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pode estar em dissonância com a natureza, isto será demonstrado na seguinte citação – longa
porém necessária – de Aubenque et al.:
A moral estóica foi entretanto, desde a Antiguidade, tachada de incoerência.
Viu-se nela um conflito latente entre uma inspiração naturalista, que nos
prescreve viver em conformidade com a natureza, e uma inspiração
precursoramente “formalista”, que tenderia a definir a vida do sábio por sua
harmonia interna, ela própria adquirida ao preço de uma ‘indiferença” geral
às circunstâncias exteriores. De fato, não há contradição entre essas duas
aproximações se se quer com efeito lembrar-se que a própria natureza é
concebida pelos estóicos como um todo solidário e harmonioso, de maneira
que, passando da harmonia representada da natureza à harmonia
efetivamente realizada em si mesmo, o sábio nada mais faz, para retomar
uma expressão de V. Goldschmidt, que realizar a mesma “estrutura” em
diferentes níveis.
Não deixa de ser verdade que os estóicos hesitaram sobre o como
dessa passagem. O ideal teria sido deduzir a regra prática de uma
interpretação da ordem do mundo. Mas a ordem do mundo não se deixa
sempre facilmente reconhecer no detalhe; o estoicismo exige então de nós
um ato de fé na racionalidade oculta do universo, completado por uma
técnica do uso das representações: trata-se, com efeito, de considerar como
indiferente o que é em si explicável, logo racional, mas que não sabemos
ainda explicar: a doença, o sofrimento, a morte etc. Essa técnica provisória
corria o risco de se enrijecer num indiferentismo generalizado, parente
próximo do ceticismo. É o que sucedeu, desde a segunda geração do
estoicismo, com a dissidência de Ariston de Quios (primeira metade do
séuclo II a.C.), que ensinava que a dialética e a física, já que a virtude é o
único bem, nada mais são que curiosidades vãs.
É, em parte, para lutar contra essa dissidência que Crisipo
desenvolverá, ao lado da moral da intenção reta, um segundo nível da moral
já entrevisto por Zenão e que consiste no cumprimento das ações conformes
às nossas tendências naturais: tendência à própria conservação,
sociabilidade etc. É a moral dos “convenientes” ou dos “deveres”, que
Cícero longamente exporá após seu mestre Panécio. Aqui ainda os estóicos
ensinarão que se se eleva gradualmente da segunda à primeira: assim o
amor de si se amplia por si mesmo, como por círculos concêntricos, em
amor da família, depois da pátria, depois de toda a humanidade. Mas não
haverá casos em que o universalismo da sabedoria entra em conflito com as
convenções sociais e os deveres políticos? Será preciso algumas vezes
escolher entre as “duas repúblicas” e o estóico não será o servidor de dois
senhores! Mas, na perspectiva otimista que é a sua, é doloroso para a
vontade do estóico (vê-se isso, com efeito, nos casos de consciência de
Sêneca, ministro de Nero) e escandaloso para sua razão, que a questão
possa se colocar. E essa filosofia da imanência, para a qual, como mais
tarde para Montaigne, “a natureza fez tudo bom”, deverá finalmente
reconhecer com Sêneca que a vida moral não é harmonia nativa com a
natureza original, mas apropriação laboriosa e sempre precária de uma
natureza “alienada” e “alterada” (a expressão é de Crisipo) pela paixão.
(AUBENQUE et alii, 1981, p.178-180)
Este reconhecimento, por parte de Sêneca, de que a vida moral resulta antes do
exercício do domínio de uma natureza sobre a qual a paixão exerce um poder de atração ainda