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A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL
BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA CARTOGRAFIA NO
SÉCULO XIX
Renato Amado Peixoto
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História Social, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em História.
Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
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A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL
BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA CARTOGRAFIA NO
SÉCULO XIX
Renato Amado Peixoto
Manoel Luiz Salgado Guimarães
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História.
Aprovada por:
___________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
II
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
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Para Elaine,
minha amada esposa,
porque este trabalho,
como artesanato que uma aranha arranha e tece,
registra sua luta, inscreve seu riso,
no mapa de todos os meus sonhos,
no itinerário de minha passagem.
III
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Aos meus pais
Manuel e Celeste
IV
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
AGRADECIMENTOS
Ao amigo Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães, orientador desta tese, não
apenas por ter analisado seu conteúdo e corrigido seu texto, mas também pela
generosidade de apresentar-me a conceitos e questões que possibilitaram buscar muito
além do que inicialmente havia planejado: “Those are pearls that were his eyes”.
1
Aos Profs. Drs. Ilmar Rohloff de Mattos e Afonso Carlos Marques dos Santos
que compuseram a Banca de Qualificação desta tese, tanto por suas sugestões, que
considero terem sido essenciais para o direcionamento das questões aqui debatidas,
quanto pelo incentivo que incitou meu trabalho e dispersou minhas inseguranças.
Ao Prof. Dr. Pedro Tórtima, pelo carinho dispensado no IHGB e pelas várias
explanações a respeito da questão penal; do mesmo modo, quero ainda agradecer a
minhas queridas Maria do Brasil e Isabel Correia, velhas conhecidas, pela acolhida
sempre fraternal no Serviço Geral de Documentação da Marinha e no Arquivo do
Itamaraty.
Finalmente, desejo demonstrar meu reconhecimento ao trabalho da Profª. Dra.
Andréa Daher, que em seu curso de Metodologia dispensou toda atenção e cuidado ao
nosso trabalho, e ao Prof. Dr. Carlos Alvarez Maia, cujas idéias e estímulo
possibilitaram o nascimento do projeto desta tese.
1
‘Estas são as pérolas que foram seus olhos’. WiIlliam Shakespeare, ‘Canção de Ariel’ in A Tempestade,
Ato I, Cena II,
The Complete Works of William Shakespeare. MIT: http://www-tech.mit.edu/
Shakespeare.html.
V
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Peixoto, Renato Amado
A Máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através
das corografias e da cartografia no século XIX/ Renato Amado Peixoto. – Rio de
Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2005.
xii, 427f.: il; 29 cm.
Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães
Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
/
Programa de Pós-graduação em História Social, 2005.
Referências bibliográficas: f. 417-432.
1. História do Brasil. 2. Historiografia. 3. História da Cartografia. 4. Históri
a
da Política Externa Brasileira. I. Guimarães, Manoel Luiz Salgado II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de
Pós-graduação em História Social. III. A Máscara da Medusa: a construção do
espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX.
VI
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
RESUMO
A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL
BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA CARTOGRAFIA NO
SÉCULO XIX
Renato Amado Peixoto
Manoel Luiz Salgado Guimarães
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em História.
As corografias e a cartografia foram utilizadas para registrar a construção e a
centralização do Estado brasileiro no século XIX. Este registro, que também foi
empreendido por meio da historiografia, pode ser entendido, num primeiro nível de
leitura, como um discurso onde o Estado narra seu passado, estabelecendo sua própria
legitimidade e fortalecendo-se no plano de seus direitos fundamentais. Num segundo
nível de leitura, entendemos que este registro inscreveu também as relações de força e
soberania que constituíram o Estado e construíram, assim, seu espaço e seu território.
Portanto, estes registros podem ser compreendidos enquanto representações da própria
Elite e de sua convivência continuada com o Político e a sociedade, viabilizando, assim,
um estudo do Poder a partir da compreensão de uma ‘linguagem’ e de um ‘saber sobre o
espaço’; e das condições de composição, produção, divulgação e reelaboração das
representações do espaço nacional.
Palavras-chave: História do Brasil, Historiografia, História da Cartografia,
Geografia, Representação, História da Política Externa, Cartografia, Corografia.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
VII
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
ABSTRACT
THE MASK OF MEDUSA: THE CONSTRUCTION OF THE BRAZILIAN
NATIONAL SPACE THROUGH CHOROGRAPHY AND CARTOGRAPHY
Renato Amado Peixoto
Manoel Luiz Salgado Guimarães
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em
História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em História.
Chorographies and cartography were used to register the construction and the
centralisation of the Brazilian state in the nineteenth century. This register, also applied
through historiography, can be understood, at a first reading, as a discourse in which the
state narrates its past, establishing its own legitimacy and strengthening itself regarding
its fundamental rights. In a second reading, it can be seen that this register is also
inscribed in the relations of force and sovereignty that constituted the state and
constructed its own space and territory. Therefore, these registers can be understood as
representations of the elite and their continual interaction with the political sphere and
with society, thereby making possible a study of power through an comprehension of a
knowledge about the space', an analysis of its 'language' and with the understanding of
the processes of composition, production, dissemination and continual reworking of the
representations of the national space.
Key-words: Brazilian History, Historiography, History of Cartography,
Geography, Representation, History of International Relations, Cartography,
Chorography.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2005
VIII
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS E TABELAS XI
CAPÍTULO 1
O tempo do espaço e os espaços do tempo: o antigo modelo de espaço da América portuguesa e a
‘relações de força e soberania’ 1
CAPÍTULO 2
Rumo à ilha deserta: a construção cartográfica concorrencial e a disseminação 20
CAPÍTULO 3
O mapa antes do território: a construção local e a construção central do espaço 35
CAPÍTULO 4
Mapeando o vazio: a ‘gramática da visão’ e a interpretação semiológica e iconológica dos mapas
através das cartas gerais 53
CAPÍTULO 5
Riscando o passado: a composição cartográfica e a inscrição cartográfica do Estado 77
CAPÍTULO 6
A descrição do contemplador: as corografias e as condições de elaboração da narrativa 108
CAPÍTULO 7
O assento central: a ‘operação da narrativa’ e as idéias da inscrição do Estado no espaço 137
CAPÍTULO 8
O itinerário do valioso ao possível: o uti possidetis e a operação da narrativa 179
CAPÍTULO 9
O espelho do Jacobina: os processos de produção cartográfica e o novo regime da narração 219
CAPÍTULO 10
Em amplexo fraternal: a ‘luta de representações’ e a produção das cartas gerais 255
IX
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
CAPÍTULO 11
A ‘Máscara da Medusa’: a perspectiva da centralidade e a construção da ‘Mitologia do espaço
nacional’ 313
APÊNDICE I 408
APÊNDICE II 410
FONTES E BIBLIOGRAFIA 412
X
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
LISTA DE FIGURAS E TABELAS
FIGURAS
1. Mapa das distâncias da navegação à vela 9
2. Modelo setentrional 27
3. Diferentes versões do mesmo atlas 29
4. Padrão paralelo 30
5. Padrão diagonal 30
6. Perspectiva do modelo meridional 32
7. Guarajús 34
8. Eixo da representação do primeiro modelo de carta geral 60
9. A transformação do marco central 61
10. Transferência de significados do marco central para o marco periférico 66
11. Esquema da Carta da Nova Lusitânia 68
12. Esquema de uma construção da centralidade do Rio de Janeiro 74
13. Exercícios de perspectiva 79
14. Primeira Carta 84
15. Composição cartográfica da Primeira Carta 86
16. Projeção Continental 97
17. Traçados mais utilizados da linha de Tordesilhas 101
18. Proposta de D. João VI 106
19. Esquema das corografias 116
20. Estrutura do ‘teatro da narrativa’ 138
21. Estrutura da ‘operação da narrativa’ 139
22. O Brasil das ‘Memórias acerca dos limites naturais’ 156
XI
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
23. Carta mural Arrowsmith 233
24. Comparação entre atlas com mapas gravados e atlas com mapas litografados 239
25. O Rio de Janeiro nos atlas estrangeiros 273
26. ‘Mapa do Rio Grande’ de Duarte da Ponte Ribeiro 295
27. ‘Mapa Especial’ de Duarte da Ponte Ribeiro 301
28. Atenas e Medusa 321
29. Medusa (Romantic Circles) 322
30. Esquema (Romantic Circles) 323
31. Esquema (desta tese) 324
32. Limites econômicos 346
33. Limite das Sezões 347
34. Limites do território restrito e do desconhecimento 349
35. Mapa das Cortes (português) 396
36. Mapa das Cortes (espanhol) 397
37. Exemplo de narração mitológica 402
38. Representações romanas da Medusa (séculos II-III D. C.) 406
39. Medalhão dos Paranhos 407
TABELAS
1. Divergências e convergências na SJNE (1842-1848) 166
2. Relatores das consultas da SJNE entre 1842 e 1848 170
3. Áreas do Brasil e de algumas Províncias 274
4. Exemplo da estrutura da ‘nova corografia’ 282
XII
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
1 — O TEMPO DO ESPAÇO E OS ESPAÇOS DO TEMPO: O ANTIGO
MODELO DE ESPAÇO DA AMÉRICA PORTUGUESA E AS ‘RELAÇÕES DE
FORÇA E SOBERANIA’.
A idéia do espaço nacional brasileiro tem sido confundida com a história de suas
fronteiras, de acordo com uma narrativa centralizada na unidade do território e na
continuidade do Estado português na América. Segundo esta narrativa, durante o século
XIX e o início do século XX, o Brasil, um país satisfeito e cioso de seu legado, dirigiu
seus esforços para a consolidação pacífica dos seus antigos limites através da ação do
direito. Assim, sucessão e legitimidade estão associadas numa construção que prioriza a
fixidez espacial por meio de uma interpretação que entende os contratos de limites
como se fossem registros e testemunhos do nascimento, crescimento e amadurecimento
da Nação.
Neste sentido, a geração e a transmissão da nacionalidade estão ligadas à
consubstanciação pacífica da pátria por meio de uma tradição do privilégio à solução
jurídica, desenvolvida numa coleção de tratados, iniciados pelo gênio de Alexandre de
Gusmão e consolidados pela perspicácia do Barão do Rio Branco. Então, a terra,
somente a terra, foi capaz de unir o passado, o presente e o futuro, moldando o caráter
das relações sociais, a índole do nacional e o entendimento fraterno com os outros
povos: estes são os frutos de uma gênese harmoniosa do espaço e do zelo constante pelo
território.
O Brasil, já império, não procurava obter vantagens próprias ao
invocar o princípio do ‘Uti Possidetis’ [...] o Brasil jamais foi um país
imperialista; nunca usou ou abusou de sua força nem de sua população mais
numerosa para impor aos países vizinhos limites preestabelecidos. [...] Ao
Brasil, nação pacífica, liberal e democrática desde seus primórdios, isto, é
desde a instalação do município português em São Vicente [...] não restava
outro recurso senão valer-se do arbitramento para solução de suas contendas
de limites [...] sendo o Brasil uma sobrevivência do passado, e sobrevivência
da mesma raça em outro meio, não se compreende como seja possível
inventar entre nós uma nacionalidade sem o culto das tradições. É preciso
sentir ainda que uma grande pátria nunca foi obra de uma só geração, por
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
maior que seja, mas produto de linhagens sucessivas, resultantes de esforços
continuados e de fatores muito complexos, atuando através dos séculos.
1
Entretanto, entendemos que a construção do espaço nacional brasileiro e de seus
limites derivou do debate, das escolhas políticas e das lutas de representações que se
desenrolaram em torno da consolidação do Estado. Neste sentido, os limites e o espaço
não se consolidam nem mesmo depois das transformações operadas no Estado nas
décadas de 1830-1840 e das grandes iniciativas desencadeadas na política externa
durante os dez anos seguintes: podemos dizer que o espaço e seus territórios
continuariam, mutáveis, fluídos e, sobretudo, imaginados.
Assim, em lugar de uma legitimidade impressa pelo contrato dos limites ou de
uma continuidade derivada da tradição, compreendemos que a idéia do espaço nacional
seria melhor entendida como um arranjo contínuo da representação do Estado, motivado
pela reelaboração da inscrição das ‘relações de força e soberania’ que o constituíram e
caracterizado pela elisão das suas tensões e dos seus enfrentamentos.
Na realidade, no século XVIII, o espaço brasileiro havia sido apenas esboçado
pelo que denominaremos de ‘fronteira militar portuguesa’, apoiada sobre praças fortes
isoladas num território em larga parte desconhecido e distantes na média e, em
condições ideais, noventa dias de sua base. A logística da manutenção dessas
fortificações e de suas guarnições, bem como as atividades correlatas de patrulha e
exploração, somente puderam ser mantidas, a muito custo, durante a maior pujança do
Estado português, entrando depois em decadência e abandono.
O forte [de São Gabriel] que foi construído em 1763 por ordem do
Capitão-General do Pará, Manuel Bernardo de Melo e Castro, acha-se hoje
em ruínas; com suas peças desmontadas, sua cortina arrasada, seus salientes
desmoronados e seus antigos edifícios em um montão de pedras. Representa
ele uma luneta de forma irregular, cuja gola, que é uma frente abaluartada,
defronta com o rio. As paredes são de pedra e barro simplesmente. Já não
existem mais senão os vestígios do antigo Quartel, dos armazéns para
material e guarda de pólvora.
2
1
João Gualberto de Oliveira, Gusmão, Bolívar e o princípio do uti possidetis. São Paulo, 1958, p. 98-99 e contracapa.
2
Relatório da Comissão Demarcadora da Fronteira Norte ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1884.
2
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Contudo, a ‘fronteira militar portuguesa’ não possuía como objetivo a
manutenção da imobilidade da fronteira e da fixidez do espaço, mas, interditar o
movimento nas vias de comunicação conhecidas e obstacularizar os esforços contrários,
sempre deixando em aberto a possibilidade de deslocamento e infiltração no território
circundante a partir de suas posições, como, por exemplo, no caso dos presídios de
Albuquerque e Coimbra na margem ocidental do Paraguai, cuja fundação tinha o
propósito de garantir a navegação exclusiva desse rio e de interceptar a comunicação
interior das províncias espanholas com o Peru pelo caminho de Chiquitos.
3
Por conseguinte, entendemos que a ‘fronteira militar portuguesa’ tinha por
princípios, a organização dos esforços avançados, o apoio ao deslocamento e a união do
esforço militar e civil, onde o chefe das tropas exercia um papel central. Tome-se, por
exemplo, a questão do soldo dos praças que serviam nas guarnições avançadas: como
estes eram arregimentados por um período determinado, geralmente um ano, e quando
de seu término, recebiam o soldo em espécie, de uma só vez. Isto significava que o
Estado, ou seu representante necessitava desembolsar grandes quantias de uma só vez e
ao mesmo tempo manter o fluxo das remessas de recursos humanos, com seus encargos
de arregimentação, fardamento, instrução, abastecimento e reposição.
4
Deste modo, compreendemos que a ‘fronteira militar portuguesa’ pode ser
associada conceitualmente à idéia da guerra e ao antigo conceito militar da ‘Marca’,
onde sua distância, separação e afastamento estavam ligados à introdução e operação
num território contíguo, estrangeiro e hostil, constituindo-se o enfrentamento numa
possibilidade permanente. A ‘fronteira militar portuguesa’ constituía, de fato, uma
estratégia a ser conduzida num grande teatro de operações, com a flutuação das posições
variando em função de escolhas ou circunstâncias, caracterizando, não uma linha fixa,
precisa e contínua, mas uma zona flutuante, descontínua e imprecisa no espaço.
Por exemplo, a fronteira militar no sul do Mato Grosso foi constituída
estrategicamente de acordo com as condições provocadas pelas cheias do rio, pelos
enfrentamentos com os espanhóis baseados no Paraguai e pelas perspectivas de
cooptação dos índios Guaicurus. Deste modo, a constituição dos postos avançados na
área, como o Presídio de Coimbra, visavam preencher as características desse teatro de
3
‘Instruções de Paulino José Soares de Souza a José Antônio Pimenta Bueno em 16/10/1843’ in A Missão Pimenta
Bueno (1843-1847) - Documentos, Ministério das Relações Exteriores, 1966, p. 3-15.
4
Francisco José de Sousa Soares de Andréa, 'Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do
Brasil', 1847. IHGB, Lata 289, Pasta 9.
3
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
operações, sendo que estes podiam ser relocados tão logo se constatassem mudanças ou
transformações nas condições estratégicas, como, no caso, pode ser constatado pela
intenção de se fortificar a área de Fecho dos Morros, posição mais favorável ao controle
do tráfego fluvial. Do mesmo modo, a posição de São Joaquim do Rio Branco
destinava-se tanto a basear as razias sobre as áreas povoadas pelos espanhóis e as
patrulhas e explorações na região do baixo Essequibo quanto controlar a área do alto
Rio Branco.
Ainda, a ‘fronteira militar’ remetia às condições da variação de escala aplicada
pela metrópole e que eram opostas a uma idealização da unidade e centralidade da
América portuguesa: a Amazônia, o Mato Grosso e o extremo sul, por exemplo,
constituíam espaços diferenciados para os quais convinham estratégias e iniciativas
separadas, sendo, inclusive, chamados, à época, de ‘Continentes’ do Domínio
português, comportando, cada qual, qualidades e consistência próprias.
As variações de escala aplicadas pela antiga metrópole ao espaço brasileiro eram
então também determinadas pelas limitações que as condições geográficas impunham às
comunicações, impondo-se, por conta da necessidade de descentralizar a administração,
a compartimentação do espaço. No caso, esta compartimentação pode ser exemplificada
por meio de um estudo do deslocamento entre o Rio de Janeiro, Belém, Angola e o
Prata. Então, a navegação à vela era praticamente o único meio de comunicação entre as
várias partes do Domínio português, sendo que, a distância entre Belém e o Rio de
Janeiro não era vencida através do costeio do litoral, mas pelo deslocamento dos navios
até a região próxima às ilhas de Cabo Verde, de onde os barcos eram novamente
impulsionados até as proximidades da Paraíba, importando numa viagem de,
aproximadamente, 11.500 quilômetros. Mas, se os barcos, por algum erro de cálculo ou
por um problema no regime de ventos, arribassem mais à noroeste da costa da Paraíba,
estes eram forçados a ter de refazer o deslocamento até Cabo Verde para poder retomar
a viagem.
Contudo, o trajeto entre Rio de Janeiro e Angola somava apenas a metade
daquele percurso, aproximadamente 6.000 quilômetros, enquanto que a distância que
separava o Rio de Janeiro da região do Prata era seis vezes menor, mas, separava o Rio
das regiões centrais do Brasil. Neste caso, as várias dificuldades do roteiro terrestre até
o Mato Grosso e o interior de São Paulo, Paraná e Goiás, como, por exemplo, as
doenças tropicais e os ataques dos indígenas, impunham a viagem pelo Paraná e
4
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Paraguai através do Prata, sendo que, o tempo de deslocamento era ainda diminuído em
até sete meses.
Portanto, utilizarmos as distâncias exigidas pelos condicionalismos da
navegação à vela para construirmos um mapa do espaço da América Portuguesa e de
seus espaços adjacentes, chegaremos a um modelo que reproduz aproximadamente a
compartimentação do espaço, mesmo porque estes percursos poderiam ser ainda
aumentados, em função das correntes, calmarias e regime de ventos.
FIGURA 1 MAPA DAS DISTÂNCIAS DA NAVEGAÇÃO À VELA
Cartografia: Renato Amado Peixoto.
5
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Note-se na Figura 1, a dispersão dos territórios brasileiros num espaço maior que
também compreende outros locais e espaços idealizados, como Angola, França,
Inglaterra e a África, a Europa e o Prata.
5
Observe-se que a Europa, o Prata e a África apresentam-se mais próximas do
Rio de Janeiro e dos territórios adjacentes que os territórios amazônicos, e que, em
relação aos territórios centrais, apresentar-se-ia uma contiguidade ressaltada pelas
condições da navegação à vela, que representamos pelo prolongamento da Bahia e do
Rio Grande do Sul.
Veja-se que a região central encontra-se destacada dessa continuidade em função
do Prata, apresentando-se a esta descontinuidade a alternativa da longa comunicação
fluvial por São Paulo e que era possível, através de uma difícil navegação pelo Madeira,
a comunicação entre os territórios do centro e a Amazônia.
Ressalte-se ainda, que este modelo poderia continuar válido até a metade do
século XIX, se consideradas apenas as condições tecnológicas, uma vez que a
navegação a vapor somente começaria a substituir a navegação à vela no Brasil a partir
desse período, alterando as condições de percepção do espaço, inclusive pela
diminuição do tráfego terrestre no nordeste.
Por conseguinte, se entendermos que o território é construído a partir de um
percepção intelectualizada do espaço e que esta seria feita em razão das necessidades de
deslocamento e da administração, seria bastante improvável que uma construção
unitária e contínua do espaço da América portuguesa houvesse se imposto sobre uma
visão compartimentada ainda no século XVIII.
Esta percepção das variações de escala no espaço também perpassou a execução
e demarcação do conjunto dos tratados entre Portugal e Espanha no setecentos, podendo
ser discernida em sua principal premissa, a permuta de posições, que alcançaria todo o
império colonial e não apenas o continente americano. Nesse sentido cada parcela do
espaço era considerada em suas qualidades e, a seguir, comparada com uma outra
parcela do espaço que lhe fosse correspondente, para, somente então, ser efetuada a
troca. Por exemplo, no Tratado de Madri, o reconhecimento da soberania portuguesa
5
Utilizamos no mapa as escalas e proporções exatas das distâncias segundo a mecânica da navegação à vela, sendo
que nossos cálculos foram feitos sobre as pesquisas de Max Justo Guedes. Nesse sentido ver, 'As primeiras
expedições de reconhecimento da costa brasileira', in
História Naval Brasileira v. 1, tomo I. Rio de Janeiro: Serviço
de Documentação Geral da Marinha., p.177-222, e 'O condicionalismo físico do Atlântico e a navegação à vela', in
História Naval Brasileira v. 1, tomo I. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975, p. 117-
138.
6
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
sobre o Maranhão, o Mato Grosso e o Amazonas se daria através da cessão das
Filipinas, Colônia do Sacramento e territórios adjacentes na margem do Prata, mais a
aldeia de São Cristóvão e o seu entorno, a saber, a área entre os rios Japurá e Iça, na
confluência do Amazonas. Já no Tratado de Santo Ildefonso, permutar-se-ia as ilhas de
Fernando Pó, Ano Bom e, novamente, da Colônia do Sacramento pelo território que
hoje constitui parte dos atuais estados brasileiros do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina.
Por outro lado, a exploração do que convencionou-se chamar, ainda na África do
século XV, de ‘Sertões’, pode também ser entendida segundo uma percepção que
englobasse a ‘fronteira militar’ e a variação de escalas no espaço, pois se visava gerar
conhecimentos estratégicos que possibilitassem a dilatação da projeção econômica ou
militar, constituía este espaço enquanto periférico em relação ao estabelecimento
colonial. Neste raciocínio, também seria profundamente falha a aplicação estrita do
conceito de ‘fronteira natural’ base do princípio de expansão e da consolidação do
território da América portuguesa, pois a compreensão do Sertão fazia parte da empresa
mercantil e da circulação econômica da América portuguesa constituindo, muitas vezes,
um espaço próprio que não podia ser concebido em termos da ‘fronteira natural’, mas
com uma dilatação e contração relativamente autônomas.
Portanto, entendemos que o conceito de ‘fronteira natural’, conforme utilizado
pela narrativa, somente foi articulado no século XIX, quando se busca constituir a
antigüidade da inscrição do espaço nacional através do seu remetimento à uma
construção anterior, que, no entanto, no século XVIII, tinha sido apenas esboçada pelo
portugueses:
Sem dúvida a natureza predestinou este istmo para fecho do grande
Império; é aqui o berço dos dois gigantes [o Paraguai e o Amazonas], que o
abraçam, e circunvalam; a coroa da majestade, colocada no ponto mais
culminante de toda a terra de S. Cruz; como a principal atalaia; e para
encher o Brasil seus altos destinos, traçou-lhe o Gênio do Comércio vastas e
vantajosas proporções. É evidente, senhores, que são estes dois pequenos
7
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
rios, Alegre e Aguapehy, os que satisfazem o sentido óbvio e literal do
artigo X do tratado de limites de 1777.
6
Assim, compreendemos que a idealização da nação foi feita através de uma
historicização de sua identificação com a terra e com a ocupação que incorporava a
centralização do Estado e sua extensão sobre os territórios periféricos. Esta narrativa
territorial consolidar-se-ia, mesmo, que, muitas vezes, os títulos exibidos e incorporados
à representação do espaço nacional demostrassem mais o abandono ou a transitoriedade
do antigo modelo e que permitissem reconstruir tanto a temporalidade quanto a
descontinuidade do espaço na América portuguesa.
Nesse sentido, serve como exemplo, a permanência da região de Guarajús nas
cartas gerais e corografias do século XIX, uma vez que seu registro se deu a partir da
discussão travada no final da década de 1840 sobre a importância de se incluir este
território no espaço nacional. O arraial de São José dos Guarajús, na margem esquerda
do rio Guaporé, se constituía então em uma coleção de ruínas situadas em torno de uma
antiga região aurífera. Já no século XVIII suas minas se encontravam esgotadas e
abandonadas, estando bem além dos interesses e do esforço máximo possível da
Metrópole.
7
Ainda assim, esse título da ocupação pregressa do território consolidar-se-ia
nas representações cartográficas feitas no Brasil durante algumas décadas, até que fosse
expelido em razão dos interesses da política externa na década de 1870. Do mesmo
modo, também continuariam sendo representadas nas cartas gerais as ruínas do presídio
de Nossa Senhora dos Prazeres, um título constituído em referência ao heroísmo de seus
habitantes, conforme divulgado nas corografias do século XIX. Segundo esses relatos,
apenas entre 1769 e 1774 teriam sido registrados 499 óbitos, por conta da insalubridade
do clima e das doenças tropicais. Sendo ainda atacada pelos Guaiacurus em 1774, as
corografias narravam que a praça dos Prazeres teria sido evacuada em 1777, embora na
verdade tivesse sido destruída nesse mesmo ano, depois de sua rendição aos espanhóis.
Por conta dessa identificação do sacrifício do natural pela terra, o registro das ruínas dos
Prazeres se manteve, inclusive, até a derradeira carta geral do Império em 1875.
6
José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Programa geográfico - Quais são os limites naturais, pactuados e necessários
do Império do Brasil ?’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, 1902..
7
Francisco José de Sousa Soares de Andréa, 'Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do
Brasil', 13/3/1847. IHGB, Lata 289, Pasta 9.
8
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Além do antigo modelo de espaço da América portuguesa ser diferente daquele
que era proposto pela narrativa, a indeterminação do espaço e o desconhecimento do
território no século XIX desmentiam a persistência de uma continuidade com a tradição
da Metrópole. Na verdade, o conhecimento geográfico e cartográfico havia estagnado e,
em certos casos, até regredira, dentre outros motivos, pela inexistência de pólos
produtores de um ‘saber sobre o território’, uma vez que nem mesmo a metrópole os
havia ainda constituído, tendo lançado mão apenas de iniciativas isoladas. Ainda, o
conhecimento que fora detido pelos administradores coloniais não seria partilhado com
as elites que constituíram o núcleo dirigente do novo país, parte por conta das
características de uma ‘política de segredo’ da antiga metrópole, caracterizada,
inclusive, pelo regresso de uma importante parte dos registros para Portugal, parte pela
desorganização administrativa que se agravaria após o regresso da Corte e à
Independência, dispersando os arquivos.
A partir das décadas de 1840 e 1850, com as transformações políticas que
permitiram a centralização e a consolidação do Estado, diversos esforços seriam
dirigidos no sentido de constituir-se um ‘saber sobre o espaço’, através, inicialmente, da
recuperação do conhecimento corográfico e, depois, pela inscrição de uma
representação do espaço nacional, que passaria, também, pela organização de uma
coleção de mapas e documentos geográficos. Seus resultados serviriam tanto para
aumentar a eficiência dos agentes do Estado quanto facilitar os proprietários de terras,
coligindo e divulgando através das representações corográficas e cartográficas uma
perspectiva do espaço nacional onde aquelas elites se reconheciam e se faziam
reconhecer no interior de um conjunto espacial ordenado em torno do Estado
centralizado no Rio de Janeiro.
Nas representações resultantes desse esforço se incluiria, por exemplo, uma
literatura didática destinada aos liceus e ao público em geral, a qual seria muitas vezes
subvencionada pelo erário, e uma cartografia concorrencial àquela realizada por outros
Estados, que se consubstanciaria nas Cartas Gerais e outros produtos.
A construção das representações corográficas e cartográficas estaria ligada às
elites políticas através de diversos organismos e instituições, tais como o Conselho de
Estado, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Secretaria dos Negócios
Estrangeiros, o Exército, a Marinha e a Secretaria dos Negócios da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas, a partir das quais as diversas representações do espaço
competiriam e se influenciariam reciprocamente.
9
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A corografia e a cartografia mostrar-se-iam, por conseguinte, inseparáveis do
processo de centralização e construção do Estado, com o qual colaborariam diretamente,
por exemplo, através da descrição do território, do mapeamento e da organização das
circunscrições territoriais e da delimitação do espaço urbano.
Duas regiões se distinguiriam nesse processo: uma primeira que seria mais
privilegiada por participar diretamente dos interesses do Estado, da expansão
imobiliária e comercial e da produção agrícola, correspondendo aos maiores
agrupamentos urbanos e às porções mais próximas ao litoral (com algumas exceções); e
uma segunda região, que corresponderia às demais parcelas de território ocupadas ou
reconhecidas.
Entendemos que esta divisão corresponderia aproximadamente aos binômios
esboçados por Ilmar Rohloff de Mattos, a saber, Civilização x Barbárie, Litoral x
Sertão,
8
implicando em diferenciadas estratégias de representação cartográfica: a
primeira região demandaria esforços que permitissem uma multiplicação da presença do
Estado e, por conseguinte, possibilitassem o controle, a mensuração e a quantificação,
através de mapas topográficos, planos de cidades, cartas provinciais, etc., enquanto que
a segunda região seria representada numa escala que possibilitasse o planejamento e a
penetração do Estado, por meio das cartas regionais, das cartas gerais e dos mapas
hidrográficos.
Por conseguinte, uma centralidade, ou seja, uma visão do centro, se constituiria,
paulatinamente, a partir de uma reelaboração da cosmologia da Metrópole,
interpretando-se o espaço além do litoral segundo a ótica do colonizador - civilizador.
Assim, tornar-se-ia necessário redesenhar o antigo modelo de espaço a partir das novas
relações que compunham o Estado, registrando-se o novo tempo e o novo espaço
exigidos por essa operação, no interior de outros tempos e espaços referentes apenas à
América portuguesa, permitindo que se delimitasse um envoltório para o Estado
nacional tanto por uma historicização do território e do espaço quanto pela
espacialização e territorialização da História Pátria. Possibilitava-se também a gravação
de mapas que precedessem o próprio território e que se preenchesse os vazios do espaço
com os conteúdos dessa narrativa.
9
8
Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999, 4ª
edição, p. 150-151.
9
Ver nesta tese os capítulos ‘O mapa antes do território’ e ‘Mapeando o vazio’.
10
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Em lugar de ser uma construção passiva, produto do conhecimento e da
exploração, e assim, conceitual e temporalmente posterior ao território, os mapas
possibilitariam a afirmar o ‘saber sobre o espaço’ constituído através da experiência
compartilhada entre o político e o social, por uma Elite capaz de compreender e se fazer
compreendida através de uma ‘linguagem do espaço. Estabelecer-se-ia, assim, a
abstração do território, com o debate sobre o espaço passando a ser conduzido apenas
nos termos e referências expressos pela ‘linguagem do espaço’, que estabeleceria,
assim, a existência e as condições da narrativa. Dos mapas, tomar-se-ia emprestado,
ainda, o estatuto de verdade de seu suporte científico, fazendo-se com que, através de
suas linhas, se materializasse essa construção, para que, em seguida, fosse enfeixada em
formas pétreas: afinal, uma ligeira alteração no seu desenho poderia abrir possibilidades
para inúmeras outras.
Entretanto, para se construir uma representação do espaço nacional foi
necessário descrever primeiro o território: nesse sentido, as corografias interagiriam
com a cartografia no processo de constituição e organização do Estado,
experimentando, contudo, um desenvolvimento diferente daquele da cartografia.
Enquanto que esta última se constituiria num contexto dinâmico de concorrência com a
cartografia dos países europeus e americanos, as corografias seriam erigidas do passado
colonial para se transformarem, posteriormente, num instrumento pedagógico do
Estado.
As corografias participavam de um gênero que deve sua origem à definição e à
interpretação ptolemaica da Geografia. Nesta, basicamente se enfatizava a necessidade
da visão e a importância da imagem e do pictórico, sendo a Pintura a sua alegoria mais
perfeita. A corografia se estabeleceria ainda durante o Renascimento como uma
influência determinante sobre a representação gráfica do espaço, fazendo assim, com
que aquele gênero se desenvolvesse paulatinamente enquanto uma perspectiva pictórica
particular de um território, e mesmo se confundindo com a cartografia. Com o
incremento das viagens transoceânicas e com o colonialismo, a partir do século XVI, as
corografias passariam a ter fins utilitaristas e apoio oficial, proporcionando às
metrópoles a descrição, a delimitação e a identificação do território.
10
Assim, no século
10
Lucia Nuti, ‘Mapping places: Chorography and vision in the Renaissance’, in Denis Cosgrove, Mappings. London:
Reaktion Books, 1999.
11
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
XIX encontrar-se-ia no Brasil uma tradição corográfica participante dessas mesmas
características e que remontava, pelo menos, ao século XVII.
Contudo, a segunda metade do século XIX se torna característica pelo
surgimento de uma nova forma corográfica que terá, muitas vezes, sua produção e
divulgação financiada pelo Estado. Esta é constituída enquanto um esforço ordenador e
normatizador que visa mais subordinar que informar e onde as partes e regiões são
designadas não mais pela sua individualidade, mas pelo seu pertencimento a uma
unidade histórica e territorial: a nação é reconhecida em sua descrição física e em
relação às suas divisões políticas, que compõem parcelas de uma unidade
administrativa, eclesiástica e judiciária. O mesmo processo é repetido em relação às
Províncias sempre se salientando sua participação e relação com as instituições
nacionais. Estas corografias conviverão ainda com as narrativas do velho estilo até se
tornarem predominantes na década de 1880, quando se intensifica a sua adoção
enquanto material didático nos liceus e no Colégio Pedro II. Por conseguinte, as antigas
corografias se transformariam lentamente de uma narrativa descritiva e pictórica em
uma exposição sistemática e mnemônica: a idéia da ordem se introduziria nessa forma
geográfica até reduzi-la a um rol de listagens.
A utilização das corografias pela narrativa também têm a característica de servir
para construir a prevalência da ordem e do central sobre o local; a imagem da
civilização é projetada sobre um território a ser preenchido, sobre o não-reconhecido
pelo centro, em suma, sobre o caos. A região menos privilegiada pela cartografia era
também um espaço a ser preenchido pela imaginação do geógrafo: o que nada significa
na ‘linguagem do espaço’ era transformado no desocupado, no despovoado, no
desabitado, ou seja, no passível de ser conquistado. Era, por conseguinte, um local a ser
esgotado e despido de suas características para depois ser recriado segundo uma
racionalidade já preexistente, a da Guerra.
Contudo, o vazio ainda poderia ser diferenciado: ao lado do inexplorado havia
um território semiconhecido, na realidade, um ‘vazio intermitente’. Esta era a área que
houvera sido mapeada, explorada, ou ainda, colonizada pela Metrópole mas que, por
conta das características do antigo modelo de espaço, fora depois deixada de lado: era o
local da incerteza e do lapso. Através da cartografia e da corografia, pela insistência no
registro recorrente do abandono e da citação da antiga posse, se procurou projetar sobre
estes ‘vazios intermitentes’ a idéia de um pertencimento anterior, onde as ruínas
determinavam que a civilização ali fincara raízes, ligando idealmente o presente a uma
12
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
tradição do qual não poderia ser desligado. Mais do que nos espaços vazios, onde as
florestas e os descampados sugeriam o caos que deveria ser corrigido pela ordem e uma
reserva disponibilizada à civilização, as ruínas e o abandono sugeriam a imanência de
um espírito que não poderia ser traído.
Entretanto, embora a cartografia ficasse estagnada no Brasil durante a primeira
metade do século XIX, esta conheceria na Europa e nos Estados Unidos um enorme
desenvolvimento. A expansão econômica e territorial impôs a necessidade de
instrumentos para demarcar e projetar as percepções particulares dos múltiplos espaços
nacionais. Nestas representações, a inconstância dos limites do espaço brasileiro se
tornaria a norma, causada tanto pela flutuação e alteração dos saberes cartográficos e
geográficos quanto pelas diferentes percepções acerca do poder do Estado brasileiro.
Os atlas foram um dos locais estratégicos dessas leituras, uma vez que se
popularizariam durante o decorrer do século XIX pelo incentivo dos Estados e por conta
da progressão das técnicas de impressão, atingindo-se assim, tiragens cada vez maiores
e edições mais freqüentes para atender às demandas crescentes pela divulgação e
propagação do saber geográfico. Nesse contexto, a propagação das percepções de
espaço mesclava o político, a técnica e o mercado, apresentando ainda a peculiaridade
de exigir uma constante renovação do conhecimento e dos produtos.
Portanto, os Atlas se consubstanciariam como as metáforas pictóricas dos
interesses nacionais por atenderem a uma dupla especificidade: em primeiro lugar, ao
interesse de um mercado ávido e consumidor, servindo, no caso, à coleção, organização
e perpetuação do conhecimento geográfico; em segundo lugar, à divulgação e à
afirmação dos espaços nacionais, servindo aos propósitos da construção de identidades e
imaginários nacionais.
Nesse sentido, a distribuição dos atlas europeus e norte-americanos alcançava as
principais cidades da América do Sul, constituindo-se, muitas vezes, na principal fonte
de informação sobre os territórios desses mesmos países. Um exemplo eloqüente desse
problema, foi que, na ausência de uma representação oficial de seu território, o Brasil
utilizou o Atlas da Venezuela, reduzido a um esboço geográfico, para que fosse
assinado o Tratado de Limites de 1859 com aquele país, haja vista a necessidade, desde
1842, de fazer frente comum contra às ambições inglesas.
11
11
José Ribeiro da Fonseca Silvares, ‘Apontamentos corográficos para carta geral do Brasil’, c. 1872. BN,
Iconografia, I - 46, 11, 11.
13
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Deste modo, em razão da produção cartográfica concorrencial, o mapeamento do
território necessitaria assumir também a função de ‘avatar do espaço nacional’, função
esta a ser exercida, por excelência, pelas Cartas Gerais, a saber, construir material e
conceitualmente o Estado, inscrevê-lo e encerrá-lo em um recipiente reconhecido no
espaço internacional no qual ficasse bastante clara a idéia ficcional da unidade. Veja-se,
por exemplo, o caso francês, segundo Lucien Febrve: “no século XVI, a França assume
uma forma aos olhos dos franceses porque a imprensa multiplica os atlas e mapas da
França que se tornam acessíveis, doravante, a todos os letrados. A forma da França fica
impressa em todas as memórias.”
12
Nesse sentido, a inscrição do Estado no espaço seria relacionada com a
construção da Nação, através das idéias das ‘fronteiras naturais’ e do uti possidetis
através das narrativas territoriais. Nestas narrativas, organizadas a partir do ‘saber sobre
o espaço’, a ocupação progressiva do território e sua incorporação a um espaço
brasileiro contaria com a cartografia histórica como principal suporte. Os mapas
históricos permitiam consolidar na narrativa territorial a antigüidade do novo Estado,
permitindo criar, através de sua conjunção com a representação da inscrição do Estado
no espaço, a idéia de uma entidade coletiva originária, que uniria diferentes experiências
individuais e de grupo.
Por conseguinte, também a concatenação dos conceitos da ‘fronteira natural’ e
do uti possidetis foi construída através da experimentação e da prática da ‘linguagem do
espaço’, agregando-se novos conteúdos ao ‘saber sobre o espaço’. Estes conteúdos
seriam então representados na cartografia histórica, emprestando legitimidade à
inscrição do Estado no espaço e à própria narrativa territorial.
Portanto, efetivar-se-ia uma monumentalização dos produtos cartográficos que
pudessem servir de suporte à narrativa territorial, caracterizando-se, assim, uma
inversão no fluxo da produção daquelas representações: os mapas passavam a não serem
mais entendidos apenas como instrumentos da inscrição e da expansão do Estado, mas,
também, enquanto parte mesma do processo de construção da Nação.
Deste modo, este problema nos remete a uma reflexão sobre a análise das
relações de poder, conforme Michel Foucault, inicialmente compreendida nas suas
12
Lucien Febvre. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 186.
14
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
idéias a respeito da formação da nação e do papel da experiência colonial na formação
dos estados europeus, denominado de ‘colonialismo interno’.
13
Segundo Foucault, a experiência colonial resultou na importação de modelos,
que repercutiram sobre os mecanismos de poder, aparelhos, instituições e técnicas de
poder. Uma das práticas destes modelos era a estratégia da negação da conquista ou do
envolvimento na conquista, que teria sido desenvolvida visando legitimar a transmissão
dos direitos através de sua vinculação a um certo número de leis. Esta transmissão dos
direitos, possibilitaria tornar o novo Estado herdeiro de uma soberania apenas limitada
pelas mesmas leis de seu antecessor. Assim, a construção da legitimidade estaria
vinculada por Foucault a uma estratégia da negação da conquista por conta da
necessidade primordial de se eliminar o conflito.
14
Assim, o vínculo estabelecido pela
transmissão da legitimidade e da soberania, garantiria a igualdade jurídica perante os
outros estados europeus, assegurando ao Estado sucessor os direitos de seu antecessor,
desde que fosse operacionalizada também uma narrativa das origens na qual se elidisse
a colonização.
15
Portanto, o que definiria uma Nação, não seria o arcaísmo ou a ancestralidade,
mas sua relação com o Estado, do mesmo modo, essa mesma Nação não se
caracterizaria numa relação horizontal com outras Nações, mas numa relação vertical
que iria de encontro a um corpo de indivíduos capazes de constituir o Estado: é ao longo
desse eixo vertical definido por Foucault através do binômio Virtualidade estatal -
Realidade estatal, ao invés de Nação - Estado, que a Nação deve ser caracterizada e
situada.
Seria então possível relacionar estas reflexões sobre as idéias de Foucault com a
análise de Ilmar R. de Mattos da formação do Estado Imperial, na Transmigração (o ato
de transferência da Corte portuguesa do Velho para o Novo Mundo) estaria enfatizada a
sucessão e legitimidade do Estado, mas a elisão da colonização se consubstanciaria
através de uma narrativa na qual a tradição se incorporaria à ultrapassagem do
desorganizado e bárbaro, para o lugar da Ordem e da Civilização: a estratégia da
13
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 120-123 e 266-276.
14
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p.131-133.
15
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 137-138.
15
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
negação do conflito conduziria à operacionalização de uma narrativa que privilegiava,
na análise de Mattos, um compromisso com o chamado ‘Tempo Saquarema’.
16
Retornando com este conteúdo a nossa reflexão sobre Foucault, existiria a partir
do Tempo Saquarema a constituição de uma narrativa que introduz e recoloca em seu
centro o problema do Estado: administrar, gerir, governar, assegurar a constituição e a
administração da figura e do poder estatal.
Portanto, poderíamos definir nossa idéia da narrativa territorial, num primeiro
nível de leitura, como um discurso onde o Estado irá narrar seu próprio passado,
estabelecendo sua própria legitimidade e fortalecendo-se no plano de seus direitos
fundamentais. Nesse sentido, essa narrativa estará voltada para o passado e para o
presente ao mesmo tempo, permitindo construir uma “uma história do tipo retilíneo, em
que o momento decisivo será a passagem do virtual para o real”
17
em que a relação das
forças que são postas em jogo não sejam aquelas da conquista ou da dominação, mas,
uma relação que seria descrita por Foucault como “inteiramente civil”, uma tensão
direcionada para a universalidade do Estado.
18
Entendemos, entretanto, que a narrativa territorial, num segundo nível de leitura,
também enfatizaria uma outra espacialidade e uma outra temporalidade a partir dos
conteúdos do ‘saber sobre o espaço’, no caso, a verticalidade das relações na
caracterização da Nação. Nesse sentido, a narrativa territorial sublimaria as
representações das ‘relações de força e de soberania’ que constituíram o Estado, no
caso, representações da própria Elite e de sua convivência com o Político e a sociedade.
Por conta disto, justificar-se-ia, segundo a análise de Michel Foucault sobre as
relações de poder, um estudo do poder a partir das representações do espaço nacional e
de uma ‘linguagem’ do ‘saber sobre o espaço’.
Para Foucault, uma análise não econômica do poder deveria se concentrar no
estudo do seu emprego e manifestação, no caso, as ‘relações de força’, entendendo que
estas teriam sido estabelecidas pelo combate, pelo enfrentamento, pela guerra, num
certo momento, historicamente precisável. O poder político teria então, como função,
“reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra
16
Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 4ª
edição, p. 267-274.
17
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 268.
18
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 266-269.
16
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na
linguagem, até nos corpos de uns e de outros.”
19
Segundo Foucault, esta análise do poder enquanto uma guerra continuada,
deveria concentrar-se sobre duas hipóteses: a primeira, que “o mecanismo do poder
seria a repressão”, chamada de hipótese de Reich; a Segunda, que “o fundamento da
relação do poder é o enfrentamento belicoso das forças”, chamada de hipótese de
Nietzsche.
Um esquema, feito através destas duas hipóteses, resultaria numa contraposição
ao velho sistema de análise do poder que se “articularia em torno do poder como direito
original que se cede, constitutivo da soberania, e tendo o contrato como matriz de poder
político.” Analisar-se-ia, por conseguinte, o poder político não mais de acordo com o
“esquema contrato-opressão, mas de acordo com o esquema guerra-repressão”, nesse
sentido, a repressão “não significaria o mesmo que a opressão em relação ao contrato,
mas, seria “o simples efeito e o simples prosseguimento de uma relação de
dominação.”
20
Assim, podemos entender que o poder, considerado enquanto ‘relação de força’,
sobreviveria às transformações do Político, juntamente com as ‘relações de soberania’
organizadas a partir das ‘relações de força’ através de sua articulação no Estado e com o
Estado. O Poder pode então ser compreendido enquanto força que se representa e que,
pela reelaboração dessas representações, se perpetua, por conseguinte, as ‘relações de
força e de soberania’ se reorganizariam em torno do conteúdo de suas próprias de suas
próprias construções pregressas, numa reelaboração contínua da representação, que, em
última análise, reinscreveria o próprio Poder através da sua representação feita pelas
Elites.
No caso, interpretando-se a idéia de Elite a partir do ponto de vista lingüístico,
esta seria definida como aqueles indivíduos capazes de dominar a ‘linguagem’ do
‘centro’ e de poder expressá-la, conforme definido por Noam Chomsky no conceito de
‘falante ideal’ [ideal speaker-hearer].
21
Neste caso, conforme Clifford Geertz salientaria
em relação ao conceito de preservação de força, as dimensões perdidas seriam
19
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 21-23.
20
Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 23-24.
21
Noam Chomsky, 'Language and unconscious knowledge', in Rules and representations. New York: Columbia
University Press, 1978, p. 220.
17
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
restauradas intensificando-se a conexão com os centros ativos da ordem social, neste
caso, considerando-se estes centros como um ponto ou pontos onde as principais idéias
convergiriam para certas instituições, criando-se uma arena, na qual se desenrolariam
atos relativos a constituir a ligação do Político com a sociedade e onde os eventos que
mais afetam a vida de seus membros têm lugar.
22
Deste modo, as representações do espaço, do território, do lugar e do momento
se tornariam centrais na constituição do estudo do poder, uma vez que seria sobre estes
e a partir destes que as ‘relações de soberania e de força’ se estabeleceriam, se
representariam e se reelaborariam. Nesse sentido, buscaremos utilizar a metáfora da
‘ekphrasis’, a saber, a descrição poética de uma pintura ou escultura, para entender a
reconstrução contínua da representação do poder a partir de elementos já preexistentes e
a transformação da narrativa territorial numa ‘Mitologia do espaço nacional’, feita já no
século XX.
23
Esta transformação contribuiria para a idealização das relações da Elite
com o Político e o social e, ao mesmo tempo, para a formação de Fronteiras pouco
precisas entre as classes de deferência. Conforme o conceito de Edward Shils, que
também remete a idéia da representação das ‘relações de força e soberania’,
24
essa
estrutura informe e ambígua da deferência, faz “com que as diferenças na dignidade
que podem ser apreendidas, mesmo que reconhecidas contra a vontade sejam mais
toleráveis.” Este caráter informe e ambíguo da representação da deferência tornaria “o
dissenso acerca da deferência muito mais manejável”, permitindo que “as discrepâncias
entre a deferência exigida e a deferência concedida sejam ignoradas sem conflitos
dolorosos.” Tornar-se-ia também mais suportável “a tensão entre a igualdade que
emerge da associação civil e a desigualdade da distribuição diferencial de critérios
pertinentes para a deferência.”
25
Neste sentido, poder-se-ia trabalhar uma análise do poder através de uma
ampliação do esquema de Foucault, para guerra-repressão-representação, entendendo-se
22
Clifford Geertz, 'Centers, Kings, and Charisma: reflections on the symbolics of power' in Further essays in
interpretative anthropology. New York: Basic Books, Inc., Publisher, 1983, p. 122-123.
23
Ver, nesta tese, o capítulo ‘A máscara da Medusa’.
24
A deferência é entendida como o ato de apreciação ou depreciação do ‘parceiro’ para o qual uma ação é dirigida,
em razão da função que ele ocupa, das categorias em que ele é classificado, ou das relações em que participa em
relação a terceiros ou a categorias de pessoas tudo isso em comparação com a imagem que o atuante tem de si
próprio em relação a essas propriedades. Edward Shils, 'Deferência' in
Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992, p.
419.
25
Edward Shils, 'O sistema de estratificação da sociedade de massas' in Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992, p.
471.
18
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
que dever-se-ia distinguir, por meio da idéia da representação, a função de preservação
do poder político, apontada por Foucault como uma reinserção das ‘relações de força’, a
qual agregaríamos também, uma função de reinserção das ‘relações de soberania’.
Esta idéia da reelaboração contínua da representação e de uma ‘luta pela
representação’ como forma de elaboração, reprodução e preservação do poder, poderia
ser chamada, conforme a construção de Foucault, de hipótese Romântica, já que foi
desenvolvida por vários pensadores que ser identificaram com uma vertente dessa
corrente filosófica que considerou o corpus do pensamento cartesiano, diretamente ou
através da construção kantiana. Nesse sentido, propomos desenvolver este estudo a
partir das considerações de Arthur Schopenhauer, Friedrich Schelling, Wilhelm von
Humboldt e Noam Chomsky, uma vez que todos estes autores, sem exceção, buscaram
no racionalismo o conteúdo teórico que lhes permitiria consolidar a representação fora
do domínio da Retórica. Conforme estes mesmos autores, a questão da representação
remete ainda a reconsiderar o problema do conhecimento e a entender a linguagem
enquanto central para sua definição e construção.
Portanto, estudaremos a construção do espaço nacional enquanto um arranjo
contínuo das representações do Poder, motivado pela reelaboração da inscrição das
'relações de força e soberania' que o constituíram e caracterizado pela elisão das suas
tensões e dos seus enfrentamentos.
19
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
2 — RUMO À ILHA DESERTA: A CONSTRUÇÃO CARTOGRÁFICA
CONCORRENCIAL E A DISSEMINAÇÃO.
O atlas distingue-se dos demais produtos cartográficos por permitir
disponibilizar, simultaneamente, duas aplicações diferentes para os mapas: em primeiro
lugar, permite exprimir uma percepção da totalidade do espaço num dado momento,
possibilitando sua ordenação e perpetuação em coleções e arquivos; em segundo lugar,
disponibiliza as informações mais atualizadas e pontuais sobre territórios determinados,
permitindo a eficiência e a coordenação das escolhas e ações. Esta concomitância entre
o todo e o detalhe construiria, a partir do modelo do atlas, um gênero sobre o qual
incidiriam múltiplas demandas, confundindo-se então as necessidades do Estado, as
vontades do mercado e os interesses dos particulares.
Este gênero foi condicionado pelos interesses despertados pela história e pela
geografia nos últimos anos do século XVIII, quando estes dois conjuntos de saberes
combinaram-se formando as bases de um estudo conhecido então como ‘geografia
comparativa’, cujo principal objetivo era a exibição das sucessivas alterações de
fronteira numa particular parte do globo, em sucessivos períodos de tempo, do qual os
atlas constituíram-se como o principal suporte.
Assim, como os atlas permitiam à ‘geografia comparativa’ uma concatenação da
geografia com a narração da construção histórica do todo e a descrição eventual do
detalhe, formar-se-ia, paulatinamente, um outro modelo de atlas no século XIX, que
hoje é denominado de ‘atlas histórico’, além de, muitas vezes, seus espécimes
correlatos, os mapas históricos, serem constituídos enquanto parte substancial e
destacada dos demais atlas.
1
Este problema refletia certos interesses de uma época, consubstanciados tanto
pela construção do Estado-Nação quanto pela expansão imperialista, cujos valores eram
então disponibilizados nas características intrínsecas desses atlas, capazes de permitir
sua materialização através de um eixo narrativo que enfatizava o poder territorial e sua
delimitação. Ainda, como estes valores estavam então sendo estandardizados por meio
1
Jeremy Black, Maps and history - Constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 30-
73.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
do estabelecimento da escolarização das massas em escala nacional e divulgados através
de uma pedagogia constituída em torno do ensino da Geografia Universal e Nacional e
da História Pátria, os atlas tradicionais e os atlas históricos tornaram-se a base de
trabalho de seus profissionais.
Por conta disto, surgiria ainda uma nova oportunidade de inserção dos mapas
geográficos e históricos, uma vez que sua inclusão tornar-se-ia quase que obrigatória em
todas as obras históricas ou de interesse geral, desenvolvendo-se, conseqüentemente,
uma demanda crescente pelos produtos cartográficos em geral, o que possibilitou às
editoras aumentar as tiragens dos produtos cartográficos e a quantidade de títulos
oferecidos.
2
Vários fatores permitiriam às editoras atender a estas novas demandas, sendo
que um destes foi o desenvolvimento de novos processos mecânicos para a fabricação
de papel, os quais se tornaram comercialmente viáveis por volta de 1800, por consta da
utilização plena do vapor, o que diminuiu o preço da matéria-prima dos atlas e cartas.
Outro fator foi o aperfeiçoamento das técnicas de impressão e de acabamento final,
como, por exemplo, a invenção da litografia, responsável pelo aumento da
produtividade no setor e o barateamento da impressão à cores.
Por sua vez, a popularização do colorido trouxe um aumento na quantidade de
informações que poderiam ser transmitidas pelo mapas e a conseqüente necessidade de
facilitar sua apreensão, fazendo com que novos esquemas gráficos e estilos passassem a
exercer grande influência na cartografia, principalmente após 1870, tornando necessário
o surgimento de novos processos pedagógicos que possibilitassem estender às crianças
o aprendizado da leitura desses novos e mais complexos mapas.
No mesmo sentido, o avanço das técnicas de impressão possibilitou que dados
estatísticos sempre atualizados fossem disponibilizados através dos mapas,
possibilitando que o interesse crescente pela mensuração e confrontação do poder
nacional fosse atendido, necessitando interagir com uma didática que objetivasse incutir
uma idéia da centralidade do Estado.
Este esforço pedagógico seria suscitado através do desenvolvimento de
processos ligados à memória visual e auditiva, passando-se a incentivar tanto a
memorização do espaço nacional pelo aluno, através de mapas-mudos e outras técnicas
2
Jeremy Black, Maps and history - Constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 48-
58.
21
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
de desenho quanto a memorização de seus elementos e características através de
técnicas de repetição. Ainda, estes dados seriam dispersos pelas obras geográficas
enquanto que os mapas passariam a ser estrategicamente dispostos nas escolas,
especialmente nos corredores e em lugar central nas salas de aula, sendo relacionados a
própria apreciação dos símbolos pátrios.
3
Portanto, em um primeiro nível de leitura, podemos entender que os atlas
tornaram-se instrumentos destinados a inscrever a idéia do Estado-Nação,
desempenhando então um importante papel na formação da cidadania e da unidade
nacional, inclusive, porque sua adoção seria tornada obrigatória nas instituições de
ensino oficiais e nos órgãos públicos. Esta instrumentalização dos atlas permitiria ainda
consolidar uma representação do Estado-Nação, suportada pelas características do atlas
e, graças ao incremento de sua produção e comercialização, possibilitar sua divulgação
verdadeiramente planetária.
Assim, a composição, a ordenação e a lógica de escolha dos mapas que
constituiriam o atlas, obedeceu a um projeto editorial e intelectual que pretenderia a
centralidade de uma determinada perspectiva, constituída por uma ordem de visão e de
exposição, tornando possível estudar-se a constituição do que denominaríamos de
‘construções cartográficas concorrenciais’ a partir da investigação dos atlas.
Deste modo, num segundo nível de leitura, os atlas serviriam para registrar a
dinâmica da representação do espaço nacional, uma vez que o conhecimento
cartográfico constituiu-se enquanto intrinsecamente ligado à expansão ou construção
dos estados nacionais e à verificação de seus interesses.
Assim, entendemos que a formulação e a constituição dos conhecimentos
cartográficos e geográficos poderiam ser estudadas através dos atlas e dos demais
produtos cartográficos enquanto um produto da relação entre conhecimento e poder,
podendo-se estabelecer, inclusive, uma problematização da descontinuidade do espaço,
de suas escalas e de sua narração, consubstanciado no estudo do que denominaríamos de
um ‘saber sobre o espaço’.
Contudo, num terceiro nível de leitura, como deveríamos considerar os atlas
quanto a sua especificidade? Sujeito, como vimos, a diversos interesses e demandas, o
atlas seria apenas uma metáfora pictórica dos interesses nacionais? Ou será que em sua
3
Veja-se a utilização do mapa enquanto um avatar do Estado em Benedict Anderson, ‘Census, Map, Museum’ in
Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism, London: Verso, 1992, Revised Edition,
p. 163-186.
22
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
individualidade e finalidade os atlas poderiam visar, tão somente, a divulgação do saber
geográfico e cartográfico?
Neste sentido, observe-se a construção teórica de Gilles Deleuze à respeito da
transformação do conceito da idéia da ‘ilha deserta’ durante os século XVII-XVIII:
enquanto parte das ‘ilhas oceânicas’, a ‘ilha deserta’ foi considerada até esse período,
como estando desconectada do continente, sendo constituída originariamente por um
material distinto deste, a partir de sua floração do fundo do oceano e do elemento
aquático, por conseguinte, a ‘ilha deserta’ era um lugar de feiticeiras, sereias e outros
seres imaginários, em sua maioria femininos, que desafiavam o homem e lembravam-no
de sua condição.
Esta constatação de Gilles Deleuze do espaço como uma construção intelectual
nos permitiria entendê-lo também enquanto uma construção dinâmica: esse
entendimento pode ser exemplificado através da transformação do conceito da ‘ilha
deserta’ no século XVIII através de seu exame do ‘Robinson Crusoe’ de Daniel Defoe.
A companhia deste náufrago na ‘ilha deserta’ não seria um ser mítico ou um
personagem feminino, objeto de terror ou de desejo, mas, um indígena de nome ‘Sexta-
feira’, dócil ao trabalho, feliz em ser escravo e já desgostoso da antropofagia. Assim,
segundo Deleuze, uma recriação mítica do mundo impressa no conceito da ‘ilha deserta’
teria dado lugar à recomposição da vida quotidiana burguesa a partir de uma ordem
capitalista e protestante.
4
Por conseguinte, em primeiro lugar, podemos entender que um ’saber sobre o
espaço’ pode ser constituído antes mesmo do próprio espaço, pela junção de impressões,
experiências, relações, táticas e estratégias que, por sua vez, estabelecerão
territorializações, construções, organizações e recortes do território: o espaço não é
morto, fixo, não dialético e imóvel, como nos lembraria Michel Foucault.
5
Este seria o
sentido das suas ‘heterotopias’, a saber, a constituição de lugares no espaço diretamente
a partir de representações absolutamente intelectualizadas: nós não viveríamos num
espaço onde os indivíduos e as coisas devessem ser apenas situadas [situer], mas num
4
Gilles Deleuze, ‘Causes et raisons des îles désertes’, in L'île déserte et autres textes. Paris: Les Éditions de Minuit,
2002, p. 15.
5
Michel Foucault, 'Sobre a Geografia', in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996, 12ª edição, p.
159.
23
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
espaço onde as relações definiriam ‘territorializações’ [emplacements] que seriam
absolutamente destacadas e irredutíveis umas às outras.
6
Em segundo lugar, compreendemos também que o ‘saber sobre o espaço’ se
constrói a partir da absorção de informações e do compartilhamento das impressões
sobre estas, que serão reelaboradas através de processo de registro oral, textual ou
gráfico. No caso dos atlas, se estes forem examinados coletiva, serial e temporalmente,
notaremos que os registros cartográficos do espaço observam também uma dinâmica
relativa aos mecanismos internos de produção dos atlas, possibilitando-se, assim, o
transporte e a elaboração relativamente autônoma de novas significações para os
elementos anteriormente representados.
Denominamos esta característica da cartografia de disseminação, por ter sido
construída a partir da noção da ‘disseminação’ literária de Jacques Derrida
[dissémination], a saber, a impossibilidade de fixação da responsabilidade e da
individualidade dos significados.
7
Contudo, nossa idéia da disseminação cartográfica
está mais ligada ao problema das técnicas cartográficas e de sujeição aos processos de
produção dos mapas e à coexistência de diferentes ‘saberes sobre o espaço’, diversos
questionamentos e intenções que se experimentariam através da mecânica de
‘construção cartográfica concorrencial’.
8
Ainda, a disseminação dos produtos cartográficos seria resultado não apenas do
esforço do Estado em constituir sua representação do espaço, mas também do grande
interesse na divulgação e propagação do saber geográfico, gerado pelo incremento do
comércio e das navegações transatlânticas já a partir dos séculos XVI e XVII, interesse
este, que apresentou a peculiaridade de exigir uma constante renovação do
conhecimento geográfico e dos produtos cartográficos.
Estes produtos seriam dirigidos, a princípio, para um público mais qualificado e
que entendia a educação geográfica como um sinal de cultura e distinção social, assim,
o atlas já possuía um apelo que fazia sua circulação e influência ultrapassar as questões
e as fronteiras do Estado nacional. Nesse sentido, também já existia uma grande
competição entre vários produtos e editores, fazendo com que, em determinadas
circunstâncias, os atlas fossem, inclusive, adaptados para as condições de cada mercado.
6
Michel Foucault, 'Des espaces autres' in Dits et écrits, v. IV (1980-1988). Paris: Editions Gallimard, 1994, p. 754.
7
Jacques Derrida, La dissémination, Paris: Éditions du Seuil, 1972, p. 9-76.
8
Ver, nesta tese, o capítulo ‘O espelho de Jacobina’.
24
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Este problema pode ser exemplificado, pela existência, mesmo no século XIX,
de várias versões de um mesmo atlas, cada uma delas destinada ao público de um
diferente país, ou ainda pela impressão de edições feitas por encomenda, que
comportavam representações do espaço de acordo com a preferência de seu financiador.
No mesmo sentido, utilizar-se-ia freqüentemente do plágio e da adaptação de
mapas de outros editores visando-se atender com celeridade a uma demanda sempre
crescente e ávida por novidades e possibilitar-se tiragens novas e sucessivas, sendo
então os registros cartográficos muitas vezes distorcidos, reelaborados ou,
simplesmente, trocados nesse processo.
9
Portanto, se podemos fazer, através da historicização da dinâmica da
representação do Estado uma leitura da relação entre conhecimento e poder e da
inserção desta nas ‘relações de força e soberania’, esta leitura deve levar em
consideração os problemas da disseminação através do estudo das técnicas e dos
processos de produção dos mapas.
Decorrentemente, os atlas e os produtos cartográficos podem nos servir como
instrumentos para aferir não só a existência de outras percepções da representação do
Estado, mas também para se estudar a sobrevivência de determinados ‘saberes sobre o
espaço’ através da disseminação, o que nos permitiria atestar uma descontinuidade do
próprio espaço.
Nesse sentido, podemos considerar que também é possível o estudo da
construção de ‘saberes sobre o espaço’ concorrentes com a representação do Estado
nacional, o que nos permitiria constituir ‘recortes do espaço’, pela historicização da
construção de representações locais do espaço.
Finalmente, devemos considerar que a divulgação e consolidação da
representação do Estado nacional agregaria certas especificidades relacionadas à
aplicação do conhecimento científico, por conseguinte, podemos interpretar os
interesses do Estado através da observação e estudo das técnicas empregadas nos
mapas.
9
Ver J. B. Harley, ‘Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century’, in The new
nature of maps: essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 149-
168.
25
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A construção concorrencial e a disseminação através dos atlas do século XIX
Aplicando estes raciocínios a um estudo da representação do espaço nacional
brasileiro através dos atlas do século XIX, compreendemos que a percepção deste
espaço se orientou segundo, pelo menos, três diferentes modelos de espaço que se
assemelham aos antigos modelos de espaço da América portuguesa, atestando a
sobrevivência de outro ‘saber sobre o espaço’ através da disseminação.
Verificamos ainda, que em cada um destes modelos o espaço seria inscrito a
partir da utilização variada dos elementos geográficos e dos recursos cartográficos,
impondo-se certas características peculiares a cada um deles. Em geral, o registro dos
‘marcos geográficos’ serviria como base da inscrição do espaço. Estes ‘marcos
geográficos’ eram construções intelectuais do lugar, constituídos, então, como
‘acontecimentos geográficos’, separados do meio em que estavam insertos por sua
historicização ou significação. Estes ‘marcos’ seriam auxiliados por recursos da
inscrição cartográfica, como, por exemplo, o registro do espaço através da reta ou a
reelaboração de determinado elemento pela simbolização, que eram também remetidos
pelo ‘saber sobre o espaço’ a uma historicização ou significação.
Separando cada um destes modelos, constatamos na parte meridional do espaço,
a persistência de um primeiro espécime, mais rígido e estático que os outros, cujas
mudanças significativas atestariam tensões abruptas. No espaço central, observamos um
segundo modelo que possuía feições semi-rígidas e alternâncias variadas. O terceiro
modelo, no espaço setentrional, seria bastante fluído, inconstante e instável, coincidindo
suas variações com períodos de maior ou menor organização do Estado brasileiro e de
seus vizinhos.
No primeiro atlas da série estudada, os limites do modelo setentrional não eram
balizados por praticamente nenhum marco natural: seus limites eram então
genericamente representados pelo uso da poligonal, a qual era constituída tendo por
vértices as fortalezas que constituíam o limite militar português e como base os rios que
serviram como vias de penetração à metrópole portuguesa (ver Figura 2).
26
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
FIGURA 2 — MODELO SETENTRIONAL
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fonte: Louis Stanislas D'Arcy de L
a
Rochette, Colombia Prima London, 1807, mapas 3, 6, 8
Deste modo, e como regra geral para a série cartográfica estudada, o rio
Amazonas e o rio Negro, e por outras razões, todo o curso do Madeira e do Javari,
seguiriam percebidos enquanto pertencentes à soberania brasileira, sendo este status, a
partir da década de 1820, paulatinamente estendido também ao rio Branco.
Do Forte de São José de Marabitanas se originavam duas retas que separavam o
Brasil da América hispânica: enquanto a primeira seguia para o sudoeste até encontrar o
rio Javari, a segunda rumava para leste até encontrar o rio Branco e deste seguia até o
rio que era denominado de Carapana-tuba, percebendo-se como território brasileiro
apenas o curso mais baixo dos tributários do Amazonas.
Durante a década de 1830 os cursos superiores dos rios Negro e Solimões
também seriam negados ao espaço brasileiro, sendo, novamente o Forte de São José de
Marabitanas percebido como o ponto máximo da penetração brasileira no noroeste
amazônico. Este Forte pode ser, por conseguinte, considerado o primeiro ‘padrão’
definitivo dos limites setentrionais, no que seria acompanhado pelo rio Javari, ainda que
houvessem imensas variações na percepção da extensão e no curso deste rio, conforme
27
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pode ser averiguado em outros atlas da série.
10
Contudo, a partir da década de 1830, se
consolidaria nas representações cartográficas uma localização média de 10° de latitude
para as nascentes daquele rio, ou seja, muito mais ao sul de onde na realidade se
encontravam, fazendo com que os modelos setentrional e central se mesclassem numa
mesma área.
Este caso exemplar do Javari pode ser utilizado para demonstração das
características da disseminação nos atlas e por extensão nas produções cartográficas
quanto a sua pertinência para se pensar a construção do espaço e de suas representações.
Como vimos anteriormente, considerava-se que os cursos dos rios Javari e
Madeira pertenciam em sua totalidade à soberania portuguesa. Assim, os limites
naquela área eram representados, convenientemente, através de um paralelo cruzando
das nascentes do Javari até encontrar o rio Madeira, incluindo-se nesse espaço vários
afluentes da margem sul do Amazonas e a região do seu entorno ao território atribuído
ao Brasil. Mesmo que os atlas editados posteriormente viessem a modificar a direção do
curso do rio, os limites brasileiros permaneceriam inalterados no paralelo 9° ou 10° 20'
Sul, muito embora este paralelo já não coincidisse mais nos atlas com a nascente do
Javari. Por conseguinte, estas representações do modelo setentrional somente teriam
sentido se considerássemos as características de disseminação da produção cartográfica.
Neste caso, a representação cartográfica se transformaria mantendo uma relação
com a produção cartográfica original, no que podemos denominar de ‘padrão’, podendo
ser, por conseguinte, diferentemente representada numa mesma edição de um atlas.
Um exemplo tanto da adaptação do atlas em razão de sua sujeição às condições
do mercado quanto da permanência dos limites face à alteração geográfica, é a dupla
versão, para a França e para o Brasil, da edição de 1848 do atlas Andriveau-Goujon.
Enquanto a versão francesa situava a nascente do Javari quase que em sua posição
astronômica correta, sua versão em língua portuguesa insistia em incorporar um
território maior para o Brasil. Contudo, ainda que divergissem na localização dos
acidentes geográficos, seria mantido, em ambas as versões do atlas, o ‘padrão’ do
paralelo ligando o Madeira ao Javari, ainda que um ‘padrão’ tomado pela diagonal fosse
igualmente aceitável para a versão francesa (ver Figura 3).
10
J. A. Buchon, Atlas de deux Amériques. Paris: J. Carez, 1825; Ostell's New General Atlas. London: Baldwin and
Cradock, Pasternoster Row, 1828, mapa XXVI.
28
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
FIGURA 3 — DIFERENTES VERSÕES DO MESMO ATLAS
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fontes: J. Andriveau-Goujon. Atlas de Géographie
Moderne. Paris: J. Andriveau-Goujon, Éditeur, 1848, p. 19; J. Andriveau-Goujon, Atlas de
Geographia Moderna. Paris: J. Andriveau-Goujon, Éditeur, 1848.
Entretanto, uma nova disseminação do ‘padrão’ do paralelo do Javari por outros
atlas estabelecer-se-ia paulatinamente, transformando-se numa nova representação dos
limites no modelo setentrional, desta vez mais negativa para o Brasil: transportava-se o
‘padrão’ para o lado oposto do Javari, fazendo-se com que o paralelo se iniciasse noutro
acidente geográfico qualquer, que não era o rio Madeira e sim um elemento fictício,
para que, somente depois, coincidisse com o Javari. Assim, a nova representação de
limites, em lugar de se projetar para fora do espaço brasileiro e, portanto, adicionar
território, projetava-se para seu interior, fazendo com que o ‘padrão’ passasse a rasgar
toda a Amazônia Ocidental, diminuindo a percepção do espaço brasileiro (ver Figura 4).
Em menor número, estabelecer-se-ia também nos atlas um terceiro ‘padrão’ de
representação, desta vez utilizando-se a diagonal, mas, que estava também interligado
com as representações anteriores: utilizava-se um dos pontos anteriores, no caso, o mais
conhecido geograficamente (o Madeira), como vértice e este era, por sua vez, ligado a
um ponto determinado do Javari. Esta representação começaria a ganhar corpo,
29
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
especialmente, nas cartas e atlas em que se ficava patente haver incerteza sobre a
direção do curso e a extensão do rio Javari (ver Figura 5).
FIGURA 4 — ‘PADRÃO’ PARALELO
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fonte: A
Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographi
a
Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª,
1858.
FIGURA 5 — ‘PADRÃO’ DIAGONAL
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fonte: New
Universal Atlas of the World, Philadelphia: S.
Augustus Mitchell, 1849, 39-43.
30
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Portanto, durante o século XIX, coexistiram três diferentes representações para
um mesmo espaço do modelo setentrional, todas elas originárias da mesma matriz.
Quanto a parte oeste do modelo setentrional, as representações cartográficas
registrariam uma progressão constante dos limites brasileiros até a década de 1830.
Nesse período, coincidindo com a desintegração da Grande Colômbia, os limites
brasileiros se estenderiam sobre grande parte do curso dos rios Japurá e Apapuriaés e
sobre os afluentes superiores do rio Negro, inclusive atingindo os contrafortes dos
Andes.
Sintomaticamente, com a organização paulatina dos vários Estados que
circundavam a Bacia do Amazonas e coincidindo com o período da Regência no Brasil,
a percepção do espaço brasileiro refluiria para limites anteriores aqueles que eram
percebidos quando de sua Independência, deixando-se de representar neste o controle do
médio Solimões e do curso superior do rio Negro até a confluência com o rio Cataburi,
tendência esta que se consolidaria durante as décadas de 1840 e 1860, quando deixaria
também de ser incluída nas representações dos limites brasileiros uma vasta área
compreendida entre os cursos médio e superior dos rios Juruá e Purus, constituindo-se
este período como o da menor percepção dos limites brasileiros na série estudada.
11
Após 1860, a tendência passaria a se reverter na maior parte do modelo setentrional,
embora ainda houvessem refluxos em certas áreas.
No modelo Meridional, desde o início do século XIX a tendência predominante
nos atlas era a de delimitar a percepção do espaço brasileiro através de ‘marcos
geográficos’ referenciados pelo Tratado de Santo Ildefonso de 1777. Assim, a
representação do modelo meridional apresentava poucas indefinições, sendo que estas
estavam concentradas em áreas restritas, em geral de pequena extensão, à exceção da
área que seria mais tarde denominada de ‘Palmas’, em relação a qual nunca houve
durante todo o século XIX qualquer posição majoritária ou mesmo predominante nas
representações dos atlas, inclusive porque, parte destes a incluíam nos limites
paraguaios.
11
A. Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographia Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª, 1858; New Universal
Atlas of the World, Philadelphia: S. Augustus Mitchell, 1849, p. 39-43.; A. Bruè, Atlas Universel de Géographie.
Paris: Charles Picquet, 1845; A. Houzé,
Atlas Universel, Historique et Géographique. Paris: Lebigre-Duquesne
Frères, Éditeurs, c. 1840.
31
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Portanto, no modelo meridional os padrões se caracterizaram pela duração e por
variações abruptas, na maioria dos casos definitivas, basicamente acompanhando a
definição jurídica da fronteira após os episódios das intervenções no Uruguai e da
Guerra do Paraguai.
Contudo, ratificando a rigidez caraterística do modelo, os atlas jamais
registraram a região das ‘Missões’ enquanto parte do espaço brasileiro até a década de
1840, recusa essa que persistiria em várias representações até pelo menos o início da
década de 1860. Esse comportamento refletiria provavelmente a intensidade dos
conflitos e os interesses comerciais estrangeiros, inscrevendo nas representações dos
atlas a centralidade dos interesses do tráfego comercial através da Bacia Platina (ver
Figura 6).
Por conseguinte, o conservadorismo nas representações do espaço brasileiro no
modelo meridional refletiria o desejo da estabilidade do sistema a partir do interesse
comercial, inscrito nas representação pelo entorno das vias fluviais que lhe serviriam.
Assim, o registro das fronteiras acordadas em 1851 com o Uruguai somente se
consolidaria nos atlas após a constatação da estabilidade do sistema.
FIGURA 6 — PERSPECTIVA DO MODELO MERIDIONAL
Cartografia: Renato Amado Peixoto.
32
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nos atlas, a percepção dos limites com o Paraguai, que em seu extremo
interceptariam o modelo central, possuiria um padrão ainda mais negativo, uma vez que
este somente se reverteria após a derrota daquele país ao final da Guerra, da qual
provavelmente foi uma das causas. Neste sentido, à exceção da percepção dos limites
com o Brasil, a percepção das outras áreas paraguaias sempre foi inconstante durante o
século XIX. De fato, praticamente nenhuma carta ou atlas estrangeiro reconheceria após
1807 a soberania brasileira sobre a região sul do Mato Grosso.
No modelo central, a percepção do espaço brasileiro utilizou tanto a reta quanto
os marcos geográficos para registrá-lo, havendo mesmo, em algumas regiões a
combinação destes dois elementos. Por exemplo, na região do alto Paraguai, o modelo
meridional se mesclaria com o modelo central e até a década de 1870 acompanharia os
padrões deste último e a preferência por marcos geográficos. Já na área que se
comunicava com o modelo setentrional, algumas vezes estes padrões se confundiam,
criando aberrações em relação a série estudada. Neste caso, estas aberrações
possivelmente podem ser entendidas como uma defasagem no conhecimento
geográfico, um fato não verificável em virtude da dificuldade de acesso, ou porque
houvera, por conta da disseminação do conhecimento cartográfico, o transporte de um
conhecimento geográfico mais antigo que não se encaixava nas novas percepções, mas
que fora mantida em razão da importância de suas fontes originais: esta seria
especificamente uma solução para se entender a representação da área dos Guarajús
junto ao espaço brasileiro (ver Figura 7 — Note-se que a área constitui-se num enclave
dentro do território boliviano).
12
O padrão do modelo central se caracterizava pela utilização de ‘marcos
geográficos’ que serviam como base às retas que os ligavam com outros ‘marcos
geográficos’, muitos dos quais transitórios. Por conseguinte, entendemos que no modelo
central a reta foi um recurso utilizado pela cartografia para possibilitar ajustes nos
padrões, permitindo representar ganhos e perdas homogêneas. Nesse sentido, as
representações se alternariam em ganhos e perdas para a percepção do espaço brasileiro
durante a série, caracterizando um comportamento semi-rígido e de alternância mais
lenta que o do modelo setentrional.
12
Adotou-se aqui a toponímia mais comum, uma vez que esta área possuiu diversas designações, tais como:
Guarajás, Santo Antônio dos Guarajús, etc.
33
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
FIGURA 7 — GUARAJÚS_
Cartografia: Renato Amado Peixoto.
Concluindo, conforme o estudo dos atlas do século XIX entendemos que a
percepção do espaço brasileiro apresentou períodos alternados de retração e de
expansão, sendo que, de um modo geral, a percepção dos limites brasileiros foi
inconstante durante todo o século XIX. Podemos entender que esta percepção baseou-se
na interpretação dos interesses nacionais envolvidos mas derivou, sobretudo, das
características da disseminação cartográfica.
Também podemos observar que o Tratado de Santo Ildefonso se constituiu como
uma referência importante para as representações dos atlas, embora o Tratado de Madri
não seja lembrado nem no século XVIII nem no século XIX. Nesse sentido, nosso
exame dos atlas franceses do século XVIII, mostra que a grande maioria destes atlas
representava o espaço sul-americano segundo um esquema de compartimentação
próximo aos modelos que descrevemos neste estudo.
Finalmente, devemos lembrar que a representação do espaço brasileiro somente
se consolida nos atlas após a década de 1870, justamente quando se divulga nas
Exposições Internacionais uma Carta Geral do Brasil, atestando-se, portanto, a idéia da
‘construção cartográfica concorrencial’.
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Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
3 — O MAPA ANTES DO TERRITÓRIO: A CONSTRUÇÃO LOCAL E A
CONSTRUÇÃO CENTRAL DO ESPAÇO.
Mapear um território significa inscrevê-lo num determinado espaço e,
concomitantemente, possibilitar que a inscrição desse território possa transformar o
espaço. O exame dessa construção recíproca permite identificar certos processos de
formação da identidade coletiva, clarificando suas estratégias e características, uma vez
que o ato de mapear o território envolve um esforço continuado (explorar, descrever,
cartografar, divulgar), de constante articulação e diálogo entre as partes.
Quando um indivíduo ou um grupo cartografa um território, ele o faz
culturalmente: suas impressões e suas descrições, são participantes de um mesmo
processo de construção da identidade coletiva. Por conseguinte, entendemos que os
mapas e as corografias, enquanto instrumentos dessa intervenção cultural, são
construídos a priori, no conjunto das representações dos seus narradores e estão
sujeitos, por conseguinte, a constantes reelaborações da mesma identidade coletiva.
Nesta relação, os produtos cartográficos e geográficos participam da interação e
competição com outras identidades, internas e externas, uma vez que estas não podem,
do mesmo modo, serem concebidos sem que um território específico as situe e lhes dê
raízes e fronteiras.
A mecânica da concorrência entre os espaços visa estabelecer uma representação
que estimule a coesão interna e promova a diferenciação com o exterior, exigindo com
que o território seja definido tão precisa e completamente até que não hajam dúvidas à
respeito da singularidade do espaço. Assim, os mapas e as corografias, por interagirem
diretamente com o território, podem tornar-se instrumentos de articulação e estratégia,
permitindo construir e promover uma representação do espaço e de sua paisagem capaz
de imprimir um consenso sobre as ‘relações de força e de soberania’ nele operantes.
Nessa lógica, o tempo e o espaço serão a argamassa da construção dos lugares de
representação insertos no território: na teoria, quanto mais precisas forem as imagens
destes lugares, maiores serão as chances de se afirmar os limites do território, mas, na
prática, para que se afirme o consenso em torno do território, muitas vezes é necessário
abstrair-se dessa mesma precisão.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Do mesmo modo, se a construção da identidade coletiva define ou reelabora o
território, a mudança da escala altera o que é visto e o modo como os achados são
organizados. Por um lado, a concorrência espacial pode se estabelecer na escala local,
construindo-se no interior do território do espaço central um outro território tão
referenciado por sua própria perspectiva que esta exija uma transformação nas
articulações e nas estratégia do centro. Por outro lado, uma reelaboração oportuna do
espaço central se traduz por uma reestratificação da narrativa através de certos pontos
mínimos de conexão com o espaço local, permitindo sua aglutinação num ‘saber sobre o
espaço’ que caracteriza todo o conjunto.
Para que se possam aprofundar estas questões relacionando-as com os
problemas da construção do espaço nacional brasileiro que serão discutidos nos
capítulos posteriores, utilizaremos um exemplo já estudado anteriormente, o caso do rio
Javari, e os conceitos da ‘fronteira militar portuguesa’, da disseminação cartográfica e
da ‘cartografia concorrencial’.
Como foi visto anteriormente, na ‘fronteira militar portuguesa’, a ação humana
foi vital para a manutenção da indefinição dos limites, como aliás pode ser verificado
através do exame do léxico do início do século XIX: o ‘Fronteiro’ era o “Capitão da
praça, que está nas raias, e fronteira inimiga”, sendo que, a palavra ‘Fronteira’ também
significava “expedição contra terra de inimigos”. Ainda, uma das definições de
‘Fronteira’, a palavra ‘Confins’, expressava não somente uma zona larga, profunda, mas
também uma região indefinida: “raias, extremos, fronteiras de Terra estrangeira: os
confins da Terra.” Por sua vez, ‘Sertões’, outro léxico emblemático para este estudo e
para o entendimento do conceito da ‘fronteira militar portuguesa’, era então designado
como “o interior, o coração das terras, opõe-se ao marítimo, e costa [...] o sertão toma-
se por mato longe da costa”.
1
Assim, em nossa leitura, entendemos que a idéia de ‘Fronteira’ opunha então o
conhecido ao desconhecido, o lugar do estabelecido ao indefinido, em cuja franja, o
‘Fronteiro’ operava: a fronteira era uma linha que constantemente poderia ser movida
para a frente, contra o inimigo e enraizava-se no território. Neste sentido, nas narrativas
do espaço, a linha da fronteira é descrita enquanto delimitando e envolvendo o ponto
onde a cultura e a natureza se cruzam: é o lugar de encontro entre a selvageria e a
1
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos impressos até agora, e nesta
segunda edição novamente emendado, e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813, p. 442.
36
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
civilização que não envolve apenas a delimitação do espaço com o estrangeiro, mas que
dobra-se em direção ao conhecido cruzando pelas ‘relações de força e de soberania’.
Por conseguinte, o ‘Fronteiro’ é aquele que expressa e imprime essas ‘relações
de força’, que estende a ‘gramática da linguagem’ do centro para o local e que é
acreditado e se acredita enquanto um representante da Civilização.
O território do rio Javari, nosso caso de estudo, onde o conceito da ‘fronteira
militar’ atingiu seu paradoxo, teria sua população e área descritos a partir de uma
variação sobre os conceitos anteriores, veja-se:
Os seus extensos bosques, onde se cria e perde preciosa madeira,
são povoados de porcos, antas, veados e outras raças miúdas, geralmente
perseguidos por várias nações ainda selváticas [...], os Maiurunas, que fazem
uma coroa no mais alto da cabeça, e deixam tomar aos cabelos todo o seu
crescimento. Tem muitos furos no nariz e beiços, em que metem espinhos
compridos; nos cantos da boca trazem penas de arara. No lábio inferior,
extremidade do nariz e das orelhas, penduram rodelinhas de conchas. São
antropófagos; e quando os mesmos parentes adoecem gravemente, matam-
nos, para os comer antes que emagreçam com a moléstia [...].
2
Dos seus costumes, dizem que são mui bárbaros, sendo mesmo
antropófagos não só para com os inimigos, como para com os de sua
própria nação que estão muito doentes ou muito velhos, tomando parte nos
banquetes os próprios filhos e pais dos que foram mortos. [...] Que eles são
ferozes, que matam seus inimigos sem perdão e que com os ossos das
canelas fazem ornamentos [...].
3
Observe-se a presença na descrição do léxico ‘Nação’ que designava então “a
gente de um país, ou região, que tem Língua, Leis, e Governo a parte,” mas também
“Raça, casta, espécie” e que ‘País’ teria o significado na época tão somente de “Terra,
região”,
4
por conseguinte, a noção de ‘Fronteira’ era então muito tênue, necessitando
2
Manoel Ayres de Casal, Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Brasil — Coleção de Obras Raras,
Tomo II. São Paulo: Edições Cultural, 1943, 2ª Edição, p. 248-249
3
Barão de Marajó, As regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1895, p. 80-82
4
Antonio de Moraes Silva, Dicionário da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos impressos até agora, e nesta
segunda edição novamente emendado, e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813.
37
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
explicitar-se então na descrição dos ‘confins’ por uma oposição absoluta dos costumes e
valores, como no caso do Javari, mas que se manifestava evidentemente no trato entre
os indivíduos no centro mesmo do espaço.
A esse respeito, aprecie-se, por exemplo, a ilação de Ilmar Rohloff de Mattos a
respeito da “continuidade das relações” por meio da manutenção da ‘Ordem’ e da
constituição da ‘Civilização’, enxergadas através da subalternidade do personagem de
José Dias em ‘Dom Casmurro’.
5
A partir desta ilação, observaremos que o personagem José Dias é quase que um
fantasma das representações com que se constitui a ‘classe senhorial’ e o próprio
Estado, se entendermos o conceito de fantasma enquanto Pierre Klossowski o constitui,
a saber, de que cada ser vivo interpreta segundo um código de signos que correspondem
às experiências, às imagens, ou seja, representações do que aconteceu ou que poderia
ter acontecido. Para que o impulso a essa interpretação seja estabelecido, é necessário
que o impulso seja um querer ao nível da consciência e que esta apresente a ele um
estado excitante como objetivo, daí elaborando-se uma significação daquilo que para o
impulso é um fantasma: uma excitação antecipada, de acordo com o que entendemos ser
uma representação de sua inscrição na ‘gramática da linguagem’.
6
Por conseguinte, compreendemos que José Dias interpretava essa inscrição a
partir de seu lugar limítrofe no espaço, munido de uma leitura suficiente para divertir
“ao serão e à sobremesa” e de seus superlativos para emoldurar as idéias que apenas
acompanhava, com suas roupas cerzidas e seus passos calculados.
7
De certo, esta
interpretação permitia que José Dias afastasse-se do abismo ocupado por Calibã, o
escravo selvagem e disforme imaginado por William Shakespeare, que ao ser ameaçado
por Próspero, amaldiçoava o dia de tê-lo conhecido:
Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax, a minha mãe. Roubaste-ma;
adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias-me carícias e me davas água com
bagas, como me ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que de dia e
de noite sempre queimam. Naquele tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as
fontes frescas e as salgadas, onde era a terra fértil, onde estéril... Seja eu
5
Ilmar Rohloff Mattos, O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999, 4ª
edição, p. 268.
6
Pierre Klossowski, Nietzsche e o Círculo Vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, p. 67.
7
Machado de Assis, Dom Casmurro. S/lugar: Editorial Sol90, 2004, p. 14-16.
38
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
maldito por havê-lo feito! [...] Eu, todos os vassalos de que dispondes, era
nesse tempo meu próprio soberano. Mas, agora me enchiqueiraste nesta dura
rocha e me proíbes de andar pela ilha toda...
8
Assim, a partir de Klossowski, entendemos que a idéia de lugar, seja o “quarto
ao fundo da chácara” de José Dias seja a “dura rocha” de Calibã, é construída a partir de
uma ligação entre o tempo e o espaço articulada pelas ‘relações de força e soberania’: o
lugar é um querer constituído enquanto objetivo, desenvolvido na experiência pela
significação, onde um intrincado conjunto de permissões, proibições e pertencimentos é
costurado através de estratégias e táticas.
Portanto, compreendemos que a descrição do território brasileiro e de seus
limites no século XIX foi feita segundo um ‘saber sobre o espaço’ que também
compreendia as ‘relações de soberania’, materializadas no espaço local através da
narrativa territorial desde o mesmo sumo que José Dias interpretava e que Calibã
desdenharia:
A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso, é ter
ficado sabendo como amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue, por
me terdes ensinado a falar vossa linguagem.
9
O rio Javari e a construção central do espaço
O rio Javari foi, ao mesmo tempo, o único ‘limite natural’ do modelo
setentrional e o marco mais ocidental da fronteira portuguesa, cuja foz somente se
alcançava após uma jornada de oitenta e sete dias de canoa a partir de Belém do Pará.
Por que o rio Javari foi constituído como o único ‘limite natural’ daquela área,
logo numa parte tão remota do espaço português, fora do circuito de expansão mercantil
e dos seus interesses estratégicos? Como explicar essa excentricidade do modelo
setentrional?
No século XVIII, após terem sido desalojados de suas pretensões no alto
Solimões, os portugueses aquartelaram na foz do rio Javari a sua última guarnição antes
8
William Shakespeare, A Tempestade. Rio de Janeiro: Ediouro, s/data, Ato I, Cena II, p. 54-55.
39
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
dos territórios espanhóis. Esta, por conta das péssimas condições do terreno e dos
ataques dos indígenas, foi transferida, em 1776, para um sítio duas léguas acima do
mesmo rio Solimões onde já existia, desde 1766, um posto de inspeção português.
10
Assim seria fundado o presídio de São Francisco Xavier de Tabatinga, num lugar mais
amplo e de melhor posição estratégica, sobre um barranco de se onde avistava tanto a
foz do Javari quanto os territórios espanhóis limítrofes.
11
Contudo, ainda que Tabatinga passasse, a partir desse momento, a abrigar a
derradeira presença portuguesa na Amazônia ocidental, o abandonado rio Javari
continuaria sendo lembrado pela ocupação anterior e sustentado enquanto um marco
natural dos limites amazônicos, sendo reconhecido enquanto tal pela Coroa espanhola
através do Tratado de Madri e pelo de Santo Ildefonso, que curiosamente colocava
Tabatinga fora do território português. Ainda que estes tratados tivessem sido
repudiados no século XIX por Portugal e depois pelo Brasil, o rio Javari jamais deixaria
de ser considerado, em todo seu curso, tanto pelo espanhóis como pelos estados que os
sucederam, como o ‘limite natural’ do Brasil.
Entretanto, o Javari, por suas características, não se encaixava na ‘fronteira
militar portuguesa’, pois não tinha importância para a navegação, não apresentava
nenhuma vantagem para a penetração dos interesses mercantis, não se prestava à
catequese nem ao aldeamento dos índios, nem havia perspectivas para o seu
povoamento: numa estratégia cujo os principais objetivos eram a manutenção da
mobilidade e a penetração no espaço, o território do Javari era a própria materialização
da inércia.
O espantoso, no caso do rio Javari, era que, ao contrário do rio Madeira, a
presença portuguesa, e mais tarde brasileira, era apenas simbólica, uma vez que o seu
9
William Shakespeare, A Tempestade. Rio de Janeiro: Ediouro, s/data, Ato I, Cena II, p. 56.
10
Alfredo Moreira Pinto, in Apontamentos para o dicionário geográfico do Brasil v. III. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional. 1889.
11
Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Corografia Paraense ou descrição física, histórica e política da província do
Grão-Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833, p. 309-310.
40
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
“sinuoso e lentíssimo curso,” como foi descrito por Castelnau,
12
continuaria despovoado
e sobretudo, desconhecido, devido às dificuldades reais ou imaginárias.
13
Estas dificuldades seriam sobrestimadas com o decorrer do século XIX e a partir
da centralização do Estado Nacional brasileiro, quando o território do rio Javari e seus
habitantes passariam a ser descritos diferentemente do período anterior. Neste sentido, a
cristalização da nação se impunha através da racionalização, conquistando e banindo o
mistério, negando e extirpando outros povos.
Paisagem e população passariam a ser classificados e analisados, não apenas em
função da utilidade mercantil, mas em termos de quantidade, qualidade e diversidade.
Os indígenas veriam desaparecer gradualmente os atributos de sua diferenciação, uma
vez que o sujeito passa a ser usualmente negado no novo discurso dos limites, assim, a
linguagem negava-lhes o pertencimento à Civilização, mas, considerava-os participantes
de uma Ordem da qual os exploradores teriam o controle e de onde, inclusive, poderiam
ser adquiridas novas qualidades:
“Alguns [indígenas eram] inteiramente brancos [...] as mulheres [...]
não pintavam o corpo e eram esbeltas e elegantes [...] Eram ousados e
valentes, atacando o civilizado de frente e não por traição [...] casavam-se na
idade própria, por amor e inclinação [...] eram antropófagos mesmo entre si,
não poupando os próprios parentes, salvo se a morte tivesse sido provocada
por veneno ou moléstia epidêmica. Não poupavam os inimigos, matando-os
sem piedade, e de maneira atroz [...] o prato predileto nos canibais festins,
[eram] os miolos e as mãos das vítimas, apreciando em demasia as dos
homens civilizados. Dos ossos, dentes, etc. faziam troféus de guerra,
conservando alguns a cabeça da vítima na frente de suas malocas, espetada
na própria lança do guerreiro que a matou..”
14
12
Citado em Barão de Marajó, As Regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1895, p. 80-82.
13
Como exemplo destas dificuldades, em 1903, 60 fuzileiros navais seriam embarcados do Rio de Janeiro no
Cruzador Barroso para Tabatinga, na Amazônia, onde, estacionados, velariam pela neutralidade brasileira quando
do conflito entre o Peru e a Colômbia. Em quatro meses, uma febre equatorial dizimou o contingente, regressando
para o Rio de Janeiro, como sobreviventes, um sargento, dois cabos e três soldados. Hélio Leôncio Martins,
‘Poderes Combatentes’, in
História Naval Brasileira v. 5, tomo I B, Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da
Marinha, 1997, p. 91.
14
‘Relatório de Cunha Gomes ao Ministro das Relações Exteriores’, in Ruy Pessôa, A reexploração do rio Javari -
expedição Cunha Gomes de 1897
. Brasília: Senado Federal/Centro Gráfico, s/data, p. 38-39..
41
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Tais informações sobre o território e sua população, por conseguinte, eram
reconcepções das corografias do século XVIII, uma vez que praticamente nenhum
homem branco, à exceção de alguns membros das Comissões Demarcadoras e outros
exploradores, teve a ousadia de se aventurar a percorrer o rio Javari.
15
Estes poucos
indivíduos, pressionados pelas dificuldades materiais do empreendimento, produziram
os mais duvidosos e desencontrados resultados técnicos, os quais contribuiriam para
tornar o Javari o “rio misterioso” das narrativas do século XIX e, ao mesmo tempo,
induzir em erro toda a cartografia daí decorrente.
Neste sentido, por exemplo, a comissão de demarcação portuguesa de 1781
calculou haver descido 210 milhas do rio e estimou que seu curso se estendia para
noroeste até atingir 5° 36' de latitude Sul. Estes dados foram registrados em mapa no
ano de 1786, quando dois símbolos topográficos foram acrescidos ao curso reconhecido
do rio: indicavam-se ali duas ‘Vigias’,
16
que poderiam significar dois tipos de
acontecimentos geográficos de acordo com o léxico da época: um local onde haviam
sido provisoriamente instaladas sentinelas às margens do rio (‘Vigia’ significava no
início do século XIX “Espia, sentinela”), ou um antigo termo náutico que designava um
banco de areia, uma dificuldade para a navegação.
Décadas depois, em sua correspondência com a Secretaria dos Negócios
Estrangeiros, quando da negociação de limites com o Peru, o enviado brasileiro, Duarte
da Ponte Ribeiro, estupefato, relataria que os plenipotenciários do Peru reconheceriam
novamente a posse brasileira sobre todo o curso do Javari baseados no fato de que seus
próprios mapas registraram duas povoações brasileiras no curso médio do rio.
17
Provavelmente, este erro da diplomacia peruana se deveu ao fato de terem sido
consultado produtos cartográficos posteriores à ‘Carta da Nova Lusitânia’, de 1798,
18
que utilizou dentre suas fontes o mapa de 1786, registrando definitivamente um marco
apenas temporário, as ‘Vigias’. No próximo capítulo, as Cartas Gerais serão melhor
analisadas, mas para a melhor compreensão deste caso, será adiantado que a ‘Carta da
15
“[...] nenhum explorador ou flibusteiro conseguira navegar [o rio Javari] por mais de três dias sem ser massacrado.”
Tetrá Teffé,
Barão de Teffé - Militar e cientista. Biografia do Almirante Antonio Luiz von Hoonholtz. Rio de
Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1977, p. 239.
16
Carta do rio Javari até a latitude meridional 5° 36’ pelos Engenheiros José Joaquim Victorio da Costa e Pedro
Alexandrino de Souza’, 1787.
17
Ver José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p.
297-298.
18
Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, Lisboa, 1798.
42
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nova Lusitânia’ era um produto cartográfico no qual as características hidrográficas e
náuticas seriam determinantes. Assim, um termo transitório assinalado no mapa de 1786
seria transposto na Carta de 1798 como um local de dificuldade e alerta para a
navegação, fixando-se definitivamente em parte da cartografia do século XIX. Deste
modo, por conta da disseminação cartográfica, as cartas que foram utilizadas pelos
peruanos inscreveram, numa terceira leitura, os mesmos elementos cartográficos
anteriores como duas povoações.
Depois da expedição de 1781, o Javari somente seria novamente navegado nas
décadas de 1840 e 1850 pelos exploradores W. L. Herdon e F. L. Castelnau, o primeiro
dos quais havia recebido da Marinha americana a missão de explorar o vale do
Amazonas, enquanto que o segundo estava executando a viagem do Rio de Janeiro até
Lima e daí novamente até Belém por ordem do Governo francês. Assim, estas
expedições já podem ser inseridas no âmbito da expansão imperialista e da ‘cartografia
concorrencial’, sendo que, em relação ao Javari, Herdon apenas teria reconhecido 183
Km deste rio, mas Castelnau alegaria tê-lo penetrado profundamente por 270 milhas,
inacreditavelmente estabelecendo, então, a direção de seu curso em leste-oeste e sua
extensão em 525 milhas.
19
Alguns anos depois, em 1866, uma expedição conjunta brasileiro-peruana
destinada a verificar a fronteira entre os dois países e que seria denominada
posteriormente de expedição Soares Pinto - Paz Soldán, tentou determinar as nascentes
do Javari, mas não conseguiria chegar a resultado algum, uma vez que seria arrasada
pelos nativos na latitude 6° 50’ Sul, tendo morrido, nessa ocasião, aquele que na época
era considerado um dos maiores hidrógrafos e astrônomos brasileiros, o capitão-tenente
Soares Pinto.
Somente em julho de 1874, seria designada um nova comissão para verificar a
origem do Javari, desta vez sob o comando de Antônio Luiz von Hoonholtz, professor
de hidrografia da Escola de Marinha desde 1857, autor da primeira obra em língua
portuguesa sobre hidrografia e do mapa da Ilha de Santa Catarina, o qual, por sua
perfeição técnica, foi incluído no Atlas Mouchez da Costa do Brasil.
Na seu relato da comissão, Hoonholtz assinalaria que “ninguém havia
ultrapassado impunemente a foz do rio Galvez” e que somente havia conseguido
determinar astronomicamente as nascentes do Javari após ter travado duas dificílimas
19
Castelnau teria navegado o Javari entre os anos 1843-1847 e Herdon em 1854.
43
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
batalhas com os indígenas, cortando 176 grossos troncos de árvore que serviam de ponte
para aqueles (os trocos estavam atravessados de margem à margem do Javari impedindo
a navegação) e depois de ter perdido um terço do seu contingente (ainda que
navegassem em canoas cercadas por uma grossa tela de arame e praticamente não
desembarcassem).
O nascedouro do rio Javari seria então determinado por Hoonholtz em 7° 06’
Sul, com o auxílio do último dos nove cronômetros com que aquele explorador teria
iniciado a jornada. Segundo o seu relato, teriam morrido 23 dos 82 homens que
iniciaram a jornada, mas notícias posteriores dariam conta de 53 mortos, dentre os quais
o próprio irmão do explorador. Sugestivamente as memórias desta viagem exploratória,
publicadas na França por Alfred Marc, têm o título de “Um explorador brasileiro, dois
mil quilômetros de navegação em canoas através de um rio inexplorado e
completamente dominado por selvagens ferozes e indomáveis.”
Contudo, no Relatório de 1875 da Secretaria dos Negócios Estrangeiros,
Hoonholtz reconheceria não ter conseguido chegar à foz do rio Javari, “porquanto os
obstáculos eram tais que, não permitiam chegar além”, sintomaticamente, ao ser
agraciado com o título de Barão, o explorador não quis que este se referisse ao Javari,
preferindo ligá-lo à cidade de Tefé, ponto de partida da expedição.
20
Mas, ao contrário do que seria de se esperar, a conclusão dessa exploração seria
muitíssimo mal recebida por seus compatriotas: conforme visto no capítulo anterior, por
conta dos padrões de limites que se estabeleceram através dos atlas, a soberania
brasileira sobre a área incluiria não só o Javari, mas ainda todo o território à leste desse
rio, traçando-se, na maioria das representações cartográficas, uma reta de sua nascente
até encontrar o rio Madeira, logo, quanto maior fosse a extensão do rio Javari, maior
seria o território pertencente ao Brasil.
21
Mesmo que, no início do século XIX, a Corografia Brasílica houvesse
localizado as nascentes do rio Javari em 7° 30’ Sul, (quase o mesmo valor que é
atribuído atualmente, aproximadamente 7° 01’), o atlas La Rochette de 1807 e outros
atlas posteriores principiariam por prolongar a extensão do rio Javari até 10º 20’, valor
20
Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1875, Anexo 2, p. 188-192.
21
Pelo artigo 8º do Tratado de 1750 se estabelecia que a fronteira correria pela divisão do leito dos rios Guaporé e
Mamoré, até o local situado a igual distância do Amazonas e embocadura do Mamoré, e depois deste lugar
continuaria sobre uma linha de leste a oeste, até encontrar a margem oriental do Javari. Ignácio Accioli de
Cerqueira e Silva,
Corografia Paraense ou descrição física, histórica e política da província do Grão-Pará.
Salvador: Typografia do Diário, 1833, p. 204.
44
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
este que em 1858 seria novamente aumentado até o limite máximo de 12º Sul.
22
No
entanto, ainda que a representação cartográfica do Javari mais benéfica para o Brasil
prevalecesse nos atlas estrangeiros, outros padrões de limites também começariam a se
estabelecer, negando a pretensão de se integrar todo o curso desse rio e,
consequentemente, o território que por este era balizado, ao espaço brasileiro.
Portanto, num momento em que a produção dos atlas na Europa e nos Estados
Unidos atingia o seu auge, surgia, para o Brasil, a necessidade de se constituir uma
produção cartográfica concorrencial. Assim, seriam encomendadas no exterior versões
exclusivas de certos atlas
23
e mapas onde se representavam os limites do Brasil segundo
os termos mais vantajosos, no caso do Javari, segundo um paralelo na altura do grau dez
ou doze, garantindo para o Brasil, especificamente, os cursos superiores dos rios Juruá,
do rio Purus e de outros tributários do Solimões, estes já reconhecidos e abertos à
ocupação.
Entretanto, para que se consolidasse uma produção cartográfica no Brasil, as
iniciativas governamentais dependeriam de se constituir um ‘saber sobre o espaço’
consensual que possibilitasse a composição de um registro do espaço nacional através
de um cânone corográfico, garantindo-se, assim, a integração das regiões periféricas
segundo às condições da construção de uma centralidade do espaço, numa função de
pedagogia interna e externa.
O IHGB, um dos lugares de construção desse ‘saber sobre o espaço’, por
exemplo, agiria de modo a incentivar tanto as viagens exploratórias quanto o debate
sobre a publicação das corografias. Uma primeira carta geral do Brasil seria justamente
composta por um de seus sócios, em 1846, Conrado Jacob de Niemeyer, tendo-lhe sido
concedido o primeiro prêmio geográfico outorgado por esse Instituto. Entretanto, não
seria dada continuidade a essa iniciativa e a composição de outras cartas gerais
aconteceria apenas de forma esporádica, fruto do trabalho individual, sendo que, apenas
na década de 1870 se organizaria um esforço destinado a produção de uma
representação oficial do espaço nacional, tendo em vista sua apresentação nas
exposições universais de Viena em 1874 e da Filadélfia de 1876.
No que se refere particularmente ao rio Javari, as obras resultantes desses
esforços endossariam a posição brasileira até o ano de 1875, quando toda a pretensão
22
A. Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographia Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª, 1858.
23
A. Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographia Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª, 1858.
45
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
brasileira de soberania sobre o território situado ao norte do paralelo de 10º 20’ foi
subitamente abandonada pela publicação da ‘Carta do Império do Brasil’.
Por que uma mudança tão repentina após quase cem anos de narrativas
geográficas e registros cartográficos noutro sentido?
Esta mudança oficial no padrão de limite do Javari seria realizada por razões de
estado: o Governo brasileiro já sabia,
24
desde pelo menos a década de 1840, que o rio
Javari não se estendia ao sul do paralelo de 7°, destinando-se então aquele território à
permuta com outros países.
25
Essa transação seria efetuada em 1867, durante a Guerra do Paraguai, com o
objetivo de garantir a neutralidade da Bolívia no conflito, pelo Tratado de Ayacucho.
Segundo seus artigos, caso algum dia se constatasse o curso do rio Javari ultrapassava o
paralelo de 10º 20’ (como na maioria das representações cartográficas), seu curso
inferior passaria a pertencer à Bolívia e se a cabeceira do rio fosse localizada em um
latitude inferior, o território entre esta e o referido paralelo deixaria de ser brasileiro.
26
Como o reconhecimento do Barão de Tefé foi realizado após a Guerra do
Paraguai e por uma via tortuosa, já que a missão exploratória se destinava a balizar os
limites do Brasil com a república do Peru, estaria confirmada a segunda conjectura, com
o Brasil perdendo a maior parte do território e o misterioso rio Javari encolhendo
substancial e subitamente.
Portanto, a inscrição do Estado brasileiro que se consolidava através dos
instrumentos jurídicos internacionais era uma construção da perspectiva central, onde se
justificava a cessão de parte da periferia por conta de um ordenamento no qual não
havia lugar para uma articulação que incluísse uma construção local de espaço.
24
Theodosio Constantino de Chermont, 'Declarações sobre o rio Javari,' 24/07/1781. AHI, Lata 265, Maço 10, Pasta
8; Carta de Theodosio Constantino de Chermont, em 1/10/1781. AHI, Lata 283, Maço 7, Pasta 13; Carta de
Henrique João Wilkens para João Pereira Caldas, 14/07/1787. AHI, Lata 283, Maço 7, Pasta 13.
25
Duarte da Ponte Ribeiro, 'Memória n. 4 - Exposição do estado em que se achavam as questões de limites entre
Espanha e Portugal relativas às fronteiras do Brasil com as províncias do: Paraguai, Bolívia e Peru, depois da 2
guerra de 1801 que anulou o Tratado de Santo Ildefonso', 1842. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte
Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Doc. 2.
26
Segundo o artigo 9º deste Tratado, a fronteira correria “[...] do Mamoré até o Beni onde começa o rio Madeira.
Deste rio para o Oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada de sua margem esquerda na latitude Sul de 10° e
20’ até encontrar o rio Javari. Se o Javari tiver as nascentes ao Norte daquela linha Leste - Oeste, seguirá a
fronteira desde a mesma latitude e por uma reta a buscar a origem principal do dito rio Javari.” Barão de Marajó,
As regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1895, p. 9. Ver também Moniz Bandeira. O
expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1998, p. 127.
46
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Como então se produziria uma construção local do espaço na região e como esta
faria surgir uma nova articulação espacial e a reinvenção da representação do espaço
nacional?
O rio Javari e a construção local do espaço
A organização do território do modelo setentrional esteve, a princípio, durante o
período colonial, sujeito à Capitania do Maranhão, cuja esfera administrativa ia, pelo
mar, até o rio Oiapoque, onde se limitava com a Guiana francesa. Depois de 1615, toda
a área ganharia autonomia sob a denominação de Capitania do Pará, da qual seria
desmembrada em 1755 sua parte ocidental, sendo este território chamado de Capitania
de S. José do Rio Negro, com capital na povoação de Barcelos. Durante o Primeiro
Reinado este território tornar-se-ia apenas a comarca do Alto-Amazonas, sujeita
novamente à Província do Grão-Pará, da qual seria finalmente separado em 1850, para
formar uma circunscrição política independente com o nome de Província do
Amazonas.
A Província do Amazonas experimentaria um intenso desenvolvimento a partir
dos meados da década de 1860, fruto da migração nordestina e dos altos lucros
provenientes da exportação da borracha, da qual era praticamente o único produtor
mundial. Esta pujança econômica, reconhecida pela visão central, seria uma das
responsáveis pela produção de uma identidade local:
A província do Amazonas, assim como a sua limítrofe do Pará, são
as duas que oferecem um futuro mais grandioso em todo o Império. Apesar
do seu desenvolvimento se ter feito lenta e parcamente, por circunstâncias
especiais da sua situação nos confins do litoral marítimo e da metrópole, a
riqueza espontânea de seu imenso território, a opulência das numerosas
artérias fluviais e a proximidade dos muitos estados e colônias estrangeiras,
hão de necessariamente dar-lhe um impulso vigoroso e constituir uma nação
rica, forte e colossalmente grandiosa.
27
27
Viriato Augusto da Silva. Corografia do Brasil. Lisboa: D. Corazzi, 1882, p. 38.
47
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Como vimos, outros fatores relevantes para a constituição de uma identidade
local no Amazonas, foram a originalidade de seu povoamento e a constituição tardia
desta Província em relação as outras, o que iria originar um esforço de sua afirmação
enquanto um espaço autônomo frente a Província do Grão-Pará.
Esta identidade divergiria da construção historiográfica oficial, uma vez que não
era construída em relação à tradição, mas com o novo, onde a conexão com outros
países e a abertura a outras culturas quase que substituía a ligação com o Rio de Janeiro.
O Amazonas, segundo a construção local do espaço, seria o país do futuro, uma terra de
oportunidades, habitado em sua grande maioria por migrantes e estrangeiros, aos quais
os naturais e os indígenas, já estavam integrados, assim como a natureza, submetida
pelo progresso e pela civilização trazida pela nova opulência:
As febres intermitentes , que podem ser contraídas por impureza das
águas, não são endêmicas e quase nunca atacam as pessoas que filtram o
precioso líquido para bebe-lo, andam calçadas e confortavelmente vestidas,
evitando os banhos fora das horas matinais.
28
Neste contexto, também a noção dos limites espaciais dessa identidade não
coincidiria mais com as cartas oficiais que, cada vez mais desacreditadas, deixariam de
impedir que, em Manaus, se passasse a conceder lotes de terras, com títulos definitivos
de posse, no rio Acre, muito ao sul da fronteira estabelecida pelo governo central. A
constituição da comarca amazonense de Antimary excederia até os padrões de limites
anteriores, ultrapassando muito o paralelo de 10º 20’. Ainda, a própria
exploração
comercial da região que o Javari integrava passaria a ser incentivada pelo governo do
Amazonas, apoiada na lógica de que a metade da produção de borracha provinha
daquele território.
No entanto,
a divergência da visão de espaço central não se limitava à região do
Javari, uma vez que, segundo os mapas
29
e as corografias mandadas confeccionar pelo
Estado do Amazonas, algumas das quais mantinham inclusas as cartas oficiais, seu
limite com a Colômbia era o antigo rio dos Enganos, o que permitia estender o espaço
local até os contrafortes da Cordilheira dos Andes.
28
Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.
Hanf, 1904, p. 67.
29
Por exemplo, Raymundo B. Nery & Bernardo Ramos, Carte de l'Etat de l'Amazone, 1901.
48
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Enquanto esta construção local do espaço ganhava corpo, diversos geógrafos e
militares no Rio de Janeiro passariam a contestar a visão de espaço central,
posicionando-se contra a cessão do território do Javari, através de argumentos que
reinventavam os padrões de limites. Segundo estes argumentos, as nascentes só
poderiam estar onde sempre estiveram, “pelo menos, na altura de 10° 20', isto é, no
paralelo do Madeira.”
30
A luta de representações se intensificaria a partir da República, estendendo-se
então ao próprio Ministério da Relações Exteriores, que emprestaria credibilidade aos
novos argumentos pela constituição de duas novas expedições nos anos de 1897 e 1902
que possuíam o objetivo explícito de determinar as nascentes do Javari.
Contraditoriamente, também entre os anos de 1895 e 1899, seriam tomadas uma
série de providências destinadas a defender a soberania da Bolívia sobre a área
pretendida pelo estado do Amazonas, instalando-se, inclusive, um consulado brasileiro
na povoação de Porto Alonso, centro do território disputado e reconhecendo como
ilegais os decretos de Manaus, pois autorizava-se a Bolívia a criar uma alfândega e
demais repartições governamentais na região.
A reação do governo amazonense e dos comerciantes locais, que contaria com o
apoio popular, foi incentivar a desobediência às diretrizes do Rio de Janeiro e apoiar a
guerrilha contra as autoridades bolivianas:
[...] àquela porção de brasileiros, que em zona longínqua, regam
com seu sagrado sangue a idéia patriótica de fazer permanecer brasileira a
larga faixa de terra ora ocupada pelo estrangeiro, ao sul da chamada linha
Cunha Gomes, que o governo vê-se obrigado a respeitar por força de um
tratado. Por mais ilegal que pareça este proceder dos insurretos, traduz um
belo movimento de patriotismo e os sentimentos apurados do direito de
propriedade que, no dizer de von Thering, é um prolongamento da
personalidade mesma, parte integrante do indivíduo, porque é a sua
condição de coexistência social. Homens que, arriscando a vida,
conseguiram construir habitação, constituir um lar, fundar uma propriedade
em territórios inexplorados, que possuíam como pedaços da pátria, a cujas
leis eram obedientes, não se podem conformar a ver, de um momento para o
30
Taumaturgo de Azevedo, citado em Ruy Pessôa, A reexploração do rio Javari - expedição Cunha Gomes de 1897.
Brasília: Senado Federal, s/data, p. 21-22.
49
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
outro, perdidos todos os seus esforços inteligentes, passando à leis diversas
em estranha pátria.
31
Em 1900, a eleição para o governo do Amazonas, seria ganha por um candidato
de consenso, Silvério Nery, cuja principal plataforma de governo era “a idéia de
despertar, por todos os meios justos e legais, a atenção dos poderes públicos da União
para uma ação comum, tendente a reivindicação do Acre [onde] o estrangeiro, tendo
invadido, com o assentimento do governo federal, uma parte do território amazonense,
parecia zombar de nossos direitos”.
32
Iniciar-se-ia, em seguida, uma campanha de imprensa no Rio de Janeiro e
intensas pressões no Congresso, com vistas a defender os interesses de Manaus,
contrariando-se as tentativas de negar-se a existência de uma visão local de espaço:
[...] [esta] questão que não existe [...] esta questão [a do Acre] que
nasceu nas praças comerciais de Belém e Manaus, de lá subiu ao palácio do
governo do Amazonas, daí se propagou aos seringais do Acre, fosse agitada
na imprensa diária, até que vieram morrer suas ondas na outra casa do
Congresso.
33
No centro de toda a controvérsia, encontrar-se-ia de novo o rio Javari: de
supetão, as discussões se encaminhariam nos meios geográficos até que se tornasse
majoritária a idéia de que o rio até então registrado nos mapas não era o Javari, mas
apenas um braço deste, o Jaquirana, sendo necessário, portanto, prosseguir no esforço
de encontrar o fugidio rio. Sob tais circunstâncias, Dionysio Cerqueira, o ministro das
Relações Exteriores, enunciaria a posição do Governo em um pronunciamento estranho
e enigmático:
Vou demostrar que a fronteira do Brasil com a Bolívia, entre os rios
Madeira e Javari, é a linha geodésica que liga a foz do Beni à nascente do
31
Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.
Hanf, 1904, p. 67, III.
32
Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.
Hanf, 1904, p. 67 e p. III.
33
Discurso de Dionysio Cerqueira, deputado e ex-ministro das Relações Exteriores no Congresso Nacional. Gregório
Thaumaturgo de Azevedo,
O Acre - Limites com a Bolívia. Artigos publicados na imprensa - 1900-1901. Rio de
Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1901, p. 9.
50
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Javari, e não uma linha, que não é linha, mas um ângulo formado de duas
linhas, ou uma linha que é constituída por dois lados de um ângulo, cujo
vértice é o ponto de intercessão do meridiano que passa pela cabeceira do
Javari, e pelo paralelo que passa pela boca do Beni, e cujos extremos são as
cabeceiras do Javari e a boca do Beni.
34
A partir deste enunciado verdadeiramente hermético, toda a questão seria
remetida ao marco zero, uma vez que o rio Javari, o qual balizara as fronteiras do Brasil
desde o século XVIII, simplesmente desaparecera. Como dissera certa vez o próprio
Barão de Tefé: “[...] escondia-se a fonte desse rio misterioso, quase encantado”.
35
A confusão se transformaria ainda numa questão da campanha presidencial que
mudaria os rumos da eleição: acompanhando a tendência do eleitorado, Rodrigues
Alves passaria a demostrar simpatia pelos chamados “combatentes do Acre”. Eleito,
reconstruir-se-ia a articulação centro-periferia através da designação para o Ministério
das Relações Exteriores de um indivíduo já reconhecido por suas ligações com as
questões de limites: Rio Branco. Este, em 18 de Janeiro de 1903, faria um comunicado à
Bolívia através do qual se informava que o Brasil passaria a sustentar o que então
considerava ser a verdadeira interpretação do Tratado de Ayacucho: a fronteira
brasileira retornava ao mítico nascedouro do Javari,o paralelo de dez graus e vinte
minutos”.
Remate dos Males
Em 1900 o rio Javari já estava aberto à navegação comercial até a sua principal
povoação, denominada então ‘Remate de Males’, localizada na confluência com o rio
Itecuaí, sendo que vapores e lanchas singravam-no até a confluência com o rio Curuçá.
A companhia de navegação que prestava esse serviço era inglesa, a The Amazon
Steamship N. Company, Ltd. e navegava uma vez por mês esse percurso.
34
Gregório Thaumaturgo de Azevedo, O Acre - Limites com a Bolívia. Artigos publicados na imprensa - 1900-1901.
Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1901, p. 5.
35
Luiz Viana Filho, A vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959, p. 398.
51
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Remate dos Males possuía naquele ano mais de 1.000 habitantes, e contava,
inclusive, com uma escola pública, mantida pelo governo do estado do Amazonas.
36
Consta que o nordestino que lançou os fundamentos dessa povoação chegou à
Amazônia fugindo da seca depois de haver experimentado todo tipo de dificuldade: lá,
se tornaria ainda mais infeliz, perdendo o que lhe havia sobrado da família e mesmo os
últimos recursos conseguidos. Em seu leito de agonia, desanimado, resolveu batizar a
localidade com o nome de Remate de Males.
37
A solução da questão do Acre por Rio Branco se daria não só através da compra
do território do Javari à Bolívia, mas também pela exclusão deste território do estado do
Amazonas: após a negativa do conhecimento pleno das negociações feitas no Império
com a Bolívia, reinventava-se o espaço local fazendo com que este fosse aglutinado ao
espaço central pela persistência dos nacionais.
