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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CRISTIANE MADANÊLO DE OLIVEIRA
BRINCANDO DE DESCONSERTAR O MASCULINO:
UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS DE ANA MARIA MACHADO
Rio de Janeiro
2006
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BRINCANDO DE DESCONSERTAR O MASCULINO:
UM OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO PARA CRIANÇAS DE ANA MARIA MACHADO
por
CRISTIANE MADANÊLO DE OLIVEIRA
(Aluna do Curso de Mestrado em Letras Vernáculas)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Literatura Brasileira, elaborada sob a orientação da Profª.
Drª. Rosa Maria de Carvalho Gens.
UFRJ – Faculdade de Letras
2006
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OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Brincando de desconsertar o masculino: um olhar sobre a
produção para crianças de Ana Maria Machado. Rio de Janeiro, 2006. 125 fls. Dissertação
(Mestrado em Letras Vernáculas) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006.
___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Rosa Maria de Carvalho Gens
(orientadora)
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Domício Proença Filho — FL/UFF-ABL.
___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Elódia Xavier — FL/UFRJ.
___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Luci Ruas — FL/UFRJ.
(suplente)
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Gurgel — FL/UFRJ
(suplente)
Em _____/_____/_____.
Dedico
Ao povo brasileiro que financiou minha formação acadêmica.
À minha família e ao meu marido, amigo e companheiro de todas as horas.
Agradecimentos
À Rosa Gens por acreditar neste trabalho e permitir que eu fosse autora de minhas próprias
palavras.
A Marcelo Corrêa Castro que, através de um trabalho acadêmico, favoreceu minha incursão no rico
universo da literatura para crianças.
A Domício Proença Filho, eterno orientador pelos caminhos literários e da vida.
À Elódia Xavier, pelas referências bibliográficas e pela paciência com minhas dúvidas.
À Helena Parente Cunha que me apresentou a controversa pós-modernidade e favoreceu meu
primeiro encontro com Ana Maria Machado.
A Raimundo Nonato Gurgel, pelas dicas bibliográficas e leitura atenta de minhas palavras.
À Cintia Barreto, por compartilhar livros, leituras, saberes, sabores e dissabores desde o tempo de
graduação.
Aos familiares e amigos pela compreensão nas horas de ausência dedicadas à pesquisa.
Trazemos nossas preocupações
contemporâneas para dentro do que
escrevemos. Mas sabemos que a fantasia é
uma linguagem simbólica para expressar o
real e não deve ser transformada em algo
alienado, escapista e redutor das
potencialidades humanas.
Ana Maria Machado, in Ana & Ruth
Ler ficção não é uma atitude passiva,
mas uma atividade que consiste em se dispor a
aceitar algumas coisas, acreditar em outras e
imaginar outras tantas. Cada texto traz
implícitas suas regras do jogo, que é preciso
observar. E o leitor passa a ser alguém ansioso
para jogar.
Ana Maria Machado, in Contracorrente
SINOPSE
Influências da literatura na infância para formação de
consciência de mundo quanto às relações de gênero. Reflexão
sobre o ato de brincar e os novos papéis sociais de homens e
mulheres na obra de Ana Maria Machado.
OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Brincando de
desconsertar o masculino: um olhar sobre a produção
para crianças de Ana Maria Machado. Rio de Janeiro,
2006. 125 fls. Dissertação (Mestrado em Letras
Vernáculas) — Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo investigar de que maneira a
escritora Ana Maria Machado (1941 – ) representa as personagens masculinas e
femininas em textos literários. Para tanto, foram analisados quatro livros de
literatura para crianças: Bento que bento é o frade (1977), Raul da ferrugem azul
(1979), Bisa Bia, bisa Bel (1982) e O príncipe que bocejava (2004).
Desde o primeiro livro publicado para crianças, Bento que bento é o frade, a
escritora retrata personagens que rompem com as imposições gendradas pela
tradição. Em meio às narrativas, pode-se vislumbrar figuras femininas ativas e
questionadoras que, assim, desestabilizam as figuras masculinas.
Considerando que os livros feitos para crianças influenciam na formação dos
indivíduos, Ana Maria Machado não revela aos leitores-mirins um mundo pronto e
acabado. Principalmente no que diz respeito aos posicionamentos femininos e
masculinos frente às novas demandas sociais, a literatura feita pela escritora
convida à reflexão e à quebra de paradigmas.
OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Brincando
de desconsertar o masculino: um olhar sobre a
produção para crianças de Ana Maria
Machado. Rio de Janeiro, 2006. 125 fls.
Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas)
— Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
ABSTRACT
The present dissertation intends to investigate how the writer Ana Maria
Machado (1941 -) represents the feminine and masculine personages in literary
texts. For that, four books of literature for children had been analyzed: Bento que
bento é o frade (1977), Raul da ferrugem azul (1979), Bisa Bia, bisa Bel (1982)
and O príncipe que bocejava (2004).
Since the first book published for children, Bento que bento é o frade, the
writer represents personages who fight with tradition. In her narratives, active and
questioning feminine figures desestabilish masculine ones.
Considering that the books made for children influence formation of the
individuals, Ana Maria Machado does not show to the children readers a ready and
finished world. Mainly in respect to feminine and masculine positionings front to
the new social demands, the literature made by the writer invites to the reflection
and to paradigm break.
SUMÁRIO
1. ERA UMA VEZ... .................................................................................................................... 11
2. DOIS PASSEIOS PELO BOSQUE DA TEORIA .................................................................. 16
2. 1 – Gênero: um conceito plural .......................................................................................... 16
2. 2 – Literatura e infância: “do mundo da leitura para a leitura do mundo” ......................... 29
3. BRINCANDO DE TORNAR-SE MULHER .......................................................................... 34
3. 1 – Brincar é coisa séria ..................................................................................................... 34
3. 2 – Mas por quê? ................................................................................................................ 43
3. 3 – Isabel: menina-moleca ................................................................................................. 58
4. O DESCONSERTO DO MASCULINO ................................................................................. 72
4. 1 – Masculinidades ............................................................................................................ 72
4. 2 – Desenferrujando a consciência ..................................................................................... 83
4. 3 – Num reino não muito distante ...................................................................................... 96
5. FELIZES POR ENQUANTO, MAS NÃO PARA SEMPRE ............................................... 111
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 116
7. ANEXO ................................................................................................................................. 122
1 Era uma vez...
Este trabalho pretende vislumbrar, na obra de Ana Maria Machado, questões
relacionadas à categoria de gênero. Para tanto, serão analisados quatro títulos da escritora, a
saber: Bento que bento é o frade (1977), Raul da ferrugem azul (1979), Bisa Bia, bisa Bel
(1982) e O príncipe que bocejava (2004).
O nome de Ana Maria Machado surgiu não somente pela projeção que a escritora tem
na literatura brasileira, reconhecida por diversas premiações nacionais e internacionais.
Destacam-se nesse cenário o maior prêmio literário do Brasil, o Machado de Assis (2001),
dado pelo conjunto da obra pela Academia Brasileira de Letras - ABL e o Hans Christian
Andersen (2000), considerado o Nobel da literatura infantil mundial, oferecido por
International Board on Books for Young People. No cenário nacional, com certeza garantiu
maior projeção à escritora a eleição para ocupar a cadeira de número 1 da ABL em 24 de abril
de 2003.
Na verdade, o interesse pela obra da escritora data de reminiscências da infância,
especificamente por causa de dois livros: Raul da ferrugem azul e Bem do seu tamanho. Em
consonância com a tese defendida por este trabalho, tais leituras na infância influenciaram na
formação de uma pessoa inquietada com muita coisa que alguns consideram “normal” ou
“natural”.
Com a crença de que um indivíduo de qualquer idade, ao ler ou ouvir uma história,
dialoga não só com quem escreve, mas com uma visão de mundo, destaca-se uma
preocupação especial com o público infantil. Na sociedade brasileira, muitas pessoas
(governantes, representantes de escolas, professores, pais e responsáveis) aceitam, de forma
tácita, que a literatura dada às crianças deve ter caráter pedagógico. Nessa linha, perde-se o
essencial: a literatura enquanto manifestação de arte.
12
Sob essas inquietações, resgata-se do grego o pleno sentido de ler como sendo legei
colher, recolher, juntar, que se transformou no latim em lego, legis, legere – juntar
horizontalmente as coisas com o olhar. Sabe-se que os latinos também usavam interpretare
para ler, mas com um significado mais profundo, o de ler verticalmente, sair de um plano para
outro, de forma transcendente. Nesse sentido, a leitura ultrapassa o simples olhar, e vai além,
aventurando-se no desconhecido em busca de uma melhor compreensão do mundo.
A base dessa relação está em que num texto há duas pontas importantes: escritor(a) e
leitor(a). Se por um lado a escritura se configura como um veículo transmissor de informação,
a leitura é um meio de aquisição do que se passa ao redor das pessoas daquela época. A
leitura, que não se restringe à palavra escrita, é, portanto, um ato social.
Tratar-se-á, nesta dissertação, de um tipo de leitura textual mais especial que a busca
de informações num jornal ou a depreensão de implícitos numa propaganda. O objeto de
estudo para os próximos capítulos são textos plurissignificativos, é literatura, é arte. Dessa
forma, não é objetivo deste trabalho discutir se cabe ou não o adjetivo “infantil” e toda a carga
semântica que ele abarca para os textos literários selecionados.
A escolha das quatro obras analisadas advém da importância que elas têm na produção
literária da escritora e da tentativa de observar as representações de masculino e feminino em
momentos diferentes desse percurso. Essa necessária delimitação não será impedimento, no
entanto, para referências a outros títulos da autora durante a análise.
A proposta inicial era de investigar apenas os perfis femininos construídos por Ana
Maria Machado e, para isso, foi empreendido um levantamento de títulos em que figurassem,
de maneira significativa, personagens femininas. Em meio a essas investigações, percebeu-se
que, mesmo sem ser a temática principal, havia algumas manifestações de desconserto das
personagens masculinas frente a um novo perfil de mulher. Por conta disso, optou-se por
dedicar uma parte do trabalho às representações do masculino.
13
A escolha da literatura lida por ou para crianças para análise das representações de
gênero foi feita por acreditar ser o texto literário uma forma de comunicação privilegiada,
sobretudo em uma cultura letrada, que permite ao leitor mirim estabelecer contato com o que
se passa para ela. Essas histórias, na maioria das vezes protagonizadas por crianças, são
produzidas por adultos que estão transmitindo, consciente ou inconscientemente, valores e
padrões de comportamento que poderão ser assimilados pelos pequenos leitores, uma vez que
estão em fase de construção de seu conhecimento de mundo.
A fim de delimitar o corpus de análise, uma vez que a escritora possui mais de 150
obras publicadas, foi feita, inicialmente, uma leitura de vários títulos de Ana Maria Machado,
sendo desconsideradas obras de adaptação e tradução. A autora também tem um número
significativo de livros em que todas as personagens são animais. Ainda que muitas vezes
tenha sido possível identificar certa antromorfização de animais, optou-se por desconsiderar
tais histórias.
Portanto, houve uma preocupação em eleger textos que ilustrassem melhor questões
distintivas de gênero. Sendo assim, o material selecionado traz sempre personagens humanas
que interagem de alguma forma com as questões de gênero. Embora no total tenha sido feita a
leitura de várias obras, certos textos não apresentavam, com tratamento mais aprofundado,
potencialidade para a abordagem do assunto em foco.
A despeito de imprimir restrições à pesquisa, a escolha de dois recortes temáticos
mostrou-se adequada para oferecer a esta reflexão questões que marcam as diferenças nas
construções das personagens infantis femininas e masculinas. Sendo assim, estruturalmente
esta dissertação se divide em três capítulos, além da introdução e da conclusão, e conta com
um anexo.
O capítulo de abertura, intitulado “Dois passeios pelo bosque da teoria”, divide-se em
duas seções. A primeira parte traz algumas considerações teóricas acerca das questões de
14
gênero que serão aprofundadas nos capítulos de análise subseqüentes. A segunda seção
dedica-se à relação entre literatura e infância, com ênfase no que diz respeito à formação de
um ser social. Foram selecionados para nortear tais discussões autores Manuel Castells e
Guacira Lopes Louro, no que diz respeito à abordagem de gênero, além de Nelly Novaes
Coelho, referência nacional em termos de literatura infantil.
“Brincando de tornar-se mulher” é o título do segundo capítulo que se atém ao papel
que brincadeiras e jogos podem ter na construção (ou desconstrução) das questões de gênero,
com foco no feminino. Optou-se por tal abordagem pelo caráter diferenciador em relação aos
numerosos trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre as representações femininas nas
obras de Ana Maria Machado. Além disso, a recorrência da temática ligada ao ato de brincar
em vários títulos da escritora revela uma preocupação com o assunto.
Para empreender esse percurso, faz-se uma breve explanação inicial acerca da
influência que brincadeiras, brinquedos e jogos podem ter na formação dos futuros atores
sociais. Como aporte teórico básico, foram empregadas as seguintes obras: Reflexões sobre a
criança, o brinquedo e a educação (2002) de Walter Benjamin, História social da criança e
da família (1978) de Philippe Ariès, O brincar e a realidade (1975) de Donald Woods
Winnicott, Uma vida para seu filho (1988) de Bruno Bettelheim e Brinquedo e cultura (2004)
de Gilles Brougère. Na seqüência, observa-se como as atividades lúdicas figuram nos dois
títulos selecionados como representativos do feminino: Bento que bento é o frade (1977) e
Bisa Bia, bisa Bel (1982).
O terceiro capítulo, “O desconserto do masculino”, propõe-se a analisar representações
masculinas, tomando como base de estudo Raul da ferrugem azul (1979) e O príncipe que
bocejava (2004). O foco principal concentra-se na sistematização do desconserto das
personagens masculinas face aos posicionamentos não tradicionais que as personagens
femininas manifestam. Seguindo a mesma estrutura do capítulo precedente, dedica-se uma
15
primeira parte a uma explanação acerca das masculinidades. Como fundamentação teórica
para essa análise, figuram principalmente as ponderações de Pierre Bourdieu em A dominação
masculina (2005), Elisabeth Badinter em XY: sobre a identidade masculina (1993) e Sócrates
Nolasco em De Tarzan a Homer Simpson: banalização e violência masculina em sociedades
contemporâneas ocidentais (2001). À luz das considerações iniciais acerca das
masculinidades, empreende-se o estudo nas duas obras literárias selecionadas para este
capítulo.
Ao final, ainda consta um anexo com um levantamento de títulos, catalogados em
função da representatividade das personagens femininas. Ainda que não se tenha abarcado
toda a produção para crianças da escritora, essa sistematização pode favorecer outras
pesquisas sobre o assunto.
No decorrer da dissertação, será possível perceber que a escrita de Ana Maria
Machado não exclui o masculino, mas tira da marginalidade
1
o elemento feminino. Nesse
sentido, essa produção literária reflete as mudanças da cena social pós-moderna em que se
diluem os tão organizados e estabelecidos papéis gendrados de homens e mulheres.
1
Entende-se por marginalidade o que está fora do centro, à margem, sem nenhuma conotação pejorativa.
2. DOIS PASSEIOS PELO BOSQUE DA TEORIA
2.1. Gênero: um conceito plural
Já se foi a época em que afirmativas como “menino brinca de bola e menina, de
boneca”, “homem que é homem não chora”, “lugar de mulher é atrás do fogão”, dentre outras,
impunham a homens e mulheres papéis sociais delimitados. Como bem destaca o sociólogo
espanhol Manuel Castells (2000), a força de trabalho feminina remunerada abalou a
legitimidade da dominação masculina, com o homem enquanto provedor da família, base do
patriarcalismo. Por conta dessa e de outras significativas mudanças no panorama mundial, os
posicionamentos sociais de homens e mulheres também sofreram alterações.
Em função da condição histórica de submissão feminina, vários movimentos de
mulheres existiram ao longo do tempo, mas sem uma efetiva organização até o século XX.
Como as idéias feministas já se faziam presentes, ainda que de forma desestruturada, convém
investigar por que somente no século passado esse movimento ganhou tanta força e projeção
mundial.
Castells, no quarto capítulo do livro O poder da identidade – volume II (2000, p. 171-
172), analisa detalhadamente os fatores determinantes da estruturação dos grupos feministas.
O sociólogo aponta a combinação de quatro elementos como motivação para emergência do
movimento feminista:
1) mudanças na economia e no mercado de trabalho associadas ao ingresso feminino
no campo da educação;
2) avanços médicos e tecnológicos favoreceram o controle sobre gravidez e
reprodução humana;
3) herança ideológica dos movimentos sociais da década de 60, sobretudo quanto ao
questionamento da heterossexualidade como norma;
17
4) cultura globalizada promove a intercomunicação de vozes femininas de várias
partes do mundo, além da divulgação dos ideais feministas.
Diante desse cenário e com as transformações da economia e do mercado de trabalho,
as mulheres se lançaram como mão-de-obra e garantiram poder de barganha também em casa,
por contribuírem no sustento familiar. O controle da gravidez e os avanços nos estudos sobre
a reprodução humana estão deixando suas marcas num novo perfil familiar, em que a mulher
não fica obrigatoriamente atrelada a afazeres domésticos e trato dos filhos.
Segundo Castells (2000), o movimento feminista irrompeu primeiro nos Estados
Unidos no final dos anos 60. No início da década de 70, o movimento se espalha pela Europa
e irradia-se, nas duas décadas seguintes, para o resto do mundo. Já a pesquisadora Guacira
Lopes Louro (2003) enquadra o início do feminismo como movimento social organizado, em
termos de Ocidente, já no século XIX. Segundo a autora, as lutas pelo direito de voto para as
mulheres, na virada do século XIX para o XX, caracterizariam a “primeira onda” do
feminismo. Sob os ecos do sufragismo da “primeira onda”, a “segunda onda” do movimento
se desdobraria no final da década de 60, mais preocupada com construções propriamente
teóricas.
Questões cronológicas à parte, a atitude questionadora e a contestação em relação a
qualquer tipo de autoridade de forma sistemática são, de fato, reflexos da revolução de
costumes dos anos 60, como destaca Linda Hutcheon em Poética do pós-modernismo (1991):
Uma contestação da autoridade (masculina, institucional), uma aceitação do
poder como base da política sexual, uma crença na função do contexto
sociocultural na produção e na recepção da arte. Todas essas contestações
tornariam a se evidenciar como sendo as bases dos paradoxos do pós-
modernismo no futuro imediato. (p. 91)
No que diz respeito à força contestatória do movimento feminista, é patente a
multiplicidade de perfis assumidos por conta dos contextos socioculturais em que se
desenvolve. É justamente por se constituírem numa rede flexível e diversificada que os ideais
feministas resistiram. Considerando o percurso histórico do movimento, é possível
18
compreender, então, a multiplicidade de vertentes que o feminismo assumiu, constituindo-se
de forma polifônica e multifacetada.
Pode-se dizer que o movimento de mulheres ganhou força para se estruturar não
apenas em passeatas e protestos, mas também através de publicações de jornais, revistas e
livros. Nos anos 30, Margaret Mead teve uma significativa influência sobre as teorias de
gênero e da sexualidade. Ao publicar Sexo e temperamento (1935), a antropóloga americana
sistematizou o ponto de partida da construção cultural de gênero, ao considerar que homens e
mulheres são entidades diferentes influenciadas pelas sociedades. Mead afirmava, assim, que
ser homem ou mulher era uma construção social e não apenas uma herança biológica, estando
na cultura a causa principal das variações das identidades de gênero.
Seguindo esse processo de estruturação, destacam-se mais dois nomes de relevo que
influenciaram como articuladores das idéias feministas por intermédio da palavra escrita. São
considerados atualmente como clássicos dos estudos da mulher O segundo sexo – 1949
(Europa), da francesa Simone de Beauvoir e A mística feminina – 1963 (Estados Unidos), da
americana Betty Friedan. Ambas as escritoras defenderam os postulados do que viria a ser o
movimento feminista, fortalecendo e dando corpo a iniciativas que só encontrariam ecos na
América Latina a partir da década de 70.
As raízes do feminismo brasileiro datam do final do século XIX ligadas ao movimento
sufragista e às reivindicações por direito à educação e ao divórcio. Os reflexos desses
empreendimentos começam a ganhar forma no início do século XX, sob a égide do
preconceito. Conforme registra Muraro (2002), o preconceito contra os movimentos
organizados de mulheres começou a mudar no Brasil através da conquista do sufrágio: “até
então, as feministas eram vistas como lésbicas, prostitutas, chamadas de feias, mal-amadas,
solteironas, etc., embora muitas tivessem maridos e filhos” (p. 190).
19
Nesse cenário, destacam-se algumas ações importantes como a garantia de voto para
mulheres em 1934, com participação ativa da paulista Berta Lutz, e a nomeação da primeira
deputada do Brasil, Carlota Pereira de Queirós, que participou da Assembléia Constituinte de
1934. Desde então, a representatividade de mulheres em todas as áreas vem crescendo e o
preconceito diminuindo, mas o ritmo dessas transformações ainda é muito lento.
Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), muitas mulheres se organizaram,
independentemente de partidos políticos, idade ou classe social, para formar uma militância
contra o regime. Assim, o movimento feminista que se engajou na luta contra a ditadura,
posteriormente, participa da redemocratização social, nos anos 80. Essa mesma década
também foi importante para outro campo de atuação das feministas: as universidades.
Começaram a ser desenvolvidas pesquisas que favoreceram uma maior visibilidade para
mulheres no mundo acadêmico.
Coincidência ou não, no período ditatorial, muitos autores brasileiros encontraram na
literatura infantil o espaço para expor seus questionamentos e protestos contra a política de
repressão imposta pelo governo. Tudo isso só foi possível porque a literatura infantil sempre
foi considerada um gênero “menor”, sem maiores perigos, “coisa de mulher” e, portanto, não
era alvo do olhar incisivo dos censores.
Feito esse breve percurso histórico, resgata-se a idéia de que a emergência do conceito
de gênero, no início dos anos 80, está intimamente ligada à evolução do movimento feminista.
A projeção dos estudos de gênero acontece exatamente num momento de mudança de
perspectiva, como ressalta Muraro (2002):
Elas [as mulheres] começam a entrar em massa no sistema produtivo durante
a década de 1960. E nos anos 80, após terem fracassado em imitar o homem,
adotam uma nova estratégia: trazer a lógica feminina para dentro da lógica
masculina. E ambas as lógicas começam a mostrar o que realmente são. (p.
197)
Explorada inicialmente pela Antropologia nos Estados Unidos, a categoria de gênero
foi usada com o objetivo de evidenciar a discriminação sofrida por mulheres em todos os
20
níveis: econômico, político, social, etc. Num primeiro momento, o interesse fundamental
estava voltado para a condição da mulher na sociedade ocidental: sua submissão, a violência
que sofria, o contexto cultural que favorecia tal situação. Dessa forma, o masculino e,
principalmente, as interações entre os dois gêneros não eram tão enfatizados. Esse quadro,
contudo, não deve ser entendido como uma negligência deliberada, uma vez que a situação
das mulheres precisava ser mapeada.
Posteriormente, os estudos feministas passaram a questionar as bases da filosofia
platônica e cartesiana, pautadas na objetividade. Dessa forma, o movimento favoreceu a
emergência de uma nova perspectiva epistemológica de ver a realidade, em que a
subjetividade e o irracional (características tidas como “naturalmente” femininas) modificam
a própria natureza das ciências. Com o incremento dos “estudos sobre as mulheres”, foram
mais enfatizadas as inter-relações entre os gêneros, especialmente no campo da Psicologia
Social. Paulatinamente, também na Economia, no Direito, na Política se começou a considerar
o aspecto inter-relacional das identidades masculina e feminina.
Então, pode-se entender, em termos gerais, que gênero é uma categoria analítica
utilizada nas ciências humanas e sociais que se refere à organização social das interações
entre os sexos. Na verdade, gênero é uma noção que informa sobre a normatização acerca da
feminilidade e da masculinidade, ressaltando o aspecto relacional e dialético dessas
identidades.
A palavra “gênero” é polissêmica e constitui-se de várias acepções nos dicionários de
referência, estando ligada a áreas como geometria, estudos lingüísticos, biologia, dentre
outras
2
. Neste trabalho, tomar-se-á como parâmetro gênero enquanto categoria ligada à
construção do masculino e do feminino num sentido cultural que implica uma condição
social.
2
O Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1999) registra para o verbete “gênero” onze acepções e dedica a sétima ao
viés adotado nesta abordagem, ligada aos estudos antropológicos.
21
Demonstra-se essa condição social através de diferenças de papéis ou funções
atribuídos a mulheres e homens numa dada sociedade. Não se deve, entretanto, confundir
papéis sociais com a categoria de gênero, ainda que estejam relacionados entre si. Gênero é
um dos componentes de que se constitui a identidade dos sujeitos, estabelecendo relações com
outros elementos identitários como a classe social, a etnia, a cultura, a religião, dentre outros.
No que diz respeito aos papéis sociais, destaca Louro (2003) que
seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade
estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas
roupas, seus modo de se relacionar ou de se portar... Através do aprendizado
de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado adequado (e
inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada
sociedade, e responder a essas expectativas. (p. 24)
A categoria de gênero, gender em inglês, foi introduzida com uso distinto de sex
(sexo), a partir dos anos 80, pelas feministas anglo-saxãs. Tal distinção se deve ao desejo de
enfatizar o caráter fundamentalmente social das diferenças baseadas na divisão dos sexos.
Essa categoria possui, em relação aos papéis sociais, um caráter mais específico, na medida
que são princípios gendrados nos sujeitos os responsáveis por delimitar a aceitação ou
rejeição desses “padrões ou regras arbitrárias”. Sendo assim, o gênero é criado pelos
indivíduos e nos indivíduos, mediado pelas práticas discursivas, e estando sujeito às pressões
que exercem os papéis socialmente esperados em cada comunidade e época.
Portanto, partindo do pressuposto de que a diferença comportamental entre os sexos e
as características ditas masculinas ou femininas são constructos sociais, pode-se avançar nas
discussões. Ao contrário do que se acredita comumente, alguém ter nascido “macho” ou
“fêmea” da espécie humana não implica necessariamente ser homem ou mulher. Conforme
sistematizou Nolasco (2001): “Homem e mulher, masculino e feminino são aspectos distintos
do ser” (p. 151).
Por ser uma construção social e ligar-se às identidades culturais, gênero encontra-se
em freqüente processo de des-re-construção sob influência de cada sociedade e época.
22
Enquanto um dos elementos constitutivos da identidade das pessoas, a categoria de gênero
também está sendo reformulada frente à chamada “crise de identidade” na pós-modernidade.
É importante ressaltar que a identidade é constituída por diversos fatores como a
linguagem, o corpo biológico, a história, a cultura, as interações com o outro, as
representações sociais, o gênero, os sistemas simbólicos, entre outros. Todos esses fatores vão
influenciar, em maior ou menor intensidade, no desenvolvimento da identidade de cada
pessoa, notando que todos estão interagindo entre si e que a cultura é o pano de fundo desse
processo.
A sociedade pós-moderna está passando por um período de transição que gera, como
conseqüência, muitas possibilidades e incertezas. Para que se compreenda melhor o perfil
atual de sujeito, fragmentado e descentrado, é importante resgatar a distinção proposta por
Stuart Hall
3
(2005) quanto aos três tipos básicos de identidade: iluminista, sociológica e pós-
moderna.
O sujeito iluminista possuía uma identidade única, ele era “totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação” (HALL, 2005, p. 10).
Acreditava-se que a identidade do sujeito iluminista era única e sempre a mesma, sendo
desenvolvida desde seu nascimento até sua idade adulta. É importante notar que a identidade
iluminista estava fortemente associada ao masculino. Para o estudioso dos estudos culturais,
destacam-se duas contribuições para a criação do sujeito iluminista. A primeira delas foi a
famosa afirmação de René Descartes: “penso, logo existo”, base do sujeito conhecido como
cartesiano, “racional, pensante e consciente” (HALL, 2005, p. 29). A segunda contribuição foi
dada por John Locke, ao definir a identidade como sendo única e contínua na vida de um
indivíduo.
