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Adilsom Eskelsen
CUIDADO DE SI E
PEDAGOGIA DAS PAIXÕES HUMANAS:
CONTRIBUIÇÕES A UM IDEAL EDUCATIVO
Dissertação apresentada ao curso de pós-
graduação em Educação, da Faculdade de
Educação, da Universidade de Passo Fundo,
como requisito parcial e final para a obtenção do
grau de Mestre em Educação, tendo como
orientador o Dr. Cláudio Almir Dalbosco.
Passo Fundo
2006
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__________________________________________________________________
E75C ESKELSEN, ADILSOM
Cuidado de si e pedagogia das paixões humanas : contribuições a
um ideal educativo / Adilsom Eskelsen. – 2006.
87 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade de Passo
Fundo, 2006.
Orientação: Prof. Dr. Cláudio Almir Dalbosco.
1. Educação. 2. Análise do discurso. 3. Psicagogia. I. Dalbosco,
Cláudio Almir, orientador. II. Título.
CDU: 37
__________________________________________________________________
Catalogação: bibliotecário Alexandre Chow – CRB 10/1681
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RESUMO
Essa dissertação, uma pesquisa bibliográfica, problematiza aão pedagógica sob a
ótica da estetização da existência foucaultiana e tem como objetivo postular relação entre
cuidado de si e pedagogia através de inspiração no ideal educativo grego, que considerava
o cuidado de si um dos princípios que regiam a vida na polis, um modo de conduta da vida
pessoal e social, fundamental para a arte de viver. Tal problematização é realizada por viés
interdisciplinar e operacionalizada pela análise de discursos da Filosofia, Religião e
Pedagogia. A justificativa do trabalho deve-se ao fato de o cuidado de si possibilitar a
(re)consideração das paixões humanas em pedagogia. A tese defendida sustenta que estas
impedem a realização do ser, fazendo-se necessária sua superação através da psicagogia,
relação mediada por um mestre, que permite a modificação do ser, sujeito da ação
pedagógica. São feitas considerações acerca do estatuto do sujeito em que se apresentam
argumentos a favor de uma psicologia humana caracterizada pela não-inefabilidade de sua
interioridade constitutiva. Apresenta-se tradução de texto bíblico (Jo 1:11) amparada pelo
aparato teórico da Análise de Discurso, a qual dá início a uma pesquisa panorâmica
conducente ao que se denomina pedagogia das paixões humanas, postulado a que se chega
após as análises propostas. Essa pedagogia, que não prescinde dos cuidados de si, permite
a consideração da relação pedagógica entre mestre e discípulo sob a ótica da
perfectibilidade humana para que o discípulo possa desenvolver suas potencialidades
latentes.
Palavras-chave: fundamentos da educação, estetização da existência, cuidado de si,
. sujeito, análise do discurso.
4
ZUSAMMENFASSUNG
Diese Dissertation, eine bibliographische Studie, setzt sich mit der pädagogischen
Handlung unter dem Gesichtspunkt aus Foucaults Lebenskunst auseinander. Die
Zielstellung besteht darin durch die Inspirierung am griechischen Ideal die Beziehung
zwischen der Selbstsorge und der Pädagogik zu postulieren, nach welchem die Selbstsorge
eines jener Prinzipien darstellte, die das Leben in der Polis bestimmten. Eine Art der
persönlichen und sozialen Lebensführung also, die in der Kunst des Lebens grundgelegt
ist. Diese Auseinandersetzung erfolgt auf interdisziplinärem Wege und wird durch die
Analyse der Diskurse aus der Philosophie, Religion und Pädagogik konkretisiert. Die
Begründung dieser Arbeit ergibt sich aus der Tatsache, dass die Selbstsorge die
Wiederbetrachtung der menschlichen Begierden in der Pädagogik ermöglicht. Die hier
vertretene Thesis stützt sich darauf, dass diese Begierden das menschliche Wesen an seiner
Verwirklichung hindern, wofür eine Überwindung seiner Begierden durch die Psychagogie
erforderlich wäre. Diese Beziehung erfolgt durch die Betreuung eines Meisters, der die
Veränderung vom Wesen des Lernenden ermöglicht. So werden Betrachtungen bezüglich
dem Status des Lernenden durchgeführt, in denen Argumente zugunsten einer bestimmten
menschlichen Psychologie dargestellt werden. Es wird die Übersetzung von Johannes 1:11
vorgestellt, die von der Theorie der französischen Diskursanalyse umgesetzt werden
konnte und den Beginn einer ausgebreiteten Studie setzt, welche zu dem führt, was auch
als Pädagogik der menschlichen Begierde bezeichnet wird. Diese Pädagogik bedarf der
Selbstsorge und ermöglicht die Betrachtung der dagogischen Beziehung zwischen dem
Meister und dem Lernenden unter dem Gesichtspunkt der menschlichen Perfektibilität,
nach welcher der Lernende seine latenten Potenziale entwickeln kann.
Schlüsselbegriffe: Erziehungsgrundlagen, Leben als Kunstwerk, Selbstsorge
. Subjekt, Diskursanalyse.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 6
1 O CUIDADO DE SI.................................................................................................. 10
1.1 O sujeito e suas crises.................................................................................................. 10
1.2 Contextualização do cuidado de si.............................................................................. 13
1.3 O cuidado de si e pedagogia contemporânea: Heidegger tem razão .......................... 16
1.4 O cuidado de si e pedagogia contemporânea: contribuições de Foucault .................. 18
1.5 Transformação ética relacionada ao cuidado de si ..................................................... 21
1.6 Problematizando as ciências psicogicas................................................................... 23
2 PSICAGOGIA.......................................................................................................... 30
2.1 João 1:11 Análise de Discurso, Historicidade, Discurso, Formação Discursiva,
Posição-sujeito, Tradução................................................................................................. 30
2.2 A Bíblia: alguns aspectos relevantes........................................................................... 39
2.3 Considerações sobre o processo tradutório: a dessacralização da objetividade.......... 43
2.4 Vertentes tradicional e contestadora, processo tradutório........................................... 44
2.5 Considerações metodológicas..................................................................................... 50
2.6 Os verculos 1 a 10 de João ....................................................................................... 51
2.7 O 11
o
versículo............................................................................................................ 52
2.8 Observões sobre Cristianismo e Igreja Cristã.......................................................... 53
2.9 Um caso concreto: o discurso da IECLB.................................................................... 56
2.10 O discurso do Logos.................................................................................................. 57
2.11 Considerações sobre o Logos na cultura greco-romana............................................ 58
3 ESTETIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA ........................................................................ 63
3.1 O discurso pedagógico das paixões humanas ............................................................. 63
3.2 A filosofia enquanto medicina da alma....................................................................... 65
3.3 O combate às paixões.................................................................................................. 70
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 75
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 80
6
INTRODUÇÃO
No âmbito da ação pedagógica, aceita-se, tacitamente, que o pai, o professor, o
padre, o governante detêm mais verdade
1
, no sentido foucaultiano, do que o filho, o aluno,
o fiel, o cidadão, estando aqueles, por isso, investidos de certa autoridade. Essa autoridade,
cada vez mais questionada, já foi atribuída ou reconhecida em consonância com a vida
exemplarmente ética daquele que exercia ou pretendia exercer algum tipo de ação sobre os
demais. Na Antiga Roma, aspirantes a cargos públicos vestiam-se com uma túnica cândida
durante o processo eleitoral para simbolizar o primor ético e a elevação de propósitos
característicos de sua conduta em todas as situações de suas vidas: caso alguém conhecesse
alguma mácula do candidato, poderia arremessar terra na túnica. Quantos pais, professores,
padres, governantes poderíamos usar branco em nossa atuação pedagógica? Permanecendo
no terreno da política, o fato de Marx ter investido na Bolsa de Londres durante a redação
de O Capital
2
não significa um golpe duro na comunistologia, assim como o fato de o
Presidente Lula ter dobrado seu patrimônio em menos de quatro anos de mandato,
inclusive investindo em papéis da dívida pública brasileira, não o descredencia a criticar
políticas de juros
3
. Se vivemos tempos de crise ética, talvez isso se deva ao fato de a
Modernidade ter concretado as bases de sua ação pedagógica admitindo que o que
acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade, ter
autoridade para deter e exercer ão pedagógica sobre os demais é o conhecimento e o-
1
É tema onipresente em Foucault a problematização dos jogos de verdadecaracterizáveis como as relações
pelas quais o ser humano constitui-se historicamente como experiência – que possibilitam ao homem pensar-
se enquanto sujeito louco, trabalhador, cristão. Os jogos de verdade não se consagram à descoberta e cultivo
do verdadeiro, eles tão somente perseguem as regras segundo as quais aquilo que um sujeito diz acerca de
determinado fato ou objeto decorre da questão do verdadeiro e do falso emergentes em discursos concretos,
como no âmbito pedagógico.
2
Vide Adieu Marx, de Volker Elis Pilgrim.
3
Disponível em: <http://globovox.globo.com/posts/list/31940.page>. Acesso em 15 jul. 2006.
7
somente o conhecimento; Foucault caracteriza essa época de período cartesiano
(FOUCAULT, 2004).
A transmissão de conhecimento, no entanto, é apenas parte de um projeto
educacional: falta-lhe espiritualidade para que se revista de autoridade. Foucault afirma
que, na Antiguidade, atos de conhecimento e espiritualidade transformações no ser do
sujeito necessárias ao acesso à verdade – jamais estiveram separados:
Um ato de conhecimento em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar
acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumido
por certa transformação do sujeito (...), do próprio sujeito no seu ser sujeito.
(FOUCAULT, 2004, p. 21)
Partindo dessa premissa, o objetivo dessa dissertação é postular relação entre
cuidado de si e educação, propondo como inspiração um retorno ao ideal pedagógico
grego. Muitos educadores reagirão com um dar de ombros ou franzir de sobrancelhas,
apoderados de um mal-estar, à proposta de consideração da espiritualidade e dos cuidados
de si em âmbito educacional, no entanto, praticamente toda filosofia antiga (pitagóricos,
sofistas, cínicos, acadêmicos, peripatéticos, epicuristas, estóicos), filosofia renascentista
(Petrarca, Pico della Mirandola, Erasmo de Roterdã, Montaigne), bem como o Pré-
romantismo e Romantismo alemão (Schlegel, Novalis, Goethe), entre outros movimentos e
autores, erigiu-se sob essa perspectiva (SCHMID, 2006).
De origem grega, o cuidado de si foi reproblematizado por Michel Foucault nos
anos 80 do século XX; outros autores, em diferentes épocas, também o fizeram, no entanto,
optei por tomar como base os estudos de Foucault por dois motivos: por sua obra permitir
problematizar o que se denomina sujeito pedagógico assentado no sujeito cartesiano, e por
ela dar sobrevida à clássica questão da estetização da existência.
Toda pedagogia, em princípio, desenvolve-se a partir de uma concepção de sujeito.
Aquela aqui defendida pressupõe não apenas uma pedagogia, sinônimo de “transmissão de
uma verdade que tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidades,
saberes [...] que ele antes não possuía e que deverá possuir no final desta relação
pedagógica” (FOUCAULT, 2004, p. 493), mas também uma psicagogia
4
, descrita por
4
Do gr. psykhé, «alma» +-gogía, de ágein, «conduzir; levar». O termo é comumente relacionado a várias
áreas do saber, tais como à Psicologia, à Logoterapia, à Teoria da Literatura; no campo da comunicação, por
exemplo, psicagogia é inerente ao emprego de técnicas para convencer de maneira afetivo-emocional o
8
Foucault relacionada à prática do cuidado de si como transmissão de uma verdade que
não tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões (...), mas modificar o modo de
ser do sujeito a quem nos endereçamos” (FOUCAULT, 2004, p. 493). Trata-se da
concretização do desafio foucaultiano de transformar a vida em uma obra de arte. Para
tanto, é preciso abordar um território pouco explorado educacionalmente: a referida
estetização da existência, o ideal grego de educação.
No primeiro capítulo, tecerei considerações acerca de concepções de sujeito em
Ciências Humanas para, então, apresentar aspectos do pensamento de Foucault e suas
pesquisas sobre o cuidado de si. Apresentarei o cuidado de si enquanto um páthos da
transformação ética na Antiga Grécia, para, então, postular uma idéia de psicologia
humana caracterizada pela não-inefabilidade de sua interioridade constitutiva, fazendo
breve incursão pela epistemologia da Psicologia. A partir deste ponto, tomarei gradual
distância da filosofia foucaultiana a fim de poder inquirir o alcance do cuidado de si na
relação psicagógica entre mestre e discípulo a partir da antiga Grécia, abordando a
Filosofia como prática de vida. O distanciamento é necessário em virtude de o filósofo o
considerar que haja uma essência do sujeito a ser desvendada e desenvolvida, por
considerar que o sujeito é apenas forma, não substância (FOUCAULT, 1999, p. 403).
No segundo capítulo, apresentarei um mestre da pedagogia das paixões, Jesus
Cristo. Com auxílio do aparato teórico da Análise de Discurso, incursionando pelos
domínios das Ciências da Linguagem, farei análise de João 1:11 em que o fator lingüístico
será pressuposto. Através do cotejo de distintas posições-sujeito, apresentarei fios
discursivos relacionados ao discurso identificável no referido corpus a fim de poder
apontar pistas de uma pedagogia jesuscristiana, também caracterizável como pedagogia
das paixões humanas. Proporei, amparado pelo conceito discursivo de processo tradutório,
uma tradução do referido versículo, uma vez que todas as demais propostas, consultadas
em diferentes nguas e edições, fazem opções lingüísticas determinadas pela formação
discursiva igreja cristã ocidental e apresentam versões textuais cujos efeitos de sentido
remetem para mera pedagogia da redenção com base em crenças, a qual prescinde do
cuidado de si.
destinatário de um comercial de automóvel a adquirir o modelo novo, do ano, por ele ter novo design de
pára-choques: argumentos objetivos e racionais dificilmente levariam o proprietário de um automóvel 2006 a
trocá-lo por um 2007 por causa do design dos pára-choques. No sentido foucaultiano, empregado nessa
dissertação, trata-se da ciência dos métodos para uma melhor condução da existência com o apoio
imprescindível de um mestre e através da prática do cuidado de si.
9
Por fim, no terceiro capítulo, apresentarei uma categoria fundamental à nossa tese:
o discurso do logos e a pedagogia das paixões humanas
5
, principalmente em autores e
escolas da Grécia e Roma clássicas e da Patrística de fala grega dos primeiros séculos da
Cristandade, mas também em clássicos da educação como Pico della Mirandola,
Comenius, Rousseau e Kant, para que se possa justificar a consideração do cuidado de si
como ideal educativo. A relação pedagógica entre mestre e discípulo passa a ser
considerada sob a ótica da perfectibilidade humana, fazendo-se necessário considerar a
possibilidade de o discípulo, com auxílio de seu mestre, obter a medicina da alma, isto é,
tornar-se filósofo, educar-se, desenvolver suas potencialidades latentes a partir de situações
práticas do dia-a-dia. Perfectibilidade, aqui, não é simples sinônimo de perfeição, é mais
um aperfeiçoar-se contínuo.
Essa dissertação, vinculada à linha 1 de pesquisa do Mestrado em Educação da
Universidade de Passo Fundo, justifica-se pelo fato de que a pedagogia, segundo Dalbosco
(2003), além de investigar empiricamente a prática pedagógica, dever refleti-la e
fundamentá-la, aproximando-se, dessa forma, não da filosofia - na medida em que se
insere no âmbito da racionalidade -, mas também de outros saberes, adquirindo caráter de
ciência entre fronteiras. Por esta dissertação ser apresentada a um programa de pós-
graduação em educação de um país ajustado à globalização, cujo sistema de ensino, cada
vez mais, visa à formação de mão-de-obra simplesmente adequada à economia, é que corro
o risco entre a ousadia e a ingenuidade, talvez de propor um olhar que intersecciona
disciplinas em busca de respostas às clássicas perguntas relacionadas ao estatuto do
homem e a possíveis funções da educação.
Nesse front, um dos desafios da Pedagogia é conciliar prática pedagógica e ação
humana. Minha hipótese é que o cuidado de si tem contribuições a fazer, para que a
relação entre mestre e discípulo, quer seja entre pai e filho, professor e aluno, padre e fiel,
governante e cidadão, de alguém consigo mesmo seja também pautada por uma pedagogia
das paixões humanas. Em nossos lares, instituições de ensino, templos religiosos e na
política faltam mestres. Não que devam ser perfeitos, mas que, socraticamente, comecem a
cuidar de si.
5
Proponho esse termo a fim de caracterizar relação entre mestre e discípulo na qual há concomitantemente
transmissão de conhecimento e transformação, tanto do mestre como do discípulo visando à estetização da
existência, através do combate às paixões humanas.
10
1
O CUIDADO DE SI
1.1 O sujeito e suas crises
Inicio esse capítulo com o objetivo de problematizar o sujeito pedagógico moderno,
a partir do qual são fundadas teoria e práxis pedagógicas modernas. Faço-o na perspectiva
de crítica à Modernidade
6
, a partir da perspectiva pós-moderna, uma vez que esta procura
ver e desnaturalizar os preceitos da Modernidade criticando suas concepções de sujeito.
Souza (2006) atribui a Descartes o deslocamento da gravitação de todo o relativo à
verdade de Deus para o homem individual, racional, centrado em si, caracterizado por sua
capacidade de pensar e raciocinar sobre si, o sujeito autônomo, agente, iluminado. Essa
concepção de sujeito ao mesmo tempo centro e origem das ações caracteriza a crença da
Modernidade na possibilidade de a humanidade progredir exclusivamente pela via da
ciência e da razão. O mundo passa a ser objeto de exame crítico e rigoroso, suas mazelas
são denunciadas e atreladas a suposta panacéia: determinada concepção de sujeito
iluminista
7
dotado do potencial de levar a humanidade para um mundo de liberdade e auto-
realização, cujo clímax ontológico seria o sujeito da maioridade, o sujeito autônomo.
6
No sentido atribuído por Rouanet em As origens do Iluminismo (1987), onde o pensador caracteriza a pós-
modernidade como espécie de exorcismo da modernidade: “O pós-moderno é muito mais a fadiga
crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que
despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é
um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade. É literalmente, falsa consciência, porque
consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque
alude, de algum modo, às deformações da modernidade”.
7
Discursos podem perder sua clareza nas brumas dos tempos, sendo necessário estudar suas regras, formas e
modelos a fim de possibilitar aproximação ao horizonte de pensamento de seus autores”; acima de tudo,
porém, o devemos imaginar predomínio ou exclusividade de discursos, pois é da natureza social humana a
diversidade, em todos os aspectos.
11
Numa perspectiva crítica, Prestes (1998) escreve sobre a polêmica gerada pelo
naufrágio e pelas perdas do Iluminismo, fazendo com que “apenas a contingência e a
diferença possam valer” (p. 219). O sujeito capaz de ação moral e epistêmica, fundamento
da educação iluminista, é questionado, e não algo de referência universalmente válida
para ser colocado em seu lugar, pois o discurso pedagógico, justificado em categorias que
davam sentido à sua ação, não pode prescindir do princípio de subjetividade, caracterizado
pelas categorias pedagógicas de consciência, autonomia e liberdade. Prestes advoga, como
alternativa, validade aos argumentos de Habermas, para quem o projeto moderno deve ser
revisto e reformulado através da recusa ao relativismo pós-moderno, além de investimento
em um paradigma de compreensão mútua com ênfase no consenso entre as pessoas,
possível através da teoria denominada comunicativa.
Os clássicos modernos revelam, segundo a filósofa, confiança na ação
transformadora do homem, mas a Modernidade não foi capaz de efetivar plenamente o
caminho da promoção humana, com conseqüências à educação - experiência histórica e
vinculada ao projeto iluminista - que tem, assim, suas categorias dissolvidas.
Numa perspectiva pós-crítica, Lyotard (apud SOUZA, 2006), caracteriza a
modernidade – do culo XVIII até o presente – como o período das metanarrativas,
criticando tanto a teoria hegeliana da emancipação e do autoconhecimento do espírito na
história como a narrativa marxista da emancipação política universal e progressista, ambas
com pretensões totalizantes, por excluírem outras identidades, histórias ou temporalidades.
O francês caracteriza a condição pós-moderna enquanto postura de incredulidade em
relação às metanarrativas, que ainda incluem o fenômeno de naturalização do que se
conhece caricatamente como globalização e a valorização da informação vendável e de sua
performatividade, resumíveis em termos como “sociedade da informação”. Para Lyotard, é
possível a consideração de outras narrativas. Antes, porém, de apresentar a contribuição
foucaultiana (e problematizá-la), farei breve genealogia da implosão do conceito de sujeito
centrado, na visão de Stuart Hall.
Hall (2002) discorre sobre cinco cortes epistemológicos que contribuíram para o
duplo deslocamento ou descentração do sujeito (do seu lugar no mundo sócio-cultural e de
si mesmo), fenômeno que se constitui em uma crise de identidade. Hall inicia apresentando
três distintas concepções de identidade relativas a três conceitos de sujeito:
a) sujeito do Iluminismo: concepção idealista de sujeito centrado, unificado, dotado
das capacidades de razão, de consciência e de ação. Dispõe de um núcleo-eu com o qual
nasce e que se desenvolve ao longo da existência.
12
b) sujeito da Sociologia: concepção interacionista de formação de identidade; o
núcleo-eu não é autônomo nem auto-suficiente, ele se forma em interação com as
influências sócio-culturais.
c) sujeito pós-moderno: concepção de sujeito desprovido de um eu nuclear. Sua
identidade não é fixa, essencial ou permanente, mas fragmentária, composta de várias
identidades, inclusive contraditórias e o-resolvidas. O sujeito assume identidades
diferentes em distintos momentos: elas são móveis, formadas e transformadas em relação
às formas de representação ou interpelação dos diferentes contextos ou sistemas. Hall
qualifica como fantasiosa uma concepção de identidade unificada, completa, segura e
coerente, pois os sujeitos convivem em contextos sócio-culturais em mudança constante,
rápida e permanente.
Recuperando distintas concepções de sujeito ao longo da história, o autor
caracteriza o indivíduo anterior à Idade Moderna como portador de uma individualidade
apoiada nas tradições e nas estruturas sociais divinamente estabelecidas. Como importante
ruptura em relação a esse sujeito, apresenta a concepção de indivíduo soberano, nascida
entre o Humanismo Renascentista e o Iluminismo, marco do início da Modernidade. Ainda
durante o Humanismo, período das revoluções científicas que possibilitaram ao sujeito
inquirir, investigar e decifrar os mistérios da natureza, o sujeito é colocado no centro do
universo, prenunciando o Iluminismo, movimento de acordo com certas correntes - do
sujeito racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, a quem se estende a
totalidade da história humana para ser compreendida e dominada.
Descartes é citado por Hall como importante influenciador dessa concepção de
sujeito, uma vez que o caracteriza como racional, pensante e consciente, ao alcance de
quem está o conhecimento, atingível através da mente metódica. A Descartes também se
deveria a refocalização do dualismo entre corpo e mente, que perdurou ao momento em
que as sociedades se tornaram mais complexas e o sujeito foi se enredando nas
maquinarias burocráticas e administrativas da Modernidade. Esse novo contexto conduz a
uma concepção de sujeito a partir do prisma social: ele passou a constituinte das estruturas
e formações sociais, impulsionado pela teoria darwiniana de biologização e pelo
surgimento das novas ciências sociais. Entretanto, seu status de indivíduo soberano clivado
pelo dualismo cartesiano ainda é mantido. Do Modernismo e dos movimentos intelectuais
afins do século passado, Hall cita o sujeito isolado, exilado ou alienado, colocado como
contra o pano de fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal. Essa idéia
culmina na concepção de sujeito definitivamente descentrado.
