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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FABIANA PINTO PIRES
A CONSTRUÇÃO DA LÓGICA DA CULPA: ASPECTOS
NORTEADORES NO DISCURSO JESUÍTICO
PORTO ALEGRE
2005
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2
FABIANA PINTO PIRES
A CONSTRUÇÃO DA LÓGICA DA CULPA: ASPECTOS NORTEADORES NO
DISCURSO JESUÍTICO
Dissertação apresentada como requisito
parcial e último para obtenção do grau de
Mestre em História, pelo Programa de Pós-
Graduação em História, da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Profª Drª Maria Cristina dos Santos
PORTO ALEGRE
2005
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3
Dedico este trabalho a duas pessoas
especiais: minha Mãe e ao Vinícius.
Minha Mãe, pela dignidade com que me
apresentou um mundo solitário e
prazeroso, o da pesquisa.
Ao Vinícius, pela cumplicidade e
dedicação neste momento, mas
especialmente, pela alegria em esperar
um amor que nunca chega.
4
AGRADECIMENTOS
À Profª Drª Maria Cristina dos Santos, pelos ensinamentos críticos,
oportunidades de aprendizado, orientação criteriosa e paciência maternal.
Agradecimentos especiais por acreditar que esta pesquisa poderia se concretizar.
Agradeço aos meus colegas de pesquisa, Jean, Bianca e Carla, pelas
contribuições, pelo carinho e pelo incentivo constante durante este estudo. Deram-
me sentido à expressão “grupo de pesquisa”.
As agências de fomentos Cnpq e CAPES que por meio dos seus programas
incentivam e sustentam a pesquisa nacional, sem os quais não seria possível a
concretização desta.
Ao Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa.
Em especial, a Carla Helena Pereira, pelos auxílios contínuos e pela generosidade
que sempre teve com os alunos.
Agradeço aos professores e colegas do Programa de s-Graduação em
História pelas contribuições durante minha estada.
Agradeço aos meus irmãos Adriane, Leandro e Lucas, pelos momentos
especiais. Ao Humberto, pelo grande estímulo a pesquisa.
5
À Monique, pela espera carinhosa e inabalável confiança. Uma
incondicional e promissora intelectual.
À Neuza Vaz, pelo incentivo aos novos pesquisadores e amizade fraternal.
À Aninha pelo conforto físico e emocional.
À Janete, ao Leonardo, à Maria Bernadeth, à Stela, à Cris, à Marília, à
Márcia, à tima, ao Cristiano e ao Luciano pela confiança, pela paciência e pelas
parcerias futuras.
6
“Nós dizemos não ao medo. Não ao medo de dizer, ao medo de fazer,
ao medo de ser. O colonialismo visível proíbe dizer, proíbe fazer, proíbe
ser. O colonialismo invisível, mais eficaz, nos convence de que não se
pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser.” (Eduardo Galeano. Nós
dizemos não. 1990)
7
RESUMO
A pesquisa busca analisar a concepção de castigo, nos limites da
compreensão cristã de pecado nas Reduções Jesuíticas, com base na
documentação reunida na Coleção De Angelis, a partir da compreensão da
construção do paradigma de culpa, ausente no imaginário indígena. Considerando
as visões sobre os indígenas, na região do Rio da Prata colonial, e os discursos
de combate à barbárie pela Santa Fé, elaborados pelos jesuítas, busca-se a
identificação dos aspectos utilizados para esta caracterização e das práticas
aplicadas mediante a reação indígena à esta conversão. Deste modo, torna-se
necessário compreender as transformações do discurso jesuítico sobre os
indígenas, no momento em que os dogmas cristãos não foram aceitos pelos
nativos. No decorrer do estudo da conjuntura da América Colonial, encontraram-se
casos de punições aplicadas aos indígenas gentios, no combate às práticas
pagãs. A pesquisa demonstra, ainda, as diferentes reações indígenas diante do
estabelecimento da normatização religiosa ao modo de ser guarani.
Palavras-chave: discurso jesuítico, pecado, culpa, castigo e educação
exemplar.
8
ABSTRACT
This search intends to analyze the concept of castigation, inside the limits of
Christian comprehension about sin in the Jesuitic Reductions, based on a
documentation accumulated in the “De Angelis” collection, from the comprehension
of the guilt paradigm construction, inexistent in the indian’s imaginer. Considering
the views about the indians in the Silver River’s colonial region and the combattive
speechs against the barbarity by Santa Fé, produced by jesuits, it intends to
identify the aspects used for this characterization and uttilised in the practical
measures in opposition to indian resistance to convertion. Thus it is necessary to
understand the transformation of the jesuitic speech about the indians, when his
dogmas were not accept by the natives. During the study of the Colonial America’s
circumstance, many cases of unfaithful indians punishment were found, in order to
combat pagan practices. The investigation shows different reactions by guarani
indians in front of the religions rules’prescription.
Keywords: jesuit speechs, sin, guilt, punishment, exemplary education.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................10
I.............................................................................................................................................17
OS DESAFIOS DA MISSÃO: AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS ENTRE 1610
E 1639 ..................................................................................................................................17
1.1 O
PROCESSO DE SEDUÇÃO A CONVERSÃO DOS PRIMEIROS APRENDIZES
.................18
1.2 A
CONSTRUÇÃO DA ROTINA RELIGIOSA E AS DIFICULDADES DE MANUTENÇÃO DA FÉ
CRISTÃ
...............................................................................................................................26
1.3 A
AMEAÇA CIVIL E INÍCIO DA SÚPLICA MISSIONÁRIA AO
R
EI DA
E
SPANHA
..................41
II...........................................................................................................................................51
AS VARIAÇÕES NO DISCURSO JESUÍTICO DE CULPABILIDADE....................51
2.1. U
M DISCURSO SOBRE SI
: .............................................................................................52
2.2 O
DISCURSO DE PECADO E CULPA
: ...............................................................................66
III .........................................................................................................................................80
DO OLHAR AO REGISTRO DAS PUNIÇÕES.............................................................80
(1610-1639) ..........................................................................................................................80
3.1 P
RÁTICAS INDÍGENAS PASSÍVEIS DE PUNIÇÃO JESUÍTICA
..............................................81
3.2 O
S SERMÕES
................................................................................................................95
3.3 O
S CASTIGOS
.............................................................................................................104
3.4 A
S REAÇÕES INDÍGENAS
:
DISSIMULAÇÃO
,
FUGA OU CONVERSÃO
? ............................113
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................126
F
ONTES
D
OCUMENTAIS
...................................................................................................126
O
BRAS CITADAS
..............................................................................................................128
F
ONTES DE CONSULTA
.....................................................................................................132
10
INTRODUÇÃO
A América Colonial descrita nos documentos, entre os anos de 1610 e
1639, apresenta-se como referência conjuntural para a construção de uma
imagem européia do indígena da Região do Rio da Prata. O vocabulário da época
contribuiu para a formação do discurso sobre “não civilidade” e pouco
entendimento dos indígenas, pelas categorias da sociedade colonial, sejam os
jesuítas, os bandeirantes e autoridades civis. Entretanto, as maneiras de combater
a prática de costumes nativos foram diferenciadas. Este estudo limita-se à análise
do discurso religioso jesuítico no que se refere às interpretações a cerca da cultura
guarani.
Quanto aos jesuítas, torna-se claro, nos documentos da época, a
transformação nos discursos dos religiosos sobre os indígenas, pois não sendo
aceitos os dogmas cristãos pelos nativos, em alguns casos, ocorreu aplicação de
punições para combater práticas consideradas pagãs. Seriam, segundo os
missionários e relatores do processo, exemplos do mal que as crenças pagãs
faziam com quem não desejaria salvar sua alma pelo cristianismo. Segundo os
religiosos, a presença do Demônio precisava ser eliminada, para não contaminar
11
os indígenas convertidos. A descoberta de uma outra cultura pelo velho mundo,
não significou a aceitação dos hábitos culturais relevantes para os próprios
indígenas. Em A heresia dos indíos, Ronaldo Vainfas afirma: “A descoberta das
terras e povos americanos colocou os europeus num grave dilema entre
reconhecer o outro e afirmar o ego(VAINFAS, 1999: 17).
O objeto desta pesquisa configura-se, deste modo, na busca de elementos
utilizados para a construção da culpabilidade no imaginário indígena, como uma
dimensão de construção de rotina religiosa aos nativos, na Missão jesuítica. Trata-
se de uma proposta de análise da concepção de castigo, nos limites da
compreensão cristã de pecado, baseada neste estudo conjuntural das Reduções
jesuíticas entre 1610 e 1639, a partir da qual se estabelecem restrições e punições
corretivas aos descrentes. Este estudo foi realizado com análise de documentos
da Coleção De Angelis que consiste em correspondências oficiais e internas
(petições, cartas ânuas, ofícios) de jesuítas missionários. Na historiografia da
América Indígena, existem referências à concepção de pecado através da análise
das idolatrias, no entanto, os estudos relativos a punições tendo como premissa a
perspectiva religiosa ainda são majoritariamente restritos ao Ocidente europeu
1
. A
abordagem na referida documentação buscou privilegiar a percepção de que os
“acontecimentos históricos tem assinatura cultural distintas”, conforme propõe
Marshall Sahlins (1990: 14). A análise da documentação evidencia as oscilações
do discurso de jesuítas em diferentes situações, o que possibilita a percepção das
1
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (século XIII-XVIII). Bauru:
EDUSC, 2003. v 1 e 2 .
12
diversas intencionalidades explícitas nestes relatos. Sobre este aspecto, o olhar e
o registro dos missionários se distinguem. O olhar intenciona a conversão e a
manutenção da pastoral pelos jesuítas. O registro expressa juízos de valor, ao
descrever os hábitos e costumes dos nativos com restrições às suas práticas.
A necessária identificação das diferentes intenções propostas pelos
discursos registrados na documentação, bem como, das tentativas de
superposição de costumes ocidentais europeus sobre práticas reconhecidas como
pagãs pelos religiosos - ou ressignificação de crenças nativas entre europeus e
indígenas - a partir da construção das noções de pecado e culpa apresentam-se
como aspectos fundamentais para o estudo. Trata-se, portanto, da compreensão
das cartas jesuíticas, propondo a articulação do olhar e do registro explícitos na
documentação religiosa com o conceito de castigo, a partir da situação de contato
étnico e do entendimento de cultura
2
.
Segundo Sahlins, “(...) toda a cultura foi programada para que houvesse a
valorização simbólica da força da prática material. Assim ela muda precisamente
porque, quando permite ao mundo incorporação plena às suas categorias, admite
a possibilidade de que estas categorias sejam funcionalmente reavaliadas” (1990:
50). Claro está, que a apropriação de elementos culturais em transformação
analisadas por outra cultura também em movimento não deve apenas apresentar
juízos de valor. Sendo assim, a metodologia empregada na pesquisa em questão
valeu-se do levantamento quantitativo dos dados da documentação. O estudo
2
Lembra-se que “a cultura não é algo dado, posto, algo dilapidável também, mas algo constantemente
reinventado, recomposto, investido de novos significados (...)” CUNHA, Manuela Carneiro. Antropologia do
Brasil: Mito, História, Etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 101.
13
propõe-se, ainda, a analisar qualitativamente os casos de castigos, bem como, a
análise do discurso jesuítico como justificador da punição.
Por outro lado, Certeau (2001: 241), fornece um contraponto para a análise
quando demonstra que: Acredita-se naquilo que se supõe real, mas este ‘realé
atribuído ao discurso por uma crença que lhe dá um corpo sobre o qual recai o
peso da lei”. O extenso conhecimento que os religiosos adquiriram sobre a cultura
nativa para que iniciasse a conversão através, por exemplo, da ressignificação de
elementos simbólicos dos nativos clarifica as estratégias de edificação traçadas na
América colonial.
Conforme referido, a compreensão da cultura indígena, o conhecimento
das especificidades do contato entre europeus e indígenas, ressaltam as
influências exercidas na conversão indígena, possibilitando a articulação de
elementos no processo de construção de culpabilidade como alternativa indicativa
de fragilidade. Por tais razões, o método utilizado na pesquisa procede pela
análise do discurso
3
, por estarem as punições presentes no discurso. A análise
fundamenta-se no estudo etnográfico de signos e símbolos que caracterizam uma
linguagem com pretensões educativas.
Para um melhor entendimento, os objetivos almejados serão desenvolvidos
em três momentos. No primeiro capítulo, Os desafios da missão, será analisado o
contexto em que foi estabelecido contato entre culturas desconhecidas entre si, a
3
Conforme Clifford Geertz, o discurso: “tiene que ver con el desarrollo de um modo concreto de formular las
cosas - un vocabulario, una retórica, un patrón argumental – que aparece conectado con tal identidad de modo
que parece provenir de ella como manifestación de un intelecto”. GEERTZ, Clifford. El antropologo como
autor. Barcelona Pados Studio, 1989. p. 18
14
partir da configuração de funções específicas de edificação e obediência. A
constituição de normas pelos missionários aos nativos ocorria através da
construção de uma rotina de conversão. Nesse processo, evidenciam-se
tentativas de transformações de hábitos e de inserção da culpabilidade no
imaginário indígena, pois os valores tradicionais dos indígenas apresentavam um
caráter demoníaco para os missionários. Segundo Dulviols (1977: 35), “el demonio
es el enemigo personal de cada evangelizador, de cada extirpador, que le
persiguen y combaten en el lugar en que le encuentran, ya en los ídolos, que se
deben destruir, ya en el alma de los indios, de donde hay que expulsarlo”. Em
contraposição, o estudo demonstra a exaltação dos feitos realizados pela empresa
e a vitimização do indígena diante de ameaças externas de desestruturação da
missão.
Em As variações no discurso jesuítico de culpabilidade, serão identificados
e analisados os diferentes modelos de discursos religiosos, considerando a forma
de apresentação do pecado, o juízo de valor da culpa e a descrição de casos de
edificação a partir das punições. Para tanto, esta análise desdobra-se em dois
aspectos complementares: o discurso sobre si, o discurso de pecado e de culpa.
Conforme Jean Delumeau, os homens de Deus “não podiam esquecer o mais
escondido e o mais perigoso dentre todos [os agentes do Satã]: cada um de nós
na medida em que se descuida da indispensável vigilância que deve exercer sobre
si mesmo” (2003: 12. v. 1) . Assim, a coerência para os religiosos estaria na noção
de “horror” do pecado. Para os jesuítas, essa “consciência moral” estabeleceria os
elementos necessários para a internalização da culpa entre os nativos.
15
Por último, serão apresentados os casos na documentação da Coleção De
Angelis, que evidenciam punições públicas e sermões jesuíticos, bem como,
analisadas as reações indígenas diante desse estabelecimento de normas
especificamente religiosas, no capítulo Do olhar ao registro das punições. Desta
forma, os missionários tornavam evidente para as autoridades civis a necessidade
da empresa na América, pois, a partir da noção de civilidade que acreditavam
estabelecer entre os indígenas a Coroa poderia, segundo os religiosos, expandir
territórios e aumentar o número de súditos de forma menos violenta que a dos
colonizadores. Conforme Bernand (1992: 155), “(...) las campanas de extirpación
tenían por objeto, mas que castigar a los índios, impresionarlos y seducirlos”. Os
castigos aplicados tinham caráter educativo, pois, segundo os cronistas do
período, as punições exemplares possibilitavam o arrependimento preventivo dos
demais nativos. O ponto de vista religioso projetava comportamentos cristãos aos
nativos. A apreensão dos acontecimentos fazia-se a partir de perspectivas
diferentes de realidades (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 349).
Os desafios apresentados por este estudo compreendem, ainda, a
identificação da construção contínua dos juízos de valor entre ambas culturas e a
percepção das diferentes propostas de cada documento analisado, reconhecendo
a temporalidade a que pertence. Evita-se, assim, a simples tradução de uma das
culturas em estudo. o é pretensão desta pesquisa a busca e/ou cobrança de
atuais critérios científicos para os registros dos missionários, uma vez que relatam
os acontecimentos conforme o contexto em que estão inseridos, mas,
16
compreender os condicionantes desta conjuntura que definem as categorias
usadas nos referidos discursos.
17
I
OS DESAFIOS DA MISSÃO: AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS
ENTRE 1610 E 1639
“É no espaço das experiências que emerge o sentido”
Astor Diehl
Para caracterizar os desafios da Missão, neste estudo, serão identificados
três momentos do contato interétnico: os primeiros contatos, a tentativa de
estabelecer uma rotina religiosa e o convencimento das autoridades da
necessidade da empresa diante de ameaças externas. Os perigos enfrentados
pelos missionários não são negados, contudo, a intenção deste capítulo é
apresentar o contexto em que os missionários divulgam a imagem construída a
respeito da cultura local.
18
1.1 O processo de sedução a conversão dos primeiros aprendizes
Os relatos dos religiosos da Companhia de Jesus em missão na região do
Rio da Prata possibilitam aos historiadores a compreensão da conjuntura da
época. Para esta análise, alguns questionamentos quanto à documentação
revelam a necessidade de compreender estas narrativas nos momentos em que
apresentam uma determinada normatização, como processo de modificação de
costumes dos nativos, na experiência das reduções educativas e,
conseqüentemente, na proposta pedagógica inserida nestas. A partir das
diferentes tentativas de inserção de novos hábitos através da construção de uma
rotina religiosa dentro da missão, percebe-se no discurso dos jesuítas as maneiras
com que transitam nos limites entre a cultura ocidental e a cultura indígena.
É interessante perceber que uma mesma Carta Ânua oferece momentos
distintos. Enquanto observadores, os religiosos descrevem a cultura nativa como
carente de auxílio para encontrar a nova . As palavras do Padre Romero
revelam, por exemplo, este olhar sobre o outro:
(...)[la] esclavitud del Demonio, en que antes miserablemente perecian
sin tener hombre que les valiesen hasta que vinieron los de la Comde
Jesus que son y an sido siempre sus verdaderos P
es
y libertadores assi
en el alma como en el cuerpo, y faltando ellos les faltara sin duda todo su
bien temporal y eterno. (ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 33)
4
O olhar religioso justifica a oportuna presença jesuítica para a conversão
ou salvação, como aparece nos documentos dos nativos da América Colonial.
4
Nas citações documentais, será mantida a grafia original.
19
Para tanto, a aproximação entre ambas as culturas para determinada conversão
explica as formas de registro desta documentação.
Neste segundo momento, os costumes locais são descritos pelos
missionários. O mesmo padre revela, por exemplo, sua piedade e um certo
desconforto em relação à alimentação dos indígenas. Segundo ele, os indígenas
para su sustento a duras penas alcançan quatro espigas de maiz y quatro raices
secas con que pasan su vida miserablemente” (ROMERO [1634] In CORTESÃO,
1969: 33-34). O missionário qualifica como “miserável” a evidência observada de
quando os indígenas não trabalhavam para a manutenção de uma alimentação
farta e contínua.
As diferenças no modo de ser possibilitavam desculpar a intervenção cristã,
o mal-estar dos missionários diante de práticas indígenas justificam a recusa do
convívio com tais costumes identificando os como prova da barbárie local. Para a
empresa, a cultura local deveria restringir-se às regras de convivência da doutrina
religiosa.
A exposição desta proposta estabelece, contudo, alguns estágios neste
contato interétnico, narrados nas Cartas Ânuas. Primeiro, se obtém informações
sobre os indígenas e se conhecem seus costumes, depois, registram suas
impressões sobre tais práticas revelando a importância de modificações na
estrutura cultural deste modo de vida. Assim, utilizam-se do conhecimento
adquirido sobre a cultura local para estabelecer contatos pacíficos com os nativos,
algumas vezes apropriando-se de signos destes povos
5
.
5
Uma questão teórica importante para este estudo, que será desenvolvida no item 1.2 deste capítulo.
20
Conforme Meliá (1988: 95), “la complejidad de factores que determinaban el
comportamiento indígena frente a las nuevas formas de vida introducidas por los
padres” indicam a diversidade entre temas inseridos numa mesma Carta Ânua.
Além disso, é importante lembrar que tais comportamentos eram observados para
serem reduzidos pelos jesuítas. Entretanto, nesta documentação relatos da
tradição guarani como “costumbre inveterada, habito antiguo o condición recibida”
e que portanto, segundo os jesuítas, precisa ser abandonada sob o risco de ser
considerada pecaminosa, irracional e não humana. Tais costumes são, conforme
a análise de Meliá, para os religiosos, impróprios para um cristão, pois:
Son precisamente aquellos comportamientos que más desafían la
racionalidad supuestamente universal del misionero, los que revelan los
aspectos más tradicionales de la cultura guaraní (...) Para el misionero
casi parece establecerse una oposición sistemática entre tradición
guaraní y racionalidad. (MELIÁ, 1988: 109)
6
Essa oposição condiciona o olhar e o registro dos jesuítas sobre ambas
culturas, elegendo a ocidental como referência de civilidade não por considerar
a cultura nativa como selvagem, mas, complementa-se pela necessidade de
estabelecer e ratificar a presença da empresa para a Coroa espanhola. Desta
forma, comprovaria o sucesso da missão através do discurso de salvação do
outro, reafirmando a identificação do jesuíta como tutor dos novos costumes
guarani.
Nas primeiras aproximações entre os religiosos e os indígenas havia a
necessidade de dosar as intenções de modificações nos hábitos para que os
6
Grifo da autora.
21
contatos estabelecidos com os nativos fossem eficazes para a empresa. Neste
momento, a documentação aborda temas como os medos, as ameaças externas,
tentativas de redução frustradas, a persistência dos religiosos para estabelecer
contatos, bem como, o poder jesuítico de persuasão dos leitores das cartas,
geralmente autoridades civis e religiosas, almejavam o reconhecimento da missão.
Segundo Padre Pedro Romero, “(...) conviertiendolos [os indígenas] de piedras
que antes eran en su infidelidad, en verdaderos hijos de Abraham por medio del
S
to
bautismo con el qual y con la palavra de Dios, que continuamente se les
predica se vienen a hazer aptos y capaces de los Santos Sacramentos y por ellos
de la bienaventuranza” (ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 33-34). Desse
modo, a civilidade instituída entre os indígenas os transformaria em fiéis e ditos
da Coroa.
O padre Antonio Ruiz de Montoya relata, todavia, alguns problemas
enfrentados pela empresa neste período. No caso da Província de Taiaoba, narra
que “entre los Indios [hay] quien se nos oponga y quien con su mal exemplo nos
quiera estorvar y empedir el bien que se haçe y no es pequeña providencia de
Nuestro Señor para q con esto se conosca y arraigue la virtud en los buenos”
(MONTOYA [1628] In CORTESÃO, 1951: 264).
O religioso descreve, ainda, como alguns indígenas desprezavam a
conversão: “Deram eles sinais de boa recepção, sendo no entanto fingidos,
porque, em atenção ‘de avisos dados a propósito de minha vinda, toda aquela
noite descia gente das serras e era com a intenção de me devorarem a mim e aos
que se achavam em minha companhia (...) Tinham gana de experimentar a carne
de um sacerdote” (MONTOYA, [1639] 1997: 124).
22
Segundo o missionário, essa falsidade ocorreu por não aceitarem o bem
que a igreja Católica trazia, já que a Missão, para os religiosos, visava o bem estar
dos indígenas. Para província de Taiaoba permitir a fundação de uma redução
foram necessárias três entradas e a conversão do cacique Taiaoba. O padre
Pedro Mola descreve, também, suas percepções a respeito da reação de alguns
indígenas, na Redução de Jesus Maria:
Abian estado al principio muy engañados y no se acababan de reducir
porque les ponia miedo un grande Echicero, diciendoles que no se
reduxesen, que se acabarian y que el era pariente de las camaras, que
solo abia de vivir y los que se e juntasen. fue el Señor serbido que
biniesse al pueblo y muriesse de camaras (...) y con esto echasen de ber
los indios como los abia engañado haciendo burla de el y
desanparandole de modo que si el Pe no le acudiera con la comida
muriera de hanbre, abiendo sido antes respetado de modo que le
llebaban em honbros quando iba a alguna parte (...) (MOLA [1635] In
CORTESÃO, 1969: 117)
O discurso desse religioso pressupõe explicitar o amor dos indígenas pelos
novos tutores, que seria originado pela disciplina com que são educados pelos
missionários. A intenção de mostrar a eficiência jesuítica permeia a maior parte
das correspondências, a ponto de explicar o comportamento que um outro povo
teve sobre a cultura ocidental cristã. Para o jesuíta, os sacrifícios e medos
enfrentados pelos indígenas tinham entre outras causas, os feiticeiros,
identificados como opositores e ameaçadores da missão da Companhia de Jesus.
Os relacionamentos não amistosos entre religiosos e indígenas
pressupunham, no discurso jesuítico, a presença de crenças pagãs e o pouco
conhecimento que uma cultura atribuía a outra.
23
Os comportamentos nativos são representados como meio de expressão
demoníaco que necessita da tutela cristã para o exame de consciência do
indígena proposto pela nova.
A negação destas práticas evidencia, para os missionários, a necessidade
de mudança de comportamento pelos nativos. Deste modo, os jesuítas
enfatizavam a necessidade de um ambiente disciplinador em que as crenças
cristãs seriam ensinadas. O reloj da conversão impedia que os indígenas
possuíssem tempo para as práticas pagãs. Conforme Boroa: “(...) acudiendo
muchos hombres y mugeres cada dia a nra iglessia adonde se juntavan despues
de mediodia para este proposito y ya q avian entendido lo neçessario se yvan
dispuniendo para recibir el SS° Sacramen.
to
(...)(BOROA [1614] In: CORTESÃO,
1952: 22).