3
Jamaicano radicado na Inglaterra, é nome de destaque nos chamados estudos culturais.
23
O segundo tipo de identidade, a do sujeito sociológico, era definida pela relação com
outras pessoas, “que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos — a cultura —
dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2005, p. 11). Dessa forma, a identidade sociológica
se baseava na busca de uma estabilização entre o interior e o exterior, o mundo pessoal e o
mundo público.
Essa concepção surgiu devido às mudanças geradas pela industrialização e pelo
aumento da complexidade das cidades. A biologia darwiniana foi um dos fatores que
propiciou a constituição do sujeito sociológico. Outro ponto relevante foi o surgimento das
ciências sociais, fazendo com que diferentes áreas se especializassem no estudo de partes do
sujeito.
Ao contrário da identidade iluminista, que era baseada no princípio de imutabilidade, a
concepção sociológica indica a construção da identidade por meio da interação da sociedade
com o sujeito. Embora se oponham entre si, tanto a concepção de sujeito iluminista quanto à
de sujeito sociológico se fundamentam em identidades únicas e predizíveis.
Imerso numa sociedade em transição, marcada pela globalização, pelo
desenvolvimento tecnológico, pela emergência de novos meios de comunicação e transporte,
o sujeito pós-moderno busca se ajustar. Frente a esse quadro profundas mudanças, “as velhas
identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo
surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito
unificado” (HALL, 2005, p. 7).
Essa fragmentação do sujeito pós-moderno se deve, principalmente, ao abalo no
quadro de referências das sociedades modernas. Sem essa ancoragem estável, os indivíduos se
compõem por inúmeras identidades que não são mais fixas ou permanentes e, por vezes, nem
coerentes. A identidade pós-moderna, segundo alguns autores, está em crise exatamente por
oferecer inúmeras possibilidades de ser. Como as questões de gênero estão presentes em todos
24
os tipos de relações humanas, elas também são afetadas pela “crise de identidade” da pós-
modernidade ou modernidade tardia.
Nos últimos anos, as idéias de Michel Foucault e Jacques Derrida têm influenciado
sobremaneira a discussão sobre os gêneros, principalmente porque localizam a linguagem, o
corpo e o “conhecimento científico” como instâncias de poder. Partindo desses pressupostos,
os estudos de gênero ampliam seu campo de atuação e ultrapassam os limites iniciais da
Sociologia e da Antropologia.
Por conta disso, os estudos de gênero ampliam-se e passam a abarcar também as
formas de construção social, cultural e lingüística que produzam e reflitam papéis sociais
atribuídos a homens e mulheres. Portanto, gênero se torna campo de interesse para várias
áreas de estudo, porque se articula com outras marcas sociais, como classe, etnia, sexualidade,
religião para formar sujeitos femininos e masculinos.
A contemporaneidade investe sobremaneira em produzir conhecimento, com o
desenvolvimento de pesquisas em universidades e outras instituições de referência científica,
com o objetivo de compreender e explicar a invisibilidade atribuída historicamente às
mulheres. Nesse sentido, formam-se, nacional e internacionalmente, grupos de estudo sobre as
questões de gênero e a produção de teorizações sobre o assunto está em ascensão.
O entrecruzamento de estudos de gênero e literatura, principalmente em torno das
questões relativas à mulher, favorece o surgimento de um profícuo campo de pesquisas. No
que diz respeito aos estudos de textos de autoria feminina, cresce a importância de se
considerar a influência do contexto social notadamente repressor em relação às mulheres.
Assim, como atestam as palavras da pesquisadora Elódia Xavier, a perspectiva social dos
gêneros enriquece as análises literárias:
A abordagem interdisciplinar de qualquer objeto de estudo acrescenta novas
dimensões a seu conhecimento. No caso de textos produzidos por mulheres,
o recurso às Ciências Sociais, como subsídio teórico, aponta para aspectos
até então negligenciados. (XAVIER, 1998, p. 13)
25
No caso do Brasil, a aproximação dessas duas áreas vem-se consolidando de forma
mais significativa desde meados dos anos 80. Nesse contexto, a criação, em 1986, do grupo de
trabalho “A mulher na literatura”, ligado à Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
em Letras e Lingüística - ANPOLL, demonstra a consolidação desse campo de estudos nas
universidades brasileiras.
Algumas dessas pesquisas revelam que os indivíduos são ensinados, desde cedo, a
ocupar “seus” lugares sociais, muitas vezes por práticas que passam despercebidas por terem
sido culturalmente “naturalizadas”. Com perguntas sobre coisas óbvias e aparentemente
banais, Louro (2003) destaca a possibilidade de questionar todas as “certezas” em que se
apóia o pensamento humano, inclusive o chamado científico. Essa perspectiva de que tudo é
provisório e construído social e culturalmente está em consonância com as tendências pós-
modernas.
No que tange à conceituação de gênero, adotar-se-á nesta abordagem a proposta de
que os sujeitos estão num processo plural e conflituoso em que a cultura influencia na
construção de homens e mulheres. Por conta disso, não se pode desconsiderar que o recorte
proposto neste estudo privilegia textos de autoria feminina. No caso específico de Ana Maria
Machado, à mão escritora soma-se o olhar crítico que recai freqüentemente sobre o próprio
fazer literário. Dessa mistura, advém a consciência de que a literatura carece de personagens
femininas fortes pintadas por escritoras, como atestam as palavras de Ana Maria Machado:
Até mesmo porque tradicionalmente os homens ocuparam os espaços,
também na literatura, a mulher leitora se forma por meio de um processo
completamente diferente do homem leitor. Ou seja, cresce lendo uma
quantidade enorme de livros escritos por homens e não por mulheres, tendo
mais possibilidades de compreender a alma masculina graças ao poder da
literatura de fazer a gente se botar no lugar do outro. Por um lado, isso
empobrece um pouco as mulheres, negando-lhes modelos femininos fortes e
verdadeiros, vistos de dentro. [...] Mas, por outro lado, isso amplia muito os
horizontes da mulher leitora em relação ao homem, porque ela passa a
conhecê-lo melhor do que ele a ela. (MACHADO apud BASTOS, 1995, p.
64-65)
26
A partir desse ponto de vista, nota-se que a obra de Ana Maria Machado está repleta
de modelos femininos que assumem a própria voz. Frente a essas figuras decididas e seus
comportamentos, algumas personagens masculinas mostram-se despreparadas e, muitas vezes,
desconsertadas. Sendo assim, a influência dessas representações de feminino e masculino em
literatura lida por crianças merece atenção especial.
2.2. Literatura e infância: “do mundo da leitura para a leitura do mundo”
4
No encontro com qualquer forma de arte (re-presente-ação da realidade), os seres
humanos têm a oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer sua própria experiência de
vida. Dentre as manifestações artísticas, a literatura ocupa um papel de destaque, porque tem
como matéria-prima a palavra. É exatamente a palavra que garante especificidade ao humano,
por ser o veículo de elaboração e sistematização do pensamento.
No ensaio “A literatura contra o efêmero” (2001), o escritor e crítico italiano Umberto
Eco lança luzes sobre as funções da arte da palavra, um bem imaterial. Em seu percurso,
reafirma que a literatura, em princípio, “não serve para nada mas uma visão tão crua do prazer
literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas” (p. 12). A
gratuidade da arte da palavra, entretanto, não é tão simples como aparenta, por extrapolar
finalidades meramente informativas e de fruição. Ainda acrescenta Eco que “os grandes livros
contribuíram para formar o mundo” (p. 12). Assim, essa especial forma de arte convida o
leitor ao exercício da imaginação e da recriação de significados, de modo que se possam
estabelecer novas relações entre as pessoas e o mundo, intermediadas pela palavra.
Conceituar literatura instiga teóricos e críticos desde a Antigüidade greco-latina. Pode-
se dizer que Aristóteles, com o conceito de mimese (do grego mímesis – imitação), destacou-
4
Parte do título atribuído a esta seção é uma homenagem a Marisa Lajolo, autora do livro Do mundo da leitura
para a leitura do mundo, em que trata com muita propriedade da influência da literatura na formação de
cidadãos.
27
se nos estudos acerca do assunto. A partir desse princípio, enfatizou-se o viés cognitivo da
literatura, uma vez que se entendia arte como recriação da realidade.
Nessa linha, séculos depois, o crítico e professor de teoria cultural da Universidade de
Oxford, Terry Eagleton, detém-se na mesma questão. Num livro de referência na área de
estudos literários, Teoria da literatura: uma introdução, o crítico dedica toda a parte inicial da
obra a um percurso histórico sobre os conceitos atribuídos à literatura. Para o enfoque deste
trabalho, interessa o fechamento do capítulo, transcrito a seguir:
Portanto, o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não
existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a
constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm, eles
próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em
última análise, não apenas ao gosto particular mas aos pressupostos pelos
quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros.
(EAGLETON, 2001, p. 22)
Nesta leitura, cumpre destacar a relação estabelecida por Eagleton entre literatura,
ideologia e poder. Esse trinômio enfatiza a importância da literatura, sobretudo no que diz
respeito à construção de valores que uma sociedade vai adotar como parâmetro, num
determinado momento histórico.
Já nas primeiras décadas do século XX, os estudos lingüísticos do teórico soviético
Mikhail Bakhtin indicaram a falta de inocência dos discursos. Se as palavras, em estado de
dicionário, apresentam certa neutralidade, contextualizadas passam a expandir valores,
conceitos e preconceitos. Essa teoria está alicerçada no fato de as palavras estarem
comprometidas, voluntária ou involuntariamente, com determinado ponto de vista.
Bakhtin destaca ainda que discursos centrados num só ponto de vista dominante,
marcados ideologicamente, contaminam os demais discursos e ameaçam a polifonia de vozes.
Nesse sentido, pode-se perceber como o fato de a sociedade patriarcal privilegiar o discurso
masculino em detrimento do feminino, muitas vezes silencioso ou silenciado, corrobora para
que os valores do grupo dominante sejam repassados subliminarmente.
28
No que diz respeito à história das artes e das culturas, a literatura, na modalidade oral e
na escrita, foi um dos principais veículos de transmissão de valores através das gerações.
Como fios enredados em meio à malha metafórica dos texto literários, fatores históricos,
antropológicos, culturais, étnicos, econômicos, políticos e muitos outros desenham intenções
de grupos dominantes.
Cada sistema de dominação cria uma gama de discursos que o sustentem e
justifiquem. Através da palavra, as instituições de poder encontram mecanismos para se
manterem sem o uso da força, já que o poder não é necessariamente um espaço que se ocupa,
mas principalmente uma relação que se cria. Dessa forma, a palavra amplia a relação de poder
na medida em que funciona como instrumento ideológico para a obtenção de apoio, adesão,
submissão.
Os rituais públicos de queima de livros, freqüentes na Idade Média com a Inquisição e
em governos totalitários como o de Hitler, representam simbolicamente essa tentativa de
controlar pela palavra. Ainda hoje, em nome de princípios ditos religiosos, mas muitas vezes
de fundamentação política, há obras condenadas ao fogo pela força das palavras que
encerram. Por tratar de questões ligadas ao radicalismo islâmico, o livro O Choque das
Civilizações e a Reconstrução da Ordem Mundial (1997) do professor de Relações
Internacionais na Universidade de Harvard, Samuel P. Huntington, foi proibido em vários
países. Ganhou maior divulgação da mídia internacional o caso do indiano Salman Rushdie
5
que, em 1989, teve decretada pelo aiatolá Khomeini, através de uma fatwa (ditame jurídico
religioso), sua sentença de morte, sob alegação de blasfêmia contra o islamismo no livro Os
versos satânicos.
Essas queimas, censuras e proibições de livros simbolizam, por conseguinte, um
controle verbal que vem sendo imposto a determinadas vozes no percurso da história do saber.
5
Apesar da sentença, Rushdie fugiu, continuou a escrever e, atualmente, é um dos mais lidos autores de língua
inglesa.
29
Essa vigilância também se evidencia na construção dos mitos contemporâneos como a busca
de fama e eterna juventude, vinculados pela mídia. Tais mitos são patrocinados pelo sistema
burguês, na ânsia de sugerir (e controlar) não apenas o teor ideológico do discurso, mas
também o modo como as pessoas o proferem.
A emergência da sociedade burguesa está intimamente relacionada com o surgimento
do conceito de infância e, principalmente, com o uso dos livros para incutir os princípios
capitalistas nos futuros trabalhadores. É a partir do século XVIII que a criança passa a ser
considerada um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias, pelo que
deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e receber uma educação especial, prepativo para
a vida adulta.
Dessa forma, a emergência de uma faceta da literatura especificamente direcionada
para crianças cumpriu uma finalidade pedagógica, já que as histórias eram elaboradas para se
converterem em instrumento de divulgação dos ideais burgueses. Nessa perspectiva,
principalmente para as crianças, a literatura foi vista como uma porta aberta para dar forma e
divulgar valores, isto é, formar uma consciência de mundo, como enfatiza a crítica literária
Nelly Novaes Coelho:
a verdadeira evolução de um povo se faz ao nível da mente, ao nível da
consciência de mundo que cada um vai assimilando desde a infância. [...] o
caminho essencial para se chegar a esse nível é a palavra. Ou melhor, é a
literatura — verdadeiro microcosmo da vida real, transfigurada em arte.
(2000, p. 15)
Nessa mesma linha, o pensador e crítico alemão Walter Benjamin, com olhar lúcido e
ouvidos atentos às relações entre memória, discurso e imaginário, problematiza a
domesticação das consciências embutida à infância. Assim, ao tratar do imaginário infantil,
destaca que a criança, a partir de sua visão da realidade, forma seu próprio mundo, inserido no
mundo maior dos adultos. A esse respeito, o ensaísta de “Rua de mão única” indica a
importância do ato de criação no que diz respeito à literatura dedicada às crianças.
30
Dever-se-ia ter sempre em vista as normas desse pequeno mundo quando se
deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a
própria atividade — com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento —
encontre por si mesma o caminho até elas. (BENJAMIN, 2002, p. 104).
Se por um lado o poder da palavra foi colocado a serviço de governos e religiões, a
literatura também foi empregada como forma de manifestar alguma forma de resistência
política ou ideológica. Prova disso são os ativistas da Revolução Francesa (1789) que se
empenharam numa ampla campanha de alfabetização para que todo cidadão tivesse acesso à
leitura. Não só através de manifestos, mas também a partir de textos literários, os ideais
revolucionários do movimento eram difundidos juntamente com o surgimento do
Romantismo europeu. De qualquer maneira, a história está repleta de exemplos equivalentes
em que a resistência também se valeu não só de armas, mas principalmente de livros.
No caso do Brasil, especificamente, pode-se destacar como alguns participantes do
movimento da Inconfidência Mineira atuavam também em âmbito literário. Ao longo do
tempo, foram vários os autores brasileiros que levantaram a bandeira de escrever a história
literária nacional para inaugurar um novo país. Tudo isso sem considerar a mobilização de
todas as artes contra as restrições políticas e sociais impostas pela ditadura no país.
A literatura brasileira, nesse período, foi alvo de violenta censura e repressão por parte
dos militares. A fim de buscar alternativas para não se calar, alguns escritores investiram em
textos para crianças, pouco visados pelos censores. Dessa forma, eram denunciados, através
de textos dirigidos ao público infantil, os abusos de poder e a realidade político-social do país.
Ana Maria Machado, na coletânea de artigos Texturas (2001), registra bem esse momento do
qual foi partícipe:
por incrível que pareça, os militares não deram a menor importância aos
livros para criança. [...] E acabou ocorrendo algo inesperado: foi justamente
a partir do AI-5 que houve o chamado boom da literatura infantil brasileira.
(MACHADO, 2001b, p. 81, grifo da autora)
Antes mesmo da repressão militar, um outro nome se destaca no cenário da literatura
brasileira por se dedicar ao público infantil: Monteiro Lobato. Decepcionado pelas frustradas
31
investidas para o crescimento nacional e, principalmente, pela prisão devido a suas idéias
sobre o petróleo
6
, o escritor investiu nos brasileiros do futuro com uma nova proposta de
literatura dedicada à infância. Fazendo o maravilhoso fundir-se com a realidade, o criador de
Jeca Tatu levou às crianças o conhecimento da tradição, acervo social herdado, que lhes
caberia transformar e também questionar.
Com efeito, uma contribuição lobatiana para a literatura brasileira está em não
subestimar a capacidade de entendimento das crianças frente à realidade. Assim, o idealizador
do Sítio assumiu uma posição ativa em relação ao quadro social e colocou-se a serviço de
mostrar o mundo ao público infantil. Tal posicionamento estético e ideológico é expresso pelo
filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre no livro Que é a literatura?, de 1948:
o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os
outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a
nu, a sua inteira responsabilidade. [...] a função do escritor é fazer com que
ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele.
(SARTRE, 1989, p. 21)
Nesse livro em que se discute sobre quem escreve e para quem se escreve, Sartre
aponta um papel engajado por parte do escritor, sugerindo justamente o posicionamento
assumido por Lobato. Manifestada sobretudo através das contundentes perguntas de Emília, a
idéia de questionamento de valores por parte de todos, inclusive das crianças, é introduzida no
cenário da literatura feita para a infância no Brasil.
Nessa mesma perspectiva, num livro de referência para os estudos de literatura para
crianças e jovens Literatura infantil: teoria, análise, didática (2000), Coelho enfatiza o
potencial da arte da palavra como agente de transformações da mentalidade:
É no sentido dessa transformação necessária e essencial (cujo processo
começou no início do século XX e agora chega, sem dúvida, às etapas finais
e decisivas) que vemos na literatura infantil o agente ideal para a formação
da nova mentalidade que se faz urgente. (COELHO, 2000, p. 16)
6
Tais idéias foram expressas no livro A luta pelo petróleo (1935) e no famoso artigo “O Escândalo do Petróleo”
(1936)
32
Para felicidade do mercado editorial e dos leitores, muitos escritores de qualidade se
destacaram com títulos para o público infantil, porque resolveram investir na formação de
uma nova mentalidade. De fato, nesse cenário, são muitos os nomes que anunciam a
influência lobatiana como Ruth Rocha, Lygia Bojunga, Ziraldo, e, dentre outros, a autora
escolhida para este trabalho. A esse respeito, Ana Maria Machado reflete:
Somos um país que teve Monteiro Lobato, então um bando de gente que
cresceu lendo e vivendo o universo lobatiano foi virando gente grande e
começou a mostrar as marcas disso — justamente essa capacidade de não se
isolar a fantasia do real. (MACHADO apud BASTOS, 1995, p. 51)
Longe da pretensão de empreender um levantamento biográfico, passa-se brevemente
por alguns pontos relevantes da vida de Ana Maria Machado. A escritora carioca nasceu em
1942 no morro de Santa Teresa e cresceu nas areias de Ipanema. As férias de infância junto
com os primos e a casa repleta de livros foram marcos importantes na sua formação.
Antes de se entregar ao mundo das letras, iniciou a faculdade de Geografia e dedicou-
se à pintura num curso que fez no Museu de Arte Moderna no Rio. Formou-se em Letras pela
Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e fez doutorado
na Sorbonne, em Paris. Orientada por Roland Barthes, a tese de doutoramento versou sobre o
papel dos nomes próprios nas obras de Guimarães Rosa. Organizada sob a forma de livro, a
tese foi a primeira publicação da escritora em 1976 com o título de Recado do nome.
Nos anos de 1970, Ana Maria Machado era uma das principais figuras da revista
Recreio que teve participação efetiva na mudança do tratamento dado aos textos infantis,
numa continuidade à proposta lobatiana. Em 1977, publica sua primeira obra para o público
infantil: Bento que bento é o frade.
A escritora já foi professora, jornalista, dona da livraria Malasartes, fez até programa
de rádio, e hoje vive da e para a literatura. Além da criação de textos, também fez traduções e
adaptações de livros de grandes escritores mundiais. A produção de textos que o público
infantil também pode ler foi a origem da fama dessa escritora.
33
A versatilidade da ocupante da cadeira de número 1 da Academia Brasileira de Letras
desde 2003 revela-se também em seus oito romances e diversos textos críticos. Os prêmios
multiplicam-se e retratam a qualidade literária não restrita à obra dita infanto-juvenil de Ana
Maria Machado. Ainda assim, os organizadores do livro Trança de histórias: a criação
literária de Ana Maria Machado (2004), coletânea de estudos sobre a escritora, destacam uma
contradição:
Ao folhear as histórias e os dicionários mais conhecidos de literatura
brasileira, não encontramos facilmente referências à sua obra. Por outro lado,
percorrendo os sites de busca da internet, verificamos que há disponível
cerca de uma centena de livros seus nas livrarias. Pode-se sempre alegar que
sua literatura não é erudita ou pertence a um gênero ou subgênero
considerado menor, voltado para o mercado, mas não se pode ignorar o
fenômeno. (ANTUNES et al., 2004, p. 7)
Ciente dessas questões, a escritora continua produzindo, independentemente da
classificação etária que se possa auferir às obras. Tal qual Raul, uma de suas personagens
mais famosas, Ana não conseguiu manter-se omissa diante das imposições da ditadura militar
e foi perseguida e, em 1969, exilou-se em Paris e depois em Londres. O protesto em relação
ao poder imposto é uma constante nas obras da escritora que, em Contracorrente: conversas
sobre leitura e política (1999), assume um posicionamento contestatório:
Sou mesmo contra a corrente. Contra toda e qualquer corrente, aliás. Contra
os elos de ferro que formam cadeias e servem para impedir o movimento
livre. E contra a correnteza que na água tenta nos levar para onde não
queremos ir. No fundo, tenho lutado contra correntes a vida toda. E remado
contra a corrente, na maioria das vezes. Quando as maiorias começam a virar
uma avassaladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em
imaginar como aquilo poderia ser diferente. (MACHADO, 1999, p. 7)
3 Brincando de tornar-se mulher
3.1 Brincar é coisa séria
O ato de brincar não representa apenas um momento de ócio da criança, ele é normal
durante a infância. Nessa atividade tipicamente pueril, a criança também descobre os valores
do mundo que a cerca e, assim, se constrói como indivíduo pertencente a um grupo social.
Dessa forma, pode-se conceber a brincadeira como um dos elementos responsáveis pelo
enraizamento de valores culturais. A transmissão desses princípios é feita de geração para
geração e, atualmente, bastante influenciada também pelos meios de comunicação.
A criança não é um adulto em miniatura, ela possui características próprias que
precisam ser devidamente estimuladas para que se torne, no futuro, um indivíduo mais
criativo e socializado. Na transição da infância para a idade adulta, os pequenos precisam
percorrer as etapas de desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social. Durante esse
percurso de amadurecimento humano, brincadeiras e jogos desempenham importante papel.
Parece haver consenso entre diversas áreas do saber quanto à relevância do ato de
brincar para o desenvolvimento humano. Por conta disso, multiplicam-se os estudos acerca do
assunto ligados a Sociologia, Antropologia, Medicina, Psicologia dentre outras áreas, além
daquelas afins à Educação. Percebe-se o reconhecimento da importância de brincar também
nas leis brasileiras, como registra o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL,
Lei Federal nº 8.069). No capítulo II “Do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade” do
ECA, o artigo 16 registra em seu inciso IV que “brincar, praticar esportes e divertir-se” são
aspectos que integram o direito à liberdade.
Dada a importância que as sociedades aferem às atividades lúdicas, vários autores
mergulham na história dos jogos e das brincadeiras. Nessa linha, podem ser destacados nomes
como Walter Benjamin, Philippe Ariès, Donald W. Winnicott, Gilles Brougère e Bruno
Betthlheim.
35
As memórias do brincar e dos brinquedos são processos analisados pelo olhar atento
de Walter Benjamin no livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2002). Em
alguns dos ensaios que compõem essa obra, problematiza-se a perda da singularidade e a
crescente “plastificação” dos brinquedos como reflexos da homogeneização própria do
processo de industrialização. Fundamentado em referenciais históricos, o autor explicita como
o capitalismo delineia seus contornos sociais, por meio de objetos que passam, muitas vezes,
despercebidos, como os brinquedos.
Na mesma linha benjaminiana, Roland Barthes inclui o brinquedo como um dos mitos
contemporâneos que mascaram o fato de que tudo passa necessariamente por um crivo
histórico. Ao tratar do aburguesamento do brinquedo, o autor revela como a industrialização
abafa cada vez mais o poder criador, inventivo infantil, na medida que os brinquedos feitos de
“matéria ingrata” já vêm prontos, acabados. Dessa forma, “a criança só pode assumir o papel
proprietário, do utente, e nunca o do criador; ela não inventa o mundo, utiliza-o: os adultos
preparam-lhe gestos sem aventura, sem espanto e sem alegria” (BARTHES, 1980, p. 41).
A fim de traçar a História social da criança e da família (1981), Philippe Ariès dedica
um capítulo ao assunto: “Pequena contribuição à história dos jogos e brincadeiras”. Nele, o
historiador registra que, na sociedade medieval, o sentimento da infância de fato não existia.
Não havia consciência da particularidade infantil, isto é, a distinção entre criança e adulto. A
idéia de infância estava ligada à dependência, ao processo que essa fase representava para o
ingresso pleno no mundo dos adultos. Deixar de ser criança estava vinculado ao fato de o
infante ter condições de viver sem a dependência constante da mãe ou ama. A partir desse
momento, ele ingressava na sociedade dos adultos, sem se distinguir mais deles. A
equivalência entre crianças e adultos se estendia a todas as atividades sociais, como
profissões, manuseio de armas, atividades domésticas e também aos jogos e brincadeiras.
36
Quanto à função social das atividades lúdicas, Ariès (1981) comenta que
Na sociedade antiga, o trabalho não ocupava tanto tempo do dia, nem tinha
tanta importância na opinião comum: não tinha o valor existencial que lhe
atribuímos há pouco mais de um século. Mal podemos dizer que tivesse o
mesmo sentido. Por outro lado, os jogos e divertimentos estendiam-se muito
além dos momentos furtivos que lhes dedicamos: formavam um dos
principais meios de que dispunha uma sociedade para estreitar seus laços
coletivos, para sentir-se unida. Isso se aplicava a quase todos os jogos, mas
esse papel social aparecia melhor nas grandes festas sazonais e tradicionais.
(p. 51)
Dessa forma, a constituição de uma sociedade baseada no trabalho acaba por afastar,
paulatinamente, os adultos de brincadeiras e jogos que passam a ser vistos como perda de
tempo. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, vai surgindo um novo conceito de infância que
precisa ser educada e ter sua moral preservada, além de receber um tratamento diferenciado
em relação aos adultos.
Referencia Ariès (1981) que atividades lúdicas como os jogos são categorizadas em
boas ou más para as crianças. Assim, em especial os jogos pautados em regras passaram a ser
vistos como instrumento didático e de controle, principalmente por influência dos colégios
jesuítas. Como aponta o historiador, os jogos se mostraram como uma forma de controle, de
exercício do poder de forma sutil: “Assim disciplinados, os divertimentos reconhecidos como
bons foram admitidos e recomendados, e considerados a partir de então como meios de
educação tão estimáveis quanto os estudos” (ARIÈS, 1981, p. 65).
O pediatra e psicanalista Donald W. Winnicott discute a importância da brincadeira na
formação do indivíduo em O brincar e a realidade de 1971. Para o autor, a brincadeira é
universal e facilita o crescimento, logo é um exercício de saúde. Além disso, as atividades
lúdicas conduzem aos relacionamentos grupais e ao processo de simbolização do mundo, por
isso podem ser exploradas até em psicoterapia. Dessa forma, o ato de brincar,
independentemente de se manifestar por brincadeiras ou jogos, funciona como elo entre a
realidade e o mundo interior não só de crianças, mas também de adultos.
37
Um dos maiores especialistas no mundo em jogos e brinquedos, o filósofo e
antropólogo francês Gilles Brougère afirma que é preciso romper o mito da brincadeira
natural. Para o antropólogo, a brincadeira não é inata e pressupõe uma aprendizagem social.
