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A MULTIPLICIDADE DE ENFOQUES SOBRE O AMOR
NA NARRATIVA BRASILEIRA
Por
JANAINA FERNANDES REBELLO
Departamento de Letras Vernáculas
Tese de Doutorado apresentada à
Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Orientador: Professor Doutor
José Maurício Gomes de Almeida.
Faculdade de Letras/ UFRJ.
Rio de Janeiro, 1
0
sem. de 2006.
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2
Ao meu filho Manoel, que passou a existir no percurso
destes estudos e que, perdoem-me o clichê, tomou conta
do meu ser.
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SINOPSE
O amor como representante das diversas posturas na literatura brasileira. O erotismo
como representação do amor em alguns momentos da prosa nacional. A dicotomia
carne X espírito e suas influências sobre o enfoque do amor na prosa romântica. O
Naturalismo e a limitação ao amor sensual. Amos e desgaste em machado de Assis:
ceticismo. Egoísmo e solidão: a impossibilidade da realização amorosa em Graciliano
Ramos. O amor na literatura amadiana: liberdade e alegria. Guimarães Rosa e os
estágios do amor: a busca da completude cósmica.
4
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO ........................................................................................... 7
2 – O PAPEL DO AMOR ROMÂNTICO E SUAS DIMENSÕES ............... 13
2.1. Amor romântico e modernidade em Inocência............................. 13
2.2. Exaltação do amor e transcendência: desejo satisfeito X mundo real .
................................................................................................................. 21
2.2.1. O obstáculo à realização do amor em Lucíola:
desejo X virtude .......................................................... 32
2.2.2. Lucíola: a exaltação do amor através da ótica do narrador -
personagem .................................................................... 43
2.3 – Amor e sensualidade na prosa romântica brasileira..................... 48
2.4 – A relação romantismo – realismo no sentimento amoroso ......... 55
3 – REALISMO: O MITO DO AMOR POSTO EM QUESTÃO................... 65
3.1 –Naturalismo: a visão materialista do amor O cortiço................. 68
3.1.1 – Os casais n’O cortiço .................................................... 72
3.1.1.1 – A relação entre Jerônimo e Rita Baiana .......... 73
3.1.1.2 – João Romão, Bertoleza e o egoísmo ............... 78
3.1.2 – O discurso do amor erótico: marcas da linguagem simbó-
lica................................................................................... 82
3.1.3 – O amor em O cortiço: império dos instintos eróticos ....... 85
3.2 – Memórias póstumas de Brás Cubas: a desmitificação do amor ....... 87
3.2.1 – A ironia mordaz no tratamento do amor ............................ 96
3.2.2 – Virgília e Brás .................................................................. 101
3.2.3 – Dom Casmurro: diminuição da impassibilidade e esva-
ziamento do amor ............................................................. 105
4 – O AMOR NA FICÇÃO DE 30 ...................................................................... 110
4.1 – Graciliano Ramos e o aspecto reduzido do amor ............................ 111
4.1.1 – Amor X dominação em São Bernardo ............................. 113
4.1.1.1 – Paulo Honório e a visão do casamento-empresa. 117
4.1.1.2 – Nascimento e morte prematura do amor .............119
4.1.1.3 – As justificativas presentes ...................................121
5
4.1.2 – Angústia: a degradação do amor no mundo desencantado
de Luís da Silva ..................................................................125
4.1.2.1 – A imaginação deformadora ..................................132
4.1.2.2 – O amor sádico e egoísta ....................................... 135
4.1.2.3 – A unicidade do amor-desejo doentio em
Angústia................................................................ 139
4.1.2.4 – O universo fragmentado de Luís da Silva ........... 149
4.1.2.5 – Luís da Silva e Paulo Honório ............................. 152
4.2 – Jorge Amado e a essência do amor romântico .................................. 158
4.2.1 – A Bovary das terras do cacau ............................................ 164
4.2.2 – Gabriela: amor à liberdade ................................................. 168
4.2.3 – Dona Flor: uma análise à parte .......................................... 181
4.2.4 – Tereza Batista: amor e superação ...................................... 184
5 – O enfoque do amor na obra de Guimarães Rosa ............................................ 192
5.1 – Apenas comparações ....................................................................... 198
5.2 – Amor e erotismo em “A estória de Lélio e Lina” ............................ 200
5.3 – O amor erótico em “Buriti.............................................................. 210
5.4 – A permanência .................................................................................. 211
6 – CONCLUSÃO ................................................................................................. 212
7 - BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 221
8 – APÊNDICE ....................................................................................................... 232
6
Convencionou-se utilizar no desenvolvimento desta dissertação, as seguintes
siglas para identificar algumas obras em análise, já que serão constantemente citadas:
DC, para Dom Casmurro; MPBC, para Memórias póstumas de Brás Cubas; SB, para
São Bernardo; GCC, para Gabriela cravo e canela; TSF, para Terras do sem fim; DF,
para Dona flor e seus dois maridos; TB, para Tereza Batista cansada de guerra e GS:V,
para Grande sertão: veredas.
7
“As pessoas – baile de flores degoladas que
procuram suas hastes”.
(Rosa, Guimarães, “Buriti”, in.: Corpo de
Baile)
O signo artístico, opaco e denso, recusa-se à
entrega e exige ser interpretado.
(BOSI, Alfredo. Prefácio”, in.: LEITE,
Dante Moreira. O amor romântico e outros
temas)
O desejo expressa-se pela carícia como o
pensamento pela linguagem”
(SARTRE, Jean Paul)
(…) nessas altas idéias navego mal.”
(Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas)
8
1- INTRODUÇÃO
O amor é, talvez, o sentimento que mais aproxima o ser humano da arte, visto
que o faz encontrar-se nesta. Sendo assim, é tema constante na Literatura, cuja função,
muitas vezes, é servir como reflexo do homem e veículo de aperfeiçoamento humano.
Qualquer que seja a forma com que se apresente, o amor perpassa a matéria
romanesca, posto que é um dos elementos essenciais da vida; é universal porque é uma
expressão de humanidade. E os romances nascem justamente de todas as fontes de
emoções e de conflitos do homem, mesmo que sem perder a natureza de obra de arte
1
”.