Depois de finalmente se haver descoberto que o rio não estivera onde se
acreditara que havia existido, seus habitantes não mudariam de lugar, mas Remate de
Males mudaria de nome: passaria a se chamar Benjamim Constant, um dos patronos da
República do Brasil.
36
Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.
Hanf, 1904, p. 72-73.
37
Agnelo Bittencourt, ‘A psicologia nos nomes geográficos do Amazonas’, in Mosaicos do Amazonas - Fisiografia e
demografia da região. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1966, p. 128.
52
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
4 — MAPEANDO O VAZIO: A GRAMÁTICA DA VISÃO E A
INTERPRETAÇÃO SEMIOLÓGICA E ICONOLÓGICA DOS MAPAS
ATRAVÉS DAS CARTAS GERAIS
Nosso objetivo inicial neste capítulo é fundamentar a idéia da ‘gramática da
visão’ e sua importância na constituição de um ‘saber sobre o espaço’. A partir destes
fundamentos, procuremos estudar as condições da intuição e da intelecção do espaço
brasileiro por meio das Cartas Gerais dos séculos XVIII e XIX, para que, finalmente,
possamos estabelecer categorias que nos permitam discutir nos próximos capítulos a
construção das representações do espaço brasileiro e a inscrição do Estado no espaço.
Por conseguinte, a constituição da idéia de uma ‘gramática da visão’ visa inserir os
problemas do nosso estudo junto à construção de um ‘saber sobre o espaço’, já que
entendemos que este é elaborado a partir de certos elementos cuja origem, arranjo e
organização devem ser analisados tanto em relação à história da cultura quanto junto às
‘relações de força’ e às ‘relações de soberania’.
Nesse sentido, remetemos a idéia da ‘gramática da visão’ ao conceito de
‘gramática universal’, concebido no século XVIII e que foi diferentemente utilizado no
século XIX por vários pensadores, como Schopenhauer, Schelling, Burckhardt e
Nietzsche. O conceito de ‘gramática universal’ foi ainda desenvolvido no final da
década de 1960 por Noam Chomsky, a partir das concepções de Humboldt, a saber,
enquanto um princípio universal e inato de todas as linguagens naturais, ou seja, como
uma característica mental e inata da espécie, reconhecida por Humboldt enquanto a
‘Forma’ da linguagem.
Esta ‘Forma’ da linguagem decorreria de ‘noções comuns’ as quais envolvem
categorias relacionais que tornam possível a intuição do objeto e a unidade da
experiência racional, tais como, causa e efeito, o todo e a parte, parecença e diferença,
proporção e analogia, igualdade e desigualdade, simetria e assimetria, ‘noções comuns’
a todos os homens e que demonstram, portanto uma concepção ativa da intuição.
1
1
Noam Chomsky, Reflections on language. New York: Pantheon Books, 1975, p. 3-7.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Por conseguinte, segundo este conceito da ‘gramática universal’, entendemos
que a intuição dos objetos dependeria de experiências que evocam estruturas em alguma
parte do sistema cognitivo a desenvolver ou já desenvolvidas pela experiência
individual ou no seu contato com uma experiência compartilhada junto aos demais
indivíduos.
Apesar desta intuição dos objetos estar relacionada ao problema Kantiano da
conformidade dos objetos ao nosso modo de cognição, entendemos que este problema
pode ser melhor resolvido segundo a concepção de Schopenhauer, que efetivamente
distingue a intuição dos objetos enquanto uma característica única da mente humana
como Descartes, Humboldt e Chomsky.
Para Schopenhauer, o que é pensado é sempre umconceito universal, não
intuitivo, que pode ser entendido como o conceito de um objeto em geral: mas, o pensar
só se relaciona, mediatamente, por meio de conceitos, aos objetos” que, em si mesmos,
são e permanecem sempre intuitivos.
Portanto, “o objeto como tal existe, sempre, só para a intuição e nela: ela só
pode ser preenchida pelos sentidos ou, na sua ausência pela imaginação”.
2
Assim, a partir de Schopenhauer, entendemos que as coisas individuais seriam
intuídas como tais no entendimento, ou seja, mediante a aplicação do nexo causal entre
o que é pensado através dos sentidos com as intuições da experiência individual ou
compartilhada, por conseguinte, a intuição seria completamente intelectual.
3
Deste modo, podemos relacionar os sentidos de Schopenhauer às ‘noções
comuns’ de Chomsky e Humboldt e, conseqüentemente, sua concepção da intuição e do
‘nexo causal’ à idéia de experiência conforme empregada por aqueles dois autores: a
mente proveria os meios para uma análise dos dados percebidos conforme a
experiência, enquanto esta última proveria a mente com os dados que permitiram a
delimitação das estruturas cognitivas que possibilitariam a experiência.
A ‘gramática da linguagem’ derivaria portanto desse jogo sucessivo de intuições
e intelecções entre os falantes compondo um repertório e uma estrutura que Humboldt
definiria como ‘uma atividade produtiva’ [eine genetische], um ‘trabalho mental’
2
Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997, p. 144.
3
Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997, p. 145.
54
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
[Arbeit des Geistes] sempre repetido, de tornar os sons articulados capazes de expressar
o pensamento.
4
Analogamente à existência de uma ‘gramática da linguagem’, Noam Chomsky
sugeriria a existência também de uma ‘gramática da visão’
5
que, no caso, entendemos
estar relacionada à constituição do ‘saber sobre o espaço’. Neste caso, a ‘gramática da
visão’ seria composta como a ‘gramática da linguagem’, também a partir das ‘noções
comuns’, no caso, as estruturas cognitivas inatas ligadas à visão, que, através do ‘nexo
causal’ de Schopenhauer, seriam ligas a certas categorias construídas pela experiência
individual ou compartilhada, das quais destacaremos a Perspectiva e a Teoria das
Proporções, a partir das quais se desenvolveriam estilos estéticos conforme uma
intuição completamente intelectual dos objetos.
Ainda, esta intuição dos objetos propiciaria, segundo Schopenhauer, o estofo do
pensamento que se realiza, por conseguinte, por uma abstração a partir da intuição,
mudando apenas a forma de conhecimento já adquirido pela intuição, tornando possível
a sua combinação e a sua aplicação. Neste sentido, o uso da razão consistiria,
justamente em conhecer o particular através do universal, de apreendê-lo através das
circunstâncias contidas na formulação do pensamento, concretizando-se, assim, uma
intelecção do objeto.
6
Portanto, entendemos que a intuição do espaço por meio das categorias da
‘gramática visual’ resultaria numa intelecção do espaço a qual, por sua vez, resultaria
numa representação desse mesmo espaço. Compreendemos também que nossa
compreensão da categoria da intelecção de Schopenhauer, relativamente à ‘gramática da
visão’, tornaria a intuição desta mais ligada à representação, por conseguinte,
importando mais atenção ao processo subjetivo do que a ‘gramática da linguagem’.
Neste estudo, procuraremos entender através das produções cartográficas do
século XVIII e XIX certos processos dessa intelecção, procurando determinar algumas
categorias que nos permitam utilizar a cartografia como um instrumento de exame
simultâneo da construção das representações do espaço brasileiro e da inscrição do
Estado no espaço.
4
Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002, p. 62.
5
Noam Chomsky, Reflections on language. New York: Pantheon Books, 1975, p. 7-8.
6
Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997, p. 176.
55
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Para isto, escolhemos um dos gêneros cartográficos, a carta geral, entendida,
neste estudo, enquanto os produtos cartográficos que possuam as seguintes
características:
Em primeiro lugar, caracterizaremos como cartas gerais aqueles mapas que se
propõem distinguir um determinado espaço ou espaços sobre o território e após fazê-lo,
delimitem-no através de seu enquadramento, compreendido aqui como um recorte da
superfície terrestre disponibilizado para a leitura através de uma determinada
perspectiva possibilitada pelo emolduramento do mapa. Neste sentido, os paralelos e
meridianos que estabelecem esse recorte da superfície terrestre são instrumentos que
possibilitam, num primeiro nível, instituir relações de pertencimento e exclusão e, num
segundo nível, organizar uma estrutura territorial que dê sentido e referências à
construção do espaço.
Conforme estas características, as tentativas de inscrição e organização dos
espaços na porção oriental da América do Sul remontariam ao século XVI e possuiriam
como principal característica a imaginação cartográfica do espaço inexplorado, que se
consubstanciaria através da criação de ‘esquemas cartográficos’ que perduraram até o
século XIX, determinando esforços exploratórios, direcionamentos cartográficos e
influenciando construções do espaço — o Vazio, ou espaço não-conhecido, seria, neste
modelo de cartas gerais, um elemento dinâmico a ser preenchido, imaginado e
organizado.
Portanto, a intelecção do Vazio será referenciada por uma ‘gramática da visão’
que o processo subjetivo ligará à experiência individual ou compartilhada. Neste
sentido, para que se trace uma genealogia dessas experiências, é necessário,
primeiramente, definir que a própria idéia de mapa é muito mais extensa que a de seu
mero registro gráfico. Na realidade, o mapa se constitui primitivamente não um registro
gráfico, mas como um rol descritivo ou classificatório relacionado a uma base
geográfica, que adota uma forma possibilitadora de sua comunicação a outros
integrantes do grupo que compartilham pela experiência sua chave interpretativa.
Assim, em determinadas sociedades ou agrupamentos humanos onde não se
acreditasse necessária ou não houvesse capacidade técnica para a expressão gráfica,
existiram mapas que dispensaram essa forma de representação adotando-se então outras
formas capazes de serem compreendidas pelo grupo. Por exemplo, determinadas
culturas se utilizaram de mapas não-gráficos e sem o suporte de qualquer tipo de escrita,
como os nativos das Ilhas Marshall, que com seu ‘Rebbelib’, a saber, uma estrutura que
56
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
combinava conchas e galhos, eram capazes de dar conta de um complicado sistema de
correntes marítimas e da localização das ilhas da região que freqüentavam. Por sua vez,
os Inuit da Groelândia representavam o conhecimento que possuíam do litoral dessa ilha
através de peças de madeira entalhadas no formato da costa e que eram transportadas
em suas canoas.
7
Da mesma maneira, contrastando com a tradição chinesa e islâmica na
produção de mapas gráficos locais, várias formas não-gráficas de mapas mas que apenas
utilizavam o suporte da escrita e da oralidade, serviram correntemente na Europa
medieval para descrever e classificar o conhecimento geográfico das cidades e dos
campos.
8
Contudo, dentro de cada um destes mesmos grupos anteriormente citados, a
representação dessa ‘gramática da visão’ estaria ligada às oportunidades de sua
expressão e da experimentação. Então, dentre os Inuit, a compreensão do espaço entre
as mulheres estava relacionada à localização e distância de certos pontos significantes a
partir de sua base, a maioria dos quais eram locais de troca, enquanto que para os
homens a linha da costa era mais importantes para a construção do espaço.
9
Da mesma,
os mapas textuais e orais da Idade Média podem ser claramente percebidos como
construções ligadas aos interesses específicos de certos grupos de falantes, cabendo-lhes
mesmo a definição de mapas lingüisticos, com espécimes orientados para cada uma das
comunidades de uso da língua, definidas por meio de sua experimentação própria do
espaço, a saber, mercadores, burocratas, artesãos.
10
Em segundo lugar, caracterizaremos também como cartas gerais as espécies de
mapas que estariam inseridas no esforço de constituição do Estado nacional: para a
consecução destas, convergiriam diversas iniciativas visando fins diversos, mas, cuja
principal característica era estabelecer a inscrição do Estado.
Neste modelo de Cartas Gerais seriam registradas as impressões do centro do
espaço sobre sua periferia, com os esquemas cartográficos e a imaginação cedendo
lugar ao planejamento e às estratégias do Estado. Neste modelo de carta geral o Vazio
7
David Turnbull, Maps are Territories: Science Is an Atlas - a Portfolio of Exhibits. Chicago: University of Chicago
Press, 1993, p. 20-21; David Turnbull,
Masons, Tricksters and Cartographers: Comparative Studies in the
Sociology of Scientific and Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2003, p. 122-124.
8
Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell
University Press, 2000.
9
Yi-Fu Tuan, Space and Place - the Perspective of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003, p.
13.
10
Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell
University Press, 2000, p. 1-39.
57
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
não seria mais preenchido, imaginado e organizado, mas tornar-se-ia um elemento
estático a ser apagado e sobrescrito, e onde mesmo a não-inscrição consistiria em um
lugar a ser estudado. O esforço da construção do Estado nacional e da produção de sua
representação utilizou o material e a estrutura das cartas gerais anteriores adaptando-as à
narração de seu próprio passado, em prol de seus objetivos e visando estabelecer sua
legitimidade, assim, o vazio será sucessivamente apagado e reescrito com a utilização
de dois novos eixos de representação cartográfica: a Ordem e a Civilização. Por
conseguinte, deve-se fazer também uma leitura do significado dos elementos e das
estruturas técnicas do mapa, conectando-as às intelecções dos seus operadores.
Além disto, devemos entender que a cartografia no período possuirá uma
dinâmica toda própria, uma vez que expressará as ‘relações de força’ e as ‘relações de
soberania’ do Império, no caso, consolidadas na sua episteme.
Contudo, elaborando mais os nossos argumentos anteriores, a produção
cartográfica também exibirá certas tendências de representação que expressarão o
desejo e a vontade de ajustamento a determinados modelos mais amplos ou a reação a
uma tendência que acredita ser concorrencial e, ao utilizar-se o conceito de Deleuze e
Guattari, estabelecendo-se um lugar para a leitura de novos significados e referências de
uma reterritorialização das antigas construções.
Portanto, constituímos para nosso estudo, duas espécies distintas de Cartas
Gerais: aquelas que inscrevem e organizam um espaço da América portuguesa e às que
estão inseridas no esforço de constituição do Estado nacional.
Entretanto, ainda é necessário adiantar para esse estudo que o uti possidetis
somente se estabeleceu como instrumento de negociação das fronteiras brasileiras a
partir da década de 1850, enquanto que um determinado conceito de Fronteira Natural já
havia sido esboçado através das corografias desde a década de 1840, sendo
continuamente reafirmado nestas por um ligação com a política de expansão portuguesa
na América, inclusive por meio de sucessivos reforços conceituais que visavam,
emprestar maior credibilidade ao conceito do uti possidetis.
A idéia central nesse conceito da Fronteira Natural é a de que o processo de
formação histórica, decorrente dos esforços da Metrópole, moldaria, inclusive, o caráter
nacional e teria como sua maior expressão a figura do Bandeirante, determinando,
através de variadas etapas, uma expansão que constituiria um espaço necessário e ideal,
o qual seria balizado por acidentes geográficos inconfundíveis e claramente
localizáveis.
58
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Esse conceito da Fronteira Natural seria construído a partir da década de 1840
mas teria sua formas mais bem acabadas somente no século XX, quando Jaime
Cortesão, professor de Política Externa do Itamaraty, instituição que financiou a edição
da maioria de suas obras, utilizando a cartografia, construiu uma narrativa da
persistência do conceito da unidade do espaço brasileiro e de sua extensão do Prata ao
Amazonas desde o século XVI.
O cerne dessa construção seria a insistência dos cartógrafos em então representar
uma conjunção geográfica das bacias daqueles rios, o que evidenciaria a existência de
um espaço brasileiro destacado do Continente e que seria definido como a ‘Ilha Brasil’,
num esforço capaz de influenciar tanto a expansão territorial portuguesa quanto,
segundo outros autores,
11
a política externa e a geopolítica brasileira.
Antes que os portugueses e os luso-brasileiros tivessem adquirido a
consciência perfeita da unidade geográfica, econômica e humana que deu
lugar à formação do Brasil, já haviam traduzido esse fato por aquilo a que
nós chamamos o mito da Ilha-Brasil.
12
Assim, o exame do primeiro modelo das cartas gerais nos permite discutir tanto
a construção de uma linearidade histórica da narrativa territorial quanto a conjunção do
conceito de fronteiras naturais com o uti possidetis, especialmente através da construção
de Cortesão.
Para este último, o espaço brasileiro já seria balizado desde o século XVI por um
eixo de representação cartográfica, a ligação das bacias do Prata e do Amazonas, que
destacaria o território brasileiro do restante da América, criando, assim, uma união entre
espaço e território. Para que seja possível discutir esta narração, se faz necessário um
estudo da produção cartográfica do período, que permita discorrer sobre a genealogia e
a disseminação cartográfica dos eixos de representação dessas produções cartográficas.
11
Por exemplo, Demétrio Magnoli. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-
1912). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.
12
Jaime Cortesão. História do Brasil nos velhos mapas v. 1. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1957, p. 339
59
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
As cartas gerais que inscrevem e organizam o espaço da América portuguesa
Ainda que o modelo das cartas gerais da porção oriental da América do Sul
tenha se estabelecido ainda no século XVI e influenciado a produção cartográfica até o
início do século XIX, o eixo de representação cartográfica na maioria das cartas gerais
seria composto por dois marcos geográficos imaginários distintos, que, ao contrário de
destacar certos elementos do espaço, iriam ancorar a organização e distribuição dos
demais elementos estruturais do espaço.
13
O primeiro destes marcos teria como
características principais ser radial e central em relação ao espaço e aglutinador dos
elementos mais destacados, enquanto que o segundo marco seria periférico em relação
ao primeiro marco, separando e balizando os elementos secundários (ver Figura 8).
FIGURA 8 — EIXO DA REPRESENTAÇÃO DO PRIMEIRO MODELO
DE CARTA GERAL
Cartografia: Renato Amado Peixoto.
13
Consultamos, para os estudos feitos a seguir, perto de duas centenas de mapas inclusos nas coleções da
SGDM/BM; CBS (Coleção Banco Santos) e na DRMC (David Rumsey Map Collection).
60
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O primeiro marco geográfico, doravante denominado de marco central, surgiria
ainda no século XVI, sendo pouco representado nas outras cartas gerais até pelo menos
a primeira década do século XVII. Este marco tinha a função de preencher o interior do
território e o seu entorno até o litoral com o prolongamento de dois grandes cursos de
água, o Amazonas e um rio que desaguaria no Estuário do Prata, até uma origem
comum no centro do território, então imaginada como uma montanha ou vulcão (ver
Figura 9, elemento1), um símbolo universalmente relacionado à centralidade.
14
Após a representação do marco central ter se disseminado pelo conjunto das
produções cartográficas, ocorreria uma troca no nível de sua simbolização, com a
passagem de um significado universal para um significado particular, uma vez que a
‘Montanha’ cedeu lugar ao ‘Lago’ (ver Figura 9, elemento 2), no caso, ainda uma
imagem isolada e que não se comunicava com nenhum outro elemento da carta.
15
FIGURA 9 — A TRANSFORMAÇÃO DO MARCO CENTRAL
Esquema: Renato Amado Peixoto.
14
Ver, por exemplo: Giovanni Battista Ramusio, Brasil, 1557; Ruscelli, Girolamo, Brasil nuova tavola, 1573.
15
Por exemplo: Arnold Florent van Langren, Delineatio totius australis partis americae, 1596
61
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A transformação deste marco resultaria da conecção das notícias da existência de
grandes riquezas em ouro e prata no interior da América Meridional, propaladas pelos
aventureiros portugueses e espanhóis da primeira metade do século, como Aleixo
Garcia, Juan de Ayolas, Alvar Núñes Cabeza de Vaca e Domingo Martínez de Irala,
com um mito originário da região andina, a lenda do ‘El Dorado’, tanto que, nesse
sentido, o marco receberia, no final do século, a toponímia de ‘Laguna del Dorado’ ou
‘Dorado’ (ver Figura 9, elemento 3).
16
Segundo a versão mais divulgada desta lenda, que teria nascido em Quito no
começo de 1541, o Rei ou Chefe Dourado mantinha, durante o dia, seu corpo sempre
coberto por pó de ouro, considerado por ele a como a mais bela das vestimentas, a qual
não se compararia com os ornamentos da mesma espécie envergados por seus súditos. O
Rei Dourado reinaria sobre um território muito populoso e rico, situado num terreno
plano no interior do continente, onde não existiriam florestas nem montanhas e em cujo
centro haveria um lago com muitas ilhas, que, sendo considerado sagrado por seus
habitantes, seria o destino final de oferendas rituais compostas de pedras preciosas e
ouro, e em cujas margens estaria situada uma larga cidade com muitas edificações e
estátuas douradas.
17
Portanto, acompanhando tanto a divulgação do Mito quanto os relatos dos
aventureiros, dos quais possivelmente a obra de Cabeza de Vaca foi a mais importante,
a representação do lago, agora denominada de ‘Lago Eupana’, foi ligada a vários rios
que, nascendo em suas águas, desaguariam no Atlântico, e acrescida de várias ilhas e
uma cidade, nomeada como ‘Puerto de los Reyes’,
18
um topônimo verdadeiro existente
na região do alto-paraguai e descrito nos ‘Comentários’ (ver Figura 9, elemento 4).
19
A inclusão desses novos elementos na composição da representação do marco
central, provavelmente estaria ligada tanto à transformação do mito através da
experiência da exploração, de um lugar do ouro para uma civilização do ouro, quanto à
intelecção de se organizar cartograficamente o espaço pela incorporação dessa região às
partes reconhecidas e exploradas da América do Sul.
16
Por exemplo: Cornelis de Jode, Brasiliae et Peruvia, 1593?; Luís Teixeira, s/título, c. 1574.
17
John Hemming, The search for El Dorado. London: Phoenix Press, 2001, p. 110-123.
18
Por exemplo: Petrus Plancius, Meridionalis americae pars, 1600?.
19
Esta obra foi impressa em Madri no ano de 1555. Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, Naufrágios e Comentários. Porto
Alegre: LP&M, 1999, p. 195-200.
62
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Portanto, o marco central tornou-se um ponto axial que não ligava simplesmente
o Prata ao Amazonas, conforme argumentado por Cortesão, mas uma intelecção do
Vazio, o centro do continente, a partir de sua ligação com o espaço reconhecido.
Ainda, somente a partir da primeira década do século XVII, coincidindo com sua
adoção pela ampla maioria das cartas gerais, o marco central passaria a ter a função de
elemento organizador do espaço e distribuidor, não apenas de parte, mas de todo o fluxo
aquático do território que desaguava no Atlântico.
Assim, esta representação do marco central possuiria ainda várias versões até o
final do século, sem que nenhuma delas se tornasse majoritária, uma vez que cada carta
geral, de acordo com a importância do princípio subjetivo na ‘gramática visual’, optava
por ligar o marco central aos cursos de diferentes rios, fossem estes reais ou
imaginários, como por exemplo, nas versões em que se prolongava até o marco central o
rio São Francisco ou um rio que se prolongava a partir da Baía de São Marcos.
20
Portanto, a predominância da representação do marco central na organização do
espaço durante todo o século XVII não se prestou ao enfoque de uma unidade do
território brasileiro, a idéia central de Cortesão, mas a uma diversificação dos espaços e
à necessidade de separar estes espaços uns dos outros, a saber, Assunção, Nova
Andaluzia, Caribana, Paria, Guiana e Guaíra. A necessidade de dispor estes novos
espaços em um território desconhecido, e arrumá-los em uma relação recíproca,
provavelmente foi a lógica da atribuição de novas funções ao marco central, que
passaria a organizar o território através de suas atribuições.
Inclusive, esta representação do marco central enquanto organizador do território
não serviria, até sua decadência no início do século XVIII, para indicar os limites
naturais na delimitação do espaço de um território brasileiro, uma vez que o marco
nunca esteve contido no espaço da América portuguesa, e poucas vezes foi representado
contiguamente a este.
Ainda, a ligação entre a Bacia do Prata e a Amazônica, quando existiu
desconectada de outras ligações, poucas vezes serviria nas cartas gerais para delimitar o
espaço da América portuguesa, uma vez que a diversificação dos espaços nas cartas
gerais a partir de século XVII provocaria uma diminuição do território da América
20
Por exemplo, Jadocus Hondius, América, 1606.
63
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
portuguesa em relação àquele que lhe fora atribuído no final do século XVI, quando
dar-se-ia o apogeu de sua representação, estendendo-se do Amazonas ao Prata.
21
Na primeira metade do século XVII o espaço brasileiro esteve preferencialmente
contido entre o Maranhão e São Vicente,
22
sua menor percepção, principalmente em
razão da expansão do espaço atribuído à Assunção, Guaíra e Missões, caracterizando-se
assim uma competição concorrencial sobre o espaço, para nos cinqüenta anos seguintes
passar a ser percebido através da configuração Tocantins — São Vicente,
23
tornando
somente no século XVIII, através da inclusão do território atribuído à Colônia do
Sacramento, a atingir parcialmente o Prata.
24
As transformações do espaço atribuído à América portuguesa provocaria
mudanças nos espaços contíguos e na sua descrição toponímica: por exemplo, seria
registrada, desde as primeiras cartas gerais, a existência de uma imensa ilha no médio
curso do rio São Francisco, que teria, inclusive a função de marco organizador desse
território (ver Figura 8).
25
Entretanto, quando por volta de 1650, a percepção do espaço
brasileiro se desloca rumo ao centro do continente, as cartas gerais começam a registrar
o deslocamento para oeste tanto do marco central quanto da ilha do São Francisco,
26
provavelmente em razão do reconhecimento e da exploração do interior do Brasil, ainda
que a inclusão da região de Goiás ao espaço brasileiro somente se tornasse
predominante a partir do século XVIII.
27
Vale a pena notar que, paralelamente as transformações das inscrições do
espaço, a atribuição da toponímia ‘Brasil’ predominaria nos períodos que
corresponderia a uma maior extensão do território, nos séculos XVI e XVIII, enquanto
que a toponímia ‘Brasília’ seria utilizada principalmente durante sua menor extensão,
durante o século XVII.
21
Por exemplo: Cornelis de Jode, Brasiliae et Peruvia, 1593?; Arnold Florent van Langren, Delineatio totius australis
partis americae, 1596.
22
Por exemplo: Melchior Tavernier, Carte de l'amerique, 1627; Guiljelmo Blaeu, Paraguay, ó Prov. de Rio de La
Plata, 1640.
23
Por exemplo: John Ogicby, Novissima et acuratissima totius americae descriptio, 1671; Vincenzo Coronelli,
America meridionali, 1692.
24
Por exemplo: T. Jeffreys, South america drawn from the best maps, 1749; Carte tres curiese de la mer du sud,
1750?.
25
Por exemplo: Joan Blaeu, Brasilia, 1642.
26
Por exemplo: Arnold Colom, Zuyder deel van America, 1656?; Nicolas Sanson, Amerique meridionale, 1670?.
27
Por exemplo: Pieter van der Aa & Jean Dominique Cassini, Planisphere terrestre suivant les nouvelles
observationes des astronomes, 1715; , George Matthäus Seutter, Recens elaborata mappa geographica regni
brasiliae in America meridionali, 1740.
64
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Por volta de 1650 ocorreria uma nova mudança na toponímia do marco central:
este passa a ser predominante referido como ‘Lago de Xarayaes’ e a partir do século
XVII quando declina sua importância como marco organizador, esta também se
refletiria na sua designação e na sua simbolização: antes de finalmente desaparecer, no
final do século XVII, seria denominado de ‘Lagunas de Xarayes’
28
, depois representado
pelo símbolo de um pântano,
29
para no século XIX, ser identificado com o Pantanal
mato-grossense.
O segundo marco geográfico, doravante denominado de marco periférico,
surgiria no início do século XVII, portanto, tardiamente em relação ao marco central e
seria situado nas cartas gerais fora do território que se encontrava organizado pelo
marco central, separando a região que este dominava da região mais conhecida, a costa
do Caribe, e servindo como um eixo secundário na construção do território das cartas
gerais. Assim, o marco periférico teria a função de ordenar e preencher a área entre a
Bacia Amazônica e o entorno costeiro do Caribe, subordinando esses acidentes
geográficos.
A genealogia do registro do marco periférico acompanharia em várias
características o marco central, sendo representado também como um ‘Lago’
30
e
também ligado ao mito de um lugar do ouro, para depois adquirir elementos que
permitissem adaptá-lo para o mito da civilização do ouro. Nesse sentido, o marco
periférico receberia, inicialmente, a toponímia de ‘Manoa’ e depois de Parime (também
Parima ou Torime), sendo-lhe agregado o elemento humano através da inscrição de um
núcleo urbano denominado de ‘Manoa’ ou ‘Dorado’.
31
Entretanto, o que diferenciaria o marco periférico do marco central é que sua
representação se tornaria mais freqüente e mais elaborada na medida em que se
acentuava a decadência da representação do marco central, provavelmente podendo
indicar uma transferência de significados entre os dois eixos de representação das cartas
28
Por exemplo: Nicolas de Fer, L'Amérique Divisée, 1705; Giovanni Battista Albrizzi, Carta geografica del Bresil,
1740.
29
Por exemplo: Nicolas de Fer, L'Amerique Meridionale et setentrionale, 1717; Carte tres curiese de la mer du sud,
contenant des remarques nouvelles et tres utiles non seulement sur les port et iles de cette mer, mais aussy sur les
principaux pays de l'amerique tant septentrionale que meridinale, 1750?.
30
Por exemplo: Gerhard Mercator, America meridionalis, 1606; Nicolas Visscher, Orbis terrarum tabula recens
emendata et in lucem edita, 1679.
31
Por exemplo: Guillaume Sanson & Alexis-Hubert Jaillot, Mappe monde, c. 1700; Guillaume de L'isle, America
meridionalis, 1718.
65
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
gerais, uma vez que o marco periférico ainda continuaria a ser representado nas
produções cartográficas do século XIX (ver Figura 10).
FIGURA 10 — TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADOS DO MARCO CENTRAL
PARA O MARCO PERIFÉRICO’
Os elementos selecionados foram aumentados entre cinco e seis vezes de seu tamanho original. Fonte: ‘Cart
a
D’Anville’, 1748.
Portanto, o marco central e o marco periférico seriam ‘elementos aglutinadores’
das cartas gerais do primeiro modelo, uma vez que havia a necessidade de construir o
Vazio para que fosse possível organizar e ordenar o conhecido: mapear o vazio era um
exercício que estabelecia as relações entre o imaginado e o conhecido.
No processo de composição destas cartas gerais, o imaginado era inscrito no
matematizado, pois, se o Vazio existia no interior do território, o espaço reconhecido do
exterior possuía, muitas vezes, formas e coordenadas que penetravam e se ramificavam
para o interior, por conseguinte, o imaginado e o conhecido tinham de ser ajustados
através da intelecção do espaço.
Nesse sentido, as explorações e os mapeamentos permitiam complementar ou
reordenar a rede de conhecimentos e reconhecimentos superpostos que os eixos de
representação permitiam sustentar, aliás, num procedimento bastante similar às técnicas
aerofotogramétricas utilizadas pela engenharia cartográfica, a saber, a superposição de
66
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
planos fotográficos sucessivos, que serão depois unidos por eixos ou pontos cujas
coordenadas geográficas foram previamente determinadas.
Portanto, o registro do espaço no primeiro modelo das cartas gerais não foi
inteiramente subordinado à exploração do território, mas, muitas vezes antecedeu a esta,
sendo que, inclusive, os dados geográficos obtidos foram transformados ou
compreendidos em função do imaginado.
As cartas gerais inseridas no esforço de constituição do Estado e suas estruturas
técnicas e elementos gráficos.
O protótipo deste novo modelo de carta geral foi a ‘Carta da Nova Lusitânia’,
32
através da qual se podem entender certos padrões destas representações. Este mapa foi
produzido sobre os dados recolhidos pelas Comissões Demarcatórias do tratado de
1777, visando concorrer com o ‘Mapa Geográfico de América Meridional’, composto
em 1790 por Juan de la Cruz Cano y Olmedilla, num momento em que já se sugeria a
transferência da sede do Império português para a América, projeto este que foi
sistematizado na década de 1790 e apresentado formalmente por D. Rodrigo de Sousa
Coutinho à Corte portuguesa em 1803.
33
A carta da Nova Lusitânia seria então
produzida por ordem de D. Rodrigo, Ministro e Secretário de Estado da Repartição da
Marinha e Domínios Ultramarinos, num enquadramento que permitia a compreensão de
todo o espaço brasileiro e sugeria sua unidade territorial.
Nesta carta, a utilização da perspectiva se impõe, uma vez que o território é
representado através da visão do ultramar: um olhar a partir do exterior que se insere no
interior do espaço. Esta inserção se manifesta pelo exagerado dimensionamento no
mapa da rede hidrográfica, que adquire um destaque superior a qualquer outro elemento
gráfico da carta, numa arranjo capilar e uniforme que alcançava todos os pontos do
território mapeado e que sugeria o deslocamento, a penetração e a capacidade de
distribuição do espaço.
Esta perspectiva seria ainda intensificada na carta pelo prolongamento do Mar
do Norte até as costas de Pernambuco, criando uma idéia de contigüidade espacial e de
32
Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, 1798.
33
A respeito dos projetos de transferência, ver Maria de Fátima Silva Gouvêa, ‘O Senado da Câmara do Rio de
Janeiro e o projeto Imperial Luso-Brasileiro, 1750-1820’, in Maria Helena Carvalho dos Santos,
Do tratado de
Tordesilhas (1494) ao tratado de Madri (1750). Lisboa: Sociedade portuguesa de estudos do século XVIIII, 1997,
p. 229-238.
67
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
proximidade com a Metrópole, além de apontar o condicionalismo geográfico do
Atlântico que tornava, no tempo da navegação à vela, o Pará e o Maranhão mais
acessíveis à Europa do que o resto do Brasil, fazendo, por exemplo, através das
dificuldades da navegação costeira que a viagem do Ceará à Paraíba pudesse demorar
setenta e cinco dias.
34
FIGURA 11 — ESQUEMA DA 'CARTA DA NOVA LUSITÂNIA'
Cartografia: Renato Amado Peixoto - esquema utilizando coordenadas e elementos
geográficos atuais. Fonte: Antonio Pires da Silva Pontes Leme,
Carta da Nov
a
Lusitânia, 1798.
Nesse sentido, para se endossar o sentido de proximidade e absorção dessa área,
utilizar-se-ia o recurso de registrar a Barra do Pará num quadro menor adjacente à
representação do Mar do Norte (ver Figura 11). Assim, somente na parte inferior
esquerda da carta seriam registrados os outros portos: a Bahia de todos os Santos, o Rio
Grande e o Rio de Janeiro, compondo uma série de pequenos mapas sobrepostos ao
34
Max Justo Guedes, ‘As primeiras expedições de reconhecimento da costa brasileira’, in História Naval Brasileira
v. 1 tomo I. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha. 1975, p. 204-205.
68
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
corpo da carta, que em sua soma revelam a intenção de representar tanto a receptividade
do espaço quanto os interesses comerciais da Metrópole.
As necessidades dos interesses mercantis, do movimento dos negócios e da sua
organização teriam ainda sua importância assinalada através de uma abundância de
símbolos como minas, registros e caminhos, pela delimitação das divisas das Capitanias,
claramente assinaladas, e pela intenção do registro minucioso da representação,
mensuração e qualificação da presença humana em cidades, vilas, freguesias, lugares,
sítios e ruínas.
Mas, mesmo que houvesse uma vontade de se consolidar a demarcação interna,
a carta da Nova Lusitânia não visava delimitar os limites externos: estes não são
registrados, fosse na Amazônia ou no Prata, embora o limite militar português e suas
unidades, as fortalezas, os fortins, as guarnições, estivessem gravados no território. Por
exemplo, a carta não registrava claramente a extensão da área da Guiana portuguesa,
mas, não falhava em apontar a existência de um quartel português no Oiapoque. Da
mesma maneira, certos territórios dentro do movimento mercantil mas além do limite
militar não seriam mapeados, nem registrados como parte de outros espaços
concorrentes, como, por exemplo, a área a oeste do rio Madeira, que seria ocultada
convenientemente sob uma rosa-dos-ventos (ver Figura 11).
Ainda, por conta de legitimar e divulgar um produto cartográfico em que se
buscava representar, pela primeira vez, o conjunto de um território descontínuo e sem
rigidez, os autores da carta da Nova Lusitânia necessitariam de buscar respaldo num
recurso comum da retórica da época: a argumentação da autoridade — num extenso rol,
junto aos créditos técnicos, foram citados todos aqueles que, segundo os autores,
endossariam o mapa, sob o título de “Tábua das autoridades que abonam esta carta”.
Portanto, a carta da Nova Lusitânia estabeleceu os padrões das cartas gerais que
surgiriam a partir do Tempo Saquarema: a inscrição horizontal do Estado no espaço se
daria através de enquadramentos que servissem à unidade, à compreensão do território e
à apresentação de determinadas estratégias, enquanto que sua verticalidade, seria
inscrita através de certos elementos e técnicas gráficas, que consolidariam a
representatividade do binômio Ordem e Civilização, como, as citações da tradição e da
autoridade, a determinação de perspectivas, e a inscrição de marcos narrativos.
Os enquadramentos seriam responsáveis, em primeiro lugar, por induzir a uma
referenciação da compreensão do território a partir da determinação da unidade. Nesse
sentido hierárquico, se buscaria representar a organização do território em partes
69
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
subordinadas ao todo, tanto por meio de iniciativas de uma redivisão voltada para a
funcionalidade
35
quanto pela ênfase na integração, utilizando-se para este efeito, de
recursos técnicos como o colorido
36
dedicando, por exemplo, uma cor para cada
Província, sem que fossem utilizadas linhas para registrar os seus limites e o tracejado,
quando os limites eram indicados por linhas quebradas, descontínuas, sugerindo tanto a
possibilidade de ultrapassagem quanto de subordinação.
Portanto, a importância da representação e estabelecimento das fronteiras
internas estaria relacionada à representação das ‘relações de força’ e da centralidade,
que será abordada em outro capítulo.
Em segundo lugar, o enquadramento serviu como suporte para determinados
objetivos estratégicos específicos, uma vez que era uma estrutura técnica responsável
por destacar, adicionar ou relacionar um enfoque à representação do espaço, por
exemplo, restringindo e contendo um espaço concorrente, como foi o caso do
enquadramento da ‘Nova carta corográfica’ de 1857, confeccionada por ordem do então
Marquês de Caxias para contrapor-se às construções de espaço concorrenciais do
Paraguai.
37
Outro objetivo estratégico onde o enquadramento serviu como suporte foi o da
utilização pedagógica do mapa para a divulgação da construção do espaço, como, por
exemplo, o ‘Atlas do Império do Brasil’ de Cândido Mendes, destinado à instrução
pública e que utilizou o enquadramento para projetar em seu mapa do território do
Império, de uma só vez, todas as construções de limites mais benéficas ao Brasil,
resultando, assim, em tornar-se a representação do espaço nacional mais dilatada do
século XIX.
Ainda, poder-se-ia incluir nestes exemplos, outro caso da utilização pedagógica
do mapa para a divulgação da construção do espaço para um público específico, que foi
a ‘Carta do Império do Brasil’,
38
confeccionada para ser apresentada e distribuída em
1873 na Exposição Universal de Viena.
35
Por exemplo: Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘O Brasil em 19 departamentos’, in Memorial Orgânico, Rio de
Janeiro: s/editor, 1849.
36
J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.
37
Estas pretensões espaciais podem ser estudadas por meio na carta composta por Alfredo M. du Graty, Mapa de la
Republica del Paraguay, 1861.
38
Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.
70
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O enquadramento das cartas gerais também pode ser analisado em relação aos
seus ‘elementos gráficos’, especialmente no que diz respeito a sua utilização e
dispersão: nesse sentido, se daria uma produção de subordinações e de relações de
pertencimentos da simbolização cartográfica cujo deslocamento de significado seria
referido às mudanças na constituição do Estado e na sua relação com o espaço.
Assim, a construção de uma categoria hierárquica dos símbolos e sua aplicação
indistinta sobre a totalidade do território, possui a função de homogeneizar, espalhar
igualmente a civilização, como, por exemplo, a categorização da representação do
povoamento humano em um só grupo bastante abrangente e possível de ser aplicado em
qualquer área, como, por exemplo, Cidade / Vila / Povoação / Aldeia / Fazenda /
Estabelecimento, impondo-se uma mesma categorização sobre regiões tão distintas
entre si como, por exemplo, a Província do Rio de Janeiro e a Província do Mato
Grosso.
Deste modo, a homogeneização da simbolização sobre o território remeteria à
necessidade de extirpar o que não pudesse ser inventariado, compreendido ou
considerado excêntrico, por conseguinte, excluído esses elementos da representação, o
que, paradoxalmente, levou ao aumento do registro do desconhecimento nas cartas e à
subseqüente necessidade de classificá-lo.
Portanto, esse novo e aumentado vazio seria, doravante, um dos lugares
privilegiados da inscrição da Ordem e da Civilização através do registro de elementos
gráficos representativos do controle, da mensuração e da quantificação, produzindo-se o
detalhamento do vazio, ou melhor, de um desconhecimento proporcionalizado e
descritível. Assim, o desconhecimento era inscrito textualmente no mapa na direção de
seu exterior, ou seja, do mais conhecido, a Ordem, para seu interior, o desconhecido, a
Desordem, como no caso, pode ser percebido através desta descrição da região do rio
Javari:
“As nascentes destes rios são muito duvidosas.”
“Terrenos inteiramente desconhecidos e habitados por índios ferozes.”
“Os rios e suas vertentes são conhecidos apenas por vagas informações.”
“Terrenos desconhecidos.”
39
39
Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.
71
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Assim, o registro dos elementos que representavam os agrupamentos humanos e
a presença do Estado e de suas instituições, relaciona-se à lógica da própria
verticalização do Estado, da sua centralização e organização e do aumento do controle
do Estado sobre a sociedade e seus recursos.
Ainda, o registro da presença humana se tornaria progressivamente mais
complexo, diferenciando-se dos símbolos simples relativos à representação de suas
atividades nas primeiras cartas gerais do século XIX, no caso, as vilas / capelas /
caminhos,
40
até lançar-se mão do recurso de quadros estatísticos e descritivos para
inscrever-se a presença do Estado em suas diversas grandezas, como, no caso, da
utilização de tabelas com as correlações Província / Comarca / Município; Senadores /
Deputados / Deputados Provinciais; Rendimentos anuais / Produtos de exportação.
41
Também, as relações de ordenação e subordinação se tornariam cada vez mais
explícitas, como, por exemplo, População livre / População escrava; Rendimento geral /
Rendimento provincial / Rendimento municipal, juntamente com a personificação do
Estado através de suas instituições, como, por exemplo, Armada: quantitativo;
Comércio e Finanças: demonstrativo.
42
Enquanto parte da construção da nação e da nacionalidade, a historicidade do
espaço seria construída nas cartas gerais através da utilização de técnicas retóricas como
a citação da tradição ou da autoridade. No primeiro caso, criar-se-iam símbolos
compostos através de sua junção com notas disponibilizadas em encartes fora do
enquadramento da carta ou sobre mesmo sobre o mapa, como, por exemplo: [(linha de
limites com a Guiana Francesa) + (“Limite de Carlos V em 1548”)],
43
ou, [(Linha de
Tordesilhas) + (“meridiano primitivo de demarcação”)].
44
No segundo caso, seria
utilizada uma combinação de elementos gráficos visando induzir ao contraste e à
comparação, seja através da intensificação, como, por exemplo, através da utilização da
cor vermelha para destacar a que era então considerada a melhor alternativa dentre
vários elementos registrados, seja pela qualificação, por exemplo, combinando o
40
J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.
41
Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.
42
Pedro Torquato Xavier de Brito, Nova Carta Chorografica do Império do Brasil, 1867.
43
Pedro Torquato Xavier de Brito, Nova Carta Chorografica do Império do Brasil, 1867.
44
Antonio Adolfo de Varnhagen, Mapa do Brasil e territórios limítrofes, 1854.
72
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
elemento gráfico com expressões denotativas de autoridade: “fronteira segundo”,
“demarcada em conformidade com”, “proposta por”
45
.
Portanto, a retórica seria um estilo da ‘gramática da linguagem’ que, utilizada no
debate do ‘saber sobre o espaço’, seria incorporada à ‘gramática da visão’, no caso,
compondo-se o que denominaremos de elementos narrativos.
Outro recurso utilizado para compor a historicidade do espaço foi a inscrição dos
vestígios da tradição através dos elementos narrativos: a simbolização das ruínas e do
abandono proliferou em todas as cartas gerais do período, construindo a idéia de
pertencimento e ligação a uma ancestralidade merecedora de culto. Neste sentido, os
símbolos da presença humana tiveram, muitas vezes, acrescentada ao registro de sua
toponímia, a data da presença ou do estabelecimento do europeu no território,
resultando, portanto, num recurso através do qual se construía o pertencimento histórico
do espaço. Também seria registrada a reincorporação do território, como, por exemplo,
“rio Pirapó descoberto pela segunda vez em 1852”,
46
significando a recuperação do
espaço a um patrimônio da Civilização.
Por sua vez, o recurso à tradição seria utilizado ainda em casos específicos, por
exemplo, no caso de se visar alguma estratégia particular, como, a de querer atribuir-se
determinada área litigiosa ao espaço brasileiro: nesse sentido era empregada a citação de
outros produtos cartográficos e narrativas geográficas como reforço da argumentação,
sendo estas citações geralmente disponibilizadas em forma de lista nas bordas da
carta.
47
Em relação à perspectiva, a organização e a centralização do Estado faria com
que, progressivamente, o Rio de Janeiro se tornasse o centro das projeções e, passasse a
referenciar o enquadramento das cartas gerais. Desta maneira, para que a posição do Rio
de Janeiro se tornasse mais proeminente na representação do espaço, as partes do
território consideradas excêntricas em relação a este novo enquadramento seriam muitas
vezes preteridas na delimitação do território a ser mapeado, por exemplo, no ‘Mapa
Geral do Império do Brasil’,
48
a Amazônia Ocidental não seria registrada no
45
Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho, Carta geográfica de uma parte do Império do
Brasil, 1856.
46
Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.
47
Por exemplo: Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho, Carta geográfica de uma parte do
Império do Brasil, 1856.
48
J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.
73
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
enquadramento do território brasileiro, mas, isolada em um quadro no canto da carta,
incompleta e em uma escala completamente desproporcional a seu tamanho real.
49
Em contrapartida, planos topográficos da cidade do Rio de Janeiro seriam quase
que onipresentes nos mapas em geral, com sua posição e tamanho muito destacado em
relação ao conjunto do território mapeado (ver Figura 12).
FIGURA 12 — ESQUEMA DE UMA CONSTRUÇÃO
DA CENTRALIDADE DO RIO DE JANEIRO
Cartografia: Renato Amado Peixoto, esquema de J. D'Anvilliers de
L'Ile Adam,
Mapa geral do Império do Brasil, 1851
Ainda em relação à construção da centralidade do Rio de Janeiro nas cartas
gerais, haveria uma tendência após 1850 em definir essa cidade enquanto origem das
coordenadas de todo o sistema cartográfico e não apenas do espaço brasileiro.
49
J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.
74
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Até a década de 1850, o meridiano inicial das cartas, era representado por outros
referenciais brasileiros, como a cidade de Belém
50
e o cabo de Santo Agostinho
51
, ou
por referenciais estrangeiros, como Paris
52
e a Ilha do Ferro, entretanto, a partir de 1857
o meridiano do Pão de Açúcar na cidade do Rio de Janeiro finalmente se impôs como a
única referência dos mapas brasileiros (ver Figura 12).
A estandardização do meridiano
inicial nos mapas brasileiros significa não só a criação de um marco organizador da
periferia, mas, também do próprio centro, que pela intervenção do Estado sobre o
espaço integrava em si os dois eixos de representação, a Ordem e a Civilização.
53
Por último, para complementar a inscrição do Estado no território, seriam ainda
utilizados determinados elementos narrativos que denominaremos de elementos
narrativos mistos, compostos pela sobreposição em uma determinada área mapeada de
um conjunto de símbolos e elementos cartográficos.
Primeiramente, estes elementos gráficos registrariam as intervenções e
estratégias de ocupação e expansão do espaço pelo Estado, tais como: interesses
comerciais, explorações e projetos de estabelecimento de comunicações. Assim, por
exemplo: a expressão “Estrada projetada em 1860 pelo Major Pedro Torquato Xavier de
Brito”,
54
seria representada conjuntamente a uma linha tracejada formando um único
elemento gráfico, que ocupava o espaço entre as cidades de Miranda e Curitiba.
Em segundo lugar, os elementos narrativos mistos complementariam a
demarcação da centralidade do Estado e inscreveriam no território o seu controle e a sua
verticalidade. Os registros ligados à ‘manutenção de uma Ordem’ e à ‘difusão da
Civilização’ fariam parte de um processo de organização do centro e de descrição da
periferia como ato correlato da construção das ‘relações de força’ e das ‘relações de
soberania’ no Estado, onde a substituição da natureza pela civilização e do vazio pelo
desconhecimento se caracterizaria também por uma sucessão do ‘bárbaros’ pelo
‘selvagens’.
50
Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘O Brasil em 19 departamentos’ in Memorial Orgânico, Rio de Janeiro: s/editor,
1849.
51
Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘Mapa do Brasil e territórios limítrofes’, 1854.
52
Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho, Carta geográfica de uma parte do Império do
Brasil, 1856.
53
Veja-se a Figura 11 e compare-se com o caso da França, segundo Febvre, onde se relaciona a ênfase na construção
da centralidade de Paris com a constituição e o aperfeiçoamento do Estado: “No século XVI, a França tem uma
cabeça reconhecida como tal: uma ‘capital’, objeto de orgulho de todos os franceses.” Ver: Lucien Febvre,
Honra
e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 186.
54
Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.
75
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nesse sentido, podemos entender que no primeiro modelo das cartas gerais, o
espaço da América portuguesa foi organizado em meio e à volta dos espaços atribuídos
aos ‘bárbaros’. Estes eram locais referenciados pelas trocas e impedimentos com suas
próprias dinâmicas locais, que transpassava e se interrompia o território da Metrópole,
em acordo com a impossibilidade da fixação e da posse efetiva da área pelo Europeu,
um “país incógnito e habitado por várias nações de gentios,”
55
cuja descrição
sincronizava-se com a natureza: “É país quase que só conhecido ao longo do Madeira e
vizinhanças do Amazonas ou Solimões”.
56
Já no segundo modelo das cartas gerais, os novos elementos narrativos
inscreveriam o selvagem em um território cada vez mais delimitado, como, por
exemplo, o espaço do “Gentio Cherente muito feroz,” seria cercado no mapa por
elementos cartográficos que induzem à percepção do confinamento em uma área,
geralmente denominada de ‘Sertão’ ou registro equivalente, produzindo um composto
que poderia ser também representado menos ambiguamente, por exemplo, na expressão
“Sertão do gentio Tupinanbá”.
57
Portanto, o ‘bárbaro’ a quem pertencia a um Vazio descritível seria sucedido
pelo ‘selvagem’ descrito por uma oposição ao controle e à produção que o impedia de
se unir à Ordem e de onde somente se esvaia para destruir, invadir, se chocar contra a
Civilização, como no caso, registrado nos marcos narrativos: “Terrenos infestados pelos
índios Botocudos,”
58
e “Sertões inteiramente desconhecidos e ocupados por índios
ferozes.”
59
Portanto, a percepção do espaço nas cartas gerais não remeteria a um espaço
estático, imóvel e natural, mas a uma dinâmica cartográfica e a uma caracterização da
nação que iria, em sua discussão, situar o Estado através da ação dos indivíduos
comprometidos com sua constituição, os quais definem politicamente o espaço e o
inscrevem através de suas iniciativas: na luta de representações e na reelaboração
contínua das ‘relações de força e soberania’ é que se construirá uma historicidade das
fronteiras.
55
Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, 1798.
56
Manoel Ayres de Casal. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Brasil — Coleção de Obras Raras,
tomo II). São Paulo: Edições Cultural, 2ª Edição, 1943, p. 241.
57
Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.
58
Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.
59
Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.
76
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
5 — RISCANDO O PASSADO: A COMPOSIÇÃO CARTOGRÁFICA E A
INSCRIÇÃO CARTOGRÁFICA DO ESTADO.
Nosso primeiro objetivo neste capítulo é procurar demonstrar que o exercício da
cartografia se constituiu a partir do desenvolvimento de um certo senso estético e de
uma determinada perspectiva. O exercício cartográfico, por conseguinte, deve ser
entendido como uma composição que envolve modelos e estilos, cada qual com seus
princípios e limitações.
O segundo objetivo deste capítulo, em decorrência do primeiro, é mostrar que a
inscrição cartográfica do Estado brasileiro foi condicionada pelos princípios e
limitações da composição cartográfica.
Como terceiro objetivo, procuraremos indicar que a narrativa espacial da Nação
e a história das suas fronteiras, utilizar-se-iam da cartografia e das idéias constituídas
em torno do exercício cartográfico.
Portanto, entendemos que a inscrição cartográfica do Estado foi feita sobre um
espaço previamente naturalizado e constituído, assim a representação do espaço
nacional insere-se numa relação necessariamente dinâmica e também histórica com a
cartografia.
Nesse sentido, a historiografia utilizaria os mapas e as narrativas geográficas
para estabelecer uma historicidade cartográfica do Estado e assim possibilitar a projeção
do presente no passado, inscrevendo e descrevendo o antigo com a semântica do
moderno.
Contudo, persistiria uma ambigüidade ligando o tempo e o espaço que poderia
ser expressa através da compreensão do exercício cartográfico no setecentos: para estes
cartógrafos, a expressão ‘riscar mapas’ e ‘riscar paisagens’ eram quase que
equivalentes, pois a observação da natureza estava compreendida num exercício que
compreendida tanto a cartografia quanto a corografia. ‘Riscar mapas’ podia significar,
por conseguinte, atividades paralelas ou sucessivas, mas que, antes de tudo, eram
convergentes e que inscreviam um determinado olhar, uma certa ‘gramática da visão’.
Entretanto, a cartografia do século XVIII conheceria a ascensão de uma
cientificidade que afastaria paulatinamente antigos procedimentos para colocar em seu
lugar novos padrões e rotinas que restringiriam a possibilidade do cartógrafo de
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
enunciar e de ordenar as construções do Espaço: ‘Riscar’ passaria a significar, para o
cartógrafo do século XIX, esboçar sobre o espaço que em suas linhas gerais já estava
concebido no grande espaço epistemológico do Estado, ou, simplesmente, apagar e
eliminar o que fora anteriormente constituído, tornando possível ‘riscar’ novamente
sobre o mesmo espaço.
Assim, para que seja possível entender a inscrição do Estado através da
historiografia do século XIX é necessário perscrutar, primeiramente, os contextos, as
contingências e as limitações históricas do processo de mapear, que, para este estudo,
importam tanto quanto o exame do produto final, pois é na elisão dos seus termos que se
risca o espaço do Estado. Depois, ainda será preciso definir certas transformações das
idéias de espaço, para, finalmente tentar conectar os dois termos na construção narrativa
e cartográfica.
Entendemos, por conseguinte, que Perspectiva e Estética se tornariam, conceitos
centrais e definidores dos antigos e modernos lugares de representação do Espaço e
mesmo de sua compreensão, podendo ser associados a esses conceitos conforme foi
formulado teoricamente por Denis Cosgrove no interior da idéia de Paisagem.
1
Para Cosgrove a idéia de Paisagem remeteria à constituição de um produto
cultural complexo resultante da formação histórica social e que implicaria numa
construção mediada pela experiência humana subjetiva: a representação da natureza
emergiria de circunstâncias específicas que estariam sujeitas aos usos práticos do
mundo físico, os quais remontariam a uma tradição cultural.
Assim, a Paisagem seria tanto um resultado da experimentação visual da
natureza quanto um produto de sua transformação, que seriam articulados estética e
tecnicamente num processo contínuo e historicizável.
A idéia de Paisagem surgiria na Pintura num período histórico específico, o
Renascimento, e numa região determinada, a Itália, como um gênero artístico particular,
fruto das mudanças sociais e produtivas e que seria por estas continuamente afetado e
transformado.
Dentre as várias técnicas utilizadas então para o controle do espaço visual, como
a proporção ou a cor, a Perspectiva surgiria e se consolidaria na opinião dos artistas
renascentistas como a sua mais importante descoberta (ver Figura 13). Nesse sentido,
1
Denis E. Cosgrove, Social Formation and Symbolic Landscape. Madison, Wiscosin: The University of Wiscosin
Press, 1998.
78
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
através da experimentação, e tendo como principal objetivo o controle do espaço, a
representação do mundo através da perspectiva se transformaria, culturalmente, de uma
técnica artística numa propriedade específica do espaço.
FIGURA 13 —_ EXERCÍCIOS DE PERSPECTIVA
Fonte: Chandra Mukerji, Territorial Ambitions and the
Gardens of Versailles. Cambridge: Cambridge University
Press, 1997, p. 89.
Ainda, a manutenção e a propagação de um determinado sentido da Perspectiva
e de sua forma associada à Paisagem, seria definida pelo valor estético, o qual estaria
intrinsecamente ligado à constituição de um Mercado onde os produtos resultantes dessa
técnica seriam comercializados e à sua mediação das diferentes ligações psicológicas
entre a Arte e o Espectador.
79
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A constituição da Perspectiva centralizada e organizadora do ponto de vista do
observador, instrumentalizaria na Paisagem a possibilidade de utilização de diversos
controles sobre o objeto a ser representado, como por exemplo, os da passagem ou da
idealização do tempo, compostos através da subordinação ou composição de elementos
para influenciar tanto a significação quanto a apropriação individual e coletiva. Para
isto, ainda que estivesse aparentemente relacionada apenas a uma centralidade do
observador e ao processo de experimentação individual, a Perspectiva estava sujeita,
mais profundamente, ao concurso do aprendizado, da associação e da aceitação, ou seja,
o artista e o espectador participariam da transmissão e apropriação dos processos
culturais e sociais em circuitos de uso, troca e significação, a partir do que o produto
artístico deve ser considerado como um elemento da cultura material do período
histórico contemplado.
Portanto, a organização, a produção cartográfica do espaço e a subseqüente
inscrição do Estado no espaço, estavam não apenas sujeitas aos ordenamentos sociais e
políticos mas refletiria continuamente as relações entre o desenvolvimento dos
processos técnicos relativos à perspectivação do objeto, como a escala, a projeção ou o
enquadramento; e as transformações estéticas, relacionadas tanto às transformações
epistemológicas do saber cartográfico quanto às demandas de um mercado no qual as
cartas e mapas estavam incluídos enquanto produtos da cultura material.
A historicidade dessa interação corresponderia diretamente às tentativas de situar
o Estado através de uma determinada Perspectiva onde a cartografia e as narrativas
geográficas do espaço significariam, para certos indivíduos, tanto um modo de ver, de
representar e de classificar a si mesmos e aos outros, quanto de representar o seu mundo
e o seu relacionamento com este.
Neste sentido, a objetivação da Perspectiva desdobrar-se-ia nas narrativas
geográficas e na cartografia através de técnicas literárias e de recursos gráficos
tornando-se possibilitadora e divulgadora de uma ‘gramática da visão’ constituída a
partir de um ‘saber sobre o espaço’.
80
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A inscrição cartográfica do estado e a composição cartográfica
Certos produtos elaborados a partir do ‘saber sobre o espaço’, os mapas e as
corografias, colaboraram para a narrativa espacial da Nação e para a construção de uma
história das fronteiras. Estas construções historiográficas e mitológicas se constituíram
de um modo difuso, porém consistente, durante mais de cem anos, desde Varnhagen,
passando por Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Rio Branco e outros, até se
completar magistralmente em Jaime Cortesão, quando o esforço de inscrição
cartográfica do Estado seria fundido com uma ‘mitologia do espaço’:
Os engenheiros setecentistas [se] beneficiavam em larga escala
duma tendência vital e fundo cultural, herdados [...] Visa um objetivo
político e ardentemente nacional. Todos esses engenheiros constróem
conscientemente um Estado — o Brasil. Medem-lhe a grandeza pelo
padrão continental. Circundam-no de fossos e fortalezas, que possam
enfrentar vitoriosamente as investidas espanholas. São e sentem-se Titãs.
2
Deste modo, a unidade territorial e o espaço nacional possuiriam suas origens
ainda no século XVIII, decorrendo da inscrição e da adaptação da Nação a um espaço,
idealizado, desejado e possuído, resolvidas por uma fórmula que reunia a saída de um
espaço diminuído, um legado original delimitado pelo Tratado de Tordesilhas, para a
penetração num território primitivo e virgem, cuja justeza da posse seria reconhecida
através do Tratado de Madri. Mais do que uma conquista, essa posse era fruto de um
fluxo que gerou não apenas a força do desbravador mas também o gênio do especialista
e a sedução do diplomata, qualidades que germinariam na terra brasileira, crescendo
através da comunhão do indivíduo com a terra.
No entanto, o cerne da argumentação de Jaime Cortesão, o exemplar mais bem
acabado da narrativa do espaço nacional, se baseia na idéia da competência do saber
matemático e cartográfico português, enquanto a quase totalidade dos autores
2
Note-se que estes engenheiros eram militares, fruto, segundo Cortesão, de um esforço dirigido pelo Estado no
sentido de incentivar o desenvolvimento da cartografia no exército durante o século XVIII. Jaime Cortesão,
O
Tratado de Madrid. Ed. fac-similar, v. 1. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 319-320.
81
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
portugueses
3
considera que, após um período de florescimento no século XVI, a
matemática portuguesa teria entrado num período de decadência.
Este período, seria, inclusive, caracterizado por alguns autores, como um
‘deserto’, perdurando até 1760, quando novamente cresceria até atingir algum nível, a
partir da reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Ainda segundo essa mesma
bibliografia, essa decadência teria várias causas, como, a predominância dos jesuítas na
Educação secundária e universitária; os privilégios concedidos à formação jurídica em
detrimento do estudo técnico e a atitude mental e cultural predominante em Portugal no
período, que opunha os interesses religiosos e políticos então predominantes às
inovações científicas.
Tal situação corroboraria a situação de penúria extrema da cartografia
portuguesa no século XVIII, que carecia de meios, pessoal e mesmo de obras: a própria
cobertura topográfica e cartográfica de Portugal era extremamente reduzida se
comparada a de outros países, como, por exemplo, a França, somente tendo se
implementando a partir de 1851, quando se criaram as condições de consenso político e
estabilidade institucional que permitiriam aprofundar os esforços de modernização e de
consolidação territorial do Estado.
4
Ainda em 1780, segundo a análise do mais capacitado engenheiro português da
época, Francisco João Rocio, muito pouco do que se havia produzido sobre o território
da Metrópole podia ser elevado à condição de Mapa, e mesmo assim, grande parte deste
esforço se deveu ao empenho da iniciativa privada. Segundo Rocio, somente teriam sido
convenientemente cartografadas certas propriedades rurais e algumas partes do Alto
Douro e das margens do Tejo, regiões econômica ou politicamente mais importantes, e,
com a importante ressalva destes registros terem sido feitos sobre um “terreno limpo,
cultivado e ocupado”, ou seja, em áreas que ofereciam menores dificuldades técnicas.
5
3
Veja-se o estudo de João Filipe Queiró, ‘A Matemática’, in História da Universidade em Portugal v. I, Parte II
(1537-1771), Lisboa: Fund. Gulbenkian, 1993, no qual são citadas as seguintes obras sobre a história da
matemática em Portugal: ‘Ensaio histórico sobre a origem e progressos das Matemáticas em Portugal’, de
Francisco de Borja Garção-Stockler, editada em Paris, no ano de 1819; ‘Memórias históricas sobre alguns
Matemáticos Portugueses, e Estrangeiros Domiciliários em Portugal, ou nas Conquistas’, de Antônio Ribeiro dos
Santos; ‘Les Mathématiques en Portugal’, editada em Coimbra, no ano de 1909, de Rodolfo Guimarães; ‘História
das Matemáticas em Portugal’, de Francisco Gomes Teixeira, editada em Lisboa, no ano de 1934); ‘Memórias de
Literatura Portuguesa’, publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa, tomo VIII, parte I, 1812, p. 148-
229; ‘Matemática e matemáticos em Portugal’, de Luís de Albuquerque e ‘As Matemáticas em Portugal - da
Restauração ao Liberalismo’, de J. Tiago de Oliveira.
4
Rui Miguel C. Branco, O mapa de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 13.
5
Ver ‘Resposta à consulta de D. Maria I ao Ten. Cel Eng. Francisco João Rocio em 29/08/1780’ IHGB, lata 69,
documento 8; ‘Tratado preliminar de limites entre Portugal e Espanha, correspondência dos vice-reis Marquês do
Lavradio e Luiz Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal.’ IHGB, Lata 110, Pasta 7.
82
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Além disto havia uma grande carência de pessoal capaz de realizar no campo os
cálculos e as observações necessários aos levantamentos cartográficos, a saber,
engenheiros, geógrafos e astrônomos. Especialmente no que se refere aos últimos, este
problema pode ser exemplificado pela dificuldade na arregimentação de astrônomos
para a demarcação dos limites referentes ao Tratado de Madri: os estrangeiros ocuparam
então a grande maioria dos cargos técnicos e, inclusive, de comando, isto, saliente-se,
numa empresa de extrema importância estratégica para o Estado português. Inclusive,
em 1751, o posto mais alto da mesma Comissão Demarcatória, composta ainda por
militares e pessoal de apoio, foi ocupado por um genovês,
enquanto que a maioria dos
vinte e sete técnicos empregados era formada por italianos e alemães, sendo que apenas
seis destes eram portugueses.
6
Ainda em 1780, ou seja, trinta anos depois, o número de
astrônomos e geógrafos disponíveis era tão pequeno que as demarcações decorrentes do
Tratado de Santo Ildefonso tiveram de ser atrasadas em até dez anos. Além disso, era
praticamente inexistente uma estrutura de apoio, que propiciasse transportes, proteção e
substituição desse pessoal, especialmente no Mato Grosso e na Amazônia.
Mas, também existiria outro fator limitador, este de ordem material: a falta de
instrumentos para astrônomos e geógrafos, devido à sua escassez e custo, uma vez que
então eram importados a maioria dos instrumentos necessários para o trabalho de campo
e a totalidade daqueles destinados à observação dos fenômenos astronômicos, sendo a
Inglaterra o seu principal fornecedor.
7
Portanto, o registro cartográfico do espaço da América portuguesa refletiu
obrigatoriamente as características anteriormente descritas constituindo-se durante o
século XVIII apenas através de iniciativas isoladas e esporádicas, sendo que, mesmo
estas, teriam sua importância exagerada pela narrativa territorial, especialmente no que
se refere ao desempenho dos chamados ‘padres matemáticos’, Diogo Soares e
Domingos Capaci.
Ainda que seja bastante relevante o trabalho dos padres Capaci e Soares, dadas
as dificuldades da época, tanto o sentido de seus registros quanto o de sua produção tem
sido deslocado constantemente desde se consolidou a ‘mitologia do espaço nacional’.
Nesse sentido, sucessivos estratos narrativos se sobreporiam à narrativa de Jaime
6
‘Relação dos oficiais de guerra e mais pessoas que se acham nomeadas por Sua Majestade para a expedição da
América Portuguesa’, AHI, Arquivo Particular ponte Ribeiro, Lata 290, Maço 3.
7
José Feliciano Fernandes Pinheiro, Anais da Província de São Pedro, Paris: Typografia de Casimir, 1839, 2ª Edição,
p. 181.
83
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Cortesão, compondo-se uma memória da centralidade do esforço dos ‘padres
matemáticos’ numa estratégia da Metrópole destinada a construir uma Carta Geral do
espaço brasileiro e, por conseguinte, lastrear com conhecimentos geográficos precisos a
ação diplomática portuguesa no Tratado de Madri.
FIGURA 14 - 'PRIMEIRA CARTA'
Cartografia: Renato Amado Peixoto, esboço com seleção de elementos
da 'Primeira Carta'. Fonte: Diogo Soares, 'Nova e 1ª Carta da Terr
a
Firme', c. 1737.
Entretanto, ao proceder-se um exame qualitativo e comparativo de cada trabalho
dos ‘padres matemáticos’ com o conjunto de sua obra, utilizando-se para essa análise do
conceitos de composição cartográfica, nota-se que o esforço daqueles padres estava
diretamente destinado a incrementar o conhecimento de certas áreas estratégicas para a
Coroa. Com efeito, trabalharam grande parte do tempo isoladamente, sendo que a maior
desse esforço foi dedicado à confecção de plantas de fortalezas e planos topográficos. É
certo que foram produzidos vários mapas, a saber, uma carta da capitania do Rio de
Janeiro, talvez uma de Minas Gerais e sete cartas de diversas partes da costa sudeste e
84
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
meridional do Brasil, que, após terem sido combinadas, formaram a chamada ‘Primeira
carta da Terra Firme’
8
abrangendo desde o litoral do Rio da Prata até a região de Cabo
Frio (ver Figura 14).
A ‘Primeira Carta’ foi composta por um dos padres, Diogo Soares, através de
três ‘elementos aglutinadores’ dos registros cartográficos: o primeiro era o ‘Novo
Caminho do Sertão’, no caso, o registro do itinerário terrestre desde ‘o Sertão do Rio
Grande’ até a cidade de São Paulo, que servia como um elemento de amarração de
certos elementos geográficos divergentes e dispersos. O segundo ‘elemento aglutinador’
era a linha costeira, tema de quase todos os outros mapas de Diogo Soares, que, para sua
maior efetividade, foi sincronizado com uma Perspectiva que enfatizava o trânsito
marítimo entre três pontos focais do mesmo Mapa, a Colônia do Sacramento, a cidade
de Laguna e o Rio de Janeiro. Finalmente, o terceiro ‘elemento aglutinador’ eram os
rios que desembocavam no Prata e que constituíam um esboço do espaço de penetração
(ver Figura 15).
Se compararmos a composição cartográfica da ‘Primeira Carta’ de Diogo
Soares com o restante da obra conjunta, dedicada ao registro da topografia e das
construções militares daqueles centros urbanos, ao mapeamento da linha costeira e da
organização da área do Prata enquanto dependente da Colônia do Sacramento, podemos
compreender que a fronteira militar servia como seu tema organizador enformando o
esforço de Soares e Capaci através do foco nas comunicações econômicas e militares
que constituíam uma determinada estratégia administrativa.
9
Nesse sentido, as diversas observações feitas por Capaci e Soares nas capitanias
do Rio de Janeiro, São Paulo, na região aurífera de Minas Gerais e em parte de Goiás,
10
analisadas com o conjunto de seu trabalho evidenciam que este que se destinava a
orientar a atividade do Estado português nas áreas economicamente mais importantes.
Assim, este destinava-se a consolidar uma continuidade marítima, terrestre e econômica
8
Diogo Soares, ‘Nova e primeira Carta da Terra Firme, e Costas do Brasil ao meridiano do Rio de Janeiro, desde o
Rio da Prata até Cabo Frio, com o Novo Caminho do Sertão do Rio Grande até a cidade de São Paulo’, 1737.
9
Comparando-se as Figura 14 e 15, note-se a centralidade do “Caminho do Sertão do Rio Grande até São Paulo” no
enquadramento da ‘Primeira carta da Terra Firme’ (destacado em vermelho). Observe-se também a distribuição
das atividades topográficas, ‘pontos focais’ do esforço dos ‘padres matemáticos’ no litoral e aos longo da
perspectiva. Observe-se que a ‘Primeira carta da Terra Firme’ foi construída a partir da combinação das ‘cartas da
linha costeira’ (Figura 15) e que estas podem ser reunidas através da perspectiva a partir do Rio de Janeiro (Figura
15). Todos os planos e mapas estudados encontram-se na Mapoteca da Marinha do Brasil.
10
‘Tabuadas de Longitudes e Latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrônomos empregados na
Demarcação’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLV, n° 64, 1882.
85
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
entre o ‘Continente do Sul’,
11
as Minas Gerais e a Capital, sobretudo porque seria esta
evidenciada nas descrições geográficas e cartográficas através de uma laboriosa e
insistente organização orientada pelo Meridiano do Rio de Janeiro, demonstrando-se
assim a centralidade administrativa do conjunto.
FIGURA 15 — COMPOSIÇÃO
CARTOGRÁFICA DA ‘PRIMEIRA CARTA’_
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fontes: Diversos
mapas de Diogo Soares e Capaci, SGDM/BM.
A composição cartográfica da ‘Primeira Carta’ foi possibilitada por uma
Estética cartográfica que, embora em transição, ainda reconhecia e legitimava uma
representação do todo que se fazia a partir do desdobramento proporcional das partes.
Sua perspectivação se relacionava com um desenvolvimento anterior da teoria das
11
Remeta-se neste caso à discussão da compartimentalização e especialização do espaço na América portuguesa em
nosso capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.
86
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
proporções na Renascença que fundira a interpretação cosmológica com a noção
clássica da simetria,
12
imprimindo na cartografia tanto uma idéia de
‘tridimensionalidade’ do objeto, que se exprimia pela conexão do espaço mapeado com
o não mapeado, quanto pela idéia de uma ‘estrutura natural’ intrínseca ao objeto
mapeado, a qual se expressaria através da relação da parte com o conjunto. Esta Estética
ainda sobrevivia em Portugal por conta da situação mesma da cartografia lusitana,
resultando numa tensão entre antigos e modernos métodos cartográficos que somente se
resolveria no Brasil em meados do século XX.
Ainda em relação ao deslocamento do sentido dos registros e da produção de
Capaci e Soares, tende-se, de um modo geral, a integrá-los com outros trabalhos
realizados num período cronológico posterior, interpretando-se esse conjunto de
atividades como um esforço da metrópole para esquadrinhar e descrever o território
nacional no século XVIII. Porém, os produtos cartográficos que são associados a essa
iniciativa ou são atividades isoladas e localizadas ou então registros decorrentes de
esforços específicos.
Os primeiros decorreram do patrocínio, por parte de alguns Governadores, de
atividades destinadas a coadjuvar suas administrações, visando com isto, reconhecer e
agregar certas áreas cuja importância estratégica, militar ou comercial fosse então
considerada. Por exemplo: durante o século XVIII, a maioria dos produtos cartográficos
relativos ao Mato Grosso são decorrentes de explorações e expedições que possuíam
como objeto o rio Paraguai, sua principal via de comunicação com o Rio de Janeiro e
área de conflito continuado seja com os espanhóis ou os indígenas; já na Capitania do
Grão-Pará, um dos focos dessas atividades era a região do rio Madeira, em virtude do
temor da expansão das Missões espanholas e também porque este era então considerado
enquanto uma importante área de expansão econômica por permitir a ligação daquela
Província com as minas de Cuiabá.
Outros registros do território também foram relacionados com a produção dos
‘Padres Matemáticos’, como, por exemplo, aqueles decorrentes de uma atividade
principal e centralizadora, como foi o caso das Comissões encarregadas da demarcação
de limites do Tratado de Madri e do Tratado Provisional de Santo Ildefonso, ou os
registros originários de esforços não interligados e menores como as cartas
12
Erwin Panofsky, ‘A História da teoria das proporções humanas como reflexo da história dos estilos’, in Significado
Nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976.
87
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
hidrográficas, itinerários de viagens, mapas topográficos e as atividades da Engenharia
Militar.
Cada um destes trabalhos possuiu seu enfoque em problemas restritos, pontuais
e muitas vezes datados, como, no caso das Demarcações, quando se buscava consolidar
e assessorar uma discussão retórica e argumentativa em torno de limites entre os
comissários portugueses e castelhanos, produzindo-se, muitas vezes, registros
tendenciosos, apressados ou mesmo inconclusos.
Portanto, a maioria destes esforços destinava-se a cobrir objetivos específicos
das administrações regionais, utilizando-se de recursos próprios ou desviando certas
atividades da Metrópole ou a resolver problemas pontuais, assim, não podem ser
caracterizar a consecução de um projeto que, inclusive, foi nomeado em algumas obras
como o ‘esquadrinhamento sistemático do território’ por Portugal.
13
As avaliações que exageraram o papel da cartografia da América portuguesa no
setecentos foram ainda influenciadas tanto por uma narrativa heróica da localização
geográfica dos limites que foi promovida corporativamente pelo Exército e Marinha nos
séculos XIX e XX, quanto por uma narrativa das fronteiras e da história pátria que já
estaria esboçada desde o Programa Histórico do IHGB em 1839,
14
mas que seria
modificada a partir de 1849, quando a ascensão de Paulino José Soares de Souza à
Secretaria dos Negócios Estrangeiros entronizaria o uti possidetis como um dos móveis
da diplomacia brasileira. Esta narrativa transformar-se-ia durante o século XX numa
‘Mitologia do espaço nacional’ através da construção da memória de Alexandre de
Gusmão e pela atribuição a este do papel de fundador do espaço nacional brasileiro.
Pela associação do Tratado de Madri ao uti possidetis, materializar-se-ia através do
personagem de Alexandre de Gusmão uma obra fundadora e aglutinadora do espaço,
uma vez que este já era caracterizado enquanto imbuído do espírito da Nação.
Neste sentido, o próprio exercício cartográfico seria associado à obra de
Alexandre de Gusmão, que passaria a demarcar em duas etapas a cartografia da
13
Por exemplo: Sérgio Buarque de Hollanda (Org.) História Geral da Civilização Brasileira (I) v. 1. Rio de Janeiro:
Ed. Bertrand Brasil, 2003, 297-298.
14
“No meio da caliginosa e abafada atmosfera lampejava a intervalos o gênio brasileiro; distinguem-se indivíduos,
associações científicas se formam, que acreditariam a nações mais adiantada em civilização: ali em Alexandre de
Gusmão, que por incúria dos tempos escassamente é conhecido por algumas cartas expedidas do gabinete de D.
João V de Portugal, porém, que para ser hoje admirado a par do Marquês de Pombal (não se me trate de exagerado,
em tempo o demostrarei) só lhe faltou haver nascido além do Atlântico [...]: Gusmão foi dotado de vistas mais
vastas, de mais variados conhecimentos nas ciências”. ‘Programa Histórico’ in Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tomo I, n° 2, 1839, p. 62.
88
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
América portuguesa: a primeira delas teria sido consolidada pelo gênio e pela ação de
Gusmão através de uma atividade destinada a servir de instrumento para a
ultrapassagem dos limites de Tordesilhas e a construir o sentido do Tratado de Madri. Já
a segunda etapa foi aquela que, sucedendo a obra Gusmão, estaria imbuída do seu
espírito, servindo para complementá-la materialmente e a basear a delimitação e
consolidação das fronteiras brasileiras.
Entretanto, em contraste com esta construção, os cronistas portugueses do final
do setecentos freqüentemente entenderam o Tratado de Madri e o de Santo Ildefonso
como tendo sido desvantajosos e prejudiciais para Portugal. Enquanto o primeiro era
referido apenas para que dele se recordasse a nulidade, o segundo sempre foi
circunscrito em sua condição de instrumento preliminar, um esboço de intenções para
um futuro entendimento, sendo enfatizada, por conseguinte, sua precariedade.
Portanto, quase no século XIX, a questão era ainda remetida a um instrumento
jurídico que as narrativas territoriais do setecentos já consideravam a esse tempo
descartado: o Tratado de Tordesilhas.
Para que se possa entender tal raciocínio e suas implicações, será necessário
novamente empregara idéia da composição cartográfica, em primeiro lugar, através da
compreensão de uma idéia de sua Perspectiva, e depois, a de sua Estética, para que se
possibilite o estudo da idéia do espaço no setecentos.
Com relação ao primeiro aspecto, a idéia que permeava a construção do espaço,
durante o setecentos e que poderia ser verificada através das perspectivas cartográfica e
geográfica, era a da ‘organização das particularidades’: o olhar era definido a partir de
uma posição central do observador no espaço a ser ‘riscado’. Neste processo eram
levadas em conta as proporções, os contrastes e os matizes que identificavam e
explicavam determinadas separações ou unidades de acordo com a capacidade de
movimento ou a posição do observador: o espaço era então entendido como possuindo
qualidades e utilidades que seriam ‘riscadas’ pelo observador, observado-se que, então,
a cartografia e a geografia estavam embebidas nos mesmos contextos teóricos que a
pintura, onde abundavam considerações sobre a utilização de técnicas tais como o uso
do foco, da cor e da luz.
15
Nesse sentido, a percepção do espaço seria orientada por uma
15
Ver a respeito do desenvolvimento teórico da cartografia e geografia: Denis Cosgrove, ‘The Geometry of
landscape: pratical and speculative arts in sixteenth-century Venetian land territories’, in Denis Cosgrove &
Stephen Daniels,
The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of Past
Environments. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 254-276.
89
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
seleção cultural específica e constituída por observações múltiplas, com critérios
determinados e que afetavam a construção do todo.
Utilizando-se novamente do exemplo dos “padres matemáticos”: seus registros
do território incluíram também a confecção paralela de uma ‘História natural dos rios,
montes, árvores e ervas, animais e pássaros do Brasil’. No mesmo raciocínio, a
repartição do espaço da América portuguesa em diversos ‘Continentes do Domínio
português’, se constituía também num exemplo da utilização de diversas perspectivas e
do discernimento de uma hierarquia das mesmas perspectivas através de uma seleção.
Assim, a maioria da correspondência que relata as Demarcações e os entendimentos dos
tratados do XVIII enfoca preferencialmente os limites meridionais, em especial os do
Rio Grande e, acessoriamente, os das regiões do Paraná e do Paraguai, subalternizando
o Mato Grosso e a Amazônia, caracterizando-se, por conseguinte, uma hierarquização
do espaço. Mesmo assim, os limites do Rio Grande não seriam convenientemente
demarcados durante todo o século, mesmo que esta fosse considerada então uma
Província destacada geograficamente do resto da América portuguesa e,
consequentemente, mais carente de segurança e de socorros.
A intelecção do espaço no setecentos e a inscrição do estado no espaço
Em relação a uma definição estética do espaço no setecentos, entendemos que
esta pode ser historicizada, compreendendo-se neste processo, suas tensões e
transformações por meio de seus estilos. Entendemos, por conseguinte, que estes estilos
estéticos do espaço faziam parte da ‘gramática da visão’ da qual se constituiriam os
elementos do ‘saber sobre o espaço’.
Assim, primeiramente, podemos definir a transformação estética do espaço da
América portuguesa no setecentos em termos de sua utilidade ou de sua qualidade,
segundo critérios referenciados por perspectivações imersas na ‘gramática da visão’
que, como vimos antes, estavam ligadas ao problema da proporção e de suas relações
com o espectador, conforme podemos compreender a partir das considerações de Erwin
Panofsky sobre os estilos estéticos.
16
16
Erwin Panofsky, ‘A História da Teoria das Proporções Humanas como reflexo da História dos Estilos’, in
Significado nas artes visuais, São Paulo: Perspectiva, 1976.
90
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Deste modo, a intelecção do espaço brasileiro no setecentos pode ser
compreendida a partir de uma definição de dois estilos estéticos diferentes, o primeiro
dos quais está ligado a uma intuição da ‘utilidade’ das porções do território as que se
definiam por reciprocidade e apenas esquematicamente em relação ao todo. O segundo
estilo estético estava ligado a uma intuição das ‘qualidades’ das porções do território em
relação a um todo definido pela reunião simétrica das porções. Tendo em vista facilitar
nossa exposição, nomearemos a primeira intuição como ‘estilo utilitário’ e a segunda
como ‘estilo qualitativo’.
Podemos entender que o ‘estilo utilitário’ derivou dos elementos de uma
‘gramática da visão’ constituída ainda na Idade Média e que se materializou na arte
religiosa, no qual a apreciação da proporção se dava através de um sistema fracionário
que transmitia mais relações do que quantidades reais.
17
Este estilo estético resultaria numa compreensão compartimentada do espaço
que possibilitava, por exemplo, a permuta de territórios já colonizados por outros
incertos e ainda despovoados, uma vez que as porções seriam avaliadas separadamente,
qualificadas e comparadas com as características de outra porção e, ainda que estas
fossem geograficamente muito diversas, a permuta seria efetuada se neste avaliação a
porção visada fosse considerada mais útil na relação com o todo.
Tome-se por exemplo o Tratado de Madri: utilizando-se razões diversas para
cada um dos casos, porções menores do território seriam destacadas de porções maiores,
sendo depois permutadas por outras em sucessão: o Mato Grosso pelas Filipinas, a
Colônia do Sacramento e os ‘Territórios Anexos’ pelas Sete Missões, a região do
Guaporé pela do Japurá. Trocavam-se indivíduos, bens, utensílios e mesmo a História,
uma vez que o ‘estilo utilitário’ ancorava-se ainda em ‘relações de soberania’ que
possibilitavam entre as Coroas a ‘cessão de direitos’ sobre o território, idéia seria
utilizada nos tratados firmados por Portugal até Santo Ildefonso e que considerava o
espaço como um objeto válido para venda ou permuta.
18
Entretanto, ainda que tenha baseado o Tratado de Madri, o ‘estilo utilitário
começaria a rivalizar com um outro estilo estético que se enraizaria mesmo nas políticas
17
Erwin Panofsky, ‘A História da Teoria das Proporções Humanas como reflexo da História dos Estilos’, in
Significado nas artes visuais, São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 110-116.
18
Vejam-se os ‘Tratados Dispositivos de 1751-1752’ IHGB, Lata 102, Pasta 20; o ‘Tratado de Madri’ IHGB, Lata
116, Número 14 e os ‘Tratados de Mútua Aliança assinados em 1701 com a Espanha e a França’ in José Manoel
Cardoso Oliveira,
Atos Diplomáticos do Brasil: tratados do período colonial e vários documentos desde 1943, v. I.
Brasília: Senado Federal, 1997.
91
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
do Estado português a partir da década de 1750, uma vez que a crítica aos Tratados de
Madri e Santo Ildefonso foi baseada numa reflexão sobre as desvantagens da ‘cessão de
direitos’ para um Estado que se constitui sobre o território.
Este novo estilo, que denominamos de ‘estilo qualitativo’ pode ser remetido aos
elementos introduzidos na ‘gramática da visão’ desde o Renascimento, fundindo,
segundo Panofsky, uma visão cosmológica com a noção clássica da simetria. Podemos
entender que nesse estilo o Espaço e o Estado constituiriam um todo orgânico, com
fluxos e necessidades que não poderiam ser limitados pelos Tratados do velho estilo,
uma vez este todo era vivo e em movimento: o conceito de fronteira militar e do fluxo
comercial seriam tonificados a partir de 1750 e refletir-se-iam na compreensão do
Espaço.
19
Por conseguinte, começaria a se formar uma idéia da historicidade dos limites
que superaria gradualmente a idéia da ‘cessão de direitos’, até se juntar no oitocentos
com o conceito de que a presença do indivíduo no território estabeleceria tanto direitos
quanto deveres, enfatizando-se assim uma ligação do homem e do Estado com a terra.
Portanto, emergia um novo estilo estético que impossibilitava a retração do
território, por conta de uma organicidade que não permitia invasões ou mutilações.
Nesse sentido, o ‘estilo qualitativo’ construía laços da História com o espaço que
necessitavam constantemente de cuidados e de aperfeiçoamentos: sua proteção, sua
memória e sua monumentalização se tornariam gradualmente a tônica dos esforços do
Estado.
A reação contra o estilo utilitário já podia ser verificada em 1752, quando sua
crítica ainda entendia em seu argumento que os tratados de limites configuravam um
contrato entre as partes cujos direitos seriam deslocados para o território, deste modo, o
defeito do contrato ainda não era identificado na fórmula jurídica, mas, na ação e no
valor dos seus Procuradores, no caso, o próprio Alexandre de Gusmão,
20
o que
influenciaria a invalidação, já em 1761, do Tratado de Madri pelo Tratado de El Pardo.
Contudo, a crítica se valia ainda de outros três argumentos: o primeiro era o de
que aquele Tratado não coincidia o limite jurídico com o espaço anteriormente
19
Erwin Panofsky, ‘A História da Teoria das Proporções Humanas como reflexo da História dos Estilos’, in
Significado nas artes visuais, São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 129.
20
‘Carta do Il.mo e Ex.mo Sr. Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, escrita ao Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real em 20 de Janeiro de 1752, em que declara,
depois de ouvir algumas pessoas sobre o juízo que faziam do Tratado de Limites, o seu parecer’, in Conselho
Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I. IHGB 1. 2. 9:1752.
92
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conquistado e ocupado, o segundo, que restringia a circulação e o terceiro, que permitia
a penetração e trazia insegurança a terra.
21
Por conseguinte, desenvolver-se-ia paulatinamente em torno do estilo qualitativo
uma narrativa histórica que visava consolidar aqueles argumentos, constituindo uma
antigüidade da ocupação portuguesa no Prata, remontada às primeiras expedições de
reconhecimento, como as de Américo Vespúcio e a de Martim Afonso de Sousa, que
teriam estabelecido os marcos da presença portuguesa além do Prata, na Baía de São
Matias. Essa presença simbólica seria colada a uma presença de fato personificada,
ainda no século XVI, pelas expedições paulistas, que teriam explorado ou colonizado a
região da Bolívia, do Paraguai, do Tucumán, e da Cisplatina.
22
O reconhecimento da posse e a presença de fato dissuadiram a ocupação
espanhola, ainda que a penetração jesuítica tivesse de ser, algumas vezes, impedida pela
força, como, por exemplo, quando da tentativa de estabelecimento dessa ordem na
Cisplatina, que teria obrigado os paulistas a reagirem militarmente, episódio que
terminou a com derrota castelhana junto ao sítio onde mais tarde se fundaria a Colônia
do Sacramento. Por conseguinte, a fundação dessa cidade em 1680 se daria, segundo a
narrativa do setecentos, sobre um sítio batizado pelo sangue e pela resistência ao
invasor.
Ainda segundo esta narrativa, a infiltração espanhola nos territórios portugueses
se daria a partir da União Ibérica, identificada com o cativeiro bíblico, resultando daí em
diante, em um contínuo recuo do espaço português, mesmo que no Prata essa posse
houvesse sido reconhecida pela Espanha em uma série de acordos que se concluíram no
Tratado de Utrecht.
A negação dessa posse pelos tratados subseqüentes (Madri e Santo Ildefonso)
era atribuída pela narrativa, em primeiro lugar, a uma malversação dos interesses
portugueses, à superioridade cartográfica dos castelhanos e à própria debilidade política
de Portugal. Em segundo lugar, esses documentos jurídicos teriam sido
intencionalmente confeccionados para possibilitarem o logro e consequentemente o
prejuízo territorial. Somando-se a esse quadro, a incorporação de uma descrição
21
‘Correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado; do Bispo do Pará; de João Azeredo de Souza’ in
Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I. IHGB 1. 2. 9:1752.
22
Vejam-se: ‘Discussão Histórica e Jurídica sobre os Limites do Brasil contra as pretensões dos Castelhanos por um
parente de Alexandre de Gusmão’, 1767. IHGB, Lata 50 Pasta 7; Luís dos Santos Vilhena,
Pensamentos Políticos
Sobre a Colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987; ‘Notícias dos Títulos do Estado do Brasil e seus limites
austrais e setentrionais até o ano de 1765’, 1/02/1767. IHGB Lata 29, Pasta 3.
93
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dramática dos conflitos da década de 1760-1770, acrescentaria uma nova carga emotiva
à narrativa histórica: estes seriam relatados como uma série de ataques premeditados aos
flancos da América portuguesa, destituídos da formalização mesma da guerra, o que
contribuía para sublinhar o rompimento da norma jurídica.
Esta imagem do isolamento e de insegurança, frente a um adversário que
desprezava regras básicas do ordenamento civilizatório seria ainda aumentada por um
relato da infiltração do território e drenagem de seus recursos humanos. Os jesuítas,
ancorados em um imenso poder monetário e político, capaz de ultrapassar os limites do
Estado espanhol e subverter a opinião, manipulavam obras e distorciam a cartografia
visando seus próprios objetivos territoriais e econômicos, naquele momento coligados à
Espanha.
A todo esse cenário contrapunha-se uma idéia da identificação do território com
o Estado, com o nacional e com a resistência que seriam coligidas na figura do Paulista,
cuja idealização já começa a se notar desde a década de 1750 e que seria construída em
torno da coragem, apreço e mimetismo com o solo. Segundo a narrativa, os jesuítas
tentariam atingir essa mesma identificação ao caluniar e denegrir os paulistas, utilizando
argumentos que visavam demonstrar sua desobediência, imoralidade, barbárie e
crueldade.
A transformação da idéia filosófica-jurídica a respeito dos tratados de limites,
através da superação do estilo utilitário pelo qualitativo, também pode ser acompanhada
pela análise e interpretação que a narrativa do setecentos fez dos tratados de limites,
quando procuraria constituir uma genealogia destes cujo eixo paradigmático fosse a
própria natureza do território.
O primeiro tratado nesta genealogia era o ‘Tratado Provisional’ de 1681, onde a
posse da Colônia do Sacramento estava ligada ao princípio de restituição In Continenti,
ou seja, caracterizada pelo imediatismo, dispensativo de formalidade ou argumentação.
Para a narrativa do setecentos o princípio In Continenti representava a liquidez da
questão territorial que consumava-se pela integração do espaço cisplatino no patrimônio
português.
Já no ‘Tratado de Mútua Aliança’ de 1701, entendia-se que em seu artigo 14º,
agregara-se ao corpo jurídico conceitual o princípio da cessão In Solidum, que foi
interpretado pela narrativa como a constituição da solidariedade entre todo o limite
circundante e dependente com o centro administrativo da Colônia do Sacramento e sua
incorporação como uma unidade integrada ao patrimônio português. Essa entidade
94
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
coligada seria descrita como os ‘Territórios Adjacentes’, que incluíam geograficamente
toda a margem do Rio da Prata, que passaria a ter, assim, existência jurídica In Solidum
com a Colônia do Sacramento.
Finalmente, pelos artigos 6º e 7º do ‘Tratado de Utrecht’ de 1715, a idéia da
incorporação seria repetida, desta vez com o adendo da exclusividade, entendido como
o transporte da qualificação do território e incorporação a uma unidade subjacente, o
Brasil, constituindo um vínculo indissolúvel.
Contudo, a narrativa do setecentos não destacaria, nesse último tratado, a
inclusão da opção da ‘cessão de direitos’, porque esta estava mais vinculava ao estilo
utilitário. Segundo esta opção presente no Tratado de Utrecht, a prerrogativa poderia ser
exercida pela Espanha através da oferta de áreas para permuta na América, desde que
Portugal aceitasse o equivalente oferecido, que este país julgava caber somente na
Europa.
Se utilizarmos os elementos da genealogia dos tratados feita pela narrativa do
setecentos para compararmos o Tratado de Madri com o de Santo Ildefonso, poderemos
observar que já se impõe neste último uma transformação dos estilos. Enquanto o eixo
paradigmático do Tratado de Santo Ildefonso ainda fosse a ‘cessão de direitos’,
incluindo, no caso, a permuta de territórios, uma vez que a Ilha de Santa Catarina seria
trocada pela Colônia do Sacramento, e pelas ilhas de Fernando Pó e Ano Bom, o seu
eixo sintagmático consagraria a dinâmica do território ao estipular diferenciadas formas
do espaço, privilegiando-se separações, restrições e interdições em vez da fórmula geral
do limite como no Tratado de Madri.
As partes meridional e setentrional do território da América portuguesa seriam
exemplos dessa perspectiva múltipla do espaço: no território do Rio Grande se
estabeleceriam zonas neutras, zonas compartilhadas e territórios desmilitarizados,
enquanto que na Amazônia se delimitariam apenas os “Confins dos Domínios das duas
Coroas” através da enunciação dos divisores de águas ideais.
Contudo, a análise destes tratados pela narrativa do setecentos se estabeleceria
pela elisão dessa interpretação, uma vez que se desprivilegiava mesmo a essência
jurídica dos tratados e de sua execução, por exemplo, era praticamente um consenso que
a redação do tratado fora propositadamente vaga para beneficiar a demarcação do
território pelos espanhóis em face de seu conhecimento cartográfico superior. Para o
estilo qualitativo os Tratados de Madri e Santo Ildefonso impuseram a retração do
território e uma partilha desigual que ignorou marcos e colonização, mesmo no vale do
95
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Amazonas, e que legou para a América portuguesa apenas “os fundos do interior dos
sertões” como uma pobre indenização pela área do Prata, definido como a chave da
defesa da América portuguesa e sua via principal de comunicações.
23
Ao contrário, a narração dos séculos XIX se constituiria justamente sobre os
documentos desqualificados pela narrativa do setecentos ao mesmo tempo elidindo os
tratados anteriores. Esse confronto de percepções se tornaria mais agudo pelo
estabelecimento de uma interpretação da base documental que enfatizaria apenas os
aspectos da ‘cessão de direitos’ e sobre um acervo limitado, o que possibilitava remeter
a transmissão territorial sem se ater aos aspectos de sua qualificação, excluindo a
discussão dos termos e aspectos das permutas territoriais. Assim, através da
transformação dos acervos e de sua leitura pela narração do século XIX se possibilitaria
uma interpretação que operava através da idéia de uma contínua expansão do território,
legitimada por uma posse anterior que consolidava a utilização do princípio do uti
possidetis pela diplomacia brasileira.
Nesse sentido, é necessário estabelecer mesmo uma diferença na perspectiva do
espaço entre as narrativas do século XIX e a ‘Mitologia do espaço nacional’: enquanto a
primeira se constrói a partir de uma relação entre a centralização e constituição do
Estado nas décadas de 1840-1850, a segunda se sobrepõe a esta com o contributo de um
produto cultural, a geopolítica, que se consolidaria no século XX e que atribuiria para si
mesma o status de Ciência.
No entender da nossa pesquisa, a geopolítica se constituiria através do amálgama
de conceitos políticos, geográficos e de política externa, e pretenderia interpretar a
Geografia segundo certas determinantes históricas que demonstravam a validade de suas
leis. Nesse contexto, seria natural que a Cartografia servisse como veículo divulgador de
idéias e consagrador de seus preceitos. Vários intelectuais e acadêmicos do período,
como Jaime Cortesão e Delgado de Carvalho, ambos professores do Instituto Rio
Branco e de instituições oficiais de ensino, como a atual UFRJ, conviveram e
produziram no ambiente geopolítico da década de 1950, que integrava então
universidade, militares e diplomatas.
Um dos autores de maior impacto então foi Mário Travassos, que em 1930, pela
primeira vez, idealizaria o Brasil enquanto uma ‘Potência Regional’. Em ‘Projeção
23
Luís dos Santos Vilhena, Pensamentos Políticos Sobre a Colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987, p. 43.
96
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Continental do Brasil’,
24
sua obra magna, Travassos verificaria a existência no
Continente americano de dois grandes antagonismos geográficos separados pela
Cordilheira dos Andes, representados pelo Atlântico e pelo Pacífico.
FIGURA 16 — ‘PROJEÇÃO CONTINENTAL’
Cartografia: Renato Amado Peixoto, esquema da
‘Projeção Continental’. Fonte: Mário Travassos.
Projeção Continental
do Brasil. São Paulo: Companhi
a
Editora Nacional, 1947, 4ª Edição.
Por conseguinte, o espaço nacional seria influenciado pela sua posição Atlântica,
que, por sua vez, estaria submetida a outros dois grandes antagonismos geográficos: o
Amazonas e o Prata, os quais na prática explicariam e condicionariam as disputas
regionais e que traduziriam-se, no final, por um desequilíbrio geopolítico em favor do
Prata. Dentro da análise de Mário Travassos, por exemplo, a projeção de poder dos
Estados Unidos no Caribe, “o Mediterrâneo americano”, e a influência desse país
através do Pacífico seriam exemplos da influência dos condicionalismos, os mesmos
que criariam para o Brasil um espaço onde, em virtude de sua vocação continental, lhe
caberia um papel coordenador.
24
Mário Travassos, Projeção continental do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1947, 4ª Edição.
97
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A chave para essa projeção desse poder, definido como ‘Continental’, seria,
além da ocupação do Hinterland (o interior remoto e não desenvolvido), a projeção da
influência sobre determinados pontos de equilíbrio, o mais importante dos quais seria a
região na qual estava situada a cidade de Santa Cruz de la Sierra, a chave da América do
Sul. Essa região, denominada como “o triângulo estratégico Santa Cruz de La Sierra -
Cochabamba - Sucre”, seria a um só tempo o pólo de convergência das influências
amazônica, platina e andina, além de controlar um dos nudos (ponto de menor
resistência na Cordilheira e que oferece passagem mais fácil de uma vertente para a
outra).
Segundo ainda a colaboração de Mário Travassos com Delgado de Carvalho,
seria definida através da utilização de produtos cartográficos a “atuação” das ‘regiões
naturais’ do Brasil, demonstrando-se que os chamados ‘Brasil Platino’ e ‘Brasil
Amazônico’ convergiam naturalmente sobre o centro geográfico do continente, o
‘Triângulo-chave’ e que, se esta convergência fosse auxiliada por projetos políticos,
viários e diplomáticos, se constituiria o predomínio do Brasil sobre toda a América do
Sul.
25
Assim, por meio da geopolítica, o Tratado de Madri adquiriria uma nova
importância e explicação para os homens do século XX: o gênio de Alexandre de
Gusmão antevira já no século XVIII uma perspectiva absolutamente revolucionária — a
expansão do espaço brasileiro, dos limites de Tordesilhas rumo ao coração do
continente, garantindo ao país uma posição privilegiada na América do Sul. Nesse
sentido, ainda em 1959, Delgado de Carvalho desenvolveria uma composição
cartográfica do Tratado de Madri que logo seria disseminada através de sucessivas
edições do Atlas Histórico Escolar utilizado na educação fundamental: os limites do
Tratado de Madri seriam então interpretados em relação às fronteiras atuais e ao Tratado
de Tordesilhas, ainda que na prática as Comissões Demarcatórias do XVIII não
pudessem determinar nenhum desses limites e que o Tratado de Madri tivesse sido
anulado dez anos depois.
Por conseguinte, tanto na ‘Mitologia do espaço nacional’ quanto na narrativa do
setecentos, o Tratado de Tordesilhas tornar-se-ia, o ponto de partida da narrativa, sendo
25
Veja-se a Figura 16. Primeiramente, note-se que a divisão das ‘regiões naturais’ de Delgado de Carvalho
praticamente coincide com o meridiano de Tordesilhas tal como desenhado por Varnhagen. Em segundo lugar,
observe-se que as duas ‘regiões naturais’ situadas além do meridiano de Varnhagen praticamente tocam o
‘triângulo chave’. A ‘atuação’ das ‘regiões naturais’ sugere que a geografia impôs um ritmo natural à penetração e
ocupação do território.
98
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
que, nesse sentido, as transformações na cartografia e nas narrativas geográficas
imporiam esteticamente uma transformação na leitura da perspectiva que iria influenciar
ambas as intelecções do espaço.
O cerne da questão técnica do Tratado de Tordesilhas era o problema da
longitude: até o final do século XVIII não havia se estabelecido um método inconteste
de auferi-la nas viagens marítimas, sendo bastante conhecida a disputa que se
desenrolou na Inglaterra a respeito da utilização de cronômetros para esse fim. No caso,
a tecnologia capaz de produzir em grande escala instrumentos portáteis capazes de
resistir a grandes choques, variações de temperatura e pressão, somente se tornou
disponível no século XIX.
Do mesmo modo, a medição das longitudes terrestres era um processo bastante
complicado e que somente foi possível a partir de 1670 através de um método baseado
no eclipse das luas de Júpiter, somente descobertas por Galileu em 1610, e cujo
aperfeiçoamento duraria perto de cinqüenta anos, por conta da confecção de tabelas
astronômicas confiáveis e de telescópios mais potentes e manuseáveis. Esse método
possuía a grande desvantagem de necessitar das condições atmosféricas e astronômicas
ideais (que não eram disponíveis no hemisfério sul durante boa parte do ano),
instrumentos extremamente caros e bastante frágeis, além de operadores e calculistas
experimentados e instruídos. Ainda no século XVIII se utilizaram alguns cronômetros
de maior porte, sobre carroças, com resultados razoáveis, mas que demostraram só
serem utilizáveis em superfícies contíguas, como na Europa, e em pequenas distâncias.
A única alternativa plausível seria a utilização do método lunar, que envolvia o uso de
instrumentos mais simples, como o sextante, mas que era ainda mais especializado,
utilizando tabelas e cálculos muito complexos, que duravam em média, quatro horas.
Por todos esses motivos, a utilização do cronômetro portátil se tornava mais prática,
inclusive para as jornadas terrestres, o que era especialmente recomendável no interior
da América do Sul, com regiões inóspitas, imensas distâncias a serem percorridas,
grande cobertura vegetal que impossibilitando tomadas astronômicas e imensos riscos,
tanto para o equipamento, quanto para a vida dos técnicos, como doenças, ataques de
selvagens, acidentes, fome, sede, que exigiam que as medições fossem realizadas com a
maior rapidez possível. Nesse sentido, cabe o exemplo das longitudes amazônicas, as
quais somente se tornaram disponíveis no último quarto do século XIX, graças à
utilização do cronômetro portátil: note-se ainda, a título de ilustração dos custos e das
dificuldades, que uma expedição utilizava, muitas vezes, até dez desses instrumentos, e
99
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
que não raro, todos se inutilizavam. Do mesmo modo, cabe salientar que, ainda em
1753, na Alemanha, no centro da Europa, não havia nenhum ponto determinado pela
longitude.
26
Ao contrário da longitude, o cálculo da latitude já fora eficientemente
disponibilizado desde o século XVI, tornando a sua observação relativamente simples.
A elaboração pelos portugueses do ‘Regimento do Sol’, uma série de tábuas da posição
astronômica do Sol, permitia que, pela observação da declinação solar outras pessoas
que não os especialistas fossem capazes de determinar essa coordenada. Desse modo, as
cartas do século XVI e XVII apresentavam uma aproximação bastante boa em relação à
latitude e desvios de longitude muito grandes em relação às coordenadas conhecidas
atualmente. Esta última era então calculada através do método da Estima, ou seja,
através do cálculo da distância percorrida desde o meridiano conhecido: como estas
eram sempre percorridas por via marítima, necessitava-se, primeiramente, saber a
velocidade do navio. Para isto, lançavam-se ao mar cordas marcadas em espaços
regulares por nós, que eram contados em períodos determinados de tempo, medidos por
meio de ampulhetas. Este método era sujeito, portanto, a diversos problemas, tais como,
calmarias, correntes ou vendavais capazes de operar desvios da rota, que era a razão
última da diversidade do traço cartográfico.
Deste modo, qualquer demarcação baseada no Tratado de Tordesilhas seria
completamente inexeqüível, uma vez que este fora baseado na delimitação da longitude:
esta foi uma das razões da ‘cessão de posse’ ter superado amplamente o argumento
jurídico de Tordesilhas, uma vez que, tanto a Coroa portuguesa quanto a espanhola
reconheciam a incapacidade de confirmar seus títulos ou de apoiá-los cientificamente,
impondo-se assim uma premissa que se faria presente no corpo dos tratados do
setecentos — a revogação de todos os outros anteriores.
Contudo, a indeterminação da longitude foi ainda utilizada pelos Estados
ibéricos para a manipulação das representações cartográficas do espaço. Como, em
teoria, as possibilidades de construções seriam infinitas, a capacidade de se afirmar uma
representação dominante era limitada apenas pelas suas condições de produção e
divulgação. No setecentos, prevalece nas crônicas e correspondência oficial portuguesa
a idéia da superioridade espanhola nesse esforço, consolidando-se inclusive o
26
David Turnbull, Masons, Tricksters and Cartographers: Comparative Studies in the Sociology of Scientific and
Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2003, p. 113.
100
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pensamento de que os tratados de Madri e de Santo Ildefonso foram negociados sob a
influência da cartografia espanhola. No caso, se entendia que esta influência também se
estendia sobre os atlas, especialmente aqueles editados na França, e até mesmo sobre
uma peça cartográfica que seria a fonte principal de consultas da Corte portuguesa, a
Carta D’Anville, encomendada para suprir parte da deficiência portuguesa nesse setor.
27
Ainda que essas alegações portuguesas possam ser questionadas, é certo que a
influência da cartografia espanhola se estendeu sobre o século XIX: praticamente todas
as representações do espaço brasileiro nos Atlas desse período foram tributárias da obra
de um dos demarcadores do Tratado de Santo Ildefonso, Francisco de Requeña: sua
composição cartográfica do Tratado de Santo Ildefonso, o ‘Mapa Geográfico de la
Mayor Parte de la America Meridional’, de 1796, influenciaria, por conseguinte, todas
as questões e pretensões territoriais do oitocentos.
FIGURA 17 — TRAÇADOS MAIS UTILIZADOS
DA LINHA DE TORDESILHAS_
Cartografia: Renato Amado Peixoto 1
27
'Tratado Preliminar de limites entre Portugal e Espanha, correspondência dos Vice-Reis Marquês do Lavradio e
101
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nesse sentido, tornar-se-ia mesmo difícil de estabelecer, fora dos Atlas, padrões
de representação dos acidentes geográficos, especialmente da costa, durante o século
XVIII. De um modo geral, a cartografia espanhola estreitava as distâncias entre as
costas oriental e ocidental da América, situando o litoral brasileiro mais a oeste, de
modo a obter maior ganho com sua representação do meridiano de Tordesilhas,
enquanto que os portugueses faziam justamente o contrário.
Também não existia nenhuma representação padrão do Meridiano de
Tordesilhas, uma vez que seu traçado seria constantemente alterado para se atender os
interesses de Estado. Na verdade, a primeira representação acurada, com coordenadas
razoavelmente corretas, foi feita em 1854 por Varnhagen, para acompanhar a sua
História Geral.
28
Essa composição cartográfica do Tratado de Tordesilhas, a “Primitiva
Demarcação”, conforme denominada por Varnhagen, atendia, portanto a narrativa do
século XIX e casava-se habilmente com a idéia de fluxo e expansão do território contida
na construção historiográfica que surgiria no IHGB após a década de 1850, pois se
salientava a expansão do espaço brasileiro num momento que se acusava o Governo de
ceder territórios: no mapa de Varnhagen, o meridiano de Tordesilhas foi traçado mais
favoravelmente aos espanhóis do que a cartografia destes fora capaz de fazer durante os
três séculos anteriores (ver Figura 17).
29
Ao contrário da narrativa do século XIX, que idealizou a excelência da
cartografia portuguesa, na narrativa do setecentos se cristalizou a idéia da superioridade
cartográfica espanhola dirigindo os tratados, o que contribuiu para consolidar nesta
narração a ultrapassagem tanto de uma argumentação baseada na sucessão pacífica dos
tratados quanto do estilo utilitário, uma vez que aquela superioridade inviabilizava a
organicidade entre o Estado e o território que ali se construía:
30
Luiz Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal', 1780-1782. IHGB, Lata 110, Pasta 7.
28
Antonio Adolfo Varnhagen, Mapa do Brasil e territórios limítrofes para acompanhar a História Geral daquele país,
delineado pelo autor dela e gravado sob a direção de A. Lamaitre, 1854, Paris.
29
Ver Figura 17: os meridianos aqui traçados são os mais usuais na produção cartográfica desses países, embora, na
maioria das vezes este sequer fosse representado. Substituiu-se a reta pela curva nos meridianos português e
espanhol para tentar contornar a diferença das projeções adotadas por Varnhagen em relação a estes e para
demonstrar o problema que a longitude oferecia no século XVIII.
30
Com respeito à influência da cartografia espanhola e à idéia de organicidade, veja-se, por exemplo, as
correspondências do Marquês de Lavradio e de Martinho de Mello e Castro p/ D. Luiz de Vasconcellos e Souza in
‘Tratado Preliminar de Limites Entre Portugal e Espanha, Correspondência Dos Vice-reis Marquês Do Lavradio e
Luiz Vasconcellos e Souza Com a Corte de Portugal’, 1780-1782. IHGB, Lata 110, Pasta 7.
102
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O Papa Alexandre VI de mútuo próprio por Bula passada no ano de
1493, um ano depois de descoberta a Índia Ocidental, concedeu à Coroa de
Castela as conquistas da América, e conhecendo que se vinha embaraçar
com as conquistas já concedidas a Portugal, inventou uma repartição aérea,
impraticável, imaginária, especulativa, entanto hábil para semear (como
semeou) discórdia perpetuamente entre as duas Coroas, e guerras
sanguinolentas, escola onde de contínuo se estudam se inventam, e saem
falsas doutrinas demostradas nos errôneos e falsos mapas geográficos,
primeiro do Rei católico, e depois por todo o mundo, nas infinitas e sempre
maliciosas cartas geográficas que idearam os castelhanos.
31
Nesse sentido, a ultrapassagem da idéia de uma sucessão contínua dos tratados
se daria gradualmente através do deslocamento de uma retórica do direito mais
aproximada do estilo utilitário, para uma ‘forma de soberania’ baseada na conquista e na
aquisição, que se desenvolveria posteriormente no estilo qualitativo ligando o solo ao
nacional.
Assim, num primeiro momento, a narrativa do setecentos descaracterizaria o
argumento jurídico pela demonstração da presença no Tratado de Tordesilhas de vários
vícios de origem, dentre eles o dolo. Em seguida, se colocaria em dúvida a existência
mesma do Contrato, numa argumentação já nesse momento também historicista: a
ausência de seu registro nos arquivos do Estado o remeteria da esfera deste, para a
esfera do testemunho, da tradição e da literatura. Finalmente, a historicidade dos laços
do Estado com o território se sobreporiam, por meio tanto de uma crônica dessa
interação, que descrevia os feitos, atos e posses, quanto de um relato dinâmico e
histórico dos contratos, descentralizando o Tratado de Tordesilhas para recolocá-lo
como parte de uma negociação que envolvia uma jurisprudência e casuística mais
ampla. Assim, peças e direitos confundir-se-iam e misturar-se-iam com a presença
pregressa do Estado no território, estabelecendo-se, por conseguinte, uma base jurídica
para a nulidade dos contratos.
Nesse sentido, os argumentos geográfico e cartográfico foram centrais no
discurso, pois serviram para vários fins da discussão prática, como, por exemplo, para
se deslocar o meridiano inicial de Tordesilhas das Ilhas de Cabo Verde para as dos
31
‘Notícias dos Títulos do Estado do Brasil e seus limites austrais e setentrionais até o ano de 1765’, 1/02/1767.
IHGB, Lata 29, Pasta 3.
103
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Açores (que eram representadas mais a ocidente nos mapas do séculos XVIII); mas,
principalmente, porque ofereciam contraprovas que impediam a refutação convincente
de qualquer alegação feita com base naqueles mesmos argumentos, utilizando-se, para
isso, dos problemas do cálculo da longitude, das dúvidas quanto à conversão das léguas
para graus de meridiano ou mesmo da identificação e quantificação daquela unidade de
medida.
Portanto, o século XVIII impôs diversos novos problemas à cartografia que não
poderiam mais ser superados somente por iniciativas individuais, mas que necessitavam
lastrear-se em um suporte técnico que assegurasse a confiabilidade e a cientificidade do
mapa e que também participasse de um corpo conceitual que tivesse aceitação universal.
Nesse sentido, a técnica era um dos principais limitadores da expansão do saber
cartográfico nos países periféricos, fazendo com que os Atlas estrangeiros se
consolidassem como a maior fonte disponível de informações cartográficas, por conta
do aumento generalizado dos custos que eram impostos pela necessidade de incorporar
os sucessivos avanços científicos.
Neste caso, os custos somente eram absorvidos pelo aporte financeiro
representado pela venda do produto final e pela comercialização de direitos e serviços
ou ainda pela economia representada pela transação de originais e matrizes e pelo
agenciamento do registro cartográfico a terceiros. Assim, se introduzia a vontade do
Mercado, ávido por novos produtos e que exigia uma qualidade e acuidade sempre
maiores, para as quais contribuía a divulgação do saber científico. Estabelecia-se, deste
modo, um gosto Estético estabelecido pelo Mercado no qual a qualidade gráfica e
técnica se uniam, impedindo a emergência de uma produção concorrencial nos países
periféricos e influenciando decisivamente a sua cartografia.
Desta maneira, o Estado se impunha como o único empreendedor e competidor
possível, mas a um custo de entrada muito alto e com uma necessidade de investimento
contínuo na formação de pessoal e desenvolvimento de técnicas, se desarticulando,
neste processo, toda uma tradição cartográfica, como a portuguesa, que era baseada na
iniciativa individual e que privilegiava a composição manuscrita.
Contudo, o aporte do Estado na nova cartografia significou também uma
contribuição à Estética, pois mapear não significava mais apenas representar o território,
mas também integrar, padronizar, distender o olhar do centro até os recantos mais
remotos — construir fronteiras.
104
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Essa ultrapassagem mental e estética significava uma nova atitude onde a parte
cederia lugar ao todo: a tradição cartográfica que nascera no ocidente com as Cartas
Portulanas, destinadas a navegação no Mediterrâneo, um espaço geográfico fechado,
onde os rumos se estabeleciam por meio da orientação visual e da capacidade de decisão
do indivíduo, dava lugar a um modelo aberto, mas que paradoxalmente já estava
construído por meio de uma normatização rigorosa dos padrões cartográficos.
Decorrentemente, a cartografia tornou-se uma atividade coletiva, essencialmente
técnica, extremamente especializada e voltada para a difusão e divulgação de sua
própria Estética, continuamente em adaptação ao Mercado.
O grande mapeamento da França, iniciado por Giovanni Cassini no último
quartel do século XVII, produziu os padrões da nova cartografia, traçando, a partir de
Paris, triangulações sucessivas, que visavam estabelecer coordenadas exatas e distâncias
calculadas sobre todo o território francês: o esquadrinhamento do território se constituiu
pela localização de pontos interligados a outros pontos através da organização de redes
que inscreviam o Estado francês no espaço.
A cartografia era então material de primeira necessidade também para
administrar o deslocamento de soldados e a administração dos esforços da guerra:
Cassini não era considerado à época apenas o maior especialista na revolução das luas
de Júpiter, aquele capaz de aplicar o sistema de longitudes a uma Carta Geral da França,
mas também um renomado projetista de fortalezas, trabalhando rotineiramente junto
com o grande Engenheiro militar Sébastien Vauban.
A própria organização das Ciências naquele país, como a constituição e suporte
da ‘Académie Royale des Sciences’ e do Observatório Astronômico, foi subordinada ao
esforço da construção territorial racionalizando essa relação em torno do Estado e
dessacralizando a idéia mística da cartografia medieval que ligava o céu a terra.
32
Essa ultrapassagem mental se impõe sobre o estilo qualitativo constatando-se a
impossibilidade técnica e prática de se mapearem limites tão extensos e inóspitos, ao
mesmo tempo em que repudiam os procedimentos das Comissões Demarcatórias
espanholas por se reconhecerem aí os antigos vícios que se opunham às modernas
32
Chandra Mukerji, Territorial Ambitions and the Gardens of Versailles, Cambridge: Cambridge University Press,
1997, p. 260-261.
105
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
técnicas.
33
Esta argumentação entendia que o território espanhol também era dinâmico,
sendo as Missões sua mais degenerada característica, por penetrarem, corroerem e
sugarem os recursos, a seiva do território, por isso, a insistir-se-ia em que os antigos
métodos cartográficos eram a origem mesma da corrupção dos contratos. Nessa
argumentação estão preservadas as noções de fronteira militar e do espaço comercial: os
limites devem ser aqueles que emprestem defensabilidade ao espaço, assim como os
Confins devem ser os que preservem as possibilidades do comércio ou que o viabilizem,
portanto, o território deve ser, ao mesmo tempo, seguro, produtivo, fértil e lucrativo.
Esta argumentação seria colocada em prática numa políticas de limites já a partir
de 1802 quando da ocupação portuguesa do território das Sete Missões: refutando a
proposta castelhana de utilizar o princípio do status quo ante bellum, antiga prática das
disputas entre os dois países, os portugueses preferiram conservar o território a
consolidar a paz.
FIGURA 18 — PROPOSTA DE D. JOÃO VI
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fonte: Marquês de Aguiar,
‘Documentos relativos às questões de limites do Império do Brasil
ventiladas no Congresso de Paris em 1818’, 16/06/1816. IHGB, Lat
a
79, Documento 9.
33
Ver, por exemplo, ‘Carta de Francisco João Rocio’ e ‘Tratado Preliminar de Limites entre Portugal e Espanha,
correspondência dos vice-reis Marquês do Lavradio e Luiz Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal’, 1780-
1782. IHGB, Lata 110, Pasta 7..
106
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Depois, em 1818, confirmando-se a influência do estilo qualitativo, D. João VI
ofereceria todo o território ao norte do rio Amazonas em troca da projeção do espaço
brasileiro até o Prata (ver Figura 18).
34
Deste modo, observa-se que a figura da ‘cessão
de direitos’ já estaria abandonada por um exercício que identificava através de certas
categorias as parcelas que deveriam compor o espaço brasileiro, e onde o território era
entendido segundo uma classificação que colocava progressivamente em seu centro, o
Estado e sua narrativa. A partir desta argumentação, definir-se-iam para o espaço
qualidades tais como, saúde, crescimento e perpetuação, que deveriam tipificar as
estratégias do Estado, agora organicamente ligado ao território, pulsante e vivo. Nesse
exercício, a conquista e a aquisição passavam a ser também consideradas como uma
conseqüência de certas necessidades do Estado, e que passariam a ser justificadas no
ajuste das narrativas históricas.
Portanto, as transformações do Estado, das suas necessidades, das suas categorias e
das suas qualidades também encerrariam mudanças de narrativas: da mesma maneira
que no setecentos a composição do mapa importava primeiro no riscar de sua paisagem,
na apreensão e descrição de suas naturezas, agora o Estado necessitava riscar suas
origens, riscar os mapas de seu passado — mover-se sobre as ruínas, não apenas
admirá-las, mas utilizar suas pedras em um novo Castelo.
34
Marquês de Aguiar, ‘Documentos relativos às questões de limites do Império do Brasil ventiladas no Congresso de
Paris em 1818’, 16/06/1816. IHGB, Lata 79, Documento 9.
107
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
6 — A DESCRIÇÃO DO CONTEMPLADOR: AS COROGRAFIAS E AS
CONDIÇÕES DE ELABORAÇÃO DA NARRATIVA
“A simples descrição deste sítio levanta a imaginação do contemplador.”
Visconde de São Leopoldo. Programa Geográfico.
Nosso primeiro objetivo neste capítulo é definir a corografia em relação ao
nosso objeto de estudo, já que as atividades de cartógrafos e corógrafos confundiram-se
e misturaram-se no Brasil durante os séculos XVIII e XIX num processo que
possibilitou a construção do espaço nacional e, ao mesmo tempo, moldou seus limites.
Em segundo lugar, definiremos este processo de construção do espaço nacional
como a constituição de uma narrativa através do ‘saber sobre o espaço’, discernindo as
condições de sua elaboração e inscrição no IHGB.
Inicialmente, a concatenação desses dois objetivos precisa ser explicada, tanto
pelas transformações da corografia nos séculos precedentes quanto pela consolidação,
no Brasil, de diversos modelos corográficos, a partir da segunda metade do setecentos.
A ligação clássica entre Corografia e Geografia surgiu ainda no segundo século
depois de Cristo no âmbito da Geographia de Ptolomeu de Alexandria. Esta obra era
composta de uma parte teórica a respeito do estudo e da composição do espaço e por
uma parte prática com a seleção, compilação e ordenação de perto de oito mil registros
de cidades e acidentes naturais reconhecidos pelo mundo romano em sua expansão
militar e comercial, num rol que se estendia desde a China até o Mar do Norte, cobrindo
ainda partes substanciais da África e Ásia. Esses registros, foram ordenados
espacialmente em relação a dois elementos, a latitude e a longitude, compondo
claramente um mundo de forma esférica cuja parte conhecida cobria pouco mais de 180º
de longitude.
1
A longitude era definida a partir de um ponto fictício, as Ilhas Afortunadas,
situadas pelo autor no extremo ocidental conhecido, e calculada por Ptolomeu através
1
Peter Whitfield, New Found Lands: Maps in the History of Exploration. New York: Routledge, 1998, p. 9-11; 53-
55.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
da distância tomada em dias de jornada. Esta medida era bastante imprecisa nas regiões
menos freqüentadas ou de difícil acesso, embora fosse relativamente eficaz nas áreas
urbanas e onde o Império Romano havia estruturado redes viárias.
Relacionada ao problema da composição do rol de registros, a questão da
longitude teria reflexo direto sobre seus métodos de trabalho e teorizações: embora os
objetivos e processos de Ptolomeu fossem científicos e rigorosos, estes dependiam da
confiabilidade e da comparação dos relatos de militares, exploradores e negociantes,
que, muitas vezes possuíam objetivos diversos e específicos.
Assim, a obra de Ptolomeu distinguiu o processo de construção do espaço em
duas etapas, cada qual relacionada a uma técnica: a corografia, que tão somente
recolheria as informações de uma determinada parcela do espaço, notadamente as
regiões habitadas, e a geografia, entendida por este enquanto hierarquicamente superior,
responsável por coligir, selecionar e retificar os dados apresentados pela corografia,
agrupando matematicamente os dados resultantes a um espaço organizado.
Presumivelmente, a última etapa do processo compor-se-ia da transposição dos
registros geográficos para uma base gráfica, através de uma técnica cartográfica,
contudo, não existem menções ou representações européias desta prática no período
imediatamente posterior a Ptolomeu.
Esta idéia de um ‘processo de construção do espaço’ seria transformada com a
redescoberta da Geographia no século XVI, quando traduções sucessivas e dispersas
pela Europa (especialmente em Londres, Antuérpia e em Basel) corromperam os termos
ptolemaicos, consolidando-se, pelos novos textos, outros atributos para a corografia e
uma relação eqüitativa desta com a geografia.
2
Essa mutação atingia a abrangência, o enfoque e o método da Corografia, que
teve redimensionados os seus objetos, passando a abranger regiões e até mesmo
Estados, os quais seriam estudados através de uma descrição pormenorizada e
minuciosa de sua natureza e costumes, que focava a mensuração de seus acidentes.
Por conseguinte, o século XVI esvaziou o conteúdo geográfico dos termos
ptolemaicos, passando a conferir um status científico à corografia que a tornava,
doravante, um instrumento prático e útil, para, por exemplo, resolver disputas de
2
Ver Lucia Nuti, ‘Mapping Places: Chorography and Vision in the Renaissance’, in Mappings, Denis Cosgrove.
London: Reaktion Books, 1999, p. 99-108.
109
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
território, vendas de propriedades, operações militares, planejamentos estatais e o
incremento comercial.
Também a partir desse período, a corografia desenvolver-se-ia paulatinamente
tanto como uma representação gráfica quanto textual: na Renascença italiana,
derivando-se da pintura e utilizando suas técnicas, a representação gráfica se
desenvolveu mais rapidamente, conflitando com a cartografia, seus métodos e escalas.
Este processo era tanto mais complicado porque se conheciam apenas as
proposições seiscentistas de modelos gráficos da geografia ptolemaica, baseados nas
teorizações da Geografia. Mesmo assim, estas proposições eram, por sua vez, derivadas
de representações árabes e se destinavam a contrapô-las, como se pode notar, inclusive,
pela questão relativa à orientação geral dos mapas, como se pode observar através da
comparação entre os mapas de Al-Idrisi, do século XI com o modelo do Atlas Catalão,
do século XIV. Enquanto as representações árabes inspiradas no modelo ptolemaico
eram orientadas para o Sul, possibilitando o destaque da Península Arábica, as
representações européias eram orientadas para o norte, destacando-se a massa
continental, subordinando ou excluindo o espaço islâmico.
A representação gráfica da corografia se desenvolveu na Itália e em Flandres
através de técnicas representativas ligadas diretamente à Perspectiva e a idéia de
Paisagem, que constituiriam diferentes modelos de representação: os Planos, os Planos
Perspectivos e os Panoramas.
Cada um destes modelos consolidou-se enquanto vertentes gráficas da
representação corográfica, embora diferissem entre si, principalmente, pela composição
do objeto em relação à centralidade do observador, resguardando-se, contudo, as idéias
de proporção, medida e distância.
Assim, o Plano individualizava-se por utilizar a perspectiva horizontal como
meio principal de inscrição da Paisagem, destinando-se, principalmente, ao
reconhecimento do espaço pelos viajantes; por sua vez, o Plano Perspectivo propiciava
uma melhor apreciação da distância e da relação entre diversos objetos separados entre
si no espaço, através do uso conjunto das perspectivas horizontal e vertical. Por sua vez,
o Panorama oferecia uma perspectiva de 360º, através da qual o observador era inserido
no centro da área inscrita.
Em face de sua representação gráfica, a corografia textual se desenvolveria com
mais vagar: ainda durante o século XVII, os principais cartógrafos se opunham à
utilização de material que não fosse cartográfico, a não ser que este fosse obtido por
110
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
seus próprios recursos, preferindo-se simplesmente, plagiar seus concorrentes e
predecessores ou utilizar, em vez daquele material, a combinação de cartas de menor
escala, transformando-se o mapa, por meio deste uso, numa espécie de mosaico.
3
Deste modo, a ascensão da corografia textual em fonte primária da cartografia se
daria cautelosamente a partir do século XVII, para atingir seu apogeu somente no
período que vai do meio do século XVIII até a primeira metade do século XIX.
Esta ascensão se daria a partir do incremento dos ‘circuitos de informação’, em
primeiro lugar, a partir de uma difusão cultural e acadêmica, que permitiu o aumento do
número de especialistas, cientistas e mesmo da ‘ilustração’ entre a elite letrada.
Em segundo lugar, a melhoria das condições materiais, especialmente dos meios
de transporte, propiciaria que um número maior de autores e de observadores confiáveis
pudessem se deslocar dos centros técnicos até as áreas de observação e que nestas
circulassem com maiores chances de sucesso.
Em terceiro lugar, a difusão da impressão tornou possível a inclusão de um
número maior de indivíduos letrados num circuito de informações que disponibilizava o
conhecimento e as práticas corográficas, como, por exemplo, através dos mapas e
corografias; de técnicas de mensuração visual das distâncias; e de práticas do
aprendizado do uso da perspectiva.
Em quarto lugar e último lugar, o conhecimento corográfico e sua discussão se
tornariam, mesmo, parte integrante do repertório de socialização de uma elite letrada.
4
Este incremento dos ‘circuitos de informação’ seria também responsável por
propagar dentre os indivíduos que deles participavam o conhecimento dos modelos de
representação da corografia gráfica, constituindo-se, assim, padrões de reconhecimento
e observação que seriam transferidos, por sua vez, para a corografia textual.
Assim, surgiram diferentes vertentes simultâneas da corografia textual que
podem também ser agrupadas em modelos, cujos eixos de narração coincidem em
naturalizar as ciências naturais como instrumento metodológico que separava,
descrevia, mensurava e ordenava. No caso brasileiro, praticamente todas as corografias
3
Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, Ministers and Maps: the Emergence
of Cartography as a Tool of Government in Early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University of Chicago
Press, 1992, p. 128.
4
Por exemplo, Chandra Mukerji, Territorial Ambitions and the Gardens of Versailles. Cambridge: Cambridge
University Press, 1997, p. 88-89.
111
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
textuais produzidas entre os anos de 1750 e 1850 pretenderam de algum modo conectar
as descrições geográficas com as descrições antropológicas e naturais.
Embora houvessem proliferado diversas designações dessas vertentes, estas
podem ser agrupadas em quatro modelos amplos, os ‘Roteiros’, os ‘Itinerários’, as
‘Memórias’ e as ‘Descrições’, os quais se diferenciaram por suas Perspectivas e objetos
particulares.
Assim, o modelo dos ‘Roteiros’ (ver Figura 19), no qual também podem ser
incluídas as Viagens, foi, por excelência, uma narrativa em primeira pessoa, do esforço
de penetração no desconhecido ou retirado, nomeado indistintamente como ‘Sertão’, no
qual se detalhavam as experiências, maravilhas e perigos, mas, que procurava
resguardar direções e peculiaridades que possibilitassem a orientação na área penetrada.
Por conta de sua originalidade, o Roteiro era capaz de consolidar a autoridade de
seu autor, estabelecendo seu prestígio em contrapartida à serventia que esse havia feito
ou presumido a respeito do espaço devassado: o ‘Sertanista’ não era apenas aquele que
penetrava o território, mas quem utilizava com algum proveito o ‘Sertão’.
Portanto, a atividade do sertanista relaciona o conhecimento do território com as
práticas da coleta e do aproveitamento dos seus recursos, sendo a idéia da geração e do
incremento do fluxo comercial dissociada, no Roteiro, do movimento de ocupação do
território. O Sertanista indica, instrui, assevera e disponibiliza à Colônia um espaço
além de seus limites, uma vez que era o prático dos Sertões, aquele que agregava
espaços, conduzia a raça e servia enquanto fonte de inspiração, seus relatos e exemplos
sendo transmitidos e imitados.
Veja-se, por exemplo, João de Souza, um dos mais célebres sertanistas do século
XVIII, considerado o primeiro explorador do rio Madeira e do rio Tapajós e o
descobridor da ligação entre as províncias do Pará e de Mato Grosso. Os Roteiros deste
Sertanista foram copiados ainda em sua vida transformando suas viagens em feitos
heróicos que continuariam sendo celebrados ainda em meados do século XIX, quando já
haviam se passado cem anos de suas célebres avançadas pelo Sertão.
5
5
Ver, por exemplo: João de S. José, ‘Viagem e visita do Sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; Ricardo Franco de Almeida Serra,
‘Mato Grosso. Navegação do Rio Tapajós para o Pará pelo Ten. C.el. Ricardo Franco de Almeida Serra, escrita em
1799, sendo Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; Joaquim José Ferreira & Ricardo Franco de Almeida Ferreira, ‘Reflexões Sobre a
Capitania de Mato Grosso, oferecidas ao Governador e Capitão General da mesma Capitania João de Albuquerque
de Mello e Cáceres: Pelos Tenentes Coronéis Joaquim José Ferreira e Ricardo Franco de Almeida’, in
Revista Do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XII, n° 15, 1849.
112
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Ainda, sua palavra chegou a possuir foros de autenticidade, sendo, nesse sentido,
consultado pela própria Metrópole em relação às políticas coloniais quando foi
responsável por pareceres que consolidariam a avaliação negativa do Tratado de Madri
conduzindo, inclusive, a sua anulação em 1760.
6
Por conseguinte, os Roteiros também tornaram-se muitas vezes a fonte de
produtos geralmente mais elaborados como as ‘Memórias’ e ‘Descrições’, nas quais
eram referidos como fontes de autoridade e onde se consolidaram seus juízos. Nesse
sentido, rivalizaram diretamente com os relatos dos viajantes e exploradores
estrangeiros como Condamine, Castelnau e outros, que, mesmo sendo reconhecidos
enquanto especialistas, tinham seu conhecimento apontado como superficial e
deturpador, por estes não conhecerem nem praticarem o interior, os sertões, mas apenas
as áreas limítrofes a este, como as vias navegáveis e as zonas habitadas.
7
Outro modelo corográfico, o ‘Itinerário’ (ver Figura 19), se diferenciou do
Roteiro na medida em que seu objeto era um território já explorado anteriormente e que
estava compreendido entre dois pontos delimitados. A regulação e o incremento do
fluxo comercial eram os principais objetivos dos Itinerários, e para tanto, sua estrutura
de narração era organizada a partir de um esquema de espaço ternário: partindo-se de A,
chega-se a C passando por B. Este esquema necessitava que o ponto B fosse claramente
distinguível e localizado pelo trajeto das interseções A—B e B—C, que também
deveriam ser direcionadas, mensuradas e avaliadas. Estes critérios temporais e espaciais
visavam à economia de recursos e ao gerenciamento das iniciativas através do
reconhecimento das vias de apoio e deslocamento e da identificação dos obstáculos,
como, por exemplo, nos trajetos São Paulo — Cuiabá, Pará — Mato Grosso, Goiás —
Pará.
Os Itinerários possibilitavam ainda que o comerciante ou viajante estabelecesse
seu próprio percurso constituindo escalas e entrepostos, sendo, inclusive, alertados para
as vantagens da reunião com outros viajantes em determinados trechos da rota, por
6
Ver ‘Carta do Il.mo e Ex.mo Sr. Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, escrita ao Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real em 20 de Janeiro de 1752, em
que declara, depois de ouvir algumas pessoas sobre o juízo que faziam do Tratado de Limites, o seu Parecer,’
Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I, 1752. IHGB 1. 2. 9:1752; ‘Parecer que deu João de Souza e
Azeredo sobre o referido em 26 de Janeiro de 1752’, in Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I, 1752. IHGB
1. 2. 9:1752.
7
Ver por exemplo: André Fernandes de Souza, ‘Notícias geográficas da capitania do Rio Negro [...]’ Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo X, n° 11, 1848; Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, Corografia
Paraense ou Descrição física, histórica e política da Província do Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833.
113
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
conta de dificuldades geográficas, como saltos, transbordos e rápidos ou em face do
perigo de ataque de indígenas. Nesse sentido, como os Itinerários eram na sua maior
parte compostos pela descrição das comunicações fluviais e dos pontos habitados que
estas ligavam, ‘lugares’ isolados em meio a florestas e outras regiões adversas, espaços
remotos, desertos e muitas vezes visualmente monótonos, provavelmente os Itinerários
receberam influência de modelos marítimos mais antigos e que guardavam certas
similaridades com os seus problemas e objetivos, como as ‘Cartas Portulanas’ e os
‘Itinerários Náuticos’.
As ‘Cartas Portulanas’, que remontam ao século XIV, foram mapas destinados a
orientar o comércio e as viagens no Mediterrâneo, onde a rota era estabelecida pela
escolha de uma ‘linha de rumo’, uma reta traçada no mapa ligando dois pontos
conhecidos. Na ‘linha de rumo’ o navegante se orientava através das direções obtidas
pela consulta à bússola e pelas medições da distância percorridas, que eram confirmadas
pela ‘estima’ e asseguradas pela identificação dos acidentes naturais mais notáveis,
descritos num compêndio, o ‘roteiro’. Este, por sua vez, daria origem aos ‘Itinerários
Náuticos’, que seriam utilizados pela navegação oceânica desde o século XVI até o
século XIX, consistindo numa relação minuciosa dos acidentes cujo conhecimento eram
considerados necessários à localização e ao trânsito costeiro.
Como nos espaços oceânicos dos antigos modelos marítimos, a comunicação
com o interior do Brasil foi construída sobre o risco da ultrapassagem do Vazio,
rasgando um espaço conhecido apenas em suas margens e sujeitando-se à alternância de
situações conhecidas, mas, incontroláveis. Os Itinerários, como as ‘linhas de rumo’,
possibilitavam o deslocamento através desse Vazio desde que sujeito a uma fixidez, a
uma norma e a uma invariabilidade que consubstanciava-se num movimento de
contorno do desconhecido apenas quebrado esporadicamente por paradas necessárias.
Nesse sentido, os ‘lugares’ dos Itinerários se assemelhavam às ilhas ou às
‘aguadas’ dos modelos náuticos, assim como suas margens e entornos, os sertões, eram
preenchidos à maneira dos mapas seiscentistas que ocupavam esses Vazios com
monstros e animais imaginários. Preenchia-se um espaço que não era só geográfico, mas
também da imaginação, com terrores que nos Itinerários foram deslocados sem serem
destruídos inteiramente. Através das ciências naturais e antropológicas essas
representações não foram despedaçadas, mas apenas ligadas às margens da narrativa
para que se pudesse encontrar os limites de sua passagem até um ‘lugar do
reconhecido’, num movimento possibilitador do controle ou da significação do Vazio.
114
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Estes movimentos seriam realizados a partir da centralidade, ou seja, da
perspectiva do autor, quando o Vazio tornar-se-ia se tornaria paulatinamente idêntico a
sua imagem.
O modelo corográfico das Memórias (ver Figura 19), no qual também podem ser
incluídas as Histórias e as Reflexões, compunha-se predominantemente de dissertações
onde tempo e espaço complexos eram relacionados. A questão histórica compunha o
eixo desse modelo, fosse estabelecendo a antigüidade da posse do território,
descrevendo o estabelecimento e o desenvolvimento da ocupação ou debatendo o
relacionamento do colonizador com os povos indígenas.
Nesse processo, as ruínas, os padrões ou a mera passagem do elemento
civilizador se constituiriam como monumentos da passagem para um patrimônio que
não se esgotava apenas pelo estabelecimento continuado: a mera consumação da
penetração do inexplorado se tornava uma qualidade inesquecível doravante ligando a
terra ao seu possuidor. Portanto, quando se assentava o povoamento, este era celebrado
como a narração da presença especialíssima do colonizador, virtuosa na presença e
industriosa tanto na tutela quanto na disputa com os indígenas.
Assim, no modelo das ‘Memórias’, a história tornou-se o elemento organizador e
consolidador do espaço, constituindo um território definido e nominado, através de um
exercício que pode ser entendido como uma narração da presença e estabelecimento do
Estado e de suas regras.
Pela especificidade dos objetivos das Memórias, seu autor normalmente era um
especialista, alguém capaz de emitir um juízo sobre as matérias geográficas ou
antropológica que constituíam os objetos da dissertação.
Portanto, o modelo das Memórias é também um lugar da inserção individual do
autor, criando-se uma ambigüidade da apreensão que desloca, muitas vezes, o objeto
corográfico do centro da narrativa, revelando-se nesse processo estratos culturais e
impressões pessoais, que, por exemplo, podiam variar desde o desconforto em relação à
presença ou atuação do Estado até o deslumbramento quase que infantil diante das
diferenças de espaço e de cultura.
Assim, nas Memórias, o especialista organizava, a partir do domínio da técnica e
da coleção de suas experiências, uma narrativa sobre um objeto circunscrito e
delimitado com objetivos preestabelecidos onde a história consolidava, relacionava e
confrontava o objeto com uma argumentação de ordem moral ou racional que
115
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
delimitava diferenças e divergências, estabelecendo estratégias de inserção,
recuperação, superação ou controle do espaço pelo Estado.
FIGURA 19 — ESQUEMA DAS COROGRAFIAS
Finalmente, as ‘Descrições’ ou ‘Corografias propriamente ditas’ eram
dissertações a respeito de um espaço bem delimitado e de grandes proporções onde a
presença de um ente organizador e central era inequívoca (ver Figura 19).
Normalmente, as Descrições não eram obras originais, mas se utilizavam de fontes mais
antigas, como outras Descrições, Roteiros, Itinerários e Memórias de onde se
atualizavam certos dados ou se adicionavam algumas categorizações.
O objetivo principal do modelo das Descrições era circunscrever um território
administrativo, situando-o em meio a outros por meio da descrição de seus componentes
humanos, geográficos e econômicos. Estes componentes eram então ordenados e
delimitados em espaços internos, os quais, por sua vez, seriam hierarquizados em
relação ao todo, por exemplo, através da composição e da distribuição da população, da
enumeração das possibilidades e realidades econômicas e da descrição dos acidentes
geográficos e de sua relação com o restante do espaço.
116
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Embora no período que vai de 1750 até 1850 existisse um fluxo mais ou menos
constante na produção das corografias textuais, os anos 1790-1810 e 1830-1850 foram
especialmente significativos. Estes dois momentos estão relacionados com alguns dos
fatores que permitiram que a corografia textual se tornasse fonte primária da cartografia,
especialmente o surgimento dos especialistas e a difusão da impressão.
No primeiro caso, a decadência da cartografia portuguesa nos séculos XVII e
XVIII, abordada anteriormente, exemplifica bem o desenvolvimento das Ciências
matemáticas e naturais nesse país. No caso brasileiro esta questão foi agravada pela
inexistência das Universidades e pelos impedimentos impostos pela Metrópole em
relação à visitação do país por estrangeiros. Embora, por conta da vinda de especialistas
enquadrados nos interesses da Metrópole, as atividades derivadas das demarcações dos
tratados do século XVIII (Madri e Santo Ildefonso) pudessem ter gerado a atividade
corográfica, as limitações técnicas e de pessoal anteriormente citadas impediram em
grande parte essa tarefa. Na realidade, a transformação da atividade corográfica
brasileira nos anos 1790-1810 está ligada a processos detonados na Metrópole, como as
transformações do período Pombal e à vinda da Corte.
Em relação ao período Pombal, a anulação em 1760 do Tratado de Madri
impeliu à ocupação militar dos extremos brasileiros, como, no caso da construção da
Fortaleza do Príncipe da Beira, sobre a margem do rio Guaporé, um dos maiores
entrincheiramentos das Américas e a conquista dos Campos de Guarapuava, o oeste do
atual Estado do Paraná.
Para isto se tornou necessário designar oficiais de alta patente, engenheiros
militares e outros profissionais deslocando os poucos elementos disponíveis no Império
português para intermináveis comissões no interior do Brasil, praticamente fixando-os à
Colônia. A reforma pombalina do sistema educacional português também possibilitaria
que alguns brasileiros pudessem ascender às carreiras técnicas, possibilitando que certas
tarefas da ocupação militar e mais tarde da demarcação do Tratado Provisório de Santo
Ildefonso fossem feitas não apenas por estrangeiros ou portugueses. Estes especialistas
brasileiros designados ou formados durante o período Pombal para as atividades
militares e estratégicas seriam os responsáveis por grande parte da produção corográfica
mais significativa dos anos 1790-1810, inclusive patrocinando trabalhos de terceiros por
meio de sua influência e de sua atividade quando instalados no aparelho burocrático da
Colônia.
117
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Alguns desses especialistas seriam deslocados na década de 1780 para o interior
do Brasil para a demarcação dos limites do Tratado Provisório de Santo Ildefonso.
Contudo, a repulsa das elites políticas metropolitanas a esse Tratado e o fracasso das
negociações posteriores transformaria as atividades daqueles indivíduos destinando-as a
coadjuvar as atividades militares, administrativas e comerciais da Colônia.
Na verdade, em face da escassez material e técnica da cartografia portuguesa,
foram pouquíssimos os indivíduos que participaram dessas atividades, por exemplo, nas
medições relativas ao Tratado de São Ildefonso somente cinco astrônomos foram
responsáveis pela cobertura de todo o território da América portuguesa: Antonio Pires
da Silva Pontes Leme, Francisco José de Lacerda e Almeida, Francisco de Oliveira
Barbosa, Bento Sanches e José Simões de Carvalho.
8
Suas tarefas eram simplesmente
gigantescas, mesmo para os padrões do século XXI: todas as observações nos rios
Solimões, Jupará, Branco, Madeira, Guaporé e na maior parte do Mato Grosso foram
feitas por apenas três dos astrônomos citados, a saber: Simões, Lacerda e Pontes.
Pontes, nascido em Mariana, Província de Minas Gerais, no reconhecimento de
rotas comerciais e na demarcação de limites, cumpriu no conjunto de suas comissões
um périplo várias vezes maior que o de Humboldt, Condamine ou qualquer outro
viajante do século XVIII e que talvez só possa ser superado pelas grandes explorações
africanas do século XIX. Outro daqueles astrônomos, José de Lacerda e Almeida,
nascido na cidade de São Paulo, após cumprir suas missões no Brasil recebeu ainda a
tarefa de tentar a travessia da África, de Moçambique para Angola, no decorrer da qual
viria a falecer.
Outro participante das atividades desse período, Ricardo Franco de Almeida
Serra, designado chefe dos Engenheiros Militares na expedição de Antonio Pires da
Silva Pontes Leme, comandava apenas um colega. Serra foi depois designado
sucessivamente para várias comissões na Província de Mato Grosso, sendo responsável
por grande parte dos planos e plantas topográficas da área Amazônica no período.
Por outro lado, a transformação da atividade corográfica nos anos 1790-1810
também está ligada à retirada das restrições impostas pela Metrópole à tipografia, que se
desenvolveria após a chegada da Corte em 1808. A divulgação das corografias textuais
escritas até a primeira década do século XIX havia sido muito restrita, sendo estas
8
‘Tabuadas de longitudes e latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrônomos empregados na
Demarcação’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XLV, n° 64, 1882.
118
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
conhecidas, no máximo, por alguns círculos militares ou administrativos. Somente com
a publicação da ‘Descrição Geográfica da Capitania de Mato Grosso’ do mesmo
Ricardo Franco de Almeida Serra, publicada no jornal ‘Patriota’, em 1813, e da
‘Corografia Brasílica’, em 1817, é que essas obras teriam uma circulação maior e
alcançariam um público menos restrito.
Estas duas obras seguiriam caminhos bastante diferentes durante o século XIX: a
obra de Serra não apresentou muita repercussão na época de seu lançamento, mas
exerceu uma influência capital e muitas vezes silenciosa sobre as corografias textuais e
a cartografia do o século XIX, especialmente no período de 1830-1850, enquanto que a
‘Corografia’ de Manoel Aires de Casal, obra dedicada a D. João VI e incentivada por
este, ainda que fosse bastante citada como fonte de autoridade, perderia gradativamente
seu prestígio intelectual quando a centralização do estado e a constituição de uma
narrativa das fronteiras imporiam novas estruturas às Descrições a partir da metade do
século XIX.
9
Isto se daria por conta da obra de Manoel Aires de Casal defender uma
divisão administrativa considerada depois inadequada e especialmente porque esse autor
ratifica explicitamente a narrativa do setecentos através da narração de seus limites.
Somente durante o Governo Vargas a ‘Corografia Brasílica’ recuperaria seu
prestígio, por conta do sentido que lhe foi emprestado pela construção historiográfica do
Estado Novo e pelo prefácio de Caio Prado Júnior.
10
Então aquela obra seria celebrada
como fundadora da corografia brasileira, por conta de abranger um espaço que poderia
ser definido como nacional e divulgadora da “Carta de Caminha, verdadeira certidão do
nascimento do Brasil”.
11
O IHGB e as condições de elaboração da narrativa
Explicada, a partir das transformações da corografia nos séculos precedentes, a
consolidação no Brasil de diversos modelos corográficos na segunda metade do
setecentos, procuraremos concatená-los com a constituição de uma narrativa através do
9
Veja-se, por exemplo, a opinião de Henrique de Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da Carta
Geográfica e da História física e política do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 20-22.
10
O prefácio de Caio Prado Júnior encontra-se junto a edição de 1945, feita pelo Instituto Nacional do Livro.
11
E. Vilhena de Moraes, ‘Nota Liminar’ in Catálogo dos mapas existentes na Biblioteca do Arquivo Nacional -
Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre geografia e cartografia realizada no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944, p. 4.;
119
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘saber sobre o espaço’, discernindo as condições de sua elaboração e inscrição no
IHGB.
Nesse sentido, ao contrário do que se poderia supor, as corografias textuais do
século XVIII foram mais influentes no século XIX do que as escritas no mesmo século
e dois fatores interligados explicam essa tendência: a já citada difusão da tipografia e o
aumento, no período, do interesse a respeito do espaço nacional.
Este último fator estaria ligado a duas influências bem marcadas: em primeiro
lugar, a condução do processo da política externa no Primeiro Reinado que se refletiria
na composição das elites políticas e na construção de certas imagens do espaço,
problemas que trataremos no capítulo posterior, e, em segundo lugar, a criação posterior
do IHGB como parte de um projeto das mesmas elites que visava forjar a Nação. Neste
contexto, já bem estudado por vários autores, o IHGB se tornaria não apenas uma
instituição destinada a arregimentar o material destinado à construção histórica da
Nação, mas também, um lugar de reunião e debate que possuía na sua Revista um
importante instrumento de divulgação.
A centralidade da Revista do IHGB na atividade de criação das corografias
textuais do século XIX é instituída na medida que se constitui no Instituto uma
narrativa a partir do ‘saber sobre o espaço’ que pode ser interpretado através de uma
leitura sobre a teorização do crítico literário Harold Bloom, por sua vez elaborada a
partir de Jacques Derrida e Sigmund Freud.
Para Bloom, a ‘Cena da Escritura’ é entendida como o ato criador, do qual se
originaria a ‘Cena Primária’, definida como uma performance, uma “ficção fantástica”,
dependendo estas, fundamentalmente, de um ato anterior, uma ‘Cena de Instrução’ “que
necessariamente é também uma cena de autoridade e prioridade”, origem do processo
de apropriação poética que chamaria de ‘angústia da influência’.
12
Em nossa análise da constituição de uma narrativa através do ‘saber sobre o
espaço’, divergiremos já da teorização de Bloom nos seguintes pontos: em vez de
entendermos a ‘influência’ ou a ‘angústia da influência’ como um ato de releitura,
transcendência e transgressão sobre uma continuidade arbitrária e inescapável,
entenderemos a ‘Cena da Escritura’ como a procura da afirmação sobre um Cânone
sempre em construção e permanentemente renovado, o que torna a ‘Cena de Instrução’
12
Harold Bloom, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995, p. 42-51.
120
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
uma interpretação criativa que busca sobre uma autoridade sempre renovada a
legitimação de sua escrita.
Nesse sentido, se novamente nos referirmos à contribuição de Derrida, esses atos
de releitura participariam, eles mesmos, de um processo contínuo e difuso de escolhas,
de aceitação e da incorporação de códigos e sinais que esse autor explica, utilizando a
referência da teoria freudiana, através do mecanismo inscrição — interpretação —
escritura,
13
que, no contexto da ‘Cena Primária’ seria remetido por Bloom à
confirmação pela imaginação, interpretada então como desprovida de referencial ou
significado.
Entretanto, em nossa análise, a ‘Cena Primária’, construída na ‘Cena de
Instrução’, estaria mais relacionada à elaboração do Cânone e a um processo contínuo,
transformador mas recorrente, uma reelaboração contínua ligada às ‘relações de
soberania’, que, inicialmente, possuiria a narração do setecentos como um elemento
referencial. Divergiríamos novamente de Bloom, ao considerar a ‘Cena Primária’ como
também sendo constantemente reelaborada, num processo onde se busca a legitimação
sobre o prestígio universal dos princípios, ou seja, segundo a teorização de Mirceia
Eliade, pela construção do Mito.
14
Assim, a Escrita, definida por Derrida no contexto da interpretação dos sonhos
de Freud como o produto de uma “cadeia significante de forma cênica”,
15
será
entendida, no caso, como um ato também coletivo e do qual as platéias incorporadas aos
atos de releitura também já participariam: a “Cena de Instrução” deixaria de ser
unicamente um ato necessário e originário para se tornar também um elemento da
vontade e de escolha, uma inscrição deliberada que compõe integralmente a “Cena da
Escritura”.
Portanto, em nossa análise, a idéia do Cânone não seria estritamente àquela da
filologia alexandrina, ou seja, de um corpo literário rígido e ordenado, mas a de um
conjunto em transitoriedade e processo, onde a idéia do classicus remonta não a padrões
de origem, mas de finalidade e que participa de um ou mais ‘teatros’ de produção e
interpretação.
13
Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
14
Ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
15
Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002,
p. 210.
121
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Aproximando novamente nossa análise com a teorização de Bloom, entendemos
que a idéia de ‘Cena’ (enquanto um cenário ou lugar onde a ação “ocorre ou é
encenada”)
16
pode ser ampliada o suficiente para abranger todo o processo de
construção do espaço, uma vez que este possuirá no século XIX diversas ramificações e
imbricações, utilizando, doravante, a idéia de teatros da narrativa, para coletivamente
designar a escrita, a produção e as relações e inter-relações poéticas.
Nesse sentido, a idéia de uma ‘influência’ na produção da corografia textual no
IHGB estaria mais ligada àquilo que Burckhardt sugeria a respeito do século XIX: em
vez das relações entre “a grandeza e o infinito” sugeridas por Bloom, a prisão e a
privação nas rodas da “máquina encantada” do oitocentos:
17
a narrativa é uma
produção, uma inscrição das ‘relações de soberania’.
No caso do Instituto, a elaboração e a editoria da Revista do IHGB
corresponderia a uma parcela do processo de produção que surgiria já com a fundação
desse instituto e a partir de exercício que seria consubstanciado pela apresentação e
discussão dos textos de seus sócios nas sessões periódicas. Estes textos produziriam
respostas ou anseios que, por sua vez, seriam catalisados através da busca de corografias
e de sua publicação na ‘Revista’, consolidando-se a argumentação por referirem-se às
necessidades verificadas na discussão ou ainda, que apontavam o direcionamento
destas.
Por sua vez, estes novos classicus incrementariam a discussão e remeteriam à
novos textos que, por sua vez, remeteriam a uma nova busca de textos e sua publicação,
consagrando outros classicus, e estabelecendo no IHGB um ‘Debate’ que incrementaria
uma dinâmica do processo de produção da narrativa. Este conjunto de práticas e usos
centralizado no IHGB, mas, participante do teatro da narrativa, será denominado,
doravante, de regime da narrativa.
Novamente, para comparar nossa idéia à ‘angústia da influência’ de Bloom,
remetemos à percepção do Fausto por Burckhardt, que, no caso, entendia a importância
do classicus como originador de um impulso, em direção a uma verdade, na realidade
impossível de ser encontrada. Para Bloom, a recusa da instrução é também uma recusa
da autoridade e prioridade, com a rejeição absoluta dos pais engendrando uma versão
tardia destes, entretanto, como entendemos que o classicus na produção corográfica do
16
Harold Bloom, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995, p. 58.
17
‘Carta para Albert Brenner’ in Jacob Burckhardt, Cartas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 225-230
122
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
IHGB é também parte de um processo de inscrição das ‘relações de soberania’ e de sua
reelaboração através da narrativa, o ato de releitura confunde-se na própria ‘Cena da
Escritura’, como pode ser exemplificado pela observação de Burckhardt, em relação ao
mesmo Fausto: “qualquer um que tenha lidado com alegorias por tanto tempo quanto
ele torna-se inevitavelmente, ele próprio uma alegoria”.
18
Novamente retomando nossa descrição do regime da narrativa, na medida em
que o poder decisório do IHGB foi centralizado, numa feição ancien régime, nas mãos
do Secretário Geral,
19
a publicação das corografias textuais do século XVIII não era
apenas parte das atividades do Instituto mas também uma fonte de consolidação da sua
autoridade e um elemento estimulador do debate, uma vez que influenciavam discussões
que por sua vez influenciavam outras publicações numa continuidade guiada pela
referenciação originária.
A publicação das corografias textuais do século XVIII gerariam uma atividade
corográfica que seguiria seus modelos e que se orientaria em parte por seus métodos,
estabelecendo-se assim uma convivência entre antigos e modernos modelos e métodos
corográficos que amoldar-se-iam na narrativa. Este amálgama poderia ser
exemplificado pela presença, nas corografias, de citações de coordenadas tiradas através
das distâncias junto às modernas coordenadas astronômicas e, inclusive, pela utilização
em de medições de longitudes e latitudes feitas pelos Demarcadores dos Tratados do
século XVIII quando sabia-se que era comum existirem, mesmo nas medidas de
latitude, diferenças de até 10 graus.
Portanto, tanto a investigação das origens quanto o estudo das finalidades da
publicação das corografias na Revista do IHGB compõem um mesmo processo, o
regime da narrativa, que deve ser investigado para que se entendam as condições de
elaboração da narrativa e, consequentemente, a construção do espaço nacional.
O interesse pelo espaço nacional e o conseqüente esforço de publicação das
corografias do século XVIII ainda extrapolaria o IHGB, como no caso do Diário do
astrônomo da Partida de 1786 Francisco José de Lacerda, que foi publicado em 1841
por determinação da Assembléia Legislativa de São Paulo. Esta problematização do
espaço através das corografias seria grandemente influenciada em suas origens pelas
18
‘Carta para Albert Brenner’ in Jacob Burckhardt, Cartas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p.230 -232.
19
Manoel Luiz Salgado Guimarães, ‘Reinventando a Tradição: sobre Antiquariado e escrita da História’, in
Humanas, Porto Alegre, 23, ½, 2000, p. 129.
123
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
indefinições em relação a uma construção da história pátria: através da discussão do
espaço se buscavam na territorialização da história as fontes para essa leitura.
Nesse sentido, em sua origem, o Debate no IHGB oscilaria tanto entre as
remissões à exploração portuguesa quanto às descrições de territórios e monumentos
imaginários capazes de fazer remontar a leitura histórica a uma origem clássica capaz de
identificá-la com suas congêneres européias. Este problema pode ser exemplificado
através da remissão às citações de três territórios e monumentos imaginários que foram
divulgados através da Revista do IHGB, alimentando o Debate e gerando investigações
e explorações, no caso, a ‘Cidade Abandonada’ no sertão da Bahia, os ‘Martírios’ no
sertão de Goiás e as ‘Inscrições da Pedra da Gávea’.
No caso da ‘Cidade Abandonada’, a Revista do IHGB seria diretamente
responsável por emprestar legitimidade a esse território imaginário, relacionando-o a
fatos históricos autênticos e a documentos descobertos por seus próprios membros.
Esses relatos seriam divulgados na ‘Revista’ e descreveriam uma cidade com uma
arquitetura tipicamente romana, com arcos, estátuas, um templo e vestígios de sua
cultura, como moedas, espadas, etc.
20
Esta idéia da sobrevivência clássica no Sertão brasileiro estava associada a duas
representações: a velha idéia da Manoa, ou seja, um ‘território da opulência do ouro’,
como também a nova idéia do ‘mistério paleográfico’, ou seja, a existência de escritos
não decifrados que conteriam a chave de uma antigüidade a identificar.
A busca da ‘Cidade Abandonada’ drenaria recursos e esforços tanto do Governo
quanto do IHGB por, pelo menos, dez anos, sendo que o Instituto destacaria um de seus
sócios, José de Carvalho Benigno, para esta tarefa.
21
Já o território imaginado dos ‘Martírios’ surgiria como um subproduto da
publicação das corografias do século XVIII onde aquela região era bastante citada e
sempre em relação à antigos relatos de Bandeirantes. Duas versões diferentes foram
apresentadas então no IHGB: na primeira, supostamente havia sido identificado um sítio
onde estranhas figuras de pedra lembrariam os sinais do martírio de Cristo, enquanto
20
Januário da Cunha Barbosa, ‘Relação histórica de uma oculta e grande povoação antiquíssima, sem moradores, que
se descobriu no ano de 1753, nos Sertões do Brasil; copiada de um manuscrito da Biblioteca Pública do Rio de
Janeiro’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo I, n° 2, 1839.
21
Ainda em 1849 Benigno se reportava ao IHGB indicando a possibilidade da existência da ‘Cidade Abandonada’ e
relacionando-a com outros mitos semelhantes como o de Moribeca. José de Carvalho Benigno, ‘Breve Notícia
Sobre as Minas Descobertas no Assuruá, na Província da Bahia’, in
Revista Do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo XII, n° 16, 1849.
124
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
que na segunda, os sinais do suplício de Jesus estariam diretamente representados em
gravuras rupestres, as quais estariam rodeadas por estranhos monumentos de pedra.
Em ambas as versões, os ‘Martírios’ marcavam a existência de uma rica lavra de
ouro nos sertões de Goiás, portanto, havendo, novamente, uma associação do ‘mistério
paleográfico’ com a idéia de um ‘território da opulência do ouro’.
Por último, também debater-se-ia no IHGB a notícia da existência de inscrições
semelhantes à escrita fenícia na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, as quais poderiam
atestar o desembarque num passado remoto de indivíduos daquela civilização no Brasil.
Este debate motivaria o envio de uma expedição ao local que acabaria não excluindo
completamente a possibilidade de um desembarque fenício, mas indicando a maior
probabilidade das formas engastadas na rocha haverem sido causadas pelos fenômenos
da natureza.
Portanto, a discussão do espaço no IHGB remeteu-se, a princípio, à discussão
mesma da origem histórica através de seu remetimento a um ‘mito fundador’, o qual iria
se desenvolver gradualmente através de um processo cuja finalidade era a definição de
um espaço nacional e que foi deslanchado pelo chamado Programa Geográfico, de
autoria do primeiro presidente do IHGB, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde
de São Leopoldo:
Quando o Brasil aparece em notória crise; quando por todos os lados
é comprimido, e estreitado em fôrma de bronze, e os escritores do dia
provocam e desafiam os literatos para que instruam o Público, ávido de
conhecer os títulos da sua propriedade; o Instituto Histórico e Geográfico do
Brasil há de cruzar os braços, com indiferença e insensibilidade?
22
Assim sendo, o Programa Geográfico se constituiu explicitamente sobre duas
premissas: o desconhecimento do território por parte das elites políticas e a percepção
de um refluxo do espaço nacional por conta da expansão dos espaços circundantes.
A percepção de que a Pátria estaria sendo envolvida e sitiada foi derivada em
grande parte das idéias e das discussões das relações externas realizadas pela elite
política, cujas circunstâncias serão debatidas no próximo capítulo. Quanto a questão do
desconhecimento, esta estava conectada ao problema mesmo da construção histórica e
22
Visconde de São Leopoldo, ‘Programa Geográfico - Quais são os limites naturais, pacteados e necessários do
Império do Brasil?’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, tomo 105 parte I, 1902.
125
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
se definiria paulatinamente por uma associação do ‘mito fundador’ com a construção da
narrativa do espaço nacional, através dos esforços e iniciativas realizados pela
Metrópole na América portuguesa, associação esta que terá como fio condutor as
corografias textuais.
Portanto, a publicação das corografias textuais na ‘Revista do IHGB’
problematizaria a questão do espaço num processo que também visava definir a
construção histórica.
Nesse processo, o resgate das corografias textuais do século XVIII possibilitou
duas construções diferentes: primeiramente, a associação do espaço imaginado com
uma origem remota embasada na antiga presença humana no território, cuja
historicidade pudesse ser remontada e atribuída. Em segundo lugar, o aperfeiçoamento
de um modelo que designaria a finalidade do processo, a idéia da filiação a uma
civilização européia idealizada, a partir da qual se produziam as corografias textuais.
O Debate sobre estas construções seria incentivado pelas diretrizes do próprio
IHGB, que indicavam o conteúdo e a forma das informações geográficas que seus
sócios deveriam remeter. A geografia estava, por conseguinte, associada à história, mas,
segundo a utilização de uma espécie narrativa já consagrada, a corografia, e que era
considerada capaz de oferecer a disponibilização de certos elementos essenciais da
construção da nova presença humana:
Notícia circunstanciada da extensão da Província, de sua
confrontação com outras, de sua divisão em comarcas, da direção de
seus rios, e montanhas, da qualidade de seus terrenos, e de seus
arvoredos, da sua mineração, agricultura, e pescarias, de tudo enfim que
possa servir à história geográfica do país, e com a possível exatidão e
clareza.
23
Portanto, a problematização do espaço que se iniciou com o Programa
Geográfico consagraria tanto a forma das corografias textuais do setecentos quanto a
remissão das corografias do século XIX a uma construção histórica do território
nacional através da monumentalização da presença do colonizador, afastando-se
paulatinamente o tema dos territórios imaginários do centro do debate.
126
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Esta problematização prosseguiria através do debate propiciado pelas Breves
Anotações de Manoel José Maria da Costa e Sá
24
e da Resposta às Breves Anotações do
Visconde de São Leopoldo. Através destas obras, tanto foi apontado o escopo histórico
e narrativo da monumentalização como também se estabeleceu um Cânone das obras
essenciais ao debate do espaço nacional, composto pelos atos diplomáticos dos séculos
XVII e XVIII, pelos comentários e críticas aos Tratados e pelas corografias textuais do
período, dentre as quais se tornariam bastante relevantes a Descrição Geográfica da
Capitania de Mato Grosso e as Memórias relativas ao ato de posse realizado por Pedro
Teixeira no rio do Ouro.
A publicação destas duas corografias do setecentos na ‘Revista do IHGB’,
25
inauguraria o fluxo responsável por determinar a forma da produção corográfica do
século XIX, uma vez que o debate iniciado por Fernandes Pinheiro privilegiava não o
enquadramento territorial num espaço nacional, como a Corografia Brasílica de Ayres
de Casal, mas, a construção do espaço através da discussão verdadeiramente focal do
território, o que permitia tanto a problematização das questões surgida por via da
Política Externa quanto a delimitação e circunstancialização dos interesses
representados no âmbito do IHGB.
Contudo, o processo de produção e publicação das corografias textuais adquiriu
não apenas a função de elemento propiciador e instigador do debate, mas também a de
conector com aquilo que Harold Bloom chamaria de “prestígio das origens”: a idéia da
ligação com um tempo sagrado que as transformações ou as mudanças não poderiam
alterar.
26
As corografias serviriam então como documentos da ligação do território com o
espaço monumentalizado e com o agente civilizador, caracterizando-se uma dicotomia
entre a nova e a antiga presença humana centrais no debate do IHGB. Esta dicotomia
23
Januário da Cunha Barbosa, ‘Lembrança do que devem procurar nas Províncias os sócios do Instituto Histórico
Brasileiro, para remeterem à sociedade central do Rio de Janeiro’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo I, n° 1, 1844.
24
Manoel José Maria da Costa e Sá, ‘Breves anotações à Memória que o Ex. Sr. Visconde de São Leopoldo Escreveu
Com o Título "Quais são os limites naturais, pactuados, e necessários do Império do Brasil?’, in Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105 parte I, 1902.
25
Respectivamente: Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Extrato da descrição geográfica da Província de Mato
Grosso, feita em 1797’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo VI, n° 22, 1844; Francisco
Xavier Ribeiro de Sampaio, ‘Extrato da viagem que em visita e correição das povoações da capitania de São José
do Rio Negro, fez o ouvidor e intendente general da mesma Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, no ano de 1774
e 1775’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo I, n° 2, 1839.
26
Harold Bloom, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995, p. 57.
127
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pode ser exemplificada pela publicação de um grande número de corografias cujo foco
central era a presença do colonizador em territórios contestados ou cuja posse não era
reconhecida ao Brasil, uma vez que estava relacionada à influência dos problemas da
política externa na década de 1840.
27
A partir desses enfoques da construção e problematização do espaço gerado pelo
debate em torno do Programa Geográfico, os interesses das elites do Rio de Janeiro
puderam ser ligados aos das elites das Províncias, inclusive através de um esforço de
identificação do território: ao lado das explorações arregimentadas e apoiadas pelo
IHGB, os governos das Províncias e os particulares também passaram a organizar
expedições cujas finalidades incorporavam-se aos anseios do Instituto.
Significativamente, através da ‘Revista’ certos aspectos e exemplos dessa
articulação seriam destacados e entronizados na discussão do espaço, em especial
aqueles que possibilitavam a descrição dessas explorações enquanto missões
civilizatórias ou enquanto participando de um esforço de integração, como por exemplo,
nos Itinerários patrocinados pelo Barão de Antonina na região do Oeste paulista e nos
Campos de Guarapuava
28
; na Viagem através do Araguaia incentivada pelo governo da
Província de Goiás ou no Relatório de Castelnau ao Ministério da Instrução Pública.
29
27
Por exemplo, aqueles referentes à margem norte da embocadura do Amazonas, ao alto rio Branco, à Amazônia
Ocidental ou a região do rio Paraguai. Ver: Antonio Ladislau Monteiro Baena, ‘Memória sobre o intento que tem
os ingleses de Demerari de usurpar as terras a oeste do rio Repunari adjacentes à face austral da cordilheira do Rio
Branco para amplificar a sua Colônia’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo III, n° 3,
1841; Alexandre Rodrigues Ferreira, ‘Propriedade e posse das Terras do Cabo Norte pela Coroa de Portugal
deduzida dos Anais Históricos do Estado do Maranhão e de algumas Memórias e documentos por onde se acham
dispersas as suas provas’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo III, n° 3, 1842; Antonio
Pires da Silva Pontes, ‘Viagem de reconhecimento das comunicações do Brasil com a colônia holandesa Surinã’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo VI, 1844; Francisco José Rodrigues Barata, ‘Diário da
viagem que fez à colônia holandesa de Surinam o Porta-bandeira da sétima companhia do regimento da cidade do
Pará, Francisco José Rodrigues Barata, pelos sertões e rios deste Estado, em diligência do Real Serviço’, in
Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo 8, n° 1, 1846; Henrique de Beaurepaire Rohan, ‘Viagem de
Cuiabá ao Rio de Janeiro, Pelo Paraguai, Corrientes, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em 1846, pelo major
Henrique Beaurepaire Rohan’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 7, 1847;
Manoel Joaquim de Abreu, ‘Diário roteiro da diligência de que foi encarregado em 1791 Manoel Joaquim de
Abreu, ajudante da praça de Macapá, por ordem do Governador e Capitão General do Estado’, in
Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XI, n° 11, 1848.
28
John Henrique Elliot, ‘Resumo do itinerário de uma viagem exploradora pelos rios Verde, Itareré, Paranapanema, e
seus afluentes, pelo Paraná, Ivary e sertões adjacentes, empreendida por ordem do Ex. Sr. Barão de Antonina’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; João Henrique Elliot, ‘Itinerário das
viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para descobrir uma via de comunicação entre o
porto da vila de Antonina e o Baixo Paraguai na Província de Mato Grosso: feitas nos anos de 1844 a 1847 pelo
sertanista o Sr. Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Sr. João Henrique Elliot’, in
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo X, n° 10, 1848.
29
F. de Castelnau, ‘Relatório dirigido ao Ministro de Instrução Pública pelo Sr. Castelnau, encarregado de uma
comissão na América Meridional’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo VII, n° 26, 1845;
Rufino Theotônio Segurado, ‘Viagem de Goiás ao Pará’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
tomo X, n° 10, 1848.
128
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O esforço das elites provinciais incorporaria ainda ao Programa Geográfico uma
produção local incipiente que havia surgido através da inspiração proporcionada pela
Corografia Brasílica e que havia se encaixado no modelo corográfico textual das
Descrições, ainda que tendo restringido sua escala e objetos aos interesses da
administração regional.
30
Portanto, constituiu-se paulatinamente um ‘saber sobre o espaço’ obtido por
diferentes vias e por diferentes meios, cujo alcance e adequação aos anseios do IHGB
seria reconhecido pela consolidação de um Cânone de obras essenciais, pela integração
do somatório das contribuições regionais, pela divulgação de um número significativo
de textos pouco conhecidos ou pelo incentivo e publicação de novas produções. Este
‘saber sobre o espaço’, continuamente depurado, transformado e legitimado no debate
do IHGB, foi utilizado para pautar decisões de política interna e externa, e transposto
em sucessivas representações cartográficas.
Entretanto, para que fosse possível representar graficamente a discussão travada
no âmbito do IHGB, por conta da incerteza sobre o espaço, seria necessário que esta
representação do espaço nacional não se constituísse através da nova Estética
cartográfica que se consolidou no século XVIII, mas, segundo a concepção
renascentista da geografia ptolemaica. Neste sentido, a centralidade do Programa
Geográfico e, consequentemente, do projeto do IHGB na discussão do espaço nacional,
tornou possível o amálgama daquela concepção com as novas técnicas de projeção e
impressão reunindo e legitimando o ‘saber sobre o espaço’ neste processo. Este
amálgama seria transformado no conhecimento cartográfico de facto, criando-se, por
conseguinte, uma tensão pela convivência forçada entre as concepções ptolemaicas e a
nova Estética cartográfica a qual doravante incorporar-se-ia à cartografia brasileira.
A cartografia do território brasileiro no século XIX seria, portanto, a
representação gráfica de um espaço nacional continuamente em construção no Debate,
num processo que seria desenvolvido, delineado e transformado pelo senso de
oportunidade política de uma elite que sucessivamente se imaginava e se descrevia no
território, inscrevendo um espaço moldado pelos seus interesses.
Assim, o registro corográfico e cartográfico do espaço nacional poderia ser
definido como uma ‘descrição do contemplador’ que refletia, infletia e projetava seu
30
Por exemplo: Raimundo José da Cunha Matos, ‘Corografia histórica da Província de Minas Gerais’, 1833. IHGB,
1.4.8; Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva,
Corografia paraense ou descrição física, histórica e política da
Província do Grão-Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833.
129
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
espaço imaginado, num subversão das construções anteriores e da nova Estética
cartográfica, o que permitiria, mesmo, que um dos membros dessa elite pudesse, bem
mais tarde, observar ter “construído o mapa do Brasil”.
31
Para que essa inscrição pudesse ser bem sucedida, foi necessário que alguns
elementos da ‘gramática da visão’ dessa elite constituíssem também o ‘saber sobre o
espaço’ reunido no IHGB. O primeiro, percebido elaborado desde o enfoque das
corografias textuais em territórios restritos; segundo, desde a influência dos modelos da
corografia gráfica sobre a corografia textual; terceiro, desde a sobrevivência de uma
forma especial da corografia oral e textual do setecentos: o mapa literário.
O enfoque das corografias textuais do século XVIII num território restrito se deu
por conta tanto de uma construção descentralizada do espaço na América portuguesa,
como já foi visto noutro capítulo
32
e se transmitiu como modelo às corografias do século
XIX por conta das características inerentes às discussões do espaço no IHGB. Assim,
seria no embate entre o anacronismo do modelo de espaço do setecentos e os interesses
e problemas políticos do oitocentos que a influência dos modelos da corografia gráfica,
sobretudo o Plano e o Plano Perspectivo, se faria sentir sucessivamente sobre os
modelos da corografia textual, especialmente os Roteiros e os Itinerários.
A relação do Plano com aqueles dois modelos da corografia textual se verifica
mesmo a partir de suas características narrativas: como os Roteiros e os Itinerários eram
narrações da penetração ou passagem pelo território através das vias navegáveis, o
deslocamento da perspectiva nestes se fazia numa contraposição entre o
congestionamento do centro e a profundidade do Vazio. Esta relação seria conjugada
com uma dinâmica da colonização, onde a descrição do deslocamento se sobrepunha a
da ocupação, objetivando-se na narração como uma estrutura que opunha a
impenetrabilidade e o mistério do interior com a fluidez e a personalidade dos caminhos
navegáveis. Na verdade, o Sertão somente começaria a ser descrito na medida em que
essa dinâmica do deslocamento fosse substituída pelos interesses da organização do
território e da inclusão civilizatória, fossem estes provenientes do Estado ou de
particulares.
31
Barão do Rio Branco, Efemérides Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999, p. XV.
32
Ver nesta tese o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.
130
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Antes do estabelecimento de Miranda, que deu ocasião de se
reconhecerem estes terrenos, se supunha, pela perspectiva que oferece a
navegação do Paraguai, que entre este rio e o Paraná corria de norte a sul
uma unida e extensa cordilheira de serras, chamadas de Amambaí, de cujos
montes nasciam os diversos e opostos braços daqueles rios: mas agora se
conhece que estes sólidos montuosos, que gradualmente se elevam, são
todos interrompidos por largos campos denominados da Vacaria [...].
33
A influência do Plano foi sendo substituída pela do Plano Perspectivo, na
medida em que também a dinâmica de reconhecimento das comunicações fosse
substituída pelo estabelecimento no território, sendo este qualificado, abrangido,
absorvido pela vista e pela compreensão. Nesse deslocamento do Plano para o Plano
Perspectivo estava ainda compreendida uma estratégia de monumentalização da antiga
posse através da exortação da antiga presença humana, reconhecida na figura do
colonizador: seus atos, propósitos e sacrifícios pessoais garantiriam a integração do
território ao novo espaço, sendo este processo qualificado enquanto a recuperação e
refundação do antigo.
Esta passagem na estrutura narrativa das corografias de uma exortação da antiga
presença humana para a tipificação da nova presença humana, como civilizadora e
ordenadora, consagrar-se-ia nas Memórias e Descrições. Este deslocamento aconteceu
na medida que se tornava necessário estabelecer um conhecimento totalizante que
ultrapassasse as diferentes aproximações de escala representadas pelos Roteiros e
Itinerários e que ao mesmo tempo permitisse inibir os lapsos entre estes.
Deste modo, se construiu paulatinamente pela influência da perspectivação do
Panorama uma intuição sobre as Memórias e Descrições que passou a orientar uma
intelecção do território totalizado através da narrativa de sua penetração e ocupação.
Nesta intelecção a presença humana assumia o controle das disposições e das
qualificações dos elementos que passaram a compor o conjunto. Com isto, o território e
seus elementos deixaram de centralizar a narração e tornar-se-iam uma unidade dentre
outras unidades, descortinadas, desenvolvidas e aglutinadas a partir da experiência e do
conhecimento adquirido pela presença humana.
33
Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Memória ou informação dada ao Governo sobre a Capitania de Mato Grosso,
por Ricardo Franco de Almeida Serra, Tenente Coronel Engenheiro em 31 de Janeiro de 1800’, in
Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo II, n° 5, 1841, p. 35-36.
131
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Já o Mapa Literário (ver Figura 19) se desenvolveria no século XVIII através da
influência do Panorama numa forma limítrofe entre a corografia textual e a cartografia e
possuía suas origens e divulgação na oralidade, sendo algumas vezes inscrito na forma
literária e podendo ser descrito como uma descrição panorâmica de uma intuição da
presença humana sobre uma unidade territorial. Deste modo, a divulgação do ‘mapa
literário’ permitiu a circulação de uma idéia unitária do espaço brasileiro e de um
território a este atribuído, especialmente entre as elites administrativas e letradas. Este
modelo corográfico foi resgatado para a ‘linguagem do espaço’ por José Feliciano
Fernandes Pinheiro, ajudando a consolidar, junto às demais corografias, o debate do
espaço nacional no IHGB.
O mapa literário e a intelecção de um espaço unitário
A tradição da produção e divulgação de registros oralizados do espaço deita
raízes na produção cartográfica medieval européia, uma vez que, ainda que houvesse
um grande interesse na confecção dos mapas-múndi na Idade Média, houve
pouquíssimos esforços para se produzir mapas locais na Europa até 1300.
34
Enquanto que a produção do mapa-múndi na Idade Média possa ser entendida
enquanto uma forma de representação da ideologia religiosa e de significação do
Cristianismo em relação ao resto do Ecúmeno, a representação do local foi abastecida
por uma teia de interesses que se confrontaram e se misturaram demonstrando sua
diferenciação através de estruturas organizativas da narração, do léxico e da gramática,
que definiremos melhor no próximo capítulo. Aliás, a representação gráfica dos mapas
locais na Europa estará diretamente ligada a ascensão do poder central e das suas
necessidades de taxação: enquanto os poderes centrais não se sobreporem a um poder
descentralizado e muitas vezes difuso, a forma não-gráfica dos mapas continuará sendo
praticamente a única forma de representação do espaço local.
Os formae, instrumentos cadastrais dos Romanos, foram os predecessores dessas
representações medievais, uma vez que aglutinavam na mesma forma, certos elementos
gráficos, como os principais rios e a delineação das propriedades e uma extensa
descrição literária dos registros da propriedades.
35
Progressivamente, em função da
34
Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell
University Press, 2000, p. 1-2.
35
Norman J. W. Thrower, Maps and Civilization: Cartography in Culture and Society. Chicago: The University of
Chicago Press, 1999, p. 23-25.
132
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
dinamicidade das transformações do espaço, os elementos gráficos passaram a
coadjuvar os elementos oralizados, fazendo com que, especialmente nas cidades, os
mapas fossem compostos apenas em sua forma literária.
Ainda, na Europa medieval não existiu um modelo único de ‘mapa literário’ mas
várias formas de representação literária, cada uma destas conectada a um diferente
grupo e a seus interesses, havendo a convivência, por exemplo, de ‘mapas literários’
compostos por artesãos, comerciantes ou grandes proprietários, que se distinguiam e se
faziam distinguir a partir dessa representação do espaço local. Assim, seria mais correto,
conforme constata Daniel Smail na sua pesquisa sobre os mapas oralizados da cidade de
Marselha, atribuir a estas formas, em certos casos, a designação de ‘mapas lingüísticos’,
uma vez que seus termos estão conectados ao uso e às necessidades de seus
operadores.
36
Por conseguinte, a idéia de representação cartográfica que se estabeleceu na
Europa durante a Idade Média era plural e não singular, construída através de um
conjunto de significações que denotavam idéias, conceitos e hierarquias, e que
possibilitaram na escala local a ordenação e a coesão de um determinado grupo, pelo
controle da posse, pela manutenção da efetividade das transações e pela orientação
desse grupo em relação a seu próprio universo lingüístico.
Assim, o ‘mapa lingüístico’ foi composto através do exercício de conceitos e
padrões inteligíveis para o grupo, onde, por exemplo, a localização se estabelecia
através da triangulação entre pontos notáveis que se fizeram, ou foram feitos
importantes pelo uso e divulgação no trato cotidiano. Por conseguinte, os marcos dos
‘mapas lingüísticos’ eram, ao mesmo tempo, marcos da sociabilidade do grupo e os
monumentos da edificação dessa comunidade que se consolidariam através de uma
construção do espaço diretamente ligada à experimentação do território.
No caso do Brasil, antecedendo a construção do espaço nacional no século XIX,
os ‘mapas literários’ expressaram mais as idéias de um espaço brasileiro unitário,
enformado pelas experimentação do território e divulgado pelas necessidades das elites
administrativas, já que este não podia ser ainda convincentemente descrito através da
representação gráfica.
36
Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell
University Press, 2000, Introduction.
133
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Estes mapas, eram mais propriamente Panoramas capazes de reunir
sucintamente certas informações pertinentes ao fluxo comercial geral ou administrativo
através da remissão aos demais modelos corográficos. Assim, poucas eram as citações
sobre os territórios eram apenas de natureza geral, e mesmo estas se faziam sempre a
partir de sua relação com uma presença humana então enfatizada pela fruição, pelo
deslocamento ou pela relação com um status jurídico. Neste último caso, representavam
ainda uma intelecção do circuito descritivo do espaço da América portuguesa em sua
vinculação à argumentação qualitativa e da nulidade dos tratados, no caso, configurada
na narrativa do setecentos.
Na realidade o espaço descrito nos mapas literários era múltiplo e desigual: não
apresentava contornos definidos mas apenas padrões que eram estabelecidos por certos
marcos privilegiados e reconhecíveis, emprestados dos demais modelos corográficos e
que se distinguiam por sua relevância e em oposição absoluta com o Sertão. Assim,
apesar de ser um território identificado no espaço pelos Roteiros e Itinerários, o Sertão
se distinguia nos mapas literários por sua presença e ausência simultâneas: compunha o
espaço mas não participava de sua descrição uma vez que nele a presença humana ainda
não havia se manifestado através de uma vivificação reconhecida pelo cartógrafo.
37
Os poucos exemplares dos mapas literários do século XVIII que sobreviveram
até hoje, mostram uma continuidade de conteúdo e de forma que pode ter sido
assegurada pela transmissão oral nos espaços de sociabilidade e pelo fato do
conhecimento corográfico fazer parte do repertório de socialização da elite letrada.
Nesse sentido, é exemplar o relato do encontro em 1762 entre o Bispo do Pará D. João
de S. José com o Sargento-mor João de Azeredo e Souza: o conhecimento corográfico
confere a João de Souza uma distinção social e uma autoridade que é reconhecida pelo
religioso e que se torna central na conversação entre ambos, introduzindo interesses e
afinidades na convivência entre esses indivíduos e seus agregados. Do mesmo modo é
37
‘Carta de João de Souza e Azeredo à Corte’, in Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I, 1752. IHGB 1. 2.
9:1752; ‘Notícias dos títulos do Estado do Brasil e seus limites austrais e setentrionais até o ano de 1765’,
1/02/1767 in IHGB, Lata 29, Pasta 3; ‘Discussão histórica e jurídica sobre os limites do Brasil contra as pretensões
dos Castelhanos por um parente de Alexandre de Gusmão’, 1767 in IHGB, Lata 50 Pasta 7; ‘Notícia sobre a
demarcação de limites entre as possessões portuguesas e espanholas: Bula de Alexandre VI’, c. 1780 in IHGB,
Lata 356, pasta 14; Luís dos Santos Vilhena,
Pensamentos políticos sobre a Colônia, Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1987.
134
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
possível verificar que ambos discutiam, relatavam e avaliavam em relação a outros
conteúdos os seus próprios ‘mapas literários’ do Brasil.
38
Portanto, a idéia do território brasileiro enformado num espaço unitário persistiu
no século XIX através do modelo dos ‘mapas literários’, embora a partir de uma
composição diferente: oriundos do debate no IHGB e influenciados pela sua produção e
publicação, esta composição se diferenciaria dos mapas literários do século XVIII pela
identificação pormenorizada dos territórios, os quais passariam a bordejar e identificar
os contornos do espaço nacional.
Assim, através do debate, as corografias do século XVIII se constituiriam como
elementos construtores do território: seria através delas que preencher-se-iam os vazios
do espaço nacional e instituir-se-iam seus Marcos.
Os Marcos seriam constituídos através da seleção de certos elementos
dramáticos das narrativas corográficas, um material escolhido por sua capacidade de
sintetizar a antiga experimentação do território e, ao mesmo tempo, amalgamar num
todo reconhecível os diferentes territórios reunidos através do ‘mapa literário’.
A refundação, a recuperação, a defesa e o heroísmo seriam algumas das
características que territorializariam os Marcos sobre o Mapa: os Marcos foram
constituídos como decalques dos códigos e das normas de socialização dos participantes
dos debates no IHGB, fossem estes políticos, militares ou diplomatas.
Com efeito, os novos mapas literários seriam compostos segundo as percepções
e interesses desses grupos e todos estes estariam sujeitos às influências recíprocas e às
leituras conjuntas propiciadas pelo processo do debate. Como característica desse
processo, todos os mapas literários do século XIX remeteriam às mesmas fontes, às
corografias textuais, e a Marcos semelhantes, divergindo entre si no detalhe e nas
circunstâncias da apresentação. Por exemplo, no que tange ao espaço central, as
corografias de Ricardo Franco de Almeida Serra
39
são a base de todos aqueles textos,
38
Veja-se, por exemplo, a descrição do encontro do Bispo D. João e do frade Fonseca com João de Souza Azeredo.
João de S. José, ‘Viagem e visita do Sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763’, in
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847, p. 81-83.
39
Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Extrato da descrição geográfica da Província de Mato Grosso, feita em 1797’,
in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo VI, n° 22, 1844; Ricardo Franco de Almeida Serra,
‘Mato Grosso. Navegação do rio Tapajós para o Pará pelo Ten. C.el. Ricardo Franco de Almeida Serra, escrita em
1799, sendo Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Memória ou informação dada ao Governo
sobre a Capitania de Mato Grosso, por Ricardo Franco de Almeida Serra, Tenente Coronel Engenheiro em 31 de
Janeiro de 1800’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo II, n° 5, 1841.
135
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
portanto, os Marcos e o espaço nacional construídos pelos mapas literários do século
XIX são bastante convergentes, embora expliquem essas opções diferentemente.
Assim, consolida-se um processo que vai ser utilizado na representação do
espaço nacional brasileiro através das Cartas Gerais do século XIX. Estas foram
baseadas nos Marcos instituídos pelos mapas literários, os quais, por sua vez, foram
pinçados das corografias textuais reunidas e patrocinadas pelo IHGB, o que eqüivale a
dizer que se possibilitou a composição das Cartas Gerais como mapas abertos,
desmontáveis e passíveis de serem reconstruídos e modificados: as Cartas Gerais foram
o espelho gráfico dos ‘mapas lingüísticos’ do século XIX, nelas está inscrita a episteme
da sociedade brasileira.
Portanto, se os mapas literários do século XVIII foram capazes de transmitir ao
século XIX a idéia de um espaço brasileiro unitário, subalternizando a existência das
diferenças locais enfatizadas pelo demais modelos corográficos, os mapas literários do
século XIX ultrapassariam esta circunstância, tornando-se os exemplares mais bem
acabados de um ‘saber sobre o espaço’ que consolidaria a construção do espaço
nacional.
40
A apropriação das corografias pelo debate do IHGB e a subseqüente
depuração destas no próprio debate, vai ainda proporcionar a distinção de determinados
espaços locais em relação aos outros e ao mesmo tempo contrapor e subalternizar estes
espaços em relação ao espaço do centro.
Assim, paulatinamente, o ‘mapa literário’ e as corografias seriam substituídas
pelas cartas gerais e pelas ‘novas corografias’, subalternizando-se um saber corográfico
baseado na exposição das ponderações dos especialistas e elidindo-se um campo para a
consagração dos debatedores: constituir-se-ia a construção do espaço nacional como um
dos decalques da Episteme social e da ‘gramática da visão’ de uma elite capaz de
compreender e expressar plenamente a ‘linguagem do espaço’.
40
Veja-se, por exemplo: Ernesto Ferreira França Filho, ‘Apontamentos diplomáticos sobre os limites do Brasil’,
18/10/1849 in IHGB, Lata 133, documento 20; Duarte da Ponte Ribeiro, Apontamentos sobre o estado atual da
fronteira do Brasil, 1844 in IHGB, Lata 289, Pasta 9 e Francisco José de Sousa Soares de Andréa, Observações aos
Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil, 1847 in IHGB, Lata 289, Pasta 9.
136
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
7 — O ASSENTO CENTRAL: A ‘OPERAÇÃO DA NARRATIVA’ E AS IDÉIAS
DA INSCRIÇÃO DO ESTADO NO ESPAÇO
“E que país este senhores, para uma nova civilização e para novo assento das
ciências! Que terra para um grande e vasto Império! Banhadas suas costas em
triângulo pelas ondas do Atlântico; com um sem número de rios caudais e de
ribeiros empolados que o retalham em todos os sentidos, não há parte alguma do
sertão, que não participe mais ou menos do proveito que o mar lhe pode dar para o
trato mercantil, e para o estabelecimento de grandes pescarias. A grande
cordilheira que o corta de norte a sul, o divide por ambas as vastas fraldas e
pendores em dois mundos diferentes, capazes de criar todas as produções da terra
inteira. Seu assento central quase no meio do globo, defronte e à porta com a
África, que deve senhorear, com a Ásia à direita, e com a Europa à esquerda, qual
outra região se lhe pode igualar...”
José Bonifácio de Andrada e Silva. Discurso.
1
Nosso objetivo neste capítulo é elaborar o problema da operação da narrativa
uma vez que este será abordado nos capítulos subsequentes, para, em seguida,
procedermos, através dessa abordagem, ao estudo das idéias da inscrição do Estado no
espaço internacional, visando relacioná-lo com a construção do ‘Debate’ no IHGB e
com as intelecções do espaço que foram discutidas no capítulo anterior.
Nesse sentido, iniciaremos procurando compreender como se constituiria uma
‘gramática do lingüista’ [linguist’s grammar] a partir das intelecções do espaço que
foram discutidas no capítulo anterior, ou seja, compreender como se constituiria dentre
uma comunidade que utilizava a mesma língua, um ‘conhecimento do espaço
uniformemente representado’ por um grupo de seus membros, consistindo numa teoria
explicitamente articulada que pretendia expressar precisamente as regras e princípios
daquele conhecimento.
Por conseguinte, a partir das idéias de Noam Chomsky sobre a relação entre
Conhecimento e Linguagem,
2
entendemos que, para ser possível o estabelecimento
1
Discurso proferido na Academia Real de Ciências de Lisboa em 24/06/1819, in Ernesto Ferreira França Filho,
"Apontamentos diplomáticos sobre os limites do Brasil,"
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
(XXXIII) 41, 2° Tomo, 1870..
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
desse ‘conhecimento do espaço uniformemente representado’, deveria existir na
‘comunidade lingüistica’ um grupo de seus membros capaz de dominar e
instrumentalizar um conhecimento uniformemente conhecido, no caso, este grupo seria
entendido enquanto ‘falantes ideais’ [ideal speaker-hearers] da língua.
Estes ‘falantes ideais’ compartilhariam suas experiências num teatro da
narrativa, composto por locais de enunciação (LE) onde existiriam condições de
enunciação propícias para a formação de um ‘debate’, a saber, uma reunião mais ou
menos contínua dos ‘falantes ideais’, um compartilhamento dos seus interesses e uma
reciprocidade nas condições de enunciação (ver Figura 20).
FIGURA 20 — ESTRUTURA DO ‘TEATRO DA NARRATIVA’
Estas condições garantiriam que houvesse a interação de suas experiências à um
conhecimento fluído e em permanente transformação, que chamaremos de ‘gramática
compartilhada’, sendo que desta seriam selecionados certos elementos por determinados
‘falantes ideais’ os quais, por serem capazes de conduzir sua elaboração contínua, serão
doravante denominados de operadores da narrativa. Estes elementos seriam elaborados
2
Noam Chomsky, ‘Language and unconscious knowledge’, in Rules and representations. New York: Columbia
University Press, 1978, p. 217-254.
138
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
a partir da sintaxe da ‘gramática da linguagem’ e das oportunidades da operação,
constituindo-se, a partir do ‘debate’, como um ‘conhecimento do espaço uniformemente
representado’, uma ‘gramática do lingüista’ (GL).
Este ‘conhecimento do espaço uniformemente representado’ seria então
organizado numa narrativa e divulgado na comunidade lingüistica, estando sujeito à
novas transformações pelo compartilhamento de outras experiências, pelas
oportunidades da operação da narrativa e pelo ‘debate’ no teatro da narrativa (TN)
(ver Figura 21).
FIGURA 21 — ESTRUTURA DA ‘OPERAÇÃO DA NARRATIVA’
Portanto, entendemos que a ‘gramática compartilhada’ é a matriz de onde foram
retirados os elementos para a composição de uma narrativa do espaço e, para que
possamos explicar como se constitui teoricamente essa composição, se faz necessário
remontar novamente a Noam Chomsky, desta vez à sua idéia do ‘uso criativo da
linguagem’.
3
3
Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002.
139
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Começaremos, no caso, mostrando como esta concepção de Chomsky se baseia
na asserção acerca da linguagem que foi proposta por René Descartes.
Segundo Descartes, o Homem diferiria dos autômatos e dos animais por uma
capacidade intrínseca de elaborar palavras e sinais para transmitir aos outros Homens os
seus pensamentos e de corresponder, do mesmo modo, a uma elaboração semelhante.
O princípio que propiciaria esta capacidade intrínseca seria a Razão,
universalmente compartilhada por todos os Homens, de qualquer extração e em
qualquer condição: estabelecer-se-ia assim a Razão, pela capacidade do ‘uso criativo da
linguagem’, também como um princípio de completa igualdade entre os Homens, já que
a Razão não derivaria do “poder da matéria” mas estaria “estreitamente unida e ligada”
ao Homem.
4
A partir desta construção de Descartes, Noam Chomsky entende que a
capacidade de utilizar criativamente a linguagem seria ainda desenvolvida e se
desenvolveria por conta das oportunidades efetivamente estabelecidas na elaboração e
transmissão do pensamento.
Nesse sentido, o pensamento seria então entendido enquanto uma relação entre a
‘faculdade’ [facultie], que Chomsky identificaria com a Razão cartesiana, e os
‘conceitos individuais’ [ideas], através do que denominaria de ‘complexos sem fim’
[endless complexes], ou seja, através de expressões, sentenças e proposições que se
tornariam disponíveis mentalmente através da Experiência.
Esta capacidade de utilizar criativamente a linguagem seria resultante, portanto,
de um princípio espontâneo [spontaneous principle] e de uma vontade racional [rational
volition] que também é a base da linguagem humana. Isto levaria os falantes a uma
procura por coerência e unidade na experiência, pela comparação de impressões e pela
reflexão sobre esses materiais, o que possibilitaria definir primariamente a linguagem
como um meio de reflexão e pensamento e apenas secundariamente servindo aos
propósitos da comunicação social.
Ainda, Chomsky remeteria essa idéia da linguagem à tentativa de Humboldt de
desenvolver uma teoria geral da lingüística, no qual definiria a linguagem mais como
uma ‘atividade’ [energeia] do que como um ‘produto’ [ergon], ou ainda, mais como
uma ‘atividade gerativa’ [eine Erzeugung] do que um ‘produto sem vida’ [ein todtes
Erzeugtes].
4
René Descartes, Discurso sobre o Método. São Paulo: Hemus Editora Limitada, 1978, p. 102-107.
140
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Então, segundo Humboldt, a única maneira verdadeira de definir a linguagem
seria como ‘uma atividade produtiva’ [eine genetische], um ‘trabalho mental’ [Arbeit
des Geistes] sempre repetido, de tornar os sons articulados capazes de expressar o
pensamento.
5
Neste sentido, existiria apenas um fator uniforme e constante no ‘trabalho
mental’ e que seria a ‘Forma’ da linguagem, definida como uma estrutura sistemática
que não mantêm componentes isolados, mas que incorpora os elementos por ‘um
método de formação da linguagem’, fixado pelas ‘leis de geração’ da linguagem.
Estas ‘leis de geração’ constituiriam a ‘Forma’ da linguagem, propiciando a
produção de um número ilimitado de eventos discursivos capazes de corresponder às
condições dos processos de pensamento, o que, no caso, envolveria um contínuo
processo de geração e regeneração da capacidade de produzir suas representações
[word-making capacity].
Assim a ‘Forma’ da linguagem seria composta por ‘regras de articulação do
discurso’ [Redefügung], por ‘regras de formação das palavras’ [Wortbuildung] e pelas
regras da formação dos conceitos que determinam a classe das ‘palavras raízes’ da
linguagem [Grundwörther].
6
Então, nossa primeira proposta, seria a de estudar a composição da narrativa do
espaço a partir da seleção, comparação e reflexão sobre os elementos contidos na
‘gramática compartilhada’, visando perscrutá-la através das oportunidades da operação
da narrativa e de sua reelaboração. Ainda, procuraremos relacionar o estudo da
composição da narrativa do espaço com a ‘Forma’ da linguagem e consoante certas
regras que a definiriam.
Visando avançar mais em nossa proposta, desenvolveremos ainda outra asserção
de René Descartes acerca da Razão e da linguagem, sobre as idéias do ‘uso criativo da
linguagem’ anteriormente discutidas.
Segundo Descartes o Homem estaria ligado a todos os conceitos intuídos da
natureza através das palavras com as quais os expressaria, propiciando-nos assim o
5
Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002, p. 62.
6
Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002, p. 63.
141
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
entendimento de que a criação de uma representação poderia ser diretamente ligada à
construção dos ‘conceitos individuais’ [ideas] de Chomsky.
7
Neste caso, a representação seria a matriz do ‘uso criativo da linguagem’, que
poderia ser entendido, portanto, como um processo contínuo de reelaboração da
representação pela Razão,
8
de acordo com a Experiência e com as oportunidades de
criação.
9
Assim, a composição da narrativa pode ser compreendida como uma
representação já distinguida da ‘gramática compartilhada’, o que nos leva
primeiramente a compreender a importância da operação da narrativa, ou seja, da
relação instituída pelos operadores da narrativa entre a gramática do lingüista’, a
‘gramática da linguagem’ e a ‘gramática compartilhada’.
Por conseguinte, em nosso estudo, entendemos a operação da narrativa deve ser
trabalhada enquanto uma inscrição continuada, construída no ‘debate’ a partir das
condições de interação entre os ‘falantes ideais’, ou seja, da reunião mais ou menos
regular dos ‘falantes ideais’, do compartilhamento de interesses e da reciprocidade nas
condições de enunciação no teatro da narrativa.
Finalmente, como entendemos que a narrativa é constituída como uma inscrição
continuada dos interesses, dos lugares e das condições de enunciação dos ‘falantes
ideais’, a reelaboração dessa inscrição continuada implicará também numa
subsequente reelaboração da mesma narrativa. Nesta caso, a operação da narrativa
apontaria sempre para uma solução de continuidade que visaria satisfazer as novas
condições de interação entre os ‘falantes ideais’.
7
“Et denique propter loquelae usum, conceptus omnes nostros verbis, quibus eos exprimmimus, alligamus, nec eos
nisi simul cum istis verbis memoriae mandamus” — ‘E por fim, por causa do uso da fala, ligamos todos os nossos
conceitos a palavras com as quais os exprimimos e só os confiamos à memória simultaneamente com essas
palavras.’ René Descartes,
Princípios da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, LXXIV.
8
“Cumque faciliu postea verborum quam rerum recordemur, vix unquam ullius rei conceptum habemus tam
distinctum, ut illum ab omni verborum conceptu separemus: cogitationesque hominum fere omnium, circa verba
magis, quam circa res versantur” — ‘E como nos recordamos depois mais facilmente das palavras que das coisas,
dificilmente acontece-nos ter um conceito tão distinto de uma coisa qualquer que o separemos dos conceitos das
palavras; e os pensamentos de quase todos os homens versam mais acerca das palavras do que acerca das coisas’
René Descartes,
Princípios da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, LXXIV;
9
“Porque, enquanto a Razão é um instrumento especial que pode ser usado em todas as oportunidades, esses órgãos
têm necessidade de uma disposição especial para cada ação particular”. René Descartes,
Discurso sobre o Método.
São Paulo: Hemus Editora Limitada, 1978, p. 103-104.
142
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
As condições do estudo da inscrição do Estado no espaço internacional
Conforme vimos no capítulo anterior, a idéia de um espaço brasileiro unitário já
havia se desenvolvido no século XVIII, havendo, inclusive, sido registrada por uma
forma de representação, o ‘mapa literário’, que se contrapunha ao antigo modelo de
espaço da América portuguesa. O ‘mapa literário’ ofereceria então as bases sobre as
quais se passou a pensar o problema da ‘inscrição do espaço nacional’ através do debate
no IHGB, inserido num teatro da narrativa bastante amplo e que incluía diversos locais
de enunciação, por exemplo, o IHGB, o Conselho de Estado e a SNE (ver Figura 20,
onde estão representados, respectivamente, como LE 1, LE 2 e LE 3).
Entretanto, o pensamento da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’,
embora estivesse relacionado com a ‘inscrição do espaço nacional’, se desenvolveria
apenas numa parte desse teatro da narrativa interligada com o restante do teatro, a
partir das necessidades e problemas próprios de certos locais de enunciação, a saber, o
Conselho de Estado e a SNE.
Portanto, será sobre esta parcela do teatro da narrativa e a partir do problema da
‘inscrição do Estado no espaço internacional’ que desenvolveremos o nosso estudo
sobre a operação da narrativa.
Para isto será necessário que adotemos certas premissas teóricas: em primeiro
lugar, adotaremos para o estudo do Conselho de Estado a delimitação utilizada por José
Honório Rodrigues, a saber, o ‘Primeiro Conselho de Estado’ é entendido como aquele
organismo que existiu entre 1822 e 1823 e que também foi chamado de ‘Conselho de
Procuradores Gerais das Províncias do Brasil’, sendo integrado pelos ministros de
Estado mais os Procuradores Gerais eleitos por cada Província, de acordo com sua
representatividade na deputação enviada às Cortes.
Por sua vez, o ‘Segundo Conselho de Estado’ é entendido como aquele que teria
funcionado de 1823 a 1834, tendo sido composto originalmente por dez membros mais
os ministros de Estado, sendo que, com a Constituição de 1824, o número de
Conselheiros foi mantido, porém, desobrigando-se o Conselho de ser composto pelos
ministros de Estado e estabelecendo-se a vitaliciedade de seus membros.
Já o ‘Terceiro Conselho de Estado’ é entendido como aquele que se reuniu de
1842 até o final do Império, possuindo doze membros ‘ordinários’ e doze
143
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘extraordinários’, todos vitalícios, sendo sua função apenas consultiva e o acolhimento
de suas opiniões apenas facultativo, embora em certos casos sua audiência fosse
obrigatória.
10
Em segundo lugar, utilizaremos a premissa de José Murilo de Carvalho, quando
referindo-se ao ‘Terceiro Conselho de Estado’, entendeu que este se constituía numa
organização estratégica para se estudar o pensamento político do Império, por conta das
condições de sua constituição e pela características derivadas da longa convivência de
seus membros e destes com as principais questões do Estado.
11
Em terceiro lugar, trabalharemos a partir da observação de José Honório
Rodrigues, também referente ao ‘Terceiro Conselho de Estado’, de que, por conta de
sua estreita ligação com o Parlamento, aquele funcionaria como uma “Primeira Câmara”
junto ao Poder Moderador, coadjuvando o Governo e a administração em matérias de
legislação e regulamentos, preparando os projetos, discutindo as suas dificuldades e
conveniências.
12
Em quarto lugar, trabalharemos também a partir da idéia de José Honório
Rodrigues de que existiria uma continuidade institucional a ser observada entre os três
Conselhos de Estado, entendendo que, por conta disto, os três Conselhos poderiam vir a
ser analisados como um só. Neste sentido, Rodrigues argumentava esta continuidade
institucional entre os três Conselhos se daria por conta de terem sido todos concebidos
pelos conservadores como um órgão cuja atuação visava travar certas iniciativas dos
liberais, por isso mesmo, esta instituição teria sido combatida em diversas ocasiões
pelos liberais.
13
A partir destas premissas teóricas, nosso estudo visará entender tanto a questão
da operação da narrativa quanto o pensamento da ‘inscrição do Estado no espaço
internacional’, no caso do ‘Terceiro Conselho de Estado’. Nesse sentido, buscaremos
trabalhar não sobre as ‘Atas do Conselho Pleno’, mas sobre as ‘Atas da Seção dos
Negócios Estrangeiros’, por entendermos, em primeiro lugar, que a especificidade dos
assuntos discutidos se adequaria mais ao confronto com o conteúdo do ‘debate’ do
IHGB.
10
José Honório Rodrigues, Atas do Conselho de Estado, v. I-II. Brasília: Senado Federal, 1973.
11
José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 357.
12
José Honório Rodrigues, Conselho de Estado; o Quinto Poder? Brasília: Senado Federal, 1978, p. 5-8.
13
José Honório Rodrigues, Conselho de Estado; o Quinto Poder? Brasília: Senado Federal, 1978, p. XV.
144
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Em segundo lugar, por constituir um lugar de interseção entre dois lugares de
enunciação, a saber, o Conselho de Estado e a Secretaria de Negócios Estrangeiros,
entendemos que a Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros é um lugar privilegiado
para se compreender o pensamento acerca do espaço no Império.
Decorrentemente, em terceiro lugar, entendemos que este lugar de interseção é
também um local estratégico para podermos estudar a relação entre o Conselho de
Estado e o Governo, exemplificado, no caso, pela Secretaria de Negócios Estrangeiros.
Em quarto lugar, poderemos estudar, no que se refere a questão do espaço, a
existência de uma continuidade institucional entre o ‘Segundo Conselho de Estado’ e o
‘Terceiro Conselho de Estado’, através de nossa idéia da experiência compartilhada, .
Em quinto e último lugar, a escolha das ‘Seção de Justiça e Negócios
Estrangeiros’ nos permitirá acompanhar a inserção de seus componentes e consultores
no teatro da narrativa e sua participação no ‘debate’ do IHGB.
Portanto, pretendemos através deste estudo encontrar os elementos que
confirmem a abrangência do debate já então travado no IHGB e que nos permitam
discernir os diferentes pensamentos a respeito da inserção do Estado no espaço
internacional. Além disso, este estudo visa apontar certas questões que serão trabalhadas
noutros capítulos, como o problema da construção da ‘Gramática do lingüista’ através
da operação da narrativa e o problema da transformação da Secretaria dos Negócios
Estrangeiros num lugar de enunciação privilegiado da narrativa do século XX.
Finalmente, cabe-nos alertar que não visamos aqui a um estudo de todo o
período em que funcionou o ‘Terceiro Conselho de Estado’, mas apenas alavancar o
estudo da operação da narrativa através do objetivos que anteriormente nos
propusemos. Deste modo, acreditamos, por razões que serão suficientemente
esclarecidas nos próximos capítulos, que estes objetivos ficarão satisfeitos com um
exame severo das atas até os anos de 1857-1858 e, se fizer-se necessário, com uma ou
outra referência esporádica as atas do período posterior.
O problema da inscrição das possessões africanas de Portugal no espaço nacional
brasileiro
Para que possamos iniciar o estudo a que nos propomos, devemos ainda
relacioná-lo com alguns problemas estudados nos capítulos anteriores, no caso, a
questão da existência de um modelo de espaço da América portuguesa, entendido a
partir das qualidades atribuídas ao território, e a questão da construção da
145
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
perspectivação do espaço através das corografias que determinaria numa representação
unitária do espaço brasileiro.
Nesse sentido, compreendemos ser necessário ligar estas duas questões ao
problema da não-inscrição das possessões africanas de Portugal no espaço nacional
brasileiro, no caso, entendendo ainda que este problema está ligado às idéias da
‘inscrição do Estado no espaço internacional’ que desenvolvemos junto ao estudo
proposto.
O exame deste problema se faz necessário em virtude de precisarmos consolidar
a idéia de que uma ‘inscrição do espaço’ já havia se estabelecido através da narrativa
do setecentos, sendo esta, inclusive, representada através dos ‘mapas literários’. Por
conseguinte, entendemos que esta inscrição não incluía as demais partes do Império
Português, ainda que as relações comerciais com a África fossem muito intensas no
início do século XIX e que assim continuassem após a Independência.
Concentraremos nossa reflexão no estado das presença portuguesa na África nos
primeiros vinte anos do século XIX, pois, como é sabido, nosso problema se encerra
com o ‘Tratado de paz, amizade e aliança’ de 1825, através do qual o Brasil tem sua
independência reconhecida por Portugal. Em seu artigo terceiro, o Brasil se compromete
a “não aceitar as proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao
Brasil”.
Contudo, José Honório Rodrigues aponta que este Artigo foi uma imposição
britânica para o reconhecimento da independência do Brasil, recordando que existia
uma disposição anterior de algumas das colônias africanas em se reunirem ao Brasil,
que poderia ser exemplificada pela vontade expressa por parte dos deputados angolanos
às Cortes de reunir essa colônia ao Brasil.
14
Ainda segundo José Honório Rodrigues, o
interesse da Inglaterra visava cortar os laços entre o Brasil e a África, facilitando-se
assim tanto a sua expansão colonial sobre o Continente quanto a eliminação do tráfico
de escravos.
15
Na realidade, as possessões portuguesas na África, fora as ilhas de São Tomé e
Príncipe e de Cabo Verde, haviam se reduzido a alguns poucos empórios e fortalezas
bastante decadentes e malconservados. Na Guiné restavam os presídios de Bissau e
14
José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 161-176.
15
José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 170-171, 174-
175.
146
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Cacheo, dependentes administrativamente de Cabo Verde, funcionando basicamente
como entrepostos para os traficantes de escravos baseados naquela ilha. Em
Moçambique poucas centenas de portugueses estavam concentrados principalmente em
Lourenço Marques, sendo poucos aqueles que se aventuravam no continente, controlado
pelos sultanatos muçulmanos instalados ao longo da costa e arrasado pelas incursões
dos Ngunis, uma fração dos Zulus que haviam estabelecido um estado independente ao
sul de Moçambique. A maioria das possessões portuguesas no Continente estavam
situadas em Angola, sobretudo na região de Luanda, sendo que alguns poucos presídios
ainda sobreviviam nas costas e no interior da região de Benguela, sustentados pelo fluxo
do tráfico de escravos.
No restante da África ocidental conservavam-se apenas as reclamações,
endossadas pela Inglaterra, sobre o território de Cabinda e Molembo junto ao estuário
do rio Zaire, enquanto que na região do Daomé, havia se preservado a duras penas
desde o século XVIII o chamado estabelecimento do Castelo, ou fortaleza de São João
Batista de Ajudá como ponto de apoio ao comércio português naquela parte da costa.
Este estabelecimento, evacuado durante as Guerras Napoleônicas,
16
tinha sido apenas
tolerado pelos soberanos locais e se preservara somente em razão das transações de
escravos por tabaco e aguardente conduzidas por comerciantes da Bahia. Anda por
conta dessa peculiaridade, a administração do estabelecimento de Ajudá foi conduzida,
desde o século XVIII, pelos administradores daquela Província brasileira.
17
Por conseguinte, após a independência do Brasil as novas diretivas coloniais de
Portugal visavam, justamente, restabelecer as ligações com as possessões africanas e
transformá-las num substituto para a perda do Brasil. Nesse sentido, o Estado português
direcionaria suas atividades para regiões bem específicas, como Angola e a Guiné, onde
se planejava essa expansão às custas dos particulares, embora, entretanto, já se
previssem muitas dificuldades, como por exemplo, na Guiné, onde se acreditava que
seria grande a concorrência dos franceses e ingleses após a extinção do Tráfico, único
sustentáculo da presença portuguesa na área.
18
16
Gervase Clarence-Smith, O Terceiro Império Português (1825-1975). Lisboa: Editorial Teorema Ltda, 1985, p. 47.
17
‘Relação das Províncias do Reino do Brasil, das Ilhas do Oceano Atlântico, e dos territórios d'África Ocidental, e
Oriental, e da Ásia, que atualmente são considerados pertencentes à Nação Portuguesa, Além-Mar’, 1821. IHGB,
lata 69, documento 8.
18
'Parecer da Real Junta do Comércio de Lisboa sobre o comércio das possessões portuguesas na África depois da
independência do Brasil', 22/12/1826. IHGB, Lata 76 Pasta 6.
147
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Ainda, por conta da decadência geral da área, entendia-se que o fomento das
ilhas de São Tomé e Príncipe deveria ser a primeira providência destinada a
implementar as novas iniciativas portuguesas na África, uma vez que delas dependia,
em grande parte, a ligação com o Continente. Também a partir desta base dever-se-ia
desenrolar o próprio esquadrinhamento das possessões portuguesas, já que então a
maioria de suas posições portuguesas eram consideradas incertas pelo próprio Estado.
19
Portanto, quaisquer ligações que possam ser feitas em relação a uma suposta
iniciativa brasileira de se inscrever a África no espaço nacional têm de elidir
necessariamente o problema mesmo da construção do espaço, já que, no caso,
acreditamos que a inclusão da África seria incompatível com o antigo modelo de espaço
da América portuguesa ou com o novo modelo de espaço que se esboçava na virada do
século XVIII. Contudo, poderiam ter havido iniciativas africanas, mas, provavelmente
estas possuiriam uma receptividade bastante pequena e teriam de vir necessariamente
dos grupos ligados ao Tráfico, única atividade de relevo nas relações com a África.
Entretanto, ainda assim seria bastante questionável alguma unanimidade nas
possessões africanas de Portugal em relação a uma união com o Brasil, já que o
problema do Crédito deveria ser a maior fonte de tensão no Tráfico: aqueles que deviam
ao Estado português poderiam pensar numa união com o Brasil que impedisse a sua
cobrança, entretanto aqueles que devessem aos mercadores brasileiros provavelmente
prefeririam uma posição de autonomia.
20
Restar-nos-ia ainda resolver o problema da ligação da Bahia com o Daomé: do
mesmo modo que José Honório Rodrigues indicaria existir uma disposição das
possessões portuguesas em se reunirem ao espaço brasileiro, Robin Law apontaria
existir um interesse do Brasil em incorporar algumas destas, afirmando que a posse do
forte português de Ajudá, no Daomé, “foi objeto da disputa entre Lisboa e o Rio de
Janeiro, sendo decidida em favor de Portugal no acordo em que este reconheceu a
independência brasileira”.
21
Relatando a carreira do brasileiro Francisco Félix de Souza, considerado “uma
figura central tanto no tráfico transatlântico de escravos quanto” no reino do Daomé,
Robin Law indica que tendo este assumido em 1806 a posição de governador interino
19
‘Instruções para o Governador das Ilhas São Tomé e Príncipe’, 1824. IHGB, Lata 37, Pasta 1.
20
Gervase Clarence-Smith, O Terceiro Império Português (1825-1975). Lisboa: Editorial Teorema Ltda, 1985, p. 45.
21
Robin Law, ‘A carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental (1800-1849)’, Topoi, 2001, v. 2, p. 17.
148
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
daquela fortaleza, após a morte do último governador enviado pelo Brasil, Francisco
Félix de Souza teria oferecido a fortaleza de Ajudá ao Governo brasileiro sem no
entanto obter resposta, o que poderia ter sido o motivo da ruptura entre estes.
22
A partir de nosso exame da correspondência dirigida pelos soberanos do Daomé
aos Reis de Portugal, podemos considerar que no século XIX o comércio já interessava
menos aos comerciantes baianos do que aos soberanos do Daomé e que Francisco Félix
de Souza não era acreditado enquanto autoridade por nenhuma das partes.
Desde 1750, quando se inaugura esta série documental, portada pelos Emissários
daqueles Reis africanos, o principal objeto dessas missivas foi pedir a continuação do
comércio entre os dois países, inclusive, porque este dependia da nomeação do diretor
do estabelecimento de Ajudá, feita em comum acordo entre as autoridades baianas e o
soberano do Daomé.
23
Já em 1795, quando se deu a segunda missão Daometana, o soberano daquele
reino insistiria no reparo da fortaleza e na troca do diretor da fortaleza de Ajudá,
encaminhando ainda a proposta de que o tráfico de escravos com o Império português se
fizesse tão somente a partir daquele entreposto.
24
Note-se, que esta proposta da criação
de um exclusivo comercial seria renovada através da terceira missão Daometana,
enviada à Bahia em 1805, sendo que desta vez se incluía entre suas intenções a abolição
da própria Diretoria de Ajudá.
25
Esta exigência de 1805 teria acontecido em razão da decadência das
dependências físicas e do pessoal da fortaleza de Ajudá, uma vez que o próprio Rei do
Daomé relataria em 1810 para D. João VI, que Francisco Félix de Souza, “escrivão da
fortaleza” já não fazia mais nenhum serviço naquela “e está comendo o soldo de Vossa
Real Alteza só habita em Popó com casa de negócios e ensinando a todos os Capitães
que não saltem em meu porto.”
26
Este relato foi encaminhado por meio da quarta missão
Daometana que, no entanto, foi proibida de encontrar-se com D. João VI no Rio de
22
Robin Law, ‘A carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental (1800-1849)’, Topoi, 2001, v. 2, p. 17.
23
‘Carta do Conde das Galveas para o Conde dos Arcos’, 12/05/1811 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de
Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 5.
24
‘Correspondência entre o Rei do Daomé e D. Maria I’, 1795 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de
Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documentos 1 e 2.
25
‘Carta do Conde das Galveas para o Conde dos Arcos’, 12/05/1811, in 'Correspondência trocada entre os Reinos de
Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 5.
26
‘Carta do Rei de Daomé para D. João VI’, 2/10/1810 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de Portugal e o
de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 3.
149
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Janeiro. Por conta deste impedimento, em carta anexa à missiva do Rei do Daomé, o
Conde das Galveas pediria da Bahia esclarecimentos sobre o tratado assinado com a
Inglaterra e instruções no sentido de se restringir ou não o comércio com Ajudá, até
porque já se construía outro estabelecimento português numa região próxima,
27
havendo
sido oferecidas, por Estados rivais do Daomé, condições mais propícias para o
comércio.
28
Noutra missiva, cuja datação estabelecemos entre os anos de 1818 ou 1819 e que
acompanhou a quinta missão Daometana, seu novo soberano reitera o desejo de
comerciar com Portugal e observa que Francisco Félix de Souza “escrivão que foi da
fortaleza de Ajudá” havia se oferecido para mandar conduzir junto com o embaixador
daquele Reino os portugueses que tinham sido mantidos aprisionados em Daomé pelo
seu antecessor no trono. No mesmo documento, o novo soberano relataria ainda a ruína
da fortaleza de Ajudá e descreveria a ascensão de Francisco Félix de Souza, “que tem
ajudado o meu povo”, no reino do Daomé.
29
Portanto, podemos compreender, através do exame da correspondência dirigida
pelos soberanos do Daomé aos Reis de Portugal, que as ligações comerciais entre o
Brasil e o Daomé já seriam apenas esporádicas, haja vista, inclusive, o impedimento
motivado pela restrição ao Tráfico acertada com a Inglaterra em 1810. Ainda que o
desejo de reunir Ajudá ao espaço brasileiro tenha sido manifestado por Francisco Félix
de Souza, este decorria apenas das suas próprias motivações comerciais, haja vista que
ele não era reconhecido então por nenhum dos lados como governador da fortaleza, no
caso, em ruínas, mas já como um Daometano.
Ainda, esta ligação apenas honorária da fortaleza de Ajudá com o Brasil não se
incluiria no novo modelo de espaço construída sobre a experimentação do território, o
que pode ser endossado pela recepção de D. Pedro I à missão enviada pelo Rei do Benin
ao Rio de Janeiro em 1824: D. Pedro se recusa a manter relações oficiais com os
soberanos africanos,
30
à exemplo de D. João VI.
27
‘Carta do Conde das Galveas para o Conde dos Arcos’, 12/05/1811 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de
Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 5.
28
‘Carta do Rei de Ardra para D. João VI’, c.1810-1811, in 'Correspondência trocada entre os Reinos de Portugal e o
de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 4.
29
‘Carta do Rei do Daomé para D. João VI’, c. 1818-1819 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de Portugal e
o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 6.
30
AHI, Embaixador Manoel Alves de Lima, 1824-1826. 273, Lata 1, Pasta 13, citado em José Honório Rodrigues,
Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 170.
150
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Esta recusa de D. João VI em manter relações diplomáticas com os soberanos
africanos contrastava, mesmo em sua época, com o esforço diplomático feito para que
se assinassem, entre 1810 e 1818, nada menos que quatro tratados de paz e resgate com
as “Potências Barbarescas”. Neste caso, se visava evitar as ações de pirataria efetuadas
pelos Paxás de Argel e Túnis, preservando-se assim o trânsito dos barcos brasileiros
rumo a Gibraltar, onde se desembarcavam todas as mercadorias destinadas à região do
Mediterrâneo.
31
Desde modo, poder-se-ia supor que as atitudes inglesas teriam desencorajado
então qualquer tipo de associação direta do Estado com as fontes do tráfico negreiro,
mas, as diretivas portuguesas para a África posteriores a 1822 reinserem as relações
com os Estados africanos no mesmo patamar que estas possuíam no século XVIII.
32
Note-se que D. Pedro I não se furtaria a receber o Rei do Havaí Kamehameha II,
quando este aportou no Rio de Janeiro em 1824 durante sua viagem rumo à Inglaterra,
ocasião em que lhe ofereceria uma “rica espada” e um anel de brilhantes para sua
esposa, trocados, no ato, pelo manto “de uso pessoal” daquele soberano, confeccionado
com plumas de pássaros, que se encontra ainda hoje em exposição no Museu
Nacional.
33
Nesse sentido, uma missiva dirigida em provavelmente 1825, por D. João VI a
D. Pedro I é bastante ilustrativa, pois dela compreende-se que o foco da inscrição do
Estado brasileiro no espaço internacional é realmente a Europa, sendo o problema da
forma de governo adotada no Brasil, a Monarquia, enfatizada como o móvel dessa
escolha. Nesta missiva, assevera-se que mesmo as relações com os países latino-
americanos deveria ser consolidada a partir dos contatos com a antiga metrópole, a
Espanha. Ainda, em decorrência desse enfoque, dever-se-ia ajustar até mesmo o pessoal
diplomático e a atuação da diplomacia: aqueles deveriam ser escolhidos dentre os que
pela posse e pelas relações familiares se ligassem à Coroa e a atuação da diplomacia
deveria se nortear por um acatamento aos seus valores.
34
31
‘Correspondência sobre o comércio português com as Potências Barbarescas’, 1793-1818. IHGB, Lata 77, Pasta 6.
32
‘Exposição, consulta e reflexões sobre projetos de Companhias Comerciais em Guiné e nas Ilhas de Cabo Verde’,
1826. IHGB, Lata 39, Pasta 6; ‘Instruções para o Governador das Ilhas São Tomé e Príncipe’, 1824. IHGB, Lata
37, Pasta 1.
33
MN, Ficha catolográfica da peça ‘Manto Owhyeen’.
34
‘Carta cifrada de D. João VI a Pedro I’. IHGB, Lata 140, Documento 1.
151
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Então, ainda que uma suposta intenção brasileira de incorporar as regiões
privilegiadas pelo Tráfico fosse capaz de provocar, em Portugal, temores suficientes
para se justificar, dadas as condições do Erário, o envio de tropas para ocupar as regiões
de Angola e Benguela,
35
seria mais sensato crer que as palavras de D. Pedro ao Ministro
Britânico no Rio de Janeiro espelhariam um pensamento disseminado no Brasil: “em
relação as costas da África, nós não queremos nada, nem qualquer parte. O Brasil é
suficientemente grande e bastante produtivo para nós, e estamos contentes com o que a
Providência nos deu”.
36
Portanto, pode-se entender que ligou-se, desde o início, a ‘inscrição do Estado
no espaço nacional’ à construção de um modelo de espaço brasileiro unitário, conectado
à Europa e excluindo a África, mas que esta inscrição também estava ligada à
consolidação e à manutenção das antigas ‘relações de soberania’
37
inscritas ainda
durante o período colonial.
A inscrição do Estado no espaço internacional e o Conselho de Estado
Um Estado que marcha sem princípios ou pontos de vista fixos, pelos quais se
regulem seus negócios, tanto internos quanto externos, é um Navio que vaga nos
mares sem bússola e sem destino de porto
José Feliciano Fernandes Pinheiro. Memória acerca
dos Limites naturais
Tendo enfrentado o problema da não-inscrição das possessões africanas de
Portugal no espaço nacional brasileiro, entendemos que este nos trouxe alguns insumos
para o estudo a que já nos havíamos proposto desde o início do capítulo, uma vez que
demonstra-se a consolidação do novo modelo do espaço brasileiro já no início do
Primeiro Reinado, a partir da idéia de um território contínuo, assentado na América mas
conectado à Europa e às antigas ‘relações de soberania’.
35
Raimundo José da Cunha Matos, ‘Compêndio histórico das possessões da Coroa de Portugal nos mares e
continentes d'África oriental e ocidental’, 1836. IHGB, Lata 14, Doc. 16, p. 344.
36
Citado em José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 172.
37
Ver nesta tese o capítulo ‘Mapeanado o vazio’.
152
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Esta constatação nos serve como um paliativo para a perda da documentação do
‘Segundo Conselho de Estado’ anterior a 1828, já que somente se conservaram as atas
posteriores a ascensão de José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São
Leopoldo, ao cargo de Secretário do Conselho. Por conseguinte, visando compreender o
processo de operação da narrativa e o desenvolvimento das idéias da ‘inscrição do
Estado no espaço internacional’, entendemos que cabe-nos conectar as atas restantes
com os insumos adquiridos através do estudo do problema da não-inscrição das
possessões africanas de Portugal.
Neste sentido, devemos começar conectando o novo modelo de espaço com o
pensamento de José Feliciano Fernandes Pinheiro, haja vista já termos elaborado no
capítulo anterior a idéia de que o debate sobre o espaço seria introduzido no IHGB a
partir do seu ‘Programa Geográfico’ e este mesmo debate seria coordenado através de
sua atuação enquanto Presidente daquele instituto.
Também devemos adiantar que antes da fundação do IHGB, durante a década de
1830, Pinheiro se destacou como consultor da Secretaria dos Negócios Estrangeiros
(doravante citada como SNE), sendo responsável por vários pareceres, inclusive
presidindo a ‘Comissão Investigadora de Limites’, que foi constituída no intuito de se
estabelecer uma interpretação oficial do espaço brasileiro.
38
Esta inserção de Pinheiro na SNE e, em certa medida, a própria fundação do
IHGB, deveu-se a sua ativa participação no Legislativo durante a década de 1830, a
qual, por sua vez, deve ser remetida à intensa participação política de Pinheiro durante
os anos vinte, quando exerceu, sucessivamente, as funções de Deputado às Cortes de
Lisboa, de Senador por São Paulo, de Ministro do Império e de Conselheiro de Estado.
Assim, entendemos que se pode traçar um roteiro do pensamento sobre o espaço
de Pinheiro e, a partir deste, se empreender uma problematização da idéia da ‘gramática
compartilhada’, uma vez que Pinheiro pode seguramente ser apontado como um ‘falante
ideal’ desde os anos vinte e como um dos operadores da narrativa no final dos anos
trinta.
Desde 1821, quando de sua participação enquanto representante de São Paulo às
Cortes Gerais e Constituintes de Lisboa, já podemos relacionar o pensamento de
Pinheiro com o novo modelo de espaço brasileiro. Nas Cortes de Lisboa, José Feliciano
Fernandes Pinheiro foi o principal responsável pela impugnação da permuta a ser
38
A esse respeito ver o próximo capítulo ‘Um Itinerário do valioso ao possível’.
153
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
realizada com a Espanha, da cidade de Montevidéu, na América, pela de Olivença, na
Europa. Esta atuação em defesa do novo modelo de espaço seria reconhecida, inclusive,
por Hipólito José da Costa no Correio Brasiliense, quando comentaria que “o deputado
Fernandes Pinheiro manejou este negócio com mão de mestre.”
39
Na verdade, esta identificação com o novo modelo já tinha começado a se
esboçar desde 1807, quando Pinheiro escreveu a ‘História nova e completa da América’,
onde privilegiava o relato da construção de um novo Estado no Continente, os Estados
Unidos, a partir do contributo europeu e do enraizamento destes no território.
40
Esta
idéia precoce da ligação entre o tempo, a terra e o homem baseando a compreensão do
espaço, seria depois desenvolvida nos seus ‘Anais da Província de São Pedro’, cuja
primeira edição foi impressa entre os anos de 1819 e 1822.
41
A adesão de Pinheiro ao novo modelo de espaço seria confirmada em 1826,
quando, já no cargo de Ministro do Império, se batia pela criação dos Cursos Jurídicos
em São Paulo e Olinda: ao ser consultado por D. Pedro I a respeito da União das Coroas
do Brasil e de Portugal, o Ministro se postaria contra esse projeto.
42
Logo em seguida,
pouco antes de ser nomeado Conselheiro,
43
procuraria ainda conectar essa reelaboração
das antigas ‘relações de soberania’ através da constituição de uma ligação permanente
do Estado com o novo modelo de espaço: Pinheiro ofereceria a D. Pedro I a ‘Memória
acerca dos Limites naturais’, um documento que deveria ser guardado no Arquivo do
Estado, “entre os seus segredos mais importantes”, a fim de que pudesse servir como
guia a cada um dos futuros Governantes do Brasil.
Nesta ‘Memória’, Pinheiro formulava para o Brasil o que pretendia que fosse
seu ‘Sistema Político’, “um plano sempre uniforme de conservar-se e engrandecer-se”,
no qual estariam detalhadas “todas as circunstâncias, todos os motivos, todas as razões,
todas as vantagens e inconvenientes reais ou aparentes” das escolhas ali contidas.
39
Citado em Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ‘Apontamentos biográficos sobre o Visconde de São Leopoldo’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XIX, 21, 1898, p.137.
40
José Feliciano Fernandes Pinheiro, História nova e completa da América. Lisboa: Fr. José Mariano Velloso, 1807.
41
A esse respeito ver o próximo capítulo ‘Um Itinerário do valioso ao possível’
42
Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ‘Apontamentos biográficos sobre o Visconde de São Leopoldo’, Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XIX, 21, 1898, p. 41-42.
43
Pinheiro foi nomeado conselheiro em 18 de maio de 1827, exatamente dois meses depois de ter escrito a ‘Memória
acerca dos Limites naturais’, na vaga aberta, em 11 de março de 1827, pelo falecimento do Marquês de Nazaré.
154
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Este planejamento de longo prazo de Pinheiro estava fundado sobre o que
chamava de “interesses naturais” do Estado, considerados como imutáveis e
indestrutíveis, visando dar “um estado de Direitura e estabilidade” à “Nação”.
Neste sentido, Pinheiro argumentava ser da “opinião geral”, a percepção de que
a vocação do Brasil era tornar-se uma “Grande Potência Marítima e Comerciante”,
necessitando, para tanto, que fosse “previamente circunvalado”.
Esta ‘circunvalação’ do território brasileiro, deveria ser feita a partir dos
principais traços da natureza, os ‘limites naturais’, capazes de conservar a “Nação”
acobertada “das querelas e da fácil invasão de vizinhos”. Por conta disso, se propiciaria
um desenvolvimento seguro da sua população e da sua riqueza, fatores indispensáveis
para a formação de uma Marinha, capaz de na Paz, ativar “o círculo de relações entre a
Capital e as Províncias remotas” e, na Guerra, servir como “fortaleza volante”, levando
“o ataque e a defesa aonde conviesse”.
Estes ‘limites naturais’ deveriam se alargar na fronteira meridional desde as
nascentes do rio Paraguai, passando pelo rio Paraná e pelo rio Uruguai até o Rio da
Prata, em compensação do que Pinheiro entendia como ‘custos e perdas’ de uma guerra
não provocada, que vinha sido movida contra os brasileiros pelos espanhóis e seus
sucessores há vinte anos (ver Figura 22).
Para justificar estas pretensões, Pinheiro argumentaria que os corpos morais, os
Estados, guiar-se-iam pelas mesmas leis que os corpos físicos, sendo a primeira delas a
da sua conservação, assim sendo, a situação do Brasil seria comparável à dos Estados
Unidos, que teriam se apossado da Flórida “só por simples razão de conveniência, sem
mais direito do que o receio que fosse ocupada por alguma Potência Européia”.
Quanto a fronteira setentrional, dever-se-ia ignorar os Tratados anteriores,
buscando-se e fortificando-se o território onde as nascentes do Paraguai se uniriam às
do Amazonas, constituindo-se uma ligação entre os “dois gigantes” e procurando-se
defender este último por meio de uma linha de Fortes e Presídios que permitissem tanto
vigiar “a conduta dos vizinhos” quanto apoiar as colônias “que bordassem nesse
extremo interior” (ver Figura 22).
Por fim, construída a segurança do território que propiciava conservar as
instituições da Nação, poder-se-ia atrair para o Brasil “a aluvião espantosa de
emigrados” europeus que demandavam então “asilo, no terreno ingrato da América
Setentrional”, por não acharem estes “a segurança de suas pessoas e de seus cabedais
155
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pelas freqüentes revoluções que sucedem, e ainda mal que por longo tempo se
sucederão” na Europa.
44
FIGURA 22 — O BRASIL DAS 'MEMÓRIAS ACERCA
DOS LIMITES NATURAIS'
Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fonte: José Feliciano Fernandes
Pinheiro, 'Memória acerca dos naturais limites do Brasil', 18/03/1827. IHGB,
Lata 421, Pasta 16.
Portanto, podemos compreender que já existia na ‘gramática da linguagem’ uma
‘gramática compartilhada’ de ‘saberes sobre o espaço’ onde certas representações eram
apreendidas e reelaboradas pelos ‘falantes ideais’ em novas representações, segundo
suas experiências, suas comparações e suas reflexões, através de uma sintaxe já
disponível, o novo modelo do espaço.
Contudo, ainda não havia amadurecido um teatro da narrativa e se buscavam
locais de enunciação onde existissem condições de enunciação propícias para a
formação de um ‘debate’. Entretanto, ficaria evidente através dos sucessos do debate em
44
José Feliciano Fernandes Pinheiro, 'Memória acerca dos naturais limites do Brasil', 18/03/1827. IHGB, Lata 421,
Pasta 16.
156
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
torno das principais questões sobre o espaço, que faltavam as condições de enunciação
para que, a partir do ‘Segundo Conselho de Estado’, se pudesse constituir uma
‘gramática do lingüista’.
Deste modo, acreditamos que este problema pode ser exemplificado a partir dos
debates travados em torno de questões que pensamos terem se constituído ainda no
período não documentado, especialmente entre 1826 e 1828, as quais se prolongariam
até a extinção do ‘Segundo Conselho de Estado’. Por conta das indicações encontradas
nas Atas posteriores a 1828, provavelmente, o debate sobre o espaço esteve centralizado
em torno de três questões: a primeira, obviamente, diz respeito à unidade do território
nacional, sendo imposta pela Guerra da Cisplatina; a segunda questão, referente ao
assentamento do espaço nacional e de seus interesses na América, derivava das várias
demandas de D. Pedro em relação à sucessão portuguesa; a terceira diz respeito ao
entendimento da conecção do espaço brasileiro com a Europa e das relações de suas
Potências com o Brasil.
Inicialmente, exemplificaremos o debate em torno da unidade do espaço
nacional utilizando para este fim a participação de Pinheiro no ‘Segundo Conselho’: sua
intelecção do espaço, desenvolvida na 'Memória acerca dos naturais limites do Brasil' e
a sua própria presença no ‘debate’, seriam postas à prova pouco depois de ser nomeado
conselheiro.
O debate seria condicionado pela influência dos interesses ingleses, que,
segundo Pinheiro, já procuravam, desde 1826, separar aquela Província do território
brasileiro e pelo desenrolar da Guerra da Cisplatina em 1828, notadamente pelas
seguidas derrotas do Exército no Rio Grande do Sul e pelo esvaziamento do bloqueio
imposto pela Marinha à Buenos Aires.
45
Apesar de bem conhecer esses insucessos militares e de saber que D. Pedro I era
bastante receptivo às pressões inglesas, Pinheiro relata que o Conselho de Estado foi
completamente surpreendido pela notícia do acerto pela SNE de um Tratado de Paz com
as Províncias Unidas, pelo qual sancionava-se a secessão da Cisplatina.
46
Em uma tensa sessão, praticamente todos os membros do Conselho de Estado
declarar-se-iam contra o Tratado, tachado de desigual e indecoroso ao Brasil, instando
45
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, 42, 1875, p. 6-7.
46
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, 42, 1875, p. 44-45.
157
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
que o governo Imperial desenvolvesse mais constância e energia para que fosse mantida
a união com a Cisplatina, somente se excetuando deste entendimento o Marquês de
Caravelas, José Joaquim Carneiro de Campos. Mas, não tendo sido modificada a
opinião de D. Pedro I, seguir-se-ia a exposição do ministro dos Negócios Estrangeiros,
versando à respeito das ameaças de outras potências de romper o bloqueio brasileiro no
Prata; depois, a do ministro do Império, relatando a penúria das finanças; e, finalmente,
a do ministro da Guerra, descrevendo o estado de desagregação do Exército e a
subversão que grassava na província do Rio Grande.
Após estas exposições proceder-se-ia a uma outra votação, onde, Pinheiro
declararia depois, “vergava-se o rigor dos princípios ao império das circunstâncias”, e,
desta vez, apenas com o voto em contrário de Francisco Vilela Barbosa, Marquês de
Paranaguá, aprovando-se o Tratado de 1828 e a independência do Uruguai.
47
José Feliciano Fernandes Pinheiro ainda freqüentaria as sessões do ‘Segundo
Conselho de Estado’ até o dia quatro de outubro daquele ano, quando, alegando
problemas de saúde, viajaria para o Rio Grande do Sul. De lá enviaria, em 24 de
dezembro uma carta para D. Pedro I, onde lastimaria o estado da Província e o
descontentamento com a política Imperial nos seguintes termos:
Releve-me, Senhor, que por estas e outras combinações eu avance
que o repouso que hoje noto nestes povos não é de certo conseqüência de
uma íntima satisfação, mas o efeito do cansaço depois de longas
calamidades. Todo bom brasileiro, como eu, confia que V.M. Imperial,
aproveitando-se do remanso de uma paz extorquida pela necessidade,
vingará ainda a honra e glória nacional e levantará o nosso crédito abatido.
Um grande monarca, como Vossa Majestade, não se contenta com o bem do
momento, mas pelo seu gênio e sabedoria converte e molda a seu jeito o
tempo e as circunstâncias.
48
A partir do conhecimento desta carta, D. Pedro I mandaria suspender os
vencimentos de Pinheiro, intimando-o ainda a recolher os proventos dos meses
47
Atas do ‘Segundo Conselho de Estado’, 12ª Sessão, 27/08/1828; Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello,
'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII,
n° 42, 1875, p. 18-19 e 44-45.
48
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, n° 42, 1875, p. 21.
158
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
anteriores aos cofres provinciais. Pouco depois, seria também dada publicidade a este
feito, através da publicação do ofício que o originou, numa gazeta de Porto Alegre.
