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A IMPLEMENTAÇÃO DE "VOCÊ" NO QUADRO PRONOMINAL: AS ESTRATÉGIAS DE
REFERÊNCIA AO INTERLOCUTOR EM PEÇAS TEATRAIS NO SÉCULO XX
por
ANA CAROLINA MORITO MACHADO
Aluna do Curso de Mestrado em Letras Vernáculas
(Área de Língua Portuguesa)
Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa
apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-
Graduação da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Professora Doutora Célia Regina dos
Santos Lopes.
Rio de Janeiro, 2006
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2
Esta dissertação é dedicada a meus pais e irmã,
incentivadores incansáveis de meus estudos.
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AGRADECIMENTOS
À querida Célia Lopes por me oferecer, além de orientação acadêmica, seu
exemplo, amizade, estímulo e apoio nos momentos difíceis.
Às amigas e companheiras de mestrado e docência Juliana Vianna e Lucia Barcia
com quem compartilhei as angústias dessas etapas tão importantes da minha vida. Não
poderia esquecer dos colegas Leonardo Marcotulio pela conversas e pela tradução do meu
resumo para o inglês e Márcia Rumeu pelo incentivo e ajuda.
Às amigas de graduação Amanda Nacimento, Andréia Santana e Cristiane Fonseca,
com quem dividi grandes momentos de minha vida no curso de Português -Alemão e com
quem posso contar sempre.
Aos meus pais, Léo Carlos e Ana Lúcia Machado, especialmente, pelo amor,
encorajamento e paciência inesgotável que sempre demonstraram ao longo desta e de
todas as jornadas de minha vida.
À irmã, amiga e colega de mestrado Ana Carla Morito Machado pelo exemplo,
estímulo, compreensão, cumplicidade e, sobretudo, carinho com que me brindou desde a
primeira infância.
Ao irmão Pedro Leonardo Machado, às sobrinhas Ana Clara da Silva e Ana Júlia
Machado, aos tios Luiz Adauto Machado e Márcia Morito e à amiga Édna da Silva, que,
mesmo indiretamente, contribuíram para a concretização desse projeto.
À Deus, sobretudo, por me conceder no seu amor, aceitação, serenidade e
sabedoria para superar todos obstáculos presentes nesta minha trajetória.
4
SINOPSE
Descrição das estratégias de referência à
segunda pessoa do discurso em peças
ambientadas no Rio de Janeiro do século XX.
Estudo acerca da implementação da forma
você(s) no quadro pronominal do Português
brasileiro e suas repercussões.
5
SUMÁRIO:
Capítulo 1 – Introdução............................................................................. 08
Capítulo 2 - Descrição do objeto de estudo .................................................... 10
2.1 - As estratégias de referência ao interlocutor: breve percurso
histórico..................................................................................... 10
2.2. As estratégias de referência ao interlocutor: a perspectiva das gramáticas
tradicionais................................................................................. 13
2.3. As estratégias de referência ao interlocutor: outros estudos.................. 21
Capítulo 3: PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS....................................... 24
3.1. Aparatos teóricos..................................................................... 24
3.1.1. As teorias sobre cortesia................................................. 24
3.1.2. As teorias sobre o fenômeno da gramaticalização................... 28
3.2. Metodologia........................................................................... 37
3.2.1. O corpus.................................................................... 37
3.2.2. As estratégias em análise................................................ 43
Capítulo 4: Análise dos resultados............................................................... 52
4.1 – Distribuição geral das estratégias de referência ao interlocutor............ 52
4.1.1 - O comportamento das estratégias pronominais no corpus........ 53
4.1.2 – O emprego dos pronomes na função de sujeito..................... 56
4.1.3 - O comportamento das estratégias nominais no corpus........... 70
4.2 – Aplicação das teorias sobre cortesia aos dados em análise................... 75
4.3 – O comportamento da forma você(s) à luz de teorias sobre o fenômeno da
gramaticalização........................................................................... 82
Capítulo 5 - Considerações finais................................................................. 98
Capítulo 6 – Referências bibliográficas.......................................................... 101
Resumo............................................................................................... 107
Abstract............................................................................................... 108
6
ÍNDICE DE FIGURAS, QUADROS, TABELAS E GRÁFICOS:
Figura 1: Expansão dos contextos pragmáticos de uso da forma Vossa mercê > você
nos século XV e XVI................................................................................. 11
Quadro 1: A perspectiva das gramáticas tradicionais........................................ 17
Quadro 2: Distribuição das formas pronominais, segundo Monteiro (1991)............... 23
Quadro 3: A distribuição dos processos, princípios e mecanismos de gramaticalização
nos eixos sincrônico e diacrônico............................................................... 29
Quadro 4: A constituição do corpus............................................................. 38
Quadro 5: A distribuição das estratégias no corpus.......................................... 52
Tabela 1: A distribuição das estratégias pronominais no singular em função das
categorias gramaticais............................................................................. 54
Tabela 2: O preenchimento dos sujeitos pronominais no singular. ........................ 59
Tabela 3: O preenchimento dos sujeitos pronominais no singular(II)...................... 63
Gráfico 1: A relação entre o uso de você e o preenchimento dos sujeitos
pronominais.......................................................................................... 64
Tabela 4: O preenchimento dos sujeitos pronominais no plural............................ 65
Tabela 5: A distribuição das formas verbais no singular..................................... 68
Tabela 6: A distribuição das estratégias nominais na função apelativa de vocativo.... 73
Tabela 7: A distribuição das formas relações simétricas (entre iguais)................... 76
Tabela 8: A distribuição das formas relações assimétricas descendentes (de superior
para inferior)........................................................................................ 78
Tabela 9: A distribuição das formas relações assimétricas ascendentes (de inferior
para superior)....................................................................................... 80
Gráfico 2: A distribuição das estratégias pronominais plenas na função de sujeito no
corpus................................................................................................ 84
Gráfico 3: A distribuição de você em função das relações estabelecidas................. 86
Gráfico 4: A distribuição dos dados de você e suas funções sintáticas.................... 91
Tabela 10: A distribuição dos dados de você e suas funções sintáticas em cartas dos 92
7
séculos XVIII e XIX – Rumeu (2004)...............................................................
Quadro 6: A distribuição dos pronomes sujeito, objeto e possessivos segundo os
gramáticos Cuesta & Luz (1971), Almeida (1980), Cunha & Cintra (1985), Luft (1985),
Rocha Lima (2003) e Bechara (2004)............................................................ 93
Gráfico 5: A co-referencialidade de você na amostra em análise.......................... 95
Quadro 7: A distribuição atual das estratégias de referência ao(s)
interlocutor(es)..................................................................................... 97
8
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho propõe estudar as estratégias de referência ao interlocutor
utilizadas nos diálogos estabelecidos entre personagens ficcionais de peças teatrais escritas
no Rio de Janeiro do século XX, buscando explicitar (1) a variação entre as formas de
tratamento de base nominal e pronominal, a fim de entender algumas mudanças
lingüísticas ocorridas ao longo do século XX e suas conseqüências para a reorganização do
quadro pronominal do português do Brasil, (2) as relações sociais implicadas na utilização
dessas estratégias nominais e pronominais e (3) as sensíveis mudanças experienciadas
nesse domínio funcional com inserção da forma você(s) no quadro dos pronomes pessoais.
Para tanto, as estratégias de referência à segunda pessoa serão analisadas não em
termos descritivos, mas também à luz dos pressupostos teóricos que discutem os
fenômenos da cortesia (Brown & Gilman, 1960; Brown & Levinson, 1987) e da
gramaticalização (Lehmann, 1985; Hopper, 1991; Heine, 2003; Bybee, 2003).
Pretende-se, com este estudo, investigar a distribuição das formas de tratamento
em peças ambientadas no Rio de Janeiro ao longo do século XX e observar especialmente o
comportamento da forma gramaticalizada você(s) nesse período. Pretende-se aliar este
estudo a diversos trabalhos sincrônicos e diacrônicos que discutem o comportamento das
estratégias de referência ao interlocutor no português do Brasil (Cf. Lopes & Duarte, 2002,
2003; Paredes, 1999; Rumeu, 2004; Lopes & Machado, 2005; entre outros).
Para mapear o uso dessas estratégias de tratamento no decorrer do século XX na
variedade brasileira do português, serão analisados os dados com base em algumas teorias
sobre cortesia. A problematização do estatuto gramatical da forma você(s) será feita a
partir de alguns postulados e princípios da gramaticalização. Parte-se, pois, de uma análise
quantitativa e, por vezes, qualitativa, das formas identificadas em oito peças ambientadas
no Rio de Janeiro distribuídas, com certo equilíbrio, entre os anos de 1908 e 1995.
Este estudo está dividido em seis seções. Seguindo-se a essa introdução (capítulo 1),
9
será feita, no capítulo 2, a descrição do objeto de estudo, apresentando um breve
histórico sobre as estratégias de referência ao interlocutor em português, o ponto de vista
de gramáticas atuais sobre o tema, e, finalmente, resenhas de estudos sobre este
fenômeno no português do Brasil.
O capítulo 3 descreve os pressupostos teóricos sobre os quais está baseado este
trabalho e a metodologia utilizada na pesquisa. Busca-se, primeiramente, apresentar as
teorias do Poder e Solidariedade (Brown & Gilman, 1960) e da Polidez (Brown & Levinson,
1987); em seguida, a da gramaticalização; por fim, faz-se o detalhamento da metodologia
utilizada, justificando sua escolha e esclarecendo o corpus.
Desenvolve-se, no capítulo 4, a análise dos resultados, apresentando a distribuição
geral das estratégias, o comportamento das formas pronominais no corpus e o uso desses
pronomes na função de sujeito em contraste com o simples emprego da flexão verbal. Em
seguida, apresentam-se as estratégias nominais e aplicam-se as teorias sobre cortesia aos
dados em análise, a fim de observar o comportamento dessas estratégias de referência ao
interlocutor em função das relações sociais estabelecidas. Estuda-se, por fim, o
comportamento da forma você(s) à luz de teorias sobre o fenômeno da gramaticalização.
No capítulo 6, fecha-se o trabalho com considerações gerais sobre o assunto
estudado. Nessa parte, tenta-se retomar as hipóteses e objetivos confrontando-os com os
resultados que são considerados mais significativos na análise.
10
2. DESCRIÇÃO DO OBJETO
2.1. As estratégias de referência ao interlocutor: percurso histórico
Segundo Cintra (1986) e Teyssier (2001), existiam, entre o final do século XIII e a
primeira metade do século XIV, duas únicas maneiras de se dirigir a um interlocutor tu e
vós, este para o tratamento deferente e aquele para o trato familiar, desconhecendo-se,
assim, formas que levassem o verbo para a terceira pessoa. Cabia, dessa maneira, à forma
vós, o papel de exercer o tratamento cerimonioso predileto da realeza portuguesa.
No entanto, nos séculos XIV e XV, Cintra (1986) consegue identificar, nas
Crônicas de Fernão Lopes, ocorrências de algumas formas nominais de tratamento como
Vossa Mercê, Vossa Alteza e Vossa Senhoria. A introdução dessas formas indiretas de
tratamento, além de Vossa Excelência, segundo Santos Luz (1958), conduziu a uma sensível
mudança nas estratégias de tratamento da língua portuguesa, uma vez que surgiam
formas, para evocar a segunda pessoa do discurso, que levavam o verbo para a terceira
pessoa do singular. Tal concepção também é apresentada por Faraco (1996) ao afirmar que
o português, no período que se compreende entre os séculos XIV e XVIII, mudou
radicalmente o sistema de tratamento ao interlocutor, substituindo o tu/ vós vós do
latim tardio por um sistema que apresentava formas de tratamento que se combinavam
com verbos na terceira pessoa.
Para Cintra (1986), essas mudanças nas formas de tratamento nos séculos XV e XVI
devem ser entendidas a partir do contexto histórico-social português, uma vez que se
buscavam novas formas de demonstração de polidez para com a realeza.
Em termos sociais, há de se admitir que a corte e nobreza
foram as responsáveis pela adotação e posterior degradação das
polidas formas de tratamento cortês na sociedade portuguesa, visto
que desejavam estabelecer, lingüisticamente, uma diferenciação
hierárquica entre as diferentes camadas da pirâmide social. Essa
tentativa de uma sociedade hierarquizada expressa o desejo de
manutenção das relações sociais de poder entre a realeza portuguesa
e seus súditos a partir da efetiva interrelação de um comportamento
interpessoal assimétrico.
(RUMEU, 2004:17)
11
Tal fato é observado na forma Vossa Mercê. Segundo Salles (2001), o nome mercê
originalmente não se refere à pessoa do rei, mas à graça e favor que este dispensa a seus
súditos. Ainda segundo o autor, posteriormente, por um procedimento metonímico de
designar a causa pelo efeito, mercê passa a denotar tanto “o ato de bem fazer” como “a
vontade de quem o pratica”. Na explicação de Said Ali (1937:139):
“os súbditos, dependentes sempre da mercê ou da graça do príncipe,
apresentavam as suas queixas e requerimentos dando-lhe o habitual
vós. Sabiamente pediam por mercê e punham freqüentemente vossa
mercê por vós, referindo-se não à pessoa do soberano, e sim à graça
e ao favor que dele dimanava.”
Dessa maneira, o uso desse item se torna parte do tratamento cerimonioso Vossa
Mercê que, inicialmente, por volta de 1460, é destinado de forma exclusiva ao rei de
Portugal, atingindo, em 1490, alguns membros da nobrezaduques, infantes e fidalgos
e alcançando, em seguida, já no século XVI, os membros da burguesia. Partindo da
proposta de Rumeu (2004), é possível expressar esse alargamento de contextos de uso
dessa forma da seguinte maneira.
Expansão dos contextos pragmáticos de uso
da forma Vossa Mercê nos século XV e XVI
+ 1460 REI
+ 1490 NOBREZA
+ séc.XVI BURGUESIA
Figura 1: Expansão dos contextos pragmáticos de uso da forma Vossa mercê > você nos
século XV e XVI.
12
Para Salles (2001), a extensão do uso de Vossa mercê prossegue com a
transformação dessa estratégia em uma forma habitual de tratamento não-íntimo entre
membros iguais da aristocracia que passam, então, a exigir que seus subalternos os tratem
do mesmo modo. Nesse caso, o fato de ser uma forma utilizada no tratamento de iguais
demonstra uma perda de sua semântica inicial que guarda em si uma certa noção de
assimetria.
Essa sensível ampliação no uso dessa forma explica em parte o fato de sua evolução
ter se dado em duas vertentes, uma vez que, de um lado, mantém sua integridade formal
e seu valor como forma de tratamento relativamente respeitosa e, de outro, por volta dos
séculos XVII e XVIII, simplifica sua substância fonológica, transformando-se no pronome
você(s), cujo uso é corrente no tratamento à segunda pessoa do discurso já no século XIX.
Nesse sentido, é importante ressaltar que a alteração do conteúdo semântico
prossegue e que, atualmente, já se pode encontrar você sendo empregado como referência
indeterminadora.
13
2.2. As estratégias de referência ao interlocutor: a perspectiva das gramáticas
tradicionais
Como explicitado no subcapítulo anterior, neste trabalho, parte-se da premissa de
que a forma você(s) se inseriu no paradigma pronominal do Português brasileiro (doravante
PB), a partir do século XIX, com uma sensível intensificação em seu emprego como
pronome e consolidou-se, ao longo do século XX, com sua transformação na principal
estratégia de referência à segunda pessoa do discurso. Sabe-se que a introdução dessa
forma se realizou em dois pontos distintos do paradigma pronominal variando com o
pronome tu no singular e substituindo a forma vós no plural. Dessa maneira, não é difícil
imaginar que essas transformações, juntamente com a entrada da forma a gente,
comprometeram sensivelmente a estabilidade do quadro dos pronomes pessoais, que
passou, então, a apresentar assimetria tanto em seu interior como em sua relação com o
paradigma verbal.
Atualmente, é possível perceber que a correspondência direta entre a
interpretação semântica de alguns pronomes e a flexão verbal correspondente a cada
pessoa se perdeu. No caso de você(s), é notável que essa forma, apesar de apresentar sua
flexão verbal na 3ª pessoa, faz referência à segunda pessoa do discurso. Tal acontecimento
torna a pessoa verbal ambígua, pois esta passa a designar não somente seres ou objetos
que estão fora do discurso de quem/ que se fala para representar também um dos
participantes do discurso — com quem se fala.
Apesar das “inconveniências” para a descrição e categorização de você(s) como
pronome de pessoa, são inquestionáveis as evidências apresentadas por lingüistas ao
longo dos últimos anos para a classificação desta forma nesta classe. Entretanto, as
especificidades apresentadas por este item fazem com que grande parte das gramáticas
tradicionais
1
o aloquem como um termo à parte dos outros pronomes. Ao negar o status de
1 Tomam-se como exemplos de gramáticas tradicionais as obras de Cuesta & Luz (1971), Almeida (1980),
Cunha & Cintra (1985), Luft (1985), Rocha Lima (2003) e Bechara (2004).
14
você(s) como pronome, a descrição das estratégias de referência à segunda pessoa depara-
se com a difícil tarefa, por um lado, de apresentar um quadro pronominal em que as
formas de pessoa tu e vós convivem em situação desfavorável, no caso da primeira, ou
foram completamente suplantadas, em relação à segunda, por uma “forma substantiva de
tratamento”
2
e, por outro, de explicar a razão pela qual formas de e pessoas se
associam na referência a um mesmo interlocutor, comprometendo, assim, a uniformidade
do tratamento, defendida veementemente por gramáticos como Almeida (1980).
No entanto, mesmo contendo inconsistências teóricas, conhecer a perspectiva
desses compêndios é de fundamental relevância, uma vez que deles partem as “verdades”,
em que se baseiam as obras que buscam explicitar, para o ensino, a organização da língua
materna. Por esse motivo, tomaram-se as obras de Cuesta & Luz (1971), Almeida (1980),
Cunha & Cintra (1985), Luft (1985), Rocha Lima (2003) e Bechara (2004), para a análise das
estratégias de referência à segunda pessoa.
Parece ser consenso entre os gramáticos afirmar que o papel fundamental dos
pronomes pessoais é denotar as três pessoas do discursoquem fala, com quem se fala e
de que(m) se fala apesar de Bechara (2004) afirmar que a pessoa não estaria contida
no discurso. Cunha & Cintra (1985) esclarece, ainda, que os pronomes pessoais se
caracterizam também por poderem representar, quando na pessoa, uma forma nominal
expressa anteriormente e por variarem de forma, segundo a função que desempenham na
oração e a acentuação que nela recebem.
Segundo os gramáticos, os pronomes pessoais retos de pessoa, que funcionam
como sujeito, são tu (singular) e vós (plural), os oblíquos átonos, que desempenham o
papel de complemento, te (singular) e vos (plural) e os tônicos, sempre regidos por
preposição, ti, contigo (singular) e vós, convosco (plural). Rocha Lima (2003) alerta, ainda,
para a necessidade de combinação das formas tu e vós com as respectivas desinências
2 Nomenclatura adotada por Bechara (2004).
15
verbais de número e pessoa -s e -is.
Com relação à categorização da forma você(s), são encontradas, nas gramáticas em
estudo, as mais diversas nomenclaturas pronome de tratamento, pronome de segunda
pessoa indireta, forma substantiva de tratamento, entre outras — sem, no entanto,
apresentar diferenciações substanciais em relação à conceituação dessas “subclasses”. Em
geral, classifica-se esse item como uma forma pronominal de tratamento que, apesar de
designar a pessoa, leva o verbo para a 3ª. É também corrente, entre os gramáticos,
alocar, ao lado de você(s), nessa categoria, formas como o(a) Senhor(a), Vossa Alteza,
Vossa Reverência, Vossa Excelência, entre outras. Ainda no que diz respeito a essas
formas, Bechara (2004) alerta para o uso de vocês, no lugar de vós, que caiu em desuso,
como plural de tu.
Na descrição dos possessivos, os gramáticos são unânimes em apresentar as formas
teu(s)/ tua(s), no singular, e vosso(s)/ vossa(s), no plural, como pronomes de pessoa.
Em relação aos possessivos que se combinam com asformas pronominais de tratamento”,
vários gramáticos alertam para a ambigüidade dos pronomes seu(s)/ sua(s) que podem se
referir tanto à 3ª pessoa quanto aos tratamentos que designam a 2ª pessoa, mas levam o
verbo para a 3ª. Rocha Lima (2003) chega a sugerir a substituição dos possessivos seu(s) e
suas(s) pelas formas de você(s) e do(s) senhor(es), em algumas ocasiões em que dúvidas
a respeito do possuidor.
Cabe ressaltar que nenhuma das gramáticas em estudo prevê a combinação de
você(s) com pronomes de pessoa gramatical (te, ti, teu(s)/tua(s); vos, vós, vosso(s)/
vossa(s)), apesar de reconhecer que esta forma faz referência à segunda pessoa do
discurso.
Após a análise das gramáticas tradicionais, é possível perceber que as coincidências
entre as descrições são tantas e tão distantes da realidade observada pelos lingüistas, que
se baseiam em dados empíricos, que Menon (2000 apud Modesto, 2005) critica de maneira
16
veemente o posicionamento desses sobre o assunto:
Afirmações como essas são características dos manuais
escolares, em que um autor repete o outro, sem checar a veracidade
das informações ou, às vezes, o que é pior, adulterando parte dos
enunciados. Em geral, como está escrito numa gramática, aceita-se o
fato sem pestanejar e passa-se, em ambiente escolar, a repetir o
repetido, sem maiores reflexões. Além disso, quando um gramático
ou certos autores de livros didáticos, querendo assumir, em parte, o
caráter pronominal de segunda pessoa para você, dão com os burros
n'água, ao afirmarem, sem se deter ao que estão enunciando, que
esse pronome de segunda pessoa deve vir acompanhado do verbo na
terceira...Os mesmos autores deveriam, com base nessa certeza,
providenciar alteração na regra de concordância verbal que eles
mesmos preconizam e prescrevem para o português, qual seja, a de
que o verbo deve concordar com o sujeito em número e pessoa...