Percebendo tal sentimento como aspecto literário universal, como ícone para
representar posturas literárias diversas, este estudo pretende enfocar esta diversidade na
prosa literária brasileira. Dentro dessa frouxa unidade essencial que é o amor, grande é
a pluralidade de caminhos, de pontos-de-vista, de modos de escrever e de sentir.
O amor margem a um vasto campo de pesquisas ligadas à literatura e também
a outras expressões culturais. Poetas, romancistas, filósofos, psilogos freqüentam
com certa insistência o tema, discutindo-o e enriquecendo-lhe o sentido com estudos
que bem demonstram a sua importância. Não se trata de um assunto simples, não
obstante esteja sempre em evidência. As questões literárias que envolvem o tema do
sentimento amoroso só se resolvem à luz das tendências individuais dos autores e do
código de valores de sua época ou do movimento a que estão atrelados.
A autora deste estudo considerou imprescindível levar em conta a história
literária, mas não este fator. As doutrinas estéticas e o elemento subjetivo, fundidos,
apresentam-se como relevantes nas análises, mas nem sempre com o mesmo peso. Ora
atribui-se maior importância às circunstâncias do tempo e do meio, ora ao espírito
criativo, individual, do autor. O amor é encarado aqui como um significante literário e
procura-se buscar e delinear o seu significado em cada época da prosa nacional, como
os diferentes sentidos, dependentes das variações já citadas.
São correntes as análises que contrapõem a visão idealista do amor romântico à
materialista do amor realista. Porém, não o usuais as que contrastam a visão
individual dos autores de uma mesma época, ou ainda as que enfocam o tema do
1
PEREIRA, 1950: p. 10.
9
sentimento amoroso em obras do Modernismo, por exemplo. Para ratificar a tese da
multiplicidade de enfoques, serão mostrados estes contrastes menos privilegiados nos
estudos literários. A alise de obras literárias se deterá na forma como é desenvolvido
o sentimento amoroso em cada uma delas, ao mesmo tempo em que tecerá um estudo
comparativo entre a diversidade desses enfoques.
Ainda que, como foi dito, ressaltem-se estilos de época e individuais, neste
trabalho partiu-se sempre do texto literário como fonte das análises possíveis do tema.
No entanto, não se pode prescindir do conjunto de relações que a obra estabelece com o
meio e a sociedade em que se insere. Sendo assim, o estudo foi delimitado por épocas
porque se acredita que o texto, ainda que seja a parte prioritária do fenômeno literário,
o representa toda a sua realidade, fazendo-se mister contextualizá-lo.
Luís Felipe Ribeiro, autor de Mulheres de Papel, obra muito utilizada em nossos
estudos, que analisa o papel feminino nas narrativas de Alencar e machado de Assis,
participa deste ponto de vista e, em seus escritos, afirma: (...) a materialidade do texto
é uma relação social, uma confrontação histórica e uma prática humana”.
2
O tipo de
abordagem do amor não depende unicamente de fatores literários ou artísticos, mas
também daqueles de ordem sócio-cultural, vigentes em cada época de produção.
Para a análise tomaram-se como ponto de referência autores e obras que
desenvolveram de maneira mais original ou mais literariamente perfeita o tema do amor
em suas épocas. Destarte, fugiu-se ao simples arrolamento de obras e autores para o
qual resvalaria a tese se se propusesse a abordar a história do tema em toda a prosa
literária nacional.
A descrição e a comparação do tema em diversas obras proporciona seu melhor
conhecimento como fato isolado e sua representação histórica, através de um conjunto
de produções subseqüentes.
Em muitos momentos, durante a pesquisa, foi preciso tratar não do amor,
mais próximo e palpável, como também do desejo, que com ele se identifica em sua
forma potencial. Esta ramificação do estudo proposto, como será visto, é muito
esclarecedora quanto às vertentes diversas que se quer afirmar existirem. Nesse sentido,
enveredou-se, em alguns pontos pelo campo da filosofia ou mesmo da psicologia como
coadjuvantes na comprovação da tese defendida.
2
RIBEIRO, 1996: p. 24.
10
O próprio verbo “amar” é proveniente do verbo paradigmático da primeira
conjugação latina “amare”, que significa realizar o ato sexual, em seu primeiro sentido;
e o segundo sentido de “amare” é o gostar, estar apaixonado. Sendo assim, até levando
em conta a etimologia, é coerente enfocar a questão do desejo neste estudo sobre o
amor na narrativa brasileira.
Devido à extensão do material a ser estudado, no percurso da prosa literária
brasileira, optou-se nesta tese por não operar um estudo em profundidade das obras,
mas um panorama do próprio tema, evidentemente enfatizando alguns romances,como
se esclareceu. Seguindo esta lógica, foi possível o abrir mão do tema que tanto
atrai a autora, devido à enormidade do corpus que se apresentava. A pretensão deu
lugar à possibilidade.
Tencionou-se, portanto, desenvolver a tese fazendo-se referência a diversas
obras, sem que delas fosse feita uma análise detalhada, porém de modo que se possa
perceber o tema em diferentes momentos, de maneira satisfaria. Procuramos sempre
fundamentar as conclusões na análise das obras, de seu tecido narrativo, razão pela qual
são freqüentes e abundantes as citações. A intenção é que se realize uma exposição
clara, sem o falso hermetismo que dificulta o acesso ao texto crítico.
O material selecionado permite uma panorâmica abrangente do imaginário
básico na constituição do tema do amor na prosa romântica. Pode-se argumentar que
outras obras conduziriam às mesmas conclusões, o que tem fundamento, visto que
muitas se inserem no mesmo panorama sócio-cultural que as escolhidas, ou são
produzidas pelos mesmos autores, o que é fundamental para o desenvolvimento do tema
em questão. Contudo, as que aqui figuram, além de representarem a mais alta
qualidade dentro de seus estilos, comprovada por afamados críticos, abordam o tema da
maneira mais característica de cada época.
Para o aparato teórico utilizaram-se, principalmente, os estudos literários de
Heron de Alencar e de Antônio Cândido, principalmente no que diz respeito ao
Romantismo; de Sônia Brayner, sobre O Cortiço, de José Maurício Gomes de Almeida,
sobre a prosa regionalista em geral e de Luís Filipe Ribeiro, sobre o papel feminino em
Machado de Assis e em José de Alencar.
