teatro. No
Auto
da
Compadecida
, Guel Arraes realça alguns elementos do teatro e despreza outros,
como por exemplo, o arlequim. O Auto da Compadecida suscita a relação com
antecedentes culturais ibéricos e a estética literária do discurso, apresentada em
farsa e reforçada pelo estilo de carnavalização constitui a base para alegorização
dos papéis das personagens, que articulados entre os textos e os diversos códigos,
são capazes de significar para além do texto escrito. Outro procedimentos estilístico
utilizado por Suassuna é a
paráfrase
10
, não no sentido de mesmice, mas de
10
A paráfrase, segundo Greimas e Coutés (1979, 325) “[...] é uma operação metalingüística que
consiste em produzir, no interior de um mesmo discurso, uma unidade discursiva que seja
semanticamente equivalente a uma outra unidade produzida anteriormente. Nesse sentido, uma
parassinônimo, uma definição discursiva, podem ser considerados como paráfrases de um lexema,
de um enunciado ou de qualquer outro segmento discursivo. Essa operação é, ao mesmo tempo,
uma tradução intralingüística e uma expansão (que depende da elasticidade do discurso)”. Quando
Suassuna reproduz passagens bíblicas, como a ilustração do purgatório, o Tribunal das Almas, os
22
plasticidade, de criatividade, ideologicamente contextualizada nas falas das
personagens.
Tanto Suassuna, em seu texto/teatro, como Arraes, em sua minissérie
televisiva
, agregam às suas produções textuais uma forte carga ideológica, advinda
das leituras de outros textos
e do uso inteligente e produtivo da intertextualidade.
O tom de comicidade resgata uma característica dos autos medievais que
mantêm a possibilidade de, ironicamente, discutir problemas sociais, econômicos,
políticos e filosóficos, que não precisam necessariamente estar explícitos. Os
problemas passam a ser apresentados na trama, dinamiza
ndo
a trajetória do enredo
e permitindo ao re
ceptor
compreender desajustes so
cia
is que não o preocupavam
antes
.
O descompromisso cronológico do trabalho de Suassuna permite adaptações
de leituras em momentos históricos diferentes. Sendo escrita em 1955, a
contextualização e a adaptação para a TV, na leitura de Arraes, foi imaginada na
década de 30, resgatando o cangaço, o coronelismo, o teocentrismo, sem perder o
tom de farsa medieval, mas numa versão contemporânea, que engloba não uma
leitura teatral, de público reduzido, mas uma possibilidade de comunicação junto a
um grande percentual da sociedade brasileira, permitindo uma leitura coletiva. A
transmutação do texto teatral em texto televisivo acaba evidenciando outro aspecto
da comunicação: a adaptação, que divulga a literatura brasileira, não somente a u
m
público de elite, mas à sociedade de consumo, que se apossa de uma das leituras
da obra, num dado tempo e momento.
Após 1955,
O Auto da Compadecida
, passa a ser incorporado ao processo de
idealização do “Teatro Moderno”. Esse movimento, em prol da fixação de uma
cultura nacional, proposto pelo movimento de esquerda, atenta para um processo de
recuperação dos meios de comunicação de massa que, na primeira fase da ditadura
militar
, estiveram sob a censura do governo Getulista, contribuindo para a
sonegação
da realidade socioeconômica do Brasil. A proposta expansionista de
Suassuna de levar arte à massa, é paralela aos movimentos de crescimento e
desenvolvimento nacionais e transnacionais, que encontrariam seu ápice no governo
contos populares anônimos, o estilo
literário de Gil Vicente, está parafraseando dentro do contexto de
sua criação.
23
JK. Comunicar a arte aos
brasil
eiros
e a aos estrangeiros asseguraria, segundo
Suassuna, a ritualidade do fazer e comunicar a arte no Brasil. Cria para tanto o
Movimento Armorial (que propõe a preservação da música popular com pífano,
xilogravura, dança, cordéis etc), objetivando o resgate da arte popular, o reencontro
com as raízes nacionais e a divulgação da arte no Brasil e fora dele, instituindo-
se
um laboratório de pesquisa da arte popular.
Suassuna proporciona-nos a oportunidade de retratar o contexto simultâneo
de complexidade
e simplicidade do sertanejo nordestino, compartilhando as crenças,
os mitos e ritos do ambiente popular brasileiro, em suas obras, e pesquisas sobre a
existência, significado e destino da arte.
Este trabalho compreende o entendimento da arte como uma lit
eratura
polissêmica que contempla a relação autor/receptor, preservando a reação
individual, e o processo de interpretação, apresentação e representação do fato
social.
B
uscou
-se entender, no primeiro capítulo, o resgate do popular em o Auto da
Compadecid
a, a extensão da obra, do texto/teatro à minissérie, a representatividade
da farsa na obra do autor e o estado de arte. O contexto da cultura e da arte são
buscados
para explicar as manifestações ideológicas, a necessidade de fundar uma
cultura nacional privilegiando e preservando o espaço cultural popular numa
sociedade de consumo.
O segundo capítulo percorre, teoricamente, o contexto de carnavalização e a
relação com a cultura popular nordestina. Busca entender como e porque a
carnavalização e a ironia dos fatos, principalmente através de uma leitura cômica e
moralizante do cotidiano, ressaltando a existência do intertexto no
Auto
.
O questionamento da construção das personagens do texto/teatro à
minissérie
, remete-nos à reflexão do discurso
e
da ideolog
ia
, a abordagem central
do terceiro capítulo. Passa por uma discussão do enquadramento, da possibilidade
de leitura do racional e do irracional e sua produtividade para a recepção do
Auto
24
da C
ompadecida
tanto enquanto peça teatral como na sua transmutação em
minissérie.
No quarto capítulo configura-se a preocupação com a relação de interação
autor/receptor, observando
as
estratégia
s de transposição e transcodificação do
texto/teatro
à minissérie, do texto/teatro para a inserção da obra na televisão (ou na
linguagem televisiva)
.
O
trabalho que Suassuna se propõe a fazer, em prol da preservação do
espaço da cultura popular, passa antes pelo campo ideológico, integrando o grande
empenho do Autor não somente em produzir uma obra, coerente com suas idéias d
e
preservação da memória
cultural
nacional, mas ainda fundando um movimento
atuante _ o citado “Movimento Armorial” _ que reúne os interessados em
preservar as raízes populares do Nordeste Brasileiro nas artes, literatura, música,
artesanato, dança, em
suas
mais diversas manifestações
,
envolvendo todos os
setores da sociedade
.
25
26
I
SUASSUNA E O RESGATE DO POPULAR
O AUT
O
1.
1
Contextualização
A alienação do popular e do nacional, que nos remete em última instancia
ao tema da degenerescência do ser, se apresenta, portanto do ponto de
vista da hegemonia: de uma classe sobre outras, de uma nação sobre as
outras.
(
ORTIZ,
2003,
p.77
)
11
A discussão acerca da cultura e da identidade nacional brasileira tem s
e
arrastado entre pesquisadores diversos: antropólogos, historiadores, sociólogos,
comunicólogos, e outros. Quando lemos à obra de
ORTIZ
, temos a
coloca
ção
d
a
disjunção social no âmbito da discussão da hegemonia de classes. Numa sociedade
desconexa,
Hortas
considera
a arte como um instrumento de controle e submissão,
evidenciando uma relação entre classes dominantes e dominadas, transferindo esta
idéia para a noção de cultura e alerta
ndo,
num dado momento para o interesse pelo
estabelecimento de uma “elite cultural”, amparada pela necessidade política do
Estado.
O momento de implantação do regime militar no Brasil, a arte foi adotada
como instrumento de controle, acentuado em sua fase inicial na década de 30,
requereu e instaurou mudanç
as.
O regime quis que a idéia do “homem cordial”
descrito no trabalho de HOLANDA (1995)
12
, em Raízes do Brasil, desaparecesse.
Aquele emaranhado de raças, cada qual com suas origens, heranças étnicas e
culturais tão díspares acabam por se fundir com as do
ladrilhador
(HOLAN
DA,
1995)
(colonizador), o que geraria
,
segundo Holanda, a confusão na configuração do
ser nacional. Parasitado e parasitas trocam e fundem o ser
brasileiro
em seus
aspectos normativo e positivo, como as coisas são e como deveriam ser,
11
Ver ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade, onde toda uma reflexão política sobre o
movimento cultural no Brasil
e a construção de uma identidade nacional
.
12
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Termo
cunhado por Holanda em seu livro.
27
alimentando o julgamento do ser pela moralidade. Concebe-se, neste momento, a
concepção do homem honesto e do vivaldino (o malandro). O malandro brasileiro e
o jeca sertanejo, no regime militar, devem ceder espaço para uma nova
configuração de sujeito nacional.
No espaço progressista, da vida moderna, o sujeito passa a ser observado
como
fator de produção, e as idéias de patriotismo, que surgem naquele momento
respaldam
-
se
na necessidade capitalista, de criar uma nação forte, que só se faz por
intermédio de homens fortes.
A idéia de cultura passa a ser confundida com a de arte. O cultural, que
se
buscava edificar naquele momento, tinha como proposta a culturalização da massa
com a arte erudita, uma vez que o contexto requeria a construção de um país de
cultos, moldado por e para uma elite capitalista. Segundo ORTIZ (2003, p.72) neste
momento a cultura recebe “... uma nova conotação que significa sobretudo [uma]
13
função política dirigida em relação ao povo”. A proposta de culturalização da massa
é imposta pela minoria, politicamente domi
nante.
I
nstitui
-se a escola para a massa e
o livro didático organizado segundo conveniências políticas. Esta proposta política
junto à massa contempla uma política de educação popular que tenta incorporar o
acesso à
cultura através da introdução do livro didático com conteúdos selecionados
de
uma mudança ideológica e cultural, imposta de cima para baixo, do governo para
o povo
.
Apostava
-se que o livro didático seria um instrumento capaz de conciliar a
leitura, a assimilação e o consumo da
arte erudita,
com o processo de educação:
era
o modelo tecnocrata da
intelligentsia
”. A política de educação de massa consiste
numa tentativa de transformação e adequação da sociedade à realidade exigida pelo
Estado Novo, que não
inseriria
a leitura da arte popular no modelo
didático/pedagógico. O momento exigia seres funcionais, aptos a desempenhar
em
as funções do mercado de trabalho que garantiriam o progresso do país. Esta
proposta de uma cultura imposta chama a atenção de grupos que não pactuam com
ela
.
13
Acréscimo nosso.
28
Como incorporar a arte erudita num horizonte tão díspar
(desigual)
? Num país
cujo contexto ressalta o
grande
número de analfabetos, onde a arte propagava-
se
oral e visualmente, por meio de teatros populares, feiras e festas típicas
principalmente de cunho religioso, desprovido de necessidade reflexiva? O ISEB
14
(Instituto Superior de Estudos Brasileiros) surge no seio de uma elite politicamente
dominante e contraditória, inaugurando em 1955 uma nova proposta de discussão
de arte e cultura.
O grupo de intelectuais que o compunha adverte que arte nacional,
dispersa entre a massa, que não destaca nomes, não personifica, mas que mantém
a essência cultural que liga e enriquece as novas manifestações culturais, inclusive
as de arte erudita.
Verticalizar
a arte e propor a absorção, de cima para baixo, da elite para
massa, significaria comprometer a diversidade e a riqueza das manifestações
culturais. O ISEB surgirá, não para frear o contato da massa com o erudito, mas
para observar o fenômeno, em prol da preservação de um processo histórico, que
contempla a intersecção de ambientes, de culturas e de ideologias, a observação
científica, bem como a produção da discussão científica, numa realidade política e
social
mente
ativa. Embora as manifestações culturais estejam inseridas na massa,
esta desconhece seu potencial de criação e ritualização da cultura, sem ter talvez a
pretensão
ou
talvez por não entend
er
a profundidade da realidade artística
popular.
A manifestação do ISEB não ocorre somente em socorro da extinção da cultura no
espaço popular, mas em resposta a uma ordem política, que aliena e corrompe a
arte não erudita, e que mataria provavelmente o laboratório e a possibilidade de
experimentação com o objeto popular, prejudicando a relação e a riqueza entre o
erudito e o popular.
A pretensão de discussão intelectual dos eruditos do ISEB permitiu o
rompimento de fronteiras. As discussões dos problemas sociais e políticos tomaram
proporções nacionais. O Movimento Popular de Cultura, no Recife a princípio, e o
14
Id. Ibid. Ortiz realiza todo um estudo sobre o papel do ISEB, criado sob o decreto lei n
37.608, de
14 de julho de 1995 como órgão do Ministério da Educação e Cultura. Foi criado no Governo Café
Filho e iniciou suas atividades no Governo Juscelino Kubitschek. Foi extinto em 31 de março de 1964
com a deposição do presidente João Goulart.
29
CPC
15
(Centro de Cultura Popular) ligado à UNE (União Nacional dos Estudantes),
proporcionaram a exaltação de uma arte antes tomada como alienada e elevaram-
na à instâ
ncia de cultura popular.
Suassuna compõe seus trabalhos fazendo uso das observações tomadas em
seu laboratório popular (a mesma arte considerada), principalmente no laboratório
do interior nordestino, em especial para O Auto da Compadecida em sua cidade
natal Taperoá. A luta do ISEB pela preservação do meio cultural popular
proporcionou a criação da linha de trabalhos de Suassuna, que ainda é muito pouco
citado e estudado no Brasil. E será do confronto do antagonismo contemplado por e
na realidade sócio-politica, e exaltada pelo viés da questão religiosa, que a técnica e
as alegorizações artísticas criadas por Suassuna contribu
ír
am para o
desenvolvimento do teatro brasileiro. A arte se aproximará de uma parcela excluída
da sociedade pela inserção do teatro popular.
1.1
.1
Arte e modernidade
A arte comunica. A afirmação pode desencadear uma busca pelos modos de
comunicação, uma vez que se relaciona aos fatos, aos movimentos e processos
históricos, vivenciados pela massa e pela elite. O desencontro de interesses
individuais e de dados núcleos da sociedade, permitem a existência de um complexo
e conflitante modelo de organização social
,
segundo MARTIM
-
BARBERO
(2003, cpt.
2)
, quando a massa observa-se como agente de transformação e rompe o processo
de manipulação sobreposto por um outro grupo social ou por elementos do próprio
grupo que desejam sobressair ao demais, temos uma organização social consciente
que se descobre politicamente. O movimento ocorre da elite para a elite, da elite
para a massa, da massa para elite, da massa para a massa, por formas e conteúdos
diversos.
Os canais e as formas de existência da arte demonstram que, ao passo que se
procede à absorção da arte, a identificação com o objeto-mensagem revela-
se
descontínua
. Os elementos do macro ambiente cultural denunciam que haverá
15
ORTIZ, estuda o movimento
de ação política do CPC e da UNE entre 1962
-
1964.
30
manifestação de posicionamento para edificação de identidade e autenticidade
daquilo que se pretende chamar de arte, surgindo o questionamento: o que é arte?
Para quem é arte? O que representa
?
Para TEIXEIRA
COELHO
(2005, p.20) a arte faz parte de uma complexa relação
de absorção de uma cultura em movimento descontínuo, que constrói um processo
ininterrupto
de criação, recriação e transformação entre leitores, através da
interatividade
. Pensado na idéia do movimento descontínuo de TEIXEIRA COELHO
é possível observar
qu
e a transcodificação no
Auto
é o elemento que permite
flexibilizar a intensidade de significação junto a receptores tão díspares, tanto no
teatro de Suassuna como na obra televisiva de Arraes. Outro fator observado por
TEIXEIRA COELHO é que
o
emissor/produtor da arte pode proporcionar a seu
público uma visualização de sua idéia ou leitura de mundo, de maneira implícita,
através de uma linguagem e de leituras particulares da arte, sem deixar que o
público o perceba, tal como o observado no
Auto da Compadecida
.
Quando propõe uma análise semio
lógica
, TEIXEIRA COELHO,
respalda
-se nos
estudos de Hjekmslev (apud, TEIXEIRA COELHO, 2001, p.36), constr
uindo
a idéia
de
que todo sistema lingüístico é produto de uma mente pesquisadora, afirmando
que
:
[
...
] não deixa de ser produto de uma mente pesquisadora, do indivíduo que
o aborda. O investigador sempre deixa suas marcas no objeto investigado,
não havendo de certo modo, sentido em falar-se de realidades que não
sejam realidades para o pesquisador e que, portanto, são realidades que
pertencem exclusiva
mente ao mundo exterior.
Suassuna cria sua inserção no texto, que contempla o seu próprio horizonte de
expectativas
, somatória dos horizontes do emissor e do receptor, do autor e do leitor
(sistema lingüístico)
. A figura do arlequim não é apenas a do inte
rlocutor, aquele que
articula a trama, mas antes permite a manifestação do autor na trama. É o arlequim
que convida à
reflexão
e
ao preenchimento das lacunas e
além disso,
a oralidade do
discurso coloquial do
arlequim permite a participação do autor no tex
to/teatro.
31
A escolha de alegorizar a fala e o visual das personagens com um discurso
irônico
e carnavalizado
permitem
um tom de repúdio, de revolta contra a realidade
so
cial em que a massa se encontra. A arte da alegorização no teatro permite que o
povo
se veja no contexto, através da construção do escritor que a descreve numa
realidade de submissão. MUECKE (1995, p.113 -114), afirma que “[
...
] numa peça
de teatro uma personagem pode falar ironicamamente de outra, mas nunca pode
falar com a autoridade absoluta do escritor”. A idéia de MUECKE está ligada à da
autoridade do discurso.
Na obra de Suassuna o discurso pertinente
permite
ao autor no Auto da
Compadecida
colocar-
se
como erudito que se apropria de uma realidade da massa,
e de sua cultura
,
expressa
ndo
-a no seu teatro, firmemente radicado no popular e
facilmente assimilado por uma massa composta por indivíduos de realidades e
interesses díspares. Na minissérie, a autoridade do autor continua inalterada, mas a
leitura não. Guel Arraes estabelece o seu repertório, suas leituras e sua autoridade.
O texto é lido de um novo ângulo que faz da minissérie uma “releitura” do
telespectador de uma “leitura” do diretor e sua equipe. Tanto Suassuna como Guel
Arraes partem do ambiente erudito para a massa, uma vez que o objeto, tanto da
peça como da minissérie, é o aproveitamento de “causos”, histórias de cordel,
provérbios e ditos populares
,
arti
sticamente trabalhados por ambos
.
TEIXEIRA
COELHO (1995), ao descrever a arte, situa-
a
nos moldes do projeto
iluminista
, afastando-a da massa não erudita. Sugere que o vínculo existente entre
arte e religião inibe o conhecimento do pluralismo cultural entre indivíduos e nações.
Embora manifestações religiosas possam ser tomadas como arte, por que
reproduzem esteticamente a
leitura do imaginário popular, que é diverso, elas inibem
e limitam o acesso e a mescla de culturas, uma vez que são norteadas por uma
ideologia que não admite mescla. O dogma catequético pretende
incorpora
r a
Doutrina Católica, sem que exista o compartilhamento do espaço com outras
crenças, que embora existam, tendem a serem ignoradas e rejeitas (como a
adoração aos deuses africanos, parafraseados nas figuras dos santos católicos).
Segundo TEIXEIRA COELHO (
199
5, p.20), o processo iluminista contribuirá
para
o desmantelamento da ideologia teocentrista, cede
ndo
espaço para a
32
autonomia e definição do ambiente próprio da política e
da ciência, que buscarão um
divó
rcio, mas não um corte definitivo d
o
relacionamento com a religião:
[
...
] a arte não está mais no projeto da religião mas em seu próprio projeto _
é a arte pela arte, mas não com o sentido pejorativo que os defensores do
comprometimento social da arte mais tarde iriam atribuir a essa expressão.
É a arte que, simplesmente, deixa de se atrelar a decisões exteriores e , no
caso, especificamente religiosas.
não é a Igreja que dita o que pode ser entendido como arte, mas sim a
política
que passa a direcionar as obras e o como as obras devem ser absorvidas
pela população. Entre as possibilidades de arte encontramos a arquitetura do
patrimônio público: quanto mais faraônica a obra, maior expressividade
desempenharia na sociedade. Por exemplo, o
Arc
o do Triunfo con
struído
por
Napoleão Bonaparte e citado pelo próprio TEIXEIRA COELHO (
199
5, p.20), a
constru
ção de Brasília (projeto arquitetônico de Niemayer encomendado por
J
uscelino
Kubitschek, 1956-
1961
), sugerindo que o projeto resume-se à tentativa de
impor a soberania nacional, na tentativa de simbolizar, por intermédio da arte, o
estado de poder:
O distanciamento entre produção cultural e o povo não será, na
modernidade, tanto uma questão de especialização na matéria cultural
quanto um problema de autoritarismo no trato com a coisa pública. O que
leva a concluir que o próprio `projeto de modernidade´ mudou muita coisa,
mas em nada ou quase nada alterou esse aspecto nuclear da vida em
sociedade _ o que poderia levar alguém a perguntar, com razão, que tipo de
modernidade é essa...De todo modo os lamentos diante dessa
especialização e desse afastamento do po
vo e peritos da cultura não devem
impressionar muito. Os que expressam parecem sentir uma acentuada
saudade dos `bons velhos tempos´, de uma antiguidade que não teria como
assegurar sua permanência diante de uma sociedade cada vez mais
complexa e envolta num emaranhado de informações cada dia mais
facetado e intrincado. (TEIXEIRA
COELHO,
1995
, p.21)
O primeiro ponto a ser questionado seria: para quem e para quê serve a arte?
Para quem é dirigida? Para o pluralismo cultural, que de maneira alienada ou lúc
ida
(com propósitos politicamente definidos), se apropria de seu conteúdo lingüístico
permitindo o ciclo de movimento, onde a absorção, transformação ou mesclas de
culturas, formados por diferentes sistemas lingüísticos. Para que serve?
Politicamente para a identificação do poder, do poder de expressar-se, de se impor,
impor um projeto de submissão à ordem social estabelecida. Qualquer manifestação
que não partisse do ápice político passaria a ser interpreta
da
como um escape, uma
33
tentativa revolucionária, que ocasionaria a quebra da estrutura política, quando
orientada por um discurso ideológico.
A escrita do A
uto
da Compadecida oco
rre
apó
s
a primeira da fase
ditadura
militar no Brasil, que ocorreu com o golpe de Getúlio Dorneles Vargas em 1937, e
insta
lou uma política de repressão às manifestações populares, articuladas
politicamente ou não, por grupos ou por indivíduos.
O texto do Auto da Compadecida permeia as ideais de repressão, ou da política
de repressão, do primeiro período de ditadura, política esta que não acontece
apenas em termos de organização socioeconômica, mas das relações socialmente
politizadas entre ricos e pobres, nobres (aristocracia) e povo. P
ara
a versão teatral
do
Auto
da Compadecida
de
Ariano
Suassuna
, observamos que a obra está
compreendida
no contexto político (no plano nacional e na política de organização
social)
que naquele momento inibiu toda e qualquer manifestação cultural que
pudesse colocar em risco o projeto político do regime militar, mas que
posteriormente viria a denunciar através da enunciação de Suassuna as diferenç
as
sociais que foram ocultadas pela repressão.
As manifestações de símbolos, visualizados por heróis e figuras
religiosas,
vivificadas pela prática dos ritos e da memorização oral passaria a ser combat
ida
no
regime militar, salvo quando pudesse reafirmar o projeto político.
Criou
-se um
espaço
-temporal onde as idéias
deveriam
se não fosse à realidade, permanecer
estáticas (deveriam representar-se a estáticas, mas
articulam
-
se
as idéias e práticas
oculta
mente) onde os projetos relacionados à cultura deveriam subordina-
se
a
necessidade de reafirmação do discurso político. Nesse sentido as manifestações
artísticas passaram também a serem observadas, dado o fato de que artistas como
Mário Raul de Morais Andrade (1983-1945), José Oswald de Souza Andrade (1890-
1954),
Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-
1987)
entre outros membros da refinada elite cultural que se apresentaram na Semana de
22
16
.
16
Semana de Arte Moderna
de 1922.
34
A afirmação que
faz TEIXEIRA
COELHO
(
199
5)
quando se refere ao fato de que
o aspecto nuclear da vida continua estático, remete à permanência dos símbolos
religiosos, que não se dissolvem, e por mais que a arte busque seu espaço próprio,
não estará isolada dos elementos políticos e religiosos, pois estes evoluem, como
evolui a humanidade e a cultura. Para ABBAGNANO (2000, p.225) a arte
encerra
:
[
...
] dois significados básicos. No primeiro e mais antigo, significa a
formação do homem, sua melhoria e seu refinamento. [
...
] No segundo
significado, indica um produto dessa formação, ou seja, o conjunto dos
modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, polidos que também
costumam ser indicados pelo nome de civilização.
No primeiro significado, somos remetidos à formação individual do homem e
ABBAG
NANO, segue explanando em suas notas que,
nesse
sentido
, dado o fato do
homem um ser racional
,
diferencia
-
se dos animais tendo
a obrigação de desenvolver
seus
valores essenciais. Segundo o pensamento grego, a Paidéia
17
, seria o
fenômeno individual da tomada de consciência do eu, onde o homem assume a
noção de si, e de seus atos, portanto se diferenciando dos animais pelo fato de
pensar.
No segundo significado as ões individuais passam a ser agrupadas e
observadas no conjunto, numa visão coletiva onde os modos de vida tornam-
se
comuns, são adquiridos e transmitidos de geração a geração, numa dada
organização social.
Se a arte fosse considerada num significado geral poderia ser entendida como
“todo conjunto de regras capazes de dirigir uma sociedade humana
18
. N
este
sentido
, as diferentes culturas e os diferentes membros que compõem as diversas
sociedades, assegura
riam
o pluralismo cultural e a riqueza de possibilidades. Assim
a arte permit
e
o movimento das idéias e pode contribuir para a preservação da
ident
idade nacional.
Mas é observável que a identidade cultural calca-se na convenção, como define
ABBAGNANO (2000, p.529)
:
17
ABBAGNANO, Nicola. Fenômeno da reflexão greco-latina que designa que o homem se distingue
dos demais animais pela capacidade de absorção e desenvolvimento das “boas artes”. A boas artes
estão incluídas sua capacidade de filosofar, transpor suas idéias para a poesia, e a o sentido do
discurso, apontando que o homem é capaz de fazer uma reflexão de si mesmo. Ver p.225.
18
Ver ABBAGNANO, p.81.
35
[
...
] nessa concepção, não é possível estabelecer em definitivo o significado
da identidade ou critério para reconhecê-la, mas, dentro de um determinado
sistema lingüístico, é possível determinar esse critério de forma
convencional, mas oportuna.
Portanto, se a convenção lingüística determina a identidade, é possível que o
sistema lingüístico permita o conhecimento da unidade de substância, que expressa
o significado de uma dada identidade cultural. A arte passaria a definição de um
processo construtivo, cuja substância gerativa ou elementos do sistema lingüístico
contemplam as formas verbais, visuais e/ou sonoras, de maneira a permitir a
comunicação entre ambientes diferentes e pessoas diferentes.
O ambiente caótico torna-se capaz de gerar significação, expondo a ideologia e
a manifestação de poder que se pretende, quando um símbolo universalizado é
introduzido como unidade significativa. No caso de SUASSUNA, os símbolos
religiosos
subvertidos e o sistema lingüístico satirizado são capazes de estabelecer
comunicação
com os mais diversos receptores. A representação arquitetônica pode
e deve representar poder. A arquitetura de Brasília, as grandes catedrais, os
monumentos
históricos
ilustram
e registram a exaltação de poder, e, quando
observados como
objeto
que relaciona sentido a estrutura social, passam a
categoria de códigos que por sua vez exprimem o sentido de poder e resguardam a
cond
ição
de
obra artística
, uma vez que sua pretensão é ilustrar, estabelecer contato
e
externalizar o momento.
A inserção da igreja e a pintura barroca servem à exaltação dos símbolos e
emblemas que num trajeto temporal ilustram e externalizam a relação do poder que
transcende o tempo, resgatando as crenças e valores morais impostos
no
movimento de plasticidade
da
s obras religiosas. No teatro de Suassuna ess
es
elementos não são pensados apenas como condutores do movimento de
transformação da plasticidade art
ística
, mas antes devem representar a fusão entre
a realidade e o fantástico, a relação de uma lei temporal (humana) submetida a uma
lei divina (atemporal).
que se destacar a arte e suas possibilidades no domínio dos códigos.
uma linguagem artística para uma arte que se pretende de elite, uma para arte
36
popular e por fim uma para a arte de massas. ARANHA e MARTINS (1992, p.207)
caracterizam a arte da elite da seguinte forma:
A arte da elite caracteriza
-
se por:
i
mplicar um esforço para captar o si
gnificado da existência humana;
e
xigir do público uma mudança no modo de ver o mundo;
e
nvolver o desenvolvimento da linguagem artística;
e
nvolver a expressão pessoal do artista.
Quanto à arte popular os autores prosseguem a definição embasad
os
no
histori
ador Arnold Hauser, salientando que “a arte popular ou folclórica compreende
a produção poética, musical, plástica, teatral e de dança de um setor da população
que não é intelectualizada, nem urbana, nem industrial” (ARANHA e MARTINS,
1992, p.207).
Arro
lam as seguintes características da arte popular (ARANHA e
MARTINS:1992, p.207):
ser anônima, isto é, a forma de sua apresentação é fruto de inúmeras
colaborações ao longo do tempo, sem que haja um único autor;
traduzir a visão de mundo e os sentimentos coletivos no qual o grupo
tem sua origem, ou seja, o conteúdo da experiência expressa na arte
folclórica é comum a toda uma coletividade;
d
esenvolver
-
se dentro de convicções fixas;
ter como público o próprio grupo que a criou e que, em geral, é
composto pe
los habitantes rurais e de pequenos vilarejos;
n
ão
ser inspirada nem influenciada
por modas.
Finalizam caracterizando e configurando a arte de massas como produto da
ind
ústria cultural. Segundo
TEIXEIRA
COELHO
(1998) uma tentativa de
homogeneização da cultura através da indústria social, que fornece elementos,
“produtos culturais” adversos à realidade local e ou simplesmente ignora a riqueza
do cotidiano do brasileiro, copiando a cultura de outras nações, principalmente dos
EUA
. A
ponta
em seus estudos, três pontos de discussão sobre a cultura no Brasil: o
primeiro trata da política de heterogeneidade da indústria cultural,
o
se
gundo sobre a
referê
ncia cultural (laboratório da cultura), afirmando que: “Um último traço da
indústria cultural brasileira aqui a ser destacado é o relativo à sua permeação por
elementos de culturas estrangeiras e o conseqüente descaso com os temas do
nosso cotidiano”
(
TEIXEIRA
COELHO, 1998, p.84)
.
37
No trabalho de CALDAS (1979), pertinente uma reflexão sobre a música
popular
e a indústria cultural. O autor aponta em sua pesquisa
que
a música
sertaneja foi o gênero
imposto
a sociedade menos culta, ou periférica, como objeto
de consumo. Este objeto, tornou-se acessível dada às condições históricas, que
evoca uma história agrária, lembra que grande parte da periferia dos grandes
centros como a cidade de São Paulo, absorveu uma população rural ou de cidades
cujo vínculo agrário é predominante. Para CALDAS a música sertaneja, de raízes,
que contava e cantava o cotidiano do sertanejo foi apropriada pela indústria cultural
e adaptada
ao gosto estético do novo sujeito da metrópole, o proletário. O nero
para CALDAS (1979, p. 23) foi convertido “[...] em simples entretenimento, que
acena ao receptor com mensagens de conteúdo ideológico
cada vez mais alienantes
[...] desviando
-
a ainda mais de seus problemas.