(Menon, 2000 apud Modesto, 2005:4)
A seguir apresenta-se um quadro-síntese da descrição gramatical sobre o tema:
17
A PERSPECTIVA DAS GRAMÁTICAS TRADICIONAIS
GRAMÁ
TICA
DEFINIÇÃO
APRESENTADA
PARA
“PRONOMES
PESSOAIS”
PRONOMES
PESSOAIS QUE
REPRESENTAM A
2ª PESSOA DO
DISCURSO
OUTRAS FORMAS
DE TRATAMENTO
CATEGORIZAÇÃO
APRESENTADA
PARA A FORMA
“VOCÊ(S)”
OBSERVAÇÕES
CUESTA &
LUZ
(1971:39
1-397)
-
Funcionam como
sujeito, as
formas tu e vós,
como
complemento
sem preposição
te e vos, como
complemento
com preposição
(exceto com a
preposição com)
ti e vós e como
complemento
com a
preposição com
contigo e
convosco.
(Não apresentam
formas de
tratamento)
Tratamento que
designa a 2ª
pessoa e leva o
verbo para a 3ª.
(i) As autoras apresentam
os pronomes teu(s)/ tua(s)
como possessivos de
pessoa para um
possuidor e vosso(s)/
vossa(s) como possessivos
de pessoa para vários
possuidores.
(ii) Alertam que os
possessivos de 3ª pessoa
são empregados também
para os tratamentos de
pessoa, como você, o
senhor, a senhora, Vossa
Excelência, que levam o
verbo para a 3ª pessoa.
ALMEIDA
(1980:
170-178)
“É o que, ao
mesmo tempo
que substitui
um nome de
um ser, põe
esse nome em
relação com a
pessoa
gramatical.”
Apresenta tu
como a segunda
pessoa
gramatical, cujo
plural é vós,
essas formas
correspondendo
aos pronomes
retos. São
pronomes
oblíquos de
pessoas as
formas te, ti e
tigo, no
singular, e vos,
vosco, no
plural.
O gramático lista
expressões como
fulano, beltrano,
sicrano, a gente,
você, vossa
mercê, vossa
excelência,
vossa senhoria,
sua senhoria,
sua majestade,
denominando-as
de pronomes de
tratamento
“palavras e
expressões que
substituem a
terceira pessoa
gramatical”.
Pronome de
tratamento.
(i) Apresenta os pronomes
teu(s)/ tua(s) como
possessivos de pessoa no
singular e vosso(s)/
vossa(s) como possessivos
de 2ª pessoa no plural.
(ii) Observa em nota a
necessidade de
uniformidade de
tratamento. Nas palavras
do gramático: “Se tratamos
o interlocutor por vós, os
pronomes oblíquos devem
ser os que correspondem a
essa pessoa, e o mesmo se
deve dizer dos possessivos.
Se tratamos por tu,
usaremos os oblíquos te, ti,
contigo e os possessivos
teu, tua, teus, tuas (jamais
seu, sua).”
LUFT
(1985:
116-117)
“Denotam as
pessoas do
discurso:que
m fala (1ª
pess.:eu),
com quem se
fala (2ª pess.
— dir.: tu, —
indir.: você e
pron. de
tratamento)
e de que(m)
se fala (3ª
pess.: ele —
Na função de
sujeito ou
predicativo
deste, na 2ª
pessoa direta,
encontram-se os
pronomes retos
tu e vós; na
pessoa indireta,
você, vocês,
vossa senhoria,
etc.. Exercendo
o papel de
complemento,
O autor considera
as formas você,
o senhor, o
doutor, o amigo,
V. S
a
.,V.Ex
a
.,
V.Rev.
ma
, etc
como “pronomes
de tratamento ou
da pessoa
indireta:
pessoa, porque
se referem ao
ouvinte; mas
indireta, porque
Pronome de
tratamento ou
pronome de
segunda pessoa
indireta.
(i) Apresenta o seguinte
apontamento de Said Ali
(Gram. Hist., p.64) para a
criação na língua do
tratamento indireto:
“consistiu em fingir que se
dirigia a palavra a um
atributo ou qualidade
eminente da pessoa de
categoria superior, e não a
ela própria”. O autor inclui
as formas você e vocês
nesta categoria.
18
A PERSPECTIVA DAS GRAMÁTICAS TRADICIONAIS
GRAMÁ
TICA
DEFINIÇÃO
APRESENTADA
PARA
“PRONOMES
PESSOAIS”
PRONOMES
PESSOAIS QUE
REPRESENTAM A
2ª PESSOA DO
DISCURSO
OUTRAS FORMAS
DE TRATAMENTO
CATEGORIZAÇÃO
APRESENTADA
PARA A FORMA
“VOCÊ(S)”
OBSERVAÇÕES
palavra que
substitui
sintagmas
substantivos
que
designam o
tema do
discurso:
meu colega,
o livro,
etc.).”
observam-se:
(a) os pronomes
oblíquos átonos
te e vos, na
pessoa direta, e
o, lhe, os, lhes,
na pessoa
indireta; (b) os
pronomes
oblíquos tônicos
(preposicionado
s) ti, contigo e
convosco, na
pessoa direta;
(c) pronomes
reflexivos (c1)
átonos te e vos,
na pessoa
direta, e se, na
pessoa
indireta, e (c2)
tônicos ti,
contigo e
convosco, na
pessoa direta, e
si e consigo, na
pessoa
indireta.
requerem os
termos a eles
relacionados
(verbos, pron.
oblíquo e
possessivos) na
pessoa”.
(ii) Define os pronomes
possessivos como palavras
que “indicam posse ou
relação com as pessoas
gramaticais”. Apresenta as
formas teu(s)/ tua(s) e
vosso(s)/ vossa(s) como
formas possessivas de 2ª
pessoa direta; seu(s)/
sua(s) como formas
possessivas de pessoa
indireta.
(iii) Alerta para a
ambigüidade das formas
seu(s)/ sua(s) que se
referem tanto a pessoa
indireta quanto a pessoa
do tratamento indireto.
(iv) Não prevê a
combinação de formas de
pessoa direta com
formas de pessoa
indireta.
CUNHA &
CINTRA
(1985:
269-313)
“Caracteriza
m-se : 1º)
por
denotarem as
três pessoas
gramaticais;
(...) 2º) por
poderem
representar,
quando na 3ª
pessoa uma
forma
nominal
expressa
anteriorment
e; 3º) por
variarem de
forma,
segundo: a) a
função que
desempenha
m na oração;
b) a
acentuação
que nela
recebem.”
O paradigma
dos pronomes
pessoas retos de
pessoa é
composto pelas
formas tu
(singular) e vós
(plural), o
dos pronomes
pessoais
oblíquos não
reflexivos
átonos, por te
(singular) e vos
(plural) e
tônicos, por ti,
contigo
(singular) e vós,
convosco
(plural).
Os gramáticos
listam algumas
formas como
você, o senhor,
Vossa
Excelência sob o
rótulo de
pronomes de
tratamento.
Identificam esses
pronomes como
certas palavras e
expressões que
valem por
verdadeiros
pronomes
pessoais, e,
embora designem
a pessoa com
quem se fala,
levam o verbo
para a 3ª pessoa.
Pronome de
tratamento
(i) Os gramáticos afirmam
que, no Português do
Brasil, o uso de tu
restringe-se ao extremo sul
do país e a alguns pontos
da região norte, tendo sido
substituído em quase todo
o território brasileiro por
você como forma de
intimidade. O uso de
você, aliás, pode ser
observado no tratamento
entre iguais e de superior
para inferior.
(ii) Apresentam as formas
teu(s)/ tua(s) como
pronomes possessivos de
pessoa no singular e as
formas vosso(s)/ vossa(s)
como pronomes possessivos
de 2ª pessoa no plural.
(iii) Comentam acerca da
ambigüidade dos pronomes
seu(s)/ sua(s),
19
A PERSPECTIVA DAS GRAMÁTICAS TRADICIONAIS
GRAMÁ
TICA
DEFINIÇÃO
APRESENTADA
PARA
“PRONOMES
PESSOAIS”
PRONOMES
PESSOAIS QUE
REPRESENTAM A
2ª PESSOA DO
DISCURSO
OUTRAS FORMAS
DE TRATAMENTO
CATEGORIZAÇÃO
APRESENTADA
PARA A FORMA
“VOCÊ(S)”
OBSERVAÇÕES
apresentando expressões
como dele(s)/ dela(s), de
você, do senhor como
formas de evitar equívocos
interpretativos.
(iv) Não prevêem a
associação dos pronomes
de tratamento a formas
pronominais de 2ª pessoa.
ROCHA
LIMA
(2003:
110-113)
“São palavras
que
representam
as três
pessoas do
discurso,
indicando-as
simplesment
e, sem
nomeá-las”
Na função de
sujeito, a
pessoa do
discurso é
representada
por tu, no
singular, e por
vós, no plural.
Na função de
complemento
verbal, os
chamados
“pronomes
objetivos ou
oblíquos” de
pessoa são
constituídos
pelas formas
átonas te e vos
e pelas formas
tônicas (sempre
regidas por
preposição) ti e
vós.
Considera as
formas vo/
vocês
tratamento
familiar—, o(a)
senhor(a)/
os(as)
senhores(as)
tratamento
cerimonioso e
Vossa(s)
Senhoria,
Vossa(s)
Excelência,
entre outras
tratamento de
reverência
como pronomes
de pessoa que
requerem o
verbo com
terminação de
pessoa.
Forma
pronominal de
2ª pessoa que se
combina com
verbos que
apresentam
desinências
número-pessoais
de 3ª pessoa.
(i) Prevê a combinação dos
pronomes tu e vós
exclusivamente com verbos
que apresentem,
respectivamente, as
desinências número-
pessoais -s e -is.
(ii) Prescreve o uso dos
pronomes oblíquos átonos
o(s), a(s), lhe(s), se e
tônicos si em
substituição (somente) a
substantivos.
(iii) Determina que os
“pronomes possessivos são
palavras que fazem
referência às pessoas do
discurso, apresentando-as
como possuidoras de
alguma coisa” e que estes
fazem parte da mesma
família dos pronomes
pessoais, porque seu
significado também gira
em torno das pessoas do
discurso. Apesar de
associar os possessivos aos
pessoais, apresenta
somente as formas
teu(s)/tua(s) e vosso(s)/
vossa(s) como os
pronomes possessivos
correspondentes à segunda
pessoa do discurso,
excluindo o uso de seu(s) e
sua(s) que acompanham
formas como você(s) desse
paradigma.
20
A PERSPECTIVA DAS GRAMÁTICAS TRADICIONAIS
GRAMÁ
TICA
DEFINIÇÃO
APRESENTADA
PARA
“PRONOMES
PESSOAIS”
PRONOMES
PESSOAIS QUE
REPRESENTAM A
2ª PESSOA DO
DISCURSO
OUTRAS FORMAS
DE TRATAMENTO
CATEGORIZAÇÃO
APRESENTADA
PARA A FORMA
“VOCÊ(S)”
OBSERVAÇÕES
BECHARA
(2004:
164-166-
181)
“Designam as
duas pessoas
do discurso e
a não pessoa
(não-eu,
não-tu),
considerada,
pela
tradição, a 3ª
pessoa.”
Na pessoa, as
formas
pronominais
ditas retas, que
funcionam como
sujeito, são tu,
no singular, e
vós, no plural.
A elas
correspondem,
respectivament
e, os pronomes
oblíquos (que
funcionam como
complemento)
átonos te e vos
e os tônicos
(sempre
acompanhados
por preposição)
ti / contigo
(quando
antecedido pela
preposição com)
e vós /
convosco
(quando
antecedido pela
preposição
com).
Alerta para a
existência de
formas
substantivas de
tratamento
indireto de
pessoa que levam
o verbo para a
pessoa. O
gramático
denomina esses
termos de
formas
substantivas de
tratamento ou
formas
pronominais de
tratamento.
Incluem-se, nessa
categoria, as
formas você(s)
(para o
tratamento
familiar), o(a)
Senhor(a) (para
o tratamento
cerimonioso),
Vossa Alteza,
Vossa
Reverência,
Vossa
Excelência ,
entre outras
(para o
tratamento de
reverência).
Forma
substantiva de
tratamento ou
forma
pronominal de
tratamento
utilizada no
tratamento
familiar.
(i) Prevê o uso de vocês,
no lugar de vós, que caiu
em desuso, como plural de
tu.
(ii) Define os pronomes
possessivos como “os que
indicam a posse em
referência às três pessoas
do discurso”. Determina as
formas teu(s)/ tua(s), no
singular, e vosso(s)/
vossa(s), no plural, como
formas possessivas de 2ª
pessoa.
(iii) Recomenda a
substituição dos
possessivos seu(s) e
suas(s) pelas formas de
você(s) e do(s)
senhor(es), em algumas
ocasiões em que
dúvidas a respeito do
possuidor.
Quadro 1: A perspectiva das gramáticas tradicionais.
21
2.3. As estratégias de referência ao interlocutor: outros estudos
A seguir, apresentam-se, em linhas gerais, os resultados obtidos por estudos que
discutem a intensificação do emprego de você(s) como estratégia de referência à segunda
pessoa a partir do século XVIII. Acredita-se que esses trabalhos comprovem que a descrição
das gramáticas tradicionais contemporâneas esteja mais próxima da realidade
experienciada por essa forma até o século XIX, em que ainda poderia ser considerada uma
“forma de tratamento", do que do seu emprego atual como pronome de 2ª pessoa.
Lopes & Duarte (2003), ao estudarem a pronominalização de Vossa Mercê> você em
peças brasileiras e portuguesas dos séculos XVIII e XIX, constatam que, nas obras em
questão, predominou, nas relações entre iguais, o uso de tu, apesar de outras formas
nominais e pronominais também terem sido utilizadas. Observam, ainda, que a forma você,
neste período, é mais produtiva entre personagens populares nas relações de superior para
inferior, ao passo que Vossa Mercê conserva, ainda nestes séculos, o status de forma mais
produtiva em relações de inferior para superior.
Rumeu (2004), analisando cartas também setecentistas e oitocentistas, observa que
a referência à segunda pessoa do discurso se dá através das formas nominais de tratamento
Vossa Mercê, Vossa Excelência, Senhor, nas primeiras, e destas bem como de Vossa
Senhoria e Vossa Majestade, nas últimas. Além das formas nominais, identifica o pronome
de pessoa tu e a forma você, que apresenta, ainda no século XIX, um comportamento
híbrido oscilando entre forma nominal de tratamento e pronome pessoal de pessoa. No
entanto, a autora ressalta a perda do caráter cerimonioso da forma Vossa Mercê, uma vez
que esta aparece de maneira mais expressiva em cartas não-oficiais.
Sales (2001), com base na análise de uma peça de teatro e de cartas pessoais
escritas no Brasil do século XIX, propõe-se a descrever as mudanças ocorridas no sistema
pronominal do PB, explicitando os estágios da mudança e detectando as estratégias de
tratamento em variação. Essas estratégias constituem, então, dois grupos. O primeiro
22
grupo de formas compreende os itens você, senhor, tu e vós. Já o segundo grupo constitui-
se de formas de tratamento reverente como Vossa Senhoria, Vossa Senhoria
Reverendíssima, Vossa Excelência, Vossa Excelência Reverendíssima, Vossa Paternidade,
Vossa Paternidade Reverendíssima e Vossa Majestade Imperial. Segundo o autor, a
introdução de novas formas de referência à segunda pessoa do discurso no Brasil do século
XIX acarretou uma reorganização das formas de tratamento ao interlocutor. Tal
reorganização deve-se fundamentalmente ao desaparecimento de vós.
Paredes Silva (1999), tomando um corpus formado por peças teatrais escritas na
segunda metade do século XIX e ao longo do século XX, divide em dois momentos a
variação na referência à segunda pessoa o primeiro compreendendo a segunda metade
do século XIX e a primeira do XX e o segundo, a segunda metade do século XX. A autora
observa, no primeiro momento em análise, um significativo crescimento das taxas de
preenchimento do sujeito proporcionado pela ascensão da forma você à condição de
verdadeiro pronome de pessoa em detrimento de tu. No segundo momento, constata o
reaparecimento de tu acompanhado, nesse período, da flexão verbal correspondente à
pessoa, este uso, no entanto, restrito a personagens pertencentes à marginalidade ou
moradores do subúrbio carioca.
Para Monteiro (1991), que analisou o uso de pronomes na norma culta, a partir de
inquéritos das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Salvador e Recife,
recolhidos pelo Projeto NURC, uma grande instabilidade no sistema pronominal no PB,
visto que se observa um gradual desaparecimento de algumas formas e o aparecimento de
outras. O desaparecimento do pronome vós, por exemplo, teria acarretado a extinção do
uso do pronome objeto vos e do possessivo vosso, que teriam sido substituídos pela forma
(de) vocês. A desvalorização de tu teria sido experienciada concomitantemente com a
generalização da forma você como tratamento de intimidade. Entretanto, apesar de
admitir que o sistema pronominal do português culto brasileiro se encontra em fase de
23
mudança e de queé difícil elaborar um quadro que indique todas as flutuações “(p.176),
o autor estabelece um esquema trifuncional, reproduzido no quadro 2, a seguir:
SUJEITOS COMPLEMENTOS ADJUNTOS
eu me, mim, migo meu(s), minha(s)
nós nos, nós, nosco nosso(s), nossa(s)
tu,
você(s)
te, ti, tigo
lhe(s)
se, si, sigo
teu(s), tua(s)
seu(s), sua(s)
ele(s),
ela(s)
lhe(s),
se, si, sigo
o(s), a(s)
lo(s), la (s)
ele (s), ela(s)
dele(s), dela(s)
Quadro 2: Distribuição das formas pronominais, segundo Monteiro (1991).
Neste quadro, observa-se que tu e você concorrem no exercício da função de
pronome sujeito de pessoa, podendo se combinar com os pronomes complementos te,
ti, tigo, lhe, se, si, sigo e com os possessivos teu(s)/ tua(s), seu(s)/ sua(s).
24
3. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
3.1. Aparatos teóricos
3.1.1. A questão da cortesia: breves considerações
Um estudo acerca das estratégias de referência à segunda pessoa do discurso está
intimamente ligado à investigação das relações estabelecidas entre os participantes da
situação comunicativa em questão. Para entender que relações são estas, é de
fundamental importância discutir a dicotomia “poder e solidariedade”, proposta
inicialmente por Brown & Gilman, em 1960, no trabalho The pronouns of Power and
Solidarity.
Nesse trabalho, os autores analisam as regras de tratamento em vinte línguas, a
maioria de origem indo-européia, e concluem que a escolha das estratégias de referência à
segunda pessoa do discurso está regulamentada por relações de poder e solidariedade.
Este par de conceitos, segundo os autores, estão presentes em todas as formas de
interação verbal entre os interlocutores. O PODER é, nesse sentido, compreendido como o
controle que uma pessoa exerce sobre outra em uma determinada situação interativa.
Desse modo, para que haja uma relação de poder é necessário que pelo menos duas
pessoas estejam interagindo socialmente e que a relação entre ambas não seja recíproca,
simétrica. A necessidade de não reciprocidade da relação se deve ao fato de que todos os
participantes da interação não podem ter poder na mesma área de comportamento. Sendo
assim, o poder está presente em relações assimétricas, diferenciais ou não recíprocas e
esta hierarquia pode ser observada em atributos como idade, geração e autoridade (o pai é
superior ao filho, o professor, ao aluno, o patrão, ao empregado).
Ao contrário do que ocorre em uma relação de poder em que o conceito de
hierarquia é de fundamental importância para entender a assimetria no tratamento, na
SOLIDARIEDADE, pressupõe-se a existência de forças iguais, de um mesmo vel de
25
hierarquia social decorrente de relações sociais recíprocas ou simétricas. Essas relações
simétricas derivam fundamentalmente dos atributos de sexo, parentesco e filiação de
grupo que, por sua vez, estão ligados às idéias de afinidade, semelhança, afeto e agrado.
Com relação à distribuição das estratégias de referência ao interlocutor, é possível
dizer que o poder é o núcleo do eixo semântico assimétrico e a solidariedade é o elemento
central do eixo semântico simétrico. Portanto, dois tipos de relação assimétrica uma
em que o emissor exerce poder sobre o receptor e outra em que é o receptor que é o
detentor do poder frente ao emissor bem como duas formas de relação simétrica
uma em que a solidariedade entre os participantes da situação comunicativa se faz
presente e outra em que não é possível observar solidariedade. Segundo os autores, o uso
de formas V (como Vous, em francês) está intimamente ligado a relações simétricas em
que os componentes da ação não apresentam afinidades, ou seja, não há solidariedade, e a
situações de relação assimétrica em que o emissor se encontra em uma situação
hierarquicamente inferior à do receptor. Formas T (como Tu, em francês), por outro lado,
estão a serviço de relações simétricas em que a reciprocidade e a solidariedade estão
expressas e de situações de relação assimétrica em que o emissor exerce alguma forma de
poder sobre o receptor.
No espanhol peninsular, Alba de Diego & Sanchéz Lobato (1980), ao estudarem os
pronomes de tratamento no período anterior ao século XX, observam, em linhas gerais, o
uso da forma T (Tú) tanto com relação à solidariedade quanto ao poder, cabendo à forma
V (Usted) mútua quando não solidariedade, somente poder e, conseqüentemente,
sentimentos de hostilidade, desagrado e não-afinidade. Dessa forma, apesar de autores
reconhecerem a descrição proposta por Brown & Gilman (1960), acreditam que não é
mais possível afirmar que relações de poder e solidariedade condicionam do mesmo modo
as escolhas dos falantes em relação às formas de tratamento, uma vez que as relações de
solidariedade suplantam as relações de poder. Sendo assim, e formas semelhantes
26
seriam predominantes no domínio da solidariedade, legando a Usted e formas semelhantes
o domínio da não-solidariedade. Os autores acreditam que essa simplificação é possível
graças a abertura das relações sociais, após a Segunda Guerra Mundial, em que maior
mobilidade e em que o valor adquirido vale mais que o valor imposto pela tradição. O
solidário, então, corresponderia, atualmente, no espanhol peninsular, às relações em que
estão expressos sentimentos de igualdade entre as pessoas que compartilham uma
qualidade em comum ou uma afinidade em um ou vários pontos das relações sociais. Já o
unilaterial por parte de quem tem maior poder parece estar desaparecendo por conta
de uma tendência a tornar a sociedade mais igualitária. O Usted recíproco, por sua vez,
predominaria quando um alto grau de respeito ou uma grande distância social entre os
participantes da interação.