Segundo o autor,
A criança está inserida, desde o seu nascimento, num contexto social e seus
comportamentos estão impregnados por essa imersão inevitável. Não existe
na criança uma brincadeira natural. A brincadeira é um processo de relações
interindividuais, portanto de cultura. (BOUGÈRE, 2004, p. 97)
Apesar de considerarem muitas vezes as brincadeiras como “coisas de criança”,
muitos adultos sentem-se seduzidos por determinadas atividades lúdicas. Ao tratar sobre uma
exposição de brinquedos num museu de Berlim, Walter Benjamin compartilha suas
inquietações diante da quantidade de visitantes que o espaço recebe. Em meio a soldados de
chumbo, trenzinhos elétricos, marionetes, bonecas e muitos outros objetos, adultos e crianças
ficam igualmente fascinados por esses ícones do mundo lúdico. A partir desse evento, o autor
enfatiza também o interesse nos brinquedos enquanto objetos de estudo que retratam o
pensamento de uma época: “Hoje em dia, os brinquedos antigos tornam-se significativos sob
muitos aspectos. Folclore, psicanálise, história da arte e a nova configuração gráfica
encontram neles um objeto bastante profícuo” (BENJAMIN, 2002, p. 84).
Elementos importantes para algumas brincadeiras, os brinquedos constituem-se em
objetos semióticos portadores de valores social e culturalmente construídos. Tais brinquedos
fazem parte do cotidiano de várias famílias e transmitem para as crianças mensagens
subjacentes sobre o mundo social em que estão inseridas. Esses despretensiosos elementos são
repositórios de ideologias engajadas num sistema de valores sociais.
Deve-se considerar que os brinquedos apresentam duas dimensões importantes: o que
são efetivamente (construção social) e como são utilizados por seus usuários (aceitando ou
rejeitando significados socialmente construídos). Brougère propõe uma designação específica
para esses dois pólos dos objetos lúdicos: domínio simbólico e domínio funcional (2004, p.
38
15). Assim, os brinquedos são objetos para serem lidos como textos e também para serem
considerados enquanto elementos manipulados.
Cientes do poder formador que os brinquedos podem ter, indústrias e mídia
empenham-se não apenas em seduzir as crianças, mas principalmente em atingir os pais,
detentores do poder de compra. Tentando assumir o papel de bons formadores, muitos
responsáveis reproduzem anseios pessoais na escolha dos brinquedos dos filhos. Sobre esse
tipo de comportamento, Benjamin enfatiza que muitos objetos comprados pelos responsáveis
“caracterizam antes aquilo que o adulto gosta de conceber como brinquedo do que as
exigências da criança em relação ao brinquedo” (BENJAMIN, 2002, p. 86).
Dessa forma, o crítico alemão vai delineando o brinquedo como um ponto importante
na formação infantil. Durante a exposição, é ressaltada, algumas vezes, a responsabilidade dos
adultos na inserção desse constructo cultural na vida das crianças. Destaca-se ainda que os
brinquedos já estão ao alcance infantil antes mesmo de serem compreendidos enquanto
objetos lúdicos pelas crianças.
Nessa perspectiva, é possível vislumbrar o caráter formador que os brinquedos
possuem e como são usados enquanto veículos de difusão de valores. Logo, para a
manutenção do sistema patriarcal, é bastante funcional a classificação tradicional em
brinquedos de menina (panelinhas, bonecas, vassouras etc.) e de menino (bolas, carrinhos,
robôs etc.). Tal distinção, como sistematiza Ariès (1981, p. 41), é antiga, pois em torno de
1600 a especialização dos brinquedos já estava consumada, com algumas diferenças em
relação aos conceitos atuais.
Há significados sociais potenciais que diferenciam, especificamente, o que se designa
como brinquedo de menino e de menina. Por exemplo, a idéia de domesticidade (lar e
mulheres como donas-de-casa) é comumente associada às brincadeiras de meninas. Já as
práticas da relação de paternidade, geralmente, não são representadas através de brinquedos
39
específicos, como acontece com a maternidade, e nem estão associadas ao universo
masculino. Sobretudo nos brinquedos que representam seres humanos, pode-se notar
claramente a hipervalorização das formas esbeltas de corpo feminino (Susy e Barbie) e a
musculatura mais desenvolvida dos representantes masculinos, remetendo à força física
(super-heróis em geral e Falcon)
6
.
É possível notar, na contemporaneidade, pequenas mudanças nesses estereótipos de
corpos masculinos e femininos nos brinquedos. Enquanto os games de batalhas intergaláticas
trocam fortes guerreiros por estratégia e tecnologia, a febre Harry Potter leva às prateleiras
réplicas do herói magro e de óculos. Pelo menos no que diz respeito ao masculino, a
representação de corpos musculosos nos brinquedos não é unanimidade. As heroínas dos
desenhos transformadas em brinquedos, as Meninas Superpoderosas, possuem imensas
cabeças que podem ser entendidas como valorização do saber em detrimento do corpo.
Em consonância com o que foi mencionado, é imperativo ressaltar que o ato de brincar
é fundamental para a formação de um indivíduo não só no nível pessoal, mas também na
sociabilidade. Dada a importância de brincar, é necessário estabelecer uma distinção
terminológica entre brincadeira e jogo, que na prática são usados como equivalentes.
O dicionário de referência da língua portuguesa no Brasil, Dicionário Aurélio
(FERREIRA, 1999), registra várias acepções para ambos os termos, das quais serão
destacadas as mais relevantes para esta abordagem:
a) brincadeira
“1. Ato ou efeito de brincar; brinco.
2. Divertimento, sobretudo entre crianças; brinquedo, jogo.
3. Passatempo, entretimento, entretenimento, divertimento.” (s. p.)
b) jogo
“1. Atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que
definem a perda ou o ganho: jogo de damas; jogo
de futebol.
2. Brinquedo, passatempo, divertimento: jogo de armar; jogos de salão.” (s.
p., grifos do autor)
6
Sobre a análise de brinquedos que representam seres humanos e as questões de gênero, recomenda-se o artigo
“Discurso crítico e gênero no mundo infantil: brinquedos e a representação de atores sociais” (CALDAS-
COULTHARD, 2004)
40
A partir das definições, percebe-se que, mesmo havendo equivalência dos termos nas
segundas acepções de cada verbete, existe uma sutil diferença. Ao se definir jogo na primeira
acepção, logo é frisada a questão das regras e do sistema ganha-perde. Dessa maneira, embora
esteja num dicionário de referência, a definição já ressalta distinção em relação à brincadeira,
pela ligação entre jogo e competitividade.
O psicólogo Bruno Bettelheim delimita de forma mais apurada a diferença entre os
vocábulos, conforme registra a passagem a seguir:
Se bem que os termos “brincadeira” e “jogo” sejam, com freqüência,
intercambiáveis, não são idênticos no significado. Ao contrário, referem-se a
estágios claramente distinguíveis do desenvolvimento, sendo “brincadeira”
relacionada a um estágio primitivo, e “jogo”, a uma fase mais amadurecida.
(1988, p. 157)
Entende-se, a partir dessas considerações, que é necessário maior amadurecimento do
indivíduo partícipe de um jogo que de uma brincadeira. Isso se deve ao estabelecimento e
aceitação das regras orientadoras da atividade, a fim de definir vencedor(es). A esse respeito,
acrescenta o psicólogo que as brincadeiras, livres de regras, estão mais ligadas a crianças
pequenas, pelo domínio da fantasia e ausência de objetivos fora da atividade em si. Os jogos
se destacam mais em função da realidade objetiva, como se pode observar na passagem a
seguir:
Os “jogos”, por outro lado, são, de regra, competitivos e caracterizados por
uma exigência de se usar os instrumentos da atividade do modo para o qual
foram criados, e não como a imaginação ditar; e freqüentemente por um
objetivo ou propósito externo à atividade em si, como, por exemplo, o de
ganhar. (BETTELHEIM, 1988, p. 157)
A palavra jogo também comporta o significado de objeto, registrado na segunda
acepção do verbete do dicionário analisado. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma distinção
de jogo em relação a brinquedo, conforme indica Brougère:
De fato, o vocabulário usual, aquele que crianças e pais empregam
espontaneamente, também usado nos catálogos e revistas de brinquedos,
distingue, no conjunto dos objetos lúdicos, os brinquedos dos jogos. Aquilo
que é chamado de jogo (jogo de sociedade, de construção, de habilidade,
jogos eletrônicos ou de vídeo...) pressupõe a presença de uma função como
determinante no interesse do objeto. (2004, p. 12)
41
Pode-se entender, assim, que os jogos possuem um objetivo específico
predeterminado, que pode ser o desenvolvimento da coordenação motora (jogos de encaixar),
derrotar uma memória eletrônica (jogos eletrônicos), ganhar de outros (jogos de competição)
etc. Os brinquedos, por seu valor expressivo, são estímulos à brincadeira por abrirem
possibilidades coerentes com o que representam. Sendo assim, o brinquedo propõe uma ação
lúdica, mas não limita outras possibilidades. Munida de uma boneca-bebê, uma criança pode
exercer funções de maternagem
7
, ou não.
Considerando, portanto, que brinquedos, jogos e brincadeiras são recursos usados
pelas crianças como possibilidade de compreensão do mundo que as cerca, é importante
observar como Ana Maria Machado dimensiona essa questão através da literatura. Nesta
análise, a ênfase recairá no que diz respeito à delimitação dessas atividades e objetos para
meninos e meninas, como reforço ou não da construção dos gêneros.
São vários os livros da autora que fazem referência a brincadeiras, jogos e brinquedos.
Oriunda de uma família grande que passava férias reunida numa casa de praia em
Manguinhos, no Espírito Santo, Ana Maria Machado conhece bem algumas das chamadas
brincadeiras tradicionais. Dessa forma, pique-bandeira, cantigas de roda, polícia e ladrão,
dedo mindinho, dentre muitas outras atividades lúdicas povoam as histórias da escritora.
Através das narrativas da autora, há uma valorização da criatividade infantil que nem
depende de brinquedos para se efetivar. Em Lugar nenhum (MACHADO, 1994), por
exemplo, as crianças Luísa, Taís e Marco vivenciam grandes aventuras através da imaginação,
ainda que estivessem presas dentro de casa por causa da chuva. Avô e neta se divertem com
as próprias sombras projetadas no chão em Brincadeira de sombra (MACHADO, 2001a),
numa trança de gerações a experimentar os fenômenos físicos.
7
Entenda-se maternagem como cuidados materiais e biológicos que uma pessoa desempenha em relação a uma
criança, não sendo uma condição inerente à mulher. Para mais esclarecimentos sobre o assunto, ler O mito do
amor materno, de Elisabeth Badinter, editado no Brasil pela Nova Fronteira.
42
Em alguns textos, os brinquedos não-industrializados e não constituídos de “matéria
ingrata” ganham espaço e valorizam ainda mais a imaginação infantil. Em A maravilhosa
ponte do meu irmão (MACHADO, 2000), uma simples tábua de madeira transforma-se em
pista, rampa ou ponte que liga realidade e fantasia. Em Pena de pato e de tico-tico
(MACHADO, 1988b), as crianças Benedito e Janaína protagonizam uma história que
questiona a delimitação de bola como brinquedo de menino e boneca de menina. Com o
sumiço da bola e da boneca, ambos compartilham uma peteca e a associação do tipo de
brinquedo com o sexo é desconstruída, como se pode notar no desfecho da narrativa: “Ótima
peteca de pena. Pena de pato e de tico-tico mas ótimo mesmo é bola e peteca, pipa e boneca.
Tudo jogo de amigo. De menino e de menina. De Benedito e Janaína” (MACHADO, 1988, p.
22 – numeração nossa).
Em Bem do seu tamanho (MACHADO, 1988a), explora-se essa questão associada ao
fato de algumas crianças, como é o caso da personagem central dessa história — Helena,
serem pobres e não possuírem brinquedos industrializados:
Bolão era o brinquedo preferido de Helena. Não era muita vantagem, porque
ele era o único brinquedo dela. Pelo menos, brinquedo feito. Por que
brinquedo virado, ela tinha uma infinidade: os riscos de fazer amarelinha no
chão, os seixos que ela catou no rio para o jogo das cinco pedrinhas, uma
porção de cavacos de lenha do fogão que ela usava para fazer construções e
mais um monte de coisas. (p. 7)
Assim como as crianças do Sítio possuíam o Visconde de Sabugosa, que embolorava e
ganhava nova configuração nas mãos de Tia Nastácia, a menina Helena possui o Bolão, o boi
de mamão. É justamente montada nesse boi de mamão, que ela se aventura numa viagem de
questionamentos e amadurecimento. Num processo semelhante de crescimento pessoal, a
personagem Nita também empreenderá uma viagem que será foco de estudo na seção
subseqüente deste trabalho.
Ana Maria Machado, através de seus textos, mistura atividades lúdicas e ficção, num
jogo entre realidade e literatura, seguindo a perspectiva proposta por Umberto Eco.
43
A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças aprendem a
viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar como adultos.
E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa capacidade de
estruturar nossa experiência passada e presente. (1994, p. 93)
3.2 Mas por quê?
Bento que Bento é o frade foi escrito, originalmente, como uma peça teatral ganhadora
do Prêmio de Dramaturgia Infantil do Teatro Guaíra, com o título de No país dos Prequetés.
Sua adaptação literária foi o primeiro livro infantil da carreira de Ana Maria Machado,
lançado em 1977, cinco anos depois do retorno da autora ao Brasil, que estava no exílio por
questões políticas.
Numa divisão quanto às linhas ou tendências da literatura infantil/juvenil
contemporânea elaborada por Coelho (2000), encontra-se Bento que Bento é o frade na lista
de obras ligadas à aventura de viver, às travessuras do dia-a-dia, enfim, à alegria ou aos
conflitos existenciais resultantes do convívio humano. Assim, a história da protagonista, Nita,
mergulha a ficção na realidade a fim de questionar, discutir e tentar transformar essa
realidade.
A menina Nita é bastante irreverente, questionadora e reflete sobre as coisas do
cotidiano, até mesmo aquelas que já são dadas como “certas”. Em um anexo da edição
analisada de Bento que Bento é o frade (2003), Ana Maria Machado comenta a própria obra:
A gente estava em plena ditadura, convivendo com autoritarismo,
arbitrariedade e repressão. Então foi natural eu escrever a história de uma
menina (Nita, que só depois eu vi que era eu mesma, Anita) que não gostava
de mandação e sonhava com um lugar onde pudesse fazer tudo o que
quisesse. (p. 46)
Essa Nita-Anita-Emília compartilha seus questionamentos com os outros e traz em si
um pouco da influência de Monteiro Lobato que a escritora faz questão de frisar em
entrevistas e palestras. Foi exatamente a irreverência da personagem Nita que tocou o poeta e
44
cronista Carlos Drummond de Andrade. Para registrar sua simpatia em relação à protagonista
de Bento que Bento é o frade, escreveu num bilhete
8
, em agosto de 1977, os versos a seguir:
Fiquei deveras gamado
pela figura de Nita,
a criação tão bonita
de Ana Maria Machado.
Por onde que que ela siga,
brota uma alegre verdade.
Se bento que bento-é-o-frade,
ai Nita-que-Nita-amiga! (1977, s. p.)
Em meio à mistura do maravilhoso com a realidade, a escritora usa como mote para as
perguntas lançadas pela menina o jogo infantil de bento-que-bento-é-o-frade. Essa atividade
lúdica torna-se o início de um percurso de dúvidas compartilhadas por Ana Maria Machado,
personagens e leitores.
Por ser elemento folclórico, o jogo tradicional infantil assume características de
anonimato, transmissão oral, conservação, mudança e universalidade. Enquanto manifestação
espontânea da cultura popular, os jogos tradicionais têm a função de perpetuar costumes e
hábitos, além de desenvolver formas de convivência social.
Quanto ao registro de bento-que-bento-é-o-frade, foi feito um levantamento no
Dicionário de Folclore e em outros títulos da obra do etnógrafo e historiador Câmara
Cascudo e não houve menção explícita ao jogo. Em 268 jogos infantis (1991), Figueiredo
Pimentel, nos registros feitos da tradição oral, referencia bento-que-bento-é-o-frade apenas
com as instruções de como proceder, incluído na categoria “Outros jogos infantis”. Ainda em
outras obras relacionadas a folclore, brincadeiras e jogos tradicionais, só foi encontrada a
descrição de como se desenvolve a atividade.
Quanto à origem do jogo, foi localizado um registro de analogia a uma parlenda
castelhana da tradição quinhentista chamada “Juan de las Cadenetas” e a outra portuguesa
8
Há uma reprodução do referido bilhete na página oficial de Ana Maria Machado na internet. O poeta também
opinou sobre Raul da ferrugem azul, em um bilhete reproduzido no livro Ana & Ruth (BASTOS, 1995, p. 98).
45
intitulada “Vintém queimado” ou “Vilão do Cabo” (RIBEIRO, 1969, p. 50). A aproximação
dos textos foi possível porque o folclorista João Ribeiro encontrou semelhanças como a
presença do diálogo com perguntas e respostas, a existência de um líder, além do interesse de
vários jogos do folclore infantil por questões culinárias. O pesquisador propõe que bento-que-
bento-é-o-frade seria uma variante dessas parlendas, por deturpação da linguagem popular.
A fim de estabelecer uma relação mais clara entre este jogo e a narrativa, é importante
observar a dinâmica da atividade lúdica e os papéis desempenhados pelos participantes. Para
que se realize o jogo, é necessário um grupo de participantes, dos quais um assume a posição
de líder. O objetivo é obedecer às tarefas indicadas pelo mestre o mais rápido possível, pois o
último será penalizado com “bolo”, isto é, tapa na palma da mão. A estruturação do jogo, cujo
título dialoga com recorte vocabular do universo religioso, penaliza o perdedor em vez de
premiar o melhor ou o mais rápido como vencedor.
Como intróito ao comando do líder, segue-se um diálogo entre mestre e participantes
que, por integrar a tradição oral, admite versões parecidas. Em função disso, transcreve-se, a
seguir, a forma constante na obra em exame:
— Bento-que-bento-é-o-frade.
— Frade!
— Na boca do forno!
— Forno!
— Cozinhando um bolo!
— Bolo!
— Fareis tudo o que seu mestre mandar?
— Faremos todos!
— E quem não fizer?
— Ganhará um bolo! (MACHADO, 2003, p. 5)
Depois desse diálogo entre mestre e grupo, delimita-se a tarefa a ser realizada. Quanto
à penalização a quem não cumprir a tarefa ou for o último a executá-la, algumas versões
apontam uma gradação da intensidade do bolo por decisão de todo o grupo. A respeito desse
bolo, registra o Guia do folclore fluminense (FRADE, 1985) que seria “punição aplicada
46
àqueles que não cumprem as tarefas implícitas no desenvolvimento de jogos infantis. Trata-se
de tapa aplicado pelo líder na palma da mão do companheiro infrator” (p. 41).
Como uma forma de criar castigo relativo ao problema do perdedor, o bolo pode variar
em número e intensidade, conforme deliberação dos próprios participantes. Assim, podem ser
classificados em bolo de anjo (toca-se a mão levemente), bolo de mãe (bate-se severamente) e
bolo de pai (bate-se o mais forte possível). Ainda é possível encontrar bolos de tia, de amigo,
de capeta, dentre outras variantes que a imaginação proporcionar.
Esse tipo de gradação, sobretudo na distinção da severidade do tapa entre mãe e pai,
revela construções sociais subjacentes que se ligam ao masculino e ao feminino. A idéia de
ser mais forte o bolo dado pelo pai reflete uma pretensa superioridade masculina, além de
associá-lo com a violência. Na narrativa em exame, entretanto, não há referência a essa
classificação dos bolos.
A partir das características desse jogo, é possível delinear a importância que bento-
que-bento-é-o-frade possui para a narrativa. Embora não haja referenciais etários, pode-se
considerar que as crianças possuem certo grau de maturidade, pois participam da atividade e
discutem durante a realização dela, sobretudo a partir das opiniões de Nita.
Com base nos comentários de Ana Maria Machado acerca da própria obra, já citados
anteriormente, as questões ligadas ao poder são a tônica da narrativa. Em meio às reflexões de
Nita sobre a instituição do poder, também emergem diferenças entre os sexos. Então, através
desse jogo, a menina toma contato com regras impostas com as quais não concorda e isso gera
uma série de questionamentos relacionados ao poder de uma maneira geral.
O filósofo francês Michel Foucault sistematizou questões ligadas a uma genealogia do
poder. Suas propostas, mesmo 22 anos depois da morte do autor, influenciam áreas diversas
do saber, por conta da abrangência do tema poder. No livro Vigiar e Punir (1975), trata-se da
“Sociedade Disciplinar”, implantada a partir dos séculos XVII e XVIII, como um sistema
47
capilarizado de controle social que se dá através da conjugação de várias técnicas de
classificação, seleção e vigilância. Assim, essa obra propõe uma nova concepção de poder
organizado numa estrutura sutil, microfísica, que não se restringe aos governos e tem na
linguagem um dos seus elementos constitutivos. Nessa leitura, revela-se uma organização do
poder que tem reflexos na vida do cidadão comum cotidianamente, de forma consciente ou
não.
Essas idéias de Foucault sobre as questões relacionadas ao poder apontam não só o
discurso como também o silêncio enquanto formas de manutenção da rede microfísica que
mantém o controle. Nesse sentido, as constantes interrogações de Nita convidam à reflexão,
em vez de se restringirem a uma mera repetição porque alguém disse que “sempre” foi assim.
Afinal, nem tudo que seu mestre mandar precisamos fazer, ordens podem ser contestadas ou
cumpridas de uma maneira individualizada.
Nessa linha, as interdições de Nita convidam os colegas a refletirem não só sobre as
regras da atividade lúdica, mas também a respeito do que dizem. Um desses questionamentos
se direciona às próprias palavras que constituem o diálogo entre mestre e participantes do
bento-que-bento-é-o-frade.
— Pensem bem. Que quer dizer essa coisa de bento-que-bento-é-o-frade?
Não tem nada a ver com frade. E forno não tem boca. E esse negócio de
cozinhar bolo? Ninguém cozinha bolo, todo mundo bota bolo pra assar,
ainda mais no forno. E no fim a gente ainda ganha bolo de palmada em vez
de comer bolo de forno. (MACHADO, 2003, p. 11)
A partir do uso do verbo “pensar”, Nita convida os amigos a refletirem sobre o limite
entre realidade e brincadeira. Como assinala Brougère (2004), “a brincadeira é uma mutação
de sentido, da realidade: as coisas aí tornam-se outras. É um espaço à margem da vida comum
que obedece a regras criadas pelas circunstâncias” (p. 100). Dessa forma, subjaz uma proposta
para se desconfiar do que é tomado como “natural”, porque os comportamentos não são dados
de antemão, mas social e culturalmente construídos, enredados na rede capilar de poder. Uma
48
pequena troca de sílabas que pode fazer muita diferença, em vez de simplesmente rePEtir,
deve-se antes reFLEtir.
Ao iniciar a narrativa, Ana Maria Machado apresenta as personagens: “Na calçada, e
se escondendo pelos quintais das casas da vizinhança, uma porção de meninos e meninas
brincava depois do jantar” (MACHADO, 2003, p. 3). Nessa contextualização, percebe-se uma
preocupação em frisar a presença de meninas, colocadas inicialmente em igual patamar com
os meninos, ainda que em menor número.
Para muitas pessoas, não causaria nenhum estranhamento se o grupo de crianças fosse
simplesmente designado por “meninos”. Referir-se a meninos e meninas na forma masculina,
independente da questão numérica, ratifica uma aparente “supremacia” do masculino em
relação ao feminino. Além disso, tal atitude ainda oculta a presença do elemento feminino.
Nessa perspectiva, Louro (1997) registra que “a linguagem institui e demarca os lugares dos
gêneros não apenas pelo ocultamento do feminino, e sim, também, pelas diferenciadas
adjetivações que são atribuídas aos sujeitos” (p. 67).
A proposta da narrativa de colocar em nível de equivalência meninas e meninos
reflete, de alguma maneira, as transformações do sistema social contemporâneo em que o
androcentrismo está sendo revisto. Coelho (2000, p. 150-162), em relação à literatura infantil
e juvenil, assinala mudanças na abordagem do papel social do elemento feminino quanto aos
padrões consolidados pela sociedade romântica. Se na abordagem tradicional a autoridade
suprema e decisória era exercida pelo masculino, até por seu poder financeiro, os novos
tempos prenunciam igualdade de decisão entre homens e mulheres. Perde o sentido, portanto,
a construção de uma “superioridade” do homem, patente no plano da vida prática, em
correspondência a uma idealização da mulher, restrita ao ambiente doméstico.
Em se tratando de um jogo, emerge a importância de se definirem os parâmetros para a
realização da atividade, isto é, as regras. Enquanto atividade que pressupõe ao menos dois
49
participantes, o jogo exige que haja limites norteadores dessa relação social. As regras não
preexistem ao jogo, mas a definição desses parâmetros, muitas vezes, já vem pronta para os
jogadores. Brougère estabelece uma relação interessante entre dois princípios aparentemente
excludentes, regra e livre escolha. Segundo o antropólogo, a regra só tem valor se, de fato, for
aceita pelos participantes da atividade, ainda assim pode ser transformada por uma
renegociação coletiva. Dessa forma, “é preciso ver que a regra não é a lei, nem mesmo a regra
social é imposta de fora” (BROUGÈRE, 2004, p. 101).
Na narrativa, não há referência a uma definição prévia entre os participantes de como
funcionaria o bento-que-bento-é-o-frade. É como se já fosse de conhecimento de todos como
se estabelece a relação de poder subjacente a esse jogo: o mestre manda e os demais
obedecem sem contestação. Quanto à definição do(s) vencedor(es), cabe também ao mestre a
decisão.
Assim a idéia de aceitação passiva diante de todo o processo envolvido na atividade
começa a mostrar-se como um problema a partir dos questionamentos de Nita. Como os jogos
ajudam a desenvolver um aprendizado quanto aos mecanismos de funcionamento social,
percebe-se a reduplicação das relações de poder enredadas na microfísica cotidiana.
Uma das vantagens oferecidas pelos jogos coletivos é a co-participação, não só na
definição das regras como no desenvolvimento da atividade. Subliminarmente, os jogos
retratam as relações sociais e têm relevância na história das sociedades. A esse respeito, o
livro História das crianças no Brasil de 2006 dedica um capítulo especial escrito por Raquel
Zumbano Altman: “Brincando na história”. A especialista em brincadeiras e jogos, numa
passagem do capítulo, ressalta a importância social que os jogos desempenham, não só para o
indivíduo como para o convívio em grupo, como se constata a seguir:
Por meio dos jogos a criança, em todos os tempos, estabelece vínculos
sociais, ajustando-se ao grupo e aceitando a participação de outras crianças
com os mesmos direitos. Aprende a ganhar, mas também a perder. Acatando
regras, propondo e aceitando modificações, aprende a apoiar o mais fraco e a
consagrar o vitorioso. Ao sair-se bem, torna-se confiante e seguro. Quando
50
perde se aborrece, mas enfrenta a realidade. Participa e é eliminado, como
parte do jogo. Assim aprende a agir como “ser social” e cresce. Os grupos
infantis são grupos de iniciação para a vida por intermédio da experiência e
em contato direto com o meio social em que vivem. Mesmo sendo situações
vividas de forma elementar, elas antecipam e preparam, passando pelos
diversos estágios culturais, para a vida adulta. (ALTMAN, 2006, p. 240)
Da forma como está sendo conduzido o jogo, Nita e seus amigos não estavam
exercitando plenamente a democracia, uma vez que todos acatavam regras não estabelecidas
previamente por eles. De fato havia uma reduplicação das relações de poder, sobretudo
ditatorial, por que o Brasil passava no momento em que o livro foi redigido.
No início do jogo, o comando do mestre foi de imitar um animal sem barulho. A partir
de então, cada uma das crianças optou por um animal: Zé foi um macaco, Chico escolheu um
galo, enquanto Lucinha representou uma pata choca. Pode-se proceder a uma análise mais
profunda, tendo como referência os elementos sugeridos por essas escolhas.