Para
CALDAS (1979, p.23) “[...] a indústria cultural, no domínio da estética
musical, como em qualquer outra forma de prazer lúdico, sabe como manipular a
consciência de cada um, respeitando, porque economicamente lhe convém, a
condição social”. Nos trabalhos de Suassuna é possível observar a preocupação em
evitar
, que sua produção, se transforme simplesmente em um objeto do qual a
indústria cultural se apropria para fazer crê ao consumidor que aquele produto esta
apto a suprir suas necessidades, a satisfazê
-
lo.
O “produto arte” passa a ser um bem, demandado por uma sociedade de
consumo
que, na realidade, busca suprir o gosto ou a preferência em função da
renda dos indivíduos. GREMAUD (2003, p.134) constrói a busca da demanda
individual na ótica capitalista, e estabelece a seguinte relação:
o bem idealizado é o bem “x”
;
os bens concorrentes são aqueles cuja demanda ocorre em função dos
outros bens “y”;
o bem idealizado ou um substituto próximo ocorre em função da renda,
que leva o indiví
duo a optar entre
um ou outro
;
a demanda ocorre em função do gosto ou preferência e este predomina
ent
re aqueles indivíduos que não têm problema com renda e podem
adequar a busca à necessidade individ
ual.
38
A busca, que ocorre em função do bem desejado, aquele que o indivíduo
anseia, para suprir uma lacuna, um espaço e um momento, é o modismo
direcionando o movimento de consumo. A arte é antes um objeto para a s
ociedade
de consumo. Para Adorno (
apud,
ARANHA; MARTINS, 1992), este espaço, ou
campo vazio, reflete o conflito interno, o não envolvimento do homem com o seu eu,
e reflete, ainda, a busca por espaço no grupo social, onde o consumo de um
determinado bem o identificaria no seu contexto social.
Ao entendermos que a renda está diretamente relaciona
da
com as
possibilidades de consumo, entendemos que a indústria cultural criará uma opção
imediata
de consumo, caso o bem x” (entenda-se por bem “x” aquele idealizado
numa primeira instância), torne-
se
uma opção invalidada por escassez de renda ou
escassez do próprio bem.
O gosto
e/
ou a preferência do indivíduo ficarão condicionados à escassez. A
escassez poderá estar relacionada à renda, ao bem ou serviço, e o que é escasso
para alguns, já não o será para outros, mas sempre haverá uma opção imediata que
se aproxime da necessidade do demandante. No sistema capitalista sempre uma
opção para satisfazer o desejo. O sistema capitalista formula e condiciona o homem
para viver em uma sociedade capitalista e o convida a suprir as carências do ego
por bens ou serviços. O superego condicionará a busca pela auto-realização através
de bens e serviços, a uma “não a
rte” que se diz arte. Esta arte
não evoca mudanças,
não permite espaço para reflexão, e destrói qualquer movimento que sugira a
contemplação de uma massa politizada que questiona o seu tempo e indaga o
homem historicamente.
O impressionante é que o movimento da indústria de massa questiona a
utilidade do bem ou serviço, não em ascensão à arte, seja ela erudita ou popular,
mas em função do aumento do consumo, quanto maior a sensação de satisfação,
maior será a atribuição do juízo de valor. Sua utilidade será mensurada conforme a
graduaçã
o da satisfação que proporciona ao consumidor. Para a indústria de
massa
a arte é mais um produto a consumir. Tomemos por ilustração uma peça de teatro
para o público infantil, contratada para dinamizar e alegorizar uma festa de
39
aniversário. Ela provavelmente não desencadea repercussões de movimento
politicamente discutíveis, pois o cenário não é o tablado, o cenário é o evento, o
juízo de valor será atribuído, segundo a funcionalidade, serviu ou não à comicidade
infantil. Se servir, será aprovado pelo mercado consumidor, será indicado, e de arte
passará a um negócio, será juridicamente constituído, se não o mercado a
desprezará, pela sua não “funcionalidade”.
Ao tomarmos O Auto da Compadecida como meio de refração possível do
tablado do teatro, estamos redimensionando a realidade, convidando-nos a sairmos
do cotidiano temporalizado para um espaço atemporal, onde todos somos
consumidores, mas não propriamente no plano econômico. Passamos a consumir
uma realidade discursiva que convida à reflexão e permite que a massa descontínua
identifique
-se, em passagens e cenários diferentes, vendo-se refletida em cada
espaço, em cada expressão ou movimento do público com os atores, de atores para
atores e de público para público.
A arte passa a contemplar as características ilustradas por ARANHA e
MARTINS (1992, p.210). Ela é anôni
ma, mas é capaz de refletir, expressar e mostrar
o movimento de um povo, suas convicções, suas convergências, seu movimento,
in
ício e sua derrocada. É endocultural, não é modista, passa a ser memorizada e
ritualizada, permite a construção de uma memória de massa, que se pretende
nacional.
É a cultura que o capitalismo vende que não permite o espaço para uma arte
popular. O capitalismo gera uma sociedade de consumo, uma sociedade alienada.
Os objetos não guardam reflexão, não situam o homem quanto à sua te
mporalidade
social e econômica. O homem sai do movimento e passa à passividade, o homem
tornando
-se incapaz de interagir para promover a mudança social. ADORNO e
HORKHEIMER, na década de 40, situavam o movimento consumista. Para
ARANHA e MARTINS (1992,
p.210), a arte de massa é caracterizada por:
Ser produzida por um grupo de profissionais que pertence a uma classe
social diferente do público;
Ser dirigida pela demanda, passando portanto ao modismo;
Ser feita para um público semiculto e passivo, o “povo”, nesse caso, é
só o alvo da produção, não a sua origem;
Visar o divertimen
to como meio de passar o tempo.
40
Ao estudarmos as obras de Suassuna, temos a dimensão do quanto o autor
se preocupa com a possibilidade de seus trabalhos se tornarem
produtos
come
rciais
destinados
à sociedade de consumo. Ao considerarmos as diferenças entre público
que absorve e público que produz arte, consideramos que Suassuna resgata em
seus trabalhos aquilo que considera como produção popular, capaz de ser
transmitida por gerações, e quando memorizadas passam a ser incorporadas e
transformadas no imaginário popular
.
A captação, transformação e ilustração do
trabalho de SUASSUNA consiste em
arte.
A afirmação é possível quando
interpretamos que arte é o ofício da transformação, da habilidade de percepção de
um dado imaginário, esteticamente criado por um complexo de regras e processos
que permite uma criação, concreta e/ou abstrata. É a contemplação erudita da arte
popular, que exige do público uma mudança no modo de contemplar o m
undo,
desenvolvendo um discurso oral e imagético que cria uma linguagem artística e
expõe seu eu, envolto pela realidade política e socioeconômica. Essa é a dimensão
de arte d
e Suassuna
.
A leitura da obra de Suassuna nos permite observar que em seus trab
alhos
a criação de um contexto onde diferentes repertórios e imaginários coexistem. O
caos, gerado a partir do desconexo contexto, representa a ordem/desordem social.
Suassuna estrutura a forma e o conteúdo do discurso e da imagem do contexto
social desconexo através de arranjos estéticos, é a arte de ler e ver a sociedade
segundo as concepções do autor.
O receptor, para S
uassuna
, é o todo. O todo fica configurado pela parcela
culta, pela massa consumista que consegue interagir com a indústria cultural e ao
mesmo tempo criar arte, arte popular. O todo também é representado pela parcela
da população que se abstém involuntariamente ou não da discussão política
(quando a obra essa leitura). Entre o todo estão os não cultos, as camadas menos
favorecidas. Suassuna considera que todo indivíduo pode ser considerado um
receptor, a aproximação, interação ou negação a um contato com sua obra está
relacionada a linguagem estética do discurso e da imagem. A linguagem artística,
utilizada por S
uassuna
, contempla a forma acadêmica, ilustrada por um estilo
41
medieval
19
, que se apóia na estética carnavalizada segundo conceito bakhtiniano
(BAKHT
IN, 1998), compartilhando cultura e vulgaridade como estratégia para atingir
o todo.
O culto ao vulgar
,
presentificado nos cenári
os, nas expressões populares e na
oralidade contida nos diálogos, cria o acesso à leitura desde a elite até às massas.
Os receptores, cujo horizonte de expectativas se assemelha ao do emissor,
identificam as mensage
ns
críticas, presentes nas questões políticas, sociais e
principalmente religiosas, o que difere é a instância de recepção
20
(o contexto e grau
de intensidade que a leitura provoca em termos de absorção) do discurso que está
ao alcance dos receptores
,
segundo seus repertórios e competências interp
retativas
.
A absorção individual do discurso trará significação una da projeção da realidade
política
e socioeconômica do enredo,
privilegia
ndo
a elite quando pensada como
proposta de exposição da arte popular, num momento em que a arte é discutida
,
cienti
ficamente,
como movimento de transição ideológica e histórica e atingindo o
povo pela sua ligação com as raízes populares, oralidade e moralidade tradicionais
da região nordeste.
Quando o trabalho de SUASSUNA passa a ser exposto no meio de
comunicação das mídias, voltando-se para a indústria cultural, não perde a proposta
de ilustração da arte popular, assume-a mais como uma função de bem destinado
ao consumo, do que elevação da cultura nacional. O discurso ideológico cede lugar
ao consumo do cômico, que tentará preencher uma necessidade de consumo na
sociedade contemporânea. Discutir O Auto da Compadecida na década de 50
19
A História da Literatura e da música segue um processo que admite transformações, fusões e
criações através de um conjunto de qualidades de expressões. Os trabalhos de Gil Vicente
demonstram essa necessidade quando migram dos autos religiosos para os autos e farsas populares
que
atacavam criticamente a sociedade através de textos burlescos que fugia à estética sacra ou o
modelo convencional. Sasportes (1979, p.23), quando estuda Gil Vicente salienta que a dança
assumiria “estatuto artístico [...] com o advento do Renascimento”. S
asportes continua apontando que
a inclusão da dança como arte proporcionou a criação de um “teatro musical”, proveniente da ópera e
do bailado. Sasportes questiona a necessidade de organização da música, da dança e da poesia na
Idade Média. Não era permitida a nenhum destes estilos artísticos a sobreposição ao texto religioso.
Gil Vicente em seus trabalhos tem todo o artifício de incorporar a dança e a música aos autos (1979,
p.24), em tom de chacota e folia, dois estilos cujas definições não são precisas. A linguagem artística
que pode ser compreendida como o agrupamento de repertórios de dança, música, poesia e textos
literários contribuíram para enriquecer as composições artísticas e diversificar a possibilidade de
leituras artísticas de diversas obras.
20
A instân
cia
da
recepção diz respeito aos atos, as regras e as representações (aos horizontes de
expectativas) de uma dada sociedade. A intensidade do envolvimento com um dado contexto e o
repertório individual cria possibilidades de diferentes relacioname
ntos entre emissor e receptor.
42
pressupõe pensar a busca de liberdade, do espaço perdido pela primeira fase da
ditadura, onde a massa lutava, ideologicamente, contra uma política de dominação,
de subordinação do eu. Hoje a luta de poucos está voltada à recuperação do eu, não
do eu individualista, que a sociedade de consumo contempla, mas deste eu crítico,
que se
reúne
a outros para pensar o movimento da sociedade. O trabalho de GUEL
ARRAES resgata a literatura nacional, mas a direciona para a sociedade de
consumo e, por mais contemporâneo que o tema possa
ser
não desencadeia u
m
movimento político das massas. Trata-se do consumo pelo consumo, é
o
cômico
como fuga, para
suprir as lacunas de uma sociedade individualista.
Então o que é o moderno, o que é a arte moderna? Segundo TEIXEIRA
COELHO
(1995,13
-
14):
Moderno é termo dêitico, termo que designa alguma coisa mostrando-a sem
conceitua
-la; que aponta para ela mas não a define; indica-a, sem
simbolizá
-la. `Moderno´ é assim, um índice, tipo de um signo que veicula
uma significação para alguém, a partir de uma realidade concreta em
situação de dependência da experiência prévia que esse alguém pode
ter
tido em situações a
nálogas [
...
]
moderno, é semelhante.
(199
5,13
-
14)
Se o
A
uto
é moderno, segue um estilo, que se faz consciência de uma época,
que
se
pode transferir
,
denunciando a passividade da sociedade, e tornando
-
se mais
contemporânea quando reafirma a alienação:
O
modernismo é [...], um estilo. [
...
] A modernidade, sim poderia ser a
consciência que uma época tem de si mesma (e fica evidente que um
processo social é uma modernidade) _ não fosse a alienação um processo
social interveniente cuja finalidade é exatamente, evitar essa consciência
neurotizada da modernidade.
A arte deixa de existir quando já não é capaz de afetar a vida em sociedade e
passa meramente a um souvenir de consumo. Para PIERRE FRANCASTEL (1973,
p.33) antes de a arte ser pensada em sua estrutura e linguagem, “[...] um dos
processos pelos quais o homem comunica seu pensamento. O caráter de
comodidade das obras resulta ao mesmo tempo das exigências por assim dizer
filosóficas e do homem e suas exigências sociais”.
PIERRE
FRANCASTEL
(1973, p.45), aponta que é possível explorar o
passado ao mesmo tempo para fins diferentes. Esta situação é colocada quando ele
43
estuda a busca do passado feito pela História e
pel
a Sociologia. Ambos, História e
Sociologia
m pontos de vista muito diferentes, mas exploram ao mesmo tempo o
passado
, realizando buscas específicas.
No
Auto
da Compadecida
há o transporte de quadros históricos e sociológicos
para compor um enquadramento rico em pensamento e ação, permitindo ler na
s
intertextualidades (KRISTEVA, 1972) da obra, recortes da política, da cultura, d
a
religião e da economia. O auto é uma forma teatral de enredo popular com melodias
cantadas, relacionando assuntos religiosos
e/
ou profanos. Segundo CASCUDO
(2000, p.232):
No Brasil as mais antigas menções informam q
ue os aut
os eram cantados à
porta
das igrejas, em louvor a Nossa Senhora do Rosário (quando di
rigidos
a escravos e libertos) [
...
] Depois levavam o enredo, com danças e cantos,
nas residências de amigos ou na praça pública, num tablado. Alguns autos
reduzi
am
-
se à coreografia, sem assunto figurado.
S
ASPORTES
(1979, p.25) descreve que “Os personagens dos autos
aparecem muitas vezes a dançar ou a querer dançar, seja plebeus ou nobres, sem
esquecer os mouros e os judeus, confirmados como especialistas destas lides”.
Além das danças o autor aponta a existência de “carros triunfais”, destinados que
anunciavam os momentos fundamentais ou o desfecho da trama. A trama no Teatro
Medieval segundo S
ASPORTES
(1979, p. 26) se diferencia do teatro de Gil Vicente.
O primeiro busca ilustrar simples “[...] representações e exposições sucessivas de
factos certos [...]” e Gil Vicente [...] apresenta esses mesmos factos sob aspecto
diferente
, a saber,
teatral
e
dinâmico
(em vez de descritivo, declamatório, estático),
sob aspectos de cenas, cada uma de duplo fundo e perspectiva (em vez de linear),
num aspecto aliás mais humano que figurativo”.
Suassuna pretende o movimento de leitura crítica da sociedade referenciado
nas obras de Gil Vicente. O
s
intertextos envolvendo
os aut
os populares brasileiros,
e
os autos de Gil V
icent
e, com a arte carnavalizada parodiando a arte erudita,
permitem existir n
o
Auto da Compadecida uma leitura crítica e funcional dos
costumes sociais e
religiosos:
44
O próprio processo dramático já não é, como nos mistérios medievais,
centrado na luta entre as potências do Bem e do Mal (representadas
respectivamente, pelo Cristo e pelo Diabo, por exemplo), mas concentrado
no homem
.
(Boletim de Filologia, Tomo V, apud Sasportes, 1979, p. 27).
A comicidade que os autos proporcionam foi a maneira encontrada pelos
eruditos para comunicar algo para um povo que assimila consciente ou
inconscientemente a mensagem. A arte (literatura e teatro) popular foi o viés
encontrado por Suassuna para se comunicar com o colet
ivo,
formado
por
uma
massa de brasileiros tão desiguais. E no Auto da Compadecida o assunto é figurado
justamente para contar e
denunciar
ao povo a sua própria condição social e política,
cultural e religiosa de oprimidos e marginalizados pela sociedade brasileira da
época
.
1.2 Do teatro à minissérie: contextualização do Auto da
Compadecida
na obra de
Ariano
Suassuna
A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair
em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro
de
experiência de muitos, de todos, que, pertencendo ao que se denomina
uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos
poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos
para se dissolverem nas características ger
ais de sua época. Então registrar
o passado é falar de si; é falar dos que participam de uma certa ordem de
visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar.
(
BUARQUE DE
HOLANDA, 1995, p.9)
O trabalho de Suassuna remete-nos a uma discussão sobre a
comunicabilidade. Comunicar torna-se uma tarefa muito árdua, pois à medida que
procuramos estabelecer um processo de interação, percebemos
entre a
instância da
enunciação e a instância da recepção, a existência de lacunas ou espaços de
indeter
minação,
produzidos pelo
não
-
dito que está por trás do discurso narrativo.
Estes espaços os brancos do texto para ECO (1979) ou os vazios do texto
para ISER (1979) são preenchidos de maneiras distintas e por leitores diversos. O
texto é horizonta
l
, na
sua leitura sintagmática
,
um todo coerente
. N
o entanto
,
quando
é lido verticalmente, numa interpretação paradi
gmática, revela
-nos muitas idéias que
ficaram nas entrelinhas, nos intervalos do discurso, onde os receptores podem
45
encontrar significados diferen
tes
, decorrentes de suas próprias projeções
interpretativas. O conteúdo é formado de fragmentos, de motivos que se repetem ou
se contradizem. O entendimento do receptor completa-se no momento em que
entendemos que não existe homogeneidade, mas um processo contínuo de
recriações do cotidiano da cultura popular pela
cultura
de elite. As contradições
constituem um elo que alimenta a existência de diversificação cultural, cuja
explicação não pode e nem deve se dar através de respostas simplificadas, pois o
con
texto histórico é complexo, e exige uma reunião de elementos para a elaboração
de respostas e os receptores, por seu lado, possuem repertórios e competências
diferentes, que vão propiciar muitas leituras ou releituras por um ou vários
receptores do texto,
seja ele teatral ou televisivo/cinematográfico.
21
Esbarramos
-nos, então, com os empecilhos, registrados por entre estes
espaços, que devem ser completados pelo receptor, num fluxo de tempo e, quando
a complementação não é produzida, ou simplesmente inexiste, acaba por interferir
no intento maior do ato de comunicar, que reside na busca da produção de sentido
que pode realizar
-
se em diferentes
níveis de abrangência e complexidade.
No Auto de Suassuna, os receptores das camadas mais populares, com
menor esc
olaridade
, poderão compreender a ironia crítica e o julgamento
intermediado pela “Compadecida” com seus registros populares e com seus
conhecimentos religiosos e aqueles, com maior repertório cultural e
academicamente mais favorecidos, poderão estabelecer relações, conotar os
intertextos com a cultura medieval e popular, com os discursos bíblicos e literários
conseguindo perceber maior complexidade, e realizando leituras mais abrangentes.
Das recepções feitas em épocas diferentes por diversas comunidades sociais
poderão decorrer avaliações positivas ou negativas da obra lida, com mudanças na
visão da sua importância nos cânones literário-culturais de épocas diversas. Surge
daí a necessidade (1979) de revisões ou mudanças, preconizadas por Jauss (1993)
na
História Literária ou Cultural dos povos, de acordo com as mudanças da
21
Embora Guel Arraes adote a postura de Suassuna, em permitir que o receptor preencha as lacunas
do texto, é impossível negar que a projeção das possibilidades de recepção na mídia televisiva cria
um espaço reduzido, não é o mesmo espaço destinado ao momento de reflexão e construção
existente no teatro.
46
recepção de suas produções culturais, literárias, teatrais ou outras, no decorrer do
tempo.
A revisão dos valores culturais estabelecidos deve ser realizada
diacronicamente
, pois mudanças e substituições de obras consagradas que se
tornam indispensáveis, pois, muitas vezes, novos sentidos são acrescentados e
autores incompreendidos em sua época encontram seus sentidos verdadeiros em
tempos posteriores, onde o juízo de valores não é afetado pela proximidade dos
acontecimentos.
E como produzir sentido, uma vez que as próprias disparidades de repertórios
encontrados na massa constituíram
-
se no problema da não interpretação do código?
Assim a técnica literária cria artifícios capazes de
promover a identificação do código
pelo receptor, apresentado através de estratégias da Estética da Recepção q
ue
analisa o texto literário, teatral e midiático a partir do enfoque do receptor. A E
stética
da Recepção aponta para a existência de pluris
signif
icações, advindas do ciclo de
reconstrução do texto, que se faz através das leituras individuais, que se fundem
com outras leituras possíveis, por intermédio da intertextual
idade
, persistente no ato
de recriar, mudar
e inovar.
Em o Auto da Compadecida
22
, percebemos a utilização das abordagens e
estratégias estudadas pela Estética da Recepção, capazes de subsidiar o
preenchimento d
os espaços, dos vazios do texto pelo receptor. E são estes mesmos
espaços que permitem ao
emissor
estreitar os elos com os recep
tor
es
,
transformando
o ato de comunicação num processo de cumplicidade, onde a
legibilidade do signo configura-se através da
montagem de um repertório
, construído
com uma
visão
de amplitude e de diversidade que possibilitam
sua
compreensão e
identificação
por
receptores desiguais, num nicho cultural que também apresenta
diversificações
.
22
A primeira adaptação cinematográfica do
Auto da Compadecida
foi feita por George Jonas em
1969, logo após por Roberto Farias em 1987, e por Guel Arraes em 1999, na encenação
da
minissérie, que logo seria transposta para película.
47
A paródia,
carnavalização,
a ironia do discurso, os jogos intertextuais com a
religiosidade
e crenças populares propiciam a Suassuna a instauração de um
vínculo com os possíveis receptores, criando, através da intertextualidade
um
caminho
de mão dupla que permite a produção de sentido no fragmentado espaço
cultural das massas, ressaltando as heranças histórico-
culturais
contidas no Auto
ora estudado
.
Suassun
a deixa transparecer no Auto da Compadecida um processo que se
presentifica nos cenários, cujos espaços carregam-se de significações denunciando,
de maneira muito mais profunda as questões sócio-econômicas, do que os próprios
diálogos. O cenário árido, os espaços secos e desprovidos de beleza e fartura,
denunciam a pobreza extrema, a falta de recursos e a fome, justificando a postura
do emissor com seu humor complacente para com as malandragens e atos das
personagens.
A tendência de Suassuna é a transformação intencional da informação como
da percepção implícita ou explicita de quem a recebe. O
Auto
da Compadecida
utiliza,
dentro do contexto social, em que se
insere
um discurso irônico que
contamina os cenários, os figurinos e aa representação de Jesus por um negro,
estendendo a crítica social do campo político e religioso para o domínio público,
apropriando
-se de elementos da cultura popular como estratégia discursiva para
p
roblematização
do ético.
Sua obra propõe-se a criar um caráter trans-
ideológ
ico, onde a ironia reforça
o esforço de entendimento do dito e do não dito, através de rastros semiotizados
que ecoam com a paródia, o humor das cenas reforçando a discussão ideológica e
sócio
-
polític
a entre comunidades discursivas, com horizontes de ex
pec
tativas
23
tão
díspares como a sociedade brasileira, especialmente a nordestina. O trabalho de
SUASSUNA volta-se para o resgate da memória, das raízes regionais, e o teatro foi,
no primeiro momento, a opção de revelação da arte popular, uma vez que o próprio
SUASSUNA o como o meio de comunicação mais viável, para atingir a massa,
dada a realidade nordestina. E nisto um compartilhar com tradições que apontam
23
O conceito de leitor de Haus Robert Jauss fundamenta-se em duas categorias: de um lado a de
horizonte de expectativas somatória de experiências sociais acumuladas e de códigos vigentes no
meio
e
época do receptor
– e, de ooutro lado a da emancipação –
efeito e finalidade da arte. “Confira
-
se Jauss, apud FLORY, 1997, p.23.
48
para o teatro como meio didático, catequético até o educativo das massas (papel
que hoje é muito
explorado pela TV).
O teatro, na visão de TEIXEIRA COELHO (2005, p.79), permite a existência
de uma pluralidade de linguagens e em cada linguagem um aspecto diferente
que
esse mesmo autor
24
, relaciona entre “língua/fala, significante/significado,
de
not
ação/conotação”
, observa
ndo
a arte como um processo arquitetônico.
arquitetura no teatro, na cena, e na expressividade das personagens, admitindo que
a arte no teatro
é um processo que busca um modo de representar.
TEIXEIRA
COELHO
reflete sobre uma teoria ilustrada por A
RTAUD
25
segundo a qual o teatro
tende
numa sociedade de consumo, a
deslocar
a ênfase d
o
produto do teatr
al
(processo de significação) para a arquitetura do teatro
.
A questão
expõe
uma discussão presente nos trabalhos de Suassuna, o de não tornar a arte
em
um produto comercial
:
Todo processo de produção, de um bem econômico ou cultural, passa por
quatro fases: a da produção propriamente dita, onde o produto é montado
em suas partes e concluído; a distribuição, que coloca o bem em contato
com o intermediário ou com o usuário final; a da troca, na qual o bem chega
às mãos do receptor, mediante a algum tipo de compensação (o dinheiro da
entrada); a do consumo quando o produto é efetivamente consumido por
um receptor concreto. Nesse sistema, op
era
-se uma separação nítida entre
duas esferas: a do produtor (que circula pela primeira e eventualmente,
segunda fases) e a do receptor (nas duas últimas). Isto significa que, o caso
do teatro, o receptor é admitido no processo quando o produto está
pronto e acabado, só lhe restando sentar
-se na poltrona (quando pode fazê-
lo) e receber passivamente o que lhe oferecem. TEIXEIRA COELHO (2005,
p.80)
Numa perspectiva diferente, BULIK (2001, p.29) também aponta para a
estreita relação entre a arte e o lugar ou edifício onde se a comunicação teatral.
Em sua obra, Comunicação e Teatro, estuda a semiótica do processo de criação do
grupo dinamarquês Ondin Teatret, mostrando que o espaço, o lugar, a sala do
espetáculo são incorporados como sistema de signos - cenários mesmos -, que
atuam no processo de significação de suas encenações ao lado da palavra e da
expressão corporal do ator.
24
TEIXEIRA COELHO (2001, p.26)
25
Apud TEIXEIRA.
49
Assim, o teatro para a citada autora compreenderá uma relação entre
situação e lugar, permitindo a coexistência de arte
e edificação, situação e lugar, que
resultarão dos aspectos sociais da representação. E prossegue seus estudos
salie
ntando que “o fenômeno teatral [
...
] releva do processo de comunicação e
prepara o terreno para uma visão ritual da comunicação” (BULIK, 2001, p.33). para
B
ULIK
, o processo de criação teatral contempla a integração e participação, pois no
geno
-texto, a interação é buscada para a concretização do feno-texto, que busca a
comunicação com o público.
BULIK constata ainda um movimento do teatro contemporâneo que busca se
afirmar como intercultural por entender que o homem ao mesmo tempo que localiza
e finca raízes também busca a planetarização sobretudo quando se propõe a
adaptar culturas. A idéia de mesclar, interagir com culturas diversas o c
olocaria
em risco a identidade cultural de cada um, mas ao contrário pode significar um modo
de sobrevivência das culturas através da interação e das trocas culturais. Para ela,
não se deve, contudo, confundir troca simbólica de bens culturais entre os pov
os
com dependência e dominação cultural impostas pelos imperialismos econômicos.
Nesse ambiente
intercultural Suassuna concebe o Movimento Armorial
26
, que
busca a interação e a mescla de culturas diversas. Esta diversificação representa o
caos social, e é nesse ambiente que Suassuna busca o resgate da produção
popular, que resulta na arte popular que como a arte erudita está sujeita a troca
simbólica de bens culturais.
E prossegue a seu estudo salientando que “O fenômeno teatral, [
...
], revela o
processo
da comunicação e prepara o terreno para uma visão ritual da
comunicação” (BULIK, 2001, p.33). Para BULIK, todo o processo contempla
integração e participação, pois, no geno-
texto
27
, a interação é buscada para
concretização do feno-
texto que pretende rec
iprocidade com o público.
26
O Movimento Armorial resgata a arte popular, Suassuna criou um museu para agr
upar e preservar
a memória nacional através do resgate da arte popular.
27
BULIK (2001, p.68) expõe as idéias de Kristeva que “denomina geno-texto apresentado como base
subjacente à linguagem, designada pelo termo feno-texto, linguagem que serve à comunicação e que
a lingüística descreve como `competência´ e `performance´”. E continua salientando que para
Kristeva esse é o processo da significância onde a “produtividade significante (geno-texto) e prática
significada (feno
-
texto) que se traduzem ainda por pr
odutividade prática (significação
-
comunicação)”.
50
B
ULIK
observa que o teatro comunica quando é intercultural, isto significa
dizer que o homem é intercultural
28
quando se propõe
a adaptar
a cultura. A idéia de
mesclar, interagir culturas, não colocaria em risco a identidade. Então todo terreno
pode ser preparado para interação, p
ela
troca cultural e, ao contrário do que
assinala TEIXEIRA
COELHO (1995, p.18), não se resumiria a uma prática comercia
l.
Existem, no entender dessa autora, grupos experimentais buscando através do
teatr
o uma linguagem universal e atuando como guardião de culturas em vias de
desaparecimento. Esse teatro atua então na contramão das regras de mercado
impostas pela globalização aos produtos culturais.
Quando o Auto da Compadecida, é levado a público por um grupo amador,
a
representação
não tinha ainda o trabalho necessário de pré-
expressividade
, pois
não se estruturou a proposta de impacto na mensagem visual, falada e corporal
,
mas comunicou e gerou significação. Quando passa a uma atuação mais madura, a
uma
leitura mais profissional, o trabalho de pré-expressividade, resultará num
trabalho de significação, que irá, no decorrer dos anos, atender à realidade da
sociedade. Ele comunicará e significará num outro espaço, num outro momento, a
arquitetura tenderá à
mutação.
O processo mercadológico do teatro é um processo conjunto com a
arquitetura. A produção demanda investimentos e é lógico o processo comercial, na
divulgação da obra de SUASSUNA. O que se torna importante salientar é que
SUASSUNA trabalha, ideol
ogicamente,
a difusão e propagação da arte popular, o
que resultou na criação do Movimento Armorial
29
,
nascido
para resgatar e firmar a
arte popular na memória do povo brasileiro.
A arquitetura da arte, tanto no teatro quanto na TV, demonstra a existência
da
realidade mercadológica, que segundo MARTIM-BARBERO e REY, resultará em
matrizes culturais. Cada matri
z destina
-se a um grupo definido e visualiza-
se através
28
Consultar BULIK, Linda.
Comunicação e teatro
. São Paulo: Arte & Ciência, 2001.