13
Os cinco cortes sugeridos por Hall são os seguintes: 1) Marx e a releitura de sua
obra por Althusser; 2) Freud e a releitura de sua obra por Lacan; 3) Saussure e a idéia de
que a língua é um sistema social e não individual; 4) os movimentos questionadores da
década de 60 e, por fim, 5) Michel Foucault e seus conceitos de poder disciplinar e de
formação discursiva. Os cortes 1, 2 e 3 serão abordados no segundo capítulo dessa
dissertação, o quarto corte é de importância menor para esse estudo, enquanto o quinto
interessa sobremaneira, especialmente as relações entre formação discursiva e educação.
Foucault influenciou enormemente o pensamento ocidental nas últimas cadas,
tendo sido um dos que mais contribuiu para o descentramento e morte do sujeito
cartesiano. De acordo com o francês, as noções de poder disciplinar e de formação
discursiva regulam, por assim dizer, as práticas sociais. Souza (2006) resume a intenção do
autor de a Arqueologia do saber como crítica à idéia de que uma coisa referida pelo
mesmo rótulo é sempre a mesma coisa, pois as diferenças de sentido são constituídas pela
prática do pensamento, pela ordem dos discursos com seus mecanismos de restrição ao
sentido. Formação discursiva, segundo Souza, é um conjunto de enunciados relacionados a
um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas, pertencentes àquilo que se
denomina episteme. Este autor afirma que a palavra terra, por exemplo, significa
distintamente para um latifundiário e para um sem-terra. Esta noção, transportada para a
Análise de Discurso, revela o fato de que o indivíduo empírico dos discursos o importa,
pois o que funda o discurso não é o “quem” falante, mas o lugar de onde esse mesmo
“quem” fala: o sujeito-indivíduo lugar a uma posição-sujeito. Essa contribuição
foucaultiana fundamenta e dá visibilidade a uma perspectiva que permite alterar o modo de
ver e categorizar o mundo a partir do sujeito. Essa postura, em maior ou menor grau,
questiona o sonho da linguagem inocente, por isso, ela também é chamada de virada
lingüística, movimento que não prescinde das discussões em torno do conceito de sujeito.
A elas o cuidado de si tem contribuições a fazer.
1.2 Contextualização do cuidado de si
Foucault, no seminário Les techniques de soi (FOUCAULT, 2006), afirma ter sido
seu objetivo, por mais de 25 anos, esboçar a história de como os homens, de diferentes
maneiras, elaboram saberes sobre si próprios, chegando a uma classificação quádrupla de
14
técnicas específicas utilizadas por eles para compreenderem aquilo que são. A primeira
refere-se às técnicas de produção, que permitem a produção, transformação e manipulação
de objetos; a segunda, às cnicas de sistemas sígnicos, que permitem a utilização de
signos, sentidos, símbolos ou significação; a terceira, às técnicas do poder, determinantes
da conduta dos indivíduos, objetivantes do sujeito a fim de submetê-los a certos fins ou à
dominação. Interessa-nos, em especial, a quarta: as técnicas ou tecnologias de si
concretizadas pelo cuidado de si, que possibilita aos homens efetuarem, sozinhos ou com
auxílio de outros, operações sobre seus corpos e sobre suas almas, pensamentos, condutas,
modos de ser para transformarem-se e, assim, atingir estado de felicidade, pureza,
sabedoria, perfeição ou imortalidade.
Foucault relata os estudos que fez sobre as tecnologias de si nos séculos
imediatamente anteriores e posteriores ao nascimento de Cristo. De acordo com o filósofo,
os gregos, primeiros praticantes destas tecnologias, consideravam-nas um dos princípios
que regiam a vida na polis, um modo de conduta da vida pessoal e social, fundamental para
a arte de viver, pois, para a concretização da máxima délfica "conhece-te a ti mesmo" é
necessária, primeiro, a prática das tecnologias de si, o cuidar-se de si mesmo.
No Alcibíades de Platão (PLATÓN, 1977, FOUCAULT, 2004) é encontrada uma
antiga elaboração filosófica das tecnologias de si. O jovem Alcibíades, prestes a começar
sua vida pública e política, quer se dirigir à população e tornar-se seu líder. Procurando por
Sócrates, é interrogado por este acerca de suas capacidades pessoais e da natureza de sua
ambição. Ignorante, Alcibíades é exortado a aplicar-se, a cuidar de si mesmo. Platão
explica, então, o que é este "si" e como é este "cuidado". Tem início um diálogo em que o
cuidado de si é caracterizado dialeticamente: quem cuida do corpo não está cuidando de si
o corpo é mera vestimenta, uma ferramenta. O cuidado de si deve ser procurado no
princípio que permite a utilização do corpo, um princípio que pertence à alma. O ocupar-se
com a alma é a principal atividade do cuidado de si.
A primazia da alma, contudo, não exclui os cuidados com o corpo e a própria
posição social; ocupar-se de si mesmo também o é amor a si mesmo, sinônimo de
egoísmo ou de interesse individual (FOUCAULT, 1999, p. 396-397). Foucault ainda exclui
outra possível objeção: segundo ele, apenas um cuidado de si desvinculado do cuidado dos
outros corre o risco de absolutizar-se, chegando a uma forma de poder sobre os outros no
sentido de dominá-los. Esse risco sucede, devido ao fato de o sujeito não ter cuidado de si,
transformando-se em escravo de seus desejos.
15
Enfim, no Alcibíades o cuidado de si não visa ao culto da interioridade ou ao
narcisismo: é o cuidado da alma, não sendo esta, na antropologia grega, sinônimo de
essência ou de imortalidade, mas concebida mais como uma estrutura reflexiva que faz uso
de si mesma, visando ao bem agir conducente à boa vida. Alma pode ser considerada
saber, sabedoria, razão, o pavimento do caminho que conduz ao Bem e que passa,
necessariamente, pelo conhecimento de si.
Além de ter papel na esfera individual, o cuidado de si representa função social na
polis: uma vez que este cuidado não tem como objetivo simplesmente privilegiar os
aspectos corporais nem as riquezas materiais, seria uma espécie de arete, uma virtude
específica da alma que dignifica o indivíduo e mantém a sociedade. Daí a necessidade de
todo político ser, também, filósofo, o que explica o diálogo Alcibíades.
O cuidado de si, um complexo de obrigações e de compromissos do indivíduo com
sua alma, é caracterizado por Foucault como um tema filosófico comum e universal no
período helenístico e no Império Romano, mas tem ressonâncias - inclusive relacionáveis
ao contexto educativo - também em outras épocas e autores, como Nietzsche e Heidegger.
Nietzsche, Heidegger e Foucault deflagraram o surgimento de um conjunto de
categorias concebidas na contramão das teorias preconizadas pelo Iluminismo. Nietzsche
(RIBEIRO, 2004)
critica a Modernidade, denunciando a moral gregária da obediência, da
passividade dos que, guiados pelas convenções sociais, procedem como integrantes de um
rebanho incapaz de elaborar e defender suas próprias opiniões, divorciados de seu gênio
criador e inventivo, enfim, inaptos para a vida. Ele propõe a reflexão crítica para que o
se aceitem os princípios e os resultados científicos como se fossem dados, sem se
questionar seus fundamentos. Heidegger, por sua vez, critica a Modernidade por ela ter
abandonado a interrogação ontológica sobre o ser presente na filosofia grega “para
fixar-se na investigação ôntica que trata do ente” (p. 20). A filosofia moderna desviaria a
pergunta do ser para a substância, fazendo com que perguntas e respostas estejam dirigidas
a um objeto externo, uma res extensa cartesiana. Para o alemão, ao se configurar o ser
enquanto ente, a fim de que se possa manipulá-lo para melhor compreendê-lo, estudá-lo e
controlá-lo, ele foi aprisionado, “pois o ser na sua plasticidade não se permite capturar em
um único sentido” (p. 20). Dessa forma, conclui Ribeiro, as instituições modernas
constituíram-se tendo por base o ente enquanto substância, tomando-o pelo ser. Foucault,
por fim, relaciona a crise da Modernidade à emergência da razão enquanto seu
fundamento, problematizando os modos de constituição das ciências. O francês questiona
o distanciamento entre a promessa da razão e a realidade da técnica” (p. 21), apontando
16
possibilidades e liberdades alternativas ao fazer uma história dos diferentes modos de
subjetivação existentes em nossa cultura, através dos quais os homens desenvolveram um
saber sobre si mesmos” (p. 25).
Um aspecto comum aos três filósofos e que fundamenta suas críticas é o cuidado
de si”. Nietzsche (RIBEIRO, 2004) concebe educação como cuidado de si contraposto à
ação domesticadora do Estado, que visa à formação de “despersonalizados” para o
preenchimento de funções na sociedade moderna, do erudito ao funcionário público.
Também Heidegger confere importância à singularidade humana e ao cuidado que esta
requer para que se possa retirar o ser do estado ôntico igualitário e massificador no qual se
encontra: a pedagogia “equalizadora” deve dar lugar a um cuidado de si, do outro e do
mundo, visando a uma maneira peculiar de ser, de inspiração socrática, cuja existência
transcenda vivências amorfas. Em Foucault fica clara, de maneira especial, a
impossibilidade de a educação moderna deter o papel salvacionista de levar à verdade ou
de iluminar as consciências. A importância do último reside no fato de provocar reflexões
sobre o cuidado de si sob a perspectiva ética, passível de instauração nas práticas
pedagógicas. É o que nos interessa agora.
1.3 O cuidado de si e pedagogia contemporânea: Heidegger tem razão
Larrosa (1994) atualiza a problemática dos cuidados de si em ambiente pedagógico
a partir de uma série de termos existentes que se referem à relação do sujeito pedagógico
consigo mesmo, como autoconhecimento”, “auto-estima”, “autocontrole”,
“autoconfiança”, “autonomia” e outros, derivados de verbos reflexivos, como conhecer-se,
estimar-se, controlar-se. Esses termos são considerados relevantes, na medida em que a
possibilidade de uma consciência de si e de uma relação reflexiva consigo mesmo define,
de certa forma, o caráter de ser humano. Essa relação resgatada por Larrosa remonta a
Platão, que, na República, caracteriza como boa uma pessoa que é dona de si mesma,
“mais forte que si mesma” (kreitto autou) (p. 39). Para compreender o filósofo, é
necessário levar em conta a distinção da alma humana entre a razão (to logistikon) e os
apetites (to epithumetikon), sendo que cabe àquela dominar estes últimos, naturalmente
insaciáveis e em perpétuo conflito. O domínio dos apetites conduz ao caos, em oposição ao
kosmos, à ordem, à harmonia, que podem ser impostos pela razão, a qual deve decidir
17
quais são os apetites necessários, resistindo aos desnecessários e aos que conduzem ao
vício. Assim, a razão pode conferir à pessoa autocontrole, estabilidade, unidade com ela
mesma, enfim, “uma subjetividade centrada” (p. 39), passando a deter um status moral.
De acordo com Larrosa, os termos expostos acima costumam ser usados, por
exemplo, em um contexto pedagógico, em que se fala em desenvolvimento da auto-
identidade do sujeito. Esse sujeito, entretanto, não pode ser considerado intemporal- nem
acontextualmente. Ele deve, ao contrário, ser analisado em vista de discursos e práticas
pedagógicas, pois é na articulação deles que ele se constitui no que é: “a idéia do que é
uma pessoa, ou um eu, ou um sujeito, é histórica e culturalmente contingente”
(LARROSA, p. 40), assim como o é a forma de ele comportar-se. A concepção de um ser
humano de sujeito e de si mesmo enquanto tal influencia seu comportamento e sua conduta
em relação a si mesmo e aos vários sujeitos com os quais interage.
Nessa perspectiva, o cuidado de si é resultado de um complexo processo histórico
de fabricação, em que se entrecruzam discursos. Ele se expressa quando um sujeito se
observa, se interpreta, se descreve, se narra, se domina. Isso ocorre em relação a
determinadas problematizações e no interior de certas práticas, enquanto constituidoras de
subjetividade, que devem ser focalizadas, na análise da experiência de si, em detrimento de
comportamentos, sociedades e ideologias.
Segundo o sentido pedagógico comum, as teorias da natureza humana descrevem e
normativizam a relação da pessoa consigo mesma, caracterizando-a como “sã”. A partir
deste parâmetro, também são definidas as patologias. De acordo com esse viés, as práticas
pedagógicas são lugares de mediação que oferecem recursos para o desenvolvimento de
uma relação saudável do ser humano consigo mesmo. Por outro lado, na perspectiva
foucaultiana, essa concepção é invertida, a partir de duas regras metodológicas: (1) É
preciso “interrogar os universais antropológicos em sua constituição histórica”, não se
limitando às concepções vigentes de natureza humana, mas problematizando as idéias
referentes à relação consigo mesmo, levando em conta as condições históricas e as áreas do
saber em que se formaram (2). A análise deve privilegiar as práticas concretas, pois elas
são ponto de partida, e não apenas entorno ou espaço possível de mediação, configurando-
se em “mecanismos de produção da experiência em si” (p. 44). Nelas se vinculam domínio
de atenção a modalidades de problematização.
Portanto, a “experiência de si” é passível de análise através de práticas pedagógicas.
Nesta análise, busca-se encontrar o ser mesmo do sujeito” (p. 44-45), envolvendo sua
história e sua cultura. Larrosa apresenta, em continuidade, uma prática de educação moral
18
que exemplifica uma mediação pedagógica dos educandos consigo mesmos: uma atividade
que leva crianças, por exemplo, de nove anos, a refletir sobre seus próprios valores. Cada
uma delas deverá responder, em uma folha, a uma série de perguntas do tipo: “O que acha
que sabes fazer bem?”; “O que achas que fazes mal?”; “De que gostas?”; “O que te
amedronta?”; “O que gostarias de mudar em ti?”. Logo após, em duplas, cada criança
relatará ao colega suas respostas, esclarecendo eventuais dúvidas. Por fim, cada par
confeccionará um mural, expressando, através de textos ou desenhos, no que os
componentes se assemelham e divergem. Esses trabalhos, então, serão observados e
comentados no grande grupo. A prática pedagógica apresentada aqui sem textos,
conceitos ou respostas a priori se constitui em “uma gramática para a interrogação e a
expressão do eu” (p. 46), a partir da qual é possível construir uma experiência de si, em
que “a criança produz textos. Mas, ao mesmo tempo, os textos produzem a criança” (p.
46). O objetivo da prática citada é estabelecer ou transformar a relação do sujeito com ele
mesmo, ou, como quer Foucault, produzir e mediar “formas de subjetivação” (p. 51)
relativas à experiência de si.
1.4 O cuidado de si e pedagogia contemporânea: contribuições de Foucault
Ao propor-se a descrever e comentar a experiência de si, Larrosa filia-se aos textos
produzidos por Foucault, principalmente após 1978, quando a preocupação do filósofo
passa a direcionar-se, de maneira especial, à ética e às técnicas ou tecnologias de si.
Segundo as análises produzidas por Foucault na década de setenta, o sujeito se
produz no interior do cruzamento entre saber e poder, o que possibilita sua manipulação,
legitimada “cientificamente”, pela técnica e pelas instituições. A educação tem, nesse
contexto, papel de reguladora e controladora social, e suas práticas entre as quais se
destaca o “exame” possibilitam a criação de sujeitos classificados e divididos tanto
internamente como entre si. “O sujeito pedagógico” é resultado, então, de discursos que o
nomeiam e de práticas que o capturam.
a partir de 1976 percebe-se uma reorientação do interesse de Foucault para a
interioridade do sujeito. A História da Sexualidade aborda o trabalho deste, através de
certas tecnologias, a fim de estabelecer a verdade sobre si mesmo e a chave para sua
libertação, no âmbito da sexualidade. O binômio saber/poder passa a remeter à questão do
19
“governo”, que, por sua vez, não pode ser considerada isolada do “autogoverno”,
intimamente relacionado com o tema da subjetividade. O governo vinha sendo
interligado, por Foucault, além do campo político, ao campo moral, pedagógico, religioso
(“pastoral”) e até econômico - o “poder pastoral” exige, inclusive, o conhecimento da
consciência dos indivíduos por parte de quem o exerce.
Quanto à relação entre “governo”, “autogoverno” e “subjetivação”, Foucault cita as
“tecnologias do eu”, que implicam a análise do governo de si mesmo em sua relação com
outras formas de governo, exercidas pelas instituições sociais, o que explicita a íntima
ligação estabelecida por ele entre questões políticas e éticas. Estas passam, enfim, a
dominar o cenário do segundo e do terceiro volumes da História da Sexualidade, no início
da década de oitenta, nos quais Foucault analisa, de forma detalhada, a manipulação da
existência pessoal das pessoas, sempre dedicando atenção especial às “diferentes
modalidades da construção da relação da pessoa consigo mesma” (, p. 54). A partir daí, são
levadas em conta, na produção do sujeito, não apenas as práticas pedagógicas de
“objetivação” em que o sujeito ocupa uma posição passiva –, mas também de
“subjetivação”, ou seja, que influenciam a criação de uma verdade sobre o sujeito, de cuja
produção ele próprio irá participar ativamente.
Com relação à experiência de si, Foucault procura identificar condições práticas e
históricas em que os sujeitos podem ser produzidos, através da análise dele como objeto
que se observa, se analisa e se reconhece como algo passível de ser “sabido”. Esse
processo é o que Foucault entende por subjetividade, e se entrelaça com a “experiência de
si mesmo”. A virada historicista do filósofo a respeito da experiência de si se expressa na
idéia de que ela não é algo que permanece imutável, mas que constitui o sujeito enquanto
si mesmo, conferindo-lhe uma história. A partir daí, a história da subjetividade equivale à
“história da forma da experiência de si” (LARROSA, p. 55). Já a virada pragmática
questiona como, e através de que mecanismos se produz esta experiência de si. Para
Foucault, ela ocorre quando certos atos ou estados do sujeito são, por ele mesmo,
problematizados, ou seja, observados, analisados, avaliados. “As formas de
problematização [...] estabelecem a especificidade da experiência de si” (p. 56), estando
relacionadas, sempre, a domínios materiais e, portanto, sendo, como estes, históricas e
contingentes.
Nesse processo de objetivação do eu pelo próprio sujeito que procede à experiência
de si, as tecnologias do eu exercem papel fundamental. São elas que medeiam a relação do
indivíduo consigo mesmo e lhe permitem realizar transformações sobre si mesmo, para
20
alcançar um estado de alma almejado. Da mesma forma, possibilitam que, através do
autodomínio e do autoconhecimento, ele possa lidar com sua identidade, tendo em vista
determinados fins. Dessa forma, a experiência de si configura-se como a correlação
existente, em certo local e certa época, entre a estrutura e o funcionamento de um
dispositivo pedagógico.
Os dispositivos pedagógicos são lugares em que ocorre a experiência de si, como,
por exemplo, qualquer reunião de grupo religioso, terapêutico, político, educacional
que tenha como objetivo transformar a relação das pessoas com elas mesmas. Eles são, por
natureza, complexos, variáveis, contingentes e, muitas vezes, contraditórios, demonstrando
que o ser humano não passa de um resultado dos mecanismos através dos quais esses
dispositivos se processam. Por isso, a Pedagogia passa a ser vista como produtora de
“formas de experiência de si nas quais os indivíduos podem se tornar sujeitos de um modo
particular” (LARROSA, p. 57). A prática pedagógica há pouco citada deve ser considerada
não apenas como lugar de autoconhecimento, mas de definição do que significa
autoconhecimento. A experiência deve ser analisada em si mesma, destacando-se o fato de
que se localiza dentro de um dispositivo.
Considerando a filosofia de Foucault como uma análise de dispositivos concretos,
Larrosa procede à descrição de uma das dimensões que se configuram como dispositivos
pedagógicos na produção e na mediação da experiência de si: a dimensão ótica,
relacionada àquilo que é visível ao sujeito dentro de si mesmo, como na experiência prática
há pouco citada.
Segundo Larrosa, ver a si mesmo é uma metáfora que caracteriza bem nossa forma
de autoconhecimento. Através dela, se possibilita o desdobramento entre a pessoa e uma
imagem exterior dela mesma, como a que aparece no espelho. Em consonância com essa
idéia, o autoconhecimento requer uma exteriorização, uma objetivação da própria imagem,
a fim de que seja possível à pessoa ver a si mesma. Para tanto, a Psicologia colabora com
sua classificação, por exemplo, de tipos psicológicos, de síndromes, manias.
No entanto é possível levantar uma crítica. Foucault, ao publicar seus estudos sobre
o cuidado de si continuidade à sua problematização das ciências psicológicas, iniciada
com a História da Loucura e o Nascimento da Clínica. Uma vez que tantas Psicologias,
não concordando os próprios psicólogos quanto à definição de Psicologia, pergunta
Ferreira, em consonância com Foucault (2002): a quem ela fala? Sobre o quê?
Canguilhem (1999) em sua clássica crítica ao estatuto de cientificidade da Psicologia,
datada de 1956 e na qual faz menção ao fato de se ter a impressão de que muitos dos
21
trabalhos de Psicologia misturem uma filosofia sem rigor, uma ética sem exigências e uma
medicina sem controle, constata que a palavra alma faz fugir muitos psicólogos e, a
palavra consciência, rir, o que denota a natureza antifilosófica da Psicologia, que corre o
risco de restringir-se ao estudo de reações e comportamentos, por não dispor de uma idéia
de homem, de sujeito, acabando por inventar uma (FERREIRA, 2002). A crítica é: se por
outro lado, o processo de desdobramento entre a pessoa e ela mesma também fosse
possível através do olhar que se volta para dentro de si mesmo, sem a exteriorização
mencionada acima, chegaríamos à conclusão de que a Psicologia acaba por se divorciar
dos sistemas filosóficos da Antiguidade, por 1) atribuir caráter de inefabilidade à
interioridade psicológica e 2) por em âmbito pedagógico tradicional, não promover um
cuidado de si visando à psicagogia. Tratarei do item 1 no subcapítulo 1.6 e do item 2, na
conclusão, quando será proposto dispositivo pedagógico aplicável em diversas situações do
cotidiano ao se identificar a atuação das paixões humanas.
O próximo passo será apresentar o páthos da transformação ética relacionado ao
cuidado de si na relação entre mestre e discípulo, páthos esse aparentemente ausente no
discurso atual da educação.
1.5 Transformação ética relacionada ao cuidado de si
Se é fato que os caminhos que delineiam uma ética pós-moderna passam por
parâmetros estéticos (LOUREIRO, 2006), também é verdade que podemos problematizá-
los, por estabelecerem rumos e assumirem caráter de forma contingencial, pois são
desprovidos de uma essência definidora de natureza humana, fundamento último de
critérios de bem e de verdade. É nesse sentido que problematizo Foucault e recorro a
Hadot.
Hadot (1999) descreve a Filosofia antiga como arte de viver, estilo de vida, maneira
de viver, contrapondo-a à Filosofia moderna, convertida quase que exclusivamente em
discurso teórico. Foucault descreve as práticas de si mesmo predicadas pelos estóicos e
realizadas sempre sob orientação de um guia espiritual
8
, as quais pressupunham atenção
8
Foucault (2004, p. 480 e ss) cita Galeno e sua obra Tratado de cura das paixões para explicar a necessidade
de um mestre orientar a cura das paixões e dos erros: os seres humanos amam-se com tal intensidade que não
podem deixar de criar ilusões sobre si mesmos; tal fato desqualifica-os no papel de dicos de si próprios
22
voltada tanto ao corpo como à alma e cujo objetivo final é possibilitar a possessão de si
mesmo, ser dono de si.