Inicialmente, cumpre observar as escolhas feitas pelos meninos: macaco e galo. Na
teoria cientificista, o macaco é considerado como o ancestral do desenvolvimento humano, já
o referencial simbólico afirma que “é muito conhecido por sua agilidade, seu dom de
imitação, sua comicidade” (CHEVALIER et al., 2000, p. 573). Quanto ao galo, registra o
simbolismo que o animal “é conhecido como emblema da altivez — o que é justificado pela
postura” (CHEVALIER et al., 2000, p. 457). Nessa linha, também se pode resgatar a
expressão popular “cantar de galo” que significa impor a própria vontade, num tom de
superioridade.
Dessa forma, os dois animais escolhidos pelos meninos remetem a referenciais da
construção social do masculino. A esperteza do macaco e a postura do galo representam a
idéia de supremacia do masculino em relação ao feminino. Some-se a isso a presença da ação
na caracterização dos dois animais, num contraste com a passividade construída como
integrante do feminino.
51
A menina Lucinha, já designada no diminutivo, opta por imitar uma pata. Existe nessa
representação uma referência à imagem de apatia e de passividade relacionada a esse animal.
Para ampliar o contraste entre as simbologias sugeridas para Lucinha e para os meninos, a
pata representada está choca, o que remete à maternidade.
Revela-se, assim, subjacente às caracterizações das crianças, as construções sociais
para o que seriam a masculinidade e a feminilidade. Todo esse procedimento das crianças é
contrastado com a atitude de Nita que escolhe vários bichos para representar.
O procedimento de Nita, diante do comando do mestre, foi bastante inesperado para as
demais crianças. A protagonista estava quieta e ninguém entendia o motivo. Como
aparentemente não imitara animal algum, foi cobrada quanto à realização da tarefa. Sendo
assim, explicou que representara, silenciosamente, vários animais. Essa atitude de aparente
não atividade ilustra bem uma das posições de resistência ao poder que a própria Ana Maria
Machado comenta em Esta força estranha: trajetória de uma autora (1996): luta armada,
exílio ou resistência silenciosa e arraigada. Essas três formas de resistência ao poder também
foram representadas simbolicamente através das personagens da história A jararaca, a
perereca e a tiririca (1998b). Depois de retornar do exílio, Anita, assim como a personagem
Nita, adotou a resistência “silenciosa”, seus protestos estavam presentes em seus livros, era só
prestar atenção.
Retomando a idéia de que os jogos contribuem na preparação para a vida adulta, a
predominância dos meninos em relação às meninas é importante. Também é interessante notar
que a posição de comando nunca está com as meninas, reproduzindo a construção social de
superioridade para o sexo masculino. A esse respeito, destaca Pierre Bourdieu que
os homens são educados no sentido de reconhecer os jogos sociais que
apostam em uma forma qualquer de dominação; jogos estes que lhes são
designados, desde muito cedo, e sobretudo pelos ritos de instituição, como
dominantes, e dotados, a este título, da libido dominandi; o que lhes dá o
privilégio, que é uma arma de dois gumes, de se entregarem seguidamente
aos jogos de dominação. (2005, p. 93)
52
A posição do sociólogo indicia a problemática envolvida na associação do elemento
masculino com o poder. Na verdade, todas as pessoas fazem parte da organização microfísica
do poder que também traz ônus para quem desempenha o papel de dominador. Bourdieu ainda
acrescenta que a exclusão feminina em relação aos jogos favorece a criação de uma imagem
de incapacidade no trato com questões políticas:
Elas [as mulheres] podem assumir em relação aos jogos mais sérios o ponto
de vista distante do espectador que observa de longe a tempestade — o que
pode fazer com que venham a ser vistas como frívolas e incapazes de se
interessar por coisas sérias, tais como a política. (BOURDIEU, 2005, p. 93)
E mais adiante, o autor ainda complementa que, por conta disso, as mulheres são
alienadas das relações políticas no sentido mais amplo que a palavra pode ter, da pólis.
“Excluídas dos jogos de poder, elas são preparadas para deles participar por intermédio dos
homens que neles estão envolvidos” (BOURDIEU, 2005, p. 97).
Na narrativa, diante da impossibilidade de comandar o jogo porque não foi a primeira
a cumprir nenhuma tarefa indicada pelo mestre, Nita afirma: “— Eu sei, eu não estava
fazendo questão de ser primeira. Eu queria era fazer alguma coisa, eu mesma. Uma coisa que
fosse nova e diferente” (MACHADO, 2003, p. 16). Para a menina, o que realmente importava
não era ter o poder de mandar, pois isso seria uma mera inversão de papéis entre dominante e
dominado, mas não ser passiva, tomar alguma atitude. Com essa opinião, Nita revela não ser
necessário estar na posição de dominador para mudar as coisas. Essa proposta de que cada um
faz a sua parte, mesmo que ela pareça à primeira vista insignificante, é uma constante na
produção de Ana Maria Machado. Assim aparecem retratadas decisões coletivas baseadas em
discussões, sem que haja um elemento centralizador do poder, nessa linha, destacam-se Uma
boa cantoria de 1980 e Era uma vez um tirano de 1982.
Inseridos no sistema patriarcal de poder, as personagens de Bento que bento é o frade
aceitam tacitamente a construção da relação dominante-dominado, a exceção de Nita. O
menino Juca revela em sua fala um posicionamento bastante “natural” quanto ao fato de haver
53
alguém que manda e outros que obedecem, principalmente porque só os meninos estiveram na
posição de mestre. A ponderação do menino revela uma posição masculina de que o poder
esteve por muito tempo em suas mãos, como se essa situação fosse o “normal”.
Ao destacar a identificação sexual de meninos e meninas no sistema patriarcal, Muraro
(2002 aborda como a cultura interfere no processo de delimitação de papéis sociais.
Estabelecendo relação com a pesquisa de uma psicóloga americana com adolescentes, a
autora afirma que a preparação social do menino para a vida pública e da menina para o
espaço doméstico se reflete na personalidade dos indivíduos. Assim, “a conseqüência direta
desta condição de ambos é o tipo de superego masculino, rígido e impessoal, que se opõe ao
feminino, mais flexível e pessoal” (MURARO, 2002, p. 179).
Os estudos de gênero, principalmente nas últimas décadas, também revelam
preocupação com as inseguranças por que os homens estão passando. A posição social de
provedor, chefe, responsável pelo sustento familiar e protetor está mudando e a insegurança
também afeta os homens, sem referenciais fixos de seus papéis sociais. Para Juca, pareceria,
então, muito fora de propósito qualquer mudança nessa situação de homens no comando que,
aparentemente, faria parte da “lógica” do mundo. No grupo, apenas Nita não está conformada
com a situação e não deseja ser como a metáfora do líquido que assume a forma do lugar em
que está.
— É esse negócio de mandar, mandar, e a gente fazer. Tem sempre alguém
mandando e a gente fazendo. Fazer tudo o que seu mestre mandar. Tudo o
que manda el-rei Nosso Senhor. Todo mundo tem a mania de ficar
mandando em criança sem parar. E a gente sempre obedecendo, obedecendo,
obedecendo, sem cansar. Mas estou achando que agora eu cansei.
(MACHADO, 2003, p. 18)
A partir desse descontentamento de Nita quanto a obedecer sempre, inicia-se uma
jornada para ouvir outras opiniões, “conhecer e ficar sabendo”, como diz a menina. Vários
contos de fadas apresentam um momento importante na trajetória do herói, que a psicanálise
caracteriza em nível simbólico também, a saída do príncipe atrás de aventuras ou para salvar
54
uma indefesa princesa. Esse momento de isolamento e independência garante, segundo
registra Bruno Bettleheim em A psicanálise dos contos de fadas (2000, p. 20), um
amadurecimento da personagem.
Na história de Nita, é ela que sai à procura de desafios, seguindo o exemplo do que
dizem os livros: “correr o mundo em busca de aventuras” (MACHADO, 2003, p. 17).
Percebe-se uma desconstução dos papéis tradicionalmente desempenhados pelo elemento
feminino, que ficava à espera, e masculino, que saía às conquistas. Ana Maria Machado,
noutro de seus livros, Gente, bicho, planta: o mundo me encanta (1984), retrata criticamente o
tradicional como ultrapassado e revela o papel feminino de passividade em contraste com a
mobilidade do masculino. Para isso, retrata a Inglaterra tendo como referencial de tempo o
século passado.
E nesse lugar, o que acontecia?
Os rapazes iam embora e as moças ficavam sem ter com quem namorar.
Naquele tempo ainda era muito atrasado:
moça tinha só que casar, não podia estudar nem sair pra trabalhar, e de sua
vida cuidar. (MACHADO, 1984, s. p.)
A autora, nessa passagem, propõe três ações que as mulheres não podiam executar
porque a mentalidade era outra: estudar, trabalhar e cuidar de sua própria vida. Essas ações
são contrapostas à opção única que a tradição oferecia para as mulheres: o matrimônio.
Muitas personagens femininas pintadas por Ana Maria Machado rompem com essa imposição
e vão construir suas próprias vidas de forma independente, como é o caso de Bia, personagem
do premiado romance A audácia dessa mulher de 1999. Essa marca estilística também se
evidencia na adaptação do conto popular “Dona Baratinha”, conhecido pela passagem “Quem
quer casar com a Dona Baratinha que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha?”. Na versão
de Ana Maria Machado, o final trágico por conta da morte do noivo (D. Ratão) na panela de
feijoada não impede de Dona Baratinha continuar sua vida: “— Coitado do ratinho! Mas para
mim foi uma sorte. Não podia dar certo um casamento com noivo que gosta mais de feijão do
55
que de mim. Melhor eu ficar sozinha e gastar meu dinheiro pra me divertir” (1998a, p. 23 –
numeração nossa).
Em consonância com esse movimento de amadurecimento, Nita resolve empreender
uma viagem e vai parar no país dos Prequetés
9
. Para que a personagem pudesse entender
melhor a complexa realidade, precisou deslocar-se para um espaço diferente, um outro país.
Interessante notar que a viagem é empreendida somente pela protagonista e com certeza de
retorno.
No país dos Prequetés, a menina enfrenta questionamentos equivalentes aos seus
concretizados na figura do irreverente boneco de pau chamado Prequeté, uma referência a
Pinóquio. Nesse espaço novo, também há predominância masculina (Prequeté, Procotó e
Prucutu) em relação ao feminino (Pracatá e Priquiti), mas a presença da menina equilibra a
distribuição. A idéia de superioridade masculina revela-se em alguns detalhes do encontro
entre Prequeté e Nita. Inicialmente, o boneco de pau surge de uma posição superior em
relação à menina, pois está em cima de uma árvore. Some-se a isso o tratamento cerimonioso
dispensado ao desconhecido, com a escolha do pronome “senhor”, usado de forma recorrente
nas falas de Nita.
Diante dessa opção de tratamento, problematiza-se a idéia de que o representante
masculino seja considerado senhor da menina. Nita, tão atenta aos detalhes em sua própria
realidade, é convidada a refletir acerca de seu próprio discurso pelo novo amigo: “Disse que
era seu senhor. Logo, era pra mandar. E depois ainda ficou me pedindo ordem.”
(MACHADO, 2003, p. 21). A partir dessa colocação, a protagonista começa a ficar mais
atenta à sua própria fala e usar a linguagem de forma consciente. Assim, em pouco tempo se
desfaz a primeira imagem de superioridade do representante masculino, como se pode
conferir nas palavras de Nita para Prequeté: “— Você é que nem eu... Eu também adoro
9
Não há nenhuma referência ao sentido denotativo da palavra prequeté: “sandália usada pelos índios para andar
nos campos”, como registra (FERREIRA, 1999)
56
brincar com as palavras. Gozar os outros com as coisas que todo mundo fala todo dia e nem
pensa” (MACHADO, 2003, p. 21-22).
Apesar de ter conhecido os dois irmãos de Prequeté, Nita se anima com a
possibilidade de encontrar as bonecas e brincar com elas. O mais interessante desse lugar é
que, mesmo sendo minoria, as irmãs do boneco de madeira tomaram uma deliberação
importante em relação ao que se pode ou não fazer: “Isso mesmo: tudo pode. Ninguém
manda, ninguém obedece. Não tem isso de pedir licença ou deixar” (MACHADO, 2003, p.
30). As representantes da ala feminina decidem por uma total liberdade, independência em
relação a qualquer tipo de restrição.
A esse respeito, Nita só não concorda com a falta total de pametros e posiciona-se
contra aquela espécie de anarquia. Seu ponto de vista é, nitidamente, a favor da democracia,
do cooperativismo. Dessa maneira, Nita desenvolve um senso crítico acerca de uma opção
política, assunto considerado por muito tempo típico de homens.
No País dos Prequetés, todas as personagens têm a mesma voz, independentemente do
sexo que possuam, posicionamento que condiz com a tendência contemporânea de
reformulação do poder patriarcal. Ao partir do pressuposto de que homens e mulheres são
sujeitos sociais, é inerente a ambos a condição de identidade. Como destaca Louro (1997),
“Na verdade, reivindica-se que sujeitos diferentes sejam considerados não como idênticos,
mas como equivalentes” (p. 47).
A idéia de equivalência, proposta por Louro (1997), ganha forma nessa história com o
mutirão em que trabalham homens, mulheres e crianças, indistintamente, em plena festa.
Inicialmente, Nita não conseguia ver lógica em conciliar festa e trabalho, além de estarem
todos felizes. Sem dúvida, há uma crítica ao sistema capitalista e à questão da exploração de
um ser humano por outro. A dificuldade em compreender que a personagem manifestou deve-
se a uma aceitação tácita de que trabalho e dinheiro estão necessariamente atrelados. Um
57
homem do mutirão, chamado Mané (nome sugestivo), explicou para Nita por que todos
estavam contentes, ainda que estivessem trabalhando sem recompensa financeira:
Mas só vira festa mesmo porque nós estamos contentes. […]
— De trabalharmos juntos, conversando, contando casos. E pra fazer uma
coisa que é pra nós mesmos, não é só pra encher o bolso dos outros. Uma
coisa que vai fazer nossa vida melhor. (MACHADO, 2003, p. 39)
Depois de tantas experiências e aprendizado, Nita retorna a casa pronta para dividir
com a turma todos aqueles momentos especiais. A grande conclusão a que a protagonista
chegou foi de que nada é estático, nem mesmo as concepções de mundo. Nessa perspectiva,
sempre é possível refletir sobre o que está subliminar nas palavras e nas entrelinhas da
narrativa:
E enquanto Nita pensava na beleza e na surpresa das coisas escondidas que
se transformam, enquanto ela pensava que sempre gostou de histórias de
virar e que uma das coisas mais divertidas do mundo é que tudo está sempre
mudando e ficando diferente, foi reparando que as outras crianças estavam
todas em volta dela. (MACHADO, 2003, p. 45)
Não é exatamente esse o cerne das discussões sobre o que as questões de gênero e as
tendências pós-modernas indiciam? As identidades sociais estão sempre se construindo em
constante processo de transformação e são fortemente perpassadas pelo discurso. É preciso
desconstruir a idéia de “oposição” entre homem e mulher e afastar-se de estruturas de
linguagem que ratifiquem características e posicionamentos ditos femininos ou masculinos.
Conforme indica Brougère (2004), a atividade lúdica é um “espaço de aprendizagem
cultural fabuloso e incerto. [...] pode, às vezes, ser mais um lugar de conformismo, de
adaptação à cultura, tal como a cultura existe” (p. 104). No caso de Nita, não houve uma
aceitação incondicional das “regras do jogo”, mas uma reflexão. Assim, desde a primeira obra
literária publicada, Ana Maria Machado revela um comprometimento em questionar formas
não democráticas de poder, dentre elas a construção histórica de uma pretensa superioridade
masculina.
58
3.3 Isabel: menina-moleca
Bisa Bia, bisa Bel, publicado em 1982, é um dos livros mais vendidos de Ana Maria
Machado e também um dos mais editados no exterior. Segundo registra a página oficial da
autora na internet, a obra foi escrita num momento de saudade das avós, influência forte na
formação pessoal da escritora.
Recorrendo à já referida divisão de linhas ou tendências da literatura infantil/juvenil
contemporânea proposta por Coelho (2000), encontra-se Bisa Bia, bisa Bel entre as obras que
enfatizam relações afetivas, sentimentais ou humanitárias. Nessa linha, Ana Maria Machado
propõe sua utopia de um mundo melhor em que o passado deixa lições, o presente se faz com
questionamento e o futuro depende do que foi construído num presente que se tornará
passado.
A história da protagonista Isabel recebe destaque especial no capítulo “Garotas que
mudam o mundo”, integrante do livro Como e por que ler a literatura infantil brasileira
(ZILBERMAN, 2005). A respeito da temática do livro, destaca Regina Zilberman, uma das
maiores especialistas brasileiras em literatura para crianças:
Bisa Bia Bisa Bel é o que se poderia chamar um livro feminista, não apenas
porque traduz o processo de independência da mulher ao longo da história,
marchando do convencionalismo e obediência de Bia à completa autonomia
e autoconfiança de Beta. Mas também porque elege um ângulo feminino
para traduzir essas questões, revelando como o processo de liberação nasce
de dentro para fora, não por ensinamento, mas enquanto resultado das
experiências vividas. (2005, p. 85)
Através do fio da lembrança, a narrativa costura histórias de quatro mulheres da
mesma família: Beatriz (Bia), sua neta, sua bisneta Isabel (Bel) e a bisneta de Isabel (Beta). A
obra une as três pontas do tempo (passado, presente e futuro) que coexistem na personagem
protagonista Isabel, através das vozes de Bia e Beta. O elo dessas gerações é a fotografia, e,
em versão futurista, a holografia as quais retratam a época em que foram feitas.
59
Em meio a essa “trança de gente”
10
urdida por Ana Maria Machado, revelam-se
tensões sobretudo no que diz respeito ao comportamento feminino e às expectativas sociais
para as mulheres. Dentre os vários elementos textuais, destacam-se as brincadeiras ligadas a
papéis femininos e masculinos.
Foi a partir de um retrato antigo que Isabel conheceu sua bisavó chamada Beatriz,
mulher de outra geração que a menina inicialmente associou a uma bonequinha. O tratamento
de brinquedo dado por Isabel à foto já abre a possibilidade para que se possa brincar com o
tempo, com outro momento histórico e outros valores estéticos e ideológicos.
Como revelam as palavras de Benjamin, já se acreditou que era o brinquedo o
responsável pela delimitação imaginária da brincadeira. Classificada pelo autor como
equívoco, tal idéia não se justifica. Para isso, basta observar como uma simples tampinha
pode ser transformada pela imaginação infantil.
Conhecemos muito bem alguns instrumentos de brincar arcaicos, que
desprezam toda máscara imaginária [...] Pois quanto mais atraentes, no
sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de
brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto
mais se desviam da brincadeira viva. (BENJAMIN, 2002, p. 93)
Dessa forma, munida de intensa imaginação, Isabel insiste e convence a mãe a dar-lhe
a fotografia de família para brincar. Assim, configura-se uma nova companheira de brincos
para a menina que vê naquela imagem enfeitadinha uma espécie de troféu de quem já sabe
brincar com o tempo.
Note-se que o formato da foto recebe destaque na narrativa: “Para começar, não era
quadrado nem retangular, como os retratos que a gente sempre vê. Era meio redondo,
espichado. Oval, mamãe explicou depois, em forma de ovo” (MACHADO, 1985, p. 10). O
referencial simbólico de ovo remete tanto à idéia de mãe quanto representa o ser aprisionado.
A noção de aprisionamento parece mais pertinente à análise, uma vez que mais elementos
10
Essa expressão é usada pela própria autora da obra como título do capítulo VIII.
60
descritivos do retrato indicam rigidez, como se pode observar: “Esse retrato oval de sépia
ficava preso num cartão duro cinzento, todo enfeitado de flores e laços de papel mesmo”
(MACHADO, 1985, p. 10).
Nessa foto de época, Bia, então criança, segurava dois brinquedos: uma boneca de
chapéu e um arco, como registra a narrativa:
Uma menininha linda, de cabelo todo cacheado, vestido claro cheio de fitas e
rendas, segurando numa das mãos uma boneca de chapéu e na outra uma
espécie de pneu de bicicleta soltinho, sem bicicleta, nem raio, nem pedal, sei
lá, uma coisa parecida com um bambolê de metal. (MACHADO, 1985, p.
10)
Interessante notar que Ana Maria Machado possui uma fotografia pessoal bem
parecida com a descrição dada na narrativa em exame. Retratada aos dois anos de idade, a
menina Ana segura uma boneca com enorme chapéu e laço amarrado no pescoço. Ratificando
a relação entre a foto e a narrativa, a autora deixa uma espécie de “recado do nome”, uma vez
que a boneca possui o mesmo nome da personagem central Isabel, como se pode observar na
figura a seguir, reproduzida da biografia constante da “Coleção Ana Maria Machado”, ed.
Ática :
61
Feita a relação entre a vida da autora e a obra, pode-se perceber que a foto descrita na
narrativa acrescenta outro objeto à cena. O retrato oval revela a menina Beatriz com um
brinquedo em cada mão, numa atitude conciliatória. A boneca está mais ligada ao que se
convencionou como brinquedo de menina, enquanto o arco está mais associado a ação e
movimento, com delimitação mais próxima ao que culturalmente se estabeleceu como
atividade de menino.
É muito comum o incentivo para que meninas brinquem de boneca e outros elementos
mais ligados às relações de domesticidade, enquanto para os meninos são indicadas
brincadeiras em espaços abertos, ligadas a correria, movimento e, até mesmo, a atos mais
violentos. Dentre as várias potencialidades que o ato de brincar oferece, destaca-se a
preparação para um futuro adulto com a vivência de várias situações importantes a partir da
fantasia.
Em 1949, a romancista e ensaísta francesa Simone de Beauvoir lançou o livro O
segundo sexo, em que problematiza a condição social de inferioridade atribuída às mulheres.
No percurso de construção da submissão feminina, a escritora dedica a primeira parte do
segundo volume à formação das mulheres. No que diz respeito à seção “Infância”, a
brincadeira com boneca ganha relevo no processo de “naturalização” da passividade como
característica do dito “sexo frágil”.
de um lado, a boneca representa um corpo na sua totalidade e, de outro é
uma coisa passiva. Por isso, a menina será encorajada a alienar-se em sua
pessoa por inteiro e a considerá-la um dado inerte. Ao passo que o menino
procura a si próprio no pênis enquanto sujeito autônomo, a menina embala
sua boneca e enfeita-a como aspira a ser enfeitada e embalada; inversamente,
ela pensa a si mesma como uma maravilhosa boneca. (BEAUVOIR, 1967,
p. 20)
Ainda ressalta a autora que a relação mulher-boneca, construída na infância, mantém-
se na idade adulta com reflexos fortes nas relações de gênero. A busca incessante pela beleza
e as preocupações em enfeitar-se para construir uma imagem de eterna boneca acabam por
constituir-se como manifestações do “instinto feminino”.
62
A boneca presente na fotografia, ao ser descrita, recebe um único atributo: usar
chapéu. O destaque dado a esse detalhe favorece que se possa entender a presença do chapéu
numa dimensão simbólica. Como registra o Dicionário de símbolos (CHEVALIER et al,
2000), cabeça associa-se a razão, poder e autoridade, principalmente para governar (p. 151-
152), enquanto chapéu aparece como elemento que encobre a cabeça (p. 232). Sendo assim,
pode-se entender que a representação da boneca reflete outra geração de mulheres da família
da protagonista, integrante de uma sociedade que desejava ocultar a potencialidade feminina.
Beatriz, a dona da boneca, não é descrita como portadora de chapéu, mas foi
enfatizada em sua caracterização a vestimenta com vários de laços de fita. Some-se a isso o
fato de, noutro retrato, a mãe de Isabel aparecer com dois laços de fita a prender os cabelos.
Por conta dessa freqüência, a relação chapéu e fita
11
parece pertinente na medida que marca o
contraste entre gerações. A fita que simbolicamente representa o desabrochar, o despertar,
aparece como marca de uma certa mudança de mentalidade. A mãe de Isabel, com as fitas no
cabelo, já apresenta uma idéia mais delineada quanto à desconstrução dos gêneros expressa,
principalmente, no capítulo “Meninas que assoviam”.
Além da boneca de chapéu, havia o arco, brinquedo geralmente confeccionado a partir
de um barril e rolado pelas ruas com apoio de uma vareta para equilibrar. Em suas
considerações sobre brincadeiras, Benjamin referencia a obra de 1899, Spiele der Menschen
(jogos humanos), em que Karl Gross sistematizou a ligação entre os gestos lúdicos e as
relações sociais. A essa leitura dos jogos, o pensador alemão acrescenta algumas perspectivas
que levam em conta as noções de ritmo e dualidade:
11
Convém lembrar que Guimarães Rosa, tema da tese de doutoramento de Ana Maria Machado, explorou a
potencialidade simbólica de fita no conto “Fita verde no cabelo – nova velha estória”, integrante do livro Ave,
palavra, releitura do conto tradicional Chapeuzinho Vermelho.
63
Essa teoria teria de investigar ainda a enigmática dualidade entre bastão e
arco, pião e fieira, bola e taco, investigar enfim o magnetismo que se
estabelece entre as duas partes. Provavelmente acontece o seguinte: antes de
penetrarmos, pelo arrebatamento do amor, a existência e o ritmo
freqüentemente hostil e não mais vulnerável de um ser estranho, nós já
teremos vivenciado desde muito cedo a experiência com ritmos primordiais,
os quais se manifestam, nas formas mais simples, em tais jogos com objetos
inanimados. (BENJAMIN, 2002, p. 100-101)
Com base nessa visão teórica, é possível relacionar a presença do arco de barril como
representação simbólica do controle masculino. Dentre as possibilidades de entendimento
simbólico de arco, destaca-se a associação com a idéia de destino. Dessa forma, é possível
relacionar o arco de brinquedo com o chamado “destino de mulher”, controlado por uma
vareta que o penetra e conduz. Esse objeto remete à dimensão simbólica associada a falo,
ícone do poder masculino. Assim como a varinha de condão que é a fonte dos poderes de uma
fada madrinha, a vareta registrada na foto pode ser entendida como indício do poder
falocêntrico.
Como já apontou Michel Foucault, a microfísica do poder nas sociedades não se
efetiva apenas através do Estado e das autoridades formalmente constituídas. Uma das formas
de poder que se pode exercer é o controle do corpo, como registra a passagem de Microfísica
do poder (2005): “quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir,
no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir
em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana” (p. 131).
Por muito tempo, as mulheres tiveram seus corpos domesticados e controlados para que não
se expandissem nem mesmo no espaço físico.
Por conta de as mulheres terem sido por muito tempo indivíduos desprovidos de
dinheiro, era mais conveniente ao sistema capitalista que estivessem controladas e sem poder.
Para isso impunham-se posturas, atitudes e não lhes era garantida voz, política e socialmente.
Para as mulheres, pernas fechadas e sobrepostas, mãos cruzadas sobre o colo, mais sentadas
que de pé, mais calmas que em movimento, nada de correria ou saltos, tudo muito controlado,
64
domesticado. Cabiam aos homens o espaço público, as decisões sociais e políticas, enfim, a
ação.
Na narrativa, apesar do pretenso protesto de bisa Bia estampada no retrato, a menina
Isabel brinca de pique-bandeira e persegue Sérgio quando ele a perturba. Diante das
brincadeiras de correr, a “voz” de bisa Bia repreende por não julgar uma atitude apropriada
para uma menina. O “certo” seria ficar quieta, bem comportadinha, sem agitação:
— Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito, pulando
assim nessas brincadeiras de menino. Acho muito melhor quando você fica
quieta e sossegada num canto, como uma mocinha bonita e bem comportada.
(MACHADO, 1987, p. 18).
Por muito tempo, acreditava-se que atividades corporais mais intensas não fossem
recomendadas para o sexo feminino por suas “restrições biológicas” do ciclo menstrual e do
aparelho reprodutor. Esse olhar naturalista sobre o corpo passa, na atualidade, por um
processo de mudança e de reflexão.
A professora Silvana Vilodre Goellner trata da questão cultural do corpo num capítulo
do livro Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. No texto, ela
destaca que o corpo é um elemento histórico e, como tal, em constante processo de mudança.