RELAÇÕES SIMÉTRICAS
Tratamento simétrico solidário: -
Tratamento simétrico não-solidário: Usted
- Usted
RELAÇÕES NÃO-SIMÉTRICAS
- Usted ---------------------- Usted
Outra perspectiva interessante para se analisar as forças que agem na escolha de
uma estratégia de referência ao interlocutor está contida na obra de Brown & Levinson
(1987). Segundo os autores, todos os indivíduos apresentam duas propriedades básicas no
que diz respeito à comunicação e que servem para explicar seu comportamento em
situações de interação verbal. A primeira propriedade básica é a racionalidade, uma vez
que cada indivíduo possui um modo de raciocinar que pode ser definido de modo preciso e
que o conduz aos meios necessários para chegar aos fins que deseja alcançar. A segunda
propriedade é a imagem pública que cada indivíduo constrói para si, buscando, assim,
manter um certo prestígio no meio social em que vive. A manutenção da imagem pública
está intimamente ligada à cortesia. Essa imagem pública apresenta duas vertentes: a
imagem negativa que corresponde à liberdade de ação que cada indivíduo deseja ter para
27
dominar seu território e não ser controlado por terceiros; e a imagem positiva que consiste
na necessidade de ser reconhecido e apreciado pelos demais e de compartilhar suas
aflições, desejos e convicções.
A imagem pública, segundo os autores, é vulnerável e, portanto, a interação verbal
consiste em um esforço para resguardá-la. É possível observar tal comportamento quando
os participantes de uma situação comunicativa verbal cometem algum ato que possa
arranhar sua própria imagem ou a imagem de seu interlocutor, mas tentam suavizá-lo.
Dessa maneira, surgem as estratégias de cortesia que podem estar dirigidas a fim de
reforçar a imagem positiva do emissor e/ ou do interlocutor (cortesia positiva) ou estar
dirigidas para o aspecto negativo da imagem (cortesia negativa).
O nível de cortesia que deve ser empregado depende fundamentalmente, portanto,
de três fatores: o poder relativo do receptor em relação ao emissor ou o contrário,
constituindo, assim, o eixo vertical da relação social (RELAÇÕES DE PODER), a distância
social que inclui as relações de familiaridade e o grau de intimidade entre os
interlocutores, estabelecendo o eixo horizontal (RELAÇÕES DE SOLIDARIEDADE) e, por fim,
o grau de imposição de um determinado ato com relação à imagem pública do falante. Um
exemplo disso é apresentado por Pedroviejo Esteruelas (2005) que afirma que a oposição
entre e Usted do espanhol poderia ser analisada como uma manifestação de cortesia
através da forma e de cortesia negativa no caso de Usted.
28
3.1.2. As teorias sobre o fenômeno da gramaticalização
A gramaticalização, segundo Heine (2003), é uma teoria que oferece uma
abordagem explanatória de como as categorias gramaticais surgem e se desenvolvem.
Segundo o autor, uma notável estratégia humana consiste em usar formas lingüísticas de
significados concretos, facilmente acessíveis e delimitáveis para expressar conceitos mais
abstratos que não são tão facilmente acessíveis e delimitáveis. Para esse fim, expressões
lingüísticas lexicais ou menos gramaticais são pressionadas a servir em funções mais
gramaticais.
Nesse sentido, o próprio trabalho de Heine (2003) e alguns outros como os de
Lehmann (1985), Hopper (1991) buscam apresentar mecanismos, processos e princípios que
auxiliem na identificação e descrição da gramaticalização. No entanto, esse número de
teorias distintas acerca do processo da gramaticalização produziu ao longo das duas
últimas décadas uma infinidade de nomenclaturas que, muitas vezes, servem para designar
fenômenos semelhantes tanto no eixo sincrônico quanto no eixo diacrônico. Sabe-se que os
estudos da gramaticalização se direcionam, em geral, para a escolha de uma dessas
perspectivas. Cabe, assim, aos estudos diacrônicos, a investigação da origem das formas
gramaticais e o caminho percorrido por essas no sentido da mudança, numa trajetória em
que itens lexicais se tornam gramaticais e itens gramaticais se tornam ainda mais
gramaticais e, aos estudos sincrônicos, a investigação sob o ponto de vista dos padrões
fluidos da linguagem (Hopper e Traugott, 1993:2), em que a gramaticalização é vista como
um fenômeno primariamente sintático-discursivo-pragmático. Nesse trabalho, a partir do
estudo dos autores supracitados, procurar-se-á aliar diacronia e sincronia, numa visão
pancrônica, associando as diversas propostas e demonstrando, desse modo, a
compatibilidade e complementaridade entre elas, como é possível observar no quadro a
seguir:
29
EIXO SINCRÔNICO EIXO DIACRÔNICO
Layering
(Hopper, 1991)
Divergência
(Hopper, 1991)
Persistência
(Hopper, 1991)
Mudança semântica com
ampliação dos contextos
pragmáticos
Desgaste (Lehmann, 1985)
Dessemantização (Heine, 2003)
Extensão (Heine, 2003)
Mudança morfossintática
Obrigatoriedade (Lehmann, 1985) /
Especialização (Hopper,1991)
Fixação (Lehmann, 1985)
Decategorização (Hopper, 1991) /
Decategorização (Heine, 2003)
Paradigmatização (Lehmann, 1985)
Mudança fonológica Desgaste (Lehmann, 1985)
Erosão (Heine, 2003)
Quadro 3: A distribuição dos processos, princípios e mecanismos de gramaticalização nos eixos sincrônico e
diacrônico.
Na perspectiva sincrônica, podem-se identificar processos de gramaticalização
através de alguns princípios propostos por Hopper (1991). O primeiro princípio postulado
por esse autor é o da estratificação ou layering. Para entender esse princípio, é
necessário, inicialmente, explicitar que a forma submetida à gramaticalização altera seu
conteúdo semântico ao longo de sua história, conforme será descrito a seguir, e, por
conseguinte, passa a exercer funções que antes eram desempenhadas por outras formas
presentes na língua mais tempo. Desse modo, duas formas passam a concorrer para o
exercício da mesma função. Essa coexistência é prevista por esse princípio que determina
que, em um amplo domínio funcional, novas camadas da língua emergem continuamente,
sem que, para tanto, as camadas mais antigas sejam necessariamente descartadas,
podendo permanecer e, até mesmo, interagir com estas.
Hopper (1991) exemplifica tal princípio com a formação do “past tense” em inglês.
Segundo o autor, em inglês, é possível perceber no passado dos verbos fortes um estágio
mais antigo da língua através da alternância das vogais drive/drove; take/ took. Essas
formas coexistiriam com um estágio mais recente da língua representado pelos sufixos [t]
e [d], que provavelmente o derivados do verbo auxiliar do notice/ noticed; walk/
30
walked. Ambas as formas ainda concorrem com as construções perifrásticas envolvendo
do/did que aparecem em estruturas interrogativas, negativas e enfáticas.
Outra maneira de convivência entre o velho e o novo na língua que pode ser
observada sob uma perspectiva sincrônica é o princípio da divergência. Esse princípio
ocorre quando a forma em vias de gramaticalização e a forma original continuam a serem
utilizadas como elementos autônomos, permitindo que ambas convivam lado a lado. Em
outras palavras, o item lexical que deu origem ao processo de gramaticalização é
preservado, conservado. Nesse sentido, é importante esclarecer que a forma original pode
voltar a sofrer mudanças como qualquer item lexical autônomo. Hopper (1991) aponta
como conseqüências do princípio da divergência a existência de pares ou múltiplas formas
com a mesma origem etimológica, mas que divergem funcionalmente e, ainda, a presença
de uma forma gramaticalizada que pode ser idêntica ao item lexical autônomo, como
ocorre, em francês, com pas que é uma partícula que indica negação e, ao mesmo tempo,
significa “passo”.
Cabe relatar, nesse ponto, que, muitas vezes, os princípios da layering
(estratificação) e da divergência se confundem. Hopper (1991) esclarece que a layering
envolve diferentes estágios de gramaticalização em domínios funcionais similares,
referindo-se comumente a itens completamente distintos, e a divergência compreende
casos em que uma forma é submetida ao processo de gramaticalização e o mesmo item
lexical autônomo o é recrutado para tal processo. O autor adverte, ainda, que nem
sempre é possível fazer a distinção entre os princípios de layering e divergência, uma vez
que múltiplas divergências podem resultar em várias “layers”, como acontece com a
formação do futuro e do pretérito em francês. Hopper descreve que verbo latino habere se
tornou o sufixo de futuro no francês moderno, produzindo formas como je chanterai
originado de cantare habeo. O mesmo verbo habere deu origem, também, ao verbo avoir
(“ter”, “possuir”). Este ocorre como verbo auxiliar para a formação do pretérito j’ai
31
chanté. Dessa maneira, j’ai (“eu tenho”) é gramaticalizado como verbo auxiliar de tempo
e aspecto ao lado de ser verbo (“não gramaticalizado”) pleno divergência. No entanto,
é necessário observar também que esse verbo constitui um estrato secundário da
gramaticalização, uma vez que é marca de formação do pretérito perifrástico e sufixo de
futuro –erai.
Por fim, o último e mais importante princípio ligado ao eixo sincrônico é o da
persistência. Esse princípio pode ser observado quando um item lexical em vias de
gramaticalização assume uma função mais gramatical e alguns traços de seu significado
original tendem a aderir-se ao novo emprego. Dessa forma, detalhes de sua história como
item lexical podem se encontrar refletidos em restrições de sua distribuição gramatical.
Essa permanência do velho no novo é inegavelmente a característica mais marcante de um
item ou expressão gramaticalizada, já que são esses traços detectados pelo princípio da
persistência que marcarão as singularidades da forma em relação aos demais constituintes
de sua categoria destino. Com relação a essa questão, é importante explicitar que essas
singularidades contribuem de modo intenso para que a descrição e o ensino da ngua se
tornem menos econômicos e mais complexos.
Hopper (1991) exemplifica tal princípio com o caso acusativo em línguas da África
Ocidental. Em uma sentença como “È (she) k (obj) wòlo (book) mè-sí (lay-down)”, em
inglês, “She laid the book down”
3
, inicialmente k tem significado semelhante a take e,
posteriormente, transforma-se em marca de caso. Uma possível explicação para tal
transformação é a reinterpretação de sentenças como “He took the book (and) laid (it)
down”
4
. Nesse caso, “take” k funciona como verbo pleno e marca de caso. Em Gã (uma
das línguas do grupo citado), é possível observar a permanência de um vestígio funcional
dessa polissemia, uma vez que a marca de caso k não pode ser associada a verbos cujo
objeto (i) é produto de ação ou (ii) é experienciado após ser afetado. Pode-se dizer,
3 Em português, Ela abaixou (no sentido de colocar no chão) o livro.
4 Em português, Ele pegou o livro e colocou-o no chão.
32
portanto, que conserva as restrições do verbo take” em seu item “derivado” a
marca de objeto direto.
Passando do eixo sincrônico para o diacrônico, parece ser consenso analisar o
processo de gramaticalização na perspectiva histórica sob os seguintes prismas: (a)
mudança semântica e ampliação dos contextos pragmáticos, (b) mudança morfossintática e
(c) mudança fonológica.
Sob o prisma da mudança semântica e da ampliação dos contextos pragmáticos, é
possível observar que, em um primeiro momento, tem-se uma expressão lingüística que é
recrutada para o processo de gramaticalização. Essa expressão experimenta, em seguida,
uma alteração gradativa de seu valor semântico em contextos específicos, tornando seu
significado, ao longo de sua trajetória, cada vez mais gramatical, conforme prevê Lehmann
(1985) no processo de desgaste e Heine (2003) no mecanismo de dessemantização,
podendo ser denominado também pelos termos dessemantização e demotivação. Ao iniciar
a transformação de seu significado, essa forma ganha paulatinamente novos empregos,
passando a ser usada em contextos pragmáticos em que não podia ser empregada
anteriormente e ampliando, assim, seu escopo de uso, como propõe o mecanismo da
extensão concebido por Heine (2003). Cabe aqui salientar o papel primordial da freqüência
de uso nos processos de gramaticalização, uma vez que, segundo Bybee (2003), os
morfemas gramaticais têm freqüência extremamente alta se comparada com os morfemas
lexicais. Dessa maneira, a autora também compartilha, de certo modo, de concepções
semelhantes ao mecanismo da extensão concebido por Heine (2003), pois defende que,
durante o processo de gramaticalização, um sensível aumento da freqüência não do
número, mas também dos tipos de contexto em que a forma é utilizada. No entanto, em
seu trabalho Mechanisms of change in grammaticization: the role of frequency, Bybee
preocupa-se em esclarecer que a freqüência não é apenas o resultado da gramaticalização,
mas principalmente o fator primário que contribui para o processo que instiga a mudança.
33
Um exemplo de mudança semântica com ampliação de contextos pragmáticos de
uso pode ser observado no emprego da forma onde. Segundo Souza (2002a), o onde tem
sua origem na forma latina ŭnde, que significava lugar donde e convivia, no sistema latino
clássico, com as formas ūbi, indicando lugar fixo, lugar onde; quo relacionando direção,
lugar para onde e qua significando passagem por um lugar, por onde. Quo e qua
pertenceriam ao caso ablativo singular dos pronomes relativos, funcionando, assim, como
complemento circunstancial ou adjunto adverbial; ūbi e ŭnde, advérbios de lugar
interrogativos e relativos, Lindsay (1915:141 apud Souza, 2002) os inclui nos advérbios
pronominais, formados por sufixo: -bi (antigo –bei) com sentido locativo, é o caso de ūbi, e
nde, indicando movimento, deslocamento, é o caso de ŭnde. Ao lado do latim clássico,
em que parecia existir uma regularidade maior no uso dessas formas, havia um
comportamento semântico distinto no latim vulgar, em que ūbi era empregado por vezes
para substituir quo, para onde, e ŭnde para substituir freqüentemente ūbi, lugar onde. O
latim vulgar, como é sabido, deu origem às línguas românicas e suas diferenças em relação
ao latim clássico aparecem aos poucos nos textos escritos como se pode verificar em
estudos diacrônicos. Na fase medieval, registros de ŭnde e ūbi ocorrendo como
pronomes relativos. Trabalhos como os de Barreto (1996) e Souza (2002a, 2002b)
consolidam tal perspectiva, mostrando uma mudança no emprego de onde no Português
arcaico. Mudança esta que é possível observar no uso de onde introduzindo orações
relativas com antecedente distinto de lugar físico ao longo do século XX (cf. Machado,
2005).
Outro exemplo de tal fenômeno é o de alguns tipos de conjunção que cumprem a
trajetória Espaço > Tempo > Texto (Heine, Claudi & Hünnermeyer, 1991, apud Martelotta,
2003), nos quais elementos de valor espacial assumem funções típicas de conjunção. Tal
fato ocorreria porque a expressão de dados referentes a lugar físico é mais elementar e
concreta do que a indicação de relações textuais, como ocorre com o item logo. Segundo
34
Martelotta (2003), o termo logo que, no português arcaico, possuía um significado
espacial, encontra-se atualmente com os valores textual (conjunção conclusiva)— Penso,
logo existo ― e temporal — Ele vai chegar logo, evidenciando assim a perda de seu
significado original e a incorporação de novos valores semânticos nos usos mais
gramaticais. Essa passagem de item lexical à forma gramatical ocasiona também a perda
da mobilidade sintática das formas submetidas ao processo de gramaticalização, como
veremos a seguir.
Com a gramaticalização, formas que admitiram diferentes possibilidades de
interpretação semântica, ao longo do processo, sofrerão um estreitamento em sua
variedade de escolhas e uma diminuição do número de itens selecionados que admitirão
significados mais gramaticais. Este comportamento é previsto pelo processo da
obrigatoriedade proposto por Lehmann (1985) e o princípio da especialização descrito por
Hopper (1991). Esse fenômeno ocorre, possivelmente, de maneira simultânea ao processo
de fixação proposto por Lehmann (1985), em que se pressupõe a perda da variabilidade
sintagmática, uma vez que o signo gramaticalizado tende a ocupar uma posição sintática
mais fixa, depois uma posição morfológica mais determinada, etc.
Hopper (1991) exemplifica seu princípio de especialização com a formação de
sentenças negativas na língua francesa (ne ... pas). Segundo o autor, historicamente, o ne
é o elemento de negação e o pas funciona apenas como um reforço dessa negação. Apenas
os verbos de movimento têm sua negação reforçada com pas (“Ils se sont elóignes de
trente pas
5
”), cabendo aos demais verbos outros elementos para intensificar sua negação.
A partir do século XVI, a forma pas começa a predominar, devido a sua maior freqüência
discursiva e, atualmente, na língua falada, é possível observar a negação verbal apenas
com a forma pas (“Je sais pas” “Eu não sei.”). Nesse caso, é bastante evidente, por um
lado, que pas ao deixar de se restringir a verbos de movimento, amplia sua atuação,
5 Em português, “Eles se afastaram trinta passos.”
35
estendendo-se a todos os verbos com a construção ne... pas
6
; e, por outro, nesse
contexto, perde a liberdade sintática, típica de um item lexical, para se fixar na senteça
em posição pós-verbal.
Com relação à tendência a restrições da variabilidade sintagmática, cabe também o
seguinte questionamento acerca da comum perda de substância fonológica dos itens em
vias de gramaticalização: O desaparecimento de parte da liberdade sintática da forma (a)
se por uma diminuição de sua substância fonológica, (b) ocorre simplesmente por ser
esta uma característica intrínseca à gramaticalização ou, ainda, (c) é fruto da relação
desses dois processos prevista pelo ciclo funcional discurso > sintaxe > morfologia >
morfofonêmica > zero? Nesse ponto, parece interessante retomar, inicialmente, as
considerações de Bybee (2003) acerca do processo de gramaticalização, em que esta
apresenta uma preocupação em desfazer a concepção exageradamente simples do
processo. Segundo a autora, a recente literatura sobre gramaticalização parece estar de
acordo sobre a precariedade de definir esse processo como a simples transformação de um
item lexical em um morfema gramatical, preferindo dizer que esse conjunto de
transformações ocorre em um contexto particular de uma determinada construção. Dessa
maneira, propõe uma nova definição de gramaticalização em que reconhece o papel
crucial da repetição nesse processo e o caracteriza como a seqüência de palavras ou
morfemas lexicais freqüentemente usados que se tornam automáticos como uma única
unidade de processamento (be going to > gonna). Sendo assim, é possível associar altos
índices de freqüência de uso à perda de substância fonológica das formas em vias de
gramaticalização e essa simplificação a restrições da mobilidade sintática dos itens. A
perda de substância fonológica é apontada por Lehmann (1985) no processo de desgaste e
Heine (2003) no mecanismo da erosão, em que sinalizam para um desaparecimento gradual
da substância fonológica dos itens submetidos ao processo de gramaticalização,
6 Esse estágio avançado do processo de combinação dessa forma é descrito por Lehmann (1985) no processo de
paradigmatização.
36
envolvendo, inclusive, degeneração morfológica, que é a redução da capacidade da forma
se flexionar.
A “degeneração” morfológica, que talvez seja a característica mais marcante de
um processo de gramaticalização ao lado da “persistência”, está intimamente relacionada
à mudança categorial, fenômeno previsto por Hopper (1991) e Heine (2003) no princípio/
mecanismo de decategorização. Segundo Hopper (1991), formas em processo de
gramaticalização tendem a perder ou neutralizar marcas morfológicas e características
sintáticas de categorias plenas Nomes e Verbose assumir atributos característicos de
categorias secundárias como Adjetivos, Particípios, Preposições, etc. Dessa maneira, o
processo de gramaticalização pode envolver a perda de marcas opcionais de categoria,
ocasionando também a perda da autonomia discursiva dessa forma, como ocorre com a
negação ne...pas em francês. Construções como ne...pas se solidificam/ cristalizam ou
perdem a opcionalidade morfológica, uma vez que, enquanto item lexical, não apresentam
nenhuma restrição em suas combinações (“Ils se sont éloignés de trente pas
7”
“Eles se
afastaram trinta passos.”), mas, em determinadas construções, como para indicar
negação, não admitem nenhum elemento que as determine ( “Ils ne fument pas
8”
- “Eles
não fumam” , e não * ils ne fument un pas
9
“Eles não fumam um passo”).
7 Em inglês, “They went thirty paces away”.
8 Em inglês, “They don't smoke”.
9 Em inglês, “They don’t smoke one step
37
3.2. Metodologia
3.2.1. O corpus
O gênero peça de teatro configura-se como um texto escrito destinado à
representação, uma vez que adquire vida ao se corporificar numa encenação. Dessa
maneira, sua relação com o público, grosso modo, não se através da leitura, e sim
através da encenação de atores que agem sobre a composição, inicialmente, escrita em
ação dialogada. Segundo o pensador grego Aristóteles, a obra teatral destina-se a realizar
a imitação da realidade por meio de personagens em ação, e não pela forma narrativa.
No entanto, esse gênero, embora almeje reproduzir situações de diálogo, pertence
à modalidade escrita da língua. Ao contrário dos textos essencialmente orais, que se
caracterizam por elementos prosódicos, como acento, entoação, duração, intensidade,
pausas, ritmo, e por elementos não verbais, como gestos e mímicas, a peça de teatro,
enquanto obra literária escrita, desenvolve-se com base em elementos próprios dessa
modalidade, como paragrafação e pontuação. Cabe ressaltar que sua importância para os
estudos lingüísticos, todavia, é inegável, pois, apesar de constituir um texto escrito, fruto
da percepção individual de seu criador, busca representar usos lingüísticos próprios das
relações que se estabelecem no interior da organização social em que seus autores estão
inseridos. Por isso, constitui um valioso material de análise lingüística, principalmente
diacrônica, dada a inexistência, em épocas mais distantes da contemporaneidade, de
materiais que reproduzam com fidedignidade inquestionável a fala.
Com o objetivo de observar as tendências no comportamento das estratégias de
referência ao(s) interlocutor(es) no século XX, serão analisadas oito peças teatrais
produzidas e ambientadas no Rio de Janeiro deste período, exceção feita à obra Clube do
Leque (1995), que se passa em uma cidade ficcional, mas que se baseia nos costumes
cariocas. Essas obras são comédias que buscam retratar a vida familiar dos fluminenses
38
nesse século; para tanto, constituem-se de cenários que compreendem,
preponderantemente, ambientes privados — casa, pensão onde residem os personagens — e
apresentam, em geral, relações íntimas, uma vez que se ocupam de situações corriqueiras
do cotidiano. Desse modo, o corpus ficou constituído da seguinte forma:
A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
Peça Autor Data
Quebranto Coelho Neto 1908
O simpático Jeremias Gastão Tojeiro 1918
O hóspede do quarto nº 2 Armando Gonzaga 1937
Dona Xepa Pedro Bloch 1952
Tôda donzela tem um pai que é uma fera Gláucio Gill 1962
Comunhão de bens Alcione Araújo 1980
Intensa Magia Maria Adelaide Amaral 1995
Clube do leque Isis Baião 1995
Quadro 4: A constituição do corpus.
A peça Quebranto, de Coelho Netto, de 1908, retrata as relações conflituosas de
uma família decadente da classe média alta carioca. A obra reproduz a relação de Macário
e Amélia com a filha Dóra, que se obrigada a casar com um antigo amigo do pai o
seringueiro do Amazonas Fortuna —, para resolver os problemas econômicos de sua família.
Ao longo da obra, Fortuna, um homem rude bem mais velho que Dóra, será inserido na alta
sociedade carioca com a ajuda de Josino primo distante e amante de Dóra. O
amazonense sofrerá com o choque cultural, pois viverá dividido entre duas realidades de
um lado, a vida pura e simples a que está acostumado, nos seringais do Amazonas, e, de
outro, o ambiente da cidade, onde será discriminado, humilhado e explorado por todos. A
única pessoa que Fortuna encontrará e não o explorará será Clara, mãe de Amélia e avó de
39
Dóra, que tratará seu corpo doente de amor, seu “quebranto”.
A obra teatral O simpático Jeremias, de Gastão Tojeiro, de 1918, reproduz as
intensas relações desenvolvidas na Pensão das Magnólias, após a chegada do filósofo
Jeremias. Jeremias, homem de meia idade, sem destino, consegue abrigo na pensão de
Madalena, onde conquista a simpatia de todos e acaba trabalhando como mordomo. Nesse
ambiente, interagem personagens como o milionário americano Douglas e seu secretário
particular Artur; os dois com o golpista Bernardo e seu filho Otávio; Félix, um antigo
companheiro da dona da pensão, com sua esposa, muitos anos mais jovem, Laura. A trama
desenvolve-se em torno de dois triângulos amorososo primeiro vivenciado por Violeta,
filha de Douglas, Artur e Otávio e o segundo, por Félix, Laura e Artur. Nesses jogos,
Jeremias surge como um conciliador que ajudará, através de sua filosofia, a resolver os
muitos conflitos vivenciados na pensão e conquistará o coração de todas as mulheres do
local, inclusive o da proprietária.
O hóspede do quarto número dois, de Armando Gonzaga, de 1937, retrata o
cotidiano de uma pensão carioca da década de 30. Como plano de fundo para a trama, está
o desejo de Dorotéia, dona da pensão, de casar a filha Nini com Carlos, um de seus
hóspedes. Carlos, ao contrário de seu amigo Nestório, um funcionário público do alto
escalão, é um jovem que possui poucos recursos e que, por isso, adia anos seu
casamento com Nini. A moça, no entanto, desconfia que a demora na realização do
matrimônio seja culpa da amizade não muito saudável do noivo com Ventura, um
vagabundo errante. A confusão inicia-se, de fato, com a chegada deste indesejado amigo à
pensão. Para não ser reconhecido, o rapaz passa-se por Candinho, suposto filho do Coronel
Tibúrcio, fazendeiro mineiro a quem Carlos deve muitos favores. A situação complica-se
ainda mais porque na pensão vivem Leocádio, velho amigo de Tibúrcio e de quem receberá
uma visita, e Zélia, a quem Ventura insiste em galantear.
Dona Xepa, peça de Pedro Boch, publicada em 1952, conta a história de Xepa e
40
seus filhos. Dona Xepa é uma feirante que, abandonada pelo marido, criou sozinha os dois
filhos, dando-lhes o que tinha de melhor. Ela abdicou de sua própria vida e fez todos os
sacrifícios para oferecer a Édison e Rosália uma realidade melhor do que a sua. O desejo
das pessoas simples de ver seus filhos doutores e sentirem-se orgulhosas por isso, no
entanto, é a chave de todo o conflito que rege a trama. Édison, assim como o pai, é um
inventor e a ambiciosa Rosália pensa em conseguir um casamento financeiramente
rentável que a faça ter uma vida de luxo e ostentação. Ao alcançarem seus objetivos,
Édison e Rosália desprezarão a vida antiga na vila pobre de subúrbio e proporcionarão
muito desgosto à mãe, Dona Xepa.
A comédia de Gláucio Gill de 1962, Tôda donzela tem um pai que é uma fera
apresenta os conflitos de dois rapazes solteiros, Joãozinho e Porfírio, com o General, pai
da noiva de Joãozinho. Joãozinho, apesar de ser um rapaz bastante conservador, divide o
apartamento com Dayse, moça do interior, filha do General, chegada pouco no Rio de
Janeiro. Porfírio, ao contrário do amigo Joãozinho, é um solteiro convicto que tem aversão
ao casamento. Sua característica marcante de conquistador fará com que o General
acredite, incentivado por Joãozinho, que ele é o verdadeiro noivo de Dayse. Pressionado a
se casar pelo General, Porfírio, na tentativa desesperada de escapar dessa situação,
envolverá sua atrapalhada vizinha Loló na história, causando assim uma grande confusão.
Comunhão de bens, de Alcione Araújo, encenada pela primeira vez em 1980,
reproduz a tensão de um jovem casal da classe média carioca. De um lado, encontra-se
Godofredo, um homem com idade em torno dos trinta anos, bem sucedido
profissionalmente e fortemente caracterizado por seu comportamento fútil. De outro, está
Heloísa, uma mulher que procura incansavelmente se aprofundar no autoconhecimento,
buscando incessantemente sua individualidade. A trama inicia-se quando Helô decide
caminhar por si só. Godô, que fazia todas as vontades da mulher e era feliz com a rotina
do casamento, não aceita a decisão da esposa e busca resolver o impasse, propondo que
41
ambos continuem vivendo sob o mesmo teto, mesmo que separados. Numa bela noite, os
dois chegam acompanhados e se encontram, cada um com sua conquista, na sala do
apartamento onde vivem. Entram em cena, então, Guto, um bonito intelectual bissexual,
por quem Helô se interessa, e Nicinha, uma caixa de supermercado, com quem Godô busca
começar uma relação.
Maria Adelaide Amaral, em 1995, apresenta a peça Intensa Magia, em que retrata a
conflituosa relação de Alberto, um homem de 70 anos, com sua esposa, Roma, e seus
filhos, Betinho, Tereza e Zezé. A história desenvolve-se na noite de aniversário do
patriarca, que coincide com o noivado da filha mais nova. Apesar dos apelos de Zezé,
Alberto decide expor aos parentes, inclusive o futuro genro, suas dores e frustrações,
causadas por sua crença de que colocar a família acima de seus anseios pessoais tenha sido
um grande equívoco. Em contrapartida, sua esposa e filhos denunciam suas mágoas e o
acusam de ter tornado dolorosa a vida da família, após não ter tido sucesso em um “mau-
passo” — sua separação de Roma.
A última peça a constituir o corpus é Clube do leque, de Ísis Baião, publicada em
1995. A história dessa tragicomédia desenvolvida em dois atos se desenrola em uma cidade
ficcional chamada Maria Mole, cujos moradores almejam se comportar como a “boa
sociedade” carioca. A trama gira em torno de Hemengarda, senhora viúva, cujas principais
atribuições são cuidar de seu neto e presidir o Clube do leque, uma espécie de associação
que engloba as senhoras mais distintas da cidade e que tem como objetivo prestar
solidariedade à população desfavorecida. Em nome do Clube do leque, serão organizados
um chá na casa de Hemengarda com suas amigas e uma festa pomposa na cidade, em que
estão presentes os expoente da sociedade mariamolense. Nessas situações, se desenrolarão
os mais diferentes conflitos, que terão um final surpreendente.
Após a apresentação das peças em análise, cabe explicitar a razão da inserção da
peça Clube do leque (1995), que possui características que a distinguem das demais, na
42
amostra em análise. Sua implementação no corpus deve-se ao fato de nesta obra, ao
contrário do que ocorre nas outras sete peças, ser possível observar um uso lingüístico
característico da fala carioca do último quarto do século XX constatado por diversos
trabalhos lingüísticos que abordam as estratégias de referência à segunda pessoa do
discursoo uso de tu acompanhado de verbos na pessoacomo será apresentado a
seguir na análise dos resultados. Desse modo, de antemão, salienta-se o caráter distinto,
muitas vezes, marcado pela excepcionalidade, dessa peça em relação às demais que
compõem a amostra em análise.
Por fim, esclarece-se que não se tem a pretensão de traçar, nesse estudo, uma
descrição definitiva do comportamento das estratégias de referência à segunda pessoa no
século XX. Consciente dos limites do trabalho, busca-se mostrar o comportamento dessas
estratégias nas obras que compõem este corpus, expondo e comparando, desse modo,
tendências na distribuição dessas formas.
43
3.2.2. As estratégias em análise
A fim de analisar as estratégias de referência ao(s) interlocutor(es) nas peças
fluminenses do século XX, dividiram-se, para efeito de uma descrição mais coerente, as
formas que mencionam apenas um interlocutorestratégias no singulare as que fazem
alusão a mais de um interlocutor — estratégias no plural.
Com relação às estratégias no singular, consideraram-se, em um primeiro grupo, o
pronome tu e formas relacionadas, constituindo, desse modo, o seguinte paradigma: os
pronomes pessoais exercendo função de sujeito (tu), de complemento verbal não
preposicionado (te), de complemento/ adjunto verbal ou nominal preposicionado (de ti/
para ti/ contigo/ entre outros), bem como os pronomes possessivos (teu(s)/ tua(s)) e as
desinências correspondentes à segunda pessoa do singular de todos os modos verbais. Além
dessas estratégias, analisaram-se, em um segundo grupo, a forma você e pronomes
relacionados, que se distribuíram do seguinte modo: os pronomes pessoais na função de
sujeito (você), de complemento verbal não preposicionado (o a/ você/ lhe), de
complemento/ adjunto verbal ou nominal preposicionado (de você/ com você/ para você/
entre outros), os pronomes possessivos (seu(s)/ sua(s)) e as desinências verbais
correspondentes à forma você na terceira pessoa do singular no modo imperativo ou não.
Tomaram-se, ainda, em um terceiro grupo, o pronome vós e formas correspondentes com
referência a apenas um interlocutor. Nesse caso, observaram-se os pronomes pessoais na
função de sujeito (vós), de complemento verbal não preposicionado (vos), de
complemento/ adjunto verbal ou nominal preposicionado (de vós/ para vós/ convosco/
entre outros), os pronomes possessivos (vosso(s)/ vossa(s)) e as desinências verbais
correspondentes à segunda pessoa do plural nos modos indicativo, subjuntivo e imperativo.
Por fim, examinou-se o emprego de estratégias nominais como O senhor, A patroa, O
doutor em todas as funções sintáticas, inclusive na função apelativa de vocativo.
44
Com relação às estratégias no plural, conceberam-se, em um primeiro grupo, os
pronomes pessoais exercendo função de sujeito (vós), de complemento verbal não
preposicionado (vos), de complemento/ adjunto verbal ou nominal preposicionado (para
vós/ convosco/ entre outros), bem como os pronomes possessivos (vosso(s)/ vossa(s)) e as
desinências verbais correspondentes à segunda pessoa do plural dos três modos todos
com referência a mais de um interlocutor. Além da forma vós, pronomes correspondentes
em outras funções sintáticas e formas verbais relacionadas, consideraram-se também,
como estratégias de referência a mais de um interlocutor, a forma vocês e termos
relacionados, formando-se, da seguinte maneira, um segundo grupo para formas no plural:
os pronomes pessoais na função de sujeito (vocês), de complemento verbal não
preposicionado (os as/ vocês/ lhes), de complemento verbal preposicionado (de vocês/
com vocês/ para vocês/ entre outros), os pronomes possessivos (seu(s)/ sua(s)) e as
desinências verbais correspondentes à forma vocês na terceira pessoa do plural no modo
imperativo ou não. Por último, observou-se o emprego de estratégias nominais com
referência a mais de um interlocutor como Os senhores — em todas as funções
sintáticas. Os exemplos a seguir referem-se às estratégias supracitadas.
(01) Bernardo Ora! Tu não entendes disso. Podes, quando muito, entender
de engenharia; mas de transações comerciais não pescas nada. (O simpático
Jeremias (1918), p.36)
(02) Bernardo Meu filho, pode te convir o negócio. (O simpático Jeremias
(1918), p.36)
(03) Laura Se queres, eu o deixo e volto para ti.(O simpático Jeremias
(1918), p.47)
45
(04) Bernardo No cavalo do teu pai, heim? Tu é que me saiste um bom
cavalo... (O simpático Jeremias (1918), p.37)
(05) Josino - Sim, minha formosa prima. Vestes com o apuro de uma
Wenderbilt, almoças no Madrid, vais às conferências, merendas na Cavé,
ceias no Mourisco, apostas no Derby e recebes com elegância requintada que
aqui se vê, em toilette fascinadora (à meia voz, apaixonadamente) e estás
linda! (Enfático) Em verdade o Amazonas é o primeiro rio do mundo! (Outro
tom) E quem marcha em tudo isto? o homem, cujo dinheiro tomaste sob a tua
guarda avara, graciosa sentinela do tesouro dos seringais. (Quebranto (1908),
p.8)
(06) Madalena Pensa primeiro no vai fazer. (O simpático Jeremias (1918),
p.30)
(07) Helô Você quer dizer que tem direito ao dôbro do que me couber...
Prá mim, tanto faz, Godô. Você sabe que nunca tive apêgo a coisas
materiais... (Comunhão de bens (1980), p.18)
(08) Rosália — Édison convidou você? (Dona Xepa (1952), p.56)
(09) Otávio Folgo muito em conhecê-lo. Sou o doutor Otávio Montana. (O
simpático Jeremias (1918), p.36)
(10) Porfírio – Eu disse a você. Eu disse que essa garota era um espeto. (Tôda
46
donzela tem um pai que é uma fera(1962), p.02)
(11) Ventura Mas como lhe disse, eu, que hoje não almocei, nem jantei,
não tenho também onde dormir. E o tempo está ameaçador. (O hóspede do
quarto 2 (1937), p.17)
(12) Douglas – Oh! É filha de você? (O simpático Jeremias (1918), p.36)
(13) Madalena Está bem. Consentirei que use o monóculo. Fique certo,
porém, que o despedirei à menor falta. Quanto ao seu ordenado, depois
de ver o que vale o seu serviço. (O simpático Jeremias (1918), p.31)
(14) Ventura Que resolva o meu caso. (O hóspede do quarto 2 (1937),
p.17)
(15) Dorotéa Deixe o Carlos com o seu máo genio e continue onde
está... (O hóspede do quarto 2 (1937), p.45)
(16) Jeremias Se vos apraz, senhora, narrarei o breve trecho da viagem
que em minha companhia do meu excelso mestre empreendi na materialidade
da vida. (O simpático Jeremias (1918), p.31)
(17) Jeremias Perdão, compassiva senhora. Se bem que esmolar seja uma
das contingências humanas, o estou aqui para implorar a vossa caridade.
Grandes filósofos e poetas estenderam mão à caridade pública. Narram as
crônicas que Diógenes, Camões... (O simpático Jeremias (1918), p.30)
47
(18) Jeremias Senhor, eu vos felicito por não serdes um escravo do
dinheiro, o vil corruptor das consciências. (O simpático Jeremias (1918),
p.37)
(19) Jeremias Ide, serpente feminina, expelir o veneno do vosso olhar
noutro coração que a filosofia não haja ainda sensibilizado! (O simpático
Jeremias (1918), p.35)
(20) Porfírio — General, parece que o s enhor não compreendeu bem. Eu disse
ERA casado. E de acôrdo com a lei brasileira, não sei se o senhor sabe, a
gente não pode casar duas vêzes." (Tôda donzela tem um pai que é uma fera
(1962), p.47)
(21) Cristóvão Já sei que a patroa reconhece um trabalho que um homem
faz (...).(O simpático Jeremias (1918), p.28)
(22) Douglas Também gosto de conhecer o senhor doutor Otávio. (O
simpático Jeremias (1918), p.36)
(23) TeresaO que eu posso dizer do senhor a não ser o que todo mundo
sabe: que o senhor é um mulherengo sem vergonha. (Intensa Magia (1995),
p.27)
(24) Leocadio Como vai o senhor, “seu” Nestorio? (O hóspede do quarto 2
(1937), p.09)
48
(25) Macário Deixei-vos a sós. (Solene) E que Deus vos abençõe, meus
filhos! (Quebranto (1908), p.06)
(26) XepaNunca! Ninguém me mexe nem no relógio que não anda, nem no
alarme, nem nesta mesa secreta de tampo duplo. Vocês já imaginaram a cara
do Esmeraldino se um dia ele entra aqui e não o resultado de tantos anos
de vagabundagem? (Dona Xepa (1952), p.10)
(27) Artur Entrem. Foi realmente um encontro providencial. Ia mesmo
procurá-los.( O simpático Jeremias (1918), p.34)
(28) Otávio Pela última vez declaro-lhes que não vendo a égua por preço
nenhum. (O simpático Jeremias (1918), p.37)
(29) GeneralMeus filhos, vocês me desculpem a emoção, mas é que sou um
velho de natureza sentimental. (Porfírio olha com cara de poucos amigos para
êle). É êsse o momento romântico com que sempre sonhei na minha vida; ver
minha filha pedida em casamento. Mas como eu não sei fazer discursos
bonitos, só quero dizer uma coisa a vocês: sejam felizes.(beija os dois) (Tôda
donzela tem um pai que é uma fera (1962), p.47)
(30) Alberto Pois eu aposto que todos vocês vão ficar surpresos no velório
quando os meus amigos começarem a contar histórias sobre mim. E talvez se
perguntem: é do papai mesmo que estão falando? Como é que ele podia ser
tão alegre e jovial longe da família? Porque eu estava longe de vocês e longe
49
de vocês eu sempre fui uma pessoa melhor. (Intensa magia (1995), p.42)
(31) Carlos (para todos)Desculpem a demora, mas eu tive um problema
de última hora na firma e ... (Intensa magia (1995), p.18)
(32) Dóra Onde? Não é difícil acha-la: está à flor. Que fazem os senhores?
Metem-me à cara um velho porque vale oitocentos contos e não sei quantos
seringais no Amazonas. (Quebranto (1908), p.04)
(33) Dóra Estou vendo que, para os senhores, a riqueza é monopólio dos
seringueiros. (Quebranto (1908), p.04)
(34) Macário Deixei-vos a sós. (Solene) E que Deus vos abençõe, meus
filhos! (Quebranto (1908), p.06)
Cabe ressaltar que se excluíram da análise os casos de: (a) formas verbais
nominais de infinitivo impessoal e de gerúndio com sujeito nulo (exemplos i e ii ; (b)
verbos com desinência verbal de 3ª pessoa do singular, funcionando como marcadores
discursivos (exemplo iii); (c) expressões cristalizadas como Sim senhor!, Veja lá!
(exemplos iv e v); (d) passagens de discurso hipotético ou relatado (exemplos vi e
vii); (e) dados inseridos em atos de fala em que o interlocutor não pode ser
determinado, impossibilitando o estabelecimento da relação que este mantém com o
personagem em questão (exemplo viii); (f) nomes dos personagens, funcionando na
função de vocativo por se considerar tal estratégia, no PB, como comum a todas as
épocas independentemente da configuração lingüística vigente (exemplo ix).
50
(i) Elisa O senhor o tem nada de mostrar os dentes às mulheres dos
hóspedes! Mas respeito, heim! Se repetir, eu contarei à patroa. (O simpático
Jeremias (1918), p.35)
(ii) General O quê? Você entregou a chave de seu apartamento àquele
libertino, sabendo que ele estava com nossas noivas? (Tôda donzela tem um
pai que é uma fera (1962), p.81)
(iii) Porfírio Vocês precisavam ser menos emotivos, sabe? (Tôda donzela
tem um pai que é uma fera (1962), p.75)
(iv) Porfírio — Libertino, sim senhor! Enquanto eu fico aqui numa vida
ascética de monge budista, você anda se esbaldando por aí. Devasso!
Corrupto e corruptor! (Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962),
p.72)
(v) Cristóvão Veja lá se quer que eu peça por favor! (O simpático Jeremias
(1918), p.34)
(vi) Joãozinho — Mas como é que vou relatar o caso ao General?
Porfírio Usando tato e habilidade. um tapinha nas costas dêle e
diga: General, sua filha, bau... bau...! (Tôda donzela tem um pai que é uma
fera (1962), p.73)
(vii) XepaE eu chego na casa de todo mundo e digo: “Minha senhora.
Quem é que a senhora está pensando que eu sou”. (Dona Xepa (1952), p.21)
51
(viii) Guiomar (Disca e fala) Alô, Dona Lizete, minha mãe mandou
perguntar para a senhora a receita daquele rocambole. (Dona Xepa (1952),
p.56)
(ix) Zezé (desembrulhando o presente) Que linda camisola, Teresa...
(Intensa Magia (1995), p.11)
52
4. ANÁLISE DOS RESULTADOS
4.1. A distribuição das estratégias em análise no corpus.
Com o objetivo de analisar o comportamento das estratégias de referência ao
interlocutor nas peças que compõem a amostra em análise, observou-se a distribuição das
formas supracitadas em função de diferentes aspectos lingüísticos e extralingüísticos,
aliando tais apontamentos à teoria do Poder e Solidariedade, discutida a partir do trabalho
de Brown e Gilman (1960), e da gramaticalização (Lehmann, 1985; Hopper, 1991; Heine,
2003). Os dados foram codificados e, posteriormente, quantificados pelo programa
estatístico computacional Make 3000, inserido no pacote de programas VARBRUL (Variable
Rules Analyses), a fim se obter o cálculo das freqüências brutas.
Com a quantificação de todas as estratégias, encontrou-se um total de 6366 dados
distribuídos do seguinte modo no corpus:
Quebranto
(1908)
O simpático
Jeremias
(1918)
O hóspede
do quarto
número 2
(1937)
Dona Xepa
(1952)
Tôda
donzela tem
um pai que é
uma fera
(1962)
Comunhão
de bens
(1980)
Intensa
Magia (1995)
Clube do leque
(1995)
812 1143 646 770 893 864 685 553
Quadro 5: A distribuição das estratégias no corpus.
Para alcançar uma análise criteriosa dos resultados, investigam-se, em um primeiro
momento, os dados relativos às estratégias pronominais nas diferentes funções sintáticas.
Posteriormente, verifica-se o comportamento dessas estratégias e de suas formas verbais
correspondentes, observando, respectivamente, a existência de sujeito pleno e de sujeito
nulo ou desinencial. À distribuição das formas nominais dedica-se um subcapítulo, em que
se descreve estas não quanto aos tipos, mas também quanto às diferentes funções
exercidas. Em seguida, examina-se a distribuição dos diferentes tratamentos em função
53
das diferentes relações sociais estabelecidas, determinando, assim, a aplicabilidade dos
pressupostos da teoria do Poder e Solidariedade. Por fim, investiga-se o comportamento da
forma você(s), no século XX, com base na amostra em estudo, à luz da teoria da
gramaticalização.
4.1.1. O comportamento das estratégias pronominais no corpus
Para a análise das estratégias pronominais de referência ao interlocutor,
distribuíram-se as formas de acordo com a função sintática exercida na oração. Desse
modo, observou-se o uso dessas estratégias na função de sujeito (pronomes retos), de
complemento verbal não preposicionado (pronomes oblíquos átonos), de complemento/
adjunto verbal ou nominal preposicionado (pronomes oblíquos tônicos) e de adjunto
nominal indicando posse (pronomes possessivos).
Tomando somente as formas pronominais no singular, obteve-se um total de 2562
dados, distribuídos do seguinte modo no corpus:
54
A DISTRIBUIÇÃO DAS ESTRATÉGIAS PRONOMINAIS NO SINGULAR
EM FUNÇÃO DAS CATEGORIAS GRAMATICAIS
Peças
em
análise
sujeito
compl. verbal não prep.
compl./ adj.
verbal/ nom.
prep.
possessivo total
tu você te você o/a lhe
a ti/
para
ti/entre
outros
a você/
para
você/
entre
outros
teu(s)/
tua(s)
seu(s)/
sua(s)
Quebran
to
(1908)
29/33
(88%)
4/33
(12%)
53/76
(70%)
0/76
(0%)
7/76
(9%)
16/76
(21%)
9/10
(90%)
1/10
(10%)
43/94
(46%)
51/94
(54%)
134/213
(63%)
89/213
(37%)
O simp..
Jeremia
s (1918)
13/123
(11%)
110/123
(89%)
24/118
(20%)
6/118
(5%)
29/118
(25%)
59/118
(50%)
4/17
(25%)
13/17
(75%)
9/94
(9%)
86/94
(91%)
50/353
(14%)
303/353
(86%)
O hósp..
Quarto
2 (1937)
0/142
(0%)
142/142
(100%)
0/62
(0%)
2/62
(3%)
18/62
(29%)
42/62
(68%)
0/10
(0%)
10/10
(100%)
0/93
(0%)
93/93
(100%)
0/307
(0%)
307/307
(100%)
Dona
Xepa
(1952)
1/132
(1%)
131/132
(99%)
4/21
(19%)
8/21
(38%)
2/21
(10%)
7/21
(33%)
0/8
(0%)
8/8
(100%)
3/78
(4%)
75/78
(96%)
8/239
(3%)
231/239
(97%)
Tôda...
fera
(1962)
3/330
(1%)
327/330
(99%)
25/42
(60%)
0/42
(0%)
3/42
(7%)
14/42
(33%)
0/35
(0%)
35/35
(100%)
11/90
(12%)
79/90
(88%)
39/497
(8%)
458/497
(92%)
C.de
bens
(1980)
0/315
(0%)
315/315
(100%)
9/36
(25%)
1/36
(3%)
10/36
(28%)
16/36
(44%)
0/21
(0%)
21/21
(100%)
0/85
(0%)
85/85
(100%)
9/457
(2%)
448/457
(98%)
Intensa
Magia
(1995)
0/177
(0%)
177/177
(100%)
10/29
(34%)
2/29
(7%)
2/29
(7%)
15/29
(52%)
0/29
(0%)
29/29
(100%)
8/126
(6%)
118/126
(94%)
18/361
(5%)
343/361
(95%)
C. do
leque
(1995)
29/74
(40%)
45/74
(60%)
15/25
(60%)
2/25
(8%)
2/25
(8%)
6/25
(24%)
0/3
(0%)
3/3
(100%)
5/33
(15%)
28/33
(85%)
49/135
(36%)
86/135
(64%)
Total
75/
1326
(6%)
1251/
1326
(94%)
140/
409
(34%)
21/
409
(5%)
73/
409
(18%)
175/
409
(43%)
13/
133
(11%)
120/
133
(89%)
79/
693
(11%)
615/
693
(89%)
307/
2562
(12%)
2255/
2562
(88%)
Tabela 1: A distribuição das estratégias pronominais no singular em função das categorias gramaticais.
A observação das estratégias pronominais de referência ao interlocutor no singular
revelou, em linhas gerais, uma alteração substancial na natureza dos pronomes entre a
peça Quebranto (1908) e as obras posteriores, uma vez que naquela predominam as formas
pronominais de pessoa gramatical (tu, te, ti, teu(s)/tua(s)) 63% e nestas
prevalecem as formas de pessoa gramatical (você, o/a, lhe, seu(s)/sua(s)) 86%, 100%,
97%, 92%, 98%, 95% e 64%. Tal fato se deve, principalmente, à acentuada queda na
55
freqüência do pronome tu ao longo do século na amostra em análise, visto que na obra de
1908 corresponde a 88% dos pronomes no singular na função de sujeito e, nas obras
posteriores, não ultrapassa o índice de 11%, com exceção feita à peça Clube do leque
(1995), em que o pronome tu aparece em 40% dos casos de sujeitos pronominais
preenchidos, apresentando, no entanto, a especificidade de ser acompanhado por formas
verbais de 3ª pessoa.
Excluindo da análise as peças Quebranto (1908) e Clube do leque (1995), em que
a presença marcante do pronome tu, nota-se que a preservação dos pronomes de 2ª pessoa
fica a cargo das formas te, teu(s)/ tua(s). O oblíquo átono te mantém, à exceção da peça
O hóspede do quarto 2 (1937), que não apresenta formas de pessoa gramatical,
índices sempre acima dos 18%, chegando a atingir 60% na peça de 1962. os possessivos
teu(s)/ tua(s), apesar de apresentarem índices abaixo dos 15% nas peças posteriores a
1908, fazem-se presentes nas peças de O simpático Jeremias (1918), Dona Xepa (1952),
Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962), Comunhão de bens (1980) e Intensa
magia (1995). A preservação dessas formas deve-se possivelmente ao caráter ambíguo que
as estratégias pronominais de pessoa passaram a apresentar após a inserção de você no
quadro pronominal do PB.
Com relação às formas pronominais no plural, foram encontrados 72 dados da
forma vocês na função de sujeito, 2 de vos, 2 de os/ as, 1 de vocês e 1 de lhes na função
de complemento verbal não preposicionado, 11 dados da forma vocês precedida de
preposição, funcionando como complemento/ adjunto verbal ou nominal, e 6 dados dos
pronomes possessivos seu(s)/ sua(s) com referência a mais de um possuidor. Sendo assim,
percebe-se claramente um amplo domínio das formas de pessoa gramatical (vocês,
os/as, lhes, seu(s)/ sua(s)), visto que as formas de pessoa gramatical, nesse caso,
representadas somente pelo pronome vos, correspondem a menos de 3% das 95 estratégias
pronominais no plural.
56
4.1.2. O emprego dos pronomes na função de sujeito
Inicialmente, serão analisados o comportamento das estratégias pronominais na
função de sujeito e o emprego das desinências verbais. Para tanto, o uso explícito de
pronomes de referência ao interlocutor na função de sujeito (exemplos 35, 37 e 39) será
comparado com o simples emprego da flexão verbal (exemplos 36, 38 e 40) o chamado
sujeito nulo ou o preenchido. Antes da apresentação dos exemplos, cabe um sucinto
esclarecimento acerca das formas verbais de pessoa. Consideram-se formas verbais de
3ª pessoa relacionadas:
(i) a você e vocês, aquelas em que estes pronomes se apresentam em outros dados
como sujeito preenchido na mesma relação (personagem A fala ao personagem B), o
necessariamente no mesmo ato de fala — exemplos 38 e 40 — ou aquelas em que as formas
verbais se apresentam sempre nulas em uma dada relação;
(ii) a formas nominais (o(s) senhor(es)/ a(s) senhora(s)/ o(s) doutor(es), entre
outras), somente aquelas em que estas formas se apresentam em outros dados como
sujeito preenchido na mesma relação (personagem C fala ao personagem D) — exemplo 41.
(35) Joãozinho peço que daqui a dois anos, quando me encontrares com
DEZ filhos nas costas, tu te lembres que tu fôste o responsável. (Tôda donzela
tem um pai que é uma fera (1962), p.8)
(36) Macário À vontade! (Fortuna descalça-se) ØEstás em tua casa. A
propósito: porque não Ødeixas o hotel? Aquilo não te convém. ØTens aqui
excelentes cômodos independentes, onde Øficas à vontade e com o conforto
57
que lá não Øachas. Sempre é uma casa de família.(Quebranto (1908), p.6)
(37) PorfírioJoãozinho, você vai me fazer um favor. De hoje em diante
você vai me considerar seu inimigo." (Tôda donzela tem um pai que é uma
fera (1962), p.33)
(38) Helô — Você me leva?
Guto — A anfritiã é você.
Helô — Gosto de ser carregada.
Guto — Meus óculos caíram por aqui. Sem eles eu não...
Helô — Não Øprecisará deles... CarregueØ-me para a cama... sejaØ
gentil... por favor...(Comunhão de bens (1980), p.34)
(39) PorfírioVoc-*ês precisavam ser menos emotivos, sabe? (Tôda donzela
tem um pai que é uma fera (1962), p.75)
(40) Alberto Pois eu quero que todos vocês vão ficar surpresos no velório
quando os meus amigos começarem a contar histórias sobre mim. E tavez se
Øperguntem: é do papai mesmo que estão falando? Como é que ele podia ser
tão alegre e jovial longe da família? Porque eu estava longe de vocês e longe
de vocês eu sempre fui uma pessoa muito melhor. (Intensa Magia (1995),
p.42)
(41) Fortuna Eu? Quando eu digo que a senhora não me compreende...
(Dóra leva o lenço aos olhos). Não choreØ, pelo amor de Deus! (Comovido)
Eu não sou homem para insultar uma moça. OlheØ, entendaØ o que eu quero
58
dizer, escuteØ. (Quebranto (1908), p.13)
Com relação às formas verbais de pessoa antecedidas pelo pronome tu, como é
possível observar no exemplo (42), associaram-se essas estratégias às formas verbais
antecedidas por você, visto que não é possível observar nestes verbos marcas de pessoa
gramaticala desinência de pessoa e número apresentada é Ø, ou seja, corresponde à
pessoa do singular. Segundo Duarte (1993), a neutralização das formas verbais de e
pessoas deveu-se à entrada da forma você, originalmente um pronome de tratamento, no
sistema de pronomes pessoais no Português do Brasil.
(42) RemédiosHum, tu é besta mesmo! Depois de que? Øviu rico deixar
sobra? (Clube do leque (1995), p.25)
O confronto entre os chamados sujeitos pronominais plenoso uso das formas tu,
você e vós, no singular, e vocês, no plurale os denominados sujeitos nulos o simples
emprego da flexão verbal, determinando o número e a pessoa do sujeito tem como
objetivo constatar (i) quais estratégias pronominais predominaram nas diferentes obras em
análise e (ii) qual o comportamento das formas pronominais em questão quanto a seu
preenchimento na função de sujeito ao longo do século. Dessa maneira, este estudo busca
confirmar, no corpus sob investigação, (i') se há, por um lado, a substituição do pronome
tu pela forma inovadora você e, por outro, a consolidação de vocês como única estratégia
de referência a mais de um interlocutor e (ii') se as estratégias em questão teriam seguido
a tendência de preenchimento do sujeito do PBvariedade que teria experimentado uma
mudança do padrão do sujeito nulo, em torno da década de 30, para sujeito pleno,
segundo hipótese defendida por Duarte (1993) — ou se mantém altos índices de não
preenchimento, seguindo a propensão à elipse dos pronomes na função de sujeito
59
característica dos gêneros textuais pertencentes à modalidade escrita, como a peça de
teatral.
O PREENCHIMENTO DOS SUJEITOS PRONOMINAIS NO SINGULAR
Peças em
análise
VOCÊ TU
pleno nulo total pleno nulo total
Quebranto
(1908)
4/17
(23%)
13/17
(77%)
17/211
(08%)
29/194
(15%)
165/194
(85%)
194/211
(92%)
O simp...
Jeremias
(1918)
110/237
(46%)
127/237
(54%)
237/416
(57%)
13/179
(07%)
166/179
(93%)
179/416
(43%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
142/206
(69%)
64/206
(31%)
206/206
(100%)
- - 0/206
(00%)
Dona
Xepa
(1952)
131/200
(66%)
69/200
(34%)
200/240
(83%)
1/40
(03%)
39/40
(97%)
40/240
(17%)
Tôda...
fera
(1962)
327/458
(71%)
131/458
(29%)
458/508
(90%)
3/50
(06%)
47/50
(94%)
50/508
(10%)
C.de
bens
(1980)
316/598
(53%)
282/598
(47%)
598/685
(87%)
0/87
(00%)
87/87
(100%)
87/685
(13%)
Intensa
Magia
(1995)
177/273
(65%)
96/273
(35%)
273/308
(89%)
0/35
(00%)
35/35
(100%)
35/308
(11%)
C. do
leque
(1995)
44/163
(27%)
119/163
(73%)
163/297
(55%)
29/134
(22%)
105/134
(78%)
134/297
(45%)
TOTAL
1251/2152
(58%)
901/2152
(42%)
2152/2871
(75%)
75/719
(10%)
644/719
(90%)
719/2871
(25%)
Tabela 2: O preenchimento dos sujeitos pronominais no singular.
Inicialmente, é de fundamental importância observar que os dados de forma verbal
na pessoa do plural com referência a apenas um interlocutor não foram contemplados
na tabela acima por corresponderem a apenas 13 dados — 10 de formas verbais imperativas
e 3 de formas verbais não imperativas, não alcançando sequer 1% do total de 2884
ocorrências de sujeitos pronominais plenos ou nulos, e se encontrarem na fala de um único
60
personagem o protagonista da peça O simpático Jeremias (1918). Cabe ressaltar
novamente que o emprego das 590 ocorrências de formas nominais no singular exercendo
função de sujeito bem como o uso de formas verbais de pessoa do singular referindo-se
a estas estratégias será comentado oportunamente.
Ao se tomar o confronto, no singular, entre o pronome tu na função de sujeito,
seja este pleno ou nulo, e a forma você exercendo função análoga, é possível observar o
declínio no início do século do primeiro e a ascensão da segunda. Desse modo, em um
aspecto, há uma acentuada queda na freqüência de uso do pronome tu já na obra de 1918,
uma vez que este, inicialmente, corresponde a 92% das estratégias pronominais na peça
Quebranto (1908), passa, posteriormente, a representar apenas 43% das formas no singular
na peça O simpático Jeremias (1918), chega a desaparecer em O hóspede do Quarto 2
(1937), e mantém-se, por fim, sempre na faixa dos 10 aos 17% nas peças da segunda
metade do século, com exceção de Clube do leque (1995), em que o emprego de formas
correspondentes à 2ª pessoa gramatical atinge 43% das ocorrências.
Em outro aspecto, é fundamental observar que o emprego de você como sujeito
preenchido, ou não, na peça de 1918 é superior ao de tu, alcançando índices acima de
80% nas peças datadas posteriormente, com exceção da obra Clube do leque (1995), que
reproduz uma estratégia marcante na fala dos cariocas o reaparecimento do pronome
tu, agora, associado à marca correspondente à terceira pessoa do singular (tomando-se,
nesse sentido, a ausência de desinênciaØ como traço distintivo em face da presença
da desinência), conforme mostra o exemplo (43).
(43) Te aquieta, menino chato, (APLICA-LHE UM BELISCÃO) Vai, vai contar pra tua
que eu digo pra ela que tu mostrou angua pro São Judas Tadeu. (Clube do leque (1995),
p.25)
61
A combinação de tu com formas verbais de pessoa é constatada em trabalhos
como os de Paredes Silva (1999, 2003), Lopes, Couto & Duarte (2005) e Menon & Loregian-
Penkal (2003). Paredes Silva (1999, 2003), com base, em peças de teatro ambientadas no
Rio de Janeiro do século XIX e XX e em amostras de fala, respectivamente, observa o
retorno do pronome tu à fala carioca, a partir da segunda metade do século XX, desta vez
acompanhado da forma verbal sem a desinência característica da pessoa. Tal fenômeno
é descrito, ainda, por Lopes, Couto & Duarte (2005), tomando um roteiro de cinema, cuja
história também se desenvolve na capital fluminense. No entanto, a associação do
pronome tu a formas verbais de pessoa não se restringe ao Rio de Janeiro, pois é
também observada por Menon & Loregian-Penkal (2003), na cidade de Porto Alegre, onde
as autoras constatam que este uso é mais produtivo que o emprego de tu acompanhado da
flexão verbal corresponde à pessoa. Cabe, entretanto, ressaltar que, ao contrário do
que ocorreu no Rio de Janeiro, em que o pronome tu, aparentemente, apresenta uma
acentuada queda em sua freqüência de uso entre as décadas de 30 e 70 (cf. Paredes,
1999
10
), em Porto Alegre não é possível falar em um retorno, pois o emprego deste
pronome é um uso lingüístico característico desta cidade.
É importante salientar que esse emprego não padrão de tu, nos termos de Paredes
Silva (1999), no Rio de Janeiro, restringe-se, na amostra em análise, à fala de personagens
marcadamente pertencentes à classe baixa, uma vez que é encontrado no diálogo entre
empregadas domésticas e entre estas e outros personagens de equivalente “valor social”.
Tal fato também é constatado por Paredes Silva (1999), ao observar que esse uso, em
algumas peças ambientadas no Rio de Janeiro a partir de 1950, se circunscreve à
caracterização de tipos populares, retratando exclusivamente infratores e marginais, em
alguns casos, e moradores do subúrbio em geral, em outros.
10 A autora, analisando, na primeira parte de seu trabalho, peças teatrais cariocas da segunda metade do
século XIX e primeira metade do século XX, afirma que “o que se observa é um crescendo na utilização do você
proporcional à perda do uso de tu. O pronome tu chega a apresentar-se com uma taxa de 18% em Martins Pena
(1844/45) e atinge uma média de 4% nas últimas peças do período (compreendidas entre os anos de 1922 e
1954).”
62
Nesse momento, é fundamental sublinhar que a utilização predominante de você na
função de pronome de pessoa do singular alterou não o paradigma dos pronomes
pessoais do caso reto como também foi decisiva para converter o comportamento do
sujeitos quanto a seu preenchimento. Com a inserção de você no quadro pronominal, a
pessoa passou a ser indicada, no caso da 2ª, exclusivamente pelo pronome e não mais pelo
verbo, uma vez que a marca verbal de pessoa restringiu-se ao Ø característico da 3ª, a não
pessoa, segundo Benveniste (1988). Como é possível observar na tabela 2, os índices de
não preenchimento de sujeito com o pronome tu mantém-se sempre acima dos 75%, ao
passo que com a forma você, em seis das oito peças em estudo, conserva-se sempre abaixo
dos 50%. Tal fato mostra que você ao se tornar o pronome de pessoa mais produtivo,
nessa amostra, a partir da peça de 1918, transformou também o comportamento do
preenchimento do sujeito, como é possível observar na tabela a seguir.
63
O PREENCHIMENTO DOS SUJEITOS PRONOMINAIS
NO SINGULAR (II)
Peças em
análise
Pleno Nulo TOTAL
Quebranto
(1908)
33/211
(16%)
178/211
(84%)
211/2871
(07%)
O simp...
Jeremias
(1918)
123/416
(30%)
293/416
(70%)
416/2871
(14%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
142/206
(69%)
64/206
(31%)
206/2871
(07%)
Dona
Xepa
(1952)
132/240
(55%)
108/240
(45%)
240/2871
(08%)
Tôda...
fera
(1962)
330/508
(65%)
178/508
(35%)
508/2871
(18%)
C.de
bens
(1980)
316/685
(46%)
369/685
(54%)
685/2871
(24%)
Intensa
Magia
(1995)
177/308
(57%)
131/308
(43%)
308/2871
(11%)
C. do
leque
(1995)
73/297
(25%)
224/297
(75%)
297/2871
(11%)
Total
1326/2871
(46%)
1545/2871
(54%)
2871/2871
(100%)
Tabela 3: O preenchimento dos sujeitos pronominais no singular(II).
Ao se comparar os resultados totais correspondentes às formas de sujeitos
pronominais preenchidos e as de sujeitos não preenchidos, no singular, é possível afirmar
que as peças localizadas nos extremos da tabela Quebranto (1908), O simpático
Jeremias (1918) e Clube do leque (1995), que apresentam índices de 84%, 70% e 75% de
não preenchimento do sujeito, respectivamente, apresentam um comportamento bastante
distinto das peças O hóspede do quarto 2 (1937), Dona Xepa (1952), Tôda donzela tem
um pai que é uma fera (1962) e Intensa Magia (1995), em que este índice se mantém
sempre igual ou abaixo dos 45% 31%, 45%, 35% e 43%, respectivamente. Em outras
palavras, é bastante evidente a sensível mudança de comportamento com relação ao
preenchimento do sujeito entre as peças anteriores à década de 20 e as obras que se
encontram após a década de 30, com exceção à peça Clube do leque (1995). Nesse caso,
64
parece ser inquestionável a relação entre aumento nos índices de preenchimento do
sujeito e a ampliação da utilização da forma você, como mostra o gráfico a seguir.
Gráfico 1: A relação entre o uso de você e o preenchimento dos sujeitos pronominais.
No gráfico 1, é possível perceber a clara relação entre o uso do item você como
sujeito pleno ou nulo e o índice total de preenchimento das formas nesta função. É
bastante evidente que o aumento ou declínio no emprego de você é acompanhado no
mesmo sentido pelos índices de preenchimento do sujeito, uma vez que a elevação na
freqüência de uso desta forma entre as peças de 1908 e 1937 é seguida pelo aumento na
utilização dos sujeitos plenos no corpus; posteriormente, a oscilação nos índices de uso de
você entre as obras Dona Xepa (1952) e Intensa magia (1995)— 83%, 90%, 83% e 89%
também é experienciada pelos percentuais de sujeito pleno na amostra 55%, 45%,46% e
57%; por fim, nota-se uma diferença em relação ao uso de você entre as peças Intensa
magia (1995) e Clube do leque (1995) que, apesar de serem datadas do mesmo ano, se
Quebrant
o (1908)
O simp..
Jeremias
(1918)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
Dona
Xepa
(1952)
Tôda...
fera
(1962)
C.de bens
(1980)
Intensa
Magia
(1995)
C. do
leque
(1995)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
16
30
69
55
65
46
57
25
8
57
100
83
90
87
89
55
A relação entre o uso de "você" e o preenchimento dos sujeitos pronominais
preenchimento do
sujeito
emprego de você
65
distinguem em relação ao uso de você e ao preenchimento do sujeito, pois, na primeira, o
índice de você é alto (89%) assim como o de sujeitos plenos (57%) e, na segunda, o índice
de você é menor que na primeira (55%) bem como o de sujeitos preenchidos (25%).
No plural, não há variação entre formas pronominais de referência à segunda
pessoa, uma vez que o uso de vocês como sujeito pleno — 72 dados — ou nulo — 78 dados —
mostra-se categórico. Desse modo, não foi identificado nenhum dado da forma vós com
referência a mais de um interlocutor como sujeito preenchido, ou não, na amostra em
estudo. Adverte-se, ainda, que, do mesmo modo que ocorreu entre as formas no singular,
os 2 dados de sujeitos nominais preenchidos serão analisados, posteriormente, juntamente
com as outras estratégias nominais. A seguir, encontra-se a distribuição dos sujeitos
pronominais no plural em função de seu preenchimento no corpus:
O PREENCHIMENTO DOS SUJEITOS PRONOMINAIS
NO PLURAL
Peças em
análise
Pleno Nulo TOTAL
Quebranto
(1908)
2/8
(25%)
6/8
(75%)
8/150
(05%)
O simp...
Jeremias
(1918)
1/10
(10%)
9/10
(90%)
10/150
(7%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
3/3
(100%)
0/3
(00%)
3/150
(02%)
Dona
Xepa
(1952)
7/15
(47%)
8/15
(53%)
15/150
(10%)
Tôda...
fera
(1962)
18/19
(95%)
1/19
(05%)
19/150
(13%)
C.de
bens
(1980)
11/13
(85%)
2/13
(15%)
13/150
(09%)
Intensa
Magia
(1995)
19/29
(66%)
10/29
(34%)
29/150
(19%)
C. do
leque
(1995)
11/53
(21%)
42/53
(79%)
53/150
(35%)
Total
72/150
(48%)
78/150
(52%)
150/150
(100%)
Tabela 4: O preenchimento dos sujeitos pronominais no plural.
66
Apesar de apresentarem um número bem menor que na análise dos sujeitos
pronominais plenos e nulos no singular, os dados referentes às formas no plural são
bastante significativos. Tal convicção deve-se ao fato de que os resultados obtidos entre os
sujeitos no plural coincidem, em linhas gerais, com os resultados dessa mesma função no
singular, pois, assim como ocorreu entre as formas de referência a um interlocutor, no
aspecto em análise, entre as formas pronominais de referência a mais de um interlocutor,
observa-se uma grande mudança na tendência relacionada ao preenchimento dos sujeitos
entre as duas peças do primeiro quarto do século e a última peça em análise Quebranto
(1908), O simpático Jeremias (1918) e Clube do leque (1995), que apresentam índices de
não preenchimento de 75%, 90% e 79%, respectivamente, e as peças datadas
posteriormente, em que este índice se apresenta bem menor, sempre abaixo dos 55%,
chegando a mesmo a não ocorrer, como acontece na peça O hóspede do quarto 2
(1937). Vale ressaltar que, nas duas primeiras peças em análise Quebranto (1908) e O
simpático Jeremias (1918)o índice de não preenchimento de vocês é alto, apresentando
um comportamento semelhante a tu, pronome ainda bastante utilizado nesse período. No
entanto, não é possível justificar os altos índices de não preenchimento apresentados na
peça Clube do leque (1995) através de tal fato.
De um modo geral, os resultados obtidos entre os sujeitos pronominais preenchidos
ou não, no singular e no plural, referendam as considerações de Duarte (1993) de que o PB
do final do século XIX e início do século XX seguiria o padrão pro-drop e de que, por volta
da década de 30, teria deixado de ser uma língua predominantemente de sujeito nulo e se
transformado em uma língua que favorece o aparecimento de sujeitos preenchidos.
Segundo a autora, o enfraquecimento do paradigma flexional/ pronominal do PB teria
determinado a perda de sua uniformidade funcional, ou seja, tornou-se impossível
identificar a perfeita correspondência entre os valores semânticos expressos pelos
pronomes e as desinências verbais que os acompanham.
67
Para o enfraquecimento do paradigma flexional/ pronominal, teria contribuído
decisivamente a inserção da forma você/ vocês em substituição aos pronomes tu e vós
este último tomado como traço arcaizante no século XVIII (Cf. Faraco, 1996) bem
como consolidação da forma a gente como estratégia concorrente a nós na designação da
pessoa do plural (Lopes, 2003). Por conseqüência desses acréscimos no quadro
pronominal, o PB teria experimentado, em contrapartida, a redução do paradigma das
desinências verbais em uso, que passaria, então, a ser composto no singular e no plural
somente pela 1ª e 3ª pessoas, visto que a forma você(s) e a gente, apesar de se associarem
às noções de com quem se fala e quem fala, respectivamente, combinam-se a verbos de
pessoa, preservando, assim, uma característica de sua origem nominal. Em outras palavras,
é possível perceber que as formas você(s) e a gente ao conservarem a marca verbal de
pessoa de seu emprego original como nome, mesmo após se inserirem no paradigma
pronominal se relacionando a pessoas do discurso distintas da terceira, tornaram-se
responsáveis por indicar em seu interior a semântica da pessoa, pois a correspondência
entre pessoa gramatical e semântica se perdeu nas formas verbais. É interessante salientar
ainda que Lopes (1999 apud Rumeu, 2004), ao investigar a trajetória de a gente, afirma
que tal fato se trata de uma mudança lingüística encaixada, pois essas formas perderam
sua semântica inicial de nome devido a transformações de ordem histórico-social, mas
mantiveram a marca formal de sua origem:
uma emergência gradativa de formas nominais de tratamento que
passam a substituir o tratamento cortês universal vós, num primeiro
momento pela ascensão da nobreza e mais tarde da burguesia que
exigia um tratamento diferenciado. Essa propagação, que começa de
cima para baixo, se dissemina pela comunidade como um todo, e as
formas perdem sua concepção semântica inicial, gramaticalizando-se
algumas de forma mais acelerada que outras, como é Vossa Mercê
> vosmecê > você. Pelo fato de que as formas nominais levarem o
verbo para a terceira pessoa do singular, houve a redução do nosso
paradigma flexional, que perdeu, como apontou Duarte (1995), 'a
propriedade de licenciar e identificar sujeitos nulos'.
(Lopes, 1999 apud Rumeu, 2004:130)
68
Sabendo que o paradigma pronominal se simplificou ao longo do século XX, deve-se
realizar uma análise pormenorizada da natureza das formas verbais, a fim de se
compreender a manutenção da 2ª pessoa do singular (tu).
A DISTRIBUIÇÃO DAS FORMAS VERBAIS NO SINGULAR
Peças
em
análise
VOCÊ TU TOTAL
Imperativos Não
imperativos
Imperativos Não
imperativos
Imperativos Não
imperativos
TOTAL
Quebran
to
(1908)
9/13
(69%)
4/13
(315)
46/165
(28%)
119/165
(72%)
55/178
(31%)
123/178
(69%)
178/1545
(11,5%)
O simp...
Jeremias
(1918)
82/127
(65%)
45/127
(35%)
109/166
(66%)
57/166
(34%)
191/293
(65%)
102/293
(35%)
293/1545
(19%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
25/64
(39%)
39/64
(61%)
00/00
-
00/00
-
25/64
(39%)
39/64
(61%)
64/1545
(04%)
Dona
Xepa
(1952)
33/69
(48%)
36/69
(52%)
39/39
(100%)
00/39
(00%)
72/108
(67%)
36/108
(33%)
108/1545
(07%)
Tôda...
fera
(1962)
64/131
(49%)
67/131
(51%)
42/47
(89%)
05/47
(11%)
106/178
(60%)
72/178
(40%)
178/1545
(11,5%)
C.de
bens
(1980)
214/282
(76%)
68/282
(24%)
87/87
(100%)
00/87
(00%)
301/369
(82%)
68/369
(18%)
369/1545
(24%)
Intensa
Magia
(1995)
52/96
(54%)
44/96
(46%)
35/35
(100%)
00/00
(00%)
87/131
(66%)
44/131
(34%)
131/1545
(08%)
C. do
leque
(1995)
78/119
(66%)
41/119
(34%)
105/105
(100%)
00/105
(00%)
183/224
(82%)
41/224
(18%)
224/1545
(15%)
Total
557/901
(62%)
344/901
(38%)
463/644
(72%)
181/644
(28%)
1020/1545
(66%)
525/1545
(34%)
1545/1545
(100%)
Tabela 5: A distribuição das formas verbais no singular.
Nota-se que, ao contrário do que ocorre com a peça Quebranto (1908), em que o uso
do imperativo corresponde a apenas 46 dos 165 dados de formas verbais relacionadas ao
pronome tu, ou seja, 28% das ocorrências, na peça O simpático Jeremias (1918), o
emprego de formas imperativas compreende 66% das formas verbais relacionadas à
pessoa, uma vez que esse modo verbal é utilizado em 109 das 166 ocorrências. A
69
persistência das formas verbais relacionadas ao pronome tu através do modo imperativo é
ainda mais relevante quando se observa este emprego nas peças compreendidas na
segunda metade do século, pois, em quatro delas, o imperativo é categórico e, na peça de
1962, relaciona-se a 89% das formas verbais de pessoa. Sendo assim, é possível afirmar
que a manutenção das formas verbais de segunda pessoa do singular (relacionadas ao
pronome tu) se deve de modo determinante à conservação dessa pessoa no imperativo.
Com relação a tal fato, Paredes Silva, Santos & Ribeiro (2000 apud Lucca, 2005)
esclarecem que a assimetria na relação entre as formas pronominais e verbais
desencadeada pela inserção de você no quadro pronominal do PB não atingiu as formas
imperativas, uma vez que a 2ª pessoa conseguiu se manter. Teria contribuído o fato de que
a forma imperativa estaria mais associada ao uso do indicativo e do subjuntivo do que à
combinação com tu ou você e de que a escolha dessas formas, segundo os estudos de
Scherre (2000; 2002; 2003 apud Lucca, 2005), seria condicionada por fatores como registro
(oral ou escrito) e região geográfica do falante.
70
4.1.3. 0 comportamento das estratégias nominais no corpus
A fim de determinar as estratégias de referência ao(s) interlocutor(es) presentes
nas peças em análise, mostra-se ser de fundamental importância uma descrição das formas
nominais de tratamento presentes no corpus em observação. Inicialmente, é importante
sublinhar novamente que o uso de prenomes
11
, na função apelativa de vocativo, foi
descartado da análise. No entanto, o emprego dessas formas como estratégia de referência
ao interlocutor em outras funções sintáticas, como ocorre no Português europeu
12
, foi
considerado como uma das possibilidades do emissor se dirigir ao receptor; no entanto,
nenhum dado foi encontrado.
Para a distribuição das estratégias nominais, tomou-se, inicialmente, a
categorização utilizada por Pedroviejo Esteruelas (2006), que divide essas formas em
títulos genéricos (senhor, senhora), designações de parentesco (papai, mamãe, vovó),
designações de relações diversas (o amigo, a patroa) e metáforas
13
(minha vida, meu
anjo). Adicionou-se, ainda, à análise, designações genéricas (homem, mulher),
designações de título, patente ou profissão (doutor, coronel), expressões estrangeiras
(mr., mademoseille) e associou-se às metáforas expressões de caráter pejorativo.
(44) ClaraMas então o senhor quer desmanchar o casamento? (Quebranto
(1908), p.14)
(45) Manfredo — “Madame deve ter uma grande sensibilidade artística.”
(Dona Xepa (1952), p.47)
11 Nome que antecede o da família.
12 Machado (2003) identifica o uso de prenomes como uma estratégia de referência ao interlocutor típica do
Português europeu como ocorre no seguinte exemplo, extraído da peça Zilda (1921): Manuel A Zilda dá-me
em troca a sua deliciosa companhia...”, em que o interlocutor de Manuel é a própria Zilda.
13 O autor classifica essas formas como: título genérico, término de parentesco, término de diversa relación,
término metafóricos, incluindo ainda interjeições apelativas (interjecciones apelativos,) que exemplifica com
as formas ¡eh!, ¡pss!, mira, etc.
71
(46) Josino“E vovó entenderá o chim e o patagão, o homem do Caucaso e
o negro da Senegambia e conversá com o cingalês ou com o ungaro como
conversa comigo e com seus botões.” (Quebranto (1908), p.7)
(47) Dóra — “Mamãe ameaça-me?” (Quebranto (1908), p.10)
(48) Bernardo — “Ora essa! Sua amizade vale mais. Pois, como ia lhe dizendo,
depois de muito matutar resolvi entregar-lhe a jazida pelos cem mil dólares
que o amigo me ofereceu por ela.” (O simpático Jeremias (1918), p.51)
(49) Josino — “Imagine o coronel a rainha de Sabá.” (Quebranto (1908), p.14)
(50) Cristóvão — “Fique a patroa sabendo que enquanto aqui estiverem
hospedados os americanos ninguém quer ser criado desta pensão.” (O
simpático Jeremias (1918), p.28)
(51) Azia — Cala a boca, mulher! (Clube do leque (1995), p.51)
(52) Jeremias O doutor gosta da filha do americano e ela se mostra
esquiva.” (O simpático Jeremias (1918), p.44)
(53) Madalena“Aí fora estão três cavalos para que a miss os examine.”
(O simpático Jeremias (1918), p.30)
72
Na análise das estratégias nominais, encontrou-se um total de 1550 dados — 1528 no
singular e 22 no plural. No singular, observa-se o uso de 590 formas nominais exercendo a
função de sujeito, 12 a de complemento verbal não preposicionado, 58 a de complemento/
adjunto verbal ou nominal preposicionado e 868 a de vocativo.
Na função de sujeito, a distribuição das formas deu-se do seguinte modo: na peça
Quebranto (1908), encontrou-se um total de 85 formas, sendo 73 de o senhor/ a senhora, 7
indicando designação de parentesco (mamãe, vovó, papai) e 5 de título, patente ou
profissão (coronel). em O simpático Jeremias (1918), das 81 formas nominais na função
de sujeito, 69 são de o senhor/ a senhora, 5 formas estrangeiras (“Doctor”/ “Miss”/
“Mr.”), 5 designações de relação diversa (patroa e amigo) e 2 dados de doutor. Na peça de
1937, encontrou-se um total de 156 dados, em que 154 são das formas o senhor/ a senhora
e 2 de doutor. na obra Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962), observam-se
63 dados das formas o senhor/ a senhora e apenas 1 dado de designação de relação diversa
(amigo). Por fim, nas peças Comunhão de bens (1980), Intensa magia (1995) e Clube do
leque (1995), encontram-se apenas dados de o senhor/ a senhora 1, 54 e 18,
respectivamente.
Na função de complemento verbal não preposicionado, encontraram-se, na peça
Quebranto (1908), 1 dado de Vossa Excelência e 2 dados de a senhora. na peça O
simpático Jeremias (1918), foi identificado apenas 1 dado de senhor doutor nesta função.
Na obra O hóspede do Quarto 2, verificam-se 2 dados de papai. Por fim, nas obras Dona
Xepa (1952), Intensa magia (1995) e Clube do leque (1995), 2, 3 e 1 dado,
respectivamente, de o senhor/ a senhora nesta função.
Exercendo a função de complemento/ adjunto verbal/nominal preposicionado,
identificaram-se 58 formas de o senhor/ a senhora precedidas de preposição distribuídas
do seguinte modo no corpus: 13 dados em Quebranto (1908), 6 em O simpático Jeremias
(1918), 14 em O hóspede do quarto 2 (1937), 7 em Dona Xepa (1952), 4 em Tôda
73
donzela tem um pai que é uma fera (1962), 12 em Intensa magia (1995) e 2 em Clube do
leque (1995).
No vocativo, a distribuição das estratégias deu-se do seguinte modo:
A DISTRIBUIÇÃO DAS ESTRATÉGIAS NOMINAIS NA FUNÇÃO APELATIVA DE VOCATIVO
Peças
em
análise
títulos
genéricos
(senhor,
seu
senhora,
dona,
madame)
designa-
ções
genéricas
(homem,
mulher,
rapaz)
designa-
ções de
parentesco
(papai,
mamãe,
vovó)
designa-
ções de
relações
diversas (o
amigo, a
patroa)
título,
patente ou
profissão
(doutor,
coronel)
expres-
sões
estrangei-
ras (mr.,
miss)
metáforas
(minha
vida, meu
anjo)/
xingamen-
tos
(seu
libertino)
TOTAL
Quebran
to
(1908)
52 10 50 3 29 0 23 167
O simp..
Jeremias
(1918)
70 7 6 16 15 59 28 200
O hósp..
Quarto 2
(1937)
10 1 9 0 16 0 0 36
Dona
Xepa
(1952)
50 1 93 0 10 13 17 184
Tôda...
fera
(1962)
5 8 9 0 61 0 23 106
C.de
bens
(1980)
0 0 0 0 0 0 16 16
Intensa
Magia
(1995)
14 5 35 0 0 0 10 64
C. do
leque
(1995)
27 19 6 1 25 0 16 94
TOTAL
228 51 208 20 156 72 133 868
Tabela 6: A distribuição das estratégias nominais na função apelativa de vocativo.
Ressalta-se, no vocativo, uma acentuada queda na diversidade das estratégias
nominais a partir da obra O hóspede do quarto 2 (1937)— fato que pode indicar uma
simplificação nas relações estabelecidas ao longo do século.
No plural, identificaram-se 22 dados, sendo 2 na função de sujeito, 1 na de
complemento/ adjunto verbal ou nominal preposicionado e 19 na de vocativo. Os dados de
74
formas nominais no plural na função de sujeito bem como a estratégia nominal no plural na
função de complemento/ adjunto verbal ou nominal preposicionado encontram-se na peça
Quebranto (1908) e correspondem à forma os senhores. os dados de vocativo
apresentam-se do seguinte modo: na peça Quebranto (1908), 1 dado de designação de
parentesco (meus filhos); na peça Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962),
observam-se 2 dados de designação diversa (meus amigos); por fim, na peça Clube do
leque (1995), verificam-se 2 dados de títulos genéricos (minhas senhoras, meus senhores) e
11 dados de designação diversa (meus amigos).
75
4.2 . Aplicação das teorias sobre cortesia aos dados em análise
A fim de entender a influência dos fatores sociais na escolha das estratégias de
referência ao interlocutor, apresentam-se as palavras de Faraco (1996):
(A) dinâmica inter-relação entre fatores sociais e verbais pode
ser particularmente visível no sistema de tratamento ao interlocutor,
que esse sistema representa talvez de forma mais direta alguns dos
fundamentos axiológicos da organização do status social.
(Faraco, 1996:57)
Para identificar as relações sociais estabelecidas entre os interlocutores, tomou-se
a teoria do Poder e da Solidariedade, proposta por Brown e Gilman (1960), adotando-se,
dessa maneira, a tipologia discutida por Lopes (2001): (a) relações simétricas, (b) relações
assimétricas descendentes (de superior para inferior) e (c) relações assimétricas
ascendentes (de inferior para superior). Sabe-se que as relações simétricas se apresentam
inseridas no domínio da solidariedade, no eixo horizontal, enquanto as relações
assimétricas se encontram no âmbito do poder, no eixo vertical.
Nessa parte da análise, tomam-se como parâmetro os dados que apresentam
referência à segunda pessoa do discurso no singular na função de sujeito. Dessa maneira,
analisaram-se os sujeitos pronominais de 2ª e pessoas preenchidos, ou não, assim como
os sujeitos nominais plenos ou nulos.
Cabe ressaltar ainda que as condições de coleta dos dados nas peças nem sempre
são as mais adequadas para uma análise como esta, uma vez que não é possível afirmar
que todas as obras se constituem dos mesmos tipos de relação simétrica, assimétrica
descendente ou assimétrica ascendenteem algumas relações simétricas, por exemplo,
em que predominam situações estritamente familiares, observa-se o favorecimento amplo
ao domínio da solidariedade, ao passo que, em outras relações, em que se fazem presentes
76
situações mais institucionalizadas, as relações menos solidárias são mais perceptíveis.
Inicialmente, serão analisadas as relações simétricas que, nesse estudo, são
compreendidas como o trato entre duas ou mais pessoas em que aparentemente uma não
exerce poder sobre a outra. Esse tipo de relação é encontrado, em geral, entre marido e
mulher, noivos, irmãos, amigos, conhecidos, pessoas com idades semelhantes que moram
no mesmo lugar, entre outros. Nesse tipo de relação, espera-se que se predomine o uso de
estratégias pronominais tu e você.
A DISTRIBUIÇÃO DAS FORMAS NAS RELAÇÕES SIMÉTRICAS
(ENTRE IGUAIS)
Peças
em
análise
você tu vós
formas
nominais
total
Quebran
to
(1908)
13/330
(04%)
125/330
(38%)
0/330
(00%)
192/330
(58%)
330/3302
(10%)
O simp...
Jeremias
(1918)
90/386
(23%)
103/386
(27%)
10/386
(03%)
183/386
(47%)
386/3302
(12%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
163/395
(41%)
0/395
(00%)
0/395
(00%)
232/395
(59%)
395/3302
(12%)
Dona
Xepa
(1952)
137/319
(43%)
20/319
(06%)
0/319
(00%)
162/319
(51%)
319/3302
(10%)
Tôda...
fera
(1962)
372/503
(74%)
36/503
(07%)
0/503
(00%)
95/503
(19%)
503/3302
(15%)
C.de
bens
(1980)
597/967
(62%)
87/967
(09%)
0/967
(00%)
283/967
(29%)
967/3302
(29%)
Intensa
Magia
(1995)
82/121
(68%)
12/121
(10%)
0/121
(00%)
27/121
(22%)
121/3302
(04%)
C. do
leque
(1995)
95/281
(34%)
92/281
(33%)
00/281
(00%)
94/281
(33%)
281/3302
(08%)
Total
1549/3302
(47%)
475/3302
(14%)
10/3302
(00%)
1268/3302
(39%)
3302/3302
(100%)
Tabela 7: A distribuição das formas relações simétricas (entre iguais).
77
A análise da distribuição das formas nesse tipo de relação evidencia uma sensível
alteração na utilização dos pronomes tu e você e formas verbais relacionadas. Tomando os
resultados obtidos por Lopes & Duarte (2003) e Paredes Silva (1999), que constatam a
predominância no uso de tu nas relações simétricas, respectivamente, em peças teatrais
dos séculos XVIII e XIX e no mesmo tipo de amostra da segunda metade do século XIX e
primeira do XX, verifica-se que o comportamento dos sujeitos pronominais, neste tipo de
relação, nas peças Quebranto (1908) e O simpático Jeremias (1918), apresenta-se
semelhante ao dos séculos anteriores, ao passo que, a partir da peça O hóspede do quarto
2 (1937), uma mudança no emprego dessas formas, uma vez que a estratégia inovadora
você passa a apresentar maior produtividade que as formas mais antigas de pessoa tu
e formas verbais relacionadas. Sabendo-se, ainda, que as formas nominais apresentam, nas
quatro primeiras peças, que correspondem basicamente à primeira metade do século,
indíces em torno dos 50% e, nas quatro últimas peças, que se encontram na segunda
metade deste século, uma freqüência média de 25%, e, desse modo, são razoavelmente
constantes, é possível constatar que o aumento no uso do pronome você se dá basicamente
pelo seu avanço sobre o domínio que, nos séculos XVIII e XIX e no primeiro quarto do
século XX, pertencia à forma pronominal tu.
Comportamento semelhante ao das relações simétricas é esperado nas relações
assimétricas descendentes. Como relações assimétricas descentes, entende-se o trato
entre um emissor e um receptor em que aquele detém poder sobre este. Tal tipo de
relação é perceptível na fala de pai/ mãe para filho(a), de avô/ a para neto(a), de
sogro(a) para genro/ nora, de chefe para funcionário(a), de cliente para empregado(a),
entre conhecidos ou desconhecidos, em que o emissor é mais velho que o receptor.
78
A DISTRIBUIÇÃO DAS FORMAS NAS RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS
DESCENDENTES (DE SUPERIOR PARA INFERIOR)
Peças
em
análise
você tu
formas
nominais
total
Quebran
to
(1908)
4/77
(05%)
69/77
(90%)
4/77
(05%)
77/1107
(07%)
O simp...
Jeremias
(1918)
140/310
(45%)
73/310
(24%)
97/310
(31%)
310/1107
(28%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
41/61
(67%)
0/61
(00%)
20/61
(33%)
61/1107
(05%)
Dona
Xepa
(1952)
58/117
(50%)
19/117
(16%)
40/117
(34%)
117/1107
(11%)
Tôda...
fera
(1962)
83/138
(60%)
10/138
(07%)
45/138
(33%)
138/1107
(12%)
C.de
bens
(1980)
-
-
-
-
-
-
-
-
Intensa
Magia
(1995)
165/241
(69%)
15/241
(06%)
61/241
(25%)
241/1107
(22%)
C. do
leque
(1995)
67/163
(41%)
41/163
(25%)
55/163
(34%)
163/1107
(15%)
Total
558/1107
(50%)
227/1107
(21%)
322/1107
(29%)
1107/1107
(100%)
Tabela 8: A distribuição das formas relações assimétricas descendentes (de superior
para inferior).
Da mesma maneira que ocorreu nas relações simétricas, Lopes & Duarte (2003)
observam, nas relações assimétricas descentes, o predomínio de tu 73% das estratégias
utilizadasnas peças setecentistas e oitocentistas. Desse modo, neste domínio, como se
supunha, se encontra, na amostra em análise, uma tendência semelhante à encontrada nas
relações simétricas, pois é possível verificar que, em um primeiro momento, na peça
Quebranto (1908), os resultados são semelhantes aos obtidos nos séculos anteriores,
posteriormente, a partir da peça O simpático Jeremias (1918), o pronome tu e formas
verbais correspondentes experienciam uma acentuada queda em sua freqüência de uso ao
79
longo do século, enquanto você e formas verbais correspondentes experimentam uma
sensível ascensão em seu emprego. A utilização de estratégias nominais mantém índices
relativamente constantes entre a peça de 1918 e a obras de 1995 — sempre compreendidos
entre 25 e 35%.
Por fim, analisa-se o comportamento das formas nas relações assimétricas
ascendentes (de superior para inferior). As relações assimétricas ascendentes constituem-
se daquelas em que se observa trato entre um emissor e um receptor, este detentor de
poder sobre aquele. Tal tipo de relação é perceptível na fala de filho(s) para pai/ mãe, de
neto(a) para avô/ avó, de genro/ nora para sogro(a), de funcionário para chefe, entre
conhecidos ou desconhecidos (o emissor é mais jovem que o receptor), de empregado para
cliente.
80
A DISTRIBUIÇÃO DAS FORMAS NAS RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS
ASCENDENTES (DE INFERIOR PARA SUPERIOR)
Peças
em
análise
você tu vós
formas
nominais
total
Quebran
to
(1908)
0/30
(00%)
0/30
(00%)
0/30
(00%)
30/30
(100%)
30/465
(06%)
O simp...
Jeremias
(1918)
7/118
(06%)
3/118
(2,5%)
3/118
(2,5%)
105/118
(89%)
118/465
(25%)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
2/31
(07%)
0/31
(00%)
0/31
(00%)
29/31
(93%)
31/465
(07%)
Dona
Xepa
(1952)
5/86
(06%)
1/86
(01%)
0/86
(00%)
80/86
(93%)
86/465
(19%)
Tôda...
fera
(1962)
3/81
(04%)
4/81
(05%)
0/81
(00%)
74/81
(91%)
81/465
(17%)
C.de
bens
(1980)
-
-
-
-
-
-
-
-
-
-
Intensa
Magia
(1995)
26/112
(23%)
8/112
(07%)
0/112
(00%)
78/112
(70%)
112/465
(24%)
C. do
leque
(1995)
2/7
(29%)
1/7
(14%)
0/7
(00%)
4/7
(57%)
7/465
(02%)
Total
45/465
(10%)
17/465
(03%)
3/465
(01%)
400/465
(86%)
465/465
(100%)
Tabela 9: A distribuição das formas relações assimétricas ascendentes (de inferior
para superior).
Neste domínio, nota-se a predominância, em todas as peças em análise, de formas
nominais de tratamento — fato facilmente justificável, uma vez que esse tipo de estratégia
é típico de relações em que é o receptor que detém o poder em sua relação com o
emissor. No entanto, vale ressaltar que o declínio no uso dessas formas, neste tipo de
relação, nas duas últimas peças em análise Intensa magia (1995) e Clube do leque
(1995), pode indicar um caráter menos formal dessas relações no final do século.
Em linhas gerais, observa-se que as formas nominais apresentam, por um lado,
índices constantes em torno dos 30% nas relações simétricas e assimétricas
81
descendentes e predominam, por outro, nas relações assimétricas ascendentes. Já entre as
estratégias pronominais, é possível observar que você ocupa o lugar de tu a partir da peça
O simpático Jeremias (1918) no domínio das relações simétricas e assimétricas
descendentes.
82
4.3. O comportamento da forma você(s) à luz de teorias sobre o fenômeno da
gramaticalização.
A fim de entender as especificidades que distinguem o item você(s) dos demais
pronomes pessoais do caso reto (exceto a gente), no PB, é necessário investigar a
aplicabilidade do processo de gramaticalização a essa forma. Para tanto, o item será
observado sob a perspectiva dos teóricos da gramaticalização Lehmann (1985), Hopper
(1991) e Heine (2003), anteriormente apresentados e associados. Acredita-se que a
amostra em análise possa contribuir sensivelmente para a explicitação do processo de
gramaticalização dessa forma, sob a perspectiva diacrônica.
Na observação do comportamento das formas de referência ao interlocutor, nota-se
que a forma emergente de tratamento à segunda pessoa do discursovocê(s) convive
ou conviveu, em um período de transição, com formas mais antigastu / vós. No caso das
formas no singular, tal co-ocorrência pode ser encontrada na amostra em análise,
conforme é possível observar nos exemplos (54 e 55); já, no caso das estratégias no plural,
é de fundamental importância novamente assinalar que o pronome vós perdeu sua
posição (durante o século XVI) até se tornar completamente arcaico no século XVIII”
(Faraco, 1999:66). Tal convivência, ainda que não permanente em sincronias mais
próximas da contemporaneidade, no caso das formas plurais vocês e vós, evidencia o
princípio da estratificação (layering), proposto por Hopper (1991). Esse princípio postula
que, em um amplo domínio funcional, novas camadas da língua emergem continuamente
sem que, no entanto, as camadas mais antigas sejam necessariamente descartadas quando
essas novas camadas emergem, podendo permanecer e, até mesmo, interagir com estas.
83
(54) Porfírio
14
Está sim. Escuta. Se você fizer isso que eu pedi, eu prometo
que faço o Joãozinho casar com você. (Tôda donzela tem um pai que é uma
fera (1962), p.41)
(55) Porfírio(olhando Loló) Querida! Tu voltaste! (Tôda donzela tem um
pai que é uma fera (1962), p.45)
A coexistência entre o velho e o novo na língua também pode ser observada quando
a forma que impulsionou o processo de gramaticalização conserva seu emprego original ao
lado de seu novo uso mais gramatical. Tal fato é previsto no princípio da divergência,
proposto por Hopper (1991). No caso da gramaticalização de você(s), nota-se que, apesar
da forma original Vossa Mercê ter se desgastado foneticamente e alterado seu valor
semântico, transformando-se no pronome você(s), é possível constatar a coexistência das
duas formas ainda no século XIX, como mostram os trabalhos de Biderman (1972) e Rumeu
(2004)
15
.
Nesse momento, é necessário assinalar que, para que haja mudança, é fundamental
que essa forma não só se insira no sistema lingüístico com seu novo emprego como também
experiencie um sensível aumento em sua freqüência de uso ao longo de sua trajetória
diacrônica. Tal fato é sugerido por Bybee (2003), como visto anteriormente, que se
preocupa em esclarecer que a freqüência é primordial em um processo de
gramaticalização, pois é ela que proporciona uma mudança lingüística.
14 Dirige-se à personagem Loló.
15 Apesar de não ser possível encontrar atualmente a forma Vossa Mercê, observa-se o emprego do substantivo mercê, que
mantém sua integridade fonológica e, até mesmo, semântica. Tal forma pode ser identificada no exemplo a seguir, extraído
da letra da música “Acelerou”, composta por Djavan, em 1999; desse modo, contemporânea às peças teatrais em análise.
“Muito mais perdido, quase um cara vencido
À mercê de amigo ou coisa que o valha
você me enlouquece, você bem que merece
'inda me aparece de minissaia”
(Acelerou, Djavan)
84
No caso do processo de gramaticalização em questão, o aumento da freqüência de
uso de você parece ser bastante perceptível, uma vez que se acredita que a trajetória
dessa forma, no Português do Rio de Janeiro do século XX, seja composta de três
momentos distintosa variação entre tu e você, no início do século, a consolidação de
você, entre as décadas de 30 e 70, como principal estratégia de referência à segunda
pessoa no singular, e o ressurgimento do pronome tu, no final do século, acompanhado
pela flexão verbal correspondente à pessoa. A fim de confirmar a validade da hipótese
apresentada anteriormente, a seguir, contrapõe-se exclusivamente o uso das formas
pronominais plenas na função de sujeito no singular, na amostra em análise.
Gráfico 2: A distribuição das estratégias pronominais plenas na função de sujeito no corpus.
Ao mapear o emprego das estratégias pronominais plenas na função de sujeito no
corpus, observa-se um sensível aumento no uso da forma gramaticalizada você ao longo do
Quebranto
(1908)
O simp..
Jeremias
(1918)
O hósp...
Quarto 2
(1937)
Dona Xepa
(1952)
Tôda...
fera
(1962)
C.de bens
(1980)
Intensa
Magia
(1995)
C. do
leque
(1995)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
88
11
0
1 1
0 0
40
12
89
100
99 99
100 100
60
A distribuição das estratégias pronominais plenas na função de sujeito no "corpus"
Tu
Você
85
século, havendo um declínio somente na última peça em análiseClube do leque (1995)
em que se constata o ressurgimento do pronome tu. Nota-se, então, uma mudança
lingüística em processo, visto que, entre as peças Quebranto (1908) e O hóspede do quarto
2 (1937), uma incrementação significativa no uso de você; entre as obras de 1937
e 1980, ocorre o alçamento dessa forma gramaticalizada ao status de principal e, em
alguns casos, única forma pronominal de referência à pessoa na função de sujeito; por
fim, nas peças de 1995, dois comportamentos distintos são verificadoso uso categórico
de você, em Intensa Magia, e o ressurgimento de tu, em Clube do leque. Nesse último
caso, vê-se também o papel de você(s) para a reorganização do sistema lingüístico, uma
vez que, com sua inserção no quadro pronominal, como explicitado anteriormente,
ocorre a neutralização das desinências verbais de 2ª e 3ª pessoas, em favor da última.
A mudança no comportamento dos pronomes de referência a um interlocutor fica
ainda mais evidente quando se tomam as considerações de Lopes & Duarte (2003), que
afirmam que o uso de tu era predominante no PB do século XIX e que, na segunda metade
deste, o emprego da forma inovadora você correspondia a menos de 20% das estratégias
em análise. Sendo assim, observa-se que, na primeira peça, Quebranto (1908), essa
tendência apontada pelas autoras ainda é seguida, ao passo que, nas demais obras, mesmo
em Clube do leque (1995), a forma você predomina, chegando a se apresentar, por vezes,
categórica.
Além do aumento da freqüência de uso, fato que, na amostra em análise, ocorre de
maneira marcante com a forma você, Heine (2003) defende que, durante o processo de
gramaticalização, deve haver também um sensível aumento da freqüência dos tipos de
contexto em que a forma é utilizada. Tal alargamento nas possibilidades de uso da forma
gramaticalizada é descrito por este autor no mecanismo da extensão. Esse mecanismo, em
linhas gerais, conforme visto, ocorre quando o item em vias de gramaticalização pode
ser utilizado em novos contextos em que não podia ser empregado anteriormente. Sabe-se
86
que, no percurso evolutivo vivenciado pela forma você progressivamente, os contextos
pragmáticos que requeriam o emprego dessa forma se diversificaram e,
conseqüentemente, se expandiram e que esta transformou parte de sua semântica inicial.
O uso, que em sua origem era exclusivamente assimétrico ascendente (de inferior para
superior) de um súdito para o rei, de um plebeu para um nobre, se expandiu
paulatinamente até atingir contextos de simetria e de assimetria descendente (de superior
para inferior)de pai para filho, de patrão para empregado, entre outros como pode
ser verificado no corpus em estudo, em que o emprego de você é constatado em todas as
relações sociais.
Gráfico 3: A distribuição de você em função das relações estabelecidas.
Tomando os resultados obtidos por Rumeu (2004) para o uso de você nessas mesmas
relações, que observa esse emprego de maneira preponderante nas relações assimétricas
Quebra
nto
(1908)
O
simp..
Jeremia
O
hósp...
Quarto
Dona
Xepa
(1952)
Tôda...
fera
(1962)
C.de
bens
(1980)
Intensa
Magia
(1995)
C. do
leque
(1995)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
76
38
79
69
81
100
30
58
24
59
20
29
18
0
60
41
0
3
1
2
1
0
10
1
A distribuição dos dados de "você" em função das relações estabelecidas
Simétrica
Assimétrica
descendente
Assimétrica
ascendente
87
descentes94%, é possível observar um alargamento de contextos de uso desta forma,
uma vez que na peça de 1918 pode ser encontrada inclusive em relações simétricas
ascendentes.
Outra característica fundamental da gramaticalização é a obrigatoriedade de
mudança categorial do item submetido a esse processo. Heine (2003), ao definir
gramaticalização, afirma que esse processo consiste no recrutamento de expressões
lingüísticas lexicais ou menos gramaticais que, ao longo da história, são pressionadas a
servir em funções mais gramaticais. Desse modo, o autor determina que a forma submetida
ao processo de gramaticalização acaba por sofrer mudança categorial. No entanto, nesse
processo de transformação, vestígios da história lexical desse item podem ser observados
em seu novo emprego mais gramatical. Tal fato é previsto por Hopper (1991) no princípio
da persistência.
Para uma investigação da gramaticalização de você(s), parece ser de suma
importância a observação da adequação da forma em estudo às características de suas
categorias origemNome e destinoPronome. Nesse caso, é possível perceber que o
emprego dessa forma como pronome apresenta algumas especificidades que podem ser
explicadas por sua natureza nominal. Nos termos de Lopes & Duarte (2002):
A pronominalização de Vossa Mercê > Você acarretou perdas
e ganhos em termos de suas propriedades formais e semânticas por
conta da mudança categorial de nome para pronome. Nem todas as
propriedades formais nominais foram perdidas, assim como não foram
assumidas todas as propriedades intrínsecas aos pronomes pessoais.
(LOPES& DUARTE, 2002: 62-63)
Apesar de Hopper (1991) citar, no princípio da persistência, apenas a conservação
de traços semânticos, na gramaticalização de você(s), a “persistência” mais evidente é a
conservação da marca verbal de pessoa (característica do item original), mesmo com
essa forma se referindo à segunda pessoa do discurso a quem se fala. Segundo Lopes &
88
Machado (2005:37), “persistiu a especificação original de pessoa, ou seja eu] (Lopes,
2003; Rumeu, 2004) e a concordância verbal continuou sendo a mesma (você faz/ canta/
trabalha), no entanto, a interpretação semântico-discursiva passou a ser de pessoa
[-EU]”. Tal fato pode ser observado no exemplo (56):
(56) Porfírio Vocês por acaso é que têm? O que eu acho gozado é o tom
que você fala comigo. (Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962),
p.49)
Outra persistência formal é a capacidade que o item você apresenta de se flexionar
em número, pois, ao se inserir em seu novo paradigma, essa forma passa a exercer a
função de pronome de 2ª pessoa; no entanto, o que se observa é que você, ao contrário de
eu e tu, se flexiona em número vocês, fato incomum para pronomes de e pessoas,
uma vez que nós e vós não pessoas pluralizadas, mas amplificadas nós não é resultado
de eu + eu, nem vós é o produto de tu + tu.
O fato de termos formas distintas para as chamadas primeira
e segunda pessoas do plural mostra que não nelas uma simples
pluralização, enquanto na terceira isso ocorre. A marca de plural e
de feminino assinalam a ausência de pessoalidade (Benveniste, 1966,
p.233). Embora haja um vós pluralizado, nós e vós são antes pessoas
amplificadas.
(FIORIN, 1996:60)
Dessa maneira, pode-se dizer que “legítimos” pronomes pessoais (segundo
Benveniste (1988), os de e 2ª pessoas), ao contrário dos nomes, não se flexionam em
número. A forma você ao se flexionar em número mostra conservar outra característica
proveniente de sua origem nominal.
89
A última persistência formal que pode ser observada no processo de
gramaticalização de você(s) é o fato dessa forma ainda ser capaz de exercer funções
sintáticas distintas de sujeito, função única dos pronomes pessoais do caso reto, paradigma
ao qual agora faz parte.
Nesse ponto, é importante explicitar que uma análise pouco atenta do processo de
formação da língua portuguesa pode indicar a total supressão do sistema de casos.
Contudo, uma observação mais cuidadosa mostra que, apesar de entre os nomes não haver
mais qualquer tipo de declinação que indique caso, como mostra os exemplos (57), (58),
(59) e (60) com as formas nominais de tratamento o senhor/ a senhora, resquícios do
antigo sistema de casos ainda podem ser observados entre os pronomes pessoais. Desse
modo, pronomes como tu que exercem somente a função de sujeito (caso reto) e
pronomes como te ou ti que exercem a função de objeto (caso acusativo ou dativo),
conforme é possível observar nos exemplos (61), (62) e (63).
(57) Rosália — A senhora passou o meu vestido? (Dona Xepa (1952), p.23)
(58) Xepa Mas o senhor não entendeu nada do que eu disse! Eu chamei o
senhor para vir aqui em casa, enquanto os meus filhos iam à festa. (Dona
Xepa (1952), p.37)
(59) PorfírioEmbora em matéria de amor o sr. seja do tipo reacionário, eu
até que gosto do senhor. (Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962),
p.57)
(60) Dóra Se se tratasse de uma casaca para o senhor ou de um vestido
para a mamãe os meios haviam de aparecer; trata-se, porém da gata
90
borralheira. (Quebranto (1908), p.4)
(61) Porfírio Querida! Tu voltaste. (Tôda donzela tem um pai que é uma
fera (1962), p.57)
(62) Macário (grave) Sim, mas foi a minha barriga que te salvou: se hoje
flutuas no conceito da sociedade deves a esta boia. (Quebranto (1908), p.4)
(63) Elisa (Num desespero) Sofro porque te amo, Jeremias! Noite e dia,
dormindo ou acordada, andando ou parada, penso em ti! Sinto que não
poderei viver mais sem ti! (O simpático Jeremias (1918), p.50)
Desse modo, é possível considerar a mobilidade sintática de formas nominais como
um traço distintivo dos pronomes pessoais, uma vez que estes ao modificarem sua função
sintática alteram sua forma. Em outras palavras, “marcação de caso” entre os
pronomes pessoais e não há “marcação de caso” entre as formas nominais.
Com relação a você(s), nota-se que essa forma, ao longo das diversas sincronias em
estudo localizadas no século XX, ainda se comporta de certa maneira como um nome, uma
vez que se apresenta em diferentes funções, como mostra a gráfico 3, sem, entretanto,
possuir qualquer tipo de resquícios de marcação de caso, conforme indicam os exemplos
(64), (65) e (66).
91
(64) Helô — Modas, modas, modas! Tudo modas! Na minha nova fase, Godô, eu
odeio modas! estou interessada na minha individualidade. Você não
entende isso porque não tem um pingo de vida interior. Você é uma vitrine,
Godô! (Comunhão de bens (1980), p.12)
(65) Xepa — Eu, hoje, quero ver você brilhar. (Dona Xepa (1952), p.33)
(66) AlbertoFim de ano, começo de ano, qual é a diferença? Não que eu
morra de saudades de você, porque seu papo não é o que se pode chamar de
estimulante, mas sua mãe merecia de você uma atenção maior. (Intensa
magia (1995), p.35)
Gráfico 4: A distribuição dos dados de você e suas funções sintáticas.
Quebra
nto
(1908)
O
simp..
Jeremia
O
hósp...
Quarto
Dona
Xepa
(1952)
Tôda...
fera
(1962)
C.de
bens
(1980)
Intensa
Magia
(1995)
C. do
leque
(1995)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
80
89
93
90 90
94
86
92
0
1
0
5
0 0 0
4
20
10
7
5
10
6
14
4
A distribuição dos dados de "você" e suas funções sintáticas
sujeito
compl. verbal não
prep.
compl./ adj. verbal/
nominal prep.
92
A presença ainda que tímida, entre 6 e 20% das ocorrências, da forma você em
funções sintáticas distintas de sujeito indica a manutenção de uma característica de forma
nominal a capacidade de exercer diferentes funções em uma oração sem alterar a
forma.
Entretanto, não se deve desprezar a tendência que esse item apresentou em se
fixar na função de sujeito, pois se sabe, no processo de gramaticalização de você, é
possível observar que a inserção dessa forma no paradigma dos pronomes pessoais do
Português é acompanhada pela sua fixação em uma posição sintática determinada, nesse
caso, de sujeito da oração posição típica das formas que compõem o paradigma dos
pronomes do caso reto. Tal tendência é ainda mais evidente quando se aliam estes
resultados obtidos em peças teatrais do século XX aos números apresentados por Rumeu
(2004) em cartas dos séculos XVIII e XIX.
A DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE VOCÊ E SUAS FUNÇÕES SINTÁTICAS
EM CARTAS DOS SÉCULOS XVIII E XIX –
RUMEU (2004)
Séculos
em análise
sujeito
compl.
verbal não
prep.
compl./
adjunto
verbal/
nom. prep.
total
Século
XVIII
45/81
(56%)
0/81
(00%)
36/81
(44%)
81/99
(82%)
Século
XIX
17/18
(94%)
1/18
(06%)
0/18
(00%)
18/99
(18%)
Total
62/99
(63%)
1/99
(01%)
36/99
(36%)
99/99
(100%)
Tabela 10: A distribuição dos dados de você e suas funções sintáticas
em cartas dos séculos XVIII e XIX – Rumeu (2004).
Rumeu (2004), analisando cartas dos séculos XVIII e XIX, observa que a forma você
apresenta de um século para o outro um sensível aumento em sua freqüência como sujeito
da oração, tendência que se consolida no século XX no século XVIII, a função de sujeito
93
corresponde a 56% dos usos da forma você, no século XX, estes índices se encontram
sempre acima dos 80%. Tal fato manifesta uma mudança na distribuição sintática dessa
forma. Caso se confirme essa tendência ao uso de você na função de sujeito da oração, é
possível constatar o princípio da especialização proposto por Hopper (1991) e o processo
de fixação descrito por Lehmann (1985). Sabendo-se, ainda, que o emprego de formas na
função exclusiva de sujeito é típico dos pronomes pessoais do caso reto, tem-se também
uma evidência do princípio da decategorização.
Segundo Heine (2003), no mecanismo da decategorização, uma forma adquire um
novo significado gramatical, tornando as divergências crescentes entre seus usos originais
e seus empregos gramaticalizados. Nesse mecanismo, uma tendência à perda de
propriedades categoriais características de sua forma original e ao uso em número maior
de contextos. É importante ressaltar que, ao se especializar na função de sujeito, a forma
você tende a não exercer mais a função de pronome oblíquo e de não integrar mais a
locução prepositiva de você indicativa de posse. Dessa maneira, é possível notar que o
quadro pronominal, segundo os gramáticos tradicionais, se comporta do seguinte modo.
A DISTRIBUIÇÃO DOS PRONOMES SUJEITO, OBJETO E POSSESSIVOS,
SEGUNDO AS GRAMÁTICAS TRADICIONAIS
Pessoa Pronome Sujeito Pronome Objeto
Pronome
Possessivo
tu
vós
te, ti, tigo
vos, vós, vosco
teu(s)/ tua(s)
vosso(s)/ vossa(s)
2ª indireta,
forma nominal de
tratamento, etc.
você(s)
16
se, se, sigo
o(s), a(s), lo(s),
la(s)
lhe(s)
seu(s)/ sua(s)
Quadro 6: A distribuição dos pronomes sujeito, objeto e possessivos segundo os
gramáticos Cuesta & Luz (1971), Almeida (1980), Cunha & Cintra (1985), Luft (1985),
Rocha Lima (2003) e Bechara (2004).
Todavia, atualmente é fácil observar o uso de você associado a formas de 2ª pessoa
16 Os gramáticos citados não apresentam você como um pronome de 3ª, mas sim como uma “forma pronominal
de tratamento” que, apesar de semanticamente estar relacionada à segunda pessoa do discurso, se
combina com outros pronomes de 3ª pessoa. A combinação com forma de 2ª não é prevista pela maioria dos
gramáticos e é condenada por Almeida (1980).
94
(te, teu(s)/ tua(s)). Os exemplos a seguir mostram a associação da forma você flexionada
na 3ª pessoa verbal a pronomes objetos e/ ou possessivos de 2ª pessoa.
(65) Porfírio Bem, se você se acha repulsiva e não quer acreditar, isso é
problema seu. Uma coisa te digo. Eu estou falando exatamente o que eu estou
sentindo. (Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962), p.49)
(66) Neguim se vo deixar eu te montar... (Clube do leque (1995),
p.25)
Tal fato é provavelmente motivado pela interpretação dessa forma como pronome
de 2ª pessoa, variando com tu, conforme propõe Menon (1996):
Como a língua é um sistema em constante processo de
(im)perfeição, uma modificação em uma parte do sistema, em busca
de uma “regularização” pode provocar desajustes/ alterações em
outra área do sistema.
Foi o que ocorreu com a regularização do paradigma dos
pronomes sujeitos da segunda pessoa, com o par você/ vocês para
fazer referência à segunda pessoa, substituindo tu/vós
17
. Em
conseqüência, dois outros subsistemas, o dos pronomes objeto e o dos
pronomes possessivos também foram afetados e vêm apresentando
grande variação no português, especialmente o do Brasil.
(MENON, 1996:90)
A variação a que se refere Menon (1996) é a flutuação existente entre os usos de
pronomes objetos e possessivos de e pessoas na referência à segunda pessoa do
discurso. Ao se observar a co-referencialidade da forma você e das estratégias tu, te, ti,
teu(s)- tua(s) e formas verbais relacionadas, têm-se indícios de decategorização, pois,
partindo do pressuposto de que formas nominais devem se combinar exclusivamente com
formas de pessoa, você, ao se relacionar de maneira sistemática e intensa a formas de
pessoa gramatical (tu, te, ti, teu(s)/tua(s) e formas verbais relacionadas), perdeu ao
17 Nota da autora. “Em alguns dialetos do português, se conservou o tu, ou, em outros, esse pronome varia com você.
Conforme Lindley Cintra (1972); Bideman (1972-1973); Faraco (1972); o abandono de vós e a maior expansão de você(s)
no paradigma dos pronomes pessoais ocorreu por volta do fim do século XVIII e início do século XIX.”
95
menos uma característica de sua categoria origem categoria dos Nomes, assumindo uma
característica de sua categoria destino — Pronomes.
Tomando-se os dados da forma gramaticalizada você tanto explícita quanto
implícita na função de sujeito, observou-se a co-referencialidade dessa estratégia. Em
outras palavras, examinou-se a pessoa gramatical dos itens que antecedem essa forma.
Desse modo, dividiram-se os dados de você como sujeito pleno ou nulo em cinco grupos: (i)
você como primeira referência; (ii) você antecedido de estratégias de 2ª pessoa gramatical
no singular (tu, te, ti, teu(s)/tua(s) e formas verbais relacionadas); (iii) você antecedido
de estratégias de pessoa gramatical no singular (você, o/ a, lhe, seu(s)/sua(s) e formas
verbais relacionadas); (iv) você antecedido de estratégias de pessoa gramatical no
plural com referência a apenas um interlocutor (vós, vos, vosso(s)/vossa(s) e formas
verbais relacionadas); e (v) você antecedido de estratégias nominais.
Gráfico 5: A co-referencialidade de você na amostra em análise.
Quebra
nto
(1908)
O
simp..
Jeremia
O
hósp...
Quarto
Dona
Xepa
(1952)
Tôda...
fera
(1962)
C.de
bens
(1980)
Intensa
Magia
(1995)
C. do
leque
(1995)
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
18
7
9
8
2
1
5
21
70
72
90
74
87
91
88
54
12
13
0
7
8 8
7
25
12
8
1
11
3
0
10
0
A co-referencialidade de "você" na amostra em análise
1ª referência
antecedido por você,
o-a, lhe, seu(s)-sua(s)
e formas verbais
antecedido por tu, te,
ti, teu(s)- tua(s) e
formas verbais
relacionadas
antecedido por formas
nominais
96
Nota-se que, apesar da clara preferência pela associação de você a formas de
pessoa, a combinação dessa estratégia com formas de pessoa indica a consolidação da
mudança iniciada no final do século XIX
18
, uma vez que Rumeu (2004), ao analisar esse
fenômeno nas formas Vossa mercê e você(s), ao longo dos séculos XVIII e XIX, observa que
a associação desses itens se de maneira categórica com outras formas de pessoa.
Segundo a autora, esse fato evidencia, nesse estágio do processo de gramaticalização
(séculos XVIII e XIX), que este item ainda se comporta como uma forma nominal de
tratamento. Assim como Rumeu (2004), Lopes (2006), ao analisar as cartas do Marquês do
Lavradio do século XVIII, não verifica a combinação dos dados de você com formas de
pessoa. No entanto observa, na amostra de cartas da família Ottoni produzidas no último
quarto do século XIX, que, apesar de o ocorrer a combinação de você com o possessivo
de pessoa (teu(s)/ tua(s)), a associação da forma inovadora com te é evidente,
chegando a afirmar que "tais resultados mostram que o sincretismo de P2 e P3, causado
pela inserção de você no quadro pronominal, seus primeiros reflexos na combinação de
você com te no século XIX"(p.209). Sendo assim, partindo do mesmo pressuposto de Rumeu
(2004) de que formas nominais devem se combinar exclusivamente com formas de
pessoa, é possível afirmar que você, ao associar-se, na amostra em análise, a pronomes
possessivos, objetos e formas verbais de pessoa não pode mais ser considerado uma
forma nominal, apresentando comportamento semelhante a de um pronome de 2ª pessoa.
Tomando as discussões acerca do processo de gramaticalização da forma você(s) no
paradigma dos pronomes pessoais do Português brasileiro, observa-se que um quadro atual
mais coerente com a realidade lingüística vigente se constituiria do seguinte modo:
18 Lopes (2006:204) afirma que "(a combinação de você com formas de pessoa) será a tônica a partir do
final do século XIX".
97
A distribuição atual das estratégias de referência ao(s) interlocutor(es)
Tratamento sujeito
compl. verbal
não prep.
compl./ adjunto
verbal/ nom.
prep.
possessivo
informal
tu
19
você(s)
te, lhe(s),
você(s)
o(s), a(s)
a você(s),de
você(s), para
você(s)
teu(s)/ tua(s)
seu(s)/ sua(s)
formal
o(s) senhor(es) /
(a) senhora(s)
lhe(s), o(s), a(s),
o(s) senhor(es),
a(s) senhora(s)
ao(s) senhor(es),
à(s) senhora(s)/,
para os
senhores, para
as senhoras
seu(s)/ sua(s)
Quadro 7: A distribuição atual das estratégias de referência ao(s) interlocutor(es).
Sendo assim, acredita-se que atualmente, no Português do Rio de Janeiro, a forma
você concorra com o pronome tu em seu emprego não padrão no singular, e sua
correspondente seja categórica no plural, ambas no domínio informalidade, cabendo ao
tratamento formal, o uso das formas o(s) senhor(es)/ a(s) senhora(s). Além disso, como
conseqüência da implementação de você(s) como pronome de pessoa, é possível
constatar a associação dessa estratégia, que, para os gramáticos tradicionais, continua a
ser descrita como uma forma nominal de tratamento, com pronomes que tradicionalmente
são considerados de segunda pessoa, reconfigurando, assim, o quadro das estratégias de
referência ao(s) interlocutor(es).
19 Não padrão, ou seja, acompanhado da flexão verbal de 3ª pessoa.
98
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das discussões desenvolvidas ao longo deste trabalho e com base na análise
dos resultados obtidos na distribuição das estratégias de referência à segunda pessoa em
função de diferentes aspectos lingüísticos e extralingüísticos, nas oito peças teatrais
escritas no Rio de Janeiro do século XX, que compõem a amostra em estudo, identificaram-
se alterações substanciais no comportamento dessas formas ao longo do século. Dessa
maneira, obtiveram-se, em síntese, os seguintes resultados:
a) Entre as peças Quebranto (1908) e as demais obras situadas a partir de 1918,
modificação substancial no comportamento das estratégias pronominais no singular, uma
vez que naquela predominam as formas de 2ª pessoa gramatical (tu, te, ti, teu(s)/tua(s)) e
nestas um favorecimento às formas de 3ª pessoa gramatical (você, o/a, lhe,
seu(s)/sua(s)). Tal fato deve-se provavelmente à acentuada queda no emprego do pronome
tu no final do primeiro quarto do século XX com sua substituição pela forma inovadora
você, experienciando um aumento em sua freqüência de uso somente na peça Clube do
leque (1995) em um emprego não padrão e restrito, nesta obra, a um segmento social
específico (classe baixa);
b) A manutenção das formas pronominais de pessoa gramatical, nas peças O simpático
Jeremias (1918), Dona Xepa (1952), Tôda donzela tem um pai que é uma fera (1962),
Comunhão de bens (1980) e Intensa magia (1995), deve-se à conservação do uso das formas
te e teu(s)/ tua(s) — a primeira com índices mais elevados que a segunda;
c) No plural, encontrou-se uma forte predominância das formas de pessoa gramatical ao
longo de todo o século, uma vez que a forma vocês substitui o pronome vós de forma
99
decisiva no século XIX (cf. Cintra, 1972, Biderman, 1972, Faraco, 1996, Lopes & Machado,
2006) ;
d) A consolidação de você como a principal estratégia de referência à segunda pessoa, na
amostra estudada, a partir de 1918, alterou substancialmente o comportamento do
preenchimento dos sujeitos ao longo do século, visto que a elevação da freqüência de uso
das formas plenas está intimamente ligada ao aumento na freqüência do emprego de você.
e) A substituição de tu por você ocorreu nos domínios funcionais que pertenciam ao
pronome tu no século XIX e princípio do XX relações simétricas (entre iguais) e
assimétricas descendentes (de superior para inferior), cabendo às formas nominais, o
predomínio nas relações assimétricas ascendentes (de inferior para superior);
f) Os resultados obtidos nas peças em análise mostram que, nesse período, o uso da forma
gramaticalizada é observado em todas as relações sociais (simétricas e assimétricas)
estabelecidas. Esses resultados, quando comparado a outros trabalhos que discutem o
emprego dessa forma nessas relações em períodos anteriores (cf. Biderman, 1972, Lopes &
Duarte, 2003, Rumeu, 2004), indicam que ocorreu um alargamento dos contextos em que a
forma gramaticalizada é utilizada. Tal fato é descrito por Heine (2003) ao explicitar o
mecanismo da extensão.
g) As especificidades que diferem a forma você dos demais pronomes pessoais têm origem
em traços persistentes de sua história como item lexical. Nesse sentido, as “persistências”
formais mostram-se mais marcantes que a semântica. Entre as “persistências” formais,
podem-se observar a conservação da flexão verbal de pessoa, a manutenção da flexão
de número e possibilidade de funcionar nas mais diferentes funções ao contrário dos
100
outros pronomes pessoais que apresentam alteração na forma ao mudarem de função. A
única “persistência” semântica encontra-se no uso de você como indeterminador que pode
guardar uma herança da forma nominal de tratamento Vossa Mercê, pois em ambos os
casos a referência está localizada fora do discurso.
h) Apesar de ainda poder exercer diferentes funções, nota-se que a forma você(s) ao longo
de sua trajetória tende a se fixar na posição de sujeito. É cada vez mais raro que exerça a
função de complemento verbal não preposicionado e complemento/ adjunto verbal ou
nominal preposicionado, deixando, inclusive, de constituir a locução prepositiva indicativa
de posse de você. Associa-se, por conseqüência, a pronomes objetos e possessivos. Se, por
um lado, a interpretação formal desse item aponta para sua relação com pronomes
oblíquos e possessivos de pessoa, por outro, sua interpretação semântica indica uma
associação com formas pronominais de 2ª pessoa. Combinando-se com formas de 2ª pessoa,
como na amostra em análise, a forma você(s) apresenta, então, um forte indício de
decategorização.
101
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Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ UFRJ, 2006, 110 p.
Mimeo.
RESUMO
Este estudo analisa a implementação de “você(s)” no quadro pronominal do
Português brasileiro e sua consolidação como principal estratégia de referência à segunda
pessoa do discurso ao longo do século XX. Para tanto, observa a utilização de diferentes
estratégias de tratamento ao interlocutor em oito peças fluminenses desse período,
buscando descrever o comportamento dessas formas e explicitando seus usos de acordo
com a situação comunicativa estabelecida, a partir dos padrões discutidos pela teoria do
Poder e Solidariedade (Brown & Gilman, 1960). Analisa também o processo de consolidação
da forma “você(s)” como pronome de 2ª pessoa ao longo do século XX à luz das teorias que
discutem o fenômeno da gramaticalização (Lehmann, 1985, Hopper, 1991, Bybee, 2003 e
Heine, 2003). Em síntese, esta dissertação constata que a forma “você”, no singular, ao
contrário de sua correspondente no plural (“vocês”), que praticamente substitui o
pronome “vós”, experiencia, ao longo do século XX, três momentos distintos: (i) no
primeiro quarto do século, sua variação com o legítimo pronome de pessoa “tu”; (ii) a
partir da década de 30, seu alçamento à principal estratégia de referência ao interlocutor
e a conseqüente neutralização formal entre e pessoas, em favor da última,
acarretando a indicação da noção de pessoa exclusivamente pelo pronome e não mais pela
forma verbal; (iii) no final do século, sua co-ocorrência com o pronome “tu” agora em seu
uso não padrão, não se relacionando mais a formas verbais de pessoa, que ficaram
praticamente restritas, ao longo do período sob análise, ao emprego no modo imperativo.
108
MACHADO, Ana Carolina Morito. A implementação de "você" no quadro pronominal: as
estratégias de referência ao interlocutor em peças teatrais no século XX. Master's
Dissertation in the Portuguese Language. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/ UFRJ, 2006,
110 p. Mimeo.
ABSTRACT
This work analyses the implementation of “você(s)” (that corresponds to “you” in
English) in the pronominal list of Brazilian Portuguese and its consolidation as the main
reference strategy of second person through the twentieth century. In order of that, this
work observes the usage of different address strategies towards the interlocutor in eight
fluminense plays of this period, trying to describe the behavior of these forms and
enlightening their usage according to the communicative situation established, taking as
reference patterns discussed by the theory of Power and Solidarity (Brown & Gilman,
1960). It also analyses the process of consolidation of “você(s)” as a second person
pronoun through the twentieth century in the light of the theories that discuss the
grammaticalization phenomenon (Lehman, 1985, Hopper, 1991, Bybee, 2003 and Heine,
2003). In a few words, this dissertation concludes that the form você”, in its singular
form, differently from its correspondent in the plural form (“vocês”), that practically
replaces the pronoun “vós”, experiments, throughout the twentieth century, three distinct
moments: (i) in the first quarter of the century, its variation with the legitimate second
person singular pronoun “tu”; (ii) from the 30’s on, it becomes the main strategy of
reference towards the interlocutor and the consequent formal neutralization between the
second and the third persons, in favor of the last one, leading to the indication of person´s
notion exclusively by the pronoun and no longer by the verbal form; (iii) in the end of the
century, its co-existence with the pronoun “tu”, in its non-pattern use, not being related
to the verbal forms of the second person, that have been practically restricted, through
the period under analyses, to the use in the Imperative form.
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