Sêneca (apud HADOT, 1999, p. 220) identifica em si o que denomina razão, parte
da razão universal presente em todos os homens e no próprio universo uma melhor
parte de si mesmo transcendente, objeto de atenção dos cuidados de si. Mediante tais
cuidados, os estóicos visavam, primeiramente, ao superar do circunstancial (um desejo, um
acidente, um cargo) libertando-se tanto da preocupação relativa ao futuro como do peso do
passado, a fim de poder concentrar-se no momento presente, condição indispensável para o
pensar e obrar em sintonia com a razão universal, o Logos. Foucault realiza a descrição
dessas práticas no intuito de oferecer ao homem contemporâneo alternativa de modelo de
vida, denominada por ele estética da existência, mas de maneira contingencial, uma vez
que Foucault é avesso a universalismos.
Hadot (p. 221) ressalta a tendência de o pensamento moderno não atribuir sentido
especial a categorias como razão ou natureza universal. Fazem sentido, assim o entendo, as
ponderações de Hadot, de acordo com as quais somente mediante a prática do cuidado de
si, e não apenas através de sua teorização, torna-se possível à própria individualidade
elevar-se à universalidade. Para o filósofo, o movimento de prática de libertação da
exterioridade, do apego passional aos objetos exteriores e aos prazeres que podem
proporcionar, o movimento de prática de observação de si mesmo para verificar o
progresso alcançado através dos cuidados de si no domínio de si, de possuir-se e encontrar
a felicidade na liberdade e na independência interior, devem ser solidários do movimento
através do qual é possível a elevação psicológica que permite atingir outro tipo de relação
com o exterior, uma maneira de estar no mundo em que a consciência de si é exigida como
parte da natureza humana, como parcela da razão universal. Dessa forma, não se vive mais
apenas no mundo humano convencional e habitual, passando-se a viver no mundo da
natureza, de caráter universal.
Em outras palavras, e algo não enfatizado por Foucault, a interiorização mediante o
cuidado de si é condição para a superação do si mesmo ontológico e para a
universalização, necessárias para uma estetização da existência. Hadot (1999, p. 225)
sugere, inspirado em Marco Aurélio, a superação do cuidado de si excessivamente estético
fazendo necessária a consulta a outro, o mestre, desprovido tanto de indulgência como de hostilidade para
que indique àquele suas paixões. Como mestre pode-se tomar aquele que, em sua vida, mostrou conduzir-se
bem.
23
foucaultiano, propondo que o homem moderno realize um (sempre frágil) exercício de
sabedoria de tríplice forma:
esforço em praticar a objetividade do juízo, esforço em viver segundo a justiça e
a serviço da comunidade humana, esforço em cobrar consciência de nossa
situação dentro do universo (exercitar esses esforços partindo da experiência
vivida do sujeito concreto que vive e percebe). Esse exercício de sabedoria
concretiza esforço de abertura ao universal.
Para os estóicos, a interioridade humana assemelha-se, freqüentemente, nas
diversas situações do cotidiano, a uma matilha de cães, cada qual ladrando mais alto e
tentando se impor ao grupo (os cães representam os apetites, defeitos, ou paixões
humanas). Nessas ocasiões é necessária a presença do dono (a razão) que, com um
comando forte, põe ordem no “canil” para que o sujeito possa viver com juízo objetivo,
aberto ao universal, segundo a justiça e a serviço da humanidade, consciente em cada
situação. Um discurso sem muita ressonância no século XXI. Vamos abordá-lo melhor.
1.6 Problematizando as ciências psicológicas
A estetização da existência pressupõe o cuidado com a alma, para que a pessoa não
seja escrava de si mesma, de sua natureza interior passional. A História da Sexualidade 2
Foucault (2001), no capítulo sobre a enkrateia, refere que Sócrates, quando interrogado por
Cálicles acerca do que é "se comandar a si mesmo", responde que é "ser sábio e se
dominar, [...] comandar os prazeres e os desejos de si próprio" (p. 61). A propósito, nas
batalhas individuais constantes em Leis, de Platão, os adversários não são localizados no
indivíduo nem perto dele: eles são, isso sim, constituidores do indivíduo, "são parte dele
mesmo" (p. 64), "cada um, face a si próprio, é um inimigo de si mesmo" (p. 65). Em Leis, a
mais sublime das vitórias é a vitória sobre si mesmo; o mais vergonhoso e desprezível dos
fracassos "consiste em ser vencido por si mesmo" (p. 65). A exemplo de Platão, também
Xenofonte discorre sobre as batalhas interiores: em Econômica, este descreve uma casa
mal governada [alguém escravo das paixões]: "na alma do homem intemperante, senhores
'maus', 'intratáveis' trata-se da voracidade, da embriaguez, da lubricidade e da ambição
reduzem à escravidão [...]" (p. 67).
24
Nesta direção, Araújo (2000) cita os estudos de Foucault sobre os textos de
Tertuliano e Cassiano relativos às tecnologias de si aplicadas em ambiente religioso
cristão, as quais exortavam os monges a “vigiar permanentemente sua alma num
movimento de objetivação de si que nunca poderia ser considerado como findo, pois cada
pensamento, o mais banal deles, precisaria ser examinado” (p. 146).
Volta à cena, dessa forma, a problemática relação entre alma e corpo. Para fins de
discussão dessa relação, inicio com a apresentação de uma concepção de ser humano
enquanto ser dotado de parte material, seu corpo, e de parte imaterial, sua vida psíquica, a
qual será, neste estudo, sinônimo de alma.
Faria (2003) afirma que o problema das relações entre corpo e alma, a que se
subordinaram, em várias ocasiões, as demais discussões filosóficas, é uma herança da
Filosofia que está nas bases da formação da Psicologia. Inicialmente, esta nada mais era do
que a dimensão metafísica da Filosofia, centrada nas relações entre corpo e alma. Segundo
Descartes, cuja concepção dualista é paradigmática, a alma seria de mais fácil apreensão,
pois pode ser abordada diretamente, sem a mediação dos sentidos, imprecisos e limitados,
que caracterizam a percepção do corpo material. A vida orgânica e a vida psíquica, para o
filósofo, são duas correntes paralelas que se relacionam, mas se distinguem nitidamente. A
partir desta concepção - de que os pensamentos e as idéias, por serem percebidos de forma
direta, são uma certeza possível - nasce a Psicologia.
De acordo com Foulquié (1960), Maine de Biran (1766-1824) também influenciou
a evolução da Psicologia, ao questionar se a alma é causa ativa ou apenas espectadora das
idéias, procurando explicar a origem e a produção das faculdades humanas através do
exame das operações mentais. A observação de fenômenos interiores e o questionamento
da existência do eu levam Biran a conceber o método psicológico introspeccionista. Esta
concepção funda o Ecletismo, escola espiritualista francesa surgida nas primeiras décadas
do século XIX, representada por Victor Cousin, Royer-Coullard e Théodore Jouffroy. Os
ecléticos procuram basear a Filosofia em um conhecimento da vida interior, empregando
como instrumental o que denominam consciência. Segundo o ecletismo, a consciência é
uma espécie de testemunha, que nos adverte de tudo que se realiza no interior de nossa
alma. Através de Jouffroy, a Psicologia passa a ser considerada a ciência do princípio
inteligente do homem, do eu: é, em suma, a filosofia do espírito; e seu método é a
observação pela consciência” (p. 12). Adolphe Franck, em 1844, define psicologia como
25
a parte da Filosofia que tem por objeto o conhecimento da alma e de suas
faculdades, consideradas em si próprias e estudadas unicamente por intermédio
da consciência... A alma que se conhece e se observa a si própria, com auxílio da
consciência, nada mais é que minha pessoa, nada mais é que eu próprio. (p. 13).
Faria afirma que, imbuído do espírito cientificista da segunda metade do século
XIX, Fechner (1801-1887) procura demonstrar a possibilidade de medir e quantificar as
relações entre o psíquico e o físico através da linguagem matemática, estabelecendo a
transição entre o espiritualismo cartesiano e a “psicologia sem alma” do século XX. A
configuração desta idéia de Psicologia foi influenciada pelo desenvolvimento crescente das
ciências naturais ao longo dos séculos XVIII e XIX, bem como pelo materialismo
filosófico, para o qual o próprio Descartes, paradoxalmente, abre caminho, ao atribuir aos
animais a qualidade de autômatos cujo comportamento se explicaria “mecanicamente,
pelas propriedades da matéria”, teoria que não tardou a ser aplicada aos seres humanos.
Naturalmente, Darwin também contribuiu para a diminuição da distância entre animal e ser
humano, cuja compreensão psicológica começa a se basear nas pesquisas biológicas a
respeito do sistema nervoso, o que torna a metafísica desnecessária para explicar os
fenômenos físicos. Na busca de status científico, a Psicologia também procurou ser
experimental como as ciências naturais, que lidavam com os sentidos sicos –,
investigando seu objeto de estudo de acordo com o método científico vigente na época e
cuja terminologia também adotou.
Como o termo “alma” era “vago”, prestando-se a inúmeras interpretações, inclusive
remetendo à espiritualidade, àquilo não demonstrável e não quantificável, foi abandonado.
Assim, a Psicologia se afasta de sua idéia e de seus propósitos iniciais, elegendo, a partir
de então, o “comportamento psíquico” como objeto de estudo. A preocupação em delimitar
o corpus, em ser objetiva e clara em suas afirmações, acaba restringindo, dessa maneira, o
estudo da Psicologia aos fenômenos psíquicos, dados à experiência direta e à percepção
dos sentidos: os estados de consciência o investigados apenas através da observação das
modificações corporais que acarretam, como se os dados dos sentidos completassem os
dados da consciência. Entretanto, sendo evidente a interação entre as duas dimensões, as
relações entre o mundo interior (a alma, a consciência) e o exterior (o corpo físico)
continuaram sem explicação satisfatória, pois ainda não fora possível descrever como essa
inter-relação se processa.
26
A Psicologia rompe com a Filosofia tradicional e opta pela Filosofia materialista,
processo decorrente da especialização científica que culmina no objetivismo e no
behaviorismo, a cujos pressupostos certos ramos da Psicanálise aderiram. Entretanto, a
Filosofia materialista não deixa de se constituir em uma metafísica, contradizendo-se,
portanto, em sua base, pois não é possível negar a existência de um princípio espiritual a
partir de dados materiais.
Uma das implicações negativas da opção materialista para a Psicologia é que, com
o empirismo e o experimentalismo desordenado, a Psicologia tornou-se um “campo
disperso e variado de ‘enfoques’ ou ‘abordagens’ compostos de uma série desconexa de
pesquisas empíricas” (p. 101). Além disso, o materialismo ultrapassou a condição
metodológica dentro da Psicologia, alçando-se a uma condição doutrinária quanto à forma
de conceber o ser humano e incorrendo, novamente, na contradição identificada acima: é
aceitável deixar de recorrer ao transcendente como forma de explicação dos fenômenos,
mas não o é excluir a dimensão transcendente da concepção de ser humano, pois, como o
transcendente não é acessível à observação científica, esta afirmação ultrapassa os dados
que essa ciência possui, perdendo sua cientificidade.
Uma vez que a natureza psicológica humana, como a concebiam Sócrates, Platão e
Sêneca, e como a conceberam os representantes da Escola Eclética, é conhecida, resulta
inevitável o questionamento: como é possível que as principais correntes da Psicologia
atual não reconheçam a realidade interior do ser humano, atribuindo-lhe um caráter de
inefabilidade, de não-passibilidade de comprovação?
Em busca desta resposta, com base em estudos de Foucault, Michel de Certeau,
Odo Marquard, Carlo Ginzburg e de Hans-Georg Gadamer, Haroche (1988) revisa a
hermenêutica das Ciências Humanas empreendida por estes estudiosos e apresenta
argumentos explicativos do que denominarei inefabilização do sujeito, ou o-
consideração da realidade psicológica interior do ser humano em certas correntes das
ciências psicológicas. A consideração desta realidade é fundamental para essa dissertação,
pois somente com o reconhecimento e combate dos defeitos psicológicos, ou pecados
capitais, ou eus, ou cavalo mau e de natureza contrária é possível a relação psicagógica
9
.
A autora conclui que, de forma acentuada, no século XVII, através do
enfraquecimento das crenças religiosas, delineia-se uma oposição entre comportamentos e
9
Em Fedro, Platão compara a alma a uma força natural e ativa que une um carro puxado por uma parelha
alada e conduzida por um cocheiro. A condução é difícil e penosa porque a parelha é díspar: um dos cavalos
27
práticas visíveis e invisíveis. As visíveis, dado seu caráter observável, objetivo, passam a
prevalecer, em detrimento das invisíveis, caracterizadas como subjetivas. Essa divisão
marca, indelevelmente, as Ciências Humanas e Sociais a partir do século XIX, quando o
invisível, o subjetivo, enfim, a
subjetividade, aí, será considerada inefável, em particular, no campo da
psicologia: o sujeito somente seria o objeto de um saber na condição de que esta
inefabilidade irredutível o seja, entretanto, levada em conta ou, pelo menos,
problematizada como tal. o comportamento observável, em decorrência de
sua visibilidade, pode pretender ser objeto de um saber. (grifo da autora)
(HAROCHE, 1988, p. 62)
Ao sujeito é atribuído um caráter de opacidade no que tange à sua interioridade, sua
consciência, e a subjetividade, enquanto interioridade, suscita desconfiança nas ciências, já
que apenas o comportamento mensurável é "científico".
A Psicologia, dada sua opção doutrinária pelo materialismo, acaba por prescindir da
subjetividade. Wilhelm Wundt, na Alemanha, e Théodule Ribot, na França, segundo
Haroche, contornarão a questão da subjetividade, centrando os estudos e pesquisas no
comportamento. Assim, a Psicologia é separada, definitivamente, de determinada
concepção de metafísica. A autora cita, ainda, uma das conseqüências da conquista da
cientificidade pela Psicologia (HAROCHE, 1988, p. 80): os espiritualistas universitários e
os psicólogos dividem, por assim dizer, o terreno, e enquanto os primeiros falarão da alma
e de sentimentos, os segundos ocupar-se-ão de matemática e de comportamento, mas
nenhum deles irá se concentrar no sujeito e na subjetividade.
Outros autores, porém, o fazem. Samael Aun Weor (1993) em seu tratado de
Psicologia apresenta elementos comuns tanto à Escola Eclética como à tradição filosófica
socrática-platoniana. A exemplo de Platão, Weor localiza, no interior de cada indivíduo,
em âmbito psicológico, um elemento superior - denominado essência - e um conjunto de
elementos inferiores - por ele caracterizados como inumanos e indesejáveis - os agregados
psicológicos. Segundo o autor, a essência tem a capacidade natural de identificar os
agregados psicológicos (os apetites, ou paixões) através da "auto-observação íntima do
mim mesmo" (p. 46). Os apetites, denominados simplesmentes de "eus" (p. 50), constituem
a multiplicidade psicológica caracterizadora dos indivíduos. Exemplos de "eus" são a
é belo e bom: de boa raça, inclina-se ao sábio e bom, assemelhando-se aos deuses. o outro cavalo é de raça
má e de natureza contrária, inclinando e puxando o carro rumo ao terreno e não em direção ao divino.
28
cobiça, a preguiça, a gula, a vaidade... Cada um destes "eus" é como que uma outra pessoa
dentro de nós mesmos: "dentro de cada pessoa que vive no mundo, existem outras pessoas"
(p.55). Segundo Weor, caso alguém queira conhecer sua realidade psicológica, deve
praticar a auto-observação de si mesmo. Para tanto, a essência (a razão) será a observadora
e os "eus", os observados: dentro de cada um de nós existem muitos milhares de
indivíduos diferentes, sujeitos distintos, eus ou pessoas que brigam entre si, que pelejam
pela supremacia e que não têm ordem ou concordância alguma” (p. 71)
.
O autor prossegue caracterizando as pessoas em seu cotidiano como "pessoas-
máquinas, simples marionetes controladas por agentes secretos, por eus ocultos" (p.83). E
isso é possível (e verificável através da auto-observação) devido ao fato de muitas outras
"pessoas", ou "eus", viverem dentro de cada um. Exemplo disso é quando a "mesma"
pessoa ora se manifesta como mesquinha, ora amável, em outro instante irritável, mais
tarde caluniadora, depois, “uma santa”.
Em comum com a Escola Eclética, a concepção dualista de mundo: o exterior e
o interior. O primeiro é verificável experimentalmente, o segundo, auto-observável em si
mesmo. A gama de "eus" que se manifestam em nossa consciência - consciência esta tal
qual a descrevem os ecléticos nossos "pensamentos, idéias, emoções, [...] são interiores,
invisíveis para os sentidos ordinários [...] e, todavia, são, para nós, mais reais que a mesa
de refeições ou as poltronas da sala" (p. 94).
Muito esclarecedora de como agem os agregados psicológicos, de como as "molas
secretas" nos impulsionam, é a passagem onde Weor pergunta (p.142 - 143):
Pensaste, alguma vez na vida, sobre o que mais te agrada ou desagrada?
Refletiste sobre as molas secretas da ação? Por que quiseste ter uma bela casa?
Por que desejaste ter um carro último modelo? Por que quiseste estar sempre na
última moda? Por que cobiças não ser cobiçoso? O que é que mais te ofendeu em
um momento dado? Que é que mais te lisonjeou ontem? Por que te sentiste
superior a fulano ou fulana de tal, em determinado instante? A que hora te
sentiste superior a alguém? Por que te orgulhaste ao relatar teus triunfos? Não
pudeste calar quando murmuravam de outra pessoa conhecida? Recebeste a taça
de licor por cortesia? Aceitaste fumar, talvez não tendo o vício, possivelmente
por educação ou hombridade? Estás seguro de ter sido sincero naquela conversa?
E quando te justificas a ti mesmo, quando te elogias, quando contas teus triunfos
e os relatas, repetindo o que antes disseste aos demais, compreendeste que eras
vaidoso?
que a natureza psicológica humana como a concebem Sócrates, Platão, os
representantes da Escola Eclética e Weor é conhecida ao longo dos séculos e em muito
29
lugares - apesar de as principais correntes epistemológicas das Ciências Humanas e Sociais
não reconhecerem a realidade psicológica dos "eus", atribuindo-lhe um caráter de
inefabilidade, de não-comprobabilidade -, considero-a passível de tematização, a fim de
explicar a prática pedagógica através dos cuidados de si, os quais concretizam a referida
prática no embate com os mencionados “eus” ou paixões humanas, prática da qual Jesus
Cristo foi mestre exemplar. E na própria Bíblia há pistas disso. É o que veremos no
próximo capítulo.
30
2 PSICAGOGIA
2.1 João 1:11 – Análise de Discurso, Historicidade, Discurso, Formação Discursiva,
Posição-sujeito, Tradução
Antes de iniciar, propriamente, a análise do versículo em questão, irei apresentar os
não referidos cortes epistemológicos relativos a movimentos de descentralização do
sujeito, citados no capítulo anterior por Hall, a fim de que se possa melhor justificar o
emprego da teoria da Análise de Discurso, e não de outros aparatos ou técnicas, como a
hermenêutica ou a exegese bíblica, para a análise a que procedemos. Inicio com Saussure e
a idéia de que a língua é um sistema social e não individual, prossigo aprofundando as
contribuições de Foucault relativas ao discurso para, então, concluir com as de Althusser e
de Lacan sobre o sujeito da linguagem.
A partir das primeiras décadas do século XX, através do “corte saussureano”, na
Europa Ocidental, a linguagem passa a ser considerada, na maioria das vezes, em seu
caráter interno, não se recorrendo a nada exterior, como a história e o sujeito. Tal postura
possibilita a abstração que passa a caracterizar os estudos da linguagem. Nessa perspectiva,
a língua é considerada uma herança das gerações, cujas mudanças se devem a uma
estrutura assentada em um rol de possibilidades do repetível, que, se não exclui, prescinde
da subjetividade. Esta fica restrita ao âmbito da fala, a fim de proporcionar um rigorismo
formal que garanta a cientificidade dos estudos.
A partir do Curso de Lingüística Geral de Saussure, a língua é concebida enquanto
sistema circunscrito a si mesmo: seus efeitos de sentido originam-se de
diferenças/oposições sistemáticas que diferenciam e caracterizam desde fonemas a
31
significado de palavras. Com os estudos lingüísticos saussureanos, o sujeito é destronado
de sua posição de “senhor da ngua”. Apesar de a estrutura lingüística, por ser uma
instituição social, estar disponível a todos os integrantes de uma comunidade, isso ocorre
porque “a Lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma
e por si mesma” (SAUSSURE, 1995, p. 271). Daí ser excluída, nos estudos lingüísticos, a
variante relativa ao subjetivo e ao social da língua, àquilo que promove suas alterações e
seus efeitos em âmbito semântico: o histórico, que implica, necessariamente, dinamicidade
e transformações. O estudo lingüístico restrito à estrutura, desvinculado do falante, é um
estudo parcial; reside aí uma das críticas feitas por diversos autores a este modelo, que não
atende às necessidades de explicação dos fenômenos semânticos da língua.
Em oposição a este enfoque estruturalista, que exclui o exterior, surgem,
especialmente a partir de meados do século XX, lingüistas e concepções de linguagem que
extrapolam a “lingüística da língua e passam a considerar tanto os aspectos subjetivos
como os sociais envolvidos no binômio ngua/fala. Assim, constitui-se a instância
lingüística discurso, e instaura-se a tricotomia língua/discurso/fala.
Interessa-nos a Análise de Discurso de Linha Francesa (AD), disciplina surgida em
torno de Michel Pêcheux. A AD questiona a lingüística por apagar a historicidade da
linguagem e interroga as ciências humanas e sociais por se assentarem em uma linguagem
pretensamente transparente. Nesse sentido, a AD mostra não haver separação estanque
entre a linguagem e sua exterioridade constitutiva (ORLANDI, 2004, p. 25). Aliás, a AD
insurgiu-se justamente contra o que Orlandi (2004, p. 64) denominou conteudismo, forma
de leitura corrente em ciências sociais, que supõe uma relação termo-a-termo entre
pensamento/linguagem/mundo, como se a relação entre palavras e coisas fosse uma relação
natural e não lingüístico-histórica”.
10
Implicações desta forma de leitura são ilustráveis
pelo seguinte exemplo: em 2001, a Editora Bayard lançou, em Paris, uma retradução da
Bíblia que reflete claramente esta concepção de língua: durante seis anos, franceses e
canadenses formaram duplas compostas por um tradutor e um escritor. Aos primeiros
coube a tarefa de fazer minuciosa tradução, palavra por palavra, em busca de uma
“tradução exata”; aos literatos, a responsabilidade de reescrever o texto “de forma nova e
pessoal, sem alterar seu significado”, como se a estrutura do texto blico fosse fiel e
translúcido depositário de sentidos.
11
10
Veja-se o clássico BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979
11
http://port.pravda.ru/culture/2002/10/30/330.html
32
Pêcheux, ao articular o discurso às questões do sujeito e da ideologia, possibilita
que, na França, desde o final dos anos 60 do século XX, a Análise de Discurso seja objeto
de reflexões epistemológicas que unem o texto e a história. O enfoque discursivo é
influenciado pela concepção foucaultiana de discurso, pela releitura da teoria da ideologia
de Marx por Althusser e pela idéia lacaniana de língua como instância própria e
inconsciente na qual emergem sentido e subjetividade.