Tais alterações necessitariam cautela dos missionários, pois o objetivo dos
jesuítas era claramente a conquista de novos fiéis. Conforme o missionário Diego
de Boroa, “el objeto es el mesmo; el fin conservar y dilatar la S
ta
fee, y los trabajos
q se padeçen muchos y la falta de cossas necessarias en partes tan remotas muy
grande” (BOROA [1614] In CORTESÃO, 1952: 12). A proposta se justifica,
entretanto, por uma ocupação territorial não violenta através da conversão de
novos súditos para a Coroa Espanhola. Era necessária habilidade política para
ajustar interesses.
A conquista da fidelidade dos nativos era fundamental para a consolidação
desses objetivos. Para isso, os religiosos faziam uso de algumas estratégias de
aproximação, considerando que não obtinham o mesmo alcance geográfico local
24
que os indígenas. O padre Montoya descreve o seguinte fato: “A clave e atalaia de
toda a província estava num povoado distante uma jornada daquele em que me
detinha. Enviei a seus moradores alguns presentinhos, que consistiam em anzóis,
facas, contas de vidro e outras coisinhas, sem valor aqui, mas lá de grande
estima” (MONTOYA [1639] In 1997, 123). O religioso relata, ainda, que dessa
forma foi possível atrair pessoas para que comunicasse suas pretensões naquela
terra.
Já quando descrevem a efetivação da conversão, os documentos revelam a
comoção dos padres diante da descoberta do nativo do que seria seu verdadeiro
Deus. Pode-se perceber tal intenção na passagem da Carta Ânua do padre
Nicolau Dúran, sobre a Redução de Nossa Senhora de Loreto e São Inácio:
Es cosa maravillosa el fervor con que concurran a ella [Igreja] y piden ser
examinados para alcançar la probacion que se les da escrito, la qual
llevan al confesor y el pone en ella la señal de que esta confesado el dia
de las comuniones, que son generales de tres a tres meses, y passan de
ordinario de mil y quinientas aviendose antes exercitado demas de lo
dicho en otros actos de devoción (DÚRAN [1628] In CORTESÃO, 1951:
221).
Conforme os relatos, a nova crença protegeria os nativos de qualquer
malefício, ao contrário do que ocorria anteriormente, momento descrito como
ápice da barbárie local pelos religiosos. A afirmação de que as conversões são
aceitas se pelos discursos que os documentos atribuem aos indígenas.
Segundo o padre Pedro Mola, eles:
25
(...)descubre bien el auxilio que nuestros hijos tubieron de Sr y ellos lo
han conosido pues siempre en su gentilidad quando pelearon murian de
entrabas partes y agora no recibieron daño, dispusieronse para ir con la
confession entendiendo que dios Sr les habia de aiudar si se ponian
en su amistad y gracia. (MOLA [1635] In CORTESÃO, 1969: 119)
As cartas atribuem aos indígenas o exercício da crença cristã. A partir
disso, descrevem números extraordinários de edificações revelando os problemas
de sobrevivência para os nativos fora do ambiente formado pela empresa. A
narrativa sobre a missão de Todos os Santos de Guarambaré do Padre Diego de
Boroa assinala estas preocupações: “cada dia experimentamos el inconveniente
grande q tiene baptiçar estos yndios y dejarlos a sus aventuras o desventuras en
las mesmas costumbres de su infidelidad y casandolos despues a buen ojo”
(BOROA [1614] In CORTESÃO: 1952: 15)
Num discurso de edificação os padres da Companhia de Jesus apresentam
a dicotomia existente na prática da conversão, em que negam a tradição guarani
descrevendo esta como coisas do demônio e oferecem como solução para a
salvação das almas a vida em Redução.
Na concepção do Padre Nicolau ran, a importância do trabalho para a
redução apresenta-se como uma recompensa material dos esforços espirituais:
“Aqui los estremos que hazen, y necessidades que representan al P. que tienen
en el cuerpo y en el alma para que se les conceda, como ellos le llaman, el quita
los pecados, el que truequa los coraçones el que da entendimiento, el que se de
consuelo del alma, que con estos y otros titulos nombran a este divino manjar”
(DÚRAN In CORTESÃO, 1951:222).
26
A análise das tentativas de inserção de costumes europeus a partir de uma
normatização do cotidiano dos Guarani é a proposta do segundo momento deste
capítulo. Segundo os missionários, o aceite de novos significados pelos indígenas
representa a descoberta da civilidade, pois, conforme Carlos Fausto:
Um novo mundo de objetos e relações foi introduzido: objetos de
insuspeitável eficácia, como os machados de metal, ou de vasto valor
simbólico, como as contas de porcelanas; relações tão colonialmente
ordinárias quanto desconhecidas pelos índios, como aquelas entre
senhor e escravo, padre e fiel, ou administrador e administrado”.
(FAUSTO, 1999: 252)
Observa-se, assim, que os desafios da empresa jesuítica no processo de
conversão dos primeiros aprendizes foram maiores que os perigos naturais da
América Colonial, essencialmente porque conduziam transformações culturais
entre os Guarani. O sucesso das missões pressupunha modificações no “modo
de ser” Guarani. A documentação referente à instalação da missão relata as
dificuldades no processo de convencimento, desses indígenas, da necessidade de
aceitar a vida em Redução.
1.2 A construção da rotina religiosa e as dificuldades de manutenção da
cristã
Os limites da redução possibilitariam aos religiosos observar a veracidade
das mudanças de comportamento dos nativos, necessária para o sucesso da
empresa. De todas formas, as modificações almejavam alterar a compreensão do
indígena, pois, a Companhia não tinha como estar presente fisicamente em todos
27
os espaços da América Colonial. Além disso, a divulgação de bons resultados com
os nativos seria a comprovação da não incorporação dos indígenas reduzidos ao
sistema de trabalho compulsório do restante da América.
Os missionários modificavam suas categorias nos discursos em função de
objetos e necessidades que pretendiam suprir. Para tanto, era preciso convencer
as autoridades civis de que eles eram verdadeiros. Desta forma, sustentam em
seus discursos o quanto se faz para modificar os costumes pagãos e civilizar a
gentilidade indígena. que a empresa jesuítica acreditava enfrentar não mais a
“barbárie inicial, mas, a infidelidade dos gentios. Segundo a documentação, os
indígenas, que antes poderiam negar os costumes cristãos por desconhecimento,
agora o fazem por pouca inteligência.
Num relato de 1627, o padre Cláudio Ruyer revela a tentativa de aplicação
de uma rotina espiritual para humanos de corto conocimento, terminologia comum
nas correspondências para se referirem aos indígenas. O religioso afirma que os
nativos “son de poca capacidad y ansi es necessº trabajar mucho hazerles
capazes de las cosas de nra sta fe particularmte a los viejos y viejas q no hazen
casi ningun concepto de q ay otra vida ni distincion de Parayso a Infierno q es
lastima” (RUYER [1627] In VIANNA, 1970: 73-74). Como se vê, parte significativa
da pouca capacidade é associada aos velhos, e por conseqüência aos costumes
antigos. Os indígenas idosos eram, para os jesuítas, um entrave na catequização,
dificilmente abandonariam sua cultura em nome de dogmas católicos
desconhecidos, pois estavam convencidos de sua pouca importância.
Os viejos, como denominação da época, eram responsáveis pela
manutenção das tradições guarani, pois cabia a eles o ensino destes costumes às
28
novas gerações. Eram lideranças religiosas e políticas dentro da comunidade
guarani, por isso representavam tamanha ameaça a missão. As crianças eram, ao
contrário dos mais velhos, a grande esperança de sucesso da missão por serem
facilmente persuadidas.
A receptividade indígena a esses novos costumes internalizava um meio de
reação que surpreendia os próprios missionários. A inconstância da alma
indígena, descrita por Pe. Antônio Vieira e, analisada em O mármore e a murta por
Viveiros de Castro (1992: 21-74), mostra os ameríndios como incrédulos. A
relação da alma destes com a murta - planta maleável - se pelo fato dos
indígenas do Brasil serem considerados, pelos missionários, como ágeis no
entendimento, mas fracos na memória e na vontade. Os jesuítas acreditavam que,
neste caso, os Tupinambá eram indiferentes aos dogmas porque ouviam os
sermões com grande docilidade, sem duvidar e ao término da conversão estavam
como antes, com a brutalidade natural.
Criou-se, assim, uma forma para conviver com uma superioridade cristã. O
indígena passa, provavelmente, a utilizar a indiferença e o silêncio como
alternativa de sobrevivência. Conforme afirma Ferreira Neto: “(...) os cristãos viam
os outros, os bárbaros, os que estavam fora dos limites do mundo cristão, como
alienados da virtude - ou seja, da humanidade” (FERREIRA NETO In FLAMARION
CARDOSO et a 1997: 314).
As reações indígenas de negação da fé eram, também, apresentadas como
obstáculos para a consolidação da empresa. O olhar e o registro dos integrantes
da Companhia interpretam alguns comportamentos como traição dos indígenas. A
fuga ou o isolamento “aparecem como resultado da impossibilidade de alcançar os
29
propósitos de um movimento [rebelde], ou como recusa de um iminente
enfrentamento desproporcional entre forças indígenas e forças coloniais”
(SANTOS, 1998: 323).
A partir de tentativas de transformações dos símbolos existentes na cultura
indígena, os jesuítas foram construindo representações de sua doutrina
estabelecendo assim um caminho compreensivo para os indígenas com novos
significados. As representações são entendidas, aqui, segundo Chartier:
(...) são estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras
graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se
inteligível e o espaço decifrado (...) As representações do mundo social
assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico
fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo
que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos
discursos proferidos com a posição de que os utiliza. (CHARTIER, 1990:
17)
Segundo os missionários o estabelecimento da rotina possibilitava um
melhor controle da prática religiosa nas reduções: “en cada pueblo hay uno o dos
relojes de ruedas, unos hechos por los indios, otros comprados en Buenos Aires,
por los cuales nos gobernamos en la distribuición religiosa” (CARDIEL apud
MELIÁ, 1988: 210). A educação religiosa implantava-se a partir da inserção
consciente de signos cristãos através de apropriações de elementos indígenas.
Deste modo, os missionários elegiam prioridades de lições aos novos fiéis.
Constituía-se uma rotina cristã aos indígenas convertidos. Conforme relato de
Boroa:
En lo espiritual se ha procurado com la graçia divina q uviesse
conformidad con las demas cassas y collejios de la compª teniendo la
oraçion por relox de arena y siguiendo en lo demas la distribuiçion a
campaña tañida teniendo anssi mesmo conferençias espirituales los
30
viernes de quando en quando. (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952:
13)
Segundo o missionário, “estava esta jente antes q entrasse aqui la compª
muy inculta en todo por falta de dotrina y enseñança q lo mas del tiempo les ha
faltado, y anssi los P.
es
entablaron algunas cossas al prinçipio como q fuera
reduction de ynfieles. antes q amaniezca reçan todos en suas cassas y en
saliendo el sol se juntan todos a reçar la dotrina en la yglessia” (BOROA [1614] In
CORTESÃO, 1952: 15).
Na compreensão destas tentativas religiosas de normatização do modo de
ser indígena, faz-se relevante lembrar que “na medida em que o imaginário se
reduz finalmente à faculdade originária de pôr ou de dar-se, sob a forma de
representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na
percepção ou que nunca foram), falaremos de um imaginário último ou radical,
como raiz comum do imaginário efetivo e do mbolo”. (CASTORIADIS, 1991:
154).
As representações do proibido, do maligno e do permitido, do divino eram
implantadas a partir destas resignificações. Há, por exemplo, um relato do Padre
Montoya sobre uma emboscada para o missionário em que um indígena
convertido o salva ao vestir as roupas do sacerdote: E sem que me dissesse o
que fosse, tirou-me por detrás o meu sobretudo com a presteza que lance tão
perigoso exigia, bem como meu ‘sombrero’ (chapéu), e dizendo a outro índio que
‘metesse o padre na mata’, enfiou minha ‘sobre-roupa’ e meu chapéu, para logo
sair disparando sozinho por um campo á vista dos inimigo” (MONTOYA, [1628] In
31
[1639] 1997: 125). A exaltação do feito de um nativo convertido é apresentada em
oposição ao comportamento tradicional dos indígenas. Conforme Gruzinski (2003:
272-273), a igreja e os índios não associavam as mesmas fronteiras do real. A
doutrina cristã restringia seu território, excluindo estados aos quais as culturas
indígenas concediam um significado decisivo.
A carta ânua escrita pelo padre Ruyer, em 1627, trata-se exatamente da
“inconstância da alma do indígena”, que não possuiria consciência do bem que
seria a missão religiosa. Os indígenas, segundo esse missionário, eram pouco
inteligentes para saber os benefícios que jesuítas lhes trariam e os sacrifícios que
passavam para realizarem essas conversões.
Ellos son ordinariamte poco agradecidos y ansi qualquier agradecimto q
ellos muestren es de mucha estima, tiene en el caudal muy corto
reconocer el benefº tan grande tiene en los Pes q les estan enseñando,
Christianando y curando en sus enfermedades y sirviendo como esclavos
de dia y de noche, pues muy difficilmte se mueven hazer algo q los
Pes les mandan, aunq sea en su p.pria yglª sino es algª manera de
paga, y muchos desgustos y ansi qualquier cosilla q se haze aunq sea
por benefº publico cuesta sangre etcª (RUYER [1627] In VIANNA, 1970:
73-74)
Mais uma vez pode-se perceber a dicotomia no registro entre as culturas
Guarani e a ocidental. Entretanto, cabe aqui ressaltar que o esquema reducional
possibilitou que a cultura ocidental fosse implantada a partir de imagens da cultura
Guarani. A compreensão da noção de pecado e de indignidade pode, por
exemplo, ser observada num trecho da correspondência do padre Nicolau Dúran,
já referida:
32
(...) preparandose con confesiones generales que para llegar con mas
pureza hazen con tanta luz de la gravedad del pecado que acontece
acusarse con mucho sentimiento de los cometidos en su infidelidad,
aunque saben que se les perdonaran en el Santo bautismo, y de no
averse echo antes dignos de ser admitidos al sobrado combite, y otros se
acusan de cosas tan leves, que parecen sus conciencias de religiosos
muy espirituales. (DÚRAN [1628] In CORTESÃO, 1951: 221)
A conversão religiosa implantava-se também através da apropriação destes
elementos, utilizada no processo educativo das reduções originava novas imagens
do real. Através das primeiras noções de civilidade o europeu introduzia dogmas
cristãos, como o culto a santos católicos, o batismo e a importância de freqüentar
missas. Os indígenas compunham o coral da igreja e, a partir das músicas, iam
sendo alfabetizados. A pedagogia jesuítica do imaginário opera, assim nos mais
diversos registros. Ela ultrapassa os limites da palavra e da imagem pintada, para
instalar no afetivo, no subjetivo, a experiência indígena do além cristão
(GRUZINSKI, 2003: 288). Desta forma, quando uma rotina religiosa organizava a
vida dos indígenas nas reduções, estabelecia-se uma determinada normatização
dos costumes aceitos e dos a serem apreendidos. A empresa, ainda segundo
Gruzinski:
Explora as emoções, como o medo e a angústia, integra-as à
problemática do pecado e da danação, dissipa-as por meio de técnicas
rituais, como a confissão e a penitência, conduzindo à plena assimilação
da temática cristã da salvação e da redenção. (GRUZINSKI, 2003: 288)
Uma das primeiras ações dos missionários foi à introdução do uso de
vestimentas nos indígenas, andar vestido fazia bem a saúde, além disso, a nudez
era pecaminosa. A vestimenta indígena, assim como tudo que difere do padrão
33
ocidental, era vista por estes padres como sinal de pobreza. Estes “pobres indios”,
diziam os missionários, “eram muito pobres, não tinham o que vestir e não se
queixavam”. Os salvadores de alma não entendiam o silêncio dos nativos.
Gentilmente, negavam a cultura dos indígenas, estes seriam aceitos quando se
transformassem em cristãos. Sobre a desnudez lembra-se, aqui, uma passagem
do relato de Pe. Montoya em Conquista Espiritual: “[Sobre os Guaicurus] os
homens andam desnudos, mas as mulheres não, visto que elas se apresentam
honestas em seu vestir" (MONTOYA, [1628] In [1639] 1997, 46). padre Pedro
Romero relata, son estos Yndios pobres en estremo, pues no tienen para su
vestido sino quatro plumas de passaros, con que cubren y tapan su empacho
natural, y el mas rico y poderoso no tiene mas que un pellejo de venado por
vestido” (ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 33b).
Esses comportamentos eram vistos como desafios e perigos que os
missionários enfrentavam em nome da Coroa. Conforme Serge Gruzinski:
Os mal-entendidos se multiplicaram. Sobre a crença, que os índios, de
maneira geral, interpretaram como um ato, no máximo uma transferência
de fidelidade a uma força nova, suplementar. Sobre a ‘a realidade’do
outro, também.Cada qual não tardou em projetar sobre o adversário
seus próprios esquemas. (GRUZINSKI, 2003: 272)
O relato do fervor indígena as crenças cristãs tinha como objetivo o
convencimento da mediação do missionário entre os nativos e a nova crença.
Desta forma, o padre seria o condutor do processo de salvação da alma, bem
como, o portador e divulgador do entendimento. A descrição do Padre Montoya
sobre o comportamento dos indígenas durante seus sermões revela, por exemplo,
34
comportamentos cristãos nos nativos: “estavam todos de joelhos, tendo as mãos
postas e fixos olhos no chão” (MONTOYA [1639]1997: 121) Conforme Eliane
Fleck, no contexto dos séculos XVI e XVII, “há que considerar que a interiorização
de novas sensibilidades (padrões de nojo e de vergonha, sentimentos de culpa,
humanidade, compaixão e caridade) será acompanhada pela interiorização de
uma ‘moral da ordem e do controle’ que refletirá as preocupações comuns ao
Estado e à Igreja” (FLECK, 1999: 5).
Num outro episódio o mesmo missionário registra, como se deu a morte de
uma menina de dois anos que não queria presenciar os atos pagãos da mãe:
Oculta e torpemente vivia certa mulher, sendo disso apenas testemunha
uma filhinha sua de dois anos, cuja pouca idade lhe tirava qualquer
receio de sua culpa haver de publicar-s
e.
Mas a menininha mostrou-se ofendida por pecado tão grande, chegou a
repreender respeitosamente sua mãe lasciva e lhe disse:
‘Eu quero morrer, para não ter de presenciar as tuas desonestidades.
Emendas-te, pois hei de solicitar no céu teu perdão!(MONTOYA, [1639]
1997: 232)
O padre atribuiu tamanha racionalidade a uma menina de dois anos de
forma que esta modificou o comportamento da mãe que “depois de ter buscado o
remédio na Confissão e Comunhão, passou a viver com vida exemplar”
(MONTOYA, [1639] 1997: 232).
Quanto à mediação realizada entre os missionários, é relevante lembrar a
análise sobre o perfil do jesuíta apresentada por Carla Berto, em seu estudo sobre
milagres marianos no discurso jesuítico. Segundo Berto, o jesuíta “se constitui em
filtro e mediador entre as intervenções divinas e o relato dos acontecimentos
milagrosos entre os indígenas” (2003: 21). Sendo assim, a documentação
35
composta por relatos de religiosos da Companhia de Jesus caracteriza-se como “a
construção do indígena pelo jesuíta, a partir da ampla bagagem da cultura
ocidental deste último” (BERTO, 2003: 30). Neste processo de construção do
outro a partir dos elementos da cultura ocidental Berto revela que “(...) o jesuíta
viria construindo sua missão e fortalecendo sua identidade, possivelmente por
intermédio da construção do seu guarani” (2003: 31).
Mais uma vez Berto auxilia neste estudo ao identificar o percurso que o filtro
do modelo jesuíta apresentava ao relatar o milagre:
(...) num primeiro momento, enfatizar o grau de
gentilidade/barbarismo/ação demoníaca, para logo em seguida
apresentar a conclusão - interpretação para qual ele -
relator/filtro/divulgador - e, por conseqüência, necessariamente
registráveis; tendo em vista a propagação da doutrina cristã ou de sua
missão, em meio a tantos bárbaros, gentios e infiéis, conforme a
documentação da época. (2003: 44-45)
A postura deliberada e consciente do filtro do jesuíta está explícita no
processo de redução. Entre os desafios que a Companhia de Jesus se propunha
estava a pretensão de apresentar aos indígenas a possibilidade de corporificar
suas crenças, estruturar seus mitos, sob a tutela restauradora do cristianismo.
Segundo o relato da documentação, o fato dos indígenas não interpretarem
concretamente os sentidos de suas crenças permitia que os jesuítas o fizessem
dando um corpo, uma imagem ressignificando as crenças pagãs. (GRUZINSKI,
2003: 288) Compreende-se que a imagem tenha “se tornado o suporte da
penetração do sobrenatural cristão”, sendo um elemento introdutor de condutas e
temores (emoções e angústias). (GRUZINSKI, 2003: 289)
36
O processo de civilização é estabelecido a partir do domínio de crenças
pagãs, da censura de práticas obscuras e de incorporação de disciplina cristã.
Essas internalizações de proibições seriam consolidadas, segundo os jesuítas,
através da criação do hábito, que possibilitaria o autocondicionamento indígena à
prática cristã. Seria a comprovação da eficiência e eficácia da empresa jesuítica.
Entretanto, o processo de criação do hábito nas reduções passou antes
pelo estabelecimento de normas específicas, conforme os relatos da
documentação. Um exemplo está no relato de padre Montoya:
Que ao toque da ave-maria, pela madrugada, fosse aberta nossa
portaria, para que os homens que o quisessem, entrassem com a
finalidade de visitarem o Santíssimo Sacramento e se entretivessem em
oração por alguns momentos.(MONTOYA, 1639 In 1982: 89)
A vida na Redução estabelecia uma determinada conduta aos nativos, ao
contrário disso, um comportamento errado teria que ter como conseqüência
arrependimento e culpa para que aquela alma pudesse se manter sob a proteção
divina.
A inserção da noção de pecado entre os Guarani era, para o jesuíta, a
garantia de que comportamentos equivocados não seriam realizados na sua
ausência, associando a esta noção o sucesso da missão diretamente vinculado ao
êxito da conversão. Segundo o padre Montoya, “em suas casas, antes de
adormecer, os índios rezavam em alta vozas orações, e o mesmo faziam ao
despertar” (MONTOYA, [1639] In 1997, 139).
Na correspondência referente ao ano de 1634, escrita pelo padre Pedro
Romero, este relata diante de uma nação indígena desconhecida que, apesar de
37
pouco inteligentes, esses índios tinham boa vontade para aprender os
conhecimentos que constam no Santo Evangelho. Para o padre, tinham um
desconhecimento natural para uma nação bárbara, mas não possuíam vícios nem
possuíam idolatrias como outros povos indígenas que este missionário
estabeleceu contato. Portanto, segundo o jesuíta, eram merecedores da
verdadeira liberdade, a serviço de Deus.
Y mas viendo que les falta de entedimiento les sobra de voluntad
muy dispuesta para todo lo bueno y para el Santo evangelio, mas
que ninguna otra nacion Barbara de las que oy se conocen en todo
lo descubierto, de que son buenos testigos nuestros, que an venido de
tan lejas tierras y naciones para solo su bien, que todos a una confiessan
que es gente muy dispuesta para recibir el Sto evangelio, porque no
tiene los vicios de la Borrachera, deshonestidad e ydolatria que
hazen incapaces a millares de Yndios que estan aqui en su contorno
(...) (ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 34)
7
Assim como os outros povos indígenas convertidos, o missionário
demonstra o que pretende que faça esta nação recém descoberta. Revela o
desejo que os indígenas se amem como irmãos, se façam caridade, tudo com
muita alegria e com devoção a cristã. Os indígenas que “aceitam” a conversão
são traduzidos, na documentação, como os índios de bons costumes: “alli se
animan y afervoran en su espiritu y en el zelo de las almas teniendo sus
conferencias espirituales muy fervorosas para el proposito” (ROMERO [1634] In
CORTESÃO, 1969: 35).
Para Romero, o cristianismo apresenta-se como salvador desta alma,
construindo verdadeiros “trabalhadores evangelizados”. O autor insiste que o
7
Grifo da autora. Chama-se a atenção para o discurso religioso que nega vícios entre os indígenas para
justificar sua conversão.
38
indígena aparece numa situação de ignorância, sua salvação seria o
conhecimento do Criador, entretanto, nunca alcançará uma autonomia; estará
sempre sob a tutela dos jesuítas. Refere-se aos indígenas como, constantemente,
instáveis em seus comportamentos: Como lo hazen siempre no olvidandose por
esso de su proprio aprovechamiento antes bien en cumplimiento de su regla
cuydan primero del no dejando por grandes ocupaciones que tengan los
exercícios sanctos de oracion, examenes, penitencias y mortificaciones”
(ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 35-36). Entretanto, para o missionário é
previsível tal prática ao se referir nativos pouco racionais, o que justifica o trabalho
de obreros evangelicos: teniendo a sus tiempos los espirituales que usa la
Compª tanto con mas veras quanto echan de ver la necessidad que dellos tienen
en estas solenidade, en medio de tantos peligros, con tanta pobreza y falta de lo
necess° con muy poco trato humano porque no le tienen los Yndios. (ROMERO
[1634] In CORTESÃO, 1969: 35-36)
Todas as negativas indígenas são justificadas como falta de inteligência
desta cultura. Nos relatos do padre Romero encontram-se mais afirmações a
respeito do “curto entendimento que os nativos possuíam. A falta de intelecto e a
inconstância indígena era lamentada por Romero, pois muitos conhecimentos
transmitidos durante a conversão são esquecidos ou ignorados pelos nativos.
