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Narrando um encontro acontecido mais tarde, Brás Cubas mostra nela as chagas
físicas da vida mundana, evidenciando aqui que não há mais a divisão corpo X alma, tão
cara ao Romantismo. Se um dos dois vai mal, tudo se estraga – e Marcela lhe aparece,
anos após terem sido amantes, como uma visão grotesca, de total degradação: feia,
oferecida e cheia de bexigas – uma mulher marcada, de quem ele se afasta, evitando
qualquer contato. Nem piedade lhe suscita.
Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o relógio e
cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja que tinha à mão; era
um cubículo, - pouco mais , - empoeirado e escuro.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo
que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao
contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e
uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas
tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e
encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa,
enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás
tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto,
logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão
poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda
fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? Essa mulher era Marcela.
(MPBC, cap. XXXVIII, p. 75)
Apesar de longa, a citação dispensa extenso comentário, pela sua transparência e
exatidão.
Sobre a moléstia de Marcela, pode-se dizer que, através da análise do que lhe
acontece, é possível também diferenciar a visão de Machado, ou ainda do próprio
Realismo, da visão naturalista. Em determinado momento o narrador diz sobre a
personagem: “Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a
moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de
acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo
que me disseram depois”. (MPBC, cap. XXXIX, p. 77). Vê-se, pela citação, que o
interior é que faz o homem: seus aspectos psicológicos, sua moral, e não o exterior é
que o determina. Não é o meio que o define, e sim seus próprios sentimentos e índole.
Já no Naturalismo é o exterior que opera esta transformação.
O conceito de amor em Machado de Assis é esvaziado porque tal sentimento
resulta, no senso comum, em sacrifícios, atos grandiosos em seu nome, e as personagens
do autor são carentes de grandeza, porque é assim que a Humanidade é vista por ele. O