11
Embora obedeça na sua orientação geral à sucessão cronológica, este trabalho,
tendo tido também em mira agrupar escritores por tendências, pode apresentar
anteposições ou posposições destes e de suas obras.
O estudo apresentará a análise do amor visceralmente romântico de Lucíola, que
aborda aquela que parece ser a divisão humana mais profunda: o embate entre o ser
público e o ser privado, entre a sociedade e o sentimento, e entre amor-sentimento e
amor-atração sica, carnal. Alencar é de grande interesse para a tese, em especial seus
romances urbanos, porque se filiam às características comuns do romance sentimental
ou rico do Romantismo europeu. Sendo assim, a trama desenrola-se, invariavelmente,
a partir do amor e suas complicações. A escolha do autor se também porque ele
sintetiza seu tempo. Seu posicionamento literário frente à abordagem de vários temas,
inclusive o que enfocamos, é exemplar para entender as tendências românticas.
Em meio às análises, surgirão considerações sobre uma particularidade narrativa
bastante significante para o desenvolvimento do tema : narradores-personagens que,
com distanciamento temporal, fazem críticas às próprias atitudes no passado, como uma
pseudo-autobiografia. Alguns o fazem por um viés mais racional, como o narrador de
Memórias póstumas de Brás Cubas, outros, por um viés mais sentimental, como Paulo,
de Lucíola.
O enfoque literário do amor como fixação no desejo corporal, fisiológico, será
analisado tanto na estética naturalista, representada por O cortiço, como em Angústia,
de Graciliano Ramos. Embora no segundo haja a obsessão pelo corpo, típica do
Naturalismo, encontra-se uma construção ambivalente: não descarta os psicologismos.
O fisiologismo, aliás, está a serviço da análise psicológica, ainda que para comprovar o
desajuste do protagonista.
É importante ressaltar que esta tese toma como de suma importância as idéias de
nia Brayner, em sua obra A metáfora do corpo no romance naturalista, para o
desenvolvimento do tema do amor neste período da prosa brasileira. As conclusões da
autora acerca do tema vêm exatamente ao encontro do que será aqui defendido.
Ao abordar o Naturalismo, Angústia, de Graciliano Ramos, e as obras de Jorge
Amado, percebemos que o amor tem em seu cerne ou tangencia o desejo-apetite, o que
no homem é visceral e reclama reiteradamente satisfação momentânea. Nesses casos,
o se fugirá à abordagem do tema do desejo.
12
Na última parte do estudo, retoma-se a relencia do amor propriamente dito,
com a análise de algumas obras de Jorge Amado e de Guimarães Rosa. As primeiras
trazem à baila novamente o enfoque romântico deste sentimento ou ainda sua
apresentação como uma espécie de metáfora da vida, como alegria incomensurável. As
de Rosa operam uma integração que une perfeitamente no amor o erotismo e o
sentimento, e o tema aparece com grande carga mítico-simbólica. também um
aspecto positivo inegável do amor na narrativa rosiana.
Ao longo da análise do tema, do Romantismo até Jorge Amado, pode-se
observar um ininterrupto processo de afirmação e negação do sentimento amoroso em
obras de épocas sucessivas.
Há, na obra de Jorge Amado, certa volta às teses românticas do século XIX:
trata-se da afirmação dos valores positivos do Brasil e dos brasileiros. Esta tendência,
assumida pelo escritor, tem raízes profundas no imaginário popular, ao qual se relaciona
sua obra. A alegria dos seus personagens, que se afirma a despeito de tudo e de todos,
coaduna-se com a autovisão do brasileiro. E o amor, romântico ou erótico, vem a
serviço desta alegria. Boa parcela da obra amadiana gira em torno de um processo que
mistura amor, vida e erotismo. O amor erótico é, inclusive, uma espécie de filosofia
inerente às personagens de Jorge Amado.
Na geração seguinte, a visão positiva do amor, dominante em Jorge Amado, vai
reaparecer sob diferente enfoque, na obra de Guimarães Rosa.
A centralização no amor “misturado”, erótico, sentimental e tico,
desenvolvido de maneira bastante peculiar, fez com que se escolhessem para análise as
narrativas “Buriti”, “Dãolalalão” e “A estória de lio e Lina”, todas de Corpo de Baile.
Será dado destaque também na obra deste autor ao papel do erotismo que, assim como
em Jorge Amado, tem uma função positiva. Representa, em seus enredos, o alicerce
para a completude buscada pelas personagens, muitas vezes recebendo uma conotação
filofico-existencial, que, em essência, sua obra caminha nesta vertente. O autor
desenvolve a capacidade da narrativa de promover o adentramento no universo
simbólico.
Esta visão positiva do erotismo, presente tanto em Amado quanto em Rosa
contrapõe-se ao que ocorre em Aluísio de Azevedo e Graciliano Ramos, dando
13
oportunidade a um estudo comparativo sobre o tema do amor na tradição narrativa
brasileira.
Se os clássicos mundiais têm Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Paulo e Virgínia,
a Literatura Brasileira está igualmente representada por Lucíola e Paulo, Inocência e
Cirino, Lívia e Guma, Bentinho e Capitu. O amor, é, de fato, tema eterno e fascinante.
14
2 – O PAPEL DO AMOR ROMÂNTICO E SUAS DIMENSÕES
2.1. Amor romântico e modernidade em Inocência
Em literatura, quando se fala em amor, a referência é indubitavelmente o
Romantismo. A motivação é óbvia: o amor é matéria importantíssima no romance
romântico, visto que este é essencialmente rico. No processo de afirmação e negação
do sentimento amoroso na narrativa brasileira, o Romantismo constitui o momento por
excelência da sua exaltação.
Engana-se quem pensa que os romances regionalistas têm a atenção voltada
apenas para a natureza interiorana brasileira. O fato de Inocência ser obra escolhida
para figurar na apresentação do tema aqui estudado é mais do que um indício: os
românticos que se dispuseram a desenvolver o romance regionalista tomaram a região
como cenário, como quadro natural e social para atos e, principalmente, sentimentos
sobre os quais se voltava realmente a sua atenção. O amor entre Cirino e Inocência é de
fato o foco central da obra. O desenvolvimento do tema segue o mesmo caminho de
toda a prosa romântica, não se diferenciando por estar inserido num complexo de
características geográficas e culturais peculiares.
O tradicional obstáculo à representação plena do amor não é aqui o dote ou a
prostituição, mas o casamento “arranjado” entre famílias, muito comum na sociedade
patriarcal do interior.
A atração e o amor entre Inocência e Cirino simbolizam o caráter sonhador e
idealista da heroína: o elemento estrangeiro representa para ela a possibilidade de uma
vida diferente, a aspiração a um mundo novo que se descortina; Inocência é, para
Cirino, não muito diferente disso: o mito da mulher interiorana, pura, bela e a ser
desbravada”, assim como a natureza da região. Representam, um para o outro, o
exótico, tão cultuado pelo temperamento romântico.
Além disso, assim como a figura da índia, em Iracema, a da interiorana, em
Inocência, é retocada e aformoseada, bem ao gosto romântico. Inocência representa,
assim como Iracema, a pureza não influenciada pela cultura europeizada do litoral; por
isso inseri-la num ambiente sertanejo, que ressalta tais peculiaridades. Trata-se também
15
de um dos pressupostos básicos do Romantismo: a busca da nacionalidade, de
características próprias, não contaminadas pela cultura estrangeira.
O gosto pelo pitoresco das terras distantes existe em Cirino, mas não por elas.
Inocência também é, a seus olhos, o pitoresco, e como tal, transforma-se em expressão
de lirismo, pureza e sentimento. Na terra desconhecida, que naturalmente deixa o
estrangeiro desperto para as novas sensações, surge Inocência. O pitoresco e a cor
local tornaram-se um meio de expressão lírica e sentimental,e, por fim, de excitação de
sensações.”
3
É interessante interromper aqui , por alguns momentos, a análise de Inocência,
para ressaltar que essa predisposição referida no parágrafo anterior é também
demonstrada por Paulo, de Lucíola, com o propósito de justificar o enlevo ao ver Lúcia
pela primeira vez, na carruagem:
Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem tinha-me saturado
da poesia do mar, que vive de espuma, de nuvens e de estrelas; povoara
a solidão profunda do oceano, naquelas compridas noites veladas ao
relento de sonhos dourados e risonhas esperaas; sentia enfim a sede
da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte
anos, sob o céu azul da corte. (Lucíola, cap. II p. 126)
O amor de Inocência e Cirino obedece rigorosamente, portanto, ao exagero e à
busca da perfeição, ao ideal romântico. O enredo se desenrola no inóspito sertão do
Mato Grosso, e Inocência representa a heroína não “contaminada” pela sociedade e,
assim, também a lealdade, o amor e a pureza de uma mulher de perfeição e sonho, num
lugar distante, onde os sentidos do estrangeiro” Cirino estão aguçados para o pitoresco.
A heroína é parte da natureza primitiva idealizada e, no romance, vive em
conformidade absoluta com esta. O cenário é de uma beleza tão ímpar que há um
estrangeiro (Meyer) instalado na fazenda do pai de Inocência para estudar espécimens
raros de borboletas.
Os elementos naturais conspiram a favor dos encontros entre o casal.
Supervalorizados pelo Romantismo, têm grande valor nesta obra, pois ocultam,
facilitam e servem de refúgio aos amantes; também metaforizam e exacerbam os
3
COUTINHO, 2002: p. 10
16
sentimentos. No exemplo abaixo, a natureza participa do cenário amorosa e, de certa
forma, antecipa os acontecimentos fúnebres, que a aurora sondava a profundidade
das trevas...”:
E assim abraçados, quedaram eles inconscientes, enquanto a
aurora vinha clareando o firmamento e desferindo para a terra
raios indecisos como que a sondarem a profundidade das trevas;
enquanto os pássaros chilreavam à surdina, preparando as
gargantas para o matutino concerto; enquanto o orvalho subia
da terra ao céu molhando o dorso das folhas das grandes árvores
e suspendendo, às das rasteiras plantinhas, gotas que cintilavam
já como diamantes
Ao longe, à beira de algum rio, as aracuãs levantavam a sonora
grita, e o macauã atirava aos ares os pios prolongados da áspera
garganta. (Inocência, cap. XXIII, p. 91)
E o laranjal, durante toda a narrativa do idílio, servirá de cúmplice ao casal:
- Xi! Observou ela, cuidado! Se ele nos acha aqui nos mata
logo... Olhe, vá-me esperar junto ao corguinho para lá do
laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta está
encostada.
O moço fez sinal que obedecia e sumiu-se incontinenti na
escuridão do pomar. (Inocência, cap. XXIII, p.89)
O tema do amor desenvolve-se entre folhagens, pios noturnos de pássaros,
borboletas que desviam a atenção do pai de Inocência para que este não interfira
negativamente enquanto o sentimento amadurece...
A inclinação de ressaltar a natureza não é particular de Taunay e muito menos
dos romancistas brasileiros, ainda que nos restrinjamos à época romântica. José
Maurício Gomes de Almeida, abordando o sertanismo romântico de Alencar, em sua
obra A tradição regionalista no romance brasileiro, nos diz: O culto da natureza não
constituía em si uma novidade. Já no Romantismo europeu ocupava lugar de destaque,
representando uma relação do indivíduo (do artista) contra o caráter cada vez mais
opressor da sociedade industrial-capitalista
4
.
4
ALMEIDA, 1999: p. 49
17
No entanto, citando Heron de Alencar, o autor mostra que, se o culto da natureza
o é original, a função que exerce no romance brasileiro é diferente: O nosso
sentimento da natureza era menos individualista e mais de afirmação nacional. O
nosso Romantismo engrandece a natureza brasileira, para nela projetar e ampliar o
mundo ideal que constrói acima do real, que é dominado pelos colonizadores
5
.
Sobre as tendências realistas de observação e análise da natureza em Taunay,
Heron de Alencar, colaborador de Afrânio Coutinho em A literatura no Brasil, se
expressa da seguinte forma, reiteradora da análise aqui realizada: Sua concepção do
mundo tem muito de romântico, pela dominância do idealismo sentimental sobre a
observação e a análise; nos valores secundários da história, porém, predominam
estas.
6
Portanto, o ambiente sertanejo, se originalidade à obra, não toma o lugar da
trama amorosa tão prezada pelo Romantismo. Se em Inocência, a preocupação de
fidelidade ao dado observável torna-se manifesta, especialmente no tocante à paisagem
e ao ambiente social em que se desenrola a ação
7
”, quanto ao desenvolvimento do tema
amoroso e do próprio enredo, a idealização romântica permanece. O amor é narrado em
tom rico, dramático.
Essa imutabilidade na escolha e no enfoque do tema central também é
considerada por heron de Alencar, que a aborda com muita propriedade. O excerto é
longo, mas muito proveitoso para o nosso assunto:
No romance urbano, perfil de mulher quase sempre, bem como
no regionalista, constroem-se as intrigas em torno de três
elementos fundamentais: a família, o casamento e o amor. É do
conflito desses três elementos que resulta a história, a novela.
Bons observadores, os nossos romancistas nunca se desligaram
da realidade, e nessa espécie de romance a realidade nacional da
época se encontra bem desenhada, na forma por que todos eles
reproduziram os conflitos resultantes do jogo de interesse no
problema do casamento e do amor. O patriarcalismo da
sociedade brasileira do século passado regulava a constituição
da família e legitimava a intervenção discricionária dos pais no
casamento ou nos projetos de casamento dos filhos; para defesa
da família e da sociedade, os casamentos tinham de ser ditados
não pelo amor, mas pelos interesses familiares e sociais; a
5
ALMEIDA, 1999: p. 49
6
ALENCAR, 2002: p. 283
7
ALMEIDA, 1999: p. 100
18
mulher deveria desposar e amar aquele que lhe indicassem os
pais, pois sua posição na sociedade lhe exigia o papel de
guardar e transmitir riqueza, através do casamento de
conveniência. Contra essa moral burguesa é que lutam os
românticos, heróis ou heroínas, defendendo os direitos do
sentimento e do coração. Essa luta é feita de sofrimentos e
provões, servindo-lhe de contraponto a permanente idéia de
que a união de duas almas, pelo amor, pode ser conseguida na
morte, caso os conflitos não se resolvam romanticamente, como
ocorre quase sempre.
8
Trata-se da exata descrição do enredo de Inocência, que luta contra a
intervenção do pai, que exige seu casamento com Manecão, não aceitando Cirino. O
conflito se resolve de maneira também romântica, pois Cirino praticamente caminha
para a morte, em nome do amor, o que representa parte essencial da visão romântica. A
morte, aliás, é cogitada várias vezes pelos amantes, diante da impossibilidade de
realização do amor, antes de ocorrer de fato. Isso confirma a tendência romântica:
Oh não! Essa menina é a minha vida! É o meu sangue... o meu
farol para os céus... Quem ma rouba mata-me de uma vez.
Venha a morte... fique ela para chorar por mim... um dia
contará como um homem soube amar!... (Inocência, capítulo
XV, p. 99)
- Ah! Exclamou Cirino, o Sr. sente a consciência bater-lhe que
sua afilhada está desamparada, que vai ser sacrificada... e agora
tapa os ouvidos e diz: Não quero ouvir, não quero cumprir a
minha palavra! Por que a deu então o Sr.... essa palavra de
honra de que tanto fala?... Nossa Senhora que a proteja... que a
tire deste mundo... Isto há de pesar-lhe no peito... e, quando um
dia tiver notícia que Inocência morreu de desgostos, de dizer
consigo que ajudou a cavar-lhe a sepultura. (Inocência,
capítulo XXVIII, p. 108)
E ainda, na hora da morte, Cirino, mesmo dizendo-se já morto (usa o
verbo no pretérito: “mataste-me”), afirma com convicção de que Inocência é sua,
o que aponta para a infinitude do amor:
8
COUTINHO, 2002: p. 302
19
Matador!... vil!... sim!... conheço Inocência... Ela é minha...
Infame!... Mataste-me... mas mataste também a ela!... Que te fiz
eu?... Deus te há de amaldiçoar... sim, meu Deus, meus Santos...
maldição sobre este assassino... Foge, foge... minha sombra
de seguir-te sempre...” (Inocência, capítulo XXX, p. 115)
E todas as predições acerca da morte dos amantes se realizam.
Afora os capítulos iniciais, alguns outros apresentam, disseminados na narrativa,
trechos de indiscutível realismo. No entanto, estes o parecem ter preocupação
documental sua função é outra: retardar os acontecimentos, a fim de que
amadurecessem e se intensificassem os sentimentos entre Cirino e Inocência.
A característica alencariana de pintar” quadros com as palavras também está
presente em Taunay, mas com diferente propósito. Alencar descreve cenas em Lucíola,
por exemplo, para melhor caracterizar personagens e sentimentos. Já Taunay aproxima-
se da precisão científica ao descrever detalhes geográficos e botânicos da região central
do Brasil.
Se, sob o aspecto amoroso, o enredo de Inocência segue exatamente o
paradigma romântico, por outro lado, na economia total da obra, o sentimentalismo é
arrefecido pelo aspecto mico que a pontua. Nisso, Inocência realmente se difere das
demais obras românticas nacionais, em que impera a idealização amorosa, sem haver
focos de diverso interesse. Aqui, não podem passar despercebidas as hilárias figuras de
Pereira e Meyer, assim como a relação de desconfiança entre ambos.
ainda um outro fator: se a morte de Cirino causa o clímax da comoção, esta
também perde intensidade, que por meio de um novo capítulo, no qual a morte de
Inocência é sucintamente narrada, precedida de uma inica epígrafe, que sequer diz
respeito à heroína, mas ao reconhecimento científico de Meyer no exterior: Possui-te
de justo orgulho e coroem os louros de Apolo tua cabeça. – Horácio. (Inocência,
Epílogo, p. 117). E só no final do capítulo cita-se o falecimento da mocinha, como uma
nota sem importância num jornal: Exatamente nesse dia dois anos faziam que seu
gentil corpo fora entregue à terra, no imenso sertão de Sant’ana do Parnaíba, para aí
dormir o sono da eternidade.” (Inocência, epílogo, p. 118)
Caso a intenção fosse de perpetuar o sentimentalismo, Taunay teria finalizado a
obra com a morte de Cirino. A mistura entre sentimentalismo, comicidade e tragédia é
analisada com exatidão por Jo Maurício Gomes de Almeida: Pelo dosado
20
contraponto entre amor e humor, mais do que pela preocupação documental de resto
discreta -, Inocência se afasta dos padrões correntes no Romantismo brasileiro e
aponta para a fase seguinte.”
9
Conclui-se que o tratamento do tema do amor em Inocência segue ainda o
paradigma romântico, e o caráter de modernidade não se pela preocupação
documental e descritiva, mas pela mistura de gêneros e tons narrativos. A preocupação
realista não alcança o tema que nos interessa de maneira significativa. Embora a
formação do ambiente crie certos questionamentos acerca desta classificação realista ou
romântica, as figuras humanas criadas para personagens de Inocência estão imbuídas do
convencionalismo romântico, assim como o relacionamento principal, que caminha
para um fim trágico.
José Maurício Gomes de Almeida, em sua obra A tradição regionalista no
romance brasileiro, na parte em que analisa Inocência, chama a atenção também para a
importância das epígrafes nos capítulos da referida obra literária. O crítico interpreta-as
como um discurso paralelo, em contraponto textual com o corpo principal da obra
10
com a função de facilitar o diálogo do narrador com a própria narrativa, sem ser
necessária uma intervenção pessoal.
As epígrafes que importam para esta tese são as de Shakespeare, que inclusive
predominam na obra de Taunay: são seis. Tal ênfase nos a certeza de que este é o
modelo seguido pelo autor para tecer o fio do enredo amoroso entre Inocência e Cirino.
Antecipa, inclusive, o desfecho da morte dos amantes, o impedimento familiar, não
exatamente igual à célebre Romeu e Julieta, mas claramente embasado em tal obra.
No que tange ao relacionamento amoroso, a seleção de epígrafes é, portanto,
mais um indício de que não há fundamentação realista neste, a despeito de outros
aspectos da obra. Taunay bebeu no Romantismo clássico como inspiração, dizem-nos
tais epígrafes.
O que confere certa modernidade a Inocência é o caráter cômico que a permeia,
tanto na construção de personagens importantes como Pereira e Meyer, como na própria
relação irônica entre algumas das epígrafes e o enredo.
9
ALMEIDA, 1999: p. 121.
10
ALMEIDA, 1999: p.106
21
Aqui, nos deteremos em analisar brevemente apenas aquelas que remetem à
relação amorosa, pela pertinência com o tema desenvolvido: as passagens de Romeu e
Julieta, presentes nos capítulos XVIII e XXIII, de Inocência.
No capítulo XVIII, a relação entre a epígrafe e a narrativa de Inocência
propriamente dita, é muito próxima, representando a segunda quase uma paráfrase da
primeira, em linguagem mais simples, característica da personagem Cirino, o “Romeu”
de Inocência. Transcrevemos em primeiro lugar a epígrafe: Mas que luz é essa que ali
aparece, naquela janela? A janela é o oriente, e Julieta o sol. Sobe, belo astro, sobe e
mata de inveja a pálida lua”. (SHAKESPEARE, Romeu e Julieta, ato II (Inocência,
XVIII, p. 73)). Agora, a o trecho que parafraseia a epígrafe, no interior do capítulo da
referida obra nacional: Deixa-me ver bem o teu rosto, dizia Cirino a Inocência. Para
mim, é muito mais bela que a lua e tem mais brilho que o sol.” (Inocência, XVIII, p.
76).
A semelhança não se detém na semântica, mas o fato de o trecho, em Inocência,
aparecer no discurso direto, o aproxima do gênero dramático de Romeu e Julieta. Tal
recurso confere modernidade à narrativa, inovando na Literatura Brasileira.
As cenas em que aparecem as respectivas falas também se delineiam de maneira
bem semelhante: ambas se dão à noite, quando todos dormem e, tanto Inocência quanto
Julieta estão à janela, enquanto seus amados, Cirino e Romeu, respectivamente,
colocam-se sob suas janelas, numa postura apaixonada, e proferem as declarações
transcritas acima.
Se a referida cena é famosa em Romeu e Julieta, em Inocência, sua importância
o é pequena: Cirino começa a dar vazão a sua paixão reprimida e tem a certeza da
correspondência da amada. O período de preparação do relacionamento amoroso
acaba e inicia-se de fato a complicação do romance.
Como já acenou JoMaurício Gomes de Almeida, tal aproximação aponta
para o potencial de universalidade contido na narrativa de Taunay
11
”. Esta análise
combina perfeitamente com a universalidade do tema amoroso proposta nesta tese, e a
visão romântica do amor, embora não seja a única, é, até hoje, a mais popular na
literatura em geral.
11
ALMEIDA, 1999: p. 115
22
no capítulo XXIII, a epígrafe de Shakespeare anuncia o desfecho trágico da
relação entre Cirino e Inocência: Mais cresce a luz, mais aumentam as trevas das
nossas desgraças” (Inocência, XXIII, p. 88)
O capítulo narra exatamente o último encontro entre Cirino e Inocência, quando
decidem que ele irá usar todos os recursos para revogar a obrigação de casamento dela
com Manecão. E este encontro termina justamente com a aurora clareando o
firmamento” (Inocência, XXIII, p. 91)
Todos os aspectos apontados demonstram, então, a permanência da tradição
romântica no desenvolvimento do tema amoroso em Inocência, com traços de
modernidade que não estão ligados aos aspectos realistas ‘salpicados’ pela obra.
2.2. Exaltação do amor e transcendência: desejo satisfeito X mundo real
No desenvolvimento das diferentes narrativas do Romantismo, o tom dominante
é o da exaltação do amor. Considerem-se três obras com desenlaces diferentes, para que
este fator seja comprovado.
Em Senhora, o desfecho agrada às almas sensíveis”, e deixa mais clara a
exaltação do amor. O obstáculo vencido pelo sentimento é bastante considerável: o
casamento por interesse.
Porém, em obras como Lucíola e Inocência, em que o enredo é desenvolvido em
torno do amor impossível, a não-rendição do sentimento às exigências sociais se dá
através da morte de protagonistas. Mas há fatores que distanciam tais obras entre si.
Em Lucíola, a contraposição da família, tradicional nos enredos românticos, é
substitda pela da sociedade, cuja “moral e bons costumes” estão arraigados na própria
personalidade da protagonista. Os elementos do conflito amoroso, nesta obra, são
originais para a época, embora o problema permaneça o mesmo.
Lúcia tem seu amor correspondido e chega a vivê-lo por um curto espaço de
tempo, quando Paulo instala-se em sua casa.
23
(...) Só há de entrar aqui duas vezes por semana: na segunda
e na quinta-feira.
Ia interrompê-la recusando; ela tapou-me a boca.
E de sair nos mesmos dias; porém em vez de entrar de
manhã e sair de tarde, entrade tarde e sairá de manhã. Não
lhe agrada?
Então à excão desses dois dias toda a semana é minha?
disse não me cabendo de contente.
Sua, não senhor, minha. Deixo-lhe dois dias para ver seus
amigos... E não acha que é muito? Bastava um!
(...)
Bem, Lúcia, tu que queres que eu viva quase em tua casa.
Mas é preciso saber o que eu serei dela?
Olhou-me com expressão que mostrava ter lido no meu
pensamento:
O mesmo que de mim: dono e senhor.
(...) As nossas relações duravam um s; apenas algumas
ligeiras nuvens, das que achamalotam o azul da atmosfera nas
tardes calmosas, toldaram por vezes o nosso céu risonho.
(Lucíola, cap. X p.174-175)
No entanto, a sociedade preconceituosa e a própria consciência de Lúcia
afastam-na da realização plena do amor.
Saí bem decidido a r um termo à situação vergonhosa e
humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me
queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que
esbanjava a minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias
tinham razão em um ponto; não exibia a minha amante como
um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem
que lhes pertencia, visto que não era milionário para ter o
direito de possuí-la exclusivamente.(Lucíola, cap.XI, p. 181)
Alencar situa muito bem a obra no tempo e no espaço: seu romance urbano
funda-se na sociedade do Segundo Império brasileiro. Por estar assim contextualizado,
a sociedade não aceitaria um relacionamento legitimado entre Lúcia e Paulo, assim
como o público da época em que a obra foi produzida não conceberia como “normal”
um desfecho que anulasse a separação entre os dois. Sobre esta atitude, versa
24
acertadamente Roland Barthes, em seu O prazer do texto
12
: O Bom-senso é sempre
uma violência ideológica que procura promover como normal algo que é apenas uma
imposição regulada por interesses de grupo ou de classe”.
A transformação do amor de Lúcia em transcendental, através da morte da
personagem, representa o resultado deste choque cultural:
De fato, tudo se passa como se o mundo fosse muito estreito
para a presença simultânea da consciência desejante, do objeto
desejado e do testemunho severo. Seu afrontamento provoca
um mal-estar intolevel. É preciso que um dos três se
dissimule, transforme-se ou desapara.
13
O contato com a realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo
serviu de limite e, muitas vezes, até de corretivo à fantasia exacerbada do Romantismo.
Não se trata, porém, de uma reprodução minuciosa de tal realidade, nem de substituição
do caráter inventivo pela observação e descrição: o trabalho artístico imaginativo
continua prioritário, não ferindo assim a concepção de romance, em prol da História.
A verdade, porém, é que a eminência literária vem ligada,
freqüentemente, em matéria de romance, à possibilidade de dar
certo toque de ficção à realidade sentida e compreendida à luz
de um propósito ideológico. Este não basta, mas sem ele não
romance duradouro.
14
O fato de Lúcia sentir-se indigna de se unir a Paulo, ou de ser mãe de um filho
seu pode parecer, numa leitura menos atenta, a derrocada de um sentimento verdadeiro,
o que seria um engano.
O amor, em Lucíola, é redentor da alma da protagonista; aponta para a
transcendência na medida em que vai a pouco e pouco afastando-a da prostituição, e
fazendo-a libertar-se do corpo maculado até virar alma pura, o que se dá com sua morte.
Esta saída, aliás, não representa uma inovação. Parece mesmo que Lúcia vai se
entregando a tal fatalidade no desenrolar do romance, não sendo algo inesperado ou
súbito.
12
BARTHES, 1974: p. 13
13
NOVAES, 1990:p. 12.
25
Lúcia expandia-se com tal efusão de contentamento, que, se
felicidade neste mundo, devia ser a que ela sentia. Entretanto,
passada essa primeira e fugace irradiação, achei-a fria, quase
gelada; apenas respondia às minhas carícias ardentes e
impetuosas. Naquele momento atribuí à prostração natural
depois de tão fortes emoções; porém me enganava.
A frieza continuou aumentando de dia em dia, aque uma vez
não me pude conter:
- Parece que já te aborreceste de mim, Lúcia!
- Creio que estou doente! Sofro tanto!
- De quê? Dessa moléstia do coração que me de matar!
(Lucíola, XIV, p. 200)
Heron de Alencar aponta para a possibilidade de que o exemplo de Romeu e
Julieta tenha invadido sobremaneira a prosa romântica no sentido de conduzir amantes
que não realizam seu intento amoroso à imolação em nome do sentimento primordial
que norteia a narrativa.
No estudo do amor romântico, um aspecto que merece
particular atenção: é a permanente vinculação do amor à idéia
da morte. E não somente à idéia ou à consciência da morte,
mas, muita vez, à própria necessidade da morte. A partir do
gesto desesperado de Werther, o Romantismo, na vida real ou
na literatura, foi inundado de suicídios e de mortes.
15
A idéia de purificação, que impregna a morte de Lúcia, representa a
subjetividade extrema, já que é ela mesma quem não aceita a plenitude do amor em
vida. Sobre o aspecto purificador da morte para os românticos, Heron de Alencar nos
diz: (...) carregado sempre de violenta paixão e de subjetivismo extremo, o amor
romântico, que independe do objeto amado, encontra na morte a forma mais pura de
realização.”
16
A permanência do amor no post-mortem fica clara na seguinte frase do narrador:
seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará
eternamente.” (Lucíola, cap. XXI , p. 250 – grifos nossos)
Em Alencar mesmo, a entrega à morte, tão subjetivamente realizada quanto em
Lucíola, acontece também em Iracema. A índia, incapaz de superar o próprio
14
CANDIDO,1979: p. 303.