29
No site
www.pe
-
az.com.br/bibliografias/arian
o_vilar_suassuna.htm
, encontra-se disponível a
bibliografia de Ariano Suassuna, registrando que o Movimento Armorial existiria para “realizar uma
arte erudita brasileira a partir das raízes populares da nossa cultura”, nas palavras do próprio
Suassuna.
51
de
formatos industriais. A televisão e o cinema ilustram a possibilidade de voltar a
arte popul
ar
incorporada à erudita para a sociedade de consumo, o que não resulta
dizer que os conteúdos culturais estão vivificados, que há discussão
epistemológica
.
Para MARTIN
-
BARBERO e RAY:
A hegemonia audiovisual alimenta uma profunda contradição cultural:
enquanto a revolução tecnológica se desenvolve com uma expansão e uma
diversificação sem limites dos formatos, nos meios de comunicação se vive
um profundo desgaste dos gêneros e uma crescente debilidade do relato.
(2001, p.109)
uma certa uniformidade nos discursos dos comunicólogos de que um
empobrecimento dos trabalhos levando ao questionamento do que produzir e como
ofertar. Assim, quando uma obra que retrata a cultura nacional é exibida, talvez ela
não se comunique na TV ou cinema com a mesma interatividade do teatro, não
contemple, com a mesma ênfase, a proposta ideológica, mas mesmo assim coloca
ao alcance da massa um bem que lhe era inacessível. A linguagem é fragmentada,
acelerada, superficial e, na verdade ilustra a dinâmica capitalista, na qual o tempo
também é escasso mas preserva raízes nacionais e leva pessoas a valorizarem
suas crenças e costumes através da oralidade e dos “causos” populares
.
Por outro lado, com todas as contradições apontadas acima a mídia televisiva
por comunicar a variedade cultural, permite o resgate histórico e retrata a arte do
povo e ao alcance da massa. O questionamento sobre o nível em que a arte é
relatada na TV é pertinente, mas a precisão de momento circunstancia “o como” a
linguagem televisiva permite comunica
r.
A TV permite comunicar através da imagem, e não apenas para um público
reduzido, como em principio o faz o teatro, mas para a massa, estamos na
instância da indústria cultural:
inúmeras discussões sobre se a TV é um bem ou um
mal
. De um lado,
c
oloca
-se o seu caráter de democratização da cultura, uma vez que é
acessível a todos, indistintamente. De outro, discute-se a unção alienadora
e de formação de opinião pública, e manipuladora, por se aproveitar da
natureza emocional, intuitiva e
irreflexiv
a da comunicação por imagens.
(ARANHA e MATINS,1992:215)
52
A linguagem utilizada na minissérie leva a uma leitura mais horizontal,
minimizando uma relação interativa.
O público recebe a mensagem e não
precisa de
grandes esforços interpretativos para entendê-
la.
No teatro, a proposta é diferente:
maiores
possibilidade
s
interativa
s,
advindas do diálogo direto com o Arlequim que
estabelece contato com o público. O Arlequim
30
desaparece na minissérie e no filme
de Arraes. A televisão investe na visualidade con
vi
dando
à instantaneidade dos
acontecimentos. Sua apresentação é realista trabalhando o acontecimento dos
fatos, que se sucedem numa cronologia temporal, quase autoexplicativa.
O cinema hoje, tem também um público relativamente reduzido (dado as
deficiên
cias financeiras ou ao desinteresse), não tanto quanto o teatro. O teatro de
SUASSUNA
, no entanto, pretende-
se
popular e o convite à encenação prevê o uso
do espaço público gratuitamente, inclusive a rua, o que remeteria a uma discussão
sobre o uso do espaço público para a propagação das artes, sejam elas eruditas ou
populares. A diferenciação do público do teatro para o do cinema pode ocorrer nas
seguintes instâncias:
Quando o teatro entoa-se popular, buscando cenários em espaços
públicos convencionais (ruas, salões comunitários, etc.), busca um
público amplo e propõem-se a uma discussão ideologicamente
comprometida. A linguagem é esteticamente programada, pode e deve
confundir o receptor quanto ao que deseja expressar
;
Quando o teatro busca espaços blicos ou privados, construídos para
a elite visa, não a proposta de significação, como também a d
o
retorno econômico real. um empreendimento em curso, assim a
linguagem não é estética
, mas
voltada a publicidade
;
O cinema torna
-
se popular, quando utiliza
recursos comunitários para a
sua exposição, buscando, assim, certa inclusão social e levando uma
fração da matriz cultural num formato específico de mídia;
30
O Arlequim pode ser tomado como o interlocutor presente nos autos medievais da nobreza, este
sujeito deveria representar num tom satírico e cômico as peças teatrais sem usar de tons vulgares ou
agressivos. De maneira diferente o palhaço que representa o acesso a públicos menos eruditos que
absorviam uma linguagem burlesca, mas agressiva.
53
O cinema é mercadologicamente direcionado, quando a proposta maior
não é a de expor a arte no primeiro plano, mas a de modelá-la para
uma sociedade consumista. É a indústria do cinema.
Para
TEIXEIRA
COELHO
(1995, p.79)
:
O cinema é a arte da descontinuidade, dentre todas: o descontínuo se sente
em casa quando à dimensão do espaço-tempo. Mais e antes do que a
leitura (embora talvez não antes e não mais do que a poesia), o cinema não
ao seu expectador uma história em continuidade: `pulam-se´ episódios,
descrições ou relações, dados como inferíveis.
Os formatos minissérie e filmes usam a dinâmica dos cortes no quadro a ser
exibido. Será exposto o que se deseja mostrar, podendo então levar a um
direcionamento da opinião do público acerca do que lhe foi permitido observar e
visualizar.
TEIXEIRA
COELHO
(1995)
cita Godard e sua teorização sobre o princípio
de descontinuidade, ou seja, a diversificação e disfunção das comunidades
discursivas propõem que alguns elementos o comuns no caos, o que geraria
a
integridade da significação.
A pobreza em O Auto da Compadecida está resumida no que o quadro
(cenários
, contextos, espaços) permite mostrar. MOUILLAUD
31
enfoca
o
enquadramento e prossegue afirmando que os cortes programados permitem
ordenar a mensagem, mas reduzem as possibilidades de conhecimento da obra.
Quem ou assiste a
o
Auto
no teatro, observa e sente uma dinâmica
completamente diferente. O texto escrito ou a peça de teatro convidam o receptor a
interagir e suprir as lacunas subjetivamente, o que falta para perfeita interpretação
da imagem é criado pelo subconsciente.
Tomemos
, por exemplo, a passagem de Chicó e seu cavalo bento: no
teatro,
a inexistência é suprida por um cabo de vassoura e o cavalo é concretizado no
imaginário do receptor. Na minissérie GUEL ARRAES também convida o receptor a
interagir, pois, não apresenta um cavalo real, e sim um cenário em tons de cinza e
31
Consultar MOUILLAUD, Maurice.
O jornal: da forma ao sentido
. Lyon: Puf, 2001.
54
azul,
que insinuam o estrelado luar do sertão nordestino
32
, em que
Chicó,
surge
monta
ndo um cavalo projetado em forma de desenho (sem arranjos especiais e
que
remete a um cavalo de carrossel de parque, que mais robusto). A proposta de
leitura da obra de SUASSUNA por GUEL ARRAES, mostra a preocupação em
preservar a característica dos arranjos, presentes no teatro, principalmente no teatro
popular, fugindo do apelo comercial que predominantemente interferem os trabalhos
televisivos
que resgatam obras literárias.
A mídia televisionada, segundo ARANHA e MARTINS (1992, p.216), por
pertencer a grupos privados, considera que:
A TV é um empreendimento comercial e, como tal, visa o lucro;
A TV é sustentada pelos anunciantes, que,
an
tes de gastarem sua verba de
publicidade, verificam o índice de audiência de cada programa.
No molde TV/cinema os espaços das lacunas, vazios” ou “brancos”, são
bastantes reduzidos, quase desaparecem. Os signos assumem uma leitura que não
é a do autor do texto/teatro e serão expostos segundo a leitura do roteirista, do
diretor
e de sua equipe. No caso do
Auto
,
as
transmutações
do texto teatral para TV
(minissérie) e para o cinema serão leituras de Guel Arraes, Adriana Falcão e João
Falcão.
A transcod
ificação
aprofunda
o tom satírico que evoca comicidade, substitui
alguns signos ou os minimiza. A adaptação para a TV coloca em segundo plano a
discussão das diferenças de classes que ocorrem no teatro. T
anto
é assim que, na
minissérie
como também no cinema, cria-se o romance entre Chicó e Rosinha, a
filha do Coronel, que acabam juntos eliminando possíveis diferenças de classe,
fato
que não existe no texto teatral
em que
o Coronel tem um filho e não uma filha
.
Por outro lado, preserva a leitura de Suassuna sobre a arte popular,
despertando a atenção dos críticos para a possibilidade de inserção da literatura
brasileira no formato TV. O Auto da Compadecida consagrou Suassuna como
escritor na versão texto/teatro e reafirmou essa posição com a exposição no for
mato
32
Quando
GUEL ARRAES faz uso do sertão noturno força a leitura que por mais que o sertanejo
nordestino seja estereotipado como homem robusto, que suporta a aridez e o calor do sol nordestino,
precisa de um amparo, para que o faça suportar a realidade de uma região castigada não só pelo sol,
mas pelo esquecimento. É como se o nordestino caminhasse sem objetivos, simplesmente vagando,
sem destino, sem propósito, a ausência de luz provoca este efeito e as estrelas uma luz no fim da
jornada.
55
minissérie, atingindo um público de 2.082.502
33
de expectadores e posteriormente
no cinema, embora com estratégias e forte influência da mídia televisiva.
Ao considerarmos o intertexto e a paráfrase temos uma nova proposta de
leitura: a televis
iva
. A obra proporcionou ao brasileiro ler/ver uma obra literária, ter
contato com um texto que comporta a descrição de arte erudita com base na
arte
popular. Mesmo que a sociedade de consumo não tenha noção do feito ela
consumiu um bem, mas um bem erudito.
1.3 Estado de arte: continuidade ou ruptura
O brasileiro não tem o hábito da leitura. São diversos os fatores que fazem
com
que
o brasileiro não tenha acesso à leitura. O livro é caro, a renda é baixa,
pouco interesse. Se esta é a realidade contemporânea, a realidade de Suassuna no
momento em que escreve o Auto não é diferente, possivelmente encontrava
-
se mais
acentuada.
O teatro popular dispensa grandes
gastos
com produção, usa espaços
públicos e era nestes espaços que Suassuna pretendia expor a arte erudita com
linguagem e símbolos populares.
Na edição 34 do
Auto
34
um prefácio escrito por Henrique Oscar
35
, que
descreve o trabalho de Suassuna como uma aproximação dos grandes temas da
historiografia do teatro. Não o coloca como cópia, mas como uma “recriação”,
ambientando e estruturando o teatro na realidade do nordestino. Oscar exalta essa
peça de Suassuna como um trabalho “inédito em suas características, nova e,
portanto, absolutamente original” (SUASSUNA, 2001, p.10)
.
As observações de Oscar começam com os apontamentos sobre a inserção
do texto no teatro popular, exibido por amadores, inesperientes mas espontâneos,
comentando a atuação dos atores como se segue
:
33
Quanto ao número de expectadores consultar o site
www.webcine.com.br/notaspro/nplepri.html
34
Consultar SUASSUNA, Ariano V.
Auto da Compadecida
. Rio de Janeiro: Agir, 2001.
35
Crítico literário.
56
[...]
se a interpretação era boa, considerado aquilo que se pode exigir de um
grupo
amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto, de
espontaneidade, que correspondia ao espírito da peça e se enquadrava no
estilo de apresentação que mais lhe convinha, a verdade é que foi o texto
em si o causador do entusiasmo despertado (SUASSUNA, 2001, p.9).
O mérito pelo sucesso da obra é dado ao autor e não aos atores. Novamente
quem visualiza a obra como riqueza literária é um erudito. O trabalho de Suassuna
desperta
-nos para uma evocação não apenas do reconhecimento
pela
inovação
estétic
a da leitura erudita do popular, mas antes pretende fazer com que os não
eruditos
, as
pessoas do povo sejam envolvidas
num processo de inclusão social.
O comentário continua relacionando o trabalho de Suassuna com as peças
medievais identificando-a aos “Milagres de Nossa Senhora (do séc. XIV)
(SUASSUNA, 2001, p.9)”, cujo repertório mescla o sagrado e o profano, o plano
espiritual e o temporal, a intermediação entre o homem e o celeste através de Nossa
Senhora.
traços dos trabalhos de Gil Vicente, principalmente a relação com o
repertório na forma/fala, que Oscar coloca como mais suave, se comparada ao estilo
de Gil Vicente
36
. Lembra também que a proposta de exposição popular requer essa
pseudovulgaridade na fala
37
dos personagens para chamar a atenção do público
(SUASSUNA, 2001, p.11).
A figura do herói (João Grilo) retém um repertório simultaneamente profano e
sagrado,
ao qual se
acr
escenta à
idéia do malandro brasileiro, daquele que encontra
uma saída no mo
mento
exato e a justificativa de seus atos,
reprovado
s socialmente,
mas compreensíveis diante da realidade histórica do pobre e sofrido povo
nordestino
, conforme argumenta a “Compadecida”
no julgamento de João Grilo
.
36
VICENTE, Gil.
A farsa de Inês Pereira. São Paulo: Núcleo, 1995. Nesta peça temos uma discussão
sob o
clero e a libertinagem oculta (inclusive a do próprio clero), os interesses de ascensão social das
classes menos favorecidas por meio dos casamentos com as classes mais abastadas. O trabalho é
articulado por um contexto e uma linguagem irônica e carnavalizada. Por exemplo, uma fala de Inês
Pereira quando sonha com a liberdade (de pensar, de se expor) que poderia ter longe de sua mãe:
“Esta vida é mais que morta. São eu coruja ou corujo, ou são algum caramujo que não sai senão `a
porta? E quando me dão algum dia licença como a bugia, que possa estar à janela, é jamais que a
Madalena quando achou a aleluia (Vicente, 1995, p.14). Um outro exemplo temos quando ela esta se
casando e fala a respeito dos Sacramentos e da submissão imposta pela Igreja: “Eu aqui, diante de
Deus, Inês Pereira, recebo à vos, Brás da Mata, sem demanda, como a Santa Igreja Manda”.
37
A simplicidade está no plano da expressão e a complexidade no plano do conteúdo, como nos
autos de Gil Vicente.
57
Em 2005 a Agir lançou uma edição comemorativa dos 50 anos do Auto da
Compadecida
revista pelo próprio Suassuna. O trabalho é ilustrado com pinturas do
vocabulário armorial, que retrata o ambiente nordestino. Esta edição traz uma
discussão sobre a repercussão d
essa obra
nos últimos
cinqüenta
anos.
O comentário, que abre a edição, começa por Bráulio Tavares
38
, ponderando
sobre a “T
radição popular e recriação no Auto da Compadecida
”. Tavares inicia seus
apontamentos falando da capacidade de percepção de Suassuna ao agrupar a
produção literária nordestina num único trabalho. Cita a passagem do folheto de
cordel
O dinheiro de Leandro Gomes Barros (1865-1918), e a História do cavalo que
defecava dinheiro, que no
Auto
se transformam na história do enterro do cachorro
em latim e do gato que defecava moeda, que em 1925 havia sido retratado no
trabalho de Leonardo Mota, Violeiros do Norte. Suassuna tem em comum com estes
autores a inserção de literaturas clássicas do folheto de cordel (SUASSUNA, 2004,
p.191
-192) em seus trabalhos. Segundo Tavares, Suassuna reúne nos trabalhos o
elemento de comunicação mais comum na realidade nordestina: a oralidade. O
teatro e o cordel convidam
à
exposição oral. O resgate do tom medieval, como o uso
do vocabulário carnavalizado no estilo nordestino, a presença do palco evocando o
circo, garantem autenticidade à peça, exclui
ndo
o trabalho de Suassuna da
acusação de plágio que alguns críticos levantaram. Ao apossar-se das histórias de
cordel, Suassuna recorre às “fontes”, Tavares afirma que Suassuna tem o dom de
“Copiar, mas transformando. [
...
] Na medida do possível, tentar escrever algo tão
novo e tão vivo quanto o original (SUASSUNA, 2004, p.197)”, aqui temos o plano de
expressão do autor.
Carlos Newton Júnior inicia sua participação com uma retrospectiva da vida e
obra de Suassuna. O Auto para Newton Júnior representa “
[
...
]
um teatro que, ao por
em discussão, sob uma ótica local, problemas comuns a todos os homens,
certamente despertaria interesse para além de nossas fronteiras”. Esta colocação
acontece pela projeção do Auto no Brasil e fora dele.
38
Crítico literário
58
Para Newton Júnior as publicações e as encenações do
Auto
são perfeitas.
Para o estudioso “[
...
] por onde quer que tenha passado, o Auto de Suassuna foi
entusiasticamente recebido, estudado e elogiado (SUASSUNA, 2004, p.200)”. Mas
alerta para a deturpação que três traduções causaram na estética e ideologia da
obra.
A primeira na Espanha
. O
responsável pela primeira degradação foi José Marí
Pemán, que mudou o repertório carnavalizado para um mais “suave”, para não
entrar em choque com a Igreja
o
rtodoxa (SUASSUNA
, 2004, p.200).
A segunda versão é a americana, que troca a fala de João Grilo,
[...]
`Você
pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?´”, para “[...] Vopensa
que eu tenho algum preconceito de raça?´”, cuja autoria não se encontra na nota do
autor.
E a terceira versão venezuelana, que segundo Newton Júnior é a pior de
todas, denuncia o plágio que José Ignácio Cabrujas fez do trabalho de Suassuna.
Cabrujas chega a denominar-se autor da obra, e será aclamado como o “[...] criador
de um te
atro verdadeiramente venezuelano (SUASSUNA, 2004, p.201)”.
A marca mais profunda que o
Auto
proporciona ao trabalho de Suassuna do
ponto de vista de Newton Júnior ocorre quando “[
...
] os princípios estéticos do
Movimento Armorial (SUASSUNA, 2004, p.202)” são expostos no cinema. Newton
Júnior comenta as três versões cinematográficas, a primeira em 1969 pelo diretor
George Jonas com o título
A Compadecida
.
A segunda versão para o cinema foi realizada pelo diretor Roberto Farias em
1987 e contou com o elenco de Os trapalhões composto por Didi, Dedé, Mussun e
Zacarias com o título Os Trapalhões no Auto da Compadecida. Segundo Newton
Júnior o trabalho merece mérito, mas a adaptação não obteve o êxito esperado junto
ao blico, devido à o identificação do público dos
Trapalhões
com o repertório
proposto no
Auto
.
59
A terceira versão (a que é estudada neste trabalho) foi ao ar na TV Globo no
formato minissérie, adaptada por Guel Arraes incorporando intertextos com mais
duas
obras de Suassuna A pena e a lei e o
Sa
nto e a porca fazendo desta
adaptação o maior sucesso de público registrado pelo Auto (SUASSUNA, 2004,
p.203).
Para Newton Júnior (SUASSUNA, 2004, p203) a obra de Suassuna é
elogiada pela “arquitetura das tramas”:
As ações e os diálogos parecem ocorrer de modo improvisado, espontâneo,
construindo
-se à vista do público para, no final, deixarem claro que tomam
parte numa construção sólida e complexa, revelando a engenhosidade do
autor nas ligações de cenas e atos, ou mesmo na entrada das personagens
no p
alco, sempre no tempo certo para levar a encenação à frente.
Nos três trabalhos a supervisão e aprovação do próprio autor. A
simplicidade os arranjos de momento e a arquitetura da peça dão um movimento
mais espontâneo aos atos. Newton Júnior lembra qu
e “
[
...
]
as ações se desenvolvem
como se estivessem, mesmo, sendo encenadas em um picadeiro de circo, num
daqueles circos sertanejos pobres que o autor conheceu na sua infância”
(SUASSUNA, 2004, p.206)
.
Newton Júnior (SUASSUNA, 2004, p.212) critica a postura de Décio de
Almeida
Prado
por não reconhecer o valor do
Auto
na literatura brasileira, Para
Décio o
Auto
é uma obra fechada, no sentido
em
que permite uma leitura pouco
profunda em termos políticos, sendo antes mais uma leitura religiosa. A estética d
e
Suassuna também foi criticada por configurar a instituição de um sistema lingüístico
próprio
,
que
pode comprometer a criatividade, limitando a capacidade de produção
.
Newton Júnior afirma que na obra de Suassuna ocorre justamente o contrário.
A produçã
o de Suassuna vai além do
Auto
. Temos pós
-
produção do
Auto
:
O Santo e
a Porca Casamento Suspeitoso (1957), A pena e a lei (1959), A farsa da Boa
Preguiça
(1960) e A Caseira e a Catarina (1961), todas peças teatrais. E em 1971
escreve o romance A Pedra do Reino, condecorado com o Prêmio Nacional de
Ficção,
do Instituto Nacional do Livro. O “Movimento Armorial”, engloba ações
culturais e peças de teatro, romance e eventos tradicionais do
Nordeste
,
60
comprovando que não houve ruptura, e sim
continuidade
na pro
dução e na leitura da
arte popular
na obra
de Ariano Suassuna.
O comentário que finaliza a idéia de Newton Júnior sob o
Auto
remete àquela
de que os sujeitos são transpostos, isto implica dizer que a obra ascendeu ao
momento de criação do autor, e afirma que “As críticas passaram e a peça ficou,
prova de que o
Auto da Compadecida
possui aquele quê de humanidade que atribui,
a toda grande obra, um aspecto supratemporal, uma verdade permanente
(SUASSUNA, 2004, p.212)
, e completa:
[
...
] se é inegável que o teatro de Suassuna é um teatro de caráter
moralizante, de forte moral católica, um teatro construído a partir de uma
visão religiosa do homem e do mundo, não é menos verdade que, nesse
teatro, o moral e o político estão
tão
ligados que é quase impossível
separa
-
los _ são aspectos complementares, como se fossem faces de uma mesma
moeda. A visão religiosa do autor não é acomodatícia, mas instrumento de
luta e sinônimo de esperança em dias melhores. É visão questionadora de
si mesma, e que, nesse constante re
pensar
-se, não sobreviveria sem o
elemento político _ não o político partidário e estreito, mas o político naquilo
que o termo possui de mais amplo e humano. (SUASSUNA, 2004, p.212-
213)
Outro crítico presente no texto da nova edição é Raimundo Carrero,
responsável pelo apontamento biográfico de Suassuna na obra. Inicia sua
participação retomando a história da família Suassuna e a tragédia da morte do pai
de Suassuna, João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, que fora Governador
da Paraíba e encontrava-se como deputado federal no momento de sua morte. A
morte de João Urbano ocorreu no R
io
de Janeiro e estava vinculada às questões
políticas. Quando o fato ocorreu, Ariano Suassuna tinha apenas três anos, e
descreve a cena no momento em que sua mãe recebe a notícia. Este fato marcaria
a vida de Suassuna para sempre. Segundo Carrero (SUASSUNA, 2004, p.215), com
a morte de João Urbano:
Parecia surgir ali uma espécie de pacto secreto e inviolável entre os dois: o
menino tornar-
se
-ia escritor para celebrar, em toda a sua grandeza, a
integridade do pai. O sangue que se derramara naquela rua do Rio de
Janeiro onde João Suassuna tombara assassinado respingava na literatura
brasileira, alterando o seu destino. Também para sempre.
Carraro (SUASSUNA, 2004, p.216) atribui à vida difícil, sem pai,
marcada
pelos problemas financeiros, a profundidade dos pensamentos e obras de
61
Suassuna. Cita a importância do período em que viveu com seu tio Manuel Dantas
Villar, que o levava para assistir aos desafios de viola e às peças de teatro
populares. Outro tio importante foi Joaquim Dantas que apresentou a Suassuna as
doutrinas do catolicismo e as leituras de clássicos como Euclides da Cunha, Eça de
Queiroz e outros. O tio Manuel era ateu e contribuiu com leituras amparadas pelo
i
luminismo, antropocentristas
e da literatura erudita brasileira e
portuguesa
.
Suassu
na escreve por algum tempo para o Jornal do Commercio e forma-
se
em Direito, pela Faculdade de Direito do Recife. É na faculdade de Direito que
Suassuna descobre seu dom para a literatura, escrevendo a peça Uma mulher
Vestida de Sol em 1947. O perfil dramático d
est
a peça será substituído pela
comicidade
da peça Torturas de u
m
c
oração
. A mudança, segundo Carraro
(SUASSUNA, 2004, p.222) ocorrerá quando Suassuna conhece Zélia Andrade de
Almeida
que
,
mais tarde
,
se tornaria sua esposa.
A mudança estética dos trabalhos não desliga Suassuna de sua origem.
Carraro (SUASSUNA, 2004, p.222
-
229) lembra que suas obras retratam sua infância
na fazenda Acahuan em Taperoá, a figura dos tios e todos estes elementos estão
presentes nas obras do autor. Prossegue fazendo referência à importância da
construção de uma arte erudita, tendo como seus elementos constitutivos a arte
popular. Recorda a importância dos estudos no laboratório popular que Suassuna
desenvolverá enquanto professor e lembra a concretização de um sonho, o
“Movimento Armorial” em 1974. Lembra a morte da mãe de Suassuna, Rita de
Cássia Dantas Villar Suassuna, em 1993 e relaciona definitivamente sua vida ao
romance
A Pedra do Reino. Em 1994, sua peça Uma Mulher Vestida de Sol é
exibida na Rede Globo. Em 1995 assume o posto de Secretário de Cultura indicado
pelo governador Guel Arres, e no mesmo ano veria outra peça, A farsa da boa
preguiça
apresentada na Rede Globo de televisão. O auge da leitura televisiva da
obra de Suassuna ocorreria em 1999, com a minissérie o Auto da Compadecida
.
Carraro encerra suas notas lembrando a posse da cadeira 35 da Academia
Paraibana de Letras em nove de outubro de 2000, que coincidiu com o anive
rsário
de 70 anos da morte de seu pai.
62
Suassuna não interrompe sua produção com a elaboração do Auto, pelo
contrário, produz mais peças de teatro e obras literárias. Envolve-se com a política
cultural e é sagrado imortal
, tomando posse da cadeira 32
n
a A
cademia Brasileira de
Letras em 1990. Seus trabalhos foram reconhecidos fora do Brasil, mas o maior
êxito está no reconhecimento nacional. Temos um trabalho inovador, que constrói
uma problematização política/social do Brasil, a partir da realidade cultural do povo,
reu
n
indo
ricos e pobres, cultos e não cultos, dominantes e dominados. A realidade
do nordestino é esteticamente transposta pela carnavalização, presente nas grandes
obras e teatros medievais, que no caso do
Auto
com a leitura das várias “raíz
es
do Brasil”
39
.
39
Consultar HOLANDA, Sergio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
63
64
II
PERCURSO TEÓRICO
2.1
A
questão da E
stética da Recepção
Ariano
Suassuna em seu texto teatral utiliza um discurso que se abre em
pluris
significações e que pode atingir um grupo maior de receptores. O conceito de
plurisignificação é entendido como o produto de recepções, de construção e
encontro de repertórios. O estado de recepção (
produto
de recepção), segundo
FLORY (1997, p.20), é observado por Lotman
40
, como sendo o resultado das inter-
relações que se estabelecem entre o texto e seus leitores. As inter-relações o
obtidas através das experiências individuais que, por sua vez, assumem similitudes
com outras experiências individuais, gerando um grupo com características comuns,
que possibilitam o surgimento de significações diversificadas de um mesmo texto. O
receptor terá por tarefa representar as possibilidades de significações, modelar e
construir o sentido da obra, através de sua imaginação, guiado por seu repertório:
O repertório cons
titui
-se de um conjunto de convenções, tradições, normas
históricas e sociais húmus sócio-cultural de onde o texto é proveniente
que formando o quadro ou cercadura do texto, reaparece, não com o seu
sentido primeiro, mas sim valendo como um pólo de interações. (FLORY,
1994, P.38
-
39)
E prossegue:
O repertório dá conta dos diversos horizontes de expectativa, gerados pelos
grupos sociais que interagem na narrativa ficcional. São horizontes do
passado interferindo e compondo um horizonte do presente. São
ideologias
que se definem por oposições, obrigando o leitor a aceitá-las ou negá-
las,
criando sua própria visão dos fatos e personagens da diegese ficcional,
presentificando
-se o texto através da comunicação texto/receptor. (FLORY,
1994, p.40)
40
Juri Lotman apud
FLORY, Suely F. V.
O leitor e o labirinto
. São Paulo: Arte e Ciência, 1997.
65
O repertóri
o é constituído através da somatória dos intertextos. O processo de
intertextualização ocorre quando passamos a reunir informações de outros textos,
que promovem a ampliação do leque de informações que serão transformadas, e
receberão um novo significado em um contexto espaço-temporal diverso gerando
,
portanto
, uma nova significação. O velho é recuperado em uma nova concepção.
Outras
leituras surgirão das releituras, da conexão entre textos e contextos que, por
sua vez,
interferem
na relação entre o texto e leitor. A arte literária torna possível a
construção fictícia de toda a problemática cotidiana. Aponta, denuncia e
contextualiza a sociedade num “mundo possível ficcional” (Eco, 1979) e vai mais
além porque reflete, dentro do contexto histórico, os perfis ideológicos de sua época
em
toda
plenitude.
Essa nova significação configura a renovação da obra de arte, que se
concretiza em diversos contextos sociais e temporais, permitindo ao rec
eptor
vivenciá
-la esteticamente. Isto ocorre através da polifonia criada no texto (através
das várias vozes do texto), ou pelo preenchimento de lacunas que ECO
41
intitula de
brancos
do texto, ou seja, espaços que o autor, intencionalmente, insere no
discurso narrativo para que o receptor tenha a oportunidade de
presenti
ficar a
mensagem
e participar da construção do texto, preenchendo o que não foi dito mas
apenas
sugerido. A leitura e a compreensão da mensagem permitirão a
interpretação segundo as projeções pessoais de cada leitor.
Se ao receptor é dada a oportunidade de vivenciar, preencher os vazios e
brancos
, segundo o seu repertório, sua participação através do ato da leitura poderá
levá
-lo ao prazer estético que segundo Jauss
,
(
apud
FLORY, 1994, p. 23)
configuram
, a “Poiesis”, a “Aisthesis” ou a “Karthasis”. A Poiesis, relaciona-se ao
prazer estético que o receptor sente quando se vê inserido no texto, interpretando as
vozes, utilizando de suas projeções interpretativas para preencher os intervalos do
texto
, como um co-autor. A Aisthesis é a tomada de consciência, a possibilidade de
que o texto gere renovação do sentido e concepção de mundo. É o prazer diante da
perfeição, o próprio usufruto da arte que nos liberta e mostra-
nos
um m
undo
novo.
Por fim, a Karthasis traz ao receptor a possibilidade de libertação,
de
uma
fuga do
41
MOUILLAUD, op. cit., p.174.
66
cotidiano, permitindo que ele viva, através dos personagens, novas experiências
,
idenficando
-se com elas, o que lhe possibilita uma purgação e uma renovação
através da identificação texto/receptor.