Na obra Arqueologia do Saber, de Michel Foucault (1997), podem ser encontrados
os fundamentos para a concepção de discurso enquanto prática supraindividual por ser
uma prática coletiva de (re)produção de saberes, que se manifesta em suas regularidades
e em suas relações com determinado campo social. Para Foucault, discurso é um sistema
enunciativo delimitável por regras inerentes, relacionadas a certas condições em que é
produzido. Uma vez que a prática discursiva é um sistema de regras, torna-se passível de
análise, possibilitando a identificação de categorias de pensamento, de maneiras aceitáveis
de expressão e de estratégias enunciativas distintas, caracterizadoras da formação
discursiva.
Conceito fundamental para a AD, a formação discursiva implica transcendência à
atividade individual da fala, pois os falantes, inconscientes dos efeitos de sentido, o
podem controlá-los, embora, ilusoriamente, considerem que sim. Dessa maneira, o
discurso está estruturado e se (re)produz através dos indivíduos – sem os quais o social não
existiria mediante formações discursivas, cujo modus operandi estrutura pensamento e
expressão dos atores sociais de maneira inconsciente. Daí o porquê de os analistas de
discurso não se interessarem pelo que determinado falante quis dizer em certa situação,
mas sim, buscarem, no âmbito discursivo, as estruturas profundas do saber de determinada
formação social, outro importante conceito em AD. Sua contribuição reside no fato de que
a análise não se restringe a uma seqüência de frases, um texto ou um parágrafo: também
são considerados, com interesse especial, os arquivos institucionais, que caracterizam as
formações sociais, e para cuja análise Michel Pêcheux desenvolveu a metodologia que se
constitui na Análise de Discurso. Nela, a teoria althusseriana da ideologia, que possibilita a
relação, tão cara à AD, com a linguagem, exerce influência central.
Louis Althusser fez uma releitura tanto do materialismo histórico, a ciência
marxista da história, que busca explicar a constituição dos indivíduos em sujeitos
históricos, ativos na história, como do materialismo dialético, a filosofia marxista, que visa
33
à caracterização do sujeito da história.
12
O materialismo histórico é uma das áreas do
conhecimento que fundamenta o quadro epistemológico da AD. A ele são acrescentadas,
como referencial, a teoria das formações sociais, de inspiração foucaultiana, e a já citada
teoria da ideologia althusseriana.
Em Althusser (1992), a ideologia é concebida como a relação entre os indivíduos e
suas condições materiais de produção e, no terreno da ideologia, emerge a concepção de
interpelação dos indivíduos em sujeitos. O filósofo, ao considerar o caráter materialista da
ideologia, manifestado através de um conjunto de práticas materiais que reproduzem as
condições de produção, põe em atividade o materialismo histórico, concepção não-idealista
de ciência assentada na dialética, que, por sua vez, é o método reivindicado pelos marxistas
como a forma que define o real pela contradição, que é o que efetua a passagem de uma
etapa da história a outra.
A concepção de dialética marxista é uma reação a Hegel, que propunha uma
concepção de história movida pela ratio, a qual domina, unifica e mantém a ordem das
coisas através da contradição, motor deste processo, que resulta na história concebida
como realização da ratio. Com Marx e Engels, o motor da história deixa de ser algo
idealizado e passa a ter caráter material, uma vez que o processo da vida social, política e
espiritual começa
a ser condicionado pelo modo de produção da vida material, ou seja, a
consciência do homem é determinada socialmente. Esta concepção possibilita a não-
divisão entre matéria e pensamento, entre natureza e sociedade, conduzindo a uma visão
inter-relacionada dos fenômenos. O motor destes, então, reside em seu caráter
contraditório, que os leva ao movimento e ao desenvolvimento.
Em âmbito lingüístico, as implicações são evidentes. Sob esta ótica, os mecanismos
sintático-estruturais perdem a autonomia imputada pela lingüística tradicional, tornando-se
a base material para a análise dos processos semântico-discursivos, uma vez que a língua
constitui o lugar material onde se realizam efeitos de sentido (PÊCHEUX, 1997). A
superestrutura ideológica althusseriana permite a relação entre as formas de produção e a
constituição das formações sociais, através das quais o ideológico se manifesta pelo
discurso como prática, como materialidade, como lugar onde se constituem sentido e
sujeito, através da interpelação pela ideologia (ORLANDI, 2001).
De fundamental importância foi também a influência de Lacan. O psicanalista
procede a uma releitura dos conceitos freudianos de inconsciente e relaciona-os à
12
Não entrarei no mérito das críticas ao pensamento althusseriano, apenas destaco suas contribuições para o
34
linguagem verbal sob enfoque original. Com o psicanalista francês, o cenário em que
nasceria o discurso um importante passo através de sua concepção de língua como
instância própria e inconsciente, na qual emergem sentido e subjetividade. Através de sua
célebre afirmação de que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, Lacan
considera o tecido verbal como uma cadeia de significantes latentes que se repetem e
interferem no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as palavras, outras palavras,
como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do outro, do inconsciente
(MUSSALIM, 2001, p.107).
A contribuição epistemológica lacaniana desloca o foco de interesse do sujeito
empírico para o sujeito do discurso, o qual é considerado uma representação social que
materializa o discurso do professor, da mãe, do político. Essa concepção permitiu a análise
de discurso como resultado do trabalho ideológico inconsciente, considerando o sujeito
uma posição inscrita em determinada formação social. Gonzáles Rey (2003) destaca a
contribuição lacaniana, que caracteriza a linguagem como constitutiva do inconsciente (e a
freudiana como constituída pelo inconsciente). Lacan, segundo o autor, considera a
linguagem um “supra-sistema, que sujeita e restringe o sujeito [...]”, convertendo-o em
“objeto da linguagem” (p. 39). Em suma, a linguagem é um sistema universal em que o
sujeito se encaixa, sem possibilidade de transcendência ou enriquecimento: “com a
aquisição da linguagem, o indivíduo entra em uma ordem simbólica, que organiza o desejo
inconsciente dentro das pressões sistêmicas daquela estrutura” (p.40). Lacan, assim,
reorienta os estudos das instâncias constitutivas da psique, ao superar o “determinismo
biológico de natureza intrapsíquica” freudiano, apresentando, em seu lugar, a subjetivação
“por meio dos processos de linguagem, desenvolvendo uma concepção ontológica do
desejo como falta, que não considera sua constituição como dimensão subjetiva [...]”
(p.40). Gonzáles Rey frisa o profundo impacto da teoria lacaniana, inspiradora das teorias
de pensadores como Althusser sobre a ideologia. Eles a concebem como uma produção
imaginária que permite a concepção de sujeito enquanto efeito de processos sociais, sujeito
a uma ordem simbólica que o constitui e determina completamente.
Segundo Orlandi (2001, p.28), pela noção de ideologia são introduzíveis as noções
de incompletude da linguagem e de falha, as quais permitem, pela abertura e não-
fechamento, o sujeito e o sentido, caso contrário os efeitos lingüísticos estariam
circunscritos ao seu funcionamento formal, tais como as sistematicidades sintáticas e
estatuto epistemológico da AD.
35
morfofonológicas, que para que haja efeito discursivo, é necessária a relação com a
exterioridade, cujo repetível se dá no âmbito da historicidade, e não da formalidade.
13
Função do analista será, portanto, procurar conhecer esta exterioridade pela maneira
como os sentidos se constituem no texto, em sua discursividade. O sujeito da linguagem é
instado à interpretação diante dos objetos simbólicos. Neste movimento interpretativo,
surge a interpretação, “o conteúdo já lá”. A interpretação, aparentemente universal e
eterna, natural, é, na perspectiva da AD, efeito ideológico que, sob determinações
históricas, torna o interpretável evidente, pois trata-se de “interpretação de sentido em certa
direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus
mecanismos imaginários” (p. 31), o que explica o fato de não haver discurso sem sujeito
nem sujeito sem ideologia.
Para fins de análise, é necessária a não-separação da forma abstrata (transparência e
efeito de literariedade) da forma material (histórica, opaca, sujeita ao equívoco),
contribuição da AD para os estudos da linguagem:
14
o foco na forma material, que é
lingüística e histórica, possibilita um não-conteudismo, isto é, a não consideração
simplesmente do conteúdo das palavras, mas, sim, do funcionamento do discurso na
produção dos sentidos, explicitando-se o mecanismo ideológico que os sustenta. Tal
mecanismo torna-se possível através de dois deslocamentos: a passagem para a forma
material e a consideração do sentido enquanto uma relação determinada do sujeito com a
história. A procura desta relação possibilita a chegada à ordem da língua, enquanto
funcionamento, e à ordem da história, enquanto equívoco e interpretação. A passagem da
tradicional instância da organização para a da ordem, em que sentido não é conteúdo,
história não é contexto e sujeito não é origem de si, é explicada por Orlandi(2001, p.49) da
seguinte forma:
13
Para Guimarães (2001) a AD é marcada por uma teoria “que busca pensar a relação entre a exterioridade e
o lingüístico como uma relação histórica e constitutiva do processo lingüístico”; a historicidade, frisa o
lingüista, não se refere à instância cronológica tempo: trata-se de uma “especificidade determinada pela
ideologia, por uma materialidade sócio-histórica” (p.122).
14
A AD não atua com a noção de código (Voese, 2004, p.15), pois “quando se defende a concepção de que a
função da língua é exclusivamente representativa, adota-se a noção de código. Se a língua, porém, fosse algo
como um código, os enunciados deveriam remeter sempre a um mesmo significado, mesmo alterando-se, por
exemplo, os contextos em que fossem produzidos” (p.30).
36
[...] o que interessa ao analista de discurso o é a organização (forma empírica
ou abstrata) mas a ordem do discurso (forma material) em que o sujeito se define
pela sua relação com um sistema significante investido de sentidos, sua
corporeidade, sua espessura material, sua historicidade. É o sujeito significante,
o sujeito histórico (material). Esse sujeito que se define como “posição” é um
sujeito que se produz entre diferentes discursos, numa relação regrada com a
memória do dizer (o interdiscurso), definindo-se em função de uma formação
discursiva na relação com as demais.
A autora destaca, ainda, “que não se trata, assim, de trabalhar a historicidade
(refletida) no texto, mas a historicidade do texto, isto é, trata-se de compreender como a
matéria textual produz sentidos” (p.55). A proposta de análise em AD, assim Orlandi (p.
60), remete o texto ao discurso, esclarecendo as relações daquele com as diferentes
formações discursivas e pensando as relações destas com a ideologia. É o texto, portanto, a
unidade que permite o acesso ao discurso. O analista (p.61) efetivamente ater-se-á ao
discurso, e não ao texto este simplesmente desaparece como referência e lugar à
compreensão do processo discursivo. Do dispositivo teórico espera-se a produção de um
deslocamento que permita ao analista trabalhar as fronteiras das diferentes formações
discursivas e que torne possível considerar a opacidade da linguagem, sua não-evidência, e
relativizar, assim, a relação do sujeito com a interpretação.
Com relação à posição-sujeito, em A Arqueologia do Saber, Foucault concebe o
sujeito enquanto uma função do próprio enunciado, ou seja, os enunciados posicionam os
sujeitos, tanto aqueles que os produzem, como aqueles para quem são produzidos.
Pêcheux, influenciado por Althusser, simplesmente aplica, no domínio do discurso, o
funcionamento da ideologia interpeladora dos indivíduos em sujeitos sociais, atribuindo-
lhes posições de sujeito em determinada formação discursiva, com a qual os sujeitos se
identificam, no interior das instituições e organizações. Este “sujeito social” é basilar aos
estudos discursivos e contribui para o descentramento do sujeito, merecendo ser
aprofundado.
De acordo com a releitura do pensamento marxista por Althusser, os sujeitos
passam a ser considerados como atores, cuja ação tem por base as condições históricas
criadas por outros e sob as quais eles nasceram, utilizando os recursos materiais e culturais
que lhes foram fornecidos por gerações anteriores. Como já adiantamos, Althusser
influenciou enormemente a AD, uma vez que a constituição do sujeito, nessa corrente de
pensamento, relaciona-se intimamente com a constituição do sentido na linguagem. O
filósofo inspirou o aparato teórico de análise do discurso que, através de seus
37
procedimentos, aponta o processo de interpelação-identificação ideológico que constitui o
sujeito enquanto efeito. Esse processo passa a ser exposto, a partir dos seguintes
postulados: Não é vigente, na AD, a noção psicológica de sujeito empiricamente
coincidente consigo mesmo...” (ORLANDI, 2001). O sujeito discursivo é pensado como
“posição” entre outras, o é uma forma de subjetividade, mas um “lugar” que ocupa para
ser sujeito do que diz (FOUCAULT, 1997): é a posição que deve e pode ocupar todo
indivíduo para ser sujeito do que diz. a partir dos anos 60, conforme Gregolin (2004),
com a releitura de Marx, Freud e Saussure, a lingüística foi separada do “funcionalismo
sócio-psicologista”, acrescentando-se a isso as visões de Freud dos “fenômenos sociais ou
comportamentais como obrigatoriamente condicionados por forças impessoais”. Chega-se
à concepção de que “os indivíduos, por conseguinte, nem produzem nem controlam os
códigos e as convenções que regem e envolvem a existência social, a vida mental ou a
experiência lingüística”. Desta forma, é questionado o todo relativo ao psicológico: “as
psicologias do ‘ego’, da ‘consciência’, do comportamento, do sujeito epistêmico”.
Neste sentido, Orlandi (2001, p.20) considera a AD herdeira crítica da Psicanálise,
da Lingüística e do Marxismo:
[A AD] interroga a Lingüística pela historicidade que ela deixa de lado,
questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da
Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia
como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele.
Orlandi prossegue, caracterizando o discurso como objeto que afeta estas áreas de
conhecimento através de um novo recorte, com implicações ao conceito de linguagem e de
sujeito, uma vez que Lingüística, Marxismo e Psicanálise teriam possibilitado a superação
das noções tradicionais de sujeito e de linguagem, além da idéia de língua como sistema
abstrato.
Em AD, o sujeito é determinado pela posição, pelo lugar de onde enuncia. Isso
ocorre do interior de uma formação discursiva, que é regulada por uma formação
ideológica, um conjunto complexo de atitudes e representações de caráter não individual,
nem universal, e que diz respeito às posições ocupadas por um grupo de sujeitos com
afinidades entre si. Pêcheux (1997, p. 183) tomou a expressão forma-sujeito” emprestada
a Althusser, que assim a definia: “Todo sujeito humano, isto é, social, pode ser agente
de uma prática se se revestir da forma de sujeito. A ‘forma-sujeito’, de fato, é a forma de
38
existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. De acordo com a
definição de Althusser, o sujeito é assujeitado às formações discursiva e ideológica e tem
apenas a ilusão de ser a fonte do sentido, fenômeno denominado por Pêcheux
“esquecimento 1”: o sujeito tem a impressão de que é o senhor absoluto de seu discurso.
Este autor descreve, ainda, o “esquecimento 2”, relacionado à seleção que o falante faz no
processo de produção lingüística, à medida que escolhe” o que diz e exclui o que seria
possível dizer naquela mesma situação, implicando a existência de outros dizeres. Tal
mecanismo dá ao sujeito a ilusão de que o que ele diz seja reflexo do seu pensamento, que
corresponde ao seu conhecimento concreto da realidade. Isso está intimamente relacionado
aos processos semânticos de produção de sentido na linguagem. Segundo Pêcheux (1997,
p.160), o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe
em si mesmo” na relação transparente com a literariedade do significante: o seu sentido é
determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico em
que as palavras, expressões e proposições são produzidas/reproduzidas, mudando as
expressões de sentido, de acordo com a posição ideológica daquele que as emprega.
Aprofundando a concepção de sujeito em AD, fundamental para nossa análise,
passo, agora, a generalizá-la. Na AD fase 1, o sujeito, assujeitado à maquinaria
discursiva, é mero lugar social, ferramenta de expressão ideológico-institucional, e não
sinônimo de organismo humano individual ou sujeito empírico. Trata-se do lugar ocupado
pelo sujeito discursivo para ser sujeito do que diz daí temos, por exemplo, a posição de
“mãe”, explicada por Orlandi (2001, p. 49): em determinada situação, a fala de uma mulher
mãe “equivale a outras falas que também o fazem dessa mesma posição”, por exemplo:
Isso são horas? o discurso de umae, abrindo a porta da casa a um filho “altas horas”
da madrugada) a pergunta insere-se no que Pêcheux apresenta como formações
imaginárias, pressupostas por todo processo discursivo em que, no caso, são subentendidas
pelo “sujeito” mãe as seguintes questões: “Quem sou eu para lhe falar assim?” e Quem é
ele para que eu lhe fale assim?”. A essa concepção de sujeito acrescento o conceito de
formação ideológica (FI), proposto por Pêcheux, Claudine Haroche e Paul Henry e
caracterizada por Teixeira (2000, p. 33) como um “conjunto complexo de atitudes e de
representações que o são nem individuais nem universais, mas que se relacionam mais
ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras”. A
autora explica o fato de as FI comportarem uma ou mais FD, “espaços discursivos [...] que
determinam o que pode e deve ser dito” e que determinam [...] a significação que tomam
as palavras”. Esse conceito de sujeito será retomado por ocasião da análise do versículo 11
39
do primeiro capítulo de João reside aqui a importância da AD para essa dissertação:
fundamentar leitura, interpretação e tradução do texto joanino que remetem a um conjunto
de discursos que fundamentam a psicagogia no sentido foucaultiano, ou seja, que na
relação entre mestre e discípulo aquele possa auxiliar este a desenvolver suas
potencialidades latentes. Antes, porém, far-se-ão algumas considerações acerca da Bíblia,
do quarto Evangelho e da concepção de tradução que norteia essa dissertação.
2.2 A Bíblia: alguns aspectos relevantes
A abordagem de traduções do prólogo do Evangelho de João não prescinde de
algumas noções preliminares a respeito da blia, do livro em questão e do contexto de sua
escritura. Num segundo momento, apresentarei informações sobre o processo tradutório
para que, finalmente, possa apontar implicações discursivas do versículo Jo 1:11.
O termo Bíblia é de origem grega e, traduzido literalmente, significa livros,
designando o grupo de escritos que formam as Sagradas Escrituras do Cristianismo. A
Bíblia é, provavelmente, o livro de maior influência em nossa era, tendo sido traduzido em
praticamente todas as línguas vivas. É um texto que moldou culturas, influenciou a
filosofia, a arte, a política e outros setores da atividade humana. Acima de tudo, ele nos
interessa por conter o discurso canônico fundante da cristã. A Bíblia é, para o
cristianismo, “palavra normativa em assuntos de fé e conduta... Não pode haver verdade
cristã contrária aos dizeres da Bíblia. Nisto consenso na cristandade” (BRAKEMEIER,
2003, p. 7-8).
A Bíblia é dividida em duas partes, o Antigo e o Novo Testamento. O Antigo
Testamento inicia com o bloco dos livros históricos (Gênesis até Crônicas), segue com os
livros didáticos (Esdras até Cantares de Salomão) e finaliza com os livros proféticos (Isaías
até Malaquias), estrutura que não é acompanhada pela religião judaica. O Novo
Testamento inicia com os evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) e com o livro dos
Atos dos Apóstolos, que, respectivamente, narram a história de Jesus e das primeiras
comunidades. Segue-se o bloco das cartas, em sua maioria escritas pelo apóstolo Paulo,
mas há, também, duas de Pedro e três de João, que formam um conjunto à parte. Por fim, o
NT encerra-se com o Apocalipse de João (BRAKEMEIER
,
p. 8.)
40
O Antigo Testamento foi, originalmente, escrito na língua hebraica, com algumas
partes em aramaico. O Novo Testamento, por sua vez, foi escrito na língua grega, mais
especificamente no popular grego koiné, originado do clássico. No mundo grego, elevado à
condição de império com Alexandre, o Grande, a língua e a cultura grega, através de uma
vasta rede de laços comerciais e culturais, atingiu o Extremo Oriente e o oeste do
Mediterrâneo, impondo um idioma comum, uma língua koiné, isto é, a língua franca, a
qual ainda detinha esse status na época do surgimento do Novo Testamento, servindo de
meio de propagação do espírito e da cultura helênicos.
A Bíblia, portanto, tem origem em outras culturas e em épocas passadas, fazendo-se
necessárias traduções àqueles que, buscam acesso aos escritos bíblicos. Com a rápida
propagação do Evangelho, surgiu, a partir do segundo e do terceiro séculos, a
necessidade de tradução da Bíblia para várias outras línguas. Dentre as traduções mais
antigas, duas merecem especial destaque.
A Septuaginta (LXX) é a mais importante tradução do Antigo Testamento para o
grego. Destinava-se ao numeroso grupo de judeus que viviam na diáspora, fora dos
territórios da Palestina e que não mais dominavam a sua língua de origem, a hebraica. De
acordo com a lenda, a tradução fora encomendada pelo rei Ptolomeu II, do Egito, em 285
a.C., e traduzida por um grupo de 72 sábios judaicos, resultando daí o nome Septuaginta
(A Bíblia dos setenta). Sabe-se, porém, que a obra fora realizada em Alexandria, no Egito,
oportunizando o acesso do mundo helênico à fé judaica.
a Vulgata (popular) é a mais importante tradução da Bíblia para o latim. A obra
foi realizada pelo monge Jerônimo (340/50?-420 d.C), a pedido do papa Dâmaso, em vista
das precárias traduções latinas da época. Jerônimo traduziu a Bíblia a partir das nguas
originárias do Antigo e do Novo Testamento, e sua obra tornou-se padrão para a Igreja
latina. O monge lutou para que, no Antigo Testamento, prevalecesse a ordem e a
quantidade dos livros da versão judaica (39 livros), porém, foi vencido pelos seus
superiores, traduzindo do grego sete livros a mais, chamados de apócrifos ou dêutero-
canônicos, que foram incluídos no Antigo Testamento latino (BRAKEMEIER, 2003, p.
10).
Antes da Reforma do século XVI, ocorreram poucas tentativas de traduzir a Bíblia
para o vernáculo, salvo de partes, como a tradução, realizada a pedido de D. João I, dos
evangelhos, do livro de Atos e das epístolas paulinas para o português, no culo XV. O
latim prevaleceu como língua-norma, não para as escrituras, mas também para a
celebração dos cultos e ofícios da Igreja. A virada ocorreria com a reforma protestante e
41
com a invenção da imprensa no século XV, quando Lutero verteu a Bíblia para a língua
alemã, esforço que motivou várias outras traduções na Europa.
Nesse sentido, a tradução da Bíblia para a ngua portuguesa teve como grande
protagonista o pastor protestante João Ferreira de Almeida (1628-1691). Almeida traduziu
o Novo Testamento e quase todo o Antigo Testamento, falecendo um pouco antes de
terminar sua obra, completada e apresentada somente no ano de 1753. No mesmo século da
publicação de sua obra, o padre Antônio Pereira de Figueiredo também inicia a tradução da
Bíblia para o português. Atualmente, existem várias traduções da Bíblia para a nossa
língua, além das revisões da Bíblia de Almeida e da de Figueiredo, tais como as católicas
“A Bíblia de Jerusalém”, Edição Pastoral da blia”, Bíblia Sagrada”, Bíblia na
Linguagem de Hoje”, e, do âmbito protestante, a “Tradução Ecumênica da Bíblia
(BRAKEMEIER, p.10-11).