Esse caráter mutável e mutante, como aponta a autora, deve-se ao fato de o corpo não se
limitar a simples forma, mas ser também o seu entorno.
Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações,
o corpo é também a roupa e os acessórios que o adornam, as intervenções
que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que nele se
acoplam, os sentidos que nele se incorporam, os silêncios que por ele falam,
os vestígios que nele se exibem, a educação de seus gestos... enfim, é um
sem limite de possibilidades sempre reinventadas e a serem descobertas. Não
são, portanto, as semelhanças biológicas que o definem mas,
fundamentalmente, os significados culturais e sociais que a ele se atribuem.
(GOELLNER, 2003, p. 29).
Com certeza, o entorno contextual de Bia era mais repressor quanto ao controle do
corpo feminino que no contexto social no qual Isabel se insere. Pode-se perceber essa
65
diferença no tipo de brincadeiras de Isabel como pique-bandeira que foi representada na
narrativa como uma atividade coletiva entre meninos e meninas, indistintamente.
Após a brincadeira de pique, o estado de Isabel, provavelmente, não seria condizente
com o que a sociedade de Bia impunha como apresentação pessoal de uma menina: “Só
lembrei mesmo quando cheguei em casa, cansada, suada, imunda, com marca de mão suja no
pescoço, camiseta toda espandongada, e fui tomar banho.” (MACHADO, 1987, p. 19). No
presente da narrativa, entretanto, a menina, que pula um muro para encurtar o caminho, chega
a casa e vai tomar banho sem nenhuma repressão por parte da mãe ou qualquer referência de
problema social envolvido. Esse fato ratifica a proposição contemporânea de Goellner no que
diz respeito ao corpo como uma construção social, cultural e histórica, e não restrito apenas às
características biológicas.
Como uma atividade compartilhada entre os dois sexos, a narrativa apresenta a
brincadeira de roubar frutas das árvores de uma casa vizinha. Nesse capítulo chamado
“Meninas que assoviam”, revela-se um contraste entre o comportamento de duas figuras
femininas que se rivalizam por causa de Sérgio: Isabel e Marcela. Note-se que a
caracterização dada desde o título do capítulo associa-se ao ato de assoviar, procedimento tido
como masculino.
Enquanto a protagonista da história não se prende muito às limitações impostas a
“mocinhas”, a colega assume uma posição de dependência, reduplicando a idéia de
fragilidade feminina. No fragmento a seguir, pode-se notar como são caracterizadas as duas
meninas.
Bem moleca mesmo. Num instante estava encarapitada no muro, vendo
aquela chata da Marcela, toda frosô, arrumada numa roupa de butique, fivela
de florzinha no cabelo, falando mole, cheia de nhém-nhém-nhém, jogando
sorrisos para o Sérgio. (MACHADO, 1982, p. 31-32)
A menina-moleca Isabel aparece em cima do muro, vendo de cima a colega Marcela
que faz o tipo bem-comportada, tida como ideal pela “voz” de bisa Bel. Desde a primeira
66
descrição feita de Marcela, pode-se notar a idéia de jogo de sedução em relação a Sérgio. É
como se a menina representasse uma imagem de mulher como alguém que precisa de uma
figura masculina para assumir a responsabilidade de protetor e provedor.
A idéia de pegar as goiabas na casa da vizinha foi da própria Marcela, mas essa
proposta não se deu de forma direta. Foi construído todo um discurso de sedução para que se
despertasse o desejo para buscar o fruto, proibido por estar no quintal da vizinha. Essa
passagem pode ser associada ao mito bíblico de Eva, que é definida como a responsável por
despertar em Adão o desejo de comer o fruto proibido.
Como uma demonstração do que Bourdieu chamou de “impotência apreendida”,
Marcela enumera as dificuldades envolvidas no processo de aquisição das goiabas. Além de o
portão estar trancado, ela destaca que uma vara, utilizada para pegar as frutas no alto, também
está inacessível. Sérgio, assumindo o papel de provedor, prontifica-se a vencer esses
obstáculos. Essa forma de proteção cavalheiresca reforça a impotência feminina diante das
situações de mais risco e “justifica” a supremacia masculina.
Como se pode notar a seguir, a fala do menino, indicada pelo discurso direto, sugere
uma atividade conjunta (ele + Isabel) em que o elemento simbólico da virilidade (vara) não é
tido como importante: “— E quem precisa de vara? A gente sobe na goiabeira... — foi
dizendo o Sérgio.” (MACHADO, 1982, p. 32).
Num reforço da distinção dos gêneros, Marcela afirma que subir em árvores não era
considerado brincadeira de menina. Além disso, havia uma proibição expressa da mãe para
que ela não maculasse sua aparência arrumadinha: “— Mamãe disse para eu não me sujar,
que ia estragar minha roupa toda. E eu nem sei fazer essas coisas de moleque...”
(MACHADO, 1982, p. 32). Por conta desse discurso da colega, Sérgio concorda com a idéia e
ainda acrescenta o perigo de cair durante a empreitada.
67
Conforme já analisara Beauvoir em 1949, a recomendação materna reduplica o poder
androcêntrico pelo controle do corpo feminino. Assim, as restrições sociais impostas ao pleno
exercício da liberdade feminina impedem que a menina-boneca Marcela suba na árvore e
cresça enquanto sujeito.
Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim
um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para
compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará
nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a encorajássemos a
isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade,
o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino.
(BEAUVOIR, 1967, p. 22)
Se a primeira parte da citação anterior aplica-se perfeitamente a Marcela, a segunda
referencia diretamente Isabel que brinca de subir em árvores como Sérgio. A mudança de
atitude, entretanto, gera contraste entre as meninas e desconserto no representante masculino,
que se espanta com a habilidade de Isabel para subir em árvores.
Curioso notar que o menino, mesmo assumindo um discurso masculino tradicional em
relação a Marcela, não se opõe ao fato de Isabel pular o muro junto com ele para pegar as
frutas. De qualquer maneira, o menino está também inserido dentro de uma cultura que por
muito tempo ratificou essas distinções de atividades femininas e masculinas. Dessa forma, ele
se espanta com a habilidade de Isabel e dispara: “— E você sobe em árvore feito um menino.”
(MACHADO, 1982, p. 34).
A protagonista, que até então não se preocupara quanto a essas questões, diante das
palavras de Sérgio, fica abalada. Isabel mostra-se preocupada com a imagem que o menino
faz dela e se ele preferiria Marcela com sua fragilidade. A voz de bisa Bia sugere que ela finja
ser frágil para descaracterizar aquela imagem pouco “feminina” de moleca:
— Viu só? Ele acha você parecida com um menino. Homem não gosta disso.
Agora ele fica pensando que você é um moleque igual a ele e vai levar uma
goiaba de presente para aquela menininha bem arrumada e penteada que está
esperando quieta na calçada... Finge que se machuca, sua boba, assim ele te
ajuda. Chora um pouco para ele cuidar de você... (MACHADO, 1982, p. 34).
68
O conselho da voz de outra geração revela o comportamento esperado socialmente das
mulheres daquela época. A idéia de que homens não se interessariam por mulheres não-
frágeis era comum e acabava por delimitar comportamentos e expectativas nos
relacionamentos. Perpetuava-se o princípio de que a figura feminina, dada sua fragilidade
“natural”, necessitava de proteção, masculina, é claro.
Assim, a passividade que caracteriza a condição feminina contrasta com a construção
da masculinidade baseada no movimento e na liberdade de ação. A sociedade de base
patriarcal incentiva a independência masculina e rotula o afastamento feminino da passividade
como perda da “natural feminilidade”. No que diz respeito ao aprendizado social de ser
homem, destaca Beauvoir:
Subindo em árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos
violentos, ele apreende seu corpo como um meio de dominar a natureza e um
instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu sexo; através
de jogos, esportes, lutas, desafios, provas, encontra um emprego equilibrado
para suas forças; ao mesmo tempo conhece as lições severas de violência;
aprende a receber pancada, a desdenhar a dor, a recusar as lágrimas da
primeira infância. Empreende, inventa, ousa. (1967, p. 21-22)
Por conta dessa construção, as moças casadoiras buscavam homens “fortes” para
garantirem a mesma ou melhor proteção do que recebiam das figuras paternas. Então, o ato de
chorar, muitas vezes, era um artifício feminino para demonstrar essa disposição para ser
cuidada, numa espécie de jogo entre dominador e dominado.
A voz do futuro, representada por Beta, também fala na consciência de Isabel e
recomenda que a menina assuma quem realmente é. Durante esse diálogo de gerações, faz-se
alusão à questão da aceitação da mulher por parte do homem. A mulher não precisava se
moldar ao desejo culturalmente imposto como masculino na busca de alguém. Recomenda
Beta: “— Não finge nada. Se ele não gosta de você do jeito que você é, só pode ser porque ele
é um bobo e não merece que você goste dele. Fica firme.” (MACHADO, 1982, p. 34).
69
No texto intitulado “Mídia impressa e educação de corpos femininos”, a pedagoga
Sandra dos Santos Andrade indica que há várias formas de aprendizagem, subliminares,
atuando na sociedade que reforçam as construções de gênero.
os sujeitos são continuamente inseridos em um reforçamento binário do que
parece ser negativo ou positivo para meninos e meninas, para homens e
mulheres nos espaços sociais em que se movimentam, isso porque tais
atributos estariam inscritos na “natureza” de cada gênero, inscritos no corpo
de cada um/a. (ANDRADE, 2003, p. 109)
Romper com as imposições sociais dos gêneros não é um processo fácil e rápido, mas
deve passar por uma etapa de conscientização e de desnaturalização da “fragilidade
feminina”. Inserida nessa tensão, dialeticamente representada pelas vozes do passado (Bia) e
do futuro (Beta), Isabel resolve ser ela mesma e fazer o que julgava melhor. Coerente com a
idéia de que a imagem de “bonequinha de louça” de Marcela a irritava, assumiu o risco de
agradar ou não a Sérgio, em vez de se fazer de vítima. Essa decisão, entretanto, exigiu um
processo de reflexão que perpassa todo o incidente, na busca de uma identidade própria.
O fato é permeado por um jogo de linguagem que explora as categorias gramaticais
dimensivas: o diminutivo ligado à figura de Marcela e o aumentativo associado com a
imagem de Isabel. O primeiro a designar a colega por Marcelinha foi Sérgio, depois que a
menina adotou o posicionamento de fragilidade ante a proposta de buscar as frutas. Parece,
portanto, haver uma espécie de reconhecimento do garoto quanto a esse papel assumido por
algumas representantes do sexo feminino. Nessa mesma perspectiva, ao final da brincadeira, a
voz narradora brinca com o sufixo de diminutivo na caracterização de Marcela e de
aumentativo para Isabel: “E foi assim que Marcela Marcelinha ganhou uma goiaba velha
velhinha, bichada bichadinha. E enquanto ela reclamava com aquela voz de choro chorinho,
fui para casa com o coração sambando aos pulos. Cada pulo pulão.” (MACHADO, 1982, p.
35).
Bettelheim (1988, p. 144-145) aponta que, através das brincadeiras, as crianças
aprendem a não desistir diante das primeiras dificuldades. Os desafios, muitas vezes
70
envolvidos no ato de brincar, são cruciais para que sejam resolvidas de maneira simbólica
questões de competição e fracasso. Quando as adversidades são enfrentadas, vencidas ou não,
já há preparação do indivíduo para lidar direta ou simbolicamente com questões presentes ou
futuras. Pode-se, dessa forma, concluir que há um crescimento individual em função do
exercício da experimentação que o brincar oferece.
Fazendo uma ponte entre as palavras do psicólogo e a obra em exame, é possível
observar um processo de amadurecimento de Isabel em função da brincadeira de pegar frutas.
A construção da narrativa revela esse processo, principalmente através dos recursos
lingüísticos do uso de diminutivo e aumentativo associado à construção do que seja típico de
indivíduos femininos e masculinos. Uma das formas de reforçar as distinções de gênero é a
associação de aumentativo para homens e diminutivo para mulheres. É comum designar
crianças por “meninão”, “filhão”, “garotão” em contraste com “princesinha”, “filhinha”,
“bonequinha”, dentre outros designativos.
Sendo assim, a associação do diminutivo ao papel de fragilidade desempenhado por
Marcela sugere que ela seja menor ou seja diminuída diante da figura masculina. Portanto,
pode-se entender também a referência a uma figura feminina que ainda não cresceu, precisa se
tornar maior, aumentativa. Já a menina Isabel, através da brincadeira, cresceu; afinal ela não
“tinha voz de chorinho de neném” como Marcela, era alguém que escolhera seguir a voz do
futuro. Assim, sendo ela mesma, transformou-se em –ão, enfrentou dificuldades, não se
fragilizou para ser cuidada e ainda conseguiu como prêmio um beijo de seu paquera.
Por séculos, a organização da sociedade patriarcal no Ocidente instituiu atitudes
caracterizadas como típicas de homens e mulheres. Desde a década de 60, com as
reivindicações dos movimentos feministas, a idéia de “natural” fragilidade das mulheres vem
sendo questionada. Embora já se tenha iniciado o século XXI, algumas iniciativas de
ratificação das diferenças de gênero perduram, como a recente instituição de vagões
71
exclusivos para mulheres em trens e metrô. Esse tipo de iniciativa, como analisa Hall (2005,
p. 83-89), representa uma reação defensiva quanto ao reconhecimento da diversidade de
identidades feminina e masculina empreendido pela pós-modernidade ao reler o sujeito
moderno.
Embora o livro Bisa Bia, Bisa Bel tenha sido publicado na década de 80, as
inquietações de Isabel frente às vozes que se trançam num diálogo entre passado, presente e
futuro mostram-se bastante atuais. Percebe-se, ainda, a necessidade que a sociedade apresenta
em discutir questões referentes à (des) (re) construção das relações de gênero, principalmente
no que diz respeito às diferenças culturais e econômicas.
4 O desconserto do masculino
4.1 Masculinidades
Em função da emergência da mulher enquanto sujeito social, histórico e econômico no
final do século XX, surge a necessidade de também repensar o que é ser homem nessa nova
configuração, sobretudo no Ocidente. Nesse sentido, diversas pesquisas, principalmente no
campo das Ciências Sociais e Humanas, têm focalizado a questão das masculinidades num
desejo de equilibrar a ênfase dada, a partir dos anos 60, aos estudos ligados ao feminino.
Antes de justificar o uso de plural para masculinidade, é importante entender esse
conceito, sobretudo em relação à masculinidade hegemônica. Ao investigar a identidade
masculina, a filósofa francesa Elisabeth Badinter, no livro XY: sobre a identidade masculina
de 1992, lança uma pergunta importante: “A masculinidade é um dado biológico ou uma
construção ideológica?” (BADINTER, 1993, p. 23)
Em 1949, Simone de Beauvoir lançou a idéia de que não se nasce mulher, mas torna-
se mulher. Essa proposição se aplica perfeitamente ao homem, na medida que ambos os sexos
estão inseridos nos mesmos contextos sociais. Entende-se, assim, que homens e mulheres são
indivíduos construídos histórica e socialmente.
Conforme ressaltou Badinter (1993), não é a simples posse do cromossomo Y
12
ou dos
órgãos sexuais masculinos que determina se um indivíduo é homem. Nascer macho ou fêmea
é uma questão de contingência, a qual hoje em dia pode até ser mudada graças às novas
tecnologias médicas, que permitem subverter o “natural” desses corpos.
É possível, portanto, resgatar a pergunta de Badinter para frisar que a construção social
da masculinidade, assim como da feminilidade, integram a categoria de gênero. Essa
12
O cromossomo Y é um dos cromossomos responsáveis pela determinação do sexo no homem. Assim, em cada
conjunto dos 23 pares de cromossomos, os seres humanos possuem um par de cromossomos responsáveis pelo
sexo. Os homens possuem um cromossomo X e um cromossomo Y, enquanto as mulheres possuem dois
cromossomos X. O cromossomo Y é o menor dos cromossomos humanos e somente é passado pelos pais aos
filhos homens.
73
constatação, entretanto, não é suficiente para justificar o crescimento do interesse pelo campo
de estudos da masculinidade.
Para compreender melhor esse processo, cabe observar a construção e a
funcionalidade da masculinidade hegemônica. Essa noção representa um modelo cultural
tomado como ideal para uma sociedade em determinada época. Por causa do caráter modelar,
esse ideal não é atingido por praticamente nenhum homem, pelo menos em sua plenitude. Por
conseguinte, a eterna busca para alcançar a masculinidade tida como hegemônica revela-se
opressora, em certa medida.
De fato, a masculinidade hegemônica é balizadora das identidades individuais e dos
comportamentos dos homens, num dado contexto histórico e social. Segundo o autor do
conceito, o sociólogo australiano R. W. Connell (apud ALMEIDA, 2001),
A masculinidade hegemônica não é um tipo de caráter fixo — o mesmo
sempre e em todas as partes. É, muito mais, a masculinidade que ocupa a
posição de hegemonia num modelo dado de relações de gênero, uma posição
sempre discutível. (p. 24, tradução de ALMEIDA e grifo do autor)
Assim, enquanto entidade coletiva abstrata, a masculinidade hegemônica, como atesta
o adjetivo, é aquela que prepondera sobre as múltiplas formas de ser masculino. Não se
configura, portanto, como uma categoria estática; pelo contrário é de natureza mutável em
função do contexto social. Justifica-se, eno, o uso de plural em masculinidade porque a
contemporaneidade, bem como o próprio conceito de gênero constatam a existência das
múltiplas identidades dos sujeitos.
Observando a história da humanidade, percebe-se que, nas sociedades patriarcais, se
sobrepôs uma construção de masculinidade baseada na capacidade produtiva do homem.
Caberia a ele o importante papel de provedor material e financeiro de seus dependentes. Dessa
forma, ser homem no patriarcalismo exige um conjunto de posicionamentos socialmente
esperados como, por exemplo, assumir papel ativo nas relações sexuais, possuir força física,
proteger sua família, negar emoções etc.
74
É como se houvesse uma espécie de “manual do macho”, responsável por sistematizar
os princípios básicos para provar constantemente a masculinidade. A esse respeito, Badinter
(1993) afirma que, para serem machos, os representantes do sexo masculino entendem o que
não devem ser, antes mesmo de aprenderem o que podem ser, assim “ser homem se diz mais
no imperativo que no indicativo” (p. 3). Com base nesses pressupostos, parece que a
feminilidade é natural e, por isso, inquestionável, enquanto a masculinidade precisa ser
conquistada com esforço.
Dessa forma, para provar que é homem, o indivíduo precisa se afastar de tudo que
socialmente se liga ao feminino, num processo de diferenciação. Propõe Badinter (1993) que
a masculinidade se constitui por uma necessária separação dos meninos em relação à mãe,
representante do universo feminino. Nessa linha, a autora se reporta a vários rituais de
separação do mundo feminino e iniciação no mundo masculino. Em suma, o objetivo desses
ritos é mudar o estado de identidade primitiva do menino, ligado à mãe, para que ele renasça
homem, construindo uma identidade secundária.
Ao tratar dos ritos de iniciação, Badinter (1993, p. 71-76) e Nolasco (2001, p. 99)
destacam três etapas por que os meninos precisam passar, a fim de efetivar a verdadeira
inversão do primitivo estado de fêmea. São elas:
1) separação da mãe e do mundo feminino;
2) transferência para um mundo desconhecido;
3) passagem por provas dramáticas e públicas.
Essas etapas aparecem registradas simbolicamente em vários contos tradicionais e de
fadas, principalmente quando tratam do príncipe encantado. Como registra Coelho (2000), “as
personagens desses contos de fadas, contos exemplares, parábolas, etc., nada mais são do que
símbolos ou alegorias da grande aventura humana, que cada qual vive a seu modo, ou de
acordo com as circunstâncias” (p. 116).
75
Na maioria dessas histórias, quem abandona o lar e empreende uma viagem de
aventuras e amadurecimento é um representante do sexo masculino. A fim de merecer o
prêmio maior a ser conquistado — a mulher, o herói enfrenta perigos e provas de grande
dificuldade. Esse quadro reflete uma reduplicação dos papéis de atividade e passividade
gendrados pela tradição que se relacionam, respectivamente, a homens e mulheres.
No processo de obsessão por anular qualquer traço do que se entende socialmente
como feminino, configuram-se as constantes provas de virilidade. A submissão masculina a
essas exigências põe em xeque a idéia de que virilidade seja sinônimo de masculinidade
13
.
Algumas expressões populares concretizadas no discurso baseado no senso comum reforçam
a distinção entre masculinidade e virilidade: “homem com ‘h’ maiúsculo”, “ele é muito mais
homem que aquele outro”, além de “mulher homem” ou “mulher macho”. Portanto, a ligação
entre masculinidade e virilidade é, antes de tudo, uma questão cultural.
Essa obrigação de atestar virilidade, de forma indireta, é uma manifestação da
violência simbólica de que trata Bourdieu em A dominação masculina (2005). Na opinião do
sociólogo, “ser homem, no sentido de vir, implica um dever-ser, uma virtus, que se impõe sob
a forma do ‘é evidente por si mesma’, sem discussão” (p. 63, grifos do autor). Assim, a
aparente situação confortável de dominador mostra-se também como uma cilada para o
homem que se vê compelido a um estado de tensão por estar em constante processo de
testagem.
Na terceira etapa do rito de iniciação masculino, as provas, muitas vezes, são cruéis e
podem se constituir num confronto aberto em que a morte seja uma iminência. Esse
enfrentamento com a morte pode ser entendido simbolicamente como o final do estágio da
infância e o ingresso no mundo dos homens. São muitas as histórias tradicionais em que
aparecem duelos, dragões ou gigantes a serem enfrentados.
13
Registra o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1999) logo na primeira acepção do termo virilidade: “qualidade
de viril, masculinidade” (s. p.).
76
Com as mudanças nos paradigmas sociais e o questionamento da masculinidade
hegemônica, essas provas de virilidade estão perdendo a função. Por conta disso, a força física
e a honra estão sendo substituídas, paulatinamente, por outros valores como sucesso, dinheiro
e status.
Como um forte movimento de resistência a essas transformações, Badinter (1993)
indica uma valorização da mídia em relação ao que ela chama de “supermacho”: homem de
Malboro, caubói, Rambo e Exterminador. Um desses ícones, sobretudo para os valores
culturais dos Estados Unidos, foi colocado em xeque, recentemente, através do filme “O
segredo de Brokeback Mountain” (2005)
14
, do diretor Ang Lee. Além de bater recordes de
público, o longametragem, que trata do envolvimento sexual e amoroso de dois caubóis, foi
indicado em oito categorias para concorrer ao Oscar-2006. Alguns críticos de cinema, logo
após a divulgação dos ganhadores, atribuíram a não premiação do longa nas categorias de
melhor filme e melhor ator (principal e coadjuvante) ao preconceito dos conservadores
jurados da competição. Polêmicas à parte, a repercussão que o filme teve em nível mundial
indica que a própria mídia já reflete mudanças quanto ao reinado dos supermachos.
O campo de pesquisa voltado para as masculinidades vem-se firmando nas últimas
décadas, conforme destaca a socióloga Marlise M de M. Almeida , no artigo “Masculinidades:
uma discussão conceitual preliminar”: “Os estudos socioantropológicos centrados no tema das
masculinidades são relativamente recentes. [...] esses estudos devem ser remontados às
décadas de 1970 e 1980.” (ALMEIDA, 2001, p. 21). Com base nesse ponto de vista, nota-se a
necessidade de serem implementadas mais investigações quanto às masculinidades, uma vez
que as mudanças empreendidas pela contemporaneidade afetam ambos os sexos.
14
Apesar de o filme ter sido lançado em 2005, a história de Annie Proulx, que serviu de base para o roteiro
cinematográfico, foi originalmente publicada na revista The New Yorker, em 13 de outubro de 1997.
77
Nesse artigo, a socióloga destaca três dimensões presentes nas masculinidades que
foram sistematizadas por Connell, com relevante papel para os chamados men’s studies, a
saber:
1) as relações de poder: cujo eixo primordial é a subordinação geral das
mulheres e a dominação dos homens — o poder patriarcal (historicamente
em colapso com relação à legitimidade);
2) as relações de produção no mundo do trabalho: também claramente
assimétricas no que se refere à dimensão de gênero (desafiadas pelo emprego
feminino em massa e a maior incorporação da mão-de-obra feminina na
economia monetária dos países, sobretudo os pobres);
3) as relações emocionais ou cathexis: sobretudo desejo sexual e diferentes
práticas o atualizam (desafiadas pela tentativa de estabilização das
identidades lésbicas e gays, como alternativa pública à heterossexualidade).
(ALMEIDA, 2001, p. 23-24, grifos da autora).
Essas três dimensões estão sendo repensadas diante das intensas transformações do
mundo contemporâneo, o que integra um quadro maior de crise de identidade, tanto para
homens quanto para mulheres. Vários autores estudam a relação entre identidade e pós-
modernidade, dentre eles destaca-se a posição de Stuart Hall (2005).
A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo
mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos
centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que
davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (p. 7)
A crise de identidade, que atinge homens e mulheres na pós-modernidade, é apontada
por esse estudioso como conseqüência da desestabilização do mundo social, principalmente
em seu núcleo mais importante: a família. As antigas identidades de que se compunha esse
mundo social estão desgastadas e em processo de declínio, daí a necessidade de mudanças.
Diante dessas transformações, os indivíduos são afetados diretamente, como enfatiza Hall
(2005):
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais.
Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (p. 9)
78
Nessa linha, o modo como as sociedades concebem o papel do homem e da mulher
também está sofrendo alterações. Diante da ausência de papéis previamente definidos para
cada um dos sexos, ambos estão em meio a uma crise pela necessidade de ajustes,
readaptações. No que tange às masculinidades, Badinter (1993) aponta que, no final do século
XX e no início do XXI, coexistam três tipos de homem: duro, mole e reconciliado.
O homem duro — “de peito peludo, centrado no poder e na objetividade”
(BADINTER, 1993, p. 132) — luta para reprimir a feminilidade, é o conhecido machão. Esse
modelo, intimamente ligado à agressividade, foi adotado como masculinidade hegemônica
nas sociedades de base patriarcal.
Opondo-se ao modelo anterior, o homem mole ou “homem-pano-de-prato” procura
identificar-se com valores femininos. Conforme frisa a autora, esse tipo de masculinidade
aparece, principalmente, nos países em que o homem duro mais maltratava as mulheres.
Assim, “o homem duro, de feminidade reprimida, cedeu lugar ao homem mole, de
masculinidade ignorada”
15
(BADINTER, 1993, p. 147).
Num resgate do mito do andrógino (anér-andrós = homem + gyné-gynaicos = mulher),
o terceiro tipo de homem é mais que uma síntese dos dois precedentes. Também designado
por homem amável, o homem reconciliado não precisa esconder a suavidade para ser macho,
nem abrir mão da força. Esse homem mantém a virilidade e não tem problemas para exercer
funções consideradas tradicionalmente como femininas.
Segundo registra Badinter (1993), essa última categoria de homem “só pode nascer de
uma grande revolução paternal” (p. 165). Os reflexos das mudanças no paradigma familiar
15
A tradução adotada neste trabalho para o livro de Elisabeth Badinter emprega o termo “feminidade” em
oposição à masculinidade. Percebe-se na literatura que trata das questões de gênero o emprego do termo
feminidade como equivalente à feminilidade, embora haja sutil distinção como registra FERREIRA (1999):
“Feminidade: qualidade, caráter ou propriedade de ser fêmeo” e “Feminilidade: qualidade, caráter, modo de ser,
pensar ou viver próprio da mulher”. Entender-se-á, neste estudo, a equivalência entre os termos, mantendo
“feminidade” apenas nas citações.
79
pós-patriarcalismo começam a se fazer sentir aos poucos e reaproximam a figura paterna da
criação dos filhos.