O texto/teatro de Suassuna deixa o receptor à vontade, deixa brechas para
que se
instaure
m as experiências da Poiesis, da Aisthesis e da Karthasis. Uma vez
que a obra permite que repertórios e receptores distintos identifiquem-se com
questões que vão desde o caráter religioso e político até o sócio-econômico. Texto e
receptor estão organizados numa estrutura de comunicação, que busca a
visualização da informação, composta por um campo pertinente de valores,
defrontando
-
se
os
horizontes de expectativas do emissor e do receptor, a
mbos
impregnados de id
eologias
diferentes, que emanam do processo de
intertextualização e das diversas leituras do texto, em diferentes momentos
temporais.
Ao identificarmos a preocupação com a receptividade, claramente configurada
no texto/teatro de Suassuna, através de seu repertório esteticamente composto, a
proposta é atingir o maior número possível do que chamaremos de “leitor modelo”
(Eco
, 1979), “implícito” (
Iser
, 1979), ou ainda de “arquileitor” (M. Riff
aterr
e, 1971)
42
.
No caso de Suassuna, esse leitor implícito, fazend
o uso do conceito de Iser
,
aparece
quando o texto abre lacunas a serem preenchidas pelos leitores com seus
repertórios diversificados e seus respectivos segmentos sociais. O diálogo entre
emissor
e receptor está previsto no próprio discurso, e as estratégias textuais
estabelecem uma interatividade, constantemente renovada, abrindo espaços para
um personagem “in absentia”, com o próprio leitor. A informação assume seu ponto
máximo de inclusão e interação entre emissor e receptor levando à elaboração de
novas
leituras, semiotizadas pelos fragmentos heterogêneos, emanados da rela
ção
entre emissores/receptores, repertórios/segmentos sociais, traçando o quadro
cultural em que
está mergulhado o próprio texto e os seu
s
leitor
es
.
42
MOUILLAUD,
2001
O conceito de arquileitor de Riffaterre prevê um leitor com amplo
conhecimento da obra de um autor, este leitor tem uma capacidade maior de preencher os vazios do
texto pela sua competência em relação ao autor ou ao tema desenvolvido
.
67
Para
MARTIN
–BARBERO (2003, p.116-117) em sua obra, Dos meios às
mediações
,
a problemática da recepção, está centrada na a questão da cultura
popular, que se encontra fragmentada numa sociedade que se pretende
homogênea.
Fazendo uso do pensamento de Gramsci acerca do conceito de
hegemoni
a das classes, MARTIN-BARBERO ressalta que Gramsci propõe-
se,
através da visualização do processo de dominação social, entender que as classes
não são homogêneas e nem tampouco permanentes, e que se desfazem e se
constroem
pela aquisição do sentido de poder, que uma classe social outorga à
outra. Gramsci continua ainda apontando que a relação que assistimos entre as
classes é a da concessão e da cumplicidade. A função ideológica de alguns
sujeitos
passam a ser desfiguradas, inutilizadas e rejeitadas, pois segundo MARTIN-
BARBERO (2003, p.116),
[...]
nem tudo o que pensam e fazem os sujeitos da
hegemonia serve à reprodução do sistema
[...]
”, configurando-se uma densidade
cultural
decorrente da
movimentação das oposições.
GUEL ARRAES, em O Auto da Compadecida trata as diferenças sociais
segundo a leitura de Gramsci. Uma passagem na minissérie que ilustra tais
diferenças ocorre quando Chicó e João Grilo saem da casa do padeiro Eurico a
mando de Dora, a esposa do padeiro, para chamar o padre para benzer a cacho
rra
moribunda de Dora. No caminho para a Igreja Chicó e João Grilo tentam diminuir a
caminhada pegando uma carona em uma carroça que passa por eles e sobre ela
Chicó se deita para contar o causo do seu cavalo bento. A ironia da cena pode ser
percebida dado
o contexto ao qual
se insere a carroça.
SASPORTES (1979, p.26) aponta que os “carros triunfais”
43
, serviam
à
exposição de peças teatrais nobres, como por exemplo, os autos natalinos, e para
as cenas que necessitavam de destaque também se usava o recurso. Quanto ao
uso funcional dos carros, é preciso salientar, que somente a aristocracia e poucos
comerciantes, tinham aparato econômico para ter posse de um carro. Em O Auto da
Compadecida
, GUEL ARRAES, chama a atenção para o contexto ao qual introduz o
carr
o, carregando suprimentos, provavelmente de um coron
el
e como por uma obra
43
Os carros
eram carroças movimentadas por animais
ou quando menores pelos próprios integrantes
do grupo teatral. No interior do Brasil as carroças ou carretinhas ainda são muito utilizadas nos
desfiles cívicos ou em datas festivas do calendário religioso.
68
do acaso, dois pobres nordestinos puderam usufruir por segundos da carroça para
que pudessem resgatar um de seus poucos bens, a memória, concretizada pelo
imaginário.
A carroça-
obje
to
mostra a relação existente entre os sujeitos sociais e
dos sujeitos com os objetos, através da relação de posse e uso, se apresenta a
relação de classes
, ela surge na minissérie novamente no enterro de João Grilo
.
Outro momento no
Auto
em
que se pode notar o trabalho estético d
as
diferenças sociais fica explicito na fala de Chicó quando narra a morte de João Grilo:
Acabou
-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e
encontrou
-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso
estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o
que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.
Que posso fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma.
SUASSUNA (2004, p. 123)
Se a morte é o fato que iguala todos os homens, o sepultamento os torna a
distinguir
-los. Chicó quando está prestes a enterrar Chicó, lamenta por não poder
dar um enterro digno ao amigo, antes é forçado a abrir uma vala comum, para que
João fosse simplesmente
sepultado, como um indigente.
Logo após a morte das personagens inicia-se o julgamento e o recurso
estético para a incorporação de Nossa Senhora entre as personagens ocorre por
meio de um verso popular. Os versos populares são programados no texto do
Aut
o
da Compadecida de maneira a familiarizar o receptor ao contexto, como na
passagem em João Grilo recita:
Valha
-
me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa da leite, / a braba da quando quer.
A mansa dá sossegada, / a braba levanta o pé.
Já fu
i barco, fui navio, / mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem
, / só me falta ser mulher.
Já fui barco, fui navio, / mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem
, / só me falta ser mulher.
Valha
-me Nossa Senhora, / Mãe de Deus de Nazaré. (SUASSUNA, 2004,
p.158)
69
Os versos populares recuperam a estratégia estética do esconjuro
44
e da
adoração
45
, que remetem as “orações fortes”
46
. No esconjuro há práticas exorcistas,
onde cruzes, a água, o sal e os ramos bentos são empregados em rituais para
expuls
ar demônios. O auto flagelo, ou práticas como bater no peito e na face, o
batismo (aspersão com água benta), indicam o esconjuro. A adoração precede a
evocação de um ente divino,
ocorrem
por meio de preces, ações de graça (práticas
de agradecimento), das procissões ou cortejos (na minissérie substituem a fala do
palhaço no momento em que as personagens morrem). No momento da prece
espera
-se um fato notável, o pedido de intervenção por alguém e o de
condenação ou maldizer para outro
.
CASCUDO (1988, p.550-553), traz como exemplo, uma evocação de oração
forte: Valei-me o virgem Conceição. O mesmo traquejo estético foi pensado na
última linha do verso recitado por João Grilo:
Valha
-me Nossa Senhora, / Mãe de
Deus de Nazaré. O grito sugere um apelo por socorro, clemência, contra os castigos
– pois se já não bastasse a
miséria
e a expropriação social.
Assim a dominação social não deveria ser entendida como um processo
imposto a partir do “exterior”, sem “sujeitos”, e sim entendido como um procedimento
intrí
nseco no qual uma classe torna-se hegemônica, uma vez que visualiza
interesses comuns e alternantes com outra classe, fazendo com que haja uma
cumplicidade na constituição das classes que dominam e das que se submetem.
MARTIN
-BARBERO identifica que o “folclore”, segundo Gramsci, é um campo de
contraposições entre o que o popular entende como “concepção do mundo e da
vida” frente à percepção do mundo real da massa culta. Existe, pois, um conflito, um
espaço entre o culto e o popular, entre aquilo q
ue é e aqu
ilo que deveria ser,
que faz
parte de todo um processo de reconstituição histórica. O que de se ressaltar é
que
a cultura popular e a submissão das classes caminham, simultaneamente,
contribuindo para a permanência da segmentação das tendências que compõem a
cultura de massas.
44
No esconjuro o mal tem que se submeter às formul
as mágicas dos cantos e orações, onde o orador
evoca a divindade, ver CASCUDO.
45
N
a adoração, a divindade dispõe de vontade própria, ela se faz presente na oração ou nos cantos,
ver CASCUDO.
46
Rezas de libertação ou cura.
70
Quanto às tendências culturais, MARTIN
-
BARBERO explica que:
[
...
] frente a toda tendência culturalista, o valor do popular não reside em
sua autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade
sociocultural
, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de
viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as
estratégias das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura hegemônica
e o integram e fundem como o que vem de sua memória histórica. (2003,
p.117)
O trabalho de Suassuna consiste em representar, através de um recorte da
realidade
, um quadro abstraído no espaço/tempo daquele contexto, criando uma
realidade mod
elizada
através de recursos literários, que incorporam temas do
cotidiano
do povo como a temática religiosa, facilmente percebível no título
sugestivo “Auto da Compadecida”. A Compadecida, Nossa Senhora, ícone que
remete a uma simbologia da fé, reforçado pelas qualidades dos ícones a compaixão
e o compadecimento.
O quadro, semiotizado pelo eixo religioso, incorpora no desenrolar da t
ra
ma,
assuntos cujas abordage
ns
passam, por exemplo, pela discussão de poder, de
posse,
de religião, de hierarquização da moral e de miséria, inserindo e
representando a condição sociocultural do nordestino, num texto que possibilita a
representação teatral. Qualquer indivíduo, através da construção mental, guiada
pelo julgamento ético e não moral, realiza a reconstrução da memória histórica
nacional, principalmente a do nordestino.
2.2
A
herança m
edieval
A ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma, mas uma
série infindável de interpretações subversivas.
(MUECKE, 1995, p.48)
MUECKE (1995, p.64-65), em Ironia e o irônico, investiga a ironia usando
uma classificação de Norman Knox que a divide em [
...
] trágica, mica, satírica,
absurda ou niilista, paradoxal cada uma das quais tem sua própria `coloração
filosófico
-
emocional´
”. Para MUECKE, todas essas classes guardam características
próprias, mas uma comum a todos, a “qualida
de
-sensação” que consiste numa
“dupla realid
ade contraditória”, que remete a
“sensação de libertação”.
71
Essa sensação de liberdade é exemplificada por MUECKE (1995, p.66-
67)
quando estuda Freud e suas pesquisas acerca do “dispêndio contraditório de
energia
”. A contradição existe porque:
A palavra `cômico´ sugere uma certa `distância´, psicologicamente falando,
entre o observador divertido e o objeto cômico; a palavra `libertação´sugere
`desobrigação´, `desinteresse´, e estas por sua vez lembram `objetivida
de´e
`desprendimento´. (MUECKE, 1995, p.67)
Para MUECKE (1995, p.71), esta situação de contradição entre
o
emocional e
o racional está presente naquilo que ele chama de “Ironia Fechada”, subtendida
pelas classes: mica, satírica, trágica e absurda. Na ironia mica e satírica temos
o reflexo dos valores do observador, e na ironia trágica ou absurda temos uma
realidade que deprecia os valores humanos.
O trabalho de Suassuna situa-se entre a ironia cômica e satírica, que
comporta a externalização dos valores do autor, como em Gil Vicente. O
Auto
busca
uma fusão e
uma
intensificação do capital emocional com o horizonte de
expectativa
s
do público.
Salienta
-
se
que o A
uto
é composto pelo confronto do capital
emocional dos autores que compuseram os cordéis, que inclui outras releituras
como as de Suassuna e logo mais a leitura de Arraes na minissérie.
Em iguais circunstâncias, as ironias serão mais ou menos poderosas
proporcionalmente à quantidade de capital emocional que o leitor ou
observador investiu na vítima ou no tópico da ironia. Dizer isso não significa
abandonar os reinos da arte e da ironia e entrar nos da pura subjetividade e
preferência individual; as áreas de interesse que mais prontamente geram
ironia são, pela mesma razão, as áreas em que se investe mais capital
emocional: religião, amor, moralidade, política e história. A razão é,
naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos inerentemente
contraditórios: e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e o outro,
dever
-ser e ser, teoria e prática, liberdade e necessidade. Explorar estes
ironicamente é adentrar uma área em que o leitor está envolvido.
(MUECKE, 1995, p.76)
O contraditório no trabalho de Suassuna é construído pelo que MUECKE
(1995, p.77) entende como “Ironia Instrumental” e “Ironia Observável”. A Ironia
Instrumental” identifica “[
...
] a linguagem como o instrumento” e na “Ironia
Observável” o que se apresenta é o irônico “[
...
] de uma situação, uma seqüência de
eventos, uma personagem, uma crença etc. – que existe ou pensa que existe
independentemente da apresentação”. No trabalho de Suassuna ambas as
72
ironias, a instrumental e a observável, uma vez que ironiza sua realidade e o
contexto que a cerca, pois como vemos em MUECKE
“Diz
-se comumente que um
escritor está sendo irônico quando na realidade o que ele está fazendo é
apresentando (ou criando) algo que considerou irônico (MUECKE, 1995, p.84)”.
MUECKE considera que num mesmo contexto coexistem várias formas irônicas.
Observa
-se que no teatro de Suassuna inf
initas
possibilidades de
expressar a ironia, conforme aponta MUECKE, que pode ir da preparação ou leitura
do “palco, fora-
do
-palco, auditório etc” (MUECKE, 1995, p.89). O cômico ou o
satírico é aquilo que está
por acontecer
, tanto
no teatro ou na TV
, e sua
observação,
seja com maior o menor intensidade depende do recorte do contexto.O recorte do
contexto é
trabalho
por
MOUILLAUD
-
se
us trabalhos
são
direciona
dos
ao estudo do
jornal (mídia) - mas
torna
-se pertinente uma observação do autor que sugere que a
leitura da informação depende do tratamento dado a um problema num dado
contexto
, e este fato, independe de outros :
Produzir uma informação supõe a transformação de dados que estão no
estado difuso, em unidades homogêneas. Um processo que não é
propriedad
e da mídia. Esta apenas representa o fim de um trabalho social,
uma formação que começa a montante dos aparelhos propriamente da
mídia. A manifestação é apenas um dos múltiplos operadores pelos quais
uma sociedade se torna visível a si própria. Este processo pode ser
encontrado em todos os níveis
.
(2001, p.42)
A TV também comporta este aspecto de arquitetura, podendo atribuir ao
contexto maior ou menor impacto, mas sem o envolvimento do público, não
necessariamente exige a participação (reação) do receptor. No teatro o público o
esp
etáculo ser montado à sua frente, na TV o mesmo efeito não é possível. A outra
saída do diretor para conseguir a interação com o público é personificar a releitura
de uma obra para dar-
lhe
efeito e sentido no momento em que é
lida
ou, no caso,
apresentada visualmente pela TV.
O texto é preparado e estudado pelos atores que receberão uma orientação
do que se pretende expor e a projeção pretendida pelo diretor
que
dependerá do
efeito de personificação que os atores atribuírem às suas personagens. Para
MUECKE (1995, p.99), “Representar não é apenas participar de uma representação,
é também personificar, e isto é um caso de identidade pessoal como de disfarce
73
físico”, pois o que se pretende é interagir com o emissor, pois A interiorização da
platéia é menos freqüente, mas nem por isso incomum”. Suassuna no
Auto
constrói
aquilo que MUECKE (1995, p.115) entende por “existência social subjetiva”, da
personagem com a realidade dos emissores, e a interação dependerá do contexto
social
dos emissores.
Temos no trabalho de Suassuna a possibilidade de encontrar em processo de
coexistência, em simultaneidade, dois artifícios (instrumentais) utilizados pela
Estética da Recepção: o estranhamento e a carnavalização (como proposta irônica).
A herança da carnavalização medieval faz-se presente no trabalho de Suassuna, tal
como na obra do historiador medievalista francês LE GOFF
47
, intitulada A bolsa e a
vida
”. Su
a principal estratégia
nessa obra,
utilizada para viabilizar a interação entre o
text
o e o leitor, foi a inserção de textos trabalhados a partir da carnavalização do
culto
religioso, realizando uma transposição de um linguajar de ridicularização e de
escárnio. Tal artifício possibilita o enriquecimento do texto, que procura estabelecer
com
o receptor um pacto: o de decifrar os códigos criados em função de tal
estratégia. Sua missão estende-se à necessidade de representar os objetos em
discussão, por uma leitura que construa e integralize o processo de informação da
mensagem.
Assim, trabalhar textos cujo recurso estético é o da carnavalização, foi o
artifício encontrado pelo autor LE GOFF para trabalhar a questão da usura, frente
aos preceitos dogmáticos da Igreja Católica medievalista que, por necessidade
primeira, prezava em garantir a base de estratificação social então presente, por
temer a organização de uma nova ordem econômica, que viesse a prejudicá-
la.
Segundo LE GOFF (1989, p.10):
A usura é um dos grandes problemas do século XIII. Nessa data, a
Cristandade, no auge da vigorosa expansão que empreendida desde o Ano
Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia
monetária ameaçam os velhos cristãos. Um novo sistema econômico está
prestes a se formar, o capitalismo, que para se desenvolver necessita
senão de novas técnicas, ao menos do uso massivo de práticas
condenadas desde sempre pela Igreja. Uma luta encarniçada, cotidiana,
assinalada por proibições repetidas, articuladas a valores e mentalidades,
47
Consultar LE GOFF, Jacques.
A bo
lsa e a vida
. São Paulo: Brasiliense, 1989.
74
tem por objetivo a legitimação do lucro lícito que é preciso distinguir da
usura ilícita.
Desta maneira a preservação dos valores socioeconômicos tornava-
se
necessária, de forma a garantir a organização social baseada na seguinte ordem
hierárquica: alto clero, nobreza e servos. O controle de distribuição das riquezas e a
delegação dos afazeres restringiam-se aos domínios do alto clero e da nobreza,
bem como a administração da atividade econômica. Assim, o discurso ideológico da
Igreja dava respaldo para que uma minoria se constituísse como classe dominante.
Os dominados, os aldeões, em sua grande maioria em condição servil,
acatavam rigorosamente as leis, os preceitos e decretos que condenavam a usura,
uma vez que o aparato regulador e condicionador da Igreja levavam a
impossibilidade de uma crença que permitisse a coexistência de adoração entre
Deus e o dinheiro. A informação era bem clara, ou se tinha um ou outro. LE GOFF,
para efeito de afirmação faz uso de um trecho literário bíblico do Evangelho segundo
Mateus, VI, 24, para ilustrar a passagem da escolha ideal proclamando que:
“Ninguém pode servir a dois senhores: ou odiará a um e amará o outro, ou se
afeiçoará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e a
Mammon”.
A justificação para o acumulo de riquezas poderia ser aceita se fosse
proveniente do labor, concretizado com a recolha do dízimo, ou seja, retribuindo a
prosperidade dando um décimo do que foi adquirido junto à Igreja. Se a prática de
enriquecimento fosse proveniente de outra atividade, como no caso a prática de
juros ilícitos, ou seja, àqueles não obtidos através do trabalho, configurava-se o
pecado da usura.
LE GOFF usa de uma passagem de Orcival para demonstrar como é possível
fundir texto artístico e literário. No caso a manobra artística é a carnavalização do
texto literário podendo criar a imagem do sermão proposto no texto religioso,
colocando a prática da usura como um dos pecados mais tenebrosos e
assustadores, absorvidos desde que surta um estreitamento da leitura no ato da
recepção:
75
Desde a entrada, o primeiro capitel que se impõem à vista é o do Fol dives,
como o apresenta a inscrição em ábaco para que ninguém o ignore (...).
Este rico, que não é magro, segura com as duas mãos sua querida bolsa.
Mas agora os diabos se apoderam dele. Nem suas cabeças bestiais (...)
nem a maneira pela qual agarram a cabeleira de sua vítima nem mesmo
seus garfos são tranqüilizadores
.
(LE GOFF, 1989, p.33)
O trecho citado na obra de LE GOFF faz parte de um trabalho de Orcival
48
que demonstra a estética carnavalizada do texto medieval. Os objetos devem
reforçar a representação da usura. O discurso “Este Fol dives, este rico louco’, é o
usuário, caça do inferno um obeso, engordado por usas usuras [
...
] ‘o gordo
usurário)’’, é um retrato irônico e grosseiro, típico de textos carnavaliza
dos.
O primeiro impacto que a situação causa é o de estranhamento. Nota
-
se que
o receptor é levado a uma situação de desconforto pelo desconhecimento dos
códigos, que se encontram carnavalizados e ironizados. Faz
-
se escárnio e sarcasmo
da posição social do sujeito no trecho apresentado, como na citação fol dives’, rico
louco, que por entre o impacto do estranhamento e carnavalização objetiva
descrever o pecado e o castigo recebido.
Suassuna (2004, p.29) constrói a idéia de usura, do adultério e da diferença
social,
através do diálogo entre João Grilo e Chicó, quando João Grilo lembra a
Chicó quem são o Padeiro e a sua esposa:
Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido de que ela
deixou você? Es esquecido da exploração que eles fazem conosco
naquela padaria do inferno? Pensam que são o Cão porque
enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é
porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via
passar o prato de comida que ela mandava pr’o cachorro. Até carne
passada na manteiga tinha. Pra mim nada, João Grilo que se danasse. Um
dia eu me vingo!
No trabalho de Guel Arraes (minissérie, 1999), temos a visualização da
mesquinhez, da avareza quando o Major nega a sua filha Rosinha o direito à
hera
nça. Rosinha e Chicó são rejeitados porque, financeiramente, não contribuiriam
para aumentar o prestígio socioeconômico junto ao Major.
48
LE GOFF, loc. Sob o trabalho de Orcival LE GOFF pesquisa MARCHE, ª Lecoy de la. Anecdotes historiques,
légendes et apologues tires du recueil inedit d´etienne de Bourbon, Dominicain du XIII siècle, Paris, 1877, pp.
361
-
362.
76
Em uma outra passagem
vem
os o discurso moralista do Bispo ser suplantado
pelo
conhecimento da existência de um testam
ento, referente ao enterro do cachorro
em latim, do qual também era beneficiário: “Quanto ao senhor João Grilo, vai-
se
arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja contra Antônio Moraes. Uma
vergonha, uma desmoralização” (Suassuna, 2004, p.74). No
mom
ento em que João
Grilo revela a parte do Bispo no testamento o discurso toma outro sentido: “É por
isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal
inteligente! Que sentimento nobre!” (Suassuna, 2004, p.75). O Bispo justifica a
benção do cachorro dada pelo padre citando o Código Canônico em falso : “Não
resta nenhuma dúvida, foi tudo legal, certo e permitido.Código Canônico, artigo 368,
parágrafo terceiro, letra b” (Suassuna, 2004, p.89).
A literatura deixa vir à tona a preocupação com o controle da distribuição da
riqueza, pleiteado pelo clero e pela nobreza, transparecendo uma preocupação
crescente na Europa de então, o das emigrações. E entre os emigrantes
encontravam
-se entre outros os judeus aos quais foram atribuídas atividades de
agiotagem. A catalogação então recebida pelos judeus é estendida aos aldeões que
disseminam por toda a Europa, o título de agiota, ou ainda pecadores e hereges.
Segundo PREDERO-
SÁNCHES
49
, as habilidades comerciais comuns entre os
judeus foram tomadas pelos olhos europeus como um sinal de ameaça, ameaça
esta que poderia findar o controle de riquezas pelos nobres e o alto clero. Assim
PEDRERO
-SÁNCHEZ (1994, p.75), em sua obra Os judeus na Espanha demonstra
que o judeu medieval foi estereotipado como “[
...
] avarento, vingativo, covarde, não
trabalhador
[
...
]”, agravado pelo fato de possuir “traços psicológicos de sutileza,
dureza, teimosia, espírito irrequieto e semeador de discórdia”. Na cultura judia o
sucesso financeiro do homem na terra nada ma
is é do que uma compensação divina
pela dedicação aos trabalhos da fé. O tema da avareza aproxima, ainda, as ações
do padeiro e sua mulher às práticas de avareza, da qual foram vítimas João Grilo e
Chicó, seus empregados.
Todas estas características serão aproveitadas por literários que encontrarão
na carnavalização, nas figuras de linguagem, a possibilidade de construir críticas ao
49
Ver PEDRERO
-
SÁNCHEZ, Maria Guadalupe.
Os judeus na Espanha
. São Paulo: Giordano, 1994.
77
modelo de organização social e ou a oportunidade de desenvolver modalidades
literárias, sem que a censura e os tabus da Igreja fossem imediatamente
despertados. Iniciava-se um grande processo de transformações e manifestações
culturais, conduzidas principalmente através das mesclas culturais que as
emigrações e migrações proporcionaram. Autores como Dante
50
e Erza Pound
51
,
citados
na obra de LE GOFF, se destacarão por trabalhar em suas obras estilos
literários que fossem construídos através dos conceitos de estranhamento e de
carnavalização.
A representação de questões a usura, através de obras literárias tornou-
se
uma característica fundamental no contexto medievalista, e traz sentido ao trabalho
de LE GOFF pelo fato da bolsa representar uma noção de valor, tendo como
característica fundamental significar a vida ou a morte, segundo as doutrinas da
Igreja, representa o legado do li
vre arbítrio.
De maneira a reforçar o processo de carnavalização e estranhamento
observamos a seguir, num trecho do trabalho de Erza Pound, no Canto XLV,
também citados no trabalho de LE GOFF (1989, p.99):
COM USURA
não vai a lã até a feira
carneiro não dá ganho com usura
a usura é uma peste, usura
engrossa a agulha lá nas mãoas da moça
E só para a perícia de quem fia. Pietro Lombardo
não veio via usura
Duccio não veio via usura
Nem píer della Francesca; Zuan Belline não pela usura
nem foi pintada “La
Calunnia”assim.
Angélico não veio via usura, nem veio Ambrogio Praedis,
Não veio igreja alguma de pedra talhada
com a incisão: Adamo me fecit.
Nem via usura St. Trophime
Nem via usura Saint Hilaire.
Usura oxida o cinzel
Ele enferruja o ofício e o artesão
E
la corrói o fio no tear
Ninguém aprende a tecer o ouro em seu modelo;
O azul é necrosado pela usura;
não se borda o carmesim
a esmeralda não acha o seu Memling
A usura mata o filho nas entranhas
50
LE GOFF, op., p.93
-
100.
51
Ibid.
78
Impede o jovem de fazer a corte
Levou paralisia ao leito, dei
ta
-
se
Entre a jovem noiva e seu noivo
CONTRA NATURAM
Trouxeram meretrizes para Elêusis
Cadáveres dispostos no banquete
às ordens da usura..
.
A presença do estranhamento e da carnavalização foi a maneira encontrada
por Suassuna, para incorporar o imaginário e o cotidiano do povo nordestino em sua
obra. Ficção e realidade misturam-se, são construídos dentro de um repertório que
possibilite a recepção de seu trabalho por uma gama muito diferenciada de
indivíduos, que retratam, cada qual segundo suas experiências, a mensagem, tanto
no texto/teatro como na TV (no trabalho de Guel Arrares), onde o caráter irônico
também assume significações distintas dada a gama de repertórios identificados na
massa de expectadores que acessaram o auto.
A construção das personagens do texto teatral à minissérie é assunto do
capítulo a seguir, onde serão estabelecidas i
nter
-relações entre a peça e a
transcodificação
televisiva, com,
suas aproximações e diferenças.
79
80
III
A CONSTR
UÇÃO DAS PERSONAGENS
3.1 Do texto teatral à minissérie: o processo de gênesis
-
mimesis
A leitura do texto ficcional possibilita a existência de identificações e alusões
particulares a cada leitor, salientando as indagações e anseios quanto à recepção
do texto, o que nos leva a refletir em estado de cautela,
em
questões como: até que
ponto as interpretações individuais dos leitores são possíveis e aceitáveis, ou ainda
até que ponto o trabalho de construção textual permite interpretações e
identificações
do
receptor
. O processo de recepção projeta a preocupação
simultânea de genesis-mimesis (FLORY, 1994, p.19-25), ou seja, o processo da
criação, análise e processamento da informação.
O texto de Ariano Suassuna tem como preocupação o estado de genesis–
mimesi
s, de criação e recepção. É claramente perceptível a intencionalidade do
autor em transpor a construção do cotidiano e do imaginário popular para o texto
literário. Mas a grande questão observada pelo autor em seu texto/teatro era pensar
como seria possível esta transposição da recepção, do texto popular ao erudito, da
leitura do erudito ao popular.
A resposta para tal questionamento veio justamente pela reflexão da
construção textual a partir da idéia possibilitar
recepção
para um público amplo,
cultos e não cultos. A leitura espelha a fundament
ação
da lógica poética (BULIK,
1990, p.77) 0-2 teorizada por Kristeva. A lógica poética 0-2 (expressão/fantástico)
apresenta
-se como o movimento de transgressão do código lingüístico e da moral
social, gerando uma l
ógica utópica diferente da lógica 0
-1 (forma/conteúdo). No A
uto
da Compadecida
,
no
contexto do fantástico tudo pode ser possível, temas da
realidade e do imaginário se mesclam e deixam transparecer o encontro do
repertório popular e erudito configurando um quadro, cujo repertório é
81
plurisignificativo. A lógica 0-1 configura-se na forma denotativa, designa-se por meio
de sinais, por símbolos, enquanto a lógica 0-2 se expressa pela conotação, que
ocorre por meio da associação de idéias, onde um signo remete a outro, fazendo
com que o sujeito percorra o processo de significância o que possibilita a existência
de um repertório plurisignificativo (FLORY, 1997, p.20), que possibilita ao receptor
associar as idéias do
Auto
ao
s
eu
próprio horizonte de expectativas (a leitura de
mundo,
pode ocorrer
tanto
no eixo sintagmático
como paradigmátic
o)
.
T
orna
-se visível a preocupação com a construção textual, principalmente a
partir do elo que o autor procurou estabelecer entre o texto e o seu receptor,
visualizado desde a criação do repertório. Faz-se necessário, no processo de
decodificação da mensagem, a análise das estratégias da Estética da Recepção,
para compreender o papel fundamental do leitor na concretização do texto bem
como o da interatividade
do leitor com o text
o teatral e televisivo da obra em análise
.
O processo mostra a busca por um receptor, que comungue,
mesmo
num grupo
social díspar, informações que venham a permitir a construção de um repertório,
capaz de atingir
diferentes
categorias sociais e suas respec
tivas experiências.
3.2 Discurso e ideologia: as limitações impostas pelo
enquadramento
Ao determos nossa atenção no
processo
de enquadramento e
contextualização
, torna-se possível observar o percurso artístico gerado pelo
discurso literário de Suas
suna
, com seu repertório pessoal e envolvido por um
contexto específico onde o receptor vai ter que se inserir, através de seus
conhecimentos e quadro de valores, enfim de seu próprio repertório e contexto,
bases de onde partirá para decodificar a mensagem textual. Por intermédio do
encontro dos repertórios do emissor e do receptor formam-se visões, interpretações
diversas, pertinentes ou até aleatórias, demonstrando a possibilidade de
plurisignificações
do texto artístico. Representações desiguais, ou seja
,
apresentações de diferentes interpretações ficam condicionadas a um quadro, a um
recorte
, cujas possibilidades de informações pertinentes do contexto, podem gerar
no receptor, ou em receptores distintos, representações diferentes de um mesmo
82
contexto. Não podemos negar, no entanto, que possibilidades de abordagens
desiguais, provenientes das desigualdades existentes entre os receptores e seus
distintos repertórios.