Finalmente, pouco mais de sete meses depois, D. Pedro I ilegalmente exoneraria
Pinheiro de seu posto vitalício, tornando-o o único conselheiro a sofrer tal sorte em toda
a duração do Império.
49
Do mesmo modo, a questão da sucessão portuguesa demonstraria as
contradições das condições de enunciação que impediriam o ‘Segundo Conselho de
Estado’ de se transformar num local de enunciação da ‘gramática da linguagem’. Como
vimos anteriormente, a questão da sucessão portuguesa incluiria várias demandas da
parte de D. Pedro I, todas elas contrárias ao assentamento do espaço brasileiro e de seus
interesses na América. Logo em 1826 seria afastada a sua idéia da reunião entre as duas
Coroas, ainda que chegasse a sugerir o Rio de Janeiro como a sede do novo Governo.
Contudo, estas demandas chegariam a seu ápice quando, em 1830, D. Pedro I,
premido pela pressão conjunta da Inglaterra, França e Áustria reuniria o Conselho de
Estado, já sem a presença de Pinheiro, para que este ratificasse à natureza da própria
demanda, ou seja, questionava-se mesmo o novo modelo do espaço brasileiro,
admitindo-se um retrocesso à descontinuidade do antigo modelo de espaço da América
portuguesa. Nesse sentido pedia-se que os conselheiros ‘votassem’ se a questão da
sucessão era européia ou também americana e, decorrentemente desse entendimento, se
a questão da sucessão devia ser resolvida através da guerra a Portugal.
Em relação aos problemas postos em votação, o Conselho de Estado decidiria
por uma pequena margem (três votos a um, com três abstenções) que a questão da
sucessão era exclusivamente européia. Por sua vez, a guerra a Portugal seria rejeitada
por unanimidade, sendo que os conselheiros ainda procurariam certificar-se de que D.
Pedro I não proporia nenhuma declaração de guerra ou que por tal motivo perturbaria a
tranqüilidade do Império, “como tem manifestado”.
50
Finalmente, a questão do entendimento da conecção do espaço brasileiro com a
Europa e das relações com suas Potências demonstraria a impotência do ‘Segundo
Conselho de Estado’ frente aos problemas da política externa, uma vez que, na prática,
apenas lhe cabia a apreciação final de suas conseqüências. Neste sentido, a consulta de 5
49
Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, n° 42, 1875, p. 21.
50
Novamente o único voto totalmente favorável às pretensões de D. Pedro I foi o do Marquês de Caravelas. Atas do
Segundo Conselho de Estado, 39ª Sessão, 12/03/1830.
159
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
de março de 1829 é emblemática, pois, nesta seria apresentado pelo Ministro dos
Negócios Estrangeiros o ultimatum britânico relativo à indenização completa dos navios
apreendidos durante o bloqueio de Buenos Aires.
Por este ultimatum o Comandante da esquadra inglesa estava autorizado a
proceder à represália sobre tantos navios brasileiros quanto se entendesse necessário
para a satisfação daquela dívida. Como não haviam alternativas ao Conselho de Estado
somente coube instruir ao Ministro que protestasse energicamente, mostrando a
ilegitimidade do ato britânico e a sua contrariedade ao Direito Público Marítimo
adotado pela própria Inglaterra, mas, que depois não se deixasse de pagar o que fosse
exigido.
51
Portanto, a partir destas três questões centrais sobre o espaço, verificamos que
existia um constrangimento à iniciativa de pensamento que ainda se remetia à própria
constituição do Conselho de Estado e suas características moldadas então sobre um
constituição outorgada e um Executivo autoritário e personalista.
Contudo, o compartilhamento dessas experiências do Segundo Conselho
adensaria na ‘gramática da linguagem’ uma ‘gramática compartilhada’ do espaço, de
onde seus elementos seriam recolhidos e elaborados por certos ‘falantes ideais’ na
primeira legislatura do Parlamento.
O Parlamento se constituiria então num lugar de enunciação onde as condições
de enunciação permitiriam que fossem elaborados determinados enunciados sobre o
espaço e que se constituísse um pensamento acerca da reprodução das condições de
enunciação os quais consolidariam paulatinamente um teatro da narrativa onde visava-
se a construção de um saber sobre o espaço.
Nesse sentido, a operação da narrativa consistiria na capacidade de se articular
esse saber sobre o espaço, vinculando-o à reelaboração das ‘relações de soberania’ e à
centralização do Estado. Por conseguinte, se tornaria necessária a constituição de
lugares de enunciação dedicados à construção do saber sobre o espaço e que estes
fossem articulados a outros lugares de enunciação. Nestes, o saber sobre o espaço seria
reelaborado em diversas ‘inscrições do Estado no espaço’, sendo estas empregadas na
subseqüente produção e divulgação das representações do espaço nacional.
Nesta ‘continuidade lingüistica’ seria constituído um teatro da narrativa, uma
soma dos lugares de enunciação, cujos limites seriam condicionados pelos custos da
51
Atas do Segundo Conselho de Estado, 25ª Sessão, 5/03/1829.
160
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
elaboração e reelaboração das condições de enunciação e da operação da narrativa
pelos ‘falantes ideais’.
Portanto, é sobre esta articulação de nossa base teórica com as pesquisas até aqui
expostas, que prosseguiremos em nosso objetivo de abordar a constituição das idéias da
‘inscrição do Estado no espaço internacional’ no ‘Terceiro Conselho de Estado’,
relacionando-a com a elaboração e reelaboração de um saber sobre o espaço através do
‘Debate’ no IHGB e com a formação de um outro lugar de enunciação na SNE.
Assim, na Câmara dos Deputados, seria aprovada, em 1827, as propostas de
Bernardo Pereira de Vasconcellos para que os ministros passassem a ter de ir prestar
contas de sua atuação ao Parlamento e de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro para
que a prestação de contas dos ministérios fosse obrigatória através do ‘Relatório’.
Desenhava-se então, no confronto entre o Governo e o Parlamento uma
crescente identificação deste com a Nação, levando à reivindicação de poderes que
consubstanciar-se-iam na votação do orçamento e na votação das Forças Armadas,
compondo-se as bases do parlamentarismo. Estas bases poderiam então ser resumidas
na conquista pelo Parlamento, da prerrogativa de poder conceder ou não, os recursos
necessários para que o Gabinete pudesse efetivamente governar.
52
Por conseguinte, através da consolidação das condições de enunciação passaria a
desenvolver-se no Parlamento uma série de enunciados a respeito da ‘inscrição do
Estado no espaço internacional’ que estavam relacionados com o compartilhamento das
experiência do ‘Segundo Conselho de Estado’.
Constituir-se-ia por meio destes enunciados um repúdio ao que era se
convencionou chamar no Parlamento de 'Sistema de Tratados', englobando-se neste
conceito a todos os tratados assinados durante as vicissitudes da Guerra da Cisplatina,
os quais impunham uma pretensa reciprocidade entre o Brasil e as nações européias.
Esta reciprocidade, na verdade, passaria a ser entendida no Parlamento como uma
expressão jurídica da desigualdade entre o Brasil e as potências européias:
Esses velhos Estados da velha Europa, ignorando os verdadeiros
princípios econômicos, julgaram que deviam fazer pender ao seu lado e em
seu favor a sonhada balança comercial. Hoje é geralmente reconhecido, que
52
Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade
de Brasília, c. 1981, p. 11-13.
161
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
os tratados não podem deixar de ser atos senão hostis, ao menos muito
odiosos às nações.
53
Por conta deste entendimento, passar-se-ia também a repudiar todas as gestões
anteriores do Ministério dos Negócios Estrangeiros, denunciadas por Francisco de Paula
Souza e Melo nos termos de que “nenhuma repartição como a dos Estrangeiros tem
feito ainda mais mal ao Brasil”, principalmente do que chamava de “política de
reconhecimento”. Esta ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, identificada “com
os Tratados os mais indignos”, era caracterizada por Paula Souza como uma “baixeza
com que mendigam o reconhecimento de nossa Independência”, e era entendida como a
causadora do “estado lastimoso em que nos encontramos”.
54
Por conseguinte, depois de 1828, o Parlamento passaria a exigir com que todos
os tratados negociados pela SNE tivessem de passar pela aprovação tanto da Câmara
dos Deputados quanto do Senado, antes que passassem a ter pleno efeito, uma demanda
que na verdade somente seria alcançada depois da abdicação de D. Pedro I.
Deste modo, a ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ teria de passar
necessariamente por uma revisão do ‘Sistema de Tratados’ que incluía, num primeiro
momento, a extensão para todas as nações, dos privilégios alfandegários anteriormente
concedidos.
O estabelecimento da equalização da tarifa alfandegária em 15 % era então
entendido como uma medida provisória, para vigorar enquanto não se podia decretar a
inconstitucionalidade do ‘Sistema de Tratados’, destinando-se, segundo os argumentos
definidos por Vasconcellos no Parlamento, a “eliminar o monopólio, fazer justiça às
nações americanas, sobretudo Estados Unidos, e aumentar a concorrência da oferta
externa, tendo em vista a baixa dos preços, o aumento da importação e
consequentemente da receita.”
55
Num segundo momento, a revisão do ‘Sistema de Tratados’ passaria a basear-se
no princípio de que competiria somente ao Parlamento legislar em matéria tributária,
53
Bernardo Pereira de Vasconcellos, Manifesto político e exposição de princípios, citado em Amado Luiz Cervo, O
Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, c. 1981, p.
21.
54
Francisco de Paula Sousa e Melo, Atas do Senado, Sessão de 12 de agosto de 1846, citado em Amado Luiz Cervo,
O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, c. 1981,
p. 26.
55
Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade
de Brasília, c. 1981, p. 22.
162
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
sendo que este princípio efetivar-se-ia através da recusa do Senado de renovar o tratado
com Áustria em 1836. A partir dessa recusa, todos os outros tratados passariam a
também serem recusados, culminando, num terceiro momento, com a elevação geral das
tarifas, as chamadas ‘tarifas Alves Branco’, de 1844, que seguir-se-iam ao fim do
Tratado com a Inglaterra, embora este houvesse sido renovado unilateralmente por
aquele país até o ano de 1845.
56
Portanto, quando se reinstituí o Conselho de Estado em 1842, ainda que este se
constitua no bojo do ‘regresso conservador’, sua composição continuaria a privilegiar,
inclusive em sua composição, as condições de enunciação que haviam sido
estabelecidas a partir da primeira legislatura do Parlamento. Estas condições de
enunciação incluiriam o aprofundamento e a modificação do debate sobre ‘a inscrição
do Estado no espaço’ no ‘Terceiro Conselho de Estado’, visando-se com isso
estabelecerem-se subsídios que permitissem uma possível polêmica com o Parlamento,
preservando-se assim a autonomia dessa instituição frente ao Governo.
Do mesmo modo, o antigo posicionamento do Parlamento contra a SNE levaria
ao desejo dos conselheiros, especialmente da primeira geração destes, em acompanhar
de perto o funcionamento daquele ministério, desenhando-se assim, inclusive, um
controle estreito sobre suas atividades.
Cabe notar, nesse sentido, que o funcionamento do ‘Terceiro Conselho de
Estado’ era dividido em várias seções, sendo que a Seção de Justiça e Negócios
Estrangeiros (doravante citada como SJNE), como as outras seções, era composta por
três conselheiros, no caso, sendo presidida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, que
não tinha poder de voto.
Ainda, ao contrário do ‘Segundo Conselho’, onde a minuta de cada consulta era
apresentada aos conselheiros pelo Ministro ou ainda pelo próprio Imperador, no
‘Terceiro Conselho’ cada seção possuía um relator fixo escolhido dentre seus
integrantes, o qual seria responsável por apresentar a minuta do parecer a ser votado e o
relato de sua discussão. Além disso, se não tivesse havido unanimidade nas votações, os
votos discordantes poderiam ser acrescentados em anexo ao parecer do relator.
A reunião de todas as seções comporia o chamado Conselho Pleno, quando, à
exemplo das seções, se emitiria um parecer de caráter consultivo e circunscrito ao
56
Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade
de Brasília, c. 1981, p. 20-29.
163
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
âmbito da consulta imperial. Contudo, cabe esclarecer que as seções não eram de todo
carentes de iniciativa, uma vez que podiam se reunir sem convocação e propor as ações
que então lhe parecessem convenientes, desde dissessem respeito aos assuntos que lhes
fossem afetos.
Aparentemente, se nos restringirmos aos aspectos do funcionamento e da
composição das seções, um estudo baseado nas atas da SJNE ou sobre as atas de
qualquer outras seção apresentaria, em relação àqueles produzidos a partir das atas do
Conselho Pleno, a desvantagem de condicionar-se a uma amostra muito reduzida do
pensamento do Conselho de Estado, tanto por uma suposta fixidez da composição das
seções, quanto por conta do pequeno número de sues componentes.
Contudo, na prática, a presença dos conselheiros nas reuniões secionais e mesmo
o pertencimento destes às seções eram muitas vezes transitórios, fruto de uma mecânica
de suplência oficiosa que foi adotada no ‘Terceiro Conselho de Estado’ à margem do
seu Regimento. Assim, tornar-se-ia possível, inclusive, pensar as alterações na
composição das seções dentro de um contexto de estratégias ou alianças que refletissem
não só as mudanças no poder ou a predominância de determinada corrente de
pensamento, mas também a importância de cada seção relativamente à cada conjuntura
política.
Por outro lado, era relativamente comum que se reunisse mais de uma seção
durante certas discussões. No caso de algumas reuniões da SJNE, aconteceria
ultrapassar-se, inclusive, o quantitativo necessário à reunião do Conselho Pleno, que era
de sete conselheiros. Por conseguinte, poder-se-ia, através de uma análise baseada nas
presenças às reuniões, aventar-se a projeção e o peso das discussões travadas e sob
quais circunstâncias teria sido empreendido o debate em cada uma das seções.
Finalmente, em vários momentos, os líderes dos partidos Conservador e Liberal
participariam das reuniões da SJNE, o que permitiria avaliar a existência de enfoques
particulares a cada uma destas agremiações ou ainda os seus interesses conjunturais em
respeito a certos aspectos específicos da vida política, os quais, por sua vez, poderiam
ser mais aprofundados por conta da própria divisão temática que circunscrevia cada uma
das seções.
Por conseguinte, seguindo-se este raciocínio e voltando-o para nosso estudo, as
atas da SJNE possuiriam a vantagem de ser um material de análise, não apenas do
pensamento específico sobre o espaço, mas também uma amostra das práticas do
164
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘Terceiro Conselho de Estado’ e mesmo da política do Império, constituindo um
microcosmo de sua atuação.
Assim, uma das questões que pode ser colocada a partir desta pesquisa sobre as
atas da SJNE diz respeito à importância da representação dos partidos políticos e de
seus programas no pensamento do espaço no ‘Terceiro Conselho de Estado’.
Considerando que o ‘Terceiro Conselho’ foi constituído no decorrer do ‘regresso
conservador’ e da disputa com os liberais, a constituição inicial da SJNE refletiu a
predominância do partido conservador, assim como suas sucessivas formações
refletiriam depois a adesão do Partido Liberal às regras do poder. Deste modo, a partir
de 1847 se daria o concurso de liberais à Seção, no caso, Miguel Calmon du Pin e
Almeida, o Marquês de Abrantes e Antônio Paulino Limpo de Abreu, o Visconde de
Abaeté, em 1848.
Mesmo que o problema da influência dos partidos nos debates do ‘Terceiro
Conselho de Estado’ seja no mínimo discutível, haja vista existir um sentimento comum
a respeito da independência do voto entre os conselheiros ,
57
os dados de nossa pesquisa
permite que façamos algumas reflexões a respeito do sentido do voto e da representação
dos partidos nas seções.
Primeiramente, em relação ao sentido do voto, entendemos que o predomínio
conservador na composição da SJNE foi contrabalançado, especialmente nos anos do
gabinete liberal, entre 1844 e 1848, através do mecanismo de suplência e de reunião das
seções anteriormente referido, o que permitiu a presença dos dois partidos, e inclusive
de seus líderes, na maioria das discussões da SJNE.
58
Por conseguinte, se a influência dos partidos se fizesse sentir nos debates da
seção, certos posicionamentos tradicionalmente atribuídos a cada um dos partidos
dever-se-iam explicitar, ao menos, demonstrando-se uma tendência partidária dos
conselheiros nas questões mais sensíveis, como, por exemplo, naquelas que dissessem
respeito ao liberalismo ou ao intervencionismo, mas, em nenhuma das cento e quinze
atas analisadas foi encontrada uma oposição estrita entre representantes dos dois
partidos.
57
Veja-se por exemplo, José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de
sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 361.
58
Verifica-se a presença nas votações da SJNE, durante o período, dos seguintes liberais: Antônio Paulino Limpo de
Abreu (Visconde de Abaeté), Francisco de Paula Sousa e Melo, Manuel Alves Branco (2º Marquês de Caravelas) e
José da Costa Carvalho (Marquês de Monte Alegre).
165
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Ainda, mesmo em muitas das sessões do período pesquisado as reuniões
contassem apenas com a presença dos conservadores, nossa análise das atas dão conta
de intensas divergências durante essas reuniões e de pareceres sem consenso, ocorrência
que tornar-se-ia, inclusive, bastante comum a partir de 1844 (ver Tabela 1).
Assim, podemos entender que o sentido de independência de voto dos
conselheiros no ‘Terceiro Conselho’ permitiu que o debate sobre o espaço não fosse
construído sobre posicionamentos partidários mas a partir de diversos enunciados
elaborados sobre os elementos retirados da ‘gramática compartilhada’ ou sobre um
‘saber sobre o espaço’ constituído em outro lugar de enunciação.
Esta consideração pode ser perfeitamente demonstrada a partir da comparação
desses enunciados com a produção derivada do debate no IHGB e se contrapõe, de um
modo geral, à idéia de que a política externa do Império foi o ponto de consenso entre
os partidos ou de que foi apenas um ato reflexo da conjuntura internacional.
Portanto, podemos considerar, dentro do mesmo raciocínio, que a política
externa é constituída a partir de um ‘saber sobre o espaço’ em contínua elaboração, o
que permitiria estender o domínio da História sobre um outro campo, o da análise da
política externa, por conseguinte, mais além de uma mera ‘análise do processo
decisório’, permitindo-se com isto, melhor explicar certos problemas pouco entendidos,
como, por exemplo, a influência da geopolítica sobre a política externa brasileira
durante o século XX.
TABELA 1 —- DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS NA SJNE (1842-1848)
Ano Divergências Convergências Divergências ( %)
1842 0 7 0%
1843 3 2 60%
1844 7 11 39%
1845 8 18 31%
1846 15 28 35%
1847 1 11 8%
1848 3 1 75%
Fonte: Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, 1842-1848.
166
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Em segundo lugar, em relação à representação dos partidos na Seção,
procederemos a um exame da tabulação das divergências e convergências nas reuniões
da SJNE no período que antecedeu a chamada ‘grande política americana’,
normalmente entendida como um ponto de inflexão entre uma ‘política externa liberal’
e uma ‘política externa conservadora’.
Observe-se que os dados referentes aos anos de 1842, 1843, 1847 e 1848 se
apresentam como atípicos na série tabulada: enquanto 1843 e 1848 apresentam o maior
número de divergências no período, 1842 e 1847, apresentam tanto o maior percentual
de convergências. Assim, para a análise desta série tabulada, consideraremos existirem
duas séries atípicas em relação ao conjunto, os anos 1842-1843 e 1847-1848.
Num primeira análise, sabe-se que Paulino José Soares de Souza assumira a
SNE em 1843, sendo substituindo já em 1844 por conta das resistências às intenções de
então se instaurar uma política intervencionista no Prata. Também sabe-se que o mês de
setembro de 1848 marca a volta de Paulino José Soares de Souza à SNE, encerrando-se
um período de grande instabilidade naquele ministério, que foi ocupado por cinco
titulares em menos de dois anos.
59
A partir da posse de Paulino José Soares de Souza na SNE em 1848, definir-se-
ia oficialmente a doutrina de limites a ser seguida pelo Império, a saber, o Uti Possidetis
e a nulidade dos tratados coloniais. Também seria inaugurada uma nova fase na política
externa, chamada na Parlamento de ‘a grande política americana’, que seria
caracterizada pelo retorno à presença ativa no Prata, após se resolver, pelo fim do
Tráfico de escravos, as pressões inglesas reguladas pelo ‘Bill Aberdeen’.
Novamente, se apenas observássemos somente por uma ‘análise do processo
decisório’, atribuiríamos as atipicidades observadas em nossa série de dados à
alternância no poder entre os partidos Liberal e Conservador, já que traduziríamos essas
atipicidades por uma oscilação da política externa entre a intenção de intervir, a
neutralidade e o intervencionismo.
Ainda se utilizássemos apenas a análise do processo decisório, as questões da
neutralidade e da intervenção deveriam ser entendidas enquanto diferenciais entre os
partidos Liberal e Conservador, sendo então o debate destas questões na SJNE uma das
59
De janeiro de 1847 até setembro de 1848, passam pela SJNE, respectivamente, os seguintes ministros: Bento da
Silva Lisboa (2º Barão de Cairú), Saturnino de Sousa e Oliveira, José Antonio Pimenta Bueno, Antônio Paulino
Limpo de Abreu e Bernardo de Sousa Franco.
167
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
explicações dos altos percentuais de divergências na seção, já que esta seção era um dos
lugares por excelência da discussão da política externa e mesmo porque ali estavam
representados os líderes dos dois partidos.
Entretanto, se observarmos a primeira série atípica (1842-1843), veremos que no
ano que precederia a destituição de Paulino José Soares de Souza e a alternância de
poder, ocorreu um aumento da ordem de 60% no quantitativo de divergências, o que
ainda poderia ser explicado de várias formas por uma análise baseada no ‘processo
decisório’, mas, note-se que neste período a predominância conservadora na seção era
absoluta.
Do mesmo modo, na segunda série atípica (1847-1848), veremos que nos anos
que precederiam a ‘grande política americana’ e a alternância no poder entre os dois
partidos, as consultas à SJNE diminuem 77%, apresentando-se então apenas 8% de
divergências, quando deveria ter-se dado exatamente o contrário.
Então, ao entendermos que a política externa se constituí a partir de um ‘saber
sobre o espaço’ isto permitir-nos observar que, ao invés de representar um tendência
partidária, como já aventamos, não existia na SJNE nenhum consenso à respeito da
intervenção nem uma clara definição de política partidária que permitisse basear uma
‘análise do processo decisório’, devendo-se mesmo salientar que, a doutrina de limites,
geralmente relacionada ao partido conservador, deveu-se a uma lenta constituição do
‘saber sobre o espaço’ durante as décadas de trinta e quarenta, conforme explicitaremos
no capítulo seguinte.
Por conseguinte, para que se possa explicar convenientemente tais ocorrências
atípicas na tabela, mais a persistência de um grande quantitativo de divergências nos
outros anos, é necessário esclarecermos que, no período estudado, existiam na seção
diferentes idéias da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ e que estas idéias se
sobrepuseram às tendências partidárias.
Assim, podemos entender o incremento das divergências como um indício do
surgimento destas novas idéias para o que, como sabemos que não houve uma alteração
na composição oficial dos membros da SJNE, seria necessário que um dos membros da
seção passasse a defender outra idéia ou que os mecanismos de suplência e de reunião
das seções do ‘Terceiro Conselho de Estado’, em função de algum arranjo interno,
fossem os responsáveis por este aumento das divergências.
Por outro lado, o decréscimo das divergências poderia indicar a existência de um
consenso em torno de uma idéia da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, mas,
168
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
como sabemos que isto não aconteceu, por meio da análise das atas, devemos entender
que uma das explicações possíveis para a diminuição abrupta das consultas à SJNE
(uma diferença de 90,7% entre 1846 e 1848) é a de que ter-se-ia processado alguma
transformação no relacionamento com a SNE, já que esta era a fonte das consultas e que
tal transformação tornou as consultas à SJNE menos necessárias.
O exame das atas nos permite observar que outros conselheiros passariam a
integrar as reuniões da seção justamente a partir do primeiro período atípico (1842-
1843), sendo que um destes conselheiros, Bernardo Pereira de Vasconcellos, teria um
engajamento nas discussões da SJNE completamente desproporcional ao dos demais
conselheiros (ver Tabela 2).
Bernardo Pereira de Vasconcelos estaria presente a praticamente todas as
reuniões da SJNE até 1848, se tornando o relator de 52% das consultas no período
1842-1848, número que subiria para 56% se fossem considerados os dados somente a
partir de 1843, ano em que Vasconcelos começa a participar das reuniões da SJNE.
Ainda, no período 1846-1848, este conselheiro exerceria a função de relator em 63%
das reuniões, um número impressionante, ainda mais se for considerada a sua
progressiva decadência física, originária de uma enfermidade que debilitava
enormemente suas faculdades motoras (note-se que Vasconcelos morreria em maio de
1850).
Outro constatação importante é que, paralelamente a este engajamento
progressivo de Vasconcelos na seção, reduziram-se as ocasiões em que o Imperador
restituiu a matéria de consulta da Seção ao exame do Conselho Pleno,
60
o que,
provavelmente, é um indicador tanto do maior prestígio da seção quanto do alcance dos
argumentos do relator.
Portanto, a inserção de Bernardo Pereira de Vasconcellos na SJNE, sua
assiduidade, o controle da função de relator e o menor índice de rejeição dos Pareceres
da Seção pelo Poder Moderador nos possibilita entender que os mecanismos informais
do ‘Terceiro Conselho de Estado’ seriam operados como um instrumento regulador das
‘relações de força’, entendidas aqui no sentido empregado por Foucault em sua obra
60
Conselho de Estado: 1842-1889 - Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros vol. II Brasília: Câmara dos
Deputados, 1978, p. 14.
169
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘Em defesa da Sociedade’, enquanto uma reinserção do Poder, ou seja, um exercício
continuado de reelaboração das relações de poder.
61
Neste sentido, se entendermos a SJNE como um microcosmo da política
Imperial, estas ‘relações de força’ seriam reelaboradas transversalmente às instituições,
aos regulamentos e às leis, excedendo e ultrapassando a organização constituída, para
recolocar e relembrar pontual e oportunamente um poder historicamente estabelecido.
Em terceiro lugar, delinear-se-ia ainda uma transformação progressiva no
relacionamento entre SJNE e a SNE durante o período observado, a qual irá se
caracterizar pelo controle progressivo das funções diretivas e administrativas da SNE
pela SJNE.
TABELA 2 — RELATORES DAS CONSULTAS DA SJNE ENTRE 1842 E 1848.
Relatores 1842-45 1846-48 Total
Bernardo Pereira de Vasconcelos 23 (41%) 37 (63%) 60 (52%)
Caetano Maria Lopes Gama 14 (25%) 10 (17%) 24 (21%)
Honório Hermeto Carneiro Leão 7 (13%) 8 (14%) 15 (13%)
José da Costa Carvalho 7 (13%) 7 (6%)
José Cesário de Miranda Ribeiro 1 (2%) 1 (1%)
Miguel Calmon du Pin e Almeida 2 (3%) 2 (2%)
Antônio Paulino Limpo de Abreu 2 (3%) 2 (2%)
Sem identificação do relator 3 (5%) 2 (2%)
Total 56 (49%) 59 (51%) 3 (3%)
Fonte: Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, 1842-1848.
Neste sentido, já a primeira consulta à SJNE é na realidade uma prestação de
contas da SNE e uma exposição de seu planejamento futuro para os conselheiros,
62
o
que provavelmente espelha a preocupação do Parlamento com a independência que
61
Michel Foucault, Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 22-24.
62
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 11/03/1842.
170
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
aquele ministério conduzira a política externa frente ao legislativo durante o Primeiro
Reinado e que ainda era manifestada espontaneamente por estes em meados da década
de 1840,
63
ou seja, revela-se a influência de uma ‘gramática compartilhada’ pelos
conselheiros.
Assim, esta atitude de vigilância em relação à SNE se transformaria
paulatinamente num controle estrito, como pode ser observado a partir de 1844, quando
a SNE passaria a encaminhar os pedidos de instruções dos diplomatas estrangeiros à
Seção,
64
prosseguindo essa transformação através da iniciativa seccional de reorganizar
o serviço diplomático brasileiro, inclusive introduzindo os princípios do mérito e da
competência para a admissão na carreira diplomática e culminando com a vinculação
dos processos de demissão do pessoal da SNE à chancela e julgamento da SJNE.
65
Ainda, a SJNE passaria a regular tanto os assuntos mais importantes, como as
instruções aos diplomatas, fornecidas minuciosamente pela Seção,
66
quanto as questões
mais triviais do funcionamento da SNE, tais como, gratificações, emolumentos,
regulamentos consulares
67
e até mesmo a aposentadoria de diplomatas.
68
A transformação na interação entre os dois órgãos se tornaria mais aguda entre
os anos de 1846 e 1847, quando a própria estrutura da SNE tanto interna quanto externa,
passa a ser organizada a partir de regulamentações discutidas no âmbito da SJNE.
69
Sintomaticamente, Bernardo Pereira de Vasconcelos serviu como relator em quase
todos os pareceres onde se alteraria substancialmente o poder e a influência da Seção
sobre a SNE.
Portanto, como a transformação no relacionamento entre a SJNE e a SNE
coincide com a reelaboração das ‘relações de força’ na Seção, poderíamos supor, se
entendêssemos a SNJE como um microcosmo da política Imperial, que o ‘Poder
político’ teria como uma de suas funções reinscrever continuamente as ‘relações de
63
Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade
de Brasília, c. 1981, p. 26.
64
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 28/06/1844.
65
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 10/07/1845.
66
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 30/07/1845.
67
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 09/03/1847, 06/05/1847, 18/10/1847, 27/09/1848 e
13/12/1848.
68
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 31/12/1853.
69
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 11/02/1846 e 18/10/1847.
171
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
força’ nas instituições, nas relações entre as instituições, na regulamentação das
instituições e se voltarmos esta ilação para o nosso estudo, até mesmo na linguagem.
Em 1842, no Conselho de Estado, as principais idéias da ‘inscrição do Estado no
espaço’ giravam em torno das idéias da reafirmação da soberania e da construção
econômica da nação, cujas discussões estavam ligadas aos problemas decorrentes do
‘Sistema de Tratados’.
Enquanto a maioria dos integrantes da Seção entendia então que convinha
sacrificar parte da soberania em razão da grande necessidade de comércio, de capitais e
de população a ser satisfeita pela imigração, alguns outros defendiam o fim dos
privilégios do ‘Sistema de Tratados’,
70
embora, de um modo geral, os pareceres fossem
bastante complacentes em relação aos interesses dos países europeus.
Dominava então uma idéia da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’
numa ‘comunidade idealizada’ que nos reunia aos países europeus, seja pelas idéias,
seja pela origem ou pelos costumes.
Em relação à ‘inscrição do espaço nacional’ a Seção reconhecia que o
desconhecimento do território e de seus limites impunha uma recusa em celebrar
tratados com os países limítrofes
71
e demonstrava grande relutância em se desvencilhar
dos antigos tratados coloniais, uma vez que não se podia sequer supor se as inovações
poder-se-iam traduzir em benefícios ou perdas.
72
Mas, posteriormente, começar-se-ia a esboçar, a partir da entrada de Bernardo
Pereira de Vasconcelos na Seção, uma idéia de ‘inscrição do Estado no espaço
internacional’ que identificava claramente os interesses comerciais das potências
européias no Brasil com o aumento de sua ‘influência’, considerando-se esta como
danosa aos interesses nacionais.
73
Embora seja certo que alguns destes elementos já estivessem presentes na
repulsa ao ‘Sistema de Tratados’ esboçada anteriormente na Seção, naquele momento o
argumento concorrencial ainda não era decisivo, uma vez que compreendia-se que as
relações com as potências européias revestiam-se de um caráter civilizador, permitindo
70
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 04/11/1842 e pareceres anexos de 20/12/1842 e
11/07/1843.
71
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 23/06/1845.
72
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 16/06/1842.
73
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 18/09/1843.
172
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
ainda a alguns conselheiros subestimar assim as restrições impostas à soberania
brasileira.
Por conseguinte, a denúncia do avanço da ‘influência’ estrangeira iria constituir-
se no cerne de uma idéia de ‘inscrição do Estado no espaço nacional’ que contrapunha o
estrangeiro ao nacional e advogava a resistência e a exaltação dos valores e instituições,
afirmando, por exclusão, uma identidade nacional.
74
Neste sentido, o legado das
tradições portuguesas seria identificado ao nacional e à construção da Nação, num
contexto de reação ao estrangeiro que teria a animosidade contra a Inglaterra e contra
suas ações como um dos seus vetores.
Este contexto também refletiria as discussões anteriores do Parlamento e as
variáveis do sistema de relações continental, gerando, na associação com o legado
português, os primeiros esboços de um espaço nacional brasileiro. Deste modo
resultaria incluir-se nesta idéia a oposição e desconfiança para com os habitantes das
antigas colônias hispânicas, considerados indistintamente como herdeiros de uma
rivalidade intransponível e rancorosa contra os brasileiros.
75
Nesta idéia, a ‘inscrição do espaço nacional’ incluiria o conceito das ‘fronteiras
naturais’ esboçado anteriormente por Pinheiro nas ‘Memórias’, buscando-se assim
distinguir o Brasil dentre as outras nações do continente americano. Esta separação
então passaria a ser interpretada num contexto idealizado onde o Brasil significava, em
oposição aos seus, vizinhos, a ordem e a civilização e onde, por exemplo, insere-se a
idéia da reincorporação do Uruguai, “que pertencera ao Brasil por livre e espontânea
vontade” e do qual fora separado “graças ao Imperador D. Pedro I ter cedido aos
impulsos dos sentimentos liberais e generosos do seu coração”.
76
Por conseguinte,
demonstrar-se-ia também por esta idéia a influência da ‘gramática compartilhada’ e da
experiência do ‘Segundo Conselho’.
Ainda através desta nova idéia, da qual Bernardo Pereira de Vasconcelos seria o
maior defensor na SJNE, se proporia uma nova relação do Brasil com as potências
européias: os acordos que fossem celebrados com estes países deveriam possuir
compensações reais e condições iguais para o país, jamais tolhendo as iniciativas do
74
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 23/02/1844.
75
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 02/07/1844.
76
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 05/07/1844 e 29/07/1844.
173
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Legislativo “na adoção de medidas apropriadas ao desenvolvimento da indústria, bem-
estar e prosperidade do Brasil”.
77
Frente a vários problemas, como em relação ao Prata ou ao Tráfico, a postura
dos defensores desta idéia seria pragmática, pois defendiam a neutralidade do Brasil no
Prata e na Amazônia, como um instrumento ditado pela ocasião, enquanto se
acumulassem as forças materiais necessárias para um futuro confronto, já que este seria
inevitável.
A própria escravidão e o Tráfico não eram considerados ideais, mas, necessários,
uma vez que o contexto criado pela falta de braços para a agricultura havia
proporcionado o apoio das elites produtoras ao Tráfico. Este apoio se daria tanto no
Parlamento, resultando em diversas dificuldades para a aprovação de leis que
possibilitassem a venda de terras e a imigração de colonos, quanto no nível local, onde a
direção da eleição dos juizes de paz garantia uma tolerância completa ao Tráfico,
especialmente nos locais de desembarque.
78
Entretanto, outra idéia da ‘inscrição do Estado do espaço’ desenvolver-se-ia a
partir dos antigos posicionamentos majoritários na SJNE e seu maior expoente será
Caetano Maria Lopes Gama. Seus partidários eram favoráveis a uma maior
aproximação e identificação com a Europa e considerava que as divisões políticas
provocadas pelos partidos e o mau estado das finanças públicas eram os responsáveis
pelo declínio da situação nacional. Essa fraqueza conjuntural fatalmente levaria à
agressão externa e ao conseqüente esfacelamento do território, sendo urgente, portanto,
incentivar e acelerar reformas que, servissem, ao mesmo tempo, para fortalecer a
autoridade central e proteger a propriedade.
Esta idéia considerava ainda o tráfico de escravos como um elemento retardador
da indústria e da riqueza nacional, que inibia a imigração européia e inviabilizava o
crescimento da população livre e o entendimento com a Inglaterra.
79
A continuação do
Tráfico, além de estimular a mistura de raças, poderia ser a ruína da Monarquia e das
elites, um “Cavalo de Tróia” que “introduzia diariamente no Brasil os defensores das
instituições do Haiti”.
80
77
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 16/09/1844.
78
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 10/10/1846.
79
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 28/06/1844.
80
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 10/08/1846.
174
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Quanto à ‘inscrição do espaço nacional’, por motivos políticos e econômicos a
região do Prata era considerada como uma de suas projeções e a intervenção, fosse
diplomática ou militar, era advogada como o instrumento necessário para salvaguardar
os interesses do Brasil, salientando-se neste processo, porém, a necessidade do
entendimento e mesmo do alinhamento do Brasil com a Europa.
Ainda outra idéia da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ se
desenvolveria no âmbito da SJNE, derivada das antigas posições minoritárias no
‘Terceiro Conselho de Estado’ e centralizada na figura de Francisco de Paula Sousa e
Melo.
Nesta idéia, a neutralidade não era apenas uma condição para o crescimento do
Brasil, mas a única postura possível diante da constatação da pouca importância do país
nos cenários americano e mundial e em face dos insucessos recentes e passados. Dadas
estas condições, caberia ao Brasil construir com os seus vizinhos as condições de
convivência e prosperidade material, inclusive no respeito ao território destes.
Para que fosse possível a resistência às pressões externas seria necessário abrir
novas vertentes diplomáticas, especialmente estreitando-se as relações com os Estados
Unidos e a Rússia, vistas como nações cujos interesses coincidiriam com os do Brasil e
que seriam possuidoras de peso e influência sobre a política externa da Inglaterra.
81
Esta idéia entendia, por conseguinte, existirem semelhanças entre o Brasil e os
demais países da América, o que levava à necessidade de uma convivência pacífica e à
procura de novas oportunidades no espaço internacional fora da ‘comunidade
idealizada’.
Contudo, a Inglaterra não era entendida como um adversário, mas como um
exemplo a ser copiado, logo, um país com o qual o Brasil devia buscar a colaboração e
o entendimento. Assim, os partidários desta idéia acreditavam ser necessário elaborar
estratégias que privilegiassem as relações comerciais em lugar da diplomacia estrita e,
nesta ótica, se considerava imperativo superar a estreiteza das relações internacionais
através do privilégio ao comércio.
As variáveis das relações internacionais teriam ainda uma grande influência no
desenvolvimento das tensões e das relações entre as idéias da ‘inscrição do Estado no
espaço internacional’. O aumento das pressões inglesas corresponderia a uma tendência
para se alinharem as posições na SJNE, por exemplo, entre novembro de 1844 e janeiro
81
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 23/12/1845 e 23/06/1845.
175
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
de 1845, seria produzida uma série rara de decisões unânimes contra as posições
inglesas, sobretudo no tocante às Comissões Mistas.
Refletindo esta inclinação, a argumentação dos pareceres relativos à extinção das
Comissões Mistas se constituiria, em grande parte, no amálgama dos principais
enunciados das idéias, pois seriam invocados como razões dos pareceres tanto o
problema da obstrução do comércio, quanto as questões relativas à soberania e à
carência de braços para a agricultura.
Esta construção conjunta também se repetiria no embasamento do progressivo
abandono da idéia de neutralidade no Prata – seriam arrazoados tanto a concorrência
comercial sofrida pelo Brasil, quanto a tradição estratégica portuguesa de evitar o
engrandecimento argentino e o temor da intervenção externa seguida de fracionamento
do território nacional.
Do mesmo modo, as diferenças entre as várias idéias da ‘inscrição do Estado no
espaço internacional’ não impediam que em vários momentos as idéias da ‘inscrição do
espaço nacional’ convergissem: os limites do Tratado de Santo Ildefonso e do Tratado
de Madri deixariam de ser, durante a década, uma referência para os limites e passariam
a ser rejeitados por defensores das várias idéias enquanto parte de uma postura
calculada para possibilitar uma futura expansão brasileira, uma vez que seu
entendimento do uti possidetis, era a de que este era um instrumento apenas
circunstancial.
82
Esta interpretação se dava pela identificação temporária das idéias com o antigo
pensamento estratégico português, que priorizava a consolidação de posições em lugar
de ocupação do território. Entretanto, haviam algumas diferenças entre as idéias da
‘inscrição do Estado no espaço’, enquanto a corrente de Lopes Gama se postou contra
os tratados com os países vizinhos, a tendência do grupo de Vasconcellos era entender
que os tratados com os países vizinhos podiam ser possíveis, na medida em que, no
interesse nacional, projetassem ou resguardassem a influência brasileira.
Dentro deste raciocínio, sob a liderança de Vasconcelos, a própria SJNE tomaria
a iniciativa de propor, um ‘Tratado de amizade, comércio, navegação e limites’ com o
Paraguai,
83
assim como sugeriria a negociação de limites com a Venezuela a fim de
82
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 23/06/1845.
83
Note-se que não estiveram presentes à reunião os representantes da posição contrária. Atas da Seção de Justiça e
Negócios Estrangeiros, consulta de 25/06/1845.
176
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
diminuir a pressão britânica sobre o território de ambos os países e impedir a expansão
territorial daquela potência na Amazônia.
84
Entretanto, essa convergência pontual das idéias da ‘inscrição do Estado no
espaço’ se origina da liderança exercida por Vasconcelos na Seção, uma vez que seu
pragmatismo evitará tanto o rompimento de relações com a Inglaterra, que foi
preconizado em vários momentos pelos defensores das outras idéias, quanto logrará
evitar as hostilidades e o engajamento precoce no Prata.
Ainda que não se consolidem as alternativas de Vasconcelos ao Tráfico
85
e que
sua liderança fosse interpretada como uma tolerância às humilhações impostas pela
Inglaterra,
86
a construção de um ideário de identidade nacional através da identificação
com a herança portuguesa e com a afirmação e diferenciação do Brasil no cenário
americano e mundial se confirmaria como a mais influente idéia da ‘inscrição do Estado
no espaço internacional’: o Brasil seria idealizado como “o supremo árbitro dos novos
Estados da América ex-espanhola e o rival da grande potência americana outrora
colônia inglesa.”
87
Suas idéias avançariam inclusive no sentido de diferenciar os interesses da
monarquia daqueles do Estado brasileiro: as idéias de reciprocidade de tratamento e
parentesco deveriam ser substituídas pelas do realismo político e dos interesses
comerciais. Inclusive, como parte desse raciocínio, estariam incluídos dentre os deveres
que cabiam aos membros do corpo diplomático brasileiro no exterior, “influir, e até
dirigir a administração [daqueles países] em benefício de sua nação, sem que, contudo,
de qualquer modo a comprometa, e lhe suscite os menores embaraços e dificuldades.”
88
Ainda assim, o pensamento do espaço na SJNE durante o período 1842-1848
não deve ser analisado apenas através de uma ótica que o entenda como um embate de
várias idéias sublimadas na SJNE, embora realmente estas sejam recolhidas das
discussões do Parlamento, do debate no IHGB e das construções da SNE.
Na verdade o pensamento do espaço na SJNE apenas interage no teatro da
narrativa servindo como um local de enunciação e de reelaboração das representações,
84
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 06/10/1846.
85
Através, por exemplo, de acordos com o Zollverein ou do incentivo à imigração chinesa (Atas da Seção de Justiça
e Negócios Estrangeiros, respectivamente, consultas de 17/03/1846 e 30/05/1846).
86
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 11/04/1846 e seguintes.
87
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 30/07/1845.
88
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 18/10/1847.
177
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
mas, será em outros locais de enunciação que se elaborará um ‘saber sobre o espaço’
cuja organização permitirá que se conduza uma operação desse saber numa narrativa.
Entretanto, a reorganização da SNE coordenadas por Vasconcelos permitiram que após
sua morte, esta fosse reconstituída como um local de enunciação e que mais tarde
assumisse a operação da narrativa, permitindo que as ‘relações de força’ fossem
reinscritas continuamente também através da reelaboração do ‘saber sobre o espaço’.
178
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
8 — UM ITINERÁRIO DO VALIOSO AO POSSÍVEL: O UTI POSSIDETIS E A
OPERAÇÃO DA NARRATIVA.
“Desta forma conseguiria o Império, aproximadamente, a Fronteira possível, pelo
único direito valioso, isto é, o
uti possidetis, apoiado com a Força; sem a qual nada
de proveito obterá o Governo Imperial dos outros seus vizinhos limítrofes.”
Duarte da Ponte Ribeiro. Apontamentos.
Como vimos nos capítulos anteriores, a narrativa do século XIX se estabeleceu
num lugar validado por um ‘saber sobre o espaço’, por conta da elisão da narrativa do
setecentos e da construção de uma idéia do espaço nacional que entroniza a nação. Esta
construção incorporou tanto a idéia de um espaço brasileiro unitário quanto se apropriou
das corografias no debate do IHGB. Nesse sentido, se utilizarmos a idéia da ‘Forma’ da
linguagem de Humboldt e suas ‘leis de geração’,
1
ter-se-iam já estabelecido as ‘regras
de articulação do discurso’ e as ‘regras de formação das palavras’ por meio da
articulação do ‘saber sobre o espaço’ num debate no teatro da narrativa e de sua
condução pelos ‘falantes ideais’, a saber, aqueles indivíduos capazes de compreender
integralmente a ‘linguagem do espaço’, reelaborá-la e de expressá-la. Por conseguinte,
em relação à idéia de Humboldt, faltar-nos-ia desenvolver ainda a ‘regra de formação
dos conceitos que determinam a classe das palavras-raízes’.
Portanto, o primeiro objetivo deste capítulo será explicitar essas regras
utilizando o conceito do uti possidetis, procurando entender a ‘linguagem do espaço’
como ‘uma atividade produtiva’ [eine genetische], um ‘trabalho mental’ [Arbeit des
Geistes], conforme Humboldt, a partir do que buscaremos, como segundo objetivo deste
capítulo, demostrar o desenvolvimento e as condições da operação da narrativa, por
meio do debate do IHGB e da atuação de seus operadores.
2
1
Ver o capítulo ‘O assento central’.
2
A idéia de ‘operador da narrativa’ remete-se ao conceito de ‘operador social’ de Gilbert Durant, utilizado por esse
autor para definir os indivíduos que, através da narração oral ou literária, produzem ou difundem o Mito. Ver
Gilbert Durand,
Mito e Sociedade. Lisboa: A Regra do Jogo, 1983, p. 53-55.
.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Como é sabido, a construção narrativa do século XIX se articula em torno de
uma ‘linguagem do espaço’ que possui duas ‘palavras-raízes’ principais e ligadas: ‘uti
possidetis’ e ‘Tratado de Madri’. Estas ‘palavras-raízes’ seriam, separadamente,
constituídas em representações que, uma vez ligadas, tornar-se-iam capazes de
comunicar os diversos eventos e termos da narrativa entre si. Essa ligação entre as duas
‘palavras-raízes’ produz, no sentido e ordem usuais, um enunciado específico através da
conexão de suas representações: instrumento jurídico consagrado pela antigüidade,
cujas origens se perdem no tempo consenso originador do espaço nacional.
A chave interpretativa deste enunciado, e da própria narrativa do XIX, é que,
primeiramente, a construção da representação das ‘palavras-raízes’ pode ser
historicizada e que aquela deriva da atuação dos operadores da narrativa. Em segundo
lugar, como a ligação dessas construções se fez através da permutação dos atributos das
duas ‘palavras-raízes’ em diversos pares sintáticos capazes de afetar continuamente
todos os novos eventos e termos da narrativa tais como, [consenso antigüidade],
[instrumento consenso] e [espaço origens], entendemos que essa permutação e
ligação se deu através de uma operação da narrativa, que, novamente, também pode ser
historicizada.
Nesse sentido, se remontarmos à nossa idéia da produção do espaço no IHGB e
da apropriação das corografias, que poderíamos definir como um ‘ato de releitura’,
3
verificamos que nele ocorre o mecanismo inscrição — interpretação — escritura, no
qual, se novamente remontarmos a Jacques Derrida, participaria da idéia de uma
‘economia da palavra’, que presumiria “um encadeamento lógico sob a forma da
simultaneidade” onde as palavras são “também primariamente coisas”. Derrida,
interpretando Freud, pressuporia então uma “transgressão” do “sentido habitual da
palavra linguagem”, onde ‘linguagem’ seria entendida como “toda espécie de expressão
da atividade psíquica”,
4
por conseguinte, nos levando a entender a idéia da ‘atividade
gerativa’ de Humboldt [eine Erzeugung] como um processo de inscrição das
experiências, onde as ‘palavras-raízes’ resultariam de uma composição organizada pelas
oportunidades de inscrição.
3
Ver o capítulo ‘A descrição do contemplador’.
4
Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença São Paulo: Editora Perspectiva, 2002,
p. 210-213.
180
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Portanto, a narrativa do XIX deve ser entendida enquanto um ‘ato de releitura’
onde se instaura um processo de construção da linguagem que torna cada palavra parte
mesmo da representação e ainda, cada uma destas representações indistintas entre si.
5
Nesse sentido, poderíamos ainda utilizar uma aproximação com a lingüística
através do conceito de ‘gramática gerativa’ de Noam Chomsky,
6
uma vez que este
possibilita uma análise tanto da articulação da narrativa do XIX quanto da construção de
suas representações.
Segundo Chomsky, os processos mentais de uma ‘gramática gerativa’ se
constróem sobre o que o operador já conhece e não sobre “aquilo que possa informar
sobre o seu conhecimento”, idéia que pode ser corroborada pela asserção de Roman
Jakobson sobre o poder coercitivo do modelo gramatical: “toda a diferença nas
categorias gramaticais conduz informação semântica.”
7
Portanto, a transformação estrutural da sentença não é determinada pela
gramática, mas por condições que Noam Chomsky definiria como pertencentes à teoria
do uso da linguagem — teoria do desempenho: as sentenças mais aceitáveis seriam
aquelas que produzissem melhor desempenho e não aquelas que fossem
gramaticalmente mais corretas. No caso, para cada sentença haveria uma estrutura
profunda capaz de determinar sua interpretação semântica, constituída por um conjunto
restrito de seqüências básicas, nas quais, as sentenças nucleares seriam aquelas que
envolveriam um mínimo de aparato transformacional em sua geração, não
desempenhando um papel distinto na interpretação das sentenças.
Citando Humboldt, Chomsky entende que a linguagem não pode ser
verdadeiramente ensinada, mas que apenas se podem apresentar as condições sob as
quais ela se desenvolverá na mente de cada indivíduo por uma forma particular.
8
Então,
a aquisição da linguagem é feita nos termos das notações disponíveis através de uma
5
Veja-se, por exemplo, a definição, segundo Freud, da palavra enquanto representação: “As palavras são muitas
vezes tratadas pelos sonhos como coisas e sofrem então as mesmas montagens que as representações das coisas.”
Sigmund Freud, citado por Jacques Derrida, in
A Escritura e a Diferença São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p.
210-211.
6
Noam Chomsky, ‘Aspectos da Teoria da Sintaxe’ in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson,
Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo, Abril Cultural, 2ª edição, 1978, p. 230-280.
7
Roman Jakobson, ‘A concepção da significação gramatical segundo Boas.’ in Lingüística e Comunicação. São
Paulo: Cultrix, s/data, p. 92.
8
Noam Chomsky. ‘Aspectos da Teoria da Sintaxe’ in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson,
Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Louis Trølle Hjelmslev, Noam
Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1978, p. 270. A citação de Humboldt se refere à obra ‘Über die
verschiedenheit des menschlichen sprachbaues’, publicada em inglês como ‘
Linguistic Variability & Intellectual
Development’, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.
181
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
seleção de gramáticas que contenham generalizações que possam ser facilmente
expressas.
Assim, os nossos ‘pares sintáticos’ podem ser comparados, na análise de
Chomsky, às sentenças nucleares, e a sua idéia de estrutura profunda e da aquisição da
linguagem adaptada à nossa construção da narrativa do século XIX, com sua operação
se fazendo pela seleção gramatical baseada numa teoria do desempenho que conduz
informações semânticas. Por conseguinte, visamos ultrapassar uma análise puramente
gramatical dos ‘pares sintáticos’ que, para serem compreendidos, necessitam ter
reconstruída a sua representação em cada nível, a partir do qual, cada uma de suas
seleções foi construída.
9
Deste modo, o uti possidetis, descrito pela narrativa do XIX como parte mesmo
da negociação do Tratado de Madri, deve ser estudado como uma ‘palavra-raiz’
participante da mecânica permanente de geração da narrativa, no caso, através da
experimentação dos problemas da formação do Estado ou das relações internacionais,
mas, onde o território definir-se-ia, conforme o ‘saber sobre o espaço’, no caso, por uma
retificação das origens, a partir da narrativa do setecentos.
Esse embate entre a reescrita e a persistência permite identificar, ainda em
relação à aproximação da lingüística com a construção narrativa do XIX, uma
polaridade gramatical caracterizada no uso diferenciado de duas categorias de tempo e
espaço: a primeira destas, identificada com o esforço de apreensão do conhecimento nos
fenômenos, nas causas e nas fontes; a segunda, que remetia ao consagrado, revelado e
validado pela construção e permanência do Mito. A resultante dessa ambigüidade na
narrativa será a aproximação do Mito com um novo ‘saber sobre o espaço’ constituído
no século XX em torno da geopolítica e que será capaz de possibilitar a reelaboração da
narrativa a partir da inscrição contínua das ‘relações de força e de soberania’.
Nesse contexto, observe-se que a sobrevivência e o desenvolvimento de uma
argumentação própria da tradição setecentista, o naturalismo científico, conviveria com
a ascensão de uma outra argumentação relativa à constituição da memória.
Aproximando-se este à teorização de Mirceia Eliade a respeito do mecanismo,
funcionamento e evolução do Mito, pode-se compreender que o problema da
9
Nesse raciocínio, podemos aproximar os nossos ‘pares sintáticos’ com a noção de ‘unidades elementares de
conteúdo’ a partir dos quais as frases são construídas e das quais Chomsky baseia a sua reconstrução
representacional através do estudo formal da estrutura sintática fundamentando uma análise semântica. Ver Noam
Chomsky,
Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 115-117.
182
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
idealização da Nação constituiria a História Pátria como o lugar privilegiado de
sobrevivência do Mito.
10
A transição entre o modelo narrativo de setecentos e o modelo narrativo do
século XIX seria resolvida não por um hipotético debate a respeito do fim do modelo
antigo, mas pela constituição de uma narrativa que se assemelhasse e que replicasse
àquele modelo, daí a importância excepcional atribuída na narrativa do XIX ao
conhecimento das origens, fosse qual fosse a sua substância. Esta ‘busca das origens’
possibilitava a justaposição das argumentações, uma vez que ambas objetivavam um
“retorno à origem”, seja por meio de uma rememoração meticulosa e exaustiva dos
eventos pessoais e históricos, seja pela restauração abrupta da condição original.
11
Entretanto, o ‘retorno às origens’ na narrativa do XIX seria concebido como uma
possibilidade de renovar e regenerar a existência daqueles que a empreendiam e para
que se propiciasse uma regeneração repetida ritualmente. A articulação da narrativa do
século XIX ao redor das ‘palavras-raízes’ ‘uti possidetis’ e ‘Tratado de Madri’, numa
mecânica de constante aplicação, visava, por conseguinte, acertar a conexão da
constituição do Mito com as condições mesmas de sua reprodução. Mas, mesmo que a
construção do Mito estivesse conectada às origens da narrativa, seria necessário ainda
empreender na argumentação o reencontro das condições que precederam a criação do
Mito, ou seja, conforme Eliade, o “estado que precedeu a criação da cosmogonia”, o
“Caos”.
12
No caso da narrativa do XIX, este empreendimento influenciou mesmo o
processo de sua reprodução e de sua perpetuação por conta das várias possibilidades
deixadas em aberto por conta da natureza dupla da sua construção: tratava-se de
assegurar-se se a reprodução e a perpetuação do modelo seriam garantidas por uma
argumentação que enfatizasse o ‘retorno com um início’, situação em que se priorizaria
o relato minucioso dos fatos, acontecimentos e personagens capazes de imprimir
movimento à narrativa; ou por uma argumentação que enfatizasse o ‘retorno às
condições iniciais’ onde seria priorizada a ligação e a associação com um passado
comum à Metrópole e à nova Nação, destacando-se a manutenção das tradições e a
elisão de determinados termos impeditivos dessa narração.
10
Ver: Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 4ª edição, p. 71-122.
11
Ver: Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 4ª edição, p. 82.
12
Ver: Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 4ª edição, p. 76.
183
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Portanto, ainda que as condições da construção, reprodução e perpetuação do
Mito estivessem ligadas ao desenvolvimento da narrativa do XIX, suas tensões e
iniciativas estiveram diretamente conectadas à operação da narrativa. Neste sentido, o
estudo do problema das argumentações da construção narrativa, através da
historicização das ‘palavras-raízes’, permite-nos analisar as tramas, as aproximações e
os rompimentos no debate entre os operadores da narrativa, oferecendo subsídios ainda
para entendermos os sobressaltos da construção historiográfica da Nação e do espaço
nacional.
Assim, ao enfocarmos a historicização das ‘palavras-raízes’ e a sua conexão pela
operação da narrativa, não buscamos, como num mapa, desvelar a construção do Mito
ou as origens da identidade nacional, mas, possibilitar um itinerário de suas
contradições e desvios, de seus lugares, personagens e olhares.
A construção do Uti Possidetis e do Tratado de Madri
Como vimos num outro capítulo,
13
a narrativa do setecentos tinha como um dos
seus principais argumentos a desqualificação dos tratados do século XVIII: enquanto o
Tratado de Madri fora anulado diretamente pelo de El Pardo, o de Santo Ildefonso
nunca houvera ultrapassado a condição de preliminar. Este argumento era ainda
orientado pela lógica de que tanto os direitos quanto o domínio territorial da América
portuguesa excediam em muito o território que poderia vir a ser delimitado por meio
daqueles tratados. A utilização do tempo condicional se justificava na medida em que
era parte da própria argumentação: apenas algumas parcelas das fronteiras foram na
prática delimitadas, e ainda assim de modo precário ou duvidoso, sendo a negociação
dos tratados e sua execução viciadas por erros e incorreções propiciadas pela malícia e
pela superioridade cartográfica dos espanhóis.
Outro argumento da narrativa do setecentos era o da qualificação do espaço: a
ocupação da Bacia do Prata era identificada com a própria instalação portuguesa na
América e com os esforços subseqüentes dos brasileiros que lá estabeleceram sua
identidade na luta contra o invasor. A riqueza e a beleza natural daquela região eram
diretamente relacionadas com sua produtividade e com a viabilidade do
empreendimento, características que não eram reconhecidas, por exemplo, na
13
Ver o capítulo ‘Riscando o passado’.
184
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Amazônia, o que, aliás, viabilizou este território como objeto de barganha durante as
conversações de 1818.
Entretanto, se os operadores da narração do XIX rescreveram a narrativa do
setecentos a partir de seus principais argumentos, o fizeram sobre uma experiência
compartilhada: em primeiro lugar, pesava o problema da amputação da Cisplatina em
1828, província que somente seria considerada como definitivamente perdida no
decorrer da década de quarenta. Em segundo lugar, também a partir da década de
quarenta começou-se a crer que o Brasil encontrava-se ameaçado em seu espaço, tanto
pelos novos vizinhos que surgiram com a partilha da América espanhola, quanto pela
França, Inglaterra e Estados Unidos na Amazônia.
Portanto, ao mesmo tempo em que os termos da argumentação qualitativa do
espaço tornar-se-iam fora de lugar, sua persistência favorecia uma rearrumação sintática
da sentença, na qual as parcelas menos qualificadas na narração anterior adquiriram
determinados atributos que as levaram a substituir progressivamente as parcelas
descartadas: na medida em que se verificava a impossibilidade concreta de retomar os
termos da narrativa do setecentos, seria atribuído à Amazônia um lugar destacado na
produção narrativa e no Mito, que iria se consolidar, inclusive, através de um ‘saber
sobre o espaço’ constituído em torno da geopolítica no século XX.
14
Do mesmo modo, o argumento da desqualificação dos tratados havia perdido
parte de sua eficácia, tanto por conta da produção concorrencial dos atlas estrangeiros,
que delimitava os espaços através desses referenciais, quanto pela difusão científica e
pela transformação das técnicas cartográficas que destituíram os termos da
argumentação referentes aos antigos tratados do século XVII e de Tordesilhas,
permitindo situá-los no espaço.
Sintomaticamente, a iniciativa no sentido da reescrita desse último argumento
coube, ainda dentro da própria narrativa do setecentos ao seu último operador, José
Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo, que publicou em duas
partes, nos anos de 1819 e 1822, a primeira edição dos ‘Anais da Província de São
Pedro’.
15
Através desta obra, Pinheiro, além de estabelecer sua filiação à narração do
setecentos ligar-se-ia também, na forma, à tradição dos ‘mapas literários’ e, por
14
Ver, por exemplo, as obras de Carlos de Meira Mattos e Golbery do Couto e Silva.
15
A primeira edição dos ‘Anais’ saiu em dois tomos, sendo o primeiro publicado em 1819, no Rio de Janeiro e o
segundo em 1822, em Lisboa.
185
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
conseguinte, à idéia de um espaço brasileiro unitário. Contudo, embora descrevesse um
circuito do espaço da América portuguesa, se vinculasse a uma qualificação do território
pela ligação do homem à terra e defendesse a nulidade dos tratados,
16
Pinheiro
estabeleceria também a originalidade de sua leitura. Nos ‘Anais’, primeiramente, o
argumento da nulidade dos tratados foi retirado da trama jurídica anterior e introduzido
no contexto histórico: o ataque espanhol transferiu a questão do particular para os
princípios universais do Direito Público, com a guerra tornando sem efeito não só os
tratados do século XVIII, mas quaisquer tratados anteriores, esvaziando-se, assim, a
questão de Tordesilhas e justificando-se a posse de todos os territórios conquistados.
Nesse sentido, a conquista das armas portuguesas e o novo sistema que surgiu com a
paz de Badajoz, em 1801, fora obra da força dos brasileiros ou dos portugueses
residentes no Brasil, que, também pela força, destruíram toda a possibilidade de retorno
ao sistema antigo.
Em segundo lugar, se a guerra definira a posse e o território, a sobrevivência do
estilo qualificativo seria assegurada não por uma ligação episódica ou de direito entre o
território e o grupo, mas pela descrição de uma relação ininterrupta e continuada.
Assim, Pinheiro desenvolve um relato que introduz um indivíduo plural, o brasileiro,
como ator da narrativa e procura o documento, o testemunho e a tradição como suas
fontes para legitimar essa narração. Para isto, o autor utiliza sua experiência pessoal
enquanto auditor geral das tropas durante a campanha de 1811 a 1812 e em vários
cargos na Província do Rio Grande, que o levou a conhecer grande parte da Cisplatina e
da Província do Rio Grande, bem como incorpora em sua obra, embora sem citação,
trabalhos de terceiros, como um estudo de José de Saldanha, engenheiro na demarcação
de 1783 e, posteriormente, o segundo comandante do território das Missões.
17
Em terceiro lugar, motivado por suas experiências anteriores, Pinheiro destitui a
antiga idéia portuguesa das ‘fronteiras ideais’ através da distinção de um novo termo na
‘linguagem do espaço’: as ‘fronteiras naturais’. A idéia das ‘fronteiras naturais’ surge,
através dos ‘Anais’, como uma expressão da situação derivada da paz de Badajoz e das
16
Ver o capítulo ‘Riscando o passado’.
17
Segundo Pauwels, que teria consultado os originais de Saldanha, esse trabalho foi composto em 1807 e era um
relato dos problemas das demarcações do tratado de Santo Ildefonso, por conseguinte, se enquadrando na narrativa
do setecentos. Geraldo José Pauwels,
Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus
Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, p. 14.
186
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
intervenções portuguesas na Cisplatina durante a década de 1810, constituindo-se,
portanto, numa interpretação da continuidade do espaço brasileiro até o Rio da Prata.
Utilizando o raciocínio anteriormente exposto, a transformação da idéia da
‘‘fronteira natural’’ é um marco na interpretação do espaço brasileiro que somente se
tornou possível a partir do século XIX, por conta da possibilidade de se dispor de uma
seleção gramatical mais ampla e já articulada com as condições de produção da
narrativa, no caso, exemplificada pela divulgação na primeira década do século das
corografias de Ricardo Serra e Aires de Casal.
A impressão no Patriota, em 1813, da ‘Descrição geográfica da Capitania de
Mato Grosso’, escrita em 1797, resgatou a informação da possibilidade de ligação entre
a Bacia do Amazonas e a do Prata, já presente em corografias mais antigas como as
‘Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil’ do
Padre Simão de Vasconcelos,
de 1668 e nas representações cartográficas, onde a ligação entre essas e outras Bacias,
hipotéticas ou reais, era ainda mais antiga, remontando, como vimos em um capítulo
anterior, ao final do século XVI.
18
Deste modo, em 1817, Aires de Casal, um autor
ligado à narrativa do setecentos, já se aproximaria bastante da idéia da ‘‘fronteira
natural’’ de Pinheiro, ao demonstrar que existia uma oposição entre o Brasil “em sua
acepção política” de um “Brasil natural”. No ‘Brasil natural’ existiria uma unidade
demarcada pela hidrografia, consistindo numa linha quase que contínua, interrompida
em apenas “uns poucos côvados”, que, no Mato Grosso, separavam as Bacias do Prata e
do Amazonas. Contudo, esse obstáculo era possível de serem superado por meio do
transbordo, feito numa pequena distância entre os rios Alegre e Aguapeí, assim, o Brasil
tornar-se-ia, segundo Casal, uma península, cujo istmo seria constituído pela pequena
distância que separava os dois rios.
Portanto, podemos entender que a idéia das ‘fronteiras naturais’ foi um produto
da disseminação da obra de Aires de Casal, que foi ligada, por Pinheiro, à idéia da
‘fronteira ideal’ da narrativa do setecentos, por sua vez, um produto da ‘fronteira
militar’, já que, em conceito, ligava-se à defesa do território.
A ligação com os termos da narrativa do setecentos passaria a influenciar,
doravante, a idéia das ‘fronteiras naturais’ e a produção do uti possidetis, a partir do
18
Ver o capítulo ‘Mapeando o vazio’.
187
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
desenvolvimento, por Pinheiro, da primeira produção de um espaço nacional brasileiro,
a ‘Memória acerca dos naturais limites do Brasil’, de 1827.
19
Como vimos, conjuntamente com a Cessão da Cisplatina e os outros episódios
que constituíram o ocaso político de Pinheiro no Primeiro Império, na ‘Memória’ a idéia
das fronteiras naturais continuava ligada à idéia de Aires de Casal, ao admitir um limite
para o espaço brasileiro idealizado na ligação entre as grandes bacias hidrográficas da
América Meridional.
Mas, Pinheiro inovou novamente na questão, em primeiro lugar, ao aproximar
ainda mais as ‘fronteiras naturais’ do conceito das ‘fronteiras ideais’, delimitando o
espaço nacional pelos rios Paraná, Paraguai e Amazonas, portanto além de Aires de
Casal e mesmo do que havia escrito nos ‘Anais’. Em segundo lugar, Pinheiro
estabeleceu uma finalidade política à definição das fronteiras naturais: estas seriam um
condicionante da estabilidade, comércio e progresso do novo país. Portanto, a definição
das fronteiras e do espaço nacional já eram entendidas em 1827 como um fator daquilo
que seria entendido a partir da década de 1840 como ‘civilização’. Em terceiro lugar,
Pinheiro equacionou o processo, o direcionamento e o comando da definição do espaço
nacional como um objetivo das elites dirigentes que a elas somente poderia ser revelado,
sendo, para todos os efeitos, considerada uma ‘política de segredo’.
Durante a década de 1830, acompanhando a desorganização do Estado, o
pensamento de um espaço brasileiro unitário sofreu um refluxo notável, dando lugar às
iniciativas locais de produção do espaço que, inclusive, a partir da década de 1840,
passariam a competir com a produção central. Surgiriam, nesse período, dentre outras, a
‘Corografia Paraense’
20
e a ‘Corografia de Minas Gerais’
21
escritas segundo o modelo
corográfico das Descrições, que, como vimos anteriormente, possuíam como principal
característica a circunscrição de um espaço dotado de um ente central e organizador, por
sua vez, caracterizado em meio a outras unidades.
Também durante essa década, acentuou-se a deterioração das fronteiras militares
e a decadência das províncias interiores ou mais excêntricas, como Goiás, Mato Grosso
e Pará. Este processo foi paralelo à crescente organização dos Estados vizinhos, o que,
19
Ver o capítulo ‘O assento central’.
20
Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Corografia Paraense ou Descrição física, histórica e política da Província do
Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833.
21
Raimundo José da Cunha Matos, ‘Corografia Histórica da Província de Minas Gerais’. IHGB, Lata 1, Maço 4,
Pasta 8.
188
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
nesse sentido, iria gerar repetidas questões de limites que se intensificariam no período.
Sintomaticamente, a narração do setecentos cede lugar progressivamente a uma
argumentação que visava contemporizar com as construções de espaço desses países,
algumas das quais já estavam registradas em formas de representação que o Estado
brasileiro ainda não havia desenvolvido, como as Cartas e Corografias Gerais. Assim, a
idéia da utilização do Tratado de Santo Ildefonso enquanto definidor e delimitador das
fronteiras ganha força por meio do pleito dos novos Estados hispânicos, passando a
preterir tanto no Conselho de Estado quanto na SNE, a argumentação da narrativa do
setecentos, em razão daquele tratado parecer assegurar ao Brasil um território que não
se podia mais garantir na prática. De um modo geral, esta compreensão derivava dos
relatos acreditados pela SNE das iniciativas então empreendidas por aqueles Estados,
dando conta da construção de estabelecimentos e postos militares, da cooptação de
grupos indígenas e da doação de terras em áreas tidas como brasileiras, bem como da
apresentação de suas reivindicações, asseguradas por cédulas reais ou por uma suposta
ocupação continuada do território.
Assim, como uma construção do espaço nacional sustentada pela argumentação
do setecentos e pelo termo das ‘fronteiras naturais’ de Pinheiro não pudesse mais ser
posta em prática, a produção do espaço nacional tornou-se não mais ativa, mas, reativa
às proposições do Estados hispânicos.
Se novamente utilizarmos a teorização de Noam Chomsky sobre a linguagem e o
seu par fundamental desempenho/competência, podemos entender a produção reativa do
espaço nacional no sentido de que era necessário, não apenas redefinir os termos e a
argumentação de uma nova produção do espaço a partir dos dados do desempenho, ou
seja, a partir de sua efetividade na situação concreta, mas ainda reavaliar e constituir a
própria competência dos operadores da narrativa, ou seja, através do conhecimento e
da compreensão do espaço.
Nesse sentido, as idéias de Pinheiro sobreviveriam pela divulgação de sua obra e
por sua própria atuação, já que se tornaria um dos parlamentares mais participantes na
década de 1830, tendo lugar fixo em duas importantes comissões da Câmara: a da
diplomacia e a da resposta à Fala do Trono. Suas idéias, principalmente os conceitos das
‘fronteiras naturais’ e da nulidade dos tratados, seriam reinterpretadas e discutidas a
partir dos problemas de limites na década de trinta, tornando-se o cerne de um
pensamento do espaço nacional a partir do processo de centralização do Estado nos anos
posteriores.
189
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Coincidentemente, as maiores contribuições às idéias de Pinheiro foram
concebidas por outros autores sobre a discussão de um mesmo problema, já que desde
1833 a Bolívia passou a conceder sesmarias numa área entendida então como fazendo
parte da Província de Mato Grosso, tornando-se assim, um dos principais focos da
atuação da SNE e do Governo. Seria, por conseguinte, sobre esse problema, que a idéia
das ‘fronteiras naturais’ de Pinheiro iria ser trabalhada em 1836 na ‘Memória sobre os
limites de Mato Grosso’ de José Antônio Pimenta Bueno, futuro Visconde e depois
Marquês de São Vicente.
22
Nesta obra não seria contestada, a princípio, a validade do Tratado de 1777, mas,
questionava-se a aplicação estrita de Santo Ildefonso, uma vez que esta privaria a
Província de algumas de suas melhores terras, além de impedir o comércio com São
Paulo. Ao mesmo tempo, Pimenta Bueno constatava ser desnecessária a aquisição ou a
expansão sobre novos territórios, dada a impossibilidade mesma de se administrar os
que então se possuíam, sendo, portanto, razoável que o Brasil cedesse os territórios que
não pudesse aproveitar ou não fossem de utilidade em troca da delimitação de uma
fronteira protegida por limites naturais que cobrissem as vias principais de comércio e
os principais pontos habitados.
Pimenta Bueno ainda trabalharia outro conceito de Pinheiro, contido, por sua
vez, no argumento da nulidade dos tratados, a ‘posse do território’, considerada como
base do acordo de paz de Badajoz. Pimenta Bueno utilizaria este conceito como o
fundamento para a aplicação dos limites em seu conceito de ‘fronteiras naturais’. Nesse
sentido, a ‘posse do território’ não se restringia apenas ao estabelecimento atual, mas,
também poderia ser alargada desde que estabelecida uma conexão pregressa ou mesmo
transitória, fosse pelo estabelecimento antigo no território, pelas rondas ou pelas
reclamações e correspondências das autoridades espanholas, por conseguinte, através do
concurso de provas históricas, estabelecendo-se um novo conceito — “a posse não
interrompida”.
Assim, na ‘Memória’ de Pimenta Bueno, os principais argumentos da ‘fronteira
natural’ de Pinheiro foram adaptados, conforme o antigo conceito da ‘fronteira militar’
e de acordo com o problema engendrado pela concessão boliviana das sesmarias na
Província de Mato Grosso, mas, assimilando também a figura da ‘cessão de direitos’,
22
José Antonio Pimenta Bueno, ‘Memória sobre limites da Província de Mato Grosso’. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 8.
190
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
cerne dos ajustes do Tratado de Madri. Estabelecia-se, deste modo, pela primeira vez,
uma ponte entre o pensamento do espaço nacional com o Tratado de Madri. Ao mesmo
tempo, Pimenta Bueno transformava um conceito simples e que dizia respeito à posse
material, definida por Pinheiro por meio do limite militar, em um conceito heterogêneo
e cuja aplicação era relacionada à sua idéia de ‘fronteira natural’.
Por outro lado, ainda que afastado temporariamente do centro do poder, Pinheiro
continuou sendo reconhecido como uma das principais, se não a maior autoridade
geográfica do Brasil. Prova disso é que, já em 1830, Pinheiro seria consultado pela SNE
a respeito das pretensões uruguaias de limites, ocasião em que aproveitou para reafirmar
sua crença na nulidade de todos os tratados anteriores como um paradigma a ser
estabelecido nas negociações e delimitação de fronteiras, justificado pela sua
interpretação da paz de Badajoz e remetida aos seus ‘Anais’, encaminhados para exame
da SNE.
23
A influência posterior dessas opiniões na SNE pode ser atestada na medida em
que, em meados de 1836, antes de ser enviado à Bolívia para se ocupar dos problemas
de limites, o representante do Brasil, Duarte da Ponte Ribeiro, já reconheceria estar
convencido da nulidade dos tratados anteriores como base para a negociação de
limites.
24
Entretanto, esta não era ainda a posição oficial do Governo, uma vez que
Ribeiro, chegando a seu destino, acordou com os bolivianos a conservação dos limites
de 1777 até que se pudesse concluir algum tratado entre os dois países, posição que
seria confirmada posteriormente pelo titular da SNE, Antônio Peregrino Maciel
Monteiro.
25
Com esse fim, a SNE consignou a Ribeiro três projetos de fronteiras para
serem apresentados aos representantes bolivianos, todos eles extraídos das ‘Memórias’
de Pimenta Bueno e conformados com os conceitos de ‘posse continuada’ e ‘fronteiras
naturais’.
Enquanto isso, no Brasil, Pinheiro seria nomeado em 1837 por Peregrino, para
ser o presidente de uma comissão destinada a determinar os limites do país, doravante
23
Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro para Francisco Carneiro de Campos, s/data. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Pasta 4, Documento 1.
24
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Elenco Histórico das discussões dos Comissários portugueses sobre a desnecessária
substituição do Rio Iguatemi e Iponé-guassu ao Igurey e Corrientes que existiam onde os mostrava o Mapa de
1749, que serviu de base ao de Limites de 13 de Janeiro de 1750’ in AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte
Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Doc. 1, 1836.
25
Ver a correspondência oficial entre José Inácio de San Jineos e Duarte da Ponte Ribeiro, em 15/03/1837, e entre
Duarte da Ponte Ribeiro e Antônio Maciel Peregrino, em 17/06/1838. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte
Ribeiro, Lata 268, Maço 3, Pasta 1.
191
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
denominada ‘Comissão Investigadora dos Limites’,
26
juntamente com outras “pessoas
versadas na Topografia e Estatística do País” que, com sua “observação luminosa” e
“experiência depurada”
examinariam os limites e suas questões, “uma das primeiras
necessidades públicas”, por conta, especialmente, dos problemas com a França e
Inglaterra nas Guianas. Seriam atribuídas à ‘Comissão Investigadora de Limites’ as
tarefas de “determinar quais os limites do Sul e Oeste do Império do Brasil, à vista dos
Tratados e Convenções existentes” e definir “quais os limites, que se podem considerar
como naturais, com relação às localidades, e topografia do país.”
27
Portanto, se entendia então na SNE que os limites brasileiros deveriam ser
definidos tanto pela idéia das ‘fronteiras naturais’ quanto por meio do recurso aos
tratados pregressos. Sobre a base deste entendimento, resultaram dois trabalhos distintos
da ‘Comissão Investigadora de Limites’, o primeiro, de José Saturnino da Costa Pereira,
autorizado por conta de seus problemas de saúde a emitir um parecer em separado,
28
e o
segundo, assinado pelo presidente da comissão, José Feliciano Fernandes Pinheiro.
Na primeira parte de seu trabalho, Pereira versa, inicialmente, sobre a utilidade
dos tratados do século XVIII para a determinação dos limites, mas, aponta, em seguida,
os vícios e problemas decorrentes das demarcações. Em relação aos limites naturais,
Pereira observaria, com pesar, serem o Prata e o rio Uruguai as fronteiras mais próprias
ao Brasil, demonstrando, assim, mais uma vez, a influência dos ‘Anais’ de Pinheiro,
obra, aliás, citada explicitamente por Pereira.
Na segunda parte do trabalho, Pereira aponta a impossibilidade de se analisarem
os limites pelo Tratado de Santo Ildefonso, já que não existia nenhuma cópia deste nos
arquivos da SNE, no caso, poder-se-ia apenas fazer algumas conjeturas a respeito deste,
baseadas sobre o texto do Tratado de Madri. Finalmente, Pereira termina por distinguir
certos limites naturais que deveriam ser utilizados para compor o espaço brasileiro e, ao
mesmo tempo, indicando alguns direcionamentos para a ação do Estado, como por
exemplo, ao avaliar que os limites do espaço brasileiro com as Guianas seriam melhor
estabelecidos através dos divisores de águas ou que se deveria garantir a navegação
26
Embora não tenha sido denominada nos documentos oficiais, nosso trabalho adotará, doravante, a denominação
‘Comissão Investigadora dos Limites’, a qual era empregada por Duarte da Ponte Ribeiro, conforme anotação
autógrafa à margem da correspondência entre José Feliciano Fernandes Pinheiro e Antonio Peregrino Maciel
Monteiro. Ver AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Doc. 4.
27
A ‘Comissão Investigadora de Limites’ foi nomeada diretamente pelo titular da SNE, Antônio Peregrino Maciel
Monteiro. Ver Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 8.
192
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
exclusiva do Amazonas desde Tabatinga, utilizando-se para isto do recurso a uma linha
imaginária que seguiria da foz do rio Javari rumo ao norte, linha esta que ficaria
conhecida posteriormente nas negociações brasileiras como a ‘Reta Tabatinga-
Apáporis’. Entretanto, fica patente no trabalho de Pereira o desconhecimento do
território, ainda mais porque, não sendo possível encontrar informações suficientes, lhe
foi necessário lançar mão da carta da América Meridional de Arrowsmith como fonte
para o seu trabalho.
29
Já o trabalho de Pinheiro se limitou a reafirmar o valor de sua ‘Memória’ de
1827 como a melhor interpretação das fronteiras naturais, assim como da sua idéia da
nulidade dos tratados anteriores expressa nos ‘Anais’, embora, ressalve que o Tratado
de Madri fora aquele que melhor havia se prestado para os fins de delimitação do
espaço nacional, provavelmente por conta do extenso contato que os membros da
‘Comissão Investigadora de Limites’ tiveram com seu texto, como também pode ser
observado no trabalho de Pereira.
30
Portanto, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ teve como principais
resultados, ao lado da consagração das idéias de Pinheiro, o reconhecimento, senão
explícito, mas, prático, do desconhecimento do território e da decorrente
impossibilidade de se definir os limites brasileiros, enquanto que, secundariamente, se
estabelecia uma ponte definitiva entre a produção do espaço nacional e o Tratado de
Madri, desta vez ligando-o à própria idéia da formação do território brasileiro.
Coincidentemente, no ano seguinte, na Bolívia, após uma troca comum de
notas, os representantes daquele país fizeram saber a Ribeiro que o Tratado de 1777
também não existia nos arquivos de seu Governo e que esse país não mais o
reconheceria como base para a fixação de limites. Assim sendo, Ribeiro solicita
instruções a SNE sobre sua nova conduta na continuação das negociações: deveria
continuar insistindo no tratado de Santo Ildefonso ou passaria a centrar-se no uti
possidetis ?
31
28
Conforme carta de José Saturnino da Costa Pereira para Antônio Peregrino Maciel Monteiro, de 26/10/1837. AHI,
Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 6, Documento 32.
29
José Saturnino da Costa Pereira, ‘Memória sobre os limites do Brasil ao Sul e Oeste’. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, 1837.
30
‘Correspondência do Visconde de São Leopoldo ao Ministro dos Negócios Estrangeiros’, 1837. AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 4, Documento 3.
31
Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 19 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 1838-1840.
193
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Com essa iniciativa, Ribeiro operaria uma transformação essencial no conceito
da ‘fronteira natural’ e consequentemente no processo da construção do espaço. Ainda
que o texto decorrente das novas negociações entre Ribeiro e o Governo boliviano
entenda o sentido da ‘fronteira natural’, tal como fora antes idealizada por Pimenta
Bueno, “procedendo de comum acordo, em caso de convir-lhes, na troca de alguns
terrenos ou indenizações para fixar a linha divisória de maneira mais exata, mais natural
e mais condizentes ao interesse de ambos os povos”, Ribeiro encadeou o conceito da
‘posse não interrompida’ a um antigo instrumento jurídico, o uti possidetis. Ao fazê-lo,
Ribeiro tanto alargou seu conteúdo sintático como tornou-o parte acessória das
negociações: “prometem ambos [os países] a levá-lo [o tratado] a efeito, o mais pronto
que possível for, pelos meios mais conciliatórios, pacíficos, amigáveis e conformes ao
uti possidetis.”
32
Ora, em primeiro lugar, a incorporação do conceito de Ribeiro numa linguagem
que fosse simultaneamente aceita por dois grupos receptores inteiramente distintos e
com interesses completamente divergentes pode ser explicada pela persistência,
primeiramente, de uma ‘estrutura profunda’ comum, constituída tanto pelo acervo
jurídico colonial, que determinou sua interpretação semântica, quanto por uma
experiência particular da elite letrada brasileira, familiarizada com o conceito através da
ênfase dada ao ensino do Direito Romano na Universidade de Coimbra. Esta, no caso,
pode ser exemplificada através de um dos operadores da narrativa: Pinheiro foi um dos
principais defensores, na Constituinte, da criação de uma faculdade de Direito no Brasil,
atuação repetida quando titular da pasta do Império em 1827, ocasião em que se pôs a
colocar em prática essa idéia. Em ambos os casos, Pinheiro propunha a Universidade de
Coimbra como modelo e entendia, como Vasconcellos, que se deveria manter parte das
cadeiras de Direito Romano no seu currículo.
33
Então, a inscrição do uti possidetis na
construção da narrativa do século XIX refletiria o comportamento dos operadores, a
partir de uma experiência da língua, sendo que esta fornecia uma explicação do
comportamento gramatical, no caso, definindo as ‘seqüências gramaticais’, ou seja,
aquelas aceitáveis pelos falantes.
34
32
Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 16 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 1838-1840.
33
S. Vampré. Memórias para a História da Academia de São Paulo, v. I, 1977, São Paulo, INL/CFC/MEC, p. 14;
citado em Teotônio Simões. ‘Os Bacharéis na Política - A Política dos Bacharéis’. Tese apresentada como
exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. USP, 1983.
34
Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 15-18.
194
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Em segundo lugar, a aceitação do conceito de Ribeiro pode ser explicada pela
existência de uma ‘estrutura de superfície’, constituída pela percepção política do
problema de limites com a Bolívia, que possibilitou seu emprego fonético para a
interpretação de uma situação episódica.
35
Convencido que estou de que é conveniente ao Brasil consentir na
declaração feita pelo governo da Bolívia, de terem caducado os tratados que
ligavam as Potências que foram parte, segue-se que toda questão de limites
ficará reduzida ao princípio do uti possidetis: a sanção desse princípio é todo
meu empenho, e o consignei como acessório a ver se passa; chamando
imediatamente a atenção sobre o comprometimento de celebrar o tratado
especial de navegação fluvial, que tanto desejam.
36
Portanto, a compreensão dos ‘sistemas de regras’ das linguagens utilizadas
pelos grupos receptores, segundo uma condição nele latente, ou seja, pela
experimentação das condições apresentadas,
37
permitiu ao operador uma transformação
sintática e uma rearrumação dos termos, baseada no desempenho e na interpretação
semântica e fonética. Assim, ainda que aquela não fosse a posição oficial do Governo,
Ribeiro seria capaz de conseguir o consentimento implícito da utilização de seu conceito
nas negociações por parte da SNE e de seu ministro a partir de 1839, Caetano Maria
Lopes Gama, Visconde de Maranguape, que viria a ser um dos Conselheiros de Estado
mais atuantes na SJNE. Doravante, o uti possidetis seria introduzido no cerne das
discussões do espaço nacional, as quais seriam dominadas justamente por questões
relacionadas à sua interpretação fonológica e semântica.
No Brasil, como vimos, os trabalhos realizados pela ‘Comissão Investigadora de
Limites’, ao invés de solucionar a questão dos limites, resultaram, paradoxalmente, em
35
Ver Noam Chomsky, Aspectos da Teoria da Sintaxe, in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson,
Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 1978, 2ª edição, p. 241-242. O sentido de
‘estrutura interna’ relacionado com a semântica, e de ‘estrutura externa’, com a fonética, se referem diretamente
aos sentidos de forma interna e forma externa conforme utilizados por Humboldt. Ver Chomsky, in
Os Pensadores
- Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 2ª
ed., 1978, p. 242, nota 27.
36
Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 17 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 1838-1840.
37
Segundo Chomsky, “não se pode verdadeiramente ensinar a linguagem, mas apenas apresentar as condições sob as
quais ela se desenvolverá na mente por forma particular. Assim, a forma de uma língua, o esquema de sua
gramática, é dado, em larga medida, embora não fique disponível para uso sem experiência apropriada para pôr a
operar os processos de formação da linguagem.” Ver Noam Chomsky, in
Os Pensadores - Ferdinand de Saussure,
Roman Jakobson, Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 1978, 2ª edição, p. 270-271.
195
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
reconhecer o desconhecimento do território. Como, em grande parte, esse resultado foi
conseqüência da falta de informações do próprio Governo, uma de suas primeiras
providências após o término dos trabalhos da comissão, foi decidir por uma reforma na
SNE, dotando-a de um ‘Arquivo’, para onde se encaminhassem os documentos e mapas
referentes à essa questão, e sintomaticamente, de uma ‘Biblioteca Especial’, destinada a
armazenar “todas as produções, que o desenvolvimento do espírito humano houver de
dar à luz no que respeita à marcha dos Governos, e às modificações, que por ventura se
tenham de realizar nas relações das diversas associações políticas.”
38
Por sua vez, Pinheiro também apresentou em seu prefácio à segunda edição,
revista e ampliada, dos ‘Anais’, vários argumentos favoráveis à constituição de “um
colégio especial de literatos escolhidos, incumbidos de recolher e transmitir os feitos
que constituem a vida das nações”. Ainda, Pinheiro fazia ver a necessidade de que “se
deputassem literatos Brasileiros de conceito, que fielmente colhessem da Torre do
Tombo, e doutros Arquivos Nacionais, e copiassem os monumentos e escritos, que
tivessem relação com a História do Brasil”,
39
o que teria possivelmente ocasionado com
que, já no final desse ano, José Maria do Amaral fosse nomeado e Francisco Adolfo de
Varnhagen indicado, para o cargo de adido à Legação brasileira em Lisboa com o fim
de selecionar e copiar os “documentos que sirvam para a organização da História do
Brasil.”
40
Faz-se necessário apontar, que, embora a publicação da segunda edição dos
‘Anais’ seja posterior à fundação do IHGB,
41
sua redação foi feita em data anterior, se
constituindo assim na primeira ata de intenções dessa instituição e estabelecendo sua
relação com a construção do espaço nacional.
Nesse sentido, três fatos corroboram nossa hipótese: primeiro, o exame dos
‘Anais’ pelo Instituto foi publicado já no primeiro número de sua revista, e neste os
pareceristas identificam as intenções de Pinheiro com o IHGB.
42
Segundo, o ‘Programa
38
Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 18.
39
José Feliciano Fernandes Pinheiro, Anais da Província de São Pedro, Paris: Tipografia de Casimir, 1839, 2ª edição,
p. VIII-IX.
40
Cartas de Antônio Menezes de Vasconcelos de Drummond para Caetano Maria Lopes Gama, em 6/12/1839 e
14/12/1839, Ofícios de Lisboa, AHI, citados em Isa Adonias,
O acervo de documentos do Barão da Ponte Ribeiro.
Rio de Janeiro: s/editor, 1984, p. 22.
41
A fundação do IHGB se deu em 21 de outubro de 1838 enquanto que a publicação da segunda edição dos ‘Anais’
foi feita em 1839.
42
‘Juízo sobre os Anais da Província de S. Pedro’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo I,
n° 1, 1839, p. 256.
196
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Geográfico’ de Pinheiro, uma obra posterior à redação da segunda edição dos ‘Anais’,
foi lido no IHGB já na sessão de 16 de fevereiro de 1839, o que por si só já recuaria a
redação dos ‘Anais’ para o ano anterior. Terceiro, o prefácio dos ‘Anais’ muito
provavelmente foi escrito em decorrência do debate entre Pinheiro e Raimundo José da
Cunha Mattos, primeiro secretário da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e
depois vice-presidente do IHGB. Esse debate ocorreu ainda em 1837, durante os
trabalhos da ‘Comissão Investigadora de Limites’ da qual ambos fizeram parte,
43
influenciando, inclusive, parte da obra de Mattos, como, por exemplo, a ‘Dissertação’,
datada de 1839, onde este autor reconhece a necessidade, apontada por Pinheiro nos
‘Anais’, de se recolher, num primeiro passo, os subsídios da história provincial, para
somente depois se escrever a história geral do país.
44
Portanto, a partir dos trabalhos da ‘Comissão Investigadora de Limites’, se
estabelece uma base tripla, no final da década de trinta, sobre a qual se irá elaborar a
construção do espaço nacional: a percepção de que era necessária a compreensão e o
acompanhamento do sistema de regras da política e das relações internacionais; o
esforço destinado a colecionar e organizar dados que capacitassem a interpretação da
questão e, finalmente, a iniciativa de se constituir um grupo de indivíduos, capazes de
elaborar e transmitir o pensamento sobre o espaço, emblematizados por Pinheiro na
figura do ‘literato’. Neste não estariam compreendidas apenas as funções do escritor ou
do especialista, mas também a do Mestre, aquele capaz tanto de administrar a instrução
como, por seu exemplo, indicar o caminho:
Eu, o menos destro dos meus consórcios, sairei a campo, com as
armas, que de momento pude ajuntar; conscencioso, e leal, prestarei pobre
oblação, como é dever de qualquer cidadão nos interesses da Pátria, sem
aspirar a mais alto.
45
Na realidade, o trabalho da ‘Comissão Investigadora de Limites’ foi retomado,
por iniciativa do próprio Pinheiro no IHGB: o seu ‘Programa geográfico’, originador do
43
Conforme carta de Raimundo José da Cunha Mattos para Antonio Peregrino Maciel Monteiro, em 26/10/1837, in
AHI, Arquivo Particular Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 6, Documento 22.
44
Raimundo José da Cunha Matos, ‘Dissertação acerca do sistema de escrever a História Antiga e Moderna do
Império do Brasil’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXVI, 1863, p. 122.
45
José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Programa Geográfico’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 341-342
197
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
debate no IHGB, como visto em capítulo anterior,
46
reconstitui as preocupações do
espaço e dos limites, começando, sintomaticamente, com a pergunta: Quais são os
limites naturais, pactuados e necessários do Império do Brasil?
Nesse ponto, é interessante notar, através dessa sentença que inicia o processo de
construção do espaço no IHGB, a conexão entre o ‘Programa’ e a ‘Comissão
Investigadora de Limites’. Pudemos observar que Pinheiro insere, à guisa de anexo, o
ofício da SNE que trata da constituição da ‘Comissão Investigadora de Limites’ nos
‘Anais’. Tal procedimento, que seria apenas despropositado, caso a redação dos ‘Anais’
não fosse anterior ao Programa, se torna central em nossa hipótese, pode ser estudado
como a utilização do recurso retórico pelo autor, no sentido de emprestar prestígio e
autoridade ao seu texto, bem como para persuadir o leitor da importância da
argumentação.
47
No caso, esse procedimento se reveste ainda de mais importância, uma
vez que o documento inserto nos ‘Anais’ não confere com o original,
48
diferindo deste
em dois pormenores: primeiro, quanto à composição da Comissão. Na versão dos
‘Anais’, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ era composta, além de Pinheiro, por
Raimundo José da Cunha Matos, José Saturnino da Costa Pereira, Antônio José
Rodrigues e Luiz d’Alencourt, todos ligados ao Exército, (Pereira era o titular da pasta)
e especialistas na geografia do país, enquanto que na versão original, Francisco Vieira
Goulart, que não pertencia a nenhum dos dois grupos, ocupava o lugar de d’Alencourt.
Em segundo lugar, quanto aos objetivos da Comissão, a segunda edição dos
‘Anais’ suprime uma das questões encaminhadas à Comissão, justamente aquela que
relaciona os tratados anteriores com o problema dos limites. Sabendo-se que um dos
temas centrais dos ‘Anais’ era, justamente, o da nulidade dos tratados anteriores,
pertenceria também à uma lógica retórica desconsiderar parte da citação para que esta se
ajustasse mais perfeitamente à argumentação. Contudo, o fato é que a segunda edição
do ‘Anais’ situava a ‘Comissão Investigadora de Limites’ também mais próxima do
‘Programa’, ao ajustar tanto a constituição de seus membros quanto seu problema.
Nesse sentido, aconteceu mesmo na época de sua publicação, uma confusão do
‘Programa’ com o trabalho final de Pinheiro na ‘Comissão Investigadora de Limites’.
46
Ver o capitulo ‘A descrição do contemplador’.
47
Quanto ao emprego da retórica como chave de leitura ver: José Murilo de Carvalho, ‘História intelectual no Brasil:
a retórica como chave de leitura.’ in
Topoi, n° 1, 2000.
48
Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 25/10/1837. AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Pasta 4.
198
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
sendo tomados como um só por vários de seus leitores, provavelmente um dos objetivos
de sua estratégia de citação.
Entretanto, em comparação com o trabalho de Pinheiro na Comissão, o
‘Programa geográfico’ é uma elaboração totalmente nova, muito mais ampla, onde, se
por um lado, se buscava consolidar a argumentação da nulidade dos tratados para os
sócios e membros do Instituto, por outro, atribuía ao Tratado de Madri uma acepção
bastante diversa da narrativa do setecentos. Pinheiro também se preocupou em buscar
subsídios nos documentos e nos relatos de naturalistas acreditados para justificar sua
idéia de espaço nacional, incorporando, inclusive, a cartografia como fonte documental
e de argumentação, procurando inventariar a cada passo do ‘Programa’ os mapas e
cartas capazes de endossar ou esclarecer os problemas da questão.
Portanto, Pinheiro foi o responsável por trazer a cartografia, pela primeira vez,
para o centro da construção do espaço. Vale a pena acrescentar, nesse sentido, que o
motivo do atraso na publicação dos ‘Anais’ foi também a preocupação do seu autor com
a cartografia, uma vez que nos ‘Anais’ seria encartado um mapa da Província do Rio
Grande de autoria de Pinheiro, que ainda estava sendo gravado em Paris.
49
Portanto, o ‘Programa geográfico’ irá consolidar no IHGB, em sintonia com o
trabalho anterior de Pimenta Bueno e o pensamento de Ribeiro, a ligação da construção
do espaço com a prova histórica, enfatizando-se uma apreensão do conhecimento nos
fenômenos, nas causas e nas fontes, como pode ser exemplificado pelas corografias
produzidas no período. Por outro lado, o ‘Programa’ também introduz no IHGB a idéia
de que o espaço fazia parte de uma narração organizada pela elaboração do Mito, no
caso, do pertencimento do indivíduo ao território, portanto, constituir-se-ia no IHGB,
através do ‘Programa’, a polaridade gramatical que resultaria posteriormente na
possibilidade de se produzir uma ‘Mitologia do espaço nacional’ a partir da narrativa do
século XIX.
Depois de avaliado, o ‘Programa’ foi impresso às custas do IHGB que, em
seguida, distribuiu-o entre os seus sócios, gerando, assim, a divulgação e o debate das
idéias de Pinheiro, por sinal, muito bem recebidas por todos, à exceção de Manoel José
Maria da Costa e Sá, membro da Academia Real de Ciências de Lisboa. Esse autor, nas
49
Ver o capítulo ‘Em amplexo fraternal’.
199
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
suas ‘Breves Anotações’,
50
critica Pinheiro justamente quanto a organização da
narrativa: esta omitiria, suprimiria e interpretaria erroneamente diversos elementos.
Costa e Sá, investiria especialmente contra o tratamento dado no ‘Programa’ ao Tratado
de Madri, acusando-o de ter sido extremamente nocivo a Portugal e, inclusive,
lembrando que logo após o Tratado, Alexandre de Gusmão caíra em desgraça, sendo
mesmo, acusado de suborno.
A ‘Resposta’ de Pinheiro,
51
que contaria, inclusive, com o incentivo de D. Pedro
II,
52
iria reafirmar perante o IHGB a nulidade dos tratados, mas, demostrar também a
transcendência do tratado de 1750 para o Brasil, lançando assim as bases para a
produção de outro termo da narrativa do XIX: o mito de Alexandre de Gusmão.
Em seguimento à ‘Resposta’, Pinheiro apresentaria ao IHGB, em 1841, a
primeira biografia de Alexandre de Gusmão, denominada ‘Da vida e feito de Alexandre
de Gusmão e de Bartolomeu Lourenço de Gusmão’, que depois seria também impressa
e distribuída às custas do Instituto.
53
Esta biografia dos Gusmão, proposta por Pinheiro
“para resgatá-los de um esquecimento, onde ficariam indignamente sepultados”, já fazia
parte de seus planos desde pelo menos 1838, quando em uma viagem a Santos, sua
cidade natal, colheu os documentos para escrever sobre o Alexandre e Bartolomeu de
Gusmão, seus conterrâneos, então desconhecidos mesmo pelas elites letradas, mas cuja
lembrança provavelmente fora cultivada e preservada pela Memória local.
Se no ‘Programa’ já se podia distinguir uma idealização da genialidade e do
saber de Alexandre de Gusmão, nesta biografia, sua figura seria aproximada do ideal
romântico de herói, sendo enriquecida com a descrição de sua precocidade, de sua
lealdade e de seu desapego à riqueza ou a fama. Segundo esse enredo, o Tratado de
Madri é entendido como sua obra magna, uma façanha capaz de lhe garantir a
eternidade nos “Fastos do Brasil”. Já para seu irmão Bartolomeu de Gusmão, Pinheiro
reservou a glória e a ventura de ter sido o inventor da primeira máquina voadora:
50
Manoel José Maria da Costa e Sá, ‘Breves anotações à Memória que o Ex. Sr Visconde de São Leopoldo escreveu
com o título "Quais são os limites aturais, pactuados, e necessários do Império do Brasil?” ’in
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902.
51
José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Resposta às breves anotações que a Memória do Visconde de S. Leopoldo
sobre os Limites do Brasil fez o Sr. Conselheiro Manoel José Maria da Costa e Sá’, in Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902.
52
Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro para Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, em 15/09/1846, citada em
Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ‘Apontamentos biográficos sobre o Visconde de São Leopoldo’, in
Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIX, n° 21, 1898, p. 140
53
José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Da vida e feitos de Alexandre de Gusmão e Bartolomeu Lourenço de Gusmão’,
in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 399-400.
200
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Tinha a forma de um pássaro, crivado de multiplicados tubos, pelos
quais passava o vento a encher uma espécie de bojo, o que servia para elevá-
lo; e se faltasse o vento, entretinha-se o mesmo efeito por meio de foles
dispostos dentro do corpo da máquina. A ascensão devia também ser
promovida pela atração elétrica de peças de âmbar, dispostas na parte
superior, e por duas esferas, na mesma posição, incluindo magnete.
54
Entretanto, embora ressaltasse que a ambos os irmãos coube a alcunha de “os
voadores”, seria apenas através de Alexandre de Gusmão que Pinheiro guiaria a
narração do século XIX de encontro ao seu Mito, descrevendo através das condições
que precederam a criação do Tratado de Madri os mesmos problemas enfrentados e
trabalhados por ele na ‘Comissão Investigadora de Limites’ e no IHGB, por
conseguinte, empreendendo no enredo o reencontro das condições que precederam a
criação do Mito, conforme Mircea Eliade, o ‘estado que precedeu a criação da
cosmogonia’, o “Caos”.
Assim, o Tratado de Madri, sintomaticamente definido por Pinheiro como “o
gizamento geral de nossas raias”, teria decorrido da necessidade há muito sentida de se
definir os limites do Brasil. Para que se chegasse a tal fim, seria preciso superarem-se
inúmeras dificuldades, pois, além de não se saber determinar o espaço brasileiro [a
extensão das possessões nacionais], contava-se ainda com o desconhecimento do
território como fator impeditivo, ignorando-se mesmo as suas balizas naturais,
consideradas como então como essenciais para traçar a demarcação e evitar futuras
querelas; além do mais, contava-se ainda como o problema de todos os tratados
anteriores terem sido abortados.
Mas, “o coração grandioso de Gusmão” não fraquejou: munido dos relatos,
itinerários, notícias e direitos dos paulistas, “seus heróicos patrícios”, Gusmão
bosquejou e marcou os pontos capitais, prescreveu as instruções, acompanhou as
discussões e esclareceu as dúvidas que surgiram.
Portanto, o Tratado de Madri foi fruto do esforço hercúleo e quase solitário de
um brasileiro, que, defendendo os direitos de seus conterrâneos, delineou sua pátria.
Contudo, invejado, vilipendiado, incompreendido pelos portugueses, ainda que lutando
54
Enciclopédia Britânica, 1797, segundo José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Da vida e feitos de Alexandre de
Gusmão e Bartolomeu Lourenço de Gusmão’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo
LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 399-400.
201
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
até o final, foi atraiçoado e esquecido
55
— mesmo seu irmão partilharia da mesma sorte,
morrendo à míngua, anônimo e maltrapilho.
A consolidação do Uti Possidetis e os operadores da narrativa
Ainda que no Conselho de Estado os escritos de Pinheiro fossem lidos pelos
Conselheiros e mesmo suas idéias citadas nos votos e pareceres, estas não se
constituiriam em opinião da maioria na SJNE até, pelo menos, o início da década de
cinqüenta. Para isso, foi primeiramente necessário que a construção do espaço se
consolidasse no IHGB através do debate, para que, através de sua divulgação e pela
renovação do Conselho de Estado, seus termos e as ‘palavras-raízes’ fossem
entronizados na SJNE e traduzidos, paulatinamente, na prática da política externa
brasileira.
O conselheiro Caetano Maria Lopes Gama, antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros quando das negociações de Ribeiro na Bolívia, fez em 1841 a primeira
citação do uti possidetis no Conselho de Estado, justamente quando se examinavam
outros tratados negociados por Ribeiro, desta vez com o Peru. A SJNE vetou neste
exame a ratificação da iniciativa de Ribeiro, pois os conselheiros entenderam que o
abandono das antigas convenções entre Portugal e Espanha seria uma inovação
perigosa, em razão, sintomaticamente, do desconhecimento do território.
56
Am disso,
a questão da cessão de território, implícita nessa argumentação desde que introduzida
por Pimenta Bueno, também não era então ainda aceita pelos conselheiros, mesmo
porque ainda se questionava nesse órgão a secessão da Província Cisplatina.
Lopes Gama citaria novamente o uti possidetis em 1844, quando do exame de
problemas relativos aos limites com o Uruguai, desta vez como voto abertamente
discordante e justificado em separado do parecer da maioria, demonstrando a
possibilidade daquele conceito ser a base de uma política de fixação de limites, mas,
alargando novamente seu conteúdo sintático: o uti possidetis poderia ser utilizado
preemptivamente pelo Brasil, ou seja, orientar-se-ia, por conta de uma compreensão das
55
José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Da vida e feitos de Alexandre de Gusmão e Bartolomeu Lourenço de Gusmão’,
in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 386-388.
56
Na realidade Ribeiro assentou dois tratados com o Peru em 8 e 9 de julho de 1841, respectivamente, o Tratado de
paz, amizade, comércio e navegação; e o Convênio Especial, sendo que ambos não foram ratificados por sugestão
do Conselho de Estado. Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 16/06/1842.
202
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘fronteiras naturais’, o assentamento e a ocupação do território, tendo em vista se
garantir, assim, o uti possidetis numa futura negociação.
57
Enquanto isso, no IHGB, o debate sobre o espaço se adensa a partir do início da
colaboração de diversos personagens que se envolveriam também na construção da
narrativa do século XIX. Já em 1841, antes de sua nomeação em 1842 como adido à
Legação brasileira em Lisboa, Varnhagen teve publicado às custas do IHGB
um artigo
denominado ‘As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brasil’, onde
concatenou, pela primeira vez, a idéia da ocupação do território com a ação da
diplomacia. Desenvolvendo esse raciocínio e, em consonância com as intenções
expressas por Pinheiro nos ‘Anais’ sobre o envio de literatos brasileiros ao exterior,
Varnhagen defende que os documentos relativos às transações diplomáticas que se
encontravam então espalhados nos arquivos e bibliotecas de várias nações, deveriam ser
recolhidos um Arquivo comum no Brasil, pois, “poderão para o futuro servir não só à
história nacional, como às primeiras linhas de um corpo diplomático e de direito público
externo do Brasil”.
58
No ano seguinte, dá-se início à participação de Ribeiro no IHGB, inclusive nas
suas comissões internas, ao mesmo tempo em que inicia uma colaboração íntima com o
então ministro da SNE, Paulino José Soares de Sousa, futuro visconde do Uruguai.
Fruto dessa interação excepcional, surgiu a ‘Memória n° 12’, onde Ribeiro consolidou
perante a SNE o argumento da nulidade dos tratados, conforme os conceitos de
Pinheiro, passando a defender um híbrido do seu uti possidetis com o de Lopes Gama:
apesar de reafirmar a compensação e a cessão de territórios a fim de cobrir a ‘fronteira
natural’, Ribeiro passa a incluir no uti possidetis a idéia da aplicação preemptiva, tendo-
se em vista, uma definição futura dos limites.
59
Para acompanhar esta memória Ribeiro
fez desenhar um mapa segundo sua orientação, pelo major Adolfo Antonio Frederico
Seweloh, onde delineava-se o território limítrofe com a Bolívia, apontando para uma
solução de limites conforme essa argumentação.
A ‘Memória n° 12’, por reunir diversas características, se constitui num material
exemplar para o estudo da narrativa do século XIX, pois foi construída segundo o
57
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 29/07/1844.
58
Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘As Primeiras Negociações Diplomáticas Respectivas ao Brasil’, in Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 427-454.
59
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n° 12 - Memória sobre limites e negociações do Império do Brasil com as
Repúblicas do Peru, Bolívia e Paraguai’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1,
Documento 2.
203
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
modelo dos mapas literários e sobre a ‘Memória’ de Ricardo Serra que havia sido
recém-publicada pela Revista do IHGB, se constituindo assim tanto no primeiro
exemplo da conectividade entre as corografias, os mapas literários e a cartografia,
quanto num produto direto do debate do IHGB. Além disso, ao procurar utilizar a
cartografia como uma leitura subjacente ao texto, a ‘Memória n° 12’ demonstra ter
recebido a influência direta do ‘Programa’ e dos ‘Anais’ de Pinheiro, inaugurando tanto
a integração da cartografia com a narrativa do século XIX, quanto uma produção
individual que se manteria durante trinta anos e influenciaria outros autores.
Data deste período, por conseguinte, o começo da interação e cooperação entre a
SNE e o IHGB cujo principal veículo será Ribeiro, e a colaboração deste com o
Conselho de Estado, através de Bernardo Pereira Vasconcelos, a quem assessorará a
partir do momento em que a SJNE passou a projetar sua influência sobre aquela
secretaria nas questões referentes à política externa e mesmo em relação aos problemas
internos.
60
Foi por conta dessas interações que os problemas da política externa, através
das reflexões da SNE, se fizeram sentir no debate no IHGB, resultando numa narrativa
que seria, depois, pouco a pouco, entronizada no Conselho de Estado.
Nesse sentido, os conflitos no Sul do país e no Prata renovariam a preocupação
em relação ao problema de limites com o Uruguai, gerando uma intensa reflexão na
SNE a respeito da validade dos tratados anteriores que terminaria pela consolidação da
ligação entre o uti possidetis e o Tratado de Madri em 1844. Em diálogo com Ribeiro,
Ernesto Ferreira França, titular da SNE, sem negar a validade dos tratados anteriores,
entendia que a observância de Santo Ildefonso, como pretendia o Uruguai, se traduziria
para o Brasil na perda de dois terços do território que se considerava então parte da
Província do Rio Grande. Ferreira França entendia, por conseguinte, que se deveria
buscar outro tratado que fosse mais vantajoso para o Brasil, fixando-se, assim, no
Tratado de Madri, cujas raias acreditava serem superiores, por sua defensabilidade, até a
outros acordos aparentemente mais vantajosos, como, por exemplo, os que foram
obtidos durante o período joanino.
61
Portanto, retornava novamente a idéia de que o Tratado de Madri apresentava
uma vantagem intrínseca para o Brasil, tornando obrigatória, para Ribeiro, uma reflexão
60
Correspondência de Bernardo Pereira de Vasconcellos para Duarte da Ponte Ribeiro, 1846-1847. AHI, Arquivo
Particular Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 2, Pasta 42.
61
Carta de Ernesto Ferreira França para Duarte da Ponte Ribeiro, em 29/11/1844. AHI, Arquivo Particular de Duarte
da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 2, Pasta 17.
204
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
sobre o problema. Para este, a compreensão do Tratado de 1750 estava ligada a uma
remissão ao Tratado de Tordesilhas, que, para Ribeiro, fora produzido sob o conhecido
efeito da influência que os espanhóis possuíam então sobre a Igreja Católica, fazendo
com que os portugueses jamais houvessem aceitado pacificamente aquela “linha
indeterminada”. Assim, como já em 1681 Portugal tinha declarado “explicita e
categoricamente” que nunca havia reconhecido definitivamente “as Bulas dos Papas”, o
Tratado de Madri era o único acordo possível de ser alegado por qualquer uma das
partes, uma vez que fora negociado e delimitado pacificamente e em comum acordo.
Segundo Ribeiro, a oposição feita a este tratado teria sido movida apenas por
interesses pessoais do Marquês de Pombal, dos quais faziam parte, inclusive, a
nomeação de Gomes Freire de Andrade para o cargo de Governador do Rio de Janeiro e
Comissário dos Limites. Assim, apesar das divergências na localização dos acidentes
geográficos, decorrentes do desconhecimento do território implícito no texto do
Tratado, os marcos de limites teriam sido estabelecidos pelos Comissários através do
consenso das partes, construído na interpretação do texto do Tratado sobre o próprio
território, no que denominou de ‘princípio de posse efetiva’, por conseguinte, a
iniciativa dos demarcadores possibilitou que o Tratado de Madri se tornasse um
exemplo de equidade.
62
Foi por esse raciocínio sobre a praxis das demarcações do Tratado de Madri que
Ribeiro estabeleceu a correspondência com o seu uti possidetis e os problemas de
limites enfrentados pelo Estado naquele momento, uma idéia bastante adequada a um
período de confrontos internos e agressões externas como foi a década de 1840 no
Brasil. Assim, não está presente no raciocínio de Ribeiro, neste momento, uma
correlação do uti possidetis com os princípios da negociação do Tratado de Madri, mas,
com a resolução das questões decorrentes das Demarcações.
Essa reflexão da SNE em 1844 demonstra a crescente importância do Tratado de
1750 na construção da narrativa, que seria sublimada no contexto da interação entre a
SNE e o IHGB, pela primeira colaboração enviada por Varnhagen do exterior para o
62
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos de Duarte da Ponte Ribeiro sobre as possessões portuguesas e espanholas
na América’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 3, Pasta 5.
205
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Instituto, justamente a transcrição e a certidão do Tratado de Madri, requeridas por
meio de uma Ordem Régia de D. Maria II à Torre do Tombo.
63
Também fizeram parte dessa interação entre as reflexões da SNE e a aquisição
de conhecimento e debate sobre o espaço no IHGB, a retomada do modelo dos ‘mapas
literários’ por Pinheiro, Ribeiro e outros na década de 1840, resultando numa
experimentação e construção contínua da narrativa em torno da unidade do espaço.
Nesse sentido, a produção do Mito já pode ser observada nesses escritos através do que
Eliade denominou de ‘desejo do retorno às origens’, presente tanto nos ‘Apontamentos’
de Ribeiro
64
quanto nas ‘Observações’ de Francisco José de Sousa Soares de Andréa,
65
e que pode ser identificado pela ênfase deste autores na necessidade de renovação e
regeneração dos antigos testemunhos da presença portuguesa e a inclusão no espaço
nacional de seus monumentos.
Igualmente, em relação a esse registro das origens, podemos utilizar a teorização
de Norman Cohn referente à ligação entre a construção do Estado e a produção do
Mito.
66
Nesta teorização, ‘Caos’ e ‘Cosmos’ são definidos como categorias gerais,
separadas em essência e em permanente oposição narrativa que enfeixam o sentido
daquela ligação: a manutenção do Estado e a presença do Soberano garantem a
perpetuação do ‘Cosmos’ pelo afastamento do ‘Caos’. Deste modo, o registro das
origens, pode também ser verificado nos ‘mapas literários’ através da oposição narrativa
‘Cosmos’—‘Caos’, identificada nestes pela caracterização de uma identidade do
nacional em oposição ao ‘outro’ situado além do espaço. Nesse sentido, o ‘Caos’ se
manifesta continuamente fora do espaço nacional, ameaçando-o em todas as suas
dimensões pela negação da ordem, pela violência e pela barbárie — o “direito e a
Força” de Ribeiro ou “a Lei, a força e a firmeza” de Andréa eram os instrumentos
advogados para a delimitação do espaço nacional e a conseqüente preservação do
‘Cosmos’.
63
‘Ordem Régia de D. Maria II para o Oficial Maior do Arquivo da Torre do Tombo solicitando que se passe por
Certidão o pedido feito por Francisco Adolfo de Varnhagen com o teor do Tratado de Madri, demarcando os
limites da América, assinado entre Castela e Portugal em 13/01/1750 na Cidade de Madri’. IHGB, Lata 116,
número 14.
64
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil’. IHGB, Lata 289, Pasta 9.
65
Francisco José de Sousa Soares de Andréa, ‘Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do
Brasil’. IHGB, Lata 289, Pasta 9.
66
Norman Cohn, Cosmos, caos e o Mundo que virá. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
206
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Portanto, quando em 1846 o Conselho de Estado se coloca contra a utilização do
uti possidetis nas negociações com a Venezuela, desautorizando toda a iniciativa da
SNE nesse sentido e validando os tratados do XVIII, este posicionamento já não
acontece apenas pela percepção do desconhecimento do território, mas, pelo
entendimento de que não mais se poderia transigir na defesa e no resgate do legado
original, agora sob permanente ameaça.
67
Por conta dessa percepção, o debate se encaminhou na direção de consolidar a
argumentação da narrativa e estabelecer uma unidade de sua interpretação em torno do
IHGB. Esse esforço resultou no Parecer de 1847 da Comissão de Geografia, presidida
por Ribeiro, sobre o Memorandum de Pedro de Alcântara Lisboa relativo à opinião da
validade do Tratado de Santo Ildefonso, manifestada pelo Visconde de Santarém, então
uma autoridade geográfica e cartográfica mundialmente reconhecida.
O Parecer, aprovado pelo Instituto, recomenda a retificação dos escritos do
Visconde de Santarém, reconhecendo a argumentação da nulidade dos tratados como
base da negociação de limites, sancionando ainda o uti possidetis como parte integrante
da mesma argumentação e ligando-o a um registro da origem, como nas palavras de
Lisboa sobre o uti possidetis: “não é mais do que a continuação da fruição de um direito
legitimamente adquirido, e que só pode ser abandonado de uma maneira explícita.”
68
A operação da narrativa
A partir do Parecer de 1847, os principais operadores da narrativa, como Lopes
Gama e Pimenta Bueno participariam mais intensamente das discussões do IHGB,
estreitando-se ainda mais o teatro da narrativa. Por outro lado, Ribeiro, teria uma
participação ainda mais intensa na principais questões da política externa, inclusive
como representante brasileiro em Buenos Aires durante o governo Rosas.
Posteriormente, no seguimento da parceria com Bernardo Pereira de Vasconcellos,
tornar-se-ia, durante a década de 1850, o principal consultor da SJNE, inaugurando-se
uma colaboração que seria continuada por outros membros da SNE e ‘literatos’ do
Instituto como, por exemplo, Varnhagen. Sintomaticamente, não apenas Ribeiro, mas
também Pimenta Bueno, Soares de Sousa e Lopes Gama, teriam uma participação
67
A consulta diz respeito ao exame geral das negociações com a Venezuela e especificamente dos ofícios enviados
em 12 de janeiro de 1846 e 15 de fevereiro de 1846 pelo representante brasileiro naquele país. Atas da Seção de
Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 6/10/1846.
68
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IX, n° 5, 1847, p. 436-439.
207
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
intensa nesse novo teatro da narrativa e sempre em posição de destaque: os dois
primeiros foram nomeados, respectivamente, em 1848 e em 1849, para o posto de titular
da SNE, ingressando ainda, em 1859 e 1853, para o Conselho de Estado. Ainda neste
órgão, Lopes Gama se converteria, a partir da morte de Bernardo Pereira de
Vasconcellos, na figura mais poderosa da SJNE, sendo escolhido como Relator de
metade das consultas feitas à Seção durante o período que vai de 1849 a 1853.
69
Como resultado do estreitamento do teatro da narrativa, já em 1849, às vésperas
da invasão da Argentina, o Conselho de Estado passaria a sustentar a argumentação da
nulidade dos tratados entendendo-a como capaz de renovar os “direitos imprescritíveis”
do Brasil através da “aliança ilustrada e benéfica da diplomacia e da força”, ou seja,
remetendo as iniciativas de política externa ao ‘saber sobre o espaço’ e a uma
‘linguagem do espaço’.
70
No seguimento dessa interpretação, seria também reconhecido
o uti possidetis de Ribeiro como base para a resolução das questões de limites, já
identificado com a ‘posse efetiva’ e “de perfeito acordo com os escritores mais dignos
de atenção”, ou seja, consolidando aquela ‘palavra-raiz’ enquanto o instrumento de
verificação e delimitação de uma ‘‘fronteira natural’’, por conseguinte, admitindo
implicitamente nesse contexto a idéia da cessão de territórios, e ratificando o debate do
IHGB através da entronização da narrativa.
71
Assim, foi possível que se constituísse na primeira metade da década de 1850
uma centralidade absoluta do IHGB na produção da narrativa, mas, por conta das
características da convergência dos teatros, sua operação deixaria de estar em poder do
plenário ou dos cargos executivos do Instituto para se situar num ambiente definido e
privilegiado de sua estrutura, a Comissão de Geografia, que seria composta entre 1852 e
1856, justamente por Ribeiro, Lopes Gama e Pimenta Bueno.
72
Para isto, a Comissão de Geografia possuía várias prerrogativas decorrentes dos
estatutos do Instituto, como produzir pareceres sobre temas ligados à questão da
narrativa, vetar publicações ou ainda desaconselhar obras cuja matéria lhe dissesse
respeito. Ainda, como seus membros eram eleitos por votação dentre os sócios do
Instituto, recebiam destes, na prática, um aval da sua proficiência na matéria, que lhes
69
Ver a Tabela ‘Relatores das consultas da SJNE entre 1842 e 1848’, no capítulo ‘O assento central’.
70
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de julho de 1849.
71
Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de agosto de 1849.
72
Nas eleições de 1852 e 1854 os três foram eleitos com significativa votação, ver: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tomo IX, n° 5, 1847, p. 71-73 e 585.
208
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
permitia, inclusive, influir na admissão de novos membros ao IHGB, especialmente
após 1850, por conta da reforma dos estatutos, que modificou tanto os critérios de
admissão quanto o caráter do Instituto.
73
Em relação à admissão de sócios efetivos, essa reforma estabeleceu a
necessidade da apresentação de um trabalho sobre História, Geografia ou Etnografia que
fosse capaz de justificar sua admissão ao IHGB perante a Comissão de Sócios. A
necessidade dessa apresentação e, algumas vezes, de sua justificação perante o plenário,
terminou colocando sob a tutela indireta da Comissão de Geografia a admissão daqueles
que poderiam vir a participar do debate sobre o espaço nacional, já que, na prática, as
duas comissões ou o plenário poderiam, além da “aptidão” do candidato à temática em
questão, questionar ainda seus atributos pessoais, ampliando, assim, a aplicação do
poder de veto aos que fossem considerados divergentes ou recalcitrantes. Foi, por
exemplo, o caso de Bento da Silva Lisboa, Barão de Cairú, que, ao enfrentar o Parecer
da Comissão de Sócios, foi obrigado a demonstrar que não lhe cabia o epíteto de fraco,
adquirido por conta da sua atuação à frente da SNE e que ameaçava sua admissão no
IHGB: humilhantemente, Lisboa teve de fazer sua defesa perante o plenário do Instituto,
inclusive, através de uma cansativa leitura das notas que, como ministro, trocara com o
representante dos Estados Unidos.
74
Quanto a modificação do caráter do Instituto em 1850, esta pode ser percebida
pela supressão no primeiro artigo dos estatutos da promessa dos cursos públicos de
história e geografia. Esta mudança refletia a idéia que nesse momento, a maioria dos
membros fazia de si e do próprio IHGB, como parte integrante da mobilização e do
mecanismo do Estado e que era compartilhada integralmente pela Comissão de
Geografia, segundo o seguinte raciocínio: uma vez que era presidido pelo Imperador e
tinha por sócios os membros do Gabinete e do Conselho de Estado, as opiniões emitidas
pelo Instituto e suas iniciativas seriam interpretadas como precedidas de assentimento
do Governo, por conseguinte, o IHGB não deveria divulgar o que fosse atentatório a
73
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIII, n° 6, 1850, p. 523.
74
Lisboa esta à frente da SNE entre novembro de 1846 e julho de 1847, período em que se desenrolou a chamada
Questão Wise, nome pelo qual ficou conhecido o problema decorrente da interpretação que o representante dos
Estados Unidos deu à detenção de um oficial e diversos marinheiros da corveta Saratoga.
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XIV, n° 4, 1851, p. 474-488.
209
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
esses interesses, concentrando ainda seus esforços na busca de insumos que lastreassem
as iniciativas do Estado.
75
Assim, a Comissão de Geografia entendia que fazia parte de suas atividades a
censura e a correção das publicações que afrontassem a posição assumida pelo Conselho
de Estado e que, sobretudo, neste exercício, se deveria guardar silêncio sobre o Parecer
que as analisou,
76
ou seja, o IHGB devia assumir a tarefa e também o ônus, de
“transmitir à posteridade o conhecimento dos fatos que a história deva registrar, e
impedir com a sua censura os erros a que os vindouros poderiam a ser induzidos por
inexatas ou exageradas referências”.
77
Nesse sentido, a censura e a correção exercidas pela Comissão de Geografia
envolviam um esforço para circunscrever a narrativa cerceando a produção de novos
enunciados ou garantindo a sua assimilação à ‘‘norma narrativa’’. Ressalte-se que, no
caso, as idéias de ‘‘derivação’ e ‘‘norma narrativa’’ serão entendidas a partir da
conceituação de Gilbert Durand, que utiliza o termo ‘‘derivação’’ para designar as
derivações intraculturais que se desenvolvem de um eixo de tempo genérico literário a
outro, mas, situando-a como a variação de um outro conceito, que é o de ‘narrativa
canônica’, que é, para esse autor, a construção mais completa e que serve de modelo às
demais. Entretanto, como entendemos em nossa análise que a narrativa está em
permanente construção e em constante redefinição, preferimos utilizar o conceito de
‘norma narrativa’, para designar a construção que se situa no centro das estratégias e das
táticas dos operadores, mantendo em seu sentido geral a idéia de ‘derivação’.
78
No caso da censura exercida pela Comissão Geográfica, seus critérios abrangiam
a competência lingüística dos autores, o pertencimento da argumentação à narrativa e
sua interpretação da ‘norma narrativa’, bem como incluíam juízos mais subjetivos, por
exemplo, se as obras apreciadas eram “contrárias a retidão que caracteriza a política do
Brasil com os Estados vizinhos”; se eram “prejudiciais aos direitos perfeitos do Brasil”;
75
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto
Ferreira França Filho’, 1849. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11,
Documento 2.
76
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Nota dos assuntos relativos a Geografia e História do Brasil, que tem sido publicado na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro até o tomo 19 (sobre região do Brasil).’ AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 2, Pasta 3.
77
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na
sessão do Instituto Histórico de 17 de Junho de 1853,’ in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
tomo XII, 3 (XII), 1853, p. 515-517.
78
Ver Gilbert Durand, Mito e Sociedade. Lisboa: A Regra do Jogo, 1983, p. 33-36.
210
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
e se eram “menos justas na apreciação dos atos do Governo Imperial”. Neste último
caso, ainda se deveria avaliar o nível de desvio em relação a ‘norma narrativa’:
primeiro, os escritos que “levavam a entender que os atos do Governo pretendiam
usurpar terrenos aos novos Estados”; segundo, os que davam como “ilegitimamente
adquirida uma parte do que se possuía”; terceiro, aqueles que consideravam ser
“verdadeiras as acusações contra os atos do Governo”.
79
Ainda como parte do esforço de circunscrever a narrativa, Soares de Sousa
lembraria em 1850 de entronizá-la numa representação cartográfica, constituindo para
esse fim uma ‘Comissão de Limites’ na SNE, presidida por ele mesmo e composta por
Ribeiro e Pimenta Bueno, com o objetivo de recolher documentos e mapas que
possibilitassem, ao mesmo tempo, a composição de uma “Carta da Fronteira do
Império” e de uma “exposição histórica” para acompanhá-la.
80
Entretanto, ainda que as atividades da Comissão de Geografia visassem
circunscrever a competência da produção da narrativa e as condições de sua
interpretação através de um argumento que evoluiria para sua constituição enquanto um
‘segredo de Estado’, as possibilidades de manutenção de uma estrutura simples num
modelo narrativo complexo são muito limitadas, como pode ser observado a partir dos
experimentos de Chomsky com modelos lingüísticos finitos, uma vez que os termos e as
‘palavras-raízes’ desse modelos podem formar derivações equivalentes ou não
equivalentes com os mesmos elementos daquela estrutura, criando-se assim uma
ambigüidade de interpretação mesmo na ‘norma narrativa’.
81
Ora, as iniciativas da Comissão de Geografia derivavam, em parte, das intensas
criticas feitas no Parlamento, na Imprensa e no IHGB à aplicação estrita do uti
possidetis na resolução das questões de limites com o Uruguai, a Venezuela e o Peru, as
quais se concentravam, especialmente, sobre a questão da cessão de territórios,
entendida então como o cerne da política de negociações.
Estas críticas possuíam por base, justamente, os mesmos elementos que
compunham a ‘norma narrativa’ defendida pela Comissão de Geografia, sendo também
79
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Nota dos assuntos relativos a Geografia e História do Brasil, que tem sido publicado na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro até o tomo 19 (sobre região do Brasil).’ AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 2, Pasta 3.
80
Correspondência entre Paulino José Soares de Sousa e Duarte da Ponte Ribeiro, citado em José Antônio Soares de
Souza,
Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 275-276.
81
A esse respeito ver a análise dos modelos finitos e os problemas denominados da “homonímia de construção” nas
estruturas sintagmáticas em Noam Chomsky,
Estruturas Sintáticas, Lisboa: Edições 70, 1980, p. 15-31.
211
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
construída a partir do debate no IHGB, da divulgação das corografias do século XVIII e
utilizando ainda a representação cartográfica da Carta Niemayer de 1846, constituindo-
se, por conseguinte, numa ‘derivação’ da ‘norma narrativa’. Contudo, essa ‘derivação’,
era então menos elaborada e sua operação muito rarefeita, constituindo-se como uma
interpretação radical do ‘retorno à origem’, onde o espaço brasileiro identificava-se com
o limite máximo da expansão portuguesa na América verificado sobre aquelas obras.
Esse pensamento sobre o espaço tomou força, justamente, a partir da discussão de
limites no início da década de 1850, pois, como sua percepção do espaço nacional
diferia muito em relação ao que se propunha nas negociações, acreditava-se então que
todas as negociações envolviam grandes cessões do território nacional. Assim,
conforme Soares de Sousa, tornou-se até mesmo necessário que taticamente a SNE
tivesse de apresentar nas negociações as mesmas exigências dos seus críticos, só para
que depois se pudesse recuar, “convencida por fatos patentes”.
82
Assim, tornava-se
urgente, conforme aconselhava Ribeiro, que a atividade da Comissão de Geografia fosse
centralizada no combate à ‘derivação’ da norma:
Creio que conviria modificar as suas pretensões, a fim de por termo
a uma questão que diferida para mais tarde quiçá arraste maiores embaraços
ao Império. É minha opinião que o Brasil deve sustentar a todo transe a
fronteira de que tiver efetiva posse, e buscar por transações razoáveis cobrir
melhor esses estabelecimentos sendo possível; mas que não deve insistir em
realizar uma fronteira ideal, iniciada em outros tempos, quando para efetuá-
la podiam dar-se noutra parte compensações que hoje são impossíveis com
os novos Estados.
83
Mas, conforme pode se observar por esse enunciado de Ribeiro, a ‘norma
narrativa’ reconhecia na ‘derivação’ uma parte mesmo de sua estrutura, como, por
exemplo, a idéia do ‘retorno à origem’. Entretanto, a ambigüidade dessa interpretação
transparece quando se verifica que esse reconhecimento se faz conforme a sintaxe da
‘norma narrativa’, equiparando-se as idéias da ‘fronteira ideal’ com a da ‘fronteira
natural’ a partir de sua estrutura sintagmática, no caso, entendida pela remissão ao
82
Carta de Paulino José Soares de Sousa para Duarte da Ponte Ribeiro, em 19/08/1852. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 2, Pasta 40.
83
Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Paulino José Soares de Sousa, em 31/05/1852. AHI, Missão Especial nas
Repúblicas do Pacífico, 1851-52.
212
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Tratado de Madri e às permutas territoriais. Ainda, procurar-se-ia demonstrar a
incompatibilidade da ‘derivação’ com as tensões do presente e a necessidade de sua
adaptação, explicitada pelo remetimento da argumentação à própria construção do Mito,
através da idéia do confronto ‘Caos – Cosmos’.
Portanto, na manutenção de uma ‘linguagem do espaço’ que acomodasse a
‘norma narrativa’ e a ‘derivação’, a conjunção das estruturas seria um processos mais
efetivos para a construção de novas frases num modelo sintagmático, mas enfrentaria aí
as limitações do conhecimento de sua forma efetiva, aqui entendida como em função de
sua ‘efetividade narrativa’, como também do conhecimento de sua forma constituinte,
desdobrada não só em sua forma final mas também em sua ‘história derivacional’, ou
seja, neste caso, ainda que a conjunção de suas estruturas fosse possível, a ‘norma
narrativa’ e a ‘derivação’ seriam incompatíveis por apresentarem processos de
transformação e de constituição diferenciados.
84
Assim, se desenvolvermos a idéia da ‘Máquina Gramatical’ de Chomsky, a
saber, a regra que determinaria a instituição de constituintes para o estabelecimento do
processo de conjunção, o ‘cisma da narrativa’ deveria ser entendido aqui como uma
exigência mesma de seu desenvolvimento, uma vez que a conjunção tornava-se
desvantajosa tanto para a ‘derivação’ quanto para a ‘norma narrativa’, emasculando a
primeira e impedindo que se produzisse, a partir da segunda, uma ‘Máquina’ mais
poderosa e capaz de “olhar para trás” a fim de possibilitar, deste modo, o controle e a
reprodução da narração.
85
Por conseguinte, para que a operação da narrativa se
consolidasse, sendo capaz de constituir uma unidade narrativa centralizada em torno do
IHGB, seria necessário estabelecer um controle pela regra em torno dos seus elementos
finais e iniciais, neste caso, entendido como o controle da produção das seqüências
anteriores da ‘derivação’, coadjuvado por uma reprodução eficiente das seqüências de
frases da ‘norma narrativa’ e pela capacidade de retorná-las a fase inicial do processo,
justificando-se, assim, a efetivação da censura da Comissão de Geografia, a
normatização do espaço pela Comissão de Limites e a combinação de seus esforços no
já estreito teatro da narrativa.
84
Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 41.
85
A representação de Chomsky da gramática enquanto ‘Máquina’, pode ser entendida como um experimento de
análise das derivações e sua produção composto sobre uma gramática de modelo sintagmático com um número
finito de estados internos, possuindo ainda um estágio final e um inicial. Ver Chomsky,
Estruturas Sintáticas.
Lisboa: Edições 70, 1980, p. 42.
213
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Sob essas circunstâncias, o debate no IHGB seria direcionado justamente para
um interstício entre a ‘norma narrativa’ e a ‘derivação’, visando facilitar a conjunção de
suas estruturas. Assim, a discussão do espaço, sob a administração da Comissão de
Geografia, passaria a priorizar, no início da década de 1850, tanto a ligação com as
origens, através da publicação e discussão das colaborações enviadas por Varnhagen do
exterior,
86
quanto a discussão da exploração dos limites e a análise dos problemas dos
territórios contestados. Neste último caso, o redirecionamento do debate se constituía
também como um esforço destinado a subsidiar as consultas do Conselho de Estado
87
e
as negociações da SNE, como, por exemplo, no apoio às questões das Guianas, que
inclusive possuiriam preferência de publicação na Revista do IHGB.
88
Deste modo,
através do desvelamento do desconhecido e de sua retirada da esfera do ‘Caos’
arquitetava-se uma ordenação possível do próprio espaço do ‘Cosmos’.
O cisma da narrativa
Apesar da importância da Comissão de Geografia para o esforço de controle e
reprodução da narrativa, o estabelecimento do segredo sobre seus Pareceres fez com que
restassem hoje apenas uns poucos registros de sua atividade, através dos quais nos foi
possível reconstruir apenas dois episódios de utilização da censura, o primeiro destes
sendo o dos ‘Apontamentos Diplomáticos’ de Ernesto Ferreira França Filho e o segundo
o da ‘Memória Histórica’ de Joaquim José Machado de Oliveira. Entretanto, por meio
da reflexão sobre estes episódios podemos descortinar as tensões existentes no interior
do IHGB que levaram ao confronto e ao cisma entre a ‘norma’ e a ‘derivação’, levando
à constituição de um novo regime da narrativa, com o deslocamento do Debate e da
operação da narrativa para um outro local de enunciação, a SNE.
Os ‘Apontamentos Diplomáticos’, foram apresentados por Ernesto Ferreira
França Filho ao IHGB em 1849 e logo identificados pela Comissão como um trabalho
escrito por seu pai, antigo titular da SNE. Nesta memória Ernesto Ferreira França
86
Como, por exemplo o de um ‘resgate do ‘Tratado descritivo do Brasil’. Ver Gabriel Soares de Souza, ‘Tratado
descritivo do Brasil em 1587 ou Roteiro geral com largas informações de toda a costa do Brasil’, in
Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
, tomo IV, n° 14, 1851.
87
A respeito da influência do debate e da citação direta à Revista do IHGB vejam-se, por exemplo, Atas da Seção de
Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 4/08/1854, 28/11/1854 e 20/11/1854.
88
Foi o caso, por exemplo, da ‘Memória’ de Joaquim Caetano da Silva, apresentada ao IHGB em 1851, mas,
publicada antecipadamente na Revista de 1850. Joaquim Caetano da Silva, ‘Memória sobre os limites do Brasil
com a Guiana Francesa, conforme o sentido exato do artigo oitavo do Tratado de Utrecht,’ in
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, n° 13, 1850.
214
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
apresentava para o Instituto três diretrizes que julgava apropriadas para a definição e
defesa dos limites: primeiro, a constituição de um comissão que coordenasse a
confecção de uma série de cartas onde se representassem os limites do Brasil, adotando-
se nestas o meridiano do Rio de Janeiro como sua referência central; segundo, que se
estabelecesse um plano de ocupação e manutenção sobre certos pontos estratégicos por
ele definidos por serem considerados essenciais para a ‘segurança e conservação dos
direitos’, ou seja, para a consecução do uti possidetis preemptivo; terceiro, aconselhava
a constituição de um ramo especial do serviço público para cuidar da segurança e
inviolabilidade das fronteiras.
Logo, Ferreira França foi censurado porque, além tornarem pública a discussão a
respeito do espaço e dos limites, suas diretrizes, se aproveitadas, devolveriam a
condução do debate ao plenário, diminuindo a atuação da SNE e da SJNE, por conta de
sugerir a constituição de órgãos autônomos e desvinculados destes.
89
Sintomaticamente,
para o entendimento do desdobramento subseqüente das tensões internas no Instituto, a
Comissão de Geografia entendeu, através de seu Parecer, que não necessitava sequer de
apresentar uma análise dos ‘Apontamentos Diplomáticos’, pois o IHGB não possuía
atribuição para tratar das questões ali discutidas, não podia divulgar suas informações e
menos ainda fazer uso desse escrito.
90
Já a censura das ‘Memórias Históricas’ em 1853 acarretou uma querela que
colocou em cheque as atividades da Comissão de Geografia e envolveu a própria
autonomia do IHGB, uma vez que o livro de Joaquim José Machado de Oliveira era um
violento libelo contra a utilização do uti possidetis e a própria política de limites do
Governo, utilizando o Tratado de 1851 com o Uruguai como mote para discutir os
“incontestáveis direitos” à verdadeira “amplitude territorial do Brasil”, perdida pela
“incúria de quem em outros tempos presidia a seus destinos”.
91
Encaminhada conforme à praxe para a Comissão de Geografia, o trâmite das
‘Memórias Históricas’ seguiu o seu curso normal em direção ao veto, desta vez
merecendo uma análise circunstanciada, onde se procurava negar tanto a cessão de
89
Os ‘Apontamentos Diplomáticos’ somente seriam publicados em 1870. Ver Ernesto Ferreira França Filho,
‘Apontamentos Diplomáticos Sobre os Limites do Brasil’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo XXXIII, n° 41, parte II, 1870.
90
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto
Ferreira França Filho’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11,
Documento 2.
215
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
território na política de limites, quanto os “direitos” alegados por Oliveira em relação ao
território cedido pelo Tratado de 1851. Seria sobre essa ambigüidade que Ribeiro
procuraria desenvolver os argumentos da censura à ‘derivação’, defendendo o uti
possidetis através de um redimensionamento do Tratado de Madri, cuja característica
mais marcante seria a de se ter consolidado a expansão do território nacional em relação
ao Tratado de Tordesilhas. Conquanto este território ainda fosse menor do que aquele
defendido pela ‘derivação’, estaria sendo avalizada inicialmente, se não uma expansão,
pelo menos a manutenção do território, dentro de uma estratégia maior de combate à
idéia da cessão de territórios. Na verdade, esta estratégia visava questionar diretamente
a narrativa do setecentos e negar vários de seus termos, os quais haviam sido utilizados
por Oliveira para sustentar a argumentação dos direitos sobre um território a partir do
qual poderia ser consolidada a idéia da regressão do território nacional desde suas
origens.
92
Entretanto, ao tentar desenvolver a ‘norma narrativa’ sobre um aprofundamento
da ambigüidade em relação a sua estrutura sintagmática, Ribeiro atingiu os limites dessa
mesma estrutura, demonstrando-se em seus efeitos a inviabilidade da manutenção do
processo de conjunção e as limitações do controle e da censura sobre a produção e a
reprodução da narrativa.
Assim, o primeiro indício da revolta que se seguiu, surgiria através de uma
proposta, aparentemente inusitada, de Antônio Gonçalves Dias no sentido de que se
arquivassem tanto o Parecer quanto as ‘Memórias Históricas’. Entendendo estar sendo
retirada uma das prerrogativas da Comissão Geográfica, Ribeiro impugnou essa
proposta, o que resultaria na aquiescência da Mesa para que Gonçalves Dias passasse a
defender as ‘Memórias Históricas’ no plenário, e que mais dois sócios, Pedro de
Alcântara Bellegarde e Candido Batista de Oliveira pudessem apresentar seus trabalhos
sobre o escrito de Oliveira, deste modo, coadjuvando Gonçalves Dias.
93
Na verdade, Ribeiro estava obrigado tanto a defender o veto da Comissão de
Geografia quanto a própria ‘norma narrativa’ em plenário. Esta seria, no decorrer da
querela, associada eficazmente por Gonçalves Dias à argumentação empregada pelos
91
Joaquim José Machado de Oliveira, ‘Memória histórica sobre a questão de limites entre o Brasil e Montevidéu’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853.
92
‘Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na sessão do Instituto Histórico
de 17 de Junho de 1853’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853, p. 435.
93
Esta discussão será retomada no próximo capítulo, ‘O espelho de Jacobina’.
216
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
espanhóis contra a narrativa do setecentos, inclusive porque Ribeiro, em sua estratégia
de redimensionar o Tratado de Madri contra a narrativa do setecentos, estabeleceria os
limites do Tratado de Tordesilhas como a origem das questões de limites, buscando
caracterizá-los pelos cálculos mais propícios a afirmar a expansão do território com o
Tratado de Madri.
94
Como resultado da discussão, romper-se-ia definitivamente a ligação da ‘norma’
com a ‘derivação’ e a narrativa do setecentos, se constituindo uma maior autonomia do
IHGB que resultaria, na prática, no seu esvaziamento. Este esvaziamento decorreria da
retirada do poder de censura que caracterizava as iniciativas da Comissão de Geografia
e pela anulação do segredo do Parecer, ao ser este, no caso, publicado conjuntamente às
‘Memórias Históricas’. Ainda, instituiu-se, por proposição plenária, a revisão da Carta
Niemayer sob os auspícios do IHGB, o que colocava o Instituto em contraposição à
Comissão de Limites da SNE. Seria mesmo aprovada a proposta de se estabelecer no
Instituto uma coleção dos tratados que envolviam o Brasil, criando-se, deste modo,
condições para que se pudesse organizar no IHGB uma base documental sobre os
limites e a política externa, exemplificando-se, com esta atitude, a disposição do
plenário de discutir abertamente os problemas de Estado.
95
Esta vontade se verificaria
logo no ano seguinte pela proposta plenária de que o ‘Caso Maury’
96
fosse discutido no
IHGB através da análise de um dos seus sócios: embora se prometesse limitar as críticas
“às matérias que não fossem intimamente conexas com a política”, essa iniciativa se
constituía contra o debate já travado no âmbito da SNE e que era capitaneado também
por Ribeiro. A proposta foi aprovada no IHGB, contra a posição de Ribeiro, acarretando
assim a ruptura final com a Comissão de Geografia: embora seus integrantes houvessem
sido reconduzidos ainda em 1854, por boa maioria de votos, estes passariam a se
ausentar sistematicamente das sessões, inclusive, se afastando do próprio Instituto:
94
Ver Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Defesa do Parecer sobre a Memória Histórica do Sr. Machado’, in Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853; Antonio Gonçalves Dias, ‘A Memória Histórica
do Sr. Machado de Oliveira e o Parecer do Sr. Ponte Ribeiro’, in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853; Antonio Gonçalves Dias, ‘Resposta do Sr. A. Gonçalves Dias à Defesa do
Parecer sobre a Memória do Sr. Machado de Oliveira’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
tomo XII, n° 3, 1853.
95
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII, n° 17, 1854, p. 77-102.
96
O caso Maury decorreu da publicação do livro ‘The Amazon and the Atlantic Slopes of South America’ pelo
tenente da Marinha dos Estados Unidos M. F. Maury, onde se pleiteava a livre-navegação do rio Amazonas,
procurando incentivar a colonização da Amazônia por sociedades norte-americanas, que se constituem
efetivamente em 1854, segundo informações da SNE, como grupos de pressão sobre o Congresso dos Estados
Unidos. Ver ‘Memorial apresentado ao Congresso dos Estados Unidos’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da
Ponte Ribeiro, Lata 265, Maço 8, Pasta 1.
217
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
nenhum dos trabalhos da Comissão é levado a cabo durante os dois anos seguintes, nem
seus membros se candidatariam novamente à reeleição.
97
Como visto, o esvaziamento do IHGB foi a conseqüência mais evidente do
‘cisma da narrativa’, mas, também em decorrência deste houve uma transformação
menos óbvia e mais profunda na representação do espaço, a qual será trabalhada no
próximo capítulo a partir do estudo das novas condições da operação e da produção da
narrativa, caracterizadas pela intensa utilização da cartografia e por uma transformação
no estilo corográfico.
97
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII, n° 17, 1854, p. 579-583.
218
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
9 — O ESPELHO DO JACOBINA: OS PROCESSOS DE PRODUÇÃO
CARTOGRÁFICA E O NOVO REGIME DA NARRAÇÃO.
“Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... [...] A alma
exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto,
uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a
alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma
máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício
dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o
homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das
metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a
perda da alma exterior implica a da existência inteira.”
Machado de Assis. O Espelho.
1
Como vimos, as tensões geradas pelas atividades destinadas a concentrar o
controle da produção, reprodução e aplicação da narrativa, terminaram por
reterritorializar o espaço do teatro da narração, fazendo com que lugar de operação da
narração fosse constituído na SNE e relegando o IHGB a um papel acessório e
secundário durante as décadas de 1860 e 1870.
Por conta das características desse novo lugar de operação da narrativa, a
cartografia passaria a substituir a corografia como o medium por excelência de inscrição
da narrativa, o que nos leva a também ter de analisar os processos de produção
cartográfica tendo-se em vista o que Jacques Derrida chamaria de sociabilidade da
escrita, ou seja, entendendo-se que o cartógrafo é um sistema de relações entre os
diversos estratos do processo cartográfico, composto pela sua seleção, composição,
inscrição e divulgação.
2
Utilizando-nos de tal enfoque, pretendemos discorrer sobre o emprego e as
condições de leitura dos produtos cartográficos pelos historiadores, procurando, ao
mesmo tempo, demarcar tanto seus limites quanto suas possibilidades.
1
'O Espelho' in Machado de Assis, Obra Completa v. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
2
Conforme a apropriação que fizemos desses conceitos sugeridos por Derrida a partir de sua leitura da obra de Freud.
Ver Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in
A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva,
2002, p. 221-223.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nesse sentido, J. B. Harley foi o único autor a propor uma leitura dos produtos
cartográficos capaz de ultrapassar os métodos e a interpretação costumeira dos
historiadores da cartografia, que visariam, segundo este autor, apenas investigar e
catalogar os mapas segundo suas características técnicas e de produção. Esta atitude,
segundo Harley, refletiria a adesão de seus cultores a um “positivismo cartográfico” que
deveria ser confrontado e substituído por uma interpretação baseada, por sua vez, numa
teoria iconológica e semiológica da natureza dos mapas.
3
Para esse fim, Harley proporia a utilização dos conceitos anteriormente
desenvolvidos por Erwin Panofsky para o estudo dos níveis dos temas ou significados
na arte,
4
visando com estes, identificar através dos elementos simbólicos e estruturais
dos mapas certas disposições qualificadas como “eminentemente retóricas”, as quais
seriam capazes de explicitar relações de ‘Poder e Saber’, conforme a definição
foucaultiana, bem como certos condicionamentos sociais.
5
Entretanto, ainda que reconheçamos a pertinência da teorização de Harley,
acreditamos que, por conta da grande abertura e universalidade de seus conceitos, esta
deva ter seu uso condicionado a análises e enfoques que, por sua vez, devam estar
orientados e direcionados por um método que permita perscrutar o símbolo a partir de
uma pesquisa do contexto que envolve a composição cartográfica, já que a entendemos,
de acordo com os conceitos de Schopenhauer, como um ato de representação que
objetiva a Vontade de certos indivíduos ou grupos.
Em nosso entender, este ato de representação está conectado a propósitos,
conveniências e circunstâncias que, para serem alcançados, demandariam tanto a
constituição de certas mecânicas de produção, quanto a consecução de certos processos
de escolha, cuja compreensão combinada permitiria uma leitura dos significados dos
elementos e das estruturas técnicas do mapa enquanto participantes do processo criativo,
a composição cartográfica, uma vez que sua efetivação está conectada diretamente à
3
Ver J. B. Harley, ‘Maps, Knowledge and Power’, e ‘Deconstructing the Map’ in The new nature of maps: essays in
the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001.
4
Erwin Panofsky, ‘Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao Estudo da Arte da Renascença’ in Significado nas
Artes Visuais São Paulo: Perspectiva, 1976.
5
No caso, Saber e Poder se implicam mutuamente: não existiria relação de poder sem a constituição de um campo
correlato de saber, assim como não existiria saber que não pressuponha e constitua relações de poder. Ver J. B.
Harley, ‘Text and context in the interpretation in early maps’ e ‘Silences and secrecy - The hidden agenda of
cartography in early Europe’ in
The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The
John Hopkins University Press, 2001, respectivamente p. 37 e p.87.
220
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
objetivação do ato de representação. Portanto, entendemos que o estudo da composição
do mapa pode ser tão ou mais significante que a interpretação do mapa em si.
6
Ainda, este método também permitiria trabalhar os textos referentes ao esforço
da composição cartográfica em relação com os produtos resultantes, o que pode
possibilitar leituras que não estão diretamente relacionadas com a utilização do mapa ou
com os efeitos de sua divulgação, mas com um contexto partilhado pelas dinâmicas da
mecânica de produção ou pelos processos de escolha, permitindo ao historiador, por
exemplo, inferir a episteme relativa a um determinado período, grupo ou lugar, objetivo
também perseguido por Harley, ainda que mais pontualmente.
7
Finalmente, falta-nos definir, utilizando os argumentos anteriores, que se o
mesmo ato de representação está relacionado a determinados propósitos, conveniências
e circunstâncias, insertos em determinada condição, este ato ou se objetiva através da
competição ou pelo ajustamento a outros atos também objetivados pela motivação, o
que, por sua vez, leva a estabelecer para o historiador novos lugares para a leitura de
contextos e referências da produção cartográfica.
8
O processo interno e o processo externo
O estudo do processo de produção cartográfico, será, portanto, constituído sobre
o método anterior, utilizando a premissa, desenvolvida nos capítulos precedentes, de
que o esforço de construção do Estado nacional e de produção da sua representação
cartográfica utilizou os mapas e as corografias dos séculos anteriores, adaptando-as à
narração de seu próprio passado e em prol de seus objetivos, visando assim estabelecer
uma legitimidade narrativa. Por meio desta, o espaço foi sucessivamente apagado e
reescrito em torno de um eixo vertical que ia de encontro a um corpo de indivíduos
capazes de constituir o Estado, por conseguinte, entendemos que a representação da
Nação incluirá também uma representação das ‘relações de força e de soberania’.
Ainda, é necessário explicar que, durante os séculos XVII e XVIII a cartografia
se constituiu numa escrita coletiva por excelência, organizada em torno da produção em
6
Em relação a teoria da representação e correlata objetivação da Vontade, ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do
Belo. São Paulo: Editora Unesp, 2003, cap. 2.
7
J. B. Harley, in The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins
University Press, 2001, p. 87-88.
8
Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo. São Paulo: Editora Unesp, 2003, cap. 2 e O Mundo como vontade
e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 56- 57.
221
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
escala e adotando práticas diversas e complexas, tornando necessário que a leitura do
processo de produção dos mapas seja feito através da apreensão de estratégias e táticas
que incluem tanto o agenciamento das técnicas e das condições da escrita quanto a
distribuição e atribuição de tarefas.
Nesse sentido, entendemos ser necessário distinguir na leitura dos mapas a
existência simultânea de dois processos de produção, um processo externo, relativo às
relações com as Instituições e o Estado, por conseguinte, a um ‘saber sobre o espaço’ e
outro processo interno, que diz respeito à natureza das práticas e procedimentos
cartográficos, ou seja, das classificações, generalizações, hierarquizações, divisões de
trabalho e formalização das decisões, que remete, portanto a um ‘saber cartográfico’.
Nesse sentido, utilizaremos a metáfora do conto ‘O Espelho’ de Machado de
Assis: segundo este, existiria uma dualidade na natureza dos objetos a ser pensados,
uma interioridade, equivalente, conforme Schopenhauer, à coisa-em-si, e uma
exterioridade, equivalente à representação. Nesse sentido, o objeto somente poderia ser
pensado conjuntamente, porquanto o pensamento não se dá somente em relação à coisa-
em-si, uma vez que esta já é intuição, já foi tornada experiência, já é também uma
representação do objeto mesmo esta consciência da completude das duas naturezas
foi que o Jacobina admirou, fardado, frente ao espelho.
9
Estes dois processos simultâneos se distinguiriam do que Harley definiu como
poder interno e poder externo, entendidos por esse autor como a contraposição de uma
instância de poder local e descentralizado em relação a uma outra, centralizada e
concentrada. Para Harley, a convivência entre estas duas instâncias faria parte das
relações de poder que penetrariam os interstícios da prática e da representação
cartográfica, permitindo assim que os mapas pudessem ser lidos como textos que
legitimariam a relação ‘Poder Saber’ de Foucault.
10
Contudo, entendemos em nossa idéia do processo interno e processo externo
que, além das relações apontadas por Harley, a construção da representação cartográfica
esteja sujeita, primeiramente, a um ‘saber sobre o espaço’, responsável pela elaboração
e reelaboração do espaço, entendido então, conforme Schopenhauer, como uma
construção contínua a partir de um lugar de representação. Em segundo lugar,
9
Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', in Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997, p. 145-147.
222
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
compreendemos que a representação cartográfica pode ainda ser transformada, alterada
ou limitada por circunstâncias inerentes às propriedades e características das técnicas e
procedimentos cartográficos, devendo-se estender ainda essa lógica às leituras daí
resultantes. Nesse sentido, deve-se salientar que o agenciamento das técnicas faz parte
de um processo de escolhas que não é apenas subjetiva, mas que também se constitui
num procedimento ligado às estratégias e táticas dos operadores das representações
cartográficas, sendo que estas, por sua vez, estão sujeitas ainda às capacidades técnicas
ou operacionais dos últimos.
Nesse sentido, ainda pretendemos que a interpretação semiológica e iconológica
não deva ser constituída isoladamente, mas entronizada no método, para que,
ultrapassando os aspectos imediatos do mapa, dê conta dos processos de objetivação do
ato de representação, permitindo mesmo a utilização dos recursos levantados pela
História da Cartografia tradicional. Em razão disto, a interpretação semiológica e
iconológica dos produtos cartográficos deve se basear nos significados percebidos
através do estudo das relações desenvolvidas entre o processo interno e o processo
externo, bem como da compreensão de sua inserção no problema geral da forma
cartográfica.
No caso da apropriação da cartografia por parte do Estado brasileiro no século
XIX, adiantaremos que as finalidades operacionais da narrativa ultrapassaram os
procedimentos técnicos da cartografia, ou seja, entendemos que as técnicas foram
agenciadas para que se facilitasse um medium para a entrada em cena do objeto no
mundo da representação. Assim, o ‘saber cartográfico’ constituiu, ele mesmo, parte da
operação de representação, visando-se uma inscrição do Estado no espaço. No caso,
utilizando-se a comparação da retórica com a representação feita por Schopenhauer, o
medium constituiu o objeto através de uma “dissimulação” de sua forma, uma vez que o
objeto tornar-se-ia a representação do sujeito mesmo.
11
Entretanto, se utilizarmos nossa idéia de processo externo e processo interno
para compreendemos a objetivação da inscrição do Estado no espaço, aquele medium,
que foi primeiramente entendido como condicionado, na medida o processo externo
agenciou as técnicas cartográficas, também é entendido como condicionante, na medida
10
J. B. Harley, ‘Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century,’ in in The New
Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p.
111-113.
11
Ver Arthur Schopenhauer, O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 47 e A
Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 48-49.
223
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
que certas características do processo interno, seja sua constituição autônoma, sejam as
limitações técnicas, imporem restrições à representação pura, constituindo-a no medium
como uma objetividade imperfeita da Vontade, que, em tese, deveria ser
complementada ou mesmo substituída por outras representações.
Finalmente, em relação ao medium, e novamente remetendo ao caso da
apropriação da cartografia pelo Estado, se as táticas ou estratégias dos operadores
exigirem um sacrifício intencional da forma, ou seja, se as finalidades operacionais
ultrapassarem as condições técnicas, pode produzir-se através do medium, uma
alteração do objeto não prevista pelos operadores, constituindo-se esta alteração do
objeto, ela mesma, como uma representação mais ou menos independente da
objetivação da Vontade, ou no caso, do espaço em produção.
Assim, o medium é entendido em nosso método como um facilitador da
apreensão da Idéia pelos outros, sendo que esta apreensão da Idéia será condicionada
pela natureza ou característica do medium, ligando-se, ainda, o processo interno ao
processo externo pelo gênio do operador.
12
Em respeito a importância do medium para a representação, podemos citar o
adendo de Schopenhauer à célebre discussão sobre a razão de não se representar o grito
do personagem ferido no grupo escultural de Laocoonte. Enquanto Winckelmann e
Lessing atribuíram tal característica, respectivamente, ao estoicismo do personagem ou
à incompatibilidade da beleza com a dor, para Schopenhauer a ação de gritar não fora
representada “pela simples razão de que o grito é inteiramente rebelde aos meios de
imitação da escultura”. Portanto, para Schopenhauer, era impossível tirar do mármore
um Laocoonte a gritar, entendendo assim, existirem limites para a representação, os
quais estariam impressos nas possibilidades mesmas do medium.
13
Portanto, para se entender a representação é necessário antes compreender as
técnicas que a originaram e as condições do gênio, já que este é dependente de uma
apreensão intuitiva das Idéias dos objetos e de uma intelecção das mesmas Idéias e
objetos, a fantasia.
14
12
O gênio é entendido por Schopenhauer como uma capacidade de conhecimento inata e que se encontra em diversos
graus em todos os homens, o que pressupõe lhe serem inerentes as habilidades da criatividade e do entendimento.
Ver Arthur Schopenhauer,
A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 83-87.
13
Arthur Schopenhauer, O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 46.
14
Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 61-65 e 166-169.
224
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Assim, a inscrição da representação do espaço nacional não se fez apenas pela
apropriação da cartografia pelo Estado: a inscrição da representação do espaço nacional
foi feita no cruzamento de diferentes processos externos e processos internos, com suas
dissimulações e alterações proporcionando distintas leituras e a conseqüente
necessidade de sua normatização, no caso, através do esforço de construção de uma
carta geral brasileira. Do mesmo modo, a utilização dessa representação pela
historiografia não foi determinada somente pela disponibilidade dos objetos
cartográficos: a cartografia foi, na maioria das vezes, o medium de um ‘saber sobre o
espaço’, que constituiu o mapa como um lugar privilegiado de sua leitura no centro
mesmo da narrativa historiográfica.
O processo cartográfico nos séculos XVII e XVIII
Até o século XIX o método usual para a reprodução de mapas e Atlas era o da
gravação em cobre: os mapas manuscritos tinham seus detalhes copiados para uma
placa desse material, na qual eram gravados em alto-relevo propiciando-se assim uma
matriz de impressão passível de receber alterações e capaz de permitir seguidas
reimpressões. Nesse sentido, estima-se que uma matriz de cobre bem cuidada e que
recebesse uma manutenção regular do traçado de seu relevo podia ser utilizada até três
mil vezes, possuindo comumente uma durabilidade capaz de ultrapassar a centena de
anos.
15
Entretanto, a gravação em cobre era um processo caro, trabalhoso e altamente
especializado e, por conta destas características, o processo cartográfico consolidou-se,
nos séculos XVII e XVIII, apenas onde o Estado foi capaz de arcar com seus custos ou
onde existisse um mercado capaz de atrair empreendimentos particulares que
possibilitassem, sobretudo, a manutenção dos melhores profissionais.
Mas, ainda que se estabelecesse nesse período uma nova tradição no processo
cartográfico com uma separação e uma estandardização rigorosa das tarefas entre
astrônomos, desenhistas, gravadores e impressores, que consolidou o controle do
processo interno nas mãos dos editores (o que pode ser exemplificado, inclusive,
15
Coolie Verner, ‘Copperplate Printing,’ in Five centuries of map printing. Woodward, David. Chicago: University
of Chicago Press, 1975, p. 72.
225
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
através da prevalência do anonimato no processo cartográfico),
16
alguns cartógrafos,
como Gerhard Mercator, John Thornton e John Arrowsmith foram capazes de dominar
todos as instâncias do processo cartográfico, estabelecendo-se privativamente e
disputando o mercado de Mapas e Atlas com trabalhos de sua autoria.
17
Portanto, uma das principais características da cartografia antes do século XIX, é
a existência de diferentes centros fora do controle direto do Estado, capazes de produzir
em escala e em disputa pelo controle de um mercado, em busca de uma lucratividade
que se devia ao fato de que os produtos cartográficos não eram apenas utilizados como
fonte de informação para o Estado ou para o investidor, mas também eram parte de uma
cultura de consumo que se estabeleceu no período, impulsionada pelas transformações
culturais decorrentes da difusão da tipografia e das notícias das viagens transatlânticas,
popularizadas pelas corografias e narrações dos viajantes.
18
O desenvolvimento da gravação em cobre foi decisivo para o estabelecimento
das condições desse novo mercado, proporcionando que a cartografia se tornasse,
durante o século XIX, parte mesmo da cultura material, com seus produtos circulando
nas mais variadas formas, tanto como Atlas e mapas de diversos tamanhos quanto como
decoração em utensílios e vestimentas. Contudo, essa popularização dos produtos
cartográficos e corográficos, que compunham uma cultura de elite até o século XVIII,
somente se tornou possível pelo desenvolvimento de uma nova técnica nas primeiras
décadas do século XIX: a litografia.
O processo cartográfico no Brasil do início do século XIX
A técnica litográfica consistia na escrita diretamente sobre uma matriz de pedra
calcária ou zinco ou pelo transporte dessa escrita para a pedra através de uma folha
especial, quando então utilizava-se um processo químico que tornava a sua superfície
capaz de permitir sucessivas impressões.
16
J. B. Harley, ‘Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century,’ in The new
nature of maps: essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 113-
115.
17
Coolie Verner, ‘Copperplate Printing,’ in Five Centuries of Map Printing, Woodward, David. Chicago: University
of Chicago Press, 1975, p. 70.
18
Ver ‘Pictorial prints and the growth of consumerism: class and cosmopolitanism in early modern culture’ e ‘A new
world picture: maps as capital goods for the modern world system’ in Chandra Mukerji,
From graven images:
patterns of modern materialism. New York: Columbia University Press, 1983, p. 30-130.
226
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Além de tornar a composição dos mapas mais rápida, pois exigia uma menor
especialização de tarefas, ao eliminar, por exemplo, a obrigação que estes fossem
desenhados em reverso como na gravação em cobre, a litografia também possibilitou
uma diminuição acentuada dos custos materiais na cartografia. Estas características
tornaram possível, no século XIX, disponibilizar os produtos cartográficos a um público
imensamente maior e mais diversificado que nos séculos anteriores, ao mesmo tempo
que permitiriam que países sem tradição de produção cartográfica em escala, como era o
caso de Portugal e depois do Brasil, pudessem desenvolver uma incipiente produção
cartográfica em escala.
A criação do Arquivo Militar, já no mesmo ano da chegada da Corte ao Brasil,
serve para aferir a existência de uma percepção, no bojo da transferência do Estado
português, de que a produção cartográfica em escala poderia coadjuvar a ação do Estado
trazendo vantagens administrativas e servindo como um instrumento prático para a
centralização da autoridade. Nesse sentido, essa instituição teria a função de centralizar
a guarda, a organização e a classificação dos produtos cartográficos, para que fosse
possível então, utilizando-se os critérios da utilidade e da necessidade administrativa,
escolher o material a ser vulgarizado.
O principal objetivo dessa iniciativa foi o de recolher todos as cartas, os mapas
topográficos e os planos iconográficos trazidos de Portugal para que fossem juntados
aos que se encontravam dispersos no Brasil entre várias repartições, acabando-se assim
com a descentralização documental que imperava até então nas Secretarias de Estado
portuguesas. Entretanto, essa primeira iniciativa de centralização cartográfica no Brasil
estaria fadada ao fracasso por dois motivos; primeiro, porque a organização de um
arquivo cartográfico único seria paulatinamente abandonada, sendo que, durante o
Segundo Reinado, se constituiriam ao lado do Arquivo Militar outros dois grandes
arquivos cartográficos, um na Secretaria de Estrangeiros e outro na de Obras Públicas.
Em segundo lugar, grande parte da documentação que fora reunida no Arquivo Militar,
retornou a Portugal junto com D. João VI em 1821, sem que se distinguisse critério
algum nesse repatriamento, o que tanto acarretou a permanência no Brasil de muitos
produtos cartográficos relativos a Portugal e seus domínios, quanto a ida para Portugal
de muito do que fora produzido sobre o Brasil. Este problema somente seria sanado em
1867 com uma permuta documental efetuada pela ‘Comissão investigadora de Mapas e
Memórias concernentes ao Brasil’, negociada e acompanhada em Portugal diretamente
227
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
por Duarte da Ponte Ribeiro, que também foi o responsável pela seleção desses
documentos nos arquivos dos dois países.
Embora se pensasse, quando da criação do Arquivo Militar, em utilizar a
gravação em cobre na produção cartográfica em escala, as vantagens da litografia se
tornariam óbvias, tanto para o Estado português quanto para seu sucessor, a partir da
divulgação dessa técnica no final da segunda década do século XIX. Essa opção se
consolidou na prática com a criação em 1825 da Oficina Litográfica do Exército,
quando se importaria todo o material necessário a sua operação junto com dois técnicos
estrangeiros responsáveis por sua utilização, os quais deveriam atuar também como
professores junto a um corpo de aprendizes composto por soldados do Exército.
Entretanto, ainda que com estas iniciativas o Estado buscasse resguardar para si
o controle da vulgarização dos mapas, não foi possível consolidar uma centralização da
produção cartográfica, uma vez que em Portugal este processo não havia se
transformado em consonância com as mudanças que acompanharam o desenvolvimento
da cartografia nos séculos anteriores, a saber, a especialização e a estandardização das
tarefas cartográficas. Nesse sentido, preservar-se-iam no Brasil as condições
tecnológicas e culturais herdadas de Portugal, as quais impuseram ao processo de
produção a composição cartográfica manuscrita, com suas características de
individualização, setorização, sigilo e repetição de padrões, onde cada cartógrafo era
acima de tudo o membro de uma escola e um transmissor de padrões estabelecidos.
19
Em conseqüência, a parte mais representativa da produção cartográfica em escala no
Brasil durante o século XIX ou foi uma reprodução direta do manuscrito ou foi uma
composição sob as técnicas da reprodução manuscrita, ou seja, submeteu-se o medium
litográfico às regras, às limitações e aos condicionamentos culturais do medium
manuscrito.
Por outro lado, o controle da produção cartográfica pelo Estado seria dificultado
pela constante defecção dos quadros da Oficina para a atividade privada, uma vez que o
custo e a adaptabilidade da técnica litográfica a outras tarefas tornavam este ofício
muito lucrativo. Mesmo assim, alguns poucos profissionais bastante qualificados
fizeram parte dos quadros da Oficina, como Pedro Torquato Xavier de Brito, autor da
redução da Carta do Império de 1856 e Carlos Abeleé, que produziu a ‘Coleção dos
19
A respeito da influência dos estilos e da transmissão de padrões na cartografia manuscrita, ver Alfredo Pinheiro
Marques, ‘The dating of the oldest Portuguese charts,’ in Imago Mundi, 41, 1989, p. 87-97.
228
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
figurinos dos uniformes dos corpos do Exército’, significativa como demonstração do
controle pela Oficina da técnica de impressão litográfica a cores, a chamada cromo-
litografia.
20
Embora muito criticados na época, estes profissionais seriam responsáveis
por reproduções litográficas de bom nível técnico, como, as cartas dos rios Uruguai, Içá
e Javari e os Mapas Provinciais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro,
Mato Grosso, Sergipe, Piauí, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Maranhão e Paraná.
Entretanto, cabe salientar algumas cifras em relação à Oficina: em primeiro
lugar, os mapas e cartas compuseram apenas uma parte muito restrita de sua produção,
uma vez que apenas cerca de 3% do acervo do Arquivo Militar no século XIX era
composto por aqueles itens, sendo o restante integrado em pouco mais de 90% por
plantas e projetos. Em segundo lugar, pode-se observar nesse rol, que a participação de
documentos anteriores ao século XIX é minoritária compondo apenas cerca de 10% do
total do mesmo acervo.
Assim, conclui-se que no século XIX, embora a produção cartográfica do
Exército tenha sido importante, compreendida enquanto tal o somatório dos esforços de
seus oficiais engenheiros, do Arquivo Militar e da Oficina Litográfica, ela se concentrou
mais na elaboração de plantas e projetos em geral.
Em terceiro lugar, observe-se que a produção do Exército apresentou maior
atividade entre 1850 e 1889, com seu apogeu entre 1860 e 1889, data a partir da qual a
sua produção decresce entre cinco e até sete vezes. Nesse período, as Províncias do Rio
de Janeiro e do Rio Grande do Sul foram o foco da produção cartográfica do Exército,
correspondendo, respectivamente, por 26% e 16% de todos os projetos e plantas,
seguidas de longe pelas Províncias da Bahia e do Pará com 9%.
21
Por conseguinte, dada
a natureza dessa produção e se entendermos que sua origem foi a necessidade do Estado
em utilizar diretamente a produção cartográfica no esforço de governo, podemos
deduzir que essas províncias concentraram os interesses da administração e os esforços
para a centralização da autoridade.
20
Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘História da Litografia’. IHGB, Lata 26 Pasta 1; Pedro Torquato Xavier de Brito,
‘Notícia acerca da introdução da arte litográfica e do estado de perfeição em que se acha a cartografia no Império
do Brasil, in ‘
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXIII, n° 41, parte II, 1870.
21
Estes dados foram tabulados a partir da descrição pormenorizada dos produtos cartográficos constantes do acervo
pertencente ao Arquivo Militar, realizada por Cláudio Moreira Bento, pouco antes deste ser confiado ao Arquivo
do Exército no Rio de Janeiro. Ver Cláudio Moreira Bento, ‘Cartografia histórica do Exército,’ in
Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vol. 41, Abr. - Jun. 1985.
229
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Em quarto lugar, constata-se que o esforço o processo de produção de vários dos
mapas provinciais escapou do controle direto do processo externo e passou às mãos de
particulares, como, por exemplo, no caso do Mapa da Província do Rio de Janeiro de
1863, que foi elaborado por Conrado Jacob de Niemeyer e Pedro de Alcântara
Bellegarde
22
e dos mapas das províncias do Paraná, Espírito Santo e Santa Catarina, os
quais foram impressos pelo Imperial Instituto Artístico. Ainda, a lucratividade do
mercado litográfico permitiu que a iniciativa particular se dedicasse também à
impressão e ao comércio de vários outros tipos de mapas, como, por exemplo, a ‘Planta
da Cidade do Rio de Janeiro’ produzida por Steinmann em 1831 e o ‘Mapa Geral do
Império do Brasil’, composto por J. H. Leonhart em 1851.
Portanto, se relacionarmos estes exemplos com as cifras anteriormente citadas e
os problemas acerca da manutenção dos quadros do Arquivo Militar, confirma-se no
Brasil tanto a tradição européia de descentralização da produção cartográfica de escala,
bem como a constituição de um mercado capaz de suportar uma produção litográfica
independente e em contato com o exterior, com a subseqüente necessidade do Estado
em se adaptar às características do mercado, o que resultaria no esvaziamento das
atribuições e funções do Arquivo Militar.
O processo de produção e a Carta Niemeyer de 1846
Na década de 1840, a consolidação de um teatro da narrativa bem definido, a
descentralização da produção cartográfica e o esvaziamento das funções do Arquivo
Militar, fizeram com que a primeira Carta Geral do Brasil não nascesse a partir de uma
iniciativa do Estado, mas de uma contribuição para o debate do IHGB. Composta por
Conrado Jacob de Niemeyer durante os anos de 1842 a 1846, a ‘Carta corográfica do
Império do Brasil’ estabeleceu padrões técnicos e estéticos que seriam endossados tanto
pelas cartas gerais posteriores quanto pelos demais mapas, condicionando-se assim o
processo externo às interpretações e limitações do processo interno.
Nesse sentido, a composição da Carta de 1846 envolveu um processo de escolha
do padrão técnico que pode ser caracterizado em três níveis de apreensão: o primeiro
destes níveis, relacionado à inserção desta Carta no universo conhecido das
representações cartográficas; o segundo, relacionado com a escolha do repertório a ser
22
Pedro de Alcântara Bellegarde & Conrado Jacob de Niemeyer, Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro
(Relatório). Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Artístico, 1863.
230
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
utilizado em sua composição; o terceiro, relacionado à divulgação e exposição da forma
do espaço nacional que foi percebida e extraída pela intuição de Niemeyer.
Assim, em relação ao primeiro nível, Niemeyer procurou inicialmente basear sua
representação do território brasileiro sobre o que chamou de “Mapa Geral”, ou seja, o
produto resultante da reunião dos traçados de duas cartas estrangeiras, a ‘Carta da
América Meridional’ da casa editorial Arrowsmith e a ‘Carta da Costa brasileira’ do
Almirante Roussin, buscando legitimar sua carta frente aos atlas e outras representações
européias e norte-americanas.
Em relação ao segundo nível, o “Mapa Geral” foi modificado e complementado
através da consulta a diversos mapas, Roteiros, Memórias e Descrições, sendo que,
dentre este último tipo de corografias textuais, Niemeyer utilizaria especialmente os
trabalhos de Cerqueira e Silva, Cunha Mattos e Aires de Casal.
23
Os limites nacionais
foram inscritos sobre o produto resultante segundo o ‘Programa Geográfico’ de
Pinheiro, sendo que a divisão das províncias foi feita de acordo com a ‘Corografia
Brasílica’ de Aires de Casal. No caso, Niemeyer procurava legitimar sua Carta pela
utilização dos trabalhos cartográficos acreditados no debate do IHGB e pela remissão ao
cânone ali consagrado.
Em relação ao terceiro nível, o processo de escolha do padrão estético derivou
da decisão de se compor o “Mapa Geral” a partir da redução e transformação da sua
base de dados a uma escala (1:3.000.000) que possibilitasse a composição da Carta
Geral em quatro folhas iguais, de acordo com a maior capacidade de impressão da
litografia mais bem aparelhada no Brasil naquele momento, a Litografia Rensburg,
possibilitando assim que a Carta pudesse atingir o tamanho de 1,50 m de altura por 1,50
m de largura.
A decisão de orientar todo o projeto cartográfico da Carta de 1846 pelo tamanho
da maior folha que fosse possível imprimir foi tomada por Niemeyer em função de três
objetivos: primeiro, tornar certos detalhes distinguíveis em relação a outros e “dignos de
atenção”, especialmente aqueles relativos aos limites com o Paraguai; segundo, diminuir
o problema dos erros através do maior dimensionamento dos elementos geográficos,
23
Respectivamente, a ‘Corografia Paraense’, a ‘Corografia histórica da província de Goiás’ e a ‘Corografia
Brasílica’. Ver: Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva,
Corografia Paraense ou Descrição física, histórica e política
da Província do Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833; Raimundo José da Cunha Matos, ‘Corografia
histórica da Província de Goiás,’ in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXVII, n° 48,
1874; Manoel Ayres de Casal,
Corografia Brasílica ou Relação Histórico-geográfica do Brasil. São Paulo: Edições
Cultural, 1943.
231
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
especialmente da hidrografia; terceiro, equiparar a representação cartográfica do espaço
nacional às cartas de grande dimensão impressas na Europa.
24
Quanto a este último objetivo, o modelo para Niemeyer eram justamente as
grandes cartas gravadas pela casa editorial Arrowsmith, as quais chegavam a medir até
dois metros de altura por um metro e quarenta de largura (ver Figura 23). Estas cartas
eram também impressas em várias folhas e juntadas para formar o produto final, o qual
se destinava a ser exposto emoldurado em grandes paredes, geralmente em órgãos
públicos e escolas, diferentemente dos demais mapas que simplesmente eram enrolados
após a consulta.
Portanto, o padrão estético inaugurado por Niemeyer buscava não apenas
formatar e inserir o Estado brasileiro no espaço, mas ainda construir sua presença,
centralidade e monumentalidade através da imposição de sua representação,
produzindo-se assim um mediador que buscava interagir nas relações do indivíduo com
o meio social e que seria imposto por um ordenamento das próprias relações do Estado
com o indivíduo.
25
As funções específicas deste mediador derivam das transformações
culturais e tecnológicas do século XIX que aumentaram a distinção entre criação e
produção
26
ao dinamizar os processos de construção e operação da representação,
possibilitando a sua constituição enquanto um produto do artifício, ou seja, como uma
representação tornada ilimitadamente disponível e que adquire novas funções,
justamente porque essa característica se adequava às estratégias do Estado.
Finalmente, a Carta Niemeyer expressa também as ‘relações de força e de
soberania’ que constituíram o Estado, por meio da inscrição ou da negação da
24
‘Carta de Conrado Jacob de Niemeyer ao IHGB oferecendo a Carta Corográfica do Império Brasileiro’, 1846.
IHGB, Lata 510, Pasta 5; ‘Nota de Conrado Jacob de Niemeyer, dizendo estar quase pronta a carta corográfica do
Império do Brasil’, 1844. IHGB, Lata 142, Pasta 49 e ‘Carta de Jacob de Niemeyer para o Visconde de São
Leopoldo’, em 20/9/1843 in Geraldo José Pauwels,
Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do
Brasil e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, p. 7-8.
25
Procuramos aqui adaptar a idéia de mediador de Abraham Moles, desenvolvida por este autor para explicar as
transformações da representação e de sua operação nas sociedades de consumo. Ver Abraham Moles,
O Kitsch.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1986, p. 12-19.
26
Esta distinção pode ser pensada também a partir da teorização de Abraham Moles, no sentido de que o processo de
criação seria correlato à idéia de introdução, invenção e produção ao ato de copiar, reproduzir, e que as
transformações do século XIX dinamizaram a produção substituindo a criação por uma cadeia operatória, mas,
entendendo-se esta como um desdobramento da operação da representação em vários níveis visando a reprodução
em escala e não necessariamente como parte de um processo de alienação. Ver Abraham Moles,
O Kitsch. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1986, p. 15-22.
232
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
inscrição
27
dos elementos disponibilizados pelo ‘saber sobre o espaço’ sobre o
território, através de “alegorias” ou “representações simbólicas” remetidas a uma
‘linguagem sobre o espaço’, por conseguinte, condicionadas historicamente.
28
FIGURA 23 CARTA MURAL ARROWSMITH
Fonte: Aaaron Arrowsmith, South America. London: A. Arrowsmith, 1814.
Por exemplo, na Carta Niemeyer a utilização do meridiano que passa pela cidade
do Rio de Janeiro é a origem de todo o sistema de coordenadas, refletindo a questão da
27
Essa idéia corresponde aproximadamente ao que Harley denomina de ‘Silêncios’ [Silences]: para este autor, o
espaço vazio nos mapas estaria ligado a um discurso político e à legitimidade de seu status, enquanto que em nossa
idéia da negação da inscrição, o ‘Silêncio’ não corresponderia a um vazio mas, a um espaço preenchido por uma
continuação ou um desdobramento daquele discurso. Ver, J. B. Harley, ‘Silences and Secrecy’, in
The new nature
of maps: essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 99-100.
28
Arthur Schopenhauer identifica a historicidade das ‘alegorias’ e ‘representações simbólicas’ como parte mesmo do
problema da compreensão da Representação. Ver Arthur Schopenhauer,
O Mundo como vontade e representação.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 50.
233
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
centralização do Estado e distinguindo-se do que então era utilizado usualmente nos
outros mapas, a saber, referenciados pelos meridianos de Paris ou de Londres.
Por outro lado, o destaque dado à divisão provincial pela utilização do colorido
quase que a equipara à divisão internacional. Este destaque pode ser entendido tanto
pela ênfase com que o autor que serviu de base à divisão provincial, Manoel Ayres de
Casal, trata da questão, quanto pela sobrevivência das construções locais de espaço.
Exemplo disso, é que apesar de outras cartas da mesma época disporem mapas menores
ou mesmo desenhos dentro ou ao redor do mapa principal, na Carta Niemeyer as plantas
das capitais das Províncias do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará e a planta da Corte verdadeiramente
emolduram o mapa do Brasil.
Finalmente, podemos compreender as distintas implicações sociais e políticas da
inscrição do território por meio das ‘relações de força e de soberania’, especialmente
através de certos exemplos de sua representação na Carta Niemeyer, como no registro
do território da periferia: “Gentio Jacundá tratável e que fala a língua geral”; “Sertão
ainda desconhecido e sem cultura”; “Terrenos inteiramente desconhecidos e ocupados
por diversas tribos de índios selvagens que embaraçam a navegação fluvial” e “Paritins,
Andiras, Araras, Mundrucus e outras nações - Em grande parte domesticados”.
O processo de produção e a construção concorrencial
Embora já tenhamos desenvolvido nos capítulos anteriores a idéia de que a
percepção do espaço brasileiro pelos atlas estrangeiros influenciou a construção do
espaço nacional e de que a cartografia brasileira se desenvolveu em concorrência com
essas representações, ou seja, numa construção concorrencial,
29
a ligação dessas
representações com as cartas gerais brasileiras deve ser pensada também segundo os
desdobramentos das operações de representação, que estudaremos através de nossa idéia
de processo interno e processo externo e através dos problemas da reprodução em
escala.
Inicialmente, os padrões estéticos dos Atlas estrangeiros diferiam, sobretudo, por
conta da competição pelo mercado cartográfico, uma vez que as grandes editoras
29
Ver nesta tese o problema da disseminação e da construção concorrencial nos capítulos ‘O tempo do espaço e os
espaços do tempo’, ‘Rumo à ilha deserta’ e ‘O mapa antes do território’.
234
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
buscavam tanto identificar novas técnicas que permitissem o barateamento dos custos
quanto consolidar um estilo de representação que lhes permitisse diferenciar o seu
produto final dentre o dos concorrentes, atendendo-se ainda a certas demandas de
consumo. Por conseguinte, o meio técnico e as escolhas decorrentes de sua utilização
passariam a ter uma importância capital por emprestar ao produto cartográfico
vantagens competitivas no mercado, sendo que o custo e a forma podiam importar mais
que a qualidade e a informação.
No primeiro caso, a litografia seria a escolha da maioria da casas editoriais no
início do século XIX como a Arrowsmith e a Brué, que já produziam mapas e atlas
litografados desde meados da década de 1830,
30
conseguindo, deste modo, ainda que ao
custo do sacrifício da qualidade dos atlas, baratear seus preços de venda, popularizando
seus produtos. Por conta do menor custo e também pela rapidez de composição, a
litografia permitiu a essas casas editoriais lançar produtos que possuíam uma
obsolescência rápida, como os mapas de ferrovias,
31
e ainda atender à demanda por uma
atualização constante dos produtos cartográficos ocasionada pela expansão européia
sobre a África e a Ásia.
A utilização da litografia permitiria também o surgimento de edições em fac-
símile de antigos mapas ou atlas, possibilitando assim sua popularização e divulgação,
sendo que a primeira iniciativa feita nesse sentido foi a de Manuel Francisco de Barros,
o Visconde de Santarém, que publicou entre 1840 e 1849, em francês e português, três
edições sucessivamente aumentadas e revistas da ‘Memória sobre a prioridade dos
descobrimentos portugueses na costa de África Ocidental’, patrocinadas e financiadas
pelo estado português, ainda que seu autor vivesse exilado em Paris. A partir destes
mapas, sintomaticamente chamados por Barros de “Monumentos”, dever-se-ia constituir
uma memória da presença portuguesa no continente africano, balizando-se, assim, a
ação diplomática de Portugal através de uma História da Cartografia.
32
Nesse sentido, a
30
Por exemplo: South America. London: John Arrowsmith, 1838; A. Bruè, Carte du Brésil. Paris: Chez l’Auteur,
1826.
31
Walter W. Ristow, ‘Litography and maps’, in Five centuries of map printing, Woodward, David. Chicago:
University of Chicago Press, 1975, 102.
32
A ‘Memória sobre a prioridade dos descobrimentos portugueses na costa de África Ocidental, para servir de
ilustração á «Crônica da Conquista da Guiné» por Azarara’, publicada em Paris no ano de 1841, foi ampliada em
1842 sob o nome de ‘Recherches sur la priorité de Ia découverte des pays situés sur la côte Occidental d'Afrique,
au-delà du cap Bojador, et sur les progrés de la science qéographique, aprés les navigations des portugais au XV
siécle, acompagnées d'un Atlas composé de mappe-mondes, et de cartes pour le plupart inedites, dressées depuis le
XI jusqu'au XVII siècle’.
235
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘Memória’ de Barros fazia parte de um projeto maior que incluía o estabelecimento de
uma História Diplomática como recurso da argumentação diplomática, através da
publicação de todos os tratados e convenções de Portugal.
33
Entretanto, os atlas gravados ainda sobreviveriam até o final do século, pois
alguns grandes editores só adotariam a litografia mais tarde, como foi o caso de A. K.
Johnston em 1846, de George Philip em 1855 e de John Bartholomew, em 1880.
34
A
utilização da cor se constituiu como um dos fatores determinantes para a diferenciação
dos estilos de representação cartográfica nos atlas, permitindo, em larga medida, que a
gravação em cobre fosse capaz de sobreviver à litografia.
Um destes exemplos é caso dos mapas e atlas gravados totalmente em cores
pelos editores americanos Mitchell e Finley entre as décadas de 1820 e 1840,
35
que
podem ser distinguidos imediatamente dos demais atlas do período ou posteriores,
mesmo por um observador casual, já que a maioria dos atlas somente utilizava a cor
para distinguir os limites internos e as fronteiras entre os Estados (ver Figura 24).
36
Este estilo de representação foi possível porque a utilização da cor não
implicava num aumento muito grande do custo dos atlas gravados, raramente
ultrapassando um quarto do preço total, uma vez que esse processo era em grande parte
manual, resultando da utilização de trabalhadores temporários. Por outro lado, a
litografia não conseguia lidar satisfatoriamente com a aplicação da cor em grandes
áreas, por conta da incompatibilidade entre as tintas a óleo utilizadas na base dos mapas
e as tintas à base de água utilizadas para a cobertura de cor, garantindo-se, assim, a
33
Esta iniciativa incluía a publicação da obra de José Ferreira Borges de Castro - 'Coleção dos tratados, convenções,
contratos e atos publicados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente' publicada
entre 1856 e 1879; e dois outros trabalhos da autoria de Barros, o 'Quadro elementar das relações políticas e
diplomáticas de Portugal', que cobria em 19 volumes as relações com a Espanha, Inglaterra, França e o Vaticano; e
o 'Corpo diplomático português', em 12 volumes, contendo todos os documentos diplomáticos entre Portugal e
esses países desde o princípio da monarquia até o século XIX. Ver
Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico,
Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume VI, Lisboa: João Romano Torres, 1904, p.
602-606 e Walter W. Ristow, ‘Litography and maps’, in
Five centuries of map printing, Woodward, David.
Chicago: University of Chicago Press, 1975., p. 97-99.
34
Walter W. Ristow, ‘Litography and maps’, in Five centuries of map printing, Woodward, David. Chicago:
University of Chicago Press, 1975, p.100. Segundo Jeremy Black, Johnston adotaria a litografia em 1865, e Philip
em 1846. Jeremy Black,
Maps and History - Constructing Images of the Past. New Haven: Yale University Press,
1997, p. 49.
35
Por exemplo: A New American Atlas. Philadelphia: Anthony Finley, 1826; A New Universal Atlas. Philadelphia:
S. Augustus Mitchell, 1846.
36
No caso do exemplo da Figura 22, note-se a diferença de quase cinqüenta anos entre os dois atlas, no caso,
observe-se que a carta de Martin de Moussy fazia parte também do primeiro atlas da Argentina que teve suas
matrizes vendidas para a casa editorial Phillips.
236
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
manutenção de um nicho de mercado para os atlas gravados, especialmente entre os
consumidores de maior poder aquisitivo.
37
Ainda, a construção concorrencial das cartas gerais brasileiras deve ser pensada
levando-se em conta a necessidade do processo externo em contrapor uma
representação eficaz do espaço nacional às produções cartográficas dos Estados
limítrofes. Esta idéia de eficiência da representação cartográfica, está relacionada aos
problemas anteriormente abordados, ou seja, as cartas gerais deveriam ser compostas
dentro de uma estética e um padrão inseridos nos estilos de representação dos grandes
editores estrangeiros e utilizando a reprodução em escala a fim de divulgar sua versão
do espaço.
Assim, a primeira representação cartográfica de um Estado sul-americano foi o
atlas da Colômbia de 1827, confeccionado por Jose Manuel Restrepo e impresso através
da técnica de gravação em cobre, utilizando a cor apenas para distinguir os limites
departamentais e nacionais, os quais nesse momento incluíam ainda a Venezuela e o
Equador.
38
Dessa tradição surgiriam duas outras produções, a primeira delas relativa à
Venezuela e confeccionada por Agustín Codazzi em 1840 utilizando a técnica da
litografia, mas totalmente colorida à mão,
39
que, inclusive, antecedeu em seis anos o
primeiro atlas produzido nos Estados Unidos através dessa técnica. A segunda daquelas
produções foi a edição oficial dos mapas da Colômbia, publicada em 1864 sob a direção
de Tomás Cipriano de Mosquera e que se aproveitava dos dados reunidos entre 1850 e
1859 pela ‘Comisión Corográfica’, responsável por dez expedições ao interior do país,
levadas a cabo também por Agustín Codazzi, agora exilado na Colômbia. No ano
seguinte, seria ainda publicado o Atlas do Peru, confeccionado por Mariano Felipe Paz
Soldan e litografado em preto e marrom, mas que inovadoramente introduzia um novo
estilo de representação, o sombreado, para destacar o relevo.
40
Esses condicionantes permitem, por exemplo, explicar a manutenção e o
aprimoramento dos padrões estéticos da Carta Geral de 1846 nas cartas gerais
37
Ulla Ehrensvärd, ‘Color in Cartography: a Historical Survey’, in Art and Cartography - Six Historical Essays,
Woodward, David. Chicago: University of Chicago Press, 1987, p. 139-141.
38
Jose Manuel Restrepo, Historia de la revolucion de la Republica de Colombia, por Jose Manuel Restrepo,
Secretario del Interior del poder ejecutivo de la misma Republica. Paris, Libreria Americana, 1827.
39
Atlas fisico y politico de la Republica de Venezuela dedicado por su autor, el Coronel de Ingenieros Agustín
Codazzi al Congreso Constituyente de 1830. Caracas: Agustín Codazzi; Paris: Thierry Freres, 1840.
40
Mariano Felipe Paz Soldan, Atlas geografico del Peru, publicado a expensas del Gobierno Peruano, siendo
Presidente el Libertador Gran Mariscal Ramon Castilla, por Mariano Felipe Paz Soldan. Paris: Imprenta de Ad.
Laine y J. Havard, 1865.
237
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
brasileiras posteriores, tanto em relação à dimensão (possuiriam em média 1,36 m de
altura por 1,40 m de largura) quanto em relação à utilização da cor, ainda que estes
padrões tornassem extremamente difícil sua composição e produção, por conta de exigir
um detalhamento geográfico muito aquém dos conhecimentos que até então se possuía e
de se necessitar de uma qualidade técnica impossível de ser alcançada por quase todas
as litografias brasileiras e pelo Arquivo Militar, que teve que se conformar doravante
em imprimir apenas as ‘Reduções’, que eram reproduções diminuídas,
proporcionalmente, do produto original, possuindo, em relação às cartas gerais,
aproximadamente um terço de suas dimensões.
Este problema pode ainda ser exemplificado pela eficácia das representações
cartográficas dos atlas e das produções cartográficas dos países vizinhos: a ‘Carta da
América Meridional’ publicada pela casa editorial Arrowsmith, foi escolhida pela
‘Comissão Investigadora de Limites’ como principal instrumento para a análise dos
limites brasileiros em 1837 e para basear tecnicamente a Carta Niemeyer de 1846,
também por conta da eficácia de sua divulgação, comprovada pela cultura material do
período, já que era comumente estampada em lenços pelos ingleses.
41
Outro mapa, a
‘Carta da América do Sul’, inclusa no Atlas Finley de 1833, foi defendido pelo governo
da Bolívia como devendo ser o documento ajuizador das questões de limites com o
Brasil, porque, além de ter sido impressa por uma nação amiga, separava com diferentes
cores a extensão e limites dos novos Estados.
42
Finalmente, como já vimos, as
discussões de limites entre o Brasil e a Venezuela em 1839 foram acordadas, não sobre
um esboço comum ou um mapa proveniente de um terceiro país, mas sobre uma
Redução do mapa oficial daquela República.
Portanto, por conta da necessidade de concorrer eficientemente com as outras
representações de espaço, a inscrição do Estado no espaço teve que acompanhar os
estilos de representação dos atlas, mapas e corografias e utilizar métodos de reprodução
em escala para sua divulgação, ainda que estas características não correspondessem ao
desenvolvimento da cartografia no Brasil. Este problema conduziria uma tensão
permanente entre o processo externo e o processo interno, resultando em certas
41
José Saturnino da Costa Azevedo, ‘Memória sobre os limites do Brasil ao Sul e Oeste’, 1837. AHI, Lata 268 Maço
2, p. 10 e 16.
42
AHI, Legações estrangeiras, Bolívia, Nota de 5/11/1834, citada em José Antônio Soares de Souza, Um diplomata
do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, nota 162.
238
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
escolhas e estratégias na operação da narrativa e no processo de produção das cartas
gerais, os quais trabalharemos a nos próximos itens deste capítulo.
FIGURA 24 COMPARAÇÃO ENTRE ATLAS COM MAPAS
GRAVADOS E ATLAS COM MAPAS LITOGRAFADOS
Fontes (da direita para a esquerda): ‘South America’, in
A New American Atlas. Philadelphia: Anthony Finley,
1826; Martin de Moussy, 'Carte de l'Amerique du Sud' in
Maps of America, S/lugar: Phillips, 1873.
O novo regime da narração
Como vimos no capítulo anterior, a ‘Comissão de Limites’ foi esboçada em
1850 por Paulino José Soares de Sousa em meio ao debate entre a ‘norma narrativa’ e a
‘derivação’ como um projeto destinado a recolher subsídios documentais que
possibilitassem a composição de uma representação cartográfica da ‘norma narrativa’ e
que permitissem acompanhá-la de uma construção narrativa das origens, a “exposição
histórica”.
43
Diferentemente de Niemeyer e dos padrões estéticos de sua Carta Geral, Paulino
José Soares de Souza, José Antônio Pimenta Bueno e Duarte da Ponte Ribeiro
entendiam então que a representação cartográfica decorrente dos esforços da Comissão
43
Ver capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
239
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
de Limites deveria ser compartimentada em várias seções. Estes espaços destacados
seriam, por sua vez, reconhecidos por uma delimitação estabelecida por meio de certos
marcos geográficos específicos, a saber: a primeira seção seria aquela inclusa entre os
rios Oiapoque ou Calçoene até a cidade de Tabatinga; a segunda seção incluiria o
espaço entre Tabatinga e a confluência do rio Mamoré com o rio Beni; a terceira seção
iria do rio Mamoré até o Salto grande do Paraná e a quarta seção deste último até o
arroio Chuí. Faz-se necessário notar que esta compartimentação cartográfica é
praticamente idêntica à percepção do espaço da América portuguesa pelos atlas do
século XVIII e XIX
44
e à divisão do território a ser demarcado após os tratados do
século XVIII, distribuído em vários ‘Continentes do Domínio português’,
demonstrando-se tanto a pertinência de nossas observações quanto a sobrevivência da
idéia do antigo de espaço da América portuguesa.
45
Com a separação dos teatros da narrativa, a Comissão de Limites não chegou a
ser instituída oficialmente, mas, durante as décadas seguintes esses objetivos foram
levados a cabo na SNE por Duarte da Ponte Ribeiro, através de um processo de
produção cartográfica que se intensificaria com sua aposentadoria em 1853, envolvendo
a confecção, a impressão e a publicação, separada ou conjunta aos Relatórios
ministeriais, de trinta e três esboços, mapas e cartas
46
que somados a 179 memórias
destinavam-se a coadjuvar a ação política do Estado.
Porém, tanto a Comissão de Limites quanto os esforços daí originados
provavelmente tem como seu principal antecedente o próprio Ribeiro: na sua
correspondência com Soares de Sousa,
47
Ribeiro já sugeria a este que os trabalhos da
Comissão de Limites deveriam tomar como base a sua ‘Resenha do estado da fronteira
do Império’ de 1842 e a análise que fora feita desta, as ‘Observações aos apontamentos
sobre o estado atual da fronteira do Brasil’ de Francisco José de Sousa Soares de
Andréa.
48
44
Ver, nesta tese, os capítulos ‘Rumo à ilha deserta’ e ‘O tempo dos espaços e os espaços do tempo’.
45
Ver, nesta tese, o capítulo ‘Riscando o passado’.
46
Conforme relacionado pelo próprio autor. Ver Duarte da Ponte Ribeiro, Memórias e mapas do Barão da Ponte
Ribeiro - Relação das Memórias e mais papéis reservados, que se acham no Arquivo do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, alguns escritos por ordem do Governo Imperial, e outros oportunamente apresentados. Rio de
Janeiro: s/editor, 1873.
47
AHI, Paulino José Soares de Sousa, citado em José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 275-276.
48
Francisco José de Sousa Soares de Andréa, ‘Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do
Brasil’, 1847. IHGB, Lata 289, Pasta 9.
240
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Entretanto, como o próprio título indica, as ‘Observações’ de Andréa visavam
outro texto de Ribeiro, os ‘Apontamentos sobre o estado atual da fronteira’,
49
somente
composto em 1844 pela fusão de dois outros escritos, denominados por Ribeiro como
‘Resenha da Fronteira do Império’ e ‘Apontamentos anexos’, ambos entregues no
mesmo ano a Ernesto Ferreira França quando este era Ministro dos Negócios
Estrangeiros.
50
Estes dois escritos se originam por sua vez de um texto anterior, datado
de 1842 e catalogado no Arquivo Histórico do Itamaraty como ‘Exposição do estado em
que se achavam as questões de limites’,
51
mas que está nomeado, no catálogo editado
pelo próprio Ribeiro em 1873, pelo título de ‘Resenha do estado das relações do Brasil
com os Estados vizinhos’.
52
Assim, como não há uma correspondência de nome ou data entre o trabalho
indicado por Ribeiro na sua correspondência com Soares de Sousa e os que foram
verificados por nossa pesquisa, parece razoável supor que o engano de Ribeiro parece
refletir tanto uma origem comum dos escritos, que seria corroborada pela semelhança
entre seus títulos, quanto poderia sugerir que o autor percebera haver uma ligação entre
os objetivos da Comissão de Limites e o seu texto de 1842.
53
Foi justamente nesse texto
que Ribeiro utilizou a cartografia pela primeira vez, sendo nesta o mapa não foi juntado
ao texto escrito apenas como um anexo, mas combinado com uma descrição do
território constituindo uma argumentação somente legível em seu conjunto.
54
A inter-
relação entre a descrição do território e o registro cartográfico possibilitava a Ribeiro
49
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil’, 1844. IHGB, Lata 289, Pasta
9.
50
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto
Ferreira França Filho’, 1849 AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11,
Documento 1.
51
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n. 4 - Exposição do estado em que se achavam as questões de limites entre
Espanha e Portugal relativas às fronteiras do Brasil com as províncias do: Paraguai, Bolívia e Peru, depois da 2ª
guerra de 1801 que anulou o Tratado de Santo Ildefonso’, 1842. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte
Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2.
52
Duarte da Ponte Ribeiro, Memórias e mapas do Barão da Ponte Ribeiro - Relação das Memórias e mais papéis
reservados, que se acham no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, alguns escritos por ordem do
Governo Imperial, e outros oportunamente apresentados. Rio de Janeiro: s/editor, 1873, p. 14.
53
Poder-se-ia também aventar a hipótese de ter ocorrido um lapso da escrita, um ‘ato falho’ no qual se notaria ‘a
influência dos sons, da semelhança das palavras e das associações habituais suscitadas pelas palavras’ e onde se
acrescentaria um segundo sentido ao que se pretendia originalmente por meio de uma substituição denunciadora da
intenção. Ver especialmente as p. 88-90 em referência aos lapsos de escrita e ao exemplo da substituição no texto:
Sigmund Freud, Parte I. Parapraxias (1916 [1915]) in
Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Partes I e II),
Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora
Ltda, 1976, p. 27-104.
54
Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, 10/04/1842. AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Doc. 2.
241
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
constituir tanto uma historicidade do espaço quanto uma espacialização da história por
meio da possibilidade de inscrever os elementos da narrativa junto a um registro do
momento: o texto de 1842 era, por conseguinte, um exemplo concreto da viabilidade do
projeto de Paulino José Soares de Sousa.
Nesse sentido, a fusão entre o texto escrito e o mapa operada por Ribeiro iria
inaugurar, com o ‘cisma da narrativa’ em 1854, um novo regime da narração
centralizado na SNE, em substituição ao velho regime consubstanciado no debate do
IHGB, que passaria a conjugar a utilização da cartografia com as corografias.
55
Este novo regime da narração foi em grande medida condicionado pela
dinâmica do debate no IHGB, sendo que sua transformação a partir deste pode ser
emblematizada pela querela entre a ‘norma da narrativa’ e a ‘derivação’ acontecida no
Instituto entre abril e outubro de 1853: neste caso, o velho regime da narração não
deixaria de imprimir sua marca no novo regime, exemplificada pela incorporação por
este de grande parte da estrutura narrativa anterior, nem o novo regime deixaria de
acusar perdas, no caso, problematizadas pelo esvaziamento das possibilidades de
construção da narrativa.
Esse esvaziamento pode ser observado por meio da Querela de 1853, que
compreendeu tanto a leitura e o debate de textos preparados por Duarte da Ponte Ribeiro
e Gonçalves Dias, quanto a apresentação e a discussão de propostas baseadas naquele
debate, sempre para uma audiência composta pelos membros do IHGB e numa rotina
repetida em várias sessões. Por conseguinte, a análise argumentativa, a oralidade e a
gestualidade foram componentes intrínsecos das discussões, por serem minuciosas e
prolongadas, obrigaram ambos os debatedores a lançar mão de certos recursos que
possibilitavam a articulação e a organização de seus argumentos, como a Retórica e a
Poética. Contudo, talvez a característica mais da Querela é que esta reuniu, nesse
momento, provavelmente a parte mais significativa da intelectualidade do Império,
permitindo a incorporação de subsídios e de elementos que enriqueceriam a discussão,
alargando os conceitos discutidos e permitindo a reelaboração da narrativa sobre bases
mais amplas.
Com respeito às várias impressões da Querela de 1853, talvez a que mais nos
salte à vista é que esta opunha duas personalidades absolutamente díspares: enquanto
55
Em relação ao debate do IHGB e à idéia de regime da narrativa ver, nesta tese, o capítulo ‘A descrição do
contemplador’.
242
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Duarte da Ponte Ribeiro era afeito às conversações de gabinete, às negociações e aos
detalhes, Gonçalves Dias era mais acostumado às frases de efeito, ao gestual e à
declamação, o que poderia sugerir que a vitória de seus pontos de vista dever-se-ia a
uma utilização mais eficiente desses recursos contra um desempenho frio de Ribeiro.
Entretanto, durante o desenvolvimento da querela, ambos os debatedores lançaram mão
de diferentes recursos retóricos, demonstrando habilidades semelhantes em sua
utilização, como também dispuseram igualmente de amplos recursos documentais,
diferenciando-se entre si apenas quanto ao emprego do argumento histórico. No caso,
sua utilização por Gonçalves Dias se basearia na investigação do fato e do documento
histórico segundo uma técnica que perscrutava as condições de sua época e de sua
escrita, enquanto que Ribeiro utilizar-se-ia dos mesmos fatos e documentos para
enfatizar uma dedução a partir da disposição dos fins do Estado e de seu arranjo,
articulação e composição, como, podemos entender a partir do exame, feito por
Gonçalves Dias, do uti possidetis, um dos pontos centrais do argumento defendido por
Duarte da Ponte Ribeiro:
Se a linha divisória tivesse de ser trazida para a atualidade, é claro
que ela não deveria ser demarcada pelas idéias geográficas que hoje temos,
nem pelos mapas americanos traçados depois das observações de Humboldt.
Deveria ser tirada com as das idéias do tempo em que foi estipulada [...].
Destruídas as pretensões que se pudessem originar dessa linha, o tratado de
1750 não pode também perdurar, porque, reconhecendo em toda a sua
amplitude a doutrina dos limites naturais, esqueceu-se de que o Brasil tem
em seu seio rios e montanhas, que apenas bastam para discriminar os limites
entre uma e outra das suas providências, e apesar disso, mais importantes do
que aqueles que, segundo o tratado, o extremariam. A doutrina dos limites
naturais foi na Europa substituída pelo sistema do equilíbrio europeu, pelo
qual vem a ser pouco importante que a raia seja extremada por uma ponte,
alfândega ou barreira, visto que as potências interessam em pôr obstáculos a
usurpações do território. Parecendo que em relação a nós Americanos, o
desideratum do equilíbrio deveria ser entre as duas grandes porções da
América, foi de absoluta necessidade recorrer aos fatos existentes, e invocar
o uti possidetis. Foi conveniente, mas foi principalmente necessário. O uti
possidetis não pode ser trazido para questões de limites definitivos, nem é
aplicável a todos os casos; porque é perigoso, quando não apoiado e
243
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
fortalecido pelas conveniências hidrográficas ou topográficas; porque deixa
vasto campo aberto aos conflitos, sendo por outro lado de difícil verificação
e alcance, e reclamando uma atenção contínua para que não haja usurpações.
O uti possidetis é uma modificação da posse do direito, ou antes são
modificações variadíssimas, porque compreende todos os usos que se possa
dar, a um campo por exemplo, com todas as restrições estabelecidas pelo
gozo público ou particular, exclusivo ou promíscuo [...]. Concluo:
considerando que este Instituto não é um corpo político, mas uma
corporação meramente científica, que não deve passar o aresto de se
rejeitarem certos trabalhos; porque seus autores apresentando fatos sabidos,
tiram deles conseqüências que não quadram com a diplomacia, com a
política, ou com o nosso pensamento individual [...].
56
Nesse sentido, a Querela remete a um certo aspecto iluminado por G. E. Lessing
em seu ‘Laocoonte’ a partir do estabelecimento da distinção entre a Poesia e a
Escultura: o de que a história, a geografia e a cartografia não deveriam ser mais
pensadas no domínio da Retórica, mas como pertencentes a novas técnicas e disciplinas
que então se consolidavam e constituíam os lugares de sua enunciação.
Assim, a utilização do argumento histórico por Ribeiro passaria a emblematizar
mesmo o novo regime da narrativa, pois demonstrava-se que sua escrita apartar-se-ia de
certas possibilidades de construção do espaço, especialmente das que dizem respeito à
inscrição dos dados coletivamente importantes e veiculados pela tipificação da vivência
do homem. Por conseguinte, impossibilitar-se-ia, daí em diante, a construção de uma
narrativa do espaço que pudesse ser enriquecida pela interpretação das experiências
coletivas e particulares, pois esta passaria a identificar-se, cada vez, com os objetivos do
Estado e com inscrição das relações verticais que o compunham. Por conta disso,
viabilizar-se-ia a organização de um Mito relativo à criação do espaço nacional que
dizia mais respeito a essas ‘relações de força e soberania’, inclusive, porque aquele Mito
seria caracterizado pela centralidade de uma figura representativa do arquétipo do Herói
construtor ou mantenedor, a ser consumada no século XX.
57
56
Antonio Gonçalves Dias, ‘A Memória Histórica do Sr. Machado de Oliveira e o Parecer do Sr. Ponte Ribeiro’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853, p. 512-514.
57
Em relação à idéia de Mito enquanto narrativa aplicada e como estrutura de sentido ver Walter Burkert. Mito e
Mitologia. Lisboa: Edições 70, 2001.
244
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O novo regime da narração e a composição manuscrita
A instituição de um novo regime da narração baseado num debate internalizado
na SNE e diretamente destinado a suprir os problemas e necessidades do Estado, coloca
a questão da construção do espaço nacional diante do seguinte problema: esta seria mais
bem entendida se a definíssemos como uma nova inscrição do espaço junto a qual
persistiriam as tentativas de inscrição anteriores ou como uma transformação das
tentativas de inscrição anteriores e dos seus materiais constitutivos ?
Se desenvolvermos este problema por meio da comparação entre as construções
narrativas do novo e do velho regime da narrativa, encontraremos nesta similaridades e
diferenças que denotam tanto uma manutenção da gramática da ‘linguagem do espaço’
quanto mudanças táticas em sua sintaxe. Por conseguinte, esta ‘ambigüidade’ da
representação do espaço nos leva a acreditar que o problema da caracterização do novo
regime da narração somente possa ser contornado a partir do estudo das escolhas
conduzidas pela operação da narrativa para a inscrição do Estado no espaço e por uma
delimitação das suas possibilidades e condicionamentos, nossos objetivos nos próximos
itens deste capítulo.
Nesse sentido, a fusão entre texto e mapa característica da inscrição do espaço
no novo regime da narração seria operada dentro da necessidade de concorrer
eficientemente com as outras representações de espaço, acompanhando mesmo seus
estilos de representação e utilizando a produção em escala, mas, nos limites estreitos da
tradição cartográfica portuguesa, sendo, por conseguinte, influenciada pelos
condicionamentos culturais e tecnológicos da ‘composição cartográfica manuscrita’.
Na ‘composição manuscrita’, cada cartógrafo era, acima de tudo, um membro
de uma escola, um propagador de padrões e estilos, entretanto, se o mapa era desenhado
pelo especialista, sua composição era, muitas vezes, coordenada por uma operação
sigilosa e setorizada, onde se escolhiam, organizavam e administravam os elementos a
serem registrados. Esta operação era baseada na coleta dos elementos disponibilizados
pelos mais diversos agentes cartográficos e na sua organização a partir de um local de
enunciação central, processo utilizado, por exemplo, pela Espanha, pela França e por
Portugal.
Na Espanha, a ‘Casa de la Contratación de las Indias’ havia sido organizada em
1503 com o encargo de manter e retificar um mapa geral do Império, o chamado
‘Padrón Real’, materializado enquanto um mapa mural de grandes dimensões e mantido
245
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
em completo segredo e sem cópias no centro físico mesmo do Estado Habsburgo. Sua
retificação era encetada continuamente através dos desenhos e rascunhos que todos os
pilotos eram instruídos a manter atualizados durante suas viagens e que eram depois
resgatados pela Casa de la Contratación. Entretanto, como não havia condições de se
estabelecer uma estandardização dos registros e mesmo a veracidade do conhecimento
resgatado, as condições da inscrição do espaço no Padrón incluíam também um
julgamento de ordem moral ou até mesmo política.
58
Essa idéia da associação entre o Estado e um sigilo do conhecimento
cartográfico construiu suas raízes mesmo na França nos limiares do século XVIII, já na
vigência plena da reprodução cartográfica em escala: na década de 1670, estando Jean
Dominique Cassini à frente do ‘Observatoire Royale’, far-se-ia desenhar no chão de sua
torre, orientada em suas fundações pelos pontos cardeais, um planisfério terrestre
perfeitamente ordenado no qual seria materializado o conhecimento do espaço, sendo
que, somente no ano de 1692 este seria inscrito num mapa gravado.
Entretanto, as transformações dos meios e das técnicas cartográficas somadas à
concorrência dos Atlas, determinariam a estagnação e a decadência do conhecimento
nos países dependentes da ‘composição manuscrita’, problema que incluiu ainda a perda
de grande parte de sua base documental ocasionada pelo descaso, pela defasagem em
relação aos mapas estrangeiros ou pela política de destruição deliberada que fazia parte
do mecanismo de manutenção do sigilo.
59
Assim, embora no final do século XVI a
península Ibérica fosse melhor representada do que qualquer parte da Europa, quase
duzentos anos depois, em 1770, sua base cartográfica ainda era a mesma.
60
Já em Portugal, a existência dessa política de segredo, pode ser exemplificada
pela publicação em Roma, no ano de 1560, de um mapa daquele país e que foi atribuído
a Pedro Álvares Seco, incluindo 1.154 registros geográficos, os quais, com quase toda a
certeza, faziam parte de uma mapa padrão desse Estado, contudo, à exceção de duas
58
David Turnbull, Masons, Tricksters and Cartographers: Comparative Studies in the Sociology of Scientific and
Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2003, p. 107-110.
59
Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, ministers and maps: the emergence
of cartography as a tool of government in early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University of Chicago
Press, 1992, p. 124-146.
60
Parker utiliza a comparação entre os mapas do início do século XVII, especialmente a edição de 1606 do atlas de
Mercator com publicações do final do século XVIII, entre elas a edição francesa de 1777 do atlas Mercator-
Hondius. Ver Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in
Monarchs, ministers and maps:
the emergence of cartography as a tool of government in early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University
of Chicago Press, 1992, p. 134.
246
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
cartas, todos os mapas portugueses anteriores a 1500 desapareceram. Outro exemplo
dessa política é o édito real de 1504, que proibiu a inclusão em qualquer carta náutica
das regiões abaixo do rio Congo e que, ao mesmo tempo, mandava destruir todos os
Globos existentes em Portugal.
61
Além do sigilo e da setorização, outras características da cartografia manuscrita
influenciaram a produção do espaço a partir do novo regime da narração. Como vimos,
ao contrário da reprodução em escala, não havia na ‘composição manuscrita’ a
necessidade estrita de se estandardizar determinados padrões estéticos ou estilos de
representação, nem a divulgação era o seu objetivo principal, daí ocorrer que na
‘composição manuscrita’ fossem muito alargadas tanto a atribuição da condição de
cartógrafo quanto a própria definição do exercício cartográfico. Uma vez que não havia
uma estandardização dos padrões estéticos e técnicos, mas uma condição ditada pelo
pertencimento do cartógrafo a uma escola cartográfica, sua condição estava mais ligada
a uma atribuição da autoria do produto. Como vimos, esta atribuição já não era simples
quando a tarefa da composição era um exercício individual, quando a composição era
um exercício coletivo, a atribuição da autoria demandava menos do domínio
propriamente dito da técnica ou mesmo do esforço manual e mais da posição do
indivíduo no topo do processo de produção cartográfica e do seu domínio sobre um
saber geográfico que se constituía muitas vezes pelo controle do acesso à massa
documental abrigada nos arquivos.
Uma vez estabelecida a autoria, esta tendia a ser preservada, inclusive por conta
das grandes dificuldades inerentes à reprodução da ‘cartografia manuscrita’, a qual era
realizada apenas esporadicamente, por conseguinte, requerendo que, para sua
circulação, as cópias tivessem de ser autenticadas, ou seja, acompanhadas por um
certificado que as ligasse ao original, o que, ao mesmo tempo, contribuía também para
dificultar a retificação desses mapas.
Assim, quando se necessitava organizar a ‘composição manuscrita’ de um
grande território sobre o qual já houvessem sido realizados outros esforços manuscritos
menores, normalmente, nesse novo produto, se dava menos atenção à escala ou à
uniformização dos registros do que à autoria da fonte: o grande mapa daí resultante
pode ser comparado à confecção de um mosaico onde a partir do detalhe construía-se o
61
Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, ministers and maps: the emergence
of cartography as a tool of government in early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University of Chicago
Press, 1992, p.125 e 133.
247
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
todo. Contudo, nesse exercício cartográfico a atribuição da autoria novamente recaía
sobre o indivíduo capaz de controlar as decisões relativas à composição e,
concomitantemente, o acesso à massa documental, pois este indivíduo podia escolher
tanto o repertório dos mapas que integrariam a confecção do mosaico quanto a inclusão
individual de cada uma de suas peças.
No caso do novo regime da narração, Duarte da Ponte Ribeiro seria o indivíduo
sobre quem recairiam essas atribuições, sendo seu esforço, por princípio, destinado a ser
mantido em sigilo, inclusive porque era setorizado na SNE, sendo somente divulgado na
medida dos interesses do Estado. Assim, praticamente todas as memórias, esboços
topográficos e mapas produzidos por Ribeiro foram mantidos em segredo, sendo que
cada esboço topográfico e mapa possuía apenas dois exemplares, um para a SNE e outro
para a SJNE.
62
No caso dos mapas seria feita exceção a apenas quatro espécimes de um
número total de trinta e três, os quais seriam litografados cada qual por conta de uma
diferente necessidade do Estado. Por conta dessas características da produção
cartográfica no novo regime da narração, quando se tornou necessária a produção de
uma representação do espaço nacional, ainda que esta não fosse produzida pela SNE,
sua organização seria confiada a Ribeiro pelo Estado, como foi o caso das Carta Geral
de 1875, centralizada no Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras
Públicas.
Portanto, os condicionamentos da ‘composição manuscrita’ sobre o novo regime
da narração possibilitaram que Ribeiro pudesse tanto organizar o processo da inscrição
do Estado no espaço quanto interferir nas produções cartográficas divergentes da
‘norma narrativa’, uma vez que, por conta do prestígio e posição adquiridos, era julgado
por seus contemporâneos o maior especialista em cartografia brasileira, mesmo que
tivesse grande dificuldade para traçar, ele mesmo, seus mapas e, por conta disso,
dependesse de colaboradores, conforme pode ser observado através de seus desenhos
autógrafos.
63
Na verdade, para a execução da maioria de seus trabalhos, Ribeiro contou
com o auxílio de engenheiros militares lotados exclusivamente com esse propósito na
62
'Carta de Duarte da Ponte Ribeiro, para Joaquim Maria Nascentes de Azambuja', em 1861. AHI, Arquivo Particular
de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 3, Pasta 3.
63
Em relação à dificuldade de Ribeiro com o desenho, ver, por exemplo, o mapa de uma parte da região amazônica
juntado ao material anexo à ‘Memória n. 134 – 2. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288,
Maço 2.
248
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
SNE, que foram, sucessivamente, Frederico Antônio de Seweloh e Izaltino José
Mendonça de Carvalho.
Ainda, o sigilo e a setorização geraram distorções que se aprofundaram no longo
prazo: o controle da massa documental pelos funcionários e ministros agregados à SNE
consolidaram o sigilo mesmo em meio ao próprio Estado. Como exemplo dessa
distorção, é ilustrativo que certas informações sobre os problemas de limites nas
Guianas e na fronteira com a Bolívia que estavam disponíveis na SNE não
compusessem as discussões do Conselho de Estado, como, por exemplo, pode ser
facilmente depreendido pelo exame das Atas da Seção dos Negócios Estrangeiros do
Conselho de Estado referentes aos limites com a Grã-Bretanha na década de 1850 e em
praticamente todas as consultas a respeito dos limites com a Bolívia e mais tarde o Peru.
Em relação aos limites com a Grã-Bretanha, as discussões não incluem os mapas e
relatos de Antônio da Silva Pires Pontes Leme sobre a exploração do território
disputado então existentes no Arquivo da SNE.
64
Já no que diz respeito aos limites com
o Peru e Bolívia, as memórias sobre o Javari existentes na SNE davam certeza da curta
extensão desse rio, o que ainda no século XX foi refutado oficialmente pelo Ministério
das Relações Exteriores, sendo que estes arquivos permaneceram secretos até 1990.
65
Também em relação às distorções geradas pelo controle da massa documental,
deve se salientar que essa política de sigilo se desdobrou ainda para o interior da própria
SNE, uma vez que certas informações existentes em seus Arquivos não estiveram
disponíveis para alguns de seus Ministros: nesse ponto, deve ser levado em
consideração que, embora Ribeiro não descurasse em constituir o arquivo da SNE,
cuidaria de manter um outro arquivo particular ainda maior.
Portanto, a questão da caracterização do novo regime da narração encadeia,
justamente, os condicionamentos da ‘composição manuscrita’, utilizando um repertório
recolhido, selecionado, organizado e sob o controle dos seus operadores, a partir da
necessidade de concorrer eficientemente com as outras representações de espaço,
acompanhando seus estilos de representação e utilizando a produção em escala
64
Ver Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 28/09/1854.
65
Ver, por exemplo, AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 266, Maço 5, Documento 1; AHI,
Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 265, Maço 10, Documento 8.
249
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O novo regime da narração e o Arquivo da SNE
Continuando nosso raciocínio a respeito das escolhas conduzidas pela operação
da narrativa em relação à inscrição do Estado no espaço e à delimitação das suas
possibilidades e condicionamentos, devemos considerar que, ao contrário do velho
regime da narração, que foi referenciado por um cânone constituído através do debate
no IHGB, o novo regime da narração consolidaria um novo material. Este, seria
organizado por Duarte da Ponte Ribeiro no Arquivo da SNE e em seu arquivo
particular: note-se que Ribeiro ficou lotado na Chefia da Seção da América Latina da
SNE desde 1844 até o ano de 1851, em vez de exercer algum posto diplomático no
exterior, ainda que fosse um dos mais experientes diplomatas do Império e sendo
favorável ao Partido Liberal, naquele tempo no poder, contasse com a proteção dos seus
principais políticos. Durante esse período, uma das tarefas de Ribeiro foi ordenar o
material remetido da Europa para a SNE, especialmente de Portugal e da França, um
esforço que foi iniciado em 1837 por Antônio Peregrino Maciel Monteiro e do qual
também faria parte Varnhagen.
66
A partir de 1853, Ribeiro foi designado por ordem do Imperador, através de
ofício de Paulino José Soares de Souza, como o encarregado de recolher para o Arquivo
da SNE “papéis e mapas existentes nela e noutras Repartições Públicas, que dêem a
conhecer a história, geografia, estatística e as questões de fronteiras”, sendo ainda
reconhecido como “o mais habilitado nestes conhecimentos especiais”. Nesse sentido
seriam expedidas ordens para que lhe fossem franqueados em todas as repartições
públicas os papéis e mapas que julgasse adequados a esse fim, sendo mesmo a SNE
incumbida de prestar a cooperação que requisitasse.
67
Deste modo, por exemplo, os
documentos referentes às Demarcações decorrentes dos Tratados de Madri e a
correspondência havida entre as autoridades portuguesas da Capitania de Mato Grosso e
as autoridades espanholas das províncias vizinhas foram requisitados em 1854 por
66
A esse respeito, ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível.’
67
Carta de Paulino José Soares de Sousa para Duarte da Ponte Ribeiro, em 15/02/1853. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 4, Pasta 1.
250
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Ribeiro junto com alguns mapas da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e
transferidos para o Arquivo da SNE.
68
Entretanto, a maior parte do material que iria constituir o Arquivo da SNE já
fora selecionada entre 1841 e 1850 por Ribeiro no Arquivo Militar, uma vez que seu
acesso a todos os registros, correspondências e mapas lhe fora franqueado desde o ano
de 1844, sendo inclusive permitido a Ribeiro retirar este material do seu acervo, sob a
premissa de que seriam copiados para a SNE.
69
Contudo, alguns desses documentos
teriam o mesmo destino que o ‘Diário da segunda partilha da divisão da América’,
vindo da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e o ‘Diário Científico da
Demarcação de Limites da Província de S. Pedro do Sul até o Paraná em 1784 a 1787’,
vindo da Secretaria de Estado de Guerra e juntados ao Arquivo da SNE respectivamente
em 1844 e 1836.
70
Outros documentos foram ainda reunidos fora do Brasil pelo próprio Duarte da
Ponte Ribeiro, tendo sido juntada, por exemplo, durante sua estada na Argentina entre
1842 e 1843, uma pequena, mas importante parte do Arquivo, no caso, os documentos
referentes à demarcação espanhola dos limites do Tratado de Madri e vários mapas da
região amazônica.
Finalmente, o restante do material do Arquivo da SNE foi adquirido através do
‘Convênio Luso-brasileiro de Cartografia’ de 1867, que consistiu numa troca de
produtos cartográficos entre Portugal e Brasil, idealizada e posta em prática por Ribeiro,
que, pessoalmente havia vasculhado as coleções documentais daquele país em 1863 no
âmbito da ‘Comissão investigadora de Mapas e Memórias concernentes ao Brasil’.
71
68
‘Ofício de Duarte da Ponte Ribeiro ao Ministro Limpo de Abreu referente a dois manuscritos que estão no Arquivo
da Marinha: o Diário do exame e Demarcação da Fronteira entre os rios Uruguai e Iguaçu e assinado pelos
comissários portugueses e espanhóis e outro extrato da correspondência entre autoridades da Capitania de Mato
Grosso e as Espanholas, incumbida a Leverger. Menciona mapas da Bahia e do Rio de Janeiro,’ 7/01/1854. AHI,
Arquivo particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5.
69
Carta do Ministro dos Negócios Estrangeiros para o Ministro da Guerra, 21/08/1844. AHI Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 4, Documento 8.
70
Ver Carta de Antonio Francisco de Paula e Holanda Cavalcante de Albuquerque, Ministro e Secretário de Estado e
Negócios da Marinha para Duarte da Ponte Ribeiro,' 21/09/1844. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte
Ribeiro, Lata 286, Maço 4, Pasta 1; e 'Elenco Histórico das discussões dos Comissários portugueses sobre a
desnecessária substituição do Rio Iguatemi e Iponé-guassu ao Igurey e Corrientes que existiam onde os mostrava o
Mapa de 1749, que serviu de base ao de Limites de 13 de Janeiro de 1750' AHI, Arquivo Particular de Duarte da
Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 1.
71
Correspondência entre o Barão de Itamaracá e Duarte da Ponte Ribeiro. AHI, Arquivo Particular do Barão da Ponte
Ribeiro, Lata 287, Maço 4. Com referência à constituição do Arquivo da SNE, ver também Joaquim Maria
Nascentes de Azambuja, ‘Catálogo de mapas da secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros,’ IHGB, Lata 6,
Pasta 3; Isa Adonias,
O acervo de documentos do Barão da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: S/editor, 1984, p. 28-48
251
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O novo regime da narração e a ambigüidade da narrativa
Finalizando nosso raciocínio a respeito das escolhas conduzidas pela operação
da narrativa em relação à inscrição do Estado no espaço e à delimitação das suas
possibilidades e condicionamentos, verificamos que o material reunido por Ribeiro no
Arquivo da SNE estava focado basicamente nas atividades da antiga Metrópole e seria
conectado pela operação da narrativa a uma inscrição do Estado no espaço segundo os
condicionamentos da ‘composição cartográfica manuscrita’.
Por outro lado, observamos também que estas escolhas e ainda certas
características do novo regime da narração se definem na Querela de 1853, sendo
confrontadas, a partir daí, com a concorrência de outras representações do espaço e com
a necessidade de adotar-se seus modelos e estilos. Ainda, como vimos nos capítulos
anteriores,
72
a construção do espaço foi feita por meio de um ‘saber sobre o espaço’ e
relacionada a uma inscrição no espaço internacional que contrastava com as inscrições
das ‘relações de força e soberania’, conforme exemplificaremos no próximo capítulo.
Produzir-se-ia, por conseguinte, uma ambigüidade na representação do espaço
que remeteria ao problema da ambigüidade das relações entre o Estado e as elites
expressa por José Murilo de Carvalho através da representação do político pela metáfora
do teatro.
73
Assim, entendemos que poderíamos procurar entender esta ambigüidade
segundo uma análise da representação no espaço desse poder.
No caso, a fusão entre texto e mapa característica do novo regime de narração,
seria aprofundada após 1850 pela conjunção das corografias com a cartografia, visando-
se enfatizar a ligação do Estado com suas origens, mas, ao invés de identificar a ligação
do homem com a terra, como na narrativa do setecentos, esta operação da narrativa
apontava para uma transformação do Estado em relação às suas origens: ainda que
imaginado sobre as fundações da antiga metrópole, o Brasil não compartilhava de sua
“desmedida e insaciável ambição”, conforme frisaria Duarte da Ponte Ribeiro,
consolidando-se assim um dos arcabouços da narrativa do século XIX.
74
Deste modo, a
e José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p.
332-334.
72
Ver, por exemplo, os capítulos ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’ e ‘O assento central’.
73
José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 417-423.
74
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na
sessão do Instituto Histórico de 17 de Junho de 1853,’
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo
XIII, n° 3, 1853, p. 436.
252
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
operação da narrativa inscreveu em suas representações do espaço um aparente
paradoxo que consistiria na fixação da escrita sobre um material rejeitado em sua
historicidade durante a interpretação, mas que se destinava a consolidar uma narrativa
adequada à política de limites do Estado.
Por outro lado, a conjunção entre as corografias e a cartografia visava ainda
preservar e ampliar a construção de uma centralidade que precisaria ser satisfeita pela
conexão entre o centro e a periferia. Assim, a operação da narrativa inscreveria em suas
representações do espaço outro aparente paradoxo que consistiria em não pretender
representar apenas uma inserção no território, como nas representações do antigo
modelos, mas, por sua resignificação segundo as ‘relações de força e soberania’,
sublinhado-se nesta, entretanto, um retorno ao passado que possibilitaria constituir e dar
sentido do Mito.
Portanto, viabilizar-se-ia, assim, uma narrativa em que os registros dos
monumentos do passado inscrevem uma interpretação do território unida pela
construção de uma historicidade do todo, a qual pode ser analisada como um ‘desejo do
eterno presente’. Nesta construção se constitui a idéia de um tempo imobilizado que une
o presente ao passado, uma eternidade que não se move pela necessidade e que é
representada como um momento que não tem relação com o Outro, mas apenas com seu
próprio ideal.
Por conseguinte, um ‘movimento único’ que vai do momento ao ideal constitui a
espacialização da história sobre o território eliminando-se os aparentes paradoxos da
inscrição do espaço pelo remetimento dessa história apenas ao ideal.
75
Nesse sentido, a
operação da narrativa pode ser explicada a partir da idéia indicada por Søren
Kierkegaard no início de sua obra ‘Fragmentos filosóficos’, a saber, que o ponto de
partida para uma consciência eterna pode ter um interesse que não seja meramente
histórico, mas, no caso, intratextual, situado na convergência entre a ocasião e o ato de
representação:
“A eternidade [...] expressamente torna-se o momento, onde a
ocasião e o que é ocasionado correspondem igualmente, tão igualmente
como a resposta ao grito no deserto, o momento não aparece mas é tragado
75
Søren Kierkegaard, ‘The God as Teacher and Savior’ in Philosophical Fragments. Princeton, New Jersey:
Princeton University Press, 1987, IV 193 e 194.
253
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pela lembrança para dentro de sua eternidade. O momento emerge
precisamente na relação da resolução eterna para a ocasião desigual.”
76
O momento, originado do ‘movimento único’, contém a verdade em si, uma vez
que advém do mesmo ideal que participa de sua eternidade e não se constitui pela
instrução socrática, mas por um ato de compreensão que elide a instrução e engendra a
experimentação, permitindo, assim, a criação: essa compreensão não se expressaria por
uma relação entre o aluno e o professor, mas pela relação de um autodidata com uma
beleza apenas inspirada por esse mesmo ato e com as formas externas que dela
participam, cuja expressão seriam seus produtos.
77
A partir da idéia do momento de Kierkegaard, poder-se-ia explicar porque
Duarte da Ponte Ribeiro, ao contrário de Conrado Niemeyer, não se guiaria na
composição de seus mapas pelas cartas provinciais, nem pelas cartas gerais, nem pelos
Atlas ou ainda pelos relatos e escritos dos viajantes estrangeiros, mas apenas por uma
tradição enxergada tão-somente nos documentos recolhidos aos seus arquivos, de onde
adviria todo o conhecimento julgado essencial e exato.
78
A inscrição do espaço, caracterizar-se-ia então como uma antevisão da própria
nação desligada de seu tempo, um espaço construído antes do seu território, uma nação
sem o lugar de seus habitantes, o Jacobina sem seu espelho a inscrição do espaço
constrói-se, na verdade, a partir da inscrição de um momento que permite o registro
contínuo das ‘relações de força e de poder’, as quais se consolidam, justamente, por sua
ambigüidade.
76
‘Eternity [...] it expressly becomes the moment, for where the occasion and what is occasioned correspond equally,
as equally as the reply to the shout in the desert, the moment does not appear but is swallowed by recollection into
its eternity. The moment emerges precisely in the relation of the eternal resolution to the unequal occasion.’ Søren
Kierkegaard em ‘The God as Teacher and Savior’ in
Philosophical Fragments. Princeton, New Jersey: Princeton
University Press, 1987, p. 25.
77
Ver Søren Kierkegaard, ‘The God as Teacher and Savior’ in Philosophical Fragments. Princeton, New Jersey:
Princeton University Press, 1987, IV, 199; Søren Kierkegaard,’The Contemporary Follower’ in
Philosophical
Fragments. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1987, IV, 229.
78
Ver, por exemplo, as críticas de Ribeiro ao Atlas Cândido Mendes e o seus comentários sobre a construção do
‘Mapa da Fronteira Norte do Império’, onde além de descrever suas fontes Ribeiro repudia a utilização do material
oriundo dos viajantes estrangeiros em face da existência dos documentos do arquivo. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288, Maço 2.
254
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
10 — EM AMPLEXO FRATERNAL: A LUTA DE REPRESENTAÇÕES E A
PRODUÇÃO DAS CARTAS GERAIS.
“Ao cruzar nesta tentativa os paramos do Atlântico, reconcentrava o coração no
grêmio da Mãe comum. Nascido na margem do Jaguarão, na raia meridional do
Brasil, deleito-me em circungirar a vista por todos os remotos confins deste vosso
vastíssimo Império; e enlevado pelas pomposas maravilhas de sua inefável
magnificência, ensoberbeço-me com a idéia de que todo ele é minha Pátria. Cioso
da mínima leiva deste território paradisíaco, empenho votos para que todos os
Brasileiros, desaferrolhando-se para sempre das masmorras do provincialismo,
sublimem-se de uma vez às olímpias assomadas de seu âmbito completo, e sem
distinção de Rio-grandense, nem Paraense, o abarreirem impenetravelmente em
amplexo fraternal; e quando as Nações gigantes porfiam em perpétuos omnímodos
esforços para mais se engrandecerem, não nos apresentemos nós ao Mundo
ostentando por alvo glorioso o apigmear-se.”
Joaquim Caetano da Silva. Memória.
1
Nosso objetivo neste capítulo é, a partir do conceito de momento desenvolvido
no capítulo anterior, analisar a influência do princípio subjetivo no processo de
produção das cartas gerais. Pretendemos ainda analisar a presença do Estado e de suas
necessidades como um dos elementos instigadores da construção corográfica e
cartográfica e entender quais foram as influências que incidiram sobre a composição
desses mapas. Finalmente, pretendemos introduzir esses elementos como parte da
operação da narrativa e de sua consolidação numa ‘Mitologia do espaço nacional’, que
será o assunto central do próximo capítulo.
Inicialmente, ao cotejarmos a cartografia manuscrita com a cartografia
reproduzida em escala, podemos perceber, na passagem do primeiro para o segundo
processo de produção, uma diminuição gradativa do valor do indivíduo em favor de
uma cadeia operatória que por suas características enfatiza a separação das tarefas e o
anonimato. Nesse sentido, a derrota do princípio subjetivo na cartografia está
relacionada à supressão de uma autonomia da experiência visual daquele que representa
e do espectador, bem como à diminuição da mobilidade autônoma do espaço a ser
1
Joaquim Caetano da Silva, ‘Memória sobre os limites do Brasil com a Guiana Francesa, conforme o sentido exato
do artigo oitavo do Tratado de Utrecht’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, n° 13,
1850, p. 512.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
representado, por meio de uma crescente normatização no processo de produção que
incluiu, por exemplo, a padronização da escala e a estandardização dos símbolos e das
cores.
Esta derrota do princípio subjetivo, que se desenrolou ao longo dos séculos
XVIII e XIX, foi justamente o inverso do que, segundo Panofsky, teria acontecido na
arte, uma vez que a transformação das manifestações artísticas, que foi estudada por
este autor a partir das modificações ocorridas na teoria das proporções, resultou numa
ênfase da subjetivação do objeto por parte do artista, denotando uma maior importância
do sujeito a partir da diminuição da intromissão do Estado na Arte.
2
Deste modo, se relacionássemos os dois problemas poderíamos entender que as
tensões, contradições e transformações na operação da narrativa estariam intimamente
conectadas com a consolidação progressiva nos séculos XVIII e XIX de um estatuto
técnico e científico, ao redor do qual se passaria a normatizar a cartografia, e que esta
consolidação pode ser identificada com uma diluição progressiva do indivíduo no
Estado, “excluído de mil maneiras da ação”, conforme salientaria Jacob Burckhardt.
3
Assim, a ascensão do Estado brasileiro no século XIX estaria diretamente
relacionada com a derrota do princípio subjetivo na operação da narrativa, que
materializar-se-ia, inclusive, na escrita das corografias, a partir de 1850, através da
progressiva predominância de um novo modelo que passou a pormenorizar e delimitar o
espaço pela sua subordinação a uma observação a partir de um centro no Estado
claramente identificável no espaço.
Esta transformação verdadeiramente panóptica do espaço estava ligada tanto à
divulgação e à pedagogia de uma construção historiográfica da Nação quanto a uma
crescente necessidade de projetar interna e externamente a representação do espaço
nacional, sob pena de não se conseguir consolidar e legitimar a inscrição do Estado
Brasileiro. Assim, a construção da representação do espaço nacional teve de ser
adaptada, primeiramente, uma competição interna, visando expandir e reforçar as
‘relações de força e soberania’ e a inscrição do Estado sobre o território e, em segundo
lugar, a uma competição externa, que visava registrar e autenticar uma inscrição do
Estado no espaço internacional.
2
Erwin Panofsky, ‘A História da teoria das proporções humanas como reflexo da história dos estilos’, in Significado
nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976, pp. 89-148.
3
Carta de Jacob Burckhardt para Albert Brenner, 17/10/1855, in Jacob Burckhardt, Cartas - Jacob Burckhardt. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2003, p. 228.
256
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A partir de Schopenhauer, podemos explicar esta competição como uma luta de
representações que, numa primeira consideração, se dá no curso da trajetória da
objetivação da Vontade rumo a um alvo que, no entanto, também será partilhado por
vários indivíduos.
Numa segunda consideração, nessa trajetória de objetivação da Vontade se
produzem Idéias que necessitam da matéria para se expressar, condição que, conforme a
primeira consideração, também será disputada por outros indivíduos para o mesmo fim,
portanto, todos tenderão continuamente a usurpar a matéria, cada qual podendo possuir
desta apenas o que pôde tomar aos outros indivíduos.
Numa terceira consideração, a disputa anterior se constituiria numa competição
contínua, uma vez que a Vontade é incapaz de ter uma finalidade última, já que se
constitui toda em desejo, desejando sempre, incapaz de satisfação, mesmo quando
conquiste seu objeto, produzindo, portanto, um movimento contínuo como a Roda de
Ixião,
4
que não se satisfaz, retornando sempre ao mesmo lugar.
Numa quarta consideração, entenderíamos que nesta competição contínua a
Vontade é impelida pela paixão, que definimos enquanto uma força criativa e um
movimento incessante, que através do pensamento visa “um esforço pela autonomia
inalterável, pela liberdade incondicionada e pela atividade ilimitada”,
5
ou seja, a
paixão é entendida aqui em oposição à categorização aristotélica, aproximando-se tanto
do sentido que Schelling entendia ser a exigência máxima do criticismo kantiano,
quanto do sentido que lhe foi dado por Jakob Böehme,
6
no caso, como uma tendência
universal de todos os corpos.
Numa quinta consideração, por conta do desejo constitui-se em torno do ato de
representação uma guerra eterna de vida ou de morte, com a oposição, por parte dos
outros indivíduos, de resistências e obstáculos à objetivação da Vontade, que, uma vez
concretizados, resultam na frustração do desejo, ocasionando o sofrimento. Entretanto,
como a paixão não se consome com a frustração do desejo e entende a impossibilidade
como uma prisão, irá impelir a Vontade novamente a desejar.
4
Por tentar raptar Hera, Ixião, rei dos lápidas, foi atado por Zeus a uma Roda flamejante e condenado a girar sem
cessar.
5
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, Nona Carta in ‘Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo,’ Os
Pensadores - Schelling, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 33
6
Místico e filósofo alemão do século XVI cuja obra foi bastante popular entre os meios românticos e que influenciou
Schelling e Schopenhauer, dentre outros autores românticos.
257
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Numa sexta consideração, como o esforço da objetivação da Vontade no mundo
se dá impelido pela paixão, esse esforço não consente em abandonar tudo aquilo que
constitui seu ser inteiro como desejo, lutando pela matéria e pela expressão de sua Idéia
mesmo em meio à resistência e aos obstáculos. Portanto, através da paixão, a Vontade
busca ao menos materializar em parte seus desejos ainda que ao custo da transformação
e do ajustamento dessa materialização aos desejos dos outros. Contudo, como essa
materialização imperfeita do desejo também traz sofrimento e insatisfação, a paixão
impelirá novamente a Vontade a desejar, reconduzindo-a ao seu alvo, a novos atos de
representação e à luta para representá-los.
7
Portanto, a disputa em que o Estado, através do processo externo, necessitou
engajar-se, não era apenas a competição concorrencial que motivava a organização do
processo cartográfico, mas era uma luta de representações da qual tanto os projetos de
construção historiográfica da Nação quanto as operações de inscrição do Estado no
espaço, incluídas aí as corografias, participavam em relação às outras construções e
inscrições equivalentes, cuja expressão era então materializada nas cartas gerais e nas
corografias de novo modelo.
Contudo, se remontarmos, conforme proposto, ao conceito de momento que
acreditamos estar inserto na construção da narrativa, entenderemos que também sobre
aquela materialização incidem as tensões que opõem a Vontade do indivíduo, resistindo
à derrota do princípio subjetivo, à ascensão do Estado. Por conseguinte, através do
exame da materialização decorrente da luta de representações travada pelo processo
externo, ou seja, dos produtos corográficos e cartográficos, acreditamos ser possível
distinguir, por conta do esforço da paixão em se fazer reconhecer, diferentes graus de
objetivação da Vontade nas operações de inscrição do Estado no espaço.
Por outro lado, também a partir de Schopenhauer, conforme sua idéia da Obra de
Arte enquanto um meio facilitador do conhecimento da Idéia, poderíamos tentar
compreender, por meio da tensão entre a Vontade do indivíduo e a ascensão do Estado,
como se daria a passagem da construção da narrativa para sua consolidação no Mito .
Para este intento, partiremos de dois pressupostos, o primeiro destes o de que “os
objetos (Objekte) são diretamente objetos (Gegenstände) da intuição, não do
pensamento, e todo conhecimento de objetos (Gegenstände) é, originariamente, e em si
7
Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, cap. 2-3 e O Mundo como
vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 56-57.
258
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
mesmo, intuição”. Portanto, é necessário que as intuições sejam constantemente
reconduzidas e trabalhadas, e que nesse processo estas intuições não sejam diminuídas,
assim, o pensamento é novamente restabelecido.
8
O segundo pressuposto o de que na Obra de Arte a Idéia é exposta de maneira
pura, mas que é necessário para a facilitação de sua apreensão o “silêncio completo da
Vontade, e que este só é alcançado com segurança se o objeto intuído não se situar no
domínio das coisas que possam ter uma relação possível com a Vontade, portanto que
não sejam nada de efetivo mas sua mera imagem.”
9
Entretanto, se a Obra de Arte possui um valor permanente e indelével e
utilizável em todos os tempos, esta é realizável apenas pelo gênio, o “puro sujeito que
conhece, claro olho cósmico”,
10
pois se origina de um conhecimento que permanece por
inteiro o mesmo em todas as épocas e que, por conseguinte, não se situa propriamente
no tempo, definido como “o conhecimento das Idéias, das formas permanentes,
essenciais em todas as coisas.”
11
Assim, poder-se-ia entender que, para se tornar mais efetiva a materialização
decorrente da luta de representações, seria preciso que a derrota do princípio subjetivo
fosse alargada até o ponto em que se rompesse o encadeamento da Memória e assim se
pudesse identificar essa obra com a essência, a Idéia da humanidade, com o imutável,
aquilo que é igual por todos os tempos.
12
Novamente remontando a Schopenhauer, entende-se que através da
contemplação estética da Obra de Arte, seja pelo poder de sua figura significativa seja
por uma disposição interna do indivíduo, o conhecimento libera-se “da escravidão da
vontade e existe para si de maneira livre, não mais apreendendo as coisas conforme elas
digam respeito à vontade, conforme sejam seus motivos”: o conhecer tornar-se-ia livre
de toda a relação com o querer.
13
Portanto, uma materialização da Vontade sublimada à altura das idéias retiraria o
sujeito da luta de representações, consolidando a derrota do princípio subjetivo, seja
8
Arthur Schopenhauer, ‘Crítica da Filosofia Kantiana’, in Os Pensadores - Arthur Schopenhauer, São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997, p. 176-177.
9
Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 86.
10
Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 66.
11
Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 77-78.
12
Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 79-81.
13
Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 91.
259
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
por relacionar as representações com um objeto (Objekte) cuja forma do conhecimento
já tenha sido intuído, o que inibe, por conseguinte, a abstração do conhecimento pelo
pensamento, seja por trabalhar pedagogicamente estes objetos (Gegenstände) ante o
sujeito.
Ainda, para melhor estabelecermos a idéia de uma passagem da narrativa do
século XIX para uma ‘Mitologia do espaço nacional’ por meio da tensão entre a
Vontade do indivíduo e a ascensão do Estado, precisaremos trabalhar a idéia da Obra de
Arte e do puro sujeito do conhecimento de Schopenhauer conforme suas origens
intelectuais, no caso, a idéia da intuição intelectual eterna de Schelling.
Para Schelling, a capacidade da intuição do eterno se diferencia de qualquer
intuição sensível na medida em que é produzida apenas por liberdade, “e é alheia e
desconhecida a todos os outros, cuja liberdade, sobrepujada pela potência impositiva do
objeto, mal basta para a produção da consciência”. Portanto, a intuição do eterno surge
“quando deixamos de ser objeto para nós mesmos, e quando, retirado em si mesmo, o eu
que intui é idêntico ao eu intuído.”
Nesse sentido, para Schelling, desapareceriam “tempo e duração”, portanto, “não
somos nós que estamos no tempo, mas o tempo — ou antes, não ele, mas a pura
eternidade absoluta — que está em nós. Não somos nós que estamos perdidos na
intuição do mundo objetivo, mas é este que está perdido em nossa intuição.”
14
Do mesmo modo que na idéia da Obra de Arte de Schopenhauer, a idéia da
‘intuição do eterno’ de Schelling compreende uma identificação do que intui com o que
foi intuído, por meio da cessação da relação daquele que intuí com o objeto, que impele
o eu a uma dissolução na eternidade, em um espaço sem tempo.
Entretanto, a ‘intuição do eterno’ de Schelling é mais próxima à nossa idéia de
momento construída a partir de Kierkegaard, um vez que esse momento é
potencialmente criativo e intrinsecamente ligado a um ideal, admitindo assim que a
idéia de cessação da relação possa ser criada. Ainda, em Schelling, a ‘intuição do
eterno pela arte’ tem como precondição a identificação do que intui com o que é
intuído, pois entende a Mitologia, condição necessária e matéria primeira da arte,
também como uma criação. Assim, a partir de Schelling, entendemos que o eterno e a
Idéia, como o momento, também podem ser criados.
14
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, ‘Oitava Carta sobre o dogmatismo e o criticismo’ in Os Pensadores -
Schelling, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 24-25.
260
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nesse sentido, a Mitologia foi compreendida por Schelling como o “único
mundo” onde “são possíveis figuras duradouras e determinadas, unicamente por meio
das quais os conceitos eternos podem ser expressos”,
15
mas, que é, ao mesmo tempo,
também uma invenção cujos termos constituintes e modelos devem ser entendidos
histórica e simbolicamente,
16
uma criação coletiva, não apenas intencional mas também
incondicionada, que pode ser entendida como a criação de um momento.
17
Portanto, a partir de Schelling podemos trabalhar a idéia do momento como parte
do processo criativo que deriva do pensamento, o qual pressupõe a possibilidade de
construção do Mito e de uma Mitologia, com o propósito de tornar a identificação
suportável “justamente por haver surgido de um ilusão, e ainda mais suportável por essa
ilusão ser indestrutível”.
Esta idéia permitiria compreender porque o pensamento, mesmo enquanto
identificado “no objeto absoluto”, continua intuindo “ainda a si mesmo” e permitindo a
contínua reprodução do Mito: uma vez que o pensamento não pode “pensar-se como
anulado sem pensar-se, ao mesmo tempo, como existente,” este mesmo pensamento
toma “a intuição de si mesmo pela intuição de um objeto fora de si, a intuição do mundo
intelectual interior pela intuição do mundo supra-sensível fora de si.”
18
Portanto, a paixão e o alargamento da derrota do princípio subjetivo estão
conectados na luta de representações através da tensão entre a Vontade do indivíduo e a
ascensão do Estado: esta tensão delimita as passagens da construção da narrativa para
sua sublimação numa Mitologia do espaço brasileiro. Entende-se, portanto, que essa
Mitologia não foi construída apenas pelo sujeito nem pelo gênero, mas por um gênero
que se individualiza e por um indivíduo que se generaliza, numa operação de construção
da narrativa que congrega e dissemina: na verdade, a Mitologia se constrói a si
mesma.
19
15
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 38-42.
16
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 133 p. 300.
17
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 39.
18
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, ‘Oitava Carta sobre o dogmatismo e o criticismo’ in Os Pensadores -
Schelling
, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 25.
19
Ver Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 41-42.
261
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
A Nova Carta Niemeyer de 1857
Conforme vimos nos capítulos anteriores,
20
estabeleceu-se, durante o final da
década de 1840 e o início da década de 1850, uma disputa em torno do regime da
narrativa que somente seria resolvida após a Querela que envolveu Gonçalves Dias e
Duarte da Ponte Ribeiro em 1853 no IHGB. Por conta da Querela, a organização de
uma inscrição do Estado no espaço, ensaiada desde 1850 pela ‘Comissão de Limites’,
somente pode ser posta em prática, através das composições de Ribeiro, após se
consolidar um novo regime da narração em torno da SNE.
Nesse sentido, a utilidade da cartografia já havia se tornado evidente, para o
Estado centralizado que então se formava, desde o começo das grandes revoltas
provinciais, especialmente a Balaiada, que passaram a impor um novo raio de ação ao
seu Exército. Já em 1840, Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, diante
da mobilidade das forças combatentes e do tamanho e complexidade do teatro de
operações, necessitaria mandar confeccionar um mapa da Província do Maranhão,
composto com dados e subsídios fornecidos por elementos de sua confiança, para que
lhe fosse possível organizar a logística e os deslocamentos de suas tropas, bem como a
administração das áreas sob seu controle.
Nesse sentido, a produção da Carta Niemeyer de 1846 chamaria a atenção dos
militares para a possibilidade de melhor utilizar os recursos do próprio Exército,
notadamente do seu corpo de Engenheiros e da sua Oficina Litográfica, visando com
isso proporcionar às atividades militares e administrativas um registro útil, adequado e
confiável do espaço. Caberia novamente a Lima e Silva implementar essa iniciativa,
uma vez designado Presidente da Província do Rio Grande do Sul: Niemeyer seria
chamado para trabalhar diretamente com o seu Estado-Maior, sendo encarregado de
compor um mapa que englobasse aquela Província junto com o Uruguai e o sistema
fluvial adjacente, o qual seria utilizado na campanha dos Farrapos e nas guerras contra
Oribe e Rosas nos anos 1851 e 1852.
21
Passando a ocupar a função de Ministro dos Negócios da Guerra, Lima e Silva
incumbiria Niemeyer de produzir uma Carta Geral do Império do Brasil, a qual
20
Ver nesta tese os capítulos ‘Um itinerário do valioso ao possível’ e ‘O espelho do jacobina’.
21
Carta de Conrado Jacob de Niemeyer ao secretário do IHGB Manuel de Araújo Porto Alegre, em 12/12/1857.
IHGB, Documento 42 Lata 310;
A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo
Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre
geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944, p. 14.
262
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
começou a ser composta, pelo menos, em 1855.
22
Assim, este mapa, doravante chamado
de ‘Nova Carta’, deve ser entendido em razão das experiências anteriores, até mesmo
porque, quando de sua composição, tinha-se em vista a possibilidade de um contencioso
com o Paraguai,
23
ocasionando que a representação do espaço brasileiro fosse feita
através de um enquadramento que continha o território daquele país.
24
A partir deste caso, podemos entender a utilização dos símbolos e recursos
técnicos na cartografia enquanto recursos retóricos, desde que, a partir de
Schopenhauer, a retórica não seja entendida apenas como no edifício aristotélico, ou
seja, como um sistema ordenado e dividido em categorias formais, mas, também como
uma intelecção da linguagem segundo a liberdade da Vontade, ou seja, como um
facilitador da representação, uma criação que, adaptada às circunstâncias, utiliza um
repertório conhecido, aceito e legitimado.
Portanto, utilizaremos a idéia de recurso retórico conforme este raciocínio, ou
seja, entendendo que a retórica aristotélica é um estilo da ‘gramática da linguagem’ já
legitimado pelas elites intelectuais, incorporado à ‘linguagem do espaço’ e registrado na
composição cartográfica, nas corografias e na operação da narrativa, mas, entendendo
também que a intelecção da linguagem utilizará recursos retóricos que não estavam
apenas ligados à Retórica aristotélica, mas que se constituíram segundo a liberdade da
Vontade e conforme a paixão, repetimos, numa criação adaptada às circunstâncias e que
poderemos entender também conforme a idéia de uma sociabilidade da escrita.
25
Assim, a ‘Nova Carta’ de 1857 utilizava o enquadramento como um recurso
retórico, visando não só divulgar as pretensões brasileiras na região do Paraguai
26
ou os
limites acertados no Tratado com o Uruguai de 1851, mas de acordo com os
22
No início de 1856 já haviam sido reduzidas várias das cartas provinciais utilizadas por Niemeyer, o que recua o
início da composição da Carta para, pelo menos 1855. Ver Ofício n° 1 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís
Alves de Lima e Silva, 2/05/1856, in
A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo
Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre
geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.
23
Segundo Ribeiro, a ‘Nova Carta’ Niemeyer foi ‘construída positivamente para mostrar a fronteira do Império com
a República do Paraguai’. Ver Duarte da Ponte Ribeiro, Exposição dos trabalhos geográficos e hidrográficos que
serviram de base à Carta Geral do Império exibida na Exposição Nacional de 1875. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1876, p. 88.
24
Em relação ao conceito de enquadramento ver, nesta tese, o capítulo ‘Mapeando o vazio’.
25
Ver, nesta tese, o capítulo ‘A descrição do contemplador’.
26
A Nova Niemeyer utiliza, com esse propósito, os trabalhos do Barão de Caçapava, o demarcador dos limites com o
Uruguai e os trabalhos do Brigadeiro Bellegard na exploração do rio Paraguai. Ver Ofício n° 1 de Niemeyer para
Luís Alves de Lima e Silva, 2/05/1856, in
A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar
pelo Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta
sobre geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.
263
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
condicionamentos do processo externo e do processo interno. Por conseguinte, a
composição da ‘Nova Carta’ deve ser entendida também como uma atualização da Carta
de 1846, uma vez que consolidava e divulgava novas formas de intuição do espaço
então circulantes no teatro da narrativa.
27
Estas novas intuições do espaço relatadas no
IHGB,
28
seriam integradas à ‘Nova Carta’ através dos elementos proporcionados pelas
recentes explorações no interior do Paraná, de São Paulo e de Mato Grosso, conduzidas
por João Henrique Elliot e subvencionadas pelo Barão de Antonina, que visavam a
ocupação daquelas áreas e o aproveitamento de sua comunicação com Cuiabá.
29
Uma conexão entre esta nova intuição do espaço e o registro dos seus elementos
na ‘Nova Carta’ pode ser exemplificada por deste ter gerado diferentes percepções do
espaço, sendo que a primeira destas foi inscrita por meio da utilização de um recurso
retórico distinto, o elemento narrativo misto.
30
No caso, este representava à área
imediatamente visada pela expansão agrícola, o interior de São Paulo, percebida
enquanto “Sertões inteiramente desconhecidos e ocupados por índios ferozes”, por
conseguinte, um território entendido como aberto à intervenção ‘civilizadora’ do Estado
e dos particulares. A segunda percepção do espaço foi inscrita por meio de elementos
narrativos puros,
31
no caso, representando as regiões adjacentes àquela primeira área,
especialmente no Paraná, percebidas através de uma ligação com a ocupação anterior,
por exemplo, as “Ruínas do Loreto” e o rio Pirapó, “descoberto pela segunda vez em
27
A ‘intuição’ deve ser entendida a partir de Schopenhauer, como uma intelecção do pensamento, integrando o
terceiro nivel de apreensão do ‘processo interno’, ligado à percepção das formas de intuição do espaço. Ver nesta
tese o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.
28
Ver João Henrique Elliot, ‘Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para
descobrir uma via de comunicação entre o porto da vila de Antonina e o Baixo Paraguai na província de Mato
Grosso: feitas nos anos de 1844 a 1847 pelo sertanista o Sr. Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Sr. João
Henrique Elliot’,
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 10 (X), 1848; John Henrique Elliot,
‘Resumo do itinerário de uma viagem exploradora pelos rios Verde, Itareré, Paranapanema, e seus afluentes, pelo
Paraná, Ivary e Sertões adjacentes, empreendida por ordem do Ex. Sr. Barão de Antonina’, in
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IX, n° 5, 1847.
29
Os rascunhos das Cartas Corográficas da Província do Paraná, e do Mato Grosso, indicando as vias de
comunicação com o Paraná, por João Henrique Elliot. Ver Ofício n° 1 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís
Alves de Lima e Silva, 2/05/1856, in
A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo
Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre
geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.
30
‘Elemento narrativo puro’ é entendido como a identificação de elemento geográfico específico através da
disposição sobre o mapa de uma frase narrativa, isto é, ligada à narrativa ver o capítulo ‘Mapeando o vazio’.
31
‘Elemento narrativo misto’ é entendido como a fusão entre um ‘símbolo cartográfico’ e uma frase narrativa, que,
ao invés de identificar um elemento geográfico, designa um espaço específico ver o capítulo ‘Mapeando o
vazio’.
264
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
1852”, territórios então entendidos como devendo ser incorporados através da
colonização.
Portanto, podemos entender que a nova intuição do espaço e os novos elementos
foram transpostos para a ‘Nova Carta’ num registro simultaneamente descritivo e
enunciador do espaço, disponibilizado por uma ‘linguagem do espaço’ constituída por
um ‘saber sobre o espaço’ que refletia as condições da ‘gramática da linguagem’.
A Carta Geográfica de 1856
Na verdade, o conflito com o Paraguai estava pendente desde o ‘Tratado de
Aliança Defensiva’ assinado com aquela República em 1850, já que o Brasil entenderia
que este lhe assegurara o direito ao livre trânsito pelo rio Paraguai, negado
sucessivamente em 1853 e em 1855, quando teria sido atrelado pelo Paraguai a uma
discussão de limites a ser efetivada somente em 1856. Nesta discussão o livre trânsito
seria novamente protelado por um prazo de seis anos, ou seja, até 1862, até quando se
combinara respeitar o uti possidetis de 1856.
32
Após as discussões de limites entre o Brasil e o Paraguai acontecidas em abril de
1856, foi composta pela SNE a “‘Carta Geográfica’ de uma parte do Império do Brasil
confinante com a Confederação Argentina e a República do Paraguai”, doravante
referida como ‘Carta Geográfica’, sendo impressa já em agosto de 1856 no Arquivo
Militar e contando com uma tiragem de 1.550 exemplares, muito alta para a época.
33
Como na ‘Carta Geográfica’ se procuraria privilegiar o registro dos elementos
geográficos que compunham o uti possidetis brasileiro, sua composição, feita por
Ribeiro segundo a orientação de José Maria da Silva Paranhos, então Ministro dos
Negócios Estrangeiros, desconsideraria problemas de ordem de grandeza, escala e
importância geográfica, destacando rios, serra, povoações e postos militares que
normalmente não seriam registrados num mapa que considerasse tal escala. Assim,
qualificar-se-ia e ordenar-se-ia a presença da Nação e do Estado no espaço através da
criação de uma grande variedade de símbolos cartográficos, na verdade, recursos
32
Ver ‘Tratado de Aliança Defensiva’, 25/12/1856; ‘Correspondência entre o Encarregado de Negócios do Brasil em
Assunção e o Governo Paraguaio’, 10/12/1853; ‘Correspondência relativa à Missão Especial do Chefe de
Esquadra Pedro Ferreira de Oliveira’, Abril de 1855; ‘Tratado de Amizade Comércio e Navegação’, 27/04/1855 e
‘Convenção de limites entre Brasil e Paraguai’, 6/04/1856 in José Manoel Cardoso Oliveira,
Actos Diplomáticos
do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1997
33
Conforme carta de Duarte da Ponte Ribeiro para José Maria da Silva Paranhos, s/data. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 3, Pasta 27.
265
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
retóricos que permitiriam que fossem abrangidos na ‘Carta Geográfica’ os menos
significativos assentamentos humanos, permitindo qualificá-lo ainda enquanto civis ou
militares e, respectivamente, ordená-los em cidades, vilas, povoações, aldeias, fazendas
e estabelecimentos ou fortalezas, fortins, guardas e destacamentos.
34
A centralidade da argumentação do uti possidetis na composição do mapa
levaria mesmo à utilização de referenciais comuns aos dois países em lugar de
referenciais particulares, como a utilização do Meridiano de Paris ao invés do
Meridiano do Rio de Janeiro, bem como à citação no rodapé da ‘Carta Geográfica’ de
todas as fontes cartográficas utilizadas na sua composição, visando, deste modo,
emprestar-lhe autoridade e credibilidade.
Por outro lado, passar-se-ia a substituir os topônimos usuais ou tradicionais por
topônimos novos, apenas utilizados pelo Brasil durante a discussão de limites de 1856,
assim, registrando-se o território por meio da inscrição também da percepção do Estado.
Seria, por exemplo, o caso do vocábulo Iguatemy, carregado de conteúdo simbólico por
conta de ligação nas corografias ao episódio do ‘martírio’ no Presídio de Nossa Senhora
dos Prazeres.
35
Assim, o vocábulo Iguatemy seria utilizado pela primeira vez num
mapa, em lugar de Guatemy, empregado pela Comissão Demarcadora de 1754;
Guatemi, como na Correspondência oficial de 1767; Igatemi, usado no Tratado
Acessório de Santo Ildefonso em 1778 ou Iguatemi e Igatemi conforme a Comissão
Demarcadora de 1787.
36
A concorrência entre a Nova Carta e a Carta Geográfica
Tendo-se explicado a composição da ‘Nova Carta’ e da ‘Carta Geográfica’,
algumas questões precisam ser levantadas: sabendo-se que a composição da ‘Nova
Carta’ começou pelo menos em 1855 e que a composição da ‘Carta Geográfica’
somente teve início após abril de 1856, como é possível explicar que esta última tenha
sido impressa um ano antes da primeira ? Seria possível entender que a construção das
duas cartas foi concorrencial ? Quais as diferenças e semelhanças entre as duas cartas e
o que isso implicaria ?
34
Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho. Carta geográfica de uma parte do Império do
Brasil confinante com a Confederação Argentina e a República do Paraguay.1856
35
Ver o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.
36
Correspondência entre Duarte da Ponte Ribeiro e José Maria da Silva Paranhos, Agosto de 1856. AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 3, Pasta 27.
266
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Através do exame da correspondência interna da SNE pudemos verificar que,
pelo menos uma vez, a SNE deliberadamente atuou no sentido de atrasar ou tornar
indisponíveis os recursos para o término da ‘Nova Carta’. No caso, em julho de 1856,
após ser alertado por Ribeiro de que “o único bom gravador disponível” no Arquivo
Militar iria ser empregado na litografia da ‘Nova Carta’, Paranhos contatou o Diretor do
Arquivo Militar, pedindo-lhe que aquele servidor fosse alocado exclusivamente na
litografia da ‘Carta Geográfica’, tornando necessário que a ‘Nova Carta’ fosse impressa
na Litografia Rensburg.
37
Ainda, o exame dos Ofícios enviados por Niemeyer a Lima e Silva sugere que a
SNE utilizou sua influência para que os registros da ‘Nova Carta’ correspondessem aos
anseios presentes durante a composição da ‘Carta Geográfica’. Em Ofício de agosto de
1856, Niemeyer justificaria para Lima e Silva o atraso da ‘Nova Carta’ por conta de
ainda estar lhe faltando a coordenação de parte do mapa, “cujo esboço se acha em poder
do Conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro”. Já no Ofício seguinte, Niemeyer relataria a
Lima e Silva ter recebido de Paranhos, por empréstimo, a ‘Carta Geográfica’, “para que
fosse extraído o que convier”.
38
Finalmente, pelos Ofícios enviados por Niemeyer a Lima e Silva entre outubro e
dezembro de 1856, compreende-se que, após estarem ultimadas todas as correções e já
estando adicionados os quadros estatísticos, última etapa da construção da carta,
decidir-se-ia, na ultima hora, acrescentar-se uma planta do Rio de Janeiro ao corpo da
carta. Esta adição da planta do Rio de Janeiro resultou num acréscimo às dimensões da
carta e num subseqüente aumento das despesas para a impressão, tornando preciso
aguardar-se sua autorização pelo Ministério dos Negócios da Guerra, após o que ainda
necessitou-se esperar pela aquisição na Europa do restante do papel necessário.
39
Por
conta desse atraso, o Relatório da SNE onde se incluiu a ‘Carta Geográfica’ como anexo
e que, por conseguinte, circularia apenas no início de 1857, foi impresso antes da ‘Nova
37
Conforme troca de correspondência entre Duarte da Ponte Ribeiro e José Maria da Silva Paranhos, 22/07/1856.
AHI, Arquivo particular, Lata 286, Maço 3, Pasta 27.
38
Ver Ofícios n° 6 e 7 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís Alves de Lima e Silva, 2/08/1856 e 8/08/1856, in A
‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo Tenente General Marquês de Caxias em
1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre geografia e cartografia realizado no Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.
39
Ver Ofícios n° 9, 10 e 13 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís Alves de Lima e Silva, 1/10/1856, 3/11/1856 e
2/03/1857, in
A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo Tenente General Marquês
de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre geografia e cartografia
realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.
267
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Carta’, constituindo-se, na primeira representação oficial do espaço nacional
reproduzida em escala.
Portanto, podemos supor, através das circunstâncias que explicam o atraso na
impressão da ‘Nova Carta’, que sua construção foi entendida pela SNE como
concorrencial em relação à ‘Carta Geográfica’, mas, por conta desse entendimento,
existiria alguma característica que as distinguisse quanto ao regime da narrativa ?
Nesse sentido, as cartas divergem em três pontos: em primeiro lugar, em relação
à intuição dos limites do espaço nacional. Enquanto a ‘Carta Geográfica’ se atinha à
‘norma narrativa’ e aos propósitos e esforços do novo regime da narração de diminuir
os contenciosos mesmo que ao preço de uma interpretação mais liberal dos limites, a
‘Nova Carta’ registrava limites mais dilatados e, por conseguinte, próximos daqueles da
‘derivação’,
40
reativando as diferenças explicitadas na Querela de 1853.
Em segundo lugar, as duas cartas ainda divergem em relação ao repertório
documental utilizado como base de suas composições: enquanto na ‘Nova Carta’ este
repertório consistiu, preferencialmente, em reduções de cartas provinciais produzidas
por Engenheiros Militares, na ‘Carta Geográfica’, à exceção dos trabalhos sobre o
Paraná de João Henrique Elliot e Henrique de Beaurepaire Rohan
41
e das plantas
hidrográficas do rio Paraguai de Augusto Leverger, todos as outras fontes de sua
composição eram mapas do século XVIII. Deste modo, enquanto a ‘Carta Geográfica’
remetia à construção do momento, apenas utilizando trabalhos que dissessem respeito
aos registros de seus elementos narrativos, a ‘Nova Carta’ remetia a uma composição
baseada em baseada em critérios que se contrapunham àquela construção e limitavam a
capacidade de operação da narrativa, evidenciando uma reelaboração da ‘derivação’
em torno de argumentos que remetiam ao novo estilo cartográfico e geográfico.
Em terceiro lugar, como recurso retórico, em cada carta foram incluídos outros
trabalhos cartográficos mais pontuais em quadros menores, no caso, visando-se
emblematizar através da parte o todo. Contudo, a objetivação do recurso retórico em
cada uma das cartas visou diferentes finalidades da Vontade: enquanto na ‘Nova Carta’,
sua finalidade era apenas demonstrar a centralidade do Rio de Janeiro em relação ao
território nacional, na ‘Carta Geográfica’ pretendia-se enfatizar a legitimidade mesma
40
A respeito da ‘norma narrativa’ e da ‘derivação da norma’ ver, nesta tese, o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao
possível’.
41
Respectivamente, o ‘Mapa Corográfico da Província do Paraná’, de 1855 e o ‘Reconhecimento dos Campos de
Guarapuva’, de 1847-1848.
268
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
da ‘norma narrativa’. Nesse sentido, na ‘Nova Carta’ foi juntada, como vimos, uma
‘Planta do Rio de Janeiro’, enquanto que na ‘Carta Geográfica’, foi juntado o trabalho
topográfico de Augusto Leverger,
42
situado no cerne das controvérsias de limites com o
Paraguai, já que parte do arrazoado brasileiro consistia em tentar demonstrar que o Rio
Branco, base dos limites paraguaios, não passava de uma pequena baía do Rio Paraguai
que havia sido explorada por Leverger e portanto não deveria ser considerado nas
discussões entre os dois países. Por conseguinte, a utilização do recurso retórico na
‘Nova Carta’ evidencia a inauguração de novas possibilidades na construção da
narrativa do século XIX, através da inscrição deliberada da operação da narrativa na
representação mesma do Estado.
Portanto, nessa análise determinada pelo exame do regime da narração,
verificamos que a construção do espaço nacional se inicia por volta de 1855, ligada por
seus operadores à ‘norma narrativa’. Podemos entender que também se consolida, desta
vez no novo regime da narração, um repertório ligado à interpretação do arquivo da
SNE, privilegiando uma visão a partir do centro do Estado em detrimento de uma
organização do espaço construída a partir do local. Finalmente, compreendemos que
este repertório estará ainda ligado pelo regime da narração à constituição mesma da
operação da narrativa e à consecução do momento, conforme explicitado no capítulo
anterior.
43
A Teoria do Desempenho de Noam Chomsky e a narrativa do século XIX
Conforme observado pela análise anterior, as idéias da ‘visão do espaço a partir
do centro’ e da ‘consolidação de uma construção do espaço nacional’, se tornaram as
partes essenciais da estrutura da narrativa do século XIX. Através da mesma análise
podemos ainda entender que essas idéias se desdobrariam nas práticas do ‘registro da
centralização do Estado’ e da ‘inscrição do Estado no espaço’.
A ascensão destes componentes estruturais da narrativa revelam a integração de
uma percepção panóptica do espaço ao novo regime da narração que se consolida nas
corografias e na cartografia pelo incremento dos estatutos normatizadores e do controle
sobre aquelas atividades.
42
‘A Sanga que denominam rio Branco, conforme os reconhecimentos que dela fizeram o Capitão de Fragata
Augusto Leverger em 1846, e o Tenente de Artilharia Francisco Nunes da Cunha em 1855’.
43
Ver nesta tese o capítulo ‘O espelho do jacobina’.
269
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Utilizando novamente as idéias de Humboldt e Noam Chomsky acerca da
linguagem, se entendermos que numa comunidade que utilize a mesma língua possa
existir um grupo de membros onde o conhecimento dessa linguagem seja
uniformemente representado, poderíamos distinguir esse grupo como ‘falantes ideais’
[ideal speaker-hearers] e a representação daquele conhecimento como ‘gramática do
lingüista’ [linguist’s grammar].
Assim a ‘gramática da linguagem’ internalizada pelos demais falantes seria
verificada por uma ‘gramática do lingüista’, uma teoria científica, correta apenas
enquanto corresponda à internalização daqueles ‘falantes-ideais’, consistindo numa
teoria explicitamente articulada visando expressar precisamente as regras e princípios da
gramática nas suas mentes. Dir-se-ia então, que a ‘gramática do lingüista’ seria capaz de
gerar a linguagem apenas no sentido de que esta é capaz de determinar que suas
sentenças [sentences of the language] correspondam à ‘gramática da linguagem’, no
caso, através do controle de suas ‘descrições estruturais’ [structural descriptions].
Assim, podemos entender que, na ‘gramática da linguagem’, as sentenças e suas
descrições estruturais [structural descriptions] são geradas de modos diferenciados:
enquanto as sentenças são geradas de modo mais fraco [weakly generate], as suas
descrições estruturais são geradas mais fortemente [strongly generate].
44
Contudo, para Chomsky, é necessário ter em mente uma distinção conceitual
fundamental entre a geração das sentenças pela ‘gramática da linguagem’ e a produção
e interpretação das sentenças pelo falante, uma vez que este faz uso dos recursos de sua
própria gramática visando suas necessidades. Este ‘aspecto criativo do uso da
linguagem’ [creative aspect of language use] é uma característica distintiva da espécie
humana
45
e que serve para a livre expressão de seus pensamentos, uma vez que é
ilimitada em seus objetivos, não é controlada por estímulos e é utilizável em qualquer
contingência que nosso processo de pensamento possa compreender.
Por conseguinte, teremos de considerar a existência também de uma outra
gramática distinta, presente na mente de cada um daqueles que são capazes de
compreender e interpretar integralmente a ‘gramática da linguagem’ e que sujeitaria a
‘gramática do lingüista’ ao ‘uso criativo da linguagem’.
44
Noam Chomsky, ‘Language and unconscious knowledge’, in Rules and representations. New York: Columbia
University Press, 1978, p. 220-221.
45
Em relação à idéia do ‘aspecto criativo do uso da linguagem’ e seu desenvolvimento, ver nesta tese o capítulo
‘Mapeando o vazio’.
270
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Esta gramática de cada um dos falantes ideais, que denominaremos doravante de
‘gramática mental’, seria articulada por duas ‘competências’: a ‘competência
gramatical’ [grammatical competence], o conhecimento da forma e do sentido das
sentenças obtidas a partir das estruturas gramaticais; e a ‘competência pragmática’
[pragmatic competence], o conhecimento da condições e modos do uso apropriado em
conformidade com vários propósitos.
Assim, se a ‘gramática do lingüista’ irá caracterizar a linguagem determinando
as propriedades intrínsecas das sentenças através de suas ‘descrições estruturais’ e
determinando a ‘competência gramatical’, a ‘competência pragmática’ é que finalmente
determinará como a linguagem será efetivamente estruturada.
Consequentemente, como a ‘competência pragmática’ advêm do uso criativo da
linguagem por parte do falante ideal a partir de sua ‘gramática mental’ e esta determina
a estruturação efetiva da linguagem, o estudo das competências pode ser feito através da
construção de uma ‘teoria do desempenho’ que deve levar em conta a estrutura da
gramática do ‘falante ideal’ e o modo pelo qual este organizou as experiências.
46
Deste modo, consideraremos que a estrutura da narrativa do século XIX foi
constituída pelo exercício das várias ‘competências’ expressas no teatro da narrativa e
que, a partir do novo regime da narração, sua estrutura deve ser estudada em função de
uma ‘teoria do desempenho’ de seus operadores, que delimite e caracterize essas
competências, conforme as idéias expostas na abertura deste capítulo, levando em conta
a idéia da resistência a uma derrota do princípio subjetivo.
Portanto, a inscrição do espaço e a ‘inscrição do Estado no espaço’ foram
constituídas também a partir das experiências e oportunidades dos operadores,
determinando que a estas inscrições correspondam certas características somente
verificáveis a partir de uma ‘linguagem sobre o espaço’ que incorpore as contribuições
desses operadores e que considere a pertinência de suas interpretações da língua.
Por outro lado, entendemos que as partes estruturais da narrativa estreitamente
ligadas a uma descrição do Estado e a um ‘registro da centralização’ foram constituídas
mais fortemente pela ‘gramática do lingüista’ que as sentenças dependentes da
‘gramática mental’, deste modo, compreendemos que a ‘inscrição do Estado no espaço’
46
Noam Chomsky, ‘Language and unconscious knowledge’, in Rules and representations. New York: Columbia
University Press, 1978, p. 220-225.
271
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
através da cartografia foi constituída mais fracamente que a visão do espaço a partir do
centro’ e o ‘registro da centralização do Estado’ nas corografias.
Assim, como primeiro passo para a construção de uma ‘teoria da competência’
na narrativa do século XIX começaremos, a seguir, pela exposição na cartografia e nas
corografias, da ‘visão do espaço a partir do centro’ e do ‘registro da centralização do
Estado’, ou seja, de um espaço constituído a partir da intelecção do Estado e a partir dos
esforços daqueles que o constituíram. Em seguida, passaremos ao estudo da constituição
da ‘inscrição do Estado no espaço’, ou seja, do registro da representação do Estado nas
corografias e na cartografia segundo as características dos seus processos internos e
segundo a competência gramatical e pragmática dos seus operadores.
A visão do espaço a partir do centro e o registro da centralização do Estado
Em relação à ‘visão do espaço a partir do centro’, entendemos que esta possa ser
definida a partir da leitura mais conhecida do panoptismo de Jeremy Bentham, que foi a
realizada por Michel Foucault em seu livro ‘Vigiar e Punir’,
47
e que efetivamente
relaciona, como o próprio Bentham,
48
a figura arquitetural do panóptico a um princípio
de controle social que automatiza e desindividualiza o poder, entendendo o centro do
panóptico como um lugar de onde a vista se estende continuamente. Então, a partir da
leitura de Foucault, podemos entender que as corografias e a cartografia são lugares do
discurso a partir dos quais o panoptismo se inscreve nas relações de conhecimento e
também instrumentos para que essa prática fosse exercida sobre o espaço.
Além disto, Bentham previa ainda uma segunda utilização do panóptico, no
caso, como um experimento capaz de viabilizar o estudo dos indivíduos através da
observação do desenvolvimento de sua linguagem. Nesse sentido, um indivíduo que
fosse destinado ao panóptico desde o seu nascimento poderia ser testado pela
administração ou subtração metódica de informações e insumos, visando-se, com isso,
conhecer “a genealogia de cada idéia observável” e observar-se e entender-se seu
transformação “com o máximo de detalhe”, contando-se que se pudesse conhecer,
numerar e encadear suas origens e construções.
49
47
Michel Foucault, ‘O panoptismo’, in Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987, p. 162-187.
48
‘[...] ver-se-á que ele é aplicável, penso eu, a todos e quaisquer estabelecimentos, nos quais, [...] queira-se manter
sob inspeção um certo número de pessoas.’ Jeremy Bentham,
O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 17.
49
Jeremy Bentham, O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 69.
272
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Os princípios dessa preocupação de Bentham pela organização de uma
‘administração da língua’ seriam também os mesmos de sua idéia de se constituírem leis
capazes de reunir todo o conjunto de leis, no caso, condensadas no ‘Panomion’:
subordinar o indivíduo aos fins últimos do Estado pela observação racional da patologia
da mente humana.
50
Assim, as atividades do centro do panóptico visavam também entender
circunscrever e reduzir o desvio e a divergência, podendo-se, a partir de uma análise
contínua do experimento, excluir-se e modificar-se o que não fosse desejável. Podemos,
por conseguinte, entender o panoptismo também enquanto uma reeducação contínua do
indivíduo que visa subordiná-lo a uma entidade única e controlar a inscrição e o registro
de suas representações, compreendendo-se também, neste sentido, o controle da
inscrição das suas idéias e do registro de suas intelecções.
Por conseguinte, a inscrição da ‘visão do espaço a partir do centro’ através da
cartografia e das corografias visava também reavivar continuamente os laços dos
indivíduos com o centro do panóptico, mas, para isto, o centro teria de ser claramente
identificável e a sua identidade necessariamente sempre distinguida. Portanto, a
linguagem seria responsável por dar existência às partes através do registro contínuo
destas junto ao centro, mas, classificando e numerando as partes, distinguindo suas
propriedades e reconduzindo-as ao centro, enfim, enfatizando uma centralidade e
ligando-a às relações de força e soberania.
FIGURA 25 - O RIO DE JANEIRO NOS ATLAS ESTRANGEIROS:
Detalhe da ‘Carta Laurie’. Fonte: General Chart of The Coasts of Brasil. London: Richard H. Laurie,
1853.
No caso das cartas gerais brasileiras, durante o novo regime da narração, o
mapa deixaria de ser referenciado pelos meridianos das capitais estrangeiras, ou de
50
Jeremy Bentham, Pannomial Fragments, Chapter I. ‘Bentham Project’ in http: // www.la.utexas.edu / labyrinth.
273
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pontos significativos do território, como, por exemplo, o Cabo de Santo Agostinho, para
ser identificado com um centro físico do Estado, a Corte. Por sua vez, na Corte, a
definição exata do Meridiano Zero não seria o centro político nem o centro científico do
Estado, o Senado ou Observatório Imperial, mas, o Pão de Açúcar, um marco
geográfico presente na maior parte das gravuras que eram insertas em detalhe nos atlas
estrangeiros. Em última análise, a referenciação dos mapas no novo regime da narração
enfatizava uma idéia da centralidade, relacionando o centro com a inamovibilidade da
natureza e com o reconhecimento a partir do estrangeiro, ambos intuídos no Pão de
Açúcar (ver Figura 25).
Por outro lado, a idéia da centralidade também pode ser observada na
discrepância dos resultados obtidos nos cálculos da área do território nacional em
relação ao mesmo cálculo das Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ainda, que
essa discrepância possa ser atribuída a algum erro de cálculo dos autores ou a utilização
de dados defasados, o fato é que essa discrepância é bastante homogênea no tempo,
especialmente se comparada com os dados de duas outras Províncias, Goiás e Bahia,
conforme podemos observar na tabela seguinte:
TABELA 3 — ÁREAS DO BRASIL E DE ALGUMAS PROVÍNCIAS:
Niemayer Compêndio C.Mendes Corografia D. E.
1843 1864 1868 1873 1920
SP
12.000 10.200 10.300 10.120 7.980
RJ
6.200 1.440 2.400 2.400 1.370
BA
14.000 14.836 14.836 14.836 17.090
GO
25.000 25.000 26.000 26.000 21.320
BR
270.000 277.350 291.018 290.047 270.008
Tabela: Renato Amado Peixoto — Áreas em Léguas². Fontes: Carta de Jacob Conrado de Niemeyer para o
Visconde de São Leopoldo, 20/9/1843 in Geraldo José Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números
para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, P. 7-8; Thomaz Pompêo de
Souza Brasil, Compêndio elementar de Geografia Geral e Especial do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo &
Henrique Laemmert, 1864, 4ª Edição; Candido Mendes de Almeida, Atlas do Império do Brazil. Rio de
Janeiro: Litografia do Instituto Philomathico, 1868; O Império do Brasil na Exposição Universal de 1873 e
m
Viena D'áustria. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1873; Diretoria Geral de Estatística, 1920 In Geraldo José
Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre:
Tipografia Do Centro, 1924, P. 7-8
.
Na avaliação de área feita por Niemeyer, embora a superfície do território
brasileiro tenha sido avaliada com uma aproximação bastante grande em relação aos
cálculos feitos em 1920, as superfícies das Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo
274
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
tiveram seu tamanho muito aumentado, respectivamente, em 452% e 50%: ressalte-se,
contudo, que nenhuma das duas Províncias foi representada segundo essas grandezas na
Carta Niemeyer de 1846. Mesmo que ao longo do século XIX a avaliação da superfície
dessas duas Províncias diminua constantemente, conforme o cálculo de outros autores
(Souza Brasil, Candido Mendes e segundo a Corografia de 1873), suas áreas ainda
continuaram bem maiores do que na avaliação de 1920. Já para as outras duas
províncias que figuram na tabela como instrumento de controle (Goiás e Bahia) os
cálculos de suas superfícies apresentam um resultado praticamente constante durante o
século XIX e que é bastante compatível com a avaliação de 1920: poderíamos assim
entender que o ‘registro da centralização do Estado’ implicava em distinguir nos
elementos do espaço uma relação idealizada que se expressava também por uma
idealização de suas grandezas.
O esquadrinhamento do centro antecedeu mesmo a organização de um esforço
semelhante em relação ao espaço nacional: enquanto em 1861 já havia sido requisitada
pelo Ministério da Fazenda a organização de uma carta cadastral da Corte ao Ministério
da Agricultura, a mesma requisição em relação à organização de uma Carta Geral do
Brasil só se daria um ano depois, sendo que, somente em 1870 seria instituída uma
comissão destinada a produzir a Carta Geral do Império.
A prioridade na demanda pela Carta Cadastral pode ser explicada em função das
necessidades do Estado, no caso, a modernização do centro, que podemos entender
como fazendo parte de uma construção da centralidade.
Em primeiro lugar, havia necessidade de uma nova planta do Rio de Janeiro
onde os traçados das ruas fossem mais claros e pudessem servir de base às concessões
de bonde e aos projetos das empresas que visavam outros trabalhos de melhoria urbana.
Enquanto que nas primeiras plantas do Rio de Janeiro os elementos geográficos
foram mais destacados que o traçado urbano, inclusive pela recepção do espaço exterior
à carta no enquadramento, nas novas plantas, coincidindo com o ritmo da centralidade,
o traçado urbano seria mais enfatizado e a natureza tornar-se-ia apenas sua coadjuvante.
Em segundo lugar, era necessário organizar registros cadastrais oficiais, os quais
especificassem os números das casas e os nomes das ruas, especialmente confusos nos
subúrbios, tendo em vista o desenvolvimento das atividades de crédito bancário, já que
a certidão extraída de um registro geral provaria os direitos de propriedade e facilitaria
as transações.
275
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O território da cidade do Rio de Janeiro era, até então, distinguido pela
experimentação humana, sendo que seus elementos, na maioria das vezes, não possuíam
denominações outorgadas pela administração, mas, designações que se transferiam ou
eram trocadas de acordo com aquela experimentação, como era o caso, por exemplo, do
Beco do Teles, associado com o juiz de órfãos Francisco Teles Barreto de Menezes ou
da Rua de Mata-Cavalos, que esburacada e lamacenta, representava um perigo real para
os cavalos daqueles que por ali transitavam. Do mesmo modo, grandes blocos da cidade
eram reconhecidos pela associação com certos esquemas mentais estabelecidos pelo uso
cotidiano, como, por exemplo, a Rua do Mercado e o Largo do Mercado, assim
designados pela sua localização junto ao mercado da cidade, por conseguinte,
consubstanciando-se uma vivificação do território que não poderia ser transposta para
outros modelos se a respectiva atividade ou comunidade de idéias não fosse também
transportada e estabelecida no centro mesmo da construção cartográfica.
A partir do novo regime da narração, a construção da centralidade desdobrar-
se-ia numa inversão da relação do indivíduo com o território a partir da constituição do
Estado mesmo no centro da construção cartográfica. Nesse sentido, dar-se-ia sua
inscrição no plano privado pela associação de suas atividades e de sua narrativa com as
denominações urbanas, resultando no que poderíamos chamar de uma ‘territorialização’
do indivíduo por conta de sua associação com a inscrição do Estado. Assim, os blocos
urbanos passariam a ser distinguidos em circunscrições, enquanto que, as ruas
passariam a ser numeradas e novamente nomeadas, como, por exemplo, a Rua de Mata-
Cavalos, que teria seu nome trocado para Rua do Riachuelo por conta do registro da
narrativa da Guerra do Paraguai.
Em terceiro lugar, havia ainda a necessidade da expansão da arrecadação de
impostos que deveria fazer-se pela verificação rigorosa do tamanho das propriedades
urbanas e pela definição das freguesias da cidade com vistas a definir o valor da
taxação.
Os trabalhos da ‘Triangulação do Município da Corte’ destinados à confecção
da carta cadastral se iniciaram em 1866 e terminaram em 1874 empregando apenas 6
pessoas, sendo um engenheiro, um desenhista, um ajudante desenhista, dois copistas e
um servente subordinados à Inspetoria Geral das Obras Públicas. Já em 1868 a
confecção de plantas cadastrais da cidade e subúrbios abrangia 34 folhas ou 22.000.000
m², sendo que esse trabalho não se deu sem a resistência da população, que impedia os
trianguladores de penetrar no interior de algumas casas para levantar a planta dos
276
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
quintais, uma vez que estes aumentariam da área dos imóveis. Outros inquilinos e
proprietários se opunham mesmo ao levantamento da planta dos seus prédios,
especialmente aqueles que esperaram a passagem dos trianguladores para poderem
expandir suas construções.
Como ainda em 1868 o esforço de organização da Carta Geral praticamente não
havia saído das intenções por conta “da dificuldade de encontrar desenhistas com
habilitações especiais para este gênero de trabalho e em segundo lugar da carência de
informações indispensáveis para o preenchimento de várias lacunas”,
51
em 1870
resolveu-se fundi-lo com a ‘Triangulação do Município da Corte’, formando-se assim a
chamada ‘Comissão da Carta Geral do Império’ sob a direção de Antonio Maria de
Oliveira Bulhões, então engenheiro-chefe da Estrada de Ferro D. Pedro II.
Entretanto, ainda em 1870, os seis funcionários que passaram a se dividir entre a
Carta Cadastral e a Carta Geral receberiam outra tarefa: executar uma planta topográfica
detalhada da Corte que substituísse o antigo trabalho feito pelo Arquivo Militar. Esta
nova planta compreenderia a parte então denominada Intra-muros, ou seja do Arpoador
até Jacarepaguá, mas, por exigência do Ministério da Fazenda, seria incluída nesta mais
uma légua adicional em direção a parte Extra-muros para que se alcançasse Santa Cruz.
Esta exigência nunca seria cumprida, por conta da absoluta falta de meios e recursos,
acarretando que a planta ficasse incompleta quando da extinção da ‘Comissão da Carta
Geral do Império’ em 23 de fevereiro de 1878.
52
Entretanto, haja vista a escassez de recursos da Comissão e a necessidade de se
constituir mais rapidamente um ‘registro da centralidade do Estado no espaço’,
conforme explicitaremos mais adiante, foi necessário possibilitar que os objetivos da
Comissão fossem circunscritos pelas iniciativas do novo regime da narração,
constituindo-se aquele registro, por conseguinte, mais fracamente que outros registros
da centralidade, como verificaremos a seguir.
51
Relatório do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1868, p. 10.
52
Em relação à ‘Triangulação do Município da Corte’ ver Relatório do Ministério dos Negócios da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas, 1868, p. 10-13; A Exposição de Obras Públicas em 1875. Rio de Janeiro: Tipografia
Acadêmica, 1876, p. 423; José Manoel da Silva,
Relatório Final da Seção de Triangulação do Município da Corte.
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 5-14 e 37-40.
277
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O registro da centralidade do Estado e as novas corografias
‘A visão a partir do centro do espaço’ também seria definida através de
iniciativas destinadas a popularizar as corografias além dos grêmios literários, que
denominaremos de novas corografias. Esta iniciativa, operada pelos próprios ‘literatos’,
compenetrados “da necessidade de ensinar ao povo”, seria então exaltada pela elite
letrada que a entendia como um esforço literário menor, mas, necessário, visando
disseminar o saber e o amor à pátria, “que é o céu do coração dos bons, como o céu é a
pátria da alma dos justos”.
53
‘O ensaio corográfico do Brasil’ e as ‘Lições de História do Brasil’, escritas em
1854,
54
foram os primeiros exemplares dessa linhagem divulgadora, que estaria então
incumbida da “missão de espalhar as primeiras e mais indispensáveis noções de nossa
história e corografia pela massa da população menos instruída”. Segundo seus pares do
IHGB, aqueles autores o faziam “mais pelo amor de seus concidadãos, do que por glória
própria,” ou antes ainda, convertendo “a glória própria naquele amor”, obra muito pia e
notável, uma vez que “a glória que não se converte em amizade é semente que não
germina, e flama que não aquece.”
55
Assim, o conteúdo das novas corografias era um resumo das obras que
constituíam o cânone da narrativa, conforme definido no IHGB, e eram destinadas a um
público menos letrado, “a massa da população menos instruída” através de tiragens mais
baratas e menos volumosas, com uma linguagem acessível, didática e imagética,
destinada até mesmo à instrução infantil: “no berço ainda, e no regaço materno
adormeça o menino ao som das batalhas, ou ouvindo as lendas, e os contos forjados
com as tradições do país, e desde que possa soletrar um nome, soletre-o no livro da
história da terra em que nasceu.”
56
Contudo, como em poucos anos as novas corografias, de um gênero simples,
mas imaginativo, converter-se-iam a um estilo quase catequético, que privilegiava
apenas a repetição e memorização? Por que as novas corografias se constituiriam
exclusivamente num ‘registro da centralidade do Estado’?
53
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 25-26.
54
Alexandre José de Mello & Ignácio Accioli de Cerqueira Silva Moraes. Ensaio Corográfico do Império do Brasil.
Rio de Janeiro: Emp. Typ. P. Brito, 1854; Antônio Alvares Pereira Coruja,
Lições de História do Brasil, Rio de
Janeiro: s/editor, 1854.
55
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 24.
56
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 25-26.
278
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Na verdade, esta transformação foi facilitada pela contribuição de uma obra que
pretendia então se filiar à geografia política que começava a ser produzida na Europa e
que era divulgada em anuais estatísticos, revistas e tratados. Essa obra, pioneira nessa
área no Brasil, foi o ‘Compêndio elementar de Geografia Geral e especial do Brasil’,
sintomaticamente adotado na década de 1860 pelo Colégio Pedro II e pelos demais
seminários e liceus do Império,
57
que também utilizava o cânone definido pelo IHGB
como as novas corografias, mas que, a exemplo das obras européias, se utilizava
também dos relatórios ministeriais e outros dados oficiais.
Por conseguinte, o ‘Compêndio’ possuía uma construção onde, primeiramente, o
território nacional (TN) seria descrito conforme o cânone (D), e depois conforme
qualidades (Q) enquadradas nos princípios geográficos. Depois, cada uma de suas
partes, definidas segundo o critério político, as Províncias (P), seriam descritas pelas
mesmas qualidades anteriores (Q).
A estrutura dessa construção do ‘Compêndio’ (E2) pode ser exemplificada
segundo o seguinte modelo: TN = {D + Q + P} Æ TN = D Æ TN = Q1TN + Q2TN +
etc. Æ TN = P1 + P2 + etc. Æ P1 = Q1P1 + Q2P1 + etc. Æ P2 = Q1P2 + Q2P2 + etc.
Esta relação do todo com as partes foi facilitada pelo modelo então
predominante na geografia européia e que a pretendia conciliar a geografia (G) com a
corografia (C),
58
definindo esta última como uma de suas grandezas, contida na
Geografia Geral (GG), mas, por sua vez, contendo a Topografia (T). Segundo este
esquema, adotado pelo ‘Compêndio’, caberia à Geografia Geral descrever “as coisas
principais da terra considerada em sua totalidade”, enquanto que a Corografia relataria
“as coisas principais de cada região”, sobrando para a Topografia o encargo de “descer
às miudezas locais”.
59
Essa estrutura da construção predominante na geografia européia (E1) pode ser
exemplificada segundo o seguinte modelo: G = {GG C T} Æ GG = C1 + C2 +
etc. Æ C1 = T1 + T2 + etc.
Assim, comparando-se a estrutura do ‘Compêndio’ (E2) com a estrutura do
modelo geográfico (E1), podemos entender que a estrutura de E2 é derivada de E1, se
57
Thomaz Pompêo de Souza Brasil, Compêndio elementar de Geografia Geral e especial do Brasil. Rio de Janeiro:
Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, 4ª Edição.
58
A relação entre a Geografia e a Corografia foi trabalhada nesta tese no capítulo ‘A descrição do contemplador’.
59
Thomaz Pompêo de Souza Brasil, Compêndio elementar de Geografia Geral e especial do Brasil. Rio de Janeiro:
Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, 4ª Edição, p. 6.
279
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
considerarmos, conforme a idéia da ‘Economia da Derivação e da Representação’ de
Chomsky, que a linguagem é um ‘conjunto de especificações de parâmetros’ [set of
specifications for parameters] e não um sistema de regras para os modelos.
60
Assim, a
partir dessa idéia, entendemos que estes parâmetros surgiriam a partir das interações
com certos princípios fixos da gramática, no caso, da estrutura da narrativa: a ‘visão do
espaço a partir do centro’ e o ‘registro da centralização do Estado’.
Portanto, conforme a definição da ‘Economia da Derivação’, entendemos que
nas novas corografias não houve simplesmente uma transformação para um sistema de
regras causador do enrijecimento da sua estrutura, mas que, por um novo ‘conjunto de
especificações de parâmetros’ houve a intelecção da necessidade de se ‘minimizar as
derivações’ [minimazing derivations] que poderiam resultar das novas corografias.
61
Por conseguinte, se procurava evitar a divergência diminuindo-se o processo subjetivo,
semelhantemente ao que iria ser operado na cartografia após a consolidação da
‘inscrição do Estado’ e de acordo com a nossa idéia do panóptico de Bentham.
Contudo, para que possamos distinguir o parâmetro da derivação das novas
corografias (E3) produzidas após a publicação do ‘Compêndio’ (E2), precisamos antes
compreender como se deu a intelecção da necessidade de se ‘minimizar as derivações’.
Nesse sentido, se analisarmos a derivação da estrutura de E2 a partir de E1, podemos
distinguir como primeira especificação de parâmetro uma repartição do ‘sistema de
representação’ [D-Structure] em partes menores capazes de se conterem
sucessivamente. Já como segunda especificação de parâmetro, observamos que cada
uma das ‘descrições estruturais’ [Structural Descriptions - SD] dessas partes menores
deve ser obrigatoriamente definida em relação ao ‘sistema de representação’ como um
todo.
Conforme essa aproximação em relação ao problema, podemos distinguir, em
relação à derivação da estrutura de E3 a partir de E2, a necessidade de se reduzir o
desvio, diminuindo-se ao máximo o espaço do princípio subjetivo através de uma
delimitação das sentenças [sentences of the language] que poderiam ser geradas. No
caso, as sentenças seriam geradas estritamente em função das qualidades enquadradas
nos princípios geográficos (Q) e hierarquizadas sucessivamente conforme o modelo
60
Noam Chomsky, ‘Some notes on economy of Derivation and Representation’, in The Minimalist Program.
Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 129.
61
Ver Noam Chomsky, ‘Some notes on economy of Derivation and Representation’, in The Minimalist Program.
Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 138-143.
280
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
então dominante na geografia européia, ou seja, seriam geradas qualidades específicas
do território nacional, depois seriam geradas qualidades específicas das Províncias
relacionadas às qualidades do território nacional.
Por outro lado, havia a necessidade de se distinguir continuamente o registro da
centralidade, em razão das transformações da narrativa e da modernização do Estado, o
que somente poderia se consubstanciar nas corografias através de uma descrição do
território nacional conforme o Cânone (D). Este problema poderia levar,
consequentemente, a se buscar sempre novas intelecções da centralidade em relação ao
Cânone, continuamente se adicionando as novas obras e as antigas corografias que
continuavam sendo resgatadas, especialmente pelo IHGB. Como as novas corografias
destinavam-se a alcançar um público maior e mais disperso no território nacional do que
os modelos corográficos anteriores, especialmente por conta da subvenção do Estado e
de sua distribuição pelas bibliotecas e governos das províncias,
62
esperava-se que as
novas corografias atingissem leitores mais propensos a interpretar o espaço a partir de
uma visão local e que, ao mesmo tempo não participassem de um conteúdo gramatical
mínimo (aqui entendido como o conteúdo didático da narrativa).
63
Assim, a descrição
do território nacional conforme o Cânone (D), ou seja, a nova intelecção da
centralidade, deveria ser apenas desdobrada em relação a cada província, ligando-se
assim cada uma das partes através de uma narração de seu pertencimento ao centro.
A estrutura da construção das novas corografias (E3) pode ser exemplificada
segundo o seguinte modelo: TN = {D + Q + P} Æ {TN = D} Æ {TN = Q1TN + Q2TN
+ etc.} Æ {P1 = DP1 D / P1 = QP1 QTN + etc.} Æ {P2 = DP2 D / P2 = Q1P2
QTN + etc.}
Portanto, mesmo que as sentenças não se tornassem mais curtas, estas deveriam
ser firmemente ligadas à ‘gramática do lingüista’ e administradas segundo uma estrutura
rígida que orientasse sua composição, o que asseguraria que se permitisse a enunciação
das sentenças apenas conforme o registro da centralidade, tornando as novas
corografias meros registros mnemônicos da ‘centralidade do Estado no espaço’ (ver
Tabela 4).
62
Foi o caso, por exemplo da ‘Corografia histórica’ de Mello Moraes, subscrita pela Assembléia Nacional em 1864 e
1866. Ver Alexandre José de Mello Moraes,
Corografia histórica, genealógica, nobiliária e política do Império do
Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro & Comp, 1866.
63
A respeito da visão local de espaço ver nesta tese o capítulo ‘O mapa antes do território’.
281
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
TABELA 4 EXEMPLO DA ESTRUTURA DA ‘NOVA COROGRAFIA’:
O BRASIL EM GERAL:
Descrição física (Limites) (Situação) (Superfície) (Aspecto) (Clima) /Hidrografia
(Vertentes) (Baías e Portos) (Rios) / Sistemas de Montanhas / Ilhas / Cabos e Pontas.
Descrição Política (Noções históricas) (Religião) (Forma de governo) (Divisão
administrativa) (Divisão judiciária) (Divisão eclesiástica) (População) (Instrução) / Marinha
/ Exército / Colonização e Emigração.
PROVÍNCIAS
:
Des ituação) (Superfície) (Aspecto [Relevo]) (Clima [Salubridade])crição Física (Limites) (S
/ Hidrografia / Orografia.
Descrição Política (Capital) (Cidades principais) (População) (Força Pública)
(Representação Nacional) (Divisão Judiciária) (Divisão Eclesiástica) (Estradas de Ferro)
(Faróis) (Agricultura, Comércio e Indústria).
Produ
ç
ões
(
Reino Mineral
)
(
Reino Ve
g
etal
)
(
Reino Animal
)
(
Homens ilustres
)
.
Tabela: Renato Amado Peixoto. Fonte: Raul Villa Lobos, Corografia do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia
Mont’alverne, 1886.
A representação da nação nas Exposições Internacionais
As Exposições Internacionais desempenharam um papel extremamente
importante na formação da identidade cultural das nações européias durante o século
XIX, seja consolidando a imagem da nação junto aos seus cidadãos seja diferenciando
sua imagem das demais representações. Para que isto se tornasse possível, os Estados
que sediaram as Exposições despenderam somas vultuosas para que estas fossem
capazes de atrair grandes públicos: os cinco principais eventos do século XIX, Londres,
em 1851; Paris, em 1855; Londres, em 1872; Viena, em 1873 e Filadélfia, em 1876,
mobilizaram, em média, cerca de sete milhões de visitantes, sendo que, somente as
Exposições de Viena e Filadélfia custaram aos organizadores perto de 22 milhões de
dólares. Nesse sentido, deve-se observar que foram raras as Exposições Internacionais
que não geraram grandes prejuízos, mesmo que ficassem abertas à visitação, em média,
durante seis meses.
64
Cada Exposição era emblematizada por uma estrutura arquitetônica que
destinava-se a rivalizar com as anteriores e caracterizada como uma representação da
em si mesma do Estado que sediava o evento, promovendo-se a integração da arte e da
indústria, destinadas, em sua comunhão, a caracterizar o desenvolvimento espiritual e
64
Conforme informações estatísticas disponíveis em Donald G. Larson Collection on International Expositions and
Fairs, 1851-1940, Henry Madden Library, California State University, in http://www.lib.csufresno.edu /
subjectresources / specialcollections / worldfairs / welcome.html
282
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
material da nação e a personificar seus avanços tecnológicos, dramatizando-se a idéia de
progresso e de civilização.
65
Estas idéias destinavam-se a envolver a nação como um todo, soldando num
os meios rural e urbano, através de um modelo de organização derivado do evento de
Londres em 1851, onde se passou a dividir os produtos expostos por cada país segundo
oito categorizações principais, por sua vez subdivididas em trinta classes, 251 seções e
mais de 3.000 subseções. Estas categorizações principais, conforme o sistema de
Frédéric Le Play, um dos organizadores do evento de Paris em 1855, eram as seguintes:
primeiro, indústrias dedicadas à extração ou produção de materiais não acabados;
segundo, indústrias dedicadas à engenharia mecânica; terceiro, indústrias baseadas em
agentes químicos ou físicos ou relacionadas à ciência e ao ensino; quarto, indústria
relacionadas ao aprendizado de profissões; quinto, manufaturas de produtos minerais;
sexto, manufaturas de tecidos; sétimo, mobiliário, decoração, pintura e música; oitavo,
artes de excelência.
66
Cada um dos produtos expostos segundo essa categorização não estava
destinado inicialmente para a venda, mas, disposto nos estandes de cada país admitido à
participação como artefatos fora-de-série, peças consideradas em estado-de-arte e
capazes de, por si só, representarem toda uma faceta da nação, fosse o engenho humano,
fosse a perfeição da natureza, mas que demonstravam, sobretudo, o esforço humano
incentivado pelo Estado ou a capacidade de organização de esforço humano enfeixado
no Estado. Assim, nestes eventos, os visitantes admiravam a capacidade de organização
da diversidade pelo Estado, confrontados com amostras e retratos de um universo que se
estendia muito além da Europa e dos Estados Unidos, consagrando, assim, a habilidade
da tecnologia e da cultura européia em se projetar e em absorver esses novos espaços do
globo, inclusive, através da inclusão de exibições etnográficas, os zoológicos humanos.
Nesse sentido, a Exposição Internacional, era então entendida também como um evento
educativo e de entretenimento, faceta que foi, no caso dos eventos em Paris,
reconhecida, inclusive, pela elite intelectual francesa: escritores como Baudelaire,
Hugo, Flaubert, Maupassant e os irmãos Goncourt, escreveram sobre as Exposições
65
Margarida de Souza Neves, As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: Editora PUC-RJ, 1996.
66
Citado com a autorização do autor: Michael J. West, Spectacular ideology: the Expositions Universelles de Paris
and the formation of French Cultural Identity, 1855-1937, Projeto de Pesquisa, Department of Modern Languages,
Carnegie Mellon University, Pittsburg (manuscrito não-publicado), primeiro capítulo: ‘The End’.
283
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
expressando admiração e divertimento.
67
Contudo, os artefatos expostos não se
destinavam apenas à observação desinteressada do público, pois deveriam também ser
legitimados ou não pelo julgamento de uma Comissão de Premiação, que os inseria, a
seguir, no universo do mercado, facilitando e divulgando seus novos atributos —
fabricantes como Schneider, Krupp, Singer e Christofle e produtos como a lâmpada, o
estetoscópio, o rifle e até a Sopa Campbell’s se inseriram no mercado de consumo
graças às Exposições Internacionais.
68
Ainda, num momento em que os contatos entre os Estados se tornavam cada vez
mais dinâmicos, graças às crescentes transformações nas comunicações e nas finanças,
as Exposições serviram para que se intensificassem os contatos entre os países e se
possibilitasse a divulgação das suas possibilidades comerciais. Então, a participação do
Brasil nas Exposições Internacionais estava condicionava não apenas à constituição de
uma representação da nação mas também à consolidação de uma percepção de si mesma
conforme os insumos fornecidos pelo ‘saber sobre o espaço’.
Nas Exposições Internacionais, a aceitação de um país como expositor pela
Comissão Organizadora, significava que aquele estava obrigado a orientar sua
participação no evento segundo o sistema de divisão em categorias discernido por
Frédéric Le Play. Assim, a representação da nação nos eventos seria definida pelo modo
como o problema da participação houvesse sido discernido e encaminhado pela
comissão organizadora brasileira, por conseguinte, conforme uma ‘linguagem do
espaço’.
Depois da participação no evento de Paris em 1855, ocasião em que o Brasil foi
admitido pela primeira vez numa Exposição Internacional, passou-se a organizar uma
Exposição Nacional antecedendo o evento internacional, de modo que, pudessem ser
coletados e organizados os materiais e produtos destinados à próxima Exposição
Internacional.
Para isto, era definida uma ‘Comissão Diretora da Exposição Nacional’,
presidida por um membro de destaque da realeza, por exemplo, o Duque de Saxe ou o
67
Citado com a autorização do autor: Michael J. West, Spectacular ideology: the Expositions Universelles de Paris
and the formation of French Cultural Identity, 1855-1937, Projeto de Pesquisa, Department of Modern Languages,
Carnegie Mellon University, Pittsburg (manuscrito não-publicado), segundo capítulo, ‘1855: Brave New Global
Capital’.
68
Citado com a autorização do autor: Michael J. West, Spectacular ideology: the Expositions Universelles de Paris
and the formation of French Cultural Identity, 1855-1937, Projeto de Pesquisa, Department of Modern Languages,
Carnegie Mellon University, Pittsburg (manuscrito não-publicado), primeiro capítulo, ‘The End’.
284
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Conde d’Eu, e composta por sócios do IHGB e figuras de destaque do meio político,
que eram encarregados da Premiação, sendo coadjuvados nas tarefas de organização por
‘Auxiliares Técnicos’, escolhidos dentre engenheiros e especialistas vários. Essa
‘Comissão Diretora da Exposição Nacional’ cedia lugar, por sua vez, a uma ‘Comissão
de Representantes na Exposição’, que era composta por um responsável pela
manutenção do material remetido durante o evento, geralmente um sócio do IHGB, e
por diversos outros representantes, geralmente jovens, filhos de membros preeminentes
da sociedade Imperial, que eram designados para o evento dentro de uma composição
que visava aumentar o seu prestígio interno, fosse através da concessão de Comendas,
então muito disputadas como símbolo de ascensão social, fosse pela oportunidade de
viajar por um longo período ao exterior com parte de seus custos bancada pelos cofres
públicos.
Nesse sentido, a participação brasileira na Exposição de Viena em 1873
(Weltausstellung) seria emblemática, uma vez que todos os membros da ‘Comissão de
Representantes na Exposição’ tomaram o rumo de Paris, tão logo chegaram, sendo que
somente Manuel de Araújo Porto Alegre, que, aliás, recusou sua Comenda, foi obrigado
a permanecer durante sete longos meses junto ao estande brasileiro na Exposição:
Todos passeiam, e todos de altamente serem premiados. Queriam-
me dar uma Comenda e eu pedi para que riscasse o meu nome, prefiro voltar
como vim ao ser menoscabado. O que te deve dar prazer, é que não deixei
abater minha dignidade.
69
Além disso, seria ainda desenvolvido um intenso esforço diplomático por parte
de Varnhagen, então ministro plenipotenciário na Áustria, para que o Governo daquele
país concordasse em condecorar, pelo menos, quatorze membros da representação
brasileira, porquanto somente haviam sido concedidas cinco Comendas para a Comissão
que, no entanto, possuía vinte e três membros.
70
Ainda, por conta das características da participação do Brasil nas Exposições, a
construção de uma representação cartográfica e corográfica da nação foi conectada à
69
Correspondência entre Manuel de Araújo Porto Alegre e sua esposa, Ana Carolina, por ocasião de sua estada em
Viena, durante a Exposição Internacional de 1873. IHGB, Lata 355, Pasta 18.
70
Correspondência entre Francisco A. de Varnhagen e B. Franklin Ramiz Galvão, 1873-1874. IHGB, Lata 419, Pasta
8.
285
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘inscrição do Estado no espaço internacional’ e, como vimos, deveria incluir o registro
da centralidade do Estado e da centralidade no espaço. Podemos, assim, ligar as
iniciativas das comissões organizadoras brasileiras com certas idéias que exemplificam
o ‘saber sobre o espaço’ e que foram esboçadas anteriormente no Conselho de Estado,
71
compreendendo que a representação cartográfica da nação somente poderia ser satisfeita
pelas iniciativas do novo regime da narração.
A participação brasileira nas Exposições Internacionais
A primeira participação do Brasil numa Exposição Internacional se deu em 1855
no evento realizado em Paris (Exposition Universelle), consubstanciando-se através de
uma das idéias de inscrição do Estado no espaço internacional que vimos debatida no
Conselho de Estado, no caso, o pertencimento, pela origem e pelos costumes, a uma
‘comunidade idealizada’ que nos reunia com os países europeus. Assim, a representação
da nação naquele evento decorreria de uma interpretação que assemelhou, segundo o
sistema de categorização de Le Play, a participação brasileira à das nações européias,
decidindo-se então apresentar as realizações de nossa indústria na Exposição.
O relato dessa participação feito pelo representante brasileiro, Guilherme
Schuch, futuro Barão de Capanema, dá conta do estranhamento decorrente dessa
iniciativa: além do desconhecimento demostrado pelos europeus em relação ao Brasil e
de uma completa ausência de meios para suprir essa lacuna, percebeu-se então que o
modelo industrial exibido pelas nações européias sequer poderia ser comparado ao que
o Brasil pretendia exibir:
Brasil está nela dignamente representado - mostra ser país muito
esclarecido por expor velas de sebo, cera estearina e carnaúba, estas últimas
horríveis, dois vasos com flores de escamas já muito rafadas e umas
amostras de chá, dois lenços de crivo ou guardanapos de dessert,
remendados, vê V. Ex.a. que para um soirée nada falta, e soirées são provas
de adiantada civilização, além disso figura a nossa pátria com um chapéu de
palha de 160 rs. todo amarrotado, umas folhas de coqueiro idem, uma
célebre caixinha de costura intitulada ‘Império do Brasil’ contendo umas
meadas de seda o que no Rio causou assombro e para o que aqui ninguém
71
Veja-se nesta tese o capítulo ‘O assento central’.
286
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
olha, e por fim há lá exposta uma secretária de pau brasileiro o
Muirapinima, com o endereço do marceneiro em Paris que a fez. E nada
mais consta da terra de Sta. Cruz.
72
Segundo Schuch, dever-se-ia ter seguido o exemplo dos demais países
americanos expondo-se produtos que representassem a riqueza natural e cuja divulgação
no evento pudesse representar um incremento no comércio com outras nações. Por
conseguinte, é diante da experiência desse estranhamento no evento que se deve
interpretar a decisão da legação brasileira na França de pedir a exclusão do Brasil da
Exposição Internacional, nem sequer comunicando-a ao representante brasileiro,
expulso do seu estande à baioneta calada sob o seguinte argumento: “Ces bougres! Et
deux ans pour nous dire cette sottise là — a bas leur drapeau.”
73
A partir deste acontecimento, decidiu-se pela organização de Exposições
Nacionais que antecedessem as Exposições Internacionais, sendo que o primeiro destes
eventos, realizado na Escola Central do Rio de Janeiro, já receberia a visitação de
cinqüenta mil pessoas. Neste evento seria enfatizada a participação das Províncias,
visando-se selecionar dos produtos por elas enviados, para com estes procurar-se
compor o estande brasileiro na Exposição de Londres (International Exhibition) de
1862, onde, ao contrário do evento anterior, a presença brasileira assemelhar-se-ia, em
sua composição, à participação dos demais países americanos, expondo-se,
principalmente, amostras minerais. Podemos entender que, em função das experiências
anteriores, a representação do Brasil no evento se aproximava agora também de uma
outra idéia de ‘inscrição do Estado no espaço’, no caso, aquela que entendia existir
semelhanças entre o Brasil e os demais países da América, levando, por conseguinte, à
necessidade de uma convivência pacífica e à procura de novas oportunidades no espaço
internacional fora daquelas que tradicionalmente defendiam o pertencimento do Brasil a
uma ‘comunidade idealizada’ com a Europa.
Entretanto, já a partir da Exposição de Paris (Exposition Universelle) em 1867,
ganharia corpo uma nova idéia de ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, a qual
procurava distinguir o Brasil dentre as outras nações do continente, buscando uma
72
‘Correspondência do Barão de Capanema descrevendo a vida em Paris e a parte do Brasil na exposição universal
na mesma cidade’, 1855. IHGB, Lata 351, Pasta 37.
73
Tradução livre: ‘Estes bugres! Tiveram dois anos lá para nos dizer esta estupidez - Abaixem sua bandeira.’ Ver
Cartas do Barão de Capanema descrevendo a vida em Paris e a parte do Brasil na exposição universal na mesma
cidade, 1855. IHGB, Lata 351, Pasta 37.
287
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘afirmação nacional’. Nesse sentido, preparar-se-ia para o evento de 1867 tanto uma
corografia quanto um mapa para que fossem distribuídos entre aqueles que
manifestassem ou o desconhecimento ou o interesse em melhor conhecer o Brasil.
A corografia seria denominada de ‘O Império do Brasil na Exposição Universal
em 1867’,
74
copiando o modelo e o conteúdo das novas corografias e constituindo-se no
que se poderia chamar de ‘primeira corografia oficial do Brasil’, uma vez que seria
sucessivamente atualizada e aumentada antes de cada Exposição Internacional.
Embora sua estrutura não diferisse muito das novas corografias, duas idéias
sobressaíam da corografia de 1867: primeiramente, se buscava enfatizar a idéia da
grandeza do Brasil em relação ao resto do mundo e à América do Sul: “[O Brasil]
compreende 1/15 da superfície terrestre do globo, 1/5 do novo mundo e mais de 3/7 da
América Meridional”.
75
Entretanto, a afirmação dessa grandeza dependia de que sua
aceitação superasse a incredulidade e o desconhecimento do europeu, por conseguinte,
passar-se-ia a utilizar como fonte o cálculo de Alexander Humboldt, dado o prestígio
que seu autor usufruía. Este primeiro cálculo da superfície do Brasil, foi provavelmente
realizado no início da década de 1830 e estimava o território nacional em 6.167.664
Km², ou seja, com um erro a menor de cerca de 2.000.000 de km² em relação aos
cálculos feitos por Niemeyer em 1843 e Thomaz Pompêo de Souza Brasil em 1864,
76
os
quais, se fossem levados em conta, aumentariam muito as relações de grandeza descritas
no ‘Império do Brasil’ de 1867.
Em segundo lugar, destacava-se nesta corografia a idéia, retirada de Ayres de
Casal, de que o Brasil constituía um corpo separado fisicamente da América, “uma ilha
oceano-fluvial”, que era enformada pelos rios Tapajós e Paraguai e pela pouca distância
que os separava,
77
por conseguinte, o Brasil era constituído geograficamente como um
corpo destacado e diferenciado do restante da América.
Por sua vez, o mapa do Brasil a ser divulgado na Exposição de Paris deveria ser
a carta geral do Brasil que, como visto anteriormente, era uma tarefa que havia sido
74
O Império do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Typografia Universal de Laemmert,
1867.
75
O Império do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Typografia Universal de Laemmert,
1867, p. 1.
76
Niemeyer estimou o território nacional em 8.318.512 Km² e Thomaz Pompêo em 8.382.216 Km². Ver Geraldo José
Pauwels,
Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre:
Tipografia do Centro, 1924, p. 7-8.
77
O Império do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Typografia Universal de Laemmert,
1867, p. 12-13.
288
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
destinada ao Ministério da Agricultura desde 1862. Como esta carta geral ainda não
tinha sido sequer composta, o Ministério da Agricultura encaminhou ao Arquivo Militar
a requisição de uma Carta do Império em escala reduzida, de modo que, pelo menos
esse mapa pudesse ser encartado na corografia de 1867. Entretanto, como também não
existia tal carta reduzida no Arquivo Militar, pediu-se a um de seus engenheiros, Pedro
Torquato Xavier de Brito, que cedesse ao Ministério da Agricultura um dos desenhos
que havia feito como exercício da prática cartográfica, no caso, uma redução da ‘Nova
Carta’, doravante chamada de ‘Carta Brito’.
Aceito este arranjo por todas as partes, ordenou-se que os recursos do Arquivo
Militar fossem empregados, inclusive nos finais de semana e feriados, para que, com
urgência, se litografassem e imprimissem 2.000 exemplares da ‘Carta Brito’.
78
Entretanto, após um mês, quando o trabalho de litografia da ‘Carta Brito’ já havia sido
terminado e necessitou-se conduzir a matriz de pedra para a sala de impressão, aqueles
que a conduziam deixaram-na cair no meio do caminho, despedaçando e inutilizando
todo o esforço feito pelo Arquivo Militar.
79
Por conta deste insucesso, o Ministério da Agricultura decidiu enviar para a
França os 800 exemplares da ‘Nova Carta’ que haviam ficado dez anos estocados no
Arquivo Militar por conta de sua divergência com a ‘Carta Geográfica’. Mas, como
ainda faltavam 1.200 mapas para se completar o total de 2.000 necessários para a
divulgação na Exposição, mandou-se que Brito refizesse em cinco dias todo o serviço
anterior. Como foi impossível terminar a carta nesse prazo, utilizar-se-ia o rascunho
inacabado de Brito para se litografar, assim mesmo, todas as 1.200 cartas restantes. Por
conseguinte, todos os exemplares da ‘Carta Brito’ que foram remetidos a Paris estavam
incompletos, faltando-lhes um pouco de praticamente tudo: os nomes dos rios, muitos
topônimos e várias indicações geográficas.
80
Para a Exposição de Viena (Weltausstellung) em 1873, a idéia da ‘afirmação
nacional’ seria mais desenvolvida, inclusive, através da sugestão de Manuel de Araújo
Porto Alegre para que, através da mostra de espécimes da literatura e das artes
78
Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,
Pasta 10, documentos anexos 1, 2 e 3.
79
Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,
Pasta 10, documentos anexos 4, 5 e 6.
80
Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,
Pasta 10, documentos anexos 7 e 8.
289
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
brasileiras, fosse demonstrada uma ‘autonomia intelectual’, capaz de permitir a
superação do que chamava de “prejuízos coloniais”.
81
Assim, foram levados para a
Exposição vários quadros de Pedro Américo e mandou-se imprimir em Viena toda a
obra de Joaquim Manuel de Macedo em inglês, francês e alemão, cada uma dessas
edições possuindo uma tiragem de 2.000 exemplares a serem distribuídos durante o
evento.
82
Ainda, pleitear-se-ia a constituição de um Museu “exclusivamente brasileiro”,
que servisse “de inventário e depósito constante de nossas preciosidades naturais”, um
mostruário da natureza e dos reservatórios da nação que poderiam ser disponibilizados a
qualquer tempo na geração de riquezas pela sua exportação.
83
Deste modo, a
participação brasileira na Exposição de Viena prestigiaria iniciativas destinadas a fazer
com que a produção cultural figurasse no evento junto às produções agrícola, mineral e
industrial, tendo-se em vista materializar um registro da nação capaz de distinguí-la das
áreas coloniais pela antigüidade e enraizamento da ‘Civilização’.
Ao mesmo tempo, um dos objetivos centrais da participação do Brasil na
Exposição era a promoção da imigração, entendendo-se ser também necessário
constituir a representação do Brasil enquanto uma nação moderna e aberta a novas
oportunidades. Por conseguinte, já durante a organização da Exposição Nacional que
antecedeu o evento de Viena, começara a ser preparada uma nova versão da corografia
de 1867, desta vez com o objetivo de orientar a imigração. Por esse motivo, uma carta
geral deveria ser encartada nesta corografia junto a outros dois mapas que registravam o
progresso material do Brasil, no caso, um que delineava as linhas de telégrafos e outro
que indicava as Estradas-de-ferro.
84
Ao ser novamente designado para essa tarefa, o Diretor do Arquivo Militar
retorquiu que não haveria tempo hábil para que se confeccionasse tal carta geral. Por
conta disso, lembrou-se de oferecer novamente aos organizadores a ‘Carta Brito’ de
81
‘Parecer de Manuel de Araújo Porto Alegre à Comissão superior da Exposição Nacional sobre o que lhe pareceu
mais útil nos impressos à mesma remetidos pela Comissão Imperial da Exposição de Viena’. IHGB, Lata 653,
Pasta 26.
82
Correspondência entre Francisco A. de Varnhagen e B. Franklin Ramiz Galvão, 1873-1874. IHGB, Lata 419, Pasta
8.
83
‘Parecer de Manuel de Araújo Porto Alegre à Comissão superior da Exposição Nacional sobre o que lhe pareceu
mais útil nos impressos à mesma remetidos pela Comissão Imperial da Exposição de Viena’. IHGB, Lata 653,
Pasta 26.
84
Ver ‘Linhas da repartição geral dos telégrafos’ e ‘Mapas das ferrovias’ in O Império do Brasil na Exposição
Universal de 1873 em Viena d'Áustria. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1873, p. 203 e 228.
290
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
1867, desta vez assegurando que ela seria completamente corrigida e que Pedro
Torquato Xavier de Brito seria encarregado pessoalmente da execução deste serviço.
Logo ao início desse trabalho, Pedro Torquato Xavier de Brito verificou que o
seu mapa original não fora corretamente conservado pelo Arquivo Militar, estando
então completamente imprestável para a litografia. Assim, seria necessário empreender
mais uma vez todo o trabalho de redução da ‘Nova Carta’, para que somente depois
fosse empreendido o serviço de litografia que antecedia a impressão.
Ao ser informada do problema, a comissão organizadora julgou que esta nova
redução deveria ser aproveitar os dados referentes às linhas de navegação e às Estradas-
de-ferro, além do que, também se deveria assinalar convenientemente os novos limites
com as nações limítrofes, no caso, segundo a ‘norma narrativa’.
Por conta dessa nova demanda, Duarte da Ponte Ribeiro foi convidado para
assessorar os trabalhos da ‘Carta Brito’, mas, ao assumir essa função, declarou ser
impossível trabalhar sobre uma redução que se baseasse na ‘Nova Carta’, por conta dos
muitos erros que aquela continha, entretanto, como Brito já havia aprontado uma grande
parte da redução, Ribeiro ordenou que esse trabalho fosse adaptado às suas
especificações.
Como Brito julgou que o produto resultante dessa adaptação seria incompatível
com o que se pretendia a início, solicitou ao Diretor do Arquivo Militar que fosse
dispensado dos trabalhos da Carta. Tendo sido imediatamente aceita sua dispensa, outro
militar, o Capitão Carlos Nunes de Aguiar, ficou encarregado de atender todas as
solicitações de Ribeiro, transformando, por conseguinte, a redução de Brito conforme o
traçado idealizado por Ribeiro.
85
Este produto final, doravante denominado de ‘Carta de
1873’, foi litografado e impresso no Arquivo Militar, sendo depois encartado na
corografia distribuída na Exposição de Viena.
Para que seja possível esclarecer melhor este episódio e encadeá-lo com o estudo
da ‘teoria do desempenho’, é importante ressaltar que além das reduções serem produtos
cartográficos dependentes da representação original, numa relação que implica
fidelidade de forma e conteúdo, estas também eram obras de autoria, uma vez que a
transposição de uma proporção a outra e a transcrição correta dos dados dependiam da
perícia de um técnico capaz e acreditado. Embora fosse aceito que esse técnico pudesse
85
Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,
Pasta 10, documento anexo 10.
291
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
efetuar uma correção dos dados anteriormente inscritos e ainda inscrever novas
informações, normalmente havia um limite às mudanças que poderiam ser
empreendidas, após o que poderiam se consideravam desvirtuados tanto a escala do
mapa quanto a localização dos pontos geográficos. Portanto, mesmo que fosse
considerado normal o descarte de certos elementos geográficos durante o processo de
transcrição ou que se inserissem certos quadros no corpo do mapa, modificações de
grande monta eram consideradas, via de regra, incompatíveis tanto com o rigor
cartográfico quanto com a condição da autoria.
No caso da ‘Carta de 1873’, por exemplo, as mudanças impostas por Ribeiro na
redução original acabaram, inclusive, criando-se uma alteração do objeto não prevista
por seus operadores,
86
como pode ser verificado através do resultado dos cálculos da
superfície do território nacional que foram feitos sobre a leitura do mapa. Este resultado,
obtido pela diretoria geral de estatística, foi então divulgado na corografia de 1873: ao
lado da área atribuída a Humboldt, 7.952.344 Km², se registrava um número
verdadeiramente superlativo — 12.634.477 Km².
87
A Teoria do Desempenho pelos trabalhos de Duarte da Ponte Ribeiro
Conforme visto, a ‘inscrição do Estado no espaço’ foi também constituída em
torno de uma ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, determinada por certas
interpretações do ‘saber sobre o espaço’. Nesse sentido, observe-se ainda que as
iniciativas destinadas a inscrever o Estado dependeram de certos objetivos e estratégias
condicionados pela disponibilidade de recursos e esforços, o que enfatiza a importância
do processo interno.
Por este motivo, a ênfase no estudo dessas iniciativas através de uma ‘teoria do
desempenho’ tem como propósito situar as tensões entre a Vontade dos operadores e a
interesses do Estado na ‘inscrição do Estado no espaço’ através da idéia da resistência
do princípio subjetivo. Assim, nesta ‘teoria do desempenho’ buscaremos privilegiar o
entendimento do processo interno da cartografia, ou seja, suas técnicas,
condicionamentos e características, buscando distinguir na ‘construção do espaço
nacional’ uma ‘linguagem do espaço’ que justifique, no próximo capítulo, a pertinência
86
Ver o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.
87
O Império do Brasil na Exposição Universal de 1873 em Viena d'Áustria. Rio de Janeiro: Typografia Nacional,
1873, p. 5-6.
292
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
da idéia de Schelling sobre a Mitologia, no caso, para que se discuta a constituição de
uma ‘Mitologia do espaço nacional’.
Identificados nossos propósitos na construção de uma ‘teoria do desempenho’,
falta-nos então explicitar as questões a serem perseguidas durante essa construção, a
saber: identificar uma estrutura da ‘gramática do falante ideal’; distinguir o modo como
este ‘falante ideal’ organizou a estrutura de sua gramática em relação às suas
experiências; demonstrar e caracterizar a modificação da ‘gramática do lingüista’ em
função da ‘gramática do falante ideal’.
Definidas as questões a serem perseguidas na construção de uma ‘teoria do
desempenho’, determinaremos que o ‘falante ideal’ sobre o qual procederemos a
construção desta teoria será Duarte da Ponte Ribeiro. Decidimos concentrar os esforços
sobre este ‘falante ideal’, uma vez que somente por meio dele poderíamos demonstrar
integralmente modificações na ‘gramática do lingüista’ que caracterizassem uma
resistência do princípio subjetivo através dos dois instrumentos de leitura utilizados em
nosso trabalho, a cartografia e as corografias.
Neste sentido, a idéia Romântica da construção da representação na linguagem,
conforme Humboldt e Chomsky, nos permitirá desdobrar e conectar o problema da
‘linguagem do espaço’ em direção ao problema da representação na cartografia e
corografia, no caso, atendido a partir de Schopenhauer e Schelling, para que, no
próximo capítulo possamos desdobrar ambos os problemas em direção ao problema da
representação do Mito, segundo a teorização de Schelling.
O primeiro objeto de nossa investigação será a participação de Ribeiro nas
discussões do Terceiro Conselho de Estado ainda na década de 1840, quando atuaria
enquanto consultor da SJNE.
88
Nestas discussões, o pensamento das diferentes idéias da
‘inscrição do Estado no espaço’ e o legado da participação de José Feliciano Fernandes
Pinheiro no Segundo Conselho de Estado, seriam examinados sobre os principais
problemas de política externa, então relativos à participação brasileira na questão do
Prata e, no caso, especificamente sobre a questão de limites com o Uruguai. Nesse
sentido, um dos trabalhos de Ribeiro, o ‘Memorando 37’, é emblemático para nossa
investigação, pois nos permite iniciar as investigações para a construção da ‘teoria do
desempenho’.
88
Veja-se, nesta tese, o capítulo ‘O assento central’.
293
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
O ‘Memorando 37’ foi escrito no ano de 1847 com o objetivo de servir como
orientação à SNE para as conversações de limites com os representantes da República
do Uruguai., já que cabia a Ribeiro, após reunir as opiniões dos Conselheiros que
compunham a SJNE, elaborar sobre estas um documento que integrasse também suas
contribuições e seus conhecimentos sobre a questão. A partir dessas opiniões e dos
pontos de vista do Ministro dos Negócios Exteriores, Ribeiro escreveria uma memória e
compôs um mapa, no qual as opiniões da SJNE foram relacionadas com as
contribuições da SNE por meio de símbolos e recursos retóricos, tornando a leitura do
texto escrito, assim, dependente de uma leitura do texto gráfico (ver a Figura 26).
89
Observe-se que Ribeiro representaria neste mapa o espaço do Rio Grande do Sul
segundo uma orientação cartográfica diferente daquela utilizada pela cartografia da
época, utilizando certos recursos para transformar suas escalas, destacando
determinados elementos geográficos e registrando seus topônimos segundo a utilização
de rotinas anormais na cartografia.
Assim, a orientação do chamado ‘Mapa do Rio Grande’, ao contrário de
praticamente todas os outras cartas do século XIX, não foi feita pelo Norte, mas pelo
Sul, representando, no caso, o espaço nacional, literalmente, de cabeça para baixo. Essa
orientação heterodoxa demonstraria, em nosso entender, uma intelecção da ‘inscrição
do espaço’ por parte de Ribeiro que seria agregada à sua ‘gramática mental’ e que se
produziria a partir da intuição dos problemas da política externa através das discussões
no Conselho de Estado. Analisando esta intelecção a partir de uma interpretação
iconológica e semiológica,
90
podemos entender que sua intenção seria relacionar o
território situado fora do enquadramento do mapa, a região do Prata, como a real
preocupação da ‘inscrição do Estado no espaço’.
Veja-se também que, relacionando-se com ainda a intuição das discussões, o
espaço da República do Uruguai foi representado com uma superfície bem menor da
que também era usual, por conta de uma transformação da escala do mapa que
acentuava tanto a curvatura do rio Uruguai quanto a inclinação da costa em direção ao
interior. Embora esta inclinação fosse um problema comum na cartografia do início do
XIX, por conta do problema da medição das longitudes, Ribeiro aumentaria ainda mais
89
Ver as implicações dessa construção que denominamos texto-mapa, no capítulo ‘O espelho do Jacobina’.
90
Quanto às definições que utilizaremos a seguir na interpretação semiológica e iconológica do ‘Mapa do Rio
Grande’, ver nesta tese o capítulo ‘Mapeando o vazio’.
294
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
esta inclinação no mapa, possibilitando materializar-se, assim, uma representação da
idéia do espaço uruguaio como que a desligar-se do espaço do Rio Grande, construindo
a impressão deste ter sido arrancado por uma ação centrífuga originada no Prata.
Contudo, Ribeiro realizaria sobre esta intuição uma outra intelecção da
‘inscrição do espaço’: no território do Uruguai, o Rio Negro foi inscrito
deliberadamente como um elemento organizador do espaço, através do prolongamento
exagerado de seus afluentes em direção ao centro mesmo do território do Rio Grande do
Sul. No caso, esta inscrição amplifica a idéia da drenagem fluvial, possibilitando
materializar-se uma representação da idéia de penetração no espaço brasileiro e de sua
subsequente absorção pelo território situado fora do enquadramento.
FIGURA 26 - 'MAPA DO RIO GRANDE' DE DUARTE DA PONTE RIBEIRO.
Cartografia: Renato Amado Peixoto, redução do mapa anexo ao 'Memorando 37'. AHI, Arquivo Particular de Duarte
da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 4, Pasta 3.
295
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Em outra intuição das discussões no Conselho de Estado, certos topônimos do
território inscrito foram registrados numa quebra da rotina cartográfica, a saber, esses
topônimos foram registrados ao contrário da orientação do mapa, ou seja, de cabeça
para baixo. Este registro inusitado foi justamente o das áreas onde haviam se
estabelecido brasileiros, ou seja, em que se configurava o uti possidetis, mas que haviam
sido entendidas pela maioria dos conselheiros como fazendo parte do território
uruguaio. Entretanto, uma outra intelecção seria feita por Ribeiro a partir deste registro:
dois dos topônimos que deveriam ter acompanhado a quebra da rotina topográfica
foram registrados conforme a rotina, no caso, o registro das cidades de Bagé e Alegrete
foi feito de cabeça para cima, por conseguinte, compreende-se que Ribeiro sugeria
através da composição do mapa que se deveria contrariar a opinião predominante na
discussão, mantendo-se estas cidades no interior do espaço nacional.
Assim, podemos entender que, na ‘gramática mental’ de Ribeiro, o Prata foi
interpretado como um espaço além das possibilidades brasileiras, que, ao nortear as
iniciativas de política externa, minaria os recursos de um território maior, o Rio Grande
do Sul, em detrimento de um pequeno espaço, o Uruguai. Por conseguinte, dever-se-ia
privilegiar na discussão dos limites uma interpretação do espaço que então se
consolidava na ‘linguagem do espaço’ em torno do conceito do uti possidetis.
Finalmente, quando Ribeiro inscreve no mapa duas sugestões de limites por
meio de linhas coloridas, no caso, as opiniões de Bernardo Pereira de Vasconcelos e de
Ernesto Ferreira França, estas são ligadas ao registro de três outros elementos
geográficos, as ilhas de Castilhos Grandes, as ilhas de Castilhos Pequenos e a
“Cuchilera Geral do Rio Grande”. O registro destes elementos deve ser interpretado
segundo o sentido de uma interpretação iconológica: as ilhas eram antigos marcos da
reivindicação portuguesa sobre o litoral, enquanto que a ‘Cuchilera’ era o limite mais
natural de uma região que carecia desses marcos geográficos. Assim, a sugestão de
Vasconcellos apesar de acompanhar antigas reivindicações contrariava o sentido dos
limites naturais, considerado na linha de limites de França. Pode-se ainda fazer uma
analise semiológica da inscrição dessas sugestões a partir da interpretação anterior: a
opinião de Vasconcelos seria apontada em vermelho, ou seja, negativamente, enquanto
que a opinião de França seria apontada em azul, ou seja, positivamente. Note-se que a
linha do Tratado de Santo Ildefonso foi registrada como a base dos limites, sendo que
esses registro não foi feito em cores por Ribeiro, mas utilizando-se de pequenas cruzes,
o que dava ainda mais destaque ao colorido das inscrições anteriores (em nossa redução
296
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
do ‘Mapa do Rio Grande’ utilizamos o pontilhado verde para salientar os demais
aspectos da interpretação do mapa).
Portanto, na ‘gramática mental’ de Ribeiro, a ‘inscrição do Estado no espaço’
não deveria depender das antigas reivindicações de limites mas apenas ser constituída
segundo a interpretação mais vantajosa à consolidação do Estado.
O segundo objeto de nossa investigação será a participação de Ribeiro nos
aspectos que envolveram o Parecer de Alexander Von Humboldt acerca da posição
brasileira nas negociações do tratado de limites negociado entre o Brasil, a Venezuela e
Nova Granada em 1854.
91
Esse Parecer, que foi divulgado pela SNE enquanto
corroborando as pretensões brasileiras, na verdade era necessário apenas para fortalecer
a posição do Governo contra os críticos que no Brasil entendiam aquele Tratado como
mais uma cessão do território nacional que apenas endossava as reivindicações
venezuelanas, abrindo mão de territórios mais avançados e que até então eram
considerados como fazendo parte do espaço nacional, no caso, o Canal Cassiquiari e o
alto Rio Negro.
No caso, Ribeiro fora o responsável por avalizar junto ao Conselho de Estado e
na SNE os defensores do Tratado, lançando mão para isso da documentação colonial
que havia reunido no Arquivo da SNE. Através desses documentos Ribeiro demonstrava
que Portugal já havia entendido ser necessário abrir mão das pretensões a limites mais
avançados e considerados naturais no Rio Negro para em troca garantir pacificamente
os direitos à divisão de águas na região do Rio Branco.
92
Após a experiência do Parecer e depois de consolidar no centro do processo de
inscrição do espaço nacional a construção do momento a partir do Arquivo da SNE,
Ribeiro passaria a somente evocar Humboldt e os demais exploradores estrangeiros do
século XVIII e XIX na medida em que estes corroborassem as informações e opiniões
coloniais, discriminando aqueles cientistas como meros repetidores de autores
portugueses e brasileiros:
Os mapas geográficos do Brasil feitos por estrangeiros, não são os
mais próprios a consultas para conhecer o território do Brasil de modo a
poder ser exibido em um Atlas categórico. Mesmo os hidrográficos da nossa
91
Ver AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Documento 2.
92
Carta de João Pereira Caldas para Martinho de Melo e Castro, em 27/06/1784. AHI, Arquivo Particular de Duarte
da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 6, Pasta 8.
297
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
costa levantados por eles para servir à navegação, pouco tem adiantado [...].
Alguma coisa nova em geografia se deve a La Condamine ainda que
bastante desfigurada, e um pouco a Humboldt. Neste ramo de conhecimento
repetiu Spix, e Martius os que os nossos geógrafos tinham adquirido.
Castelnau referiu o que era por nós sabido: outro tanto fizeram Herndon e
Gibbon, como confessaram nos Relatórios aos seus Governos; e até
Quevedo se convenceu de que só era novo para ele o conhecimento que quis
dar do rio Madeira e das suas cabeceiras.
93
Assim, os juízos desses exploradores seriam utilizados para apenas exaltar o
saber obtido no âmbito dos esforços governamentais ou que estava contido no Arquivo
da SNE, como foi, por exemplo, o caso do elogio de Humboldt ao ‘Plano geográfico do
Rio Branco’ composto por Antonio Pires da Silva Pontes Leme.
94
A opinião de
Alexander von Humboldt, que considerou esse mapa como tendo sido melhor executado
que o de muitas áreas da Europa, seria repetida inúmeras vezes tanto no IHGB quanto
pela SNE, sendo então utilizada fora de seu contexto como um elogio a toda a
cartografia portuguesa do século XVIII, no caso, diligentemente coletada por Ribeiro.
Na verdade, através dessa comparação, Alexander von Humboldt apenas lamentava ter
sido despendido tanto esforço numa região completamente inóspita em lugar de
empregá-lo em áreas povoadas.
Esse libelo contra os viajantes estrangeiros e às suas obras se tornaria comum
também no IHGB, onde, inclusive, em 1856, se decidiu criar uma ‘Comissão de
exploração do interior do Brasil’ por conta da “multidão de absurdos, de incongruências
e contradições, e não poucas vezes de imerecidas injúrias, com que desfiguram e
caluniam o Brasil homens, que escondem o que vêem, que improvisam o que não
existe, e que para escrever invocam a musa da mentira.”
95
Portanto, o descrédito dos autores estrangeiros somado com a deficiência de
trabalhos nacionais sobre grande parte do território, conduziu Ribeiro a criticar e
corrigir, citando suas fontes, o saber científico personificado naqueles viajantes. Por
93
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n° 134 - 2’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288,
Maço 2.
94
Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Plano geográfico do Rio Branco e dos rios Uraricapará, Majari, Parimé,
Tucutú e Mahu; que nele desaguam, 1781.
95
Ver Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 28; Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIX, suplemento, 1856, p. 11-82.
298
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
conseguinte, seja na confecção das suas cartas parciais, seja nas cartas gerais, como na
‘Carta Brito’, os trabalhos dos engenheiros foram, menosprezados e, muitas vezes,
corrigidos por Ribeiro mesmo que de memória.
O terceiro objeto de nossa investigação será a produção cartográfica de Ribeiro,
inserida no esforço do novo regime da narração,
96
conforme já foi feito nesta tese
através do exame da ‘Carta Geográfica’. Assim, com o propósito de equiparar esta
nossa investigação com o estudo anterior da ‘Carta Geográfica’, distinguiremos agora
apenas os mapas de Ribeiro que foram litografados, ou seja, aqueles que também
tinham, como a ‘Carta Geográfica’, a divulgação por finalidade última.
O primeiro destes trabalhos a ser analisado é o ‘Mapa da Fronteira Norte’ de
1863, cuja tiragem foi de quinhentos exemplares e que também ligado por Ribeiro a um
texto produzido para a SNE, no caso, a ‘Memória 103’. No ‘Mapa da Fronteira Norte’,
apenas 18% dos mapas utilizados como fontes fossem de autores estrangeiros, contra
10% de brasileiros do século XIX e 72% provenientes da cartografia colonial, sendo que
estes últimos, segundo Ribeiro, não podiam ser postergados “pelas opiniões dos sábios
Condamine, Humboldt, e outros, quando estas se referem a territórios onde eles não
estiveram [e] descreveram só por informações.”
97
No argumento de Ribeiro somente as
fontes coloniais e os esforços de exploradores brasileiros contemporâneos possuíam
legitimidade, uma vez que estavam relacionadas ao exame do território, sendo que, esta
legitimidade podia ser transferida para o mapa através de um esforço de síntese e
compilação. Por conseguinte, o ‘Mapa da Fronteira Norte’, demonstrava que o Brasil
possuía legitimamente direitos “consignados em tratados ou em virtude de posses
adquiridas” e que seu exame das fontes permitia abandonar-se “como insustentáveis as
antigas pretensões”, já que não condiziam com aquelas fontes.
98
Nesse sentido, a lista completa das fontes do ‘Mapa da Fronteira Norte’ foi
publicada, por sugestão de Ribeiro, nos jornais de maior circulação do Rio de Janeiro
junto com uma ‘Exposição Explicativa’ dos motivos da publicação do Mapa, tornando
explícito o propósito de consolidar esta representação do espaço nacional contra as
96
Ver nesta tese, o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.
97
AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288, Maço 2.
98
Exposição do Mapa da Fronteira Norte, citada in A Exposição de Obras Públicas em 1875. Rio de Janeiro:
Tipografia Acadêmica, 1876, p. 446-450.
299
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
“opiniões desvairadas dos nacionais e estrangeiros”.
99
Esta iniciativa visava, por um
lado, as pretensões territoriais da Colômbia sobre grande parte da Província do
Amazonas e por outro, a derivação da norma narrativa
100
que se consolidara no IHGB.
Neste instituto, a ‘Comissão de Geografia’ fora ocupada por elementos que, se não eram
antagônicos ao novo regime da narração, também não lhe eram simpáticos. Henrique
de Beaurepaire Rohan, Niemeyer, Pedro Torquato Xavier de Brito, Cândido Mendes de
Almeida, eram então sócios ativos do IHGB e haviam feito do Instituto uma tribuna
contra a construção do espaço operada pela SNE.
O segundo dos trabalhos litografados de Ribeiro a ser analisado é na realidade
um conjunto composto por três mapas: o ‘Mapa especial da fronteira do Brasil com as
Repúblicas do Peru, Nova Granada e Venezuela’, o ‘Ajuste pelo Tratado de 1750’ e o
‘Borrador Topográfico’. Este conjunto teve uma tiragem de 1.200 exemplares e também
estava ligado a um texto produzido para a SNE, a ‘Memória 151’ que foi desdobrada em
outro texto, as ‘Razões explicativas’, o qual foi juntado com o conjunto de mapas ao
Relatório da SNE de 1870.
Pela primeira vez, Ribeiro utilizaria para efeito da sua argumentação comparar
um mapa de sua autoria com dois outros velhos mapas coloniais, no caso, visando
articular a defesa das pretensões brasileiras contra as reivindicações de limites
colombianas baseadas sobre o Tratado de Tordesilhas e seus desdobramentos,
representados numa carta geral da Colômbia.
Primeiramente, através das ‘Razões Explicativas’, Ribeiro buscaria demonstrar
que a legitimidade dos mapas coloniais estaria assegurada junto às duas partes porque
naqueles se consubstanciava o pensamento que embasara os acordos entre as antigas
Metrópoles. Portanto, o ‘Ajuste pelo Tratado de 1750’ e o ‘Borrador Topográfico’,
representando respectivamente o Tratado de Madri e o Tratado de Santo Ildefonso,
deveriam servir como “auxiliares” para se interpretar e conhecer o pensamento de
Portugal e Espanha. Depois de assegurada essa legitimidade, buscava-se encontrar os
princípios e idéias do pensamento das Metrópoles através daqueles “auxiliares” e
transportá-los para o ‘Mapa Especial’, para que fossem adequados aos novos
conhecimentos cartográficos. Finalmente, no ‘Mapa Especial’ seria demonstrado que o
99
'Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Miguel Calmon du Pin e Almeida', 1863. AHI, Arquivo Particular de Duarte
da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 5, Pasta 1.
100
Ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
300
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
princípio da ‘Divisão de Águas’, que separava o território das Metrópoles através das
bacias hidrográficas, reservava para o Brasil o domínio sobre a Bacia Amazônica,
permitindo que seus limites fossem estendidos praticamente até a cidade de Bogotá,
mas, como estava demonstrado sobre o mapa, o Brasil abria mão desse velho direito em
função de fronteiras mais razoáveis. Deste modo, através da inscrição da idéia que fora
defendida pela Espanha em seguida às demarcações do Tratado de Santo Ildefonso, a
‘Linha de Requeña’, demonstrava-se no ‘Mapa Especial’ que aquela Metrópole havia
sido mais comedida que a própria Colômbia (ver Figura 27). Portanto, a argumentação
de Ribeiro visava demonstrar a extravagância das proposições colombianas em
contraste com a reserva da posição brasileira.
FIGURA 27 'MAPA ESPECIAL' DE DUARTE DA PONTE RIBEIRO
Cartografia: Renato Amado Peixoto, redução do ‘Mapa espacial’ com seleção de elementos. Fonte:
Relatório da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, 1870.
Ainda, para que fosse possível contestar a argumentação colombiana, Ribeiro
articula em profundidade, também pela primeira vez, a construção de uma ‘Mitologia do
espaço nacional’, que se basearia numa “expansão natural dos povos”, a saber, que o
condicionalismo geográfico determinaria a conquista e a posse do território pelo
colonizador, no caso, consolidada pelos tratados do setecentos. A demonstração destes
301
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
argumentos foi desdobrada nos seguintes passos: como a “expansão natural dos povos”
erradicara a linha de Tordesilhas, esta foi consumada em sua substância pelo Tratado de
Madri através da “usucapião” (Ribeiro evita utilizar a idéia do uti possidetis em virtude
do diferente entendimento dado a esta pela Colômbia), finalmente, a “expansão natural
dos povos” estabeleceria, racionalmente, determinados princípios e certas idéias, que
seriam registrados no Tratado de Santo Ildefonso.
101
Portanto, podemos compreender que a argumentação de Ribeiro deixou de
pertencer apenas à lógica do processo diplomático e da ‘gramática do lingüista’ para
identificar-se com os esquemas anteriormente recolhidos pela sua experiência, passando
a ser expressos segundo a ‘linguagem do espaço’ nesta oportunidade. Para Ribeiro, a
cartografia, a história cartográfica e a história pátria confundiam-se enquanto um
mesmo instrumento da argumentação que situava-se não mais em continuidade, mas em
contigüidade com a diplomacia: as soluções e os critérios de escolha de Ribeiro
remetem agora à uma nova estruturação da ‘gramática da linguagem’, determinada pelo
‘uso criativo da linguagem’ articulado pela sua ‘gramática mental’.
O terceiro trabalho litografado de Ribeiro não será propriamente analisado, mas
introduzido neste estudo de modo a podermos começar a demonstrar a caracterização e
a modificação da 'gramática do lingüista' em função da 'gramática mental' de Ribeiro.
Este trabalho, a ‘Carta da fronteira do Brasil com a República do Paraguai’ de
1872, teve uma tiragem de 2.300 exemplares e também estava ligado a um texto
produzido para a SNE, no caso, a ‘Memória 167 C’. Esta carta, que tinha o objetivo
declarado de mostrar a linha de fronteira conforme havia sido estipulada pelo Tratado
de 9 de janeiro de 1872, nada mais é que a atualização da ‘Carta Geográfica’ de 1856,
repetindo seus traçados e suas fontes, à exceção de algumas poucas áreas no interior
daquele país que foram inscritas no mapa a partir de trabalhos executados durante a
Guerra do Paraguai, ironicamente, quando se perseguia Solano Lopez.
102
101
Duarte da Ponte Ribeiro, 'Razões Explicativas dos mapas anexos à presente exposição sobre os limites do Império
do Brasil com a República de Nova granada, hoje Estados Unidos de Colômbia' in
Relatório da Secretaria dos
Negócios Estrangeiros. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1870.
102
Exposição da ‘Carta da Fronteira’ in A Exposição de Obras Públicas em 1875. Rio de Janeiro: Tipografia
Acadêmica, 1876, p. 442.
302
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Contudo, outros textos conexos escritos por Duarte da Ponte Ribeiro, no caso, os
‘Limites do Brasil com o Paraguai’ e a ‘Exposição da Carta da Fronteira’,
103
explicitam
que as fontes utilizadas para a composição da ‘Carta da Fronteira’ eram, na verdade,
parte de um esforço antigo da Metrópole visando o esquadrinhamento do território
brasileiro, por conseguinte, Ribeiro instituía suas fontes como documentos formadores
da própria nacionalidade, com a ‘Carta da Fronteira’ servindo não apenas para
confirmar uma compreensão do espaço, mas também para afirmar todo um saber
compreendido no Arquivo da SNE.
Exemplarmente, este trabalho de Ribeiro receberia prioridade de execução sobre
a própria ‘Carta do Império do Brasil: a ‘Carta da Fronteira’ foi litografada e impressa
pelos mesmos seis funcionários que desde 1870 se dividiam entre a Carta Cadastral, a
Carta Geral e ainda executavam a Planta Topográfica da Corte.
A Carta do Império do Brasil de 1875
Vimos que, desde 1867, a participação do Brasil nas Exposições internacionais
passou a incluir em lugar central uma carta geral do Brasil e uma corografia oficial,
buscando com isso se fazer reconhecer e, ao mesmo tempo, legitimar uma ‘inscrição do
Espaço no espaço’.
Antes disso, acompanhamos que desde 1862 havia sido determinada a
organização de uma ‘Carta Geral do Brasil’, e que, em 1870 esse esforço seria reunido
ao da ‘Comissão da Carta Cadastral’, no âmbito da Secretaria da Agricultura. Assim, em
1873, ano em que se realizou a Exposição de Viena, embora já existisse uma corografia
oficial organizada e já houvesse sido iniciado o esforço de organização da ‘Carta Geral
do Brasil’, o mapa que seria destinado à Exposição de Viena, a exemplo da ‘Carta
Brito’ de 1867, foi ainda o resultado de uma iniciativa extraordinária, que, no caso,
resultou na ‘Carta de 1873’, organizada no Arquivo Militar e terminada sob a
intervenção de Ribeiro.
Por outro lado, sabemos também que, desde 1872, já existia uma forte
ascendência de Ribeiro sobre a ‘Comissão da Carta Geral do Império’, capaz de lhe
permitir, inclusive, interromper os vários afazeres de seus integrantes para que estes
103
Duarte da Ponte Ribeiro, 'Limites do Brasil com o Paraguai', in Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo XXXV, n° 45, parte II, 1872; Exposição da ‘Carta da Fronteira’ in A Exposição de Obras Públicas
em 1875. Rio de Janeiro: Tipografia Acadêmica, 1876, p. 439-445.
303
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
concluíssem sua ‘Carta da Fronteira’. Como explicar a existência dessa convergência de
interesses e desses campos de atuação?
Em busca dessa explicação precisamos retroceder até 1853 quando na SNE já se
entendia ser necessário impedir que se formasse um pensamento de espaço local
divergente de uma ‘visão do espaço a partir do centro’. Nesse sentido, se compreendeu
ser necessário consolidar essa ‘visão central do espaço’ através do estabelecimento de
uma comunicação regular e uniforme com os Presidentes das Províncias, e que esta
deveria ser reforçada quando da transição dos governos provinciais. Assim, em 1859, o
ministro da SNE, José Maria da Silva Paranhos, decidiu que a ‘Memória 128’ de Duarte
da Ponte Ribeiro onde se expunham as linhas de fronteiras segundo o uti possidetis,
deveria se tornar o padrão a ser seguido em todas as instruções a serem passadas
futuramente, não só para os Presidentes de Províncias, mas também para os Comissários
Demarcadores de Limites e outros agentes do Governo. A este padrão seriam ainda
subordinados, em 1871, todos os militares diretamente encarregados da defesa nos
limites do território nacional. Junto às regulamentações de 1859 e de 1871 seguiam
também instruções para que Ribeiro organizasse tanto um mapa geral das fronteiras
quanto os mapas de limites provinciais e locais que fossem necessários para atender aos
propósitos de consolidação da ‘visão central do espaço’.
104
Além disso, em 1868, José Maria da Silva Paranhos, mais uma vez ministro da
SNE, expediu outra regulamentação que visava terminar com as confusões decorrentes
da substituição dos Presidentes de Províncias: para cada uma das Províncias seria
remetido um ‘Projeto de Instruções’ no qual estaria expressa a ‘visão central do espaço’
e que deveria ser guardado na sede do governo Provincial para ser lido logo em seguida
à posse, sendo, daí em diante, estritamente observado. Por esta regulamentação, Ribeiro
também foi expressamente designado para escrever todos os ‘Projetos de Instrução’,
sendo que o primeiro destes viria à luz já em 1871, sendo logo encaminhado à Província
do Rio Grande do Sul.
105
Nesse sentido, cuidando da preservação da ‘norma narrativa’, o ministro da SNE
resolveu que os ‘Projetos de Instrução’ deveriam ser feitos de acordo com a ‘Carta
Geral do Império’, solicitando então ao Ministro da Agricultura que ordenasse ao
104
'Correspondência de Duarte da Ponte Ribeiro com Manoel Francisco Correa', 1871. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 8.
105
'Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Manoel Francisco Correa', em 10/12/1871. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 8.
304
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
pessoal encarregado daquele mapa dispensar todos os meios necessários para que
Ribeiro pudesse exercer seus encargos, estabelecendo assim sua ascendência junto à
‘Comissão’.
106
Mas, apesar de já se ter estabelecido essa ascendência de Ribeiro sobre a
‘Comissão’, pudemos verificar, através dos rascunhos dos encarregados da construção
da ‘Carta Geral do Brasil’, que esse mapa, em 1872, estava sendo composto de acordo
com a derivação da norma narrativa, ainda que grande parte dos mapas utilizados pela
Comissão pertencessem ao arquivo particular de Ribeiro.
107
Deste modo, no contrato
para a publicação da Carta Geral feito com o ‘Instituto Artístico’, em 27 de dezembro de
1871, estipulava-se que, em metade dos 5.000 exemplares da tiragem da ‘Carta Geral do
Império’, as Províncias deveriam destacadas no mapa “com toda a nitidez e
regularidade, assim na cor como no contorno”, através da técnica da cromolitografia, ou
seja, a partir do estilo adotado por Cândido Mendes em seu atlas que adotara o mesmo
padrão dos atlas gravados.
108
Essa influência pode ser explicada, pela consolidação da derivação da norma
narrativa no IHGB a partir de meados da década de 1860, como já fora apontado
anteriormente. Neste instituto a derivação passaria a contar com vários simpatizantes
como, por exemplo, Pedro Torquato Xavier de Brito e Candido Mendes de Almeida.
Este último elaboraria em 1868 uma obra bastante importante pela sua extensão e
oportunidade, o ‘Atlas do Império do Brasil’, destinado pelo autor “à instrução pública
no Império com especialidade à dos alunos do imperial Colégio de Pedro II”, recebendo
um Parecer extremamente favorável da ‘Comissão Geográfica’ do IHGB, que era
composta então por Pedro Torquato Xavier de Brito e Henrique de Beaurepaire Rohan:
Esta obra primorosa é o resultado do mais paciente estudo sobre
todos os documentos que o autor pode adquirir relativamente à nossa
corografia, e prova sua notável aptidão para os trabalhos deste gênero. Suas
apreciações sobre nossos limites, quer internacionais, quer interprovinciais,
106
'Ofício de Manoel Francisco Corrêa para Duarte da Ponte Ribeiro sobre a expedição da instrução às Províncias
confinantes com outros Estados, fazendo acompanhar de mapas especiais', 26/07/1871. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 287, Maço 5, Pasta 1.
107
[José Ribeiro da Fonseca] Silvares, 'Apontamentos corográficos para carta geral do Brasil', [1872]. BN,
Iconografia, I - 46, 11, 11.
108
'Termo do contrato para a publicação do esboço da Carta Geral do Império por Henrique Fleiuss', em 27/11/1871.
IHGB, Lata 345, Pasta 21.
305
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
são feitas com notável critério, e nisso como em tudo o mais revela o autor o
seu acrisolado patriotismo. Em suma o - Atlas do Império do Brasil - é obra
não somente útil à mocidade, a quem o autor a destina, como também a
todos os homens versados na Ciência.
109
Na prática, o IHGB legitimava a derivação da norma narrativa e ao mesmo
tempo, através do Parecer da ‘Comissão de Geografia’ endossava as críticas ao novo
regime da narração expostas por Cândido Mendes na primeira folha de seu Atlas:
Pelo que respeita aos limites internacionais do Império procuramos
tratá-los de forma a não se tornarem um segredo de que alguns entendidos
mais pacientes estão de posse. O conhecimento desta matéria, tanto quanto
possa tornar-se necessário ao comum dos nossos concidadãos, pode ser
adquirido com facilidade no nosso Atlas.
110
No sentido de divulgar esses conhecimentos, a discussão geográfica seria
incentivada durante o ano de 1869 no IHGB dando origem, inclusive, à idéia de que se
publicassem os manuscritos do Instituto, criando-se assim uma “Biblioteca Brasileira”,
destinada a tornar mais acessíveis ao público as informações geográficas, segundo o
espírito do seu primeiro Estatuto.
111
Também em 1870, sintomaticamente, o IHGB
publicaria em sua ‘Revista’ os ‘Apontamentos’ de Ernesto Ferreira França, obra que
havia sido censurada em 1849 pela Comissão de Geografia comandada por Duarte da
Ponte Ribeiro, justamente porque condenava a centralização e o segredo na condução da
inscrição do espaço.
Não bastasse o apoio entusiástico do IHGB à derivação, em 1871 Ribeiro ainda
se envolveria numa polêmica aberta através dos principais jornais do Rio de Janeiro
com José da Costa Azevedo, Demarcador-chefe dos limites com o Peru. Nesta
polêmica, Ribeiro censuraria Azevedo pública e severamente revelando ter ele
estipulado em segredo com os Comissários peruanos a divisão dos territórios bolivianos
limítrofes entre os dois países.
109
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXII, parte II, 1869, p. 298.
110
Candido Mendes de Almeida, Atlas do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Litografia do Instituto Philomathico,
1868.