Ainda é mister citar a diferença entre a Bíblia católica e a protestante. Ambas são
idênticas em sua composição do Novo Testamento: vinte e sete livros, porém, encontram-
se diferenças a respeito do número de livros que compõem o Antigo Testamento. Lutero,
ao traduzir a Bíblia, concentrou-se na versão original hebraica, que contém trinta e nove
livros. a Igreja Católica, no Concílio de Trento (1545-1563), optou pela tradução latina
da Vulgata, que inclui os mencionados livros apócrifos. Assim, a Bíblia católica possui
sete livros a mais do que as versões protestantes. Da mesma forma, a Igreja Ortodoxa
também possui os mesmos sete livros apócrifos a mais, pois versam suas traduções da
Septuaginta.
Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento fazem parte do cânon, termo de origem
hebraica usado pelos gregos clássicos, significando “regra”, “norma”, padrão”
(BITTENCOURT, 1965. p. 21). Ele expressa o que, realmente, a Bíblia almeja ser, ou seja,
a norma, a regra em assuntos religiosos. O Antigo Testamento fora canonizado em fins
do século I d.C., com o objetivo de fixar, manter e proteger a identidade judaica frente à
catástrofe de 70 d.C., com o fim do estado palestino e a conseqüente diáspora
(BRAKEMEIER, 2003, p.19). Entretanto, o cânon foi aplicado às duas partes da Bíblia
somente no século IV d.C.
De acordo com Eduard Lohse, dentro do conjunto bíblico, o Evangelho de João
situa-se no Novo Testamento, sendo o quarto e último evangelho. É considerado por
muitos teólogos o mais rico e, ao mesmo tempo, o mais controverso livro da Bíblia. Rico,
pelo seu estilo e conteúdo; controverso, pela dificuldade de localizar o autor, a época e
para que blico foi escrito. Nesse sentido, é consenso entre os estudiosos que o autor do
42
Quarto Evangelho não é o apóstolo João, como procura indicar o título. Foi a tradição da
Igreja Antiga que pretendeu identificar o autor ao apóstolo, mais especificamente, através
do Bispo Irineu, em 180 d.C. A concepção de Irineu prevaleceu ao século XIX, quando
passou a ser contestada, inicialmente, pelo teólogo F. C. Baur, que afirmava ter o livro sido
escrito em meados do século II, distanciando-se, portanto, do apóstolo.
Desde então, muitos esforços têm sido dedicados à identificação do autor, sempre
baseados nos escritos neo-testamentários e na tradição eclesiástica. Algumas vozes têm
apontado um presbítero chamado João, que morava em Éfeso. Eusébio, nas Papias de
Hierápolis, narra as tentativas deste presbítero em conseguir juntar informações sobre a
atuação e as palavras de Jesus junto a pessoas que foram discípulas diretas dos apóstolos.
Apesar destas especulações, a autoria do Quarto Evangelho continua sendo um mistério, e
nada ficou provado (LOHSE, 1974).
Da mesma forma, não consenso sobre a data da escritura do livro. Várias teses
sustentam que o Evangelho de João deve ter sido escrito em fins do primeiro século. Uma
das bases para tal especulação é a separação entre comunidade crise sinagoga judaica,
que transparece no escrito. Outra seria a intenção de fortalecer as comunidades cristãs
frente ao judaísmo e ao gnosticismo. Além disso, por volta de 125 a 135 d.C., cópias de
parte do livro circulavam no Egito, conforme papiro encontrado, em 1935, em
Alexandria. Portanto, provavelmente, ele foi escrito entre 90 e 110 d.C. As circunstâncias
enfrentadas pelas comunidades cristãs levaram os teólogos a identificar o local de origem
do Quarto Evangelho, provavelmente, na Síria, onde os cristãos estavam em contato direto
com judeus e com o sincretismo religioso. Alguns teólogos situam a produção do livro,
especificamente, na cidade asiática de Éfeso.
O Evangelho de João é comumente dividido em quatro partes: introdução (1.1 a
1.51); a primeira parte principal (2.1 a 12.50), que descreve “a revelação da glória de Jesus
perante o mundo” (Lohse, p. 175); a segunda parte principal (13.1 a 20.31), que tematiza
“a revelação da glória de Jesus perante seus discípulos” (p. 176); e o capítulo vinte e um,
que é uma conclusão, a partir das últimas aparições do Cristo ressuscitado. Alves (2005)
afirma ser João o mais invulgar e valioso dos evangelhos, pois, apesar de apresentar
seqüência semelhante de acontecimentos, seria diferente em estrutura e estilo, omitindo
muitos detalhes dos outros sinóticos, tais como o nascimento de Jesus, seu batismo e
tentações, a cura de endemoninhados, as parábolas, a última Ceia, o Getsêmani e a
Ascensão, e apresentando poucos milagres. O evangelho é fortemente teológico e discute
principalmente a natureza do Cristo.
43
O versículo do prólogo, objeto de nosso estudo, localiza-se na introdução, cujo
estilo remonta à poesia semítica, marcada por artifícios tmicos, em que cada novo verso
repete um elemento-chave do anterior. As imagens contidas no prólogo sugerem que ele
foi adaptado como hino no culto cristão primitivo, à semelhança dos salmos que
rememoravam os eventos salvíficos de Deus. A estrutura interna do prólogo se apresenta
em quatro estrofes: o Logos é relacionado a Deus e ao universo (v. um a cinco), a João
Batista (v. seis a oito), ao mundo dos homens (v. nove a treze) e à Igreja (v. catorze). O
propósito disso é apresentar o Logos em relação aos maiores relacionamentos de Jesus,
tanto antes como durante ou depois da encarnação. Da mesma forma, as quatro estrofes
não apresentam uma linha cronológica seqüencial clara, mas a história de Jesus como um
episódio entre duas eternidades, assemelhando-se, com isso, aos hinos judaicos de
sabedoria, com suas descrições do infinito, e com os hinos litúrgicos do Antigo
Testamento, que repetem os eventos realizados por Deus na história (LOHSE, p. 251).
2.3 Considerações sobre o processo tradutório: a dessacralização da objetividade
O tradutor que trabalhe em uma igreja com pretensões de atuar em outros países
pode receber a solicitação, de um gerente de marketing, para que a campanha informativa
em espanhol e inglês seja idêntica ao original, exigência que toma caráter de
irracionalidade (ROBINSON, 2002), caso o mesmo gerente peça que o tradutor prove que
sua solicitação foi cumprida fornecendo retraduções de sua campanha.
O processo através do qual textos são transferidos de uma cultura para outra é
explorado pelos Estudos de Tradução, suficientemente implantados e suficientemente
abrangentes para admitirem diversas abordagens (BASNETT, 2003, p.XVIII), os quais
tiveram o grande mérito de desautorizar a tradicional orientação normativa “nos termos
daquilo que um tradutor ‘deve’ ou ‘não deve’ fazer” (BASNETT, p. XXVI). Atualmente, a
tradução goza de grande prestígio, devido ao seu papel de atriz fundamental no
intercâmbio humano. Impulsionada pelo desenvolvimento das novas tecnologias de
informação e de comunicação, bem como pelos avanços na área computacional, cabe-lhe
“um papel crucial a desempenhar ao contribuir para melhorar a compreensão de um mundo
cada vez mais fragmentado” (BASNETT, p. 2).
44
A tradução perdeu seu caráter de subordinação à lingüística, galgando status
interdisciplinar, com ênfase no indissolúvel elo entre língua e cultura, utilizando e
emprestando métodos e técnicas a outras disciplinas (BASNETT, p. 4). Também está
superada a tradicional concepção de tradução enquanto mera transferência de textos de
uma língua para outra.
15
Ela passou a ser considerada um “processo de negociação entre
textos e entre culturas, um processo em que ocorrem todos os tipos de transacções
mediadas pela figura do tradutor” (BASNETT, p.9). Nesse paradigma, textos, de acordo
com André Lefevere (apud BASNETT, p.13), são vistos como complexos sistemas de
significação, cabendo ao tradutor “descodificar e recodificar tudo o que estiver acessível
nesses sistemas”. Também é digna de nota a defesa, por parte de Lawrence Venuti (apud
BASNETT, p.14), da criatividade do autor e de sua visibilidade no produto da tradução.
A partir dos anos 60 do século XX, com o desenvolvimento dos estudos da
linguagem, houve maior aporte de contribuições teóricas aos estudos de tradução.
Destaque-se a redescoberta dos Formalistas Russos, os quais estabeleceram novos
fundamentos para uma teoria da tradução e demonstraram que o bastam conhecimentos
mínimos de uma língua para um tradutor (BASNETT, p.26). Isso porque, embora toda
tradução implique atividade lingüística, ela se insere mais no campo da semiótica
(BASNETT, p.35), destacando o aspecto semântico da linguagem verbal e suas
implicações.
2.4 Vertentes tradicional e contestadora, processo tradutório
Mittmann (2003), a fim de fazer uma análise e reflexão da tradução sob a
perspectiva da Análise de Discurso, realiza um corte epistemológico e enfoca duas
concepções divergentes: uma tradicional, que concebe a tradução como “transporte de
sentidos” (p.23), e outra que contesta a primeira, e cujas idéias vão ao encontro da Análise
de Discurso. Os autores desta segunda vertente, assim como os analistas do discurso, não
acreditam na existência, em tradução, de um sentido único, que reflita as intenções do
autor do texto original. De acordo com essa concepção, o tradutor não é apenas um
15
Tradicionalmente, concebe-se tradução como processo de transferência de um texto em uma língua de
partida para uma língua de chegada, buscando garantir a proximidade de significados entre os dois textos e
preservar, na medida do possível, as estruturas do texto original.
45
instrumento, sempre questionado quanto à sua fidelidade na transmissão do “sentido
único”, mas também passa a ser visto como um produtor, atuante, de sentido. A concepção
de tradução proposta por Mittmann, a partir da AD, é discursiva, e leva em conta as
condições de produção do discurso.
Representante da perspectiva tradicional, Eugene Nida (apud MITTMANN, 2003),
tradutor da Bíblia para o inglês, define a tradução como um mecanismo de transferência de
uma mensagem de uma ngua para outra. Tal mecanismo depende da decodificação do
texto original, na língua A, pelo tradutor, que exerce, aí, papel de receptor, e de sua
recodificação na língua B, que pressupõe a estruturação a ela referente. Nida admite que
nem sempre é possível, através da mera equivalência dos símbolos gramaticais, realizar a
tradução, e também reconhece o envolvimento pessoal do tradutor em seu trabalho, mas
declara que, mesmo sendo a neutralidade impossível, ele não deve deixar de buscá-la. Nida
também destaca a importância de o tradutor se identificar com o texto e com o autor do
mesmo para a efetividade do trabalho, entretanto, alerta contra o perigo da subjetividade,
que pode levar o tradutor a modificar e alterar o sentido do texto, distorcendo-o.
Na mesma perspectiva, Erwin Theodor (apud MITTMANN), tradutor e professor
na Universidade de São Paulo, também trabalha com a idéia de transferência, em tradução,
e ressalta a necessidade de o conteúdo da mensagem ser decodificado adequadamente pelo
tradutor, que deve interpretá-lo de maneira correta, a fim de que seja, igualmente,
compreendido pelos leitores. Esse seria o primeiro passo da tradução, enquanto o segundo
se caracteriza pela conversão da mensagem no código da ngua para a qual se deseja
traduzi-la. O trabalho de tradução se caracteriza, portanto, pela “compreensão adequada do
original” e pela procura de correspondências aceitáveis” (THEODOR, apud
MITTMANN, p. 20).
Assim como Nida, Theodor lamenta o fato de a tradução não estar inteiramente
livre de desvios, que podem ser motivados pelas diferenças entre as línguas e entre a
situação literária que domina o campo lingüístico de cada texto. Mesmo assim, cabe ao
tradutor procurar fazer com que seu texto corresponda o máximo possível à mensagem
veiculada no texto original. Além do sentido da mensagem, também aspectos culturais,
que o tradutor deve incluir em seu trabalho, na medida em que os captou durante a
decodificação.
Theodor apresenta uma distinção entre tradução, versão e recriação. De acordo com
ela, a primeira é a transposição, sem caráter artístico, de um texto de um idioma para outro,
baseando-se na correspondência entre as palavras. a versão é um trabalho artístico que
46
busca manter a harmonia do conjunto, constituindo-se em uma tradução que prima pela
fidelidade ao sentido, ao contexto e ao estilo original. Finalmente, a recriação promove a
passagem de um texto de um idioma para outro, processo também artístico, mas pouco
exato, prevendo uma maior liberdade no idioma para o qual o texto é levado e, portanto,
segundo Theodor, não se constituindo em uma tradução tal como ele e Nida a concebem.
De acordo com o tradutor húngaro-brasileiro Paulo Rónai (apud MITTMANN),
tradução é a reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi
concebida” (MITTMANN p.21. Grifo meu). Mittmann aproxima a idéia de reformulação à
de transferência, presente na concepção de Nida, e à de transposição, proposta por
Theodor, uma vez que, como estas, aquela se baseia no princípio codificação-
decodificação-recodificação. Reconhecendo que as palavras apenas têm sentido dentro de
um contexto a frase, a gina, o capítulo –, Rónai adverte para o fato de que a tradução
não é apenas a substituição de vocábulos. O contexto maior é útil para resolver
ambigüidades quanto ao sentido de uma determinada palavra, que, isoladamente, pode ter
vários significados dentro do texto. Rónai privilegia, entretanto, na esteira de Horácio e de
Cícero, a mensagem em detrimento das palavras, declarando que, às vezes, o tradutor deve
esquecer estas para ser capaz de formular aquela, de forma mais adequada, em sua ngua.
Mesmo assim, Rónai reproduz a concepção tradicional de tradução, pois afirma que o
tradutor não deve interferir, nem corrigir, nem deformar a mensagem do autor, mantendo-
se fiel a ela.
Os três autores compartilham da idéia que, em tradução, descobre-se e decodifica-
se o pensamento de um autor para recodificá-lo em outra língua. Quanto ao tradutor, ainda
que sua subjetividade seja admitida, ela é vista de forma negativa. Outro aspecto a ser
destacado é que o texto e a língua o considerados, tanto por Nida como por Theodor e
Rónai, ponto de partida na análise da tradução, como se eles detivessem o sentido dos
textos e como se este sentido fosse universal. Portanto, a desconsideração das condições de
produção dos textos é algo que une os autores de perspectiva tradicional em relação à
tradução.
Essa perspectiva, no campo da tradução, é contestada. Francis Aubert (apud
MITTMANN) define tradução como “expressão em língua de chegada de uma leitura feita
em língua de partida por um determinado indivíduo, sob determinadas condições de
recepção e de produção” (MITTMANN, p.24). Aqui, o processo não é encarado como
reprodução da mesma mensagem, mas como expressão de uma leitura dela, o que significa
47
que uma mensagem pode gerar várias mensagens, através da leitura, dependendo das
condições de sua recepção.
Aubert propõe três tipos diferentes de mensagens, presentes em qualquer ato
comunicativo: a pretendida, ou seja, o que o emissor pretendeu dizer; a virtual, que são as
possibilidades de compreensão do enunciado produzido e a efetiva, que é a leitura feita
pelo destinatário. Em sua concepção do ato tradutório como um segundo ato comunicativo,
o tradutor, para ele, transformará a mensagem efetiva, novamente, em uma mensagem
pretendida, certamente outra do que a mensagem pretendida pelo emissor original. É
importante observar que o ponto de partida da tradução não é a mensagem pretendida pelo
autor, mas a efetiva, a interpretação do tradutor como leitor. A segunda mensagem
pretendida também gerará mensagens virtuais e, no momento de sua leitura, mensagens
efetivas.
Nessa perspectiva, a fidelidade pode ser exercida, ou mantida, em relação à
mensagem efetiva que o tradutor apreendeu em sua experiência de leitura. Além disso, se a
tradução é um segundo ato comunicativo, a mensagem do tradutor também tem receptores
de sua própria língua, configurando-se, igualmente, a tentativa de fidelidade em relação às
expectativas desse público, de acordo com a imagem que dele tem o tradutor. Por isso,
Aubert afirma que existem duas tentativas de fidelidade, uma em relação à imagem do
autor e do texto original e outra concernente à imagem dos possíveis leitores, mas que ela é
impossível, em virtude das complexidades do processo tradutório, que envolve diferenças
temporais, de códigos lingüísticos, de mensagens e de participantes. Na perspectiva de
Aubert, o tradutor passa a ser, ao invés de um mero canal entre o texto original e os
receptores de outra língua, um produtor ativo de discurso.
As relações entre o tradutor – cujo papel se desdobra entre receptor e emissor –, e o
texto original, bem como com os leitores da tradução é mediada por relações imagéticas,
ou seja, tanto emissores como receptores têm imagens diferentes de si mesmos e entre si. A
partir dessas relações, será possível ao tradutor optar por determinadas soluções em
detrimento de outras ao longo dos conflitos do ato tradutório, entre os quais o problema das
diferenças ideológicas se destaca.
A concepção de tradução de Rosemary Arrojo (apud MITTMANN), calcada na
desconstrução, também aborda a problemática da fidelidade no âmbito da tradução,
associando-a à concepção de texto como “receptáculo de significados estáveis, geralmente
identificados com as intenções de seu autor” (MITTMANN, p.27). De acordo com essa
idéia tradicional, o leitor entidade que inclui o tradutor deve buscar esses significados,
48
que não devem ser influenciados pelo contato com o tradutor. Entretanto, Arrojo afirma
que o significado de um texto existe apenas a partir de sua interpretação, baseada nas
circunstâncias do contexto em que é lido. Assim, se o sentido se produz na leitura, a
questão da fidelidade é deslocada, do texto original, para essas interpretações, conferindo
ao leitor uma posição autoral. Por isso, Arrojo reivindica o reconhecimento do papel
autoral assumido pelo tradutor neste processo transformador e produtivo.
O tradutor deve estar consciente da contingência de suas escolhas diante dos
desafios da tradução, uma vez que ela ocorre “no interior das relações e das redes de poder
das quais participa como membro ativo e agente transformador” (MITTMANN, p.28).
Arrojo afirma que, ultimamente, os termos “original” e “autor” vêm sendo cada vez mais
“dessacralizados”, e já se configura uma nova concepção de tradução, segundo a qual ela
também produz significados, e a leitura não se processa independente de fatores sócio-
culturais. Além disso, o tradutor ainda detém responsabilidade autoral, à medida que opta
pelo texto a ser traduzido, além das outras escolhas mencionadas. Essa consciência da
inevitável tomada de posição diante da história, segundo Arrojo, tem permitido uma
tradução “menos hipócrita e menos ingênua” por parte dos tradutores (MITTMANN, p.29).
Por sua vez, Lawrence Venuti (apud MITTMANN) prega uma postura de
resistência por parte do tradutor, alegando que ele deve procurar transmitir um sentimento
de estranhamento, relativo às diferenças culturais, que se manifestam na língua, entre os
textos. Para isso, Venuti, propõe, por exemplo, que se traduzam literalmente sentenças que,
na língua de chegada, se tornem gramaticalmente incorretas ou quase ininteligíveis. Essa
proposta visa explorar as diferenças entre as línguas, a partir da elaboração de um texto que
não represente nem a voz do autor nem a do tradutor. O teórico também contesta a
distinção entre autoria e tradução, que delega esta última à condição de imitação,
desmistificando o conceito de autoria, que, para ele, não é senão a “reescritura de materiais
culturais preexistentes, de acordo com determinados valores da época do autor”
(Mittmann, p.30). Assim, a tradução também pode ser vista como autoria, mas voltada para
o objetivo da imitação (o que é diferente de ser uma imitação). Através dessa concepção,
Venuti define tradução como processo de transformação de uma matéria-prima em um
produto, realizado através de um conjunto anterior de matérias-primas, como por exemplo,
a língua estrangeira e seus aspectos culturais. Venuti, então, também ênfase às escolhas
a que procede o tradutor, como uma marca de sua autoria.
Eventuais diferenças entre traduções seriam motivadas pelo “deslizamento” de
significados, que ocorre na transição da língua-fonte para a língua-meta, sobrecarregando
49
esta última de significados e requerendo a escolha de alguns em detrimento de outros.
Essas escolhas são determinadas pela ideologia que Venuti define como os valores e
representações sociais que se concretizam na experiência vivida e servem aos interesses de
certa classe –, materializando-a dentro do texto. Por admitir a determinação ideológica e
por sugerir a manutenção visível da opacidade, que deve caracterizar o texto como
traduzido e alertar o leitor de que não está lendo um original, a concepção de tradução de
Venuti se diferencia da tradicional.
Hermans (apud MITTMANN) também contesta a idéia de que a tradução deve
reproduzir fielmente o texto original, que promove um apagamento” do tradutor, pois,
para ter a impressão de que lemos um texto original, exigimos que ele não deixe suas
marcas. Entretanto, estas marcas são justamente tudo a que os leitores do texto traduzido
têm acesso do original. Com essa idéia, não é mais a voz do autor do texto primeiro que
fala através do texto traduzido, mas a do tradutor, que deixa de ser um outro. O outro é o
autor do texto original. Hermans afirma que, em todos os textos (nos traduzidos, ainda
mais), é uma pluralidade de vozes que fala, sendo eles sempre híbridos, instáveis,
descentralizados. Apesar de a voz do tradutor imitar a do autor, não coincidência total
entre ambas.
A partir desta idéia de pluralidade, Hermans utiliza o termo foucaultiano função
autor, que leva-nos a controlar e a limitar o significado do texto. A pluralidade do texto
original aumenta, potencialmente, no texto traduzido, e ela deve ser controlada, então, pela
função tradutor. E essa função, que é um constructo ideológico e histórico, geralmente
delega à tradução a idéia de hierarquicamente inferior em relação ao texto original.
Hermans também observa que o trabalho do tradutor não parte do original em si, mas de
uma imagem que dele o faz e que nunca é inocente”. Por isso, como esta imagem sempre
é construída, o tradutor “‘inventao seu original” (MITTMANN, p.33). O teórico ainda
acrescenta que o processo tradutório, com suas escolhas e posições, ocorre de acordo com
a idéia que o tradutor tem sobre tradução, determinada pelo grupo sócio-cultural ao qual
pertence.
Mittmann sintetiza as teorias de contestação à perspectiva tradicional de tradução e
o papel do tradutor (MITTMANN, p.33-34): os problemas na concepção tradicional
residem na idealização do texto original, cujo sentido é considerado transparente e estável;
na conseqüente busca de uma transparência, na tradução em outra língua, das intenções do
autor do texto original; na condenação da tradução como cópia deturpada do texto original,
decorrente dos empecilhos inerentes ao processo tradutório; na visão do tradutor como
50
mero instrumento que transporta o texto de uma língua para outra, e que deve tentar ocultar
sua presença; e na idéia de que este deve ser fiel tanto ao autor do texto original como ao
leitor da tradução, reproduzindo a mensagem tal como ela era na língua estrangeira.
As teorias apresentadas por cada um dos quatro autores, em resposta à concepção
tradicional, se resumem basicamente à idéia de que o sentido, matriz para a realização da
tradução, o reflete as intenções do autor, sendo que estas não são totalmente acessíveis
nem ao tradutor, nem a qualquer leitor. O sentido não está contido no texto original, pronto
a ser decodificado e recodificado: ele o é mais do que uma imagem construída pelo
tradutor, resultado de seu ato de interpretação, também condicionada por elementos
externos, quais sejam ideologias, padrões culturais e outros, que agem sobre qualquer leitor
e sobre cada língua em particular. O papel do tradutor, segundo a concepção apresentada, é
ativo, pois, ao traduzir, ele atua como transformador e produtor de discurso, estando sua
voz presente ao longo de todo o texto, portanto, é uma ilusão tentar ocultá-la.