Produzir uma informação requer o envolvimento de agentes, de
no
minados
por MOUILLAUD (19
97
, p.37-47), como promotores, autores e mediadores, pois são
estes agentes que determinarão, consciente ou inconscientemente, o conteúdo das
informações a serem transmitidas. Mas o que nos chama a atenção é o fato da
possibilidade ou não de visualizar a informação. Os conteúdos informacionais
prestam
-se à divulgação profunda ou artificial dos objetos. O quadro faz-
nos
uma
imposição
acerca daquilo que nos é mostrado, àquilo que nos é permitido conhecer
e entender. O não dito nas entrelinhas, posiciona-nos de maneira a haver uma
reflexão sobre a reprodução do conteúdo, questionando-nos se estamos
presenciando o real ou se a informação oferecida oculta algo, ofertando “parte da
sombra”, ou ainda “o que pode ser visto e o que deve ser visto” (MOUILLAUD,
1997
,
p
.38).
Passamos então a assumir a evidência de um limite no processo de
comunicação. Entramos num jogo de
esconde
-
esconde
, cuja intenção dos
emissores será fazer com que o conteúdo das informações transmitidas
possibilite
ao leitor contextualizar o problema, de maneira que haja a identificação dos códigos
através do repertório proposto entre emissor e receptor, sendo que o primeiro por
sua vez procura
inserir
o leitor
no próprio texto
(MOUILLAUD,
1997
, p.174).
Ainda segundo MOUILLAUD (
1997
, p.39), “[.
..
] a vitrine mostra e esconde, a
palavra diz e não diz [
...
]”. Assim é possível construir a idéia de inexistência do todo,
ou a possibilidade de retratar o fato integralmente. É como um retrato, nós
visualizamos o fato, mas não nos é possível reconstruir o momento real de sua
constituição. Faltam-nos fragmentos que foram possíveis naquele momento,
naquele dado instante. Somos sim capazes de realizar uma releitura, construindo
uma cadeia informativa que, ciclicamente, reconstitui-se e não cessa a
reconst
ituição. Reproduzimos em verdade a superficialidade do fato, impulsionando
um processo que leva o indivíduo ou segmentos da massa a selecionar e legar
dados, que por sua vez constituem um fio que se manifesta na cadeia existencial,
83
evidenciando que a produção da informação é uma constante em transformação,
que levam a diferentes processos de semiotização.
Quando Suassuna observa o nicho cultural popular e o transpõe para o Auto
ele realiza um recorte da cultura popular nordestina. Os cordéis O dinheiro, A
história do cavalo que defecava moeda e Violeiros do norte são recortes do nicho.
Estes recortes são apenas uma parte das buscas, estudos e observações que
Suassuna
realizou
para construir o texto do
Auto
.
É preciso considerar que sempre um resíduo que não foi exposto, muitas
idéias são “perdidas”, desconsideradas ou não encontram um espaço para existirem
no recorte.
Quando
nos
defrontamos com o fato da benção do cachorro, em grifo “´[
...
]
benzer o cachorro [
...
]”, podemos ou não nos defrontar com a estratégia de
estranhamento dentro do quadro descrito. Para àqueles de fé cristã que professam o
catolicismo, a benção de um cachorro pode ser tomada como uma ofensa aos
princípios dogmáticos da Igreja Católica, causando um estranhamento, uma
iron
ização, um desconforto com a situação, com
o
quadro apresentado. Enquanto
que para um mulçumano, por exemplo, o fato de benzer ou não o cachorro é
indiferente, pois em seu cotidiano, entre seus valores, o fato em descrição, não o
remete a nenhuma ofensa co
ntra seus princípios. A situação exposta no quadro, não
faz parte da construção de seu repertório, portanto uma indiferença quanto à
situação descrita.
Resta
-nos salientar que, no texto-teatro de Suassuna, o objeto de informação
é caracterizado pelas discussões políticas, econômicas e religiosas do cotidiano
popular nordestino. Este contexto analisado por meio das estratégias da Estética da
Recepção
permite
-
nos
constatar que Suassuna atinge uma gama muito diferenciada
de receptores, de segmentos diferentes, promovendo um processo de
representação que poderá mudar conforme o ponto de questionamento e a
contextualização histórica.
84
Ao representarmos a imagem ou a informação do objeto, promovemos o
movimento de um fluxo de informações e características que serão representadas
pelos receptores também em movimentos díspares, mostrando que a fragmentação
da representação por si contribui para constituição de outros contextos, que por
sua vez levarão a outras leituras, promovendo um processo cíclico possível através
da intertextualidade emanada do processo de emissão e recepção.
FLORY (1994, p.22) define que:
A natureza polifônica do romance, o uso da ironia, a carnavalização, o
dialogismo e a intertextualidade implicam no questionamento da linguagem
como instrumento de manipulação ideológica. A presença do leitor torna-
se
real como a presença de um `outro´ inserido no discurso do narrador,
providenciando um diálogo entre os planos do enunciado e da enunciação,
que embora conflituoso, possibilitará uma participação ativa do leitor na
presentificação da mensagem ficcional.
As vozes do texto chegam até o receptor pelas personagens pictóricas, com
falas irônicas e carnavalizadas permitindo o dialogismo e a intertextualidade da
obra/autor para com o público. Segundo Suassuna seu trabalho é calcado em
romances e histórias populares nordestinas e enquadrando-se num gênero, o
Auto
popular que se origina na Alta Idade Média, e cuja temática girava em torno de
questões religiosas, principalmente as relacionadas com Os Milagres de Nossa
Senhora (do Séc. XIV).
Assim o Auto, confeccionado entre o drama e a comédia, entre a construção
do profano e do sagrado, do herói que encontra num ícone, Nossa Senhora, a
esperança, a salvação, tanto no plano espiritual quanto no temporal, libertando-o de
toda a sua angústia e desespero. Assim, o herói de Suassuna encontra-
se
respaldado pelo personagem João Grilo que, por intermédio de sua fala
carnavalizada
52
, causa o efeito de estranhamento
53
, segundo FLORY (1997, p. 20) e
KRISTEVA (1969, p.77) no contexto.
52
A carnavalização é um recurso histórico utilizado para atribuir efeito sarcástico, de ridicularização,
que reforça a ironia permitindo a existência das plurisignificações.
MARTIN
-BARBERO, Jesus.
Dos
meios às mediações
. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003, 107.
53
FLORY, op. cit., p.20.
85
Na versão televisiva de Guel Arres, a teoria do enquadramento pode ser
observada em dois momentos. No primeiro temos a condição do quadro, do formato
televisivo de produção, de arquiteturação de um “produto” para a massa
. O espaço é
demarcado e alegorizado em quadros pré-elaborados que darão a idéia de
movimento da obra, movimento observado no tablado do teatro. No segundo
momento
, temos o enquadramento do meio, ou seja, daquilo que o meio permite
mostrar, o trabalho de configuração do cenário passa a ser limitado na inexistência
de recursos históricos no caso, de cenários reais do espaço público.
3.3
A construção das personagens
: e
studo das notas da produção
O próprio corpo, eventualmente, comunica. E não somente por i
ntermédio
do movimento ou da posição que assume. A própria forma do corpo pode
ser uma mensagem e até mesmo a maneira como os traços do rosto se
organizam. (DAVIS, 1979, p.45)
Guel Arraes ao pensar
em
como escolher o elenco para a sua
montagem
do
Auto
, toma o cuidado de buscar uma equipe que atend
esse
à ilustração visual do
que o subconsciente do brasileiro criou a respeito do nordestino, principalmente do
pobre.
Para DAVIS o corpo diz tanto quanto a expressividade. Em seus trabalhos
cita o teórico Ray Berdwhistell que desenvolve um pensamento sobre a aparência
física e a
observa como um “complemento quase sempre culturalmente programado”
(DAVIS, 1979, p.45).
No caso do
Auto da Compadecida
o estudo do corpo/ator foi programado para
preencher as lacunas, ou brancos do texto quanto à imagem do brasileiro, que
busca preencher
com
a figura do nordestino.
“A forma do corpo é outra característica
que pode ser culturalmente programada” (DAVIS, 1979, p.47).
As personagens da narrativa
teatral
foram preparadas para preencher o
imaginário do receptor televisivo, pois na leitura televis
iv
a o arlequim não existe.
CHEVALIER (2002, p.) define como “Arlequim nome que vem da antiga comédia
86
italiana `comédia dell arte´, cujo objetivo original era o de divertir o
blico
,
ridiculari
zando os costumes, esquisitices e extravagâncias da sociedade burguesa
da época (séc. XVI)”.
O Arlequim, cujo tom enunciativo evoca a comicidade sede espaço para o
palhaço, cuja representação volta a um público popular, cujo vocábulo permite a
existência de uma linguagem burlesca. No Auto da Compadecida o palhaço
representa o autor, Suassuna, e prepara o receptor para ler a obra.
Quem abre o espetáculo teatral no Auto da Compadecida é o Palhaço, esta
figura é apresentada sob o toque de
clarim
e a ele é atribuída a função narrativa. A
função do Palhaço não
encerra
simplesmente
o ato de contar a história, mas
antes
assume a função de interagir com o receptor. No texto/teatro
Suass
una
(200, p.15)
sugere que em grande voz o Palhaço anuncie o inicio do espetáculo: “Auto da
Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão (que
não existe na leitura de Guel Arraes), um padre e um bispo, para exercício da
moralidade.” E continua: “A intervenção de Nossa Senhora no momento propício,
para o triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida!”. Na leitura de Guel Arraes,
esta aparição do Palhaço é substituída por grandes gritos de João Grilo e Chicó
anunciando o filme “A Paixão de Cristo”,
anunciando
um filme sobre um homem que
enf
rentou
o exército romano sozinho, que é uma história de aventura e suspense,
onde imediatamente visualizam
-
se as cenas da crucificação de Jesus Cristo.
O trecho citado do texto/teatro prepara o receptor para um espetáculo um
pouco anormal, pois, quando brada que canalhas serão julgados, num primeiro
momento não remete a figuras que deveriam representar a moralidade. Quando se
anuncia que entre os canalhas encontram-se presentes representantes da Igreja, o
receptor é remetido ao estranhamento, e é levado a indagar-
se
no como é possível
que os indivíduos que devem zelar pela moral tenham se envolvido em atos
sórdidos.
O Palhaço anuncia que no devido momento a clemência existirá, será
concedida por “alguém que está mais próximo de todos” (Nossa Senhora) co
mo
consta na fala de João Grilo -
e que
julgará todos igual
mente
, ricos e pobres,
negros
e brancos.
87
A relação do autor com o público fica evidente quando clama que:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o
autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do
que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de
solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou faze-
lo,
baseado no espírito popular de sua gente, por que acredita que esse povo
sofre e tem direito a certas intimidades.
(SUASSUNA, 2004, p.16)
Suassuna pede licença para mostrar e contar para o povo a realidade do
cotidiano. Na fala do Palhaço esse pedido, permite que ele burle o acesso de tantos
e tantos que necessitam de uma intervenção dívida mais do que ele. Quando apela
para o fato de que o povo “tem direito a certas intimidades” esta comunicando que
não há mais a quem recorrer nos momentos de dificuldades a não ser para Deus
(Divina Trindade Pai/Deus, Filho/Jesus e Espírito Santo) e a Nossa Senhora em
seu socorro. O Palhaço prossegue:
Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto é, Nosso
Senhor Jesus Cristo, declara-se também indigno de tão alto papel, mas não
vem agora, por que sua aparição constituirá um grande efeito teatral e o
público seria privado desse elemento surpresa
.
(SUASSUNA, 2004, p.16)
Como se zombando do destino reservado apela: “Auto da Compadecida! Uma
história altamente moral e um apelo à misericórdia. [...] Auto da Co
mpadecida!
Tombei, tombei, mandei tombar! [...] Oi, eu vou alí e volto já. [...] O distinto público
imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para
a rua é à sua esquerda. O resto é com os atores.” Neste momento o Palhaço sai de
cena
, fazendo uso de verso popular, para que o anunciado ao receptor possa
acontecer, o palco é apresentado ao receptor para familiarizá-lo dos primeiro e do
terceiro ato, o primeiro ato ilustra a vida e o segundo
a pós
-morte.
O Palhaço no teatro retorna no segundo ato, no enterro do cachorro – que na
versão televisiva ocorre num cemitério. Ironicamente o Palhaço anuncia:
Muito bem, muito bem, muito bem! Assim se conseguem as coisas nesse
mundo. E agora, enquanto Xereu
54
se enterra, ‘em latim’, imaginemos o que
se passa na cidade. Antônio Moraes saiu furioso com o padre e acaba de
ter uma conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está
54
Na versão televisiva de Guel Arraes, Xereu (o cachorro) é substituído por Bolinha (Cachorra), o
nome mais “comum” dado aos cães permite um referencia a todos os receptores.
88
inspecionando sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em
primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afinal de
contas, representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas
conjunturas e transigências, pois Antônio Moraes é dono de todas as minas
da região e é um homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o
patrimô
nio que herdou, e que era grande, durante a guerra, em que o
comércio de minérios esteve no auge. De modo que vem o bispo. Peço
todo o silêncio e respeito do auditório, porque a grande figura que se
aproxima é, além de bispo, um grande administrador e político. Sou o
primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja, prestando-
lhe
minhas mais carinhosas homenagens.
(SUASSUNA, 2004, p.59
-
61)
Novamente as diferenças sociais são salientadas. A política de
relacionamento social mostra que o acesso a determinados atores sociais acontece
ou não segundo a ocupação do outro, ou a relação de status quo. Ao receptor há o
convite para a reflexão de quem é ele na sociedade e o que representa ou
se
simplesmente é mais um figurante que serve ao sistema. Quando o palhaço se
curva na presença do Major demonstra o grau de inferioridade daqueles que não
estão no circulo dos políticos e socialmente dominantes (a minoria). O trecho revela
a dominação dos coronéis e o reflexo do ciclo do ouro no nordeste, período em a
Igreja desempenhou um papel fundamental, administrou a ordem social.
Como garantir a organização de uma sociedade que vive a realidade das
diferenças sociais, onde intimamente relacionam-se pobreza e miséria. O Palhaço
ironiza falando a respeito do
papel social e político do
bispo, num tom de sarcasmo e
interesse. Na minissérie o receptor perde este contato com o interlocutor. Essa fala
que evidencia a política de relacionamento da sociedade de Taperoá desaparece e
os espaços deixados pela fala do Palhaço passam a ser preenchidos pelo romance
de Chicó e Rosinha. E o palhaço encerra o segundo ato (que narra a confusão
gerada pelo enterro do cachorro) ironizando o bispo quando indaga sobre onde está
o padre (SUASSUNA, 2004, p.61-
62)
:
“Muito bem, olá, como está Vossa
Reverendíssima, como vai essa bizarria...”, referindo-se ao bispo e responde que o
padre “Deve estar na Igreja”, o bispo o repugna o Palhaço e ao mesmo tempo o
padre
. O Palhaço se ausenta: “E agora afasto-me prudentemente, porque a
vizinhan
ça desses grandes administradores é sempre uma coisa perigosa e a
própria Igreja ensina que o melhor é evitar as ocasiões
” (SUASSUNA, 2004, p.62)
.
O Palhaço entre em cena no terceiro ato, para aguçar a percepção do
receptor quanto à cena da morte de João Grilo e de todos aqueles que o Palhaço
89
anunciou como canalhas: “Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a
essa pequena carnificina, mas ela era necessária ao desenrolar da história. Agora a
cena vai mudar um pouco. João, levante-se e ajude a mudar o cenário. Chicó!
Chame os outros” (SUASSUNA, 2004, p. 125
).
Até após a morte a submissão dos
mais pobres, marginalizados socialmente, continua a existir. João Grilo e Chicó são
obrigados a organizar a encenação do julgamento e nenhum dos ilustr
es
representantes da minoria economicamente privilegiada da sociedade ou que exerça
alguma forma de dominação (como a exercida por Severino) ajudam na tarefa.
O Palhaço justifica junto ao receptor a necessidade de reorganizar o cenário:
É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês. Tragam o
trono de Nosso Senhor! Agora a Igreja vai servir de entrada para o céu e
para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas cenas
seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de uma
crença comum no sertão do Nordeste.
(SUASSUNA, 2004, p.126)
Quando o Palhaço ordena que tragam o trono, passamos a observar que ele
nos convida a ver as coisas se organizarem em seus devidos lugares (o estado de
poder é auferido a quem é
de direito, a Jesus) e ressalta a preocupação do autor em
ilustrar o imaginário popular com a lenda dos vaqueiros. E prossegue sua busca ao
imaginário quando aborda a questão da vida após a morte no momento em que
chama para compor a cena todos os que estão mortos. O estado de morte muda
para a condição de vida quando o palhaço indaga “Agora os mortos. Quem estava
morto?” (SUASSUNA, 2004, p.125).
O bispo, o padre, João Grilo, o padeiro, sua esposa, o sacristão (que não
existe na minissérie) e Severino, são intimados pelo palhaço a tomarem seus
lugares, deitados, mortos menos Chicó a quem pede para se ausentar, pois escapou
a carnificina. Na minissérie esta cena é substituída pela transição entre a vida e a
morte, uma cena que lembra o purgatório onde as almas buscam paz através da
oração ou por intermédio de um santo, no caso
Pad
rinho Cícero, considerado um
santo para o povo nordestino
.
Que bem precisada anda disso. Saia e rezar fora. Muito bem, com
toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão oportunidade de
assistir a seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os
90
ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho
certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos,
praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem
mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem
avareza, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco.
Música. (SUASSUNA, 2004, p.127)
O Palhaço convoca o receptor a vivenciar o julgamento, ironicamente
descreve o antônimo das qualidades que deveriam reger a moral e as atitudes das
personagens
. Assim o receptor passa a aflorar no imaginário as possíveis sentenças
que serão atribuídas aos indivíduos que simultaneamente pecaram e c
ometeram
crimes. A idéia trabalhada retoma uma discussão, formulada no imaginário popular,
de que todos os crimes e pecados que passaram impunes em vida serão
sentenciados em morte.
O Palhaço finaliza sua presença quando o julgamento termina, pois fica
in
cumbido de reorganizar o palco para retomar a história no momento em que Chicó
prepara a cova para o enterro do amigo. Guel Arraes usa novamente um carro-
de
-
boi para o transporte do corpo onde Chicó explica que seu amigo por ser pobre não
teve direito a enterro digno, no cemitério, e o que lhe restou foi uma cova comum,
onde seria enterrado como indigente
(como citado à página
62
).
O Palhaço sai de cena despedindo-se e cantando um romance popular, no
qual ele afirma ter se baseado o autor para compor a his
tória da “
Compadecida
”:
Meu verso acabou
-
se agora,
Minha história verdadeira.
Toda vez que eu canto ele,
Vêm dez mil
-
réis pra a algibeira.
Hoje estou dando por cinco,
Talvez não ache quem queira
.
(SUASSUNA, 2004, p.188)
E encerra o espetáculo cobrando do povo humilde, que julga ser seu público,
aquilo que lhe é justo e possível pagar (SUASSUNA, 2004, p. 189): “E, se não
quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é
sempre eficiente: seu aplauso”.
91
No trabalho de Guel Arraes
o
palhaço que desempenha o papel de
interlocutor
, presente no texto original de Suassuna, criando a tensão e preparando
os momentos de reflexão desaparece. O frade e o sacristão também saem de cena,
pois tumultuariam, excederiam o número de narrativas de segundo plano que
deixariam lacunas que poderiam saturar a compreensão dos telespectadores. Estes
elementos cedem lugar a Vicentão, Cabo Setenta e Rosinha, personagens de uma
narrativa secundária que comporão uma relação de proximidade com Chicó,
personagem
da narrativa primária, criando inclusive o par amoroso, indispensável
para prender a atenção do público de massa que é usuário da televisão.
A eliminação do Arlequim faz com que se minimize o aspecto ideológico do
trabalho
de Suassuna. A efervescência do discurso do Arlequim que convida o
receptor a interagir deixa de existir. A TV de um modo geral não pressupõe a
interatividade, normalmente, os produtos televisivos são idealizados para um
receptor que não interage, recebe (em termos). A inexistência da participação do
receptor na TV passa a ser suplantada pelo trabalho de expressividade e pela
visualização do estereótipo do corpo, dos figurinos e dos cenários enriquecidos
pelos recursos e efeitos especiais que estão à disposição da televisão e do cine
ma
.
inevitavelmente uma redução dos vazios, que são preenchidos nas
transcodificações
para a TV e cinema os quais, pelas suas próprias características
midiáticas
, necessitam de uma compreensão mais imediata e da adesão dos
telespectadores e patrocinador
es
.
Para compor o personagem de João Grilo, o ator, Matheus Nachtergaele foi
escolhido justamente por
possuir
os atributos confeccionados no imaginário do
brasileiro
, principalmente no imaginário da região sul e sudeste do Brasil, de que o
nordestino p
ossui
um
bio
tipo
franzino dado condição de pobreza imposta pela seca
.
Suassuna satiriza
a idéia do estereotipo, agregando
atributos como o de
mentiroso e
esperto
,
aflora
ndo
no imaginário popular
, qualidades que possibilitam
uma discussão
sobre o como sobreviver num contexto onde o fator geo-climático e as diferenças
socioeconômicas castigam, simultaneamente, o homem. E o fato de ser “esperto”,
pode garantir um diferencial que permita ao nordestino a sobrevivência. O ator, em
depoimento
, que consta no material editado em CD (filme e minissérie), chama a
92
aten
ção para sua preocupação quanto ao que seu corpo e
su
a expressividade
deveriam repercutir
junto ao público telespectador
:
O que eu quis e não sei se consegui, foi fazer com que João Grilo pareça
desprovid
o de qualquer qualidade, tanto intelectual quanto física, mas que
na verdade fosse mais esperto e com mais condições de sobreviver de que
todos os outros personagens.
(ARRAES, 1999)
O ator conta que se inspirou num menino que havia conhecido em
Jequitinh
onha e da observação dos moradores de Cabeceiras (cidade cenário). O
menino era vesgo (ele adota essa característica para compor João Grilo) e olhava
para outros imaginando-
se
um pobre coitado, mas quando conheceu melhor o
menino e sua vida escolar pode perceber que ele era muito inteligente e adotava
aquela máscara de ignorante”, para se precaver de problemas. Outra observação
do autor está nas leituras feitas de Dom Quixote e Molière, trabalhos que
contemplam a observação do cotidiano do povo e dos golpes que muitos aplicam
para poder sobreviver.
O ator adotou uma prótese dentária para que os dentes ficassem amarelos,
aparentando cáries e tártaro, para lembrar que o brasileiro não consegue incluir em
sua cesta de consumo o atendimento adequado à saúde, nem mesmo a pública. Tal
observação concretizou-
se
quando passou a observar o povo de Cabeceiras, a
cidade/cenário. Segundo Nachtergaele o povo da cidade era humilde, pobre, mas
esperto o suficiente para sobreviver.
A qualidade de malandro, presente na configuração de João Grilo, torna-
se
justificável quando Guel Arraes resgata no Auto a idéia de que o povo brasileiro,
pelo menos a grande maioria é pobre e é formada de sobreviventes”, que travam
uma luta diária pela
vida
,
que é onde a vida vivida é o p
resente
e o futura é sempre
um enigma.
A malícia de Chicó ressalta a idéia de mutação, de que os mais aptos se
transformam e desenvolvem mecanismos para garantir a sobrevivência numa
sociedade caótica e desigual. O malandro, o picaresco, caracteriza a astúcia que o
ser humano procura desenvolver para sobreviver.
93
Já que a
os
heróis picarescos
55
não é permitido o amor
,
Chicó assumirá o lado
romântico que não existe no Auto/teatro com Rosinha e seus outros dois
pretendentes Cabo Setenta
(Aramis Trindade)
e o
Valentão Vicentão
(Bruno Garcia)
,
fruto da inserção do trabalho de Suassuna Torturas de Um Coração”. Estes
personagens assumem a voz do arlequim e dinamizam a trama, preenchendo os
espaços que os receptores
precisariam completar
.
Chic
ó, interpretado por Selton Mello é mentiroso, pobre e covarde. S
uas
empreitadas funcionam quando João Grilo está presente, demonstrando que a
int
eligência do pobre equipara-se à incidência de superdotados na população,
ironizando o estado de ser do povo. Na minissérie,
se
u
romance com Dora, a mulher
do padeiro, concretiza
-
se
com
o adultér
io, uma situação que no texto
/teatro fica vaga,
incompleta, cabendo ao receptor incorporar ou não o adultério. Na minissérie ela é
uma realidade e não
uma
possibilidade.
Rosinha
(Virgínia Cavendish), o par romântico de Chicó, representará a
aristocracia rural junto com o major Antônio Moraes (seu pai, interpretado por Paulo
Goulart
). O major assume a representação do regime r
eal
extinto, monarquista,
aristocrático
e autoritário (
presentifi
ca
a menção visual dada ao coronelismo
extinto
),
que faz questão de estar vivo na sociedade e lembrá-la do status que comporta.
Rosinha surge para dinamizar o espaço do arlequim. O valentão Vicentão, o
malandro, forte, e burro e o Cabo Setenta, franzino, militar e burro incorporam as
narrativas de segundo plano.
O padeiro Eurico (Diogo Vilela) e sua esposa Rosinha (Denise Fraga) são
personagens de primeiro plano na narrativa e representam a pequena burguesia.
São os exploradores da mão-
de
-obra. As atitudes dos patrões criam espaço para
uma discussão marxista sobre a propriedade dos meios de produção e o papel do
proletário. Será a partir desta ótica que a trama nasce para o receptor, a exploração
dos patrões desperta em João Grilo a busca por saídas da condição sub-humana na
qual
vivem
ele e seu companheiro
.
55
O herói picaresco é envolvido como personagem de primeiro plano na trama. Geralmente o
contexto ao qual é inserido, o envolve em situações críticas, mas que acabam por serem resolvidas
dada qualidade de astúcia, esperteza ou sorte que lhe é atribuído. Predomina entre os heróis
picarescos o discurso humorístico, onde se mescla comicidade e ironia.
94
Outra discussão que surge a partir destes personagens é a abordagem do
adultério.
I
lustra
-
se
que no momento do adultério a condição social (o status)
simplesmente é ignorada pela busca do prazer. A condição social é abordada a
partir do enterro do cachorro mostrando que a
necessidade
de consumo e a
satisfação das necessidades estão diretamente ligados aos desejos do povo. No
caso a renda permite suprir uma necessidade, a compra do enterro do cachorro em
latim
que para João Grilo, não passa de um capricho, de um
gasto
supérfluo,
ofensivo quando comparado a sua precária condição social
.
O Padre João (Rogério Cardoso) e o Bispo (Lima Duarte) representam o
poder da Igreja, se não com a mesma intensidade
medieval
56
, ainda presente no
cotidiano dos brasileiros, o suficiente para manutenção da ritualização das práticas
cristãs
. A Igreja não escapa do pecado e da corrupção que o dinheiro provoca,
burlando leis para receber dinheiro.
O
Bispo
somente concorda
co
m o Padre
,
quanto
ao enterro do cachorro em latim, quando sabe que é contemplado com dinheiro no
testamento do cachorro.
O Bispo comete falta muito mais grave
do
que o Padre, pois
este percebe o erro e amedronta-se, mas o Bispo sabendo que iria beneficiar-
se
cala
-se e consente burlando as leis canônicas. O preconceito e o autoritarismo são
expostos, de maneira a relembrar a luta pela conquista do espaço social pelos
negros. O preconceito contra o negro existe no momento em que o público descobre
que Jesus (Maurício Gonçalves) vem figurado como negro, num Brasil que se
pretende branco.
MENDES (1982, p.11), quando estuda a figura do negro em sua obra
A
personagem negra no teatro, lembra que o negro é pensado quase que
predomina
ntemente no plano da escravidã
o.
A participação do negro no teatro em
papéis de primeira narrativa é relativamente pequena. Na TV essa participação
cresce, mas o negro enfrenta ainda muitas dificuldades para assumir narrativas de
primeiro plano.
A figura negra que surge nos textos teatrais (quase sempre são os heróis
personagens
-objetos) não é representada por aquele que está escravizado, mas por
56
A Igreja medieval atribui-se a representação suprema do poder. Todos os fatos do cotidiano ou
aqueles que fugiam dele eram explicados a partir da ótica espiritual.
95
aquele que é liberto e liberta os demais. Sugere discursos ideologicamente
iluministas entre os homens, das diferenças sociais e do conflito de classes, que se
choca com a reflexão do racional e do irracional, do papel de Deus na sociedade
.
No
Auto o negro assume a posição de objeto-personagem, está presente no conflito
principal e é ele que tem o poder de fazer ou desfazer, condenar ou inocentar os
us. O poder outorgado ao Cristo Negro”, como a própria fala do personagem
afirma, vem para escandalizar, causar estranhamento e quebrar aquele paradigma
barroco de leitura do Cristo branco, europeizado.
O cangaceiro Severino (Marco Nanini) e seu capanga (Enrique Diaz),
representa
m a parcela da população que luta contra um estado, uma situação
política e socioeconômica. Na verdade a alusão aos movimentos sociais e
políticos, principalmente o de Canudos, a Antônio Conselheiro e a Lampião, o rei do
cangaço. Severino representa a disputa entre esquerda e direita, entre politicamente
dominantes e dominados. A reflexão emanada dos cangaceiros é a da luta pelo
poder entre uma minoria, pois as massas servem apenas como instrumentos, que
são
manipula
do
s para obtenção de um propósito e quando deixam de ser
necessário
s
passa
m à
condição de excluído
s
e marginalizado
s.
O Diabo (Luis Melo) discute a questão da identidade, o ser e o parecer. O ser
e parecer de João Grilo sugere que mesmo ele sendo malandro, é inocente pela
necessidade de sobreviver a qualquer custo. para Severino a situação é diferente
pois no final da trama é que se conhecem os fatos que poderiam justificar suas
atitudes desumanas pelo fato de um dia terem tirado
su
a família de mod
o
cruel
,
criando um trauma instransponível e levando-o ao crime. O Demônio assume essas
várias faces imorais das personagens e acaba submetendo e corrompendo o
homem
levando-o a atos socialmente reprováveis. Novamente o irracional assume
destaque sob o rac
ional.
No
Auto da Compadecida, temos o Diabo grotesco descrito por LE GOFF
(2002, p.
326
)
como:
[
...
] deve se ver no Diabo grotesco uma forma de compromisso que permite
reintegrar mecanismos de inversão no seio da própria cultura dominante.
Manifesta
-
se,
assim, a complexidade e a ambivalência da figura do Diabo,
96
na qual se mesclam poder e debilidade, terror e comicidade, dominação
social da Igreja e inversão paródica.
No
Auto
,
o
Diabo e Demônio
são
representados pelo mesmo ator
. A diferença
é que quando
ele se zanga e quer d
emonstrar o poder que acredita
exercer sobre os
homens, usa a forma monstruosa disseminada no imaginário popular, ora homem
(Demônio), ora animal (antropoformização - Diabo). Nada comum a este imaginário,
temos uma estratégia de persuasão que causa estranhamento, tornando-se mais
convincente: o
bem
(os Dez Mandamentos) explicados pelo
mal
(o diabo).