Para o religioso, os indígenas fogem da missão jesuítica pela dificuldade de
manter a compreensão dos ensinamentos religiosos. Diz Romero: Que no les
dezimos y predicamos qdo estan enfermos de como se an de portar, lo que an de
comer, y de lo que se an de guardar, pero todo es predicar en desierto, y
39
cansarmos devalde, porque no lo guardan ni guardaran jamas” (ROMERO [1635]
In VIANNA, 1970: 82)
Nos casos apresentados está patente a concepção que os autores destes
relatos tem de que os indígenas são possuidores de alma, portanto passíveis de
conversão. Porém, segundo a documentação, não o seres inteligentes e
racionais, capazes de decidirem seus destinos. E, conforme os relatos, o trabalho
árduo dos missionários é recompensado pela salvação daquelas pobres almas.
Esse pensamento se faz claro ao lembrarmos do objetivo da Companhia de Jesus:
a expansão da fé cristã para um Novo Mundo, diante da ameaça da Reforma, sem
cálculos dos danos causados as antigas culturas. Era uma questão de
sobrevivência da Igreja Católica.
Esse é o maior obstáculo para o entendimento da diferença e da
singularidade das culturas. No contexto colonial, a impossibilidade de viver o
pluralismo das crenças impede uma visão mais abrangente da parte dos
protagonistas, que desejaram subjugar o diferente. No documento que trata do
“martírio e morte do Padre Cristoval de Mendonza, em 26 de abril de 1635,
redigida pelo padre Francisco Ximenez” aparece a descrição de que os indígenas
praticavam rituais católicos, como por exemplo a procissão, estes são
mostrados como órfãos da benevolência do padre que dedicou a vida à eles.
Segundo o relato, as crianças que acompanhavam o religioso parecem ter sido
mortas num ritual de antropofagia, entendido pelos padres como um indício da
"barbárie indígena". Na tentativa de condenar esses costumes, o religioso mostra
o bom comportamento, a procissão, em contraposição ao mau comportamento,
40
rituais de antropofagia. diferentes graus de informação sobre o indígena, de
acordo com a intencionalidade do autor.
(...) todo el pueblo en procesion, en apareciendo de lexos começaron a
llorar todos con estrañas muestras de sentimiento en llegando a la iglesia
les descubrimos el rostro, y lo q decentemente se pudo ver del cuerpo.
En la cabeça, fuera de las heridas, q arriba dize tenia otra grande en la
frente, q parezia de alguno macanaço. Enterramosle en tierra, aunq
estaba prevenida una caxa para este effecto, para poder mas presto
trasladar sus huessos a la iglesia que se a de hazer, el dia siguiente le
hizimos el officio como se acostumbra en la Compª, aunq bien poca
necessidad, creo, q tenia su dichosa alma de nuestros suffragios, porq
quando no tubiera en descuento de sus imperfecciones los muchos y
grandes trabajos que por tantos años padezió, en el ayuda temporal y
espiritual destos pobres indios, le bastaba por satisfaccion lo mucho q em
su muerte padezió. (XIMENEZ [1635] In CORTESÃO, 1969: 104)
A normatização dos costumes dos nativos convertidos torna-se argumento
para que a missão estabelecida se mantenha sob proteção da Coroa Espanhola.
O que provavelmente se apresenta como ritual antropofágico, típico da cultura
indígena, é descrito como o martírio de crianças cristãs, pois “velhos feiticeiros
movidos pelo ódio dos novos cristãos os comeram”. Os juízos de valor a cultura
indígena faz com que os jesuítas exponham na documentação a necessidade de
mudança destes costumes. O jesuíta compreendia a cultura nativa por isso se
utilizava de seus significados.
Além das dificuldades internas de manutenção da proposta reducional dos
indígenas pelos religiosos, ameaças externas também compunham os desafios da
missão. A documentação revela a preocupação dos religiosos em não perderem a
tutela dos nativos para bandeirantes e encomenderos, sendo este o terceiro
problema a ser analisado neste capítulo por meio dos discursos jesuíticos.
41
1.3 A ameaça civil e início da súplica missionária ao Rei da Espanha
O temor diante do risco de destruição das reduções pelos bandeirantes
portugueses
8
e pelos encomenderos espanhóis formalizou-se nas
correspondências jesuíticas a partir da década de 1630. Os casos analisados
neste momento, não ignoram a violência das entradas bandeirantes, mas
pretendem evidenciar os elementos utilizados do discurso para convencer as
autoridades civis da importância estratégica das reduções. Para análise de tais
acontecimentos, a pesquisa apresenta trechos mais longos da documentação pois
deste modo pode-se perceber o quanto eram insistentes as súplicas religiosas.
Conforme registros da documentação, as autoridades civis tinham outros
interesses como a opressão dos nativos pelos portugueses e, a redução e
transformação destes em súditos do rei pelos espanhóis. Os missionários queriam
ser vassalos diretos do rei para pagar a taxação diretamente a Coroa espanhola.
A exploração do Novo Mundo possibilitou a descoberta de novas riquezas e os
indígenas foram a mão de obra utilizada em sistema de trabalhos compulsórios
para a utilização destes recursos. Lembra-se que o sentido de exploração referido
é o de tomar conhecimento dos novos territórios. Como acontece no “testemunho
da visita que z às reduções o bispo Aresti”, escrito em 1631, em que o padre
Pedro Romero descreve os sacrifícios enfrentados até esta visita. As mortes, os
8
Romero os identifica pela expressão “aquellos lobos carniceros venidos de S. Pablo” (ROMERO, [1634] In
CORTESÃO: 1969: 34)
42
sacrifícios e os riscos de vida em nome de Deus e do rei da Espanha, não
estavam tendo a devida atenção dos superiores civis. A confirmação das “ovelhas”
da cristã, que teve a missão iniciada em 1610, custou vinte anos para
acontecer. A dedicação desses religiosos aos “pobres naturales”, não tinha a
mesma importância para as autoridades civis locais que, antes, viam nos
religiosos como desbravadores de “gentílicos” e, neste momento, a Companhia de
Jesus estava transformando-se num empecilho para colonos e conquistadores,
pois ocupavam terras e barravam a exploração do indígena.
(...) há mas de veite anos que nos ocupamos en estas partes en la
conversion de la gentilidad y propagacion del Sto Evangelio por orden del
Rey nro Sr con los trabajos y necessidades y peligros de la vida y
remamiento de sangre y muertes como es publico y notorio en toda esta
Tierra. Y digo que para cosas del servicio de Dios nro Sr y de su
Magestad viendo los naturales y credito de nuestra sagrada Religion de
la Compª de Jesus tengo necessidad q V. SSª lllª venido a visitar su
Obispado y a confirmar a sus ovejas, que hasta agora ninguna avia
reduzido a este Sto Sacramento (...)(ROMERO [1631] In VIANNA, 1970:
76-77)
O relato do religioso apresenta o mesmo discurso dos títulos de
encomienda, solicitando o reconhecimento pelo serviço prestado e apresentando
os nativos como súditos do rei da Espanha. Após o período de implantação da
redução, a incapacidade de autonomia dos indígenas, conforme a descrição dos
missionários, aumenta diante da pobreza e da devoção. Desta maneira, a aptidão
dos jesuítas para converter torna-se cada vez maior segundo suas próprias
correspondências:
(...) á sido muy particular providencia de Dios en dar espiritu a los Padres
de la Compara que por solo su divino servicio y desseo de bien de las
almas aian andado a caza de estos indios para reduzillos a la Ley
evangelica. Y de donde tambien y de aver visto quam bien se les paga
las cosas de la fee, y exercicio de las virtudes, a que acuden
puntualissimamte, y con muy grande obediencia colige su S
43
predestinacion desta pobre gente (...) (YRARRAÇAVAL [1631] In
VIANNA, 1970: 79)
Nestes documentos, os jesuítas são, sobretudo, salvadores de almas e
médicos que curavam suas enfermidades. E o exercício da virtude nada mais era
do que a aceitação dos dogmas católicos.
As palavras de Antonio de la Peña ressalta, em 1639, os perigos
enfrentados para a conversão de indígenas, pois após consolidarem a redução
deparam-se com a ameaça portuguesa.
(...) fundaron los rreligiosos de la Compª de Jesus catorce ô quince
rreduciones de Indios infieles, feroces y barbaros, domesticandolos,
cultivandolos y Bauptizandolos, haciendo iglesias y sirviendolos con buen
adorno y musica, todo a costa de inmensos trabajos y peligros de la vida
de los dichos rreligiosos, que atendian a tan glorioso empleo , y quando
mas florida estaba aquella nueba Xpiandad y se iba dilatando mas nra
Sta fee, los Portugueses de la Villa de San Pablo invadieron hostilmente
las dichas rreducciones (...) (PEÑA [1639] In CORTESÃO, 1969: 267)
Segundo o jesuíta, quanto mais o cristianismo avançava mais os
portugueses atacavam. O único meio de combater a ameaça bandeirante era
igualando-se aos portugueses, pelo menos no que dizia respeito a armas. O
remédio seria o armamento das reduções, pois a serviço de Deus e do rei
defenderiam o “direito natural”, os direitos dos indígenas manterem-se reduzidos e
convertidos, conforme o pensamento do jesuíta. A manutenção da cultura
indígena não foi pensada no momento em que se estabeleceram as investidas
para a conversão. No entanto, o jesuíta faz-se preocupado com a conservação
das famílias dos nativos.
Contra o ataque dos portugueses, os religiosos apresentavam em seu
discurso o indígena convertido bravo guerreiro, defensor dos interesses e da
44
religião. Entretanto, os nativos são descritos com comportamento maleável. É
visível a diferença no discurso religioso, o mesmo índio é visto de forma diferente
9
.
(...) siendo las dichas armas de fuego em las rreducciones el unico
remedio que no se destruian y la defensa de derecho natural y aun en
aquellos Indios obligatoria conservarse ellos y sus mugeres e hijos em
la fee y buenas costumbres que pierden en assolandoles Pueblos y
captivandoles ò huiendose por los montes y haziendo los dichos
rreligiosos de la Comuna acion tan gloriosa en servicio de Dios y de su
Magd , bien de aquella Xpiandad , y de todas estas Provas como es
tomar ellos mesmos las armas (que an comprado a su costa) y defender
con riesgos de sus vidas la fee de Jesu Xpo y aquella nueba Xpiandad y
rreducciones que con sus armas son el muro y defensa de todas las
demas hasta esta Ciudad. (PEÑA [1639] In CORTESÃO, 1969: 270)
O jesuíta assume o compromisso de defesa dos nativos.
Num outro documento, de 1639, o padre Antonio Ruiz de Montoya clama
por justiça para todos e liberdade para os indígenas obviamente convertidos
dentro das reduções.
Y todo lo que aqui pido es con Protestaçion de que no pretendo pena de
muerte, ni motilacion de miembro, ni efussion de sangre, sino solamente
mi justicia y de la dicha mi provincia y Religiossos, y de los dichos Indios
y su livertad, a los quales yo con mis compañeros e rreducido y
convertido a nuestra Santa fee catolica y quedo descargado ante Dios
Nuestro Señor y ante V. Mag., y sus tan buenos y celosos ministros
como lo son los de la dha junta com esta diligencia. (MONTOYA [1639]
In CORTESÃO, 1969: 297)
Numa petição escrita por Diogo de Boroa e outros religiosos a Felipe IV
sobre as invasões dos portugueses e a hostilidade dos governadores do Paraguai
e de Buenos Aires, escrita em 1639, o discurso apresenta um certa indignação
diante dos desmandos das autoridades civis e da crueldade dos portugueses. O
9
Ver SANTOS, Maria Cristina dos. Xamanismo e Cura na Coleção De Angelis. Porto Alegre: PUCRS,
Cnpq, 2003. (recurso eletrônico).
45
padre escreve diretamente ao rei por não confiar nas autoridades locais, que
estariam enviando informes falsos, caluniando os religiosos, a Felipe IV. A “custa
de muito suor e muito sangue estes religiosos contavam apenas com a ajuda dos
nativos para a defesa das reduções.
Na correspondência é possível detectar a evidencia de modificação do
discurso, ao ocultar qualquer costume pagão dos nativos e explicitar os demandos
das autoridades civis e a falta de confiança nas autoridades locais.
(...) todas las demonstraciones de enojo que se habian de haber hecho
contra hombres Ynfieles à su Rey y Señor, que le han destruido tantas
Provincias y abierto y allanado el pazo á los enemigos de su Real
Corona, yá mui cerca de Santa Cruz de la Sierra en los confines del Peru,
(de que Vuestra Magestad, informado de su Presidente de los Charcas y
de los Procuradores de esta Provincia, ha mostrado justo sentimiento,
mandando poner el debito y presto remedio), las han convertido contra
los Yndios fieles y los Padres de la compañia de Jesus que los tienen à
sua cargo que à costa de muchos desvelos, expensas y trabajos, sudor y
sangre, les estan defendiendo y impidiendo el paso; que a no ser asi
hubieran ya llegado al mismo Paraguay como se lo tienen amenazado,
haciendo grandes papeladas Vuestro Gobernador y Cabildo de la Ciudad
de la Asumcion , engañado, embiando ynformaciones `e Ynformes con
cosas mal fundadas y supuestas contra los Yndios, tocando à los que los
tienen á su cargo y calumniando las armas de fuego que les concede
Dios y la naturaleza, como medio único para su defensa y de estas
provincias y Reynos (...) (BOROA [1639] In CORTESÃO, 1969: 301)
A súplica ao Rei se dá ao relatar os maus tratos que a Companhia de Jesus
e os indígenas sofriam pelas autoridades civis. Em defesa dos interesses de Deus
e da coroa, “derramam sangue com armas na mão. Apresentam-se como
desamparados, numa missão que foi forçosamente encerrada.
(...) los incombenientes que acumulan lo Ynformes mas parecen nacen
de pasion y emulacion que de celo y peligro, y con todo intenta el
Gobernador del Paraguay y algunos apasionados de aquella Ciudad que
46
se lo aconsejan, quitarselas y, à su reclamo y persuacion, como se
entiende Vuestro Gobernador del Rio de la Plata Don Mendo de la Cueba
y Venavides, mostrando en esto, como en otras cosas , su mal afecto á la
compañia y á los fieles reducidos con mui grande ofensa de Nuestro
Señor y Vuestra Magestad, porque lo mesmo ès quitar à los Yndios,
fieles vasallos de Vuestra magestad que en su servicio derraman su
sangre y dan sus vidas, las armas de las manos, con que defienden sus
Pueblos, mugeres è hijos, que darselas a sus enemigos declarados,
dejandoles el paso franco, sin resistencia à estas provincias (...) (BOROA
[1639] In CORTESÃO, 1969: 302)
Nota-se no relato de Boroa, uma mudança de opinião em relação ao
comportamento do indígena, anteriormente era bárbaro infiel e, após a
catequização, transforma-se em convertido que derrama seu sangue pela nova
crença e em defesa da Coroa. A ênfase neste aspecto faz parte de uma tentativa
de convencimento da autoridade real e da estratégia da missão.
O discurso do religioso suplica por um amparo a estes “pobres indios”,
assim como a seus “mentores espirituais”. Aqui a pobreza associada aos
indígenas nada tem a ver com a miserabilidade relacionada à estrutura sócio-
econômica vivida por estes grupos.
(...) como el mas eficaz remedio há de venir de Vuestra Real mano
suplico a Vuestra Magestad favoresca y ampare debajo de ella, à los de
la Compañia, que con tanta fidelidad le sirben en estas Provincias hasta
dar la vida muchos en la demanda y à estos pobres Yndios, que por
defender la fee y sus Yglesias y el paso à su enemigo, siendo fieles a su
Rey y Señor, derraman animosamente su sangre, mandando à vuestro
Gobernadores no los molesten como muchas veces lo hacen, mas antes
los defiendan de tantos emulos y contrarios como tienen, multiplicando
Ynformes contra ellos y los Padres que los doctrinan, pagando mucho
años á la compañia de Jesus que les està sierviendo continuamente,
el hacerlo para procurar su descredito para con Vuestra Magestad y sus
Reales Consejos (...) (BOROA [1639] In CORTESÃO, 1969: 302).
A Companhia de Jesus tentou um entendimento com as autoridades civis,
utilizando-se por oposição as “bestias feroces” para convencer estas autoridades
47
da necessidade das reduções atuarem na defesa do império e da fronteira. Estes
dados estão no “Informe e justificação jurídica do uso de armas de fogo pelos
índios, apresentados pelos jesuítas do Paraguai”, escrito por um grupo de
missionários em 1639.
Tambien se a de suponer q la Coma hecho apretadas diligencias con
los Governadores del Paraguay y Puerto de Buenos ayres con la R. Audª
Sr Virrey Y Consejo R. de las Yndias avisando y dando quenta muy
particular de todo, representando los daños tan notables q aquellos
pobres y miserables Yndios contra toda razon y Justicia receben de los
dichos Portugueses pidiendo com ynstancia remedio, ayuda y defensa
necesaria (...) (BOROA et al. [1639] In CORTESÃO,1969: 304)
Ao defender-se dos portugueses, buscam impedir os maus-tratos que
ocasionaram a morte de muitos indígenas. A defesa da liberdade está presente
novamente, porém a liberdade confinada pelos dogmas cristãos. O discurso
apresenta-se visivelmente apelativo.
De lo dicho se sigue primeramente q los Yndios de las rredes no
solamente podran licitamte defenderse de la ynvasion y conosidos
agravios q les hazen los portugueses vezinos de S. Pablo y demas
costas del Brasil pues defienden de su tirania la libertad suya de sus
mugeres e hijos defienden sus tierras y haciendas y aun vidas porq la
mayor parte de los q captivan mueren miserablem.te o en el camino del
mal tratamiento, hambre y cansancion e alla en el Brasil por las mismas
causas. (BOROA et al. [1639] In CORTESÃO,1969: 304)
Os jesuítas descrevem os riscos de uma liberdade mal assistida, como a
que é dada aos nativos pelos portugueses. Sob controle da coroa portuguesa, os
indígenas são apresentados como fracos para os vícios e perigos da vida. Sem
48
um auxílio espiritual não poderiam ter uma vida digna. Pois os indígenas do Brasil
não obedeciam as mesmas leis que os indígenas súditos da Espanha
10
.
Y q los Yndios q lleban cativos al Brasil corran semejante riesgo de su
salvacion desejase muy bien entender porq alla les dan toda la libertad
de conciencia q ellos quieren y dejan vivir como quieren ofreciendoles
mugeres a su eleccion y aun casan a los q dejan aca sus consortes vivos
no tienen doctrina ni enseñanza y como los Yndios de su natural son
flacos y las ocasiones muchas para todo genero de vicio viven y mueren
en el Brasil miserablemte y estos son los mas bien librados porq en el
camino los q mueren q son sin numero mueren como unos brutos sin
confesion ni otra ayuda espiritual y por consiguiente con moral riesgo de
su salvacion y asi ternan precisa obligacion a defenderse. Pues
solamente defienden los tales Yndios hacienda y libertad, hijos y mugeres
sino vida y alma como queda dicho etc. (BOROA et al. [1639] In
CORTESÃO,1969: 306)
Os jesuítas sustentam a utilização de armas de fogo para que os indígenas
posam defendê-los. Juridicamente, no império espanhol, doutrina cristã permitiria
este tipo de defesa diante do pecado mortal, que seria o risco de vida pessoal e de
seus próximos. Segundo os religiosos, arriscavam-se diante das dificuldades
enfrentadas com os portugueses.
Bien podran los Yndios defenderse de la manera q pudieren de la tirania
de tales enemigos y supuesto q la experiencia a mostrado por el discurso
de mucho años en q an sido molestados dellos q el arco y flecha ni
macana, q son las ordinarias armas de los Yndios, no es bastante
defensa, podran licitam.te buscar las q les estubieren bien y nadie se lo
podran prohibir.Y de lo dicho se sigue q los Pes de la Compª de Jesus
sus Curas q los an reducido a Pueblos y en ellos los dotrinan e ynstruyen
en la fee, y administran los santos Sacramentos q no solamte podran
licite darles las tales armas de fuego q son como simpliciter necesarias
para su defensa, y enseñarles el uso dellas sino q estan obligados em
consciencia a hazerlo. (BOROA et al. [1639] In CORTESÃO, 1969, p.
307)
10
Lembra-se, aqui, os relatos dos religiosos Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira.
49
Os religiosos apresentam-se como salvadores dos indígenas, defenderam
seus convertidos por obrigação, pelo bem espiritual que esta doutrina traz aos
nativos. A defesa é, no entanto, muito mais da doutrina do que dos homens. Uma
questão de sobrevivência da missão era acabar com a ameaça portuguesa. O
relato busca compadecimento do rei da Espanha à essa situação: (...) asi por lo
general de proximos la ley de la caridad obligara a los Pes Missioneros a defender
los Yndios en tan urgente necesidad (...)” (BOROA et al. [1639] In
CORTESÃO,1969: 308)
O discurso jesuítico torna-se repetitivo na tentativa de tornar-se
indispensável na manutenção dessas reduções. Conforme os religiosos, o afeto
apresenta-se como sinal de um bom trabalho com os nativos, o que não
aconteceria no trato dos portugueses com os indígenas.
(...) se puede con verdad dezir q no solamte se les quita a ellos la libertad
y a sus mugeres e hijos y en cierta manera la vida, fee y religion sino a
Dios nro Señor muy grande gloria por ser tan crecida la q se le sigue del
cuydado, asistencia y vigilancia con q se crian en todo genero de
Christiandad los Yndios de nras rredes recebiendo con singular afecto
nra fee y todo esto les falta en el Brasil comumte donde viven y andan
como unas bestias por los montes y en los pueblos con la misma libertad
de costumbres q tenian en su ynfidelidad. (BOROA et al. [1639] In
CORTESÃO,1969: 311)
As modificações apresentadas no discurso jesuítico varia conforme a
intencionalidade da mensagem em relação aos diferentes destinatários. Um
exemplo está na miserabilidade identificada no período pré-redução
11
, momento
em que desejam convencer os indígenas a participarem da redução, ao
diferenciar-se da pobreza nomeada quando desejavam exaltar seus feitos nos
11
Ainda assim estabelecia-se uma dicotomia entre o guerreiro não miserável, nativo sob sua tutela jesuítica e
o guerreiro miserável (tupinambá), indígena sob tutela de outras Ordens ou sem conversão.
50
documentos. Utilizavam, por exemplo, a expressão pobres índios para justificar a
tutela cristã. Essas mudanças de argumentos durante os relatos serão melhor
analisadas no segundo momento deste estudo.
51
II
AS VARIAÇÕES NO DISCURSO JESUÍTICO DE CULPABILIDADE
O processo histórico colonial apresentava riscos para o empreendimento
jesuítico. Mais que perigos, contudo, “as experiências novas de uma sociedade
não desvelam sua ‘verdade’ através de uma transparência destes textos: são
transformadas segundo as leis de uma representação científica própria da época”
(CERTEAU: 1982: 213). Deste modo, os registros formam um “discurso sobre o
outro”, o indígena, a partir das narrativas que apresentam os impactos culturais na
descoberta desta alteridade.
Após os primeiros contatos é perceptível nos relatos dos religiosos uma
alteração na imagem que construíam sobre a cultura nativa. As variações da
categoria nos discursos religiosos sobre os indígenas - de bárbaros para infiéis -
não caracteriza uma mudança de olhar a respeito das práticas e dos costumes
nativos. Os religiosos continuam descrevendo as necessidades de modificações
na tradição guarani.
O capítulo em questão enseja a compreensão da construção do processo
de culpabilidade nestes discursos, como recurso de civilização do indígena. A
52
partir da análise de documentos, serão apresentadas as variações nos discursos
dos missionários quanto às intencionalidades destes. Para tanto, serão analisadas
estas traduções religiosas em dois âmbitos: um discurso sobre si e o discurso de
pecado e culpa.
2.1. Um discurso sobre si:
A documentação jesuítica apresenta sucessivos casos de discursos de
cristianização, pois os missionários tinham como objetivo maior à conversão de
novos fiéis. Os relatos descrevem, contudo, as dificuldades enfrentadas por eles.
O que possibilita aos jesuítas construírem uma imagem positiva sobre si: “Todos
los quales religiosos son buenas lenguas y experimentados en el ministério de los
indios, personas doctas y toda satisfaccion” (TRUXILO, 1633 In COSTESÃO,
1969: 20). Desta forma, os religiosos exaltam nos discursos suas habilidades,
seus feitos heróicos e a humildade como enfrentam esse processo.
Conforme relato do padre Pedro Mola, os religiosos “en este tiempo se les a
acudido con mucho cuidado sin perdonar a ningun trabajo por grande que fuesse
andando con el rigor del sol a bisitarlos por todas partes” (MOLA, 1635 In
COSTESÃO, 1969: 117). A descrição do padre refere-se à dedicação dos
missionários que almejavam converter povoados tão distantes. Além disso, a carta
narra o comportamento de indígenas cristãos, que teriam desmerecido a
autoridade dos feiticeiros. Segundo o relato, os indígenas negavam seus antigos
hábitos, pois o feiticeiro figuraria a imagem do Demônio: “an sanado mucho en el
53
cuerpo y alma haciendo burla de sus echiceros de los quales antes tanto
confiaban y respetaban teniendoles por Dioses que daban la vida y muerte a
quienes querian”. (MOLA, 1635 In COSTESÃO, 1969: 117)
Os jesuítas eram persistentes, pois o cotidiano da missão exigia esforços
físicos, descritos pelos religiosos como empenho espiritual. Nas palavras do padre
Antonio Ruiz de Montoya: “Tidos, porém, informes sobre a existência de gente ao
longo daqueles rios, juntos partiram os dois padres [Simão Masseta e José
Cataldino] com seu companheiro. (...) Em seus discursos deram os padres aos
gentios a razão de sua vinda, que era a de fazê-los filhos de Deus e libertá-los da
escravidão do demônio”
12
(1639 In 1982: 39). Para os religiosos, todos os
sacrifícios valiam pela missão. No mesmo documento, Montoya descreve: “Ali
estiveram os padres muito enfermos, sendo que a falta de médicos e medicinas ou
remédios os colocou para perto do último transe da vida. Contudo, depois de
convalescidos, exerceram os seus ministérios sacerdotais, e foi com grandíssimo
aproveitamento das almas” (1639 In 1982: 38). A empresa exigia dedicação, pois,
segundo o autor, tinha suas recompensas: “Cheguei à redução dede Loreto
com desejos de ver aqueles dois insignes homens, que eram o Pe. Joe o Pe.
Simão. Encontrei-os em extrema pobreza, mas ricos assim mesmo de contentes”
(1639 In 1982: 50).
Nas cartas, os perigos da missão mesclam-se com a valorização dos
trabalhos dos religiosos. Segundo o padre Pedro Romero, em 1634, “dieron muy
bien que merecer a los P.
es
Joseph Domenech y Antonio Pablo Palermo, sus
12
É importante lembrar que essa nomeada escravização diferenciava-se da escravização estabelecida pelos
bandeirantes.
54
curas; todos los dias daban el viatico a mas de treinta y quarenta personas,
gastando todo el dia con los efermos, dejando muy de ordinario el sueño y
comida por acudirles con tiempo
13
(ROMERO [1634] In COSTESÃO, 1969:
42). Ao descrever a mudança de local das Reduções de Acarai e Iguaçu, o
missionário refere-se aos religiosos como “verdaderos pastores trabajan sin cesar
por guardar sus ovejas de los lobos visibles e invisibles que procuram quitarselas”
(ROMERO [1634] In COSTESÃO, 1969: 46). Todos os trabalhos o exaltados
pela documentação pois os jesuítas são descritos pela coragem de enfrentar os
perigos do empreendimento. Sendo assim, freqüentemente encontram-se
expressões como, por exemplo, “a costa del sudor y sangre de los hijos desta
apostolica Prov.
a
” para comprovar a eficiência da missão.
Segundo Diego de Boroa, os religiosos estavam, inclusive, cientes de que
poderiam morrer entre “filos de espada o ruedas de navajas por amor de Dios nro
Sor” porque o objetivo final da empresa era “conservar y dilatar la Sta fee, y los
trabajos q se padeçen muchos y la falta de cossas necessárias em partes tan
remotas muy grande” (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 12).
As adversidades da América Colonial não impediam os religiosos de
conservarem a missão. Coragem e dedicação são noções constantes nos
documentos:
(...) haziendose cocineros de los pobres de Jesu Xpo y exercitando casi
todas las obras de misericordia assi corporales como espirituales que
para todas avia materia y assi tubieron bien en que exercitar su charidad,
con la qual y el cuydado tan extraordinario que pusieron en mirar por las
valsas en que iban , no sucedió desgracia ninguna, mostrando el Señor
su Paternal amor y providencia para con estos pobrecitos sucediendo
13
Grifo da autora.
55
otras veces muchas y muy grandes principalmente con tanta gente y
chuma. (ROMERO [1634] In: CORTESÃO, 1969: 52)
Os jesuítas expunham suas dificuldades aos provinciais na tentativa de
obterem uma melhor estrutura para os povoados. Numa outra carta, que não
possui identificação do autor, percebe-se a carência de auxílio que os missionários
se referiam: “sin español ninguno ni escolta salió ocho o dies veces en dos años
por los pueblos de los infieles del rio arriba, hasta catorze leguas, sufriendo sus
desprecios y peligros de la vida en que se vio algunas veçes, por darles noticias
de S.ta Fee” (s/a [1635] In CORTESÃO, 1969: 126).
O jesuíta Diego de Boroa relata, ainda, o que nomeia de “sacrifícios
enfrentados” para a permanência na Redução de Todos os Santos de
Guarambaré. A falta de comida é um exemplo:
(...) el sustento es tenue q son las comidas de los mesmos yndios, la
harina de rayces y lo demas. la carne q se alcança en este pueblo es
poca quando la caçan a uña de cavallo o con flecha y quando la ay la
dejamos de comer muchas veçes, por darsela a los enfermos q tienen
mas neçessidad de ella. pero nro S
r
suple liberalmente lo q les falta a esta
comidilla dando el esfuerço q ellas avian de dar para trabajar en su viña.
(BOROA [1614] In CORTESÃO, 1952:12-13)
Em outro documento, padre Romero também escreve sobre este tema: “a
todos acudido el P.
e
Fran.
co
Clavijo que tubo esta reduccion a su cargo, comp.°
del P.
e
Claudio Ruyer (...) repartiales todos los dias limosna de carne y muchas
veces de maiz a hombres, mugeres y ninõs, que venian cada dia a nuestra
puerta como a casa de sus verdaderos P.
es
(ROMERO, 1634 In COSTESÃO,
56
1969:56). Os padres não entendiam porque os indígenas não produziam
alimentos para o ano todo, espantavam-se com a falta de preocupação que os
nativos apresentavam com relação ao futuro. Ressaltavam, ainda, como os
homens deixavam os trabalhos pesados a cargo das mulheres.
Os missionários não captavam a questão cultural que estava inserida neste
processo. Construíam um discurso sobre si a partir da interpretação negativa
dos costumes nativos e essas são as categorias do discurso sobre o outro.
Deste modo, os registros apresentam o que De Certeau chama de lapso de
discurso: “aquilo que num momento dado se tornou impensável para que uma
identidade nova se tornasse pensável” (CERTEAU, 1982: 16).
Os integrantes da missão colocavam-se como intérpretes de tais hábitos,
eram mediadores que construíram uma realidade registrada, privilegiando a
doutrina cristã como princípio deste modelo de discurso. Conforme descrição do
padre Montoya: “enviou o Pe. Diogo de Torres à cidade de Guairá, que apenas
constava de trinta homens, ao Pe. José Cataldino e ao Pe. Simão Masseta, sendo
ambos eles italianos, valorosos missionários e filhos fiéis da Companhia, bem
como apóstolos daquela gentilidade” (1639 In 1982: 37). Os padres são referidos
como tutores dos indígenas, verdaderos pastores.
As cartas jesuíticas faziam “uma triagem entre o que pode ser
‘compreendido e o que pode ser esquecido para obter uma inteligibilidade
presente” (CERTEAU, 1982: 16). No entanto, é importante lembrar que apesar de
construírem um modelo de discurso com relação à cristianização dos indígenas,
57
nos registros dos jesuítas é possível perceber as “operações heterogêneas que
compõem os patchtworks do cotidiano” (CERTEAU, 1994: 46).
O estar alli
14
dos jesuítas projeta aos leitores da documentação a imagem
de uma cultura construída. Os religiosos se consideravam aptos a transitar entre o
que observam, o que registram e o que pretendiam seus discursos. Entretanto,
expunham-se a riscos e temiam por isso, como podemos ver em outro registro de
Montoya a respeito de uma visão de um jesuíta: “Muito de repente esteve como
numa região estranha, tão longe e afastado de si mesmo, como se não fosse
ele próprio” ([1639] In 1982: 30). O padre expõe o que nomeia de capacidade de
transcendência dos religiosos.
A recusa da tradição guarani é um argumento presente na maioria dos
discursos, apesar de utilizarem-se de signos desta para converterem os nativos
15
.
A língua guarani é um exemplo desta ressignificação. Conforme Bartomeu Meliá,
“las reducciones gobernadas por los jesuitas en el Paraguay estaban creando una
sociedad nueva, y esa sociedad iba adquiriendo, poco a poco, una lengua común
nueva” pois “al aprender esa lengua extranjera, el misionero prefiere retener de
ella las formas ‘standard’, verdaderamente comunes a la mayoría. Esa pérdida de
las particularidades dialectales es el precio que pagan las lenguas que hacen
‘generales’”. Deste modo, os jesuítas criam/forjam uma língua guarani comum com
14
Torna-se relevante lembrar, aqui, que o registro dos jesuítas, comparados muitas vezes à figura do
antropólogo apresenta oscilações entre o que se imagina e o que se descreve. Sendo assim, apresenta a noção
de estar registrando o que mais ninguém registrou, construindo assim um modelo, uma realidade sua.
GEERTZ, Clifford. El antropologo como autor. Barcelona Pados Studio, 1989.
15
Faz-se relevante lembrar aqui, as palavras de Janice Theodoro sobre o tema: “(...) a obra de catequese
significou o processo de compreensão e manipulação, por parte do indígena, da cultura européia em seus
aspectos formais, não implicando, obrigatoriamente, a destruição da cultura indígena, a qual se preservou, em
parte, graças à política de manutenção das línguas indígenas realizadas pela própria Igreja.THEODORO,
Janice. América Barroca: temas e variações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. p. 45.
58
características próprias (MELIÁ, 2003: 107). Na carta sem autor já referida, o
missionário descreve a importância de conhecer a língua para a conversão: “entro
en tierra oyeron la palabra de Dios en su própria lengua en que hablava el dicho
P
e
Roque con excelencia” (s/a [1635] In CORTESÃO, 1969: 126).
Com o conhecimento da ngua, os jesuítas estabelecem outras relações
entre os signos das duas culturas. Segundo relato do padre Montoya, esse
conhecimento era importante para consolidar a conversão: “Naquele povoado
fiquei por alguns dias, administrando aos índios os sacramentos, e, com o curso
ininterrompido de falar e ouvir a língua deles, consegui facilidade nela.” (1639 In
1982: 41). Desta forma o padre estabelece conclusões, como ocorre com a
palavra Tupã, por exemplo:
Chegaram os guaranis ao conhecimento de que havia Deus e ainda, em
certo modo, de nele haver unidade, ou que era um Deus. Colige-se tal
do nome que lhe deram, que é ‘tupán’, do qual a primeira sílaba ‘tu’
expressa admiração; a segunda, ‘pán?’, importa em interrogação e assim
corresponde ao vocábulo hebraico ‘manhum’, ‘quid est hoc’ (o que é
isso), no singular (1639 In 1982: 54-55).
Essas traduções encurtariam caminhos para a Nova , ou seja, agilizavam
o processo de edificação dos indígenas. Assim, “a través de la traducción, se
propone al propio índio un espécimen del funcionamiento de su propia lengua, una
iniciación en la etimología, que en este caso es una etimología más bien falsa
(MELIÀ, 2003: 237).
Nesse processo, os missionários também sofriam influências. O padre
Montoya descreve suas percepções a respeito: “por carecer durante tantos anos
59
de trato com espanhóis e sua linguagem, e estar obrigado por força das
circunstâncias a sempre lidar com o idioma índio, veio a formar-se em mim um
homem quase rústico e alheio à cortesia da linguagem”. Assim continua seu relato
descrevendo de que modo se alimenta dos mesmos produtos que os indígenas:
“não deixam de contribuir não pouco os alimentos ordinários de que os índios em
geral se servem, e forçosamente também nós, isto é, de raízes, abóboras, ervas,
favas e outros deste gênero” (MONTOYA, [1639] In 1982: 19). O padre justifica
seus hábitos como forma de doação pessoal à Missão.
As necessidades materiais que existiam na missão, também, faziam com
que os jesuítas utilizassem uma imagem sobre si. Conforme pode ser observado
na solicitação do padre Diego de Boroa: “nro S
r
le de a V. R. abundançia de P
es
q
dar a tantos como piden. mientras vienen mas con dos se pudiera suplir esta
neçessidad tan urgente y emplearse bien los fervores de los q con tanta anssia le
piden a V. R. venir a estas S.
tas
missiones” ([1614] In CORTESÃO, 1952: 24).
O discurso sobre si estava permeado de súplicas, de pedidos de auxílio, de
grande estima por servir a Deus. Entretanto, este discurso oscilava no instante em
que o missionário necessitava comprovar sua capacidade de converter novos
cristãos. Conforme relato de um religioso, sobre o padre Roque Gonzalez de
Santa Cruz:
adonde pasó immensos trabajos y contradiciones cercado casi por todas
partes de enemigos infieles sin dar passo adelante, baptizando y
enseñando la ley de dios a aquella su Red.
os
q avia de ser principio de las
muchas q hizo hasta q le recebieron de la otra vanda del rio Uruguay y
començó la Red.on de S. Nicolas, meramente con las armas de
evangelio en las manos y en la boca. (([1635] In CORTESÃO, 1969: 130-
131)
60
Desta forma, lembra-se, novamente, que a noção de entes carentes de
espíritos de salvação permitia que os jesuítas instalassem as Reduções no Novo
Mundo com o apoio da coroa, que conseqüentemente pouparia esforços para a
povoação de certos territórios e conquista de novos súditos. No entanto, os
religiosos desejavam reconhecimento de seus esforços. Segundo o relato de um
deles:
(...) todas estas Red.es se han hecho con trabajos excesivos y continuos
de muchos P.es y con su sudor y su sangre con auth. el Rey N. S.r y sus
Governadores y ayudados de la limosna q su Mag.d cath ha dado y da a
muchas de las Red.es p.a sustento de los P.es dellas (q la mayor parte
gastavam en fundarlas a costa de incomodidades proprias) y de la Prov.a
y coll.os, especialmente deste de las Ass.on, sin gastos, ni expensas de
espanoles, sin averles costado un real su fundacion. (s/a, [1635] In
CORTESÃO, 1969: 131)
Com esse discurso sobre si acreditavam poder manter o prestígio com as
autoridades civis. Assim, um discurso adjetivado possibilitaria a manutenção do
empreendimento.
Num documento, o padre Romero descreve as dificuldades de manutenção
do que chama de glorioso trabalho: “Muy consolados quedaron todos los P
es
desta
visita y de aver hablado y comunicado su consciencia con su Superior y P
e
y muy
animados en estos desiertos y soledades a llebar adelante una obra tan gloriosa y
a procurar con todas veras la conversion destos pobres naturales, cada uno en el
puesto que su les señalo” (ROMERO, 1634 In CORTESÃO, 1969: 40). Num
discurso sobre si coletivo, o padre relata que existem dificuldades mas que os
religiosos tratam mais de trabalhar do que exaltar seus feitos: “Y aunque es
61
verdad que mas cuydan los P
es
en ellos de obrar y trabajar que de escrebir ni
apuntar sus gloriosos trabajos (ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 40). O
missionário refere-se aos religiosos da missão como “verdaderos obreros
Apostólicos que los [ao indígenas] amen y quieran mas en Jesus Xpo y se
compadescan dellos con verdaderas entranas de Padres” (ROMERO, 1634 In
CORTESÃO, 1969: 34)
Para os religiosos, a empresa definia-se como prioridade, inclusive em
relação à vida. Deste modo, a imagem dos jesuítas oscilava entre os mentores
dos indígenas convertidos e os mártires cristãos, salvadores do Novo Mundo
símbolos de competência e de bondade. Para o padre Montoya, o martírio não é
vergonha: “(...) na Província do Uruguai, onde o Evangelho entrou sem armas,
derramaram o seu sangue cinco sacerdotes da Companhia com insignes
martírios, isto não é fraqueza do Evangelho, mas fortaleza sua e risco eficaz para
seu crescimento” ( 1639 In 1982: 49). Os religiosos deveriam estar dispostos a
todos os riscos. Conforme Diego de Boroa: “por la missericordia del S
r
hemos
tenido tanta estima de padecer por esta caussa, q lo tenemos por un gênero de
martirio gloriossiss.
o
padeçer por ella y dichosso el q diera su vida por defender a
la jente mas perseguida y dessamparada del mundo como son estos pobres
yndios los quales padeçen siempre” (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 13)
Nas palavras do padre Antonio de la Peña, também pode ser observada a
exaltação aos feitos do padre martirizado:
(...) Pe Gonzales de Sta Cruz, natural de esta Ciudad, y rreligioso de la
Comde Jesus fundado en el gran Rio Parana algunas rreducciones de
62
Yndios bellicosos gentiles, y reducidos a la fee, con aiudade otros
rreligiosos da la mesma Compª, passo a las latissimas Provincias del
Uruguay y Tape, adonde con gravissimas contradicciones, trabajos,
hambre y fatigas fundo seis rreducciones de Indios y en la ultima que fue
la del Caaró alcançó la Palma del Martirio con otros dos P
es
y con sus
Merecimientos facilito la combersion de tantos Millares de Almas que
reduxeron en veinte rreducciones muy numerosas los rreligiosos de la
Compª de Jesus(...) (PEÑA [1639] In CORTESÃO, 1969: 268)
A valorização do trabalho do padre Roque se num discurso de oposição
ao comportamento dos indígenas que são chamados de belicosos e gentiles. A
reação indígena a conversão é descrita como barbárie pelos religiosos.
A imagem do jesuíta sobre si é construída, também, diante de ameaças
externas. Outro exemplo se nas tentativas de capturas de indígenas e
denúncias contra jesuítas por parte de encomenderos. Cabe a indagação da
diferença entre belicosidade registrada pré-conversão, não será a mesma ‘força
guerreira’ tão elogiada pelos próprios padres na defesa do território da coroa?
Nas cartas há relatos do que os indígenas teriam falado em defesa de seus
padres. Um discurso construído por quem vivenciou o fato que não pode ser
posto a prova
16
. Conforme se observa, no discurso do padre Pedro Romero:
sin reparar en la mucha pobreza tan largos y peligrosos caminos e
ynconmodidades y peligros evidentes de la vida con zelo de verdadero
Pastor y Prelado mirando solo a gloria de Dios nro Sr bien de sus ovejas
y descargo de la conciencia de su Magd y propia sin tomar reposo ni
descanso de tam prolija y larga navegacion y caminos y porque como
llevo referido desde la fundacion destas Reducciones y Provincias no a
llegado a estas partes obispo ni visitador de la juridicion Episcopal, ni
Governador ni otro juez secular. (ROMERO [1631] In VIANNA, 1970: 76-
77)
16
Num retorno a Geertz, lembrar-se que“seria difícil poder defender la idea de que los textos etnográficos
consiguen convencer , en la medida en que convencen, gracias al puro poder de su substantividad factual. El
dominio de un gran número de detalles culturales altamente específicos ha sido el modo fundamental con que
la apariencia de verdad verosimilitud se ha acostumbrado a buscar en dichos textos.” (GEERTZ, 1989:
13). A linguagem traz em si significado.
63
Em outro documento, o mesmo padre revela:
(...) quien no se deritiera en lagrimas y se bañara de gozo viendo esta
mocion del cielo y estas ovejas descarriadas buscar a su Pastor y que a
un hombre estraño que ven entrar solo por sus tierras no salen a
cautibarlo, ni a quitarle la vida sino desolados a pedir la vida de sus
almas y recebille con los brazos abiertos en sus tierras y entregarse todos
a sua voluntad como si le conociessen o fuesse alguno de su nacion (...)
(ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1669: 37).
Os dois documentos possibilitam verificar que o discurso do padre Romero
induz um tutor para a salvação da alma dos indígenas. A fragilidade com que
descreve os nativos é quase infantil
17
, a carência relatada possibilita que aceitem
o Pastor. O documento apresenta como alternativa a mediação desses religiosos
em oposição a um contexto de dificuldades. O padre Montoya apresenta a
preferência dos indígenas por essa tutoria, diante de um conflito com espanhóis e
autoridades civis:
(...) não bastaram para remediar a situação nem a sua autoridade [fiscal
da Audiência Real de Charcas], nem as forças que consigo levava, com
grandíssimos gastos da Fazenda Real, até que toda aquela província,
desfeita de seus homens e fazenda, recorresse ao último remédio que é
a paz, deixando os índios em suas terras, que ainda hoje possuem, não
sem o desejo do Evangelho.
Isso, porque todos pedem sacerdotes, afirmando que não se rebelaram
contra a Boa Nova, mas contra a tirania e os agravos ou danos. (1639 In
1982: 48-49)
17
A descrição refere-se a nativos belicosos, mas infantis. A variação do discurso está explícita.
64
Na correspondência referida, Boroa relata que os indios não saíram da
redução conforme o desejo de um capitão
18
. Tal atitude fez com que os padres da
Companhia de Jesus sofressem perseguições, segundo o jesuíta.
sobre q hablaron con harta libertad aqui y en el Paraguay contra nosotros
con algunas palabras bien graves, culpandonos muchos sobre no aver
salido los yndios y a ellos levantandoles cossas q no les passo por
penssam.
to
corriendo la voz q estavan alçados o cerca de ello. y llego la
cossa a termino q ya estavan los del Paraguay cassi con las armas en las
manos para castigarlos teniendo los ynteressados por culpa lo q ha ssido
mucha virtud y fidelidad de estos yndios q es ser obedientes a lo q su
Rey y S
r
(BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 14)
O autor afirma, no entanto, que essa perseguição não se justifica, pois
foram os indígenas que decidiram não ir. Claro está, que o missionário apóia tal
decisão, digna de um bom cristão que atende os desejos de seu rei. Desta
maneira, o jesuíta pretende manter um discurso aliado aos interesses da coroa
espanhola, protegendo-se das ameaças de autoridades civis na América.
pero los yndios protestaron q yvan contra su voluntad (...) en estas ydas y
venidas, demandas y respuestas nos ha cabido siempre nra raçion y
parte ya diçiendo q imponemos mal los yndios ya q somos sus
enganadores, ya q buscamos nros interesses y servirnos de ellos y q
para q nos quieren mas q a otros sacerdotes, pues no saben de adonde
venimos hasta deçirnos en nra presencia q adonde estavan los P
es
de la
compª eran los yndios poco obedientes al Rey, cargos todos
honrrossiss.
os
para los hijos de la comde JHS, pues los mas de ellos y
otros q dejo se hallan en diversos lugares de los envangelios q se los
dijeron a nro Redemptor y maestro los q le perseguian y anssi no es
mucho nos los digan los q no exercitan aunq verdaderamente no aya
fundam.to para ello (...) (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 14)
18
O autor não citou o nome deste capitão apenas sua intenção de retirar indígenas da redução.
65
Os próprios indígenas teriam, segundo o relato, percebido que seguir o
capitão não seria a melhor alternativa. O que deixou o jesuíta essencialmente
convencido de que o trabalho da empresa obtinha resultados positivos e que,
portanto, fazia-se relevante apesar dos constantes desentendimentos com
autoridades externas. Deste modo, Boroa demonstra a superioridade de suas
boas intenções:
pedradas hartas han tirado los ynteressados, pero a quien las lleva com
paçiencia por amor de nro Sr y de los yndios son las piedras
preçiossissimas, con q su divina mag.
d
fabrica la corona. y mas q no
dejan estos golpes heridas sino señal de goço y premio. los fines con q
va esta jente diçen es buscar minas. el efecto descubrira sus intentos.
(BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 14)
O desinteresse pelas benesses da conversão seria apenas um
desconhecimento das virtuosidades da Santa Fé, conforme os missionários. A
educação religiosa despertaria a consciência das práticas necessárias para a
salvação de suas almas, entre elas estão o batismo e o comparecimento aos
sermões
19
.
Segundo os religiosos, o ingresso para a nueva vida estaria condicionado
ao convencimento dos novos cristãos em relação ao verdadeiro Deus. Assim
sendo, os jesuítas os conduziriam a civilidade:
A uno de estos q se avia confessado mal le hiço nro S
r
md de q en
sueños viesse al P.
e
a quien se confesso q le exortava a q se confessase
bien y no encubriesse sus pecados y el fue obediente a amonestacion
viniendo el dia siguiente con mucho sentimiento a confessarlos todos
19
Tema proposto no capítulo III, item 3.2.
66
contando lo q avia visto. otros casos bien particulares podia contar en
esta materia de jente q (...) han venido rendidos a los pies del confessor a
descubrir lo q toda su vida avian encubierto con notable sentim.
to
y
propósito de nueva vida(...) (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 16)
Sabe-se, obviamente, que a descrição apresenta apenas os dados
selecionados pelo autor, do real. De todas formas, o estudo possibilita o
entendimento do que foi construído por esse discurso como uma conversão a um
sistema cultural ocidental a partir da criação da necessidade do mentor e da figura
protetora para os indígenas. Torna-se relevante afirmar que as preocupações
deste estudo não estão em reconstituir o passado, mas em demonstrar que as
oscilações nos discursos são acionadas conforme a intencionalidade das
correspondências e contexto no qual são produzidas.
Conforme os princípios da empresa, a consciência da condição de pecador
era o próximo passo para essa nova vida. Nesse momento, o indígena estaria
arrependido, o que induziria a noção de pecado e à necessidade de confissão
correta. O indígena tomaria o remédio que seu padre indicara.
2.2 O discurso de pecado e culpa:
O discurso do pecado pretendia estabelecer determinadas regras numa
rotina construída pelos religiosos. Deste modo, o jesuíta não necessitava estar
presente a todos os momentos da vida na redução para saber que as práticas
67
pagãs não seriam exercidas. Não havia como ser diferente diante do número de
missionários disponíveis para cada redução e do conhecimento do ambiente que
tinham os indígenas. Para tanto, pretendiam com a conversão inserir um novo
medo: o medo de si mesmo.
20
A noção de pecado construía-se a partir disto, como
pode ser observado no trecho abaixo:
(...) el fruto desto se echa bien de ver en las ocasiones tan fuertes que
tienen, donde saben resistir como Xpianos teniendo temor de Dios y
absteniendose de pecar por su respecto y assi en las confessiones
muchos hombres, mugeres y mancebos preguntados si an cometido
algun pecado contra el sexto mandamiento; unos dizen no P.e que me
acorde luego de Dios y assi aunque mi cuerpo me provocaba a esso
acordandome luego de Dios no quise cumplir su voluntad, otros dizen no
e hecho esse pecado porque bien se yo lo Dios dize, que es no desearás
la muger de tu proximo, y otros dizen otras cosas con que muestran que
hazen concepto de lo q se les dize y que van cobrando algun temor de
Dios que les aparta del pecado. (ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969:
59)
O temor fazia parte da vida dos que se sentiam cristãos. O cristianismo, de
modo geral, “fez do pecado uma oposição da vontade do homem à vontade de
Deus pessoal oposição que não se manifesta apenas por atos exteriores, mas
também por pensamentos e sentimentos” (DELUMEAU, 2003: 358. vol. I). Na
América colonial, a dicotomia estabelecia-se entre a tradição guarani e a doutrina
dos missionários. Em outras palavras, o discurso jesuítico de pecado pressupunha
a inserção das noções de culpa e arrependimento pelas práticas indígenas
reconhecidas pelos jesuítas como demoníacas. Ou seja, os elementos da cultura
indígena que não serviriam para serem ressignificados no processo de conversão
deveriam ser esquecidos pelos nativos.
20
Ver DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (século 13-18). Bauru:
EDUSC, 2003. vol. 1 e 2.
68
A implantação de um cotidiano ritualístico fazia parte do convencimento
indígena da noção de pecado. Nas palavras do padre Romero: Confessaron
hasta 700 almas y algunas muy necessitadas, las quales oyan con gusto lo que el
P.
e
les dezia para su bien derramando mucha lagrimas de dollor y arrepentimiento
y proponiendo con ternissimas palabras para en adelante la enmienda(ROMERO
[1634] CORTESÃO: 1969: 45). O sofrimento fazia parte desse processo.
Os documentos projetam nos comportamentos indígenas a cristianização.
O cotidiano da missão, descrito por padre Montoya revela a diferença na vida de
quem se tornava cristão: “(...) poderia eu relatar de muitos que indo à missa diária,
tinham abundância material a partir de um trabalho mediano, bem como de outros
que, omitindo-se na assistência à missa quotidiana e às vezes nalguma festa,
mesmo afanando-se e continuamente trabalhando, tinham apenas com que
sustentar-se”. Desta forma, o padre justificava a importância desse santo exercício
pois a partir dele “experimentaram aumento de bens tanto espirituais como
temporais. E os que não acompanhavam essa praxe, fizeram a experiência da
pobreza e da miséria (1639 In 1982: 115). Não era apenas uma questão de
trabalho, para o religioso a miséria pressupunha falta de cultivar a verdadeira
crença.
Para os missionários, os próprios indígenas desejariam a mudança de
costumes. O pecado era o não cumprimento desta rotina cristã e, ainda, negar a
importância do missionário. O bom cristão era o que aceitava o padre: “fue notable
el fruto que el P.e hizo y el gusto con que todos quedaron assi el S.to religioso que
cuida dellos como los mesmos Yndios que todos quisieran tenerle por mas tiempo
69
para gozar mas del por el fruto que en sus animas sentian” (ROMERO [1634]
CORTESÃO: 1969: 45).
Para a Companhia, o novo mundo descobria novos padres. A partir de
retóricas pacíficas, os documentos descrevem como os indígenas transformam-se
em fervorosos fiéis. Conforme relato do missionário Romero:
no faltando por ningun acontecimiento los dias de fiesta a oir su missa: y
solo an faltado los que no tenian ni aun pellejo para cubrir sus carnes,
porque sienten mucho las mugeres verse desnudas, lo qual antes no les
immutaba nada. frequentan con fruto los sacramentos y se confiessan
como Xpianos antiguos repetiendo confessiones de la vida pasada por
parecerles que erraron al principio, quando no sabian bien lo que hazian.
(ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969: 59)
Para a missão, os exames de consciência pressupunham, inclusive, uma
noção retroativa de pecado. Em outro documento, Diego de Boroa refere-se à
nova crença dos nativos:
luego la mañana siguiente en amaneçiendo ya estan a la puerta de la
iglessia aguardando q abran, adonde se estan preparando para
comunion aunq el P
e
tarde mucho en començar la missa y en
comulgando se quedan dando graçia delante del mesmo altar. Y como
espiritu primitivo el q nro Sr les comunica es para alabar el mesmo Sor
ver la modestia, devoçion y lagrima con q comulgan y la pureça y
limpieça de conçiençia con q biven y mas en particular los q les reçiben
mas a menudo, teniendo horror muy grande a cossas torpes y
deshonestas. (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 22)
Os relatos apresentam, então, um indígena que internalizou o pecado e que
por isso aceita a dor do açoite por medo de desrespeitar o Deus cristão. A
exaltação desse comportamento fazia parte do discurso religioso de confirmação
da necessidade da empresa para pacificar a gentilidade. Os comportamentos
70
nativos são traduzidos com noções de arrependimento, além de carentes da
doutrina cristã:
Hizose la procession de las insignias de la passion de nro S.or Jesu Xpo
con gran concurso y debocion, azontandose en ella mucho numero de
Yndios y aun muchos niños que sin saberlos los P.es ellos mismos salian
de su voluntad causando gran jubilo y consuelo a los P.es ver en tales
tierras como estas, tiranizadas antes de Satanaz, aquellos niños
pequenitos que aun no sabian casi pecar y ya tomaban instrumentos de
dolor y penitencia para aplacar a Dios con ellos: el qual sin duda se
estaria alegrando y complaciendo en ellos mucho mejor que en los
Azotes sobervios y vanos de muchos Europeos. (ROMERO [1634]
CORTESÃO: 1969: 57)
Para os religiosos a culpa estava inserida, inclusive, no imaginário infantil. A
dor e a devoção complementavam-se no relato. Segundo Delumeau: “ao mesmo
tempo em que se esclarecia sua doutrina do pecado, a Igreja elaborava, após
longas hesitações, uma prática da confissão e da penitência” (2003: 370. vol. I) Na
América colonial, a redução era o meio de inserir essa prática.
A dicotomia existente nos relatos apresenta para outras autoridades
religiosas e civis os casos de edificação, em que os maus comportamentos
opõem-se a doutrina cristã. Pode-se perceber essa oposição quando padre
Montoya descreve como indígenas convertidos o salvaram de uma emboscada de
nativos bárbaros: “Eles disseram, contudo, com ânimo viril que (no momento) nem
mulheres nem filhos estimavam, pois melhor para si era morrerem a meu lado em
empresa o honrosa, do que viver com a infâmia de me haver abandonado entre
gentios” (1639 In 1982: 126). Ou ainda, em outro documento:
71
la palabra de Dios es tan eficaz que les haze amar lo que antes
aborrecian y gustar de una cosa tan contraria a su natural, que agora casi
es menester irles a la mano y quitarles los alfileres y cosas que ponen en
la diciplina para mas atormentarse. (ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969:
57)
Entretanto, o comportamento cristão não era constante entre os indígenas.
Segundo os religiosos, o trabalho se tornava difícil pelo curto conhecimento dos
povos locais, todavia, a persistência e a paciência dos missionários permitiam que
a fragilidade nativa fosse protegida. Em seu relato sobre a Redução de Corpus,
padre Romero refere-se a essa construção da noção de pecado em uma nativa:
Anse adelantado mucho este o los desta reduccion en la frequencia de
los S.tos Sacramentos de la confession y comunion aparejandose para
recebillos con mucho aprecio y estima, rebaliendando muchas
confessiones sacrilegas de pecados callados. Entre los quales avia una
muger que callaba muchos dias avia algunos pecados en la confession,
estandose confessando una vez con su mal proposito por permisson
divina salde la peana del altar muy cerca de adonde la muger estaba
confessandose una espantosa y fiera bivora que con su aspeto hizo huir
al confessor y la muger, la qual remordiendole la conciencia y avisada
con impulso Divino del peligro en que estaba llamó otra vez al P.e y se
confessó enteramente de todos dus pecados doliendose mucho de
averlos callado y prometiendo en adelente la enmienda. (ROMERO
[1634] CORTESÃO: 1969: 46)
É o que os religiosos nomeiam de castigo divino. Esse “divino” avaliza a
construção do pecado ocidental. Para a empresa, não bastava a confissão
21
era
necessário fazê-la com dignidade. O arrependimento deveria ser a postura do bom
cristão. Segundo os relatos, estes comportamentos nativos eram prova do exame
de consciência que a doutrina cristã propunha. A partir da necessidade de inserir
escrúpulos, as cartas descrevem indígenas que controlavam entre si maus
21
A obrigação da confissão foi decidida em 1215 pelo IV Concílio de Latrão e transformou o confessor num
especialista em exames de consciência. (DELUMEAU, 2003: 399. vol. I).
72
comportamentos. Um exemplo está no documento de Diego de Boroa: “(...) se han
procurado evitar muchas ofenssas do nro S
r
haçiendo unas amistades entre unos
yndios q estavan muy enconados remediando algunos amançebamientos
particularm.
te
de uma persona q era escândalo y tropieço de muchos” (BOROA
[1614] In CORTESÃO, 1952: 20)
Num de seus relatos, padre Montoya projeta comportamento cristão aos
nativos: “Fizeram um ato fervoríssimo de aborrecimento a toda a crença e
idolatria, abraçando somente a verdadeira doutrina ensinada pela Igreja Católica
Romana e pedindo perdão em altas vozes a Deus: o que fizeram com tanta
devoção e sentimento, que nos comoveram até as lágrimas” (MONTOYA, 1639 In
1982: 121-122). Os nativos teriam se arrependido de cultuar crenças pagãs,
próprias de sua cultura. O documento narra como os padres mediam essa relação
entre o real e o imaginário desses indígenas. Para o padre, eles perceberam o
erro e pediram perdão.
Conforme observa-se num trecho de outra Carta Ânua:
avia un yndio q muchos años antes avia engañado a un P.
e
haçiendo q le
cassace con una mujer a quien devio de tener afiçion y anssi callo un
impidim.
to
dirimente y quedosse muchos años amançebado con la yndia y
aunq se confessava no se atrevia a descubrir su flaqueza. embiole nro S.
r
una enfermedad muy grave, pero ni esso aprovecho, p ª q se
confessasse bien, por q el estava restado y muy captivo del Demonio
tanto q con averle dado ya la extrema unction y estar muy al cabo no
descubria su desventura. (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 17)
Tal documento, refere-se à não adaptação dos costumes do nativo a
doutrina cristã. Para Boroa, o indígena não consegue perceber seu erro. O mesmo
73
padre relata a salvação de outra alma pelo Pe Seña, em que outro nativo
percebeu a presença do Demônio. A compreensão da noção de pecado e de
indignidade está associada às praticas tradicionais como, por exemplo, a
poligamia.
22
(...) el P
e
procuro desengañarle el Demonio y su mala vida le haçian
mucha fuerça y anssi començo a echar maldiçiones, tomando los
demonios en la boca, desseando y aun diçiendo al P
e
q se fuesse. Pero
el no o hiço, antes se pusso con mucho afecto en oraçion suplicando a
nro S
r
librase aquel alma (...) con lagrimas y extraordinario afecto del
coraçon començo a pedir el mesmo perdon a nro Sr de sus pecados y
acabo su confession y compuestas todas sus cossas y remediadas fue
nro Sr servido de llevarle para si (BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952:
17-18)
Conforme o documento, a partir da salvação a alma do cristão foi absolvida
dos pecados. A mediação religiosa entre os indígenas e o Deus cristão se justifica.
O fato dos indígenas o interpretarem concretamente os sentidos de suas
crenças permitia que os jesuítas o fizessem dando um corpo, uma imagem
possível ressignificando as crenças pagãs que conseguiam (GRUZINSKI, 2003:
288). Compreende-se que a imagem tenha “se tornado o suporte da penetração
do sobrenatural cristão”, sendo um elemento introdutor de condutas e temores
(emoções e angústias) (GRUZINSKI, 2003: 289).
Nestes relatos, a demonização de comportamentos típicos da tradição
guarani transformava os nativos em macabros, além de pouco inteligentes
23
. A
inconstância indígena ameaçava a conversão, conforme relato do padre Diogo
Ferrer: “(...) la verdad es que a estos yndios en su natural preguntandoles alguna
22
Já quando os relatos referem-se à blasfêmias, por exemplo, trata-se de uma concepção de pecado original
não entendida pelos nativos como tal.
23
Adjetivo atribuído a todos os indígenas pelos religiosos.
74
cosa parece lo primero que miran antes de responder no es a dezir la verdad sino
si les esta bien dezir si o no, y conforme a lo que les parece responden, agora sea
verdad agora sea mentira” (FERRER 1633 In CORTESÃO, 1952: 36).
Nas cartas, conhecimento e bondade pressupunham aceitar a conversão,
mesmo que diante da morte: “gran gusto y consuelo da ver morir con tanta piedad,
con tanto aparejo y conocimiento de Dios a aquellos que poco antes morian como
bestias y no se puede explicar por cartas sino se ve y toca con las manos”
24
.
(ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969: 60). O discurso jesuítico ratificava que os
indígenas naturalmente não sabiam o que era melhor, pois lhes faltava quem os
ensinassem. Para os religiosos, essa carência foi suprida após a redução, pois
haviam encontrado a tutela dos missionários. Para eles, seria a proteção de todos
os males.
A figura do demônio constantemente é associada aos pecados cristãos, que
se diferenciam das traduções das crenças guarani. Para tanto, os documentos
descrevem como a Companhia cristã têm filhos fiéis, que desfazem os erros e
vencem o demônio ocidental. Romero dá um exemplo:
P.es del Seraphico S. Fran.co pidio el P.e fray Gregorio de Ossuma
fuesse un P.e desta reduccion que es la mas cercana ayudarle a
confessar por la quaresma deste o. fue el P.e Joseph Domenech y su
ida fue de gran glória de nuestro Señor y provecho de muchas almas, la
qual aunque el Demonio quiso impedir con todo salió vencedor el vando
de Jesu Xpo. (ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969: 45)
24
Lembra-se, aqui, o estar alli de Clifford Geertz, conforme nota 10 deste estudo.
75
Os padres passam a projetar nos sinais de reações nativa a figura
demoníaca. Segundo os religiosos da Redução de São Cristovão da Natividad: “el
demonio imbidioso del bien destos buenos Xpianos los a procurado inquietar con
varias viçiones”. A crença pagã é identificada para que fosse substituída: “alla
estaba un idolo a quien los indios adoraban como a Dios”. A partir dessa negativa,
inseriam a noção de bem e mal: “el demonio ablava en ellos a los indios y los
engañaba” ([1640] CORTESÃO, 1969: 210). As modificações da cosmologia
indígena estavam estruturadas. A linguagem do discurso jesuíta adaptava-se a
novos significados.
Os missionários buscavam aumentar o alcance de suas pregações, como
pode ser observado no relato do padre Romero. O religioso Gallego encontra
indígenas fugidos e mostra-se triste por não ter como converter mais nativos:
(...) de la tierra destos salio el P.e Gallego dia de la Natividad de S. J
Bautista consolado por una parte con las cinco ovejuelas perdidas y triste
por otra, viendo que desaba en aquel monte unas almas enemigas de
Dios y esclabas del Demonio condenadas al fuego eterno y destituidas
moralmente de todo remedio en materia de salbacion. (ROMERO [1634]
CORTESÃO: 1969: 51-52)
O discurso jesuítico utilizava-se de uma linguagem ambivalente para o
convencimento dos gentios. É interessante lembrar que a linguagem “impregna de
sentido a realidade, constitui-a significativamente e a ordena como um cosmo com
coerência própria (...) é um signo que representa sempre uma cópia imperfeita do
ser”. (RUIZ, 2003:219-220). Esta cópia imperfeita o era de propósito, pois, atendia
aos interesses cristãos de conversão, criando sentidos, concebendo uma nova
76
visão de mundo. Deste modo, os nativos são descritos com comportamentos
cristãos:
(...) no faltó en este tiempo quien tratase de arrancar esta mala ciçania y
el primero de todos fue un catecumeno que con celo de la gloria de Dios
se lebantó contra el echicero que estaba predicando y perbitiendo a la
gente, diciendole que mentia y que no ablase mas que lo abia de matar y
el echicero viendo que el negocio iba de beras se apartó mirando por si
otros indios buenos temiendo un grande mal. (MOLA [1635] CORTESÃO:
1969: 117)
A intencionalidade inserida no discurso disfarçava-se no discurso de
salvação das pobres almas,contudo, talvez estas não quisessem ser salvas de
seus próprios costumes. Os signos o criados e recriados pelo discurso e pela
postura de tutores do bem.
As coisas o significadas a partir do interesse e intencionalidade que
têm para o sujeito. A linguagem mais abstrata pretende abstrair o
interesse subjetivo, querendo, com isso, mostrar uma pretensa
objetividade de seu conteúdo e uma neutralidade e veracidade formal
nas suas conclusões, conseguindo, desse modo, fazer da linguagem
um pretenso instrumento denotativo da realidade. (RUIZ, 2003:259)
Esses discursos de boas intenções legitimavam a tutela estabelecida pelos
jesuítas. A relação de poder entre as culturas era consolidada no projeto
missionário. O padre representava a imagem do condutor da salvação, pois, como
a própria etimologia da palavra indica este seria o caminho confiável para o
ingresso a civilização. Desta forma, “julgando as coisas a partir da noção de
‘poder’, que a dramatização do pecado e de suas conseqüências reforçou a
autoridade clerical. O confessor tornou-se um personagem insubstituível”
77
(DELUMEAU, 2003: 13). Na documentação, a tutela é solicitada pelos próprios
indígenas. Um exemplo se dá no relato de Romero:
Sucedió que una noche dió de repente un accidente a una india gentil
aquella misma hora vinieron volando a llamar al P.e fue luego a verla y
siendo assi que antes no avia hablado a los de su casa, al P.e habló y
respondió a lo que le preguntaba. mostró tener noticia de las cosas de la
fee y dió muy buena quenta de todas. no se resolvia con todo esso el P.e
a baptizarla por parecerle cosa de poca importancia el accidente que
tenia, pero los de la casa no se consolaban mucho de que el P.e no la
bautizasse. ubolo de hazer en fin por consolallos a todos y el se volvió
muy gustoso aca por dejalla ya Xpiana e hija de Dios. apenas se avia
puesto a reposar un poco porq era ya mui de noche, quando volvieron a
llamarle diziendo P.e que se está muriendo ya la enferma. Dixo el P.e
basta que ya esta baptizada. replicaron ellos y no a de recebir la extrema
uncion? no hijo respondió el P.e que agora no mas. la acabe de bauptizar
y los tales no la an menester y bastará solamente aquello para que vaya
al cielo. (ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969: 60-61)
A apreensão do mundo real, o estabelecimento de categorias fundamentais
de percepção e de apreciação do real possibilitava a construção de uma nova
imagem do indígena. Além disso, as reduções constituíam um ambiente de
cristianização no qual as práticas pagãs não deveriam ser exercidas. Esta limpeza
de consciência, pretendida pela doutrina cristão, possibilitava que os indígenas
absorvessem as noções de pecado, arrependimento e culpa. A culpabilidade da
doutrina cristã estabelecia exames de consciência através de apelos a conversão
e penitência.
Acudieron con mucho cuydado los Yndios esta quaresma a las cosas de
su alma: entrando con mucha frequencia los miercoles y viernes a la
disciplina y exemplo que se les quenta afin de que sepan hazer alguna
penitencia por sus pecados porque nunca ellos ni sus antepasados
tubieron algun rastro desto, ni aun cosa que lo pareciesse en su
gentilidad, ni an sabido jamas que cosa sea azote: tanto que ni aun a sus
mismos hijos nunca los castigan, ni saben que es tocarles al pelo y
mucho menos para consigo mesmos: y assi al principio se reian destas
cosas quando les deziamos que era menester hazer penitencia de sus
78
pecados y azotarse para que Dios se los perdonasse (ROMERO [1634]
CORTESÃO: 1969: 57)
A noção de escrúpulo estava enraizada na concepção de civilidade
(DELUMEAU, 2003: 519). A construção da culpa iniciava-se a partir da
consciência do pecado ocidental apesar da “dificuldade” dos indígenas de
unificar numa categoria culpa cristã, valores tradicionais, falhas de
comportamento cristão (rotina da redução) e pecados ocidentais (blasfêmias,
penitências, etc). Para o sucesso da empresa, o indígena precisava ser
convencido dos malefícios de costumes comuns a sua cultura. A poligamia, os
feiticeiros, os rituais de antropofagia, as práticas sexuais repudiadas pelos
representantes do cristianismo necessitavam ser imediatamente banidos.
Segundo os missionários, sem a intervenção do divino os indígenas fariam
parte do império demoníaco.
Quanto ao homem do Ocidente, submetido a uma culpabilização
intensiva, ele foi levado a aprofundar-se, a conhecer melhor seu passado
pessoal, a desenvolver sua memória (nem que fosse apenas pela prática
do exame de consciência e da ‘confissão geral’), a precisar sua
identidade. Uma ‘consciência culpada’ desenvolveu-se ao mesmo tempo
que a arte do retrato. Ela acompanhou a ascensão do individualismo e do
senso de responsabilidade. Existiu certamente um vínculo entre senso de
culpabilidade, inquietação e criatividade. (DELUMEAU, 2003: 14)
Esta é a inquietação que os jesuítas possuíam e desejavam que os
indígenas internalizassem. A utilização no discurso jesuítico e o horror que
demonstravam a certas práticas da cultura indígena indicavam a necessidade de
aplicação destas penitências e punições. Para os religiosos, as conseqüências
79
seriam o arrependimento e a culpa, contudo, tais práticas algumas vezes
ultrapassavam os limites físicos pois: “Senal clara desto es la buena muerte que
tienen algunos, porque como dizen una buena muerte es senal de buena vida
(ROMERO [1634] CORTESÃO: 1969: 59). A compreensão da lógica jesuítica das
punições é o próximo estágio deste estudo.
80
III
DO OLHAR AO REGISTRO DAS PUNIÇÕES
(1610-1639)
“Se os índios têm razão, então a diferença entre dois pontos
de vista não é uma questão cultural, e muito menos de
mentalidade. Se os contrastes entre relativismo e perspectivismo
ou entre multiculturalismo e multinaturalismo forem lidos à luz,
não de nosso relativismo multicultural, mas da doutrina indígena,
é forçoso concluir que a reciprocidade de perspectivas se aplica
a ela mesma, e que a diferença é de mundo, o de
pensamento” Eduardo Viveiros de Castro
Os relatos sobre as reduções revelam a proposta jesuítica de estabelecer
uma rotina cristã aos indígenas. Desta forma, uniam os nativos em povoados e
assim pretendiam administrar seus costumes. Como mediadores, os religiosos
identificavam os comportamentos que seriam valorizados e as práticas culturais
que deveriam ser desconsideradas na vida dentro da Missão. Caso esses
indígenas insistissem na manutenção dessas atitudes, a aplicação de castigos
auxiliaria na educação exemplar aplicada nas reduções. Para os missionários,
configuraria apenas um sistema de controle da culpabilidade entre os indígenas na
consolidação da conversão.
81
O estudo se propõe, neste capítulo, analisar os elementos constitutivos da
lógica da culpa nas Reduções Jesuíticas. Afinal, o convencimento da negação do
passado fazia parte de um discurso de culpa em que sermões, sacramentos e
punições auxiliam na recusa de valores tradicionais dos indígenas. Segundo
Janice Theodoro, “as observações fragmentárias de substrato indígena
ganhavam existência quando podiam fazer parte da trama narrativa construída
pelo relato bíblico (THEODORO, 1992: 87). De modo que a hierarquização de
costumes nos discursos dos missionários apresenta uma alteridade construída e
regida pela doutrina cristã. Cabe aos pesquisadores compreenderem que: “(...) o
sentido que o antropólogo [nesse caso representado pelo jesuíta] estabelece
depende do sentido do nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido
ele quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica
e significa esse sentido”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:115).
3.1 Práticas indígenas passíveis de punição jesuítica
A tradição guarani compunha um conjunto de crenças e costumes. Com a
implantação da vida colonial, os indígenas mantêm seus hábitos associando-os a
elementos não-guarani. que “não lhes basta somente resgatar mitos e ritos
tradicionais, senão dinamizá-los em função das ameaças que sofrem”
25
(SANTOS,
1998: 324). Entretanto, tais atitudes “refletem as limitações da condescendência e
as possíveis interpretações dos próprios Guarani ao serem inseridos na nova vida
colonial” (SANTOS, 1998: 324-325). Este processo não invalida, contudo, a
25
Refere-se, aqui, as ameaças de não permanecia da cultura nativa.
82
determinação religiosa de repúdio aos valores culturais dos nativos, pois, apesar
disso os indígenas continuam sendo guarani e, portanto, reafirmando sua
identidade
26
. Conforme Janice Theodoro, em América Barroca:
Esse dilema entre leigos e religiosos foi apreendido pelos indígenas e
tornou-se parte importante para se compreenderem as relações
interculturais. Primeiramente, não devemos supor que, por um passe de
mágica, a catequese tenha destruído a cultura indígena, ou ainda, que a
tenha substituído. O que ocorreu na América foi um complicado processo
de conjugação dos acervos culturais, cujas linhas temos de procurar
desemaranhar. (THEODORO, 1992: 102)
A compreensão desse contexto histórico colonial permite, então, analisar as
práticas guarani que foram identificadas como pecado pelos religiosos. Os casos
de antropofagia, por exemplo, são bem comuns nas cartas. A aversão jesuítica a
tal prática demonstra o pavor que os missionários apresentavam perante o que
identificavam como barbárie. Essa era a concepção que os religiosos tinham dos
indígenas comedores de carne humana por isso eram severos. Numa carta de
1636, o padre Joseph Oregio relata o caso do indígena chamado Erouaca.
Conforme Oregio, Erouaca mantinha uma rotina gentílica com sua família num
monte próximo a Redução de Sant’Ana de Icabaguá.
(...) alli con maña se ha comido con sus padres a su hermana y muger y a
otra muger con su hijo y a otra muger de los tres hemos visto aquí en
nuestra casa las tres caveras, huessos y carne assada, en quantidad de
26
Compreende-se aqui por identidade a definição linguística de unidade entre as parcialidades Guarani: “Se
examinadas as fontes dos culos XVI e XVII com atenção, tanto viajantes como cronistas referem-se a
diversos grupos de fala Guarani, mas não denominados Guarani. Uma vez que compartilham a mesma ngua
geral e um determinado número de elementos da cultura material e simbólica semelhante, são enquadrados
como ‘os guarani’”. SOARES, André; GARLET, Ivori. Parcialidades Guarani: em busca de uma visão
diacrônica. In HISTÓRICA, 3. Porto Alegre: Associação de Pós-Graduandos em História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1998. p. 56.
83
una muger q avia muerto el dia que le prendieron, y los otros todavia
estavan las cavesas, carnes, pies y manos y los demas huessos frescos,
cierto indicio de que mataba muy a menudo gente. (OREGIO, 1636 IN
CORTESÃO, 1969: 29)
O padre registra seu olhar sob tal prática: “es de los que vive de carne
humana, ni cuida de chácaras sino de matar gente para comer”. O indígena sabia
o nome de suas vítimas, muitas delas eram de sua família, o que causava espanto
entre os religiosos: “todo este pueblo ha visto esto porque le mandamos mostrar
levantando las cavezas en alto y el mismo los nombrava por sus nombres uno a
uno”. Os indícios de antropofagia aterrorizam o religioso, que apresenta o
comportamento cristão dos demais nativos como consagração do trabalho
missional: “Assistimos mucha gente a enterrar a parte los infieles y un niño
christiano en la iglesia, mandando al mismo indio que de su mano los enterrasse y
quemasse a vista de todos dos canastas con ollas, calabaços, etc q estavan llenas
de los dichos huessos, cabeças y carne assada” (OREGIO, 1636 In Cortesão,
1969: 29). Segundo o missionário, os próprios indígenas indicam o caminho da
conversão para o pecador.
Em Conquista Espiritual, o padre Montoya relata com detalhes como ocorria
a ingestão de carne humana pelos indígenas para celebrar a vitória sobre outros
nativos:
Ao cativo colhido em guerra engordam-no, dando-lhe liberdade quanto a
comidas e mulheres, que escolhe a seu gosto. estando gordo, matam-
no com muita solenidade. Todos tocam com a mão nesse corpo morto
ou, dando-lhe alguma batida com um pau, dá-se cada qual a si o seu
nome. Pela comarca repartem porções desse corpo. Cada pedaço vem a
cozinhar-se em muita água. Fazem isso uma papa ou mingau. As
84
mulheres dão a seus filhinhos de peito um pouquito dessa massa, e com
isso lhe põem o nome. Trata-se de uma festa muito especial para os
guaranis, que eles fazem com muitas cerimônias. (MONTOYA, 1639
In 1982: 55)
27
O missionário capta a importância desta prática para os nativos, de maneira
relativa percebe o que é especial para o outro, neste caso para a cultura guarani.
Segundo Deleuze, “não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro, mas sim a
verdade do relativo” (DELEUZE apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002:129).
Entretanto, o padre não tolera tal costume, pois está fora dos padrões
comportamentais permitidos na vida em redução. Em outra narrativa relata seu
espanto diante deste costume, principalmente, porque corria o risco de ser
devorado: “Quem mais ardia em furor e desejo de devorar-me, era um mago
chamado Guirabera. (...) Era carne humana sua comida ordinária. E, quando
construía alguma casa ou efetuava alguma obra, a fim de regalar a seus
operários, mandava buscar o índio mais gordo de sua jurisdição e à custa desse
pobre faziam eles seu banquete” (MONTOYA, 1639 In 1982: 137).
O mais grave para o religioso foi o fato de ter ingerido o mesmo banquete
em outra ocasião. Na descrição sobre a tentativa de reduzir os indígenas da
Província de Taiaoba, o jesuíta revela que alguns nativos não aceitaram sua
presença. Quando se protegia de um conflito entre esses e os espanhóis afirma
que sofreu com a escassez de comida: “Acharam os nossos índios amigos umas
grandes panelas de carne cozida com milho, da qual me trouxeram um prato,
pedindo-me que comesse. Comi daquilo, pensando tratar-se de carne de caça.
Pouco a pouco, porém, tiraram das panelas a cabeça, os pés e as mãos
27
Grifo da autora.
85
cozinhados daquele menino, que me tinha aprisionado” (MONTOYA, 1639 In
1982: 133). O missionário desculpa-se por não ter intenção de efetuar tal ato.
As narrativas dos rituais de antropofagia eram conduzidas, na maioria das
vezes, pela abnegação aos feiticeiros indígenas. Para a Companhia de Jesus,
além de cultivarem o bito de comer carne humana, ainda, blasfemavam a nova
crença. Os missionários acreditavam que deveriam combater seus principais
obstáculos na consolidação da nova . Um dos casos que interpretam como
“horror” praticado pelos feiticeiros está na carta do padre Pedro Mola, ao Superior
da Missão do Tape, padre Pedro Romero:
Es cosa cierta que los bellacos echiceros que comian carne humana,
tenian particular hodio a los niños christianos y que los buscaban i
comian assi lo dicen los que estaban entre ellos los quales sin duda son
martires, pues por ser xpãnos los aborrecian y comian y tengo para mi
que an muerto mas de ducientos y no son muchos abiendo dos mil y
quarenta y ocho niños xpianos en esta Reduccion. (MOLA 1635 In
CORTESÃO, 1969: 119)
Segundo os missionários, as crianças eram sem dúvida a grande
esperança da missão, cultivavam menos vícios e, portanto estavam prontas para a
conversão. Neste caso, o desejo de punição do religioso justificava-se na perda do
investimento no futuro.
Para a empresa jesuítica, mais do que uma prática configurava-se em
ameaça a doutrina cristã a figura de um indígena que revela ter contato com o
sobrenatural além de ser responsável pela divulgação de ritos e mitos Guarani.
Segundo os princípios da Companhia de Jesus, os missionários são os
86
responsáveis por esta mediação na estrutura da redução. A imagem dos feiticeiros
é traduzida, constantemente como bellacos comedores de carne humana pois, na
cultura indígena são os mais velhos que transmitem os costumes tradicionais para
o resto do povo. No documento de 1635, o padre Francisco Dias Taño relata a
descoberta do Capitão Antoni:
se haçia aqui çerca una junta de bellacos comedores de carne humana y
avian ya comido muchos niños, indias y algunos varistas destas tres
Reduçiones y andaban juntos dando en los puebleçillos y se les yban
juntando muchos al principio por temor y despues por gusto de comer
carne y como el autor destas bellaquerias era chemboabate y su hijo
yaguacaporu y su hermano yaguarobi los dos primeiros grandes
hechiçeros y todos mus de los Portugueses y para mejor disimularse
avian echado nueba como yeguacaporu avia muerto y que
chemboabaete avia ahogadose en el Rio y q yaguarobi venia huyendo de
los Portugueses. (TAÑO, 1635 In CORTESÃO, 1969: 107)
Para o religioso, os feiticeiros indígenas o excessivamente pecadores,
pois segundo a sua interpretação comem carne humana, unem-se para ir aos
povoados enganar os indígenas, mentem sobre seus destinos, representam o
demônio e ainda ousam se colocar como “batizadores”: “começaron a mudar los
nombres y a haçerse de su banda y a gustar de la fiesta de comer carne humana
haciendo mucho daño” (TAÑO, 1635 In CORTESÃO, 1969: 108). Essas
ressignificações da conduta dos indígenas compreendem as tentativas de
inserção da culpa no imaginário do indígena. Assim, após a descrição detalhada
do que o capitão havia lhe relatado o padre revela a real intenção da carta: “es
necesario sacarlos de aquí y llevarlos al Parana y S. Ignacio, porq asi lo piden los
indios diciendo q si se huyen an de volver a sus bellaquerias con ellos” (TAÑO,
1635 In CORTESÃO, 1969: 113).
87
Os religiosos descreviam, também, o feiticeiro indígena como ministro do
demônio e, por isso, “grande pregador de mentiras”. Não aceitavam a crença em
rituais para chuva, por exemplo. Os costumes tradicionais eram então
ressignificados e apresentados como mentiras indígenas, nos discursos dos
jesuítas.
As interpretações que os indígenas faziam dessa nova estavam,
também, inseridas nos casos identificados como blasfêmias. O padre Montoya
descreve um comportamento nativo que nomeia de falsidade:
Neçu, de sua parte e para mostrar-se sacerdote, conquanto falso,
revestiu-se dos paramentos litúrgicos do padre e com eles se apresentou
ao povo. E fez trazer em sua presença as crianças, nas quais tratou de
apagar com cerimônias bárbaras o caráter indelével, que elas pelo
batismo tinham impresso em suas almas. Raspou-lhes as pequenas
línguas, com que haviam saboreado o sal do espírito sapiencial. O
mesmo fez-lhes no peito e nas costas, para borrar os santos óleos, que
as tinham prevenido para a luta espiritual (MONTOYA, 1639 In 1982:
228).
A constância dessas práticas e a reações à conversão são repudiadas
pelos integrantes da Companhia de Jesus. Em outro relato, Montoya descreve o
comportamento de um mago: “parecia cristão quanto ao exterior, mas no interior
não passava de um demônio” (MONTOYA, 1639 In 1982: 208). Num terceiro
relato o mesmo padre diz: “[os magos] se opunham com o zelo de seus
mentirosos ensinamentos, rezando em suas casas todas as orações em alta voz e
tendo a seus próprios filhos como mestres, os quais haviam sido discípulos de
nossos padres” (MONTOYA, 1639 In 1982: 254).
88
As mentiras não eram, contudo, hábito projetado apenas pelos padres.
Segundo o documento de um padre não identificado, nota-se bem o registro da
dificuldade dos indígenas responsáveis pelo contato em acreditarem na
sinceridade da empresa jesuítica:
(...) el mas atrevido, interrumpiendo al P.
e
Roque que les avia comado
a hablar de la ley de Dios le dijo q calasse y no passasse mas adelante,
porque el era Xpiano y estava harto de oir aquellas cosas y q se
volviesse sin hablar mas, porque no le querian oir , y que volviendose a
sus companeros les dixo: yo conosco bien a estos Padres que son espias
de los españoles, embiados de ellos p.
a
explorar nras tierras con titulo de
nro bien y predicarmos a dios y luego los españoles se entran tras ellos a
hacernos servir y quitarnos la libertad, nuestras mugeres e hijos y
llevarselos. Yo que los he tratado los conosco mui bien; no los creais;
guardad vuestras tierras e hijos de ellos. (s/a, 1635 In CORTESÂO, 1969:
126)
A carta apresenta a preocupação do missionário em relação à influência
exercida pelos feiticeiros nos nativos da redução. Para o padre, estes indígenas
infiéis se diziam deuses e faziam rituais de danças em que ensinavam outros a
comerem carne humana. O mais grave para os religiosos é que os indígenas
estavam gostando. O padre Montoya sentencia: “A dureza destes feiticeiros é tão
grande, que mesmo com o passar de longo tempo abrandem a sua teimosia
(MONTOYA, 1639 In 1982: 255).
28
A “teimosia” refere-se a manutenção de valores
tradicionais dos nativos.
Em outro documento, o padre Diego de Boroa relata, também, sua
indignação em relação a postura dos curas indígenas de ignorar a cristã e
revela seu desejo de punição:
28
No item 3.4 deste capítulo, ver-secomo os padres percebem que apesar de tornarem-se adeptos da rotina
cristã, os indígenas continuam cultuando seus costumes.
89
(...) si los ministros de la ley de Dios nos enseñaran las cossas de ella
con el cuidado q los saçerdotes de nra falsa creencia nos enseñaban las
ceremonias y supersticiones de ella todos supieramos. y verdaderamente
yo me espanto como aviendo decretos tan apretados de los Stos
conçilios y mandandolo el tridentino con palabras tan graves em la sess.
13 c. 6 y en el can. 7 como los curas se atreven a no darsela si quiera
quando estan enfermos rompiendo con el q diran tan si fundam.to de los
q les pareçe mal verlos comulgar. los quales mereçian ser gravemente
reprehedidos de los predicadores del evangº. (BOROA, 1614 IN
CORTESÃO, 1969: 21)
Os feiticeiros eram ameaças constantes aos jesuítas - de insucesso da
consolidação da crença e de vida pelos enfrentamentos no cotidiano da missão.
As cartas, incansavelmente, relatam a aversão a estes: (...) entonces el hechicero
descubrio su mal pecho, e intencion dañada diciendo que no avia de ver a los Pes
por que eran sus enemigos, y le desacreditaban predicando cosas q no sabian (...)
y en sustando que el Dios criador de todas las cosas estaba en el cielo siendo el
(...) el verdadero Dios” (ROMERO, 1634 In CORTESÃO, 1969: 77).
A concepção simbólica era ignorada, sobrepondo suas verdades históricas
como toda versão religiosa. Repudiavam como eram repudiados por estes
indígenas. Assim a imagem do feiticeiro representava o conjunto de elementos
que deveriam ser negados pela vida colonial: “(...) outro hechicero que persuadio a
todos [...] y el Demonio se tenia illuso y enganado , o por engaños a los Indios
aunq. Supiese era mentira lo que afirmaba, diciendo que el se tranformaba en
tigre y que mataba y comia a todos (...)” (ROMERO, [1634] In CORTESÃO: 1969:
34).
O padre Montoya descreve um caso de um cacique endemoniado, segundo
o religioso tal condição o transformou em “pregador de mentiras” pelos povoados
90
vizinhos, “dizendo de si mesmo que era Deus”. Numa dessas pregações, conta o
jesuíta:
Foi ele visitar àquele cacique chamado Maracanan o qual preveniu a três
de seus parentes, para que o amarrassem. Saltou o mago de sua
embarcação e, posto o pé em terra, começou a pregar uma grande
arenga e, em voz muito elevada, como é costume antigo nestas bestas. A
matéria veio a ser porfiada estultícies, com que se fingem deuses. Depois
se dirigiu à casa do cacique e ali fez as costumadas saudações. Com
isso perguntou-lhe o cacique a propósito de quem era e a que vinha.
Respondeu ele: ‘- Eu sou o criador das coisas (todas), o que fertiliza os
campos e aquele que castiga, com diversas e molestas enfermidades,
aos que não crêem’. Então o cacique fez sinal aos três moços, para que
o amarrassem, mesmo que fosse apenas para breve tempo. É que ele se
defendeu por um bom tempo, dizendo-lhe que com sua saliva os havia de
matar: com o que lhes cuspia nos rostos. (MONTOYA, 1639 In 1982: 53)
Segundo o missionário, o perigo maior não era a conversão daquele bom
cacique, mas a divulgação de blasfêmias à doutrina cristã. O padre renega o fato
dos indígenas acreditarem em ritos e ressignifica as crenças guarani,
apresentando o demônio como interventor. Em outro relato, Montoya descreve
como o padre Francisco Dias e seu companheiro encontraram o que chamaram
de falso templo: “(...) descobriram um templo, em que eram honrados aqueles
ossos secos. Viram em sua volta muitas ermidas, nas quais se albergavam os que
iam àquela romaria, quase como se faz em novenas, pois o demônio tudo quer
imitar” (MONTOYA, 1639 In 1982: 118). Tais práticas faziam parte da cosmogonia
ameríndia, mas para os integrantes da Companhia de Jesus a tutela demoníaca
era incontestável.
Num relato de outro costume nativo, o padre apresenta o seu olhar: “Ao
ensejo da morte do marido, as mulheres se lançam duma altura de estado e
91
meio
29
, dando gritos, e as vezes chegam a morrer daqueles golpes ou saltos, ou
ficando aleijadas. Tem-nas o demônio retidas no engano, persuadindo-as de que
morrer o é coisa natural e comum a todos, mas ao que morre (...)(MONTOYA,
1639 In 1982: 56). A prática descrita faz parte dos ritos funerários dos Guarani,
não cabe aqui descrevê-lo, mas, entender como os vestígios de uma vida pagã
perpassam no discurso de negação.
Os indígenas acreditavam que “entrando algum veado no povoado e ‘não o
matando, vá morrer alguém daquele bairro ou quarteirão, por onde o animal
escapa’” (MONTOYA, 1639 In 1982: 56). Ou ainda, que o canto das aves
possibilitava adivinhações. Crenças indígenas ressignificadas e rechaçadas pelos
missionários.
Em outro relato, o mesmo religioso revela uma grande dificuldade da
empresa:
Estando a semana inteira o povoado fervendo de gente, somente aos
domingos, quando em voz de muitos toques de sinos queríamos juntar o
povo para o sermão e a missa, desaparecia todo o mundo. Buscamos
descobrir com cuidado a causa, para aplicar-lhe o remédio, mas não foi
possível encontrá-la. Isso, até que um moço revelou a um padre, sob
segredo não pequeno, que em três cerros havia três corpos de mortos,
os quais falavam e haviam dito aos índios que não dessem ouvidos à
pregação dos padres.
Afirmou o mesmo mo tê-los ouvido falar e falar mal a nosso respeito e
de nossa doutrina (...) era voz corrente terem ressuscitado esses três
índios, sendo que agora viviam em carne, do mesmo modo que em vida
antes de morrerem. (MONTOYA, 1639 In 1982: 117)
No mesmo episódio, o padre repudia o que nomeia de blasfêmia a cristã,
a falta à missa e a crença pagã na reencarnação. Percebe-se que além dos
29
Estatura ordinária de um homem.
92
comportamentos típicos da cultura amerídia, os religiosos queriam evitar a
dispersão dos indígenas em relação à rotina religiosa da redução. Em outra
descrição de padre Montoya, tem-se mais um exemplo: “Determinado índio de
certo povo não ia à missa nem nos dias de trabalho, nem nos dias de festa.
Perseverou nesse costume um ano inteiro (MONTOYA, 1639 In 1982: 115). O
relato continua contando como o indígena que não acompanhava o grupo a missa
começou a perceber a presença do demônio, ficando tomado pelo medo. Era o
princípio inicial para a inserção da culpa.
Outra prática que os religiosos tentaram banir da missão foi à poligamia.
Segundo padre Montoya, a vida cristã permitiu algumas modificações em tal
comportamento:
Conhecemos a alguns caciques, que possuíam até 15, 20 e 30 mulheres.
As do irmão falecido toma-as por vezes o irmão vivo, e isso acontece de
modo não muito comum. Neste sentido tiveram um respeito muito grande
às mães e irmãs, pois nem por pensamento tratam disso, por ser coisa
nefanda. E mesmo depois de feitos cristãos, tratando-se de parente em
qualquer grau, ainda que dispensável ou lícito, sem dispensa não
admitem por mulher, dizendo eles que é seu sangue. (MONTOYA, 1639
In 1982: 54)
A recusa de práticas distintas a cultura européia, bem como, a imposição de
valores e crenças europeus justificaram a educação exemplar nas Reduções
Jesuíticas. O jesuíta via-se como tutor dos nativos, como tal pretendia conduzir
suas ações com o objetivo de convertê-los ao cristianismo. Todavia, o mesmo
religioso revela algumas dificuldades da empresa jesuítica: “detinha-os a
93
inconstância e o desejo de viverem segundo sua maneira brutal. É que o fato de
se acharem carregado de mulheres, seu empecilho comum, arredava-os de sua
conversão” (MONTOYA, 1639 In 1982: 204).
O missionário apresenta sua boa conduta em oposição ao comportamento
desses indígenas. Segundo Montoya, os nativos:
Chamam-nos ‘Abaré”: o que quer dizer ‘homem segregado de Vênus por
outra, homem casto’ (...) E, mesmo que o vocábulo ‘Pay’, isto é ‘pai’, o
usurpassem os velhos, os magos e feiticeiros, honrando-se com ele, o de
Abaré nunca o admitiram. A razão de tal proceder parece-me clara a mim
pelo seguinte fato: - A virtude da virgindade, castidade e celibato eles a
ignoram de tal forma, que até, de preferência, a tivessem por infelicidade.
(MONTOYA, 1639 In 1982: 98)
Desta forma, os comportamentos dos padres eram valorizados nos relatos.
que esse tipo de educação permitia que os missionários tomassem alguns
cuidados durante este cotidiano religioso. Conforme descrição do padre Diogo
Ferrer: “(...) lo que generalmente estos Índios mas se espantam es que los P
es
no
dejan entrar a mujer ni muchacha em su casa, y luego añaden: esto no hazen los
Clerigos, por lo qual no llaman a los P
es
sino por el nombre de Tupamboyaeté, que
quiere dezir verdaderos siervos de Dios” (FERRER, 1633 In CORTESÃO, 1952:
38). O padre Montoya nomeia este cuidado de “honestidade sacerdotal”:
“tínhamos cuidado inicialmente em cercar um pequeno espaço com paus, para
impedir a entrada de mulheres em nossas casa: medida esta de que ficaram
tomados de admiração e espanto” (MONTOYA, 1639 In 1982: 59).
Entre os princípios cristãos de vida honesta estão inseridos não apenas a
monogamia, mas as relações abençoadas por esta doutrina. Assim, uniões não
94
“oficiais” eram chamadas de amancebamentos. Os missionários revelam as
dificuldades de inserção destes valores no modo de ser guarani: “Certo infiel, que
tinha duas mancebas, batizou-se e casou com uma delas. Ao cabo de três anos
pediu, porém, ao padre de casa-lo com a outra, porque somente tinha tomado
aquela ‘ad tempusou seja para algum tempo. Entendida a impossibilidade de tal
proceder, ele colheu a manceba e se refugiou no bosque” (MONTOYA, 1639 In
1982: 240). A alternativa apresentada pela empresa para essa prática era o
casamento: “é um costume casá-los ao terem idade suficiente, para que a
carência deste remédio não os prejudique” (MONTOYA, 1639 In 1982: 205).
As bebedeiras, também, eram repudiadas, não com mesmo fervor dos
rituais antropofágicos e como a figura do feiticeiro e do demônio, mas não
estavam entre os preceitos do bom cristão. Um dos relatos de bebedeiras está no
documento Situacion de la Reduccion de Los Angeles, de 1630.
(...) ya el que tenia autoridad entre ellos descensce a que nosotros
estamos con su juicio, sino ? Sus borracheras aunque estan mui furiosos
luego se humillan y sugetan de suerte que puede ya el (...) Ay entre ellos
algunos ministros que el demonio q llamamos echiceros suelen omo mui
viexos, son chupadores y curadores hablan con el demo por medio (s/a,
Caixa 14/ Doc 14-44)
30
Mesmo assim, são descritas como práticas regidas pelos feiticeiros e,
portanto, pertencentes aos rituais considerados demoníacos pelos missionários.
Um outro exemplo está no relato de padre Montoya sobre o comportamento dos
30
Carta catalogada em SANTOS, Maria Cristina. Xamanismo e Cura na Coleção De Angelis. Porto Alegre:
PUCRS, 2003. CD ROM.
95
indígenas responsáveis pelo martírio dos três missionários, este revela: “ao cheiro
de ‘vinho’ faziam algazarras e jogos, celebrando a morte daqueles varões
virtuosos” (MONTOYA, 1639 In 1982: 231). Montoya relata mais um caso de
bebedeira, este alertado pelo demônio. Diz ele que um certo indígena havia
ressuscitado para confessar-se de tal ato, pois na morte viu o demônio e este
queria levá-lo consigo por ser o nativo pecador. O religioso descreve a fala do
demônio: “‘não te confessaste bem, visto que há anos te embebedaste duas vezes
e nunca te acusaste dessa culpa’”. O nativo teria, então, respondido: “‘não me
confessei destes pecados, mas não foi por malícia e sim por esquecimento, e
assim Deus mos perdoou’” (MONTOYA, 1639 In 1982: 80-81). O relato termina
contando o que seria a divulgação por parte do indígena das maravilhas vistas no
paraíso e do seu desejo de morrer para voltar a vê-las. Conforme o documento,
após seu arrependimento o indígena adverte aos outros a seriedade da confissão
e do bom exame para evitar problemas futuros.
Antes da aplicação de castigos, contudo, os religiosos necessitavam
convencê-los de seus erros. Os sermões realizados nestes povoados serviriam de
instrumento para tal pretensão.
3.2 Os sermões
Na tentativa de construir um povoado reunido pela crença cristã, os
missionários estabeleceram entre as normas de convivência um momento
especial. Momento, este, dedicado à limpeza de consciência e a consolidação de
suas funções como mediadores da nova fé. Desta forma, utilizando-se da
96
formação religiosa faziam longas explanações para o convencimento dos gentios
de noções como bem e mal, estando inserida neste processo os hábitos indígenas
em oposição aos costumes cristãos. Para o padre Montoya, os “sermões tinham o
endereço de que os índios se guardassem de ouvir e ver os demônios, ainda que
a curiosidade os incitasse a vê-los” (MONTOYA, 1639 In 1982: 83). Assim,
propunha a idéia de unidade para os nativos, direcionando suas práticas para a
negação dos valores culturais não passíveis de ressignificação. Essa união
apresentavasse, por exemplo, no relato de sermões festivos com festa de música,
como o que aconteceu em comemoração a fundação da Congregação Mariana
31
,
em que “comungando nesse dia os congregado: o que não deixou de produzir
pouca e santa emulação em todo o povo” (MONTOYA, 1639 In 1982: 167).
Segundo Janice Theodoro:
Todas as informações recolhidas entre os religiosos e leigos que
conviveram cotidianamente com os indígenas nos indicam que após os
conflitos iniciais existiu um tendência à incorporação de alguns hábitos
europeus. Especialmente os comportamentos rituais eram imitados ao
mesmo tempo em que eram introduzidos na língua , na música e na
pintura de acordo com as tradições européias. Esses exercícios
concomitantes fizeram com que o indígena compreendesse qual era a
razão ordenadora do pensamento europeu e os seus desvios. Essa
compreensão não o levava, obrigatoriamente, à negação de seus
padrões culturais. (THEODORO, 1992: 103)
31
Era um grupo de indígenas escolhidos pelo religioso por serem os “mais adiantados em virtude” para
contribuir na persuasão do restante dos nativos. Segundo Montoya: “Comparecem eles à sua congregação
com toda a diligência, tem a sua alocução religiosa todas as tardes dominicais e por vezes conferências
especiais, presididas por um padre, sobre como aproveitar-se na virtude. Vão à Comunhão com mais
freqüência que o restante povo. Em suas confissões, não vendo o confessar pecado grave e perguntando ele se
acaso caíram nalgum, respondem que pertencem à congregação e que seria coisa monstruosa a de tais
pessoas fazerem pecados” (MONTOYA, 1639 In 1982: 167)
97
Novas regras de convívio são inseridas não bastando à rotina de
trabalhos e determinação do que era bom comportamento os indígenas teriam
que conviver nos sermões e nas missas ministradas pelos religiosos. O padre
Romero descreve como se aliam esse conjunto de princípios que deveriam ser
seguidos por todos:
A los efermos hazia su comida y se la repartia con mucho amor
acudiendoles en lo temporal y espiritual con mucha pontualidad y
cuidado, el qual era necessario tener y andar muy bien de los pies todo el
dia, visitando, curando y sacramentando los efermos porque entonces se
coje lo que en todo el año se siembra con tantas doctrinas y sermones
como les hazemos: y se echa bien de ver el fruto a ojos vistos con la
buena y dichosa muerte que tienen muchos o casi todos los que muerem
Xpianos, en especial aquellos que frequentam mas la Yglesia y oyen con
mas cuydado la palabra de Dios. (ROMERO, 1634 In CORTESÃO, 1969:
57)
As tentativas de inserção destes hábitos possibilitavam aos religiosos
perceber as reações e os comportamentos indígenas diante da exposição do Deus
cristão. As respostas positivas dos nativos o valorizadas por Montoya em um
dos casos descrito em Conquista Espiritual: “Sua ternura [do povo das reduções]
em ouvir a Paixão (de Cristo) é tanta, que não raras vezes nos sucede sermos
atalhados pelas lágrimas nascidas em s das do povo e assim pormos fim ao
sermão sem dá-lo ao discurso (das mesmas)” (MONTOYA, 1639 In 1982: 192).
As noções de medo, pecado, arrependimento, culpa e purificação faziam
parte, sobretudo, desse estágio da conversão.
A culpa aparece, por exemplo, em outro relato do mesmo padre:
Certo mo achou-se numa situação de ver coisas obscenas. Lembrou-
se então de ter ouvido num sermão a explicação daquelas palavras de
98
Cristo, Nosso Senhor:
- (...) Se tua vista te escandalizar, arranca-a’ (Mateus 5, 29 e Marcos 9,
46).
Nisso feriu-se os olhos com dedos: do que esteve doente por alguns dias.
Sendo repreendido de tal ação por um padre, respondeu-lhe:‘Oxa
perdesse eu ambos os olhos, antes que ofenda a Deus’ (MONTOYA,
1639 In 1982: 232).
Além de instrumentos de divulgação do trabalho dos religiosos, os relatos
de sermões confirmam as alterações comportamentais dos indígenas,
revelando atos de fervor dos nativos. Num outro episódio, padre Montoya
revela, ainda, como o sermão atingiu seu objetivo contra a poligamia: “Um deles
[caciques] chegou a ouvir um sermão e ficou ferido da palavra de Deus. Apenas
o pregador baixara do púlpito, seguiu ele o padre, levando consigo seis
mancebas” (MONTOYA, 1639 In 1982: 75). Segundo o padre, o indígena havia
pedido para que o religioso escolhesse o destino das mulheres porque ele
como liderança desejava dar bom exemplo.
Em outro documento, o mesmo religioso relata o sermão do padre Simão
Masseta que desejava alertar os indígenas dos perigos de crerem em sacerdotes
de outras Ordens. Disse padre Simão: “‘Filhos, não vos impressioneis ou aflijais
ante os trabalhos que nos ameaçam! É seu fautor o demônio que, por meio de
seus ministros, quer cortar o fio que segurais de vossa salvação. Bem depressa
vão eles pagar com a morte seu atrevimento: com o que tudo ficará em paz’”
(MASSETA apud MONTOYA, 1639 In 1982: 77). Segundo Montoya, a profecia se
cumpriu com as mortes do cacique Roque e de seus companheiros, que apoiavam
o outro sacerdote. Deste modo, construíam a imagem do Deus cristão, que
99
protege e castiga. Os jesuítas reivindicavam mais do que fidelidade a doutrina,
lealdade a Companhia de Jesus.Conforme Janice Theodoro:
Essas experiências levaram o indígena a compreender a cultura européia
através de conjuntos de significação ordenados: hierarquizou os valores
cristãos dentro de um sistema, os valores anticristãos dentro de outro
sistema, ordenou os valores pagãos dentro de outro e ordenou o uso da
palavra dentro de uma determinada trama retórica. (THEODORO, 1992:
103)
Num dos casos que aparece na documentação o sermão é prescrito como
remédio para curar os males entre indígenas nomeados de infiéis: “Traté a los
caciques y capitanes un dia a la tarde del remedio destas bellaquerias y en las
doctrinas y sermones començamos a deshaçer sus mentiras, y les dixe q si ellos
no ponian remedio o no se atrebian llamaria la gente de las otras Reducçiones”
(TAÑO, 1635 In CORTESÃO, 1969: 107). Sendo assim, os religiosos ameaçam a
liderança dos caciques e capitães ao chamar gente de outras reduções para
assistir os sermões pois estabeleceriam alianças antes realizadas apenas entre os
nativos.
Os missionários acreditavam realmente estar livrando os indígenas de algo
maléfico. Assim, os sermões se apresentavam como verdadeiras receitas de boa
vida (cristã). Em Conquista Espiritual, o padre Montoya descreve as ameaças de
Guirabera, que dizia que “(...) dava os tempos como lhe aprazia; que criava
homens ‘de novo’ e conferia a morte a outros, sem que ao ensejo destas nossas
diligências fossem de importância”. O religioso, então, reage:
100
Disse-lhe quão ignorante ele era, pois, sendo índio como os demais, o
qual bebia, comia e tinha as mesmas necessidades das bestas quanto a
comer, dormir e outras tão comuns, bem como esquecendo-se de si
mesmo e de seu Criador, intitulava-se Deus. Assim sendo, que se
reconhecesse a si mesmo como homem e ainda menos, pois possuía
menos juízo que todos, pelo fato de inventar tais loucuras. Mostrou ouvir-
me de boa vontade e, negando tudo que a seu respeito a fama havia
propalado, convidou-nos a que fôssemos a seu povo, onde desejava
regalar-nos. (MONTOYA, 1639 In 1982: 139)
Uma conversão que têm caráter de sermão, pois trata-se de um ato público
para persuadir um feiticeiro que influenciava o restante dos nativos. Ainda na
Conquista Espiritual, Montoya registra sobre sua tentativa de fazer com que os
indígenas percebessem que cultuavam uma crença falsa: “Muito conveniente era
fazer-se alguma boa demonstração pública, para confusão dos sacerdotes desses
ídolos e desengano dos povos, porque não somente esse, mas também os
demais estavam no erro” (MONTOYA, 1639 In 1982: 121). Essa era a
intencionalidade de um sermão. O padre descreve, então, tal prática: “Reunida
toda essa gente na igreja, fez-se-lhe um sermão em que se tratou do verdadeiro
Deus, da adoração que lhe é devida da parte das criaturas, e dos enganos do
demônio, de quão pouco possa, e das mentiras e ardis dos magos” (MONTOYA,
1639 In 1982: 121). Finalizado o sermão, o religioso relata que um padre iniciou
uma leitura em latim incitando os nativos a fazerem um ato de contrição. Montoya
conta que os indígenas “estavam todos de joelhos, tendo as mãos postas e fixos
os olhos no chão
32
, seguindo as recomendações do dito jesuíta realizaram um ato
de fervor a doutrina cristã e pesar pelo seu erro.
32
A citação já foi referida na página 34 deste, mas fez-se relevante repeti-la, pois trata-se de uma outra
análise.
101
A educação exemplar dos jesuítas tinha o propósito de anunciar
publicamente os erros, mas também de dar exemplos de boa conduta. O bom
comportamento estava inserido na obediência das regras de convívio da redução
e no cultivo da nova fé enquanto as crenças guarani eram desmerecidas ou
ressignificadas pelas pregações dos missionários. O padre Romero descreve, um
caso de comportamento cristão coletivo dos nativos:
traya el P.
e
Porras en una valsa muy bien compuesta y colocada en un
altar la Ymagen de Nra S.
a
que avia sudado en aquella reduccion, venian
con ella todos los muchachos y cantores de la reduccion, haziendole
fiesta y cantando varios romances y chançonetas, pidiendo a la virgen
misericordia y buen suceso en aquel viage y la Virgen como madre
piadosa se lo dio tan feliz que no se anegó ni pereció nadie. (ROMERO,
1634 In CORTESÃO, 1969: 48)
O religioso conta como os nativos acompanharam os padres na mudança
de local da Redução de Acarai, na chegada, realizaram atos de veneração a
Virgem cristã.
Os resultados dessas pregações coletivas e exemplos de boa conduta são
apresentados nas cartas aos superiores da Companhia de Jesus:
A otro dia que se contaron 12 de marzo les baptize las criaturas,
matricule los cien Yndios dichos y treinta caziques de fama sin otros
muchos de menos nombre que avia en aquella comarca. A la tarde les
lebante la cruz con la solemnidad que otras veces adorandola todos con
gran devocion y afeto. (ROMERO, 1634 In CORTESÃO, 1969: 37)
A conversão coletiva tem um caráter especial, pois identifica a unidade pela
crença, algo muito desejado pelos religiosos. Entretanto, trata-se de uma tradução
religiosa do comportamento nativo. O autor reforça o papel dos jesuítas de
102
condutor a salvação da alma indígena. O jesuíta como autor “associa o nativo a si
mesmo, pensando que seu objeto faz as mesmas associações que ele isto é,
que o nativo pensa como ele (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 119). Entretanto,
todo o acesso ao nativo se através desse discurso. Resta, percebermos que se
trata de uma “bifurcação da natureza do outro” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:
119), isto é, uma questão de ponto de vista.
Em outra análise sobre o comportamento nativo, padre Diego de Boroa
confirma a perspectiva cristã de salvação: “con la fuerça de la palabra de Dios y lo
q han ydo oyendo en los sermones (q tienen todos los domingos y fiestas y aun la
quaresma passada los mas dias) ellos mesmos se han movido digo los q tenian
neçessidad a yr poniendo remedio en suas almas” (BOROA [1614] In:
CORTESÃO, 1952: 15).
Mesmo com esse convívio construído, o jesuíta espanta-se com a
volubilidade do indígena que dissimula o arrependimento e frauda a confissão. Os
sermões passam a servir como instrumentos de persuasão para os indígenas
abandonarem sua cosmogonia. Os missionários acreditam que em determinado
momento os indígenas tornar-se-iam conscientes de suas impurezas. Essa
consciência pretendida pelos jesuítas seria a consolidação da inserção da culpa
no imaginário indígena.
Pero en lo q mas conato se ha puesto es en enseñarles como se han de
confessar bien a q ayudo mucho el buen P.e Seña con diversas platicas q
destos les hiço y despues aca se han hecho otras y no sin fructo,
remediandose muchas almas, muy rematadas, han se hecho no pocas
confessiones generales anssi de los q querian entablar nueva vida y
enmendar quentas erradas y confessiones mal hechas de muchos años,
como de otros q nunca se avian confessado en su vida. y nro S.
r
les ha
103
dado mucha luz de la virtud destes Sto Sacramento acudiendo entre año
a confessarse ellos mesmos con mucho afecto. (BOROA [1614] In:
CORTESÃO, 1952: 15-16)
Quanto às enfermidades do corpo eram, segundo o mesmo jesuíta, sinais
de uma alma doente. Uma aproximação/conhecimento/utilização da cosmologia
guarani.
(...) se ha acudido al remedio de sus cuerpos, al de sus almas, como
cossa mas prinçipal. (...) es neçessario administrarles los Sacram.
tos
nro
S
r
ha hecho un grande Agosto desta mission. (...) cassi todos nos dejan
de su salvaçion. (...) resplandeçe mucho la infinita misericordia de aquel
buen S.
r
q no quiere la muerte del pecador sino q se convierta y viva.
(BOROA [1614] In: CORTESÃO, 1952: 17)
Segundo o discurso dos jesuítas, a alternativa dos indígenas era aceitar a
tutela dos missionários, pois a vida na redução pressupunha a mediação religiosa.
Os sermões serviam para dar sentido aos nativos de sua própria cultura. O relato
das explanações indígenas de confirmação da doutrina cristã faziam parte do
discurso religioso de persuasão coletiva. Num relato do que seria um sermão
indígena, uma nativa que pertencia a Congregação Mariana ou de Nossa Senhora
revela suas visões de inferno e paraíso após ter morrido e logo em seguida dado
sinal de vida. O padre Montoya a chama de “apóstola de sua gente” pois suas
descrições comoveram o povo que “(...) com velas acesas e com lágrima
terníssimas nos olhos” ouviu a boa moça. “Esteve ela falando durante dez horas: o
que me provocou não pouca admiração, a saber, o vê-la de contínuo pregando e
anunciando o Reino de Deus”. O padre relata que após sua morte, na celebração
104
da Semana Santa, “não ficou homem, mulher e criança, sem confessar-se”. O
religioso afirma, ainda, que esta mulher teve uma “vida inculpada ou inocente e,
por isso, teve uma boa morte (MONTOYA, 1639 In 1982: 176-177). Todavia, os
discursos de conversão conviviam com reações indígenas a doutrina. De modo
que em casos extremos de “inconstância”, a infidelidade seria tratada tanto com a
confissão quanto com o “remédio” da punição.
3.3 Os castigos
As explanações públicas sobre a necessidade de mudança de hábito eram
tentativas de conversões dos nativos a doutrina cristã, no entanto, muitos
indígenas continuaram a viver na redução conforme seus valores tradicionais. Em
alguns casos, quando os religiosos percebiam que certos comportamentos
influenciavam mais nativos ocorreu a aplicação de castigos.
As punições visavam demonstrar que o caminho estava errado. A aplicação
de castigos exemplares era uma forma de eliminar a presença maligna de uma
determinada alma, sem características de tortura ou raiva, pois é pertinente
lembrar que:
o sistema penal nunca foi rigoroso em excesso, o que foi extraordinário
para uma época em que as punições, mesmo na Europa, eram ainda
violentas. (...) Só um sistema penal não rigoroso pode explicar como
apenas dois padres podiam controlar uma Missão inteira. A disciplina (...)
era mais rigorosa do ponto de vista coletivo, social, do que
individualmente, quando era pouco exigente. (KERN, 1982:59)
105
Segundo os jesuítas o objetivo do castigo era ser mais barulhento do que
sangrento. Necessitavam mostrar a todos que tais práticas eram impróprias para
um bom cristão. As punições eram em público. Nos documentos, a confirmação da
doutrina cristã como salvadora do novo mundo aparece como alternativa para a
anular reações indígenas. Os ameríndios seriam introduzidos à civilidade. Na
concepção religiosa, a “murta” seria infinitamente aparada (VIVEIROS DE
CASTRO, 1992).
Um caso de punição, referindo-se a blasfêmias contra Deus e a cristã, é
relatado na carta do padre Franscisco Dias Taño para o Superir do Tape.
Entretanto, nesta situação quem realiza o castigo é um cacique em defesa da
nova crença: “Assi como llegó començó diçiendo que era hijo del sol y q el sol avia
bajado a hablarle y a deçirle q reçebia por dios (...) fue forçoso darle un tapaboca
para haçerle a callar” (TAÑO, 1635 In CORTESÃO, 1969: 109). O padre descreve,
então, a reação dos indígenas ao ver a cena: “començaron a ultrajar y a tirar de la
guasca en q venia atacado y a correr tirando del dando con el en tierra a darle
coçes y a llevarlo arrastrando y a picarle con flechas que si no voy corriendo lo
matan” (TAÑO, 1635 In CORTESÃO, 1969: 109). O religioso revela seu olhar
sobre o acontecido:
Pero nro S.
r
con su singular Prov.
a
lo dispuso de suerte q los bellacos
quedan castigados y esparsidos y ahuyentados, taladas las comidas,
quemados los pueblos sin q ning.
o
de los nros peligrase, y confio en nro
S.
r
q con esto an de conoçer su mal y se an de reduçir en tiempo de
comida porq qriendo dios nro S.
r
a de aver mucho el año q viene según
an hecho y haçen de chacaras q es el principal fuerte q se puede haçer
agora porq para otra cosa no ay comida, y para trabajar en sus chacaras
buscan mil miserias y nosotros les damos q sembrar. (TAÑO, 1635 In
CORTESÃO, 1969: 112)
106
O missionário relata, no entanto, que apesar de resolvido o problema o que
nomeia de inconstância desses indígenas criaria novos. Em caso semelhante de
blasfêmia descrito por padre Montoya, um cacique também auxiliaria na aplicação
do castigo. O religioso descreve a fala do indígena cristão:
‘Eu quero tirar a prova, se é verdade o que dizes ou se dás a vida a
outrem, e vê-lo-ei, se escapares da morte, que agora tenho de dar-te
Fê-lo, pois conduzir ao rio e, colocado na correnteza dele com uma
grande pedra atada no pescoço, para lá o fez jogar, sendo onde o
desventurado terminou sua vida infeliz. (MONTOYA, 1639 In 1982: 53)
Conforme relato, o indígena descrito como pecador intitulava-se de
“criador”, “aquele que castiga”, “o que enfermidades” justificando a punição.
Assim, foi testado em suas habilidades. De fato, os jesuítas sentiam-se
ameaçados em muitos aspectos. Além da figura constante dos feiticeiros, estes
indígenas estabelecem aliança com outros colonizadores e neste caso, para os
religiosos da Companhia de Jesus, também merecem ser castigados. No
episódio a seguir, contudo, a imagem da culpa e a necessidade de justiça
exemplar do Criador precedem o castigo físico. É o que os padres nomeiam de
castigo divino, trata-se sobretudo dos perigos diários da América colonial. O
padre revela que o cacique Roque e seus companheiros tiveram morte por
desobediência, pois apoiaram um sacerdote de Outra ordem. O castigo físico
aparece na forma exemplar do sepultamento:
107
(...) adoeceram numa segunda-feira e na sexta-feira depois se
encontravam enterrados, e com eles esses alvorotos.
Para que os demais ficassem patentes de tal exemplo, o padre os
sepultou no meio da igreja e em três covas unidas, pondo um sinal sobre
suas tumbas. Com isso os da parcialidade deles reconciliaram-se com os
padres (...) (MONTOYA, 1639 In 1982: 78)
Segundo os relatos, a postura de conservação de costumes tradicionais
destes feiticeiros aborrecia os jesuítas. Os padres variavam, contudo, suas
ações de combate a tais práticas. A punição poderia vir de forma pacífica por
um simples jogo na festa de Natal:
Chegou a festa do Santo Natal e, porque se juntaram naquele povoado
muitos grupos de índios procedentes dos comarcões, julguei azada essa
ocasião para, com pretextos de regozijo, destronizar aquele demônio e
índio pernicioso. Fi-lo chamar, disse-lhe quão solene era o dia e que ele
mesmo, com a sua pessoa, havia de alegrar-se a partir de um jogo em
uso no meio dos cristãos. Era-o de que lhe haviam de vendar os olhos e,
deste jeito conseguisse agarrar alguém, dar-lhe-ia um prêmio especial.
(...) Começou a brincadeira, propiciando os moços a adulá-lo, a imitar-lhe
seu modo desajeitado de andar, a puxar-lhe a roupa, dar-lhe golpes e
empurrões, até que dessem com ele por terra.
O pobre homem, empenhado pela cobiça de alcançar o prêmio,
esforçava-se nisso de agarrar a alguém.
Os circunstantes ficaram tomados de pasmo, ao verem seu deus
escarnecido de tal forma. (...) desfazendo-se do respeito e temor tido
àquele monstro, com grande fúria investiram contra ele (...) (MONTOYA,
1639 In 1982: 165)
Conforme o relato, o castigo de um nativo que se chamava de criador de
todas as coisas consistiu num ato de desmoralização pública, a ponto de seus
companheiros o repudiarem. O religioso revela, em outro relato, como castigou um
desses magos: “Fi-lo castigar e o obriguei a frequentar a doutrina como os
meninos, onde chegou a aprender o necessário. Adoeceu, porém, em breve e,
108
gastando eu com ele preciosos instantes para instruí-lo, veio a morrer com sinais
de salvação eterna(MONTOYA, 1639 In 1982: 217). Para o padre, a morte após
a conversão foi a salvação da alma desse indígena. Assim, sucessivos casos de
castigos a feiticeiros são citados.
A crença que os Guarani tinham no sobrenatural passa a ser negada a
partir do controle “educativo” dos padres. Segundo eles, tratavam-se de punições
corretivas. Os castigos seriam, apenas, para divulgar o comportamento cristão em
oposição ao costume tradicionalmente Guarani, sendo assim, apresentam-se de
forma branda. Como no relato da punição abaixo:
Avisó desto al P
e
Salazar un muchacho de casa, diziendo q mucha gente
concurria a venerar al Demonio y que muchos de los cantores tenian con
el ojeriza porque les dezia no creyessen al Demonio sino que siguissen el
dicho de los P.
e
(...) rogandole hiziesse una prática a los cantores para
quitarles de aquel error (...) Para obviar todo esto fue el P.
e
P.
o
Alvarez a
la choça donde esto pasaba y hal que aquella noche avia estado el
demonio alli (...) Quemo el P.
e
la choza y castigo blandamente al
muchacho porque divulgaba aquello con lo qual no se o mas de
aquella materia, huyendo el demonio por verse descubierto (ROMERO,
1634 In CORTESÃO, 1969: 54)
Em alguns relatos de punições os religiosos não descrevem como ocorreu a
aplicação da pena. O que importa para este estudo, todavia, é que os elementos
que constituem a culpa para a doutrina cristã são aplicados pelos religiosos.
Segundo relato de um caso ocorrido da Redução de Corpus Christi, por exemplo,
o padre descreve que um mago não quis chamá-lo para sua mãe e sua mulher
receberem a extrema unção. Conforme o documento, morreram sem a benção
cristã. O missionário, então, sentencia: “A ele aplicou-se-lhe então um castigo
109
salutar” (MONTOYA, 1639 In 1982: 208). Ou ainda, quando o religioso descreve
como o indígena Neçu participou do martírio de três padres e, por isso, seria
punido pelos indígenas convertidos: “Convocaram-se os povos para o castigo.
Sendo exemplar o o foi pouco para Neçu, que se viu obrigado a fugir aos
bosques (...)” (MONTOYA, 1639 In 1982: 230).
Na narrativa intitulada “O castigo imposto aos parricidas” de outro martírio,
desta vez do padre Cristovão de Mendonça, Montoya descreve: “fizeram os
nossos uma matança muito cruel, sendo que entre eles morreram todos os que
haviam martirizado o padre” (MONTOYA, 1639 In 1982: 266). Segundo o jesuíta,
entre os indígenas convertidos não houve baixas.
Ao projetarem comportamentos cristãos aos ameríndios negam alguns
elementos de sua cultura sem que para isso tivessem a concordância dos nativos.
Deste modo, os padres temiam por suas vidas e por isso mantinham nas cartas
seus pedidos de auxilio. Em relato de um conflito entre espanhóis, indígenas
nomeados de infiéis e nativos convertidos, o padre Montoya revela seu desejo de
punição aos “infiéis” que teriam a intenção de matá-lo. E assim foi feito: “Fez-se
assim, e a sentença foi a de que dois deles, que eram cacique, se enforcassem
(MONTOYA, 1639 In 1982: 135)
Há, também, punições que combatem o erro contra a doutrina cristã.
Segundo os relatos, os caciques convertidos tornam-se grandes aliados do
cristianismo: “Tinha cometido um deles certo delito, e castigaram-no os caciques,
para que confessasse, mas com tenacidade o negava. Veio ter com ele o padre,
110
rogando-lhe que o confessasse, porque convinha isso ao bem público”
(MONTOYA, 1639 In 1982: 213). Para o indígena, a confissão não era valor
cultural relevante, sendo assim, não havia como apresentar tal comportamento. A
noção de pecado ocidental não pertencia ao seu sistema de crenças, não
permitindo que este indígena aceitasse a conversão imediata. Segundo o padre,
mesmo assim, converteu-se.
As práticas sexuais, também, não eram aceitas pelos jesuítas. A nudez, a
poligamia e outras eram repudiadas pelos missionários, pois faziam parte do
obscurantismo dos pecadores. Na Carta ânua das reduções do Paraná e Uruguai,
de 1661, três jovens pegos em práticas obscuras são açoitados em peregrinação
entre os povoados mais próximos. O religioso anuncia em voz alta o crime,
ameaçando queimá-los numa fogueira. O resultado, segundo o jesuíta, é uma
seqüência de ações dos Guarani combatendo tal pecado, alguns pedindo para
serem açoitados pelos padres, outros açoitando a si ou aos filhos praticantes ou
não da prática condenada.
Em outro documento de padre Montoya, a descrição do castigo imposto
pelo cacique Roque ao feiticeiro Miguel, por sua “insistência” em ser poligâmico e
por isso ter ameaçado os padres. O cacique teria dito: “Não atire ninguém com
flecha! Comecem eles, pois se começarem, darei cabo deles! Porque a sem-
vergonhice deste eu vou castigar!” Conforme relato, o indígena nomeado de
pecador foi surrado pelo cacique em público e “vendo tão acolhida, o pobre do
Miguel gritou aos seus dizendo: ‘Voltemos, voltemos!’”. O episódio finaliza
111
contando a fuga do feiticeiro de camisola, pois perdeu sua “galas” e suas armas. E
com “um bastão na mão como um penitente” o indígena chega no local em que os
padres estão e “de joelhos e mãos juntas pede perdão e amparo”, afirmando:
“Deus castigou minha soberba” (MONTOYA, 1639 In 1982: 65).
Em mais uma descrição do padre Montoya, este revela que o sucesso da
missão é tanto que os próprios nativos castigariam “os de vida desonesta”:
Se alguém se descobriu algum abuso na castidade, o cuidado e zelo dos
caciques, pais de família e alguacis (guardas públicos), põe logo a isso
um remédio eficaz com justiça exemplar. Rondam eles de noite no
povoado e, se apanham alguém suspeito, corrigem-no. O
amancebamento não se conhece nem por imaginação, porque seria seu
castigo o desterro perpétuo. (MONTOYA, 1639 In 1982: 192)
Entre os casos de punições encontram-se, também, as solicitações
indígenas de castigo. Para o religioso, são sinais de boa conduta, pois
apresentam as noções de pecado e arrependimento. Segundo padre Romero,
os indígenas da Redução de São Nicolau de Piratini:
No consienten que aya vicios y pecados y por esso sin tener respecto
unos a otros en viendo el pecado luego al punto avisan dello al P
e
para
que lo castigue que es cosa singular y efecto sin duda de la gracia que
reciben q.
do
se hazen Xpianos, porque antes en su infidelidad era notable
el secreto que guardaban en sus cosas. (ROMERO, 1634 In
CORTESÃO, 1969: 60)
Os exames de consciência fazem parte dos Santos exercícios. Em outro
relato, padre Montoya relata o comportamento de um nativo que temendo pecar
112
pedia para ser castrado: “Um moço virtuoso, movido pelas práticas dos padres
com respeito à castidade e aceso de seu amor, pediu com grande instância a eles
que o fizesse castrar. Embora edificados à vista de seu fervor, deram-lhe a
entender, contudo, que isso não era lícito, ensinando-lhe ao mesmo tempo como
devia portar-se para ser casto” (MONTOYA, 1639 In 1982: 251). Os padres como
mediadores, sentem-se aptos a dar limites para as punições e penitências
impostas pela doutrina cristã. O não desejo de pecar pressupunha a consciência
indígena de erro cristão, conforme a narrativa tenta exemplificar.
Outro caso de indígena “solicitando castigos” é descrito por padre Montoya:
(...) solicitou a seu pai que com a força o açoitasse, pois com isto sairia
dele aquela besta. O amor paterno fê-lo rejeitar semelhante ação, mas a
mãe, julgando bom o remédio, agarrou umas cordas e começou a flagelar
o filho. Ao mesmo tempo pedia-lhe este que ela batesse com energia, e
ao demônio ordenava que saísse. Por fim, depois de várias demandas e
respostas saiu, deixando moído o pobre do rapaz. (...) (MONTOYA, 1639
In 1982: 182-183)
Segundo o documento, o nativo de “vida correta com exame de
consciência pede para ser açoitado, pois manteve contato com o demônio. O
registro projeta novamente a consciência de valores cristãos entre os nativos.
Episódio semelhante é descrito numa carta sem autor. Neste caso, contudo, o
próprio nativo faz uso do açoite:
Quedo tan atemorisado del demonio que aunque estava mui flaco se
levanto de su cama y cogio un asote y se fue a la puerta de la Yglesia
que estava alli serca y se començo açotar fuertem.te sintiolo uno de su
casa y lo fue a traer otra vez a la cama con que a quedado bien
113
enseñado y cuidadoso de su salvasion. (s/a, [1640] CORTESÃO, 1969:
211)
Segundo a empresa, os castigos serviam para a negação de costumes
tradicionais da cultura guarani e, conseqüentemente, para adaptar os indígenas a
doutrina cristã a partir da inserção das noções de pecado ocidental e culpa cristã.
Os relatos religiosos prestam-se, contudo, a confirmação dessas ressignificações
comportamentais dos nativos. Em contraponto, “a perspectiva ameríndia não é
estática!”
33
Apesar disso, as traduções jesuíticas de suas atitudes, talvez, não
tenham compreendido que o ponto de vista religioso: “(...) consiste em negar que
outros corpos tenham a mesma alma; [enquanto que] o ameríndio, em duvidar que
outras almas tenham o mesmo corpo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 381). Deste
modo, os jesuítas:
(...) foram hábeis na composição de metáforas capazes de transformar e
comprimir a realidade americana no texto bíblico, combinando situações
similares narradas pelos indígenas nos seus mitos de fundação a
citações do Velho e do Novo Testamento. Este exercício de aproximação
representou para o indígena a compreensão de convenções lingüísticas.
Assim, tornaram-se capazes de fornecer ao interlocutor europeu um eixo
do que deveria ser considerado como base para uma memória crioula. O
‘resto’ do acervo cultural indígena, impossível de ser traduzido, com seu
amplo universo de significações, poderia ser eliminado caso fossem
destruídos todos os indígenas detentores de uma língua capaz de conter
o conhecimento ancestral destas comunidades índias, o que, felizmente,
nem sempre ocorreu. (THEODORO, 1992: 91-92)
3.4 As reações indígenas: dissimulação, fuga ou conversão?
33
Assim, como a do jesuíta também se transforma. Adinâmica interna das culturas não pode ser esquecida.
114
No discurso de consolidação da missão, a lógica da culpabilidade institui-se
nas descrições das atitudes indígenas frente às tentativas de conversão. Após a
exposição de explanações públicas e punições, as cartas jesuíticas privilegiam os
relatos de alterações comportamentais ou reações dos ameríndios à doutrina
cristã. Um mesmo documento apresenta todos esses elementos constitutivos da
construção de pecado e culpa. A dicotomia estabelecia-se entre maus e bons
cristãos.
O olhar religioso sobre a cultura local percebia esses impedimentos como
possibilidade de desconstrução de ritos e mitos guarani, projetando
ressignificações destes para o convencimento dos nativos. Numa das narrativas
sobre as crenças guarani, padre Montoya relata o temor que os indígenas
possuíam dos sapos, pois acreditavam que sua presença anunciava a morte de
alguém. O religioso descreve que numa viagem de dois dias ouviu-se o ruído
desses animais. Assim, observou o padre: “Angustiaram-se os índios, se bem que,
como fossem cristãos conquanto recentes, dissimulassem a sua pena em sinal
de respeito a mim” (MONTOYA, 1639 In 1982: 57). O episódio apresenta um
comportamento de nativos que apesar do convívio com o religioso mantinham
suas crenças, refutadas pela doutrina. Num caso semelhante, também descrito
por Montoya, percebe-se um registro mais ostensivo de tal atitude:
(...) E quando enterrávamos os cristãos na terra, acudia de jeito muito
dissimulado uma velhinha, munida duma peneira assaz curiosa e
pequena, e, da mesma forma velada ou fingida, agitava a tal de peneira
pela sepultura, como se tirasse qualquer coisa. À vista disso diziam os
índios que com isso tiravam a alma do defunto, para ela não padecer
enterrada com seu corpo. (MONTOYA, 1639 In 1982: 56)
115
Para os religiosos, a permanência das crenças tradicionais guarani não
permitiam a valorização aos dogmas cristãos, sobretudo, por sustentarem a
mediação dos indígenas mais velhos. O mesmo jesuíta relata sua preocupação
em relação a estes nativos: “(...) um deles [feiticeiros] o obstinado e cabeçudo
que, embora se fizesse cristão, sempre continuou a ser ministro do demônio”
(MONTOYA, 1639 In 1982: 209). A manutenção dos valores da cultura ameríndia
desestabilizavam a normatização estabelecida pela vida reducional.
Num outro episódio, descrito por padre Franscisco Ximenes, é possível
visualizar a dicotomia existente entre o indígena que “aceita” a conversão e o que
se opõe a ela. Nessa Carta Ânua, apresenta-se um caso conversão seguido de
um relato de não reconhecimento do batismo cristão.
Baptize luego la criatura, y di de comer a la madre q de hambre estava
casi para morir, y la hize llevar a un pueblo de indios donde me detube
dos dias. La criatura murió y la madre con el cuidado q tube della bolvió
sobre si, de manera q q.
do
me parti me pareció quedaba fuera de perigo.
Otra criatura mui eferma en el Tebiquari me la defendia su Padre para
que no la Baptizasse; no e topado indio q mayor resistencia me haga en
cosa alguna que este. Enfin le engane con dadivas, y q.
do
estava
babtizando la criatura, me estava el indio como amenazando: mira (me
dezia) que no le venga mal a mi hijo. Yo le asegurava, q no le vendria
sino mucho bien, y yo entiendo, q ya le tendrá en el cielo. (XIMENES,
1635 In CORTESÃO, 1969: 99)
O batismo era o primeiro indício de conversão. Início do processo de
construção de hábitos cristãos entre os nativos.
116
A nomeada “dissimulação” indígena é condenada por padre Montoya, num
relato do que chamou de falsa conversão de um cacique, que havia solicitado sua
conversão:
Foi tal ato semelhante ao de Ananias, que defraudou o preço que
ofereceu aos Apóstolos, pois esse cacique cometeu engano com o
número de suas mancebas, deixando escondidas 30 e parte delas, que o
haviam sido de um dos seus irmãos. Prendeu-o a justiça de Deus com
uma enfermidade muito grave e, vendo-se ele apanhado com o furto,
bem compôs a sua alma e morreu em breve, ainda que de repente. Foi
com farta dor de suas desordens e não sem deixar-nos a nós garantias
de sua salvação eterna. (MONTOYA, 1639 In 1982: 75)
O indígena era descrito como culpado duplamente pela suas crenças e por
um furto realizado. Essas práticas eram comumente nomeadas de “vícios” dos
nativos. Lembra-se, aqui, que a poligamia entre os caciques apresentava-se,
sobretudo, como conservação do poder, mas não era aceita na vida reducional. A
tentativa de manutenção dos valores tradicionais era mal vista pelos religiosos.
A educação exemplar estabelecida nas reduções propunha formas de
combate destes hábitos. Como pode ser observado, no relato do padre Montoya:
Apresentava-se ele negro como um carvão e, ainda que estivesse com a
alma no corpo, já perdera a fala e se achava impossibilitado de dar
quaisquer sinais de contrição. Conhecidamente vicioso, fora ele o que
mais trabalho nos causou por meio de seus escândalos. Por vezes
propusera emendar-se, mas logo voltava ao fogo da concupiscência,
dando-se isso em tal grau que propus enterrá-lo, caso morresse, na porta
da igreja com advertência particular, para que servisse de memória e
exemplo. (MONTOYA, 1639 In 1982: 179)
117
Segundo os documentos, em alguns casos, os indígenas não permitiram se
quer a constituição da rotina cristã. Na concepção religiosa, configuravam-se em
reações mais ostensivas, como pode ser observado na narrativa de autor
desconhecido:
P.
e
Roque dio la vuelta a su red.
on
de Itapoa p.
a
acabarla y perfecionarla
que fue haciendo con inmensos trabajos por la dureça de los indios y por
la rebeldia de los del rio arriba, adonde intento ir a predicar el S.
to
evangelio y que por no atraverse a llevarle los de Itapoa, porq no los
matassen los infieles al P.
e
y a ellos pidio al P.
e
frai alonso velazquez de
la ordem Seraphica, gran siervo de Dios, q le embiasse buen numero de
indios que con ocasión de ir a la yerva le acompañasse p.
a
penetrar con
la predicacion evangelica por aquel rio, y que lo hizo con mucha vol.
d
pero q llegados los indios a Itapua, no se atrevieron a llevarle por temor
de la muerte. (s/a [1635] In CORTESÃO, 1969: 125)
A fuga consistia em outra forma de reação indígena. Para os religiosos
seria um retorno ao estado natural, de barbárie. Os discursos dos jesuítas
descrevem e exaltam a conduta dos padres em ir buscar os “fugido” direcionando-
os ao verdadeiro” caminho. Deste modo, reafirmavam a doutrina cristã,
apresentando o estado salutar em que viviam os indígenas nas reduções.
Conforme episódio descrito por padre Montoya:
(...) revelou-se um outro índio que, olvidado de sua própria mãe e filhos,
desamparou-os na necessidade extrema de uma doença prolongada. É
que fugiu aos matos, sem cumprir com as obrigações que tinha que
assistir à doutrina catequética, para se cristianizar. Procurou-o o padre e
o trouxe de volta, e lhe solicitou emenda com dádivas. Mas, como por
seu descuido morrera sua mãe sem batismo, assim também permitiu o
céu que, sem ele, morressem ele e sua mulher num bosque, sendo que
foi por meio de uma morte repentina. (MONTOYA, 1639 In 1982: 247)
118
Numa Carta Ânua de 1634, o padre Pedro Romero narra caso semelhante:
“Y fue que un yndio con su mujer se huyó del varadero por el monte assi como lo
supieron los P.
es
fue volando el P
e
Claudio Ruyer en busca del y despues de
averse cansado desde media noche hasta las nueve del dia no pudo dar con el y
assi se volvió muy pesaroso y reverenciando los secretos Juicios de dios (...)”
(ROMERO [1634] In CORTESÃO, 1969: 52). No discurso dos jesuítas, a fuga era
apresentada como parte dos elementos que constituem a inconstância atribuída
aos nativos. Os locais de refúgio desses indígenas são descritos como perigosos,
mas, segundo os documentos, faziam parte do trabalho dos “valorosos apóstolos”
ir em busca das “ovejuelas perdidas”. Em outra descrição, do que o padre nomeia
de reação indígena a rotina cristã apresenta-se o caso do indígena que havia
fugido e que foi encontrado pelos próprios nativos:
Aquella mesma noche vispera de s. Ju.
o
aviendo dado el P.
e
ordem a sus
Yndios de que estubiessen alerta y en centinela guardando una de las
ovejuelas perdidas que era un varista muy ladino y astuto el P.
e
se puso a
dormir y poco rato despues le vinieron a dezir como aquel Yndio se avia
huido. Sintió el P.
e
esta nueba en el alma. Embió todos los Yndios que
avia llebado consigo en busca del huido, dandoles unas luces porque
hazia noche muy obscura. Temel P.
e
no se amotinassen los gualachos
con aquel ruido, pero quiso el Señor que ellos mesmos buscaron al Yndio
huido y traxeron delante del P.
e
, el qual veló toda aquella noche y las
siguientes hasta llegar al Yguazu, porque no se le escapasse y entrasse
por el monte ovejuela que tanto cosa Jesu Xy que avia sido causa
de un viaje tan dificultoso por montes espesissimos. (ROMERO, [1634] In
CORTESÃO, 1969: 51)
Os religiosos projetam “castigos divinos” aos indígenas que fogem. Eles
acreditam que enfermidades e morte ocorrem em função dos pecados praticados.
A partir da construção da noção de erro relatam que o indígena que nega os
119
princípios cristãos não possibilita a salvação de sua alma. Um exemplo é relatado
por Montoya: “Um indio obrigou Deus a esquecer-se dele, porque esquecido de si
mesmo, fugia da igreja e do catecismo, percorrendo em vez disso os matos na
busca de animais, por ter paixão da caça (...) ficou doente esse pobre (...) o
enfermo faleceu sem ter recebido o batismo, sendo assim esquecido aquele que
se olvidara de si mesmo” (MONTOYA, 1639 In 1982: 247).
As reações indígenas à doutrina também correspondem às narrativas
edificantes de conversão. Nos discursos construídos para o convencimento de
todos do sucesso da missão, os jesuítas descrevem atos de fervor dos nativos. O
padre Montoya apresenta em um de seus relatos a fidelidade de alguns nativos à
doutrina cristã: “Celebram eles as festas principais com mais devoção que
aparato, e é por causa de sua pobreza geral e da de suas igrejas. Foi preciso
limitar-lhes as disciplinas de sangue, porque devido ao frio e ao pouco abrigo
achavam-se em perigos não poucos” (MONTOYA, 1639 In 1982: 192). Desta
forma, os indígenas dariam “exemplo” de cristandade aos que negam os dogmas
da Igreja. O discurso religioso altera-se para a valorização desses
comportamentos dos ameríndios. Montoya dá-nos outro exemplo de devoção
indígena:
(...) se casou um moço da Congregação com uma jovem de sua idade:
virgem e de muitas boas prendas. No dia de seu casamento o casto
jovem falou desta forma à sua mulher: ‘(...) é meu desejo conservar a
limpeza de meu corpo, para que minha alma fique pura. Eu nunca me
aproximei de mulher, e não desejo perder essa jóia. Se for do teu agrado
que vivamos a dois como irmãos castos até o fim de nossas vidas (...)’
(MONTOYA, 1639 In 1982: 205-206)
120
O padre Pedro Romero descreve que a aliança com lideranças indígenas
modifica a receptividade dos povoados para com os missionários:
(...) quiso Nuestro Señor mover el corazon de un cacique llamado
Ytupayu el qual tenia poco antes que yo llegasse a S. Miguel (...) vino a
pedir P.
es
para su tierra. Este Cazique tenia su pueblo de la otra parte del
Igay (...) fuimos alla el P
e
Xpoval de Mendoza y yo y hallamos juntos 400
Yndios tan dociles que no parecian sino gente antigua y cultibada.
Pidieronnos les lebantassemos cruz y ofrecieron de gana sus hijitos para
que los bautizassemos, por consolarlos y por no perder puesto de tanta
importancia les lebantamos cruz cerca de alli y mas cerca tambien del rio
Ygay (...) (ROMERO, 1634 In CORTESÃO, 1969: 36)
Os casos de reações indígenas à rituais xamanicos davam, também,
esperança aos religiosos. Entretanto, sempre é importante ressaltar que as cartas
são instrumentos de divulgação dos sucessos da redução. São apropriações do
real a partir de certos interesses. A atitude descrita é nomeada por Padre Pedro
Romero, no documento Estado General de las Doctrinas del Parana y Uruguai:
Estando un muchacho enfermo sus parientes le llebaron uno destos
hechizeros para que lo chupasse a su usanza. el muchacho no consintió
en ninguna manera antes riñó mucho a los que lo avian traido. fuesse con
esto el hechizero y estando el niño durmiendo quiso volver a chuparlo.
despertó al punto y viendo el hechizero delante de si... tanto se lebantó y
tomó um palo para darle de palos con el y maltratallo. (ROMERO, 1634 In
CORTESÃO, 1969: 41)
Em oposição ao comportamento dos feiticeiros apresentam-se as boas
condutas cristãs. Conforme o padre Pedro Mola:
121
Desde entoces fueron traiendo los enfermos al pueblo en honbros solo
para que los hiciesse christianos, de los quales abia dias que murian seis
y siete en el pueblo con muchas muestras de su salbacion. Destos en
particular an muerto dos indios y una india que se hicieron traer de muy
llejos solo para ser xptianos y estando muy contentos por serlo se fueron
luego a goçar de n.
o
S.
r
(MOLA, [1635] In CORTESÃO, 1969: 117)
Cabe ressaltar que a dinâmica cultural existente entre as etnias não incluía
necessariamente mudanças dos costumes da cultura nativa em provento da
doutrina cristã.
Os elementos dinâmicos em funcionamento - incluindo o confronto com
um mundo externo, que tem determinações imperiosas próprias e com
outros povos, que têm suas próprias intenções paroquiais - estão
presentes por toda a experiência humana. A história é construída da
mesma maneira geral tanto no interior de uma sociedade, quanto entre
sociedades. (SAHLINS, 1990: 9)
Os desafios da missão, durante o processo de normatização do modo de
vida Guarani, evidenciam a concepção ocidental apresentada, a partir dos
discursos jesuíticos. As variações desse discurso explicitavam intencionalidades
diferentes, quanto à imagem que o jesuíta construía de si mesmo e quanto à
alteridade ameríndia. A aplicabilidade desse discurso permeia a inserção de
valores ocidentais cristãos, como pecado, culpa, penitência e perdão. As
apropriações de signos indígenas para ressignificação religiosa não
pressupunham uma releitura nativa de sua própria cultura. Entretanto, as tradições
indígenas como, por exemplo, poligamia e antropofagia são antinomias dos
dogmas cristãos. Com o estabelecimento dessa co-relação, a culpa foi construída
no pensamento de alguns integrantes da vida reducional, por meio das negativas
de valores guarani e da adoção consciente de princípios cristãos.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A lógica da culpabilidade estabelecida nas Reduções jesuíticas foi
apresentada, neste estudo, a partir da análise de aspectos fundamentais das
culturas Guarani e européia. Sendo assim, percebe-se que a dinâmica existente
neste processo não necessariamente consistiu em simplesmente negar a cultura
do outro. que a Missão jesuítica estabeleceu aproximação com a cultura
indígena a partir da compreensão dos signos dessa. Desta forma, iniciou-se as
investidas para a inserção de costumes ocidentais aos indígenas.
A construção de uma rotina foi um dos caminhos adotados pelos religiosos
na tentativa de conversão dos nativos. Nesse processo de normatização, valores
culturalmente Guarani são apropriados e ressignificados pelos relatos, associando
a estes a noção de permissividade cristã e mediação dos missionários. A doutrina
dos missionários atribuía aos costumes e tradições dos indígenas
intencionalidades propositais de pecado. No entanto, a consciência ocidental de
arrependimento, culpa e perdão não fazia parte do mundo ameríndio até então,
portanto, sentir-se pecador pressupunha a compreensão do erro cristão.
123
No início do culo XVII, os perigos enfrentados pelos jesuítas não foram
poucos, entretanto, é perceptível quando os missionários utilizavam-se de um
discurso de vitimização pessoal e de um discurso de conversão. Eram
intencionalidades complementares. Lembra-se, no entanto, que “reduzi-lo [o
sentido do enunciado] a um discurso que ‘fala’ apenas de seu enunciador é negar
a este sua intencionalidade”, e, de quebra, perspectivas diferentes, conforme a
análise de Viveiros de Castro (2002: 136). E assim faziam os religiosos, pois, a
partir do que era proibido e não saudável acreditavam estar habilitando os nativos
à cristianização e divulgando a todos as realizações da empresa.
O olhar do jesuíta sobre a cultura guarani evidencia a tradução da
alteridade ameríndia a partir de seu juízo de valor. O apontamento de equívocos e
a projeção de correções no modo de ser guarani pretendiam ainda iniciar a ação
de construir essa noção de pecado e culpa. Os sermões eram, então,
apresentados como instrumentos de persuasão e tolerância religiosa. Em
contraponto, a compreensão cristã de castigos públicos fortalecia-se como
elemento constitutivo da educação exemplar estabelecida na vida reducional.
Diante de ameaças externas e das investidas jesuíticas, os indígenas
apresentaram reações à empresa, conforme os relatos. Algumas vezes, os nativos
concordavam em obedecer à rotina religiosa, apesar de manterem seus hábitos
culturais; cuja prática nem sempre pode ser diretamente associada à consumação
consciente do pecado cristão. Outras, saiam dos limites das Reduções para viver
segundo seus costumes e tradições. E, ainda assim, muitos realmente
converteram-se a nova fé.
124
A construção da imagem de culpa - no olhar, na seleção de dados e no
registro - era indispensável para o sucesso da missão. Não havia missionários
suficientes para o controle das transformações de hábitos entre os nativos e,
portanto, necessitavam construir uma maneira desses novos comportamentos se
perpetuarem. De todas formas, os registros evidenciam os conflitos entre ambas
culturas, principalmente, porque os indígenas mantinham seus valores
tradicionais. Os religiosos recusavam-se a acreditar que seria apenas um hábito, e
num discurso de salvação de almas implantavam o que nomeavam de castigo
salutar.
A educação religiosa atribuía aos indígenas traduzidos como pecadores a
função de exemplificar o que consistia a imagem de culpa. E essa terminologia é
atribuída pelos próprios cronistas, o “dar exemplo” referia-se à possibilidade de
estabelecer regramentos entre os nativos. Deste modo, a aplicação de punições
corretivas eram descritas como premissa para a conversão do restante do
povoado. Os discursos dos missionários relatavam o que seria o arrependimento
“preventivo” de todos os nativos pelo pecado de um indígena como comprovação
da eficiência dos castigos públicos. Assim, têm-se descrições jesuíticas de
indígenas que ao visualizar a punição por uma prática que o missionário
identificava como errônea, desejava não fazê-la. Entretanto, essas narrativas são
traduções de um comportamento culturalmente tradicional, enquanto que, os
jesuítas projetam o não desejo de pecar no imaginário indígena.
A transculturalidade analisada, nesta pesquisa, revela a compreensão de
que os estudos de cultura em períodos históricos não podem desconsiderar a
125
dinâmica interna existente em todos os povos. Assim, a pesquisa abordou o
contato interétnico sem a pretensão de defender que as modificações
comportamentais foram provocadas apenas pelos jesuítas. O relato dos religiosos
registra o comportamento nativo estabelecendo uma associação aleatória entre
consciência e as atitudes indígenas, entretanto, as modificações culturais
apresentaram-se por uma conjuntura de ameaças externas múltiplas a
continuidade do seu modo de ser.
A construção da culpa consolidou-se na adoção de aspectos da doutrina
religiosa por alguns indígenas que, ao se tornarem cristãos, asseguram sua
sobrevivência física diante da conjuntura de transformações internas e externas de
sua cultura. o abandonando, entretanto, sua condição étnica. Deste modo, o
que os religiosos nomeiam de comportamento “maleável” o era consciente na
medida em que os próprios indígenas ressignificam elementos da doutrina cristã
ao seu estilo de vida.
A pesquisa apresenta dados ainda não desenvolvidos como, por exemplo, a
dinâmica existente na compreensão ameríndia do que seriam esses costumes
cristãos. Assim, os aspectos aqui estudados podem ainda suscitar novos objetos
de pesquisa, pois:
O progresso das certezas científicas produz, pois, um
progresso da incerteza. Mas é uma ‘boa’ incerteza
que nos liberta de uma ilusão ingênua e nos desperta
de um sonho lendário: é uma ignorância que se
conhece como ignorância.(MORIN, 1982: 20)
126
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