Em várias ações podem ser percebidas essas mudanças, como ocorre no conhecido
projeto “Mamãe canguru”, cujo objetivo é auxiliar na recuperação de bebês prematuros. Para
tanto, é incentivado o contato corporal constante entre a mãe e seu filho, à semelhança do que
fazem os cangurus. Essa ação, recentemente, ganhou um desdobramento chamado de “Papai
canguru”. O contato do corpo do bebê com a mãe e também com o pai, além dos benefícios
terapêuticos, tem fortalecido os vínculos familiares e trazido reconhecidos benefícios. Em
função dos resultados, algumas grandes empresas, em caso de nascimento prematuro, têm
aumentado o tempo de licença paternidade para estimular a participação no projeto.
Nesse contexto de mudanças, observa-se como são as práticas e as relações sociais que
constroem os padrões do que seja masculinidade e feminilidade, reforçando ou não as
questões de gênero. Ainda que já ocorram modificações no cenário social, a idéia de
dominação masculina no Ocidente ainda é perceptível, principalmente em sociedades de forte
base patriarcal.
Os indivíduos se tornam homens ou mulheres por mecanismos de controle e repetição
num processo construído histórica e culturalmente. Se há dominação, é porque, antes de tudo,
há estruturas de poder que sustentam essa dominação. Para Bourdieu (2005), a dominação
masculina não necessita de justificação, já que a visão dominante está ramificada na
sociedade, seja nos discursos dos indivíduos ou em textos ligados à formação cultural como
provérbios, livros, jornais etc. Segundo o sociólogo, a dominação masculina comporta uma
dimensão simbólica, em que o dominador (homem) deve conseguir obter o controle sobre um
ou mais dominados (mulher). Assim, a estruturação da sociedade reflete essa posição
diferenciada entre os sexos, como retratam as palavras de Bourdieu (2005):
80
A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a
ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social
do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um
dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura
do espaço, opondo o lugar de assembléia ou de mercado, reservados aos
homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte
masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os
vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida,
com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação,
femininos. (p. 18)
Desde a infância, nas relações familiares de base patriarcal, a menina é mais induzida
a cuidar e proteger o outro. Conforme já se observou no capítulo precedente, a preparação
para o “destino de mulher” revela-se até na escolha familiar em relação aos brinquedos
infantis. Ambientado nesse seio familiar, o afastamento abrupto dos meninos do “mundo
feminino” impõe auto-controle e autonomia aos representantes do “sexo forte”. Frente às
mudanças sociais contemporâneas, essa construção simbólica da dominação masculina perde
a funcionalidade e começa a ser repensada.
Sendo assim, o que se quer explorar neste capítulo é como Ana Maria Machado,
através de suas histórias, problematiza os papéis masculinos tradicionais numa perspectiva
relacional com o feminino. Em meio aos textos, a autora constrói retratos de personagens de
ambos os sexos em busca de sua nova identidade no mundo contemporâneo. Cumpre destacar
a relevância dessa perspectiva à medida que tais narrativas desempenham papel importante na
construção dos valores sociais e, como conseqüência, das identidades junto ao público
infantil.
Vários artigos e pesquisas acadêmicas já se debruçaram analiticamente sobre questões
ligadas ao feminino marcadas nos livros de Ana Maria Machado, sejam eles escritos para
crianças ou não. Nessa linha, destacam-se “Ana Maria Machado: as relações autênticas”
(XAVIER, 1998 – capítulo de livro), “A representação da mulher na literatura para crianças e
jovens: um estudo de obras de Júlia Lopes de Almeida, Ana Maria Machado , Lygia Bojunga
Nunes e Marina Colasanti” (LE-ROY, 2003 – dissertação de mestrado), “Imagens do
81
feminino em Ana Maria Machado e Lygia Bojunga Nunes” (RIBEIRO, 2002 – artigo),
“Literatura infantil e gênero: uma história meio ao contrário” (ZINANI, 2004 – artigo),
“Novos finais felizes: a mulher e o casamento em Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Sylvia
Orthof” (VILLAÇA, 2004 – dissertação de mestrado), “Personagens negras na literatura
infantil e juvenil brasileira: da manutenção à desconstrução do estereótipo” (FRANÇA, 2006
– dissertação de mestrado).
Sendo assim, é consenso que tratar das mudanças de paradigma nos papéis sociais
femininos é uma das marcas estilísticas de Ana Maria Machado. Considerando o aspecto
relacional envolvido nas questões de gênero e nos papéis sociais, muitos dos livros da autora
também enfocam problemas ligados ao masculino. Então, antes de aprofundar a análise dos
dois livros selecionados para este capítulo, serão feitas algumas considerações acerca de
outros títulos da autora que enfocam questões ligadas ao masculino.
Neste trabalho já foram referenciadas, na análise de Bisa Bia, bisa Bel (MACHADO,
1985), situações em que Sérgio se espanta diante de posicionamentos não tradicionais de
Isabel. No último capítulo dessa mesma obra, insere-se a personagem Vitor, recém-chegado
ao Brasil, que apresenta comportamentos diferentes dos padrões nacionais para indivíduos
masculinos. Num episódio em sala de aula, o menino se emociona com o relato da professora
de História sobre escravidão e chora. Diante dessa atitude, Isabel acha diferente e pensa:
“Ainda bem que Dona Sônia não esperou minha resposta nem reparou no choro do Vitor (que
menino mais esquisito... será que ele nunca ouviu falar que homem não chora?)” (p. 53). Na
conversa que Isabel mantém com uma colega de turma, pode-se perceber novamente a
surpresa da protagonista quanto aos hábitos de Vitor e sua irmã gêmea, Maria:
— A mãe e o pai trabalham fora, e os gêmeos preparam o almoço deles
sozinhos, fazem a cama, tudo isso...
— A gêmea, você deve estar querendo dizer... Como é que ela se chama?
— Maria, e ele é Vitor. Mas são os dois mesmo que fazem. O Vitor sabe
cozinhar, Bel. E Maria sabe consertar tomada. Aliás, ela sabe consertar um
monte de coisas. Outro dia até trocou a corrente da bicicleta do Fernando, se
82
eu não visse não acreditava. Todo mundo está adorando os dois, são uns
amigões... (MACHADO, 1985, p. 50)
A fala da colega de Isabel revela a inversão de papéis tidos tradicionalmente como
masculinos ou femininos. No romance A audácia dessa mulher de 1999, Ana Maria Machado
também propõe uma “inversão” de papéis entre as personagens Bia e Virgílio. A profissão
que cada uma dessas personagens exerce contraria o que a sociedade de base patriarcal
definiu como espaço feminino e masculino. Virgílio é dono de restaurante e cozinheiro, ainda
que com status diferenciado de uma cozinheira, conforme apontou Bourdieu (2005, p. 75) ao
tratar de profissões e vocação masculinas e femininas. Bia é escritora e trabalha como
redatora de um caderno de viagens, profissão que implica estar sempre em trânsito. Por conta
dessa atividade, a protagonista está ausente do “lar”, o que dificulta a manutenção de um
casamento e uma família tradicionais. A partir do comentário de um homem, a personagem
Muniz, verifica-se a percepção das mudanças no comportamento das pessoas:
— Um homem que adora ficar na cozinha e uma mulher que gosta de viajar
sozinha... Não é só uma rima. É, isso sim, um sinal dos tempos. Papéis
trocados. Duas idéias impensáveis no século XIX. Uma contribuição de
nosso século pra a história da humanidade. (MACHADO, 2003a, p. 17)
Já em Bem do seu tamanho de 1980, apesar de a temática principal não se centrar na
masculinidade, a protagonista Helena discute com o próprio pai sobre a divisão das tarefas
domésticas. A passagem que trata do assunto ocupa boa parte do primeiro capítulo do livro e
ocorre antes mesmo de Helena empreender sua viagem de amadurecimento.
A discussão entre pai e filha ocorre no momento em que estão acontecendo os
preparativos para a viagem da menina que envolvem, basicamente, duas ações: passar um
vestido e arrumar uma merenda. A mãe quer compartilhar as tarefas domésticas com a filha e,
para isso, indica que a menina passe o vestido enquanto ela prepara o lanche. O pai intervém
na questão por julgar ser a menina ainda muito pequena para lidar com ferro e, a partir desse
impasse, surgem os questionamentos de Helena.
83
— Mas, pai, você não acha que mamãe vai ficar muito cansada? Já trabalhou
o dia inteiro, ainda vai fazer um bolo, e no fim ainda precisa passar um
vestido.
— Não posso fazer nada. Isso é serviço de mulher. [...]
— Estou falando com meu Boi de Mamão. Estou explicando a ele que
serviço de homem dentro de casa é ficar sem fazer nada enquanto a mulher
faz tudo. E estou explicando a ele que é porque homem é forte. [...]
O pai resolveu explicar:
— É que homem sai de casa, trabalha o dia todo, fica cansado, traz as coisas
para dentro de casa, comida, roupa.
— Mulher também. A mãe ajuda a plantar feijão na roça, traz água do poço
para dentro de casa, traz roupa lavada da beira do rio dentro da bacia. E
agora está fazendo bolo enquanto você está aí enrolando seu cigarro de palha
— Você tá querendo o quê? Que eu vá passar roupa? Não faltava mais nada.
— Se você é forte demais e não agüenta, não precisa ir. Não faz mal.
(MACHADO, 1988, p. 11-12)
A voz paterna reproduz os papéis familiares tradicionais para homens e mulheres no
que se refere às tarefas domiciliares, “coisas de mulher”. Helena, entretanto, usa de ironia em
seu discurso para “explicar” a seu Boi de Mamão como funcionam essas posições sociais.
Diante das respostas da filha, o pai fica desconsertado e indignado, mas sem argumentos.
Há ainda outros títulos de Ana Maria Machado que enfocam, direta ou indiretamente,
a mudança de paradigmas quanto às funções e aos papéis sociais masculinos. Para este estudo,
foram selecionadas duas histórias protagonizadas por meninos: Raul da ferrugem azul, do
início da carreira da escritora e O príncipe que bocejava, texto mais recente.
4.2 Desenferrujando a consciência
Livro marcante na carreira de Ana Maria Machado, Raul da ferrugem azul teve sua
primeira publicação em 1979
16
, sendo reeditado em 2003 com novo projeto gráfico. Com
repercussão nacional, a obra já teve 45 edições esgotadas desde o seu lançamento e, segundo
registra o site oficial da escritora, está em fase de adaptação para o cinema
17
.
Assim como Bento que bento é o frade, a história do menino Raul foi escrita durante a
ditadura militar brasileira. A narrativa trata de manifestações de poder relacionadas a atos de
16
Neste mesmo ano também foi publicado outro livro bastante conhecido de Ana Maria Machado: História meio
ao contrário.
17
O site oficial de Ana Maria Machado informa que um filme baseado no livro está sendo dirigido por Gabriel
Costa e está em fase de finalização.
84
violência que acontecem todos os dias subjacentes a pequenas ações ou palavras. No texto, a
autora trabalha simbolicamente, através da ferrugem, como a violência do cotidiano pode
deixar marcas na personalidade e até no próprio corpo das pessoas. De fato, o foco central do
texto recai sobre a apatia das pessoas diante dessas injustiças cotidianas.
Dentre as obras que recebem destaque no livro Como e por que ler a literatura infantil
brasileira (ZILBERMAN, 2005), figura a aventura de Raul, ao lado de outros títulos de Ana
Maria Machado. A referência é feita no mesmo capítulo em que se enquadra Bisa Bia, bisa
Bel de 1982, quando se trata de personagens femininas que romperam com a tradição de
fragilidade e passividade. Tal inclusão se deve, fundamentalmente, à relevância que a
personagem Estela possui no desenrolar da narrativa.
O texto se inicia com um questionamento do menino Raul que é a força motriz de toda
a narrativa: "— E gente enferruja?" (MACHADO, 1979, p. 8). Tentar entender o significado
das manchas que aparecem em seu corpo é o que mobiliza o protagonista. Por trás da busca
do significado dessa ferrugem, subjaz uma questão maior: a apatia diante das injustiças.
Moldado socialmente para ser um menino bonzinho, não se meter com os outros, não dar
resposta malcriada e não desobedecer a ninguém, Raul não tinha iniciativa diante das
injustiças que o rodeavam.
Em seus estudos acerca da representação masculina nas sociedades ocidentais,
Nolasco (2001) fundamenta, através de um percurso pela história da humanidade, que a
violência esteve associada à masculinidade. No caso de Raul, observa-se claramente que ele
não é um representante do “homem duro” da classificação de Badinter (1993). O controle da
agressividade é tão grande que o comportamento do protagonista revela apatia frente aos
abusos dos mais fortes. Isso não significa, entretanto, que não haja revolta e indignação por
parte do menino, como registra a passagem a seguir: “Só não sabiam é da raiva dentro dele.
Nem das perguntas girando na cabeça“ (MACHADO, 1979, p. 10).
85
Ao longo da história mundial, as mulheres foram mais moldadas em seus corpos e
atitudes para não reagirem a um conjunto de estruturas de poder que as coloca em segundo
plano. Na história, a falta de iniciativa de Raul contrasta com a personagem Estela, voz que
briga e não leva desaforo para casa. Percebe-se, então, uma pequena troca de papéis no que
diz respeito à relação de atividade e passividade, geralmente associada ao masculino e ao
feminino, respectivamente.
Essa troca é reflexo do desmantelamento da masculinidade tradicional que se
manifestou nos comportamentos sociais como recusa de valores tidos como masculinos e
idealização dos femininos. Nesse movimento de desvalorização da virilidade, criou-se uma
situação, até então, impensada, como enfatizam as palavras de Badinter (1993):
Mas, ironia da história, enquanto as mulheres reclamavam homens
mais dóceis, mais gentis e menos agressivos, elas próprias eram encorajadas
a ser combatentes e conquistadoras. No exato momento em que se
glorificava a nova guerreira, desencorajava-se o homem a continuar sendo
um. (p. 149)
Não se pode dizer que Raul seria um representante do “homem mole” de que tratou
Badinter (1993), uma vez que esse tipo aparece principalmente em países onde o feminismo
foi mais aguerrido. Como no Brasil os movimentos feministas não adotaram posturas muito
combativas, pode-se apenas afirmar que o menino nega em seu comportamento os
imperativos do supermacho marcados na formação do “homem duro”.
Nas sociedades contemporâneas, as grandes provas de virilidade não fazem mais
sentido. Sendo assim, Raul encontra-se em meio a esse processo tentando lidar com a negação
dos atributos do supermacho, sem se tornar um indivíduo passivo e apático. Assim como
contextualizam historicamente as palavras de Nolasco (2001):
No passado, os códigos masculinos refletiam a necessidade de uma postura
agressiva e poderosa em um mundo anárquico e perigoso. Os homens tinham
de ser endurecidos para proteger seus dependentes dos animais selvagens,
das forças da natureza e de outros homens duros. Isto é, afinal, a base do
heroísmo. Atualmente, a maior parte destes perigos está superada pela
tecnologia ou pela evolução social, à exceção do perigo imposto por outros
homens. (p. 101)
86
Embora se sentisse incomodado com a própria falta de iniciativa, a educação de Raul
moldara-o para isso, nunca desobedecer a ninguém. Diante da pressão que o problema trazia,
Raul percebe que não precisa se submeter aos imperativos da masculinidade do “homem
duro” de que trata Badinter (1993). Nas sociedades pós-modernas, os imperativos para gerar o
supermacho não fazem mais sentido e o menino não precisa resolver tudo sozinho para provar
virilidade. Afinal ele mesmo deduz que não é necessário ficar tão sufocado, tendo como ideal
o super-herói, um dos ícones do supermacho: “Como é que ficava querendo dar uma de super-
homem?” (MACHADO, 1979, p. 16).
De fato, o processo de enferrujamento é o ponto de partida para buscar identidade
própria. A conclusão de que seria bom ter ajuda para entender o significado das manchas
aconteceu a partir de um jogo de futebol. Esse esporte é considerado, tradicionalmente, como
atividade para homens e, segundo Badinter (1993), seria o reflexo “de uma necessidade de
romper com uma cultura familiar feminina para poder criar outra, masculina” (p. 93). Apesar
de reduplicar a dualidade masculino/feminino, o futebol aparece relacionado a meninos em
outros livros de Ana Maria Machado, como O menino Pedro e seu boi voador (1979) e Com
prazer e alegria (1984). Na história de Raul, o futebol é explorado principalmente em seu
princípio organizador: trabalho em equipe.
Então, com o propósito de desvendar o mistério das estranhas manchas em seu corpo,
o protagonista busca auxílio. Inicialmente, tentou conversar com os pais, depois com o amigo
Guilherme, mas ninguém, além dele mesmo, via as manchas. Apesar de a estrutura familiar
do menino contar com a presença do pai, Raul se sente mais à vontade com o amigo e, meio
sem jeito, tenta conversar sobre o assunto:
— Guilherme, como é que você faz quando não consegue resolver um
problema sozinho?
— Sei lá, cara. Às vezes peço uma mãozinha ao meu irmão mais velho. Ele é
muito bom em matemática.
— E se não for problema de matemática?
— Ele é bom, também. Como ele sabe muita matemática, ele ajuda a
resolver os outros problemas também. Faz as contas certinho, explica tudo
87
até a gente entender. Se você quer, pega o caderno e vamos comigo até lá em
casa, que ele quebra o galho.
Raul hesitou, mas Guilherme insistia:
— Pode vir. Ele é mais velho, já aprendeu tudo isso há mais tempo. Ele sabe
das coisas... (MACHADO, 1979, p. 16-17)
Apesar de não haver referência explícita à idade do protagonista, parece que a fase em
que ele se encontra é a pré-adolescência, principalmente por conta de seus questionamentos
pessoais. Sobre essa fase de transição da infância para a adolescência, isto é, para o mundo
adulto, Badinter (1993) trata da construção da masculinidade frente às imposições do
capitalismo que implicaram um afastamento maior em relação à figura paterna. Afirma a
autora que, para preencher a lacuna deixada pelo pai como modelo de identificação masculino
para os meninos, se destaca a figura do irmão ou colega mais velho:
Diante da ausência de um pai que seja modelo de virilidade, os jovens
machos se unem sob a férula de um outro, um pouco mais velho, um pouco
mais forte ou um pouco mais desembaraçado, espécie de irmão mais velho,
líder que é admirado e copiado, e cuja autoridade é reconhecida.
(BADINTER, 1993, p. 93)
Duas personagens femininas têm papel importante no percurso de amadurecimento por
que o menino precisa passar, a fim de compreender o enferrujamento: a empregada Tita e a
menina Estela.
No capítulo 4 da obra, é apresentada a personagem Tita, empregada doméstica que
encarna várias identidades de minoria pela natureza de seu trabalho, sua classe social, além de
ser mulher. Na narrativa, a temática do ocultamento do trabalho das domésticas é
problematizada rapidamente através dos questionamentos de Raul:
Pelo menos, uma sorte: o pai e a mãe tinham ido jantar fora. Sozinho na
mesa da copa, na frente do prato, Raul podia dar toda a sua atenção ao
problema. Ainda bem que não tinha ninguém, pensava ele.
Ninguém, como? E o prato de comida? Apareceu ali por mágica? Pô, que
raiva, até ele estava entrando nessa? Muito confuso, começou a bater papo
com a empregada. (MACHADO, 1979, p. 24)
Ainda que sem maiores aprofundamentos, aborda-se o desprestígio da atividade de
manutenção da casa e da função de maternagem desempenhada por várias empregadas
domésticas. Com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, a gerência da casa e a
88
educação dos filhos foram afetadas porque tudo estava concentrado na figura feminina. Como
não houve um movimento paulatino e significativo de homens assumindo essas atribuições,
cresceu a importância das empregadas domésticas que, sendo mulheres, já estavam preparadas
para assumir esse papel no lugar da patroa.
Interessante ressaltar que Raul, ainda de forma confusa, toma consciência da
relevância das atividades domésticas, que demandam esforço e não acontecem como mágica.
Visto como “vocação feminina”, o trabalho doméstico não foi encarado como profissão
durante muito tempo. No artigo “Ser mulher, mãe e pobre” (2004), Cláudia Fonseca apresenta
o trabalho doméstico como uma opção para muitas mulheres pobres que precisavam de renda
e não possuíam nenhuma qualificação profissional. Resgatando pesquisas sobre a população
economicamente ativa no Brasil das primeiras décadas do século XX, a pesquisadora constata
que nem designação específica tais atividades desempenhadas por mulheres recebiam: “Sem
ser encarado como profissão, seu trabalho em muitos casos nem nome merecia.” (FONSECA,
2004, p. 517). Assim, a manutenção do lar não era vista como um trabalho, mas como uma
atividade inerente à “natureza feminina”, um dos motivos de a profissão de doméstica não
gozar de prestígio social e ser desempenhada, basicamente, por mulheres.
Subjacente a esse quadro de invisibilidade construída para as atividades domésticas, há
um processo de desvalorização da mulher. A percepção de Raul quanto a essa situação
prenuncia o olhar diferenciado para a posição social da mulher que ele desenvolve no decorrer
da narrativa. Em meio às considerações sobre a empregada ser considerada um indivíduo, ter
uma identidade, Raul se culpa por estar também “entrando nessa” de desvalorização.
Sistematiza M. Foucault, tanto em Vigiar e Punir (1975) quanto em Microfísica do
poder (1979), que o exercício do poder na sociedade não se dá apenas através do Estado e das
autoridades formalmente constituídas. A microfísica do poder assume, de maneiras diversas,
uma multiplicidade de sentidos, em níveis distintos e variados, muitas vezes sem que a pessoa
89
se dê conta disso. As próprias palavras do protagonista de Raul da ferrugem azul refletem a
consciência de estar entrando no jogo de poder e desvalorizando Tita. Essa conscientização
faz parte do processo de amadurecimento por que o menino passa durante o percurso
narrativo.
A empregada Tita, bem como outras Titas de nomes diferentes que ajudaram na
educação de Raul, colaboraram na formação do imaginário do menino através de histórias
contadas desde que ele era pequeno. Em algumas obras de Ana Maria Machado, aparecem
personagens contadoras de histórias que desempenham importante papel na manutenção da
memória cultural daquele grupo social.
A partir desse inventário de narrativas, Raul cria sua própria história em que o Preto
Velho mencionado por Tita passa a ser “um velho muito velho e muito sábio que morava
sozinho no alto de uma montanha” (MACHADO, 1979, p. 26). Com a mistura do mundo
imaginário com a realidade, Raul vira personagem:
— Um dia, um jovem que morava na aldeia ao pé da Montanha Mágica foi
atingido por um misterioso encantamento. Ninguém sabia, mas ele era um
príncipe e seu sangue azul começou a aparecer na pele, ameaçando revelar a
todos o seu segredo. (MACHADO, 1979, p. 26)
A constituição do enredo, descrita no fragmento anterior, era condizente com as
histórias tradicionais em que os poderes mágicos iriam ajudar a salvar um príncipe encantado.
Sendo assim, o passivo príncipe-Raul precisaria de um elemento mágico, não controlado por
ele, para que seu problema fosse resolvido.
Metalingüisticamente, o protagonista-autor dessa história reflete sobre a estrutura do
seu próprio texto e reelabora a idéia de príncipe: “Boa sacada essa, continuou pensando Raul.
Mas não convencia muito, não. Essa estória de príncipe não tem nada a ver com a gente.”
(MACHADO, 1979, p. 27). Sendo assim, Raul não se sente um príncipe tradicional, o que não
o impede de continuar a vida e tomar a iniciativa para ir falar com o Preto Velho: “É... Mesmo
90
sem ser Príncipe Encantado, podia ir bater um papo com o Velho da Montanha.”
(MACHADO, 1979, p. 27)
Com as mudanças processadas desde o século XX, a mulher experimentou a
emancipação, uma gradativa autonomia ainda em curso. Para essa nova mulher, o modelo
masculino vigente, que teve início no século XIX, já não satisfaz mais. Assim, o ideal
feminino de ficar à espera de um príncipe encantado que a salvasse dos perigos a fim de
viverem felizes para sempre começa a se desfazer. Daí a crescente desvalorização da figura do
príncipe encantado tanto para mulheres quanto para homens.
A outra figura feminina fundamental na busca do menino para resolver o problema do
enferrujamento é Estela. Apesar de Raul ser o protagonista, a menina assume o primeiro plano
para ajudar na compreensão do processo de enferrujamento por que passa o colega. Ao tratar
de Estela e outras personagens femininas de histórias infantis, Zilberman (2005) enfatiza que,
mesmo sem atributos mágicos, elas mudam o curso da existência de personagens masculinos.
Inseridas na mesma realidade que as personagens masculinas,
elas são insubmissas e ensinam amigos ou companheiros a atuar de maneira
diferente, encontrando, assim, alternativas de vida ou comportamento que
podem torná-los mais felizes ou, pelo menos, mais conscientes do que
acontece em volta de si. (ZILBERMAN, 2005, p. 83)
Dada a importância de Estela, Ana Maria Machado dedicou o capítulo “Uma menina
de briga” para descrever o encontro da garota com Raul. O título do capítulo atribui ao
substantivo “menina” uma locução adjetiva que remete à ação, pois menina de briga é aquela
briguenta, que pratica o ato de brigar. É inegável que a linguagem é uma instância importante
de registro das relações de poder. Nesse campo, a força subjetiva de muitos dos adjetivos e
equivalentes gramaticais revelam a ideologia dominante, conforme ressalta Bourdieu (2005):
As oposições inscritas na estrutura social dos campos [masculino e
feminino] servem de suporte a estruturas cognitivas, taxinomias práticas,
muitas vezes registradas em sistemas de adjetivos, que permitem produzir
julgamentos éticos, estéticos, cognitivos (p. 124 – acréscimos nossos entre
colchetes)
91
Sendo assim, desde a primeira caracterização, a iniciativa de Estela contrasta com a
apatia de Raul. Nesse movimento, estrutura-se uma espécie de inversão dos papéis
constituídos socialmente como típicos feminino e masculino. Durante a narrativa, as
diferenças de comportamento entre o menino e a menina vão se revelando, aos poucos.
Raul e Estela têm o primeiro contato quando um bando de meninos maiores rouba a
pipa de um outro com apenas seis anos. Diante da situação, as reações de Raul e Estela são
diferentes: enquanto ele observa, ela protesta. Numa intervenção do narrador, percebe-se que
de uma posição atrás de Raul a menina ganha cena, literalmente no grito: “E bem atrás de
Raul, uma voz de menina começou a gritar” (MACHADO, 1979, p. 30).
Nota-se que a idéia de ocultamento do feminino, representada na máxima “Por trás de
um grande homem há sempre uma grande mulher”, é revista. Inicialmente, Estela encontra-se
atrás de Raul, mas desloca-se e ganha uma posição de destaque através de sua voz solitária
diante de um grupo de representantes do sexo masculino. Corrobora para esse rompimento da
“invisibilidade feminina” a ênfase que a menina ganha, numa narrativa em que o papel de
protagonista é masculino, inclusive cedendo nome ao livro.
As primeiras palavras de Estela não são faladas, são gritadas como numa necessidade
de se fazer presente, percebida, ouvida: “— Vocês são mesmo uns covardes, aproveitam que
Beto é pequenininho para roubar a pipa dele” (MACHADO, 1979, p. 31). Quanto a essa
questão de insubmissão dos mais fracos frente a um poder mais forte, Zilberman (2005)
propõe uma analogia com a situação política de ditadura vivida pelo Brasil na época da
publicação do livro:
Estela prefigura o tipo de personagem que predominará em vários enredos da
literatura infantil: ainda que pequena e oriunda das classes populares, ela não
se deixa dobrar, manifestando indignação e autonomia quando ameaçada
pela força ou pelo poder. Torna-se paradigmática não apenas de uma atitude,
mas também de um período, pois, à época, o país tentava libertar-se da
ditadura imposta pelo golpe militar de 1964. As pessoas, após 15 anos de
repressão, oscilavam entre conformar-se ou declarar rebeldia; Raul
representa a passividade inicial; Estela, de sua parte, a importância de soltar
a voz e expressar insubmissão. A passagem de Raul, de uma situação para
92
outra, indica um caminho, a ser perseguido não apenas pelos leitores de
literatura infantil, mas também pela sociedade nacional. Por esta razão,
Estela simboliza não apenas uma criança que não teme o enfrentamento dos
mais fortes, mas o fato de que, mesmo aparentemente fraco — afinal, ela é
uma menina pobre —, o ser humano tem condições de mudar o mundo em
volta, “desenferrujando” os músculos e encarando a poderosa engrenagem
que o oprime. (p. 84)
Na fala da menina, pode-se perceber a idéia de que a dominação se faz de maneira
desigual e covarde. Os mais fortes se aproveitam da situação para subjugar os mais fracos. No
caso, além de os meninos serem maiores, constituem um grupo de maioria. Esse fenômeno
social integra o conceito de violência simbólica criado pelo sociólogo francês Pierre
Bourdieu. No fragmento a seguir, o autor propõe uma definição sobre violência simbólica
ligada à estrutura social que ratifica a dominação masculina:
Também sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e
vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante
daquilo que eu chamo de violência simbólica, violência suave, insensível,
invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias
públicas simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais
precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última
instância, do sentimento. (BOURDIEU, 2005, p.8)
Tal violência descreve o processo pelo qual os dominantes impõem sua cultura aos
dominados como se essa construção fosse natural. Esse processo é grave na medida que o
dominado não se opõe ao seu opressor, por não se perceber como vítima desse processo: ao
contrário, o oprimido considera a situação natural e inevitável e por isso não reage.
Essa falta de reação é o que acomete Raul, mas ele não está alienado em relação às
injustiças, só não tem iniciativa para protestar e, por isso, enferruja. Já Estela não só fica
indignada com o fato presenciado, como se insurge contra o grupo de meninos: “Mas não vai
ficar assim não, estão sabendo? Vocês vão ver só o que eu vou aprontar...” (MACHADO,
1979, p. 31)
A relação de dominação simbólica estrutura-se dentro da organização social e se
manifesta nas pequenas coisas, como se todas essas relações de atividade masculina e
93
passividade feminina fossem “naturais”. A idéia de virilidade amarra o masculino não só a
questões de honra como também de agressividade e violência.
Culturalmente, construiu-se uma imagem de falta de ação e iniciativa feminina, por
isso as ameaças de Estela não afetam muito os meninos, que manifestam em seu discurso a
pouca importância dada àquelas palavras hostis. Então, vem a zombaria e a advertência: “—
Fica fora. Em briga de homem mulher não se mete.” (MACHADO, 1979, p. 31).
Acerca da citação anterior, convém destacar dois pontos importantes. O primeiro deles
é o emprego de imperativo na fala dos meninos, como reflexo da relação de poder masculino
que comanda a mulher. Já o segundo ponto refere-se à expressão “briga de homem” que
resgata a idéia de violência física em oposição à dita “fragilidade feminina”, além da
demarcação de lugares diferenciados.
Diante da construção social androcêntrica, percebe-se uma divisão de espaços,
atribuições e atividades que compõem um sistema de oposições
18
entre homens e mulheres.
Esse esquema incorporado pelos indivíduos aplica-se a todas as coisas do mundo e aos
próprios corpos em sua realidade biológica. Dessa forma, o espaço público onde ocorrem
discussões e brigas não seria considerado território feminino por excelência. Afinal, como
ainda afirmam muitos por aí, lugar de mulher é na cozinha, espaço restrito em que pode se
tornar até rainha.
Depois da ordem de manter-se afastada de “briga de menino”, Estela reafirma sua voz
e poder de escolha através das seguintes respostas: “— Quem escolhe as minhas brigas sou
eu.” (MACHADO, 1979, p. 31) e “— Cala a boca já morreu. Quem manda aqui sou eu.”
(MACHADO, 1979, p. 31). Em contraste com toda uma estrutura social que ratifica a relação
de dependência feminina em relação ao masculino, a personagem Raul não manifesta voz ou
iniciativa, enquanto a menina escolhe as próprias brigas e anuncia seu poder de mandar.
18
Em A dominação masculina (2005), Pierre Bourdieu sistematiza várias dicotomias entre o que é construído
como masculino ou feminino no que ele chama de “Esquema sinóptico das oposições pertinentes” (p. 19).
94
O capítulo seis, “Encontro com o preto velho”, já se inicia com uma intervenção do
narrador indicando a perplexidade de Raul diante daquela menina: “Você bem pode imaginar
o susto do Raul. Pela primeira vez alguém via a ferrugem dele. E logo uma menina briguenta!
Ele perdeu a fala e mal conseguiu responder quando ela perguntou” (MACHADO, 1979, p.
34).
Raul fica sem fala diante não só da percepção da menina em relação à sua ferrugem,
mas também por todo aquele processo de enfrentamento. A iniciativa de entremear uma
conversa parte de Estela e num tom de questionamento: “— Ô cara, que é que você está
olhando aí? Quer alguma coisa?” (MACHADO, 1979, p. 34).
Novamente se constrói um contraste da atitude da menina com a de Raul, que explica
sua presença e acrescenta: “Mas não estou querendo atrapalhar...” (MACHADO, 1979, p. 34).
Na seqüência, ainda meio espantado com tudo, o protagonista ainda pergunta para Estela: “—
Você é sempre briguenta assim?” (MACHADO, 1979, p. 34). O questionamento de Raul
deve-se à idéia de brigar para conquistar espaço, como registra Nolasco (2001), estar
associada historicamente à masculinidade tradicional.
No Ocidente, a masculinidade não vem facilmente; ela é conquistada através
de muito esforço, existindo entre a representação masculina e a violência
uma estreita relação, uma vez que brigar é, em última instância, uma forma
do sujeito defender sua imagem de homem. (p. 97)
Depois desse diálogo entre as crianças, a menina assume o papel de guia pelo caminho
que Raul precisa percorrer para conseguir encontrar o Preto Velho. Nesse percurso, eles foram
conversando e subindo. A idéia de subida pode ser entendida metaforicamente como processo
de amadurecimento por que está passando Raul. Depois do encontro com o Preto Velho, o
protagonista descobre que só ele mesmo pode resolver seu problema de enferrujamento:
“Com ajuda, claro. Sabia que tinha sido ajudado. Por Tita, por Estela, pelo Preto Velho.
Agora só dependia dele mesmo — era isso que todos estavam lhe dizendo” (MACHADO,
1979, p. 38). Com essa colocação, frisa-se que por intermédio de duas figuras femininas
95
pobres e um representante da magia foi possível descobrir que a iniciativa contra as injustiças
depende de cada um.
Essa intervenção feminina que auxilia no amadurecimento de personagens masculinas
também se concretiza em O mistério da ilha, publicado em 1984. Pelas semelhanças
existentes entre as duas narrativas, cabe uma pequena incursão analítica nesse texto.
Assim como ocorre em Raul da ferrugem azul, a narrativa tem personagens
masculinas e crianças como protagonistas: Chico (filho do empregado) e Carlos (filho do
patrão). Num dia de férias, os garotos empreendem uma viagem de barco e vão parar numa
misteriosa ilha chamada Quilomba.
Durante a estada na ilha, o mimado filho do patrão passa por um processo de
amadurecimento, simbolicamente representado pela perda, de forma misteriosa, de suas
próprias vestes. Para compreender a lição simbolizada por essas perdas, Carlos contou com a
ajuda de uma menina chamada Luana e do avô dela. Tanto a garota quanto o avô
desempenham papéis muito semelhantes aos de Estela e Preto Velho de Raul da ferrugem
azul.
Para introduzir Luana na narrativa, assim como ocorre com Estela, dedica-se um
capítulo especial, cujo título é “Uma fada africana de Marte”. Essa designação se deve à
aparência física da bela menina, comparada a uma princesa africana
19
. Cabe a essa garota, que
“podia ser uma fada ou uma feiticeira” (MACHADO, 2004, p. 36), conduzir os meninos até o
sábio velho, avô dela, e a um aprendizado.
Carlos, assim como Raul, sente-se fragilizado diante da representante do sexo
feminino, que de “sexo frágil” não tem nada. Pode-se notar esse desconserto que o patrão em
miniatura (representante também do poder financeiro) vivencia na citação a seguir: “Mas de
19
A descrição de Luana se assemelha muito à da protagonista de outro livro da mesma escritora chamado
Menina bonita do laço de fita (1986), em que a beleza negra também é enfatizada.
96
qualquer jeito, esquisita ou não, Carlos não podia admitir que ninguém risse dele, quanto mais
uma menina” (MACHADO, 2004, p. 36).
Depois de encontrar o velho e ouvir a história da ilha, Carlos ainda precisou da
intervenção de Luana para enfim compreender o que representavam as perdas. Num convite à
reflexão, a irreverência da menina se assemelha às vozes de Nita e Estela, como se pode
perceber a seguir: “— Não diga bobagem, Carlos. É só pensar um instante” (MACHADO,
2004, p. 49). Em contrapartida à tanta sabedoria, o protagonista se desconserta e fica
admirado: “Como é que ela podia saber disso? Carlos estava intrigado.” (MACHADO, 2004,
p. 49).
A constatação final de Raul acerca de Estela e de Carlos em relação a Luana foi
equivalente: eram mesmo meninas diferentes. Mas em que medida ambas eram tão diferentes?
As duas preocupavam-se, sabiam respostas, protestavam, tinham voz e até gritavam se fosse
necessário. O ponto mais importante era que ajudaram nas descobertas dos outros, sugerindo
o não conformismo e a reflexão. Enfim, elas eram diferentes porque rompiam com o papel
feminino de passividade construído socialmente e, muitas vezes, ratificado pelas questões de
gênero.
4.3 Num reino não muito distante
Apesar de ter sido editado pela primeira vez em 2004, O príncipe que bocejava ainda
não está referenciado no site oficial da escritora nem na página da Academia Brasileira de
Letras. Essa obra segue uma tendência da pós-modernidade de revisitar formas clássicas e,
assim, promove uma releitura contemporânea dos contos de fadas. A revitalização da
estrutura básica desses contos não é novidade na obra de Ana Maria Machado, depois da
publicação de História meio ao contrário (1979), premiada nacional e internacionalmente.
97
Diferentemente da inversão proposta em História meio ao contrário
20
, a narrativa
segue o padrão tradicional e se inicia por “era uma vez”, referência temporal comum em
contos de fadas. Conforme explica Coelho (2000), essa expressão introduz o tempo mítico
que “corresponde ao tempo imutável, eterno, que se repete sempre igual, sem evolução nem
desgaste” (p. 80). Resgatando essa fórmula tradicional, Ana Maria Machado dialoga com a
estrutura do conto de fadas clássicos, num movimento intertextual. No desenrolar dos fatos, a
idéia de imutabilidade indiciada pela expressão de abertura vai sendo reavaliada.
Antes mesmo de fornecer qualquer contextualização espacial, a personagem
protagonista é inserida no texto como “um príncipe muito bem educado, que tinha se
preparado a vida toda para ser rei um dia” (MACHADO, 2004, p. 5). Assim como aconteceu
com Raul, a educação dada ao príncipe impunha a ele uma série de restrições e proibições. No
caso do príncipe, a preparação do futuro governante proibia certas brincadeiras e
implementava a disciplina como forma de controle do corpo, conforme indica a passagem a
seguir:
Desde pequenino, aprendeu a não brincar de esconder atrás das cortinas do
salão do palácio, a não patinar nem andar de skate pelos corredores, a não
descer pelo corrimão da escadaria. Também lhe ensinaram a se portar à mesa
com boas maneiras, a ser gentil com as pessoas, a ficar horas em pé sem se
mexer, assistindo quietinho aos desfiles e paradas. (MACHADO, 2004, p. 5)
Em Vigiar e punir (1987), Michel Foucault propõe um percurso histórico para elucidar
as manifestações de poder sobre o corpo que vai desde as torturas medievais, passando pela
nova noção de punição desenvolvida pelo Iluminismo, até alcançar o conceito contemporâneo
de disciplina. O filósofo e historiador francês argumenta que, até o final do século XVIII, a
punição consistia freqüentemente no espetáculo público da tortura: prisioneiros eram
chicoteados ou até mesmo executados em praças públicas.
20
Nessa obra, a história se inicia pelo final tradicional “viveram felizes para sempre” e termina, sem fechar, com
“era uma vez...”
98
Com a Idade Moderna, as antigas formas de punição dirigidas ao corpo deixam de
fazer sentido, uma vez que os indivíduos adquiriram a chamada "liberdade individual". A
partir de então, o corpo foi reconhecido como sua propriedade e qualquer punição a esse
corpo representaria um desrespeito à individualidade. Como reflexo dessa mudança, o corpo
passou a ser exposto a novas técnicas que visavam torná-lo “dócil”, isto é, capaz de ser
subjugado, usado, transformado e melhorado.
Torna-se necessária, então, uma nova forma de controle do corpo, a disciplina que
“fabrica corpos submissos exercitados, corpos 'dóceis'.”. (FOUCAULT, 1987, p.127). Esse
controle disseminado, característico da disciplina, segundo o historiador, “implica numa
coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu
resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o
espaço, os movimentos” (FOUCAULT, 1987, p. 126).
É sujeito a essa forma de controle disciplinar que se encontra o protagonista desse
conto de fadas contemporâneo. Para transformar-se em rei, um dos símbolos do poder
patriarcal, foi necessário investir na sujeição do príncipe a um poder disciplinar, montando
uma microfísica do poder. Nesse sentido, a incidência do advérbio “não” no primeiro período
da citação ratifica a colocação de Badinter (1993) quanto ao aprendizado de ser homem se dar
mais no imperativo.
Um dos ícones dos contos de fadas é a figura do destemido príncipe encantado,
geralmente montado em um belo cavalo. Conforme destaca Coelho (2000) quando trata das
histórias tradicionais, reis, rainhas, príncipes e princesas são categorizados como personagens-
tipo, pois correspondem a uma função ou a um estado social facilmente identificável pelos
leitores. Na literatura popular e infantil, essa categoria de personagem é a mais encontrada e
ativa expectativas por parte dos leitores. “São personagens estereotipadas: não mudam nunca
em suas ações ou reações” (COELHO, 2000, p. 75).
99
No capítulo “A literatura infantil/juvenil brasileira do século XX”, Coelho (2000)
problematiza a caracterização dessas personagens na contemporaneidade: “As personagens-
tipo reaparecem (reis, rainhas, princesas, fadas, bruxas, profissionais de várias áreas,
funcionários...), mas geralmente através de uma perspectiva satírica e crítica” (p. 152). É
exatamente nessa linha que Ana Maria Machado, a partir do “era uma vez”, des(re)constrói
essa figura tradicional de príncipe ao longo da narrativa.
Logo na primeira página da história, tematiza-se a educação do príncipe voltada para a
preparação de um futuro rei. Dessa forma, pode-se entender que não se nasce rei, torna-se rei
através de uma construção que passa pelo processo educacional. Na história, não se fala em
escola, porque era comum aos nobres dedicar a formação de seus filhos a professores
particulares que pudessem preparar um futuro regente. Com pesquisas dedicadas às relações
de gênero com educação, Louro (2003) indica o processo ensino-aprendizagem como
ferramenta de enorme potencial formador de ideologias que, muitas vezes, serve para manter
a microfísica do poder, proposta por Foucault.
Conquanto não haja referência ao fato de o príncipe freqüentar nenhuma escola, o
menino recebeu formação específica como preparação para um futuro reinado. Interessante
notar a preocupação de Ana Maria Machado em discriminar, através de uma enumeração, os
ensinamentos repassados para o príncipe:
Teve professores de dança e de ginástica, de equitação e de golfe. Aulas de
economia e de política, de direito e de línguas. Aprendeu toda a história de
seu país e toda a geografia do mundo. (...) Seus computadores tinham
sempre os programas de última geração. (MACHADO, 2004, p. 5)
Percebe-se que a instrução dada ao príncipe tende para esportes e áreas de atuação
considerados tradicionalmente como sendo de foro masculino. A predominância de atividades
mais ligadas à ação e aos estudos da matemática, baseados na racionalidade, reduplicam o
dualismo sexual quanto a áreas de interesse, segundo registra Bourdieu (2005):
É através do adestramento dos corpos que se impõem as disposições mais
fundamentais, as que tornam ao mesmo tempo inclinados e aptos a entrar
100
nos jogos sociais mais favoráveis ao desenvolvimento da virilidade: a
política, os negócios, a ciência etc. A educação primária estimula
desigualmente meninos e meninas a se engajarem nesses jogos e favorece
mais nos meninos as diferentes formas da libido dominandi, que pode
encontrar expressões sublimadas nas formas mais “puras” da libido social,
como a libido sciendi. (p. 71, grifos do autor)
Assim a narrativa revela toda uma preparação do menino para o que é ser rei,
importante símbolo do poder exercido por uma figura masculina. Para se inserir no espaço
público, construído socialmente como lugar próprio do masculino, é necessário conhecimento
de economia para ser um bom provedor, de política para governar com seu poder “natural”, de
direito a fim de garantir a manutenção de seus “direitos naturais” dentro da sociedade e de
línguas para fazer valer a própria voz diante dos silenciados.
A esse respeito, Louro (1997) enfatiza que “a seleção dos conhecimentos é reveladora
das divisões sociais e da legitimação de alguns grupos em detrimento de outros” (p. 85).
Atividades como equitação e golfe estão mais ligadas a movimento e ação, por isso foram
consideradas inadequadas diante da “fragilidade” feminina.
O percurso histórico das sociedades ocidentais construiu a idéia de que as decisões
importantes para a sobrevivência do grupo deveriam ser tomadas por homens. Portanto,
assuntos ligados principalmente a política e economia foram associados ao masculino, o que
se revela na pouca expressividade percentual de mulheres nessas áreas. Para finalizar, os
conhecimentos de tecnologia, como é o caso da informática, representariam outro espaço
tipicamente masculino por envolver lógica e matemática, fenômeno que ainda influencia a
escolha de carreira nas universidades: áreas tecnológicas e administrativas para homens e
áreas humanas e de saúde para mulheres.
O título dado ao livro já representa o protagonista da história pelo substantivo
príncipe, restringido por uma oração de valor adjetivo que o caracteriza: “que bocejava”.
Quando a princesa é introduzida na história, ela também recebe uma oração adjetiva que a
caracteriza, “que lia”. No artigo “O texto de Ana Maria Machado: os teares estéticos do
101
adjetivo” (GREGÓRIO, 2004), destaca-se a intencionalidade dessa classe gramatical e como a
autora engendra idéias em palavras:
A utilização estética do adjetivo e suas representações é de tal forma
explorada que, indiscutivelmente, constitui-se em meio expressivo revelador
da maneira de a autora ver e conceber a realidade, delineando a sua
cosmovisão. Essa classe é uma das que mais sinalizam o lado afetivo da
comunicação, pois toda qualidade manifestada envolve uma atitude
valorativa, propiciando-nos perceber que acoplada à linguagem intelectiva
há linguagem expressiva. Desse modo, fundem-se forma, conteúdo e visão
de mundo. (p. 156)
A partir dessa colocação, pode-se perceber que a caracterização adjetiva dada às duas
personagens centrais da história em exame revela como Ana Maria Machado (re)desenha
posicionamentos masculinos e femininos.
A proposta de atrelar à imagem do príncipe o ato de bocejar intensifica a idéia de
enfado e desinteresse por parte dele. Convém lembrar que os bocejos aconteciam diante das
pretendentes à posição de esposa do príncipe logo que elas começavam a falar. Assim, a
narrativa mostra que o elemento masculino não deseja mais mulheres com quem não se
pudesse compartilhar, conversar, enfim, dividir a vida. Tanto é assim que no final da história,
já em companhia da Princesa que Lia, o protagonista recebe nova designação: “Príncipe que
Não Bocejava Mais”.
Quanto à caracterização da princesa, observa-se o ato de ler como seu elemento
marcante, um verdadeiro diferencial em relação às demais moças. Em contraste com as várias
pretendentes do príncipe, a princesa, por suas leituras, consegue entremear uma infindável
conversa com o novo companheiro de viagem. Nesse intercâmbio de experiências de leitura, a
posição dos dois protagonistas é de igualdade.
Bourdieu (2005), ao tratar da construção social da dominação masculina, estabelece
uma relação entre a nobreza e o sexo masculino: “Realmente, não seria exagero comparar a
masculinidade a uma nobreza.” (p. 75). Nessa perspectiva, o sociólogo problematiza as
questões de gênero que funcionam como diferencial até para homens e mulheres que
102
desempenham a mesma profissão, como por exemplo costureiro e costureira ou cozinheiro e
cozinheira.
Na narrativa de Ana Maria Machado, o príncipe é apresentado como nobre, sem que
haja referência a qualquer membro da família ou estirpe. O questionamento se instaura,
entretanto, quanto à existência de príncipes encantados:
Quando cresceu, ficou um rapaz encantador. Podia ser considerado um
verdadeiro príncipe encantado — para quem ainda acredita nessas coisas.
Todas as moças suspiravam por ele, sonhavam com ele, recortavam suas
fotos que saíam nas revistas. (MACHADO, 2004, p. 6)
O jogo de palavras entre “encantado” e “encantador” também foi um recurso
explorado em História meio ao contrário: “Não era um Príncipe Encantado, mas a Pastora,
que o tinha visto, afirmava que era um Príncipe Encantador” (MACHADO, 1982b, p. 24). O
trocadilho não encerra apenas uma mudança de sufixos parecidos, mas da carga semântica
que tais elementos mórficos encerram. A forma encantado, particípio do verbo encantar,
encerra a idéia de passividade e está sendo empregada com valor adjetivo. O sufixo –dor
integrante de encantador encerra a idéia de agente, de ação.
Pode-se, assim, entender que não há mais espaço para um representante masculino que
simplesmente segue os padrões de forma passiva, sem questionamentos. Na história em
análise, acontece exatamente um rompimento com o que era esperado de um comportamento
de príncipe tradicional. Dessa forma, confirma-se o indicativo semântico de ação embutido no
sufixo –dor.
A origem da nobreza da princesa não vem de berço e precisou ser conquistada. A
moça fez jus a esse título, sendo vice-campeã do concurso para Rainha da Uva na Festa da
Colheita. Dessa maneira, a “nobreza” da moça foi alcançada mais por seus atributos físicos,
pois é comum nesse tipo de competição que se escolha a candidata mais bonita ou simpática
das concorrentes.
103
Esse quadro reflete uma problemática maior já ressaltada por Bourdieu (2005), a
construção social androcêntrica dispensa do elemento masculino qualquer justificativa, pois o
homem é o parâmetro. Para as mulheres, o posicionamento social é conquistado e, muitas
vezes, muitas não gozam da mesma reputação que os representantes do sexo masculino têm.
Ana Maria Machado coloca em xeque, no próprio texto, a possibilidade de realmente
existir príncipe encantado, pelo menos nos padrões clássicos. Em tempos pós-modernos,
pertencer a uma família tradicional ou possuir título de nobreza não garante tanta projeção
social. Em meio à sociedade do espetáculo, é importante ser assunto para a mídia e participar
desse universo hiper-real, como acontece com a vida privada do príncipe que tem suas fotos
publicadas nas revistas.
Apesar de serem outros os referenciais, a posição social de príncipe obriga o
protagonista a constituir um casamento enquanto decisão política. Para isso, foi promovido
“um grande baile, daqueles de escolher noiva” (MACHADO, 2004, p. 6). Tal evento, como
um ritual de passagem, representa simbolicamente a transição para a idade adulta e,
conseqüente, reconhecimento na sociedade. A expressão caracterizadora atribuída ao baile
confirma a idéia de que, tradicionalmente, caberia ao homem o poder de escolha de sua
parceira. Diante dessa situação, o príncipe não se mostra indiferente e participa de dois bailes
com o intuito de encontrar uma futura rainha.
É comum, quando se trata de baile em contos de fadas, vir à memória a história da
Cinderela compilada tanto por Charles Perrault, como pelos Irmãos Grimm. Nesse conto de
fadas e em outros, o baile é o momento em que as debutantes se apresentam socialmente
como em idade de casar, para viver o “felizes para sempre”. Em O príncipe que bocejava,
quem participa do debut é o rapaz, opção narrativa que novamente rompe com as expectativas
dos leitores despertadas no início através do “era uma vez”.
104
Durante o processo de escolha de uma noiva para o príncipe, destaca-se a figura do pai
da pretendente. Os conhecidos arranjos de casamento em que a mulher passava do dominador
pai para um novo responsável por ela, o marido, retratam uma época não muito distante da
história ocidental.
Metaforizada através dos bocejos do príncipe, a história apresenta uma mudança de
expectativa masculina diante da escolha de uma noiva. No segundo baile organizado para o
príncipe escolher sua futura esposa, a beleza das candidatas é destacada: “Como algumas
princesas não quiseram vir, também foram convidadas várias atrizes, cantoras e modelos.
Cada moça mais linda que a outra.” (MACHADO, 2004, p. 9) Embora o príncipe tenha ficado
entusiasmado e encontrado com algumas para conhecer melhor, no momento da conversa
chegavam os bocejos.
Por conta dessas manifestações de enfado e desinteresse diante das melhores
candidatas, a conclusão registrada no texto resgata a idéia de pressão social sobre o
masculino: “Só podia estar doente. Talvez com a doença do sono.” (MACHADO, 2004, p.
11). Na construção textual, usa-se o advérbio de condição “só”, o que revela uma espécie de
obrigação em relação à figura masculina. Com mulheres tão bonitas à disposição, o príncipe
deveria ter algum problema para não escolher nenhuma. Pode-se entender, a partir dessa
construção, uma certa imposição social de que o homem precisa ser um conquistador e não
pode desprezar uma oportunidade. Nessa medida, exige-se do homem um posicionamento
agressivo numa relação afetiva, condizente com a idéia de virilidade física de que tratou
Bourdieu (2005, p. 20-21). Na narrativa em exame, não foi questionado o fato de o príncipe
poder não gostar de nenhuma pretendente ou querer algo além da beleza.
O principal motivo do desinteresse do príncipe pelas candidatas é o chamado “papo de
mulher”, como revela a passagem a seguir:
105
É que nem podia ouvir falar em princesa que se lembrava das conversas que
tinha ouvido. De todas aquelas moças falando de roupas e do cabeleireiro e
do namorado de uma amiga e da irmã da vizinha e do último lançamento da
butique e do regime que a prima da cunhada tinha feito e da festa do duque e
do número de calorias do empadão e do chapéu novo da marquesa e do
chapéu velho da baronesa e do corte de cabelo esquisito da condessa e da...
(MACHADO, 2004, p. 11)
Excluídas por muitos séculos das esferas públicas, as mulheres ficaram mais restritas a
questões domésticas e familiares. Como os homens não se integravam muito nesses assuntos
para não ferirem sua masculinidade, foram-se delineando áreas de conhecimentos diferentes.
Estando, assim, socialmente levadas a tratar de si próprias como objetos
estéticos e, por conseguinte, a dedicar uma atenção constante a tudo que se
refere à beleza, à elegância do corpo, das vestes, da postura (...)
(BOURDIEU, 2005, p. 119)
Submetidas a uma formação de corpos controlados e à mercê das imposições sociais
de beleza, as representantes do sexo feminino se viram “na obrigação” de empreender
esforços para entender desses assuntos. Pode-se, então, concluir que o chamado “papo de
mulher” é uma das muitas manifestações da chamada violência simbólica, elemento
perpetuador da visão social androcêntrica.
Por muito tempo homens e mulheres conviveram com esse afastamento de áreas de
interesse e conseqüente afastamento em relação às conversas ditas de homem e de mulher.
Assim, parecia “natural” que mulheres fossem fúteis e afeitas a fofocas, enquanto os homens
assumissem a posição de decisão. Na narrativa, o príncipe não se submete a esse jogo de ser
obrigado a estar com uma moça que não tivesse nada de interessante a compartilhar. A
solução encontrada pelos médicos do reino foi a de o príncipe iniciar uma viagem.
Esse deslocamento, na estrutura das histórias infantis tradicionais, representa o
percurso de amadurecimento que o herói empreende sozinho, sem ajuda familiar, geralmente
em um lugar desconhecido. Simbolicamente, a viagem favorecerá a relação de autonomia do
representante do sexo masculino que, depois da empreitada, poderá ser o chefe responsável
por uma família.
106
Ao empreender a viagem, o príncipe resolve se disfarçar e fica parecendo alguém que
vai a um festival de rock: “Cortou e pintou o cabelo, pôs brinco e óculos escuros, se vestiu de
um jeito bem moderno, botou uma mochila nas costas.” (MACHADO, 2004, p. 12-13).
Atitudes como pintar cabelos e usar brinco já foram consideradas como afeitas ao sexo
feminino, mas na contemporaneidade estão em processo de mudança. Recentemente, ganhou
projeção social a figura do metrossexual
21
que condiz com a hipervalorização do indivíduo
trazida pelas perspectivas pós-modernas. Em torno dessa nova categoria, criou-se uma
imagem equivocada de que o metrossexual é um homem homossexual. Em entrevista à revista
Veja, o escritor inglês Mark Simpson, criador do termo, trata do assunto:
Veja – Por que não se fala em mulheres metrossexuais, já que o
egocentrismo e o narcisismo não são características exclusivas dos homens?
A metrossexualidade é apenas masculina?
Simpson – Não. E eu já falei sobre isso no meu artigo para a Salon, mas
ninguém deu importância. O narcisismo feminino que se manifesta por meio
do cuidado com a aparência não chama atenção. Essa é uma das razões pelas
quais o termo metrossexual não foi aplicado às mulheres. Entretanto, há
muitas que se encaixam nesse perfil. As mulheres no seriado Sex and the
City são, em sua maioria, solteiras, vivem com estilo e escolheram a si
mesmas como seu objeto de amor e desejo, embora aparentemente estejam à
procura de um homem. Elas são metrossexuais. Eu arrisco dizer que a
crescente auto-suficiência das mulheres tem estimulado o avanço da
metrossexualidade masculina. Atualmente, muitos homens se vêem
obrigados a cuidar de si próprios, pois já não contam com uma coadjuvante
feminina sempre pronta para atender a suas necessidades. A
metrossexualidade faz, finalmente, com que o homem seja menos
dependente da mulher, da família, embora mais dependente das revistas de
beleza. (SIMPSON, 2004, s. p.)
Diante da preocupação com a imagem pessoal, o narcisismo pós-moderno atinge
homens e mulheres, desfazendo construções de gênero que associam preocupações com
beleza e estética como inerentes ao universo feminino.
Com certeza, o príncipe não se tornou metrossexual, mas empreendeu mudanças no
visual através de recursos que foram construídos como femininos. Pode-se perceber nessa
21
Termo criado em 1994 num artigo escrito para o jornal britânico The Independent e resgatado em 2002 pela
revista eletrônica americana Salon. Desde então, ganhou projeção na mídia com adeptos famosos como o
jogador de futebol David Beckham e o ator Brad Pitt.
107
caracterização física do rapaz uma outra proposta de atualização das histórias tradicionais. Era
comum a nobreza se disfarçar para não ser alvo de pessoas interessadas apenas em suas
riquezas. Assim seria possível descobrir os problemas sociais, fazer novas amizades e até
mesmo encontrar um amor verdadeiro.
Depois de viajar de moto, um índice de modernidade, velocidade e rebeldia, o príncipe
resolve trocar de meio de transporte: “Primeiro, saiu de moto pelas estradas. Viu uma porção
de lugares bonitos, sentindo o vento e curtindo a liberdade. Depois, quando cansou de estar
sozinho, resolveu viajar de trem” (MACHADO, 2004, p. 13). Na dimensão simbólica, trem
está associado com evolução e crescimento, que são aspirações do príncipe. É justamente no
trem que os protagonistas se encontram, ambos no mesmo movimento de viagem e conquista
de autonomia.
Embora a narrativa aponte várias quebras de paradigmas associados às
masculinidades, no momento da aproximação do príncipe com a princesa, ela está na posição
de passividade. O empreendimento da conquista cabe ao rapaz que, mesmo sem querer
atrapalhar a leitura da moça, investe para começar uma conversa.
Interessante notar que, mesmo viajando sozinha, a princesa não se assusta ou se
mostra arredia à investida do príncipe. Dessa forma, ele não enfrenta a rejeição feminina e a
aproximação se faz sem maiores problemas. É, por intermédio da leitura que se realiza o
primeiro contato que acaba despertando interesse por parte do rapaz. Cumpre notar também
que os questionamentos do príncipe acerca da incomum liberdade daquela moça só se
manifestam quando ele já se encontra interessado por ela.
Mas um dia começou a pensar: “Que mistério era aquele? Como é que
aquela moça podia ir para onde quisesse, daquele jeito? Não tinha família?
Não morava em lugar nenhum? De onde vinha? Para onde ia?” Resolveu
perguntar. (MACHADO, 2004, p. 19)
Por um bom tempo, eles empreenderam uma viagem juntos sem que houvesse
estranhamento da parte dele ou medo dela em relação à aproximação de um rapaz
108
desconhecido. Ainda que tenha ocorrido uma espécie de modernização do príncipe, os
questionamentos dele reforçam as noções de gênero e anunciam um desconserto diante de
tanta liberdade e autonomia daquela moça.
As perguntas do protagonista tratam de relação de poder, pois ainda é incomum
mulheres viajando sozinhas, sem proteção ou controle de representantes do sexo masculino.
Outro ponto interessante é a relação com a família, pois essa representante do sexo feminino
não está mais enredada nos laços de familiares. É o príncipe que se preocupa com a questão
familiar, enquanto a moça não fala a respeito disso em momento algum no texto. A relação de
pertencimento e o destino são preocupações também por parte do rapaz.
Diante da pergunta do príncipe, a moça responde que está longe de casa e explica sua
viagem: “— Só estou podendo viajar porque ganhei um prêmio. O segundo lugar num
concurso.” (MACHADO, 2004, p. 19). Percebe-se a relação de a mulher estar em segundo
lugar e se contentar com isso. Para a princesa, foi necessário viajar de trem (evolução), além
do acesso ao conhecimento através dos livros. Como a princesa não aparece como detentora
de dinheiro, ela recebe o prêmio e utiliza-o pelo tempo de validade do bilhete: 6 meses. Nesse
movimento, o príncipe faz sua vida em função do planejamento da moça, numa atitude
inversa ao que muitas vezes acontece: mulheres mudando seus planos pessoais por causa da
vida dos companheiros.
A grande revelação de que o rapaz era um príncipe teve seu impacto minimizado na
narrativa e a princesa se coloca em igual patamar quando revela ser Princesa da Uva na Festa
da Colheita. Ainda que a “nobreza” de ambos seja diferente, não se percebe uma grande
realização pessoal pelo fato de ela estar com um príncipe.
O final apresenta uma releitura do “e foram felizes para sempre” através da
intervenção da voz narradora que assume a primeira pessoa do singular: “Não sei se viveram
felizes para sempre. Mas por muitos e muitos anos, até onde a memória alcança, tiveram
109
assunto para conversar e se divertir.” (MACHADO, 2004, p. 20). Esse desfecho alude não
somente a uma nova forma de terminar os contos tradicionais, mas repensa a idéia de príncipe
encantado e de casamento.
Como as mulheres passam por um processo de libertação do poder econômico
masculino no casamento, esperar por um príncipe encantado também merece revisão. A força
de trabalho remunerada para as mulheres abalou a legitimidade da dominação masculina
enquanto provedor da família. Dessa forma, não é fundamental na vida de uma mulher
encontrar um excelente provedor para reger sua vida e de sua família. Muitos são os lares em
que a sustentabilidade é garantida exclusivamente pela força de trabalho feminina.
Nessa nova configuração social, intimamente influenciada pelos referenciais de
trabalho, homens e mulheres criam novas expectativas em relação a um relacionamento
pessoal. A espera pelo príncipe encantado ou a busca de uma princesa indefesa perdem espaço
para a figura do/a companheiro/a. Os novos paradigmas sociais exigem dos casais maior co-
participação em várias instâncias como a questão financeira, a educação dos filhos e os
afazeres domésticos.
Por conta das sucessivas mudanças sociais e dos ajustes das posições de homens e
mulheres nessa nova situação, a idéia de tempo prolongado para um relacionamento revela
dois problemas. Um deles é a mudança de perspectiva do tempo que é visto como acelerado
demais, não sendo condizente com a imutabilidade do “para sempre”. Outro ponto importante
é que o casamento não está mais atrelado a uma cobrança social de indissolubilidade.
Na pós-modernidade nada é imutável, está tudo em movimento constante de
transformação, inclusive as relações afetivas e o casamento. Desde a década de 60, os valores
que estruturavam a sociedade ocidental passaram a ser questionados, gerando uma crise de
identidade nos sujeitos. O polonês Zygmunt Bauman, um dos mais prestigiados estudiosos do
mundo pós-moderno, trata da fluidez das relações humanas no livro Amor líquido de 2004.
110
Segundo o sociólogo, o longo processo de desaprendizado do amor, na líquida
sociedade pós-moderna, relaciona-se à vivência e formas de relacionar-se que obedecem aos
princípios do consumismo. Um dos pressupostos do capitalismo se baseia na compra de bens,
mas não com o objetivo de acumulá-los e, sim, de usá-los e descartá-los, freneticamente.
Assim, o homo consumens vê o seu próximo como um objeto de consumo, inclusive os seus
próprios parceiros, transformados em objetos de consumo emocional.
Com olhar crítico quanto à paisagem humana da “modernidade líquida”, Bauman
constata que o desaprendizado do amor ultrapassa o plano das relações afetivas e familiares
para atingir a sociedade. Esse quadro de relações humanas mercantilizadas e de liquefação
dos laços sociais gera altos níveis de insegurança nos indivíduos, um “mal-estar da pós-
modernidade”.
Mergulhado nessas mudanças, o casamento também passa por reajustes e não
representa mais um ideal de segurança. Como afirma o sociólogo, “relacionamentos são
investimentos como quaisquer outros” (BAUMAN, 2004, p. 29), por isso as promessas de
compromisso a longo prazo mostram-se sem sentido. Dessa forma, não se pode mais pensar
em “felizes para sempre”, até porque o “sempre” parece não resistir aos constantes processos
de mudança do mundo contemporâneo. Sendo assim, a voz narradora de O príncipe que
bocejava não poderia afirmar que foram felizes para sempre, uma vez que não faz mais
sentido tal posição.
Ainda que sejam perceptíveis mudanças no comportamento do príncipe, protagonista
da história, alguns padrões de comportamento masculino reduplicam a estrutura patriarcal.
Mesmo assim, há indícios de reavaliação dos paradigmas de papéis femininos e masculinos
dentro da sociedade. O espanto do rapaz diante da liberdade que a princesa tem, sobretudo em
relação aos laços familiares, revela que os representantes do sexo masculino ainda se
desconsertam frente a essas mudanças.
5 Felizes por enquanto, mas não para sempre
Empreendendo uma viagem de amadurecimento, tal como fizeram várias personagens
criadas por Ana Maria Machado, a presente dissertação percorreu profícuos caminhos no
universo literário da escritora. Diante da vasta produção da autora, as duas incursões
propostas não pretenderam esgotar a investigação das relações de gênero através dos títulos
selecionados para o corpus de análise.
Convém enfatizar que a intenção inicial para este trabalho era de investigar apenas
questões ligadas ao feminino, mas a potencialidade das narrativas estudadas, em que tudo
pode ser modificado, convidou a outra abordagem. Assim, emergiu também o interesse em
aprofundar olhares sobre as personagens masculinas, que se mostravam despreparadas para
lidar com figuras femininas críticas e ativas.
Partindo do pressuposto de que o ato escrever envolve responsabilidade social,
percebe-se que Ana Maria Machado não se coloca apenas no papel de escritora, mas também
de crítica literária. Nesse sentido, a constante reflexão sobre o próprio fazer literário ajuda a
aperfeiçoar seus textos.
Como lembra Marisa Lajolo, “uma obra literária é um objeto social muito específico”
(2001, p. 17). Enquanto objeto social, o texto literário veicula uma ideologia através de um
discurso que sempre é uma instância de poder, como ensinou o mestre Bakhtin. Assim, a
escritora mostra-se consciente de que escrever é uma tarefa que envolve responsabilidade,
“principalmente quando se trata de leitores que são crianças, que não têm informação
suficiente ou recursos críticos para discernir e analisar a ideologia oculta no que estão lendo, e
para ir fazendo mentalmente as correções necessárias” (MACHADO, 1999, p. 32).
A partir do século XVIII, o conceito de infância passa por mudanças, os papéis sociais
de homens e mulheres estão diferentes, as relações culturais se alteraram e, como reflexo de
112
tudo isso, a literatura precisou mudar. Não se entende mais a criança como “vir a ser”, pessoa
que precisa ser moldada num adulto exemplar, mas como indivíduo, em formação, mas sem
passividade.
Com certeza, Ana Maria Machado insere-se no cenário da literatura brasileira
contemporânea de forma marcante e não somente atrelada aos textos ditos “infantis”. Dos
registros de menina num diário pessoal à vasta gama de títulos publicados, são vários anos de
dedicação à literatura, sem adjetivos reducionistas, como a própria autora gosta de ressaltar.
Como reconhecimento da importância da escritora para a literatura para crianças no
Brasil, é crescente o número de pesquisas em nível de especialização, mestrado e doutorado
que abordam temáticas relacionadas aos livros de Ana Maria Machado. Nesse cenário,
também merece destaque Tranças de histórias (2004), livro editado pela UNESP, constituído
de 10 artigos acerca de diferentes aspectos da produção literária da escritora. Muitas dessas
pesquisas exploram questões relacionadas ao poder e à rigidez de valores herdados da
sociedade patriarcal brasileira, com enfoque na desconstrução da condição subalterna da
mulher.
Ligado ao segundo eixo temático de pesquisa, inscreve-se o enfoque dado a esta
dissertação. Apesar das limitações impostas pela natureza deste estudo, fica evidente que há
outras perspectivas a serem exploradas, sobretudo quando se trata da literatura feita para
crianças, ainda carente de investigações acadêmicas.
O papel de brinquedos, brincadeiras e jogos juntamente com o desconserto masculino
frente às mudanças de paradigmas sociais de gênero foram os eixos estruturadores desta
pesquisa. Como foi possível perceber, por diferentes vias, as narrativas de Ana Maria
Machado rompem com os papéis engendrados pela tradição como masculinos e femininos.
Em vários títulos, a autora aponta facetas diferentes do que é ser mulher e ser homem
na sociedade contemporânea, marcada pela pluralidade. Como foi visto, retratar figuras
113
femininas com voz e decididas a ocupar uma posição social relevante não é uma temática
retratada em poucas obras de Ana Maria Machado. No que diz respeito ao estudo específico
do desconserto das personagens masculinas frente a esse novo perfil feminino, o campo de
pesquisas é amplo e requer mais incursões.
Nas obras analisadas nos capítulos precedentes, as personagens femininas Nita, Isabel,
Estela e Princesa que lia caminham na direção contrária ao sistema repressor do
patriarcalismo. Como reflexo desse movimento, personagens masculinas como Sérgio, Raul e
Príncipe que bocejava precisam se reajustar e, muitas vezes, revelam despreparo para isso.
Não se configura, entretanto, uma angústia por parte das personagens masculinas ou
femininas no que diz respeito a esses reajustes. Isso não significa que a busca da própria
identidade frente aos possíveis reengendramentos seja fácil.
Buscando (des)enquadrarem-se, as personagens das narrativas são acometidas de uma
crise de identidade, que se manifesta em diferentes formas. Nessa busca, a viagem
desempenha importante papel, não apenas como rito de passagem, mas como forma de
amadurecimento. Conhecer o país dos Prequetés, dialogar com passado e futuro, encontrar o
Preto Velho ou sair do próprio reino sem destino foram as viagens dos protagonistas das obras
analisadas que conduziram a um mesmo lugar: dentro de si mesma(o). Com o afastamento
imposto pela viagem, as personagens descobrem que a maior conquista foi a autoconfiança.
Na leitura do corpus estudado, evidenciou-se uma maior representatividade de
personagens do sexo feminino, sobretudo no papel de protagonista (sozinha ou
coletivamente). Nessa marca estilística de Ana Maria Machado, pode-se entrever pelas
fímbrias da linguagem sua visão de mundo, sua ideologia. Conforme destacou Carvalho
(2004) ao tratar do projeto estético-ideológico da escritora, “seus textos literários são seu
testemunho de uma época, onde a mulher, a mãe, a professora, a cidadã e a escritora se
fundem para revelar os conflitos humanos do momento em que vivemos” (p. 70-71).
114
A postura de Ana Maria Machado desafia os leitores a questionarem o mundo de
desigualdades em que se inserem. Nessa linha, as minorias ganham vez e voz como os negros,
os índios, os velhos, as mulheres, as crianças, as empregadas domésticas e muitos outros.
Em diversas narrativas da escritora, a iniciativa de neutralizar diferenças entre
meninos e meninas, principalmente no que diz respeito a brincadeiras e jogos, contribui para a
formação do imaginário infantil de maneira menos preconceituosa. Nesse mesmo contexto,
revelar o desconserto das personagens masculinas frente aos novos paradigmas sociais aponta
a necessidade de trabalhar essa situação desde a infância, seja através do cotidiano ou da
literatura.
Sendo assim, acredita-se que, como as questões de gênero, não são herdadas
geneticamente e sim construídas pelo crivo cultural. Dessa forma, a literatura produzida por
Ana Maria Machado desempenha importante papel na desconstrução de valores tradicionais
de gênero, principalmente se for considerada a grande quantidade de leitores de suas obras.
Afastando da literatura feita para crianças as superficialidades e as soluções fáceis, a
obra de Ana Maria Machado tem um compromisso com a formação de um leitor crítico frente
às posições sociais de homens e mulheres. Destarte, esses textos abordam a problemática que
envolve o convívio entre masculino e feminino frente às mudanças impostas pelo declínio do
sistema patriarcal.
Passeando por vários gêneros textuais (poesia, teatro, romance, conto, dentre outros),
as obras de Ana Maria Machado não só dialogam com clássicos da literatura brasileira e
mundial, mas principalmente com a leitora ou o leitor. Em meio a essa trança de textos e de
gente, a autora se eterniza porque sabe que “todas as histórias do mundo não ficam guardadas
numa cabeça só, por maior que seja. Ficam é em todas as cabeças do mundo” (MACHADO,
1985, p. 51).
115
Ana Maria Machado está ciente de que seus livros já influenciaram uma geração,
como relatou no artigo “Para uma leitura de resistência”, integrante do livro Texturas (2001).
Em seus textos, assume a empreitada de desconstruir estereótipos, na acepção barthesiana,
que inoculam o preconceito, para propor o novo, protótipos. Acreditando que “as palavras
podem tudo”, frase de abertura de O canto da praça, a irreverente (A)Nita, por não querer
enferrujar como Raul, resolveu fazer alguma coisa para tentar transformar o mundo: escrever.
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______. Bento que Bento é o frade. Rio de Janeiro: Salamandra, 2003b.
______. Bisa Bia, Bisa Bel. Rio de Janeiro: Salamandra, 1985a.
______. Uma boa cantoria. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993a (Col. Conte outra vez).
______. Brincadeira de sombra. São Paulo: Global, 2001a.
______. Com prazer e alegria. 4 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988b (Coleção Mico
Maneco V).
______. Contracorrente. São Paulo: Ática, 1999.
______. Dona Baratinha. São Paulo: FTD, 1998a. (Coleção Lê pra mim; série azul)
______. De olho nas penas. 14. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1985b.
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______. Esta força estranha: trajetória de uma autora. São Paulo: Atual, 1996.
______. Gente, bicho, planta: o mundo me encanta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______. História meio ao contrário. São Paulo: Ática, 1982b.
______. A jararaca, a perereca e a tiririca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998b.
______. Lugar nenhum. São Paulo: Globo, 1994.
______. A maravilhosa ponte do meu irmão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
______. Menina bonita do laço de fita. 7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1986.
______. O menino Pedro e seu boi voador. São Paulo: Ática, 1993b.
120
______. O mistério da ilha. São Paulo: Ática, 2004a.
______. Pena de pato e de tico-tico. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988c.
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literatura infantil e juvenil. Caxias do Sul: Educs, 2004. p.33-50.
7 Anexo
Lista de livros pesquisados e catalogados em função da representatividade de personagens
femininas.
1) Livros em que as personagens são exclusivamente animais ou outros seres
A arara e o guaraná. il. Mariângela Haddad. 3
a
ed. São Paulo: Ática, 1996
Banho sem chuva. il. Claudius. 6
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988 (Coleção Mico
Maneco IV)
Boladas e amigos. il. Claudius. São Paulo: Salamandra, 1988 (Coleção Mico Maneco II)
Cabe na mala. 14
a
ed. São Paulo: Melhoramentos, 1993
Camilão, o comilão. il. Fernando Nunes. Rio de Janeiro: Salamandra, 1996. (Coleção
Batutinha)
Dorotéia, a centopéia. il. Eva Furnari. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993. Essa história
também integra a coletânea organizada por AMM – O tesouro das virtudes para crianças 2
(p. 19-24)
O elfo e a sereia. il. Fernando Nunes 3
a
ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996
Fome danada. il. Claudius. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988. (Coleção Mico Maneco II)
O gato do mato e o cachorro do morro. il. Janine Decot. 10
a
ed. São Paulo: Ática, 1997
(Coleção Lagarta pintada)
Um gato no telhado. il. Victor Tavares. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999 (Coleção Batutinha)
A jararaca, a perereca e a tiririca. il. Graça Lima. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. / il.
Alcy Linares. São Paulo: Cultrix, 1984 (Coleção Peixinho)
O pavão do abre-e-fecha. il. Marilda Castanha. 2
a
ed. São Paulo: Melhoramentos, 1995
(Coleção Tatu bolinha)
O tesouro da raposa. il. Claudius. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988. (Coleção Mico Maneco
III)
A zabumba do quati. il. Claudius. 5
a
ed. São Paulo: Salamandra, 1988. (Coleção Mico
Maneco)
2) Adaptações, livro de adivinhas e outros
Cachinhos de ouro. il. Pinky Wainer. 2
a
ed. São Paulo: FTD, 1997 (Coleção Lê pra mim; série
azul)
Dona Baratinha / conto popular recontado por Ana Maria Machado. il. Pinky Wainer. São
Paulo: FTD, 1998 (Coleção Lê pra mim; série azul)
João bobo. il. Denise e Fernando. São Paulo: FTD, 1998 (Coleção Lê pra mim)
Manos malucos 1. il. Claudius. 2
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 2000 (Adivinhe só) e
Manos malucos 2. il. Claudius. 2a ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 2000 (Coleção Adivinhe
só)
123
Piadinhas infames. il. Claudius. São Paulo: Melhoramentos, 1997.
O que é? il. Claudius. 2
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 2000. (Coleção Adivinhe só)
Tapete mágico. il. Rui de Oliveira. São Paulo: Ática, s.d. - livro que reúne quatro histórias já
publicadas isoladamente na coleção Tapete Mágico: “Os dois gêmeos” (história dos índios
norte-americanos sobre a criação do mundo), “O touro da Língua de Ouro” (tradição oral
jamaicana), “Um Herói fanfarrão” (épico finlandês) e “Melusina” (conto medieval francês)
Os três porquinhos. il. Wilma Martins. São Paulo: FTD, 1996. (Coleção Lê pra mim, série
amarela)
O veado e a onça. 2
a
ed. il. Regina Coeli Rennó. São Paulo: FTD, 1998. (Coleção Lê pra mim,
série verde)
Um avião e uma viola. il. Mariângela Haddad. Belo Horizonte: Formato, 1996.
3) Livros em que não há personagens femininas
Ah, cambaxirra se eu pudesse... il. Gérson Conforto. 8
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991
(Coleção Conte outra vez)
O barbeiro e o coronel. il. Gerson Conforto e Anna März. 5
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra,
1990 (Coleção Conte outra vez) Beto, o carneiro. il. Fernando Nunes. 4
a
ed. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1993 (Coleção Batutinha)
Currupaco papaco. il. Claudio Martins. Rio de Janeiro: Salamandra, 1997. (Coleção
Batutinha)
O domador de monstros. il. Gerson Conforto. Rio de Janeiro: Salamandra, 1992 (Coleção
Conte outra vez)
Jabuti sabido e macaco metido. Il. Graça Lima. 3
a
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Jeca, o tatu. il. Cláudio Martins. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993. (Coleção Batutinha)
Menino Poti. il. Claudius. 11
a
ed. São Paulo: Melhoramentos, 1990 (Coleção Mico Maneco I)
Ponto de vista. Il. Ziraldo. São Paulo: Melhoramentos, 2005.
Procura-se lobo. Il. Laurent Cardon. 1
a
ed. São Paulo: Ática, 2005
Surpresa na sombra. il. Claudius. 4
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988 (Coleção Mico
Maneco V)
4) Livros em que não há personagens femininas com representatividade relevante para este
estudo
1 arara e 7 papagaios. il. Claudius. 4
a
ed. São Paulo: Melhoramentos, 1990 (Coleção Mico
Maneco III)
Avental que o vento leva. il. Helena Alexandrino. 4
a
ed. São Paulo: Ática, 1997. (Coleção
Barquinho de papel)
Uma boa cantoria. il. Gerson Conforto. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993 (Col. Conte outra
vez)
Brincadeira de sombra. il. Marilda Castanha. São Paulo: Global, 2001.
De carta em carta. Il. Nelson Cruz. São Paulo: Moderna, 2002.
124
O distraído sabido. il. Victor Tavares. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999. (Coleção
Batutinhas)
Um dragão no piquenique. il. Claudius. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988 (Coleção Mico
Maneco V)
De fora da arca. il. Ziraldo. Rio de Janeiro: Salamandra, 1996.
A grande aventura de Maria fumaça. il. Suppa. São Paulo: Global, 2003
No imenso mar azul. il. Claudius. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988. (Coleção Mico Maneco
IV)
Maria Sapeba. il. Marilda Castanha. São Paulo: Ática, 1996. (Coleção Barquinho de papel)
Um Natal que não termina. il. Fernando Nunes. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.
palhaço espalhafato. il. Claudius. 8
a
ed. São Paulo: Melhoramentos, 1988 (Coleção Mico
Maneco IV)
Portinholas. il. Luísa Martins Baêta Bastos. São Paulo: Mercuryo Jovem, 2003.
O rato roeu a roupa. il. Claudius. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988. (Coleção Mico Maneco
III)
Troca-troca. il. Claudius. 4
a
ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988. (Coleção Mico Maneco V)
5) Livros em que há personagens femininas com representatividade relevante para este
estudo, mas que não integraram o corpus principal.
Alguns medos e seus segredos. il. Eliardo França. 8a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1992.
Beijos mágicos. il. Graça Lima. São Paulo: FTD, 1996. (Coleção Primeiras histórias)
Bem do seu tamanho. Rio de Janeiro: EBAL, 1988.
Uma boa cantoria. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993a (Coleção Conte outra vez).
Brincadeira de sombra. São Paulo: Global, 2001a.
Com prazer e alegria. 4 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988b (Coleção Mico Maneco V).
De olho nas penas. 14. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1985b.
Dedo mindinho. il. Rogério Borges. São Paulo: Moderna, 1998.
Era uma vez um tirano. il. Gabor Geszti. 9a ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982.
Eu era um dragão. il. Wilma Martins. São Paulo: Globo, 1995.
Gente, bicho, planta: o mundo me encanta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Lugar nenhum. São Paulo: Globo, 1994.
A maravilhosa ponte do meu irmão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
Mas que festa! il. Graça Lima. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Menina bonita do laço de fita. 7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1986.
Meu reino por um cavalo. il. Dave Santana e Mauricio Paraguassu. São Paulo: Global, 2004.
O menino Pedro e seu boi voador. São Paulo: Ática, 1993.
125
O mistério da ilha. São Paulo: Ática, 2004.
Passarinho me contou. il. Ivan e Marcello. 6a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Pena de pato e de tico-tico. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988c.
Uma gota de mágica. il. Claudius. Rio de Janeiro: Salamandra, 1988. (Coleção Mico Maneco
II)
A velha misteriosa. il. Marilda Castanha. Rio de Janeiro: Salamandra, 1994. (Coleção
Batutinha)
A velhinha maluquete. il. Rogério Borges. São Paulo: Moderna, 1998. (Coleção Literatura
infantil)
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