Sua
presença no Auto é para ressaltar o pecado, explicado nos dez mandamentos e
exaustivamente proibido pela Igreja. Assim, compreende-
se
a simpatia que esse
personagem provoca no receptor, num primeiro momento (tanto em Suassuna
quanto em Gil Vicente), afinal é ele que denuncia os corruptos o padre, o Bispo,
Dorinha, o Padeiro, Severino e João Grilo.
Pecado _ (lat. Peccatu = transgressão
) _ falta voluntária e consciente a uma
prescrição ou lei, em especial aos Mandamentos da Lei de Deus e da Igreja,
pode ser por palavra, pensamento, obra ou omissão; pela
confissão
sacramental é apagado
. (MAIA, 1966, p.117)
E é
Nossa
Senhora
(Fernada Mon
tenegro)
que surge no
Auto
para advogar
(a
realidade do autor _ o advogado Suassuna _ se mescla à realidade da advogada
dos pobres e pecadores) em favor dos homens, apaziguando o
julgamento
de Jesus
e descaracterizando os pecados duramente arrolados pelo Di
abo.
Ela está no meio
dos extremos (Jesus/Diabo).
A figura de Nossa Senhora remete aos estudos medievais sobre o “amor
cort
ês”. ELIADE e COULIANO (1999, p.101-131), no Dicionário de religiões
,
registram
um
vasto estudo sobre a Dama (despida do pecado e representada por
Maria
, a Mãe de Jesus), pura, despida do amor carnal que tem a permissão de
dirigir
-se à figura da Santíssima Trindade e realizar obras junto aos homens
intermedia
ndo
o diálo
go
junto a Deus. A idéia de Nossa Senhora
interm
e
dia
ndo
o
diálogo
com a Identidade do Santíssimo, criou o viés para que novas Damas fossem
cultuadas recebendo denominações as mais diversas: Nossa Senhora Aparecida,
Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora desatadora
de Nós etc.
97
A personagem de Nossa Senhora assume a condução da trama, advoga
ndo
contra o Demônio/Diabo. Contextualiza o ritmo dos dias, o cenário de vida e as
maneiras de viver, de habitar, de ser e parecer dos seres humanos, da sorte e da
divina providê
ncia
e se compadece do destino dos homens, dos sofrimentos e do
medo que sublinha todos os atos da vida: medo de sofrer, medo de morrer, medo de
perder o amor, o dinheiro, os amigos, a
própria
vida
.
Tanto que, no julgamento, todos conseguem, por intermédio de Nossa
Senhora, auxiliada pela vivacidade de João Grilo reduzir suas penas indo do inferno
para o purgatório, salvo Severino a quem Jesus atestou insanidade, concedendo-
lhe
o céu
devido à
chacina que assistiu
quando seus pais foram mortos
.
Tradicionalmente, a esperança cristã intensa estava na sobrevivência
depois da morte e na recompensa celeste pelos méritos acumulados
durante a vida. Simetricamente, o demérito acarretava a punição no inferno.
O Juízo Final tornaria eternos os castigos e os favores transitórios. A idéia
de purgatório para expiar os pecados veniais apareceu, como
demonstrou Le Goff em Naissance du purgatoire (1981), entre 1024 e 1254,
período que coincide com a extraordinária proliferação de Apocalipses que
descrevia
m uma visita ao paraíso e ao inferno. O mais antigo é Visio Beati
Esdrae, provavelmente do séculoX, seguem-se Visão de Adhmhnan, da
Irlanda (século XI), Visão de Alderico Montecassino (1111-1121), Visão de
Tundale (1149), Tratado do Purgatório de o Patrício (1189), etc. A Divina
Comédia de F
l
orentino Dante Alighieri... (ELI
ADE; OULIANO,1999, p.127)
A idéia do purgatório data da Idade Média e passou a ser utilizada nos autos
para efeito de catequização. Mas no Auto da Compadecida embora João Grilo fosse
o causador de toda a confusão, não passou de um instrumento para que a Divina
Providê
ncia fosse posta em prática. Ao amarelo safado foi dada uma segunda
chance, ironizando o Demônio/Diabo de maneira a colocar o seu poder em
discussão.
Guel termina seu trabalho
m
ostrando a volta de João Gril
o à
T
erra
,
como uma
segunda chance e encerra com o desfecho do casamento de Chico e Rosinha, que
acaba deserdada pelo pai, e mais uma vez o golpe dos amigos cai por terra.
Guel
Arraes fecha com chave de ouro, fazendo uso dos ditos populares, uma inovação d
a
leitura do
Auto
.
Nas cenas finais, Jesus se configura como homem e vem a Terra,
testar a bondade dos homens. Assim, encontra João, Chicó e Rosinha e pede um
pouco de comida e Rosinha lhe um pedaço do bolo de seu casamento com
98
Chicó, mesmo contra a von
tade
de João que acabara de ser absolvido por aquele
mesmo Cristo negro. E complementa dizendo que às vezes Jesus se ves
te de pobre
e vem à Terra testar a bondade dos homens e João retruca dizendo que aquele
homem não corria o risco de ser Jesus, “queimadi
nho daquele jeito”.
3
.4
O cenário
O enquadramento buscado por Guel Arraes deveria remeter o público a uma
leitura do Brasil nordestino, que se lembra de Lampião e seu bando, recorda
ndo
a
pobreza e a humildade do povo nordestino. Deveria também comportar
os
elementos culturais, e embora não exponha o pífano nas cenas, ele está presente
na trilha sonora. São várias as cenas em que o pífano toca e alerta que um
tensão elevada,
prepara
ndo
o telespectador para um desfecho
d
a narrativa.
A musica picaresca, que lembra um ar de malandragem, de brincadeira de
roda, não conseguiu conexão com a própria cidade de Taperoá. O problema da
preservação das fontes históricas, também chegou ao interior nordestino. A cidade
de Taperoá por não guardar mais as características originais não pode recepcionar
as filmagens do
Auto
, que acabaram sendo realizadas na cidade vizinha de
Cabeceiras.
Trinta e oito cidades foram percorridas em dois dias, para que se
enc
on
tr
asse
o cenário ideal para filmagem.
Não que
Ca
beceiras estivesse preservada, mas o fato de conseguir encontrar
pelo menos três ruas que guardavam as características originais da infância de
Suassun
a, levaram a equipe a escolher Cabeceiras que é uma cidade vizinha de
Taperoá
, como cenário do filme. Postes e ruas inteiras foram redimensionados e
preparados para a filmagem. As pessoas do município foram aproveitados e
ensaiados para a figuração.
A
fazenda de Antônio Mo
rais
foi filmada em João P
essoa
e aclimatizada à
cidade de Taperoá”, pela existência de um elemento comum, a existência de uma
planta rasteira comum a ambas
as
regiões.
99
A encenação do “Juízo Final”, segue sugestões do original do texto/teatro,
que convida o uso do espaço público ou da entrada (escadaria) de uma Igreja. No
caso
toda a influência medieval
57
que Suassuna sofre em seus trabalhos é
alegorizada pelo cenário barroco. O cenário do julgamento é preparado no interior
da Igreja.
Os figurinos são criados tendo como base os anos 30. Para João Grilo e
Chicó trapos e chapéu. Para o Padre e o Bispo as túnicas, que seguem a
ascendência hierárquica, a do Bispo é mais vistosa e imponente. Para Antônio
Morais o linho, para Rosinha algodão e rendas. Para o padeiro o traje de trabalho e
um lenço que lhe esconderia os adornos involuntários do adultério. Para
Dora
roupas de cores vivas, que desenham a silhueta feminina, convidando ao pecado,
bem diferentes das de Rosinha. A pintura e o batom vermelho de Dora também
convidam ao pecado. Os cangaceiros ve
stem
-se com trajes de couro retrata
ndo
trajes típicos da região e usados no cangaço. Para o cabo a farda, para Vicentão o
trivial, para Jesus e Maria, muito dourado e azul, que representam o esplendor
divino. O
diabo
ora recebe um manto escuro, viscoso e arcaico (quando homem) e
ora
uma configuração monstruosa que lembra um morcego com cabelos de gueixa.
Cenário e atores são fundidos a um contexto para a visualização e significação junto
ao telespectador.
A construção das personagens na transmutação do texto/teatral para o
televisivo mostra
-
nos a preocupação de
Arraes em escolher os atores certos para os
respectivos papéis, uma vez que a criação dos tipos populares no Auto é
fundamental para a compreensão da obra. Acrescente-se a preocupação com os
figurinos, a simbologia das cores que os compõem e o cuidado com os cenários e
pode
-se perceber que o telespectador fará uma interpretação conduzida pela leitura
do diretor.
57
Quando nos referimos a influencia medieval, não consideramos apenas a composição textual no
formato de auto, nem o teor ideológico da doutrina católica, mas também consideramos a rusticidade
material. Torna-se necessário resgatar a precariedade dos cenários dos autos populares e a riqueza
dos autos natalinos ou destinados a nobreza. Suassuna não realiza simplesmente o resgate da
rusticidade, o autor, apresenta a realidade rude, rústica do sertão nordestino. O processo de
recepção terá intensidade diversa, pois, dependerá do envolvimento do receptor no contexto real que
lhe é apresentado. O impacto da mensagem semais intenso para uns e menos para outros, isto
signi
fica que independe de viver ou não a realidade que nos é apresentada pela plasticidade rústica
do teatro popular de Ariano Suassuna.
100
Os trajes foram trabalhados de maneira a possibilitar uma comunicação não
verbal.
As roupas das personagens foram surrada
s
para evidenciar os ind
ivíduos
des
prestigiados economicamente, faze
ndo
saltar a vista do receptor, o estado de
pobre
za
. Nas notas de produção de Guel Arraes, a diretora de arte comenta sobre a
necessidade de trabalhar o figurino, de maneira a obter um aspecto de
envelhecimento e de sujeira. a parcela mais abastada economicamente, o
figurino é confeccionado em linho e rendas (usou-se aos bordados para toalhas
para compor o figurino de Rosinha), que remetem a idéia de que apenas os coronéis
ou pessoas ricas podiam comprar roupas de linho. O figurino denuncia a classe
social e insinua até mesmo o cárter de alguns personagens, como por exemplo,
o de
Dora. A mulher do padeiro é visualizada pelo receptor, segundo a leitura de Arraes,
como uma mulher fogosa, atrevida, com roupas justas que delineiam as curvas
femininas, sugerindo que não é o figurino mais apropriado, para uma dama que
deveria cumprir as convenções
58
da sociedade de Taperoá.
O desaparecimento de personagens do texto teatral como o Arlequim, o frade
e o sacristão diminuem a possibilidade de confusão por parte do telespectador e o
acréscimo de Rosinha (namorada de Chicó) e seus pretendentes Vicentão e Cabo
Setenta permite a inclusão do par romântico separado pela classe social e
ameaçado por rivais truculentos. A
ssim
s
endo,
os telespectadores aderem ao par
Chico e Rosinha, compartilh
ando
seus problemas e permitindo a interatividade entre
o texto e o receptor.
Constatadas as providências tomadas pelo diretor para montar uma versão
televisiva da peça, evidenciando-se sua leitura pessoal através da construção das
personagens, torna-se indispensável verificar a funcionalidade do espaço em sua
interação com o receptor
, assunto que será desenvolvido no capítulo seguinte
.
58
Essas convenções estão presentes em toda a sociedade, os mais conservadores não admitem que
o corpo humano, principalmente o feminino, seja exposto, pois acarretaria em vulgarização e até
mesmo em pecado, contrariando os preceitos religiosos, onde a mulher é tomada como o espelho de
boas condutas, e para tais reflexos deve se comportar como tal, indicando que a sociedade cobra um
moralismo de uma parcela da sociedade e permite a outra.
101
102
IV
O ESPAÇO COMO INTERAÇÃO COM O RECEPTOR
A interação entre o receptor e a obra, está diretamente relacionada
ao
processo de criação. Quando pensamos no como será absorvida pelo receptor
pensamos no como este contato será arquitetado, o como criar e alegorizar o
contexto
– texto, cenário, figurino, atores, musica –
para gerar significado.
O teatro erudito exige um preparo do público, uma possibilidade de ler a obra
no eixo paradigmático e não apenas no sintagmático. Quando consideramos esta
possibilidade e necessidade do teatro erudito, não podemos afirmar que no teatro
popular a leitura paradigmática não exista, mas predominantemente fica subtendida
no imaginário coletivo e é decodificada num compasso mais lento. O impacto da
mensagem sob o receptor, quando uma peça é representada por atores
profissionais é diferente do causado por atores amadores
.
A leitura dos trabalhos de Suassuna revela a preocupação do como criar uma
obra que permita a existência da recepção, ou no caso de Guel Arraes da audiência,
junto a um público diverso. Outro problema está na possibilidade interpretativa aos
olhos de quem a encenação de
atores
amadores e a de atores profissionais. A
tarefa torna-se laboriosa, principalmente quando consideramos que ler culturalmente
um segmento social é uma tarefa complexa tão quanto definir o que significa a
cultura (BURKE, 1992, p.19
-
25)
.
Suassuna pensa sua obra como um erudito, mas necessita criar uma
possibilidade de recepção que proporcione o relacionamento e a leitura numa
sociedade heterogenia. A leitura que Suassuna faz do contexto popular, será
alterada pela leitura que os atores fizerem da obra. Será o horizonte de expectativas
dos atores, amadores ou profissionais, e ainda a leitura televisiva de Guel Arraes
que estabelecerá o contato com o recept
or.
103
Nesse sentido consideramos que a obra está em vias de reconstrução,
admitindo que o receptor
assimile
a leitura que o autor faz da obra, salvo quando a
proposta de direção, principalmente na televisão, define a trajetória de
expressividade junto ao receptor. O receptor a obra e na obra aquilo que lhe foi
permitido ver
.
Suassuna pretende no Auto da Compadecida explorar e expor uma leitura
cultural que admite a observação do movimento histórico da trajetória humana. A
leitura desta trajetória histórica, segundo BURKE (1992, p.19-25) só é possível
quando lemos nas entrelinhas o cotidiano de uma dada sociedade.
Quando pensamos na história como sujeito em movimento, temos uma
realidade que demonstra que o paradigma de organização social também está em
m
ovimento.
A noção de movimento é citada por BURKE, quando estuda a história
da mulher e do homem, a história dos objetos, a eco-história, de maneira a conduzir
um estudo que permita a visualização do contexto cultural, contexto no qual se
admite a coexistência da realidade de tão diferentes estanques dados como
exemplo.
Esta noção de movimento no teatro, não é possível como nos efeitos da TV.
Na televisão os efeitos técnicos permitem uma elaboração estética (da
expressividade, do cenário, do figurino, da
música
) que causa um impacto de
significância maior. Na TV o recorte do contexto torna-se mais acentuado, pois é
possível refazer a encenação, o que não é possível no teatro, pois pode interferir
na leitura sintagmática da obra, pr
ovocando a perda do mo
vimento.
Percebemos que no Auto da Compadecida, Suassuna pensa sua obra num
contexto em que se admite a história como sujeito em movimento, assim temos
uma
cultura
em movimento. Quanto à definição de cultura, temos a preocupação de
BURKE (1992, p.21) quanto à existência de uma “cultura popular” e a “cultura do
povo”. Para BURKE, a falta de clareza a respeito do tema, em países como o Brasil,
culmina na definição da cultura popular como a “história do dominado”,
assemelhando
-se as idéias de subordinação firmadas no Pacto Colonial. Outra
104
definição está na enunciação da “história vista de baixo”
59
, que presa o cotidiano de
uma sociedade onde não sobrepuja o sujeito e sim as praticas e representações.
Um ponto que nos chama atenção no
Auto da Compadecida
, es
ta relacionado
ao questionamento dos sujeitos envolvidos no contexto religioso. BURKE (1992,
p.22)
aponta que se à Igreja se reveste da função niveladora, de proporcionar uma
melhora nos relacionamentos sociais não seria propício que “Uma história da Igrej
a
vista de baixo deveria encarar a religião do ponto de vista do leigo, seja qual for sua
condição social?”. O espaço no qual Ariano Suassuna discute o social e o político,
o
ambiente de inserção do
povo.
BURKE
visualiza que a sociedade é composta pela
mes
cla
de sujeitos destacados (heróis, reis, políticos) no percurso histórico
àqueles
imersos no cotidiano, e é neste cotidiano que as transformações ocorrem, sem que
sejam percebidas instantaneamente, o movimento do sujeito sociedade, ou da
coletividade é me
nos perceptível
.
No
Auto da Compadecida, esses sujeitos são expostos num contexto,
recortados da realidade social, e depois lidos numa virtualidade a qual chamaremos
de ficção que propõe a exposição do imaginário coletivo, que comporta a cultura de
povos
que constroem uma identidade e que desejam serem percebidos por suas
particularidades.
Quando BURKE se preocupa com a definição da cultura popular
ressalta que o conceito de “cultura” e o termo “popular” guardam particularidades, e
dificilmente
permite
m o esgotamento completo, capaz de comportar uma única
leitura que
as possa fundi
-las num só contexto, que proporcione a definição do todo.
Quando BURKE busca
entende
r,
por uma noção ampla
, o conceito de cultura,
apóia
-se no que Hunt (apud, Burke, 1992, p.23) aponta como a cultura na nova
historia, onde: “O estado, os grupos sociais e até mesmo o sexo ou a sociedade em
si são considerados como culturalmente construídos”. Ao considerarmos que a
sociedade é estruturada, construída, consideramos que os sujeitos a constroem de
maneira à
externalizar comportamentos ou valores que podem estar presentes numa
sociedade e em outra não, que também podem ou não ser aceita por estas
59
Esse novo olhar da história surge do movimento da Escola dos Annales (1929-1989), que foi
considerado como a “Revolução Francesa da Historiografia”, pois contempla a interdisciplinaridade
,
admite a história serial, a longa duração o estruturalismo e o aspecto conjuntural. Ver BURKE (1991).
105
estruturas sociais. Temos formados neste momento diferentes escopos que buscam
interpreta
r a relação entre os sujeitos de uma dada sociedade no momento da troca
de experiências, de apropriação ou de um processo endógeno que tende ao
movimento, sujeitando-se a modificações. BURKE busca em Júri Lotman (apud,
Burke, 1992, p.23) a concretização do conceito de cultura popular quando atenta
que para Lotman que as sociedades estabelecem regras que normatizam a
organização social buscando garantir uma projeção futura da estrutura social,
através da ritualização, da prática cotidiana.
A história social e a prática social são ritualizadas no cotidiano. Os rituais
do
cotidiano ilustram a maneira de comer, falar, vestir, pensar e agir, que para os
próprios praticantes não são visualizados. São apenas olhos de um aguçado
observador, como os de Suassuna, extrínseco à realidade cotidiana, que as toma
como rituais. Este observador tende a expor as práticas cotidianas que para o
próprio grupo tendem a permanecer invisíveis, de que o grupo está em movimento,
em transformação, temos um quadro de pseudo acomodação
ou inalterância.
No espaço de interação, entre Suassuna (sua obra) e o receptor, temos a
visualização do cotidiano através da caricatura contada num contexto que admite a
história vista de baixo, carnavalizada, que através da comicidade reflete o cotidi
ano
.
Para SCARLATTI (p.129) a
[...]
caricatura é a síntese das imperfeições extraídas da
vida real. Não admira, por conseqüência, que ação cômica e sua linguagem
representem um testemunho magnífico dos costumes nas várias épocas”.
SCARLATTI explora no cotidiano a miséria, eleva
ndo
o trágico a categoria de
comicidade. É através da comicidade, que no teatro, o receptor é preparado para
observar a decomposição do tecido espiritual, onde se permite mostrar, expor e
ridicularizar o outro e nunca a si mesmo. SCARLATTI resgata um estudo de Bergon
so
b a obra do filósofo Le rire que considera o cômico no teatro como o momento em
que:
O lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa, esse aspecto
dos acontecimentos humanos que imita pela sua grosseira de um gênero
particular
o mecanismo puro e simples, enfim, o movimento sem vida. O
cômico exprime uma imperfeição individual ou social que perde um corretivo
imediato.
(Le rire, apud Scarlatti, 1945, p.125)
106
O tom cômico que o Auto da Compadecida encerra a exposição do corretivo
observado por SCARLATTI quando resgata os estudos de Bergon
.
É nesse limiar,
comum
quase invisível a percepção popular, que SUASSUNA, resgata a riqueza no
ambiente popular que encerra a coexistência de culturas e crenças diferentes.
Suassuna pretende expor o cotidiano do nordestino, reservando um espaço para
expor elementos comuns a toda sociedade, e o teatro e a TV, permite a exposição
do outro sem comprometimento imediato com o público, permite num primeiro
momento esquivar-se da responsabilidade daquilo que foi exposto através da
comicidade.
Assim o processo de criação mostra a relação direta com a recepção, o
grau de percepção do como cada indivíduo percebe a si mesmo na obra (ou de se
ver/ler no contexto), depende do como o seu c
otidiano é mostrado.
4.1
Da
teatralidade
a obra televisiva
Os artifícios do estranhamento e do enquadramento encontram-se presentes
em toda a obra, pois no trecho do “cavalo bento”, não se configura o impacto do
“ca
uso” estranho do cavalo de Chicó mas se acrescenta a pergunta impertinente e
irônica de João Grilo, que indaga de Chicó se foi ele quem pariu o cavalo que diz ter
tido. Assim o processo de recepção exige do leitor um estreitamento com o fato
citado, envolvendo o receptor num processo de construção mental da cena e
instalando
-se uma ligação ainda maior na recepção do texto. No texto/teatro este
estreitamento é intensificado através do cenário, do trabalho de pré-expressão e da
construção da expressão corporal propriamente dita, adaptada aos d
iálogos
com a
presença do Arlequim que reúne as funções de narrador, e, às vezes, do próprio
coro do teatro grego
,
explicando e sublinhando os fatos
,
além de criar expectativas e
tensões sob
r
e o desenrolar da trama
.
O teatro pode ser visto como um fenômeno da comunicação, uma vez que
pode assumir as características de um espelho, que reflete o contexto do coletivo e,
dentro desse contexto, leva o receptor, individualmente, a ver sua imagem, refletida
e representada no palco, o nosso espelho. Este espelho encerra dentro de sua
moldura um recorte do contexto e conflitos do cotidiano, cuja intenção está
justamente em provocar reações de captação conform
e BULIK (2001, p.49) do que é
107
“[...]
semelhante/diferente, identificado/distanciado, ambos os elementos
c
onfundidos/distintos, da r
elação ator/espectador”.
BULIK
continua explicando que a comunicação teatral pode estabelecer uma
via de duas mãos onde
atores
e espectadores criam e refletem entre si identificação
e consciência, uma vez que se estabelece uma
participação
com
alternância entre
ambos, ou
configuram
um processo de dominação por uma das partes caso não
haja uma constante de alternância na participação, como demonstra BULIK (2001,
p.50):
Pode
-se dizer que não há verdadeiramente comunicação no teatro se não à
medida que se realize uma boa alternância de participação
identificatória/consciência refletida: a relação participação/consciência não
sendo constante, uma das duas partes pode, segundo o caso, mais ou
menos, dominar a outra qualitativamente. Sem dúvida a teatralidade é um
conceito fluído.
E continua (BULIK, 2001, p.50):
No teatro, a comunicação é a ação de fazer participar um indivíduo ou um
grupo de indivíduos (os espectadores) situado(s) em uma época em um
dado ponto (agora na sala de espetáculo) das experiências
stimuli
do meio
ambiente de um outro indivíduo ou grupo de indivíduos (os atores)
situado(s) em uma outra época em um outro lugar (aqui no mesmo
momento e praticamente no mesmo espaço, mas simulando um outro).
O contexto de teatralidade faz-nos pensar no processo de recepção, do ponto
das avaliações, começando por refletir quais são as posturas que os receptores
desencadearão, quais as possíveis a serem feitas dado o quadro do dito e do não
dito
”. Pensar como a informação repercutirá na leitura temporal do receptor, uma
vez que este realizará uma leitura de transposição do tempo do quadro apresentado
para seu tempo de receptor. A informação será processada, segundo a gama de
possibilidades que forem
apresentada
s no quadro, indo de encontro ou não ao
horizonte de expectativas do receptor. Assim o
receptor
é levado,
inconscientemente, a notar que existe algo a ser identificado na mensagem (o
código), para que esta seja completa (representada).
Esses espaços e lacunas do texto consti
tuem
-se em vazios do discurso, a
serem preenchidos para que possam viabilizar a plena leitura da mensagem.
O
texto
108
deve prover seu destinatário de elementos que forneçam uma orientação
conduzindo o receptor à interpretação da mensagem. O trajeto da recepçã
o
televisiva deve ser percorrido sob a orientação do
narrad
or
, dada através de
estratégias, que devem ser representadas e relacionadas, evitando que haja uma
desconexão entre as ações, os objetos e as personagens. A prática do
estranhamento, presente no texto de Suassuna, configura-se como uma chave , que
abre um leque de inferências e analogias, possibilitando a cada receptor sua própria
compreensão da minissérie, segundo seu repertório, sua mundivivência e sua
capacidade intelectual.
4.1.
1
Teleteatr
o
A evolução dos meios de leitura concretizada pelo advento da imagem
proporcionou à população ver e não ler as obras, os jornais e revistas. A leitura
passa a incorporar o movimento, as cores, objetos animados e inanimados, os sons
que eram
criados
pelo imaginário e agora aparecem nos temas das personagens e
espaços criados nas peças televisivas. A TV faz parte da dinâmica da modernidade,
que mostra ao receptor, através de um o processo contínuo, diferentes recursos que
visam tornar a mensagem cada vez mais clara, evitando interpretações aleatórias e
conduzindo o telespectador a conclusões comuns. Eliminam-se as leituras
individuais em prol de uma leitura coletiva, uma vez que a TV, pela sua rapidez, não
deixa muito tempo para reflexões do receptor. O texto teatral é mais livre e a mídia
televisiva tem exigências mercadológicas e de consumo que não permitem muitos
desvios
.
A evolução dos processos de comunicação tornou-se possível com a
modernização d
as diferentes mídias
. Do texto escrito passamos ao tea
tro e ao rádio,
daí
passamos para a era da imagem, do visual,
numa
sociedade de consumo que
projetou a TV, que moldou o cinema, que dinamizou as informações e as ilustrou,
sob diversos ângulos, inclusive pela internet
,
contingenci
ando
a possibilidade de
ve
icular qua
lquer informação e dinamizá
-
la
.
Segundo MARTIN
-
BARBERO e REY:
109
Desde o princípio, a imagem foi ao mesmo tempo meio de expressão, de
comunicação e também de adivinhação e ini
ciação, de encantamento e cura
[...]
daí sua condenação platônica ao mundo do engano, sua
reclusão/confinamento no campo da arte e sua assimilação como
instrumento de manipuladora persuasão religiosa, ideológica, de
sucedâneo, simulacro ou malefício. Inclusive seu sentido estético se
encontra com freqüência impregnado de resíduos mágicos ou ameaçado de
disfarces do poder político ou mercantil. Diante de toda esta longa e pesada
carga de suspeitas e desqualificações é que abre caminho um novo olhar
que, por um lado, descobre a envergadura atual das hibridações entre
visualidade
e tecnicidade e, por outro, resgata as imagísticas como lugar de
uma estratégica batalha cultural.
(2001,16
-
17)
Na visão dos autores, o peso do meio TV, está na “mudança de
discursividade”, e nas “novas competências de linguagem”, para públicos
indifere
ntes,
alienados que não se preocupam c
om o teor ideológico da obra de arte,
mas antes buscam uma ocupação do tempo ocioso, que não cabe numa dinâmica
tecnicista, evolutiva e capitalista. Lembrando que o engendramento da arte situa-
se
no geno-texto onde a “competência da linguagem” é pensada para ser concretizada
no feno-texto, temos imediatamente a preocupação quanto à escolha da mídia para
o contato com o emissor. A mídia selecionada para o contato também seleciona: se
a escolha é a TV, torna-se produto da cultura de massa e não como selecionar o
público; se o veículo for o teatro popular, por exemplo, o de rua (ao ar livre), o
público disposto a observar o espetáculo mostrará que há afinidade com a
mensagem, uma pré-seleção; se o espetáculo for num teatro (espaço/prédio)
público ou privado, tanto o emissor quanto o receptor, simultaneamente,
selecionaram e foram selecionados para o espetáculo. Há nesta última situação uma
busca recíproca.
Transmitir a arte no formato TV exige um estudo profundo, junto ao emissor
para identificar a aceitação ou não do trabalho pelo receptor. Na
montagem
televisiva
de Guel Arraes forte influência do fenômeno que os autores descrevem
por teleteatro
60
, onde são resenhadas algumas manifestações da arte culta como,
por
exemplo, as comédias satíricas adaptadas para a TV e para a leitura da massa.
A princípio, o teleteatro
foi
incorporado à TV pelos colombianos pós 1955, seguida
dos musicais e shows. No Brasil, principalmente na década de 70, o discurso dos
programas de hu
mor
exigia um tom satírico “suave”.
O
momento
inspirava
cuidados
60
Sobre teleteatro ver MARTIN-BARBERO, J.; REY, Germán. Os exercícios do ver. São Paulo:
Senac, 2001. p.123
-
124.
110
para que não houvesse conflito ou perseguição política do regime militar. A ficção
dos textos de teleteatro no Brasil tem sua origem no formato colombiano que aos
poucos
, foi cedendo espaço para o surgimento de novos formatos
televisivos
que
seriam vendidos ao público, por intermédio de anunciantes comerciais. Os
anunciantes introduziram-se na mídia televisiva por meio de estratégias comerciais
de
merchandising
61
, medidas pelo IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública),
MARPLAN, na década de 50 e 60 pela CIESPAL (Centro Interacional de Estudos
Superiores de Educação para América Latina).
O problema do formato está justamente no valor ou custo da produção, que
limita a construção e término da trama à possibilidade de financiamento.
A
programação diária do teleteatro permite a existência de uma programação dos fatos
a serem narrados e para que o que receptor/consumidor sinta-se atraído a continuar
assistindo ao programa no dia seguinte. É preciso criar um tensor, um momento de
suspense que deve desencadear um estado de alerta que prenda o telespectador ao
programa.
O tensor (“brake”), ou motivo de ligação de uma cena a outra, de um capítulo
a outro cria a expectativa, suscitando a necessidade de continuar acompanhando a
trama. Mesmo que o receptor perca um capítulo, este terá condições de recuperar o
enredo, resgatando a ligação e a comunicação com o objeto,
o que se torna
possível
pela inserção das “chamadas”. As chamadas estão presentes nos comerciais e
m
a função de lembrar onde a obra foi interrompida, fazendo um breve apanhado do
capítulo através das cenas terminativas, ou seja, das cenas que comportam
desfechos de idéias ou situações. É
importante
colocar que um traço do
teleteatr
o que se assemelha ao modelo de literatura de cordel, também se utiliza da
tensão diária dos capítulos
oferecidos
aos leitores
pouco a pouc
o
.