111
A respeito das mudanças no Estatuto do IHGB, ver, nesta tese, o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
306
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Azevedo entendia então que o Brasil havia novamente cedido grande parte de
seu território através do tratado que havia sido acertado com a Bolívia em 1867, e
acreditava que o seu entendimento secreto com os peruanos deveria ser reconhecido
pelo Governo, “cujos mútuos interesses repelem desassombrados o renascimento de tais
preconceitos” “que se reconhecem nos empoeirados papéis”.
112
Além de criticar os
argumentos de Ribeiro e a documentação reunida em seus Arquivos, Azevedo propunha
ainda a utilização da cartografia para legitimar seus pleitos e descaracterizar os termos
do Tratado: “o atual ministro da fazenda do governo peruano, irmão do Dr. Paz Soldán
[o Comissário-chefe peruano] que escreveu a notável obra 'Geografia del Peru' não
deixará de sustentar a opinião enunciada [...].”
113
Portanto, a ‘Carta Geral do Império’, doravante chamada de ‘Carta Geral’,
estava referida a um projeto endossado pela derivação que a dividia em 42 folhas
separadas, das quais já estavam prontas 31. Contudo, utilizando-se do fato de já se haver
um contrato firmado para a impressão da ‘Carta Geral’, sugerir-se-ia em 1871 que se
iniciasse a impressão imediata da ‘Carta Geral’.
114
Como esta impressão somente seria
viável se todo o trabalho da Comissão fosse reduzido em escala para apenas quatro
folhas, sabidamente Ribeiro assumiria a organização da carta, conduzindo sua
composição segundo a ‘norma narrativa’.
Entretanto, utilizando-se o pretexto de equiparar a ‘Carta Geral’, ao menos
parcialmente, com os outros trabalhos semelhantes que até então haviam sido realizados
na Europa, decidiu-se adiar a publicação para que fosse aplicado no levantamento do
território nacional o método da ‘geodésia expedita’, o qual já havia sido antes utilizado
no levantamento da carta da Etiópia.
115
Assim, em lugar das fontes sabidamente
utilizadas por Ribeiro e que este havia disponibilizado para a ‘Comissão da Carta
Geral’, resolveu-se pela construção da ‘Carta Geral’ através da utilização de um método
científico de medição e cálculo diretamente sobre o território. Deste modo, em 1873,
João Nunes de Campos, orientando-se pela decisão anterior, ordenou que o projeto da
112
José da Costa Azevedo, Defesa da Comissão Mista demarcadora dos limites do Brasil e Peru ao Sr. Conselheiro
Duarte da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: Tipografia da Reforma, 1871, p. 4.
113
José da Costa Azevedo, Defesa da Comissão Mista demarcadora dos limites do Brasil e Peru ao Sr. Conselheiro
Duarte da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: Tipografia da Reforma, 1871, p. 11.
114
Isa Adonias, A Cartografia da Região Amazônica: 1500-1691 v. I). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisa
da Amazônia, 1963, p. 353-355.
115
O método da ‘geodésia expedita’ era uma simplificação dos métodos geodésicos, diminuindo-se os procedimentos
no terreno e a subsequente qualidade dos cálculos em razão de ser agilizar a produção da carta.
307
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
‘Carta Geral do Brasil’ voltaria a constar de 30 folhas as quais seriam preenchidas na
medida em que as medições tivessem lugar.
116
Portanto, podemos concluir que a intervenção de Ribeiro fazia parte de uma luta
de representações entre a ‘norma da narrativa’ e a ‘derivação’, que também levaria
Henrique de Beaurepaire Rohan, um dos simpatizantes da ‘derivação’ a assumir a
presidência da ‘Comissão da Carta Geral do Império’, após a morte de João Nunes de
Campos em 1874.
Em reação à posse de Rohan, Ribeiro seria tornado conselheiro da ‘Comissão da
Carta Geral’, na posição de ‘Chefe da Seção’, sob a alegação de que esta deveria ser
impressa a tempo de participar em 1875 da quarta Exposição Nacional. Por conseguinte,
a intervenção de Ribeiro garantiu que a ‘Carta Geral’ fosse construída segundo a visão
de espaço central e elaborada conforme suas fontes. Com o nome de ‘Carta do Império
do Brasil’ este mapa seria posteriormente remetido para a Exposição Internacional da
Filadélfia (Centennial Exhibition) em 1876 quando, conjuntamente com a ‘Corografia
de 1876’,
117
seria consagrado como a representação oficial do espaço nacional.
Neste Evento, onde a participação brasileira fora exaustivamente preparada,
inclusive tendo sido antecedida pela ida do próprio Imperador, procurava-se reparar a
imagem brasileira, seriamente arranhada pela Guerra do Paraguai, objetivo que havia
sido plenamente alcançado segundo Felipe Lopes Neto, responsável pelo estande
brasileiro na Filadélfia:
A crença geral aqui é que no continente americano só há dois
governos sérios, o dos Estados Unidos e o do Brasil. As repúblicas sul-
americanas estão eclipsadas pelo Império: ninguém se ocupa delas [...].
Contra o nosso costume, estamos, pois, fazendo aqui excelente figura.
Nacionais e estrangeiros, todos reconhecem e confessam, que, das nações
modernas, é o Brasil que mais há progredido nas vias da civilização e mais
rica de produtos naturais se mostrou na Exposição de Filadélfia.
118
116
Isa Adonias, A Cartografia da Região Amazônica: 1500-1691 v. I). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisa
da Amazônia, 1963, p. 353-355.
117
Atualizada por Luís Pedreira do Couto Ferraz, Visconde do Bom Retiro. O Império do Brasil na Exposição
Universal de 1876 na Filadélfia. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1875.
118
‘Correspondência entre Lopes Neto e José Antônio Saraiva’, em 09/07/1876 e 06/08/1876. IHGB, Lata 273 Pasta
12.
308
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Após a intervenção de Ribeiro, a ‘Comissão da Carta Geral’ continuaria a existir
ainda sob o comando de Rohan, que insistia em organizar uma ‘Carta Geral’ através de
sua composição endossada pela ‘derivação’, segundo este, dividindo-se o espaço em
diversas cartas que empregassem somente “documentos dignos de crédito”, não se
confiando, para este trabalho, “nos elementos existentes, pela maior parte pouco exatos,
por terem sido obtidos em épocas mais ou menos afastadas.”
119
Logo, Rohan
constataria, com base em dados enviados das Províncias, uma enorme quantidade de
erros na ‘Carta do Império do Brasil’: povoações e acidentes geográficos inexistentes,
topônimos trocados, “cidades que haviam deixado de existir há 100 anos” e uma divisão
interprovincial completamente falha, especialmente se fosse comparada “com os Mapas
que compõem o Atlas do Ex. Senador Cândido Mendes de Almeida”.
120
Portanto, estaria plenamente justificada a iniciativa destinada a produzir uma
nova carta geral, baseando-a numa processo sintomaticamente denominado por Rohan
de ‘Carta Arquivo’, já que visava substituir o material reunido no Arquivo da SNE. Esta
‘Carta Arquivo’, seria composta por diversos mapas, cada qual referente a uma parcela
do território, que somente deveriam ser preenchidos na medida em que se fizessem
progressos no levantamento topográfico do país, especialmente através do método da
‘geodésia expedita’ e de acordo com as informações que fossem prestadas pelas
Províncias. Mas, Rohan não aguardaria estas providências para dar início ao trabalho da
‘Carta Arquivo’, conseguindo aprontar rapidamente 22 folhas desta, nas quais utilizaria
apenas fontes que considerava modernas e de cunho científico, no caso, segundo os
planos topográficos e as cartas provinciais construídas por engenheiros.
Ainda, Rohan acreditava que a ‘Corografia de 1876’ deveria ser substituída por
uma outra obra, “empreendida por homens competentes”, segundo o princípio da
“divisão de trabalho” e que receberia a denominação de ‘Corografia ou História física e
119
Henrique de Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da ‘Carta Geográfica’ e da História física e
política do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 10-11.
120
Henrique de Beaurepaire Rohan, Relatório final da Comissão da Carta Geral do Império apresentado ao Ministério
da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 5-49; Henrique de
Beaurepaire Rohan,
Estudos acerca da organização da ‘Carta Geográfica’ e da História física e política do Brasil.
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 10-11.
309
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
política do Brasil’, a exemplo “de uma obra corográfica semelhante, aquela de que deve
se gloriar o Chile”.
121
Contudo, a ‘Comissão da Carta Geral’ seria extinta em 2 de março de 1878 pelo
Ministério da Agricultura, sob a alegação de ser “contrária às circunstâncias financeiras
atuais, a conservação de serviços que não são urgentes,” ainda que, naquele tempo, só
restassem, sob a chefia de Rohan, dois desenhistas e dois ajudantes.
O legado de Duarte da Ponte Ribeiro
A ‘Carta do Império do Brasil’ continuou sendo a única representação
cartográfica oficial do Brasil até 1922, quando foi organizada pelo Clube de Engenharia
do Rio de Janeiro, a ‘Carta Geográfica’ do Brasil’, que aliás, continuava ainda sendo
baseada na ‘Carta do Império do Brasil’ e na ‘Carta de 1873’.
122
Nesse sentido, após a apresentação da ‘Carta do Império do Brasil’ na Exposição
Nacional de 1875, Ribeiro deixaria publicado o seu legado, a ‘Exposição dos trabalhos
que serviram de base à Carta Geral do Império’,
123
consagrando as fontes pelas quais se
empreendeu a ‘inscrição do espaço nacional’, agora tornadas oficiais pela ‘Carta do
Império do Brasil’. À publicação desta ‘Exposição’, que uniformizava, de fato, as fontes
para a produção cartográfica, somava-se a organização pelo Arquivo Militar de um
‘Plano geral de convenções topográficas’
124
que uniformizava também todas as
convenções utilizadas nos produtos cartográficos, o que estendia, na prática, o controle
da visão central sobre a ‘inscrição do espaço’.
Portanto, entendemos que as iniciativas que visavam inscrever continuamente a
centralidade através da reeducação constante de seus membros, impulsionaram Ribeiro
a ter uma participação privilegiada na organização da ‘inscrição do Estado no espaço’.
Entretanto, ainda que esse privilégio delegado pelo Estado visasse resguardar as
estratégias e interesses da centralidade, a ‘inscrição do Estado no espaço’ foi feita
121
Henrique de Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da ‘Carta Geográfica’ e da História física e
política do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 9-18; 20-22; Henrique de Beaurepaire Rohan,
Relatório final da Comissão da Carta Geral do Império apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 62.
122
Carta geographica do Brasil em comemoração do primeiro centenário da Independência. Paris: Imp. De l’Institut
catographique de Paris, 1922.
123
Duarte da Ponte Ribeiro, Exposição dos trabalhos históricos, geográficos e hidrográficos que serviram de base à
Carta Geral do Império exibida na Exposição Nacional de 1875. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1876.
124
Por Antonio Pinto de Figueiredo Mendes Antas, na Oficina litográfica do Arquivo Militar.
310
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
através de uma estruturação da ‘gramática do lingüista’ a partir do uso criativo da
‘gramática mental’ de Ribeiro. Esta ‘gramática mental’, resistindo a uma derrota do
princípio subjetivo, materializou sua intelecção do espaço nacional através da luta de
representações.
Portanto, a representação do ‘espaço nacional’ através da ‘Carta de 1873’ e da
‘Carta do Império do Brasil’ foi ligada indelevelmente a sua intuição do ‘Programa
Geográfico’ e das fontes coloniais. No caso, entendemos, a partir de Schopenhauer, que
esta coleção de intuições e de experiências amadureceram seu pensamento, tornando
possível sua combinação, o que ampliou sua aplicabilidade para que este pudesse ser
aplicado quando as oportunidades surgiram.
125
Nesse sentido, na ‘gramática mental’ de Ribeiro a nacionalidade passou a ter
uma via própria e independente daquela disseminada pela visão do centro: a Nação para
Ribeiro foi constituída nas localidades mais remotas por heróis quase anônimos que
experimentaram a terra e a desbravaram. Assim, não importava que o Brasil como tal
não existisse anteriormente: a experimentação da terra tornou esse heróis brasileiros
antes de seu tempo, fazendo desaparecer nessa apreciação a própria noção de tempo —
a terra, somente a terra era capaz de unir o presente, o passado e o futuro.
Assim, Ribeiro, representou na ‘Carta de 1873’ e na ‘Carta do Império’ a
importância dessas experimentações da terra para que se pudesse dotar a Nação de um
sentido que perpetuasse sua existência, ainda que, por exemplo, com isso fosse
necessário representar cidades que não existissem mais ou monumentos que não mais
fizessem sentido para os contemporâneos.
Portanto, registrar os limites brasileiros significava na ‘gramática mental’ de
Ribeiro reconhecer os esforços daqueles heis, desenhando a terra além das razões do
presente: a ‘inscrição do Estado no espaço’ devia ser registrada segundo as narrativas
organizadas em seu Arquivo, consagrando através dessa releitura a presença idealizada
dos Lacerdas, dos Lemes, dos Serras e de outros anônimos nos recônditos remotos onde
estiveram sob a ameaça dos selvagens e dos bárbaros espanhóis. Esta releitura importou
também em inscrever no mapa as epopéias formadoras do espaço, registrando-se, no
caso, os Guarajús, como uma cidadezinha construída em meio à floresta pela audácia do
nacional; o martírio dos patriotas da Praça dos Prazeres, no caso, descrito como um
125
Arthur Schopenhauer, ‘Crítica da Filosofia Kantiana’ in Os Pensadores - Arthur Schopenhauer, São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997, p. 176.
311
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
definhamento de crianças e homens sob os rigores da natureza; a bravura do Forte de
Coimbra, onde um punhado de brasileiros resistiram à vilania dos inimigos; o destemor
da resistência contra os espanhóis no Rio Guaporé, quando alguns valentes foram
capazes de destroçar um Exército — ou seja, fazer a terra voltar a viver através de suas
histórias, possibilitando-se a construção de um momento.
Ainda, ‘inscrever o Estado no espaço’ significou também para Ribeiro, fazer
desaparecer os registros dos esforços inúteis como aqueles representados em Castilhos
Grandes e Castilhos Pequenos, riscados do mapa ante a enormidade dos esforços que
representavam, ou evitar a inscrição de esperanças fúteis, como no caso do sugestivo
Rio dos Enganos, apagado do mapa porque nada podia significar para a Nação, ou do
rio Javari, substituído em sua importância pelo rio Purus, consagrando-se, deste modo,
uma representação da ‘norma narrativa.
Finalmente, a ‘inscrição do Estado no espaço’ demonstrou, inclusive, que o
princípio subjetivo podia resistir ao esforço da centralidade, registrando outros heróis e
inscrevendo outras idéias, mas, facilitando-se também sua passagem para o Mito.
312
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
11 — A MÁSCARA DA MEDUSA: A PERSPECTIVA DA CENTRALIDADE E A
CONSTRUÇÃO DA MITOLOGIA DO ESPAÇO NACIONAL
“IT lieth, gazing on the midnight sky,
Upon the cloudy mountain peak supine;
Below, far lands are seen tremblingly;
Its horror and its beauty are divine.
Upon its lips and eyelids seems to lie
Loveliness like a shadow, from which shine,
Fiery and lurid, struggling underneath,
The agonies of anguish and of death.
Yet it is less the horror than the grace
Which turns the gazer’s spirit into stone;”
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery.
1
No capítulo anterior vimos que a construção da representação do espaço
nacional incluiu, por conta da resistência a uma derrota do princípio subjetivo, o
registro da intelecção do espaço feita por Ribeiro através de sua ‘gramática mental’. Já
neste capítulo, nossa intenção é, primeiramente, demonstrar que na representação do
espaço nacional, a intelecção do espaço feita por Ribeiro foi apenas registrada junto a
uma intelecção do espaço nacional a partir da perspectiva da centralidade.
Esta perspectivação
2
do espaço resultou tanto de uma intuição da ‘inscrição do
Estado no espaço nacional e internacional’ quanto de uma intelecção da ‘inscrição do
espaço’ desenvolvida através da ‘gramática da linguagem’ e da ‘gramática do lingüista’,
no caso, da narrativa do século XIX. Assim, entendemos que esta perspectivação,
1
‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’ in Posthumous Poems of Percy Bysshe Shelley,
Mary W. Shelley (Edited). London: John and Henry L. Hunt, 1824, p. 139-140. Nossa tradução: ‘Ela jazia, voltada
para cima, fitando o céu noturno sobre um enevoado cume; abaixo, terras distantes são vistas tremeluzindo; seu
horror e sua beleza são divinos. Sobre seus lábios e suas pálpebras parece repousar o encanto como uma sombra,
onde, lutando por debaixo, se irradiam, ardentes e pálidas, as agonias da angústia e da morte. Contudo, é menos o
horror que o encanto que transforma o espírito do observador em pedra;’.
2
Ver a idéia da perspectivação, ou seja, da constituição e desenvolvimento de uma gramática da visão, no capítulo
desta tese ‘A descrição do contemplador’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
314
doravante denominada de ‘visão central do espaço’, importou em determinadas
características e conseqüências na formação do Estado Nação as quais mantiveram sua
influência até hoje por conta de sua entronização como elementos de uma ‘Mitologia do
espaço nacional’.
Deste modo, estudaremos em segundo lugar neste capítulo, o desenvolvimento e
a consolidação dessa ‘Mitologia do espaço nacional’ relacionando-a com os esforços
que constituíram a representação do espaço nacional, ou seja, com a ‘visão central do
espaço’, mas entendendo que a intelecção do espaço feita por Ribeiro também participa
dessa ‘Mitologia’.
Nesse sentido, pretendemos que a formação da ‘Mitologia do espaço nacional’
resultou da própria narrativa do século XIX, mas, a partir de uma intuição dos produtos
cartográficos e corográficos utilizados pela narrativa e de uma intelecção de seus
elementos, após a consolidação da representação do espaço nacional. Este produto final
da narrativa do século XIX é a ‘História das Fronteiras’, que foi disseminada pela ‘visão
central do espaço’ na História Diplomática, na História da Política Externa, na História
Militar, na Geopolítica e mesmo na História do Brasil.
3
Assim, como a ‘Mitologia do
espaço nacional’ resulta de um conteúdo enformado na História das Fronteiras pela
‘visão central do espaço’, esta compreensão do problema nos leva a ter de empreender o
estudo da ‘Mitologia do espaço nacional’ já não mais como separada da História das
Fronteiras, mas como parte desta.
Portanto, numa primeira aproximação do problema, consideramos que essa
construção historiográfica ao incorporar os termos da narrativa do século XIX, envolve,
por conseguinte, certos aspectos que podem ser mais bem compreendidos a partir da
lingüística, no caso, nos levando a ter de utilizar novamente a idéia de Chomsky a
respeito da ‘Economia da Derivação e da Representação’ na linguagem, já utilizada no
capítulo anterior.
4
Conforme o conceito da ‘Economia da Representação’ na linguagem, devemos
entender que somente em último caso serão empreendidas mudanças na narração, uma
vez que estas implicam na constituição de uma derivação. Por conseguinte, a supressão
de elementos ou termos na narração somente se dará quando estritamente necessário,
3
A respeito da disseminação, ver nesta tese o capítulo ‘O mapa antes do território’.
4
A respeito da ‘Economia da Derivação e da Representação’ na linguagem, ver nesta tese a utilização dos conceitos
da ‘Economia da Derivação’ no capítulo ‘Em amplexo fraternal’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
315
condição esta que também se repete em relação às inserções na narração. Contudo,
deve-se também considerar que o custo dessa transformação diminui na medida em que
se distinguem as necessidades de grupos de falantes específicos e as oportunidades da
sua efetivação, neste caso, as considerações locais imprimem uma dinâmica específica
na faculdade de formulação da linguagem que deve ser considerada.
Assim como as transformações da narração somente serão empreendidas
segundo condições especiais, também os novos elementos de representação na
linguagem somente surgirão se forem propriamente legitimados perante o ‘sistema de
representação’ [D-Structure] da narração, ou seja, desde que sejam preenchidas as
condições que permitam a conexão de sua sintaxe com as outras formas constituintes
daquele sistema.
5
De acordo com nosso problema, podemos então pressupor que a construção da
‘História das Fronteiras’ privilegiou a manutenção das condições da narrativa do século
XIX, uma vez que, já em 1875, estavam constituídos os controles da ‘visão central’
sobre a ‘inscrição do espaço’ e uma representação do espaço nacional oficialmente
reconhecida.
Entretanto, como a operação da narrativa no novo regime passou a se realizar
num teatro de dimensões muito reduzidas, no caso, a SNE e seu sucessor, o Ministério
das Relações Exteriores, a transformação da narrativa do século XIX numa ‘História das
Fronteiras’ seria ensejada pelas necessidades operacionais desse órgão e pelas
oportunidades encontradas pelos operadores para legitimar novos elementos de
representação a partir da narrativa do século XIX.
Esta transformação da narrativa, legitimada segundo a ‘visão central do espaço’
foi enformada numa ‘Mitologia do espaço nacional’, sendo então disseminada e
novamente transformada nos teatros secundários de produção da narrativa em
narrativas heróicas dependentes da forma mitológica original. Por exemplo, nas
corporações militares foram escritas narrativas heróicas do espaço enfatizando a
participação de seus membros na construção do espaço nacional.
Finalmente, esta atualização e particularização da ‘História das Fronteiras’ foi
racionalizada por cada uma das diversas disciplinas afins, sendo seu conteúdo
disponibilizado e transmitido por uma pedagogia enraizada nesses locais de enunciação.
5
Noam Chomsky, ‘Some notes on economy of Derivation and Representation’ in The Minimalist Program.
Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 150-151.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
316
Numa segunda aproximação do problema, daremos prosseguimento à proposta
também apresentada no capítulo anterior de encaminhar o estudo da ‘História das
Fronteiras’ segundo as idéias de Schelling acerca da Mitologia.
Conforme este autor, a Mitologia seria o “único mundo” onde é possível uma
representação duradoura e determinada objetivamente, sendo, ao mesmo tempo, uma
invenção, cujos termos constituintes e modelos devem ser entendidos histórica e
simbolicamente e uma criação coletiva, não apenas intencional mas também
incondicionada.
6
Nesse sentido, para que seja possível a afirmação e a ascensão de uma
Mitologia, é necessário, em primeiro lugar, que seus protagonistas sejam reais,
porquanto somente assim seriam objetos possíveis em sua invenção; em segundo lugar,
que nessa objetivação esteja incutida uma limitação dos potenciais do protagonista; em
terceiro lugar, que as incertezas e deformidades das origens da narrativa mitológica
sejam eliminadas e, em quarto lugar, que o mundo de atuação dos protagonistas da
narrativa mitológica somente possa ser interpretado através da criação intelectual sobre
o próprio ‘mundo mitológico’.
7
Este ‘mundo mitológico’ seria então organizado sobre a afirmação da “beleza de
seus protagonistas”, ou seja, sobre a afirmação das potencialidades e qualidades dos
protagonistas da narrativa mitológica, eliminando-se nesse processo o que não
condissesse com esta ‘beleza’. Estes mesmos protagonistas formariam então, através da
narrativa mitológica, uma “totalidade entre si”, o que determinaria que no ‘mundo
mitológico’ “tudo passasse a ser determinado reciprocamente”, ou seja, através de uma
relação entre estes mesmos protagonistas. Finalmente, essa “relação de dependência”
entre os protagonistas mitológicos deveria ser somente representada através de uma
“relação de geração”, onde cada um dos protagonistas teria sua origem determinada pela
ação ou atuação anterior de outro protagonista. Esta “relação de geração” seria
inteiramente necessária à organização do ‘mundo mitológico’ uma vez que é o único
modo de dependência no qual “o dependente permanece absoluto em si”.
8
De acordo com nosso problema, podemos então pressupor que a transformação
da narrativa se realizaria tanto pela legitimação direta de novos termos e elementos
6
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 38-42 e § 133 p. 300.
7
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 30-35.
8
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 36.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
317
representativos quanto por uma apropriação destes apenas ativada por certas condições
relacionadas à operação da narrativa. Por exemplo, a penetração da geopolítica no
Itamaraty e no Exército agregaria à ‘História das Fronteiras’ e à ‘Mitologia do espaço
nacional’ certos elementos mais em função da aproximação desse conteúdo com a
narrativa do que propriamente de um exercício de legitimação realizado pelos seus
operadores.
Ainda, a partir das idéias de Schelling, entendemos que, para que se tornasse
possível a afirmação e a ascensão de uma ‘Mitologia do espaço nacional’, foi necessário
retirar seus protagonistas da própria narrativa do século XIX, sendo seus personagens
idealizados a partir de certas características inerentes a essa mesma narrativa. Depois,
estes mesmos protagonistas foram despidos de características pessoais que eram
contrárias à afirmação mitológica e formariam “uma totalidade entre si” através de sua
participação no enredo mitológico numa “relação de dependência e de geração”. Assim,
Alexandre de Gusmão e o Barão do Rio Branco, foram relacionados entre si pela sua
atuação e ação na ‘História das Fronteiras’, sendo seus personagens corriqueiramente
descritos na ‘Mitologia do espaço nacional’ enquanto patriotas que desinteressadamente
se investiram da responsabilidade de afirmar a Nação e de inscrevê-la num espaço
nacional.
No sentido de ressaltar essa “totalidade entre si”, é interessante citar a
importância atribuída por Claude Levi-Strauss à incorporação da idéia dos gêmeos na
construção dos mitos: a gemeidade seria o sinal de um parto perigoso ou heróico,
“porque a criança tomará a iniciativa e tornar-se-á uma espécie de herói, um assassino
em certos casos; mas de qualquer modo ela realiza uma façanha muito importante”.
9
Os
gêmeos desempenhariam, então, o papel de intermediários entre o poder divino e a
Humanidade, no que poderiam ser representados de várias maneiras, mas sempre
relacionados entre si e realizando uma façanha benéfica para a comunidade ou o grupo.
Entretanto, frisa Levi-Strauss, existe a conveniência em apenas sugerir a
gemeidade, uma vez que a divindade não seria dividida em duas metades: se os
personagens do mito não forem verdadeiramente gêmeos, não existirá a possibilidade
desses gêmeos personificarem, cada um deles, a oposição de polaridades. Por
conseguinte, mantendo-se apenas a sugestão da gemeidade constitui-se uma não-
9
Claude Levi-Strauss, Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 50.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
318
divisão, onde “as características opostas podem permanecer fundidas numa única e
mesma pessoa”.
10
Assim, em nosso caso, Alexandre de Gusmão e Rio Branco seriam ‘relacionados
em dependência e em geração’ mas apenas seria sugerida sua gemeidade, tornando-se,
por conseguinte, mais forte o sentido da ‘totalidade entre si’ no mito da construção do
espaço nacional. Por exemplo, note-se, na citação abaixo, em primeiro lugar, a
identificação em duplo sentido de Rio Branco como o “deus término” das fronteiras,
tanto como a divindade romana protetora dos limites e das propriedades, que era
adorada em cerimônias sobre os marcos dos terrenos quanto como o finalizador de uma
obra, no caso em ‘relação de dependência’ com Alexandre de Gusmão. Em segundo
lugar, observe-se a identificação de Alexandre de Gusmão em ‘relação de geração’,
como aquele que projeta e idealiza a obra de construção das fronteiras; finalmente, veja-
se a construção de uma relação de gemeidade entre Alexandre de Gusmão e Rio Branco,
através da afirmação de uma identidade de pensamento entre os dois personagens:
Por isso mesmo, em 1894, o Barão do Rio Branco, “deus término”
de nossas fronteiras, considerava que os dois grandes tratados de limites da
América Portuguesa, [...] erigiram em princípio indestrutível o “uti
possidetis”, por ser a “única regra razoável e segura para a determinação das
fronteiras”. Já o “Tratado” de 1750, onde se espelha, com nitidez, a
orientação jurídica de Alexandre de Gusmão, consignava expressamente no
“Preâmbulo”: “Cada parte há de ficar com o que atualmente possui”.
11
Contudo, como compreendemos através das aproximações com a ‘Economia da
Representação’ e com as idéias de Schelling, tanto a ‘Mitologia do espaço nacional’
quanto a narrativa compreendida na ‘História das Fronteiras’ enfeixam as intelecções do
espaço realizadas pela ‘visão central do espaço’, ajudando a perpetuá-las.
Portanto, para que se possa entender a ‘História das Fronteiras’ e a ‘Mitologia do
espaço nacional’ menos como descrições do que como representações do espaço, deve-
se entender suas arquiteturas enquanto representações de uma outra representação,
problema que designaremos através da utilização de um termo da heráldica medieval,
10
Claude Levi-Strauss, Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 43-51.
11
João Gualberto de Oliveira, Gusmão, Bolívar e o Princípio do ‘Utis Possidetis.’ São Paulo: s/editor, 1958, p. 69-70.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
319
‘mis-en-abysme’, ou seja, o registro repetido no quartel de um brasão de sua própria
imagem desdobrando-se em imagens cada vez menores.
Por conta dessa dificuldade adicional, buscaremos então uma terceira
aproximação do problema, desta vez através de um enfoque sobre a questão da
representação, procurando utilizar os recursos retirados de nosso estudo da cartografia
feito nos capítulos anteriores. Nesse sentido, buscaremos trabalhar nosso problema
através da discussão da ‘ekphrasis’, termo grego cuja tradução significa ‘fazer falar’, e
que vem a ser a descrição poética de uma obra de arte, visando com isto, ultrapassar a
limitação de seu medium, seja a pintura ou a escultura.
Para esta aproximação do problema escolhemos como objeto de trabalho um dos
exemplos de ‘ekphrasis’, o poema ‘On The Medusa of Leonardo da Vinci, In the
Florentine Gallery’ de Percy Bysshe Shelley, que foi escrito em 1819 a partir de um
quadro que retrata a figura da Medusa degolada e que era então atribuído a Leonardo da
Vince. Este poema de Shelley, além de situar a dinâmica da representação sobre outro
objeto que não a cartografia, permite-nos, em primeiro lugar, trabalhar o problema
aludido anteriormente, ou seja, da representação sobre outra representação, ‘mis-en-
abysme’, a partir da ‘ekphrasis’, uma vez que existe todo um jogo de intuições e
intelecções em sua escrita, capaz de nos remeter, inclusive, à idéia de texto-mapa, já
discutida no capítulo ‘O espelho do Jacobina’ e que será retomada adiante.
Em segundo lugar, através deste poema trabalharemos a dinâmica da
representação, uma vez que estudaremos a discussão do poema de Shelley realizada em
meados da década de 1990 no âmbito do ‘Romantic Circle’ da University of
Maryland,
12
que gerou, por sua vez, várias publicações sobre o assunto.
13
O estudo desta
12
Esta discussão foi realizada sobre os seguintes textos: James Heffernan. Museum of Words: The Politics of
Ekphrasis from Homer to Ashberry. Chicago: University of Chicago Press, 1993, p. 119-124; Neil Hertz.
‘Medusa's Head: Male Hysteria under Political Pressure.’ Representations IV, 1983, p. 27-54; Daniel Hughes.
‘Shelley, Leonardo, and the Monsters of Thought.’
Criticism XII, 1970, p. 195-212; Carol Jacobs. ‘On Looking at
Shelley's Medusa.’
Yale French Studies 69, 1985, p. 163-79; Jerome McGann. ‘The Beauty of the Medusa: A
Study in Romantic Literary Iconology.’
Studies in Romanticism XI, 1972, p. 3-25; W. J. T., Mitchell. ‘Ekphrasis
and the Other.’
The South Atlantic Quarterly 91.3 Summer 1992, p. 695-719; Mario Praz. ‘The Beauty of the
Medusa.’ in
The Romantic Agony. [Carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica.] Trans. Angus
Davidson. 2nd ed. with corrections; foreword by Frank Kermode. London, New York: Oxford University Press,
1970 (1933), Chapter One.
13
Por exemplo: Jay Clayton. ‘Concealed Circuits: Frankenstein's Monster, the Medusa, and the Cyborg.’ Raritan XV,
Spring 1996, p. 53-69; John Hollander.
Gazer's Spirit: Poems Speaking to Silent Works of Art. Chicago:
University of Chicago Press, 1995. p. 142-46; Grant Scott. ‘Shelley, Medusa, and the Perils of Ekphrasis.’
The
Romantic Imagination: Literature and Art in England and Germany, Ed. Frederick Burwick and Jurgen Klein:
Amsterdam and Atlanta, 1996, p. 315-332.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
320
formulação nos permitirá estudar o problema da recepção da ‘ekphrasis’ e da
importância do medium para esta mesma recepção.
Em terceiro lugar, o poema de Shelley nos permitirá estudar, a partir de sua
própria composição, o conceito da ‘ekphrasis’ e o problema da representação e da
narrativa. Este estudo será feito a partir da utilização, que reconhecemos ser imperfeita
para este objeto, do método constituído sobre a noção de processo externo e processo
interno, anteriormente trabalhado sobre a cartografia.
Nesse sentido, a composição de ‘On the Medusa’ será estudada através das
seguintes diretivas:
A partir de um processo externo, que, no caso, entendemos dizer respeito à
intuição feita pelo pensamento de Shelley das representações anteriores da Medusa na
literatura inglesa, da leitura dos clássicos e de uma enorme literatura que neles se
baseiam.
A partir de um processo interno, no caso, compreendido como a intelecção do
processo externo pelo pensamento de Shelley. No caso, este pensamento foi
amadurecido por conta de suas experiências, utilizando o conhecimento das condições e
modos do uso apropriado da poesia e em conformidade com os seus propósitos. Assim,
‘On the Medusa’ pode ser incluído num grupo de obras da qual faria parte, por exemplo,
‘Prometheus Unbound’, e que refletiriam seu idealismo político, sua intelecção e as
possibilidades de sua expressão.
A partir de uma interpretação semiológica e iconológica que estaria ligada ao
entendimento do processo interno e do processo externo, no caso, relacionando a
Medusa e outros símbolos retirados da cultura clássica por Shelley aos símbolos
utilizados pela literatura política da época, que identificava, por exemplo, a Medusa
com o Jacobinismo e Atenas com a Grã-Bretanha (ver figura 28).
Se utilizarmo-nos dos elementos anteriores, poderíamos fazer num primeiro
nível de leitura, uma interpretação dos elementos semiológicos e iconológicos
privilegiando o processo externo.
Por conseguinte, podemos entender a composição do poema de Shelley como
uma intelecção da lenda clássica, a saber: Medusa, jovem de beleza exemplar, fora
transformada em um monstro por Atenas, o qual jamais poderia ser confrontado por
nenhum observador, sob pena deste ser transformado em pedra. Logo, relacionando a
figura da Medusa com os ideais jacobinos e a figura de Atenas com os ideais
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
conservadores, Shelley retrataria a Medusa como a vítima da opressão de um tirano.
Portanto, após a morte descobrir-se-iam no seu rosto morto os encantos e a beleza
negados em vida a ela, ao lado de uma força vital que não podia ser destruída: morta,
sua face continuava a possuir o poder de petrificar, jorrante, seu sangue foi capaz de
gerar Pégaso, que em sua natureza personificava a própria liberdade.
FIGURA 28 — ATENAS E MEDUSA_
Fonte: Fonte: W. J. T. Mitchell, 'Ekphrasis And The Other.' in The South Atlantic
Quarterly, 1992.
Num segundo nível de leitura, utilizando os mesmos elementos anteriores, mas,
privilegiando o processo interno para sua interpretação, seremos obrigados a discutir o
próprio processo de composição, no caso, a ‘ekphrasis’, nos reportando ao medium
original, a pintura atribuída a Leonardo da Vinci.
Nesse sentido, aproveitaremos para incluir nesta digressão o objetivo
anteriormente citado de relacionar a dinâmica da representação com a discussão do
poema de Shelley realizada no âmbito do ‘Romantic Circle’. Essa discussão utilizou
como suporte uma reprodução em preto-e-branco da pintura onde apenas se pode
observar com clareza a figura da Medusa. Seja pela qualidade da reprodução seja pela
ação do tempo que obscureceu esta obra de arte desde a leitura efetuada por Shelley,
321
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
durante a discussão, praticamente todos os outros elementos do quadro que não fossem
a Medusa seriam minimizados na interpretação da ‘ekphrasis’ (ver Figura 29).
14
FIGURA 29 — MEDUSA (ROMANTIC CIRCLE)
Fonte: W. J. T.,Mitchell, ‘Ekphrasis And The Other’ in The South Atlantic
Quarterly, 1992 .
Sobre esta reprodução seria ainda produzido um esquema que visava conter os
principais elementos da pintura atribuída a Leonardo da Vinci, a fim de que estes
pudessem ser acompanhados mais facilmente por todos os debatedores, a partir das
leituras recomendadas (ver Figura 30).
Para que possamos continuar nossa digressão, comparem-se as Figuras 29 e 30
com o esquema de nossa autoria, a Figura 31, que desenhamos após termos recuperado
os elementos originalmente pintados ao redor da Medusa, valendo-nos, para isto, de
uma outra fonte, desta vez colorida, que manipulamos através de um programa de
edição de imagens. Podemos perceber, através dessa comparação, que a condição
principal do esquema, a centralidade da Medusa, não foi alterada, mas que seu
enquadramento,
15
atividade central na composição do poema de Shelley, já difere das
formulações baseadas nos Esquemas anteriores: vários elementos do entorno da Medusa
foram ignorados ou transformados, todos eles ligados direta ou indiretamente com a
intuição da pintura por Shelley e subseqüentemente também com a interpretação
322
14
A fonte dessa reprodução foi W. J. T. Mitchell ‘Ekphrasis And The Other’ in Picture Theory, Chicago:The
University of Chicago Press, 199, p. 174.
15
Com relação à nossa idéia de enquadramento ver nesta tese o capítulo ‘Mapeando o vazio’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
semiológica e iconológica do autor, na qual, no caso, baseamos nossa idéia do processo
interno.
FIGURA 30 — ESQUEMA (ROMANTIC CIRCLES)
Arte: Melissa J. Sites. Fonte: 'Romantic Circles', University of Maryland, in
www.rc/umd.edu.
Em relação à distribuição dos elementos, veja-se que, à volta da Medusa podem
se contar oito animais: à esquerda, dois lagartos e um morcego; à direita, dois sapos e
outro morcego; acima, um rato e uma salamandra [poisonous eft — linha 25]. Os
olhares destes animais convergem para o rosto da Medusa, ignorando as víboras que
adornam sua cabeça, que aliás, foram retratadas quase que destacadas de sua cabeça.
Numa análise puramente iconológica, à exceção da salamandra, que, através de
uma projeção da rocha parece projetar-se da boca da Medusa, todos os outros animais
são símbolos da decadência e da Morte. Esta discrepância pode ser relacionada com o
nosso primeiro nível de leitura, uma vez que na Antigüidade a salamandra era vista
como um animal que era capaz de viver no fogo e também de apagá-lo, sendo utilizada
na iconografia medieval para identificar a condição do “justo que, em meio às
tribulações, não perde a paz da alma e a confiança em Deus”.
16
Assim, a salamandra
significaria a ascensão da Medusa rumo a uma área de escape, situada no centro
323
16
Chevalier, Jean & Gheerbrandt, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio Editora: Rio de Janeiro, 1988, p.
798.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
superior do quadro, região que é adornada por dois morcegos que estão voando na
direção da Medusa. Note-se, que na Figura 30 a salamandra é substituída por outro
elemento que mantém o mesmo significado, o hálito da própria Medusa, que se eleva
seguindo também na direção da área de escape.
FIGURA 31 - ESQUEMA (DESTA TESE)
Arte: Renato Amado Peixoto. Fonte:'The Head of the Medusa', Uffizi Gallery, i
n
www.Barca.Net / Uffizi.
Em relação ao enquadramento, na base da pintura espalha-se o sangue
congelado da Medusa que se derrama em direção às extremidades do quadro buscando
misturar-se à névoa que concentrada nestas áreas emoldura toda a pintura. Por sua vez,
o rosto da Medusa, situa-se na zona central, mas, à beira de um precipício, de onde
domina um outro setor, desenhado num plano diferente e abaixo da Medusa e dos
animais que a cercam. Neste plano inferior se vislumbram algumas construções
humanas do meio das quais se destaca um torreão. Este conjunto de construções
humanas é dirigido através do torreão por uma ponte que segue na direção do pescoço
secionado da Medusa, onde, conjuntamente com a única víbora que se destaca de sua
cabeça nesta parte do quadro, sugere um prolongamento da Medusa rumo a esse plano
inferior.
Feita essa descrição da Figura 31, o nosso esquema da pintura atribuída a
Leonardo da Vinci, procederemos à comparação desta descrição com a Figura 30, tendo
em vista entender suas diferenças.
324
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
325
Mesmo através de um exame sucinto, fica bastante claro que no esquema do
‘Romantic Circle’ se mantém a centralidade do tema ainda que alguns dos elementos
originais tenham sido substituídos. Por exemplo, na Figura 30, em lugar da salamandra
que vemos na Figura 31, houve o registro de uma exalação vinda da Medusa: apesar
deste registro poder substituir com vantagem o significado simbólico do registro
original em alguns aspectos, ele se constituiu sobre uma alteração da compreensão do
poema, originada pela reprodução em preto-e-branco que vemos na Figura 29. Esta
alteração foi registrada num dos textos que introduzem a discussão, quando seu autor
entende que a impressão do ambiente, descrita por Shelley [Which makes a thrilling
vapour of the air (36)],
17
era originada da exalação vinda da Medusa [thrilling vapour of
the air (36)].
18
Na verdade, na estrofe final do poema, Shelley conjuga a impressão que
deseja ver causada pelo relato da observação da cena [Which makes a thrilling vapour
of the air (36)] com a imagem da névoa que se espalha pela pintura e se mistura com o
sangue congelado da Medusa (ver Figura 31), promovendo um efeito que deve ser
compreendido como ‘uma atmosfera de excitação’. Inclusive, o registro de uma
exalação vinda da Medusa na pintura atribuída à Leonardo da Vinci é negada pelo
próprio Shelley, como podemos compreender através da estrofe adicional do poema,
que não foi publicada nas obras completas de Shelley e que permaneceu desconhecida
até 1961:
O sangue está congelado -- mas a Natureza inconquistada (47)
parece estar lutando até o final -- sem uma respiração
19
Através desse exemplo podemos notar que a substituição ou a omissão de certos
elementos na reprodução da pintura atribuída a Leonardo da Vinci (Figura 29) mitigou a
compreensão da ‘ekphrasis’, induzindo os participantes da discussão a uma
17
Nossa tradução: ‘O que cria um excitante vapor do ar’ — ‘Which makes a thrilling vapour of the air’ — Percy
Shelley, ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 36.
18
‘Out of the half-open mouth issues a whitish cloud of breath, the ‘thrilling vapour’ referred to by Shelley’ — nossa
tradução: ‘Da boca meio aberta emana uma nuvem esbranquiçada, o ‘vapor excitante’ referido por Shelley’ —
Jerome McGann. ‘The Beauty of the Medusa: A Study in Romantic Literary Iconology’ in
Studies in Romanticism
XI, 1972, p. 3-25
19
Nossa tradução a partir de: ‘The blood is frozen--but unconquered Nature / Seems struggling to the last--without a
breath’ — Percy Shelley, ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 48. Esta estrofe foi
divulgada por Neville Rogers a partir das anotações da esposa de Shelley, Mary Shelley. Neville Rogers, ‘Shelley
and the Visual Arts’, in
KSMB 12, 1961.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
326
compreensão que mesmo não sendo contraditória, diverge do sentido empreendido por
Shelley em sua composição do poema.
Por outro lado, notamos que esta substituição deve-se à utilização da reprodução
em preto-e-branco (Figura 29) e que esta substituição consolida-se pela disseminação de
uma intuição a partir do medium, no caso, o esquema disponibilizado (Figura 30) e dos
textos que serviram de base para a discussão. Por conta desse raciocínio, podemos
entender que a dinâmica da ‘ekphrasis’ compreende tanto uma perda ou transformação
dos elementos que é causada pela limitação do medium
20
quanto uma compensação
relativa feita através de outros conteúdos ou baseada num conhecimento afim que
resulta numa disseminação da narrativa.
21
Portanto, como no problema da ‘História das Fronteiras’ já possuímos o
conhecimento do registro original, no caso, a narrativa do século XIX, será possível
entender sua representação como uma dinâmica sobre a representação, ‘mis-en-
abysme’, ou a partir da representação, em ‘ekphrasis’, a ser explorada através de um
exame das origens ou causas de suas compensações relativas.
Entretanto, ainda nos restaria, a partir da ‘ekphrasis’, resgatar a questão da
centralidade do tema, no caso da História das Fronteiras, a manutenção e perpetuação
das intelecções do espaço realizadas pela ‘visão central’.
Nesse sentido, embora nosso objetivo não seja contrariar aqui a discussão do
‘Romantic Circle’, aliás, muito mais competente que a nossa nos termos estritamente
literários do problema, necessitamos de sua ajuda para voltar a ressaltar a importância
do teatro da narrativa para a compreensão da dinâmica da representação, no caso, para
se discutir as condições da interpretação da ‘ekphrasis’. A chave dessa interpretação
está justamente em voltarmos à nossa análise do poema de Shelley no segundo nível de
leitura, ou seja, utilizando os elementos semiológicos e iconológicos para sua
interpretação segundo um privilégio do processo interno.
Numa das observações que derivaram da discussão, constata-se que, desde a
publicação do ‘Laocoonte’ de Lessing, havia se delineado uma separação moral e
estética entre as artes, isto, justamente num período em que a ‘ekphrasis’ era
incentivada como gênero, como, por exemplo, podemos constatar através da decisão das
20
Em relação à limitação do medium ver nesta tese o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.
21
Em relação à disseminação ver nesta tese o capítulo ‘O mapa antes do território’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
327
Universidades de Oxford e Cambridge em promoverem concursos para premiar os
melhores poemas sobre obras de arte ou culturas antigas.
22
Ainda, é necessário salientar que havia toda uma estética consolidada para a obra
de arte que impunha padrões tanto para aqueles que se dispusessem à sua apreciação
quanto à sua produção. Por um lado, o público da ‘ekphrasis’ estava condicionado a
perceber essas obras segundo certas condições ligadas à compreensão do seu conteúdo,
por outro lado, existia todo um padrão de apreciação fundamentado pela obra de Joachin
Winckelmann no qual se estabelecia que o branco era a cor da beleza ideal e que a
utilização do colorido nas esculturas não condizia com a arte clássica. Ainda, havia todo
um saber consolidado das Mitologias grega e romana que impunha dificuldades à
compreensão e à aceitação de uma intelecção deste saber, ou seja, de uma composição
que se constituísse numa derivação da norma. Assim, as intuições do poema de Shelley
foram prejudicadas pelas condições anteriormente assinaladas, seja impelindo essas
intuições rumo a um conteúdo já esperado numa ‘ekphrasis’, seja fazendo-se a intuição
de seu poema em relação ao saber mitológico estabelecido ou ainda remetendo essa
intuição a uma experiência compartilhada,
23
no caso, os padrões de apreciação da arte.
Desenvolvendo o raciocínio exposto no parágrafo acima, podemos, em primeiro
lugar, voltar a lembrar a questão da reprodução da pintura da Medusa atribuída a
Leonardo da Vinci (Figura 29). O fato de que, no ‘Romantic Circle’, uma discussão
aprofundada sobre um tema tão complexo tenha se contentado em servir-se apenas de
uma reprodução em preto-e-branco pode ser explicado a partir da prevalência desses
padrões de apreciação da arte e de que se satisfazia, através desse padrão, o
conhecimento do objeto julgado essencial à intuição do problema pelo saber mitológico
estabelecido, no caso, a figura da Medusa degolada.
Em segundo lugar, podemos entender que se tenha privilegiado a interpretação
do poema em relação ao esperado na ‘ekphrasis’, ou seja, segundo uma descrição
poética do quadro atribuído a Leonardo da Vinci, negligenciando-se outras
interpretações possíveis, como por exemplo a leitura que faremos a seguir, que remete à
intelecção da própria dinâmica da representação, no caso, entendendo a composição de
22
Grant Scott. ‘Shelley, Medusa, and the Perils of Ekphrasis.’ The Romantic Imagination: Literature and Art in
England and Germany, Ed. Frederick Burwick and Jurgen Klein: Amsterdam and Atlanta, 1996, p. 315-332.
23
Ver o problema da experiência compartilhada no capítulo ‘4.1’ desta tese.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
328
Shelley como remetendo ao próprio conceito da ‘ekphrasis’ através de uma intelecção
semiológica e iconológica da Medusa a partir do seu pensamento.
Nesse sentido, para Shelley, a Medusa repartia duas condições, uma humana
outra monstruosa, consistindo esta segunda condição num efeito da transformação da
narrativa operada por Atenas, no caso, uma representação de sua Vontade, que
continuou sendo operada por Atenas mesmo no seu desenlace, uma vez que Teseu, o
assassino da Medusa, foi guiado pela mão da mesma Atenas. Entretanto, ainda que na
Medusa existissem duas condições, a condição monstruosa mantinha seus atributos
sobre a condição humana, que por sua vez impressionava a condição monstruosa “um
espelho em permanente mutação” [ever-shifting mirror (37)]. Assim, se o encanto da
condição humana sobressai nos lábios e pálpebras da Medusa, a despeito de sua
condição monstruosa, também será sua “beleza” o artifício capaz de burlar a vigilância
do pensamento do observador e instaurar neste a condição monstruosa que o
transformará em pedra.
24
Deste modo, os traços da Medusa se reproduzem no
observador através dele mesmo, por uma suspensão de seu pensamento,
25
que também
permite a absorção da “suave nuança da beleza”, “humanizando e harmonizando” a sua
deformação,
26
que se esconde, portanto atrás de sua ‘Máscara da Medusa’.
Observe-se que o poema de Shelley assemelha-se com o estudo que fizemos no
capítulo ‘Em amplexo fraternal’ sobre a luta de representação e a resistência do
princípio subjetivo a partir de Schopenhauer e Schelling, especialmente se o
comparamos com sua estrofe perdida:
É um semblante divino de mulher (41)
Com uma incessante beleza ali respirando
Que de um cume tempestuoso, voltado para cima,
Fixa seu olhar no [ ] ar tremeluzente da noite.
24
‘Contudo, é menos o horror que o encanto que transforma o espírito do observador em pedra’ — Yet it is less the
horror than the grace / Which turns the gazer's spirit into stone;’ — Percy Shelley, ‘On the Medusa of Leonardo da
Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 9-10.
25
‘Os traços daquela face morta são gravados, até que os caracteres tornem-se nele mesmo e o pensamento não mais
possa mais seguir’ — Whereon the lineaments of that dead face / Are graven, till the characters be grown / Into
itself, and thought no more can trace;’ — Percy Shelley, ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine
Gallery’, v. 11-13.
26
Nossa tradução: ‘É a suave nuança da beleza arremessada contra a escuridão e o clarão da dor, que humaniza e
harmoniza a tensão’ — 'Tis the melodious hue of beauty thrown / Athwart the darkness and the glare of pain, /
Which humanize and harmonize the strain.’ — Percy Shelley, ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the
Florentine Gallery’, v. 14-16.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
329
Ela é uma cabeça sem tronco, mas em seus traços (45)
A Morte encontrou a vida, mas existe vida na morte,
O sangue está congelado -- mas a Natureza inconquistada
parece estar lutando até o final -- sem uma respiração
O fragmento de uma criatura não criada.
27
Por conseguinte, na discussão do ‘Romantic Circle’ as interpretações enveredam
mais pela condição literária de Shelley ou por uma intuição da lenda da Medusa, do que
pelo modo que esse autor entendia o saber mitológico estabelecido, contestava-o e
sobrepunha a este uma intelecção baseada no amadurecimento de seu pensamento a
partir de sua experiência, de sua percepção das oportunidades e dos modos de expressá-
la.
Assim, podemos entender que, no caso da dinâmica da representação da
História das Fronteiras, a questão da centralidade do tema e a manutenção e
perpetuação das intelecções do espaço realizadas pela ‘visão central’ foram garantidas
pela consolidação de uma ‘gramática da linguagem’ no teatro da narrativa. Esta
‘gramática’ relaciona-se a uma experiência compartilhada pela maioria daqueles que
participavam do teatro da narrativa a qual era expressa por meio de uma ‘linguagem’ e
de um ‘saber sobre o espaço’. Assim, a partir da compreensão do poema de Shelley,
podemos entender que as características dessa ‘visão central do espaço’ foram
preservadas, ‘mis-en-abysme’, na ‘História das Fronteiras’ e consolidadas, em
‘ekphrasis’, na ‘Mitologia do espaço nacional’, constituindo-se, assim, a nossa ‘Máscara
da Medusa’.
27
Nossa tradução de Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 45-49.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
330
A visão central do espaço e a Comissão de Limites
And from its head as from one body grow, (17)
As [ ] grass out of a watery rock,
Hairs wich are vipers, and they curl and flow
And their long tangles in each other lock,
And with unending involutions shew
Their mailed radiance [...]
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da
Vinci, In the Florentine Gallery
28
No capítulo anterior mostramos que a experiência compartilhada no Conselho
de Estado e na SNE, foi responsável por gerar diversas idéias de ‘inscrição do Estado no
espaço internacional’ que interagiram com a construção da representação do espaço
nacional. Entretanto, como essas idéias interagiriam com a intelecção do espaço
realizada a partir da ‘visão central’? Até que ponto a construção da ‘visão central do
espaço’ foi influenciada pela ‘inscrição do Estado no espaço internacional’?
Essas questões podem ser analisadas tanto a partir dos problemas gerados pelo
estreitamento do teatro da narrativa
29
e de sua ligação com a administração da política
externa pela SNE quanto pela sua inserção num circuito da centralidade, ou seja, no
registro contínuo das atividades da SNE junto à ‘visão central’, que classificava,
distinguia e reconduzia a operação da narração rumo ao centro. Este circuito da
centralidade, por sua vez, estaria também ligado diretamente a uma ‘inscrição do
Estado no espaço internacional’: reavivar continuamente os laços dos indivíduos com o
centro do panóptico, significava também inserir estes indivíduos numa nova dinâmica
da representação do Estado no espaço internacional, ligada à modernização e às
transformações desse espaço.
Assim, visando uma primeira aproximação com o problema, entendemos que os
limites eram compreendidos como um espaço que intermediava a ligação entre a
28
Nossa tradução: ‘E de sua cabeça como se fosse de um só corpo nasce, / Como ervas [ ] de uma pedra úmida, /
Cabelos que são víboras, e eles se enroscam e escorrem / E seus longos emaranhados em cada outro se fecha, / e
com involuções sem fim mostravam / Sua radiação metálica [...]’ — Percy Shelley, ‘On the Medusa of Leonardo
da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 17-22.
29
Ver o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
331
‘inscrição do espaço nacional’ e a ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, que no
caso denominaremos de espaço intermédio. No caso do Brasil, na década de 1850
inúmeros contenciosos ligavam esse espaço intermédio com as grandes potências e os
diversos países latino americanos. Desenvolver-se-ia então uma enorme atividade
diplomática que visava diminuir os efeitos dos atritos com a Inglaterra no caso do
Tráfico e da neutralização do território do Pirara; resolver o problema da ocupação do
Amapá pela França; desestimular o ímpeto norte-americano sobre a Amazônia; e
resolver os muitos problemas ainda referentes às indenizações das presas de guerra da
Cisplatina.
Como segunda aproximação do problema, deve-se perscrutar qual o status que
se havia resolvido dar a esse espaço intermédio.
Através de sua pesquisa no Arquivo da Marinha, quando da constituição do
Arquivo da SNE, Duarte da Ponte Ribeiro encontrara a documentação relativa às
demarcações de 1750, resgatando para a operação da narrativa
30
a certeza de que o
Tratado de Madri fora repudiado desde o seu nascimento por ser completamente
prejudicial às posses portuguesas. Do mesmo modo, através do estudo do Tratado de
Badajoz de 1681, confirmou-se que Portugal repudiara anteriormente o Tratado de
Tordesilhas, nunca tendo existido qualquer consenso, nem mesmo entre os Espanhóis,
sobre o traçado dessa linha, que havia sido, inclusive, identificada com o Meridiano de
Greenwich.
Portanto, na década de 1850, ainda não existia o mito da origem do território
nacional pelo Tratado de Madri, que era então entendido na SNE como “uma tentativa
da Espanha em restringir o direito de primeira posse que então era o único admitido
pelos Portugueses”, mas que podia ser identificado com o uti possidetis, como um
“eqüitativo princípio de posse efetiva”.
31
Deste modo, Ribeiro recuperava também o
sentido original do Tratado de 1750, pelo qual deveria ser obtido um ‘princípio
eqüitativo de posse’ a partir das cessões territoriais, visando-se tanto “arredondar” o
território quanto eliminar o contencioso com a Espanha: este era, na realidade, o
objetivo maior de Alexandre de Gusmão, como pôde ser compreendido através da
leitura do seu ‘Extrato da Resposta’, publicado pela Revista do Instituto Histórico e
30
Ver o capítulo ‘O itinerário do valioso ao possível’.
31
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos de Duarte da Ponte Ribeiro sobre as possessões portuguesas e espanholas
na América’, 1840-1850?. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 3, Pasta 5.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
332
Geográfico Brasileiro.
32
O espaço intermédio era considerado, assim, um espaço
destinado à cessão ou à troca, que deveriam se consubstanciar por um ajustamento às
fronteiras naturais ou ao argumento da autoridade, abandonando-se, por conta disso,
determinadas pretensões e racionalizando-se outras — em síntese, o ‘princípio
eqüitativo de posse’ era o ajustamento da doutrina do uti possidetis de Ribeiro aos
escritos de José Antônio Pimenta Bueno.
33
Assim, por exemplo, enquanto a região do
Rio dos Enganos foi considerada pela SNE como área destinada à cessão, o território
dependente do rio Javari sempre foi considerado como uma ‘moeda de troca’ com o
Peru e a Bolívia.
34
Como terceira aproximação do problema, deve-se compreender que dar-se-ia
uma transformação do status do espaço intermédio a partir da transformação das idéias
da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, sendo que o grande marco dessa
mudança foi a viagem que Paulino Soares de Souza fez à Paris em 1855, em virtude de
ter sido designado para discutir a questão do Amapá com os representantes franceses.
Naquele momento, a cessão de territórios era, de fato, o programa de negociação de
limites seguido pela SNE em resposta a determinados problemas como a ocupação
francesa do Amapá ou as pretensões colombianas sobre o Estado do Amazonas, como
assinalamos, em acordo com o entendimento de então da doutrina do uti possidetis.
Assim, quando Paulino Soares de Souza foi enviado à França, a estratégia de
negociação que lhe fora confiada constava em oferecer sucessivas cessões do espaço
intermédio conforme a resistência francesa à argumentação brasileira, visando, com
isso, satisfazer o apetite territorial daquela potência. Contudo, não se chegaria a nenhum
resultado, uma vez que nem a proposta menos vantajosa para o Brasil, que acordava em
ceder toda a região até o rio Calçoene, foi capaz de impressionar positivamente a
diplomacia daquele país. Em conseqüência desta negociação empreendida por Soares de
Souza, se constatou o verdadeiro ânimo das potências européias em relação ao Brasil,
passando-se, doravante, a considerar-se na discussão do espaço nacional o Tratado de
32
Alexandre de Gusmão, 'Extrato da resposta que Alexandre de Gusmão, Secretário do Conselho Ultramarino, deu ao
Brigadeiro Antonio Pedro de Vasconcellos sobre o negócio da praça de Colônia.'
Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tomo I, n° 1, 1839, p. 337-344.
33
Veja-se nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
34
Veja-se, por exemplo: Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n. 4 - Exposição do estado em que se achavam as
questões de limites entre Espanha e Portugal relativas às fronteiras do Brasil com as províncias do: Paraguai,
Bolívia e Peru, depois da 2ª guerra de 1801 que anulou o Tratado de Santo Ildefonso’, 1842. AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2, p. 39.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
333
Santo Ildefonso, até então descartado por conta de um entendimento que o considerava
mais desfavorável que o Tratado de Madri.
Para esta transformação da discussão do espaço contribuíram também dois
acontecimentos diferentes, sendo o primeiro destes a constatação feita por Ribeiro de
que a argumentação a partir do Tratado de Santo Ildefonso poderia ser benéfica para o
Brasil se combinada com a política de cessões em certas áreas, por conta das vagas
instruções constantes naquele Tratado e por causa do desconhecimento recíproco do
território, como, por exemplo, em relação com a Venezuela, onde o princípio de divisão
de águas consolidava a posse da região do Rio Branco para o Brasil.
35
O segundo acontecimento que contribuiu para essa transformação foi a
publicação em Montevidéu da ‘Historia de las Demarcacionaes en la America entre los
Dominios de España e Portugal’, que havia sido escrita no século XVIII por um dos
Demarcadores espanhóis do Tratado de Santo Ildefonso. A publicação deste escrito foi
empreendida pelo Encarregado de Negócios do Governo da Bolívia no Rio de Janeiro,
General Guilarte que incumbiu em 1846 D. Florencio Varela, um dos maiores editores
da região do Prata, de incluí-la como parte de sua ‘Biblioteca de Comercio’. Dedicada
ao dirigente do Paraguai, Carlos Lopez, sua publicação visava despertar contra o Brasil
a solidariedade dos demais países latino-americanos e, uma vez estando instruídos das
condições das Demarcações do Tratado de 1777, pudessem se pôr de acordo, obrigando
o Brasil a demarcar com todos estes, em conjunto, a respectiva fronteira indicada pela
Memória.
Assim, por conta deste acontecimento, seria iniciada por Ribeiro a construção de
uma ‘História das Demarcações’ referente aos Tratados de 1750 e 1777, uma vez que se
tornara necessária para contestar a Memória de Varela. Essa ‘História das Demarcações’
começou a ser escrita em 1855, por ordem de José Maria da Silva Paranhos, em seguida
às primeiras pendências desencadeadas pela Memória, no caso, em relação a
Argentina.
36
Nesse sentido, aquela Memória demonstraria apenas que o Governo
Espanhol teria julgado conveniente reunir um elenco da correspondência oficial dos
Comissários encarregados da Demarcação do Tratado de 1777, encarregando deste
35
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo histórico dos Convênios, Tratados, e Discussões entre a Espanha e Portugal
relativamente à possessão do território no continente americano e demonstração de que ambos conheciam pouco as
localidades por onde descreveram a mútua fronteira dando lugar a questões que ainda duram’, 1853. AHI, Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 3, Pasta 7.
36
Correspondência de Duarte da Ponte Ribeiro com José Maria da Silva Paranhos, 1855. AHI, Arquivo Particular de
Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 3, Doc. 27.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
334
trabalho um de seus Comissários, o Brigadeiro Francisco Requeña. Este, que havia sido
participante das demarcações na região do rio Amazonas, teria sido autorizado a emitir
sua opinião sobre os argumentos controversos do Tratado e a traçar um mapa de toda a
Fronteira, a fim de que pudessem ser utilizados em futuras negociações. Contudo,
Ribeiro lembraria que esta condição da Memória, explícita logo em seu prólogo, não
chegaria ao conhecimento dos leitores, já que Varela e Guilarte intencionalmente não o
incluíram junto ao resto do livro.
37
A partir da constituição dessa ‘História das
Demarcações’, o espaço intermédio começou a ser consolidado junto ao espaço
nacional, fazendo parte de uma construção coordenada por Ribeiro e inserta na
narrativa do século XIX, no caso, como vimos, remetida por Ribeiro a uma ligação com
um passado ancestral e formador da nacionalidade.
Contudo, como esta construção, apesar de ter sido incluída posteriormente na
‘História das Fronteiras’, ainda é bastante diferente desta ou de uma ‘Mitologia do
espaço nacional’, procuraremos através de uma quarta aproximação do problema,
entender como essas idéias interagiram com a construção de uma intelecção do espaço
realizada a partir da ‘visão central’
Vimos no capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’ que em 1850, o IHGB
ganha uma feição mais conservadora a partir da reforma de seu Estatuto, extinguindo-se
nesse processo a promessa de cursos públicos de História e Geografia e se instituindo
um controle mais rígido sobre a entrada de novos sócios. Esta reforma, que bem pode
ter sido inspirada por Varnhagen, marca também uma virada no perfil das corografias
publicadas pelo Instituto. Se até 1849 a grande maioria dos trabalhos publicados na
Revista do IHGB consistia de corografias curtas do século XVIII, após a Reforma de
1850 passou-se a dar preferência tanto à publicação dos trabalhos recolhidos por
Varnhagen na Europa, como foi o caso, por exemplo, do ‘Roteiro de Gabriel Soares’
cuja publicação integral cobriu mais de um exemplar da Revista ou ainda, quanto à
publicação de trabalhos contemporâneos sobre o território, como, por exemplo, as
‘Memórias históricas das aldeias de índios da Província do RJ’. Como também já
vimos, a participação de Varnhagen no Instituto está diretamente relacionada ao seu
37
Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos de Duarte da Ponte Ribeiro sobre as possessões portuguesas e espanholas
na América’, s/data. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 1.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
335
engajamento no esforço da constituição do acervo documental da SNE, que havia sido
iniciado por Antonio Peregrino Maciel Monteiro em 1839.
38
Portanto, a partir desses condicionamentos, entendemos que, quando Varnhagen
escreve o seu ‘Memorial Orgânico’ em 1849, este estaria expressando uma intelecção
do espaço a partir da intuição de uma experiência compartilhada que, no caso,
identificamos com a ‘visão central do espaço’.
Ao contrário de Ribeiro, a intelecção de Varnhagen não está apenas relacionada
com o espaço intermédio, nem se preocupa diretamente em construir uma relação do
nacional com a terra: para Varnhagen a ‘inscrição do Estado no espaço’ é uma relação
de conquista, de incorporação, de estreitamento a todo custo da ligação da terra e de
seus habitantes com o Estado e com o circuito da centralidade. Nesta intelecção,
Varnhagen aponta a necessidade de se racionalizar a ‘inscrição do Estado no espaço’
através de uma melhor organização do seu território, por meio da elaboração de um
plano de Defesa que visasse a conservação das comunicações internas e pela
transferência da capital para uma localização capaz de fomentar o desenvolvimento e de
resguardar o centro do poder de um ataque dos seus inimigos. Nesse sentido, Varnhagen
destaca a importância da centralidade, enfatizando a necessidade de seu registro no
centro mesmo da inscrição do Estado e da construção de uma representação própria: a
capital deveria ser transferida para um local de clima “já não tropical”, onde a altitude
propiciasse “ares mais finos e correspondentes aos da Europa”. Em torno dessa cidade,
para a qual Varnhagen propunha o sugestivo nome de “Imperatória”, se deveria
redesenhar o território do Estado em dezenove “departamentos” visando com isso
proporcionar “mais harmonia” ao seu conjunto, eliminando a “monstruosidade” de
algumas províncias e a “quase nulidade de outras.”
E isto quando as estrelas do Império para o seu uniforme regime e
movimento devem constituir uma constelação regular. E isto quando as
diferentes peças da monarquia brasílica para que se sustente em equilíbrio
devem ser, quanto possível, de igual força e resistência, à maneira das
38
Veja-se nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
336
pedras de uma abóbada de volta inteira, que sustentando-se e apoiando-se
umas nas outras, conseguem sustentar o edifício todo.
39
Esse equilíbrio em torno da centralidade deveria ser cuidado através da
constituição de “defesas interiores” do Estado, ou seja, pela ocupação de pontos
geográficos estratégicos a partir dos quais se pudesse controlar e resguardar as
comunicações internas. Ao mesmo tempo dever-se-ia procurar expandir o espaço
nacional sobre determinadas áreas externas que, inclusive, Varnhagen não esqueceria de
incluir na sua redivisão territorial, a saber, o Uruguai, as vertentes e cabeceiras do rio
Purus e todas as vertentes da margem esquerda do rio Guaporé, oferecendo-se em troca,
os territórios dependentes do rio Javari.
Portanto, a ‘inscrição do Estado no espaço’ de Varnhagen visava aumentar o raio
de eficiência da centralidade através de uma ação sobre o território, que compreende
sua ocupação, organização e controle. O alcance dessa eficiência comportava ainda uma
ação sobre os habitantes desse território, já que a população era entendida por
Varnhagen como sendo um dos principais recursos do Estado. Entretanto, no caso do
Brasil, esta seria ainda muito pequena em relação a seu território e, pior, heterogênea:
“Temos cidadãos brasileiros; temos escravos africanos e ladinos, que produzem
trabalho, temos índios bravos completamente inúteis ou antes prejudiciais, e temos
pouquíssimos (infelizmente) colonos europeus”.
40
Assim, o aumento da eficiência da centralidade legitimava uma desqualificação
da condição dos seus primitivos habitantes engendrando a passagem para uma ação de
conquista e colonização:
O Brasil pertence-nos pela mesma razão que a Inglaterra ficou
pertencendo aos Normandos quando a conquistaram. Pela mesma razão que
Portugal ficou pertencendo a Affonso Henriques e seus sucessores e
vassalos que o tomaram dos mouros. O primeiro direito de todas as nações
conhecidas foi o da conquista. Nós proclamamos para o Império
(compreendendo o território de que eles estão senhores) o nosso chefe e a
nossa lei. Todo o que não obedece a uma e ao outro rebela-se e é criminoso.
E para o crime não vale em direito a alegação de ignorância; pois em tal
39
Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. S/lugar: s/editor, 1849, p. 6.
40
Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. s/lugar: s/editor, 1849, p. 1.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
337
caso não haveria negro fugido, nem ladrão de estrada e canhambola que não
fosse ignorante.
41
Deste modo, “civilizar o Império” significava estender sobre toda a extensão de
seu espaço as ‘relações de soberania’ que já compunham o circuito da centralidade,
fazendo com que todos passassem a ser inseridos na tradição e nos pactos já
estabelecidos pela experiência compartilhada. Nesse sentido, por exemplo, em relação
aos indígenas, Varnhagen acreditava que já havia sido suficientemente demonstrado que
os meios brandos não deveriam ser considerados nessa ação sobre o território, uma vez
que os mesmos indígenas haviam instituído o que era por ele qualificado como “uma
rebelião armada dentro do Império”:
E desenganemo-nos: as raças bravias, que se declararam inimigas de
morte de nossos antepassados, serão até os últimos descendentes bravios,
nossos inimigos de morte: e não temos outro recurso, para não estarmos
séculos à espera que eles queiram civilizar-se, do que declarar guerra aos
que se não resolvam submeter-se, e ocupar pela força essas terras pingues
que estão roubando à civilização.
42
Uma vez que entendemos neste estudo que a ‘ação sobre o território’
compreendia uma generalização das ‘relações de soberania’, vale a pena remontarmos
rapidamente à idéia do ‘colonialismo interno’ de Foucault, estudado no capítulo
‘Mapeando o vazio’. No caso da construção do Estado no Brasil, as ‘relações de
soberania’ não se constituem por um acordo mútuo entre as partes, mas através de uma
legitimação feita pelo Estado da tradição e dos pactos já estabelecidos pela experiência
compartilhada, a qual, por sua vez, estabeleceria essas ‘relações de soberania’ como
parte do circuito da centralidade. Por conseguinte, as ‘relações de soberania’ já haviam
sido constituídas desde a colonização nos termos da ‘conquista do espaço’,
consolidando-se sob a forma da subordinação e da escravidão.
A intelecção de Varnhagen se desenvolveria ainda quando este foi chamado a
participar como consultor da ‘Comissão de Limites’ que havia sido constituída em 1850
41
Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. s/lugar: s/editor, 1849, p. 53-54.
42
Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. s/lugar: s/editor, 1849, p. 54.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
338
por Paulino Soares de Souza,
43
sendo então encarregado de elaborar uma ‘Memória’
que relacionasse e opinasse sobre os mapas e os documentos que poderiam ser
utilizados nas negociações de limites. Nesta ‘Memória’, Varnhagen, pela primeira vez,
sugeriria a composição de uma “História das Fronteiras”, onde se estabelecesse uma
relação entre a ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ e a ‘visão central’,
definindo-a então enquanto parte da História do Brasil e considerando que deveria
alcançar até os “primeiros anos de existência colonial”. Segundo esse entendimento
Varnhagen passava a definir os pactos entre as Metrópoles enquanto os verdadeiros
marcos da construção do espaço nacional, imprimindo-se, através destes, um vínculo
que transmitia a legitimação e a soberania. Esse vínculo era então definido como tendo
sido construído por meio de um acordo entre as partes, conforme pode ser
compreendido, por exemplo, pela sua descrição do Tratado de Madri, “negociado com
tanta sabedoria, tanta boa fé e lisura [...] que os negociadores de parte a parte se
mostraram com ele superiores ao seu século”.
44
Portanto, enquanto a ação do Estado sobre o território na segunda metade do
século XIX era definida e defendida por Varnhagen como uma ação de conquista e de
expansão das ‘relações de soberania’, a ‘História das Fronteiras’ era baseada numa
elisão dessa mesma conquista, já que estava vinculada a uma transmissão legitimada.
Assim, através da ‘História das Fronteiras’ se construía o arcabouço de que se valeria a
‘Mitologia do espaço nacional’ para elidir o conflito e estabelecer a legitimidade do
Estado através de sua ‘inscrição do Estado no espaço internacional’. Esta construção da
‘História das Fronteiras’ continuaria a ser desenvolvida por Varnhagen no âmbito de sua
‘História Geral do Brasil’, uma vez que os pactos entre as Metrópoles e seus
protagonistas seriam considerados como marcos históricos da nacionalidade, como, por
exemplo, se depreende através do mapa incluso nessa obra, onde o Tratado de
Tordesilhas foi registrado e identificado como sendo o “Meridiano da Primitiva
Demarcação”.
45
Do mesmo modo, Varnhagen também desenvolveria o argumento da
desqualificação do indígena, considerando ser impossível o reconhecimento destes
43
Ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.
44
Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘Memória sobre os trabalhos que se podem consultar nas negociações de limites
do Império, escrita por ordem do Conselheiro Paulino José Soares de Sousa', 1851. IHGB, Lata 340, Pasta 6, p. 1.
45
Ver a discussão desse registro nesta tese no capítulo ‘Riscando o passado’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
339
como os “legítimos donos das terras”, uma vez que estes não a habitavam de fato, dada
a sua característica de nômades. Neste raciocínio, os indígenas sequer mereciam o nome
de bárbaros, sendo apenas selvagens incapazes de ultrapassar esse estágio, uma vez que
os “elementos dissolventes de sua sociedade” levavam esta, em certos casos, a
“exterminar-se e a tragar-se a si própria, como os filhos de Saturno”.
46
Citando Azeredo
Coutinho, Varnhagen advogaria então a escravidão e a subordinação como o “primeiro
passo para a civilização das nações” e por conta desse remédio, entendia serem os
bandeirantes os grandes alargadores da raia da civilização “da pátria dos dois
Gusmões”, todos, tão paulistas como ele próprio.
47
Varnhagen prosseguiria trabalhando até a sua morte nesse seu intento de
equilibrar, através da História do Brasil, a desqualificação dos indígenas com a ‘História
das Fronteiras’, sendo da sua última fase os dois trabalhos mais relevantes para este
nosso estudo. A primeira destas obras é ‘Les américains tupis-caribens et les anciens
eyptiens’, publicada na Europa e a segunda é o artigo ‘Biografias de Francisco José de
Lacerda e Antonio Pires da Silva Pontes Leme pelo Barão de Porto Seguro’, publicado
na Revista do IHGB.
48
Em ‘Les américains’, Varnhagen, ao mesmo tempo em que defende a
necessidade do estudo e ensino das línguas indígenas do Brasil para “alimentar o
espírito da nacionalidade”, também pretende provar através da lingüística que os Tupis
não eram verdadeiramente nativos da América, mas originários da Europa. Os Tupis
teriam chegando à América pelas ilhas Canárias e pelo Caribe, como seriam capazes de
demonstrar a filologia e o estudo comparado dos costumes, que ainda comprovariam
sua ascendência da mesma raça que teria gerado os egípcios. Do mesmo modo, para
Varnhagen, a parecença dos mitos e dos vocábulos Tupis com a Mitologia e a língua
egípcia e as de outras antigas culturas européias e asiáticas, comprovaria que a origem
dos Tupis estava no Velho Mundo, decorrendo deste raciocínio serem os Tupis tão
brasileiros quanto os portugueses.
46
Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1854, p. XVI-XVIII.
47
Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1854, p. XXI-
XXVIII.
48
Francisco Adolfo de Varnhagen, Les américains tupis-caribens et les anciens eyptiens. Viena: Librairie I. et R. de
Faesy & Frick, 1876; Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘Biografias de Francisco José de Lacerda e Antonio Pires da
Silva Pontes Leme pelo Barão de Porto Seguro’ in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo
XXXVI, parte 1, 1873.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
340
Já nas ‘Biografias’, Varnhagen procuraria incorporar a ‘História das
Demarcações’, começada por Ribeiro, à História do Brasil, alçando dois de seus
participantes à condição de protagonistas principais da ‘História das Fronteiras’. Neste
artigo, Francisco José de Lacerda e Antonio Pires da Silva Pontes Leme,
49
demarcadores do Tratado de Santo Ildefonso, foram descritos enquanto patriotas
abnegados que enfrentaram grandes riscos e sacrifícios para colaborar numa ‘política de
demarcação das fronteiras brasileiras’. Nas ‘Biografias’, seria ainda destacada por
Varnhagen a fidelidade do paulista Lacerda à derradeira missão que lhe fora designada,
quando faleceria, orgulhoso até o fim, de estar a serviço do Estado português, no afã de
atravessar o Continente africano de lado-a-lado.
A escolha de Lacerda e Leme dentre outros participantes das demarcações do
século XVIII, atendia a diversos propósitos de Varnhagen, primeiramente, como os dois
foram os únicos brasileiros que receberam o grau de doutores em matemática pela
Universidade de Coimbra, visava-se exaltar essa condição. Em segundo lugar,
procurava-se através de seus exemplos exaltar o patriotismo e a figura dos
demarcadores, isto num momento em que se procuravam demarcar as insalubres
fronteiras amazônicas. Em terceiro lugar atendia-se a idéia de se acrescentar mais algum
elemento à construção do mito do paulista enquanto desbravador e alargador das
fronteiras. Por último atendia-se aos interesses internos da própria SNE, já que o filho
de Leme era então um dos seus funcionários mais proeminentes.
Entretanto, as ‘Biografias’ acrescentariam ainda mais um elemento à ‘Mitologia
do espaço nacional’, por conta de Varnhagen elidir o verdadeiro contexto das atividades
de Leme e Lacerda, já que muitos dos trabalhos destes não podiam ser propriamente
conectados a uma ‘política de demarcações’ e menos ainda a um ‘esquadrinhamento do
espaço nacional’, como ecoaria mais tarde Sérgio Buarque de Holanda.
50
Nesse sentido,
Varnhagen ainda despiria Lacerda e Leme de suas características pessoais por conta
destas serem contrárias à afirmação mitológica da ‘História das Fronteiras’, assim,
deve-se salientar, inclusive por conta de um resgate da memória de Lacerda e Leme, que
os dois astrônomos eram extremamente críticos à sociedade portuguesa da época e a seu
Estado, sendo apenas tolerados pela raridade de seu saber. Exatamente por conta disto,
49
Ver o capítulo ‘A descrição do contemplador’.
50
Sérgio Buarque de Hollanda (org.), História Geral da Civilização Brasileira (I), Vol. 1. Ed. Bertrand Brasil: Rio de
Janeiro, 2003, p. 297-298 — a edição original é de 1961.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
341
ambos foram mantidos sob a vigilância estreita das autoridades locais, sendo que as
críticas abertas de Lacerda e Leme aos costumes e à administração eram a principal
razão dos astrônomos serem mantidos o maior tempo possível em atividade fora dos
núcleos urbanos, mesmo que em trabalhos secundários.
51
Podemos, inclusive, aventar
que a missão de Lacerda à África se constituiu numa punição dada a este astrônomo, já
que a debilidade de sua saúde, decorrente das atividades prolongadas na floresta
amazônica, era do conhecimento de todos.
Por último, acrescentamos ainda que a escolha desses astrônomos por
Varnhagen, pode ter decorrido por conta da posição do filho de Leme na hierarquia da
SNE e de uma necessidade de transformar a memória da família, tornando-a aceitável
no circuito da centralidade, uma vez que algumas das maiores críticas de Leme e
Lacerda dirigiam-se ao tratamento dispensado aos indígenas, que consideravam
degradante e inumano:
Viam-se pelas barreiras de Barcelos, chorando, algumas índias e
mamelucas, e faziam chorar a quem pensasse na grande miséria em que vive
esta gente toda, fazendo um jejum que passa de magno, ou abstinência de
toda a carne, a ser a xerofagia da Igreja Grega, não tendo mais que beiju e
pimentas para comer. Também os oficiais que nos fizeram a honra de vir até
a escada, mostravam sentimento, creio de nos verem apartar e que
desejavam vir também. Eu não pude ter a mesma alegria de me ver fora de
um cárcere do gênero humano, em que todos sofrem e muito mais os índios
que andam buscando tartaruga do rio Solimões e do rio Branco, e farinhas
da Cachoeira, para ter mão da vida dos que ali se acham por mero
capricho.
52
51
Correspondência do Capitão-general Luis de Albuquerque com Martinho de Mello, 1787. AHI, Arquivo Particular
de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 266, Maço 1, Pasta 10.
52
Antonio Pires da Silva Pontes, ‘Diário histórico e físico da viagem dos oficiais da demarcação que partiram do
quartel general de Barcelos para a capital de Vila Bela da Capitania de Mato Grosso, em 1° de setembro de 1781’
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n° 262, Jan. - Mar 1964, p. 344-345.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
342
O território dos filhos de Saturno
And from a stone beside, a poisonous eft (25)
Peeps idly into these Gorgonian eyes;
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery
53
Podemos entender a ‘História das Fronteiras’ que começou a ser construída em
meados do século XIX como uma representação da episteme da sociedade brasileira, da
qual a cartografia do espaço nacional era uma das intelecções mais importantes. Assim,
pela ‘História das Fronteiras’ se legitimariam os espaços coloniais, as ‘relações de
soberania’ e a elisão dos espaços indígenas, enquanto que, por meio da cartografia se
organizariam e se planejariam as ações do Estado. Contudo, mesmo seu fundador,
Varnhagen, intuiria a relação entre as várias partes do território nacional através dos
mapas então disponíveis, descobrindo desproporções que justificavam sua intelecção da
ocupação do vazio e o planejamento de uma ‘inscrição do Estado no espaço’
verdadeiramente panóptica. Por conseguinte, como pudemos observar na relação
existente na ‘ekphrasis’ entre a pintura e sua descrição poética, a cartografia não apenas
reproduz a ‘História das Fronteiras’, mas também a constrói. Neste sentido, juntaremos
a argumentação constituída no capítulo anterior: embora as Cartas Gerais fossem uma
representação gráfica daquela episteme, estas eram também uma contingência da
‘inscrição do espaço nacional’, recebendo as diversas contribuições da resistência a
uma derrota do princípio subjetivo e da disseminação cartográfica, já que, como vimos
anteriormente, a partir da concepção renascentista da geografia ptolemaica se entendia a
composição cartográfica enquanto uma representação construída como um mosaico de
outras representações.
54
Por conseguinte, como visto através do estudo da ‘ekphrasis’, o espaço era
apenas acertado por uma Carta Geral para logo em seguida ser reorganizado por outra,
sendo que os participantes dessas inscrições ainda competiam entre si no sentido da luta
de representações. Ainda, apesar das representações do espaço nacional terem sido
53
Nossa tradução: ‘E de uma pedra ao lado, uma salamandra venenosa / Espia negligentemente para dentro destes
olhos Gorgonianos;’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 25-26.
54
Ver nesta tese os capítulos ‘A descrição do contemplador’ e ‘O espelho do Jacobina’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
343
abstraídas de mapas e corografias que muito diferiam temporal e conceitualmente entre
si, elas também incorporariam preocupações contemporâneas e pontuais, como, por
exemplo, a incerteza, o desconhecimento e a experimentação do território. Em nosso
entender, esta última estava então diretamente relacionada à construção da centralidade,
buscando menos constituir um Brasil-Ilha, como considerou Jaime Cortesão em suas
versões da ‘História das Fronteiras’,
55
que reproduzir nesse processo as ‘relações de
soberania’ já existentes, por meio de uma organização continuada da subalternidade de
sua periferia. Assim, por conta dessa extensão continuada do circuito da centralidade,
convinha, então, se elidir quaisquer narrativas que implicassem na descrição da
construção do espaço enquanto um processo, buscando-se substitui-las por outras
narrações cuja dinâmica estivesse centrada na sua estabilidade e em sua antiga
consolidação, o caso da ‘História das Fronteiras’. Neste sentido, seria elidida também a
velha idéia de espaço da América portuguesa, onde se justificava a manutenção de
diferentes espaços por conta de suas qualidades,
56
sendo esta substituída por um novo
modelo que seria estruturado segundo classificações, ordenações e territorializações que
se remetem entre si e que representariam a extensão do circuito da centralidade,
conforme exemplificamos no capítulo anterior por meio do estudo das novas
corografias.
Assim, entendemos poder remeter este estudo à idéia de Schelling sobre a
Mitologia, compreendendo que a ‘História das Fronteiras’ irá também se construir a si
mesma, uma vez que as representações utilizadas serão reinterpretadas e reconstruídas
por meio de outras representações, ‘mis-en-abysme’. Entretanto, novamente através da
idéia de Schelling sobre a Mitologia, ressaltaremos que o princípio da construção dessas
representações e conseqüentemente o da ‘História das Fronteiras’ será o mesmo que o
da Física antiga, onde “a natureza tem horror ao vazio, onde houver um vazio no
universo, a natureza o preencherá”.
57
Assim, a partir dos raciocínios anteriores,
podemos entender que devemos procurar nas Cartas Gerais o registro de ‘vazios’ e
devemos esperar que estes tenham sido inscritos por meio de um ‘preenchimento’.
55
A idéia do Brasil-Ilha, presente em várias obras de Jaime Cortesão, entendia que a constituição do Estado brasileiro
foi pensada enquanto um espaço separado da América e de voltado para a Europa. Ver, por exemplo: Jaime
Cortesão, ‘História da Cartografia Política do Brasil, Apostilas de aulas do Instituto Rio Branco’, 1945. IHGB,
Lata 668, Pasta 7; Jaime Cortesão,
O Tratado de Madrid v. 1, Brasília: Senado Federal, 2001; Jaime Cortesão,
História do Brasil nos velhos mapas, Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, s/data..
56
Ver nesta tese o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.
57
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 42.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
344
Devemos também compreender, seguindo o raciocínio exposto, que estes ‘vazios
preenchidos’ são um lugar de intercessão onde poderemos observar a fratura entre os
dois modelos de espaço anteriormente citados e que seu estudo nos possibilitará
verificar o espaço elidido pela ‘História das Fronteiras’. Consideramos ainda nessa
investigação que estes ‘vazios preenchidos’ foram inscritos nas Cartas Gerais
preferencialmente através da utilização de elementos narrativos e da simbolização,
58
por
isso, buscamos o auxílio das corografias e de uma leitura semiológica e iconológica das
Cartas Gerais para a verificação do espaço elidido pela ‘História das Fronteiras’.
Assim, pudemos entender que o espaço elidido pela ‘História das Fronteiras’ era
verdadeiramente rizotômico, ou seja, múltiplo, conexo e heterogêneo, podendo ser
reconstruído apenas através de sua subtração de uma multiplicidade, como bem foi
salientado por Deleuze e Guattari.
59
Este espaço é então entendido por nossa
investigação enquanto capaz de se interpenetrar e se determinar reciprocamente,
ressaltando, porém, que estas condições não são sempre de todo absolutas. Por
conseguinte, propomos que o espaço elidido seja estudado principalmente em sua
heterogeneidade e multiplicidade, e através de sua relação com ambos os modelos, ou
seja, pretendemos explorá-lo através do recolhimento das percepções do velho modelo
de espaço da América Portuguesa contrapondo-as ao modelo da centralidade. Nesse
sentido, acreditamos poder demonstrar que as razões da elisão do espaço no novo
modelo teriam acontecido em virtude dos limites que as antigas percepções imporiam à
construção da centralidade e à extensão do circuito da centralidade os quais, por sua
vez, dependiam de uma representação do espaço nacional que contivesse uma
delimitação clara e inequívoca tanto do Estado quanto das Províncias. Por fim,
propomos ainda um resgate da idéia do ‘limite militar’, central no velho modelo de
espaço,
60
entendendo que o novo modelo também possuía ‘limites’, os quais foram
elididos para que não se representassem a guerra, a ocupação e a incorporação do
território à ‘civilização’.
Segundo esta nossa proposta, entendemos, em primeiro lugar, ter havido a elisão
de uma percepção dos ‘limites econômicos’ os quais muitas vezes teriam seus registros
58
A respeito dos elementos narrativos e da simbolização ver nesta tese o capítulo ‘Mapeando o vazio’.
59
Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, V. 1, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p.
11-38.
60
Ver nesta tese o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
345
simbolizados nas Cartas Gerais embora sua inscrição não remeta imediatamente ao
antigo modelo de espaço. Acreditamos que a determinação destes ‘limites econômicos’
implicava numa relação determinada pelos custos de sua ultrapassagem, ou seja, a
ultrapassagem desses ‘limites’ somente se realizaria quando seus benefícios fossem
maiores que os custos, circunstância esta que poderia se alterar quando da incorporação
de uma nova tecnologia, pela descoberta de um novo recurso ou de uma nova utilização
para um recurso já conhecido. No caso, talvez os melhores exemplos de ultrapassagem
desses ‘limites’ no século XIX sejam, a nova utilização da borracha, rompendo os
‘limites’ na Amazônia e a expansão da cultura do café em São Paulo, fazendo com que
se ultrapassassem os ‘limites’ na direção do interior dessa Província.
Por outro lado coexistiria ainda na determinação dos ‘limites econômicos’ a
idéia das chamadas ‘barreiras econômicas’, ou seja, obstáculos naturais que mais
dificultavam que impediam o trânsito e o comércio. Através desse raciocínio, podemos
definir, ‘grosso modo’, que essas ‘barreiras’ separariam do espaço nacional a maior
parte da Amazônia e do Mato Grosso (ver Figura 32), sendo estes ‘limites’ descritos em
várias corografias por sua relação com o estabelecimento humano. Neste caso, por
exemplo, a comparação do preço, nestas regiões, de certos produtos essenciais, como o
sal e o ferro, com o preço de seus múltiplos na Europa, era utilizada para exemplificar a
dificuldade de se promover a ocupação do território.
61
Por conseguinte, em decorrência
das ‘barreiras’, os preços dos gêneros, os problemas de abastecimento, a dificuldade
mesma das ligações comerciais e do custo da manutenção do esforço de ocupação é que
determinariam as fronteiras flutuantes dos ‘limites’.
Em segundo lugar, especialmente através de sua descrição nas corografias e sua
simbolização nas Cartas Gerais, entendemos ter havido uma elisão da percepção do
‘limite das Sezões’ (ver Figura 33), uma vez que a ultrapassagem deste ‘limite’
significava a sujeição do viajante a moléstias que dificultavam o estabelecimento, o
trânsito e o comércio, constituindo-se numa ‘barreira biológica’ capaz de dificultar a
penetração ou o estabelecimento no território tanto do homem branco quanto do
indígena proveniente de outra região. Embora houvesse um incremento geral de várias
61
Veja-se John Henrique Elliot, ‘Resumo do Itinerário de uma viagem exploradora pelos rios Verde, Itararé,
Paranapanema e seus Afluentes, pelo Paraná, Ivary e Sertões adjacentes, empreendida por ordem do Ex. Sr. Barão
de Antonina’ in
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo V, n° 9, 1847; Ricardo Franco de
Almeida Serra, ‘Memória ou informação dada ao Governo sobre a Capitania de Mato Grosso, por Ricardo Franco
de Almeida Serra, Tenente Coronel Engenheiro em 31 de Janeiro de 1800’, in
Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, tomo II, n° 5, 1841.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
moléstias que afetavam o ser humano, a mais temida de todas estas era a ‘Sezão’,
doença indeterminada que não se assemelhava à Malária, mas se manifestava através de
sintomas semelhantes à Cólera: suores frios, vômitos, dores de cabeça, diarréias e
prostração.
62
FIGURA 32 - LIMITES ECONÔMICOS
Cartografia: Renato Amado Peixoto.
O ‘limite das Sezões’ segregava então uma vasta área que possuía como seu
marco geográfico ao norte a Cachoeira do Ribeirão, que vem a ser a décima queda
d’água do rio Madeira, sendo que no sul este ‘limite’ se iniciava a partir do rio Tietê na
altura de Guamicanga. No primeiro caso, a ultrapassagem do ‘limite’ impunha ao
346
62
Ver, por exemplo, João Ferreira de Oliveira Bueno, ‘Simples narração da viagem que fez ao rio Paraná o
Tesoureiro-mór da Sé desta cidade de S. Paulo João Ferreira de Oliveira Bueno, acompanhado de seu irmão o
Capitão Miguel Ferreira de Oliveira Bueno, aos 3 dias do mês de setembro de 1810’ in
Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo I, n° 2, 1839.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
trânsito proveniente do Vale amazônico um custo muito alto em vidas, principalmente a
dos índios reduzidos nas Missões e que eram utilizados no apoio da Administração
como correios e canoeiros, enquanto que, no segundo caso, a ultrapassagem desta
barreira biológica durante os meses de outubro a março provocava o surgimento dos
sintomas das ‘Sezões’ em até 75% dos viajantes.
FIGURA 33 - 'LIMITE DAS SEZÕES'
Cartografia: Renato Amado Peixoto.
Em terceiro lugar, entendemos haver a elisão da percepção de um espaço misto
que combinamos neste estudo como os ‘limites do desconhecimento’ e os ‘limites do
território restrito’, ou seja, as regiões desconhecidas ou pouco conhecidas e as áreas
indígenas que não eram controladas pelo Estado (ver Figura 34).
Este espaço era percebido então como um lugar da exclusão dos indesejáveis
sociais por meio dos desterros ou colônias penais, enquanto um território possível de
nele serem estabelecidos os quilombos dos negros em fuga ou ainda como um espaço
proibido para penetração pela resistência dos indígenas. Neste sentido, os ‘limites’
podem ser considerados também como um mapa da resistência indígena à ocupação do
território, por exemplo, dos Xavantes em Goiás e Mato Grosso; dos Pataxós e
Botocudos do sul da Bahia até o norte do Rio de Janeiro e Minas Gerais; dos Timbiras
no interior do Maranhão; dos Caiapós em parte de Goiás e interior do Paraná; dos
347
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
348
Muras, Monducrús e muitos outros na Amazônia Ocidental; dos Guaiacurús e Payagoás
no Mato Grosso e de diversas tribos menores no Paraná e Santa Catarina. Contudo,
enquanto nos mapas do século XIX este espaço era registrado por meio do recurso a
elementos narrativos que o identificavam como ‘terreno desconhecido’ ou ‘Sertão’, nas
corografias este espaço já vinha sendo representado segundo um registro do alcance das
‘relações de soberania’. Este alcance das ‘relações de soberania’ sobre os ‘limites’ fazia
parte da extensão do circuito da centralidade, que se distendia dos centros habitados
para o ‘Sertão’ e infletia-se de volta ao ponto de partida. Nesse sentido, por um lado, o
recurso ao mundo antigo para a descrição dos ‘limites’ estreitava os pontos de
referência entre uma geografia dos confins e uma topografia das cidades, ou seja, ver os
selvagens e descrevê-los mediante referências ao mundo antigo, servia para aumentar a
distância em relação aos antigos e tornar ainda mais viva a idéia moderna da diferença
entre os tempos.
63
A água aqui em tempo de seca é longe, e várias vezes encontrei com
jovens índias conduzindo cântaros, alguns de formas extravagantes e
ornados com uma espécie de baixo relevo, vestidas unicamente com suas
julatas, que sempre deixam parte do seio descoberto: seus compridos
cabelos (pretos como ébano), arranjados com gosto e ornados com flores e
outros enfeites, me fez recordar os tempos clássicos da antiga Grécia.
Imaginei por um momento que estava na ilha de Chipre encontrando as
ninfas de Vênus quando iam buscar água às fontes da Idália.
64
Essa identificação do indígena, com a representação de uma idealidade do
mundo antigo, servia para justificar a questão da ociosidade do aculturado e o recurso
ao trabalho compulsório e educador. Louvava-se a industriosidade do índio aculturado
porquanto este havia internalizado a civilização, justificando-se assim a guerra de
ocupação e a catequese como recursos válidos da incorporação do indígena à sociedade.
Por outro lado, consolidava-se também o contato do antigo com o novo modelo do
espaço, uma vez que se passou a equiparar os selvagens, os indesejáveis e os desvalidos
63
François Hartog, ‘Uma Modalidade do confronto: os Antigos, os Modernos e os Selvagens’ in Os Antigos, o
Passado e o Presente. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 128-138.
64
João Henrique Elliot, ‘Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para descobrir
uma via de comunicação entre o porto da Vila de Antonina e o baixo Paraguai na Província de Mato Grosso: feitas
nos anos de 1844 a 1847, pelo sertanista o Sr. Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Sr. João Henrique Elliot’
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo X, n° 10, 1848.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
na exclusão e na reclusão, ou seja, incluiu-se a domesticação dos selvagens no mesmo
circuito que a expulsão dos vagabundos e que a manutenção dos agregados. Assim,
pode-se também compreender que os ‘limites’ ocupados e a periferia eram então
entendidos através do amálgama entre a idéia do novo lugar do mundo do trabalho e a
velha idéia do controle social, que era capaz de garantir a inclusão de novos integrantes
ao centro e uma subseqüente extensão da centralidade mesmo em sua periferia. Ainda,
como a guerra de ocupação contra os habitantes dos ‘limites’ produziu como resultado a
morte dos indígenas ou sua rendição, houve, em decorrência. uma cessão do território e
o estabelecimento de ‘relações de dominação’ fundamentadas nos efeitos da guerra,
substanciadas na obrigação do trabalho e na obediência. Por conseguinte, estas relações
consolidadas nos ‘limites’ se inflectiram também na compreensão do modelo de espaço
baseado na centralidade, consolidando-se mesmo no centro do espaço através de uma
ordenação baseada na subalternização.
FIGURA 34 - LIMITES DO TERRITÓRIO RESTRITO
E DO DESCONHECIMENTO
Cartografia: Renato Amado Peixoto
349
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
350
Portanto, a identificação entre a ocupação dos ‘limites’ e a expansão da
‘civilização’ garantiu tanto o alargamento quanto a consolidação de um circuito da
centralidade, que necessitaria ser garantida pela elisão tanto da percepção mesma dos
‘limites’ quanto de sua inscrição na representação do espaço nacional.
A expansão e reelaboração das relações de soberania
And he comes hastening like a moth that hies (30)
After a taper; and the midnight sky
Flares, a light more dread than obscurity.
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery
65
No capítulo anterior desta tese passamos a discernir uma inscrição da
centralidade junto à constituição da ‘visão central’ e relacionamos esta idéia com os
problemas da construção do Estado e da ‘inscrição do espaço nacional’. Segundo este
raciocínio, a inscrição da centralidade aconteceria de uma forma contínua decorrendo
da necessidade de se identificar o lugar de enunciação da ‘visão central’ e de situá-lo
sempre no centro do panóptico, redefinindo continuamente para esse mesmo lugar de
enunciação a sua função. Deste modo, cabia à inscrição contínua da centralidade
esquadrinhar o centro, reavivar continuamente o centro através da educação e
reeducação de seus integrantes e buscar pela modernização de suas funções uma
ampliação de seu alcance. Finalmente, por conta desses deveres da centralidade,
compreender-se-ia que o sentido principal da sua inscrição contínua era entender e
reduzir o desvio, analisar e esclarecer as transformações, modificar e excluir da própria
inscrição da centralidade aquelas condições que não se prestassem ao exercício de
enunciação da ‘visão central’.
A partir desta análise da inscrição da centralidade, entendemos que do lugar de
enunciação da ‘visão central’, consolidou-se também um circuito da centralidade, ou
seja, um alargamento do exercício de enunciação e o estabelecimento dos enunciados da
65
Nossa tradução: ‘E ele chegou apressando-se como uma traça / Buscando a vela; e o céu noturno / Flameja, uma
luz mais terrível que a obscuridade.’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine
Gallery’, v. 30-22.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
351
‘visão central’ sobre a periferia compreendendo-se neste exercício a disseminação das
‘relações de soberania’. Entretanto, como os ‘limites’ que restringiam esse circuito
foram ultrapassados por conta de transformações relacionadas com a modernização do
Estado e a ocupação do espaço, compreendemos que também houve, conseqüentemente,
uma reelaboração das ‘relações de soberania’ através da inscrição contínua da
centralidade.
O pensamento dessa reelaboração das ‘relações de soberania’ pode ser
acompanhado através de um estudo dos debates e das diversas iniciativas realizadas no
âmbito do Ministério da Justiça durante as décadas de 1850 e 1860, destinados tanto a
incrementar e a gerar subsídios para a ocupação do espaço quanto para adequar as
penas, penalidades e o sistema penitenciário às novas realidades sociais decorrentes da
modernização do Estado.
66
Nesse estudo destacamos as discussões realizadas no
Ministério da Justiça durante as décadas de 1860 e 1870, que, a nosso ver, seriam
emblemáticas para a formulação e aplicação da política penal e judiciária durante o
século XIX e XX e as Comissões realizadas por José de Miranda Falcão aos Estados
Unidos em 1854 e Felipe Lopes Neto à França, Inglaterra e Bélgica em 1866, ambas
destinadas a observar e à analisar as experiências penais desses países. Nossa
preferência por essas Comissões e discussões deveu-se, em primeiro lugar, à sua
influência sobre a constituição de um pensamento da ocupação do espaço e do lugar
neste espaço das ‘relações de soberania’. Em segundo lugar, nossa preferência por essas
Comissões e discussões se deve à relação que entendemos haver entre estas e a
‘inscrição do Estado no espaço’, no caso, através da participação brasileira nas
Exposições Internacionais e do problema da consolidação de uma representação do
espaço nacional brasileiro.
Por este estudo, entendemos que o debate da reforma das penas e do sistema
penitenciário deve ser inserido em nossa discussão da inscrição da centralidade e da
expansão e reelaboração das ‘relações de soberania’, já que a modernização e o
aparelhamento do Estado implicaram em tensões que geraram o compromisso de se
articular as antigas estruturas herdadas da Colônia com as transformações capitalistas.
Contudo, compreendemos também que, em lugar desse debate gerar estímulos para a
reforma ou a substituição do corpus jurídico e penal herdado da Colônia, consolidar-se-
ia paulatinamente a idéia de se ajustar as mais recentes experiências européias e norte-
66
IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2 .
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
352
americanas à estrutura já existente. Como resultado deste arranjo, acreditamos que se
consolidou ainda mais o cerne de um pensamento autoritário e elitista que influenciou
as relações entre o Estado brasileiro e o indivíduo tanto no Império como na República.
Nesse sentido, compreendemos, em primeiro lugar, que a questão da ocupação
dos ‘limites’ estava no centro do debate da reforma das penas e do sistema
penitenciário, uma vez que os institutos penais anteriores, o Degredo e o Presídio
Militar, eram meios utilizados tradicionalmente pela Metrópole visando a ocupação e a
projeção sobre o território. No primeiro dos institutos penais do modelo antigo de
espaço, o Degredo, o indesejável era destinado para as áreas do ‘limite’, onde, privado
das condições da civilização, penaria pela lembrança e pelo desejo de retornar ao centro.
Já no segundo caso, no Presídio, as sanções penais contra os militares eram então
convertidas em tempo de serviço nas fortificações que serviam de base à fronteira
militar nos ‘limites’. Por conseguinte, já estava consolidado um princípio através do
qual se entendia que a reforma das penas e do sistema penitenciário deveria ser gestada
no sentido de oferecer também, através da adaptação do sistema penal, uma base
contínua para a manutenção do esforço de ocupação dos ‘limites’.
Esta adaptação do sistema penal, debatida e discutida nas gestões Nabuco de
Araújo, estava ligada à observação das experiências européias dos ‘Bagnes’ e da
‘Transportation’. Estes institutos penais haviam se originado da antiga figura jurídica do
‘Forçado’ que, por sua vez, dependia do ‘Estatuto das Galés’, por meio do qual os
infratores podiam ser condenados vitaliciamente ao trabalho braçal como remadores dos
navios de guerra. A partir do aprimoramento das técnicas de construção naval, as quais
tornaram obsoletos os navios de guerra a remo, os infratores passaram a ser obrigados a
servir, no mesmo regime de trabalho braçal, como mão-de-obra para os Estaleiros
Reais. Posteriormente, na Inglaterra e na França, o ‘Estatuto das Galés’ combinar-se-ia
paulatinamente com o Desterro, permitindo com isso a constituição de centros penais
ultramarinos baseados no trabalho coletivo obrigatório, denominados, no caso francês,
como ‘Bagnes’ e no caso inglês, como ‘Transportation’.
67
Assim, a partir dessa influência européia, o debate da reforma das penas e do
sistema penitenciário no Brasil passou a pensar o trabalho como o elemento central de
um novo instituto penal, entendido então como uma experiência capaz de reeducar e
67
J. J. Baude, ‘Estatística moral do sistema penal em França: a pena de Morte, Galés e Prisão’, s/data. IHGB, Coleção
Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
353
reformar o indivíduo. Deste modo, a exemplo dos congêneres europeus, este novo
instituto, a Colônia Penal, deveria ser instalado num terreno isolado, de difícil acesso e
em meio a um ambiente hostil, destinando-se a receber os infratores nos estágios médio
e final do cumprimento da punição, onde, em substituição ao regime comum de
ociosidade das cadeias públicas, o trabalho obrigatório e coletivo seria a norma.
68
Entretanto, no debate brasileiro se considerava que após a penalidade prisional deveria
suceder-se ainda um período de restrição da liberdade de trânsito, durante o qual o
sentenciado ficaria ligado indefinidamente às dependências da Colônia Penal a que fora
destinado. Deste modo, poder-se-ia compreender que, após o sentenciado ter sido
‘civilizado’ pelo trabalho, ainda restaria a este o encargo de ‘civilizar’ o território. Nesta
idéia da extensão e da incerteza da penalidade, poder-se-ia entender também a
influência de outro instituto penal do antigo modelo de espaço, o Calabouço, onde, em
vez da pena prisional, remetia-se o indesejável ao esquecimento e ao encerramento, já
que o processo nem sempre era certo ou determinado. Nesse sentido, veja-se, por
exemplo, a exposição que consta da 11ª sessão do Conselho de Estado em 1828, a
respeito de um escravo já idoso, de nome Antônio da Cunha, que desde 1811 estava
preso na Ilha das Cobras e a respeito do qual não existia nem processo nem sentença,
unicamente constando que havia sido enviado de Ouro Preto para aquele lugar.
69
Portanto, no caso do debate sobre a Colônia Penal, contava-se também com a
vastidão e a inacessibilidade do espaço para conter e imobilizar o indesejável após o
cumprimento da pena, substituindo-se assim, com vantagem, as grades, os grilhões e o
esquecimento do Calabouço. Contudo, deve-se salientar que a diferença fundamental
entre os institutos penais europeus e a Colônia Penal brasileira é que, enquanto nos
‘Bagnes’ franceses e na ‘Transportation’ inglesa as Colônias eram o destino dos
sentenciados, no caso, a Guiana ou a Austrália, na Colônia Penal enviar-se-iam os
sentenciados para o interior de seu próprio território. Deste modo, se por um lado a
Colônia Penal destinava-se a ocupar os ‘limites’ com o duplo objetivo de civilizar o
indivíduo e o espaço, por outro lado, a Colônia Penal legitimava epistemologicamente
esse mesmo espaço em relação à centralidade.
68
‘Relatório de Felipe Lopes Neto acerca do Sistema Penitenciário’, 22/1/1866. IHGB, Coleção Senador Nabuco,
Lata 384, Livro 2.
69
Atas do Conselho de Estado, 11ª Sessão, 21/08/1828.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
354
Em segundo lugar, compreendemos que o debate da reforma das penas
vinculava a expansão e reelaboração das ‘relações de soberania’ ao processo de
modernização do Estado e às transformações capitalistas daí decorrentes que
modificariam gradualmente as relações e a composição social. Entretanto, se a expansão
das ‘relações de soberania’ foi efetivada com êxito, sua reelaboração se
consubstanciaria apenas como um arranjo em relação às experiências européias.
A modernização do Estado, como já vimos, decorria da necessidade de se
constituir tanto o aparelhamento urbano das principais cidades quanto uma infra-
estrutura de comunicações e transportes no país. No caso do aparelhamento das
principais cidades desencadear-se-iam transformações profundas no cotidiano urbano e
na organização social, por conta de iniciativas como a reorganização cadastral,
relacionada com o aumento e a cobrança de impostos e a organização das plantas
urbanas, destinadas a facilitar a remodelação do perfil urbano e os investimentos
particulares em serviços e transportes nas cidades. Também no caso da constituição da
infra-estrutura do Estado a relação dos indivíduos com o espaço seria bastante alterada,
uma vez que se modificaria sua mobilidade, sua inserção e inclusive sua compreensão
daquele. Podemos destacar dentre as iniciativas organizadas pelo Estado: a introdução
dos telégrafos facilitando a comunicação com o interior e o exterior, o estabelecimento
de linhas marítimas ligando a capital com a região do Prata e o norte do país, a
manutenção de linhas fluviais regulares em alguns rios, especialmente na Amazônia, e a
construção de ferrovias, escoando a produção agrícola para o exterior.
Assim, estaria em questão uma reelaboração das ‘relações de soberania’ já que
esta emergia em meio as transformações desencadeadas pelo processo de modernização
do Estado, que, em tese, se contrapunham à classificação dos indivíduos que se
encontravam incluídos no circuito da centralidade e à uma desclassificação daqueles
que se achavam fora das alianças verticais que haviam se desenvolvido na sociedade
brasileira tradicional. Esta organização do circuito da centralidade possibilitava tanto
uma alienação social dos pobres, negros, mulatos e indígenas, quanto a inscrição dos
desvalidos numa esfera de disponibilidade.
Em relação a esta esfera de disponibilidade, entendemos que, uma vez fora das
alianças verticais que ligavam as elites locais aos ocupantes do território, esses
indivíduos, os desvalidos, poderiam ainda ser incluídos no circuito da centralidade
através de sua disponibilização para certas atividades do Estado. Por exemplo, podemos
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
355
dizer que este circuito se completava através da utilização do desvalido no Exército e na
Marinha, onde sua desclassificação era novamente corroborada por sua sujeição a uma
ampla faculdade de aplicação, por parte do Estado, de variadas formas de aplicação do
castigo corporal, por meio dos estatutos, dos regulamentos ou mesmo dos usos dessas
instituições.
No caso da reforma das penas, necessitava-se tanto de uma legislação que
coibisse a destruição dos equipamentos recém-instalados pelo Estado, quanto se definir
o tipo de penalidade que seria aplicada a essa nova situação. Assim, o debate da reforma
das penas combinou-se com o problema da manutenção das ‘relações de soberania’,
gerando propostas que variavam desde a pena pecuniária até a ampliação da esfera de
disponibilização, incluindo-se nesta esfera, além do infrator, também os seus filhos ou
mesmo os filhos daqueles que estivessem apenas ligados ao delito pela coincidência de
habitarem no local onde este fora cometido. Esta era a idéia, por exemplo, de Guilherme
Schuch a respeito da legislação sobre telégrafos: se alguém fosse encontrado “tocando
na linha de qualquer maneira” ou “amarrando animais aos postes” este seria punido com
pena de prisão de um até seis meses. Caso houvesse interrupção no serviço sem que se
descobrisse o autor, os moradores mais próximos, se pertencentes à Guarda Nacional,
seriam penalizados pecuniária e executivamente, sendo depois ainda designados para
trabalho compulsório na mesma linha de telégrafos. Caso não pertencessem à Guarda
Nacional, ou seja, havendo sido comprovado seu desvalimento, os moradores seriam
disponibilizados para o recrutamento do Exército, sendo ainda seus filhos igualmente
disponibilizados para o serviço nos navios da Marinha de Guerra.
70
Deste modo, o
mesmo Guilherme Schuch que antes havia verificado e deplorado a distância
tecnológica existente entre os países europeus e o Brasil durante a Exposição
Internacional de Paris em 1855, propunha-se agora a reduzir essa distância através da
introdução e da defesa do telégrafo, mas apenas adaptando a modernização tecnológica
às velhas ‘relações de soberania’.
Não se buscava alterar fundamentalmente o circuito da centralidade mas apenas
ajustá-lo às experiências e idéias européias e norte-americanas mais recentes, facilitando
assim a ‘inserção do Estado no espaço internacional’. Por exemplo, novamente nos
servindo do estudo sobre a reforma das penas no caso da legislação sobre telégrafos,
70
Guilherme S. de Capanema, ‘Necessidade de legislação sobre o serviço dos Telégrafos’, 1867. IHGB, Coleção
Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
356
veremos que as outras propostas visavam tão somente traduzir as leis européias, como
no caso de Nabuco de Araújo que gostaria de aplicar a Lei francesa das Estradas de
Ferro de 1851 ao problema dos telégrafos no Brasil.
71
Seria também através desse ajuste
que a questão do trabalho seria adaptada ao arranjo com as ‘relações de soberania’, no
caso, através do ‘Projeto de Regulamento sobre Telégrafos’, que finalmente regularia a
punição às infrações sobre o serviço de telegrafia através da pena de prisão com
trabalho. Esta penalidade obrigaria o infrator a ocupar-se diariamente do trabalho que
lhe fosse destinado dentro do recinto das prisões, nas casas de correção ou “em qualquer
trabalho público nos lugares em que não houver tais casas”.
72
Portanto, as ‘relações de soberania’ foram apenas elididas dos termos jurídicos,
sendo seus termos práticos ajustados através dos arranjos feitos pela inscrição contínua
da centralidade e mantidos na relação entre o Estado e o circuito da centralidade. A
reforma das penas e do sistema penitenciário não passaria a ser mais do que um dos
circuitos dessa inscrição, mantendo-se as condições de classificação ou
disponibilização dos indivíduos perante as alianças verticais que ligavam as elites locais
aos ocupantes do território. Por exemplo, a disponibilização dos desvalidos para o
Exército e a Marinha de Guerra manter-se-ia ainda durante a República, assim como os
castigos corporais, que na Marinha seriam aplicados diretamente sobre o corpo através
da chibata, enquanto que no Exército as ‘varadas’ e ‘bolos’ foram sendo substituídos
pelos castigos físicos, como o ‘sarilho de armas’, que consistia em “colocar quatro fuzis
sobre os ombros” do castigado, dois destes em posição perpendicular à linha dos
ombros e dois outros “dispostos perpendicularmente aos dois primeiros, um atrás e
outros à frente do pescoço”, sendo que, “alguns capitães e sargentos usavam um maior
número de armas, para aumentar o peso a ser sustentado pelo indivíduo que cumpria o
castigo”. Havia ainda o ‘marche-marche’ que consistia em fazer o recruta “correr duas
horas pela manhã e duas à tarde, equipado em completa ordem de marcha, isto é, com a
mochila cheia como se fosse para a guerra, com armas e tudo mais” e a ‘célula’, que era
71
J. T. Nabuco de Araújo, ‘Voto manuscrito sobre a legislação de Telégrafos’, 1867. IHGB, Coleção Senador
Nabuco, Lata 384, Livro 2.
72
Augusto José de Castro Silva, ‘Projeto de regulamento para o serviço dos telégrafos’, 1867. IHGB, Coleção
Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
357
um “pequeno compartimento mais ou menos privado de luz, no qual se prendiam os
delinqüentes a pão e água”.
73
Em terceiro lugar, entendemos que o debate da reforma das penas e do sistema
penitenciário vinculava, através da questão da ocupação do espaço, as ‘relações de
soberania’ com uma indistinção do espaço individual em sua relação com o espaço
público. Esta indistinção permitia que os arranjos atendessem tanto à ‘inscrição do
Estado no espaço internacional’ quanto à manutenção do circuito da centralidade.
As Comissões e o debate no âmbito do Ministério da Justiça nas décadas de
1860 e 1870 estavam também inseridos na questão da substituição da mão-de-obra
negra que fora imposta pelas implicações das relações externas da década de 1840 e
1850. Este problema teria especial significação por estarem sendo discutidos, no âmbito
do Ministério da Justiça, dois projetos de colonização, sendo o primeiro destes o
‘Projeto de Colonização’ de iniciativa de José Vergueiro, que visava a cooptação e a
instalação de imigrantes europeus. O segundo projeto era o ‘Regulamento das Colônias
Indígenas’, de autoria do Barão de Antonina, que tinha por objetivo a atração e o
aldeamento de indígenas através da catequese.
74
Através do debate e principalmente pela experiência européia relatada pela
comissão de Felipe Lopes Neto, ficaria demonstrada que os projetos de colonização
eram alternativa superior às idéias de ocupação do espaço e de utilização do trabalho
contidas na Colônia Penal. No caso, através do trabalho da Comissão enviada à França,
à Bélgica e à Inglaterra verificou-se que nesses países estava acontecendo um gradativo
afastamento em relação aos antigos modelos de sistema penal, no caso, o Desterro e o
Trabalho Forçado e uma aproximação em direção ao modelo penitenciário, inclusive,
porque este era então entendido como um modo de se democratizar a pena. Além disso,
o aperfeiçoamento dos meios técnicos haviam tornado ineficiente o modelo do Trabalho
Forçado, antes entendido como gerador de riqueza, dando lugar a um novo tipo de
punição, o Trabalho Apenado, compreendido como regenerador e reintegrador do
indivíduo à sociedade, sendo a prisão celular o seu modelo. Felipe Lopes Neto
constataria que na Europa de 1860 não havia mais prisões destinadas unicamente aos
militares, nem ‘colônias militares’ ou ainda ‘colônias de liberados’, sendo estas
73
Francisco de Paula Cidade. ‘Verbetes para um dicionário biobibliográfico brasileiro’, in Revista Militar Brasileira,
56 (1-2), VII, Rio de Janeiro, Jan. / Jun. 1956.
74
‘Projeto de Colonização de José Vergueiro’, 1855; ‘Regulamento para as Colônias Indígenas’, 1855. IHGB,
Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
358
indistintamente julgadas ineficientes em todos os casos, sendo que as instaladas nas
Colônias eram consideradas, mesmo, como corruptoras dos colonos. A supressão do
Degredo era então praticamente geral, sendo a liberdade tornada imediata após o
término da pena, neste caso, a Inglaterra já havia substituído as suas ‘colônias de
liberados’ do Cabo da Boa Esperança, da Austrália e das Bermudas pelo regime de
prisão com trabalho em penitenciárias no próprio Reino Unido. Dos outros países
europeus, somente a França ainda preservava os seus ‘Bagnes’ na Guiana, contudo,
mesmo nesse país, este instituto penal era criticado abertamente e considerados em
extinção pela maior parte de seus juristas.
75
Entretanto, ainda que os projetos de colonização considerados pelo Ministério da
Justiça fossem de encontro às experiências recolhidas pela Comissão, em ambos os
casos seriam absorvidos as idéias e conceitos do debate a que já nos referimos. De
acordo com os projetos, o colonizador seria automaticamente incluído nas relações
verticais que haviam se desenvolvido na sociedade brasileira por meio de uma ligação
acordada com o território, mais uma vez se verificando o ajuste das experiências
européias ao circuito da centralidade. Essa ligação, novamente um arranjo das antigas
‘relações de soberania’, consubstanciar-se-ia através dos contratos de trabalho, no caso
do ‘Projeto de Colonização’ ou pela categorização das tarefas e atividades, no caso do
‘Regulamento das Colônias Indígenas’.
Ainda, as experiências européias não seriam absorvidas plenamente nem mesmo
nas instituições prisionais urbanas que já haviam sido construídas segundo o modelo da
prisão celular. A indissociação entre o espaço público e o individual no Brasil
possibilitava que na instituição prisional se constituísse uma intromissão dos interesses
e das relações dos presos que também espelhava as ‘relações de soberania’. Por
exemplo, o ‘Regulamento da Casa de Detenção’, escrito por Nabuco de Araújo em
1856, operacionalizava um espaço onde se mantinham regalias, separações e
convivências que em nada se pareciam com as instituições penais européias,
permitindo-se, por exemplo que os castigos corporais fossem aplicados somente aos
negros ou que o consumo de vinho fizesse parte das refeições de quem pudesse comprá-
lo. Conquanto a idéia da classificação e da ordenação fosse relacionada à manutenção
do regime prisional ela se prestava mais a discriminar as ‘relações de soberania’, uma
75
Correspondência entre Filipe Lopes Neto com J. T. Nabuco de Araújo e outros titulares da pasta do Ministério da
Justiça, 1865-1866. IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
359
vez que serviam para a administração das regalias, das separações e das convivências
antes assinaladas. Neste caso, na Casa de Custódia, por exemplo, além de ser feita uma
separação baseada em critérios raciais, se permitia o acesso de serviçais para quem
pudesse mantê-los. Mesmo uma delineação do instituto do trabalho enquanto forma de
recuperar e integrar o preso a sociedade, seria apenas esboçada a partir do recurso de se
recorrer a determinadas experiências ‘civilizadoras’, mas, sempre se ressalvando às
diferenças do “caráter” ou dos “costumes” dos reclusos.