Por tudo isso, Mittmann reafirma a grande divergência entre as duas concepções
por ela sintetizadas, particularmente quanto à interpretação do papel do tradutor que
passa, de mero transportador do texto de uma ngua a outra, a produtor do texto da
tradução e do sentido, o mais visto como preexistente e idealizado, mas como algo
determinado por fatores externos.
Feitas essas considerações acerca da concepção de tradução que norteará a
dissertação, passarei à análise do corpus.
2.5 Considerações metodológicas
Nesse capítulo apresentarei, inicialmente, um recorte do Evangelho de João que
servirá de corpus principal para nossa análise. Após sua contextualização, será feita
proposta de tradução sob a ótica discursiva e serão cotejadas duas posições-sujeito
presentes nas traduções: aquela oriunda das traduções tradicionais, em que se manifesta a
formação discursiva igreja cristã ocidental e sua concepção de pedagogia jesuscristiana,
com aquela que interpreta João 1:11 de acordo com a ótica dos cuidados de si, remetendo à
concepção de psicagogia.
Não é meu objetivo contestar traduções vigentes, tampouco me imiscuir em
assuntos de fé de instituições. Entretanto, enquanto objeto de conhecimento, o discurso
51
religioso não é exclusivo de teólogos ou de religiosos. Julgo pertinente a pergunta de
Orlandi (1987, p.8): “como o homem fala no dizer que ele coloca na voz de Deus?” Além
do mais, de acordo com a analista (p. 9), a religião é omnipresente em nossa civilização: o
primeiro livro impresso foi a Bíblia, a história pedagógica no Brasil está ligada, desde suas
origens, à esfera do religioso o caráter clerical de nossa educação é marcante, não
observável na história catequético-jesuítica, mas também nas instituições escolares e
universitárias contemporâneas vinculadas a igrejas.
2.6 Os versículos 1 a 10 de João
1    

2   
3  !" ! ##!
4 " $" $" %" " &"  " '
5 %" (!%!(!!)
6 !*&"  (+!  *+" ," '
7 -&+!#+!( %" !# 
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2.6.1 Tradução
1. No princípio havia o Logos e o Logos estava com Deus e Deus era o Logos.
2. Este estava no princípio com Deus
52
3. Tudo por meio dele foi feito e sem ele foi feito nada do que existe
4. Nele a vida estava e a vida era a luz dos homens
5. E a luz nas trevas brilha, mas as trevas não a apreenderam
6. Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João
7. Este veio como testemunha para dar testemunho da luz a fim de que todos cressem
por meio dele
8. Não era ele a luz mas para testemunhar acerca da luz
9. Era a luz verdadeira que ilumina todo homem vindo ao mundo
10. No mundo estava e o mundo por meio dele foi feito, mas o mundo não o conheceu.
2.7 O 11
o
versículo
A fim de problematizar as referidas posições-sujeito, apresento traduções de João
1:11 marcadas pela formação discursiva igreja cristã ocidental.
1. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam
16
2. Aquele que é a Palavra veio para o seu próprio país, mas o seu povo não o
recebeu
17
3. Vem para o que é seu, e os seus não o recebem
18
4. Veio para as coisas que eram suas, mas os seus não a receberam
19
5. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam
20
6. Veio para o que era seu, mas seus próprios servidores não lhe obedeceram
21
7. Veio para a sua herança, e os seus não o receberam
22
Esse conjunto de citações caracteriza-se pela posição-sujeito dos tradutores, os
quais falam do mesmo “lugar”. A posição-sujeito, em AD, caracteriza-se pela imposição
do que e de que forma se enuncia, conforme comentários feitos anteriormente. Com a
abordagem do processo tradutório, percebe-se que todo tradutor, antes de sê-lo, é leitor e,
16
Almeida, tradução revista e atualizada em 1993.
17
Nova Tradução na Linguagem de Hoje – Sociedade Bíblica do Brasil, 2000.
18
Leloup, 2000, p. 34.
19
Jacques Lefèvre d´Étaples (1525) Apud Leloup, 2000, p. 150
20
Maistre de Sacy (1705) Apud Leloup, 2000, p. 152
21
Charles Le Cene (1741) Apud Leloup, 2000, p. 153
22
Cônego Crampon (1885) Apud Leloup, 2000, p. 155
53
tanto no momento da leitura como da tradução propriamente dita, age o ideológico pela
linguagem, marcando a posição-sujeito. Tanto na produção textual quanto na leitura e/ou
tradução, embora o sujeito tenha a ilusão de ser senhor da língua, ele é, de fato, posição
social indicativa de historicidade, responsável pelos sentidos do texto: a língua não é
simplesmente código, materialidade lingüística, também é materialidade discursiva. Os
tradutores traduzem retratando o que a formação discursiva e ideológica impõe: o discurso
de Jesus enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Vejamos mais acerca disso.
2.8 Observações sobre Cristianismo e Igreja Cristã
A fim de melhor explicitarmos os efeitos discursivos de tais traduções, ou o porquê
de as traduções terem esse caráter, vejamos algo sobre a cultura cristã, evidentemente de
forma restrita, dada sua riqueza e diversidade.
Segundo Piazza (1991, p. 376), o cristianismo é uma forma de monoteísmo sui
generis, pois o Deus cristão, a despeito de sua unicidade, admite três realidades pessoais
perfeitamente distintas entre si, as quais não são “emanações ou modos de se manifestar no
tempo, mas existem eternamente”.
Essa trindade dá-se a conhecer pela forma como ela opera: “o Pai como Criador, o
Filho como Salvador e o Espírito Santo como santificador”, com o detalhe de que a
encarnação do Filho “no homem Jesus é que deu a conhecer à humanidade a existência
desta trindade transcendente” (p. 376).
Essa mesma encarnação representa, portanto, a manifestação plena dos mistérios e
dos desígnios divinos acerca dos homens, uma vez que “pela vida, morte e ressurreição de
Jesus, o Verbo encarnado, o homem compreende o significado de sua vida na terra e
conhece o seu destino após a morte, a ressurreição (p. 377).
Piazza caracteriza o Cristianismo como a religião da igreja, que é constituído
pela reunião de seus fiéis em assembléia, liderados por sacerdotes. Sob o prisma
escatológico, a igreja tem sua razão de ser na ressurreição de Jesus, através de quem o
caráter histórico do judaísmo – cuja essência é atribuível às intervenções de Javé na
história transforma “as antigas esperanças messiânicas de Israel em um dom
transcendente, a ser concedido no futuro, donde o tema dominante da ‘fé’, isto é, a adesão
à pessoa e à mensagem do Filho de Deus (p. 377).
54
De acordo com Gilson (1995, XV-XVI), a religião cristã se baseia no ensinamento
dos evangelhos, em outras palavras, na pessoa e na doutrina de Jesus Cristo. A boa nova
dos evangelhos é a seguinte: um homem, Jesus, nasceu em circunstâncias extraordinárias;
ensinou ser o Messias anunciado pelos profetas, o filho de Deus, provando-o com seus
milagres; prometeu o reino de Deus aos que se prepararem observando os mandamentos:
amor a Deus, amor mútuo entre os homens, penitência dos pecados, renúncia às coisas
mundanas; este mesmo homem morreu para redimir a humanidade, sua ressurreição
confirmou sua divindade e ele retornará ao fim dos tempos, para o juízo final e para reinar
com os eleitos em seu reino.
Guerrero (1996), por isso, não caracteriza o cristianismo como movimento oriundo
ou resultante de especulações filosóficas ou como pensamento racional. Ele é, isso sim, um
sistema de crenças ou uma concepção das relações entre o homem e Deus, tendo
contribuído para proporcionar uma visão de mundo e uma resposta a muitos problemas que
o homem tem enfrentado em sua história (p. 13).
A base do cristianismo assenta-se na predicação de Jesus, apresentado como o
Messias, ou Cristo, anunciado pelos profetas do Antigo Testamento. Embora o cristianismo
não tenha pretensão de apresentar-se enquanto sistema filosófico, ele serviu-se de
elementos tomados à cultura grega, dos quais destaco o conceito Logos, de papel central no
Evangelho de João para a compreensão da mensagem jesuscristiana, e que será mais
explorada adiante. Por ora, cumpre destacar o discurso da igreja que apresenta Cristo como
realização dos propósitos divinos: ao se tornar carne, o Logos materializa a doutrina da
salvação, lançando bases de uma religião que promove o alívio das misérias da vida
humana, mostrando suas causas e apontando seu remédio. Este “fármaco salutífero”
(Guerrero, p.15), a realização da Boa Nova, de salvar os homens das agruras do mundo
terreno e material, através do conforto do mundo espiritual. Sua realização dar-se-á ao final
dos tempos, com a ressurreição, devendo os homens, desde já, prepararem-se para este
evento, porque ao reino prometido se tem acesso pela conversão interior: o homem cristão
tem sua razão de ser na dependência que tem de Deus, paradoxalmente caracterizável
como liberação, que Deus libera o homem de todo jugo, fazendo-o reconhecer que seu
verdadeiro destino é voltar ao seio do Pai.
Jerônimo, ao traduzir o décimo primeiro versículo de João, verteu-o de tal forma
(fundamentando as traduções para os vernáculos consultadas) que abriu caminho para o
discurso segundo o qual Cristo seria a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,
representada, no prólogo joanino, pelo Verbo, posição oficial da Igreja desde o Concílio de
55
Nicéia,
23
de acordo com a qual Jesus Cristo é Deus. Acrescente-se que os homens, porque
criados, são propriedade de Deus, e temos explicação para a tradução do termo idia para
seu (em 1), seu próprio país (2), seu (3), coisas que eram suas (4), seu (5), seu (6) e a sua
herança (7) e de idioi como os seus (em 1), o seu povo (2), os seus (3), os seus (4), os seus
(5), seus próprios servidores (6) e os seus (7). As implicações discursivas são decisivas.
De acordo com Boehner e Gilson (1985, p.18), a história do pensamento cristão se
tornaria incompreensível sem o prólogo do evangelho joanino. Para os estudiosos, em
João, além de o conceito de Logos abranger a idéia heraclitana de “inteligência cósmica ou
razão do mundo, princípio fontal do ser e do conhecimento”, também prevê a concepção de
Fílon, “que via no Logos a idéia divina de mundo, e o meio pelo qual Deus opera no
mundo”. No entanto, também significa a identidade do Logos com o próprio Deus, assim
dando origem às controvérsias trinitárias e cristológicas, abundantes nos primeiros séculos
do cristianismo: é amplamente aceito o discurso segundo o qual o Logos pelo qual foi feito
o mundo se fez carne para remi-lo, sendo este o discurso fundante do cristianismo que pôs
fim às contendas.
Esta sabedoria cristã viria a desvendar o sentido da história (BOEHNER; GILSON,
p.21), inaugurando a tradição da teologia histórica de Santo Agostinho um grandioso
drama escrito por Deus e encenado pela humanidade que influenciaria todo o
pensamento ocidental a Hegel (BOEHNER; GILSON, p.22). Sua síntese localiza em
Deus o alfa e o ômega, o princípio e o fim de todas as coisas, em cuja odisséia, em dado
momento, o primeiro homem pecou, introduzindo a desordem na criação e acarretando a
pena de morte aos pecadores, de Adão a Moisés. Com Moisés, inicia-se um novo período,
em que sobreveio a Lei, a fim de sufocar o pecado. Cristo, por sua vez, trouxe a Graça,
pois através de sua morte na cruz, restituiu a filiação divina aos homens, os quais devem
optar, finalmente, entre a Graça e a vida, ou o pecado e a morte: da escolha dependerá a
sua incorporação – ou não – na comunidade dos filhos do Reino. Uma decisão final virá no
dia do Juízo Final, que dará início a uma bem-aventurada era sem fim.
A partir dos gregos até o cristianismo medieval, Testa (2004) define o pensamento
da história como objetivo. De acordo com essa concepção, realidade objetiva, natureza,
cosmos ou universo, caracteriza-se por uma “ordem graduada de seres, desde a matéria
23
Souza (2005), em sua análise de Jo 1:1, mostra como, apesar de sua simplicidade literária e gramatical, um
versículo pôde dar origem a uma das primeiras dissensões no cristianismo, o arianismo, e foi responsável
pelo Concílio de Nicéia, em 325 d.C. Tratava-se da discussão acerca da pergunta era o verbo Deus ou um
Deus? Não existe artigo indefinido em grego; tal fato, no entanto, não foi problema para as primeiras
traduções, para o latim, pois este simplesmente não conta com artigos.
56
inerte, passando pelas formas de vida vegetativa e sensitiva, até chegar ao ser e à vida
espirituais”(p.18). O cristianismo exerce importante papel, pois insere uma nova
consciência ao admitir a história como “ordem estabelecida e regida pela providência
divina”, na qual “Deus possui um plano para a humanidade: a salvação”. Este plano,
contudo, não é cognoscível pela razão natural, uma vez que o sentido do todo, no
desenrolar dos acontecimentos, foge à compreensão humana, incapaz de vislumbrar as
“intenções e a meta última da totalidade” (TESTA, p. 20). Segundo o autor, esta concepção
consolidou a metafísica da história, em que a referência da história humana está para além
de si mesma, residindo na realidade da transcendência divina. O todo humano, nesse
sentido (Gadamer, apud Testa, p. 20 e 21), é desprovido de valor diante do transcendente, e
somente a redenção outorga um novo sentido à história humana. Châtelet (apud TESTA,
p.21) caracteriza-a, neste contexto, afirmando que, “universalmente, tudo está escrito;
singularmente, nada está. O devir efetivo é um combate duvidoso e cada subjetividade está
às voltas com seus dramas”. Nele, a história transforma-se em opção pró ou a favor de
Deus.
2.9 Um caso concreto: o discurso da IECLB
Em âmbito eclesiástico, desde o Concílio de Trento (1545 1563), cabe somente à
Igreja constatar o verdadeiro sentido da Sagrada Escritura. “A ninguém se permite
interpretá-la de modo contrário à acepção da Igreja e dos santos padres” (GLOEGE, apud
BRAKEMEIER, 2003, p. 27). No prefácio ao Novo Testamento, editado em 1522, Lutero
escreve (apud BRAKEMEIER, p.41): “Em suma: o evangelho segundo João e sua primeira
epístola, as epístolas de Paulo, [...] estes são os livros que lhe apresentam Cristo e lhe
ensinam tudo o que é necessário e bom saber [...]”. Com essas citações, podemos avaliar a
força do discurso fundante religioso.
Ao endossar as contribuições de Rudolph Bultmann para as interpretações da
Bíblia, quando este afirma “ser ilícito propor falsos objetos para a fé”, Brakemeier (2003,
p.51) comenta que “cristãos o deveriam perder tempo, discutindo o que julgam possível.
não significa acreditar que isto e aquilo aconteceu. É antes a confiança na misericórdia
salvífica de Deus”. Nesta linha de fé, Lutero afirmava: Creio que por minha própria
57
razão ou força não posso crer em Jesus Cristo nem vir a ele” (BRAKEMEIER, 2003, p.
57).
Em obra de curta extensão e de linguagem acessível, a Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil (IECLB) faz síntese de si, corporificando as idéias dos
parágrafos anteriores.
24
Concebido, segundo edição de 1979, como “guia de vida comunitária em e ação
da IECLB”, Nossa Fé - Nossa Vida foi aprovado no VII Concílio Geral da igreja, realizado
em outubro de 1972, em Panambi, RS. Trata-se de “trabalho de anos com a colaboração de
diversas pessoas e instâncias”, adaptado e revisado a fim de servir de documento de
orientação da vida e missão dos membros e comunidades da referida igreja.
De acordo com o guia, considera-se membro aquele batizado na instituição, que,
dessa forma, torna-se membro “de seu povo [de Deus], pela obra salvadora de seu Filho”
(p.5). Os membros crêem-se criados por Deus e, por isso, sua propriedade. Também crêem
que Deus os salva por Jesus Cristo, o qual os “liberta do campo de força do pecado”. Deus,
através do Espírito Santo os santifica, fazendo-os renascer para uma nova vida e tornando-
os seus discípulos e suas discípulas” (p.5). Seus membros crêem “na boa nova da
justificação pela graça, abraçada na fé” (p.6). Sua igreja é instrumento de proclamação e
vivência da boa nova da salvação. Através dela, os membros empenham-se pelo bem-estar
e pela salvação do próximo (p.7). Seus membros, ao confessar seus pecados, reconhecem o
quanto ficaram devendo “perante Deus e as outras pessoas”: pedem perdão e o recebem
“pela proclamação da graça de Deus”, que os “coloca na relação certa” (p.17).
profunda identidade e coerência entre as traduções do Prólogo e os discursos
delas originados, como o acima descrito, o que, ao mesmo tempo, explica a historicidade
das traduções e o caráter salvífico do discurso religioso, que tem mera função pedagógica:
ditar em que se deve crer para ser salvo. Poderia ser diferente? É possível ler no texto
“original” outro discurso? Penso que sim.
2.10 O discurso do Logos
Ullmann (1996, p. 121) relata que o “cristianismo, ao invés de identificar o
universo com o logos [...], estabeleceu clara diferença entre Deus e os entes ab alio,
24
Nossa Fé - Nossa Vida: guia da vida comunitária na IECLB. 4. ed. São Leopoldo, Editora Sinodal, 2005.
58
introduzindo o conceito de criação creatio ex nihilo sui et subjecti.
25
Além disso, para os
cristãos, a evolução da história é linear, em direitura à parusia.
26
Conquanto denominassem Deus como Logos, os cristãos entendiam, por este termo,
um Deus claramente transcendente, pessoal e presente em todas as coisas. É o
panenteísmo, pregado por Paulo (At 17,28 e 1 Cor 15,28). Ademais, Logos passou a
designar especificamente o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. João abre o
Evangelho, com “No começo era o Verbo [...]”. Emprega a palavra Logos. Mas esse Logos
nada tem a ver com a razão universal estóica. Ao contrário, ele é a fonte de vida, realidade
divina, transcendente, que ilumina as trevas. Tornou-se homem para redimir a humanidade.
É flagrante e abissal a diferença entre esta concepção do Logos joanino e a concepção
vigente entre gregos e romanos, a qual fundamenta a seguinte proposta de tradução do
décimo primeiro versículo de João, de acordo com a segunda concepção:
[O Logos] veio até os idios, mas os idios não o compreenderam.
2.11 Considerações sobre o Logos na cultura greco-romana
Parmênides, tido como um dos fundadores da filosofia, considerava o Logos a
simbiose do pensar e do ser, tendo uma função crítica e discriminatória: possibilitar a
escolha entre o verdadeiro e o não-verdadeiro, entre o ser e o não-ser; distante, portanto, da
doxa (FABIANEK;KEMPTER, 2005).
Justino (LELOUP, 2000, p.160) atribui a Heráclito a introdução do termo Logos na
cultura grega. Segundo Justino, Heráclito teria, de fato, vivido de acordo com o Logos,
merecendo, por isso, o nome de cristão. Axelos, filósofo francês de origem grega,
especialista em Heráclito, em seus estudos sobre ele (LELOUP, p. 161), chega à conclusão
de que “o Logos é o que liga os fenômenos entre si, enquanto fenômenos de um universo
uno e o que liga o discurso aos fenômenos. O Logos é um vínculo”.
De acordo com Abel Jeannière (apud ULLMANN, 1996, p. 113), a idéia de Logos é
herança heraclitana e é por aquele considerado um Logos imanente:
25
O criacionismo distingue radicalmente o grego do semita. Vige a expressão creatio ex nihilo sui et
subjecti, “criação do nada de si e de suposto”, isto é: nem emanação de si nem transformação de algo
preexistente. Isso significa que todo o universo criado é a-teu, “fora de Deus”, não é divino. A “metafísica”
semita é ontologia pluralista e não é ontologia monista. (Cintra, 2005).
59
Nenhum panteísmo, mas uma identidade dialética. O logos é o todo, mas o todo
é o uno, que transcende o cosmo, imanente, e, porque imanente, transcendente. É
assim que a vida transcende os seres vivos, aos quais, no entanto, ela é imanente;
a vida é a totalidade dos seres viventes, sem, entretanto, ser a sua soma.
Zenon, em sua De Natura Hominis (ULLMANN, 1996, p. 18) afirma que é preciso
viver de acordo com esta dialética natural: viver conforme a natureza é viver segundo a
virtude, pois ela é a natureza. O vivere naturae
tem sentido metafísico, porque natureza é entendida como especificidade do
homem, isto é, como ente dotado de razão. Logo, viver de acordo com a natureza
é desenvolver a razão e pautar-se por ela. Por outra, o homem deve submeter-se
à ordem do universo, onde se expressa a ratio. Esta identifica-se com Deus ou
Logos.
A filosofia estóica, a filosofia do Logos por excelência, em sua fase conhecida
como a Nova Stoa, nos dois primeiros séculos da Era Cristã, era muito difundida entre a
população, transformando-se em espécie de religião, inclusive, fazendo concorrência ao
cristianismo. Sua concepção de Logos marcou sobremaneira a cosmologia e a política da
época. De acordo com ela, Logos é o princípio que rege o mundo; Deus era sinônimo de
Logos (FABIANEK;KEMPTER, 2005).
Destacado estóico, Sêneca “intenta, pela Filosofia, aclarar as consciências e
conduzi-las à virtude e à felicidade, através da identificação da razão humana com a razão
do mundo, ou seja, com o logos [...](ULLMANN, 1996, p. 39). Para neca (p.40), o
mundo é um desdobramento do Logos ou da razão universal. Eis mais esclarecimentos
sobre o termo Logos (p. 41):
Essa palavra os estóicos pediram-na emprestada a Heráclito. Constitui a
realidade divina, imanente ao mundo. Logos indica, na Filosofia grega, a
coerência interna do universo. Logos sinomiza com fogo que é a mais sutil de
todas as realidades. Confunde-se com Zeus, a grande divindade do Olimpo. É a
única lei divina que tudo rege e da qual todas as leis humanas se alimentam. Por
outra, do logos as leis humanas recebem sua força de obrigatoriedade (vis
obligativa). Princípio regente do mundo, recebe o nome de logos hegemonikós.
Como Providência, que tudo ordena, chama-se pronóia. Como possuidor de
todas as coisas em germe, à maneira de idéias exemplares, dá-se-lhe a
denominação de logos spermatikos.
26
Termo cristão que significa presença e vinda, na referência a uma segunda vinda de Jesus à Terra
60
Ullmann (2002), ao cotejar o sentido da vida para Platão e para Plotino,
27
destaca o
objetivo comum: assemelhar-se a Deus. Para Platão, assemelhar-se a Deus significa
assemelhar-se à Inteligência Suprema, que, em todos os sentidos, unidade à
multiplicidade. Tal semelhança é atingível pela ascese, mortificação e purificação,
concretizáveis em uma vida ideal, baseada na sabedoria e na virtude, o que implica regular
e submeter os prazeres da vida à razão, sob pena de o homem não distinguir-se dos
animais, ser escravo de si mesmo.