Quando o
Auto
passa a ser pensado como adaptação televisiva, Suassuna
teve
um
a grande preocupação em não deixar que elementos de
merchandising
distorcessem a integridade da trama. Como presença maciça de
merchandising
nas telenovelas brasileiras, Suassuna exigiu que essas interferências não viessem a
61
Ibid., p.67
-
68.
111
ser incorporados na leitura televisa do Auto, para não dividir o espaço com suas
personagens. Suassuna é contra o relacionamento de marcas e produtos
mercadológicos
com a produção artística. Para
Suassuna
, a TV contemporânea tem
contribuído para deterioração da cultura de raízes, com a inserção da cultura de
massa
da sociedade de consumo americana, acelera
ndo
a desconfiguração da
s
raízes nacionais. Suassuna recusou-
se
a receber os
prêmios
Sharp e Nestlé, e
,
embora
não discrimine quem o faça, simplesmente não quer se sentir
ligado
ao
merchandising
”. Suassuna não é contra a TV, é contra o formato e a ideologia
puramente consumista que não se preocupa com a preservação da
memória cultural
de uma nação.
Em entrevista
,
Suassuna diz:
Contra a cultura americana eu não tenho nada, eu gosto muito de Herman
Melville, o autor de Mobydick; agora querer que por causa de Melville eu
aceite um imbecil como Elvis Presley, Madonna, Michael Jackson, esses
idiotas completos. Eu vou lá baixar meu nível para esse pessoal? Ah! Tenha
paciência. (ROSCHEL, Renato, 2002, disponível em
www.
speculum.art.br/module.php?a_id=91)
É uma arte pensada da elite capitalista para uma sociedade de massa que
comprará bens e serviços da indústria cultural, encontra
ndo
na arte um subterfúgio
para se sobressair
sobre a
concorrência
,
na busca
de
consumidor
es.
A
programação
permanece,
em função do consumo, pois o patrocínio garante a exposição do
programa. Se por exemplo o IBOPE cair, o patrocínio é retirado e a novela deve
acabar.
O formato minissérie permite a
organização
da trama em um espaço/
pré
-
deter
minado, sendo gravada do começo ao fim, o que lhe possibilita maior unidade e
coerência interna. O fluir da trama não irá depender da menor ou maior audiência
para diminuir ou aumentar a sua duração e a importância ou permanência das
personagens.
D
iferente
s formatos de programas como, por exemplo, jornais,
programas humorísticos, minisséries, dividem o mesmo espaço na mesma emissora
e o IBOPE determinará os que irão permanecer e os que se tornaram inviáveis
.
Obras literárias clássicas e modernas (com ou sem qualidade artística) transitam no
formato das novelas às minisséries, cujo público alvo ainda é o da sociedade de
consumo, que encontra à sua disposição o trabalho exibido em outros formatos
próprio
s para o consumo, como fitas de VHS ou CD/DVD (Compact Disc/ Digital).
112
Neste ponto temos a
tecnologia moderna
, transformada em realidade de mercado,
o
que leva os profissionais da arte a se incluírem, voluntária ou involuntariamente, no
mundo capitalista.
A arte também tem custos e por isso precisa ser valorizada e, como todos os
bens e serviços, trocada por seu valor de uso e expressividade. No caso do
Auto
o
sucesso
da versão
para
TV de Suassuna era previsto
pelo
próprio
Arraes,
em
notas extras
,
editadas na versão CD:
A idéia de adaptar o Auto da Compadecida para o cinema e a televisão é
antiga [
...
] Para mim este trabalho é pessoalmente muito importante, porque
eu e o Ariano tínhamos uma espécie de acordo palavreado, de que, um dia
eu faria o Auto. Ariano sempre me dizia, e eu achava que era meio na
brin
cad
eira, mas ele falava bastante sério, que cederia o auto para mim.
Ele cumpriu a palavra e me deu total liberdade. Então quando o Daniel Filho
me perguntou qual o texto que eu queria adaptar, respondi baixinho, o
Auto... Porque tudo que a gente quer muito, tem também muito medo de
fazer.
A fala de Arraes deixa clara a preocupação com o planejamento do
investimento que seria utilizado para a adaptação e produção do
Auto
. Pesquisas de
mercado, envolvendo o público e a equipe de produção cerc
aram
a pré-
elaboração
do projeto para mídia visual e se Suassuna não permite a inserção
de
“merchandising”
na obra, durante o intervalo os comerciais foram inevitáveis para
permitir a existência e veiculação
do programa
.
4.2 Contexto
: as possibilidades na lingu
agem literária
Ao observarmos o texto de Suassuna é possível notar a presença da ironia
como elemento de transformação intencional do conteúdo (HUTCHEON, 2000,
p.207)
. O
rganizado
através de diálogos em prosa percebe-se que Suassuna faz uso
de uma linguagem esteticamente trabalhada (popular, carnavalizada e irônica), que
é transposta, na medida do possível, para o texto televisivo, configurando-
se
cenas
que constroem, simultaneamente, a discussão do político, do social, do cultural
(explicitando as discuss
ões religiosas) e do econômico.
113
Como exemplo, observamos a passagem em que João Grilo e Chicó tentam
convencer o padre João Benzer a cachorra (SUASSUNA, 2004, p.23):
Padre: (aparecendo na igreja) Que há? Que gritaria é essa?
Chicó: Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa
aqui para trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.
Padre: Para eu benzer?
Chicó: Sim.
Padre: Que Maluquice! Que besteira!
João Grilo: Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze por qu
e
benze, vim com ele.
Padre: Não benzo de jeito nenhum.
Chicó: Mas padre, não vejo nada de mal em benzer o bicho.
João Grilo: No dia em que chegou o motor novo do Major Antônio Moraes o
senhor não benzeu?
Padre: Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é
que eu nunca ouvi falar.
Chicó: Eu acho cachorro uma coisa muito melhor que motor.
Padre: É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro.
Benzer motor é fácil, todo mundo faz isso; mas benzer cachorro?
João Grilo: É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e
uma coisa é benzer o motor do Major Antônio Moraes e outra é benzer o
cachorro do Major Antônio Moraes.
Padre: Como? (mão em concha no ouvido)
João Grilo: Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do Major
Antônio Moraes.
Padre: E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio
Moraes?
João Grilo: É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse,
mas o Major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de
perder meu emprego, fui forçado a obedecer; mas disse a Chicó: o padre
vai se zangar.
Padre: (desfazendo-se em sorrisos) Zangar nada, João! Quem é um
ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também
vocês não tinham dito
de
quem era o cac
horro
!
João Grilo: (cortante) Quer dizer que benze, não é?
Padre: (a Chicó) Você o que é que acha?
Chicó: Eu não acho nada de mais!
Padre: Nem eu. Não Vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de
Deus!
João Grilo: Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo
mundo satisfeito.
Padre: Digam ao Major que venha. Eu estou esperando (Entra na Igreja)
A circunstancia mostra
que
a enunciação do texto enquadra um fato comum à
realidade católica, o ato de benzer. Suassuna mescla a leitura do ato bíblico de
benzer (abençoar), com a leitura das obras de São Francisco, tomado como protetor
dos animais. A ironia não está no dilema de benzer um automóvel ou um animal,
mas no fato de quem tem a posse do que deve ser abençoado. Quando o padre é
indagado
a respeito da benção do cachorro disse que não benzeria o cachorro, mas
quando Chico e João Grilo inventam que o cachorro é do Major Antônio Moraes
,
transmite a idéia de que ficou em dúvida sobre se benzia ou não o animal. Q
uando
114
lhe é declarado que o proprietário do animal é o Major, ele resolve benzer e se
certifica de que não está fazendo nada de anormal quando indaga João Grilo e
Chicó que confirmam (com segundas intenções) de que não havia nada de errado.
HUTCHEON (2000, p.205)
mostra
-
nos
que o agrupamento e a discussão de
vários ângulos do contexto tornam-se possíve
is
, graças à existência de três
elementos: “o circunstancial,
o
textual e o intertextual”. No circunstancial temos os
elementos enunciativos que tornam possível a significação irônica
,
no elemento
textual cria-se a base de recorte para o enquadramento e, no intertextual, formado
pela leitura do autor, do texto com outros textos, da trama, dos atores e cenários,
configura
-se uma fusão que possibilita o “refazer” do texto. Uma peça de teat
ro
ou
um trabalho televisivo, mesmo que
respeite
a idéia do autor, já não é a original, pois
é um outro (ou outros), realizando uma leitura da obra que comporta concepções e
influências diferentes. O que se pretende mostrar não é igual ao que foi mostra
do
,
o que se pretende explicar ou
revelar
no quadro
/enquadramento
(na história, no
cenário, na tela da TV)
é novo, é moderno.
O trabalho de
Suassuna
permite
que a leitura de um texto, para não ser
considerada plágio, precisa ser reestruturada
incorporand
o-
se
à leitura do autor e
seu
s horizontes de expectativa. A partir desta concepção, Suassuna introduz o
ele
mento do fantástico, necessário para criar a ligação e a interatividade entre
autor/história/receptor,
mexendo
com o imaginário do receptor por intermédio do
sobrenatural
e
torna
ndo
mais acentuad
a
a relação entre emissor
e receptor
.
Em o Auto da Compadecida, Suassuna nos transmite a
preocupa
ção
com a
leitura, ou com as possíveis leituras, que sua obra venha a proporcionar. A intenção
é possibilitar ao receptor, cada qual segundo seu repertório e dentro de um quadro
sócio
-temporal e histórico
,
o conhecimento dos valores intrínsecos atribuídos ao
texto
, mergulhando num ambiente de plurisignificações, advindo da interação
texto/receptor
e de suas dife
rentes releituras.
Quando observamos o caráter plurisignificativo do Auto da Compadecida
,
compreendemos a possibilidades de não entendimento do código,
o
que
geraria
uma instabilidade na recepção da mensagem. O não entendimento, o discurso
115
irônico e cheio de sub-
entendidos,
a desconexão da leitura linear da mensagem,
faz
em
com que os leitor
es
procurem uma ligação ainda mais íntima com o texto. O
receptor procurará decifrar o código e entender a sua representação. Segundo
FLORY (1994, p.34-38) é como estar num labirinto e a chave para a saída depende
exclusivamente da interpretação dos códigos. Tomemos por exemplo a passagem
do texto onde há a morte de João G
rilo seguida de sua ressurreição
.
Para os cristãos seria um desfecho que corrompe o mistério da morte (3º ato
da peça), quando explicados do viés sobrenatural, pois como poderia um mortal
ressuscitar? A explicação ocorre no momento em que é suscitada a possibilidade do
livre arbítrio, de poder escolher outros caminhos, se uma nova chance de
permanênc
ia na terra fosse concedida a João Grilo e que só poderia ocorrer naquele
tempo/espaço
, num mundo ficcional, mítico e “maravilhoso”. Num primeiro momento
causa estranhamento o fato de um “amarelo safado” ter o direito a uma outra
chance
. No entanto, no âmbito do “fantástico”, do milagroso”, o acontecimento
inusitado será imediatamente creditado aos mistérios divinos e à complacência de
Jesus Cristo, por intermédio de Nossa Senhora. A ironia está centrada na chance
dada
, justamente a João Grilo, o causador de toda a confusão da trama. Para os
céticos
, que são cientificamente céticos, a criteriosos, não passaria de um fenômeno
natural de perda dos sentidos, ocorrendo o retorno quando as funções vitais
novamente se equilibram mas, para os cristãos, principal
mente
para os católicos
,
representa
a manifestação divina.
Num
trecho, entre João Grilo e Chicó, é possível notar o artifício do
estranhamento e da ironia ( SUASSUNA, 2001, p.25
-
27):
João Grilo: E ele vem mesmo? Estou desconfiado Chicó. Você é tão s
em
confiança!
Chicó:
Eu, sem confiança? Que é isso João, está me desconhecendo? Juro
como ele vem. Quer benzer o cachorro
da mulher para ver se o bicho não
morre. A dificuldade não é ele vir, é o padre benzer. O bispo está aí e tenho
certeza de que o Padre
João não vai querer benzer o cachorro.
João Grilo:
Não vai benzer? Por quê? Que é que um cachorro tem demais?
Chicó:
Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas,
mas não é nada demais. Eu mesmo já tive um
cavalo bento
.
João Grilo: Que é isso Chico. Já estou ficando por aqui com suas histórias.
Sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação, vem
sempre com ‘não sei, só sei que foi assim’.
Chicó:
Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou
fazer? Vou mentir
, dizer que não tive?
116
João Grilo: Você vem com uma história dessas e depois se queixa porque
o povo diz que você é sem confiança.
Chicó:
Eu, sem confiança? Antônio Martinho está aí para dar provas do que
eu digo.
João Grilo:
Antônio Martinho? Faz três anos
que ele morreu?
Chicó:
Mas era vivo quando eu tive o bicho.
João Grilo: Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o cavalo
,
Chico?
Chicó:
Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de
nada. No mês passado uma mulher teve um na serra do Araripe, para os
lados do Ceará.
João Grilo: Isso é coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ninguém pode
ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais barata e é coisa que
se pode vender.
Novamente temos o estranhamento, no ato de ter um cavalo bento (1º ato da
peça), pois para os c
ristãos
como poderia haver um cavalo bento? A situação foge
às práticas e rituais permitidos pela Igreja.
A ironia
está
no fato de pensar como dois sertanejos pobres como João Grilo
e Chicó poderiam ter um cavalo bento.
Mas a ironia do discurso
vem
da comparação
entre o nascimento de cavalos e de seres humanos, que convida a refletir sobre o
comércio de crianças no nordeste. Suassuna denuncia o problema da venda de
crianças no nordeste que é justificada pela necessidade de dinheiro para sustentar
geralmente uma numerosa família. Há o questionamento do comércio de seres
humanos que desperta e convida a pensar no valor atribuído ao ser humano. Que
valor há no “homem” que compra ou naquele que simplesmente se transforma numa
fábrica de produzir o produto ser humano? A fome e o desespero poderiam justificar
tal atitude? Suassuna denuncia que o desespero e o ato de vender o “filho” é
produto da passividade política e do desinteresse pelo bem
-estar do povo brasileiro.
Novament
e João Grilo e Chicó criam atenuantes que formam o contexto para
existência da ironia, na passagem que trata da farsa do enterro do cachorro (1º ato
da peça) em latim. Como, poderia um Padre enterrar um cachorro, e em latim? A
atrapalhada situação que João Grilo criou para a personagem do Padre, juntamente
com seu superior o B
ispo
,
leva
-
nos
a uma segunda situação de engano após a farsa
do
cavalo bento. No momento em que João fala no testamento do cachorro morto e
convence o padeiro e sua esposa de que dessa maneira conseguiriam enterrar o
cachorro em latim, todos se espantam pois sabiam da avareza do casal para com
seus empregados:
117
E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em
cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o
cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim nada, João Grilo
que
se danasse. Um dia eu me vingo
.
(SUASSUNA, 2001, p.39)
Chicó ainda tenta convencer João Grilo de que aquilo não era correto.
João
,
no
entanto
, estava decidido a se vingar e vai até a igreja para enganar o padre e
começar sua vingança. O padre, que num primeiro momento rejeita a idéia do
enterro em latim, se convence quando pensa que o cachorro é do “Major Antonio
Morais”. O Padre se sentirá realmente atraído pela idéia da benção, quando
passa a conhecer a herança deixada pelo cachorro, na qual estava incluído, e fará o
enterro em latim, que será descoberto pelo bispo (2º ato da peça).
João Grilo, vendo-
se
em uma situação crítica pelo fato de ter exposto o Pa
dre
a várias confusões, acaba por se envolver em uma série de mentiras gerando
enganos e confusões.
Quando no texto teatral o Major vai pedir uma benção para
seu
filho
doente,
(que na minissérie se transforma em f
ilha
, representada
por Rosinha),
o padre
acaba
entendendo que a benção é para o cachorro (na minissérie cachorra), pois havia
sido enganado por João Grilo. A confusão é obtida pelo fato de estar oculto o sujeito
para
o qual se destinaria a benção. Neste momento temos um repertório
carnavaliza
do na fala do Padre e do Major, (SUASSUNA, 2001, p.43):
Antônio Morais:
Ah, padre estava aí? Procurei
-
o por toda parte.
Padre:
Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio Morais na Igreja!
quanto tempo esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus!
Ant
ônio Morais: Seria melhor dizer logo que faz muito tempo que não
venho à missa.
Padre:
Qual o que, eu sei de suas ocupações, de sua saúde...
Antônio Morais:
Ocupações? O senhor sabe muito bem que não trabalho e
que minha saúde é prefeita.
Padre:
Ah, é?
Ant
ônio Morais: Os donos de terras é que perderam hoje em dia o senso
de sua autoridade. Vêem-se senhores trabalhando em suas terras como
qualquer foreiro. Mas comigo as coisas são como antigamente, a velha
ociosidade senhorial.
Padre:
É o que eu vivo dizendo, do jeito que as coisas vão, é o fim do
mundo. Mas que coisa o trouxe aqui? sei, não diga, o bichinho está
doente, não é?
Antônio Morais:
É, já sabia?
Padre:
Já, aqui tudo se espalha num instante. Já está fedendo?
Antônio Morais:
Fedendo? Quem?
Padre:
O bichinho!
118
Antônio Morais:
Não que é que o senhor quer dizer?
Padre:
Nada, desculpe, é um modo de falar.
Antônio Morais: Pois o senhor anda com uns modos de falar muito
esquisitos.
Padre:
Peço que desculpe um pobre padre sem muita instrução. Qual é a
doe
nça? Rabugem?
Antônio Morais:
Rabugem?
Padre:
Sim, vi um morrer disso em poucos dias. Começou pelo rabo e
espalhou
-
se pelo resto do corpo.
Antônio Morais:
Pelo rabo?
Padre:
Desculpe, desculpe, eu deveria ter dito `pela cauda´. Deve-
se
respeito aos enfer
mos, mesmo que sejam os de mais baixa qualidade.
Antônio Morais: Baixa qualidade? Padre João, veja com quem está
falando. A igreja é uma coisa respeitável, como garantia da sociedade, mas
tudo tem um limite.
Padre:
Mas que foi que disse?
Antônio Morais: Baixa qualidade! Meu nome todo é Antônio Noronha de
Brito Morais e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos, ouviu?
Gente que veio nas caravelas, ouviu?
Padre:
Ah bem e na certa os antepassados do bichinho também vieram nas
galeras, não é isso?
Antônio
Morais:
Claro! Se meus antepassados vieram, é claro que os dele
vieram também. Que é que o senhor quer insinuar? Quer dizer por acaso
que a mãe dele...
Padre: Mas, uma cachorra!...
Antônio Morais:
O quê?
Padre:
Uma cachorra.
Antônio Morais:
Respeita.
Padre
:
Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra mesmo?
Antônio Morais: Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é um
padre e eslouco, mas vou me queixar ao bispo. (A João.) Você tinha
razão. Apareça nos Angicos, que não se arrependerá.
A ironia está justamente na capacidade de um analfabeto, considerado burro,
“amarelo safado” conseguir enganar pessoas
tidas
como
elite da sociedade de
Taperoá, e por que não da sociedade brasileira. O prolongamento da ironia está no
fato de que o Padre e logo depois o Bispo, mostram sua benevolência quanto
ao
ca
so do enterro do cachorro em latim, principalmente por saberem que terão uma
régia recompensa em dinheiro, o que justifica tudo (2º
Ato da peça)
.
Existem outros questionamentos no contexto
textual
como, por exemplo, o
fato de que o dinheiro compra tudo até mesmo um sacramento. corrupção em
qualquer esfera da sociedade, no serviço público, privado e até mesmo no religioso
,
que
é eficiente e
mais rápido
para os
de
dinheiro
ou prestígio político.
O diálogo citado deixa transparecer a questão da hierarquização da
sociedade civil no Brasil. O padre é submisso ao Major e ao Bispo que representam
o ápice da pirâmide de uma sociedade medieval, organizada em castas, onde o alto
119
clero e a nobreza compactuam com o poder político. A base é composta pelos que
oram e trabalham, ou seja, pelos que servem aos senhorios aristocráticos e clericais.
No momento em que o Major refere-
se
à Igreja como a responsável pel
a
manutenção da ordem social,
cita
-a para relembrar o papel da Igreja para a
manutenção da ordem social em favor de uma minoria. O discurso ideológico da
doutrina é colocado como o principal fator de submissão da massa. um segundo
momento quando ele reafirma o pacto da Igreja com a aristocracia, lembrando a
o
padre sua origem, e que de faz parte do pacto. Para HOLANDA (1995, p.86),
“Tradicionalistas e iconoclastas movem-se, em realidade, na mesma órbita de
idéias”.
A atitude do Major é resquício do que HOLANDA (1995, p.89) chama de
“ditadura dos domínios rurais”, herança do Brasil Colônia, período em que o poder
político estava centrado no espaço rural. O padre está no meio da pirâmide, entre o
topo e a base, junto aos guerreiros, como o agente incumbido das tarefas delegadas
por seus “sagrados” orientadore
s terrenos
,
o alto clero e a aristocracia.
Quanto à tão refinada estirpe portuguesa que veio
para o Brasil nas caravelas
e à falta de pré
-
disposição ao trabalho, são ilustradas por HOLANDA (1995, p.39):
Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se
ajustasse bem a uma reduzida capacidade de organização social.
Efetivamente o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente
poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a
organização racional dos homens e
sustenta
a coesão entre eles. Onde
prevalece uma forma qualquer de moral do trabalho dificilmente faltará a
ordem e a tranqüilidade entre os cidadãos, porque são necessárias, uma e
outra, à harmonia dos interesses. O certo é que, entre espanhóis e
portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não
admira que fossem precárias, nessa gen
te, as idéias de solidariedade.
Nos Autos espanhóis e portugueses, como os de Gil Vicente, a figura da
aristocracia aparece sempre vinculada às orgias e ao desapego pelo trabalho.
Segundo a política de organização social, esta tarefa pertencia aos vassalos ou
escravos. No Brasil houve uma dificuldade muito grande em relação à escravização
dos índios, o que deu margem à inserção do trabalho escravo do negro. Quando o
Majo
r diz que as coisas não são mais como antes, está fazendo referê
ncia
à
120
abolição da escravatura, que deu margem a um outro processo de dominação, o
coronelismo. A figura do Major representa a política coronelista, quando afirma que é
diferente dos outros fazendeiros, por que preserva a tradição. No coronelismo o
indivíduo está muito próximo da relação de servidão, se não o for de escravidão.
A ironia está em pensar a situação frente aos dogmas da Igreja, pois se todos
os homens são iguais perante Deus, por que tanta desigualdade social? Por que
alguns têm o que comer e outros não, por que um cachorro merece mais um
prato
de comida do que um homem? Assim os zelosos guardiões da sociedade estariam
quebrando o que Deus estipulou, segundo o Evangelho de Matheus (EDIÇÕES
PAULINAS, 1986, p.7) como a “regra de ouro” que expressa a palavra de Deus
dizendo: “Tudo o que vocês desejam que os outros façam a vocês, façam vocês
também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os profetas”. Os atos de João Grilo nada
mais são do que retribuições dos atos que os “outros” fazem ou deixam de fazer
com ele e com os outros “amarelos safados”, pobres, analfabetos e famintos.
Quando o Padeiro faz João Grilo trabalhar quase como um escravo, o padeiro não é
chamado de “safado”, nem tão po
uco o Major quando
se revela um
tirano.
Como nos exemplos anteriores, a ironia está presente praticamente em todos
os episódios do Auto. E a carnavalização neste episódio do enterro do cachorro
surge justamente pelo desencontro dos discursos do Padre e do Major. As falas
tornam
-se distorcidas, assumem um tom de agressão satírica, junto às figuras que
deveriam organizar a sociedade e zelar pelo bem
-
estar coletivo.
O momento marcante da ironia no
Auto
concentra
-
se
no “Julgamento Final”,
no “Tribunal das Almas”. Após o episódio do enterro do cachorro, João aplica outro
golpe no Padeiro e em sua mulher. Vende-lhes um gato que segundo João Grilo
“descomia” moedas. Quando o Padeiro descobre que foi enganado e que o gato não
“descomia as moedas”, ameaça tirar a vida de João Grilo. É no momento do apuro
com o Padeiro e sua mulher que teremos a inclusão do cangaceiro Severino e sua
tropa no enredo.
No trabalho de Guel Arraes, a história se avoluma com a entrada de três
personagens, O Cabo Setenta, o Valentão Vicentão e Rosinha (a mocinha e par
121
romântico de
Chic
ó). O enfoque romântico da trama fica com Chicó e o com João
Grilo u
ma vez que, personagens picarescos como
ele
não devem desenvolver o lado
sentimentalista, por correr o risco de perder o ar satírico.
E
sta
abordagem é
feita
apenas na minissérie (considerada uma inovação na
leitura da obra, bem diferente das outras leituras cinematográficas existentes) e
contribuiu para uma nova situação irônica, em que o franzino vence o gigante. A
personagem de Rosinha promove o envolvimento de Chicó, Cabo Setenta e
Vicentão
, que serão enganados também por João Grilo, tentando a todo custo
ajudar o amigo Chicó a se casar com Rosinha. É claro que Guel Arraes não deixaria
a qualidade de interesseiro de João Grilo de fora da cena. João espera que, com o
casamento de Chicó com Rosinha (na trama, filha do Major Antônio Morais), ambos
saiam da miséria.
A disputa por Rosinha acontece através de um duelo, onde João Grilo inventa
um duelo em trio, mas sem deixar que Vicentão e Cabo Setenta desconfiem que
estejam
sendo convidados para o mesmo duelo. No momento do duelo, Rosinha
est
á presente e diz a João Grilo que amava tanto Chique preferia um covarde
vivo a um valente morto. Quando Chidesconfia que não terá por onde esc
apar,
inventa que o amor de Rosinha será daquele que ficar vivo após o duelo. Chicó
põem
-
se
em pé, entre Vicentão e o Cabo Setenta, que caminham em direções
opostas e de costas um para o outro, quando João Grilo grita que era aquele o
momento de atirar, para surpresa de todos os dois correm e ficam caracterizados
como covardes diante de Rosinha que entrega seu amor a Chicó. A cena lembra a
passagem bíblica ente David e Golias. A falsa valentia atribuída a Chiespalha-
se
pela cidade, que no duelo ele não corre e fica entre o Cabo Setenta e Vicentão.
Numa cena onde Chicó aparece dizendo primeiro ao Padeiro e logo após gritando
em praça pública que era mesmo valente e que
enfrentaria
se fosse necessário, até
mesmo o cangaceiro Severino, entra em cena o próprio
cangaceiro
, que o aborda
convidando
-o a repetir a oratória de valentia que ele acabava de bradar aos quatro
ventos.
A partir deste momento o trabalho de Guel Arraes mescla
-
se
à
criação original
de Suassuna, que introduz Severino, fazendo o reconhecimento da cidade de
122
Taperoá
e matando, logo depois, o Padeiro, Dora (a esposa do padeiro), o Padre, o
Bispo, e João Grilo. João Grilo será neste momento alvo de suas próprias
malandragens. Para tentar escapar com vida de Severino, João Grilo cria a história
da gaita mágica abençoada por Padrinho Padre Cícero. A gaita segundo João Grilo
dava aos homens a chance de morrer para conhecer Padre Cícero e logo após
retornar, quando a gaita fosse tocada. João Grilo para escapar de ser morto ou
preso, por causa das trapaças aplicadas no Padeiro, no Padre e do Bispo, tinha
articulado um plano com
Chic
ó, que envolvia uma falsa morte à facada rompendo
uma bolsa de sangue escondida sob a camisa
.
Severino acredita em João Grilo e
deixa
-se matar. Como era de se esperar a gaita não o ressuscita. O outro
cangaceiro que assistia à cena é morto e consegue matar João Grilo, que é
socorrido por
Chicó
, que nada pode fazer para salvar seu amigo.
Chegamos ao terceiro ato da peça onde a ironia e as paródias dominam o
discurso teatral. Poderíamos pensar como um pobre e analfabeto “amarelo safado”
conseguiria enganar o diabo? Ser tão ou mais inteligente que o pai das peripécias?
Pelo apego à intercessora e advogada dos pobres, pecadores e desesperados
representada por Nossa Senhora, que segundo o julgamento de João Grilo, está
mais próxima dos homens por que é humana como ele. É Nossa Senhora que
intercede pedindo a João uma outra chance, burlando o poder do Encourado.
“João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores
dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir
para o purgatório” (Suassuna, 2001, p.184). Mas João não se por satisfeito,
dizendo que se fosse enviado para o purgatório o Encourado daria um jeito de levá-
lo
para o Inferno, e
reivindicando
que Nossa Senhora pedisse
sua
passag
em direta
para o céu. A Compadecida diz que não
é
possível, pois as faltas de João
são
graves. A saída encontrada por Nossa Senhora foi a de intermediar uma nova
chance para João,
permitindo
-lhe voltar à Terra. O pedido foi conce
dido
e o
Encourado vencido.
João Grilo volta, encontra-se com Chicó e Rosinha mas continua pobre. O
dinheiro da herança do Padeiro foi prometido e dado a Nossa Senhora e Rosinha é
deserdada pelo Major (na Minissérie).
123
Os diálogos, repetitivos e humorísticos, a comédia de enganos que envolve a
todos, decorrem, justamente, dos jogos de linguagem, da ironia, dos sub
-
entendidos,
da carnavalização, enfim das estratégias discursivas que configuram o código
lingüístico.
Assim o leitor é levado por um caminho suger
ido
e direcionado pela própria
concretização do código. Instaura-se um processo de deciframento da linguagem
literária
sistema modelizante secundário, pela linguagem prática sistema
modelizante
primário (L
OTMAN,1978
).
A linguagem literária vem justamente suprir
uma necessidade de estética, cujas técnicas são artisticamente moldadas e
selecionadas. A estética tem o papel de seduzir o leitor, criar a necessidade de
interação do leitor. Este se relaciona diretamente com a própria mensa
gem
discursiva
, garantindo uma situação de cumplicidade, uma intimidade que acaba
por
envolvê
-
lo
num processo de significação, que o levará a uma leitura particular da
obra, seja ela teatral ou televisiva.
4.3 O trabalho de Guel Arraes
O
Au
to da Compadecida t
em
como protagonista, na versão de Arraes, um
sertanejo qualificado como pobre mentiroso e preguiçoso, oriundo de Taperoá,
cidade do sertão da Paraíba, de nome João Grilo que tem, como seu fiel amigo,
outro sertanejo, provido das mesmas
qualidades,
porém menos arguto e valente,
chamado
Chicó.
I
nstaura
-se uma aproximação com personagens de
Miguel
Cervantes, Dom Quixote e
Sancho
personagens picarescos.
A leitura de Suassuna começa pela organização e caracterização das
personagens. Na leitura televisiva Suassu
na
exclui o Sacristão, o Frade e o
Demônio, que seriam representados por atores específicos. No texto/teatro estes
personagens estão na trama, não
como
meros figurantes mas representando tipos
populares embora não fa
çam
parte da trama. Guel Arraes substitui estes
personagens
da peça teatral e inclui Vicentão, Cabo Setenta e Rosinha, para formar
o núcleo romântico, indispensável nas novelas e minisséries para identificação com
o público de massa
.