76
Esse espírito do arranjo feito
entre as experiências européias e as ‘relações de soberania’ foi, ele mesmo, incorporado
ao circuito da centralidade e adentraria na República, como podemos entender a partir
da definição do que Américo Brazílio Silvado chamava de ‘bacharelismo’:
Classifico de bacharelismo o espírito achincalhador e chicaneiro que
existe em todas as classes que compõem o nosso meio social e que procura
adulterar todas as leis e regulamentos no sentido de subordinar sempre o
interesse público ao mais egoísta interesse individual. É esse mal crônico
que nos entorpece os movimentos desde o Império e que proíbe que a
República progrida livre e desembaraçada, executando a sua lei base, até
hoje mais posta em vigor em sua parte negativa.
77
Ilustrativamente, a comissão de Lopes Neto, por um lado, concluiria finalmente
pela condenação das Colônias Penais, entendendo que a vantagem em se afastar os
indesejáveis do centro era anulada pelo sacrifício da colônia, pelo risco militar e pela
despesa, considerando ser mais interessante para o Estado a adoção plena do modelo da
prisão celular.
78
Por outro lado, estas conclusões de Lopes Neto se confundiriam com
uma outra atividade cumprida por sua Comissão: buscar dentre os apenados das
‘colônias agrícolas’ dos países europeus, candidatos dispostos a vir para o Brasil.
Prometia-se então a estes condenados uma cidadania que era negada àqueles que no
Brasil não haviam cometido crime algum, em solenidades nas quais se exaltava a
civilização e os recursos naturais do Império:
76
J. T. Nabuco de Araújo, ‘Notas manuscritas sobre a Casa de Detenção, 1856’; J. T. Nabuco de Araújo,
‘Regulamento da Casa de Detenção’, 1856; ‘Nota e ofício ao Cons. Nabuco de Araújo sobre a Casa de Correção’,
1864-1866; IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.
77
Américo Brazílio Silvado, A Nova Marinha. Rio de Janeiro: Typ. Lith. Carlos Schmidt, 1897, p. 19.
78
‘Relatório de Felipe Lopes Neto acerca do Sistema Penitenciário’, 22/1/1866. IHGB, Coleção Senador Nabuco,
Lata 384, Livro 2.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
360
Se isto chegar a realizar-se, como espero, ficará lançada uma ponte
entre o Brasil e a importante colônia de Mettray, cujos filhos, bem
informados das condições do país e certos de encontrarem nele amigos e
vantagens, que a França lhes não dá, estabelecerão a corrente de uma
imigração espontânea de grande proveito para eles e para nós.
79
Se foram ainda comparadas as opiniões de Lopes Neto com as de um dos
expoentes da derivação da norma narrativa, Henrique de Beaurepaire Rohan, que
também escreveu a respeito da ocupação do território e do problema do sistema penal,
podemos compreender que a divergência a respeito da representação do espaço nacional
não implicava igualmente numa discordância sobre a transformação das ‘relações de
soberania’. Escrevendo a respeito do ‘Memorial acerca da colonização e cultivo do
Café’, também de José Vergueiro, Rohan discorreria então que a cessão do domínio útil
da grande propriedade territorial era uma condição indispensável ao desenvolvimento da
cultura do Café, mas, também asseverou que “este sistema não importa a destruição da
grande propriedade; muda-lhe apenas o regime”, uma vez que se continuava
conservando o domínio direto das terras.
80
Ainda, se analisarmos ainda os relatos do mesmo Lopes Neto a respeito da
Exposição Internacional da Filadélfia, onde foi Vice-presidente da representação
brasileira, podemos entender que, se a elisão das ‘relações de soberania’ atendia aos
propósitos da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, também os arranjos em
relação à inscrição em uma comunidade idealizada com a Europa satisfaziam a intuição
que se fazia então do Brasil. Nesse sentido, a correspondência de Lopes Neto dá conta
de que esta havia sido a melhor apresentação do Brasil em todas as Exposições
Internacionais, superando, inclusive, a participação de 1873 em Viena — o Brasil havia
sido “considerado por todos” como “a nação moderna que mais há progredido nas vias
da civilização”.
81
A respeito dessa compreensão recíproca realmente não podem existir
79
Carta de Felipe Lopes Neto para J. T. Nabuco de Araújo, 21/12/1865. IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384,
Livro 2.
80
Henrique de Beaurepaire Rohan, O Futuro da grande lavoura e da grande propriedade no Brasil - Memória
apresentada ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,
1878, p. 6-10.
81
Carta de F. Lopes Neto para José Antônio Saraiva, 6/8/1876. IHGB, Lata 273, Pasta 12.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
361
dúvidas, pois uma de nossas peças mais admiradas e premiadas foi a estátua que atendia
pelo singelo nome de ‘Índio à espreita’.
82
As condições da reelaboração da ‘História das Fronteiras’
Become a [ ] and ever-shifting mirror (37)
Of all the beauty and the terror there –
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery
83
Procuramos anteriormente neste capítulo, através dos estudos sobre a
reelaboração e expansão das ‘relações de soberania’ e sobre a percepção do território
nos modelos de espaço, mostrar que a ‘visão do espaço a partir do centro’ se consolidou
na narrativa e na cartografia pela elisão dos termos que não se coadunavam com a
inscrição da centralidade. Antes mesmo desses dois estudos, observamos neste capítulo
que a ‘História das Fronteiras’ começou a ser constituída já como uma intelecção da
‘inscrição do Estado no espaço’ a partir da ‘visão central’. Ainda, salientamos que esta
‘História das Fronteiras’, conforme nosso estudo da ‘ekphrasis’ e das postulações de
Schelling, seria constituída paulatinamente por meio de intuições e intelecções
sucessivas sobre representações anteriormente construídas, ou seja, em ‘ekphrasis’.
A partir do raciocínio acima apresentado, buscaremos desenvolver um estudo
dessas representações, em ‘ekphrasis’, que entendemos serem constituidoras da
‘Mitologia do espaço nacional’, privilegiando uma investigação da produção
cartográfica dela decorrente. Nossos motes para esta discussão serão os dois últimos
capítulos do livro ‘Capítulos de História Colonial’ de Capistrano de Abreu, a saber,
‘Formação dos Limites’ e ‘Três séculos depois’, escritos em 1907.
84
Nestes, Capistrano
repete a narrativa do século XIX conforme Pinheiro e Ribeiro, embora ambos não sejam
citados: ‘Formação dos Limites’ é a sua versão da ‘História das Fronteiras’, constituída
82
Carta de F. Lopes Neto para José Antônio Saraiva, 9/7/1876. IHGB, Lata 273, Pasta 12.
83
Nossa tradução: ‘Tornar-se um [ ] e espelho em permanente mutação / De toda a beleza e terror ali -’ — Percy
Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 37-38.
84
J. Capistrano de Abreu, ‘Formação dos Limites’ in Capítulos de História Colonial. Brasília: Conselho Editorial do
Senado Federal, 1998, p. 183-197.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
362
numa narração que envolve os Tratados do século XVIII onde, por conta de seus
defeitos, se enfatiza sua nulidade sucessiva, conforme a construção de Pinheiro. Dentre
as tramas desta narração de Capistrano, incluem-se ainda os problemas das
Demarcações ligadas a esses Tratados, compreendidos através de sua descrição e de
uma compreensão do seu legado, o uti possidetis, enquanto elemento definidor do
território, desta vez conforme a construção de Ribeiro. Entretanto, apesar da ‘História
das Fronteiras’ de Capistrano utilizar a fórmula da SNE, ainda não estavam definidos
em ‘Formação dos Limites’ os protagonistas da ‘Mitologia do espaço nacional’, note-se,
por exemplo, a ausência de Alexandre de Gusmão no relato de Capistrano, que não
corrobora a inclusão anterior daquele personagem na ‘História Geral do Brasil’ de
Varnhagen. Do mesmo modo, também observamos que em ‘Três séculos depois’
Capistrano utiliza-se da velha idéia de espaço da América portuguesa, enfatizando um
entendimento do espaço nacional a partir de uma descrição do território e de seus
habitantes conforme suas qualidades. Por conseguinte, podemos entender que a
estrutura da ‘Mitologia do espaço nacional’ e vários de seus termos ainda não haviam
sido consolidados na primeira década de 1900, embora a maior parte dos seus elementos
já estivesse então disseminados, como podemos verificar a partir dos ‘Capítulos de
História Colonial’.
Por conta desse novo problema, remeteremos este raciocínio sobre a
consolidação da ‘Mitologia do espaço nacional’ ao raciocínio que empreendemos no
início deste capítulo a partir da idéia de Noam Chomsky sobre a ‘Economia da
Representação’ na linguagem.
Conforme aquele raciocínio, a operação da narrativa no novo regime havia se
conformado a um teatro de dimensões muito reduzidas, no caso, o Ministério das
Relações Exteriores, órgão sucessor da SNE, doravante referido como MRE. Deste
modo, conforme a idéia de Chomsky, entendemos que a transformação da narrativa do
século XIX numa ‘Mitologia do espaço nacional’ foi ensejada pelas necessidades
operacionais daquele órgão e pelas oportunidades encontradas pelos seus operadores
para que fossem legitimados novos elementos de representação adequados à narrativa
do século XIX.
Nesse sentido, em primeiro lugar, entendemos que as necessidades operacionais
do MRE estavam ligadas à ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, operada desde
meados do século XIX também através das Exposições Internacionais, visando uma
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
363
legitimação da ‘representação do espaço nacional’ junto às demais ‘representações do
espaço’. Assim, buscava-se ainda na primeira década do século XX, a construção de
uma reciprocidade entre a intelecção do espaço nacional feita pela ‘visão central’ e a
intuição do Brasil feita externamente. Deste modo, compreendemos a construção da
reciprocidade como um processo continuado e ainda em curso na primeira década do
século XX, sendo enfatizado então pela decisão do Brasil de recorrer a um instituto
jurídico do Direito Internacional da época, o ‘Arbitramento’, para a resolução dos seus
problemas de limites.
Este instituto jurídico havia sido consolidado no Direito Internacional a partir da
declaração dos plenipotenciários presentes ao Congresso de Paris de 1856, quando estes
se comprometeram a recorrer, sempre que fosse possível, ao Arbitramento para a
resolução das suas controvérsias. Informado da resolução tomada pelas Potências
européias, o Brasil imediatamente aderiu à Declaração, enunciando compartilhar “em
toda sua extensão” dos seus princípios.
85
Segundo estes, um Chefe de Estado de
qualquer país podia ser considerado como juiz competente para a resolução de questões
internacionais desde que acreditado por todas as partes do litígio. Para estas, a ‘prova
cartográfica’ já havia se tornado o elemento central para a resolução dessas questões,
com o ‘Processo do Arbitramento’ girando em torno de sua comprovação e discussão. A
incorporação da cartografia ao Processo do Direito Internacional está diretamente
vinculada ao desenvolvimento da litografia ocorrido a partir do início do século XIX,
permitindo a divulgação dos mapas antigos.
Esta popularização, por sua vez, decorreu do esforço encetado pelo Visconde de
Santarém, como vimos no capítulo ‘O espelho do Jacobina’, que com aquele material
construiu toda uma argumentação baseada na utilização dos mapas, entendidos
enquanto ‘monumentos’ da posse portuguesa na África, ou seja, possibilitando que os
mapas antigos se tornassem provas da presença material do Estado no território. Tendo
sido disseminada a partir de então, esta argumentação tornar-se-ia aceita como parte
integrante do Processo de Direito Internacional, no que se passou a compreender a
História da Cartografia enquanto uma disciplina capaz de embasar as iniciativas
diplomáticas do Estado.
85
Conforme ‘Ofício de José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, ao representante francês no Brasil’,
citado por Delgado de Carvalho in História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959,
p. 256.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
364
Mais especificamente, no ‘Processo do Arbitramento’ a cartografia era entendida
enquanto uma atividade derivada da ação do Estado, portanto devendo constituir uma
prova da ‘verdade’ histórica de sua atuação no território. Entretanto, a ‘prova
cartográfica’ deveria ser discutida à luz do progresso científico, ou seja, dever-se-ia
proceder à interpretação dos mapas antigos segundo a idéia de que sua composição
envolvera técnicas e tecnologias defasadas. Assim, no ‘Processo do Arbitramento’
legitimava-se um raciocínio jurídico que incorporava a análise historiográfica das fontes
cartográficas e que entendia o problema cartográfico enquanto incorporado à questão do
‘progresso científico’ por meio da transformação das técnicas e da absorção da
tecnologia.
Portanto, no contexto da construção da reciprocidade entre a intelecção do
espaço nacional feita pela ‘visão central’ e a intuição do Brasil feita externamente, a
cartografia pode ser entendida como o principal instrumento da reafirmação da
‘inscrição do Estado no espaço internacional’, propiciando a reatualização da inscrição
da centralidade, no caso, a afirmação de continuidade da ‘visão central’ após a
Proclamação da República. Nesse sentido, inclusive, poder-se-ia salientar que alguns
dos operadores da narrativa no período, eram monarquistas convictos ou convertidos,
como, por exemplo, Joaquim Nabuco, João Pandiá Calógeras e o Barão do Rio Branco.
Em decorrência, podemos compreender que a reatualização da inscrição da
centralidade foi propiciada pela inscrição de novos elementos que, por sua vez,
transformaram a narrativa do século XIX e que esta transformação foi registrada na
‘História das Fronteiras’, numa construção ‘Mis-en-abysme’.
Em segundo lugar, novamente conforme a idéia de Chomsky sobre a ‘Economia
da Representação’ na linguagem, entendemos que o registro da transformação da
narrativa do século XIX numa ‘História das Fronteiras’ demandaria que as
oportunidades da sua efetivação ultrapassassem os custos de transformação da narrativa.
Neste sentido, as oportunidades da efetivação das transformações na narrativa
decorreram do posicionamento excepcional de um dos seus operadores, Rio Branco,
como titular da pasta das Relações Exteriores durante um longo período sem
interrupções, de 1902 até 1912. Devido às condições históricas do período, ou seja, pelo
forte controle do poder político exercido por um grupo político afinado com suas idéias
num período sintomaticamente denominado de ‘República dos Conselheiros’, Rio
Branco possuiu poderes que lhe possibilitaram efetivar determinadas iniciativas e para
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
365
constituir um legado que seria responsável pelo registro dos novos elementos da
narrativa numa nova forma da ‘História das Fronteiras’, a ‘História Diplomática’, como
veremos mais adiante. Esse legado foi originalmente constituído pelo arranjo
corporativo no MRE; depois pela inserção institucional de Rio Branco no IHGB, onde
assumiu as funções da Presidência de 1908 até sua morte em 1912; em seguida pela
defesa e organização da remodelação do Exército e da Marinha, iniciativa que lhe valeu
uma posição de prestígio tanto na Marinha quanto no Exército; finalmente pela
construção ainda em vida de seu personagem e legenda, capazes de garantir a
credibilidade da construção da ‘Mitologia do espaço nacional’.
Portanto, o legado constituído por Rio Branco permitiu que se propiciassem as
condições para a consolidação de uma ligação corporativa entre o MRE, o IHGB, o
Exército e a Marinha que mais tarde, se desdobrariam em determinados centros de
‘legitimação do saber’, as Universidades e o IBGE, o que permitiria através do contato
com a geopolítica brasileira, com que a ‘História das Fronteiras’ fosse novamente
reatualizada numa ‘Mitologia do espaço nacional’. Esta, por sua vez, também teria seus
elementos registrados na ‘História das Fronteiras’ sendo a partir daí disseminados pela
historiografia nacional, mais uma vez, numa construção em ‘ekphrasis’.
Adotamos a partir daqui a idéia de Corporação para definir o MRE, o Exército e
a Marinha, segundo a idéia de ‘cultura regimental’ de John Keegan,
86
entendendo que as
corporações possuem suscetibilidades que as impelem à autonomia no corpo do Estado
a partir da construção de seus próprios costumes, relações e cognição. Esta definição se
mostra pertinente, uma vez que entendermos existir lugares autônomos de produção,
codificação e exteriorização de uma gramática própria nestas corporações,.
Em terceiro lugar, novamente conforme a idéia de Chomsky sobre a ‘Economia
da Representação’ na linguagem, entendemos que as considerações locais, no caso do
MRE, imprimiram uma dinâmica específica na faculdade de formulação da narrativa do
século XIX. Assim como as transformações da narrativa somente foram empreendidas
segundo condições especiais, os novos elementos de representação somente ficaram
registrados na ‘História da Fronteiras’ por conta de terem sido propriamente legitimados
perante o ‘sistema de representação’ [D-Structure] da narrativa, ou seja, por terem sido
preenchidas as condições que permitam a conexão de sua sintaxe com as outras formas
constituintes daquele sistema.
86
John Keegan. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 13-40.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
366
Assim, entendemos que os novos elementos da narrativa criados pelas
necessidades do MRE foram compostos sobre uma sintaxe existente, no caso, a da
narrativa do século XIX, a partir de suas formas constituintes, no caso, de acordo com
uma estrutura que incorporava tanto a inscrição da centralidade quanto a discussão
cartográfica e geográfica do espaço segundo o legado da Metrópole, ou seja, no estilo e
modelo determinados pela sobrevivência das idéias de Ribeiro na narrativa.
Decorrentemente, o registro dos novos elementos da narrativa ligados à reatualização
da inscrição da centralidade, ainda que facilitado pelas oportunidades ensejadas pelo
legado constituído por Rio Branco, teriam de ser inscritos a partir da sintaxe construída
anteriormente.
Por conta desse raciocínio, Rio Branco foi um dos principais responsáveis pela
consolidação da reatualização da inscrição da centralidade, uma vez que dotaria o
MRE das condições que permitiriam a esta corporação uma inscrição contínua da
‘História das Fronteiras’, como veremos mais adiante, através do novo modelo da
‘História Diplomática’, possibilitando que fossem atendidos os interesses corporativos e
a manutenção de sua autonomia no aparelhamento do Estado. Por outro lado,
incorporado ao IHGB, o legado de Rio Branco se afinaria de modo permanente com a
agenda do Instituto e garantiria sua própria sobrevivência na República, uma vez que
possibilitou a este também uma identificação com as corporações militares e com o
MRE, inclusive pela atração de seus quadros para o Instituto, por meio da conversão de
certos termos da narrativa do século XIX oriundos daquelas corporações no seu legado
institucional.
Muitos desses termos tinham sido constituídos justamente pelo próprio Rio
Branco e seriam disseminados por conta das necessidades do IHGB e do MRE, através
da oportunidade de identificar o personagem de Rio Branco enquanto um dos
protagonistas da ‘Mitologia do espaço nacional’. Ainda, a fixação da forma narrativa no
modelo da ‘História Diplomática’ permitiu conectá-la com a construção geopolítica
feita no Exército para uma construção continuada da ‘Mitologia do espaço nacional’.
Esta conexão estaria ligada, portanto, a uma convergência de interesses entre as duas
corporações que diminuiria os custos de transformação da narrativa e permitiria a
legitimação de sua sintaxe.
Portanto, o legado de Rio Branco seria responsável primeiramente pela fixação
de uma forma narrativa, a História Diplomática, em seguida, ajudaria a consolidar a
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
367
autonomia corporativa do MRE, do Exército e da Marinha durante a República;
finalmente garantiria a sobrevivência institucional do IHGB, exemplificados no caso,
pela consolidação de um monumento ao ideário monárquico e pela instituição do mais
monárquico dos Ministérios da República.
Em decorrência, devemos articular este raciocínio para facilitar os estudos que
faremos a seguir: a reatualização da ‘História das Fronteiras’ foi empreendida a partir da
reatualização da inscrição da centralidade, pelas oportunidades constituídas pelo
legado de Rio Branco e pela consolidação corporativa e institucional desse legado, do
qual fez parte a fixação de um novo modelo da narrativa, a História Diplomática e sua
transformação numa ‘Mitologia do espaço nacional’.
Essa ‘bella chimera’: os arbitramentos e a reatualização da inscrição da
centralidade
[...] D’Anville, cedendo a sugestões de autores espanhóis que não
abandonaram a antiga lenda, introduziu na sua carta o lago Parima, eliminado da
primeira decerto pelas informações de La Condamine que não parecia acreditar
nessa bella chimera. Colocado assim o Lago Parima abaixo da serra que na sua
primeira carta separa o Orinoco do vale do Amazonas, D’Anville teve que
prolongar as nascentes do Maú para o fazer sair daquele lago [...]
Joaquim Nabuco. O direito do Brasil.
And their long tangles in each other lock, (20)
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da
Vinci, In the Florentine Gallery.
87
Para compreendermos como a reatualização da inscrição da centralidade será
registrada na ‘História das Fronteiras’, estudaremos, num primeiro momento, a
construção dos novos termos e do novo modelo de espaço da narrativa do século XIX
através das ‘provas cartográficas’ utilizadas por Rio Branco e Joaquim Nabuco nos
‘Processos de Arbitramento’. Conforme o raciocínio exposto anteriormente, este estudo
87
Nossa tradução: ‘E seus longos emaranhados em cada outro se fecha,’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of
Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 20.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
368
será feito a partir da premissa de que os ‘Arbitramentos’ participam de uma construção
da reciprocidade que legitima interna e externamente a inscrição da centralidade.
Começaremos então pelo estudo da argumentação utilizada por Rio Branco no
primeiro ‘Arbitramento’ em que participou o Estado brasileiro, a saber, o da região de
Palmas, em litígio com a Argentina.
Para este ‘Arbitramento’ Rio Branco dividiria as provas cartográficas em quatro
conjuntos diferentes: o primeiro destes era o dos ‘Mapas Jesuíticos’, cartas anteriores à
composição de representações que poderiam ser atribuídas às Metrópoles; o segundo
conjunto era de mapas que expressavam as ‘Visões das Metrópoles’, no caso,
entendendo que teria havido uma mudança na intuição do território e uma
transformação da intelecção do espaço; o terceiro conjunto era referente ao ‘Trabalho
dos Demarcadores do século XVIII’, entendendo que a presença imediata dos
representantes da Metrópole no território intensificou aquelas relações; o quarto
conjunto consubstanciava a ‘Visão dos novos Estados’, ou seja, entendendo sua
compreensão do território como sendo derivadas do legado colonial.
A argumentação de Rio Branco seria constituída frente à construção da
reciprocidade, entendendo que, relativamente ao litígio de dois Estados formados a
partir de territórios coloniais, dever-se-ia provar ao ‘árbitro’ norte-americano a
pertinência de uma sucessão de direitos baseada pela transmissão da legitimidade.
88
Assim, Rio Branco compararia entre si as ‘provas cartográficas’ dos quatro conjuntos
procurando demonstrar que o Estado brasileiro sucederia ao Estado português,
incorporando seus títulos e corroborando pelas suas ações as antigas iniciativas da
Metrópole. Por conseguinte, a estrutura dessa narração ainda não diferia muito da
‘História das Fronteiras’ de Pinheiro, Ribeiro ou Capistrano, inclusive porque grande
parte do material utilizado por Rio Branco havia sido coletada anteriormente por
Ribeiro.
Porém, no segundo ‘Arbitramento’ em que participou o Estado brasileiro, o da
região do Amapá, em litígio com a França, não bastaria apenas apresentar uma hipótese
baseada na sucessão de direitos e na transmissão da legitimidade. Desta vez, como o
litígio envolvia uma nação na qual o Brasil sempre pretendeu se espelhar e a partir de
onde provinham os critérios que se acreditavam então definir o ideal de civilização, era
88
José Maria da Silva Paranhos Jr., ‘Questões de Limites - República Argentina’ in Obras do Barão do Rio Branco,
vol. I, Rio de Janeiro: MRE, 1945.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
369
necessário, em relação à construção da reciprocidade, equiparar através das provas
cartográficas uma nação moderna, o Brasil, com a nação antiga, a França. Neste caso,
Rio Branco necessitava constituir sua argumentação a partir de uma remissão às provas
cartográficas que resgatassem uma ‘antigüidade’ do Brasil, no caso buscando-se
demonstrar que a construção do espaço brasileiro remontava à própria ocupação do
território por Portugal e que este espaço já teria sido consolidado no século XVIII,
época em que as partes litigiosas acordavam ter-se iniciado o litígio. Nesse sentido, a
argumentação através das ‘provas cartográficas’ foi então trabalhada por Rio Branco em
dois Atlas que foram apresentados ao Conselho Federal Suíço, o ‘árbitro’ da questão,
contudo, um dos Atlas não estava destinado a ser utilizado no Processo do
‘Arbitramento’. Este Atlas, focado nos séculos XVI e XVII, foi composto com poucas
cartas portuguesas do início do século XVI, alguns outros mapas portugueses e
franceses do final do século XVI e início do século XVII e em sua maioria, quase 66%,
por mapas retirados de Atlas franceses, ingleses e holandeses, todos estes gravados e
abrangendo um período histórico que ia do final do século XVI até o início do século
XVIII. Na composição deste Atlas, Rio Branco visou a escolha de mapas que
enquadravam e registravam um espaço brasileiro utilizando-se, para isso, de provas
cartográficas compostas nos centros possuidores de maior tecnologia cartográfica e com
uma circulação atestada.
89
Por conseguinte, Rio Branco procurava demonstrar junto ao
‘árbitro’ a ‘inscrição precoce’ de um espaço brasileiro ao qual o território litigioso já
estaria originalmente ligado, constituindo-se não numa ‘prova’ do litígio, mas, de uma
igualdade de condições entre as duas Nações.
Já na composição do outro Atlas, exclusivamente focado nos séculos XVIII e
XIX, Rio Branco procuraria estabelecer, ao lado da ‘prova cartográfica’ do litígio, a
idéia de um espaço já consolidado e reconhecido. Para isto, Rio Branco organizaria o
Atlas situando o ‘Mapa das Cortes’ como iniciador de uma série de outros mapas, todos
eles escolhidos por conta de enquadrarem o Brasil também em posição central.
Ressaltemos para o entendimento de nosso raciocínio, que o ‘Mapa das Cortes’
era desconhecido no século XIX até ter sido resgatado, por Rio Branco, durante as
pesquisas feitas para o primeiro Arbitramento, quando então utilizou esta carta para
89
José Maria da Silva Paranhos, Atlas contenent un choix de cartes antérieures au traité conclu a Utrecht, Annexe au
Memoire présente par les État-unis du Brésil au Gouvernement de la Confédération Suisse. Paris: A. Lahure,
Imprimeur-éditeur, 1899.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
370
basear o seu conjunto das ‘Visões das Metrópoles’. Entretanto, no arbitramento com a
França, a utilização do ‘Mapa das Cortes’ visava integrar a idéia da ‘inscrição precoce’
construída num Atlas, com a idéia de uma ‘fundação do território nacional’ no século
XVIII, construída no outro, relacionada com o Tratado de Madri do qual aquele mapa
fora o esboço.
Seguindo-se ao ‘Mapa das Cortes’, vinha uma série composta por vários mapas
retirados de Atlas franceses, onde, através da repetição de registros do enquadramento
do território nacional, procurava-se construir a idéia do reconhecimento da ‘fundação do
território nacional’ pela cartografia francesa. Para consolidar ainda mais esta idéia, Rio
Branco incluiria a ‘Carta Niemeyer de 1846’ em meio aos mapas franceses, por conta de
ser a única representação do espaço nacional anterior à neutralização do território em
litígio. Ainda, a inscrição dos registros do ‘Mapa das Cortes’ e da ‘Carta Niemeyer de
1846’ nessa série de mapas, tinha o objetivo de subordinar a intelecção do espaço
nacional feita pelos mapas franceses a uma intuição do espaço nacional brasileiro a
partir do Tratado de Madri. O propósito de se constituir essa subordinação era contrapor
essa intuição à da maioria dos mapas franceses, fossem anteriores a 1820, quando
registravam o espaço da América Meridional em relação ao antigo modelo de espaço da
América portuguesa, ou seja, dividido em regiões; fossem posteriores a 1820 a partir do
que registravam o espaço brasileiro conforme sua intuição do Tratado de Santo
Ildefonso.
Finalmente, Rio Branco buscou delimitar o problema do litígio através de uma
interpretação da cartografia histórica onde utilizaria diversos recursos visando provar
sua adequação aos argumentos da posse brasileira do território, recorrendo ainda aos
mapas das ‘Comissões Exploratórias’. Deste modo, lançou mão da superposição de
mapas antigos com mapas modernos, da reconstrução cartográfica de roteiros antigos e
de comentários impressos sobre os mapas antigos, terminando com a apresentação de
cartas modernas feitas por nacionais.
Portanto, manter-se-iam os termos da narrativa da SNE, ou seja, a ‘sucessão dos
tratados’ e uma ‘remissão a um histórico de demarcações’, mas introduzir-se-ia uma
nova estrutura, construída por meio de novos elementos, que, por sua vez, já haviam
sido constituídos durante o Arbitramento anterior.
90
90
José Maria da Silva Paranhos Jr., ‘Atlas’, Tome VI, in Second Memoire présente par les État-unis du Brésil au
Gouvernement de la Confédération Suisse. Paris: A. Lahure, Imprimeur-éditeur, 1899.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
371
Já o terceiro ‘Arbitramento’ em que participou o Estado brasileiro, o da região
do Pirara, em litígio com a Inglaterra, ocorreria já durante a gestão de Rio Branco no
MRE, sendo então Joaquim Nabuco indicado como representante brasileiro.
Neste caso, a argumentação de Joaquim Nabuco utilizaria a idéia da ‘expansão
natural dos povos’ que Ribeiro havia desenvolvido anteriormente para contestar as
pretensões colombianas sobre o Estado do Amazonas. Mas, neste caso, Joaquim Nabuco
descreveu a penetração portuguesa sobre um espaço ‘naturalmente’ brasileiro, uma vez
que se desenvolveria através do domínio ininterrupto ou intermitente do curso dos
principais rios. Assim, a ‘ocupação’ desdobrar-se-ia do rio Amazonas para seus
afluentes maiores, como o Rio Negro ou o Rio Branco e destes rumo aos menores
recônditos, como, no caso, o Pirara: esta ‘expansão natural’ da ocupação portuguesa
constituiria a ‘fundação do espaço nacional’ e o seu direito natural à expansão. Assim a
construção da reciprocidade entendia também uma extensão dos direitos coloniais e das
suas ‘áreas de influência’, já que havia poucos ‘títulos’ que podiam ser apresentados
junto ao ‘árbitro’ da questão, o Rei da Itália. Nesse sentido, a composição das ‘provas
cartográficas’ de Joaquim Nabuco foi organizada em seu Atlas em cinco conjuntos.
O primeiro conjunto, Nabuco visava demonstrar o que entendia como a antiga
percepção na cartografia européia da ‘projeção natural’ da ocupação portuguesa, através
de linhas imaginárias que segundo Nabuco resistiriam “às próprias divisões políticas, às
ocupações e aos tratados”. Este conjunto incluía basicamente cartas retiradas de Atlas
holandeses, franceses e ingleses do século XVI até o início do século XVIII.
O segundo conjunto, visava demonstrar o assentimento das principais potências
da Europa e dos Estados vizinhos à ‘projeção natural’ da ocupação portuguesa, logo,
contava com trabalhos de diversas origens, mas todos com a chancela oficial daqueles
países. O terceiro conjunto foi composto por mapas em que se procurava demonstrar “as
várias idéias correntes na geografia” européia contemporânea e a opinião dos seus
principais geógrafos sobre a divisão política da área. Já no quarto conjunto Nabuco fez
constar a idéia da ‘fundação do espaço nacional’ e seu desenvolvimento pelas ‘provas
cartográficas’, novamente remetendo à idéia de Rio Branco. Este conjunto incluiria o
‘Mapa das Cortes’, relacionado com o Tratado de Madri; o ‘Borrador Geográfico’,
relacionado com o Tratado de Santo Ildefonso; a ‘Carta da Nova Lusitânia’, relacionado
com a inscrição do espaço nacional pela Metrópole e o Mapa do Brasil do ‘Atlas
Cândido Mendes’, relacionado com uma inscrição contemporânea do espaço nacional.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
372
Finalmente, seguir-se-ia a este um último conjunto no qual se juntaram diversos mapas
pertencentes às comissões demarcatórias holandesas, britânicas e brasileiras.
91
Portanto, na argumentação de Joaquim Nabuco, novamente manter-se-iam os
termos da narração da SNE, mas modificar-se-ia novamente sua estrutura, por conta da
inclusão de novos elementos, no caso, a ‘projeção natural’ da ocupação portuguesa de
Nabuco, que foi desenvolvida a partir das idéias construídas nos arbitramentos
anteriores, a saber, a ‘inscrição precoce’ e a ‘fundação do espaço nacional’.
Deste modo, compreendemos que os novos elementos da narrativa do século
XIX foram construídos ‘Mis-en-abysme’ sobre representações anteriores, constituindo-
se no final da primeira década do século XX em novos termos da estrutura narrativa e
em um novo modelo de espaço, ambos capazes de elidir as antigas percepções de
espaço do modelo da América portuguesa.
Por conseguinte, os novos elementos da narrativa, conformados com a inscrição
continuada da centralidade e a elisão das ‘relações de soberania’ seriam inscritos na
narrativa do século XIX. Esta nova inscrição pode ser confirmada na ‘Exposição de
Motivos’, apresentada por Rio Branco ao Presidente Nilo Peçanha em 1909, tendo-se
em vista outro problema de limites, para o qual, sintomaticamente, não foi considerado
o instituto jurídico do Arbitramento, a saber, a ‘Anexação do Acre’:
O Tratado de Petrópolis é, em grande parte, a restauração de nossos
verdadeiros limites no sul, a que tínhamos direito pela projeção de nossa
jurisdição ao longo dos rios e segundo a orientação da marcha do povo
brasileiro na conquista das matas desertas.
92
91
Joaquim Nabuco. Atlas accompagnant le Premier Mémoire du Brésil. Paris: Ducourtioux et Huillard, Graveurs-
imprimeurs, 1903; Joaquim Nabuco, ‘O direito do Brasil.’ in
Obras completas de Joaquim Nabuco, vol. VIII. São
Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949.
92
Citado em Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p.
227.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
373
A reelaboração corporativa e institucional do legado de Rio Branco
And from its head as from one body grow,
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery
93
Visando entender, num segundo momento, como os novos termos e o novo
modelo de espaço foram registrados na ‘História das Fronteiras’, estudaremos as
condições de operação da narrativa constituídas pelo legado de Rio Branco.
Conforme o raciocínio anterior, este estudo será feito a partir da premissa de que
estando os novos elementos da narrativa conformados com a inscrição continuada da
centralidade e com a elisão das ‘relações de soberania’, possibilitar-se-ia o
desdobramento da reatualização da narrativa, em ‘ekphrasis’, sobre outras
representações. Por conseguinte, como estas representações foram constituídas sobre os
interesses corporativos a partir da reatualização da narrativa, se faz necessário focar
este estudo no exame da reelaboração dos legados corporativos e institucionais de Rio
Branco, enfatizando-se, neste exame, os aspectos que nos permitirão entender a
constituição da ‘Mitologia do espaço nacional’. Nesse sentido, começaremos
examinando as condições de reelaboração do legado de Rio Branco pelo Exército,
ressaltando que, neste caso, essas condições antecedem sua própria posse como titular
do MRE.
Logo no início de 1902, o Exército e a Marinha pleiteavam que o MRE
intermediasse a ida de alguns de seus oficiais para estabelecimentos militares alemães
com vistas a praticarem naqueles, as novas técnicas e estratégias que estavam sendo
desenvolvidas. Esta demanda já refletia então uma preocupação com a
profissionalização das Forças Armadas, decorrente tanto da preocupação do Governo
com o envolvimento político dos oficiais quanto de uma movimentação interna nessas
corporações. Coube então a Rio Branco, embaixador brasileiro na Alemanha, sugerir
que, ao invés de atitudes isoladas como a que estava sendo proposta, se adotasse a
prática do envio de estagiários para as Forças Armadas daquele país, visando-se assim
93
Nossa tradução: ‘E de sua cabeça como se fosse de um só corpo nasce,’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of
Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 17.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
374
criar um precedente que possibilitasse a continuidade no processo de organização e
aparelhamento das Forças Armadas.
94
O acatamento de sua sugestão pelo MRE, possibilitaria que na sua gestão à
frente do ministério, Rio Branco conseguisse estabelecer uma continuidade da prática
do estágio junto ao Exército alemão.
95
O concurso desses oficiais, alguns dos quais
indicados pelo próprio Rio Branco, permitiu que se alicerçasse um núcleo de oficiais
conhecidos como ‘Jovens Turcos’, e que, a partir de sua atuação à frente do periódico
fundado por estes em 1913, ‘A Defesa Nacional’, assumissem a liderança dos grupos
renovadores no Exército.
96
A pauta de reivindicações dos setores reformistas do
Exército, aos quais se juntariam os ‘Jovens Turcos’, ajustava-se então aos interesses
estratégicos da política externa, o que propiciou o apoio implícito e explícito de Rio
Branco, inclusive através de um de seus auxiliares diretos, o deputado João Pandiá
Calógeras, mais tarde Ministro do Exército.
O interesse de Rio Branco pelo programa de estágios na Alemanha, junto com as
condições a serem criadas pela aplicação da ‘Lei do Sorteio Militar’ e pelo rearmamento
da Forças Armadas, visava ultrapassar, num prazo de três anos, a superioridade militar
da Argentina e do Chile na América do Sul.
97
Nesse sentido, com o apoio do Presidente
Rodrigues Alves e de uma parte da oficialidade do Exército e da Marinha, Rio Branco
tentou implementar a ‘Grande Missão’, ou seja, uma Missão Militar alemã dirigida para
ambas as corporações e a compra em grande escala de armas e equipamentos naquele
país, objetivos que já seriam perseguidos desde 1907. Segundo o relatório final da
‘Comissão Militar brasileira de compras de material bélico na Europa’, somente o
Exército teria recebido 110 mil fuzis e 200 canhões de campanha, isto para uma
corporação cujos efetivos em 1920 não ultrapassavam 16 mil homens.
98
Apesar da
94
AHI, Arquivo Barão do Rio Branco, Lata 854, Maço 1; Ofícios da Legação brasileira em Berlim para o Ministro
das Relações Exteriores, 17/04/1902 e 30/04/1902, AHI Lata 203 Maço 2 Documento 10.
95
Telegrama da Legação em Berlim para Rio Branco em 31/12/1905, AHI Lata 203, Maço 2, Documento 10;
Telegrama da Legação em Berlim para Rio Branco em 16/12/1906. AHI, Arquivo Barão do Rio Branco, 1ª seção,
Lata 854, Maço 2, Documento 9.
96
Ver José Murilo de Carvalho, ‘As Forças Armadas na Primeira República: o Poder Desestabilizador,’ in O Brasil
Republicano: Sociedades e Instituições (1889-1930) vol. 9. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1997, p. 198-199, 231-
234; Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na
política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 45-64; 101-107.
97
Telegrama de Rio Branco a Joaquim Nabuco em 07/12/1908. AHI Lata 235, Maço 4, Documento 1.
98
Anais do Congresso Nacional de 1918, sessões de 28 de junho e 10 de julho, citado em Roberto Piragibe da
Fonseca, Dois estudos militares: O manifesto destino geopolítico do Brasil - A ressurreição do Exército nacional
através da reforma de 1908. Rio de Janeiro: Edição Reservada, 1974.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
375
iniciativa da vinda da Missão Alemã não se concretizar por conta da morte de Rio
Branco em 1912 e da resistência de certos setores da sociedade e das Forças Armadas
ligados aos interesses franceses e ingleses, ficaria desde então consolidada a idéia da
necessidade da vinda de uma Missão Militar e do reequipamento do Exército.
Já o núcleo formado por Rio Branco ampliaria consideravelmente sua influência
no Exército a partir do apoio do Estado-Maior do Exército, que estimularia seus
membros a organizarem a reforma da ‘Escola Militar de Realengo’, no que ficaria
conhecido como a ‘Missão Indígena’. Com a negociação da ‘Missão Militar francesa’
por João Pandiá Calógeras e Malan d’Angrogne, simpatizantes dos ‘Jovens Turcos’,
alterar-se-ia a composição das forças que operavam no interior do Exército, com os
‘Jovens Turcos’ alinhando-se definitivamente com o Estado-Maior do Exército, o que
fez com que sua revista, ‘A Defesa Nacional’, se tornasse um porta-voz autorizado da
Escola de Estado-Maior. Este arranjo somente se tornou possível na medida em que, a
partir do legado de Rio Branco, se deu a intervenção direta das elites dirigentes, a quem
interessava a ‘profissionalização’, entendida, no caso, como a ‘despolitização’ do
ensino militar, notando-se que nesse processo, a ‘Escola Militar’ seria mudada da Praia
Vermelha para Realengo, longe portanto do centro da cidade. Nesse sentido, a
centralização do controle político do Exército em torno do Estado-Maior, junto com o
novo currículo, mais profissional, e uma nova instrução, mais militarizada, ajudou a
ampliar uma coesão da oficialidade em torno do aperfeiçoamento da organização
militar.
Contudo, graças aos alinhamentos anteriormente referidos, a ‘Missão Militar
Francesa’ ficou impedida de reformar o próprio Estado-Maior do Exército, o qual desde
logo considerou essa ‘Missão’ como um simples órgão consultivo. Do mesmo modo, a
‘Escola Militar de Realengo’, porta de entrada para o corpo de oficiais do Exército,
continuou nas mãos da ‘Missão Indígena’, sabidamente composta, em sua maioria,
pelos ‘Jovens Turcos’. Por conseguinte, a Missão Militar Francesa teve seus trabalhos
limitados à ‘Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais’ e à Escola de Estado-Maior do
Exército, cabendo-lhe, na prática, a reciclagem da oficialidade brasileira, ao impedir a
ascensão ao generalato daqueles que divergiam daqueles grupos. O controle do
mecanismo pelo qual os afastamentos ou os impedimentos periodicamente se
processariam, definiu a longo prazo o processo de centralização decisória no Estado-
Maior do Exército, uma vez que tanto a entrada para o Corpo de Oficiais, na Escola
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
376
Militar de Realengo, bem como as promoções destes, passaram a ser controladas por
grupos que se apoiavam mutuamente e que a curto prazo conseguiram constituir e
estabilizar uma doutrina de Estado-Maior.
Por outro lado, a inexistência de qualquer ‘Doutrina de Guerra’ no Estado-Maior
brasileiro facilitou a assimilação e a aceitação da doutrina expressa pela Missão Militar
Francesa, bem como a acomodação com certos conteúdos oriundos da experiência dos
estágios na Alemanha. Assim seria dado grande enfoque à Geografia Militar, disciplina
cujo aprendizado passou a ser considerado como essencial para o concurso de admissão
à Escola de Estado-Maior e que portanto seria disseminada também junto às outras
Escolas formadoras de oficiais. Em todos os conteúdos, sobretudo pela sua
concatenação com o estudo de Tática e Estratégia, a influência da geopolítica, tanto nas
vertentes alemã ou francesa, era decisiva, como pode ser verificado através de um
excerto da Ementa desta disciplina na década de 1940:
O estudo da Geografia Militar de um país, deve ser feito
principalmente no quadro de suas relações e compromissos internacionais,
de suas dependências e amarrações ao sistema mundial de forças a que se
filia ou a que se opõe.
99
Portanto, combinar-se-iam na ‘gramática’ do Exército as influências da
geopolítica com uma ‘memória’ de Rio Branco, identificada com o apoio dado
anteriormente à transformação da corporação. Essa ‘memória’ seria constituída ainda
pela assimilação da ‘História das Fronteiras no currículo da ‘Geografia Militar’ e por
um ensino da ‘História Militar’ focada nas glórias da corporação no Segundo Reinado.
Conseqüentemente, a ‘memória’ de Rio Branco evocava certos papéis que o Exército
pretendia se atribuir, como o da ‘mantenedor’ do ‘corpo da pátria’ pela defesa das
fronteiras e do território, bem como o de ‘garante’ da integração nacional por conta de
uma participação no processo de desenvolvimento e formação da nacionalidade.
Já as condições de reelaboração do legado de Rio Branco na Marinha
relacionam-se com a própria decadência desta corporação após a ‘Revolta da Armada’,
o que, no caso, levou grande parte da oficialidade a se identificar apenas com os
propósitos do rearmamento naval, que apesar de também ser defendido por vários
99
João Batista Magalhães. ‘Sobre os fundamentos para o estudo dos aspectos militares da Bacia do Prata’, in Revista
Militar Brasileira, 49 (1-2), Jan./Jun. 1949.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
377
setores das elites políticas, foi ligado inequivocamente pela oficialidade da Marinha a
Rio Branco. Ainda que o objetivo de Rio Branco fosse apenas o de criar uma
equivalência militar com a Argentina, o ‘Programa de Rearmamento Naval’ levado ao
Congresso era uma proposta que incluía a reestruturação de toda a frota brasileira.
Assim, a ratificação desse ‘Programa’ pelo Senado envolveria a negociação dos termos
da proposta visando sua aprovação. Neste caso, para se garantir o aval de Pinheiro
Machado substituíram-se as unidades que constavam na primeira proposta por três
‘dreadnoughts’, os quais, por conta dos termos do empréstimo obtido da casa bancária
Rothschild, deveriam ser obrigatoriamente comprados na Inglaterra. Os ‘Dreadnoughts’
eram uma classe de navios absolutamente nova e que modificava todas as noções de
combate naval. Assim, a mudança na natureza do ‘Programa’ implicava na
transformação abrupta do Brasil numa das maiores potências navais do planeta,
subvertendo a balança de forças na América e desencadeando uma escalada militar e
política com a Argentina.
100
Contudo, Rio Branco não procuraria se desvincular das mudanças feitas no
‘Programa’, ainda que preferisse a antiga configuração da frota: com o fato consumado
da compra dos ‘Dreadnoughts’ apenas intensificou-se a ‘campanha de imprensa’
destinada a conquistar apoios para a Missão Militar alemã, inclusive, dela participando
diretamente sob a proteção de pseudônimos. Como a Marinha possuía uma estrutura
hierárquica mais segmentada e uma composição social mais homogênea entre seus
oficiais que o Exército, havia nesta corporação uma resistência muito maior às
mudanças. Em resultado dessa particularidade, passou-se a dar ênfase na ‘campanha de
imprensa’ à ‘Reforma Compulsória na Marinha’. Segundo o Projeto proposto pelo
Almirante Alexandrino, um dos principais colaboradores de Rio Branco, os postos que
compunham o alto oficialato deveriam ter sua reforma antecipada, em média, seis anos,
enquanto que os oficiais subalternos teriam sua reforma postergada, em certos casos, em
até dez anos.
101
Ficava claro, por conseguinte, que o objetivo desse Projeto era facilitar
a ascensão dos oficiais mais jovens em detrimento daqueles que, na maioria dos casos,
100
‘O senador Pinheiro Machado e a Marinha nacional’ in Liga Marítima, tomo VI, nº 72, Junho de 1913, p. 9-15.
101
Jornal do Commercio, 17/08/1910. A proposta de Alexandrino visava alterar o Decreto n° 108 de 30 de dezembro
de 1889 que regulava os critérios para reforma. Respectivamente, a Reforma Compulsória passaria a acontecer
para Almirante aos 65 anos em vez de 70, Vice-almirante 62/68, Contra-almirante 60/66, Capitão-de-mar-e-guerra
56/62. Capitão de Fragata, Capitão de Corveta e Capitão-tenente que segundo o antigo Decreto se reformavam
entre os 58 e 52 anos de idade, pela nova proposta passariam, indistintamente, a serem reformados aos 50 anos. Por
sua vez, os Tenentes que se reformavam entre os 46 e 40 anos de idade, seriam beneficiados pelo adiamento da
reforma até os 50 anos.
Jornal do Commercio, 17/08/1910 e Decretos do Governo Provisório, 1889.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
378
haviam alcançado o oficialato ainda pela época da Guerra do Paraguai. Como visto, a
campanha de imprensa em 1910 visava criar as condições para que fosse possível
instaurar a ‘Grande Missão’, desacreditando os grupos que a ela se opunham. Para
alcançar este objetivo, a linguagem utilizada passou a enfatizar então a incapacidade
profissional, o anacronismo e o desvio de função como características quase que
absolutas da alta oficialidade da Marinha e em parte, do Exército.
102
Neste sentido, a ‘Grande Missão’ passaria a ser concebida também como uma
recomposição em profundidade das corporações militares, tendo-se em vista
incrementar sua capacidade combativa por conta da sua adequação aos novos
armamentos adquiridos. Esta recomposição das corporações militares era então
defendida como um imperativo da Política Externa, conforme se pode entender a partir
dos artigos publicado na campanha de imprensa: “Nós não temos que conquistar uma
soberania; temos que defendê-la e devemos assegurar nosso posto no concerto
americano”,
103
ou ainda, “a preparação de uma Nação para a guerra está subordinada
absolutamente a sua política exterior [...] a ela, pois, compete esclarecer os órgãos que
têm de criar os elementos materiais e morais com que se conta proteger o
desenvolvimento pacífico de um povo”.
104
Sintomaticamente, nenhum dos artigos,
supostamente reformadores, sequer comenta os códigos disciplinares utilizados pelas
Forças Armadas brasileiras que, por exemplo, permitiam na Marinha, entre outras
punições, o uso da chibata, que, no entanto, seria, nesse mesmo ano, o estopim da
revolta dos marinheiros que tripulavam os barcos que representavam então a renovação
da corporação e a supremacia naval brasileira.
Por conseguinte, a ‘Revolta da Chibata’ resultaria no fim das críticas nos jornais,
sendo, inclusive, destinado à Marinha um programa de estágios como no Exército. Este
programa de Estágios, a ser cumprido na Marinha americana, formaria um núcleo de
oficiais, que à exemplo dos ‘Jovens Turcos’, ficaria conhecido na Marinha como ‘Grão-
duques’ ou ‘Arquiduques’. Embora os ‘Grão-duques’ não tivessem na Marinha a
influência que os ‘jovem turcos’ tiveram no Exército, aqueles seriam responsáveis pelo
102
‘A maior parte de nossos oficiais superiores são incapazes para a manobra da esquadra que acaba de exigir cerca
de 150 mil contos para sua construção [...] [devemos] pedir ao Congresso uma lei excepcional de reforma, baseada
na incapacidade, por velhice ou atraso, de grande parte dos oficiais generais e superiores’ –
Jornal do Commercio,
11/07/1910.
103
Jornal do Commercio, 06/08/1910.
104
Jornal do Commercio, 10/08/1910.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
379
preterimento da vinda de uma ‘Missão Militar’ britânica em favor de uma ‘Missão’
americana, definindo uma influência precoce a ser exercida a partir dos Estados Unidos
nas Forças Armadas brasileiras. Alguns dos elementos apoiados por Rio Branco
chegariam aos postos mais altos da carreira naval, sendo que o Almirante Alexandrino
alcançaria o comando da pasta da Marinha ainda durante a permanência daquele à frente
do MRE. Alexandrino, empreenderia nada menos do que duas reformas na corporação
naval, onde se encarregaria de salvaguardar a distinção hierárquica que havia sido
ameaçada pela ‘Revolta da Chibata’, implicando que as mudanças na Marinha tivessem
um alcance menor que as do Exército.
105
Portanto, no caso da Marinha se preservaria uma ‘memória’ de Rio Branco mais
ligada à defesa mesma dos interesses corporativos, dentre os quais se entendia a
manutenção de uma tradição ameaçada pela competição com o Exército e pelo assalto
dos marinheiros à hierarquia. Inclusive, nesse processo, alguns episódios da História
Corporativa seriam elididos, como o ‘Motim de 1919’,
106
ou requalificados episódios,
como a ‘Revolta da Chibata’,
107
enquanto que, ao contrário, seria enfatizada a
‘memória’ de certos personagens, como Saldanha da Gama, um dos líderes da ‘Revolta
da Esquadra’, de reconhecidas ligações monárquicas, depreciando-se, no mesmo
processo, o papel do Ministro da Marinha que ficara então fiel ao Governo republicano.
Já a participação de Rio Branco no IHGB inicia-se ainda muito cedo, em 1867, e
foi bastante assídua até 1876, quando seguiria para preencher o posto de cônsul em
Liverpool. A partir de então e até a sua nomeação como Presidente do IHGB, já no final
de 1907, as ligações entre o Instituto e Rio Branco tornaram-se muito rarefeitas,
somente se restabelecendo após as homenagens que lhe foram prestadas por seu
desempenho nos Arbitramentos de Palmas e do Amapá. Provavelmente pesava nesse
distanciamento entre Rio Branco e o Instituto o mesmo julgamento de ordem moral que
tanto pesou a favor de sua ida para o exterior quanto contra sua nomeação pelo
Imperador para o posto na Inglaterra. No caso, sua vida pregressa e sua situação
conjugal eram consideradas imorais pelos padrões da época, impondo o ‘ostracismo
social’ ao filho de um dos mais importantes políticos da época. Por conta deste
105
Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na
política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 64-99.
106
A única referência ao motim de 1919 encontra-se em Robert L. Scheina, Latin America: a Naval History.
Annapolis, Maryland: Naval Institute Press, 1987, p. 106-107.
107
Ver, por exemplo, Hélio Leôncio Martins, A Revolta dos Marinheiros. São Paulo: Editora Nacional, 1988.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
380
julgamento moral, a ascensão política de Rio Branco somente se iniciou realmente aos
cinqüenta anos de idade, já na República, quando aceita, sem vacilar, por conta de sua
penúria financeira, todas as oportunidades que lhe são oferecidas, até que fosse
apontado diretamente, por conta de sua colaboração com o novo regime, para o
Arbitramento de Palmas pelo Presidente em exercício Floriano Peixoto.
Assim, o IHGB elege Rio Branco para a Presidência por unanimidade, mas
contra suas convicções mais íntimas, levado pela necessidade de sobrevivência em meio
à República. A prova mais sincera desse conflito de consciência é o discurso do próprio
orador oficial do Instituto, o Conde de Afonso Celso, durante a posse de Rio Branco:
Notório é que insuperáveis barreiras de hombridade e convicção me
arredam do sistema político a que o barão do Rio Branco emprestou o sólido
sustentáculo do seu nome e da sua competência.
Mas não estou falando em caráter individual: represento uma
coletividade alheia à política.
Falasse, entretanto, individualmente e nada importava!
Prezo-me de ser, acima de tudo, bom brasileiro, isto é, patriota; e
nenhum bom brasileiro, nenhum patriota deixará de reconhecer a seguinte
verdade, banal de tão repetida, quero dizer, de tão incrustada na consciência
pública: o barão do Rio Branco é um dos padrões de justo orgulho nacional.
E, se alguém o calasse, chamá-lo-iam as pedras de milhares de
quilômetros por ele adicionadas ao Brasil.
Vilania fora apregoá-lo só porque S. Excia. é o poder; vilania maior
negá-lo ou omiti-lo sob pretexto de oposição a este Poder, do qual coisa
alguma pretendo, e que nada me poderá conceder, pois repito, lhe sou
adversário leal, mas radical e irredutível!
108
Contudo, na sua Presidência, Rio Branco recuperaria a inserção social do IHGB
através de sua projeção pessoal, das atividades internacionais em que insere o Instituto e
acima de tudo porque redirecionou o foco da atuação do Instituto e de suas publicações
para o período Colonial, esvaziando-se, através desta atitude, um espaço que então
podia ser utilizado para a contestação à República. Rio Branco também passaria a
utilizar o IHGB como palanque para as suas declarações mais importantes e de maior
repercussão, como a que aconteceu durante a crise aberta com a Argentina pelo
chamado ‘Telegrama n° 9’, fazendo com que a Imprensa passasse a divulgar a nova
108
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXXI, 1908, p. 421-432.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
381
imagem do Instituto cunhada por ele. Em reconhecimento, o IHGB elevaria Rio Branco
à condição de ‘Presidente Perpétuo’ em 1909, honraria somente concedida
anteriormente ao fundador do Instituto, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde
de São Leopoldo.
Portanto, a reelaboração do legado de Rio Branco no IHGB deve ser entendida
em razão do esforço que o Instituto fará para se associar com a própria figura de Rio
Branco, construindo-se assim uma ‘memória’ conjunta, um legado institucional, capaz
de lhe garantir a sobrevivência no novo regime e que se construiu em associação com o
legado corporativo do MRE.
Note-se que tanto a reincorporação de Rio Branco ao IHGB quanto a
constituição do seu legado no MRE somente acontecem após 1907, depois da morte de
Joaquim Tomás do Amaral, o Visconde de Cabo Frio, Diretor-Geral do MRE desde
1865. Durante os quase quarenta e dois anos à frente da Diretoria-Geral, especialmente
na República, Tomás do Amaral havia consolidado, através do controle do expediente
interno, poderes capazes de rivalizar com os dos seus ministros. Assim, o falecimento
daquele funcionário serviria para que Rio Branco pudesse intensificar uma série de
iniciativas destinadas a concentrar internamente o controle do ministério nas mãos do
titular da pasta e a consolidar corporativamente o MRE. Sintomaticamente, somente na
cerimônia de homenagem a Tomás do Amaral, também sócio do IHGB, transcorrida no
Instituto, é que Rio Branco seria, pela primeira vez, convidado para exercer a
Presidência.
As iniciativas de Rio Branco seriam impulsionadas sobretudo, por um longo
período no qual se quebrou o antigo preceito de se apresentar anualmente o Relatório do
Ministério, uma vez que somente um único relatório foi apresentado durante os dez anos
em Rio Branco esteve à frente da Chancelaria. Nesse sentido, os recursos e esforços não
justificados, provavelmente destinaram-se a possibilitar tanto a reforma da sede da
corporação quanto a instalação de um aparelho administrativo conforme o modelo
europeu, de acordo com seus hábitos e idiossincrasias. Constituir-se-ia deste modo no
MRE um circuito de sociabilidade que visava atrair os intelectuais e a alta sociedade,
aumentando assim tanto a projeção corporativa do MRE quanto a inserção do diplomata
na sociedade civil.
Por outro lado, a ausência dos Relatórios ministeriais possibilitou também que se
consolidasse durante a condução da política externa no período a velha idéia do segredo
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
382
diplomático, ou seja, a idéia de que política externa devia se constituir numa matéria
que somente devia ser debatida em todas as suas conseqüências dentro de um hermético
circuito diplomático.
Por último, consolidar-se-ia a formação na imprensa de um circuito de sanção à
política corporativa do MRE através da manipulação do noticiário que talvez nunca
possa ser completamente comprovado por vias documentais, haja vista que Rio Branco
possuía o hábito, registrado em várias circunstâncias por seus biógrafos, de destruir
parte de sua correspondência.
109
Contudo, esse circuito pode ser reconstruído em parte,
por exemplo, pelo estudo de certas iniciativas do período, como as ‘campanhas de
imprensa’, movidas de encontro aos interesses do MRE, como pudemos comprovar em
relação à ‘Grande Missão’ ou ainda durante o ‘Caso Panther’. Mas, nesse sentido, talvez
o indício mais relevante da formação desse circuito seja a própria relevância dada por
Rio Branco, durante os dois episódios citados, à formação de uma ‘influência’ a ser
exercida pelo MRE sobre a imprensa, tanto no Brasil quanto no exterior.
110
Este circuito de sanção à política corporativa seria ainda mais intensificado a
partir da construção do personagem Rio Branco pela imprensa, o qual foi identificado
então tanto com o nacionalismo, no caso, “o anseio de vitória, de expansão, de glória de
um povo jovem”,
111
quanto com a religiosidade, no caso, a capacidade de renúncia, a
predestinação, o desinteresse do mundo terreno. Ainda, a longevidade de Rio Branco no
jogo político da época permitiu que se fizesse a identificação de seu personagem com a
própria idéia da representação do espaço nacional, o que, aliás, era muito do agrado de
Rio Branco. “Eu já fiz o mapa do Brasil” é uma fala que além de lhe ter sido atribuída
mais de uma vez, vai de encontro ao epíteto que lhe foi ofertado em tributo, por um
agradecido Rui Barbosa, seu antigo adversário: o de “Deus Terminus” das fronteiras.
112
Note-se, finalmente, que este personagem foi construído em parte pelo próprio
Rio Branco, utilizando-se para isto da manipulação da notícia, através de seu prestígio
109
Alvaro Lins. Rio Branco (o Barão do Rio Branco): Biografia Pessoal e História Política. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1965, 2ª Edição (revista); Luiz Viana Filho.
A Vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1959.
110
Renato Amado Peixoto. 'As influências recíprocas entre a política externa e a interna - o Caso Panther', Lições de
Relações Internacionais, n° 1, Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2004.
111
Alvaro Lins, Rio Branco (o Barão do Rio Branco): Biografia Pessoal e História Política. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1965, 2ª Edição (revista): p. 474.
112
Luiz Viana Filho, A Vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959, p. 420.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
383
pessoal, como pudemos comprovar anteriormente, ou talvez pelo aliciamento, acusação
que lhe foi constantemente lançada em vida, inclusive no Congresso.
113
A reelaboração do legado de Rio Branco pelo MRE, compreenderia, além da
ampliação destes circuitos, uma transformação da estrutura da corporação, através da
ênfase em uma hierarquização e centralização que na época chegou a ser apodada de
“regime de validismo e abafamento”.
114
Esta transformação da estrutura corporativa
chegou a ser transcrita, sob a orientação de Rio Branco, pelo diplomata José Manuel
Cardoso de Oliveira, na ‘Remodelação dos quadros do Corpo Consular brasileiro’, em
1911. Ainda que a morte de Rio Branco impedisse que esta ‘Remodelação’ fosse
sancionada pelo Congresso, grande parte de suas instruções seria implementada apenas
um ano depois pelo seu sucessor, Lauro Müller, através da ‘Consolidação das leis,
decretos e decisões referentes ao Corpo Consular brasileiro’. Na ‘Consolidação’, por
exemplo, seriam normatizadas as relações dos empregados consulares com os seus
superiores, regulamentadas a disponibilidade e a aposentadoria dos servidores e
estabelecer-se-ia a nomeação, sem exame, dos empregados do MRE, desde que estes
candidatos já fossem habilitados como “doutores ou bacharéis em direito”.
115
Já uma outra iniciativa de Rio Branco destinada a consolidar corporativamente o
MRE insere-se também na reelaboração do legado no IHGB. Esta iniciativa consistia na
recuperação e adaptação de um antigo projeto pessoal de Rio Branco, a organização de
uma ‘História Diplomática do Brasil’. Sob suas ordens, José Manuel Cardoso de
Oliveira também redigiria, entre 1908 e 1911, os ‘Atos diplomáticos do Brasil’, obra em
que juntaria, através de mais de seis mil páginas, todos os acordos internacionais do
Brasil desde o Tratado de Tordesilhas.
Através dessa iniciativa, consolidar-se-ia a idéia da construção de uma ‘História
das Fronteiras’ sob a perspectiva corporativa, a partir da enunciação e descrição dos
tratados e da atuação de seus negociadores. Sintomaticamente, na obra de Cardoso de
Oliveira, cada um dos titulares das Chancelarias foi relacionado junto aos tratados
assinados nas suas gestões, sendo que esta remissão era ainda acompanhada por um
sumário do histórico pessoal daqueles titulares.
113
João Moura Dunshee de Abranches, Rio Branco - Defesa de Seus Atos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1911.
114
Graça Aranha, citado em Luiz Viana Filho, A Vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1959, p. 379.
115
Decreto 10.384 de 06/08/1913, art. 177, 129, 141 e 12.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
384
Neste sentido, a iniciativa coordenada por Rio Branco visava reforçar a idéia da
centralização dos laços corporativos no MRE ao mesmo tempo em que se recriava a
idéia de uma construção do espaço dirigida pelos esforços diplomáticos. Deste modo,
construía-se uma representação do espaço nacional conjugada com a própria
representação corporativa: o projeto pessoal de Rio Branco incorporava uma operação
narrativa que anteriormente já havia sido feita pela Chancelaria portuguesa, quando,
após financiar a impressão dos Atlas do Visconde de Santarém, organizou-se a
publicação da íntegra dos acordos internacionais de Portugal .
116
Esta idéia da construção de uma História Diplomática transitaria do MRE para o
IHGB. Logo no ano da morte de Rio Branco, em 1912, foi publicada pelo MRE a
versão condensada dos ‘Atos diplomáticos’, sendo que, Artur Guimarães de Araújo
Jorge, oficial-de-gabinete de Rio Branco, publicaria no mesmo ano os ‘Ensaios da
história diplomática do Brasil no regime republicano’ e logo depois, em 1914 e 1915, a
‘História Diplomática do Brasil holandês’ e a ‘História Diplomática do Brasil francês’.
Por sua vez, o IHGB também publicaria, em 1916, a ‘História Diplomática do Brasil’,
de autoria de Arthur Pinto da Rocha, na verdade uma transcrição de suas conferências
feitas anteriormente no Instituto. O IHGB ainda consolidaria seu legado institucional
através da criação e manutenção de uma ‘memória’ de Rio Branco, primeiro,
publicando em 1917 sua obra ‘Efemérides brasileiras’ e depois, em 1919, incorporando
o ritual da leitura obrigatória das ‘Efemérides’ ao início de cada uma de suas Sessões.
Seguindo a convergência entre a consolidação corporativa do MRE e a
constituição de um legado institucional no IHGB, surgiria em 1927 a primeira obra de
longo fôlego da História Diplomática, sintomaticamente atendendo a um chamado feito
pelo Instituto, no sentido de se celebrar, através da publicação de diversas obras sobre o
Império, o centenário do nascimento de D. Pedro II em 1925.
O autor da ‘História da Política Exterior do Império’, João Pandiá Calógeras, era
um antigo sócio do IHGB e como vimos, havia sido também um dos maiores
colaboradores de Rio Branco na Câmara dos Deputados. Além disso, Calógeras era
também um dos maiores discípulos e amigos de Capistrano de Abreu, que, por sua vez
também havia participado da intimidade de Rio Branco. Ainda, Capistrano
provavelmente deve ter colaborado nas discussões da ‘História da Política Exterior do
Império’ uma vez que esta obra começaria a ser escrita quatro anos antes de sua morte e
116
Ver nesta tese o capítulo ‘O espelho de Jacobina’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
385
esse diálogo intelectual fazia parte dos hábitos de Calógeras. Deste modo, podemos
compreender como a dupla influência de Capistrano de Abreu e de Rio Branco foi
exercida sobre a ‘História da Política Exterior do Império’ e que esta influência pode ser
depreendida a partir da descrição neste livro de uma expansão das Fronteiras como obra
exclusiva do Estado, sendo ainda ressaltada a pertinência da diplomacia e a importância
do diplomata, substituindo o papel atribuído por Varnhagen aos Bandeirantes. Nesse
sentido, a partir da correspondência de Calógeras com o IHGB, podemos compreender
que o registro dos novos elementos da narrativa constituídos nos Arbitramentos,
antecedeu mesmo ao desenvolvimento do conteúdo histórico da ‘História da Política
Exterior do Império’. Neste caso, por exemplo, já que a intenção de vincular o uti
possidetis aos tratados do século XVIII precedeu mesmo a pesquisa destes, podemos
entender que a História Diplomática foi escrita mesmo em função de consolidar o
registro dos novos elementos da narrativa.
117
A constituição de uma convergência entre o legado institucional no IHGB e a
consolidação corporativa do MRE inclui mesmo certos esforços precoces destinados a
recuperar as discussões anteriores sobre o espaço feitas no Instituto, através de sua
publicação na Revista do IHGB. Deste modo, por exemplo, o ‘Programa geográfico’ e a
‘Vida e os feitos de Alexandre de Gusmão’, de Pinheiro, foram publicadas juntamente
com ‘As primeiras Negociações diplomáticas respectivas ao Brasil’, de Varnhagen, em
1902. Nesse sentido, também o personagem de Alexandre de Gusmão já começaria a
ser recuperado neste período, inclusive, ressaltando-se a incorporação do personagem
de Bartolomeu de Gusmão à sua inscrição. Esta recuperação da incorporação
anteriormente feita por Pinheiro, seria desenvolvida no IHGB através da construção de
uma relação entre Bartolomeu de Gusmão e Santos Dumont, quando se passaria a
apontar aquele padre como o antecessor direto do pioneiro da aviação.
118
Posteriormente, vários outros sócios do IHGB avançariam ainda no propósito de
construir uma História Diplomática e de ligá-la, por sua vez, à historiografia. Nesse
sentido, podemos distinguir, dentre outros, os esforços feitos por Macedo Soares,
escrevendo ‘Fronteiras do Brasil Colonial’, em 1939; Pedro Calmon, escrevendo a
‘História diplomática do Brasil’, em 1941; Hélio Vianna, com a ‘História das Fronteiras
do Brasil’, em 1948; e Teixeira Soares, que redigiu tanto a ‘Diplomacia do Império no
117
Carta de João Pandiá Calógeras para Max Fleiuss, 7/8/1924. IHGB, Lata 342, Pasta 66.
118
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXX parte 2, 1908, p. 765-766.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
386
Prata’, em 1955 quanto ‘História da Formação das fronteiras do Brasil’, uma obra
tardia, em 1970.
Portanto, podemos compreender que se construiu em torno da reelaboração do
legado de Rio Branco e da construção de sua ‘memória’ um circuito corporativo e
institucional e que neste circuito passar-se-ia a partilhar uma gramática que permitia o
entendimento, a colaboração e a cooperação entre todas essas entidades. Esta comunhão
de uma gramática comum propiciaria que a reatualização da inscrição da centralidade
fosse registrada na História Diplomática e que depois essa reatualização fosse
novamente reelaborada por meio de sua inscrição numa ‘Mitologia do espaço nacional’.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
387
A moldura que enquadra a pátria: o circuito de inscrição da Mitologia do espaço
nacional
Fronteira! moldura em que se enquadra a Pátria; zona em que se esbatem as
vibrações que vêm de fora e de onde as ondas de trepidação interna se exaltam;
[...] linha de baluartes vivos que impedem a infiltração de ideologias exóticas, de
credos que não nos pertençam, de expressões carentes de significado nos nossos
sentimentos. [...] A fronteira do Brasil, em qualquer latitude ou longitude, não foge
à sugestão das dos outros países do Ocidente. Há nela qualquer coisa de romance.
Sua própria evolução no curso dos séculos é motivo de encantamento e orgulho.
Castilhos Goycochêa. Fronteiras e fronteiros.
‘Tis the melodious hue of beauty thrown (14)
Athwart the darkness and the glare of pain,
Which humanize and harmonize the strain.
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery
119
Visando entender, num terceiro momento, como os novos termos e o novo
modelo do espaço foram registrados na ‘História das Fronteiras’, buscaremos definir
como o saber do espaço nacional se consolida paulatinamente num circuito de inscrição
de uma nova centralidade.
A ‘Mitologia do espaço nacional’ será construída com a incorporação de
elementos recolhidos das várias gramáticas corporativas e institucionais, que
entendemos como as representações dos interesses corporativos, construídas sobre a
gramática compartilhada. Esta, por sua vez, é a reatualização da ‘visão central’ que se
imbricaria em cada um dos vários lugares de produção, codificação e exteriorização das
representações autônomas destas corporações.
Portanto, conforme pudemos observar, constituiu-se na primeira metade do
século XX, um circuito de inscrição percorrendo as diversas corporações e instituições,
119
'É a suave nuança da beleza arremessada / Contra a escuridão e o clarão da dor, / Que humaniza e harmoniza a
tensão.' — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 14-16.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
388
permitindo que os operadores da ‘Mitologia do espaço nacional’ pudessem
compartilhar os vários espaços corporativos, buscando inscrever através dessa interação
uma representação do espaço nacional capaz de registrar a nova e difusa centralidade.
Assim, podemos observar através da consolidação da História Diplomática até
1945, a inserção daqueles que serão operadores da mitologia em locais onde se
legitimou um ‘saber sobre o espaço’, baseado na História Diplomática e na geopolítica
brasileira, no caso, a Universidade do Brasil (a atual UFRJ) que abrigou Pedro Calmon,
Delgado de Carvalho, Macedo Soares, Hélio Vianna; e a PUC, que abrigou Everardo
Backheuser. Também podemos observar sua inserção no IBGE, onde esse ‘saber sobre
o espaço’, além de ser legitimado, passará a ser utilizado como instrumento de estudo e
de planejamento da política de desenvolvimento regional, no caso, abrigando neste
esforço Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser.
Esta inserção dos operadores da mitologia, somada à cooperação e o
entendimento com o MRE, permitiriam que já em 1936 se consolidasse uma outra
intervenção desse ‘saber sobre o espaço’ na produção historiográfica. Esta intervenção
ocorreria por conta do entendimento a respeito das ‘Normas da Revisão dos textos de
ensino de História e Geografia’, negociadas entre o MRE e o Ministério das Relações
Exteriores da Argentina e chanceladas por Pedro Calmon e Raja Gabaglia,
representando a Universidade. Por estas ‘Normas’, o Governo Federal e os governos dos
Estados não poderiam mais permitir que, nos estabelecimentos públicos de ensino ou
fiscalizados pelo poder público, fossem adotados compêndios de História e Geografia
cujos conteúdos se desviassem dos conceitos de ‘solidariedade’, ‘idealismo’,
‘americanidade’ e ‘veracidade’ entre os dois países.
Segundo as ‘Normas’, os compêndios de História deveriam conter capítulos
referentes às relações de paz e comércio entre o Brasil e as nações estrangeiras,
notadamente as americanas. Também se deveria salientar nestes compêndios “as
tradições de desinteresse e idealismo da nossa política exterior, e a coerência dos seus
sentimentos de conciliação e cordialidade”.
120
Ainda, dever-se-iam destacar no ensino
da História, atitudes, iniciativas e fatos, que visassem formar uma “consciência
americanista da civilização brasileira” e que constituíssem “uma segurança dos destinos
pacíficos do novo mundo.” Estranhamente, no item das Normas destinado à
120
Ministério das Relações Exteriores, Revisão dos textos de ensino de História e Geografia. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1936.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
389
‘veracidade’, considerava-se que nos textos históricos, dever-se-iam excluir
“sistematicamente” os “temas controversos comentários e divagações, limitando-se à
indicação dos fatos.” E mais, quando se tratasse de assuntos internacionais, dever-se-ia
evitar “qualificações ofensivas” e “conceitos que atinjam a dignidade dos Estados e os
seus melindres nacionais.”
Segundo as mesmas ‘Normas’, os compêndios de Geografia deveriam ser
compostos, principalmente, pelas “estatísticas oficiais mais modernas”, no caso,
centralizadas no Instituto Nacional de Estatística e no Conselho Nacional de Geografia,
fundados naquele ano e que seriam reunidos no Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 1938, onde se passaria a centralizar também a pesquisa e a
produção da Cartografia. Ainda, segundo as ‘Normas’, o objetivo central do ensino da
Geografia deveria ser o de estabelecer para os alunos uma “noção aproximada da
riqueza e capacidade de produção dos Estados estrangeiros”,
121
aproximando-se, por
conseguinte, daquele ‘saber sobre o espaço’ que se organizava no circuito de inscrição
da centralidade. Entendemos que este ‘saber sobre o espaço’ que se formou a partir do
conteúdo da narrativa e da ‘História Diplomática’ e nas diversas contribuições dos
lugares de produção corporativos e institucionais, amoldar-se-ia aos poucos sob o
guarda-chuva de uma disciplina que então se pretendia enquadrar como ciência, a
geopolítica.
Nesse sentido, os contributos iniciais da geopolítica de Mahan e da sua
interpretação germânica, feita por Tirpitz, haviam sido disseminados pela elite política a
partir dos interesses corporativos da Marinha, anteriormente apontados, encontrando em
Rui Barbosa e em Rio Branco alguns de seus interpretes.
122
Esses contributos foram
então recolhidos no IHGB e na Universidade, aonde inclusive chegariam a se consolidar
sob a forma disciplinar na PUC, através do esforço de Everardo Backheuser, sendo por
sua vez divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística e pelo Conselho Nacional de
Geografia. Seria através das traduções e pela construção teórica de Backheuser que o
‘saber sobre o espaço’ consolidar-se-ia no Exército em contato com os contributos dos
‘Jovens Turcos’ e da Missão Francesa, sendo assim novamente enformados na
121
Ministério das Relações Exteriores, Revisão dos textos de ensino de História e Geografia. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1936.
122
A respeito do pensamento geopolítico de Rui Barbosa e Rio Branco ver: Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a
influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na política externa do governo Castelo Branco',
Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 38-48.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
390
‘geopolítica brasileira’, cuja primeira grande composição foi a ‘Projeção Continental do
Brasil’, escrita em 1938 por Mario Travassos com a colaboração de Delgado de
Carvalho, por conseguinte, constituindo-se outra construção em ‘ekphrasis’.
123
Podemos, assim, notar o livre trânsito dos operadores da mitologia entre os
diversos locais autônomos de produção, codificação e exteriorização das ‘gramáticas
corporativas’, no caso, do MRE para o IHGB, deste para a Universidade e dali para o
Exército. Este trânsito aumentaria sobretudo pela criação de locais autônomos de
produção de suas representações, a partir de 1945, no caso, o Instituto Rio Branco e a
Escola Superior de Guerra (ESG), o que incrementaria a cooperação entre as
corporações. Deste modo, a produção da nova centralidade constituiria exemplos
dramáticos do trânsito no circuito de legitimação e produção. Por exemplo, José Carlos
de Macedo Soares, que escreveu ‘Fronteiras do Brasil colonial’, foi durante muitos anos
diretor da ‘Liga de Defesa Nacional’, que havia sido fundada pelos ‘Jovens Turcos’,
exerceu duas vezes o posto de Ministro das Relações Exteriores, foi Presidente do
IHGB, Presidente do IBGE e ainda Professor e primeiro Diretor da Faculdade de
Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade do Brasil. Outro destes
exemplos é o de Delgado de Carvalho, que escreveu a ‘História Diplomática do Brasil’,
participou do círculo de Rio Branco quando foi redator da ‘Revista Americana’ junto
com Artur Guimarães de Araújo Jorge, tornou-se palestrante da Escola de Intendência
do Exército a convite de João Pandiá Calógeras, sendo que esta Escola era então
chefiada por simpatizantes dos ‘Jovens Turcos’, foi Professor Extraordinário de Altos
Estudos no IHGB, participou do IBGE, tornou-se depois catedrático de História
Contemporânea da Universidade do Distrito Federal, catedrático de História Moderna e
Contemporânea da Universidade do Brasil e por fim, Professor do Instituto Rio Branco.
Portanto, entendemos que um circuito de inscrição do ‘saber sobre o espaço’ foi
construído a partir da reelaboração corporativa do legado de Rio Branco, desenvolveu-
se a partir de certas iniciativas organizadas no Governo Vargas, mas somente se
consolidou após 1945, quando o ‘saber sobre o espaço’ foi inscrito numa ‘Mitologia do
espaço nacional’.
123
A respeito da produção geopolítica de Backheuser e Mario Travassos ver: Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a
influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na política externa do governo Castelo Branco',
Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 111-130.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
391
A Mitologia do espaço nacional e a consolidação dos locais de reprodução
autônoma no MRE e no Exército
A woman's countenance, with serpent locks, (39)
Gazing in death on heaven from those wet rocks.
Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,
In the Florentine Gallery.
124
Finalmente, num quarto momento, buscaremos entender como as 'gramáticas
corporativas' desenvolvidas a partir da 'História Diplomática' constituir-se-iam, sob a
coordenação do MRE, numa 'Mitologia do espaço nacional'. Entendemos, nesse sentido
que a produção da ‘Mitologia do espaço nacional’ está diretamente relacionada com a
construção das autonomias corporativas do Exército e do MRE, que constituíram, para
isto, locais de produção autônoma das suas representações a partir de 1945.
Compreendemos, ainda, que essa ‘Mitologia do espaço nacional’ será disseminada a
partir do desenvolvimento da cooperação dessas corporações na década de 1950.
A consolidação da ‘Mitologia do espaço nacional’, a partir do ‘saber sobre o
espaço’, se daria no início da década de 1940, quando o grande mantenedor e
centralizador da ‘memória’ de Rio Branco, o IHGB, passaria a planejar a comemoração
do centenário de Rio Branco, que no Instituto seria organizada através de sessões
solenes, contatos com outras entidades e desembocaria na publicação em sua Revista de
todos os textos desenvolvidos por seus sócios sobre a ‘memória’ de Rio Branco.
Por sua vez, o MRE acompanharia o planejamento dessa comemoração,
convidando Álvaro Lins, ainda em 1940, para escrever a primeira biografia oficial de
Rio Branco, “que se destinava a torná-lo mais conhecido e compreendido”,
125
franqueando-lhe seu Arquivo e disponibilizando outros recursos. Nesta obra, Álvaro
Lins, antigo professor de geografia e ‘civilização brasileira’, enfatizaria o papel de Rio
Branco para a ‘construção da pátria’ através do esforço da ‘retificação das fronteiras’
obtido por uma ‘renúncia à vida pessoal’.
124
Nossa tradução: ‘Um semblante de mulher, com cachos de serpente, / Daquelas rochas úmidas, contemplando na
morte, o paraíso.' — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 39-40.
125
Alvaro Lins. Rio Branco (o Barão do Rio Branco): Biografia Pessoal e História Política. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1965, 2ª Edição (revista): p. XVI.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
392
Esta reelaboração do personagem de Rio Branco seria ainda endossada por Artur
Guimarães de Araújo Jorge em ‘Rio Branco e as Fronteiras do Brasil’, escrita como
introdução à ‘edição completa’ das ‘obras’ de Rio Branco, promovida pelo MRE. Neste
livro, o antigo auxiliar de Rio Branco lembraria de seu chefe como o “cidadão que
consagrou a existência inteira a serviço de sua terra, legando soberba e luminosa lição
de patriotismo” que assume o “caráter augusto dum símbolo vivo da própria pátria”,
“sem guerra nem conquistas” por meio do “segredo das vitórias diplomáticas”.
126
Portanto, por conta das iniciativas em torno das comemorações do centenário de
Rio Branco, empreendia-se uma releitura do personagem que fora construído no início
do século, relacionando-a com a consolidação corporativa e com antigos elementos
desenvolvidos por Ribeiro, como, a desvinculação do Estado Brasileiro em relação ao
expansionismo português.
Contudo, se não tivesse havido paralelamente a constituição e cooperação dos
locais de produção autônoma das representações do MRE e do Exército sobre uma
gramática compartilhada, esta reelaboração do personagem Rio Branco teria levado
apenas a uma formação mitológica semelhante a que foi feita em torno de Caxias, onde,
provavelmente enfatizar-se-ia o legado corporativo por meio da constituição de uma
relação de gemeidade entre Rio Branco e seu pai, o Visconde de Rio Branco, construção
que chegou a ser ensaiada ainda pelo próprio Rio Branco (ver Figura 39 no final deste
capítulo).
A constituição de um lugar de produção autônoma de representação no MRE
remete ao ano de 1944, quando Jaime Cortesão, refugiado da ditadura salazarista,
principia o curso de História da Cartografia do Brasil e História da formação territorial
do Brasil, desdobrados ainda, no ano seguinte nos cursos de Geografia das Fronteiras do
Brasil e Mapoteconomia, que tinham como objetivo inicial a formação de funcionários
para o Arquivo do MRE. No entanto, o sucesso deste curso fez com que servisse como
um ensaio para a instalação do que na época começou a ser chamado de ‘Instituto Barão
do Rio Branco’ e que devia se destinar “ao preparo e aperfeiçoamento crescente da
mocidade com destino à diplomacia, às atividades consulares, às econômicas e
comerciais, e às culturais, na vida de relação da nação brasileira”.
127
126
Artur Guimarães de Araújo Jorge. Rio Branco e as fronteiras do Brasil (uma introdução às obras do Barão do Rio
Branco). Brasília: Senado Federal, 1999, p. 7.
127
‘Memorando do Serviço de Documentação do MRE’, de 04/05/1944, citado em Isa Adonias. Jaime Cortesão e
seus mapas. Rio de Janeiro: s. n., 1984, p. IX.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
393
Por conta da abrangência desses objetivos, o curso de Jaime Cortesão seria
franqueado, independentemente de inscrição, aos “funcionários ou pessoas ligadas a
serviços federais ou estaduais e instituições cujas atividades se relacionassem com as
matérias lecionadas”. Esta característica seria continuada mesmo após Cortesão ter
deixado o Brasil em 1953, continuando-se assim a formar o pessoal oriundo de outras
instituições, disseminando-se o ‘saber sobre o espaço’ condensado por Cortesão.
Nesse sentido, Jaime Cortesão foi o pioneiro do estudo sistemático e cronológico
da cartografia, ou como ele preferia, da ‘Cartologia’ no Brasil, já que entendia que os
mapas deveriam ser utilizados metodologicamente na interpretação e esclarecimentos de
fatos e momentos históricos. Por conseguinte, seriam desenvolvidas nos cursos de
Cortesão, segundo essa perspectiva, as interpretações dos seguintes problemas: os
fundamentos geográficos e pré-históricos do Estado brasileiro; as antigas interpretações
do Meridiano de Tordesilhas; a influência da geografia nas relações entre África, Brasil
e Portugal; a manipulação da cartografia pelos portugueses visando, com isso, ampliar o
território brasileiro; o avanço dos Bandeirantes no século XVII; a intercomunicação das
bacias platina e amazônica; a penetração portuguesa no vale amazônico; as fontes
cartográficas do Mapa das Cortes; e a presença dos ‘padres matemáticos no Brasil’.
128
Portanto, o Curso de Cortesão compreendia tanto o ‘saber sobre o espaço’
consolidado na História Diplomática como também incluía neste as preocupações de
ordem da ‘geopolítica brasileira’ juntamente com interesses próprios, relacionados com
a construção de uma ‘memória’ das glórias do passado português. Nesse sentido,
Cortesão casaria esta ‘memória’ das glórias do passado português com a idéia de
‘momento’ de Ribeiro e sua iniciativas anteriores no MRE, visando consolidar na
corporação a sua ‘Mitologia do espaço nacional’.
Com a abertura do ‘Instituto Rio Branco’ em 1946, o curso de Jaime Cortesão,
foi transformado em disciplina obrigatória do curso destinado à formação de
diplomatas, juntamente com a geopolítica de Everardo Backheuser, o que, no caso,
relacionaria diretamente as duas construções teóricas com a reelaboração do
personagem de Rio Branco. Deste modo, Rio Branco foi nomeado por Backheuser
como o primeiro “geopolítico” brasileiro, entendendo que a originalidade de seu
pensamento era constituída pela caracterização das fronteiras, pelo interesse na Viação,
pelo foco no reaparelhamento das Forças Armadas e por uma utilização da
128
Isa Adonias. Jaime Cortesão e seus mapas. Rio de Janeiro: s/editor., 1984, p. XI-XV.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
394
argumentação do uti possidetis capaz de definir uma ligação do homem à terra pela
ocupação.
129
Por sua vez, se a reelaboração do personagem de Rio Branco foi adensada pela
idéia de Backheuser, este autor seria também endossado por Jaime Cortesão, que
instituiria a geopolítica já no século XVI, norteando as decisões do Estado português e a
constituição do território desde o início da ocupação. Veja-se por exemplo este excerto
da sua aula do curso de Cartografia Política do Brasil em 1945:
Após a última bandeira de Raposo Tavares que, em meados do
século XVII, revelava a imensa profundidade dos territórios inocupados na
América do Sul, aos lusos e luso-brasileiros apresentava-se como da maior
urgência a ocupação de posições estratégicas essenciais, como afirmação da
soberania sobre a Ilha-Brasil.
130
Baseando-se nos textos de Pedro Calmon, Jaime Cortesão construiria a idéia de
que a conquista do território pelos portugueses fora precedida por uma estratégia
apoiada no esquadrinhamento do território e da sua ocupação, e que a diplomacia,
sempre a diplomacia, orientava e mantinha esse processo. Cortesão endossava assim,
com novos elementos, a idéia original da História Diplomática, consolidando
corporativamente o MRE através de seu remetimento a uma ‘tradição diplomática’ que
podia ser perfeitamente delineada e delimitada por essa mesma História. Esta idéia da
‘tradição diplomática’ foi constituída por Jaime Cortesão através de seu encadeamento
com a figura do diplomata e de um sentido de nacionalidade precoce, ambos enfeixados
na figura de Alexandre de Gusmão. Já em 1945, baseando-se na obra ‘Limites do
Brasil’, escrita por Hildebrando Accioly em 1938, Jaime Cortesão sugeriria que “quem
porém mais concorreu para o resultado a que se chegou com o Tratado firmado em
Madri [...] parece ter sido o famoso estadista e diplomata brasileiro que se chamou
Alexandre de Gusmão”.
131
129
Everardo Backheuser. ‘Rio Branco, geógrafo e geopolítico’ in Revista da Sociedade de Geographia do Rio de
Janeiro. LII. 5-29: Rio de Janeiro, 1945, p. 5-29.
130
Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil do Instituto Rio
Branco’, aula de 24/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.
131
Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil do Instituto Rio
Branco’, aula de 30/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
395
Para isso, Gusmão teria tido a “intuição” de que através do enlace entre os rios
Paraguai e Madeira se formaria uma “gigantesca unidade geográfica formada pelos dois
Estados do Brasil e do Maranhão” e que este enlace seria a “condição essencial para a
integração do território num sólido bloco.” Por conseguinte, a preocupação fundamental
de Alexandre de Gusmão durante a negociação do Tratado teria sido a de “garantir uma
personalidade orgânica e viável à porção compartilhada e a estabilizar ainda pela
individuação americana”, sendo que este mesmo diplomata tinha já em “mente o
advento próximo do Brasil livre”.
132
Deste modo, Cortesão entendia que Alexandre de Gusmão pretendia através do
Tratado, “dar fundo grande e competente” ao Brasil e “arredondar e segurar o país”,
sendo para isto necessário que fossem partilhadas tanto a Bacia Amazônica quanto a
Bacia do Prata, realizando territorialmente o que denominaria de ‘Ilha-continente’ ou
‘Ilha Brasil’, destacada do resto da América mas unida pela ligação entre essas duas
bacias existente no interior do Brasil. Assim, o Tratado de Madri seria uma operação
realizada por Alexandre de Gusmão visando, ao mesmo tempo, dar viabilidade orgânica
ao Brasil e estabilizar sua soberania com a utilização do uti possidetis. Estas afirmações,
segundo Cortesão, podiam ser comprovadas por uma nova e inédita documentação que
estava em seu poder, a qual “patenteava, sem a menor dúvida” que a criação
diplomática e científica do Tratado de 1750 teria pertencido a Alexandre de Gusmão.
Para isto, Alexandre de Gusmão teria se utilizado do conhecimento geográfico
superior que teria sido adquirido pelos ‘padres matemáticos’, os quais já tinham sido
enviados anteriormente para o Brasil de acordo com a antiga estratégia portuguesa do
esquadrinhamento do território, garantida por uma grande superioridade científica sobre
os espanhóis. Assim, o Mapa das Cortes, esboço do Tratado de Madri, teria sido
propositadamente adulterado por Gusmão, possibilitando-se, com isso, induzir os
Espanhóis a cederem todo o território necessário para a ‘constituição orgânica do Brasil
livre’.
133
Portanto, a construção narrativa feita por Rio Branco durante os Arbitramentos
foi retomada por Cortesão, utilizar-se-ia do mesmo método argumentativo centralizado
em torno da ‘prova cartográfica’, legitimado pelo ‘Processo de Arbitramento’, no caso,
132
Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil do Instituto Rio
Branco’, aula de 6/09/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.
133
Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil’ do Instituto Rio
Branco, aula de 30/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
por meio do recurso ao chamado ‘Mapa das Cortes’. Note-se que, quando Jaime
Cortesão se refere à obra que baseou sua construção historiográfica, ‘Limites do Brasil’,
ele utiliza nessa referência a argumentação retórica da autoridade, a saber: “Um mestre
do Direito Internacional, Hildebrando Accioly, escreveu [...]”.
134
Entretanto, ao basear essa construção mitológica do espaço nacional sobre a
idéia de uma composição cartográfica do gênio de Alexandre de Gusmão, Cortesão
elide duas circunstâncias: a primeira é a de que não havia apenas um ‘Mapa das Cortes’,
mas vários, cada qual com uma composição diferente, sendo que o mapa composto
pelos espanhóis (ver Figura 36) era ainda mais benéfico a Portugal do que o que teria
sido composto por Gusmão (ver Figura 35).
FIGURA 35 - MAPA DAS CORTES (PORTUGUÊS)
Detalhe do Mapa das Cortes. Fonte: Biblioteca Pública do
Porto.
A segunda circunstância elidida por Cortesão em sua construção mitológica é a
de que o Mapa das Cortes utilizado por Rio Branco não foi aquele composto pelos
portugueses, mas o que havia sido composto pelos espanhóis (Figura 36), o que
novamente invalidaria a ‘prova cartográfica’ de Cortesão, descaracterizando as idéias da
expansão territorial e da consolidação do espaço desde Tordesilhas.
396
134
Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil’ do Instituto Rio
Branco, aula de 30/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Enquanto a construção mitológica de Backheuser e Cortesão consolidava-se no
Instituto Rio Branco, Hélio Vianna começaria a ministrar em 1947, na Escola de Estado
Maior do Exército, um curso sobre a História das Fronteiras que já no ano seguinte seria
publicado pela Biblioteca Militar. A ‘História das Fronteiras’ de Hélio Vianna tornar-se-
ia a primeira obra na qual se estabeleceria uma continuidade plena da História
Diplomática e seu envolvimento com a História Pátria na qual se priorizava as ações do
Estado na preservação da pátria, juntando-as desde as negociações do Tratado de
Tordesilhas até a política externa da República.
FIGURA 36 - MAPA DAS CORTES (ESPANHOL)
Cartografia: Renato Amado Peixoto - Esboço de u
m
detalhe do Mapa das Cortes. Fonte: José Maria da Silv
a
Paranhos Jr., "Atlas," Second Memoire présente par les
État-unis du Brésil au Gouvernement de la Confédératio
n
Suisse, Tome VI, Paris: A. Lahure, Imprimeur-éditeur,
1899.
Esta construção da História Diplomática atendia então aos interesses
corporativos do Exército, que visava consolidar sua representação enquanto
‘mantenedor do corpo da pátria’, pela defesa das fronteiras ameaçadas, bem como o de
‘garante da integração nacional’, pela sua participação no processo de ocupação do
território e defesa do Estado, que o Exército endossava plenamente. Logo, Hélio
Vianna, que já era membro da ‘Comissão de Estudo dos Textos de História do Brasil do
MRE’, também seria incorporado ao Instituto Rio Branco como professor em 1950,
quando desenvolveria sua ‘História das Fronteiras’ num curso de História Diplomática
destinado ao aperfeiçoamento dos diplomatas.
397
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
398
A partir do interesse demonstrado no Instituto Rio Branco pela conexão evidente
entre a construção mitológica de Hélio Vianna e a de Jaime Cortesão, este último seria
convidado pelo MRE para escrever uma obra que vinculasse Alexandre de Gusmão ao
Tratado de Madri e que se adequasse a assinalar as passagens tanto do segundo
centenário do Tratado quanto do falecimento de Gusmão.
Deste modo, Jaime Cortesão escreveria ‘Alexandre de Gusmão e o Tratado de
Madri’ inscrevendo na ‘Mitologia do espaço nacional’ o personagem de Alexandre de
Gusmão através da ênfase em sua obra de “definição geográfica do Brasil” através do
Tratado de Madri, construindo-lhe um “corpo viável”, insuflado “da consciência do
espaço próprio e de seus limites legítimos e inalienáveis”. Esta obra somente seria
possível pela renúncia de Alexandre de Gusmão à sua vida pessoal, doravante
consagrada ao serviço de sua terra, o Brasil, no que ser tornar-se-ia seu “anjo tutelar”
velando pela saúde e segurança do “moço gigante” que caminhava, “ainda titubeante
para sua independência”. Assim, a constituição do personagem de Alexandre de
Gusmão por Jaime Cortesão seria feita pelo patriotismo, pelo pacifismo, por uma
genialidade impressa no “segredo” de suas vitórias diplomáticas e, sintomaticamente,
por sua capacidade “geográfica e geopolítica”.
135
Portanto, se voltarmos à construção conceitual de Schelling, fecha-se com esta
obra de Jaime Cortesão os termos que constituem a “Mitologia do espaço nacional”,
inicialmente, através da eleição de personagens reais para seus protagonistas, no caso,
Rio Branco e Alexandre de Gusmão, ambos delimitados por potenciais e identificados
por qualidades que afirmam a organização de um ‘mundo mitológico’. A seguir, estes
personagens formaram através dos termos da narrativa mitológica, uma ‘totalidade
entre si’ capaz de determinar o ‘mundo mitológico’, no caso, com Alexandre de
Gusmão ‘definindo o espaço brasileiro’ e Rio Branco ‘retificando suas fronteiras’.
Depois, foi também determinada uma ‘relação de dependência’ constituída pela
afirmação de uma gemeidade entre os dois protagonistas, tanto por uma ‘relação de
geração’, na qual a atuação de Rio Branco seria determinada pela atuação anterior de
Gusmão, quanto através das qualidades compartilhadas como o pacifismo, o patriotismo
e a religiosidade. Finalmente, o mundo da atuação desses protagonistas da narrativa
mitológica passaria ainda a somente poder ser interpretado através da criação sobre o
próprio ‘mundo mitológico’, no caso, restrito por um ‘saber sobre o espaço’ agora
135
Jaime Cortesão, O Tratado de Madrid v.1. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 9-11.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
399
encerrado na História Diplomática e na geopolítica brasileira, cuja enunciação passou a
pertencer a certos locais bem demarcados pelo circuito de inscrição da centralidade.
Por conseguinte, ainda que entendamos estarem constituídos os termos da
‘Mitologia do espaço nacional’ deve-se salientar que seu registro na geopolítica
brasileira e na História Diplomática e sua disseminação na historiografia dependeriam
de uma colaboração bastante estreita entre o MRE e o EMFA. Nesse sentido, a
publicação em 1958 da ‘História Diplomática do Brasil’ de Hélio Vianna seria um dos
elos que demonstrariam essa colaboração, já que esta obra incorporava as contribuições
de seu curso na Escola de Estado Maior ao conteúdo da disciplina ministrada no
Instituto Rio Branco. Do mesmo modo, certas disciplinas ministradas na Escola de
Comando e Estado Maior do Exército (ECEME) já eram muito semelhantes às
ministradas no Instituto Rio Branco, como por exemplo, quando comparamos o exame
da ementa da disciplina ‘Geografia’ do Instituto Rio Branco com a ementa da disciplina
‘Geopolítica’ da ECEME. As únicas diferenças entre as duas disciplinas é que, enquanto
no Instituto Rio Branco se enfatizavam as teorias geopolíticas de Ratzel, Mackinder,
Kjellén e Haushofer, e o estudo destas teorias sobre certas regiões, como, a URSS, os
Estados Unidos e o Prata, na ECEME trocava-se o estudo das teorias de Mackinder
pelas de Mahan e Spykman, preferindo-se o enfoque dessas teorizações sobre os
continentes.
136
Na verdade, a cooperação entre o MRE e o Estado Maior do Exército já vinha
sendo constituída desde 1948, quando se passou a tratar, nesta última entidade, da
organização de um Estado Maior geral, que reunisse todas as Corporações militares. Ao
mesmo tempo, pensava-se que este Estado Maior Geral deveria possuir um instituto que
desenvolvesse e divulgasse o pensamento dessa nova corporação militar. Por
conseguinte, a cooperação entre o Exército e o MRE se tornaria ainda mais prestigiada a
partir da consolidação desses objetivos no novo instituto, a ESG.
Neste sentido, utilizaremos como exemplo uma comparação entre o quantitativo
de diplomatas do MRE em 1971 e o número destes que haviam cursado a ESG até esse
mesmo ano. Inicialmente, podemos observar que os ex-alunos da Escola Superior de
136
A respeito do conteúdo das disciplinas de Geografia e Geopolítica no Exército ver, por exemplo Álvaro Cardoso,
‘Geografia e História Militar na Aman’ in A Defesa Nacional, nº 522, Janeiro de 1958; João Batista Magalhães,
‘Sobre os fundamentos para o estudo dos aspectos militares da Bacia do Prata’ in
Revista Militar Brasileira, tomo
I-II, nº 49, Janeiro / Junho de 1949. Em relação à comparação entre esses conteúdos e sua importância ver.Renato
Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na política
externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 203-204.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
400
Guerra compunham apenas 6,7% do quantitativo de diplomatas, entretanto, destes
foram escolhidos mais da metade dos diplomatas que exerceram o cargo de ministro
efetivo ou interino das relações exteriores após o ano de 1964. Este número se torna
ainda mais significativo se consideramos que apenas 0,5% do mesmo quantitativo de
diplomatas havia escolhido freqüentar o ISEB e se consideramos que o posto de
Ministro das Relações Exteriores não era privativo de funcionários de carreira, sendo
que, desde o Império, quase sempre se preferiram políticos para ocupar esse posto.
A partir destes dados iniciais, podemos indicar algumas conclusões que dizem
respeito à consolidação da ‘Mitologia do espaço nacional’ no século XX: em primeiro
lugar, a importância que foi atribuída à freqüência na ESG para o preenchimento dos
principais postos no MRE durante os Governos militares.
Ainda, se em lugar destes dados do período 1964-1971 utilizarmos os dados do
período que vai de 1950 até 1964, e focarmos a função de ministro interino, privativo
dos funcionários de carreira, podemos notar que 33% dos que exerceram a função já
haviam cursado a ESG. Observe-se que este total não inclui aqueles que fizeram o curso
da Escola Superior de Guerra após terem exercido a função, o que se fosse calculado,
elevaria ainda mais nosso percentual. Note-se que estes diplomatas foram pinçados de
um universo proporcionalmente menor, uma vez que os dados disponíveis para 1959
apontam que apenas 4,69% dos diplomatas haviam cursado a ESG até então. Por
conseguinte, podemos concluir que esta formação, já era considerada importante para a
ascensão funcional no MRE desde a década de 1950.
Notaremos ainda que o quantitativo de diplomatas dentre os alunos da ESG caiu
abruptamente após 1959: se compararmos o período 1950-1959 com o período 1960-
1969, podemos observar que 69% do total de diplomatas que cursaram a Escola
Superior de Guerra o fizeram nos primeiros dez anos de sua existência, caracterizando-
se uma queda de 55,3% na sua freqüência durante o segundo período. Deste modo,
podemos concluir que as oportunidades oferecidas pelo título obtido nesta escola junto à
hierarquia do MRE continuaram estáveis ou aumentaram. Observe-se nesse sentido, que
a definição da distribuição relativa do quantitativo anual das vagas da ESG para cada
um dos ministérios era uma atribuição do comandante da Escola Superior de Guerra,
que ainda deveria ser depois homologada pelo EMFA. Por outro lado, o preenchimento
das cotas disponibilizadas era responsabilidade da direção de cada órgão ou instituição,
no caso, os diplomatas que cursaram a ESG o fizeram por designação do próprio
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
401
Ministro das Relações Exteriores.
137
Poderíamos, ainda ficar tentados a apontar, a partir
dos dados anteriores, para uma perda relativa do prestígio do MRE junto a ESG, mas,
devemos considerar que, desde 1953, com a chegada de Juarez Távora ao Comando da
Escola Superior de Guerra, houve um decréscimo progressivo nas vagas oferecidas para
os funcionários do Estado, atingindo diplomatas e militares praticamente na mesma
proporção, em razão de um aumento cada vez maior nas vagas oferecidas para a
sociedade civil.
138
Portanto, a cooperação entre o MRE e o Exército pode ser entendida
a partir de uma reunião dos interesses corporativos na Escola Superior de Guerra que
resultaria no incremento à preferência dos funcionários de carreira para ocupar o posto
de Ministro.
No caso do Exército, estes interesses corporativos podem ser ainda remetidos ao
período anterior à constituição do Estado Maior Geral, em 1946, pois já se pensava
então em se criar uma entidade que congregasse tanto o Exército quanto a Marinha, e
que, ao mesmo tempo, fosse um lugar de pensamento dos problemas brasileiros. Atrás
da divulgação e desenvolvimento desse pensamento, havia o interesse corporativo de
consolidar o papel das Forças Armadas enquanto ‘educadora das massas’ e como ‘fator
de união nacional. Seria inclusive a partir desse esboço de uma representação da união
das Forças Armadas que se difundiriam, do Clube Militar e sob a liderança de Castelo
Branco, os ‘Centros Militares de Estudo’, um movimento que se confundiu com a
organização da Escola Superior de Guerra a partir de seus congêneres estrangeiros.
139
A partir do que vimos no caso do MRE, entendemos que seus interesses
articular-se-iam com os do Exército no sentido de tornar possível um aumento do
prestígio dessas corporações e de sua influência sobre o Estado, o que explicaria tanto a
relativa autonomia do MRE durante os Governos Militares quanto uma construção
compartilhada da política externa no âmbito da ESG. Nesse sentido, a Reforma do MRE
137
As fontes são os Relatórios de Pessoal do MRE dos anos 1950-1971 e as Relações de Formandos da Escola
Superior de Guerra entre 1950 e 1971, ver: Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica
brasileira e da Escola Superior de Guerra na política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado
em História, UERJ, 2000, p. 198-199.
138
Conforme dados tabelados pela prórpria Escola Superior de Guerra em 1961 e disponíveis nessa instituição in
Escola Suoerior de Guerra,
Informações Gerais, 1961. Ver Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da
geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na política externa do governo Castelo Branco', Dissertação
de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 263-264.
139
Note-se nesse caso, que a criação da Escola Superior de Guerra não foi um mero decalque do ‘National War
College’, mas uma construção verdadeiramente híbrida, que privilegiou o pensamento militar anterior. Ver Renato
Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na política
externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 151-166.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
em 1952, já seria planejada a partir da Escola Superior de Guerra, em uma iniciativa que
reuniu diplomatas, militares e políticos, tais como: Jorge Emílio de Sousa Freitas,
Golbery do Couto e Silva, Heitor Almeida Herrera, Vasco Leitão da Cunha, Cordeiro de
Farias, Arízio de Vianna, San Thiago Dantas, Hermes Lima, Rômulo de Almeida,
Roberto Campos e Azeredo da Silveira. Nesta reforma se enfatizaria sobretudo a
importância da política externa para a condução do Estado, entendendo-a como “um
instrumento de suprema relevância para a consecução dos objetivos nacionais”, com a
subseqüente necessidade de se estabelecer um lugar de “planejamento da política
externa”, no caso, deveria ser preenchido pela Escola Superior de Guerra, consolidando-
se, assim, um ‘saber sobre o espaço’ enfeixado na geopolítica. Nesta Reforma, pensava-
se, inclusive, em adensar o papel do MRE a partir das muitas afinidades que se
entendiam haver com a corporação militar, no caso, como o ‘planejamento da política
externa’ dependeria, em grande parte, da “Informação Estratégica”, dever-se-ia
constituir no MRE tanto um serviço de interpretação das informações quanto uma rede
de coleta de elementos informativos, quer no exterior, mediante o serviço diplomático,
quer na própria sede da Secretaria de Estado das Relações Exteriores.
140
FIGURA 37 — EXEMPLO DE NARRAÇÃO MITOLÓGICA
Fonte: Álvaro Teixeira Soares, História da formação das fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército
Editora, 1973.
402
140
Conforme Vasco Leitão da Cunha, ‘O Planejamento da Política Externa’, trabalho de curso, ESG, 1953. Ver
Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na
política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 202-203.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
403
Portanto, entendemos que a articulação corporativa entre o MRE e o Exército se
estabeleceu ainda na década de 1950 e foi incrementada a partir da ascensão do Regime
Militar, quando a ‘Mitologia do espaço nacional’ seria ligada à geopolítica brasileira e à
História Militar e divulgada a partir da Escola Superior de Guerra e da ECEME (ver
Figura 37). Por sua vez, o MRE manteria também, através do Instituto Rio Branco e de
outras entidades a ele ligadas, a capacidade de inscrever continuamente esse ‘saber
sobre o espaço’ através da História Diplomática e de várias outras iniciativas que se
destinavam a manter aberto o circuito de inscrição da nova centralidade, inclusive
através das universidades públicas e privadas.
141
Por fim, a divulgação desses produtos
permitiria que a ‘Mitologia do espaço nacional’ fosse disseminada, a partir dos esforços
desse mesmo circuito, consolidando-se na produção historiográfica e nos compêndios
de História e Geografia.
O Medalhão dos Paranhos e o espelho de Nietzsche
O mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a
ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer —,
conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento.
E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu
espelho?
Nietzsche. A Vontade de Potência.
142
Como última exploração deste nosso trabalho resta-nos enveredar, ainda que
brevemente, pelo problema que o iniciou e cruzou em todos os nossos capítulos, a
questão do poder enquanto representação, problematizando-a novamente em relação à
‘Mitologia do espaço nacional’ .
Deleuze, referindo-se a Foucault, apontou que uma de suas descobertas mais
importantes é a de que não é o esquecimento que se opõe à memória, mas sim o
141
Veja-se, por exemplo, o recente trabalho de Synesio Sampaio Góes, produzido no âmbito do Instituto Rio Branco:
Synesio Sampaio Goes,
Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas: Aspectos da descoberta do Continente, da
penetração do território brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amazônia. Brasília:
IPRI, 1991.
142
Friedrich Nietzsche, ‘O Eterno Retorno’ in Os Pensadores - Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 1066-
1067.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
404
‘esquecimento do esquecimento’, “que nos dissolve no lado de fora e que constitui a
morte”. Segundo Deleuze, o grande mérito de Foucault seria entender que este
‘esquecimento do esquecimento’ não é uma intencionalidade nem “uma experiência
selvagem que deixa-ser a coisa através da consciência”, mas, que antes remete a uma
‘linguagem’ e a um “ser-linguagem” que a experimenta e a define. O ‘esquecimento do
esquecimento’ seria então uma outra possibilidade da experimentação do ‘ser-
linguagem’ que tanto preserva o passado na memória como um estímulo para o
recomeço quanto através do esquecimento impossibilita seu retorno. Na verdade, o
‘esquecimento do esquecimento’ implicaria numa quebra da dobra da subjetividade que,
girando de encontro ao passado, constitui-se no ponto de contato entre a memória e o
esquecimento: rompida esta dobra, elide-se assim, de uma só vez, o esquecimento e a
memória.
143
Nesse sentido, entendemos que este ‘esquecimento do esquecimento’ referido
por Deleuze está relacionado com o nosso problema da elisão das ‘relações de
soberania’ e da construção do silêncio epistemológico pela cartografia e pela corografia,
uma vez que esta relação evidencia tanto uma linguagem e uma gramática da
representação do espaço quanto o lugar dessa representação. Como este lugar se
constituí e se articula a partir das relações de força que elaboram continuamente a
memória e suas representações, institui-se, assim, a urgência de uma investigação sobre
os espaços do tempo, ou seja, sobre suas construções e suas reelaborações, e requer que
o esquadrinhamento da memória esteja umbilicalmente conectado ao estudo de suas
representações. Nesse sentido, entendemos que essas representações perdem suas
forças desde que desconectadas do ‘ser-linguagem’ e de seu lugar: desde que deixe de
ser alimentada de seus restos, a representação se assemelha aos antigos deuses que ao
serem novamente invocados já não são mais capazes de realizar seus antigos prodígios -
— são apenas espectros resgatados do esquecimento. Deste modo, um lugar do tempo,
conectado às suas representações, torna-se também sujeito da investigação já que a
memória é apenas o incenso queimado junto ao panteão de representações que se
encontram na dobra da subjetividade: aceso seu turíbulo recuperam-se as velhas
sombras para deleite dos ainda vivos, apagado aquele, as sombras mergulham, sem
pena, de volta na noite mais longa.
143
Gilles Deleuze, Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 115-117.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
405
Por conseguinte, Espaço e Tempo estão umbilicalmente ligados nessa esta
relação entre memória e esquecimento, a qual Foucault entenderia poder melhor
trabalhar a partir do conceito nietzscheano de força, a saber, enquanto poder, vontade de
potência, necessidade de representação, para que se pudesse assim redescobrir os
limites da subjetividade e, por conseguinte, se poder reconstruir um entrelaçamento
entre o visível e o enunciável, em outras palavras, reconstruir a linguagem, a gramática,
a sintaxe do ‘ser-linguagem’ que se representa e se objetiva num lugar. A crermos em
Nietzsche, a reconstrução desse ‘ser-linguagem’ deve ser pensada a partir de uma
entrevisão do seu mundo enquanto “grandeza de força e como número determinado de
força”, onde cada combinação de elementos pode então ser usada e alcançada infinitas
vezes.
144
Portanto, a representação não deve ser entendida fenomenologicamente, mas
epistemologicamente, cabendo, pois, nessa investigação, ultrapassar um campo de
forças difusas e divergentes, rastrear, pesar, sentir as palavras do ‘ser-linguagem’,
entender a representação através de seus experimentos e de suas definições,
localizando-a para que se possa, então, compreender o seu momento. Recolocar-se-ia,
desta maneira, a questão da subjetividade na investigação dos lugares de memória, que
necessitariam ser entendidos tanto como lugares do entrecruzamento de forças, de
resistências e de sobrevivências, quanto como participantes da narrativa, elaborando
uma gramática e uma linguagem, por conseguinte, como representações que também se
transformam e desaparecem. Enfim, recoloca-se a importância da investigação da
linguagem e da gramática porque estas determinam a espacialidade da representação, o
lugar do tempo e o olhar do investigador.
Nesse sentido, no espelho de Nietzsche o “mundo” se mostra numa
monstruosidade de força que não se consome mas apenas se transmuda, como um mar
eternamente mudando, eternamente recorrente, onde a ‘memória’ e o sujeito são agora
possibilidades infinitas, onde o ‘esquecimento do esquecimento’ pode retornar
tempestuoso e ondulante após a vazante, embora possa estar perdido, elidido das
representações, mesmo que não faça mais nenhum sentido para nós, que tendo lidado
por tanto tempo com alegorias, nos tornamos também uma delas.
145
144
Friedrich Nietzsche, ‘O Eterno Retorno’ in Os Pensadores - Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 1067.
145
Friedrich Nietzsche, ‘O Eterno Retorno’ in Os Pensadores - Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 1067.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
FIGURA 38 - REPRESENTAÇÕES ROMANAS DA MEDUSA (SÉCULOS II-III D. C.)
406
Assim como a Medusa, que deixa de ser registrada como uma figura ameaçadora
para se tornar uma imagem sorridente e bonachona (ver figura 38), o que foi ‘esquecido
pelo esquecimento’ também perde sua força com o passar do tempo, mergulhando num
morno desvanecimento, mas, seu retorno, sua reelaboração, sua transfiguração, pode ser
entrevista no espelho de Nietzsche. Por conseguinte, esse espelho se assemelharia ao
escudo com que Perseu pôde vislumbrar a Medusa sem ser afetado por sua visão e que
impediu que seus caracteres fossem nele gravados, reproduzindo-se por uma suspensão
do pensamento que absorve a “suave nuança da beleza” e que esconde a deformação
moldando uma ‘Máscara da Medusa’. Ora, por conta deste ‘esquecimento do
esquecimento’ coabitaria em nossas representações um duplo, uma força que se agitaria
por detrás da memória, uma força viva que só conseguiria se fazer representar pela
crueldade, já que sua evocação não alcança mais nossa sensibilidade.
Nesse ponto, o exame do ‘Medalhão dos Paranhos’ (Figura 39) nos move em
direção a um reexame da ‘Mitologia do espaço nacional’: o ‘Medalhão’ não é apenas a
representação apócrifa de uma possibilidade de construção da narrativa mitológica que
foi remetida ao esquecimento pelas transformações e experimentações da ‘Mitologia’. O
‘Medalhão’ não representa apenas uma tentativa malograda de construção mitológica
em torno dos personagens do Visconde do Rio Branco e do seu filho: é também uma
representação viva e incensada, a continuidade de uma ‘linguagem’ e de um
‘gramática’ da representação do espaço, possuindo um duplo que se movimenta através
e de encontro a um lugar de representação.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
Nesse sentido, podemos finalmente entender essa representação tornou-se
memória e que sua memória tornou-se representação, um lugar onde se reconhecem
efetivamente as alianças e as articulações e de onde se estabelece um ‘momento’, que é
afinal, conforme Schelling, um “reino ameno dos deuses venturosos e duradouros”, que
submerge “um mundo de figuras informes e monstruosas.”
146
FIGURA 39 - ‘MEDALHÃO DOS PARANHOS’
Fonte: Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 249.
407
146
Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 31.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
408
APÊNDICE I: ‘ON THE MEDUSA OF LEONARDO DA VINCE, IN THE
FLORENTINE GALLERY’.
Percy Bysshe Shelley
IT lieth, gazing on the midnight sky,
Upon the cloudy mountain peak supine;
Below, far lands are seen tremblingly;
Its horror and its beauty are divine.
Upon its lips and eyelids seems to lie (5)
Loveliness like a shadow, from which shrine,
Fiery and lurid, struggling underneath,
The agonies of anguish and of death.
Yet it is less the horror than the grace
Which turns the gazer’s spirit into stone; (10)
Whereon the lineaments of that dead face
Are graven, till the characters be grown
Into itself, and thought no more can trace;
‘Tis the melodious hue of beauty thrown
Athwart the darkness and the glare of pain, (15)
Which humanize and harmonize the strain.
And from its head as from one body grow,
As [ ] grass out of a watery rock,
Hairs which are vipers, and they curl and flow
And their long tangles in each other lock, (20)
And with unending involutions shew
Their mailed radiance, as it were to mock
The torture and the death within, and saw
The solid air with many a ragged jaw.
And from a stone beside, a poisonous eft (25)
Peeps idly into those Gorgonian eyes;
Whilst in the air a ghastly bat, bereft
Of sense, has flitted with a mad surprise
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
409
Out of the cave this hideous light had cleft,
And he comes hastening like a moth that hies 30
After a taper; and the midnight sky
Flares, a light more dread than obscurity.
‘Tis the tempestuous loveliness of terror;
For from the serpents gleams a brazen glare
Kindled by that inextricable error, 35
Which makes a thrilling vapour of the air
Become a [ ] and ever-shifting mirror
Of all the beauty and the terror there-
A woman’s countenance, with serpent locks,
Gazing in death on heaven from those wet rocks. (40)
Florence, 1819.
It is a woman’s countenance divine (41)
With everlasting beauty breathing there
Which from a stormy mountain’s peak, supine
Gazes into the [ ] night’s trembling air.
It is a trunkless head, and on its feature (45)
Death has met life, but there is life in death,
The blood is frozen--but unconquered Nature
Seems struggling to the last--without a breath
The fragment of an uncreated creature. (49)
Autumn, 1819.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
410
APÊNDICE II: ‘SOBRE A MEDUSA DE LEONARDO DA VINCE, NA
GALERIA FLORENTINA’.
Tradução de Percy Bysshe Shelley por Renato Amado Peixoto.
ELA jazia, voltada para cima, fitando o céu noturno
Sobre um enevoado cume;
Abaixo, terras distantes são vistas tremeluzindo;
Seu horror e sua beleza são divinos.
Sobre seus lábios e suas pálpebras parece repousar (5)
O encanto como uma sombra, onde, lutando por debaixo,
Irradiam-se, ardentes e pálidas,
As agonias da angústia e da morte.
Contudo, é menos o horror que o encanto
Que transforma o espírito do observador em pedra; (10)
Sobre o qual os traços daquela face morta
São gravados, até que os caracteres tornem-se
Nele mesmo, e o pensamento não possa mais seguir;
É a suave nuança da beleza arremessada
Contra a escuridão e o clarão da dor, (15)
Que humaniza e harmoniza a tensão.
E de sua cabeça como se fosse de um só corpo nasce,
Como ervas [ ] de uma pedra úmida,
Cabelos que são víboras, e eles se enroscam e escorrem
E seus longos emaranhados em cada outro se fecham, (20)
E com involuções sem fim mostram
Sua radiação metálica, de certo modo para zombar
Da tortura e da morte interior, e serram
O ar sólido com suas muitas mandíbulas denteadas.
E de uma pedra ao lado, uma salamandra venenosa (25)
Espia negligentemente para dentro destes olhos gorgonianos;
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
411
Enquanto no ar um horripilante morcego, privado
De seus sentidos, tinha-se movido rapidamente com uma louca surpresa
Para fora da gruta que esta hedionda luz tinha penetrado,
E ele chega apressando-se como uma traça (30)
Buscando a vela; e o céu noturno
Flameja, uma luz mais terrível que a obscuridade.
Este é a tempestuosa beleza do terror;
Desde as serpentes brilha um fulgor de bronze
Ateado por aquele intricado erro, (35)
Que faz o excitante vapor do ar
Tornar-se um [ ] e espelho em permanente mutação (37)
De toda a beleza e terror ali -
Um semblante de mulher, com cachos de serpente,
Daquelas rochas úmidas, contemplando na morte, o paraíso. (40)
Florença, 1819.
É um semblante divino de mulher (41)
Com uma incessante beleza respirando ali
Que de um cume tempestuoso, voltado para cima
Fita o [ ] ar tremeluzente da noite.
Ela é uma cabeça sem tronco, mas em seus traços (45)
A Morte encontrou a vida, mas existe vida na morte,
O sangue está congelado -- mas a Natureza inconquistada
Parece estar lutando até o final -- sem uma respiração
O fragmento de uma criatura não criada. (49)
Outono, 1819.
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
FONTES E BIBLIOGRAFIA
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Arquivo do IHGB.
Arquivo Particular Duarte da Ponte Ribeiro, AHI.
Arquivo Ultramarino, IHGB.
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Coleção Senador Nabuco, IHGB.
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1978.
Atas do Conselho de Estado. Brasília: Senado Federal, 1973-1978.
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Biblioteca Nacional, Iconografia.
Coleção Banco Santos.
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412
Tese de Doutorado : Renato Amado Peixoto - Maio de 2005
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Auxiliador da Indústria Nacional, 1834-1838.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1839-1912.
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