Para Plotino, assemelhar-se a Deus é fugir deste mundo, uma vez que “o homem
existe como movimento para o Uno, do qual provém” (ULLMANN, 2002, p.182). Esta
fuga, contudo, não é sinônimo de solipsismo ou misantropia. Movido por sua natural, mas
nem sempre atuante, tendência ao Uno, ao Bem, o homem pode, tanto no plano político, ao
legislar à imagem do Bem, como no vel individual, através de vida exemplar em
sabedoria e virtude, desenvolver sua disposição voltada à assemelhação com Deus
(ULLMANN, 2002, p.186). Para tanto, Plotino instava seus discípulos a desenvolverem
virtudes voltando-se para dentro de si, olhando a si próprios (ULLMANN, 2002, p. 169)
Para Plotino, o retorno ao Uno é conquistável pelo esforço pessoal, pois o Uno es
presente em tudo e todas as coisas estão presentes nele, sendo, portanto, dispensável o que
os cristãos denominam graça ou dom gratuito de Deus. Esta dispensa possibilita ao homem
reto e de tudo desprendido, nesta vida, unir-se misticamente a Deus (ULLMANN, 2002,
p. 165). O homem de conduta reta e desprendido do material é homem virtuoso, em
liberdade interior, resguardado de inclinações, desejos e paixões que visam à satisfação
corporal. O mal é subjugado, assim, pela aretê, uma prática permanente de exercício da
presença de Deus, cujo objetivo é a união com o divino (ULLMANN, 2002, p.143). Nas
palavras de Plotino, constantes nas Enéadas (apud ULLMANN, 2002, p. 150), “as virtudes
cívicas instauram realmente uma ordem em nós e nos fazem melhores, porquanto impõem
limites aos nossos desejos e a todas as paixões e nos livram dos erros [...]”. “Dessarte, os
homens que têm as virtudes cívicas tornam-se semelhantes a Deus”. É um deus somente
quem se aproxima do Uno, ao passo que quem se distancia dele é um homem comum ou
um bruto”. Tais homens “assemelham-se a crianças, que, afastadas, desde cedo, de seus
pais e educadas, por muito tempo, longe deles, não mais reconhecem a si nem os seus pais”
assumida tal postura, é possível afirmar que o maior pecado é olvidar-se de Deus”
(ULLMANN, 2002, p. 150). Nas mesmas Enéadas, Plotino dá-nos outra lição, ao comparar
27
Observe-se que esse discurso perpassa mais de meio milênio, já que Platão morreu em 374 a.C. e Plotino
61
a alma presa à matéria com Glauco, a figura mitológica que desfigurou-se e tomou forma
de velho com cabelos e barba cor do mar e corpo recoberto de algas, terminado em cauda
de peixe: nossa alma, presa ao material, precisa livrar-se de suas excrescências, tal como o
artista que esculpe a beleza da estátua:
Volta-te para dentro de ti e olha: se ainda o vês beleza em ti, faz como o
escultor de uma estátua, que deve tornar-se bela: ora ele tira um fragmento, ora
aplica o cinzel, ora pule, ora limpa o pó, a fim de extrair um belo vulto do
mármore. Como ele, tira o supérfluo, endireita o que está torto, clareia o que é
fosco, até torná-lo brilhante, e não cesses de esculpir a tua própria estátua, até
que a centelha divina da virtude se manifeste e vejas a temperança sentar-se
num trono sagrado (PLOTINO apud ULLMANN, 2002, p.139).
O homem deve ser exortado a esta “escultura” por ocupar “um lugar preeminente
no cosmo,
28
com um destino pessoal bem claro: chegar ao Absoluto, ao Uno, a Deus”
(ULLMANN, 2002, p. 133).
O homem é algo sagrado para o homem: Homo res sacra homini (SÊNECA, apud
ULLMANN, 1996). Rivaud (apud ULLMANN, 1996, p. 41) sintetiza assim o Logos
senequiano: “Ele é sabedoria, Providência, vigia, sempre em ação para governar o mundo e
realizar uma ordem maravilhosa. Dispõe e ordena tudo para o bem do homem”. Uma vez
que, para Sêneca, a razão é comum a todos os homens, todos os homens são iguais. O
conhecimento e a prática da lei natural atinge sua culminância no sábio (sophós), o qual
deve ser legislador, jurista político (ULLMANN, 1996, p.43). Para se atingir a condição de
sábio, saindo da condição de idios e passando à de Logos, é preciso o cuidado de si, o
exercício constante do exame interior, a prática da virtude, pois estes representam o triunfo
sobre as inclinações, os apetites, possibilitando a superação de nossa malignitas naturae.
Como é difícil superar as inclinações, os estóicos aconselham que se tome alguém por guia
espiritual, uma pessoa que pode fornecer modelo de vida, que será juiz do nosso
comportamento para que este possa ser o mestre na já citada relação psicagógica defendida
nessa dissertação, a partir de Foucault.
Traduzir o cimo primeiro versículo do quarto Evangelho por Veio até os idioi,
mas os idioi não o compreenderam, apresenta as seguintes implicações:
nasceu em 205 d.C.
28
Compare-se com Pico della Mirandola, adiante citado.
62
Jesus encarnou o Logos e veio, na condição de guia espiritual, de mestre, trazer o
ensinamento sobre o Logos àqueles que ignoravam o ensinamento acerca deste. Os
ignorantes são os idioi, aqueles que seguem um caminho próprio, peculiar, afastados,
distantes de sua natureza interior lógica, os adormecidos de Heráclito. Para se darem conta
de sua natureza e viver de acordo com ela, os idioi precisam dar-se conta de seu status quo
e realizar o trabalho de viver de acordo com a natureza, isto é, através do cuidado de si e
da psicagogia, e com auxílio de um mestre, esculpir a sua estátua, praticando as virtudes e
religando-se ao Logos, educando, evocando, trazendo à luz sua natureza interior. Jesus, de
acordo com esse discurso, não seria o Deus, mas um Deus, alguém de natureza humana
que conquistou sua natureza superior, sendo, por isso, um Mestre para a humanidade,
representada pelos idioi. Um mestre da psicagogia.
Ao responder a pergunta o que alguém deve fazer, se quiser segui-lo?, isto é, tomar
essa natureza, Jesus Cristo informa ser necessário, inicialmente, negar-se a si mesmo:
29
observe-se o paralelismo extremo entre as citações, o que demonstra unanimidade,
universalidade da citação, o que é prova de importância.
O que significa isso, negar-se a si mesmo? Uma possibilidade defendida nessa
dissertação seria combater as paixões, ou apetites humanos, para que o Logos possa se
manifestar. Diariamente, conforme aponta Lucas. Argumentos a favor desse discurso,
veremos a seguir, no próximo capítulo, para cujas citações Jesus desempenha duplo papel:
por um lado, é a concretização, a materialização de uma filosofia ou conhecimento
milenar; por outro, é exemplo a ser seguido, passando a ser marco de uma Era, o
Cristianismo.
29
Mt 16,24: Então disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a
sua cruz e siga-me. Mc 8,34: Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: Se
alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Lc 9,23: Dizia a todos: Se
alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. (Almeida, 1969)
63
3 A ESTETIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA
2.12 O discurso pedagógico das paixões
Sêneca, ao citar a conclusão de antigo poeta, “pequena é a parte da vida que
vivemos”, caracteriza a parte restante, a não-vivida, portanto, de tempo, uma vez que neste
os vícios atacam-nos, e rodeiam-nos de todos os lados e não permitem que nos
reergamos, nem que os olhos se voltem para discernir a verdade, mantendo-nos
submersos, pregados às paixões. Nunca é permitido às suas vítimas voltar a si: se
por acaso acontecer de encontrarem alguma trégua, ainda assim, tal como no
fundo do mar, no qual, eles ainda assim são o joguete das paixões, e nenhum
repouso lhes é concedido (SÊNECA, 1993, p. 27).
Ao dirigir-se a Paulino, seu interlocutor, Sêneca (1993, p.29) desafia:
Vemos que chegaste ao fim da vida, contas cem anos ou mais. Vamos! Faz o
cômputo de tua existência. Calcula quanto tempo deste credor, amante, superior
ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos
escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que
nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens
menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste
uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como
planejaras! Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a
aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti
próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que
estavas perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos
desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e
quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres
prematuramente.
64
Vemos que Sêneca introduz distinção entre viver e ser, a fim de enfatizar sua
concepção filosófica: “Portanto, não por que pensar que alguém tenha vivido muito, por
causa de suas rugas ou cabelos brancos: ele o viveu por muito tempo, simplesmente foi
por muito tempo” (SÊNECA, 1993, p. 35). E são as paixões que impedem a realização do
ser.
Papírio Fabiano, mestre de Sêneca, caracterizado por este como filósofo
verdadeiro, pregava: contra as paixões deve-se lutar com arrojo,o com sutilezas, e deve-
se romper a linha de batalha com um grande assalto, o com midas tentativas. Não
aprovava sofismas: “pois devemos vencer as paixões, não espicaçá-las” (SÊNECA, 1993,
p. 38). Sêneca, manifestando sua concepção de conhecimento útil, faz coro com as
palavras de seu mestre, o qual perguntava se não era melhor empreender estudo algum do
que se envolver com os estudos ordinários, pois estes não servem para minorar os erros de
alguém, para refrear as paixões ou para tornar alguém mais generoso, corajoso, justo
(SÊNECA, 1993, p. 45).
É no XVIII capítulo (SÊNECA, 1993, p. 54) que Sêneca dirige-se diretamente a
Paulino, admoestando-o para que este tenha uma vida não menos breve:
Lembra-te de que não foste educado desde os mais tenros anos nos estudos
liberais para que alqueires de trigo te fossem confiados: esperaste algo maior e
mais alto. o faltarão homens de sobriedade comprovada e atividade laboriosa.
Jumentos laboriosos são mais aptos a carregar fardos do que cavalos de raça, e
quem jamais oprimiu a excelente ligeireza deles com pesadas cargas?
No Capítulo seguinte de sua obra, Sêneca expõe as finalidades da filosofia em sua
carta a Paulino: “Grande número de bons conhecimentos te esperam neste gênero de vida:
o amor e a prática das virtudes, o esquecimento das paixões, o saber viver e morrer, enfim,
uma grande tranqüilidade” (SÊNECA, 1993, p.53), para que não lhe sobrevenha o que
ocorre a muitos outros: “ter trabalhado tanto por uma inscrição no túmulo” (p.54).
Para o estóico Marco Aurélio (apud ULLMANN, 1996, p. 88),
viver conforme a natureza é viver consoante a razão universal; é viver segundo a
virtude, que é felicidade. Quem assim procede, guardará, em sua pureza original,
o elemento divino de seu ser. A virtude e a felicidade constituem o fruto da
perfeita concordância entre o daímôn, que cada um traz em si, e a ordem
inteligente do mundo.
65
Segundo o filósofo imperador, para que se possa viver segundo a natureza, mister
se faz vigiar as opiniões, os sentimentos e a ações. Esta atitude é importante, pois, para
Marco Aurélio (apud ULLMANN, 1996, p. 89), “a meta do homem que ser o seu pleno
desenvolvimento. A cada um cabe decidir se seguirá a sua parte animal ou a sua parte
divina. Em seguindo a parte divina, será um sophós, do contrário, será um phaulós
Marco Aurélio (apud ULLMANN, 1996, p. 90) considera a possibilidade de o homem ser
“simples marionete” de suas paixões, tais como o temor, a suspeita, o desejo... “O caminho
para decidir-se pela parte divina é o aidôs, isto é, o instinto moral ou o sentimento inato da
dignidade humana. O aidôs preserva o homem de macular a sua alma e, ao mesmo tempo,
lhe mostra os deveres para com os homens e para com Deus” o filósofo (apud
ULLMANN, 1996) aponta a origem da fração de Logos de cada um: procede do todo, ou
do Logos universal, do qual temos centelha, ou fagulha, e que aponta para a perspectiva de
se considerar a humanidade como uma grande família. O Daímôn, o guia, também é chispa
do Logos.
Nessa direção, no capítulo XXVIII de Os deveres, Cícero (1946, p. 89) descreve as
duas faculdades, ou forças, que movem a alma, corroborando as citações anteriores: o
apetite, que arrasta o homem, levando-o de objeto a objeto sem norma fixa, e a razão, que é
a luz da vida, o guia que nos mostra o que fazer e o que temos de evitar, donde se infere
que a razão deve mandar e o apetite, obedecer. Esse é o princípio psicagógico básico.
2.13 A filosofia enquanto medicina da alma
Passo, agora, a levantar discurso afim à filosofia estóica, através de uma incursão
pela filosofia, da antiga cujo expoente máximo é Jesus Cristo - à moderna de certa
forma oriunda dos ensinamentos cristãos - em busca da filosofia terapêutica, aquela que
combate as paixões da alma e educa, ou religa o ser humano a sua natureza interior através
de relação psicagógica mediada por um mestre. Epicuro, em sua Carta a Menceu (apud
LELOUP, 2003, p. 10), exorta ao filosofar vinculado à saúde da alma, ou seja, descreve o
verdadeiro filósofo como terapeuta. Woelke (apud LELOUP, 2003, p.11) afirma que “é
vazio o discurso do filósofo que o cura nenhuma afecção humana; à semelhança da
medicina que não extirpa as doenças do corpo, a filosofia que o cura nenhuma afecção
da alma é também completamente inútil”.
66
Nosso roteiro inicia-se com os pitagóricos. Embora Pitágoras seja mais conhecido
por suas contribuições ao campo da matemática, é notória sua influência no âmbito
filosófico, tendo sido decisiva tanto para Sócrates como para Platão (CARTON, 1956, p.
21). Os Versos de Ouro, um programa de instrução humana integral, considerados a
essência dos ensinamentos de Pitágoras (p.23), têm como objetivo possibilitar melhoria
progressiva daqueles que os praticam, os quais, através de exame repetido de si próprios e
de atitudes virtuosas, poderiam vir a desvendar os problemas do universo, sendo-lhes,
desta forma, revelado o sentido oculto das ações humanas e da evolução universal (p.24).
na parte inicial dos Versos, mais precisamente no quarto (p.27), sob o item cultura
pessoal, encontramos a condição basilar para a educação integral pitagórica: o praticante
deve ser senhor de si mesmo”, não se esquecendo de que deve aprender a dominar as
paixões, a ser sóbrio, ativo e casto, jamais se deixando arrebatar pela cólera, por exemplo.
O obscuro” discurso de Heráclito pode ser relacionado ao Logos e ao idios
joaninos: Logos tem a ver com aqueles que o educados, ou que já se religaram ao ser ou
dele se aproximam; idios são os que carecem de educação ou religião, são os que dormem,
os ignorantes, conforme atestam vários de seus fragmentos, sendo o 89 exemplar (Apud
Berge, 1969): Para os que estão acordados, um só mundo comum; (mas, dos que
dormem, cada qual retorna para seu mundo) próprio.
Nos primeiros séculos da Era Cristã, destacam-se representantes da patrística.
Clemente de Alexandria (c. 150-215), em seu Protréptico, faz uma apresentação da
apologia da e dos mistérios do Logos, convocando para este todos os homens, uma vez
que o Logos é uma luz da qual ninguém está privado, sendo necessário descobri-la: o
homem pode tornar-se seu extintor (se dominado pelas paixões) ou candelabro (se atua de
acordo com o Logos) (LELOUP, 2003, p.66). Na mesma obra, Clemente de Alexandria
afirma: O Logos de Deus fez-se homem a fim de que aprendas como o homem pode
tornar-se Deus [...] por sua doutrina celeste, ele deifica o homem(apud LELOUP, 2003,
p.75).
30
Clemente de Alexandria, em seu Stromata 6,9 (apud BOEHNER; GILSON, 1985,
p. 46), atribuía a Cristo a condição de não estar sujeito a nenhuma paixão e de estar
inacessível a quaisquer movimentos passionais. Aos apóstolos, atribuiu a capacidade de
“dominar [...] a ira, o temor, e a concupiscência [...] mantendo-se numa espécie de
disposição de ânimo inteiramente inabalável, e numa atitude de domínio inalterável de si
67
próprios [...]” os quais esforçam-se por assemelhar-se o mais possível ao Mestre pelo
domínio das paixões, perseguindo a apatia, “fruto da completa extinção dos apetites”
(apud BOEHNER; GILSON, 1985, p.47).
Daí eu postular ser possível atribuir um caráter pedagógico aos ensinamentos de
Cristo, pois, de acordo com Clemente de Alexandria (apud REALE; ANTISERI, 2003,
p.51), o mistério é claro; Deus esno homem e o homem se torna Deus, e o mediador
realiza a vontade do pai. Mediador é o Logos, que é comum a ambos: filho de Deus,
salvador dos homens, de Deus servo, de nós pedagogo”. Não é outra a idéia de Gregório de
Nisa (apud REALE; ANTISERI, 2003, p. 57), cujo pensamento aponta “a possibilidade de
ascender até Deus, removendo tudo aquilo de carnal e de passional que nos separa dele”.
Orígenes (c. 185-c. 254), em sua Homilia de Lev. VI (apud LELOUP, 2003, p.40),
faz a seguinte exortação àqueles que aspiram dádivas divinas: “Vocês que desejam receber
o santo batismo, vocês devem, em primeiro lugar, pela audição da Palavra de Deus,
arrancar as raízes dos vícios, corrigir os costumes bárbaros e rudes [...]” (grifo meu).
Orígenes, de acordo com Boehner e Gilson (1985, p. 69-70), em impressionante
paralelismo com o clássico renascentista Pico Della Mirandola, descreve a ordem dos
seres, localizando em seu ápice os espíritos celestiais. Em sua base, os espíritos maus e
impuros, e, na região intermediária, o homem, cujo pecado impede-os de usufruir a região
angelical, ao mesmo tempo em que ainda não chegou a convertê-lo em demônio para
habitar os infernos. Originariamente, o homem era um espírito puro, mas seu pecado fez
com que habitasse um corpo neste mundo criado por Deus, para que aqui faça a opção de
tender e aspirar ao superior ou ao inferior, aos us ou aos infernos (exercer o livre-
arbítrio). Esta posição do homem também é defendida por Hugo de São Vitor (LELOUP,
2003, p. 342), cuja xima Positus est in medio homo localiza o homem no centro da
criação, entre Deus e o mundo visível, criado por Deus tendo o homem em vista.
Para Dionísio Teólogo (séc. V), assim Leloup (2003, p.56), “o nada do mal
permanece um nada relativo, um abismo que não poderia absorver nossa derradeira
centelha de luz, nem apagar nosso nome mais divino”; seja qual for a nossa degradação,
nosso ‘esquecimento do Ser’, há de permanecer dentro de nós uma capacidade para nos
tornarmos participantes da natureza divina. Essa participação da natureza divina chama-se,
na tradição cristã, theosis ou divinação, e é o objetivo da vida humana, para Dionísio
Teólogo (LELOUP, p. 59).
30
Observe-se que essa passagem e as seguintes autorizam, discursivamente, a proposta de tradução da
68
Evágrio Pôntico (c. 345-399), na obra Practike, o Tratado prático, descreve como o
monge pode adquirir a equanimidade, um estado o-patológico da psique, um método
para purificar a parte passional da alma. Nas palavras de Leloup, “é um tratado de
terapêutica [...] cujo objetivo consiste em permitir ao homem conhecer sua verdadeira
natureza ‘à imagem e semelhança de Deus’[...]” (LELOUP, 2003, p.85). A obra “consiste
em uma análise e uma luta contra o que Evágrio chama os logismoi literalmente, esta
palavra deve ser traduzida por ‘os pensamentos’” [...] Leloup informa a coincidência destes
logismoi com os termos cristãos demônios ou diabolos (aquilo que divide o homem em
dois), implicando a necessidade de discernimento, no interior do homem, daquilo que “cria
obstáculo à realização do ser, o que impede o desabrochamento da vida do Espírito
[Pneuma] em seu ser, seu pensamento e seu agir”. Evágrio aponta oito logismoi, oito
sintomas de uma doença do espírito ou doença do ser que transformam o homem em
‘viciado’, ao lado de si mesmo, em estado de hamartia desorientação do desejo, falhar o
alvo; daí a idéia de ‘pecado’”. Esses oito logismoi, uma vez suprimida a superbia,
reduzem-se a sete e tornam-se os sete pecados capitais” da Igreja. Infelizmente, segundo
Leloup, “Aos poucos, o moralismo acabou lançando no esquecimento o caráter medicinal
de sua análise porque, na origem, trata-se perfeitamente da análise de uma espécie de
câncer psicoespiritual ou de câncer do livre-arbítrio que corrói a alma e o corpo humano,
destruindo sua integridade” (p.86). Em sua obra, similar a um tratado terapêutico, Evágrio
aponta a causa dos sintomas e o remédio para cada um dos logismoi: gastrimargia,
gulodice e afins; philarguria, avareza e afins; porneia, a luxúria e afins; orge, ira e afins;
lupe, frustração e afins; acedia, melancolia e afins; kenodoxia, vanglória e afins;
uperephania, orgulho e afins; e muitos outros logismoi, tais como o ciúme e a mentira,
atormentam o homem, e derivam destes principais (LELOUP, 2003).
João Cassiano (c. 365-435), na tradição de Evágrio, reconhece na praktike o scopus
para se alcançar o Reino de Deus: purificar o espírito e o coração, tornando-os livres em
relação às paixões (LELOUP, 2003, p. 166).
Máximo Confessor (580-662) considerava a Divinização o objetivo da vida cristã:
“Para ele, Jesus Cristo aparece como o homem plenamente católico (kat-olon = segundo o
todo),
31
o homem da ‘síntese’ (entre criado e incriado, entre tempo e eternidade, entre
liberdade humana e liberdade divina): o arquétipo do homem divinizado” (LELOUP, 2003,
p. 199). “A liberdade do homem consiste em aderir ao movimento íntimo de seu ser em
dissertação e apontam para uma psicagogia.
69
direção ao Ser Eterno: se não aderir a esse movimento, ele torna-se contranatural e entra na
região da ‘dessemelhança’
32
, encontra-se em estado de hamartia [...]” (p.200). Papel
importante no roteiro da divinização exerce, segundo Máximo, o Logos, o qual
deseja nascer, incessantemente, segundo o Espírito naqueles que o desejarem; ele
se faz criança e se forma neles ao mesmo tempo que as virtudes. Ele manifesta-
se na medida em que sabe que aquele que o recebe é capaz de fazê-lo (Opuscula
theologica et polemica, apud
LELOUP
, 2003, p. 202).
Na Idade Média, este discurso ainda ecoou. De acordo com Lauand (TOMÁS DE
AQUINO, 2004, p. 65), a igreja menciona, ainda hoje, a doutrina dos sete pecados capitais
em seu Catecismo. Essa doutrina foi reunida por João Cassiano e Gregório Magno.
Cassiano por volta de 400 percorreu os desertos do Oriente a fim de registrar as
experiências dos primeiros monges. o papa Gregório, cuja morte delimita o período
patrístico, faz tomografia da alma humana descrevendo os vícios, trabalho ao qual muitos,
dentre eles Tomás de Aquino, deram acabamento. Este enumera os vícios, ou paixões da
alma: vaidade (ou soberba), avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia ou preguiça. Cada
um destes, por sua vez, arrasta atrás de si filhas”, “exércitos” de outros vícios, daqueles
oriundos e a eles ligados. Os sete são capitais, por comandar os demais. O vício vem a ser
uma restrição à autêntica liberdade, um condicionamento para o mal agir.
De igual forma, Abelardo, em seu Scito te ipsum, p. 127 (apud DE BONI, p. 21) ao
falar dos vícios da alma, considera-os “parte do ser homem de cada um e, com relação a
eles, o pecado consiste não em não tê-los, mas em deixar-se dominar por eles”. Tais vícios,
comuns a bons e a maus, são ocasião para o pecado e também para a vitória sobre os
mesmos. Abelardo observa, além disso, que tanto maiores os vícios, maiores os méritos de
quem os subjuga (p. 22). Em outra passagem, Abelardo (p. 44-45) cita Salomão:
O homem paciente é melhor do que o forte, e o que domina seu ânimo, melhor
que o conquistador de cidades (Pr 16,32). De fato, a religião não considera coisa
torpe alguém ser vencido pelo homem, mas pelo vício; ser vencido pelo homem
é algo que acontece também aos bons, mas ser vencido pelo cio é algo que nos
separa dos bons.