124
As personagens principais são mantidas na trama: João Grilo, Chicó, Padre
João, Antônio Morais, o Padeiro, Dora a mulher do Padeiro, o Bispo, Severino de
Aracaju
, o Cangaceiro,
o E
ncourado
, Jesus Cristo e Nossa Senhora. R
epresentam a
ação dramática da narrativa, pois são estas personagens que dão forma e direção
ao conflito desenvolvido na trama. O Encourado e o Demônio serão representados
pelo mesmo ator, que hora será o Demônio, estereotipado como um ser humano,
um homem que pode estar entre os homens, praticando suas desavenças sem ser
percebi
do, e quando se enfurece com as saídas (resolução dos pecados) que João
Grilo e Nossa Senhora criam para os réus, passa ao Encourado, com uma figura
estranha meio homem/meio bicho. A caracterização bizarra e amedrontadora do
Diabo é uma tentativa de aproximar a idéia de como seria o Diabo, visto como um
monstro
pelo imaginário popular, que vem desde às ilustrações e xilogravuras da
Idade Média
.
Guel Arraes no primeiro capítulo usa um filme intitulado “A Paixão de Cristo”,
como que anunciando o que estaria por vir, e começa a criar um espaço entre
emissor e
receptor, convidando-o a querer saber
por que
falar da vida e da morte de
Jesus.
João Grilo e Chicó são
encarregados
para anunciar o que está por vir.
P
ercorre
m o cenário que ilustra a pequena Taperoá,
cidad
e do sertão, pobre e
abandonada
e mostram a
Igreja
como o último refúgio para os dias de tédio e de
mesmice do sertanejo, assim como no Auto da Lusitânia onde a Igreja é vista como
estalajadeira
.
Arraes
quer ilustrar que a “vida social” dos pobres e dos ricos de Taperoá
,
todos os eventos ocorridos em Taperoá estão relacionados com a Igreja, ilustrando
a intensa ligação da igreja com a rotina das pessoas,
sejam
elas do campo ou da
cidade.
O caso pessoal de Chicó criará a abertura para a discussão do
aspecto
subjetivo, representado pela figuratividade do amor carnal. Relaci
onando
-se com
João Grilo e Chicó temos o padeiro avarento Eurico (Personagem da obra “O Santo
e a Porca” de Suassuna) e sua mulher adúltera Dora, que promoverão o
enquadramento da discussão entre a classe operária (e sua exploração, segundo a
dialética marxista) e a capitalista, podendo se estender a percepção do predomínio
125
da informalidade quando o assunto versa sobre o uso da mão-
de
-obra, do
desmantelamento de sociedades contratualm
ente organizadas.
A trama contará também com a figura do Padre João e do Bispo, que
representarão a discussão entre uma sociedade marcada pela necessidade de um
discurso progressista. O discurso que pretende expor os preconceitos da
modernização e
d
a co
ncentração política pel
a classe
civil aristocrata, é representado
pela figura do Major Antonio Moraes e sua filha Rosinha, par romântico de Chicó
,
que ressaltará a distinção entre classes. Proporá, ainda, a discussão do papel, da
serventia da Igreja e da c
orrupção que a cerca.
A incorporação da figura do cangaceiro Severino e seu bando marca a luta
política das classes e a tentativa de desmembramento e identificação política, que
será reforçada pela presença do cabo Setenta e sua milícia, em defesa da ordem e
do progresso nacional. O caos urbano será marcado pelo valentão Vicentão, que
representará a parcela da população urbana estática, que não se manifesta contra a
“organização social”. A violência que Guel Arraes atribui a personagem Vicentão é o
reflex
o
da intimidação e repressão do povo.
Por fim, a manifestação do sobrenatural simbolizada pelas figuras religiosas:
a princípio o Diabo, logo após Jesus Cristo e por fim A Compadecida (Nossa
Senhora), que integram a cena mais marcante da obra, a passagem que retrata o
Juízo Final - O Livro do Apocalipse,
denunciando
a forte presença da ideologia
católica, a doutrina escolástica, que também reforçará a presença dos elementos
medievais como o recurso à estética de carnavalização, ironia e paródia. Tratará
também da morosidade do sistema jurídico e ilustrará a burocracia que emperra o
sistema judiciário brasileiro, tão presente em 1955 quanto em 1999 e nos dias de
hoje
.
Não seria um erro afirmar que o trabalho é mais contemporâneo do que se
possa imaginar. As políticas econômicas que marcaram a década de 50, com
propósito de crescimento e desenvolvimento econômico, amparada por instituições
como CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), com o propósito de
reverter
a condição de subdesenvolvimento em que o Brasil vivia, permanecem
126
válidas até hoje. As denúncias quanto aos problemas e as discrepâncias sociais
acentuaram
-
se
em 1955 e
continua
existir
. O descaso da classe politicamente
dominante, a existência de um sistema jurídico que privilegia uma minoria, a falta de
acesso aos meios de comunicação, a exclusão social são as mais vivas provas de
que a arte, seja ela erudita ou popular,
reflete
a condição do homem na terra.
Constrói
-
se
um retrato denunciando a injustiça, a existência de opressores e
opr
imidos
,
configurando
-
se
uma relação
de dominação e mercantilização.
Suassuna
denuncia em suas obras, não uma polêmica entre esquerda e
direita que não
lhe
interessa, mas discute acima de tudo o jogo pelo poder, a
opressão, a exploração de muitos por uma
minoria.
Em entrevista à Folha de S.
Pa
ulo (14/09/1999), cita Dostoievski e Santa Teresa de Ávila para explicar esse jogo
pelo poder:
[...]
no Brasil atual, outra maneira clara de manter a distinção é a seguinte:
quem é de esquerda, luta para manter a soberania nacional e é socialista;
quem é de direita, é entreguista e capitalista; Quem na sua visão do social
coloca a ênfase na justiça, é de esquerda. Quem coloca na eficácia e no
lucro, é de direita.
(www.tribunadecianorte.com.br/arquivos/opiniao/suassun
a.htm)
Neste momento temos a marca do horizonte de expectativa do autor para
com a obra e seus receptores. Sua visão de mundo, inclusive política, mescla-se a
uma criação do fantástico. A contribuição para a composição do enredo viria da
confusa relação com a religios
idade
e ce
ti
cismo
. O lado cético, viria do contato com
seu tio Manuel Dantas Villar, um ateu e republicano nato. O lado cético aos poucos
perde
espaço para o
religioso
pois Suassuna passar a relacionar-se com um outro
tio, Joaquim Dantas, católico e monarquista.
Suassuna
passa a ter contato com os
dogmas da Igreja Católica
,
enquanto
estuda na faculdade de Direito.
Os estudos religiosos, de Filosofia e do Direito, possibilitaram a Suassuna o
instrumental necessário para a idealização do ato do julgamento final, numa versão
satirizada, que envolve os elementos do cotidiano nordestino. Assim o diabo
assumiria a função da promotoria, acusando e julgando num outro plano, no
espiritual e não no terreno, as acusações contra cada um daqueles sujei
tos
socialmente definidos. Para a defesa, a escolhida foi a e de Jesus Cristo A
127
Compadecida
, a intercessora, a piedosa, que tem o poder de fazer mudanças, e
permissão
para
intermediar os pedidos dos homens junto a Deus. E por fim
Emanuel, ou Jesus Cristo, que representa naquele momento a Santíssima Trindade,
que evoca numa pessoa a contemplação do Pai (Deus), do Filho (Jesus Cristo) e
do Espírito Santo. Sua representação física escandaliza ou provoca estranhamento,
uma vez que o Cristo é negro. Causará espanto também na versão televisiva,
principalmente junto à parcela da população que não conhecia a leitura do teatro de
Suassuna.
Realiza
-se a intertextualidade neste momento, com os textos bíblicos que
prevêem o julgamento divino das culpas humanas e percebe-se, ainda a introdução
dos elementos do candomblé e das figuras religiosas afro-brasileiras que s
ão
incorporados às figuras e santos católicos, daí a projeção do Cristo negro que, num
segundo plano, resulta na exaltação do Cristo dos pobres, dos marginalizados. O
resultado é a ilustração d
os
ditados popular
es
que prediz
em
que
se
a justiça terrena
não é capaz de julgar ou simplesmente banaliza os crimes, num outro momento, no
tribunal divino eles são julgados, resultando em dizeres como: “a justiça é cega mas
os olhos de Deus não são”, ou ainda previne sob as possíveis penas que podem
ocorrer na terra, a “justiça divina tarda mas não falha”, “o que aqui se faz aqui se
paga”.
O que muda radicalmente do texto/teatro para a versão televisiva é a
exc
lusão do arlequim, do palhaço, que no teatro narra a troca de cenas, explica
fatos,
enfim, é o interlocutor, que desperta no receptor a necessidade de interação.
Na versão televisiva, as cenas ganham maior movimento e o preenchimento dos
espaços
e os brancos do texto
são
feitos coletivamente. A figura do palhaço
(Arlequim)
perde a função, sendo
excluída
para dinamizar a relação das
personagens,
pois
os limites impostos pelo enquadramento
televisivo
são maiores.
A relação com o público na leitura televisiva é de imposição, e a condição do
receptor de passividade, que os brancos do texto
diminuem
e
muitos
são
substituídos
por idéias e ações da equipe de produç
ão
. No teatro, ocorre justamente
o contrário, pois o arlequim não preenche as lacunas e os brancos do texto. O
arlequim aguça a interação e a participação mental dos
assistentes
. Ele é a voz do
128
autor (de Suassuna), que convida a uma mudança no modo de olhar as pessoas e
as falhas humanas
. O arlequim convida
-
nos
a observar a vida de um outro,
de
vários
ângulos, para
que
possamos ter a idéia total da trama, que tem a função de ilustrar
a
vida
através da literatura fantástica (realidade e ficção), chamando a atenção para o
fato
de que, no dia-a-dia, perdemos a noção do todo que nos cerca e
julgamos
as
pes
soas por meias verdades ou mentiras
.
4.3.1 O elenco, ficha técnica e trailer
O elenco que protagonizou o
Auto
na televisão compõe-se de vários atores e
atrizes renomados da Rede Globo de Televisão, sob a direção de Guel Arraes. São
eles
:
Matheus N
achtergaele _ João grilo;
Selton Mello _ Chicó;
Marco Nanini _ Severino;
Fernada Montenegro _ Nossa Senhora
(
a Compadecida
);
Mauricio Gonçalves _ Jesus Cristo;
Lima Duarte
Bispo;
Rogério Cardoso _ padre João;
Diogo Vilela
padeiro Eurico;
Denise
Fraga _ mulher do padeiro, Dora;
Luis Me
l
lo
o Diabo;
Enrique Diaz
– cangaceiro, capanga de Severino;
Paulo Goulart
Major Antônio Moraes;
Virginia Canvendish
Rosinha;
Aramis Trindade
Cabo Setenta;
Bruno Garcia
Vicentão.
A técnica
ficou
a cargo de Guel Arraes que a adaptou para a TV em parceria
com João Falcão, incluindo partes de
outro
texto de Suassuna, Tortura de um
coração
. A direção geral foi
de
Guel Arraes, a direção de arte ficou sob
responsabilidade de Linda Renha. Figurinos fica
ra
m sob a responsabilidade de Cai
o
129
Albuquerque.
A direção fotográfica é de Felix Monte e a direção de p
rod
ução
é de
Eduardo Figueira. Os direitos ficaram reservados a Globo Filmes, com o produtor
associado Daniel Filho, distribuição pela Columbia Tristar (produção televisiva de
1999)
. O filme teve a duração de cento e quatro (104) minutos a minissérie cento e
cinqüenta e sete (157) minutos.
O estudo do repertório musical para composição da trilha sonora ficou a cargo
do diretor musical João Falcão. A necessidade de aproveitamento pleno dos
profissionais envolvidos na produção do filme traz à tona a dificuldade de
financiamento que aflige o cinema brasileiro. O grupo escolhido para a composição
da trilha foi o de Sá Grama, dirigido pelo maestro Sérgio Campelo. O grupo é
responsável por um estudo de músicas de raízes, contribuindo para a manutenção
da memória da musica popular.
O que chama a atenção é a permanente sonoridade do pífaro e da gaita na
gravação das cenas. A gaita será companheira fiel de João G
rilo
,
caracteriza
ndo
sua
personagem
em várias personagens. Matheus Nachtergaele passa a atuar com a
gaita, que também assume a configuração de elemento popular da cultura nacional.
O pífaro é uma realidade da comunidade nordestina enquanto a gaita é
popula
rmente conhecida no Brasil, de norte a sul. Neste momento a adaptação
deixa de lado os elementos do nordestino e a plasticidade por ele gerada, para
adaptar a peça para uma comunidade discursiva mais ampla,
daí
a necessidade de
um elemento comum.
O que espanta é a agilidade obtida na produção do repertório, na fala do
próprio Falcão
nas gravações extras e making of contidas na versão CD:
“passei três
dias no estúdio com o Grupo Grama, formados por estudantes do Conservatório
Pernambucano de Música, que faz um trabalho de pesquisa baseado em música de
raízes”. A preocupação em reunir os elementos do popular promove a diminuição do
custo de produção e garante a preservação da autenticidade da cultura em algumas
instâncias, como, por exemplo, nos arran
jos musicais da obra.
130
131
C
ONSIDERAÇOES FINAIS
A riqueza da obra de Suassuna é surpreendente. É possível observarmos a
utilização de estratégias e técnicas comunicativas que fazem de seu texto/teatro
O
Auto da comp
adecida
, uma possibilidade ironicamente plurisocial, uma vez que
possibilita o diálogo e o confronto de comunidades discursivas, com horizontes de
expectativas diversos.
O repertório lingüístico materializa-se na focalização das discussões dos
estereótip
os sociais, ironicamente semiotizados e codificados. O autor cobra do
receptor o exercício de decodificação do espaço social, contextualizado e
simbolizado ideologicamente. Temos, pois uma crítica social irônica e bem
humorada do “malandro” brasileiro. A exposição caricatural de uma sociedade que
se pretende organizada revela ao uma desconexão social. A receptividade está
relacionada ao processo de criação que considera o corte (contexto) no qual o
receptor deve ler a obra ou se ver na obra.
Podemos concluir que é pertinente evocar uma reflexão de como a idéia de
discussão do social no trabalho de Suassuna assume variações nas
diversas
formas
de ironizar a sociedade
.
Constatamos
que desencadeou e desencadeia, através do
uso do ambiente cultural popular do nordestino, o cenário de discussão de correntes
ideológicas entre os agentes interpretadores.
Suassuna
, em seus trabalhos e principalmente no
Auto
, lembra que a
preservação da cultura nacional é necessária para que tenhamos uma identidade
própria e int
ransferível
. É por esse motivo que se nega a vincular seu nome e suas
obras a merchandising. Para ele a solução está em fazer com que a população
tenha consciência de que um povo sem memória não constrói história, e é
inadmissível que multinacionais administrem a estética artística, submetendo a arte
aos anseios capitalistas.
132
Se no teatro é possível preservar o uso consumista da arte, na televisão, em
decorrência de suas características de cultura de massa, torna-se inevitável o
retorno econômico, a rentabilidade dos anunciantes. Os intervalos (brakes) da
minissérie estão atrelad
os
a um estudo da audiência e posteriormente ao aumento
ou não de consumo dos produtos e marcas divulgadas nos comerciais
, inseridos nas
pausas da minissérie
.
O fato é que a mídia televisiva permite a ampliação do número de receptores
,
mas
um preço a pagar. Não como negar que Suassuna tornou-
se
nacionalmente conhecido após a
minissérie
de Guel Arraes para a TV. Não que o
reconhecimento de Suassuna não existisse, mas ficava restrito a uma elite cultural e
a uma parcela “mais culta” da população brasileira e fora do Brasil. Suassuna
concordou com a adaptação de Guel Arraes porque foram “preservadas” a essência
e a mensagem da obra, que estão centradas na originalidade dos “ma
landro
s”,
criado
s por Suassuna, a partir de um tipo brasileiro, “dos causos” reconhecidos pela
memória popular do, aproveitamento do folclore nordestino (literatura de cordel),
viabilizando
-se a concretização de objetivos visados por Suassuna e pelo
“Movim
ento Armorial”, que preconizam o aproveitamento da arte popular pela arte
erudita e sua divulgação nacional, permitindo a preservação da memória da cultura e
da identidade do povo
brasileiro
.
133
134
REFERÊNCIAS BIB
LIOGRÁFICAS
ACHCAR, Francisco. Gil Vicente: Auto da Barca do Inferno. São Paulo: CERED,
1996
.
ARRAES, Miguel. O Auto da Compadecida: da obra de Ariano Suassuna. Minissérie.
Rio de Janeiro: Globo Filmes, 1999.
ABBAGNANO, Nicola.
Dicionário de filosofia
. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BALOGH, Anna Maria. Conjunções, disjunções e transmutações: da literatura ao
cinema e à TV
. São Paulo:
Annablume/ECA/USP, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. Trad. do russo por Aurora F.
Bernardin
i,
José Pereira Jr., Augusto Góes Jr., Helena S. Nazário e Homero F. de
Andrade. São P
aulo: Editora Unesp/Hucitec, 198
8.
Bíblia Sagrada:
Novo Testamento
. São Paulo: Paulinas, 1986.
BULIK, Linda.
Comunicação e teatro: por uma semiótica do Odin Teatret
.
o Paulo:
Arte & Ciência, 2001.
BULIK, Linda.
Doutrinas da informação no mundo de hoje
. São Paulo: Loyola, 1990.
BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo Editora da
Universidade Es
tadual Paulista, 1992. p.19
-
25.
BURKE, Pe
ter.
A Escola dos Annales. São Paulo: Editora Universidade Estadual
Paulista, 1991.
135
CALDAS, Waldenyr. Sociologia da comunicação: música sertaneja e indústria
cultural. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasile
iro
. São Paulo: Global,
2000.
_________,
Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1988.
Cinema. Disponível em: http://www.webcine.com.br/notaspro/nplepi.html
Acesso
em 13 de dezembro de 2004.
CHEVALIER, Jean; GREERBRANT, Alan. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:
José Olímpio, 2002.
CUNHA,
Antônio Geraldo da (et al). Dicionário etimológico: nova fronteira da língua
portuguesa
. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
DAVIS, Flora.
A comunicação não
ver
bal
. São Paulo: Summus, 1979.
ECO, Humberto. Leitura do texto literário. (lector in fabula). Lisboa: Editora
Presença, 1979.
ELIADE, Mircea; COULIANO, Loan P. Dicionário de religiões. o Paulo: Martins
Fontes, 1999.
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da
arte
. São Paulo: USP, 1973.
FLORY, Suely F. V.
O leitor e o labirinto
. São Paulo: Ed. Arte e Ciência, 1997.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
136
INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. Trad. De Albin E. Beau, Maria da
Conceição Puga, e João F. Barreto Lisboa:
Calocesté
Gulbekian, 1973.
HUTCHEON, Linda.
Teoria e política da ironia
. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
ISER, Wolfgang e outros. A interação do texto com o leitor. In A l
iteratura
e o leitor.
Selec. Trad. e introd. por Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
JAUSS, Hans R. A Estética da Recepção: colocações gerais. In A literatura e o
leitor. Trad. e introd. por Luiz Costa Lima. Rio de Janeir
o: Paz e Terra, 1979.
______
, Hans R. A literatura como provocação. Trad. de Tereza Cruz. Lisboa:
Veg
a,
1993.
KRISTEVA, Julia.
Introdução à semanálise
. São Paulo: Perspectiva, 1969.
______,
A produtividade dita texto. In Leitura e semiologia. Trad. Célia Neves
Dourado. Petrópolis: Vozes, 1972, p.45
-
88.
LARAIA, Roque de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978.
LE GOFF, Jacques.
A bolsa e a vida
. São Pa
ulo: Brasiliense, 1989.
LE GOFF, Jacques; SCHMITH, Jean Claude. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval
. Bauru, São Paulo: Edusc, 2002.
LUCAS, Fábio.
O caráter social da leitura brasileira
. São Paulo: Quíron, 1976.
MAIA, Antônio.
Pequeno dicionário c
atólico
. Rio de Janeiro: Estrela do Mar, 1966.
MARTIN
-BARBERO, José; REY, Germán. Os exercícios do ver: hegemonia
audiovisual e ficção televisiva
. São Paulo: Senac, 2001.
137
MARTIN
-BARBERO, Martin. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia
.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
MENDES, Garcia Miriam.
A personagem negra no teatro
. São Paulo: Ática, 1982.
MOUILLAUD, Maurice.
A informação ou a parte da sombra, e Capítulo 8 Posturas do
leitor In Mouillaud, Maurice e Porto, Sérgio Dayrell (org) O jornal da forma ao
sentido
. Brasília: Paralelo 15, 1997.
MUECKE, D.C.
Ironia e irônico
. São Paulo: Perspectiva, 1995.
ORTIZ, Renato.
Cultura brasileira e identidade
. São Paulo: Brasiliense, 2003.
Paraná (Estado). Tribuna de Cianorte. Opinião. Disponível em:
http://www.tribunadecianorte.com.br/arquivos/opinio/suassuna.htm
. Acesso em 15
de jan. de 2005.
Pernambuco (Estado). Bibliografia. Disponível em: http://www.pe-
az.com.br/bibliografias/arianovilarsuassuna.htm
Acesso em 13 de dezembro de
2004.
RIFFATERR
E, Michael.
Essais de Stylistique Structurale
. Paris: Flammrarion, 1971.
ROSCHEL, Renato.
Entrevista
. Disponível em:
http://www.speculum.art.br/module.php?a_id=91
Acesso em 21 de jan. de 2005.
SCARLATTI, Eduardo. A religião do teatro. São Paulo: Ática,
1945.
SÁNCHEZ
-PEDRERO, Maria Guadalupe.
Os judeus na Espanha
. São Paulo: 1994.
SANTAELLA, Lúcia.
O que é semiótica
. São Paulo: Brasiliense, 1983.
138
SASPORTES, José. Trajectória da dança teatral em Portugal. Portugal: Amadora,
1979.
SUASSUANA, Ariano.
O
Auto da Compadecida
. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
SUASSUNA, Ariano.
Auto da Compadecida
. Rio de Janeiro: Agir, 2001.
Suassuna. Disponível em: <http://carliagers.com.br/projetos/ariano/images>
Acesso
em 21 de setembro de 2005.
TEIXEIRA COELHO, J. Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense,
1995.
TEIXEIRA COELHO, J. Teixeira. Semiótica, informação e comunicação. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
TEIXEIRA COELHO, J. Moderno e pós moderno: modos e visões. São Paulo:
Iluminuras, 1995.
VICENTE, G
il.
A farsa de Inês Pereira
. São Paulo: Núcleo, 1995.
Xilogravura. Disponível em: <http://images.google.com.br/imgres?imgrerl> Acesso
em 21 de setembro de 2005.
139
Anexo
COUTINHO,
Afrânio
; SOUZA, J. Galante. Enciclopédia de literatura brasileira. Rio
de Janeiro: Global Editora, 2001. v2. p.1539
“SUASSUNA, Ariano (A. Vilar S., Nossa senhora das Neves, hoje João Pessoa, PB, 16 jun. 1927). No
ano seguinte ao seu nascimento, seu pai, João Suassuna, deixa o governo da Paraíba e a família
passa a morar no sertão, na “Fazenda Acauan”. Com a Revolução de 30, seu pai é assassinado por
motivos políticos no Rio de Janeiro e a família se muda mais uma vez. Agora para Taperoá, onde vive
de 1933 a 1937. Ariano faz seus primeiros estudos e assiste pela primeira vez a uma peça de
mamulengos e a um desafio de viola, cujo o caráter de “improvisação” seria uma das marcas
registradas também de sua produção teatral. A partir de 1942 passa a viver no Recife, PE, onde
termina os estudos secundários (no ginásio Pernambuco e no Colégio Osvaldo Cruz) em 1945. No
ano seguinte inicia a Faculdade de Direito, onde conhece Hermílo Borba Filho. E, junto com ele,
fundaria o “Teatro do Estudante de Pernambuco”. Em 1947 escreve sua primeira peça: Uma mulher
vestida de sol. Em 1948, outra peça Cantam as harpas de Sião (ou O deserto de princesa), é
montada pelo Teatro do Estudante de PE. Os homens de barro é de 1949; e, em 1950, ano de sua
formatura na faculdade de Direito, rcebe o Prêmio Martins Pena pelo Auto de João da Cruz, q
ue narra
o pacto de um carpinteiro com o demônio para possuir os “bens terrenos!”. Mas com a intervenção do
“anjo da guarda”, do “pai peregrino” e de um cangaceiro, sua
aventura
faústica é interrompida. Com
doença pulmonar, A. S. se obrigado em 1950 a m
udar
-se para Taperoá de novo. E escreve e é
montada a peça Torturas de um coração (1951). Com O arco desolado, de 1952, continua seu
diálogo nunca interrompida pela tradição ibérica. Nesse caso, com Calderon de la barca e com
Sigismundo de La vida es su
eño
, recriado o
Arco
, onde no entanto, ao invés de um “reino de justiça”,
espalha horrores por toda a parte, num ciclo infernal que se fecha com seu retorno à prisão. De 1952
a 1956, Suassuna dedica-se à advocacia. Sem abandonar, porém, a atividade teatral. São dessa
época:
O castigo da soberba (1953), O rico avarento (1954) e o Auto da Compadecida (1955), peça
que faria de A. S. um nome nacional e que seria considerada em 1962 por Sábato Magaldi “o texto
mais popular do moderno teatro brasileiro”, recebendo do crítico do seu Panorama do Teatro
Brasileiro o seguinte comentário: “Aproxima-se o texto dos Autos vicentinos ou dos `milagres´ mais
antigos de Nossa Senhora, e, contrastando como o sabor arcaico, dá ao diálogo a espontaniedade da
improvisação e à estrutura dramática a idéia de que é algo que se constrói à vista do público, para só
no final sentir-se a solidez arquitetônica”. Improvisação mescla à obediência ora do Romanceiro
popular do Nordeste, ora à tradição literária ibérica: esta é a marca registrada de A. S., cujo
paradigma parece ser a atuação de “João Grilo”, protagonista do Auto da compadecida, misto de
140
personagens convencionais, como o arlequim ou o pícaro, com um malandro tão cheio de artimanhas
que consegue, inclusive, escapar do Inferno. Do ponto de vista da trajetória intelectual de A. S., o
Auto da compadecida
não é um marco apenas pela repercussão nacional, mas sobretudo como o seu
amadurecimento como dramaturgo e pela escolha, que acaba por fazer, de abandonar a advocacia
em 1956, quando se torna professor de estética na Universidade Federal de Pernambuco. No ano
que se segue a tal decisão seriam encenadas: O casamento suspeitoso, em SP pela Cia. Sérgio
Cardoso; e
O santo e a porca
,
recriação
, em tom de farsa, de
O avarento
, de Moliére e
de
A aulularia
,
de Plauto. O homem da vaca e o poder da fortuna é de 1958; A pena e a lei, premiada dez anos
depois no Festival Latino-Americano de Teatro, é de 1959. Seriam montadas em seguida a Farsa da
boa preguiça (1960) e A caseira e a catarina (1962), ambas pelo “Teatro Popular do Nordeste”,
fundado por Suassuna, mais uma vez em companhia de Hermílo Borba Filho, em 1959. Mas A. S.
interrumperia sua bem sucedida carreira de dramaturgo no inicio da década de 60, quando passa a
dedicar
-se exclusivamente à prosa de ficção, às aulas de estética e ao papel de “animador cultural”,
que o levaria a
iniciar
em 1970, no Recife, o “Movimento Armorial”, interessado no desenvolvimento e
no conhecimento das formas de expressão populares
tradicionais
. E que marcariam tanto sua
produção teatral quanto sua obra romanesca posterior, na qual se incluem alguns de seus trabalhos
mais importantes, como o Romance da pedra do reino e O príncipe do sangue que vai e volta (1971),
e a História do rei degolado nas caatingas o sertão/Ao sol da onça caetana (1976). Trata-se em
suma, de obra onde se entrelaçam o folclórico, o cordel, o mamulengo e a tradição ibérica; obra que
se propõe a pensar o brasileiro dentro do ibérico-sertanejo”, como destacou o crítico Silviano
Santiago em
“Situação de Ariano Suassuna”. Pois, segundo ele, “em Suassuna mão existe a intenção
de fazer um levantamento artístico-sociológico da região-nordestina,dentro dos moldes da escola
naturalista, mas antes busca ele uma representação poética do Nordeste através dos textos do
romanceiro popular, graças aos folhetos da literatura de cordel”. Recriação esta que se orienta ora
para o teatro, ora para a poesia e para o romance, numa obra coesa e marcada por uma visão
popular
-religiosa de mundo. Membro da ABL (1989). F.S.BIBL.: Ode. 1955; coletânea da pesquisa
popular nordestina. 1964; Romance da pedra do reino. 1971 (rom.); O príncipe do sangue que vai-e-
volta
. 1971(rom.); O movimento armorial. 1974 (poes.); Iniciação á estética, teoria literária. 1975;
Seleta em p
rosa e verso
. 1975 (antol.).
Historia do rei degolado nas caatingas do Sertão
. 1976 (rom.).
REF.: Barros 20 PE, 203; Coutinho Ant. poes., 59, Linhares Diálogos rom. 96; Magaldi, Sábato,
Panorama do Teatro Brasileiro. s.d.; Marinheiro, Elizabeth. A intertextualidade das formas simples
(aplicada ao Romance da pedra do reino). 1977; Santiago, Silviano. Situação de A. S. In: Seleta em
prosa e verso. 1974, Suassuna, Ariano. A arte popular no Brasil. Ver. Brás. Cult, out/dez.1969;
Woensel, Maurice J. F. Van.
Uma
leitura semiótica de “Pedra do reinode A. S., 1978; Guidarani,
Mario.
Os pícaros e os trapaceiros de A.S. 1992; Vanderlei Vernaide. Viagem ao sertão brasileiro:
leitura geo-
sócio
-antropológica de A. S., Euclides da Cunha, Guimarães Rosa. 1997; Santos, Id
elet
Mozart Fonseca dos. Em demanda da poética popular. A.S, no Movimento Armorial. 1999; Lins,
Letícia.
O imperador e a pedra. O globo, 19 jun. 1999. Filme: A compadecida, versão de o Auto da
compadecida
, 1969 Dir.: Jorge Jonas;
O Auto da compadecida
, 199
9 Dir: Guell Arraes. (minissérie.).”
141
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
10
I SUASSUNA E O RESGA
TE DO POPULAR
O AUTO
26
1.1 Contextualização
26
1.1.1 Arte e modernidade
29
1.2 Do teatro à minissérie: contextua
lização do Auto da Compadecida na obra de Ariano Suassuna
44
1.3 Estado de arte: continuidade ou ruptura
55
II PERCURSO TEÓRICO
64
2.1 A questão da Estética da Recepção
64
2.2 A herança medieval
70
III A CONSTRUÇÃO DAS
PERSONAGENS
80
3.1 Do texto teatral à minissérie: o processo de gênesis
-
mimesis
80
3.2 Discurso e ide
ologia: as limitações impostas pelo enquadramento
81
3.3 A construção das personagens: estudo das notas da produção
85
3.4 O cen
ário
98
IV O ESPAÇO COMO INT
ERAÇÃO COM O RECEPTO
R
102
4.1 Da teatralidade a obra televisiva
106
4.1.1 Teleteatro
108
4.2 Contexto: as possibilidades na linguagem literária
112
4.3 O trabalho d
e Guel Arraes
123
4.3.1 O elenco, ficha técnica e trailer
128
CONSIDERAÇOES FINAIS
131
ANEXO
139
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo