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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
ANA PAULA SOARES
“MANDE NOTÍCIAS DO MUNDO DE LÁ...”
O COTIDIANO NAS COLÔNIAS DO RIO GRANDE DO SUL, ATRAVÉS DA
PALAVRA DE IMIGRANTES ITALIANOS : 1875-1889
Porto Alegre
2004
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ANA PAULA SOARES
“MANDE NOTÍCIAS DO MUNDO DE LÁ...”
O COTIDIANO NAS COLÔNIAS DO RIO GRANDE DO SUL, ATRAVÉS DA
PALAVRA DE IMIGRANTES ITALIANOS : 1875-1889
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação
em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul
Orientadora: Profª Dra. Núncia Santoro de
Constantino
Porto Alegre
2004
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Aos meus pais, Olga e Delamare, e a meu irmão, João,
amigos e companheiros de todas as horas,
cujo apoio foi imprescindível à realização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Foram muitas as manifestações de apoio e carinho no decorrer da
caminhada. Gostaria de agradecer, em particular, àquelas pessoas que estiveram
presentes nos momentos difíceis, marcados pelo desânimo ou pelo cansaço.
À CAPES, pela bolsa concedida, imprescindível à realização desta pesquisa.
À PUCRS e ao corpo docente do PPGH, mestres de toda a caminhada.
À minha orientadora, Profª Dra. Núncia Santoro de Constantino pela
constante dedicação aos seus orientandos.
Às amigas Gisa, Dedy, Mari e Cíntia: uma grande amizade nasce de
pequenos gestos de carinho e compreensão, obrigada pela paciência e pelos
momentos de descontração.
À amiga Letícia, amigos são irmãos que escolhemos na vida.
À professora Adriana Selau Gonzaga, pela revisão deste trabalho.
Mande notícias do mundo de lá
Diz quem fica
Me dê um abraço venha me apertar
Tô chegando
Coisa que gosto é poder partir sem ter planos
Melhor ainda é poder voltar quando quero
Todos os dias é um vai-e-vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai querer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir
São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
É a vida desse meu lugar, é a vida
( Encontros e Despedidas – Milton Nascimento)
RESUMO
A presente dissertação tem por objetivo reconstruir aspectos do cotidiano, a partir da
correspondência dos imigrantes italianos que se estabeleceram nas colônias do Rio
Grande do Sul, entre o período de 1875 a 1889. As cartas desses imigrantes
estabeleciam ligação com a família deixada na Itália, por isso consistem em ricas
fontes de pesquisa para o estudo pretendido. A escrita, atras das missivas,
estabelece laços de confiança e cumplicidade, ao mesmo tempo em que retrata o
contexto em que o remetente está inserido, ou seja, o cotidiano é descrito com um
olhar de estranhamento. A análise das cartas permite ao historiador tornar-se um
segundo destinatário e uma terceira pessoa entre o diálogo que se realiza: autor e o
remetente.
Palavras-chave: imigração italiana, cotidiano, cartas
ABSTRACT
The present dissertacion has the objective to reconstruct aspects in the quotidian,
from the correspondence of the italian immigrants that determined in the Rio Grande
do Sul colonies, among the period of 1875 at 1889. The letters of this immigrants
established ligation with the family were leaved in the Italy, that’s why consist in rich
fonts of research for the intended study. The writing, through the letters, establish ties
of trust and complicity, in the same time that retracts the context that the addresser is
inserted, that is, the quotidian is described with a straging look. The analysis of the
letters permit the historian become a second addressee and a third person between
the dialogue is realized: author and the addresser.
Key-words: Italian immigration, quotidian, letters.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 vista panorâmica de Valdagno................................................................... 24
Figura 2 mapa da distribuição das colônias em léguas .......................................... 27
Figura 3 regiões de emigração para a região de colonização italiana no nordeste do
RS............................................................................................................................. 28
Figura 4 Estrada Rio Branco.................................................................................... 72
Figura 5 mapa de São Sebastião do Caí em 1875.................................................. 73
Figura 6 carta de Paulo Rossato ao irmão, na Itália em 1885.................................107
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Local e data das correspondências enviadas com os respectivos
remetentes e destinatários ...................................................................................... 91
Quadro 2- Sinopses da correspondência de Paulo Rossato..................................... 93
Quadro 3- Expressões tratadísticas utilizadas por Paulo Rossato na abertura e
encerramento de suas cartas...................................................................................109
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
1 A AMÉRICA: UMA TERRA DISTANTE E ESTRANHA .................................... 21
1.1 “Aqui troveja e chove”: o estranhamento do imigrante italiano no RS ........... 21
1.2 “Chorava por deixá-los, e não por vir para a América” ................................. 28
1.3 “...parecia que partiríamos para o desespero, e encontramos, (...)cidades
como na Itália” ................................................................................................ 41
1.4 “...por um rio que é três vezes maior que o Agno” ..........................................50
2 “AQUI NO CAMPO...” O COTIDIANO DO IMIGRANTE ITALIANO NO RS ...... 58
2.1 O cotidiano: uma análise micro-histórica ........................................................ 58
2.2 “Guardem as cartas que enviei, porque são a pura verdade” ....................... 62
2.3 “Querem saber como andam os brasileiros...?” ............................................ 69
2.4 “Quem iria pensar que seriam festejados aqui no Brasil?” ........................... 79
3 O CORREIO É O CONSOLO DA VIDA .............................................................. 87
3.1 Cartas: fontes históricas? .............................................................................. 87
3.2 A escrita das cartas ....................................................................................... 88
3.3 Escrevam-me logo... ..................................................................................... 90
3.3.1 Paulo Rossato ........................................................................................ 93
3.3.2 Dom Domenico Munari .......................................................................... 98
3.3.3 Felice Sartor .......................................................................................... 100
3.3.4 Giovanni De Boni .................................................................................. 100
3.3.5 Antonio Basso ....................................................................................... 101
3.3.6 Antonio, Luigi e Felice Taschetto .......................................................... 102
3.3.7 Michele Altafini ...................................................................................... 103
3.4 Caros, caríssimos, queridos e amados .......................................................... 105
3.4.1 Paulo Rossato ...................................................................................... 106
3.4.2 Dom Domenico Munari ......................................................................... 111
3.4.3 Felice Sartor ......................................................................................... 112
3.4.4 Giovanni De Boni .................................................................................. 112
3.4.5 Antonio Basso ....................................................................................... 112
3.4.6 Antonio, Luigi e Felice Taschetto .......................................................... 113
3.4.7 Michele Altafini ...................................................................................... 114
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 121
INTRODUÇÃO
A partir de 2001, como requisito à conclusão do curso de especialização:
Brasil 500 anos de colonização, da Universidade de Caxias do Sul, foi iniciado o
desenvolvimento de estudos na área de imigração italiana, com o objetivo de
analisar o olhar do imigrante sobre a América, através de seus registros. Esses
incluíam relatos de Carlin Fabris, Julio Lorenzoni e as cartas de Paulo Rossato.
Tratava-se de um trabalho incipiente e, por isso, no curso de Mestrado, buscou-se
aprofundar os estudos, direcionando a análise à reconstrução de aspectos do
cotidiano do imigrante.
As fontes despertaram à possibilidade de uma análise diferenciada sobre a
imigração, a partir de um novo olhar. Ainda que a temática sobre a imigração seja
bastante visitada pela historiografia, a proposta foi abordar o assunto através do
estudo de alguns aspectos do cotidiano do imigrante italiano, sem direcionar às
comuns discussões “laudatórias” ou “miserabilistas”
1
.
1
CARBONI, Florense; MAESTRI, Mario. (org.)
Raízes italianas do RS
: 1857-1996. Passo Fundo: UPF, 2000.
p. 68.
Nesse sentido, esta dissertação pretendeu reconstruir aspectos do cotidiano
do imigrante italiano nas colônias do Rio Grande do Sul, entre o período de 1875 a
1889, através de suas cartas. A delimitação do período deve-se ao grande
contingente de imigrantes italianos que, durante o mesmo, entraram no Rio Grande
do Sul. O espaço de 14 anos permite a análise da formação das primeiras colônias,
assim como o seu desenvolvimento até serem emancipadas, ainda sob o regime
monárquico.
No decorrer da pesquisa, foram operacionalizados alguns conceitos básicos,
que dizem respeito ao contexto, no qual este objeto de pesquisa se insere.
Emigração e imigração são conceitos constantes na narrativa. O primeiro
refere-se ao fenômeno de saída, no caso em questão, o italiano, desejável e
incentivado pelas autoridades da Itália. Sabe-se que fatores socioecomicos e
políticos influenciaram diretamente na saída maciça de pessoas da Itália no período
de 1875 a 1889. Este processo de saída está ligado ao fato político da unificação
(1870), que significou a vitória definitiva do capitalismo. O país encontrava-se
dividido. No norte, crescia a industrialização; o sul permanecia totalmente agrário. A
burguesia industrial assumiu o papel de componente principal do novo sistema.
Contudo, a oligarquia rural continuou sendo representada e vendo respeitados os
seus interesses. Além disso, ocorreu uma concorrência dos produtos agrícolas
estrangeiros, ocasionando uma baixa nos preços dos mesmos produtos na Itália, o
que significou uma redução na produção, dívidas e, conseqüentemente, uma perda
das pequenas propriedades, que se concentravam nas mãos dos poderosos. Essa
situação, somada à elevação dos impostos, à fome e à subnutrição, acelerava a
ruína dos agricultores e ampliava a miséria no campo.
Diante da situação descrita, surge a imigração como alternativa para
milhares de pessoas. Segundo Ítalo Dal’Mas “(...) a imigração pode definir-se como
movimento de ingresso no território por indivíduos provenientes de outros estados ou
outras regiões e países”
2
. Como escreve Loraine Slomp Giron, a “(...) empresa
emigratória italiana somou-se à empresa imigratória brasileira (...)”
3
, esta última
interessada no movimento para a resolução de impasses conjunturais internos do
país. O agente deste processo é o emigrante, descrito por Dal’Mas como um ser que
“(...) traz consigo as necessidades fundamentais e as características psicológicas e
mentais que lhe são próprias”
4
.
A introdução de imigrantes no país foi sistematizada através do processo de
colonização e da Lei de Terras (1850). A partir de sua promulgação, a terra tornou-
se mercadoria, sendo indispensável possíveis compradores. O povoamento do país,
através de imigrantes estrangeiros, passa a ser, então, meta comum para governo e
particulares, como afirma Giron
5
. O processo de colonização é definido por Olívio
Manfroi como a “(...) exploração e valorização pelo trabalho agrícola, de uma
determinada região (colônia), por imigrantes italianos sob a direção do governo e,
2
DAL’MAS, Ítalo.
Da colonização à imigração no Brasil
. São Paulo: Gráfica Editora Hamburg Ltda, (19--).
p. 81.
3
GIRON, Loraine Slomp. A imigração italiana no RS: Fatores determinantes. In:
Imigração & Colonização
. 2.
ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. p.54.
4
DAL’MAS, op. cit., p.81.
5
GIRON, Loraine Slomp; BERGAMASCHI, Heloisa E.
Colônia
: um conceito controverso. Caxias do Sul:
EDUCS, 1996. p.29.
eventualmente, de particulares”
6
. Para conceituar o termo colônia, Giron utiliza a
designação dada pela legislação imperial
Estabeleceu-se a denominação de colônia para designar as terras
destinadas ao recebimento dos imigrantes europeus, que tinham como
objetivo o estabelecimento da pequena e média propriedade no Brasil
7
.
A colônia é repartida em léguas, e posteriormente em lotes, adquiridos por
imigrantes intitulados colonos. Estes, segundo a mesma autora “(...) eram homens
livres, estrangeiros e proprietários de terras, ainda que pequenos”
8
.
Como ponto de partida para esta dissertação, fez-se necessário
compreender os fatores relacionados ao abandono do país de origem, bem como a
ocupação de novos espaços no Brasil Meridional, com ênfase no cotidiano. Vários
foram os motivos pelos quais milhares de italianos deixaram o seu país e há
indagações sobre a trajetória desses imigrantes que podem ser respondidas através
de seus próprios registros, ou seja, suas cartas que eram enviadas à Europa. O que
escreviam? Do que falavam? Quais eram suas ambições nestas novas terras? Quais
eram as suas realizações e quais eram as suas frustrações? Como o Brasil é
retratado em seus textos?
Estes questionamentos estão inseridos nos aspectos relacionados ao
cotidiano do imigrante, objeto de nosso estudo. As cartas
9
, nesse sentido, tornam-se
6
MANFROI, Olívio.
A colonização italiana no RS:
implicações econômicas, políticas e culturais. Porto
Alegre: GRAFOSUL/IEL/DAC/SEC, 1975, p.14.
7
GIRON, 1992, op. cit., p.64.
8
GIRON; BERGAMASCHI, op, cit., p.21.
9
Ao longo da dissertação, utilizaremos termos que, embora diversos, apresentam significado similar. Cf.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Novo Dicionário da Língua Portuguesa
. 12. imp. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992. “(...) comunicação manuscrita ou impressa devidamente acondicionada e endereçada a
uma ou várias pessoas; missiva, epístola (...)”.
ferramentas indiciárias da construção da imagem que os colonos estruturam de si
mesmos, já que permitem ao pesquisador ter acesso às experiências por eles
vivenciadas, através da descrição de suas situações diárias.
A documentação estudada abrange o nível estadual, pois foram analisadas
cartas de imigrantes situados na Colônia Caxias e arredores. Foi analisada a
correspondência de Paulo Rossato, além de cartas de outros imigrantes: Dom
Domenico Munari, Felice Sartor, Giovanni De Boni, Antonio Basso, os irmãos
Antonio, Luigi e Felice Taschetto, Michele Altafini.
As correspondências
10
de Paulo Rossato foram conservadas pela família e
traduzidas por Luis A. De Boni, que publicou posteriormente a obra La Mérica:
escritos dos primeiros imigrantes italianos. Segundo apontamentos do autor, Paulo
Rossato nasceu a 22 de outubro de 1854 em Valdagno, província de Vicenza.
Deixou Gênova a 22 de novembro de 1883, com 29 anos de idade, na companhia da
esposa, com 23 anos. Chegou ao Rio de Janeiro a 15 de dezembro, permanecendo
três dias na cidade e de onde prosseguiu viagem até Rio Grande, onde chegou a 22,
do mesmo mês. No dia 24, partiu para Porto Alegre e a 26 de dezembro seguiu para
São Sebastião do Caí, chegando ao Campo dos Bugres no dia de janeiro de
1884. Em janeiro do ano seguinte, chegaram seus pais e irmãos, exceto o irmão
Antônio que, com a esposa Maria Peretto, alcançou Caxias em 3 de janeiro de 1886.
Suas cartas foram escritas entre os anos de 1883 a 1885, narrando sua adaptação à
região serrana.
10
Cf. BELTRÃO, Odacir.
Correspondência:
linguagem & comunicação. 16. ed. São Paulo: Atlas, 1979. p.13.
“Correspondência é o conjunto de normas regedoras das comunicações escritas entre pessoas ou entidades;
orientam a feitura e a tramitação dos documentos. Por extensão, é grupo de documentos ou é apenas um
documento (...)”.
As demais correspondências foram publicadas na obra de Emilio Franzina,
Merica! Merica. Emigrazione e colonizzazione nelle lettere dei contadini veneti e
friulani in América Latina: 1876-1902, traduzidas por Anna Maria Procida
11
. Dom
Domenico Munari, pároco de Fastro doze anos, veio para o Brasil em abril de
1877. Permaneceu pouco tempo nas colônias Conde D’Eu e Princesa Isabel, nas
quais não se adaptou, e partiu para Porto Alegre de onde escreveu a carta datada
em 21 de outubro do mesmo ano. Verifica-se que retornou à região serrana, porque
morreu na colônia Dona Isabel entre a primavera e o verão de 1878.
Sobre os demais, não há dados informativos, além do local de origem. Felice
Sartor e o pároco Giovanni De Boni são do Feltre e escrevem da Colônia Caxias,
respectivamente a 15 e 16 de maio de 1885, demonstrando satisfação por estarem
na América. Antonio Basso provém de Sandrigo, Província de Vicenza, e os irmãos
Taschetto são de Oderzo, Treviso, escrevendo da colônia Silveira Martins. O
primeiro redige duas cartas, ambas escritas em abril de 1889, enquanto os irmãos
Taschetto escrevem sua única carta, em novembro de 1887. Michele Altafini foi ex-
guarda da alfândega em Rovigo, emigrando em 1889 com mulher e filhos para o
núcleo de São Jerônimo, na colônia Barão do Triumpho. Uma de suas cartas
encontradas foi analisada, a de 27 de outubro de 1889, devido à delimitação
temporal.
O estudo das correspondências foi realizado através da metodologia da
análise de conteúdo. Nesta, o valorizados, principalmente, os dados qualitativos,
que chegam ao historiador em estado bruto e precisam, portanto, ser processados.
11
Anna Maria Procida é natural de Roma, migrou para o Brasil em 25 de novembro de 1993. Atualmente
leciona a Língua Italiana no Centro Cultural Ítalo- Brasileiro em Caxias do Sul- RS.
A subjetividade também faz parte da análise de conteúdo, na qual se encontram
vários significados devido às diferentes perspectivas. Para entender estes
significados, é necessário contextualizá-los. Para Roque Moraes, “o contexto no qual
se analisam os dados deve ser explicitado em qualquer análise de conteúdo.
Embora os dados estejam expressos diretamente no texto, o contexto precisa ser
reconstruído pelo pesquisador”
12
. À contextualização, é necessário clareza nos
objetivos, inclusive para a delimitação do contexto, sendo que, em uma abordagem
qualitativa, essa construção, ao menos em parte, pode ocorrer ao longo do período.
O mesmo autor registra que “A análise de conteúdo constitui uma
metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda
classe de documentos e textos”, que podem constituir-se em qualquer material
originado de comunicação verbal ou não. Cita, entre outras matérias-primas, as
cartas, principal fonte dessa pesquisa.
A análise realizada segue as etapas descritas por Roque Moraes que
incluem:
1. preparação das informações: ocorre a identificação e a codificação das amostras.
Foram estabelecidos o autor, o remetente, o assunto, o local e a data das
correspondências.
2. unitarização ou transformação do conteúdo em unidades: manter os dados em
sua forma integral ou dividi-los em unidades menores. Como parte deste
processo, foi considerada a análise individual das cartas, observando os
aspectos abaixo:
12
MORAES, Roque.
Análise de Conteúdo
. Educação (Porto Alegre), v.22, n.37, 1999. p. 7-31.
- condições de redação e leitura;
- local e periodicidade nas trocas;
- obrigação na escritura;
- o prazer de ler e receber cartas;
- solicitação de serviços variados:
- distribuição de cumprimentos;
- alternância de sujeitos (pergunta/resposta, destinatário/leitor);
- organização do trabalho e da vida privada;
- discurso privado: abertura, desenvolvimento e desfecho;
- cortesia familiar tratadística;
- expressões de falta e ausência;
- metáfora da loquacidade (acúmulo de notícias sem ordená-las ou hierarquizá-
las);
- tipologia da carta;
- esquema expositivo (narrativa).
3. categorização ou classificação das unidades em categorias: agrupar dados,
considerando a parte comum existente entre eles. Na dissertação, o
apresentados através das subdivisões dos capítulos.
4. descrição: é a comunicação do resultado do trabalho que, na abordagem
qualitativa, deve ocorrer através da elaboração de texto-síntese, fazendo uso das
“citações-diretas”.
5. interpretação: está mais associada à pesquisa qualitativa, devendo ser
direcionada aos conteúdos manifestos e aos latentes, conscientes ou
inconscientes.
A narrativa apresenta-se dividida em três partes. A primeira, ressalta o
estranhamento do imigrante italiano no Rio Grande do Sul e descreve sua
percepção inicial sobre a América. Como ferramenta teórica, foi utilizado o
pensamento de Ginzburg para interpretar as falas dos imigrantes que refletem
estranhamento. Ela também contém os motivos socioeconômicos e políticos que
fizeram com que houvesse o êxodo da Itália, bem como o processo de adaptação
nos primeiros tempos nas colônias. um breve histórico da presença italiana no
Brasil e os motivos que atraíram os imigrantes para o Brasil Meridional. Refere-se
ainda à Lei de Terras e às condições de compra das mesmas pelos imigrantes. O
último item deste primeiro capítulo analisa a chegada dos imigrantes no Rio Grande
do Sul e as condições de adaptação no Estado.
O segundo capítulo é subdividido em quatro partes. Na primeira, discute-se
o cotidiano sob o ponto de vista teórico, através de Vainfas, Ginzburg, Agnes Heller
e Michel de Certeau. Na segunda, destaca-se a importância da correspondência ao
longo da história; também se apresenta o olhar do imigrante sob os diferentes
aspectos do cotidiano - são destacados, ainda, elementos de sociabilidade entre os
imigrantes, como as festas religiosas.
O terceiro capítulo traz igualmente quatro divisões. Na primeira, examina-se
a importância da correspondência como documento, assim como suas
possibilidades de revelação sobre determinada sociedade. A seguir, aborda-se a
interatividade entre quem e quem escreve; analisa-se, também, a
correspondência, considerando os aspectos internos, ou seja, o próprio conteúdo
das cartas, as condições de redação e leitura, a periodicidade e a obrigação na
escritura pelas partes envolvidas. Por fim, faz-se um estudo da correspondência, sob
o ponto de vista externo, incluindo a organização do discurso e a estrutura da
narrativa, as expressões que refletem falta ou ausência, além das expressões
tratadísticas familiares.
1. A AMÉRICA: UMA TERRA DISTANTE E ESTRANHA
“Não é preciso ser poeta para que a escrita seja reveladora,
adquirindo o condão de ‘devolver-nos o mundo’, mostrando-o em sua estranheza,
causando-nos surpresa com as descobertas. É preciso apenas que se escreva,
de forma livre,sobre as coisas. Se desejam descobertas sobre nós mesmo,
é preciso que se escreva sobre a própria vida, os próprios sentimentos,
os próprios erros, os próprios medos...” (L.F. BARROS)
1.1 “AQUI TROVEJA E CHOVE”: o estranhamento do imigrante italiano no RS
O desconhecido sempre aguçou o imaginário do homem, principalmente a
respeito do outro. A mente humana, fértil e criativa, produz imagens e reflexões
sobretudo de novos lugares, repletos de novidades e diferenças. Para o europeu,
acostumado com novas aventuras em territórios distantes, o imaginário é algo que já
faz parte de seu histórico, desde o encontro das rotas às longínquas terras do
Oriente, até a travessia do tenebroso Atlântico, alvo de monstros marinhos,
penhascos e tempestades intermináveis.
Parece óbvio que, com o passar do tempo, após tantas viagens para
diferentes continentes, o homem tenha um conhecimento seguro sobre outras terras
e culturas. Porém, a chegada do imigrante à América ainda era marcada por muitas
indagações. Homens simples, distantes dos livros de viagem, chegaram ao Brasil,
curiosos e cheios de dúvida.
A falta de conhecimento sobre outros lugares sugeria alguns
questionamentos: a América é igual a Itália? Come-se o mesmo alimento? Como
serão seus habitantes? Essas perguntas podem ter ocorrido aos imigrantes, diante
da angústia da partida e da ansiedade da chegada.
A partir da correspondência de Paulo Rossato, verifica-se o estranhamento
dos primeiros momentos na América. As cartas incluem até mesmo indagações com
relação ao meio físico e geográfico, observações sobre o clima, relevo e vegetação,
como se pode observar no trecho enviado a 27 de dezembro de 1883:
Antes de partir para a América, parecia que partiríamos para o desespero, e
encontramos, entretanto, cidades como na Itália. (...)Comem-se melancias,
uvas, figos, laranjas. (...)Aqui é verão e lá estão com neve. (...) Aqui troveja
e chove.
Na próxima carta, escrita a 17 de fevereiro de 1884, continua demonstrando
estranhamento em seus registros: “O sol se levanta no leste, como aí. Chove e
troveja como entre vocês e, se dá uma seca, tudo sofre, tal como na Itália”.
Analisando as cartas dos imigrantes italianos, constata-se que efetivamente
não possuíam o conhecimento sobre outras terras e culturas. Trata-se do
estranhamento analisado por Ginzburg. Segundo este autor, o estranhamento é um
fator para “superar as aparências e alcançar uma compreensão mais profunda da
realidade”
13
. Todos nós estamos sujeitos a banalizar a realidade, constituindo o
estranhamento em um excelente “antídoto”
14
. Assim que as coisas sejam vistas,
primeiramente, é preciso olhar como se não tivessem nenhum sentido
15
. Reações
como compreender menos, ingenuidade, espanto podem nos levar a enxergar e
aprender algo mais profundo
16
.
Analisando-se a correspondência dos imigrantes sob a perspectiva do
estranhamento/distanciamento, encontram-se respostas para os possíveis
questionamentos feitos a respeito de uma nova realidade. Ginzburg cita Hume,
quando afirma que a distância possui um efeito notável sobre a imaginação, tanto no
espaço como no tempo, porém as “conseqüências de uma distância no espaço são
muito menores do que as de uma distância no tempo”
17
. Estes podem ter sido os
motivos que levaram os redatores das correspondências aqui estudadas,
principalmente as de Paulo Rossato, a manterem um olhar de distanciamento, com
relação às coisas, aos lugares e às pessoas.
Considera-se, também, o imaginário do imigrante, partindo para uma nova
terra, sem saber ao certo como ela é e o que vai encontrar. A identificação
geográfica com a terra natal produziu uma atitude semelhante dos imigrantes no que
13
GINZBURG, Carlo.
Olhos de madeira:
nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras,
2001, p.36.
14
Ibid., p.41.
15
GINZBURG, op. cit., p.22.
16
Ibid., p.29.
17
“Vinte anos não passam, por certo, de um pequeno intervalo de tempo em comparação com o da história, e até
a memória de alguns de nós pode nos fazer conhecê-lo; apesar disso, duvido que mil léguas, ou mesmo a maior
distância do mundo, consigam de maneira igualmente decisiva debilitar nossas idéias e diminuir nossas paixões”.
HUME apud GINZBURG, op. cit., p.213.
se refere as técnicas já conhecidas. Cita-se o exemplo de Rossato, natural de
Valdagno, 18 milhas distante de Vicenza, no meio de uma planície cercada por
montes marinho-vulcânicos. Chama-se assim porque no meio da planície corre o Rio
Agno, dando origem ao nome da terra itálica do vale do Agno, transformada em uma
única palavra: Valdagno. Atualmente, é um município independente de Novale e
possui, ao seu redor, outras aldeias: Altíssimo, Castelvecchio, Cercalto, Piana,
Cornedo, Novale e Recoaro. O Rio Agno corre na parte leste, separando os
municípios de Valdagno e Novale. Há ainda um outro rio, que se origina em
Castelvecchio, unindo-se ao Agno, pouco depois de passar por Valdagno
18
. As
águas dos rios são de fundamental importância à região, pois movem moinhos e
máquinas para trabalhar a lã e obter o feltro. Essa proncia caracterizava-se ainda
por ter solo fértil, ao apresentar uma economia equilibrada e unindo a agricultura, a
indústria e o artesanato
19
.
Figura 1 – vista panorâmica de Valdagno
18
MACCÁ, Gaetano.
Storia del território vicentino
. V, 13, Bologna: Libreria Alpina, 1972. p.6-8.
19
CEVESE, Renato.
Guida a Valdagno Antica
. Valdagno: Comune de Valdagno, 1982.
As características de Valdagno assemelham-se às da região serrana do Rio
Grande do Sul, área de colonização italiana. Ali, os imigrados encontraram
condições pouco diferentes da terra de origem, que lhes permitiram praticar as
mesmas culturas e continuar o ritmo de vida habitual. Foi possível, graças ao clima
temperado, desenvolver espécies como a parreira, o trigo, árvores frutíferas, além do
pinheiro. Os vales fluviais da serra foram de extrema importância, pois, além de
constituírem vias de acesso naturais, também desempenhavam a mesma função
que na Itália, ou seja, serviam principalmente para mover moinhos. Essa
característica é presente em diversas citações de Paulo Rossato, sobretudo quando
explica as condições físicas da colônia que havia adquirido.
A divisão da terra foi feita de maneira simples, de forma geométrica e
no papel, sem ter em conta a morfologia do terreno e as diferenças existentes
entre um lote e outro, nem se levou em consideração a fertilidade da terra e a
possibilidade de produção. Neste sentido as condições do relevo assumem
particular importância, sobretudo às relacionadas aos limites das propriedades. O
sistema de repartição dividiu a terra em lotes retangulares de aproximadamente
25 hectares (colônias); neles, os máximos declives e relevos encontram-se; a
propriedade estende-se do planalto ao vale e ela inclui um despenhadeiro, sendo
que estas características variam conforme a localização de cada colônia. Na carta
enviada em 17 de fevereiro de 1884, Rossato explica as condições físicas da
colônia que havia adquirido:
A posição da colônia é a seguinte: inclina-se para um rio, tendo uma parte
do outro lado. Mas não a pude ver direito, porque não se pode entrar pelo
bosque, que aqui no Brasil chamam de “mato”.
(...)
No rio de nossa colônia pode-se montar um moinho e uma serraria movida a
água. Saindo da colônia, são necessários 15 minutos para chegar à estrada
principal; e três quartos de hora de estrada principal, semelhante àquela de
Piana, para chegar ao campo. As águas são boas e bons os ares. A posição
é alta, mas não com montes e sim com ondulações. Não há grandes frios e
calores, e dorme-se sempre com a coberta.
Meses mais tarde, em 24 de abril, refere-se ao trabalho de desmatamento
feito em sua colônia:
Cortar o bosque, ou o mato, como queiram, é feito da seguinte maneira:
inicialmente toma-se uma foice de cabo comprido e cortam-se os caniços e
as plantas pequenas. Caniços são aqueles cabos de sombrinhas que vêem
de Valdagno, e que dizem aí serem de cana-de-açúcar. Depois, cortam-se
todas as árvores maiores. E, depois de cortadas, deixam-nas lá por um
mês, após o qual é posto fogo. Queimam-se as folhas, os caniços e os
ramos mais finos. As toras menores e os galhos são então colocados em
montes e queimados. Isto eu ainda tenho que fazer. Depois, semeia-se o
trigo entre as toras, cobrindo-o com a enxada, e ele cresce sem que seja
necessário outro trabalho.
Na mesma carta, ao pai, elogia a propriedade adquirida:
Caro pai, você deveria ver que bela colônia comprei! Está bem colocada e
deve ser boa. E se visse quanta lenha existe nela! Em Valdagno seria rico
quem tivesse tanta madeira. Estou ansioso que venham meus irmãos e toda
a família. Lá éramos servos e aqui somos senhores.
Na carta escrita em 07 de maio de 1884, explica como eram feitas as
divisões dos lotes na colônia, o que eram as léguas e os travessões:
A posição do terreno aqui é semelhante a ondas do mar. Mais abaixo há
também planícies e também outras configurações do solo. As terras são
todas divididas em léguas: légua, 2ª légua, e assim por diante. Uma
légua é como uma vila entre nós: tem entre 100 a 150 colônias. Cada légua
tem seus travessões. Os travessões são como uma estrada, com colônias
dos dois lados. À margem dos travessões, de ambos os lados, o mato está
cortado e a residência no meio. Esta é de madeira e umas lindas e
outras feias.
A 22 de junho do mesmo ano, envia um mapa, descrevendo a colônia e a
posição do lote comprado:
Querido pai, o mapa anexo uma pequena idéia do que seja a Colônia
Sartorina. A Colônia Sartorina é de um proprietário particular que se chama
Linha Feijó. É que compramos nossa colônia. Como contava na primeira
carta, havia comprado a colônia n.º 9, à direita; depois, troquei com o conde
e fiquei com n.º 7, à esquerda. As colônias à direita, até o n.º 8, são
menores e custam 800 mil réis. As outras, porém, como a nossa, são
maiores e custam 1.000 mil réis. A de n.º 6, à direita, foi comprada por João
e Máximo Lora, a de n.º 7 por Gio Maria e a de n.º 8 pelos Balarini. À
esquerda, estão vendidas todas as colônias até à de n.º 7, que é a nossa.
Assim, temos colônia frente à frente com Gio Maria, separados apenas pela
estrada. Aonde se vêem os números são construídas as casas. Se meu
locador, tio Pedro e minha irmã Teresa querem vir, mostrem-lhes este
mapa. (...) As léguas, como vêem, estão traçadas do mesmo modo
daquelas que marquei. O Campo de Caxias indiquei-o como ocupado, pois
nele moram 2.800 habitantes, e não 1.400 como dizia em carta anterior.
Figura 2- mapa da distribuição das colônias em léguas
1.2 “CHORAVA POR DEIXÁ-LOS, E NÃO POR VIR PARA A AMÉRICA”
América do Sul, Brasil, Rio Grande do Sul, 1875. A região nordeste do Rio
Grande do Sul recebe o primeiro contingente de imigrantes oriundos de Milão e de
Bérgamo, além das Regiões do Vêneto, da Lombardia, do Friuli-Venécia lia,
Trentino-Alto Adige, Piemonte, Emília-Romanha, Toscana, Ligúria, Campânia
(Nápoles), Calábria e Sicília. Após oito anos, chega ao Brasil, entre centenas de
imigrantes italianos, Paulo Rossato. Os motivos pelos quais ele migrou à América
foram os mesmos que moveram outras pessoas a deixarem seu país de origem. A
migração não foi um processo único italiano. Nesse período, muitas nações
européias também conviveram com o mesmo fenômeno, de uma forma um pouco
diferente e com destinos muitas vezes também diferentes
20
.
Figura 3 – regiões de emigração para a região de colonização italiana no nordeste do RS
20
Diversos historiadores que possuem trabalhos de pesquisa na área de imigração italiana escrevem sobre a
situação descrita. Para maiores informações sobre o assunto, verificar as obras citadas ao longo do trabalho.
Países industrializados, como a Inglaterra ou aqueles que ainda não tinham
sido atingidos pela onda industrial, como a Irlanda e Portugal, conviviam com esse
processo migratório. A Europa foi sacudida pela novidade que tinha como destino a
América do Norte (ocupada por países do norte), a do Sul (países mediterrâneos) e
a Oceania, ocupada quase que exclusivamente pela Inglaterra. Essa, juntamente
com a Alemanha, procurou organizar seus emigrados, auxiliando-os na integração à
nova sociedade; diferentemente de outros, para os quais foi um “salto no vazio”,
como ocorreu no caso italiano. Contudo, o contingente humano que saiu, movido
por uma emigração forçada ou espontânea, fora muito maior na Itália, a ponto de
não ser considerado normal por Constantino Ianni
21
.
Para Loraine Slomp Giron
22
, alguns fatores foram determinantes à imigração
italiana: a expansão do capitalismo e novas formas de produção, a unificação
italiana, explosão demográfica do século XVIII, Revolução Industrial, restrição da
imigração para os EUA e alivio das tensões internas dos países europeus. Existem
ainda outros fatores indicados por Dacanal
23
, como sendo de ordem externa: as
guerras napoleônicas, as revoltas nacionalistas e camponesas no século XIX na
Europa, as revoltas proletárias, o crescimento das cidades e a necessidade de
controlar seu crescimento e expelir a mão-de-obra, o empobrecimento geral das
terras e os mercados reduzidos para os produtos manufaturados.
O processo que levou contingentes de pessoas a saírem da Itália no século
XIX, está relacionado diretamente ao fato político da unificação, que significou a
21
IANNI, Constantino.
Homens sem paz
(os conflitos e os bastidores da emigração italiana). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1972. p. 13.
22
GIRON, 1992, op. cit., p.48-49.
23
DACANAL, José H. A imigração e a história do Rio Grande do Sul. In: DACANAL; GONZAGA (org.).
RS:
imigração e colonização
. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. p. 278.
vitória definitiva do capitalismo. O Estado italiano, segundo Iotti, surgiu a partir de um
acordo entre as elites, “foi resultado de uma aliança política entre as forças
detentoras do poder econômico, que excluíram do processo a massa de
trabalhadores pobres e a pequena burguesia”
24
. Economicamente, a Itália
encontrava-se dividida: norte, baseava a economia na produção industrial; o sul era
totalmente agrário, constituído por grandes latifúndios, conservando características
feudais e não capitalistas. Sobre este assunto, a mesma autora acrescenta:
O nascimento do Estado unitário italiano ocorreu tardiamente, entre os anos
de 1815 e 1870 e abriu um novo período na história da península. Nessa
época teve início o processo de formação do mercado nacional, de
transformação nas relações de produção entre a atividade agrícola e
industrial e de diferenciação no desenvolvimento econômico entre o Norte e
o Sul da Itália
25
.
A burguesia industrial assumiu o papel de componente principal do novo
sistema. Entretanto, a oligarquia rural continuou sendo representada, tendo os seus
interesses respeitados. Além disso, ocorreu uma concorrência dos produtos
agrícolas estrangeiros, ocasionando uma baixa nos preços dos mesmos na Itália, o
que significou uma redução na produção, nas dívidas e, conseqüentemente, uma
grande perda das terras, pois os grandes proprietários executavam judicialmente
seus devedores. Essa situação, somada ainda à elevação dos impostos, à fome e à
subnutrição, que predispunha a inúmeras doenças, contribuiu à rápida deterioração
da economia camponesa. Desse modo, observa-se a superioridade do norte sobre o
sul, apresentando-se com características capitalistas, ao envolver uma rede de
suporte às atividades industriais e comerciais através de bancos, além de um
sistema de saneamento e hidráulico com estradas e ferrovias. Assim escreve Iotti
sobre as conseqüências desse processo:
24
IOTTI, Luiza Horn.
O Olhar do Poder
. 2.ed. Caxias do Sul: EDUCS, 2001 b., p. 29.
25
IOTTI, 2001b, op. cit., p. 28.
O processo de implantação do capitalismo da Itália, tanto do Norte quanto
no Sul, foi realizado às custas das camadas populares, excluídas do
processo produtivo nacional em decorrência da expansão do capital e da
concentração dos meios produtivos. Os camponeses foram expulsos da
terra. O pequeno artesanato destruído. A indústria mostrou-se incapaz de
absorver a o-de-obra disponível. Sem terra e sem trabalho, os
trabalhadores pobres formaram um excedente populacional que
representava uma ameaça ao “equilíbrio” da sociedade italiana
26
.
Graças esses fatores, a Itália estava começando a escrever uma das
páginas mais importantes de sua história: a emigração. Inicialmente, verificou-se a
migração interna, a partir das diferenças regionais: norte e sul. Muitos camponeses,
sem condições de sobrevivência, migravam para o norte, à procura de trabalho e de
uma melhor situação de vida. Esse grande contingente foi o responsável pelo
aumento populacional das cidades, pelo barateamento de mão-de-obra às
indústrias, bem como foi responsável pela miséria, pois a grande maioria não
recebia o suficiente á sua manutenção. Iludiram-se com as grandes e suntuosas
indústrias, pois viam em suas construções um sinal de fartura.
Externamente, a Itália já conhecia a emigração sazonal, o trabalho nos
países vizinhos em períodos de plantio e colheita. Sobre este assunto, Renzo Maria
Grosselli destaca:
A emigração temporária constituiu por decênios, por séculos, uma forte
subsidiária de renda para a classe camponesa trentina e ao mesmo tempo a
válvula de escape que permitiu a sobrevivência pacífica de uma sociedade
que, no seu interior, não produzia riqueza suficiente para o aumento de
suas classes marginais
27
.
O emigrado temporário contribuiu, também, para levar ao seio de sua região
as notícias de outros países. Foi, portanto, um sistema de comunicação rápido,
26
Ibid., p. 39.
27
GROSSELLI, Renzo Maria.
Vencer ou morrer
: camponeses trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas
brasileiras. 1ª parte: Santa Catarina (1875-1900). Florianópolis: Editora da UFSC, 1987. p. 75.
eficaz e confiável, porque provinha do próprio interior da sociedade camponesa. Aos
poucos, o emigrado temporário passou a dar lugar ao permanente. Em pequeno
número, migravam para países europeus e à bacia do Mediterrâneo
28
. Com o tempo,
essas pessoas, em um número cada vez maior, tiveram como destino a América,
através de uma emigração permanente que iria superar a temporária.
A Europa, em um curto período de tempo, de 1850 a 1870, atingiu um nível
de desenvolvimento econômico elevado. As áreas industriais apresentavam-se
divididas em centro e em áreas periféricas, estas fornecedoras de matéria-prima. A
terra deixou de ser fator produtivo por excelência para tornar-se “meio de
produção”
29
. Esses mesmos países, também denominados de áreas centrais ou
países industrializados, eram responsáveis pelo destino mundial. O reflexo dessa
dominação está na abolição escravista da América, uma vez que os países centrais
necessitavam de mercados consumidores.
Era necessária à Itália uma reforma de base, na qual principalmente fossem
reestruturados o sistema fundiário e a distribuição de encargos sociais. No entanto, a
alternativa foi a emigração em grande escala, permitindo à classe dirigente manter e
até mesmo aumentar seus privilégios
30
. Tratava-se de uma lvula de saída capaz
de evitar um processo revolucionário, rumo ao qual a Itália forçosamente marcharia,
caso não fossem modificadas as relações de produção. Assim, a emigração em
grandes contingentes, nos decênios finais do século XIX, também livrava o norte da
Itália de uma possível convulsão social, promovida pelos ecos libertários da
28
DE BONI, Luís A.
Os italianos do Rio Grande do Sul
. 3. ed. Caxias do Sul: UCS, 1984. p. 12.
29
GROSSELLI, op. cit., p. 20.
30
DE BONI, 1984, op. cit., p. 53.
Internacional Operária, que atingia o campesinato europeu e, conseqüentemente, o
italiano.
Em um primeiro momento, a emigração teve como objetivo principal retirar
os camponeses da Itália, insatisfeitos com sua situação. Muitos passaram a
considerar que essa era a melhor solução, sendo que alguns chegavam a sair
clandestinamente. Como Grosselli comenta: “os camponeses europeus emigraram
porque a sociedade em que viviam tinha assumido ou estava assumindo
características tais que não mais permitiam a sobrevivência de formas de vida e de
valores que tinham sido os deles durante séculos”
31
. O despotismo dos patrões, a
escassez de terra, a própria condição de sobrevivência, entre outros fatores, são
problemas identificados na correspondência de Paulo Rossato, que incentiva a vinda
da família para o Brasil. Assim escreve em 24 de abril de 1884:
Se o tio Pedro quiser vir, que venha, pois há terra também para ele e creio
que para ele seria suficiente ¼ da colônia. Escrevi a Luciano e Madalena.
Se quiserem vir, então que se encaminhem para cá, pois vive-se aqui muito
melhor que na Itália, sem patrões. E quando alguém quer mandar, deve
também pagar para tanto.
A seguir, em um breve período de tempo (7 de maio), declara ao pai:
Lamento muito ter partido sozinho da Itália, pois se meus irmãos e meu pai
estivessem aqui, com a família que somos, teríamos encontrado a mina de
ouro. Penso que poderia ter aqui minha mãe, tão eficiente na criação de
galinhas e porcos, e poderíamos ter quantos animais quiséssemos. Estou
cansado de saber que ela se encontra sempre sob aqueles criminosos
patrões, todos velhacos e ladrões: quem tem que trabalhar em terras
arrendadas e pagar aluguel de casa, que deixe tudo aí, pois poderá ter aqui
sua terra (...). O parto correu muito bem, a parteira foi muito boa e as coisas
passaram-se melhor do que na Itália. A pequena tem olhos e cabelos pretos
e face branca. Domingo, às 11 horas, foi batizada e teve por compadres
Antônio Balarino e um outro e por comadres a parteira e a Balarina, que a
levou. Dei-lhe o nome de Itália, porque espero que ela jamais vá à Itália.
31
GROSSELLI, op. cit., p. 15.
O incentivo dado por Rossato à família era a de que poderiam ter sua
propriedade, sem depender de patrões, conforme afirma na carta de 29 de junho do
mesmo ano, “Se quiserem que lhes faça saber como é a América, posso dizer que
quem tem um pouco de vontade de trabalhar tem comida e bebida à vontade, e sem
preocupações, porque os patrões, nós o deixamos na Itália”.
No mês seguinte, precisamente em 27 de julho, reafirma:
Que minha mãe parta quando quiser, mas saiba que virá morar sobre o que
é dela.(...)
Digam a eles que deixamos os patrões na Itália e somos donos de nossas
vidas, temos quanto queremos para comer e beber, além de bons ares, e
isto significa muito para mim. Eu também o quereria estar mais na Itália,
sob aqueles patrões velhacos. Aqui, para encontrar autoridade, são
necessárias 6 horas de viagem.
Existiam outros interessados na imigração, que não eram apenas os
camponeses atraídos em melhores condições de vida. Na verdade, esse processo
movimentou organizações e originou a cobiça em muitas pessoas que começaram a
encarar a imigração como uma fonte de lucro bastante rentável. É o caso do próprio
Estado, das companhias de imigração e navegação, das instituições de crédito, da
imprensa (e sua função publicitária) e até mesmo aos empresários modernos. Desta
forma, o progresso econômico italiano apresentado na última década do século XIX
estava totalmente relacionado ao grande fluxo de capital gerado pela empresa
imigratória.
Do lado do Estado italiano, sob o gabinete Crispi, promulgou-se a primeira
lei sobre emigração. Com isso, o Estado passava a ser um dos principais
interessados nesse processo, favorecendo a saída de homens e não de famílias,
para que os laços de sangue permanecessem mais vivos. Dessa forma, o Estado
obtinha benefícios com os parentes dos italianos no estrangeiro. Além das remessas
em dinheiro, os lucros também foram auferidos através da passagem de italianos
que retornavam, a fim de visitar familiares. Em carta enviada a 11 de maio de 1884,
Paulo Rossato aborda o assunto com o pai:
Ficamos entendidos, querido pai, que, se possível, mandarei algum dinheiro
para a Itália. Mas como comprei a colônia e ainda não recebi nada, o
posso enviar e além do mais paga-se 20% para remeter dinheiro à Itália.
Sugiro, pois, que vendam tudo o que têm e reúnam todos o dinheiro
possível, mas tratem de vir todos.
Verifica-se, então, que o grande significado do processo migratório, às
autoridades italianas e às classes mais ricas, foi livrar o país de milhões de
deserdados que, de uma certa forma, serviriam como portadores dos valores
culturais, abrindo mercados para os mais diversos produtos do país de origem. Iotti
escreve que fora necessária uma mudança de posição e atitudes do Estado, no que
diz respeito ao emigrante, ou seja, fora necessário aproveitar a situação para servir
aos interesses da Itália. Os emigrantes deixavam de ser o problema para se tornar a
solução, principalmente se levarmos em conta as dificuldades econômicas pelas
quais passava o país. Iotti comenta a posição tomada pelo governo italiano sobre os
núcleos coloniais:
E, para tanto, Crispi, publicou diversas circulares. (...) Uma destas circulares
(...) solicitava que os representantes diplomáticos e consulares
celebrassem, com as colônias de emigrados, as datas comemorativas
italianas, (...). A celebração das festas patrióticas deveria propiciar
condições para que os emigrados voltassem o pensamento para a pátria,
confirmando seu sentimento de fidelidade e devoção. O objetivo era o de
manter os emigrantes ligados à pátria, conservando vivos os vínculos de
italianidade, ou, até mesmo, criando-os
32
.
32
IOTTI, 2001 b, op. cit., p.53.
Muitas pessoas fizeram fortunas às custas desses emigrantes: quem lhes
comprou as poucas terras a preços baixos, ou quem lucrou com seu engajamento,
ou ainda quem os transportou à América. Entre estes últimos, destacam-se os
interesses da empresa imigratória e das companhias de navegação que utilizaram
uma arma muito poderosa: a propaganda. Essa, muitas vezes, não era verdadeira,
pois fora promovida por agentes, e pelas próprias companhias responsáveis pelo
processo de saída do país de origem e que, objetivava lucros com a mesma.
Geralmente, as empresas proporcionavam ao emigrante a chance de diminuir o
valor da viagem em troca de novos passageiros. Certamente, o valor obtido pelas
companhias era exorbitante sobre a porcentagem de emigrantes, porém tratava-se
de uma despesa a menos para os mesmos. Tendo conhecimento da situação, Paulo
Rossato escreveu ao pai para que o irmão conseguisse um engajamento, como
condutor, com a companhia. Na carta enviada em 24 de abril de 1884, há um anexo
com a explicação:
Este é o endereço que me deu o comissário do navio: Companhia de
Transportes Marítimos Raggio & Cia. Gênova Via Lucoli. Envio-lhes este
endereço para que o vão atrás de ninguém, que o todos
exploradores. Pois vocês dão 160 francos ao capitão do navio, seria
suficiente que recebesse 140. E estes francos, se meu irmão Antônio
souber fazer, serão todos economizados: ele pode colocar-se como
dirigente e condutor de passageiros, e quanto mais gente ele encontrar,
mais ganhará, pois o dono do navio paga 10 francos por pessoa. E se
perceber que aquele é o dono que transporta por menor preço, trate de
escrever logo 1,2 ou 3 cartas, até que receba resposta. Diga então que tem
20 ou 30 pessoas para ir até Rio de Janeiro. O dono deverá enviar o
formulário e cada um faz o seu contrato, mas não paguem mais que 140
150 francos (se possível 140), livres de carregamento. Se for preciso, que
cada um pague cinco francos para um ir a Gênova, mas se for possível
evitem também isso.
Um mês depois, em 30 de maio, repete a informação:
Não sabendo se receberam o endereço que mandei, torno a enviá-lo, tal
como deu o comissário do navio. Envio-o para que não tenham necessidade
de dirigir-se a nenhum outro, porque são todos exploradores, que procuram
tomar até o sangue de quem lhes cai nas os. O proprietário de navios
não cobra mais de 135 150 francos, livres de taxa de carregamento, para
cada pessoa. (...)Se não receberem resposta sob este endereço, façam o
mesmo escrevendo para a Agência de Stefano RAPETTO – Gênova.
A 22 de junho, continua insistindo para que entrem em contato com as
companhias de navegação:
Envio, a seguir, outros dois endereços. Se não puderem fazer o contrato
como querem, façam pelo menor preço possível. Escrevam antes àquela
companhia, cujo endereço mandei anteriormente, dizendo que m muitos
passageiros, e os darão a ela contanto que a viagem grátis a toda a
família. Escrevam o mesmo também a estas outras duas, e fiquem com
aquela que apresentar a melhor proposta. Se o oferecerem passagem
para toda a família, seguramente oferecerão ao menos para a metade, e
então, se for possível, tratem de colocar no meio também meu tio Pedro.
Mas arrumem o maior número possível de passageiros e verão que, a
deixarem que tantos se vão, eles acabarão por dar a vocês a passagem.
Não se atenham à Agência Rapetto. Tratem direto com os proprietários das
linhas, e haverão de gastar muito menos. Este é o endereço: Senhor Roque
Biaglio & Filho. Companhia de Transportes Gênova O outro: Senhor João
Batista Lavarelo. Companhia de Transportes. Gênova.
As companhias também eram responsáveis por trapaças, ludibriavam os
camponeses com falsas promessas, visando ganhos através da comercialização de
passagens e estadias até o momento do embarque que, em muitos casos, chegava
a levar em torno de dois meses ou mais. Ofereciam serviços que, na prática,
apresentavam-se de uma maneira totalmente contrária àquela oferecida: navios de
péssima qualidade, incluindo serviços diferentes aos combinados. A grande arma
era a publicidade que atingia todas as regiões italianas, independentemente de sua
localização. Tal propaganda divulgava os projetos de colonização, especialmente
aqueles dos países sul-americanos, constituindo um fator de aceleração do processo
migratório
33
.
33
GROSSELLI, op. cit., p. 103.
O brilho de Gênova causava grande impacto sobre o pacato camponês. Este
era oriundo de vilarejos e sentia-se deslumbrado diante da cidade agitada,
principalmente devido ao porto. Desta forma, os emigrantes eram com freqüência
enganados pelos mais espertos, os malandros que encontravam uma maneira de
tirar vantagem. Por isso, os emigrantes acabavam sendo trapaceados, pagando
preços altíssimos pelas refeições e pela hospedagem de péssima categoria. Como o
embarque não era imediato, acabavam chegando à América sem nenhum dinheiro.
Os primeiros emigrantes eram literalmente assaltados a olhos vistos. Com o tempo,
aqueles que os sucederam, amigos ou parentes, tomavam cuidado, gastando o
menos possível e escolhendo melhor os lugares onde iriam dormir ou alimentar-se.
Paulo Rossato preocupava-se com esta situação, pois já havia passado pela
experiência de ser ludibriado. Descrevia várias vezes, em cartas, como sua família
deveria fazer para não ser enganada, desde a saída de Valdagno, durante a espera
em Gênova, no percurso de navio até a chegada no Brasil. Do vilarejo ao porto,
passavam-se alguns dias e a chegada no porto era sempre motivo de admiração.
Gênova era cidade grande e desenvolvida, densamente povoada, com imponentes
prédios. O próprio porto, dado à sua grande extensão, gerava uma inquietação entre
os emigrantes. É possível ilustrar o que foi dito, com um trecho da correspondência
enviada por Rossato à família em 07 de maio de 1884.
Nas tavernas e em nova gastei 19,40 liras. Além disso, estava
combinado com Domingos Fin o preço de 155 liras, livres de carregamento.
Mas quando fomos pagar, pediram 160. São todos ladrões. Chegamos 2
dias antes, apenas para nos tirarem um pouco mais de dinheiro. Em
Gênova, se pudessem, arrancariam também o coração. E vocês quando
chegarem em Gênova, vão fazer as refeições em São Pedro della Rena: é
um pouco mais longe, mas compensa. Cuidem de sair de casa de tal forma
que, chegados a Gênova, partam de imediato. Providenciem pelas coisas
necessárias em Valdagno. Se for o caso, tragam um corote de rum e um de
azeite e cebolas, mas comprem a grelha em Gênova.
A Igreja teve uma participação importante nesse processo migratório, uma
vez que era contra a rebeldia, considerada por ela como sinônimo de violência.
Grosselli acrescenta que “(...) a mesma Igreja fazia parte como estrutura daquela
ordem de coisas que estavam pesando moralmente sobre a vida das massas
camponesas (ainda mais que os máximos vértices eclesiásticos eram de extração
nobre ou da alta burguesia)”
34
. Existia, ainda, o outro lado da questão: os
camponeses viam na Igreja Católica a grande autoridade, pois não se identificavam
com o Estado recém-unificado e tampouco com o dialeto de uma região que, em
determinado momento, foi escolhido por uma elite, como sendo a língua nacional.
Por isso, o papel do padre na comunidade era de extrema importância, conforme o
comentário do mesmo autor, que escreve
A Igreja Católica foi para a classe camponesa o que o Estado foi para as
modernas burguesias nacionais e o que foram as organizações sindicais e o
partido político para o proletariado urbano. A Igreja foi o “príncipe moderno”
dos campos trentinos; era organização e teorização, nela se formaram os
quadros dirigentes da classe e por ela era produzida a teoria que
intelectuais e classe teriam depois procurado transformar em praxe (...). A
moral camponesa era a moral católica, e a única verdadeira autoridade
reconhecida pelo camponês se identificava com a hierarquia eclesiástica. A
autoridade estatal era uma pura contingência histórica: não era o Kaiser a
suprema autoridade, mas o Papa de Roma.
35
Assim, a Igreja Católica foi de grande significado na vida do emigrante.
Neste período, a Itália havia passado por um recente processo de unificação política,
no qual foi estabelecida também uma unificação cultural, principalmente no aspecto
lingüístico. O país apresentava-se em regiões, as quais possuíam referências
culturais distintas. A assimilação dos valores determinados pela nova nação não foi
34
GROSSELLI, op., cit., p. 15.
35
GROSSELLI, op. cit., p. 132.
absorvida de imediato, por isso, a Igreja exercia um poder de homogeneização entre
a massa camponesa.
Embora a historiografia referente à imigração italiana coloque o aspecto
religioso como sendo de extrema importância para o colono, nas cartas de Paulo
Rossato, não foram encontradas expressões que ratificassem tal importância, a não
ser o fato de que a Igreja era utilizada para a divulgação de recados, conforme
escreve ao irmão, na carta de 08 de dezembro de 1884; “Saiba que foi publicado e
anunciado na igreja que agora estão sendo trazidos os passageiros de Gênova até a
Colônia Caxias de graça, sem que tenham que pagar nem mesmo um vintém”.
A emigração era a conseqüência de vários fatores estruturais e supra-
estruturais que acabavam gerando a revolta camponesa. Essa insatisfação era
suprimida devido à religiosidade, pois, como foi citado acima, a “moral e ética do
camponês trentino era a moral e ética católica”, e isto tornava problemático ou até
impensável uma organização dos descontentes ou seu confronto com o poder. No
entanto, esse descontentamento aparecia facilmente, antecedendo os embarques
para a América, nos quais acreditavam não precisar mais prestar obediência ou
dever de respeito às autoridades
36
.
Era mesmo difícil manter uma postura correta, sob o ponto de vista ético,
tendo um Estado que não tivera a preocupação de manter seus cidadãos no seu
território, mas que, pelo contrário, abriu todas as portas possíveis. Como escreve
Constantino Ianni
37
, a emigração não vai ser um processo de evasão apenas das
36
GROSSELLI, op, cit., p. 100-101.
37
IANNI, op. cit., p. 83.
classes mais baixas; refletirá a evasão da própria classe dirigente do país. O Estado
participa desse processo - não como nação defensora de seus emigrantes mas
como empresa interessada nos resultados econômicos. A elite italiana estava
preocupada no alargamento de seus territórios para além-mar, para auferir maiores
lucros.
1.3 “(...)PARECIA QUE PARTIRÍAMOS PARA O DESESPERO, E
ENCONTRAMOS (...)CIDADES COMO NA ITÁLIA”
A presença italiana no Brasil não ocorreu apenas com a imigração no século
XIX. Desde os decênios do século XVI, marinheiros e viajantes navegavam ao longo
da costa brasileira, sendo possível encontrar também refugiados políticos que aqui
fixavam residência. Vieram outros, como alguns jesuítas, cosmógrafos, marinheiros
e mercadores e, a partir do século XVII, estudiosos no campo geográfico e
etnográfico. No século XVIII, a presença italiana no Brasil foi mais escassa,
constituída por alguns engenheiros e cartógrafos contratados pelo governo
português para projetarem trabalhos de interesse predominantemente militar.
Contudo, escreve Trento, “entre o século XVI e fins do século XVII, a emigração
italiana para o Brasil é totalmente insignificante e limitada a personalidades de
cultura ou extração social elevada”
38
.
Ainda utilizando as afirmações de Angelo Trento, o autor recomenda que,
nos primeiros vinte anos do século XIX, é possível encontrar no Rio de Janeiro um
modesto núcleo que vive do trabalho manual, do pequeno comércio ou que exerce
38
TRENTO, Angelo.
Do outro lado do Atlântico
. São Paulo: Nobel, 1988. p. 15-16.
profissões liberais. Esse núcleo, na verdade bastante reduzido, tornar-se-á mais
consistente graças a uma emigração de caráter político: forçada, através de
condenados políticos obrigados pelo Estado Pontifício a exilarem-se, a fim de aliviar
a superpopulação das prisões do Vaticano em 1837; espontânea, devido aos
refugiados políticos, entre 1820 e 1848. Isto ocorria devido às condições pouco
atraentes para uma emigração de braços, que as necessidades eram na maioria
sanadas pela mão-de-obra escrava
39
. Entretanto, é necessário considerar que “(...)
a vida social em território italiano desenvolve-se a partir de núcleos urbanos(...)”,
conforme observa Núncia Santoro de Constantino
40
. Por isso, até mesmo o
camponês interessa-se em estabelecer-se nas cidades brasileiras que se
desenvolviam com maior rapidez.
Assim, até o século XIX havia estrangeiros, mas não correntes propriamente
imigratórias, nascidas de uma política internacional do governo. Conforme Eliane C.
Barros e Aldair Lando
41
, as poucas que ocorreram, anteriormente movidas por uma
política oficial, tiveram como objetivo povoar e ocupar regiões de valor estratégico,
como foi o caso das fronteiras espanholas com Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
para assegurar a posse à Metrópole; também houve a colonização das áreas que
não eram propícias à produção de gêneros destinados à exportação. O processo
colonizador e imigratório dirigido, propriamente dito, fez-se a partir da transferência
da Corte Portuguesa para o Brasil e da conseqüente Abertura dos Portos. O
capitalismo industrial que se desenvolvia na Europa exigia um mercado consumidor,
39
Ibid., p. 17-18.
40
CONSTANTINO, Núncia Santoro de.
O italiano da esquina
: imigrantes na sociedade porto-alegrense. Porto
Alegre: EST, 1991. p.23.
41
BARROS, Eliane C.; LANDO, Aldair. Capitalismo e colonização os alemães no Rio Grande do Sul. In:
DACANAL; GONZAGA (org.).
RS: imigração & colonização
. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. p.
09-11.
diverso do capitalismo comercial ligado à conquista e à ocupação. Ainda sobre esta
questão, Renzo Grosselli afirma:
Foi nesse ano que Dom João VI promulgou um decreto que assegurava aos
estrangeiros o direito à propriedade de terras em território brasileiro. Duas
foram as razões principais que estavam na base de tal disposição
legislativa: a) a exigência de acelerar o povoamento do imenso país que até
aquele momento era habitado somente em uma restrita faixa do território ao
longo do litoral. Iniciar, pois, a marcha em direção ao interior ou “marcha
para o Oeste” (...); b) a exigência de constituir no panorama social brasileiro
uma classe de pequenos burgueses produtores que se insinuasse
lentamente entre nobreza/ burguesia proprietária de terras e a classe dos
escravos negros. O sonho de Dom João VI era o de estabelecer as bases
para a criação de um novo Brasil, moderno e poderoso. Devia ser povoado,
sua terra devia dar frutos, seus recursos aproveitados. Para isso era
necessário romper a sonolência de origem colonial que era garantida pelo
imobilismo de quem tinha as riquezas do país, ou seja, dos latifundiários
42
.
Juntamente com os fatores acima citados, existiu a questão da mão-de-obra.
Houve a transformação do regime de trabalho, a substituição gradativa de escravos
por colonos brancos é a chegada dos imigrantes. Esse processo foi o verdadeiro
sentido da imigração européia, que deve ser observado na produção vigente no
início do século XIX: latifúndio e monocultura voltada para o mercado externo,
concomitantemente com a pressão inglesa, exigindo do Brasil a supressão do
tráfico. Desta forma, o Brasil ainda permanecia na “sonolência colonial” citada por
Grosselli. Conforme analisa Caio Prado Junior
43
, nesse sentido, existem dois
objetivos no processo imigratório: um de iniciativa oficial, a fim de ocupar e povoar
zonas até então desocupadas e distantes – a colonização - outro, de iniciativa
particular, estimulada pelo governo para obter braços livres à grande lavoura em
substituição ao braço escravo a imigração. De acordo com Grosselli, isto ocorreu
devido ao choque de duas forças: de um lado, a burguesia e a nobreza liberal, e de
42
GROSSELLI, 1987, op, cit., p. 236.
43
PRADO JR., Caio apud BARROS; LANDO, op. cit., p.11.
outro, os latifundiários que tendiam à perpetuação das estruturas econômico-sociais
arcaicas do país - sabemos que esses foram os vencedores.
Após 1850, ocorre uma modificação substancial no processo de colonização:
a terra pode ser adquirida pela compra. Assim, embora o Brasil ainda seja um
país escravocrata, dá início à entrada do capitalismo, tornando-se a terra uma
mercadoria. Dessa forma, a Lei de Terras já é capitalista, embora o seu sistema seja
pré-capitalista. A imigração passa a ser financiada por uma política imperial de
colonização, que passava a depender do lucro gerado pela venda dos lotes aos
colonos, preferencialmente europeus. Como afirma Giron
44
, visava-se, a médio
prazo, ao aumento da produtividade agrícola e, a longo prazo, ao “branqueamento”
da população brasileira, através da miscigenação. Desse modo, conclui-se que o
êxito da colonização estrangeira, no sul do Brasil, ocorreu porque não se
desenvolveram culturas de latifúndio e assim os colonos não estabeleceram
concorrência com os grandes latifundiários no mercado internacional. As políticas de
imigração também foram temas discutidos na correspondência dos imigrantes, ora
recebendo críticas positivas, ora negativas. Os comentários referiam-se basicamente
às condições de hospedagem nas casas de imigração e ao trajeto às colônias. Na
sua primeira carta enviada em 27 de dezembro de 1883, Rossato faz críticas ao
tratamento dispensado aos imigrantes, por parte do governo brasileiro:
Depois, em 11 dias chegamos ao Rio e lá nos conduziram à casa de
imigração, numa ilha chamada do Galo. Ficamos naquele local por 3 dias,
com pouca comida: café pela mane uma pequena merenda às 4 horas.
Uma dieta desta um doutor não a prescreve nem mesmo a um doente. Se
quisesse comprar um pedaço de pão com um marengo (moeda de ouro),
não se o encontrava. (...) No dia 28 partimos para a colônia, às custas do
governo. Aliás, desde o Rio de Janeiro recebíamos tudo do governo
.
44
GIRON, op. cit., p. 56.
Devido às diferenças de tratamento dadas aos imigrantes que iriam às
colônias do governo e às colônias de particulares, Rossato informa à família
“Quando perguntarem, durante a viagem, para onde vocês vão, digam sempre que
para a Colônia Caxias. Não digam nunca que vão para terras compradas ao conde,
que senão eles não carregam as bagagens de vocês”.
Após um ano de sua chegada ao Brasil, Rossato preocupa-se em trazer toda
a sua família e, por isso, entra em contato com o serviço de imigração, mandando
buscar o irmão na Itália:
Saiba que mandei buscá-lo pela imigração. Fique em casa, que o secretário
de Novale haverá de mandar avisar quando deve partir. Escreva à
sociedade de navegação, perguntando se você pode embarcar no navio
que quiser, e avise-me quando partir.
Quatro meses depois, em 14 de junho de 1885, continua preocupado com a
situação do irmão e escreve:
Quanto a você, fique atento, pois dizem que são inúteis as cartas do serviço
de imigração, mas eu não creio. Esteja alerta e, quando chegar a ordem,
parta logo. Escreva, entretanto, a Stefano Rapeto, dizendo que foi chamado
para a Imigração, mas se ele está disposto a dar a você a passagem grátis,
você lhe entrega tantos passageiros (sei que vêem os Vancatio de
Musolone, e muitos de Quarienta e de Brogliano). Em suma, de um jeito ou
de outro, encontre o maior número possível. E examine onde é mais
vantajoso para você, se com a imigração ou com a companhia
.
Com a Lei de Terras
45
e o Império dependendo da venda dos lotes, o Estado
passa a delegar a particulares a empresa da imigração, após 1850. O próprio Estado
45
Cf. IOTTI, Luiza Horn. (org.)
Imigração e colonização
: legislação de 1747 1915. Caxias do Sul:EDUCS;
2001 a. p. 112. “Dispõem sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por título de
sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacífica: e
determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso assim para empresas
contrata empresários, que buscam os colonos para vender terras aos seus
semelhantes . Como analisam Giron e Bergamaschi, “(...) antes de 1850, a terra era
concessão do Estado, o que significa que tinha apenas valor de uso. Após 1850, a
terra se torna mercadoria, adquirindo um duplo valor: o de troca e o de uso. À
medida que se torna mais rara, a terra adquire maior valor de troca e, por
conseqüência, maiores preços”
46
.
A fim de vender os lotes destinados à imigração, emissários eram enviados
à Itália entre os anos de 1875 e 1880, como afirma Thales de Azevedo, para aliciar
colonos para o Rio Grande e outras províncias ao norte e sobretudo ao sul. Isto
proporcionou vários mal-entendidos, pois os agentes eram acusados de
propagandear o Brasil como sendo a terra do “(...)ouro e das pedras preciosas, das
ricas plantações de café, das quais os colonos poderiam tornar-se proprietários em
poucos anos”. Ao mesmo tempo dizia-se que “(...)os colonos eram tratados no país
como verdadeiros escravos, pelos capangas dos fazendeiros”
47
. Rossato informa, na
carta escrita em 24 de abril de 1884, sobre as diferentes localizações das colônias:
Para ir de minha colônia até Rosso de Massignani são necessárias 4 horas
de caminho. Ele e todos os de Muzzolone estão juntos, mas num lugar não
dos melhores: longe do comércio, longe da vila e difícil para vir à missa.
João Mantoan estava com Seco dos Menti, mas deixou-os e veio para o
campo, próximo a nós, e acha muito melhor.
Em 07 de maio, retoma o assunto da carta anterior, explicando que as
colônias do governo eram gratuitas, porém distantes do campo. Eis a razão porque,
particulares, como para o estabelecimento de Colônias de nacionais, e de estrangeiros, autorizado o Governo a
promover a colonização estrangeira na forma que se declara”.
46
GIRON; BERGAMASCHI, 1996, op. cit., p. 10.
47
AZEVEDO, Thales de.
Italianos e gaúchos:
os anos pioneiros da colonização italiana no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975. p.59.
optam por comprar as terras de particulares, aqui, do Conde Feijó, sendo que o
mesmo vende ½ colônia ou ¼, se preferir
48
:
No dia de janeiro cheguei ao Campo e de fomos ver as colônias do
governo. Como estão muito longe do Campo, ficamos com medo e dirigimo-
nos então para ver as do conde Feijó. Como estão perto do Campo,
compramos juntos 4 colônias. Eu comprei uma, e João e Máximo Lora
compraram outra, Gio Maria Lora uma outra, e Meneguzzo e Antônio
Vencato outra. O preço é de 800 mil réis por colônia, com dois anos de
prazo para pagar, sem juros. Espero que venha toda a família e assim
acabarei de pagá-la.
(...)
Outros que desejarem vir para cá irão bem se tiverem um pouco de dinheiro
porque podem, com ele, pagar logo a colônia, se podem contratar alguém
para trabalhar. Dá no mesmo aqui junto ao conde, que tanto vende ½
colônia como ¼ ou até menos, e quando estão pagas não causam mais
preocupações e são colônias boas. Quem se dirige ao governo, recebe
colônia grátis, mas estão longe daqui, distando 7 ou 8 horas de caminho do
Campo, mas são também boas colônias.
Ainda comenta o assunto em 22 de junho:
Assinalei aquelas poucas colônias na Colônia Sartorina, para esclarecer
melhor. Seguramente vocês perguntarão porque não são ocupadas aquelas
colônias próximas ao campo? É porque os imigrantes possuem pouco
dinheiro e grande família, e por isso vão à procura de colônias grátis,
embora mais longe.
Na verdade, a opinião pública e as autoridades italianas não podiam fazer
distinções entre as regiões brasileiras e as diferentes condições que elas
apresentavam entre si. Mal se conhecia o nome de São Paulo
49
, menos ainda do
restante do país. Dessa forma, muitos imigrantes ficaram sujeitos à situação de
escravos, ao invés de colonos. Isso permite inferir que, apesar de toda a política de
48
Na carta, Paulo Rossato refere-se “ao Campo” como sendo a área urbana da Colônia Caxias. Cf. GARDELIN,
Mario.
Colônia Caxias
: origens. Porto Alegre: Est, 1993. p. 64-65. “Tudo indica que a origem do “Campo dos
Bugres”, como local de permanência indígena, seja imemorial. Sua localização, possibilidade de defesa,
esplêndidas aguadas e abundância de pinheiro, que forneciam o alimento preferido, faziam com que
periodicamente os índios retornassem a ele, e, mais do que isso, nele houvessem mantido, por muitos anos, senão
séculos, um cemitério, sinal evidente de que o terreno também era sagrado. (...) O Campo dos Bugres localizava-
se entre a Avenida Júlio de Castilhos, a Marechal Floriano, a Avenida Rio Branco, na quadra onde hoje está o
Colégio São Carlos”
49
Sobre a imigração italiana ocorrida em São Paulo, consultar HUTTER, Lucy Maffei.
Imigração italiana em
São Paulo
(1880-1889): os primeiros contactos do imigrante com o Brasil. São Paulo: USP – Fundação Instituto
de Administração, 1972.
imigração e colonização, com enormes recursos despendidos, os bons resultados
nem sempre foram alcançados. Grosselli examina, assim, a questão:
Raros outros governos, talvez nenhum, despenderam a quantidade de
dinheiro que os governos brasileiros gastaram para sustentar e alcançar
este seu intento. Nenhuma legislação imigratória foi o generosa com
relação aos imigrantes. Mas no final das contas, em poucos países do
mundo se assistiu à numerosa série de malogros e desilusões que no Brasil
acompanharam as tentativas de colonização, à longa série de querelas
diplomáticas e de conseqüentes boicotes que o Brasil sofreu da parte de
muitos governos europeus. Em poucos países do mundo, os primeiros anos
de permanência na colônia foram cheios de dificuldades como no Brasil do
século passado. Em nenhum outro país os colonos europeus foram
equiparados aos escravos e reduzidos à condição de vidas subumanas,
como nas fazendas brasileiras
50
.
divergências sobre a opinião dos imigrados a respeito da América.
Enquanto alguns manifestam felicidade, outros se arrependem do dia em que
subiram ao navio. Estas controvérsias manifestam-se a partir da análise das cartas,
visto que seus redatores nem sempre possuem os mesmos objetivos.
Com Paulo Rossato, unem-se as opiniões de outros imigrantes, interessados
em modificar suas condições de sobrevivência. São os casos de Dom Domenico
Munari e Giovanni De Boni, párocos radicados em Porto Alegre e Caxias do Sul,
respectivamente. Incluem também os irmãos Antonio, Luigi e Felice Taschetto, bem
como Felice Sartor e Antonio Basso. Verificam-se as diferenças citadas por Dom
Domenico Munari, Paulo Rossato e Felice Sartor sobre a região serrana. A distância
de tempo pode ter sido fator fundamental nesse olhar, pois o primeiro esteve na
região logo após a fundação, e os demais estabeleceram-se na Colônia Caxias
quase uma década depois, a qual tornou-se referência às outras colônias nos
aspectos socioeconômicos e políticos. Dom Domenico Munari fixou-se nas colônias
50
GROSSELLI, op, cit., p. 236.
Conde D’Eu e Princesa Isabel, ao contrário de Felice Sartor e Rossato que se
estabeleceram na Colônia Caxias. Na sua carta escrita em 21 de outubro de 1877,
narra:
Este dia (...) me lembra os alegres amigos com os quais eu costumava
conversar jovialmente em tempos menos infelizes que o presente. (...) Eu
gozo de ótima saúde, apesar de a sorte iníqua rir de mim e ter me feito alvo
de seus golpes mais ferozes de todos os tempos, especialmente no
decorrer da minha viagem para estes lugares do novo mundo (...). Após a
minha desgraçada partida e o meu naufrágio no litoral da França (fatos
conhecidos por todo mundo) tive a coragem e a temeridade de arriscar pela
segunda vez a passagem do Atlântico e dia 18 de abril de 1877 subi em
Havre, a bordo de navio a vapor de nome Portena, o qual, no dia 10 de
maio (dia da Ascensão de Nosso Senhor) após uma partida de 3 dias em
Lisboa e Santa Cruz das Canárias, felizmente me trouxe ao Rio de Janeiro.
Permaneci uns 12 dias, mas constatando que a seca aí rondava, e com a
foice da febre amarela ameaçava mandar-me a engordar as beterrabas do
coveiro, dei no ou seja, subi num navio e foi embora até ao Rio Grande
do Sul (...).
Mais adiante declara:
A maioria amaldiçoa o dia em que a América foi descoberta, amaldiçoam o
descobridor, a emigração e o dia da partida deles para estes lugares, e
desejariam estar míseros e nus na própria pátria do que se ver privados de
tudo no meio destas antigas selvas, sem esperança de poder voltar à pátria
e com pouca esperança de serem providos do necessário.
Felice Sartor, certamente, não fez parte desta maioria, pois, em carta
enviada a 15 de maio de 1885, canta louvores ao Brasil:
Oh, como deve ter sido lindo o dia em que o povo hebreu, passado o Mar
Vermelho, cantava hinos de agradecimentos a deus que o havia libertado
da escravidão do faraó! Assim nós paroquianos de São Vittore e Santa
Corona, libertos das misérias da Itália graças ao novo Moisés Dom Pedro II
Imperador do Brasil, cantamos hinos de agradecimentos a Deus que
enxugou as nossas lágrimas. Seria uma alegria compartilhar o alimento que
nos sobra com os nossos irmãos italianos.
Apresenta-se entusiasmado com a vida na colônia, assim como Rossato que
afirma, “Aqui vocês encontrarão amigos e alegria à vontade, temos comida à fartura
para vocês e dentro de dois anos, também bebida”.
1.4 ...POR UM RIO QUE É TRÊS VEZES MAIOR QUE O AGNO
Em meados do século XIX, o Rio Grande do Sul ainda estava submetido
econômica e socialmente à Campanha Meridional. Como afirma Olivio Manfroi, “a
agricultura tinha alcançado um desenvolvimento notório, graças aos colonos de
origem alemã, mas a pecuária era, ainda, a atividade predominante”
51
. O Rio Grande
do Sul, em 1870, apresentava-se com 440 mil pessoas, 28 municípios divididos em
73 paróquias. Parte do território, 87 mil quilômetros quadrados de serras, na Encosta
Nordeste e no Alto Uruguai, permanecia como terras devolutas. havia a presença
de italianos antes mesmo de 1875. E, aproximadamente, 729 viviam na Província.
Na década de 1870, começaram a ingressar em grandes contingentes, tendo muitos
ingressado a partir de Montevidéu e Buenos Aires
52
. Estes países atraíam imigrantes
novamente na década seguinte, oferecendo vantagens, como sugere Paulo Rossato
a seus irmãos:
Pensei também que dois irmãos poderiam partir para a Argentina, viajando
de graça. Vão a La Plata, três horas além de Buenos Aires, e ganhariam
6 ou 7 francos por dia. Poderiam ficar por uns 8 ou 10 meses e depois,
com quarenta mil réis, chegam até o Campo. Levem então meu endereço e
escrevam-me quando vierem para cá. Com o dinheiro que nós ganharemos
51
MANFROI, Olivio.
A colonização italiana no Rio Grande do Sul:
implicações econômicas, políticas e
culturais. Porto Alegre: GRAFOSUL/ IEL/ SEC, 1975. p. 56.
52
Cf. CONSTANTINO, Núncia Santoro de; OSPITAL, Maria Silvia. Construção da identidade e associações
italianas: La Plata e Porto Alegre (1880-1920).
Revista Estudos Ibero-Americanos
. PUCRS, v.25, n. 2, p.133,
dez.1999. “A colônia italiana foi a mais numerosa entre os grupos imigrantes estabelecidos na nova capital. Em
1884, quando se realizou o primeiro censo municipal, os peninsulares representaram mais de 50% do total de
estrangeiros”. Em 1885, 10.800 italianos “(...) um pouco mais do que o total de argentinos e equivalendo a 68%
dos estrangeiros.
e o que eles trouxerem, daríamos bom golpe no pagamento da colônia. Mas
que permaneçam sempre unidos e cuidem do dinheiro, se pensam em ir
para a Argentina. Quanto a mim, não teria dúvida nenhuma. E se eles
ganharem muito bem, que me escrevam antes de vir para cá. o
regime republicano, e cada 5 anos fazem um pouco de revolução, mas dura
apenas um dia ou dois, até que trocam o rei. Mas agora faltam ainda três
anos. Partindo de lá demoram 4 dias de navio para chegar até aqui.
Em 24 de maio de 1870, houve a criação das colônias Conde D’Eu e Dona
Isabel pelo presidente da província do Rio Grande do Sul, porém o projeto o
avançou.
O governo imperial, então, assume as duas colônias, interessado em uma
colonização-propaganda, que atraísse imigrantes para o Brasil, cuja crise de mão-
de-obra agravara-se seriamente com o movimento abolicionista. Em 1875, ocorre a
fundação da Colônia Fundos de Nova Palmira que, em 11 de março de 1877, passa
a se chamar Colônia Caxias.
No mesmo ano é fundada a Colônia Silveira Martins, nas proximidades de
Santa Maria. Estas quatro colônias foram o núcleo básico da imigração italiana no
Rio Grande do Sul. As mesmas receberam, em sua grande maioria, emigrantes das
três Venezas que representavam “66,5% ( vênetos 50%; trentinos 7%; friulanos
4,5%), os da Lombardia 33%, enquanto as outras regiões incidiam em 1,5%”
53
.
Os dados sobre o número de imigrantes italianos que entraram no estados são
incertos, contudo Hutter registra que se estabeleceram no Rio Grande do Sul de 74
a 100 mil imigrantes, entre 1875 e 1914
54
.
53
TRENTO, op. cit., p. 80.
54
HUTTER, L. M. A Imigração italiana no Brasil ( séculos XIX e XX): dados para a compreensão desse
processo. In: DE BONI, Luis A.(org.).
A presença italiana no Brasil
. V.2. Porto Alegre:EST, 1990.
A colonização do Rio Grande do Sul é dividida em três etapas, conforme
Olivio Manfroi. A primeira é a da colonização provincial (1869-1875), com o objetivo
de interligar a Depressão Central com o Planalto, pretendendo implantar colônias
agrícolas européias na Serra, separadas uma das outras por intervalos que seriam
ocupadas pela população de origem, atraída pela prosperidade. A segunda refere-se
à colonização imperial (1875-1889), com o objetivo de produzir “pólos de atração”. A
terceira diz respeito à colonização republicana (1889-1914), que não modificou a
linha política, mas conferiu-lhe um caráter administrativo.
As cartas analisadas inserem-se no período da colonização imperial, embora
seus redatores as tenham escrito em tempos diferentes. Elas demonstram o impacto
causado nesses imigrantes, graças à região de colonização à qual pretendiam.
Antonio Basso e Antonio Taschetto escreveram da emancipada Colônia Silveira
Martins, Santa Maria Boca do Monte, que evidenciava substanciais diferenças em
relação às colônias fundadas na região serrana do Estado. Expressam o desejo de
retornar à pátria, devido à falta de adaptação. Assim, escrevem os irmãos Taschetto
em 1887:
Nós outros estamos aqui, mas não estamos contentes porque são montes e
beiras e poucas planícies e tambémmuitos bichos de pé e muitos outros
perigos. Vamos trabalhar por conta dos colonos e recebemos trinta moedas
por dia e ir trabalhar para o governo rende 50 moedas, mas s outros o
vamos porque existem muitos perigos, até de vida e esta é a cocanha que
se escrevia estar aqui na América. (...) Saúda o meu amigo Nespolo
Agostinho e pedi-lhe se pode obter a graça que vamos lhe pedir, alias te
imploramos de ir até o nosso patrão B. e de entregar-lhe esta carta que nós
estamos com os olhos marejados e de joelhos pedindo à sua bondade
porque todas as nossas esperanças estão nele e o imploramos que nos tire
destes tormentos e que nos faça voltar para a Itália que quando
estaremos nos sujeitaremos a qualquer condições sua e que pagaremos
com a nossa vida as despesas decorrentes da viagem de volta. Estimado
patrão, colocamos todas as nossas esperanças na sua bondade, esperando
na sua misericórdia e que não seremos abandonados pelo senhor e o
saudamos de todo o coração e nos declaramos seus desejados servos
Taschetto Antonio e Luigi e Felice. Então, querido irmão te saudamos e
esperamos receber algum consolo da tua resposta, caso contrario seremos
obrigados a ir nas nossas colônias e no meio das matas desertas e
deveremos morrer barbaramente.
Na mesma situação, dois anos depois, Antonio Basso redige duas cartas,
ambas datadas de abril de 1889:
Queridíssimos irmãos, venho com estas poucas linhas vos pedir para ir à
prefeitura e pedir ao secretário que me faça a documentação para retornar à
Itália, porque tenho todos os meus filhos doentes porque não se acostumam
aos alimentos e ao clima, não conseguem ficar bem, por causa disso
morreu a minha filha Caterina, assim me restam Antonio, Bartolo, Giovanni,
Luigi, Ângela, Maria, todos estão muito doentes, eu também me encontro
com pouca saúde, assim peço ao senhor secretário a caridade de fazer a
documentação para voltar para a Itália de graça, pois me encontro em
grande miséria. Sabemos que outros voltaram para a Itália gratuitamente
assim ele me faria uma caridade se pudesse fazer a documentação porque
foi traído por Davanzo Giusto que me chamou, declaro ser Antonio Basso.
Na carta escrevam também que nós outros partimos da Itália no ano de
1888, aqui encontramos pouco trabalho, colônias tristes, e também as
crianças choravam de fome, chegamos nos primeiros dias de março em
Santa Maria Boca do Monte e logo caíram por terra pela fome e agora se
encontram na mesma situação, o ano passado, quando ia para o trabalho
encontrava na chuva muitos cavalos mortos e carretas atoladas e nos
banhados cavalos atolados e deixados mortos lá. Eu estou com pouca
saúde por causa do clima e dos alimentos aos quais não me acostumo.
Coloca também na carta que fomos chamados e abandonados no meio da
rua doentes, sem dinheiro e com uma criança morta. (2ª carta- abril de
1889)
Os italianos que começaram a chegar em 1875 encontraram ocupadas as
terras mais férteis e melhores, pois os colonos alemães foram sendo assentados
desde 1824. Assim, tiveram que se contentar com “lotes localizados no planalto,
numa região coberta de mata, a notória encosta da serra”
55
. Mesmo assim, a
expansão foi rápida e, em poucos anos, os territórios designados foram inteiramente
ocupados, obrigando os novos imigrantes e os descendentes dos primeiros a
procurarem novas terras. Assim, iniciou-se uma expansão na periferia das antigas
colônias e, posteriormente, para direções mais amplas e distantes. Com certeza,
55
TRENTO, op.cit., p. 85.
como afirma Manfroi, o desejo de ser proprietário, a disposição a novas aventuras, a
fertilidade das terras novas, influenciaram a expansão. Todavia, “são razões
secundárias, pois o grande motor da expansão foi o próprio sistema de colonização,
associado a uma cnica primitiva de exploração do solo e ao extraordinário
crescimento demográfico das antigas colônias”
56
. Houve outro importante motivo à
expansão, além desses já citados, segundo Trento:
(...) o sul do Brasil oferecia, aparentemente, as condições mais vantajosas
para esse tipo de emigrante, cuja maior aspiração ainda era representada
pela posse da terra. De fato, mesmo que através da abertura de novos
cultivos em terras virgens, a região oferecia a esse emigrante a
possibilidade de tornar-se, em poucos anos, dono de um sítio de dimensões
em média bem maiores do que ele tinha tido na pátria(...) para a escolha do
destino final contribuíam as notícias sobre o clima das regiões do sul do
Brasil, suficientemente semelhante ao italiano e capaz de assegurar o
cultivo de produtos dos quais o emigrante estava acostumado e sobre os
quais tinha uma bagagem mínima de conhecimentos”
57
Nesse período, a situação do Rio Grande do Sul apresentava pontos
favoráveis e outros nem tanto. De um lado, a criação de gado e a exportação do
charque, base da economia rio-grandense, se não fosse substituída, poderia ser
complementada com a pequena propriedade e a agricultura, assegurando desta
forma uma maior prosperidade à economia da região. A baixa produtividade do
escravo, na indústria do charque, aos poucos, criou uma mentalidade favorável à
colonização, pois o mesmo o era dado às atividades agrícolas. Por outro lado,
havia uma certa incredulidade com o colono estrangeiro - uma das causas seria a
péssima administração por parte do Império que, segundo governantes e políticos
gaúchos, era responsável por “desperdiçar recursos, administrar mal as colônias
existentes e não selecionar bem os colonos”
58
. Prova disso é que, mais tarde, entre
56
MANFROI, op. cit., p. 82.
57
TRENTO, op. cit., p. 80.
58
TRENTO, op, cit., p. 83.
1882 e 1884, as principais colônias foram emancipadas, devido a gastos imperiais
elevadíssimos com as mesmas. Em outubro de 1877, Dom Domenico Munari faz
algumas citações sobre o que presenciou nas colônias Conde D’Eu e Dona Isabel,
referente à situação dos imigrantes e à administração das mesmas.
(...) entrei pelo canal de Porto Alegre e fui enviado à paróquia de Conde
D’Eu, colônia italiana de mais ou menos 4.000 almas. Em seguida foi me
dada também a colônia Dona Isabela com outros tantos italianos. Mas,
considerada a impossibilidade de agüentar este encargo, especialmente
face a indiferença e ateísmo das vorazes harpias
59
que dirigem aquela
desventurada colônia, apresentei ao governo o pedido das minhas
demissões (...). Não é improvável que volte para a colônia Conde D’Eu,
mas, por enquanto, a conselho do Bispo não volto, porque os colonos
querem, e com razão, dar uma lição de eqüidade e justiça ao Chefe da
colônia que os trata pior que escravos. (...)No meio da selva, no começo
sem teto e depois em uma cabana pior que aquela famosa e santíssima de
Belém, feita na maior parte de caniços, onde o ar e a água tem sempre o
domínio. Uma cabana fica distante da outra de ½ Km a 2 Km e ½ .
Enquanto estou escrevendo, os colonos estão indo para a própria colônia
onde encontrarão mata, mata, mata. Somente por 10 dias é dado a eles o
alimento e depois mais nada, nada e nada. Uma vez recebiam 105 fiorini,
para pagar a casa, agora a máscara caiu, e somente 25 fiorini (quando
Deus quer) lhes são concedidos, e estes fiorini equivalem não a 25 francos
dos nossos, mas à metade de 25 francos e menos ainda. (...) Na verdade
nesta confusão o Governo do Brasil não tem parte, porque ele faria as
coisas de maneira bem diferente; mas estes canibais que supervisionam as
colônias, são os czar e as harpias que surrupiam da miséria as últimas
gotas, para enriquecer e vicejar em tudo.
Mas, nem todos os imigrantes que se estabeleceram no Rio Grande tiveram
seus destinos relacionados aos núcleos coloniais. Chegavam em navios que vinham
diretamente a Porto Alegre ou em barcos que apanhavam no Rio de Janeiro. Os que
seguiriam às colônias, desembarcados e enviados para São Sebastião do Caí,
sempre eram a maioria. Outros, dirigiam-se a regiões diversas, “certo número
preferia ficar em Porto Alegre, como empregados ou artesãos e operários, e um
número ínfimo regressava ao Rio e talvez à Europa ou ao Rio da Prata”
60
. Aqueles
que seguiam às colônias não o faziam por conhecerem a realidade daquele local.
Muitos vinham para uma colônia preestabelecida, a convite ou orientados por
parentes e amigos.
59
A harpia é um monstro fabuloso com corpo de abutre e rosto de mulher; em termos figurados é uma pessoa
avarenta e má.
60
TRENTO, op. cit., p. 96.
2. "AQUI NO CAMPO..." O COTIDIANO DO IMIGRANTE ITALIANO NO RS
“Palavras escritas sobre a própria vida,
quando escritas com honestidade, revelam sentimentos desconhecidos,
aspectos diferentes de circunstâncias vividas, facetas obscuras,
às vezes boas, às vezes más, de pessoas que nos circundam,
novos horizontes e perspectivas – este é o seu valor como revelação”. (L.F.
BARROS)
2.1. O COTIDIANO: UMA ANÁLISE MICROHISTÓRICA
Compreender o início do processo imigratório no Rio Grande do Sul,
partindo do estudo da realidade do imigrante, faz parte de uma análise
microhistórica. Os italianos Paulo Rossato, Dom Domenico Munari, Felice Sartor,
entre outros, fazem parte dos chamados "protagonistas anônimos" da História, termo
utilizado pelo historiador Ronaldo Vainfas para designar uma figura intermediária, um
"mediador cultural". Segundo o autor, a microhistória "apega-se obsessivamente às
mínimas evidências que a documentação pode fornecer para dar vida a
personagens esquecidos e desvelar enredos e sociedades ocultados pela história
geral"
61
. Desta forma, é possível reconstruir parte do processo imigratório, através
de falas de personagens até então presentes nos bastidores da História.
O objeto de estudo desta dissertação é o cotidiano do imigrante italiano,
analisado a partir de suas próprias cartas. Através deste cotidiano procuram-se
indícios para responder às indagações pertinentes ao processo imigratório. Por que
saíram da Itália? Quais são as condições em que vieram e que aqui chegaram? São
61
VAINFAS, Ronaldo.
Os protagonistas anônimos da História
. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p.03.
perguntas que não podem deixar de ser respondidas e envolvidas, em uma rede de
relações, com o conteúdo diário das cartas. A microhistória não proporciona grandes
explicações. Contudo, ela lembra, através de pequenos indícios, que se pode chegar
a um contexto específico, o que torna possível ao historiador preencher lacunas do
passado através de fontes históricas. Vários autores teorizam sobre o cotidiano,
como Ginzburg, Certeau e Agnes Heller. Esta última autora afirma que a vida
cotidiana é o "centro do acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância
social", não estando, assim, "fora" da História
62
.
A significação e o conteúdo da vida cotidiana modificam-se conforme o
modo específico de cada estrutura econômico-social. Serão os interesses da
camada à qual o indivíduo pertence, que irão justificar um pensamento como
verdadeiro na atividade social, e sua ação corresponderá às exigências cotidianas
dessa mesma camada social, o que poderá se converter em ideologia
63
. A vida
cotidiana também é determinada pela época e pela posição social do indivíduo em
seu grupo, o que possibilita uma margem de movimento diferente em cada caso
64
.
Heller afirma:
a vida cotidiana é a vida de todo o homem. Todos a vivem, sem nenhuma
exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e
físico(...). A vida cotidiana é a vida do homem inteiro, ou seja, o homem
participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de
sua personalidade. Nela, colocam-se em "funcionamento" todos os seus
sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades
manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias
65
.
62
HELLER, Agnes.
O cotidiano e a História
. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p. 20.
63
Ibid., p.32-33.
64
HELLER, op. cit., p.40.
65
Ibid., p.17.
A autora acrescenta discussões sobre os juízos morais, estes também
presentes no cotidiano, incluindo o pensamento, o conhecimento e o
comportamento. Um exemplo de regra provisória de comportamento podem ser os
estereótipos elaborados, os quais assumimos ou nos são impostos pelo meio em
que vivemos. A atitude crítica a respeito desses esquemas pode levar muito tempo
para ocorrer - quando ocorre. Quando os juízos provisórios conservam-se
inabalados contra todos os argumentos da razão, estes tornam-se preconceitos e
“(...)pelo menos parcialmente, são produtos da vida e do pensamento cotidianos”
66
.
Segundo a mesma autora, diferentes elementos que devem ser levados
em consideração na estrutura da vida cotidiana:
- espontaneidade - nem toda a atividade cotidiana é espontânea, porém esta é a
tendência;
- probabilidade - é impossível na vida cotidiana calcular a conseqüência possível de
uma ação;
- economicismo - "Toda categoria da ação e do pensamento manifesta-se e funciona
exclusivamente enquanto é imprescindível para a simples continuação da
cotidianidade(...)"
67
.
A historiadora considera, também, que sentimentos, como a e a
confiança, desempenham um papel mais importante na cotidianidade do que nas
demais esferas da vida, ocupando uma função mediadora entre as situações,
conforme o exemplo que cita a seguir: “Ao astrônomo, não basta ter em que a
66
Ibid., p.47.
67
HELLER, op. cit., p.29-31.
Terra gira em redor do Sol; mas, na vida cotidiana, essa é plenamente
suficiente”
68
Para Michel de Certeau, "fazer História é uma ptica”
69
, sendo, portanto,
mediatizada por uma técnica que mais tarde se constituirá em narrativa elaborada
pelo historiador. Faz parte desta prática a escolha dos fatos e das fontes que irão
condicionar o discurso. Neste caso, cabem, aqui, as afirmações do autor: "(...) o
outro é o fantasma da historiografia. O objeto que ela busca, que ela honra e que ela
sepulta. Um trabalho de separação se efetua com respeito a esta inquietante e
fascinante proximidade"
70
. Cabe ao historiador interligar (ao mesmo tempo) o objeto
de um período e de um lugar - evidenciando sua particularidade - e a sua ligação
sob o ponto de vista através do qual vai ser examinado.
Embora seu objeto esteja no passado (real perdido), a prática encontra-se
no presente, tornando-se responsável pelo olhar de estranheza sobre as fontes
trabalhadas, no caso aqui específico, as correspondências. Dentro dessa
perspectiva, concorda-se com Certeau quando afirma que "(...) é preciso aproximar
um outro aspecto, não menos surpreendente, das pesquisas atuais: a confrontação
de um método interpretativo com seu "outro" ou, mais precisamente, o ato de
evidenciar a relação que liga um modo de compreender com o incompreensível que
ele faz surgir"
71
.
68
Ibid., p.33.
69
CERTEAU, Michel de.
A escrita da História
. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.78.
70
Ibid., p.14.
71
CERTEAU, op. cit., p.49.
Pode-se desta forma estabelecer relações entre o pensamento de Certeau e
o objeto de estudo desta dissertação, que, sobre o conteúdo da correspondência,
faz-se necessário um método interpretativo, o qual possa ser neutro para
compreender a subjetividade de quem observou determinada realidade, ou seja, o
olhar dentro da perspectiva de quem observa não quer dizer que é o único
admissível, porém é a sua vivência transformada em narrativa.
Ginzburg
72
utiliza uma análise de Leibniz sobre o olhar, o qual realiza uma
comparação entre os vários ângulos de visão de uma cidade, que parecem diversos,
devido à multiplicidade das suas perspectivas "(...) assim também, dada à
multiplicidade infinita das substâncias simples, existem como que diferentes
universos, os quais, no entanto, não passam de perspectivas de um só(...)"
73
. Sobre
o cotidiano, podemos citar ainda a afirmação de Chklovski :
Se estudarmos com suficiente atenção as leis da percepção, não
tardaremos a perceber que os atos habituais tendem a se tornar
automáticos. Todos os nossos hábitos provêm da esfera do inconsciente e
do automatismo. Para se dar conta disso, basta lembrar a sensação
experimentada ao segurar uma caneta pela primeira vez ou quando se
começa a falar uma língua estrangeira, e compará-la à que acompanha o
mesmo ato na sua milésima repetição. As leis da linguagem cotidiana, com
suas frases incompletas e suas palavras pronunciadas apenas pela metade,
se explicam precisamente a partir do automatismo de certos processos.
74
Chklovski destaca características do cotidiano já observadas por Agnes
Heller, como o automatismo causado pela repetição presente nas ações diárias,
inclusos, conforme a autora, nos momentos da estrutura da vida cotidiana.
72
GINZBURG, op. cit., p.197-198. Para o autor, a perspectiva é “(...) uma metáfora cognitiva tão poderosa: a
tensão entre ponto de vista subjetivo e verdades objetivas e verificáveis, garantidas pela realidade ou por Deus”.
73
LEIBNIZ apud GINZBURG, op. cit., p. 193.
74
CHKLOVSKI apud GINZBURG, op.cit., p. 16.
2.2. "GUARDEM AS CARTAS QUE ENVIEI, PORQUE SÃO A PURA VERDADE"
Qual é a origem das cartas ou da correspondência entre as pessoas? Como
estas cartas se tornaram importantes e necessárias ao longo da História? As cartas
surgiram juntamente com a escrita, a partir do momento em que o homem a
dominou. Seu conteúdo variava, mas geralmente era direcionado a duas questões:
situações de guerra e disputas ou situações familiares. A Antiga Roma foi
responsável pelo sistema postal mais eficiente do período, pois, em questão de dias,
a correspondência percorria as terras longínquas do Império. Durante séculos, as
cartas eram utilizadas como meio de comunicação entre as elites dominantes: reis e
imperadores. Antonio Castillo Gómez tece comentários a respeito do surgimento da
correspondência epistolar "(...) sua origem se perde na Antigüidade, talvez em um
dos remotos fragmentos do Antigo Egito, e, por outro lado, qualquer dos tratadistas
que se ocuparam dela no Século de Ouro menciona a Cícero quase como o homo
factor da arte epistolar"
75
.
A nobreza medieval era constituída por descendentes de povos bárbaros,
e estes, mesmo fazendo parte da alta linhagem, não eram adeptos da cultura do
antigo Império Romano, por isso a grande maioria não era letrada. O saber ficou
restrito apenas aos clérigos, e as cartas passaram a ter seus conteúdos
modificados; de assuntos de guerra e familiares passaram a ser
predominantemente relacionados à Igreja e à questão religiosa. No final da Idade
Média, com o surgimento dos Estados Nacionais, as cartas voltaram a ter
75
GÓMEZ, Antonio Castillo. "Como o polvo e o camaleão se transformam": modelos e
práticas epistolares na Espanha Moderna. In: BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria
Teresa S.; MIGNOT, Ana Chrystina Venancio. (org.) Destinos das letras: história, educação
e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002. p.15.
conteúdos referentes à questão militar. Muitas delas eram adulteradas por
clérigos subornados dos exércitos rivais.
Com o Renascimento, as luzes reapareceram e as letras passaram a ser
importantes à nova camada emergente, a burguesia, que, juntamente com a
nobreza, interessou-se pelo saber. Conforme acrescenta Glénisson, “as memórias,
os diários, as recordações não se multiplicam senão com a Renascença, quando os
homens começam a tomar uma tão aguda consciência de sua personalidade(...)”
76
.
Desta forma, o teor das cartas voltou a ser direcionado a questões familiares,
evidenciando os processos cotidianos. Porém, além da nobreza e da burguesia, o
restante da população não tinha acesso à cultura, nem mesmo os artistas da
Renascença.
No final do século XVIII, com o início da era das revoluções, através da
Revolução Francesa, a população que não tinha acesso à cultura passou a ser
beneficiada pela tríade: igualdade, liberdade e fraternidade. Foram criadas escolas
nacionais que possibilitaram o ingresso de boa parte da população desfavorecida. A
partir disso, surgiram revoluções que alastraram as letras às demais camadas, como
os movimentos populares de 1830, 1848 e a Comuna de Paris. Castillo Gómez
destaca que a "Época Moderna colocou novas e interessantes oportunidades que
tornaram possível uma maior produção e extensão social da correspondência
escrita"
77
; segundo o autor, isso teria ocorrido fundamentalmente por duas razões: o
crescimento da alfabetização, devido à necessidade de escrever, à obrigação de o
76
GLÉNISSON, Jean.
Iniciação aos Estudos Históricos
. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977. p.150.
77
GÓMEZ, op. cit., p.15.
fazer e o desejo de manter vínculo, devido ao afastamento nas relações
interpessoais por inúmeros motivos, próprios daqueles dias.
Neste contexto, a partir da segunda metade do século XIX, encontra-se o
camponês de diversas regiões italianas que emigra, com o objetivo de encontrar
melhores condições para si e sua família. Muitos partem sozinhos e deixam a família
na Itália. Os que partem com esposa e filhos também têm laços de parentesco. Após
a partida, o único elo existente passa a ser a correspondência. Além de levarem
notícias boas ou ruins, as cartas o portadoras de comprovantes de depósitos
(remessas em dinheiro feitas no Brasil). A correspondência teve um papel muito
importante na história da imigração, pois servia como portadora de notícias e
também como incentivo para os indecisos da viagem. Segundo Grosselli
Um outro "acelerador" do fluxo migratório ou "fator de atração" como é
definido por alguns estudiosos, foi a correspondência camponesa. As cartas
que os emigrantes enviavam para a pátria serviram, antes de mais nada,
para direcionar o fluxo, mas serviam também para encorajar os titubeantes
e convencer os arredios. O camponês acreditava somente no poder e em
seus mais próximos e não se fiava nas advertências de autoridades e
imprensa que julgava subservientes dos interesses da classe dominante.
Pensamos que ele chegava até a duvidar dos sacerdotes e da imprensa
católica, quando estes a desaconselhavam a emigrar, mas sempre confiou
nas cartas de seus conterrâneos. Muitas vezes tais cartas continham
notícias seguras e ponderadas, muitas vezes notícias ditadas por uma
primeira impressão errônea, muitas vezes notícias falsificadas por artifício.
78
Estas eram, em sua grande maioria, escritas por homens, e o seu conteúdo
continha uma variedade de temas: narrações de viagem, gastos, estabelecimento no
país, cotidiano, costumes, além de outras informações que se referiam às condições
de vida e emprego encontrados, enfim, relatavam o processo imigratório. Logo após
78
GROSSELLI, op. cit., p. 115.
a saída de casa, despachavam, nas cartas para familiares e amigos, os seus mais
verdadeiros pensamentos e também as necessidades mais urgentes.
Tinham o objetivo de uma comunicação que queria consolidar os vínculos
de solidariedade domésticos rompidos forçosamente pela emigração e transmitir, em
algumas situações, o luto pela perda da pátria. A persistência em manter os vínculos
com parentes tornou-se a preocupação de muitos dos imigrantes. Outro papel
importante das correspondências era informar o que havia e o que faltava na
colônia, por isso, eram utilizadas para solicitar produtos e objetos aos familiares que
viriam para o Brasil. Abaixo, segue trecho da carta de Paulo Rossato, enviada à
Itália, em 22 de junho de 1884, na qual o autor faz vários pedidos e fornece
indicações do que é necessário trazer à América. O conteúdo já constava de outra
carta, enviada em 11 de maio de 1884, e posteriormente foi repetido na missiva de
27 de julho de 1884.
Tragam as ferramentas para a colônia: dois podões grandes, de
cabo de ferro, 4 machados (dois maiores e dois menores, estes com corte
estreito), as enxadas que mandaram arrumar no serralheiro (que ele
prepare o corte como para uma enxadinha), e as facas de ponta. Tragam
também as seguintes mudas: muitas figueiras agrestes e também das
outras, mudas de roseiras, enxertos, pereiras de São Martinho, cerejeiras,
ginja, etc. disso também por aqui, mas tragam da Itália, que queremos
fazer lindo pomar, e a terra é boa. Tragam videiras de uva "negrara",
"xebido", "docana", "corbina", "cagina e todas as que quiserem. Tragam
também sementes de acácia e de espinhos brancos. Procurem as de
espinho, porque aqui fazem cercados com achas, para colocar neles os
animais, mas estes, como podem imaginar, acabam fugindo e as cercas
estão sempre rebentadas. Tragam também oliveiras, nogueiras de nozes
pequenas e também daquelas de casa, damasqueiros e ameixeiras.
Coloquem estas plantas em uma lata, daquelas de petróleo, com um pouco
de areia e musgo, e verão como chegam todas bem aqui.
Para a família tragam os seguintes objetos: todo o trem de
cozinha, o caldeirão de lavar roupa, o panelão (coloquem-no porém, numa
boa caixa, entre as roupas), a máquina de fazer macarrão, os lampiões
(porque aqui usam querosene). Se for possível, tragam também os tubos,
para fazer velas por que aqui são muito caros (um custa 500 réis), e todos
os copos, garrafas, tigelas e pratos. Tratem de trazer um relógio como
aquele dos Matii. Existem também aqui tais objetos, mas são muito caros.
Um machado, por exemplo, custa 10 mil is. Tragam também um par de
brincos, como aqueles da Justina. Se vocês não o podem, digam à Beppa
que os compre e quando chegar aqui nós a pagaremos. Tragam também
um veuzinho. Que as meninas não vendam os lenços brancos, porque aqui,
quem não tem o u, vai à missa com um lencinho na cabeça (para a e,
a Raquel poderá dar um véu). Roupas para vestir também aqui.
Comprem-me também um chapéu para uso diário, pois que perdi o meu,
que era de palha: acontece que quando a gente não o amarra com um
barbante, acaba sendo levado pelo vento. Você, pai, traga todos os
instrumentos de carpinteiro, e se puder compre também um serrote, para
fazer tábuas (há disso também por aqui), bem como uma soga para a
panela do sabão, e uma outra para o carro, e uma corrente de timão por
recordação. Aqui usam os bois para os transportes com carretas, nas
estradas. Se for possívell, façam quatro rodas de carreta, mas com eixos
maiores para cargas de 4 ou 5 quintais e não para mais. Senão, comprem
todos os ferros prontos, pois a parte de madeira pode ser feita aqui e
ganham 500 mil réis.
Para os senhores, pai e mãe, tragam penas e façam dois colchões
pequenos, do tamanho de um saco, porque no navio a gente precisa muito
disso. Tragam um corote de azeite e, se quiserem, um também de rum, mas
comprem em Valdagno e preparem também um albornal com biscoitos, ou
pão bem cozido.
Se puderem, comprem-me uma sela e um freio, que aqui custam
20 mil réis. Tratem também de trazer um par de tamancos sem pregos, que
são muito bons no navio.
Caro pai, traga as correntes para prender os animais e, se puder,
diga à Maria, minha cunhada, que traga os pentes de tear, pois aqui
plantam linho. Tragam também a raspadeira para limpar o pêlo dos animais.
(22/06/1884- Paulo Rossato)
Um outro aspecto importante sobre as correspondências é analisado por
Emilio Franzina. Segundo o autor, existe uma questão que deve ser relevada em
nível histórico: a autenticidade. Alguns locais no Brasil, responsáveis pela grande
concentração de imigrantes, emitiam cartas com endereços os quais não eram
verdadeiros, criando condições contraditórias. Em muitos casos, as cópias originais
eram apreendidas e seu conteúdo, adulterado
79
.
Partindo da afirmação de Ginzburg, o qual afirma que "seres humanos
distantes e incapazes de se comunicar se transformaram num eu dividido(...)"
80
,
pode-se reconhecer a confiança depositada nos remetentes das correspondências,
e estes reconhecem a importância de seu papel perante a família e os demais
79
FRANZINA, op. cit., p.48.
80
GINZBURG, op. cit., p.205.
conterrâneos, assim como têm consciência das informações errôneas nas cartas,
que possivelmente foram adulteradas. Nas falas de Paulo Rossato, Antonio, Luigi e
Felice Taschetto, constata-se a preocupação com a palavra escrita como elo de
compromisso entre remetente e destinatários, conforme descrito abaixo em trechos
de suas correspondências. Assim escreve Rossato na carta enviada em 07 de maio
de 1884: “Façam ler esta minha carta junto à parentela da família Lora e que A.
Zanuso também a leia.(...) Guardem esta carta e não a em a ninguém, nem leiam
para alguém”. Um mês depois, em 22 de junho de 1884, reafirma o compromisso de
lealdade com a família:
Vocês dizem que estão atentos para não serem enganados. o ouçam a
ninguém, embora a Carolina lhes haja escrito. Mas ela dizia que desejava
retornar à Itália porque naquele tempo estava com os filhinhos enfermos.
Escrevi a ela. Por isso, as cartas que lhes mando escrevo-as de minha
consciência, e com a tinta de meu sangue. E se não é verdade aquilo que
lhes digo, podem então tomar um revólver e matar-me. (...) Que olhem
minhas cartas e partas, que sou um irmão de sangue...
Por isso, em missiva enviada a 27 de julho de 1884, justifica à família:
Sei onde se encontra Luiz Rossato, mas aqui é bem melhor, porque aqui
trigo, e não. E onde ele mora os ares não são bons e, por estar perto do
mar, é fácil de pegar febre, e não dá trigo nem uva, mas sim café e
açúcar.(...) Quardem as cartas que enviei, porque são a pura verdade.
Preocupado com o irmão que ainda não migrou, argumenta, em 14 de
junho do ano seguinte:
No dia 4 de junho recebi sua carta, sabendo por ela que todos nossos
parentes e amigos que vieram para queixavam-se de mim, dizendo que
foram traídos. meses que se queixavam pois tendo partido da Itália e
aqui chegados, pareciam todos desvairados. Em vez de ouvir o que eu e
outros colonos lhe dizíamos, ouviam a Momoli Munaro e outros vagabundos
como ele. Mas agora que viram como se encontram outros colonos mais
antigos que têm trigo, milho e vinho e tudo o mais, estão contentes e
compraram colônia perto de mim. A mata não lhes causa mais medo e,
vendo-se livres da escravidão e sem patrões, cantam, riem e estão
satisfeitos. Parece que também Tita Mondo acostuma-se sempre mais. Mas
não é de admirar-se com o que aconteceu, porque também nós na Itália,
quando trocávamos de vila, nos sentíamos mal. Porque então não haveriam
de escrever assim, ignorantes e estultos como são, ao se acharem tão
distantes?
Dom Domenico Munari relata as situações presenciadas na colônia, em
21 de outubro de 1877, porém sua preocupação é sobre a veracidade de sua
palavra: “Mas quem vai me acreditar (...) Digo a verdade e em nome de Deus não
minto”. Antonio, Luigi e Felice Taschetto informam ao irmão em novembro de
1887:
Querido irmão, a nossa consciência nos diz para não te deixar vir aqui
porque nós fomos enganados e não queremos te enganar também, acredite
estamos escrevendo a pura verdade e não acredite que durante a viagem
foi mudado. Querido irmão, te informamos que esta carta foi escrita por
nosso sobrinho Giuseppe porque se a deixássemos escrever por eles (os
patrões) eles iriam escrever o que querem e nós outros queremos escrever
a pura verdade.
Muitas das correspondências eram escritas no ímpeto da chegada, quando,
muitas vezes ainda, não haviam partido à colônia e encontravam-se na hospedaria
para imigrantes. Não tinham nada para contar até então, a não ser a viagem e a
chegada, se haviam sido bem tratados e alimentados. Nesta situação, ocorreram
casos de cartas vistoriadas e interceptadas quando essas continham alguma
informação negativa. Outras cartas foram escritas sob pressão, emitindo falsas
informações; havia ainda aquelas que eram escritas através de intérprete e tinham
seu teor modificado. Segundo Grosselli, alguns imigrantes percebiam o engano e
tentavam tomar precauções, confiando as cartas a amigos ou conhecidos que
retornavam à Itália. Não eram poucos os casos em que combinavam sinais a serem
apostos às cartas, sempre que escritas por livre vontade
81
.
81
GROSSELLI, op. cit., p.116.
2.3. "QUEREM SABER COMO ANDAM OS BRASILEIROS (...)?"
é fato conhecido que o imigrante italiano, ao sair de sua pátria, buscava
melhores condições de sobrevivência. É possível que tenha ouvido, ainda na
Europa, a descrição do Brasil como sendo a própria imagem do paraíso. Pode-se
dizer que também estava presente na mente dos supostos imigrantes a descrição do
"Paese de Cuccagna"; porém é sabido que nem todos realizaram o sonho da
fartura - como, por exemplo, o lugar que Cleodes Piazza descreve:
A topografia do Paese di Cuccagna é dominada por uma montanha, na
verdade, um vulcão, que expele, continuamente, moedas de ouro. Como
variante, nas narrativas orais, a montanha não é de ouro mas de queijo
ralado. Quando chove, nesse país, chovem pérolas e diamantes, mas
podem também chover raviólis. Em direção ao porto, denominado de Porto
dos Ociosos navegam embarcações carregadas de especiarias, mortadelas,
toda a sorte de embutidos e presuntos. Rios de vinho grego são
atravessados por pontes de fatias de melão e lagos de molhos soberbos
estão coalhados de polpette e fegatélli. Fornadas permanentes de pão de
farinha de trigo abastecem os habitantes do lugar. Aves assadas,
especialmente frangos e perdizes despencam do céu, direto sobre a mesa,
enquanto as árvores cobrem-se de frutos nos doze meses do ano. As vacas
parem um vitelo ao mês e os arreios dos cavalos são de ouro, mas as
rédeas são lingüiças. Às margens de um mar de onde saltam,
continuamente, peixes cozidos, estão salinas de pães-de-açúcar e no
chafariz, ao lado da montanha de queijo, jorra um bom vinho malvasia. As
hortaliças, no Paese di Cuccagna, são de massa folhada e crescem
espontaneamente, embora a fábula sugira a atividade agrícola que as
enxadas e as s para vangar, são de ouro maciço. A topografia se
completa com uma colina na qual está uma prisão destinada aos infratores
da única lei que vigora no país: não trabalhar e gozar a vida
82
.
Mesmo tendo consciência de que a descrição refere-se a um local irreal -
para os camponeses pobres e atormentados pela fome - a identificação da América
como o Paese di Cuccagna talvez tenha sido estimulante, por exprimir a
reivindicação do desejo insatisfeito em sua terra de origem. Entretanto, a topografia
possui um misto de verdade quando afirma que existe "uma prisão destinada aos
82
RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza. Paese de Cuccagna ou País das Maravilhas. In: MAESTRI, Mario (coord.).
Coord.
Nós, os ítalo-gaúchos
. 1998. p.25.
infratores da única lei que vigora no país: não trabalhar e gozar a vida". A grande
preocupação do camponês realmente era com o trabalho; seria ele o responsável
pela grande transformação deste indivíduo: tornar-se proprietário. O tamanho da
colônia e as formas de pagamento eram indiferentes. Uma colônia ou metade,
pagamento em dois ou em dez anos, tais situações não amedrontavam o futuro
colono.
Todos os caminhos seguiam a mesma direção: superar as dificuldades na
América sem precisar retornar à Itália. O trabalho significava a fonte da liberdade,
incluindo valores como a dignidade e a honorabilidade, conjunto de todas as
virtudes, sendo capaz de desculpar possíveis vícios que viesse a ter. Nos dois
relatos abaixo, temos conclusões heterogêneas sobre o “país da cocanha”. Michele
Altafini determina que deve buscar o sustento através de seus próprios meios,
conforme explica na carta de 27 de outubro de 1889: “Eu e todos os outros chefes
de família fomos sustentados à custa do Governo mas muito bem sustentados;
agora a cocanha acabou e devemos trabalhar para viver”.
Contrariamente, os irmãos Antonio, Luigi e Felice Taschetto sentem-se
enganados, em relação aos verdadeiros meios de sobrevivência na colônia,
conforme escrevem na carta de novembro de 1887:
Nós outros estamos aqui, mas não estamos contentes porque são montes e beiras e
poucas planícies e também muitos bichos do e muitos outros perigos. Vamos
trabalhar por conta dos colonos e recebemos trinta moedas por dia e ir trabalhar para
o governo rende 50 moedas, mas nós outros não vamos porque existem muitos
perigos, até de vida e esta é a cocanha que se escrevia estar aqui na América.
Levando em consideração a ambigüidade dos relatos, pode-se concluir que
o início da vida na colônia foi tortuosa para alguns e esperançosa para outros. A
vegetação era exuberante e a terra produzia extraordinariamente - desde que fosse
cultivada - e com muito trabalho! Na verdade, as duas principais palavras eram:
trabalhar e vencer. Mesmo com muito trabalho, os obstáculos não foram superados
tão facilmente. Principalmente nas cartas de Paulo Rossato é possível uma certeza:
o desejo único dos imigrantes era ser proprietário das terras. Em diversas
correspondências, o mesmo remetente reafirma a necessidade de estar toda a
família junta, a fim de conseguir o maior rendimento possível para o pagamento da
colônia e de como poderia torná-la próspera. Inicia explicando, em sua segunda
carta, escrita em 17 de fevereiro de 1884, que, se os parentes estivessem com ele,
(...) teríamos agora um trabalho a umas 5 horas de caminho, empreitado por
12 de s: os nossos da família Lora, os Balarini, os Meneguzzo e três de
Monte Viale. O contrato foi por 1550 mil réis e esperamos concluir em 50 ou
55 dias. Por isso, se estivessem aqui os meus irmãos, poderíamos pagar a
metade da dívida. Estando sozinho, porém, tenho que guardar um pouco de
dinheiro para viver, enquanto vou derrubar o mato para plantar trigo, e
deverei dar uns 40 ou 50 mil réis ao conde, para que mande fazer a
escritura.
Aproximadamente, dois meses depois, em 24 de abril, comenta
novamente o assunto:
As mulheres são levadas todas para uma casa, na estação, meia hora antes
de irmos para o trabalho. A maior dificuldade é a de fazer comida e nós
estamos trabalhando na estrada que vem de São Sebastião. Tratem de vir
quanto antes possível, porque pretendem começar em breve uma ferrovia
de Porto Alegre a Santa Catarina.(...) Se estivessem aqui no mês de agosto,
ajudariam a fazer a colheita do milho. Depois meu pai e um outro ficariam
na colônia, para construir a casa e cuidar do trabalho na terra, e os outros
três iríamos para o trabalho na estrada. Se tivesse alguém em casa para
cuidar da colônia, eu haveria de ir trabalhar na estrada e em três meses
sobrariam 150 mil réis.
Figura 4 – Estrada Rio Branco
83
A preocupação com o trabalho e com sua colônia é constantemente
retomada nas cartas, como explica, o nosso missivista em 07 de maio do corrente
ano:
Abrigamos as mulheres a uma hora de distância, perto do Campo, em casa
de um colono, nosso vizinho, e nós, em 12, descemos e fomos em massa
para o trabalho, pois o governo mandara abrir 24 Km, de estrada, dos quais
apenas 20 estavam concluídos. Espero que no ano que vem ele mande
fazer mais 16. Depois, pode-se partir do Campo e ir até São Sebastião, de
carreta. Contratamos um quilômetro de estrada por 1.550 mil is.
Começamos no dia 9 de janeiro e no dia 17 de março havíamos concluído.
Depois fui à colônia, a fim de fazer a derrubada para semear trigo: durante
83
Cf. SANOCKI, Márcia. A importância da Estrada Rio Branco para o desenvolvimento da Colônia. IN:
BRAMBATTI, Luiz E. (org.).
Roteiros de turismo e patrimônio histórico
. Porto Alegre: EST, 2002.
“Evolução administrativa de Caxias: Colônia a Fundos de Nova Palmira: 1872 até 1875; Campo dos Bugres:
1875 a 11/04/1877; Colônia Caxias: de 11/04/1877 até 12/04/1884; Caxias (quando foi emancipada pertenceu à
Vila de São Sebastião do Caí): de 12/04/1884 até 06/12/1890; Vila de Santa Tereza de Caxias (administrada por
um conselho municipal eleito, que exercia as funções de Legislativo e Executivo): de 06/12/1890 até
01/06/1910;
Caxias do Sul (elevada à categoria de cidade): 01/06/1910 até os dias de hoje”.
uma semana tive outros dois homens junto a mim, pagando 1 mil réis ao dia
e mais as despesas. Mas fiz uma derrubada da qual poderei tirar uns 20
sacos de trigo. Enquanto secava a derrubada, desci novamente, no dia
de abril, para trabalhar numa ponte. permaneci por 19 dias e 1/4,
ganhando 2 mil réis ao dia, e depois voltei para a colônia, a fim de fazer a
queimada. Mas começou a chover, e não se pode pôr fogo enquanto não
fizer tempo bom, Surgiu-me agora um outro trabalho de dois meses: seria o
de tirar pedras. Vou ver se posso aceitá-lo.(...) Se não for possível, venham
apenas os que conseguirem, mas principalmente os homens, porque
ganham dinheiro, visto que as mulheres, por ora, não ganham nada.
Figura 5 – mapa de São Sebastião do Caí em 1875
O trabalho volta a fazer parte do assunto desenvolvido em suas cartas,
em 25 de dezembro de 1885:
Quando estivemos em Porto Alegre, por medo de não encontrar trabalho em
Cachoeira, partimos para ir trabalhar na mina de carvão. Ao chegarmos em
São Jerônimo, tomamos uma barquinha para ir até a margem mas, quando
estávamos no meio do rio, começou um vento tão forte a ponto de fazer-me
pensar que iria afogar-me. Antônio Vencato então não dava mais um vintém
por sua vida. Agora nos encontramos em Cachoeira, juntamente com Nairo.
Ele ganha 25 mil réis por mês mas nós, no presente, ganhamos 1 mil réis
por dia. Dizem, porém, que no mês que vem aumentarão nosso salário.
Vejamos então. Quanto ao alojamento e à comida, estamos bem; os ares
são bons e estamos todos bem (espero, aliás, que vocês também estejam
bem).
Se, por um lado, pensavam na prosperidade e na superação das
dificuldades, por outro, o fantasma da humilhação sofrida na pátria, perante a família
e os amigos, era constantemente relembrado assim como a angustiante viagem.
Estes fatos serviram como impulso para seguir adiante e conseguir o tão almejado
objetivo. É possível obter maior compreensão sobre o assunto, lendo os escritos de
Luis De Boni, o qual nos afirma que "a alma do imigrante" encontrava-se dividida em
dois sentimentos antagônicos: o desespero e a esperança.
Sair do mundo no qual se encontrava em situação de abandono e buscar
um futuro mais humano: estes eram os objetivos dos emigrados. Para o autor,
alguns fatores contribuíram à "(...) superação deste estágio inicial da imigração: a
pequena propriedade privada e o culto do trabalho. Parecia um sonho receber, no
Brasil, mais terra do que possuía um proprietário italiano e poder depois escrever
com orgulho: "minha colônia"
84
. Talvez, das correspondências analisadas, as de
Paulo Rossato tenham sido as de maior expressão dentro da superação dos
problemas enfrentados na Itália e da necessidade de demonst-las aos que o
“traíram” ou o exploraram em tempos passados, por isso incentiva os pais, em 22 de
junho de 1884, quanto à partida:
E depois partam, mas tratem de partir alegres, cantando, pois não convém
que vocês partam chorando: não tenham medo de deixar amigos que são
inimigos. Aqui vocês encontrarão amigos e alegria à vontade, temos comida
à fartura para vocês e, dentro de dois anos, também bebida. E mãe não
fique ouvindo seus irmãos a dizer que lamentam que seu sangue pelo
mundo: nós partimos pelo mundo, mas para viver melhor.(...)Encarrego-o de
saudar toda minha família: minha irmã Teresa, meu cunhado, meu tio
Pedro, meus tios da família Crosara, e diga-lhes que peço desculpas pelos
incômodos de antes da partida. Vi-os na praça e fugiram. Agora não preciso
mais deles, pois espero, com um pouco de paciência, ter mais do que eles.
Saude-os e verão que não os encomodarei mais.
84
DE BONI, Luís A. La Mérica: escritos dos primeiros italianos. Caxias do Sul: UCS,1977.
p.07.
Retomando o assunto em 27 de julho do mesmo ano, desdenha os antigos
inimigos ao escrever: “Digam à Marianella, aquela cheia de sardas e que dizia que
no dia de São Martinho viria urinar em minhas coisas, que agora, se quiser urinar
sobre o que é dela, deverá urinar no próprio bolso”. Em 14 de junho de 1885, explica
ao irmão que ainda se encontra na Itália: ”Estamos bem, e não mal, como dizem os
nossos tios pelo lado Crosara, para os quais fomos traídos. Se tivéssemos ficado na
Itália, então sim teríamos sido traídos. Mas aqui, com 300 mil (100 campos) de
terra, somos felizes”.
Para o autor dos trechos acima citados, a América realmente era o paraíso,
pois o havia "patrões" e, em todas as cartas, ele estimula a vinda do restante da
família, principalmente dos homens, para ajudar no trabalho e contribuir para o
pagamento das terras adquiridas. Completa com muitas descrições a respeito de
árvores frutíferas durante todo o ano, clima ameno, aves em abundância e rios
caudalosos. Faz narrações de hábitos e costumes da América (alguns o os
mesmos da Itália e outros foram, sendo aos poucos, assimilados pelos imigrantes),
como o uso de armas e a forma de preparação da terra para o cultivo através das
queimadas.
Encontrar uma sociedade melhor e mais digna é objetivo também das
mulheres imigrantes. Com certeza, a maior preocupação não apenas para o
universo feminino, como para o restante da família, era o casamento. Rossato
menciona o assunto em várias cartas, revelando a inquietação relacionada à
conveniência de casamentos para as mulheres, desejando que "arrumassem" um
"bom casamento". Em 24 de abril de 1884, chega a comentar que "homem não é
difícil encontrar aqui" provavelmente o homem citado deveria ter algumas
qualidades presentes no próprio Paulo Rossato, ou seja, alguém trabalhador e, se
possível, "proprietário". Na mesma missiva, faz referências até mesmo ao seu antigo
locador:
Digam ao meu locador, Antônio Massignani, que se quiser vir para a
América, verá que pode viver melhor que em sua casa. (...) Estou certo que
o local lhe agradaria, e haveria de, com pouco dinheiro, dar as filhas Betta e
Brígida em casamento, porque homem não é difícil encontrar aqui.
Quinze dias após, em 29 de junho, em outra missiva, continua incentivando
a vinda da família à América. Escreve: ”E as meninas e a Justina que não fiquem
esperando por casar-se porque aqui, três a mais ou a menos, há comida para
todos”. Quase um ano depois, em 18 de abril de 1885, informa ao irmão sobre o
casamento que ocorrerá na família: “Saiba que no dia 22 casa-se nossa irmã, com
um de sua idade e que faz 3 barris de vinho. E dois meses depois, em 14 de junho
comunica outra união: “Saudações à Betta, e diga-lhe que no dia 9 do corrente a
Brígida casou-se e foi morar a meia hora de distância de nós. Casou-se com um que
veio do Feltre”.
O olhar de estranhamento é muito presente em suas cartas. Utiliza os
conhecimentos adquiridos em sua terra natal para realizar comparações sobre a
organização do espaço e as atividades econômicas, como o período de plantio e
colheita. Estabelece relações entre a quantidade de estabelecimentos comerciais,
tecendo relações entre os produtos e seus respectivos valores. Também faz
referências às prestações de serviços disponíveis na colônia como o número de
médicos, padres, farmácias e escolas, sendo que alguns deles eram oferecidos em
italiano, denominando, desse modo, a colônia como uma Nova Itália. Realiza uma
análise do cotidiano desta sociedade: atividades sociais, trabalho, alimentação, tipo
de moeda, pesos e medidas, construção de casas e até mesmo diferenças de
horários entre o Rio Grande do Sul e a Itália. Sobre a população residente na
colônia, explica quem são, seus costumes e faz descrições do vestuário. Segundo
suas narrações, não se pode afirmar se teve algum tipo de contato com os índios ou
se foram apenas informações orais difundidas entre os italianos. Abaixo segue
fragmento da carta escrita em 17 de fevereiro de 1884, aproximadamente um mês e
meio após a chegada de Paulo Rossato na Colônia Caxias.
No campo, há 7 anos, não se encontrava ninguém além dos índios, homens
selvagens que fugiram. Agora há 1.400 habitantes entre italianos e tiroleses,
e pensa-se mesmo em formar uma nova Itália. Construíram um povoado
assim como Cornedo, mas com casas de madeira, porque não encontraram
cal. 30 vendas, encontrando-se de tudo, como em Valdagno, e iniciaram
uma outra igreja. Nas festas, encontram-se uns 300 ou 400 cavalos na
praça, porque todos os colonos andam a cavalo, sendo que alguns
possuem 1,2 ou 3 animais. Também os rapazes e as moças vêm à missa à
cavalo. No campo dois padres, um dico e duas farmácias. Os
charutos longos como aqueles de Virgínia, são vendidos 2 por 50 réis, e o
vinho custa 600 is a garrafa (uma garrafa contém 3 copos). Preço
semelhante possui aguardente que, porém, é feita de cana-de-açúcar. O
vinho é feito em fevereiro custando então 200 réis à garrafa. O trigo é
plantado em junho e colhido aí pelas proximidades de ano novo. O carnaval
é comemorado no mesmo tempo que na Itália, e todas as festas da Itália
são festas também aqui. Há uma diferença de seis horas entre aqui e lá, de
sorte que, quando na Itália é meio-dia, aqui são 6 horas da manhã. O sol se
levanta no leste, como aí.
Querem saber como andam os brasileiros aqui na América? Usam
calças com flores vermelhas e rigas. As calças são estreitas na cintura,
como cuecas, mas de pernas largas e apertadas no fundo. Andam de pés
descalços, ou de chinelos ou então de botas a meia-canela. Trajam uma
camisa estampada ou um chale com um corte ao meio, de comprido,
vestido pela cabeça, metade à frente e metade atrás. Trazem chapéu
grande, barba longa e longos cabelos. No cinturão um punhal ou mesmo
uma adaga e uma pistola de dois canos, e andam sempre a cavalo. Mas
sem punhal não se encontra nem mesmo um italiano: levam-no atravessado
à cintura, para que todos o vejam. Armas, podem-se levar quantas se
queiram.
Num mês, aqui, comi tantos pêssegos como em toda minha vida
na Itália. O mel custa 500 réis à garrafa e é comido com pão; uma galinha
vale 500 réis e um porco, 600 réis ao quilo; o milho custa 1.500 réis ao saco
de três "stari", e o trigo 5.000 réis. Um barril de vinho contém 6 celhas. 5
centésimos na Itália são um "soldo" e aqui na América equivalem a 20 is;
uma "palanca" é 40 réis, e um "fiorin" é 1.000 is. O dinheiro, como na
Itália, encontra-se em papel e em moeda.
O assunto desta carta é retomado em outras, possivelmente por dois
motivos: dividir as novidades sobre a nova terra com os familiares, estimulando-os
para que todos da família viessem para cá; há, também, a incerteza do
recebimento das cartas por parte da família na Itália. Algumas passagens das
cartas de Rossato revelam a situação econômica da colônia. Havia fartura e
produzia-se quase tudo, como conseqüência de um comércio praticamente
inexistente, devido, em grande parte, à falta de vias de comunicação. Faziam-se
algumas trocas de produtos ou, então, em alguns casos, os preços eram
irrisórios. Segundo historiadores com estudo nesta área, com o passar do tempo,
o excedente deu origem ao comércio como atividade econômica. A melhoria das
estradas e as outras vias de comunicação permitiram uma circulação de
mercadorias com maior rapidez e agilidade.
Ainda assim, como analisa Telmo Moure, as colônias eram um "forte
mercado consumidor das manufaturas de seus países de origem, ou capitalizadores
de recursos possíveis de serem transferidos às suas terras natais posteriormente"
85
.
O comércio colonial possibilitou uma acumulação de capital que, aliada à tecnologia
trazida pelo imigrante, levou o mesmo à instalação de pequenas firmas, como
moinhos, serrarias, ferrarias, funilarias, selarias e cantinas, o que influenciou na
posterior industrialização da região
86
. Este mesmo capital também foi gerado por
trocas realizadas no mercado interno brasileiro. Dacanal completa a análise:
É no bojo do processo de industrialização e da diferenciação por ele
provocada no contexto econômico do RS que alguns descendentes de
85
MOURE, Telmo. A inserção da economia imigrante na economia gaúcha. In: DACANAL,
J.H; GONZAGA, Sergius. (org.). RS: Imigração & colonização. 2. ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1992. p. 94.
86
DE BONI, 1977, op. cit., 07.
imigrantes ascenderam social e economicamente a tal ponto que
substituíram, nos cargos mais importantes da administração pública, os
representantes da oligarquia agrário-mercantil decadente ou, a partir dos
anos 50, completamente desaparecida
87
.
Além das outras falas citadas, verifica-se a cumplicidade entre remetente
e destinatário através dos relatos, narrando a cotidianidade da colônia,
principalmente o que fazer, o que trazer, quanto pagar, para onde se dirigir, entre
outras informações.
2.4. “QUEM IRIA PENSAR QUE SERIAM FESTEJADOS AQUI NO BRASIL?”
Nem tudo era trabalho e sofrimento. Paulo Rossato relata aos familiares
sobre alguns dos momentos de lazer. Existia festa na colônia, comemorava-se o
Carnaval e, segundo o autor, no período equivalente à Itália. As festas usuais
italianas eram também celebradas aqui. Com isso, observa-se que o universo do
imigrante transfere-se do país de emigração, buscando-se principalmente a
superação econômica, mas os valores culturais permanecem latentes e tornam-se
uma ligação efetiva entre os emigrados. Ginzburg afirma que:
(..) em qualquer cultura, a memória coletiva, transmitida por ritos, cerimônias
e eventos semelhantes, reforça um nexo com o passado que não pressupõe
uma reflexão explícita sobre a distância que nos separa dele
88
.
Assim, podemos conhecer informações sobre as festas ocorridas na colônia,
conforme informações de Paulo Rossato, na missiva de 24 de abril de 1884 : “Vocês
deveriam ver como fazem máscaras de Carnaval também aqui e tocam músicas
87
DACANAL, José Hildebrando. A imigração e a História do Rio Grande do Sul. In:
DACANAL J.H; GONZAGA, Sergius, op. cit., p. 277.
88
GINZBURG, op. cit., p.179.
como na Itália. O último dia de Carnaval foi 25 de fevereiro e as festas de Páscoa,
este ano, caíram no dia 13 de abril”.
O pároco Giovanni De Boni também cita as comemorações religiosas, em
carta redigida a 16 de maio de 1885:
quinze dias estou na casa de Felice Sartor. Ficarei em Nova Celarda
ainda alguns dias para preparar uns rapazes para a Primeira Comunhão.
Amanhã, 17 de maio, no “Campo” se celebra a festa dos SS.Mártires Vittore
e Corona. Quem iria pensar que seriam festejados aqui no Brasil?
Conforme foi citado anteriormente, o emigrante transfere-se, porém seus
valores culturais são mantidos. Isto acontece com a projeção de festas,
comemorações, valores e a própria religiosidade para o novo mundo no qual se está
inserindo. Esta manutenção de valores e tradições entre pessoas de diferentes
gerações é analisada por Agnes Heller através dos sistemas consuetudinários. O
homem nasce em uma estrutura pronta, da qual imita e assimila usos e experiências
“feitas”. O homem é direcionado a “reflexos condicionados”, mecanizando a maior
parte de suas ações de um modo instintivo por aquisição. Para a autora, “a tradição
ganha maior importância na estrutura social orientada para o passado(...)”,
implicando uma estabilidade relativa dos usos assimilados, bem como uma
orientação da totalidade da vida pela atitude das gerações anteriores, dos
antepassados, ou seja, “os filhos imitavam os pais, os netos imitavam os avós; e isso
ocorria em todos os aspectos da vida, das experiências da produção até a moral”
89
.
A vida social na colônia era marcada por festejos de diferentes motivos,
incluindo os próprios casamentos e havia a necessidade de que eles acontecessem
89
HELLER, op. cit., p.88-89.
como característica desta sociedade. Entretanto, além destes aspectos, existia outro
de grande expressão relacionado à religiosidade. A religião, neste caso, entendida
aqui, como católica, foi de grande significado na vida do imigrante. A Itália fora
recentemente unificado, e as diferentes regiões possuíam referências culturais
distintas. Por isso, o cristianismo exercia um poder de homogeneização entre a
massa camponesa; nesse sentido, essa crença vem para o Brasil juntamente com
os imigrantes. Além disso, segundo Grosselli, a Igreja exercia sobre a população
camponesa o papel desprezado pelo Estado.
A Igreja Católica foi para a classe camponesa o que o Estado foi para as
modernas burguesias e o que foram as organizações sindicais e o partido
político para o proletariado urbano. A Igreja foi o "príncipe moderno" dos
campos trentinos; era organização e teorização, e nela se formaram os
quadros dirigentes da classe e por ela era produzida a teoria que
intelectuais e classe teriam depois procurado transformar em praxe(...) A
moral camponesa era a moral católica, e a única verdadeira autoridade
reconhecida pelo camponês se identificava com a hierarquia eclesiástica. A
autoridade estatal era uma pura contingência histórica: não era o Kaiser a
suprema autoridade, mas o Papa de Roma
90
.
Nas colônias, em alguns casos, encontravam-se imigrantes de regiões
diferentes da Itália, e o único vínculo entre eles passou a ser a religiosidade.
Segundo De Boni, a solidão reuniu os vizinhos recém- chegados para rezar e
conversar. Com o passar do tempo, surgiu a necessidade de construírem uma
capela que se tornou uma referência, não somente para a vida religiosa mas
também social. O travessão que não a tinha colocava-se em situação de
inferioridade perante os vizinhos. "Ao redor da capela começou a girar, de modo
quase absoluto, a vida social dos imigrantes, o que explica a importância que os
menores problemas adquiriam naquele ambiente"
91
.
90
GROSSELLI, op. cit., p.132.
91
DE BONI, Luis Alberto. O catolicismo da imigração: do triunfo à crise. In: DACANAL,
J.H; GONZAGA, Sergius, op. cit., p.235.
O início da vida na colônia foi um momento psicologicamente difícil. A
ausência de parentes e conhecidos da antiga pátria mergulhava o colono na solidão,
sendo o trabalho o principal aliado contra a mesma. Ainda assim, os imigrantes
buscam entre si, em famílias diferentes, um aspecto em comum através da
religiosidade. Para Rovílio Costa e Luis De Boni, além do trabalho diário semanal,
havia os domingos. Este, respeitado por ser dia santo, era marcado para encontros
nas casas dos vizinhos, quando o terço era rezado, quando se conversava, jogava-
se, cantava-se. Eram os chamados "filós". Em torno da religião, iniciava-se “a
reconstrução do mundo cultural do imigrante"
92
. Embora estes encontros tenham
tido grande importância na continuação dos valores de uma determinada
comunidade, segundo os autores citados, não é assunto comentado nas cartas
analisadas.
A importância da religiosidade também está presente nos escritos de
Lorenzoni, quando afirma que se reuniam em torno de uma simples cruz de madeira,
no centro da praça, onde um ancião orientava, todos cantavam ladainhas e rezavam
o rosário
93
. Nas colônias, fora algo que se manifestara entre os imigrantes de
maneira quase uniforme, sendo motivo das primeiras discussões e tendo como uma
das primeiras reivindicações a presença de um sacerdote. Os cantos ou os terços
eram realizados pelos colonos ou por padres leigos, mas havia a necessidade dos
sacramentos, que somente o sacerdote poderia ministrá-los. No início, as colônias
recebiam estes membros da Igreja que estavam de passagem pelo local, realizando,
92
Ibid., p.235.
93
LORENZONI, Julio. Memórias de um imigrante italiano. Trad..Armida Lorenzoni
Pereira. Porto Alegre: Sulina, 1975. p. 59.
assim, todos os casamentos, batismos, eucaristias e demais sacramentos da
comunidade. Era um dia de grande festa, pois a ausência de um padre era grande
tormento para os imigrantes que não se conformavam com esta situação religiosa.
Pode-se compreender essa realidade, analisando a narração abaixo, citada por Julio
Lorenzoni
Durante os dois primeiros anos, 1878 e 1879, a única religião que
conservavam aqueles bons colonos, era a do coração. Não havia igrejas
nem padres e, por isto, nenhuma cerimônia religiosa que mantivesse vivo e
ardente aquele sentimento religioso que tínhamos trazido de nossa Pátria
94
.
(...)O digno sacerdote foi recebido com expressões de grande alegria. A
igreja foi logo improvisada com lençóis, colchas, galhos de árvores com
grandes folhas verdes e flores silvestres. Em seguida foi celebrada a Santa
Missa, cantada por um coro de imigrantes vênetos e o padre Marcelino deu
a explicação do Evangelho da melhor maneira que lhe foi possível,
recomendando-nos bondade, resignação e o amor a Deus, para podermos
superar os grandes sacrifícios a que nós seríamos sujeitos, enquanto o
tomássemos posse definitivamente das terras que nos fossem
designadas.
95
Na análise de Dacanal, no caso específico dos imigrantes italianos, a Igreja
Católica serviu como catalisador cultural. Para o autor, isto só foi possível devido aos
dois mil anos de poder da instituição, a qual soube preservar a língua e a cultura das
comunidades coloniais, inserindo os valores religiosos
96
. Sem dúvida, é
inquestionável o poder de homogeneização da Igreja Católica neste período como
superação nestas localidades
97
.
Ainda que se saiba da grande importância da religião católica para os
imigrantes, Paulo Rossato o realiza citações diretas sobre esse assunto. Em suas
94
Ibid., p.76-77.
95
Ibid, p.55.
96
DACANAL, op. cit., p.275-279.
97
DE BONI, 1992, op. cit., p.237-238. Para o autor, alguns foram os fatores analisados que contribuíram para a
crise do catolicismo no Rio Grande do Sul. Um deles seria a quase inexistente assistência religiosa aos colonos,
enquanto o clero gaúcho promovia um tipo de reunião que se preocupava em organizar “festas para os vivos e
pompa fúnebre para os mortos”, deixando de lado os sacramentos e as pregações. Somando-se a isto, a situação
dos padres não era a postura esperada de um religioso: álcool, negócios e mulheres.
falas veladas, verificamos que a religiosidade fazia parte do seu cotidiano, porém
não constava como assunto central das correspondências, concentradas nos
aspectos econômicos e na vinda da família para o Brasil. É possível observar esse
aspecto, através dos pequenos trechos escritos nas cartas enviadas em 24 de abril
de 1884: “Para ir de minha colônia até Rosso de Massignani são necessárias 4
horas de caminho. Ele e todos os de Muzzolone estão juntos, mas num lugar não
dos melhores: longe do comércio, longe da vila e difícil para vir à missa”; segue
algum comentário na de 30 de maio do mesmo ano: “Nada me resta, senão desejar
do céu toda a prosperidade e saúde para vocês e para toda a família, e que se
sintam assim como eu, a Raquel e a filha nos sentimos”; na missiva escrita
aproximadamente dois meses depois em 27 de julho: “Os Lora todos saúdam a
vocês e agradecem o terço que cantaram para nós”; a última citação referente ao
assunto aparece na carta de 24 de agosto de 1884: “Antes de partir mandem rezar
uma missa a Nossa Senhora”.
As dificuldades às práticas religiosas são motivo de indignação para Dom
Domenico Munari, que tem na religiosidade o seu assunto principal. O padre e o
colono Rossato são dois personagens de uma mesma história, com pensamento
e objetivos diferentes. Vivenciaram o processo imigratório sob ângulos diversos,
conforme se observa no trecho da missiva de Dom Domenico:
A religião que professam os americanos do Rio Grande do Sul é
precisamente o nada de cada religião. São da maçonaria mas não sabem o
significado desta palavra, são católicos mas não conhecem de fato o
Cristianismo, são protestantes sem saber o que é a protesta. São
indiferentes a qualquer religião, amam as mulheres e o dinheiro e nada
mais.
A religiosidade era parte integrante da vida social na colônia. Todas as
festividades e movimentações na comunidade giravam em torno dela, era o
elemento que norteava toda a vida cotidiana. Como exemplo, podemos analisar o
trecho da carta de 24 de abril de 1884 de Paulo Rossato, o qual explica que, de
uma certa forma, a localização da Igreja interferiu na escolha pela compra da
colônia, de forma que não prejudicasse os encontros dominicais, quando a família
assistiria à missa.
3. O CORREIO É O CONSOLO DA VIDA
“Pomos as cartas de lado e nunca mais as lemos e por discrição acabamos por destruí-las;
assim desaparecem os mais belos e flagrantes sopros de vida,
tornando-se irrecuperáveis para nós e para os outros”. (GOETHE)
3.1. CARTAS: FONTES HISTÓRICAS?
A História não está apenas em documentos tidos como “oficiais”, com
carimbos, assinaturas e, principalmente, de fundo político e econômico, como se
levou em consideração durante alguns anos. A História é vivida por todos e, por
isso, são inúmeras as fontes que podem ser utilizadas para escrevê-la. Inicia a partir
de acontecimentos diários, muitas vezes são registrados de diversas formas, que
possuem uma riqueza indescritível, pois o relato, a produção, nunca é consciente ou
inconsciente, mas natural e espontâneo. É o resultado de uma montagem da época,
da sociedade que o produzira.
Um documento pessoal é sempre uma descrição natural, ou seja, a
espontaneidade das expressões revela as próprias ações, circunstâncias, intenções
e crenças. Cabe ao historiador escolher as fontes necessárias ao seu estudo e
condicionar o discurso, conforme o interesse de análise, pois é ele quem vai
ressaltar a importância da fonte através de sua utilização. Conforme Paul Ricouer, é
justamente o historiador quem vai tornar lida uma representação textual, a qual
contém uma experiência vivida por um indivíduo. “É somente porque o autor
realmente viu o que se passou que seu texto torna-se uma fonte histórica ou
literária”
98
escreve o autor.
98
RICOUER, Paul. Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel
Soares de Souza (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica. In:
História em revista
Dossiê:
historiografia. Pelotas: UFPEL, p.39, dez.2000.
Todas as fontes são documentos e, segundo Jean Glénisson, estes
apresentam variações que podem ser classificadas em orais, monumentos e
escritos. As cartas, objeto de estudo dessa dissertação, constituem fontes capazes
de proporcionar aos historiadores dados relativos à vida social e cotidiana:
Fornecem, acerca da existência quotidiana, da situação econômica, da
mentalidade das diferentes classes sociais, elementos de informação para
os quais dificilmente se encontraria algo de equivalente, nos papéis de
origem administrativa(...)
99
Outras formas de documentos passaram a ser utilizadas, a partir da
chamada “revolução documental” difundida por Le Goff. Como analisa Ancona
Lopez, mesmo que não sejam apropriados para “novos” historiadores, ao menos
esses reconhecem a ampliação do campo conceitual dos documentos históricos,
buscando novos objetos de pesquisa e indagação, ao estabelecer relações “entre o
tipo de história que se pratica e o tipo de documentação que o historiador tem à sua
disposição”
100
. Nesta nova linha de pesquisa, também fazem parte a história do
cotidiano, os estudos de família, através da redescoberta de elementos individuais e
rotineiros, pois, como afirma Duby, é necessário resguardar a essência da pessoa
para que, no futuro, o progresso técnico o o reduza a um simples número de um
banco de dados”
101
.
3.2. A ESCRITA DAS CARTAS
99
GLÉNISSON, op. cit., p. 159.
100
LOPEZ, op.cit., p.17.
101
DUBY apud LOPEZ, op. cit., p.27.
O ato de escrever cartas é algo particular, que revela a intimidade de quem
escreve e de quem lê. É o mundo mágico das palavras sem som, em que
geralmente duas pessoas compartilham realidades e sentimentos, perguntas e
respostas. A conversa através da correspondência assemelha-se a um jogo de tênis.
A notícia sai de um lado, é rebatida e comentada no outro e volta ao ponto de onde
saiu para continuar com o mesmo assunto ou iniciar um novo. Isso pressupõe duas
condições essenciais para esta forma de diálogo: a distância e a ausência. A
distância é responsável pela demora na partida e na chegada das correspondências,
isto quando elas são respondidas. Porém, as duas condições são esquecidas no
momento em que o destinatário desfruta de sua leitura. Então, distância e ausência
transformam-se em presença.
Segundo as autoras Bastos, Cunha e Mignot
102
, no início do século XX, as
cartas foram mortas pelo telefone. Embora os avanços das tecnologias tenham
inovado a comunicação escrita através do fax e do e-mail, estes meios proporcionam
uma linguagem pobre, instantânea e impessoal, responsável por um congelamento
nos relacionamentos. Se os novos meios de comunicação favorecem a
impessoalidade, a carta, por sua vez, aproxima, pois fala de quem a escreve e
“revela sempre algo sobre quem a recebe”
103
. Cartas reforçam laços de afeto e
carinho, como explicam Cécile Dauphin e Danièle Poublan:
Em face do imenso mundo frio e indiferente, o espaço epistolar cria abrigos
cálidos e amáveis, sólidos e solidários. Um espaço que se apropria do
pequeno mundo familiar, para se alegrar juntos com os nascimentos,
casamentos, visitas e reencontros, sucessos escolares e financeiros; um
102
BASTOS, Maria Helena C.; CUNHA, Maria Teresa S.; MIGNOT, Ana Chrystina V.
Destino das letras
:
história, educação e escrita epistolar. Passo Fundo: UPF, 2002. p. 06.
103
Ibid., p.06.
espaço também para curar os desgostos e os lutos; um espaço enfim, para
firmar opiniões, dominar os medos e compartilhar os valores
104
.
A escrita da carta é o momento em que a pessoa transporta o seu mundo
para a realidade de outra pessoa. Conforme estudo das autoras Bastos, Cunha e
Mignot ”escrevem-se e mandam-se cartas pelos mais variados motivos: conversar,
informar, registrar, vender, comprar, desculpar e desculpar-se, falar da vida (...)”
105
.
Esse diálogo mudo constrói ou mantém vínculos de confiança, porque a conversa é
particular e íntima, e as pessoas tendem a ser transparentes. Segundo consideração
das mesmas autoras “a escrita epistolar, com múltiplos destinos, transforma a
ausência em presença e o passado em presente, impedindo o esquecimento. Enfim,
são laços de papel”
106
.
Antonio Castillo Gómez
107
, explanando sobre as correspondências, destaca
algumas características sobre o conteúdo das mesmas. Para o autor, tratando-se de
cunho pessoal, todas as cartas íntimas ou familiares reclamam a presença da
pessoa ausente, trocam confidências. Em alguns casos, a missiva será destruída
para que segredos sejam mantidos. Cita, ainda, a alternância entre presença e
ausência, memória e esquecimento e o “fator resposta”, como itens à preservação
dos vínculos na distância. Este último é o responsável pelas mais adversas reações,
uma vez que a carta é estritamente subjetiva. A ansiedade pela chegada de notícias
de entes queridos acaba desencadeando sentimentos que geralmente o
expressos na próxima missiva.
104
DAUPHIN, Cécile; POUBLAN, Danièle. "Maneiras de escrever, maneiras de viver”: cartas familiares no
século XIX. In: BASTOS; CUNHA; MIGNOT,op. cit., p.86.
105
BASTOS; CUNHA; MIGNOT., op. cit., p. 05.
106
Ibid., p.09.
107
GÓMEZ, Antonio Castillo. "Como o polvo e o camaleão se transformam": modelos e práticas epistolares na
Espanha Moderna. In: BASTOS; CUNHA; MIGNOT, op. cit., p.27.
Além do conteúdo, é importante levar em conta as condições de redação e
leitura, as circunstâncias das trocas e sua periodicidade, bem como os pontos de
referência sobre o tempo real da escritura. Conforme Dauphin e Poublan, ”o efeito
do real equivale, então, ao efeito de verdade. Nesse jogo de convivência, cada um
avalia o que pode revelar de si e o que pode ser dito”
108
.
3.3. ESCREVAM-ME LOGO...
As cartas familiares passaram a ser um instrumento da comunicação escrita
a partir dos séculos XVI e XVII. Desde então, analisá-las, a fim de reconstruir a vida
cotidiana de uma determinada época, tornara-se o objetivo de muitos historiadores
interessados em “investigar” a vida privada.
Nossos estudos partem de cartas escritas por homens, com visões de
mundo muito diferentes. Os assuntos das missivas são resumidamente as questões
econômicas. Tratam das dificuldades financeiras, de remessa de dinheiro, compra
de colônias, gastos com viagens ou demais produtos, enfim, são assuntos
destinados aos homens daquele período, nos quais as mulheres não interferiam.
Paulo Rossato, Dom Domenico Munari, Felice Sartor, Giovanni De Boni, Antonio,
Luigi e Felice Taschetto, Antonio Basso e Michele Altafini tentam, através das cartas,
comunicar seus sentimentos, sucessos e frustrações.
De onde e como escreviam suas cartas são particularidades pertinentes a
cada um deles, até porque não se encontravam todos em um mesmo lugar. Cada
108
DAUPHIN; POUBLAN., op. cit., p. 86.
um descrevia uma realidade na qual estava inserido. O objetivo da escrita de cada
um também é diferenciado. Paulo Rossato escreve regularmente à família,
pretendendo manter os vínculos com a mesma, através da insistência para que os
seus parentes venham à América. Dom Domenico Munari, em sua única carta
analisada, faz um relato sobre a sua situação no Rio Grande do Sul, mostrando-se
indignado devido a determinados fatos presenciados nas colônias.
Antonio Basso e os irmãos Taschetto também se encontram descontentes e
imploraram à família e autoridades a oportunidade de retornarem à Itália; ao
contrário, Felice Sartor, Giovanni De Boni e Michele Altafini dão graças por estarem
em terras brasileiras. Abaixo segue um quadro demonstrativo, no qual constam o
nome dos remetentes e destinatários, respectivamente, com local e data das
missivas enviadas.
REMETENTE DESTINATÁRIO
LOCAL DATA
D. Domenico
Munari
arcebispo Porto Alegre 21/10/1877
Paulo Rossato pais São Sebastião 27/12/1883
Paulo Rossato pais não consta 17/02/1884
Paulo Rossato pai Do Sul, Colônia Caxias 24/04/1884
Paulo Rossato pai não consta 07/05/1884
Paulo Rossato pai Do Sul, Colônia Caxias 11/05/1884
Paulo Rossato pai Do Sul, Colônia Caxias 30/05/1884
Paulo Rossato pai Do Sul, Colônia Caxias 22/06/1884
Paulo Rossato pai Colônia Caxias do Sul 29/06/1884
Paulo Rossato irmão Antônio Colônia Caxias 29/06/1884
Paulo Rossato pai Colônia Caxias 27/07/1884
Paulo Rossato pai Colônia Caxias 24/08/1884
Paulo Rossato irmão não consta 08/12/1884
Paulo Rossato irmão Colônia Caxias 02/02/1885
Paulo Rossato irmão Colônia Caxias 14/02/1885
Paulo Rossato irmão Colônia Santa Teresa 18/04/1885
Felice Sartor não consta Santa Teresa de Caxias 15/05/1885
Giovanni De Boni não consta Santa Teresa de Caxias 16/05/1885
Paulo Rossato irmão Colônia Santa Teresa de
Caxias
14/06/1885
Paulo Rossato pai Cachoeira 25/12/1885
Irmãos Taschetto irmãos Santa Maria Boca do Monte
Nov/ 1887
Antonio Basso irmãos Silveira Martins Abril/ 1889
Antonio Basso irmãos Silveira Martins Abril / 1889
Michele Altafini pais Vila S. Jerônimo
Barão do Triumpho
27/10/1889
QUADRO n.1 – local e data das correspondências enviadas com os respectivos remetentes e
destinatários
3.3.1
Paulo Rossato
Procura ser regular na sua correspondência. As duas primeiras cartas são
escritas entre um intervalo de aproximadamente 60 dias. Nos meses de maio e
junho, são escritas mais três cartas e, entre julho e agosto, seguem com
periodicidade mensal. A partir do mês de setembro, não remete notícias, voltando
novamente a fazê-lo a partir de dezembro de 1884. Isto ocorre porque é o período
de preparação para a vinda da sua família para o Brasil, segundo carta de 24 de
agosto de 1884, pelas notícias recebidas da família, Rossato explica que a mesma
deveria provavelmente partir em 1° de outubro do corrente ano.
A última carta de Paulo Rossato é dirigida ao pai em 24 de agosto de 1884;
as demais são direcionadas ao irmão que se encontrava ainda na Itália. Para melhor
entendimento, segue abaixo quadro informativo, contendo uma sinopse do conteúdo
desenvolvido em cada carta de Paulo Rossato.
DATA ASSUNTO
27/12/1883 Relatos da viagem. Saída de nova São Vicente-
Rio de
Janeiro – Rio Grande – Pelotas - Porto Alegre - São Sebastião.
17/02/1884
Compra da colônia por 800 mil réis com dois anos sem juros para
pagar, localização e descrição da mesma. Trabalho empreitado
em outra localidade além do realizado na colônia (construção de
estrad
as). Explicação da implantação de videiras e moinhos.
Descrição do solo, clima, vegetação, vida social (missas e festas),
número de habitantes, vestimenta dos brasileiros e gaúchos,
comparação dos valores de gêneros alimentícios (Itália/Brasil).
Notícias
de pessoas da colônia e solicitação de notícias dos
familiares da Itália.
24/04/1884 Explica técnicas agrícolas (plantio do trigo), a existência de muita
madeira e que, em “Valdagno“, seria considerado rico quem
tivesse tanta madeira. Afirma a necessidade da vinda do restante
da família para trabalharem e ganharem dinheiro em pouco
tempo. Cita o Carnaval e as festas de Páscoa. Saudações.
OBS.: Em anexo está o endereço da Companhia de Transportes
Marítimos Raggio & Cia, com o objetivo de o irmão conseguir
uma
vaga como dirigente e condutor de passageiros .
07/05/1884
Como não tem notícias, repete o assunto abordado nas cartas
anteriores. Além disso, cita que médicos e escolas italianas,
trabalho suficiente, como também comida e bebida para quem
quer vi
ver aqui, informa que as colônias do governo são recebidas
gratuitamente, embora sejam mais afastadas. Conta o nascimento
de sua filha. Saudações. Espera todos na América.
OBS.: Repete o endereço da Companhia de Transportes
Marítimos Raggio & Cia , cita a
lgumas dicas contra ladrões e
velhacos (desde o vilarejo, até chegarem a Gênova e durante a
viagem).
11/05/1884
Insistência para a família vir à América. Os irmãos poderiam ir
para Buenos Aires, ganhar algum dinheiro e depois vir para o
Brasil. Pede que o
s familiares tragam utensílios que não existem
aqui ou que são muito caros, cita alguns, inclusive para a venda,
já que são escassos. Repete o endereço da Cia de Navegação.
30/05/1884
Insistência para os irmãos firmarem contato com a Companhia de
Navegaçã
o. Saudações. Espera notícias dos familiares, já que
não sabe se estão recebendo as correspondências.
22/06/1884
Reconhece que seus familiares estão recebendo as cartas, mas
não está tendo notícias dos mesmos. Faz uma lista de utensílios a
serem trazidos:
ferramentas para a colônia, objetos para a família,
instrumentos de carpintaria. Recomendações à viagem e
saudações. Escreve o endereço: Brasil, Província de Rio Grande,
Porto Alegre, Do Sul Colônia Caxias n. 01. Recebe notícias da
Itália ao postar a carta.
29/06/1884
“Se quiserem que lhes faça saber como é a América, posso dizer
que quem tem um pouco de vontade de trabalhar tem comida e
bebida à vontade, e sem preocupações, porque os patrões, nós
os deixamos na Itália”. Com esta afirmação, continua insi
stindo
para que diversos membros da família venham à América. Muitas
recomendações para a viagem. Saudações.
27/07/1884
Recebe notícias dos familiares. Novas recomendações. Relatos do
cotidiano sobre o plantio de alguns produtos. Incentivo a tios,
primos,
amigos e cunhados para virem à América, explicando as
vantagens. Saudações.
24/08/1884 Recomendações para a viagem. Saudações.
08/12/1884
Escreve ao irmão, informando que passageiros são trazidos de
Gênova até a Colônia Caxias gratuitamente, basta a fam
ília fazer
a solicitação. Saudações.
02/02/1885 A carta é destinada ao irmão. Por ela, avisa que mandou buscá-
lo
pela imigração e pede para, ao invés de trazer o dinheiro no
bolso, comprar vários objetos solicitados e escondê-
los no meio
da bagagem. Saudações.
14/02/1885
Recomendações para a viagem e objetos que deviam ser
trazidos, além de notícias a serem transmitidas para alguns
conhecidos na Itália. Saudações.
18/04/1885 Recomendações e solicitações para a viagem.
14/06/1885 Pede para o irmão avalia
r qual é a melhor oportunidade de
viagem: com a companhia ou com a imigração. Assuntos
cotidianos sobre plantio e demais notícias da colônia.
Recomendações para a viagem. Continua colocando que aqui é a
melhor saída, por isso quem quiser trabalhar e prospe
rar, que
venha. Saudações aos familiares (faz citações de rios nomes).
Recados para demais familiares e conhecidos.
QUADRO n. 2 – sinopses da correspondência de Paulo Rossato
Em algumas missivas, Paulo Rossato deixa explícitos os lugares de onde
escreve, bem como a sua situação pessoal na escrita das mesmas. As demais,
provavelmente, ele as tenha escrito do seu próprio domicílio. No trecho da carta
enviada em 17 de fevereiro de 1884, descreve as condições de sua redação:
Não explico mais nada porque não tenho tempo: estou no trabalho, e se
quero escrever aproveito a pausa do meio-dia, enquanto os outros dormem.
E nos dias de festa, entre ir até o Campo e depois e um lugar e outro, não
pude escrever, mas em breve enviarei mais uma carta.
A troca de correspondência entre Rossato e sua família ocorre em situações
difíceis. As missivas que eram remetidas pela família da Itália podiam levar até dois
meses para chegar ao Brasil, quando chegavam. Contando com as informações
retiradas das falas do próprio Rossato, tornava-se complicado manter um vínculo de
comunicação, na qual apenas uma das partes realizava a periodicidade nas
respostas, uma vez que, para 11 cartas enviadas por Paulo Rossato, foram
respondidas cinco pela família (uma o chegou, segundo carta de 24 de agosto de
1884). Em quase todos os textos, redige, atualizando a família de quantas cartas
escreveu ou recebeu e faz questionamentos sobre a falta de notícias.
Assim inicia a carta enviada em 17 de fevereiro de 1884: “E vocês tratem de
escrever-me como vão indo e como passaram o Carnaval, que também haverei de
contar-lhes, na próxima carta, como passei o Carnaval aqui”. Dois meses depois,
solicita notícias na carta escrita em 24 de abril: “Enviei-lhes uma carta no dia 17
de fevereiro. Não sei se a receberam. Se não a receberam, escrevam-me”. O
mesmo ocorre na carta de 7 de maio:
Enviei-lhes outras duas cartas. Como não tenho notícias se as receberam,
volto, com esta, a escrever-lhes. (...)
Se meu locador e família tencionam partir, haverei de escrever-lhes em
breve. Escreverei logo também para vocês a respeito do que devem fazer
no navio. Mandem-me duas ou três cartas seguidas.
Sem saber se a família está recebendo ou não sua correspondência,
Rossato explica como envia as cartas em 30 de maio do corrente ano:
Não sabendo se receberam o endereço que mandei, torno a enviá-lo (...)
Façam-me saber quantas cartas receberam. Enviei uma no dia 11 de maio e
a registrei, custando-me 500 réis. As outras mandei com porte simples, pois
dizem que vão melhor assim. Mas agora, como não tenho resposta, fico
enfastiado. Assim é que resolvi enviar esta sem registrar, custando-me ela
200 réis.
Em 22 de junho, aproximadamente um mês depois do relato acima, ainda
sem notícias escreve:
Enviei-lhes cinco cartas e ainda não recebi resposta. Não sei se estão vivos
ou mortos, ou se não pensam mais em responder-me, mas por intermédio
de Marogna de Muzzolone sei que receberam minhas cartas. (...) Quando
partirem, tratem de escrever-me uma ou duas cartas, que os esperamos de
coração. o passa um dia que não os tenhamos em mente. Escrevam-me
para que possa ir recebê-los em São Sebastião, ou talvez em Porto Alegre
(...). indo despachar esta carta, encontrei a que enviaram no dia 4 de maio,
mas aquela que remeteram no dia 14 de abril não a recebi.
Porém, quando vai postar a carta, encontra outra enviada pela família e
anexa um bilhete: “A 22 de junho recebi a tão esperada carta de vocês, que
expediram a 4 de maio. Soube que a 14 de abril foi-me enviada uma outra carta,
mas que não recebi”. Em 27 de julho, escreve que recebeu as demais missivas
escritas pela família: “No dia 20 de julho, recebi a carta que você mandou a 27 de
maio e também aquela de 14 de abril. Alegrei muito ao lê-la, por saber que todos
estão bem, e que se encontram morando nos Lora”. Na carta redigida a 24 de
agosto, Rossato faz um balanço entre a correspondência expedida e a recebida:
No dia 17 de agosto recebi sua carta, enviada a 30 de junho e percebi que
você enviou outras 4 cartas, mas recebi apenas 3: a de 14 de abril, a de 4
de maio e a de 27 de maio. (...) escrevi 6 cartas. Uma a 10 de maio foi
registrada, custando 500 réis. Uma a 30 de maio, dentro da de meu antigo
locador. Uma a 22 de junho, também registrada, e contendo também o
mapa da Colônia Caxias. Duas a 29 de junho e outra a 27 de julho.
3.3.2 Dom Domenico Munari
Pároco de Fastro há doze anos, migrou com o objetivo de seguir seus
paroquianos. Narra em sua epístola a desastrosa viagem que iniciou em 27 de
dezembro de 1876 em um veleiro, vindo a naufragar logo após a partida. Em abril de
1877, a bordo de um navio a vapor, ele e os companheiros retomaram a viagem com
destino à América, chegando às colônias Conde D’Eu e Princesa Isabel
109
. O seu
discurso acaba desenvolvendo-se sobre a situação dos imigrantes nesta localidade
109
Cf. PARIS, Assunta de. (org.) Memórias: Bento Gonçalves- 109 anos. Bento Gonçalves: Prefeitura
Municipal de Bento Gonçalves; Arquivo Histórico Municipal, 1999. p.40-41. “Até 1870, Bento Gonçalves
chamava-se Cruzinha. Dizem uns, por ser o local onde morreu e foi enterrado um traçador de estrada; outros, que
a cruz era túmulo de um tropeiro. Em 1870, o Governo da Província, desejando ampliar a área de colonização,
por “Acto de 24-05-1870, assinado pelo Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, João Sertório, criava as
colônias Dona Isabel e Conde D’Eu, com abrangência de 32 léguas quadradas. O trabalho de demarcação e
medição de lotes das duas novas Colônias foi coordenado pelo major José Maria da Fontoura Palmeiro e exigiu
um investimento de 70 contos de réis”. Cf. VITALONI apud COSTA, Rovílio.
As colônias italianas Dona
Isabel e Conde D’Eu
. 2. ed. Porto Alegre: EST, 1999. p.10. “São duas colônias unidas, cada uma delas com 16
léguas quadradas de superfície. Sua população é de 800 indivíduos, alemães, tiroleses, franceses e italianos,
quase em igual número entre si. Estas colônias contam apenas um ano de existência. Suas terras são muito férteis
e próprias para o cultivo do trigo, do centeio, do milho, pois encontram-se em elevada altitude”.
e a respeito dos detalhes sobre o processo imigratório na região. Segundo
informações de Emilio Franzina
110
, Dom Domenico Munari não compartilhou com
seus paroquianos as dificuldades encontradas nesta localidade conforme o seu
objetivo inicial, indo para Porto Alegre, de onde redigiu a missiva analisada.
Trata-se de uma carta comunicativa, sem o objetivo de aguardar resposta ou
reclamar presença, porém constata-se que uma obrigação na escritura quando
redige “Primeiro entre estes amigos é naturalmente o senhor, querido Arcebispo, e
por isso ao senhor devo a todos os efeitos escrever a presente carta e devo escrevê-
la neste múltiplo teor”.
Para estudar o conteúdo da carta de Dom Domenico Munari, faz-se
pertinente levar em consideração a data em que a mesma foi escrita. O redator
esteve presente nas colônias em 1877, ou seja, dois anos após sua fundação,
portanto encontrou uma realidade muito diferente daquela narrada por Paulo
Rossato sete anos depois.
3.3.3 Felice Sartor
É o anfitrião do sacerdote Giovanni De Boni. A carta escrita por Sartor é
breve e o consta o seu destinatário, o que nos impede de obter maiores
informações sobre o mesmo. O único dado encontrado é sua região de origem, o
Feltre, obtido através dos registros de Emilio Franzina
111
. Segue abaixo a sua carta
na íntegra:
110
FRANZINA, op. cit., p.72.
111
FRANZINA, op. cit., p. 115.
S. Teresa de Caxias, 15 de maio de 1885.
Oh! Como deve ter sido lindo o dia em que o povo hebreu, passado o Mar
Vermelho, cantava hinos de agradecimentos a Deus que o havia libertado
da escravidão do faraó! Assim nós paroquianos de São Vittore e Santa
Corona, libertos das misérias da Itália graças ao novo Moisés Dom Pedro II
Imperador do Brasil, cantamos hinos de agradecimentos a Deus que
enxugou as nossas lágrimas. Seria uma alegria compartilhar o alimento que
nos sobra com os nossos irmãos italianos. Por isso nós queremos que a
nossa voz chegue até a Europa; e vos pedimos para cantar no santuário de
São Vittore e Santa Corona uma Missa e o Te Deum” com a maior
solenidade possível.
Felice Sartor
3.3.4 Giovanni De Boni
É possível observar na carta abaixo discriminada, que a mesma se
caracteriza por ser uma comunicação rápida, não apresentando destinatário
específico e acúmulo de informações. Frade católico do Feltre, Giovanni De Boni
comunica através de sua carta as festividades que estão sendo realizadas na
colônia, além da hospedagem na residência de Felice Sartor.
S. Teresa de Caxias, 16 de maio de 1885.
quinze dias estou na casa de Felice Sartor. Ficarei em Nova Celarda
alguns dias para preparar uns rapazes para a Primeira Comunhão.
Amanhã, 17 de maio, no “Campo” se celebra a festa dos SS.Mártires Vittore
e Corona. Quem iria pensar que seriam festejados aqui no Brasil?
Frade Giovanni De Boni, clérigo catequista católico.
3.3.5 Antonio Basso
Camponês de Sandrigo (Vicenza), redige da localidade de Santa Maria da
Boca do Monte, Silveira Martins, uma carta destinada aos irmãos. Possui o objetivo
de buscar ajuda, e não estabelecer periodicidade de troca através da obrigação na
escritura. Solicita desesperadamente auxílio junto às autoridades italianas, para
retornar ao país. Conforme dados de Franzina
112
, Antonio Basso foi imigrante da
segunda remessa, atraído por afirmações positivas de conterrâneos. As condições
adversas do local apresentaram-se através das diferenças climáticas e atmosféricas
e por uma provável crise do mercado de trabalho rio-grandense, incluindo as
agitações que conduziram à Revolução de 1893. Devido aos pedidos generalizados
para voltar à pátria, o pedido de Antonio Basso foi negado pela administração
italiana, apesar de as autoridades municipais de Sandrigo terem se interessado pelo
caso.
As duas cartas de Antonio Basso são escritas no mês de abril de 1889,
porém não possuem a data precisa, o que leva a concluir que tenham sido redigidas
em dias diferentes, uma vez que o assunto das mesmas é praticamente semelhante.
Em uma delas, pede aos irmãos para irem à prefeitura solicitar a documentação
exigida para que pudesse retornar à Itália gratuitamente, porque se considerava
enganado pelas autoridades, julgava-se um ser traído. Na outra, também solicita aos
irmãos que escrevam ao rei Vittorio Emanuele, para pedir a viagem gratuita,
explicando que não pode escrever porque aqui não tem ninguém “bom de letra”.
Contudo, nas duas cartas, comunica a situação vivida pela família na colônia,
citando os nomes dos que fazem parte da mesma família.
3.3.6 Antonio, Luigi e Felice Taschetto
112
FRANZINA, op. cit., p.165.
Naturais de Oderzo (Treviso), os irmãos Taschetto também escrevem, de
Santa Maria Boca do Monte, uma missiva com um maior número de informações do
que aquelas de Felice Sartor e Giovanni De Boni. São abordados alguns assuntos
desenvolvidos também na missiva de Antonio Basso, como o retorno à Itália, as
péssimas condições enfrentadas na localidade de Silveira Martins e o fato de terem
sido enganados. Comentam sobre a adulteração de correspondências, dizendo ao
irmão que a carta não foi modificada, tendo sido escrita pelo sobrinho Giuseppe
porque, se fosse redigida pelos patrões, certamente não contariam a verdade.
Os irmãos Taschetto eram diaristas e não colonos, trabalhavam por 30
moedas ao dia - embora trabalhar para o governo rendesse 50 moedas - o que não
lhes interessava, devido aos inúmeros “perigos” que precisariam enfrentar. Ao
contrário de Paulo Rossato, que afirmava ter deixado os patrões na Itália, os
Taschetto possuíam um patrão que eles o consideravam o “estimado”, um homem
bondoso, conforme se observa no trecho: “(...) colocamos todas as nossas
esperanças na sua bondade, esperando na sua misericórdia e que não seremos
abandonados pelo senhor e o saudamos de todo o coração e nos declaramos seus
desejados servos (...)”.
Apresentam a necessidade da troca de notícias, já que aguardam a resposta
da missiva enviada. Assim escrevem: “Então, querido irmão te saudamos e
esperamos receber algum consolo da tua resposta, caso contrário seremos
obrigados a ir nas nossas colônias e no meio das matas desertas e deveremos
morrer barbaramente”.
3.3.7 Michele Altafini
A carta deste ex –guarda de alfândega de Rovigo apresenta-se densa e com
muitas informações diferenciadas. É dirigida aos pais e narra a situação presenciada
por Altafini no núcleo de São Jerônimo, na Colônia Barão do Triumpho. Nesta
missiva, explica como ocorriam as condições de imigração à região:
Este terreno é presente do Governo do Brasil para cada chefe de família
que queira ficar as suas ordens, com a obrigação de trabalhar 15 dias a
cada mês nas ruas a benefício do Governo mesmo e os restantes 15 dias
trabalhar na própria colônia nas horas que bem entender (...).
Na colônia, possui a incumbência de supervisão, além de receber ordens no
escritório
113
. Afirma ser remunerado sem fazer nenhuma fadiga; além disso,
descreve o início da formação do núcleo colonial em São Jerônimo e a mudança de
sua localidade:
Agora, a Comissão, por ordem do Governo, quer que todas as famílias
chegadas após de mim vão para outra posição, sempre porém em São
Jerônimo porque querem formar uma grande cidade, e assim por ordem do
meu Superior eu também devo mudar-me porque quando si é pago precisa
obedecer. Ainda mais que ele me mostrou que nesta cidade que está se
formando, há igreja e escola, naturalmente para a educação dos meus filhos
e me disse que me dará uma colônia e também um lote de terreno e uma
casa no centro da cidade porque o meu serviço é precisamente na cidade
como guarda dos colonos junto com um outro italiano. Lamento deixar o
atual cargo porque deixo uma bela colheita de milho e feijão, mas é preciso
obedecer às ordens superiores.
Altafini faz ainda relatos referentes ao seu cotidiano na localidade, como a
compra de cavalo e seu respectivo valor, o aprendizado do idioma no Brasil e
113
Eis um trecho da carta: “Finalmente recebi notícias vossas. Na manhã do dia 20 de outubro do corrente ano,
fui ao escritório onde vou todas as manhãs para relatar as novidades do meu serviço e ao mesmo tempo receber
ordens acerca do mesmo. O estimado chefe do escritório, pessoa educadíssima, logo que me viu me fez chamar
pelo meu filho que neste mesmo escritório trabalha como serviçal e me entregaram uma carta a mim
endereçada”.
notícias referentes à família. No entanto, segundo Franzina
114
, a situação de Altafini
nas colônias é diferente da forma pomposa que descreve. De acordo com alguns
registros do nsul, Michele Altafini não deu boa mostra de sua conduta, deixando
descontente seus superiores brasileiros.
Não estabelece nculos entre pergunta e resposta, pois é a segunda carta
que envia. A primeira foi escrita em 24 de maio e enviada a 19
de julho, devido à
falta de navios que partissem para Gênova. Considera a mesma como resposta à
missiva recebida em 20 de outubro porém, segundo o redator, como não tem certeza
do recebimento, retoma o assunto da anterior. A obrigação na escritura é observada
através da solicitação da resposta: “Por agora não tenho mais nada a acrescentar,
somente saudar-vos com carinho junto à minha família, vos pensamos dias e noites,
e vos peço de responder logo que receber esta carta porque viram a demora para
chegar até aqui”.
3.4. CAROS, CARÍSSIMOS, QUERIDOS E AMADOS
Escrever cartas é abrir a alma e expor os sentimentos. Não existem
regras para os sentimentos, a partir do momento que estes vão aflorando.
Inexplicavelmente, o papel deixa de ser branco, sem significado, para conter
mensagens que irão alegrar ou entristecer pessoas. Cartas são sentimentos. Cécile
114
FRANZINA, op. cit., p. 188.
Dauphin e Daniele Poublan resumem sensações que ocorrem com as pessoas no
momento da leitura de cartas; estas são variadas, mas, sobretudo é possível “(...)ao
interlocutor imaginar a cena, vivê-la retrospectivamente através de ruídos, odores,
presenças, objetos que são familiares, que têm sentido especial (...)”
115
.
Pode-se, entretanto, definir algumas formas estruturais na redação da
correspondência. Castillo Gómez
116
utiliza um exemplo citado por Antonio de
Torquemada, em que se apresentam seis questões nas quais estão todos os
aspectos da comunicação epistolar: quem, a quem, por quê, que, quando e de que
maneira. Não é regra básica, contudo ocorre, na maioria das vezes, podendo ser um
bom começo para analisar as correspondências redigidas pelos imigrantes.
O objeto de estudo desta dissertação é a correspondência privada familiar.
A este nero de correspondência segue o modelo: abertura, desenvolvimento e
desfecho. Segundo as autoras Cécile Dauphin e Daniele Poublan, existem outros
“procedimentos que fazem da correspondência familiar uma troca não-interpessoal,
mas coletiva (...)”
117
. Estes são evidenciados através das expressões de falta e
ausência, a distribuição de cumprimentos, ou seja, a troca que transforma a
correspondência em um jogo interativo.
3.4.1 Paulo Rossato
115
DAUPHIN; POUBLAN, op. cit., p.84.
116
GÓMEZ, op. cit., p.37.
117
DAUPHIN; POUBLAN, op. cit., p.83.
Através de sua escrita, lemos que, embora tenha sido um homem preso a
patrões e tenha passado por condições financeiras difíceis na Itália, teve acesso às
letras. Não se trata do que se pode dizer de um homem culto e letrado, porém
também não se pode considerá-lo como um semi-analfabeto, ou seja, uma pessoa
que e escreve, demonstrando muitas dificuldades. Rossato demonstra ao longo
de suas cartas que possui muitos conhecimentos. É possível que os tenha adquirido
por meio empírico, porém teve astúcia e inteligência suficientes para aplicá-los em
seu benefício a fim de obter a superação dos seus obstáculos.
Destacam-se, aqui, alguns desses assuntos, os quais foram possíveis
identificar em suas correspondências. Estabelece relações comparativas entre os
fusos horários e as estações do ano, na América e na Europa. Realiza cálculos
matemáticos para compra e pagamento da colônia, além de toda a organização
estrutural da mesma, utilizando metragens e as informações de área. Analisa os
preços no Brasil e na Itália, fazendo a equivalência entre as moedas e também as
distâncias entre um local e outro, com o devido tempo para superá-las. Diferencia as
condições climáticas, identificando os motivos e as técnicas agrícolas utilizadas no
Brasil.
Figura 6 – carta de Paulo Rossato ao irmão, na Itália (1885)
Ainda que não tenha muito tempo para escrever, administra e organiza os
assuntos na hora de colocá-los no papel. Observa-se que segue uma ordem
cronológica nos fatos descritos, o que lhe favorece no momento da escrita. Ao
terminar a carta, se ocorrer a necessidade de desenvolver um assunto, escreve um
bilhete separadamente, porém é remetido juntamente com a missiva, conforme o
ocorrido nas correspondências de 24 de abril de 1884, 07
de maio de 1884 e 29 de
junho de 1884. As idéias são bem escritas e possuem clareza na sua organização,
mesmo que seja um pouco repetitivo em algumas cartas. Segue abaixo a primeira
carta de Rossato, escrita em 27 de dezembro de 1885, de onde podemos partir à
análise da organização estrutural da mesma.
Caríssimos pais
São Sebastião, 27 de dezembro de 1883.
Parti de casa com lágrimas nos olhos por deixar minha mãe, meus
irmãos e minhas irmãs que tanto me queriam. Chorava por deixá-los, e não
por vir para a América.
Juntamente com Raquel, parti de Gênova, com grande alegria, no
dia 22 de novembro. Por dois dias ela esteve muito bem. Depois o mar
começou a agitar-se e ela teve vômitos. Se pelo menos tivesse sido ela;
mas todos, mulheres e homens, sentiam-se mal, e de 1590 passageiros,
talvez apenas uns 60 não tivessem vômitos. Um fazia coro ao outro,
provocando o mesmo riso. Alguém dizia: “Adeus, que morro! Adeus, que
morro!” e pouco depois passava a tempestade e todos estavam bem.
Em dez dias chegamos a São Vicente e permanecemos por um
dia para carregar carvão. Trabalhei também, juntamente com Gio Maria e
cada um ganhou seis francos. Depois, em 11 dias chegamos ao Rio e lá nos
conduziram à casa de imigração, numa ilha chamada do Gelo. Ficamos
naquele local por 3 dias, com pouca comida: café pela manhã e uma
pequena merenda às 4 horas. Uma dieta desta um doutor não a prescreve
nem mesmo a um doente. Se se quisesse comprar um pedaço de pão com
um marengo (moeda de ouro), não se o encontrava. Esta foi a fome que
sofri durante a viagem, enquanto a Raquel tinha tudo o que queria: vinho
branco, vinho tinto, sopa, carne assada e rum. Os senhores davam de tudo
para ela. Temia que ela sofresse muito no mar, porque se trata de uma
viagem difícil, mas ela se acha gorda e corada, atraente e alegre, e
encontra-se muito bem.
Do Rio de Janeiro partimos em direção a Santa Catarina.
Rumamos depois para Rio Grande onde ficamos um dia, seguindo depois
para Pelotas, e enfim, para Porto Alegre. Detivemo-nos por um dia na casa
de imigração, seguindo então com um vaporzinho e chegando a São
Sebastião, por um rio que é 1/3 maior que o Agno. Aqui encontram-se
laranjas a 10 réis e por vezes custam apenas o trabalho de colhê-las.
No dia 28 partimos para a colônia, às custas do governo. Aliás,
desde o Rio de Janeiro, recebíamos tudo do governo. Antes de partir para a
América, parecia que partiríamos para o desespero, e encontramos,
entretanto, cidades como na Itália. Aqui agora estamos no verão. Comem-
se melancias, uvas, figos, laranjas. E vocês, entrementes, estão com neve.
Talvez que a diferença de fusos seja mais ou menos de 6 horas: quando
é meio-dia, temos aqui 6 da manhã. Mas o calor não é muito e a gente
encontra-se bem. Aqui troveja e chove. Agora preciso 3 dias para ir ver a
colônia, e depois escreverei. Resumindo posso dizer que tive uma boa
viagem e estou bem.
Eu e a Rachel vos saudamos a todos de coração: pai, mãe,
irmãos, irmãs, minha cunhada Maria e meu tio Pedro. Raquel saúda a
Beppa e a espera aqui. Saúdem a todos aqueles que pedem por mim e, se
for possível, mendem rezar uma missa a Nossa Senhora das Graças, pois
que a Raquel e eu tivemos muita sorte na travessia.
Adeus, adeus. Sou
o filho
Paulo Rossato
Paulo Rossato é o único que realmente emprega expressões que refletem
falta e ausência, termos indispensáveis em correspondências familiares. Suas duas
expressões mais utilizadas são: “se estivessem aqui” e “escrevam-me logo”. Esta
última refere-se ao longo período sem notícias por parte da família na Itália.
Constata-se, através das suas falas, a insistência para que a família escreva e
mande notícias, principalmente a mais esperada de todas: que também viriam à
América. A respeito das correspondências enviadas pela família, não é possível
estabelecer muitas conclusões, pois não são retomadas por Rossato, a não ser com
relação às informações sobre a vinda da família para o Brasil.
As cartas seguem a mesma estrutura: saudação, data, solicitação se a carta
foi recebida. Caso não a tenha sido, retoma o conteúdo da última, agindo assim em
todas que não tenha a confirmação de recebimento. É por isso que, em
determinadas situações, a correspondência torna-se cansativa devido à repetição
exaustiva de terminados assuntos. Após segue o acréscimo de alguma informação
que não tenha sido descrita anteriormente. A distribuição de cumprimentos é feita ao
final, contemplando familiares e amigos de Paulo Rossato e de sua esposa Raquel.
Abaixo, um quadro demonstrativo com as expressões tratadísticas utilizadas por
Rossato na abertura e no encerramento de suas missivas.
DATA ABERTURA ENCERRAMENTO
27/12/1883 Caríssimos pais Adeus, adeus. Sou o filho Paulo Rossato
17/02/1884 Caríssimos pais Não me prolongo mais. Envio-
lhes um beijo.
Adeus, adeus. Seu filho Paulo Rossato.
24/04/1884 Caríssimo pai Não me prolongarei mais. Saudando a vocês e
a
toda minha família, que espero ver, em pouco
tempo, aqui na América. Adeus. Sou o filho
Paulo Rossato
07/05/1884 Caríssimo pai Adeus, adeus. O filho Paulo Rossato
11/05/1884 Caríssimo pai Não há.
30/05/1884 Caríssimo pai Adeus, adeus a todos, e sou o
filho Paulo
Rossato. Saúdem minha mãe.
22/06/1884 Caríssimo pai o mais me prolongo a não ser para saúda-
lo
sinceramente, dando-
lhe mil beijos. Adeus,
adeus e sou o filho Paulo Rossato.
29/06/1884 Pai Caríssimo Não mais me prolongo em saudá-los, e auguro-
lhes tanta saúde e prosperidade como s
estamos gozando. O filho Paulo Rossato.
29/06/1884 Caro Irmão Antônio
Sou o irmão Paulo Rossato
27/07/1884 Caríssimo pai Saúdo-
os novamente e sou o filho Paulo
Rossato.
24/08/1884 Pai Caríssimo Nada mais me restando, saúdo-os e espero vê-
los em breve aqui. Sou o filho fiel Paulo Rossato.
08/12/1884 Caríssimo irmão Saudando-o, despeço-
me. Sou o irmão Paulo
Rossato.
02/02/1885 Caríssimo irmão Saudações do irmão Paulo Rossato.
14/02/1885 Caríssimo irmão Não há
18/04/1885 Caro irmão Sou o irmão Paulo Rossato
14/06/1885 Caríssimo irmão Adeus, adeus e sou o irmão Paulo Rossato.
25/12/1885 Prezado Pai O filho Paulo Rossato
QUADRO n. 3: expressões tratadísticas utilizadas por Paulo Rossato na abertura e encerramento
de suas cartas
3.4.2 Dom Domenico Munari
A carta reflete uma linguagem elaborada, talvez por tratar-se de um membro
eclesiástico, diferentemente das demais missivas escritas por imigrantes com outro
nível cultural. Apresenta um discurso claro e de fácil entendimento através da qual
se reconhece que é uma pessoa letrada e culta. As idéias estão expostas de forma
ordenada a partir de sua chegada ao Brasil.
Obedece à seguinte estrutura: local e data, abertura, discurso e
encerramento. Utiliza, como forma tratadística na abertura Meu Caro Arcebispo”;
finaliza, escrevendo “Reverenciando-o de coração me declaro seu devoto e
agradecido amigo e confrade. Dom Domenico Munari”. Na data, apresenta o local
com precisão: Brasil, Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 21 de outubro de 1877.
Emprega expressões populares para transmitir algumas idéias, como é
possível observar no trecho: “Permaneci uns 12 dias, mas constatando que a
Seca aí rondava, e como a foice da febre amarela ameaçava mandar-me a engordar
as beterrabas do coveiro, dei no pé, ou seja, subi num navio e fui embora até o Rio
Grande do Sul”. As expressões “Seca, foicee engordar as beterrabas do coveiro
exprimem a idéia de morte, o mesmo ocorrendo com a expressão “dei no pé”,
significando a saída de um determinado local.
Da carta de Dom Domenico Munari não é possível inferir sentimentos de
falta ou ausência. A única passagem que transmite pensamentos desta ordem
refere-se à terra natal, lembrada saudosamente
Este dia que nos idos anos eu transcorria na alegria de doces amigos, este
dia me lembra Arsié e da sua bela solenidade comemorativa do terceiro
Domingo de outubro, e mais ainda me lembra os alegres amigos com os
quais eu costumava conversar jovialmente em tempos menos infelizes que
o presente
3.4.3 Felice Sartor
Sua carta é organizada sob a seguinte estrutura: data, conteúdo e
assinatura. Trata-se de uma comunicação breve, sem o objetivo de estabelecer
vínculos, até mesmo porque não há destinatário especificado na missiva.
3.4.4 Giovanni De Boni
Segue a mesma organização da carta de Felice Sartor, isto é, é uma
comunicação rápida, sem a discriminação de destinatário.
3.4.5 Antonio Basso
Na correspondência de Antonio Basso, ocorre uma variação na sua
organização estrutural. Inicia com a data, seguida do conteúdo e finaliza com a
localidade. Não separa a forma tratadística “Queridíssimos irmãos” do corpo da carta
e no final não assina a mesma. O mesmo ocorre nas duas missivas escritas por
Antonio Basso.
A narrativa de Antonio Basso é organizada, as idéias são desenvolvidas de
forma clara, obedecendo à finalidade proposta. Aborda o assunto exaustivamente,
não traz expressões de falta e ausência, porém observa-se que aguarda retorno.
Mesmo que as missivas não tragam estas expressões discriminadamente, toda a
narrativa desenvolve-se sob a possibilidade desesperada de Antonio Basso e sua
família retornarem à Itália.
3.4.6 Antonio, Luigi e Felice Taschetto
A carta dos irmãos Taschetto inicia com local e data, passando logo após
para o corpo da mesma, sem constar uma abertura, através de uma expressão
tratadística. É possível observar esses aspectos na missiva abaixo, redigida na
íntegra:
Santa Maria do Rio Grande do Sul, novembro de 1887
Nós outros estamos aqui, mas não estamos contentes porque são
montes e beiras e poucas planícies e também há muitos bichos do e
muitos outros perigos. Vamos trabalhar por conta dos colonos e recebemos
trinta moedas por dia e ir trabalhar para o governo rende 50 moedas, mas
nós outros não vamos porque existem muitos perigos, até de vida e esta é a
cocanha que se escrevia estar aqui na América. Querido irmão, a nossa
consciência nos diz para não te deixar vir aqui porque nós fomos
enganados e não queremos te enganar também, acredite estamos
escrevendo a pura verdade e não acredite que durante a viagem foi
mudado. Querido irmão, te informamos que esta carta foi escrita por nosso
sobrinho Giuseppe porque se a deixássemos escrever por eles iriam
escrever o que querem e nós outros queremos escrever a pura verdade.
Saúda o meu amigo Nespolo Agostino e pedi-lhe se pode obter a graça que
vamos lhe pedir, alias te imploramos de ir até nosso patrão B. e de entregar-
lhe esta carta que nós estamos com os olhos marejados e de joelhos
pedindo à sua bondade porque todas as nossas esperanças estão nele e o
imploramos que nos tire destes tormentos e que nos faça voltar para a Itália
que quando estaremos nos sujeitaremos a qualquer condição sua e que
pagaremos com a nossa vida as despesas decorrentes da viagem de volta.
Estimado patrão, colocamos todas as nossas esperanças na sua
bondade, esperando na sua misericórdia e que não seremos abandonados
pelo senhor e o saudamos de todo o coração e nos declaramos seus
desejados servos Taschetto Antonio, Luigi e Felice.
Então, querido irmão te saudamos e esperamos de receber algum
consolo da tua resposta, caso contrário seremos obrigados a ir nas nossas
colônias e no meio das matas desertas e deveremos morrer
barbaramente.
Antonio, Luigi e Felice Taschetto
A estrutura narrativa apresenta-se um pouco confusa uma vez que as idéias
não são organizadas no papel, sendo possível verificar esse procedimento através
da análise do texto. A carta inicia, explicando o contexto vivido por eles na localidade
e, somente na metade do parágrafo, ocorre a identificação do destinatário principal:
o irmão. Inclui um segundo destinatário, “estimado patrão”, no penúltimo parágrafo,
voltando a direcionar o discurso para o irmão, no último parágrafo. A narrativa é
mesclada por informações, falas direcionadas a dois destinatários, incluindo
saudações diversas.
3.4.7 Michele Altafini
A carta de Michele Altafini consta de uma narrativa longa e estruturada.
Inicia com local e data, em seguida inclui a expressão “Queridos e amados pais!”; a
seguir, temos, então, o discurso. Este é organizado e detalhado, começa com
algumas saudações, após informa sobre alguns assuntos. Primeiramente
contextualiza sua situação no trabalho e na colônia, após apresentar notícias suas e
da família e solicita, também, notícias de familiares e conhecidos na Itália. Realiza
um encerramento, utilizando saudações e despedidas: “Por agora não tenho mais
nada a acrescentar, somente saudar-vos com carinho junto a minha família, vos
pensamos dias e noites, e vos peço de responder logo que receber esta carta
porque viram a demora para chegar até a aqui. Então vos mando mil beijos”.
Não foi possível conseguir maiores informações sobre Michele Altafini, mas,
considerando o cargo que ocupava na colônia e a narrativa de sua carta,
provavelmente ele deveria ser um homem letrado.
CONCLUSÃO
A página da imigração italiana foi e é bastante marcante na História do Brasil
e, em especial, na do Rio Grande Sul. Estudá-la de uma maneira singular, ou seja, a
partir da visão do imigrante tornou-a não somente mais interessante - que
viabilizou o ingresso ao que havia de mais pessoal e íntimo deixado por tais
imigrantes através de suas cartas - como também revelou aspectos relevantes e
diversificados emergidos do contexto já descrito ao longo desta dissertação.
As cartas permitiram termos acesso a distintas realidades: imigrantes que
fizeram uma boa ou péssima viagem, os que foram tratados com justiça e os que
foram ludibriados e até mesmo os que prosperaram, aqueles que se arrependeram e
tinham como único objetivo retornar à Itália. Entretanto, nosso objeto de estudo,
embora vinculado e atento a estes diversos cenários em que os imigrantes se
achavam inseridos, transcendeu a análise de suas descrições. Este trabalho
reconstruiu, a partir de indícios presentes nas cartas, uma análise de como o
imigrante olhou para os acontecimentos ao seu redor, como vivenciou o cotidiano,
em que tais realidades a cima descritas se faziam presentes através das diferentes
etapas do processo migratório.
Nesse sentido, a sistematização e análise das correspondências foi um
processo bastante produtivo. Como se fôssemos convidados a fazer parte do mundo
do remetente, isso nos transformou em um destinatário, refletindo sobre os motivos
que o levaram a redigir determinada missiva. Os dados daí emergidos
proporcionaram a reconstrução de parte da história sobre a imigração italiana nas
colônias fundadas no Rio Grande do Sul, através de uma nova abordagem.
As condições em que a colonização se implantou nem sempre foram boas,
e as expectativas dos imigrantes nem sempre se cumpriram. Foi possível corroborar
estas afirmações, através das diversas cartas estudadas, que refletiram sob quais
circunstâncias ocorreram a imigração, nos diferentes núcleos coloniais do Rio
Grande do Sul.
O desejo inicial de tornar-se um proprietário de terras foi alcançado por
muitos dos que prosperaram, permitindo a vinda de seus familiares para o Brasil. Um
desses exemplos foi Paulo Rossato. Colono bem sucedido, partiu da Itália com o
objetivo maior de tornar-se proprietário e demonstrar progresso aos que ficaram,
principalmente aos parentes ou demais pessoas consideradas por ele como
“inimigos”.
Com relação ao “senza denari” (sem dinheiro) ficou uma incógnita, no que se
refere às suas condições econômicas, já que Rossato descreve o fato de ter vindo à
América “senza denari”. Este dado da realidade torna-se contraditório, já que a
colônia adquirida pelo mesmo não foi a oferecida pelo governo e sim pela iniciativa
particular. Embora houvesse condições de parcelamento, não se acredita que
apenas trabalho, vontade e astúcia fossem suficientes para encontrar uma
superação econômica como a demonstrada por ele.
As histórias de Felice Sartor e Michele Altafini são semelhantes. Estes, ainda
que não explicassem os propósitos que os trouxeram à América, é provável que os
tenham atingido, devido aos louvores tecidos ao Brasil em suas correspondências.
Sobre Felice Sartor, não há maiores informações sobre sua situação econômica.
Michele Altafini, inicialmente, obteve apoio do governo, precisando, mais
tarde, obter sustento com o próprio trabalho, que, segundo ele, recebia sem fazer
muito esforço. A carta retrata uma realidade “perfeita”, ou próxima do considerado
“ideal”, ou seja, o governo cumprindo com as promessas feitas aos imigrantes,
pouco trabalho por parte desses últimos, boa remuneração, o que nos deixa
desconfiados diante da situação narrada por outros imigrantes citados ao longo
desta dissertação.
Problemas difíceis, vivenciados por imigrantes, foram descritos nas cartas de
Antonio Basso e dos irmãos Taschetto. Nas missivas imploraram auxílio para
retornar à pátria, solicitando até mesmo para que a família escrevesse ao rei a fim
de conseguir a viagem de volta, como é o caso de Antonio Basso. Estes, faziam
parte do grupo dos imigrantes que tentaram a repatriação, ansiosos pelo retorno e
que pareciam almejar a chance de continuar a vida interrompida no país de origem.
Os párocos Dom Domenico Munari e Giovanni De Boni também apresentam
realidades diferenciadas. O início da carta do primeiro é marcado pelo registro de
lembranças da terra natal, seguido pelos motivos da sua não-adaptação às colônias
da região serrana do Rio Grande do Sul, transferindo-se para Porto Alegre.
Enquanto Giovanni De Boni descreveu com entusiasmo as festas religiosas italianas
praticadas também aqui no Brasil, Domenico Munari afirmou o fato de, nas colônias,
não haver preocupação alguma com o exercício da religiosidade.
É importante, ainda, considerar as diferenças no registro temporal e a
localidades de redação destas duas correspondências. Domenico Munari esteve na
região serrana nas colônias Conde D’Eu e Princesa Isabel em 1877, início da
fundação das mesmas. a carta de Giovanni De Boni é datado no ano de 1885,
redigida da Colônia Caxias, onde se achava estabelecido. Como se observa, são
missivas redigidas em momentos e contextos distintos, em que aspectos
relacionados ao progresso econômico das colônias apresentam-se em estágios de
evolução diferenciados.
A partir dos casos expressamente mencionados ao longo de toda a
dissertação e aqui referidos, conclui-se sobre a complexidade do processo
colonizador. Utilizando-se de pequenos indícios obtidos nas correspondências,
através da análise de conteúdo, foi possível reconstruir alguns aspectos sobre o
cotidiano desses imigrantes. A importância do diálogo com a família, a manutenção
dos laços afetivos e valores culturais, a preocupação com o trabalho e a superação
das dificuldades econômicas proporcionaram o vislumbre de um contexto complexo
e de diversidades diante das distintas realidades em que tais sujeitos estavam
inseridos.
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