31
Ou seja, em harmonia com o Logos.
70
Tomás de Aquino, assim comenta De Boni (2003, p. 112), considera que Deus, ao
criar, instituiu uma ordem das coisas com relação a ele:
Como, entre as criaturas, umas são espirituais e outras corpóreas, umas são
racionais e outras não-racionais, viventes e o-viventes, vegetativas e não-
vegetativas, entre elas uma variedade na participação do ser, sendo tanto mais
perfeitas, quanto mais próximas estão da divindade; e disto provém a harmonia e
a beleza do mundo. Colocado no ápice das criaturas corpóreas, o homem, um ser
perfectível, volta-se para as demais criaturas a fim de poder realizar-se como
humano (grifo meu).
Como vimos, o desenvolvimento da virtudes é conditio sine qua non para a
dignidade humana, para a sua evolução ou perfectibilidade. É, portanto, óbvio que virtudes
são adquiridas/conquistadas. Serão seu oposto, as paixões, destrutíveis ou elimináveis,
como apontam alguns autores?
Cícero (2001, p. 13) relata que Estilpão, filósofo fino e estimado, outrora fora o
um ébrio como também um mulherengo, conforme escrevem seus próprios parentes,
que o fazem para louvá-lo, pois dizem que sua viciosa natureza foi por ele domada e
reprimida com instrução. Outro relato de Cícero conta de que Zópiro, famoso
fisionomista, ao ver Sócrates, caracterizou-o como estúpido, retardado e mulherengo, tendo
sido objeto de riso dos presentes. Sócrates, no entanto, veio em sua defesa declarando que,
de fato, aqueles vícios nele foram inseridos, mas dele expulsos pela razão, em vontade,
aplicação e disciplina.
Ou seja, paixões aniquiladas implicam virtudes conquistadas. Terá esta afirmação
eco entre educadores tradicionais?
2.14 O combate às paixões.
A fim de situar o leitor, farei breve consulta a clássicos da educação em busca de
justificativa a uma pedagogia de combate às paixões Pico Della Mirandola, Comenius,
Rousseau e Kant –, analisando a perfectibilidade humana na ótica de quatro clássicos.
32
Assume o caráter de idios.
71
A Oratio
33
de Giovanni Pico Della Mirandola, célebre texto do Renascimento, é
paradigmático quando o assunto é o humanismo sinônimo de valorização e promoção de
valores humanos (STEDEROTH, 2005).
Um ponto a ser destacado é a convicção de Mirandola de que seja “possível integrar
numa busca comum da verdade filosófica e teológica [...] uma pluralidade de pontos de
vista, tendo como horizonte a constituição de uma harmonia superior, que está para além
da particularidade e limite de cada filosofia concreta” (PICO DELLA MIRANDOLA,
1998, p. 36). Tal convicção também considera que “a verdade se apura na dialéctica dos
pontos de vista, constituindo-se cada filosofar concreto como uma aproximação à verdade
que, no entanto, transcende a particularidade de cada aproximação” (p. 37).
Na Oratio, uma tríplice articulação de inteligibilidade caracteriza a temática da
dignidade humana: em primeiro lugar, é um problema da razão; em segundo, da liberdade
humana e, por último, um problema de ser, abarcando-se, desta forma, a dialética, a ética e
a metafísica (p.26).
O homem é o mais digno ser da criação, por ocupar lugar central no universo,
possuindo germens de tudo quanto foi criado. De natureza ontologicamente indeterminada,
é mediador do mundo natural e do mundo angélico, distinguindo-se por ser artífice de si
mesmo, de tal forma que o problema de sua natureza é do âmbito do posteriori (p. 27):
Enquanto o animal, devido à natureza que lhe é dada à partida, pode ser
animal e o anjo pode ser anjo, o homem tem quase o poder divino de se
constituir segundo aquilo que quiser ser: pode degenerar até os brutos e pode
regenerar-se até os anjos, mas a possibilidade de viver como os animais ou como
os seres espirituais depende inteiramente de si mesmo, isto é, de sua escolha.
O homem, dado seu poder de autodeterminação, coloca-se em posição superior ao
mundo físico e biológico. Tal poder implica um predomínio da filosofia moral na medida
em que esta possui um valor terapêutico para o homem” (p. 29):
33
De hominis dignitate, 1486, proposta de reunião de todos os conhecimentos que Pico reunira, na forma de
900 teses, com a intenção de promover, em 1487, em Roma, discussão filosófica pública a fim de reunir
filósofos de todas as tendências, promovendo uma aproximação à verdade e a promoção da concórdia entre
as doutrinas.
72
A recondução do homem a Deus dá-se por via ética e a sua liberdade dá-se como
imago Dei: o homem acaba por aparecer como um deus terreno, necessariamente
imperfeito, porque é apenas reflexo e imagem, isto é, ser à semelhança de Deus
que, no entanto, sempre lhe permanece transcendente.
O poder de o homem regenerar-se (ou de degenerar-se) remete a uma dialética entre
a plenitude (condição de Logos) e o fracasso (condição de idios). Cabe a ele o dever, nem
sempre assumido (livre-arbítrio), de “elevar-se às realidades superiores, subsumindo
simultaneamente as inferiores”: nesse drama existencial, o mal relaciona-se à ignorância, à
fraqueza da carne, à alteração da hierarquia de valores, ao passo que o bem tem a ver com
a inclinação natural, vontade livre e racional. Então, podemos dizer que é a virtus que
confere ao homem a dignidade e que o eleva acima de todas as outras criaturas, esse o
magnum miraculum” (p. 39).
Eby (1976, p. 156), ao comentar o plano pansófico da educação de Comenius,
comenta, dando seqüência ao discurso de Pico:
Praticamente todos os teólogos daquela época aceitavam a doutrina da
depravação humana; no caso de Comenius, entretanto, esta crença era meramente
fortuita. Ele acreditava que as forças dirigindo-se para o bem são mais fortes que
aquelas que conduzem para o mal, que o homem ainda conservava, embora
muito corrompida, a imagem de seu Criador; e que esta bondade original
mostrava-se no desejo do homem de voltar ao seu estado de perfeição. Com
todos os grandes educadores, Comenius possuía uma confiança sublime na
perfectibilidade da raça. Repetidamente afirmava que as ‘sementes do saber,
virtude e piedade’ são encontradas em todos os indivíduos normais e o
suscetíveis de cultivo ilimitado. Nenhum educador teve maior no poder da
educação de salvar a humanidade e, conseqüentemente, de fazê-la retornar à sua
divindade original.
Comenius, em sua Didactica magana (capítulo III), considera a vida terrena uma
preparação para a vida eterna. E justifica-o, afirmando que
até os nomes que as Sagradas Escrituras dão a esta vida o a entender que esta
não é senão uma preparação para outra. Com efeito, dão-lhe o nome de via,
viagem, porta, espera; e a nós, o nome de peregrinos, forasteiros, inquilinos,
aspirantes a uma outra cidadania, a qual será verdadeiramente permanente.
(Gênesis, 47,9; Salmo 29, 13; Job, 7, 12; Lucas, 12, 36)
73
Comenius (Capítulo V) afirmava não ser “necessário, portanto, introduzir nada no
homem a partir do exterior, mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais
ele contém o gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza”. Para tanto, o
homem tem necessidade de educação (COMENIUS, 2006).
Rousseau, por sua vez, apresenta o “homem natural” como um conceito central de
seu projeto filosófico-pedagógico, um ser infinitamente mais desejável do que o afetado e
corruptível homem da civilização. Para o autor, é na dialética do individual e do social que
se constrói este homem, ou seja, na tensão entre o amour de soi-méme (amor de si mesmo)
e o amour propre (amor próprio), estes dois sentimentos constitutivos do ser humano. A
leitura de Emílio ou Da Educação permite identificar o primeiro tipo de amor com as
paixões naturais, inatas; o segundo, com as paixões sociais, não-inatas, surgindo a seguinte
questão: uma vez que o domínio das paixões é uma questão pertinente tanto para a filosofia
quanto para a pedagogia, qual é a influência negativa das paixões não-naturais na formação
do homem e qual a atenção e os cuidados que elas merecem em âmbito educacional?
Na parte inicial do Quarto Livro, de Emílio ou da Educação, Rousseau aborda a
idade da razão e das paixões de Emílio, a qual se estende dos 12 aos 20 anos. É o tempo da
maturidade, necessária para o agir moral do educando na sociedade sem ser por ela
corrompido. Para Rousseau, a superação da infância é marcada pelo surgimento de
determinadas paixões, responsáveis pelas modificações físicas (ROUSSEAU, 1992, p.
234). A princípio, paixões são instrumento de conservação, são parte da natureza, no
entanto, nem todas são naturais (p. 235). Segundo o autor, dois tipos de paixões: as
naturais, responsáveis por nossa conservação, e as não-naturais, negativas: “as que nos
subjugam e nos destroem vêm de fora; a natureza não no-las dá, nós nos apropriamos delas
em detrimento dessa natureza” (p. 235, grifo meu). As naturais são identificadas com o
amor de si mesmo, o qual “é sempre bom e conforme à ordem”, produzindo a inclinação da
criança para a benevolência (p. 236). Com a ampliação das relações humanas, no convívio
social, surge o amor próprio, de natureza insaciável, origem das paixões odientas e
irascíveis. Estas são modificações daquelas, “têm causa estranha, nos o nocivas; mudam
o primeiro objeto e vão contra seu princípio. É então que o homem se encontra fora da
natureza e se põe em contradição consigo mesmo” (p. 235).
Rousseau apresenta, a seguir, uma espécie de ideal educativo, que consistiria em
incentivar o amor de si mesmo do educando e “impedir que nasçam a inveja, a cobiça, o
ódio, todas as paixões repugnantes [...]” (p. 249).
74
Kant (2004) considerava a educação o mais árduo problema oferecido aos homens,
e também afirmou que, apenas através dela, o homem torna-se um verdadeiro homem, pois
ela pode fazê-lo avançar em direção à perfeição humana, tendo ele, para tanto, certas
disposições naturais, na forma de germes, colocadas pela Providência: seu
desenvolvimento conduz à felicidade, seu não-desenvolvimento, à infelicidade (Kant
ressalta que essas disposições não se desenvolvem por si mesmas). Para a formação do
caráter, é necessário o domínio das paixões, além de não se permitir que certas tendências
se tornem paixões: Kant chega a descrever apetites humanos, dividindo-os em apetites de
primeira espécie, como a ambição das honras, de segunda, como a volúpia, e de terceira,
como o amor à comodidade. Os vícios são classificados, de igual forma, em três espécies:
os de primeira abrangem, por exemplo, a inveja, enquanto os de segunda, a incontinência e
a intemperança e, os de terceira, a avareza e a preguiça. Ao citar as virtudes, subdivide-as
em virtudes de puro mérito, como o domínio de si mesmo e as de estrita obrigação, como
a lealdade e as de inocência, como a temperança. Kant conclui que o homem não é um ser
moral por natureza, tornando-se-o ao elevar sua razão até os conceitos de dever e de lei.
Dessa forma, pode agradar ao Ser Supremo: tornando-se melhor. Uma vez que a lei está
dentro do homem, para ele atingir a felicidade, deve ter uma conduta reta, pois a lei divina
pode ser sinônimo de lei natural, adentrando, assim, a religião na moralidade, o que
implica uma teologia que siga a moral, e não o contrário. Uma vez que é da natureza de
nossa alma o interesse por nós próprios, pelos outros e pelo bem universal, Kant afirma
que os homens não têm idéia da perfeição de que a natureza humana é capaz,
principalmente se um ser de natureza superior tomasse cuidado de sua educação.
34
O
filósofo afirma que a educação é um projeto a ser edificado ao longo de gerações, cabendo
a todos, inclusive – ou talvez especialmente? – aos professores melhorar-se continuamente.
Estes são desafiados por Kant a orientar os jovens a examinarem sua conduta todos os dias,
“para que possam fazer uma apreciação do valor da vida, ao seu término” (p.107).
35
Com essa citação final, penso ter levantado dados para uma problematização da
relação entre cuidado de si e educação. É um tema que carece de mais estudos. E aí, tanto
as Ciências da Linguagem, como a Filosofia, a Pedagogia e a Religião têm colaborações a
fazer em prol de uma psicagogia, ou pedagogia da perfectibilidade humana.
34
Kant não esclarece esse ponto, mas penso que podemos imaginar, aqui, a figura do mestre, no sentido de
alguém que, de maneira exitosa, faz da sabedoria prática o fim último da existência.
35
O que seria esse exame, se não uma prática de cuidado de si?
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mondin (2005, p.18) considera possível que o homem “possa realizar a si mesmo,
seu próprio ser; porque ele realiza aquilo que a natureza apenas começou a esboçar”. Esta
citação vem ao encontro da constatação de Foerster (1951) publicada em 1904 –, a qual
consiste, basicamente, em crítica à cultura moderna, demasiado técnica, cujas
manifestações caracterizam-se por o homem tender a dominar apenas a natureza material
em detrimento da natureza humana interior.
36
Foerster caracteriza como ideal aquela
civilização que tem como fundamento a cultura da alma, prevendo vacuidade de vida aos
cidadãos de civilização desprovida desta fundamentação. Esta vacuidade, característica de
nossa sociedade, assim o postulo contundentemente, é preenchida pelo exercer dos papéis
de natureza familiar ou social: no entanto, jamais filhos ou netos devem tornar-se a razão
de sermos, de estarmos no mundo, tampouco uma empresa ou um título, uma viagem, uma
conta bancária, uma mansão. Isso tudo tem a ver com civilização, pode ser acidentes
significativos em nossa vida, trazer momentos felizes, mas a explicação para o estar-no-
mundo o é encontrável aí. A motivação para sermos um além-disso-tudo é de natureza
cultural, somente cada um poderá, em si e por si, perseguir sua natureza latente, religar-se
ao seu ser, educar-se, tornar-se melhor.
Na busca por esse caminho desenvolvi o problema dessa dissertação procurando, a
partir da ótica humanista,
37
amalgamar olhares específicos, com o intuito de aproximar-me
de uma das múltiplas possibilidades da verdade. Tal olhar, constituído de maneira
heterogênea, visa oferecer alternativa aos mecanismos e metodologias de dominação
36
Para entender o pedagogo, é preciso levar em conta a distinção que este faz entre civilização, o domínio
sobre a natureza material, e cultura, o domínio do homem sobre sua própria natureza.
37
Por humanismo entendemos um saber ontológico nos moldes greco-romanos clássicos, que visa à
superação das limitações contextuais do ser e ao desenvolvimento do conjunto das disposições preexistentes.
76
simbólica e de imposição de sentido que marcam as perspectivas formalistas de orientação
de pesquisa comuns às ciências humanas no Ocidente, a ciência moderna. Um olhar que
tem em pauta, numa perspectiva foucaultiana, interrogar as relações entre saber e poder
constituintes de subjetividades, olhar muitas vezes hesitante diante da imposição, pela
Academia, de metodologias marcadas por suposta neutralidade, objetividade e assepsia
conceitual, mas com uma certeza crescente de que as coisas o constituídas pelas formas
de se olhar. Pode-se dizer que as ciências humanas, nas palavras de Veiga Neto (2002), se
ramificaram “em variadas epistemologias que têm em comum a crença numa realidade
exterior que se poderia acessar racionalmente, ou seja, pelo correto uso da razão”. Estas
epistemologias, por sua vez, são irmanadas pela “aceitação tácita” de que existe um sujeito
transcendental, cuja racionalidade é algo como um reflexo de uma razão também
transcendental e totalizante”, um sujeito cuja “consciência é entendida como um estado a
que se pode chegar pelo uso correto da razão”, cuja “linguagem é entendida como um
instrumento capaz de descrever o mundo e, de certa forma, de representá-lo” (p. 27).
Meu olhar se aconchegou na crise paradigmática inaugurada pela virada lingüística
e seu modo de desnaturalizar e problematizar a linguagem, prospectando discursos que se
formam e se articulam a partir dos enunciados, inseriu-se na crítica às metanarrativas
iluministas, não no sentido de negá-las ou de propor-lhes mera substituição. Procurei um
olhar heterogêneo, que considera as contingências diversas, em âmbito pessoal ou sócio-
histórico, frutos de um horizonte sem projeto cultural, tomando-as como empecilhos a
práticas humanistas, como as empreendidas pela pedagogia socrático-platônica de
reconhecimento e superação das paixões. Esse olhar faz coro com Larrosa, segundo quem
(2002, p. 140) o pensamento pedagógico moderno, enquanto prática de relacionar
conhecimento e vida humana, é caracterizado por uma mediação utilitária, em detrimento
de uma forma de conhecimento anterior à ciência moderna e em detrimento de uma
concepção de vida anterior à sociedade mercantil: o conhecimento passou a ser sinônimo
de ciência e tecnologia, algo infinito, universal, objetivo e impessoal, algo exterior a nós,
do qual podemos nos apropriar e utilizar, no sentido mais pragmático; a vida, por sua vez,
foi reduzida à dimensão biológica, à satisfação de necessidades e à sobrevivência do
indivíduo e da sociedade.
Nesse sentido, ainda de acordo com Larrosa, (p. 158), os aparatos pedagógicos de
produção e de transmissão de conhecimento fundam-se no afã da homogeneidade e da
estabilidade, possibilitadas por sua idiossincrática concepção de conhecimento
desvinculada da espiritualidade. O espanhol é defensor da possibilidade do plural, de um
77
conhecimento sinônimo de experiência, de “uma vida que o inclui a satisfação da
necessidade senão, e sobretudo, inclui aquelas atividades que transcendem a futilidade da
vida ordinária. O saber da experiência ensina a viver humanamente e a conseguir a
excelência em todos os âmbitos da vida humana” (p. 142). Para Larrosa (2002, p. 142), a
experiência não é elemento metodológico que visa a uma acumulação progressiva de
verdades objetivas, mas “aquilo que nos passa e o modo como atribuímos sentido a ele”.
Como conseqüência do abandono do saber da experiência e da inflação de conhecimento
objetivo, ocorre que
a vida humana se tornou pobre e indigente e o conhecimento moderno o é
mais o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a vida dos homens, mas é
algo que flutua no ar, estéril e desconectado dessa vida na qual não pode mais se
encarnar. [...] a educação se converte em uma questão de transmissão de
conhecimento. E a ciência da educação poderá substituir a experiência sempre
incalculável do encontro entre uma subjetividade concreta com uma alteridade
que a desafia, a desestabiliza e a forma. Na sua busca de um modelo de uma
aprendizagem natural, a pedagogia se converte na realização de uma seqüência
previsível de desenvolvimento, no processo evolutivo de um sujeito psicológico
e abstrato (grifos do autor).
Implicações de tal ciência de educação encontram-se relatadas em Pereira (2005),
cujas reflexões ressaltam as conseqüências advindas da globalização na Alemanha, onde,
paralelamente à privatização da educação pública, também ocorre o desencanto das
crianças e adolescentes com as formas de ensino, por estas terem pouco a ver com as suas
vidas pessoais, individuais, além de muitas das habilidades, competências e conhecimentos
adquiridos ao longo da vida escolar não terem relação com a sociedade na qual devem
viver e trabalhar. Nesta linha, também Hartmut von Hentig (apud STEDEROTH, 2005, p.
329) alerta para o perigo de se equiparar conhecimento com informação, reduzindo-se
aquele a esta, como algo que simplesmente se recebe ou transmite, um conteúdo que não
necessariamente alguém deseja ou precisa saber.
Empreendida excursão por diversos domínios das Ciências Humanas, concluí que,
de fato, o cuidado de si pode contribuir para um mundo mais humano, rumo a uma ética
universalizante. E não parece haver alternativa: assim como o aluno vai à escola para
aprender, também cada um de nós vem a esse mundo para educar-se, ou religar-se. Existe o
livre-arbítrio, mas sempre houve uma espécie de cultura transversal na sociedade humana,
em que um número restrito de pessoas tinha acesso exclusivo a um conjunto de
78
conhecimentos para buscar a perfectibilidade humana e muitos atingiram condição
próxima da perfeição, ou a própria, como Jesus Cristo.
Costuma-se dizer que errar é humano, que não se é santo para ter agido de outra
forma em determinada situação, no entanto, pouco se problematiza uma questão de dupla
ordem: 1) ao menos em nível inconsciente, tem-se noção de que o bem agir, ou
temperança, podem ser concretizados em situação eticamente delicada e 2) a maioria dos
santos têm nome ligado a uma filiação terrena, portanto, não caíram do céu nem foram
agraciados com sua santidade por algum ser transcendente em uma cerimônia esotérica: o
santo se torna, não é feito o que, de forma nenhuma, diminui sua grandeza ou
exemplaridade mas se algumas pessoas em processo de beatificação têm até CPF, outros
terão até e-mail. Essa problematização tem implicações pedagógicas. Cito algumas.
Na relação pai e filho, não se trata mais, sob essa ótica, de o adulto educar o jovem
a educação é um processo individual, simplesmente mediado pelo mestre, no caso, o
adulto. Este terá oportunidade de educar-se ao educar seus filhos, pois será oportunidade
ímpar para cuidar-se de si e dos outros, desde que pratique o cuidado de si. Portanto, além
de oferecer condições materiais e intelectuais mínimas aos filhos, os pais também têm a
obrigação de estimular sua espiritualidade, para que possam exercer sua liberdade
estetizando sua existência ao escolher profissão, estudar clássicos humanistas, investigar
tanto a sua natureza interior como a natureza exterior, seja física ou social.
Na relação professor e aluno, a César o que é de César, isto é, a escola é uma
instituição social e, como tal, reflete-a e visa à sua perpetuação, mas os anos escolares e
acadêmicos terão sua validade reduzida se os alunos não tiverem a oportunidade de
também desenvolverem sua espiritualidade, seja na relação com seus colegas, seja com
seus professores, seja estudando o pensamento humano, tanto a literatura humanista
clássica quanto a contemporânea, a fim de aprender com os escritos dos mestres, descobrir
e cultivar o cuidado de si. Aqui penso poder inserir a crítica a que Foucault margem,
através de seus estudos, aos dispositivos pedagógicos assentados em modelos que não
levam a alma humana, no sentido clássico, em consideração.
No âmbito político, que não se possa mais apenas fazer opção entre aquele que
rouba, mas faz, ou aquele que não faz, mas não rouba. Que se criem mecanismos para que
políticos possam educar-se servindo à comunidade, começando pelo exemplo. Que tenham
como meta a mudança, primeiro de si mesmos, para que um dia possam usar roupa branca
em campanha, tornarem-se candidatos dignos do termo.
79
Que o sacerdote, o religioso, humanize a prática instituída, revertendo a situação
relativa à verdade pedagógica: que se cuidem de si para ensinar aos fiéis o cuidado de si.
Que a teologia siga a moral, como aponta Kant.
Enfim, o cuidado de si pode humanizar-nos. No acidente de trânsito não vamos, à
mercê da ira, agredir, talvez até matar por uma lataria amassada, O gordinho, ao abrir a
geladeira, pode superar a gula e, lembrando-se de que almoçou uma hora, dirá para si
mesmo que ainda não é hora de comer e não comerá. Muitas situações, até as mais banais,
podem servir de escola, aonde vamos para que possamos nos melhorar.
Resta a indicação de se pesquisar de que forma, concretamente, pode a razão
identificar e eliminar de nossa natureza as paixões ou defeitos, aquilo que nos leva a agir
mal, a ficarmos de consciência pesada. E nos torna tão imperfeitos impedindo uma
estetização da existência.
80
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