15
ALENCAR, 2002: p. 304
16
Idem, p. 304
26
preconceito, sempre se achando inferior às mulheres brancas da terra do amado e
sentindo-se sempre na iminência de perdê-lo, morre.
Em Inocência, a narrativa também aponta para uma entrega à morte diante da
impossibilidade de realização do amantes. De maneira muito mais branda que em
Lucíola, Cirino praticamente entrega-se à morte pelas mãos de Manecão, ao imaginar
que o padrinho de Inocência não intercederia em favor de seu amor. A possibilidade de
encontro espiritual, já que o amor não se extingue, segundo a vio romântica, é
revelada no capítulo XIX, de maneira exemplar, por Inocência:
Parece-me que Nossa Senhora de ter pena dos que ama... mas
desampara com certeza os que erram... Se o houver outro remédio,
temos que nos lembrar que as almas, quando se acaba tudo neste
mundo, vão pelos céus, cheios de estrelas, passeando como num
jardim... Se eu me finasse e mecê também, punha-se a minha alma a
correr pelos ares procurando a de mecê, procurando, procurando, e
então s dois juntinhos íamos vu
viajando ora para ali, às vezes pelo carreiro de S. Tiago, às vezes
baixando a este ermo a ver onde é que botaram os nossos corpos... o
era tão bom? (Inocência, capítulo XIX, pág. 80)
Retomando a questão em Lucíola, um outro símbolo da transformação, ou
melhor, da purificação de Lúcia, é o desvelamento de seu verdadeiro nome,
representação do que seria ela sem a mácula da prostituição.
Com tudo isso, afirma-se a exaltação do amor não como foco temático, mas
como elemento positivo dentro da narrativa.
Este amor como força redentora, sublime, aparece de maneira ainda mais
idealizada na novela Cinco Minutos. Em seu enredo, a protagonista consegue
restabelecer-se até fisicamente, curando-se da tuberculose, graças ao sentimento
amoroso, que recebe caráter transcendental e transformador na narrativa alencariana.
Sobre os romances urbanos do período, Heron de Alencar afirma que o escritor
Sublinhou (...) o caráter do amor romântico como retificador de conduta e portador de
substância, que é o tema central de todos os seus romances desse grupo
17
.
17
ALENCAR, 2002: p. 262
27
Inocência segue o mesmo paradigma: com a morte de Cirino, que endossa a
impossibilidade de encontro dos amantes, Inocência ainda assim fica solteira, morrendo
depois. Mas final trágico não é antitético à existência do amor.
O desafio da tradição da escolha do noivo pelo pai constitui um choque cultural
que apresenta como solução o desaparecimento (morte) de Cirino, consciência
desejante, mas não a ausência do amor. Comprova-se que o Romantismo prima pela
exaltação deste sentimento: tanto em Lucíola quanto em Inocência ele é tima da
sociedade.
Além de Lucíola e Inocência, pode-se citar também Iracema como exemplo de
que há, no Romantismo, uma tendência à inadequação do desejo satisfeito com o mundo
real. Nesta obra, o choque entre a cultura européia e a indígena, que aparentemente se
resolveria com a fuga de Iracema com Martim e se consumaria com o nascimento de
seu filho, acaba por mostrar-se mais profundo e causar a morte da índia, insegura quanto
ao amor de Martim e sentindo-se solitária, longe dos seus, e inadequada ao mundo do
amado. Opera-se esta análise sem perder de vista a noção de que o amor, em Iracema,
aparece transformado em teoria social, porque e a nu o choque cultural entre índios e
brancos europeus, ainda que se reafirme a atração entre ambos.
Embora Iracema seja classificado pelo próprio autor, no prefácio de seu Sonhos
d’Ouro, como obra indianista, a abordagem do amor na obra a aproxima do período
considerado por ele como histórico. No referido prefácio, o escritor nos diz sobre esta
fase: O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor com a
terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza
virgem e nas reverberações de um solo esplêndido
18
Analisando-se tais considerações do autor e contrapondo-as ao romance,
percebe-se que o amor em Iracema não envolve simplesmente uma personagem: na
verdade, tal sentimento é que propicia e representa o consórcio do povo invasor com a
terra americana”. Trata-se de uma expressão metonímica da história da colonização
brasileira: não é Martim, e sim o povo colonizador, e não é Iracema, e sim a terra
brasileira, que se casam. E ela é a “mãe fecunda” que vai gerar Moacir, o símbolo da
união da nossa natureza com a cultura lusa.
18
ALENCAR, 1977d, v.6:p. 165-166
28
A virgindade de Iracema pode ser interpretada como a terra ainda não
colonizada, intocada por quaisquer outros povos que o os selvagens, que a
preservavam. Sendo assim, Iracema-terra espronta para receber o novo povo, fruto
desse amor que a faz sofrer e a mata, fazendo-a existir apenas na mistura com o homem
branco, em Moacir. A ficção de Iracema imita, portanto, o percurso histórico da
colonização brasileira, a formação da nova nação.
Ainda que a contribuão indígena para a cultura nacional seja importante, é
modesta frente à colonização européia: embora Moacir tenha sangue indígena em suas
veias, Iracema morre após a sua gestação, reafirmando a preponderância da cultura
branca, que sobrevive na figura do guerreiro Martim e no sangue do filho. O amor e a
união entre Iracema e Martim são mais prejudiciais ao indígena que o amor entre Peri e
Ceci, de O Guarani.
Em Iracema, Martim precisa tirar a amada de sua cultura, de sua tribo, e não a
compreende. Iracema morre. Ceci, em O Guarani, ao final, consegue perceber a
beleza e a grandeza do selvagem, exatamente como ele é, despindo seus olhos do
preconceito formado pelo berço europeu:
Contemplando essa caba adormecida, a menina admirou-se
da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil
altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele
busto selvagem moldado pela natureza.
Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto
senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem
ver sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a
revelação física que acabava de iluminar o seu olhar o era
senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o
seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os
olhos da alma.
Peri, que durante um ano não fora para ela senão um amigo
dedicado, aparecia-lhe de repente como um herói; no seio de
sua família estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o.
Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz, de
um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem
a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o
selvagem precisava do deserto para revelar todo o esplendor de
sua beleza primitiva.
No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido
de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia, e marcava o
lugar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um
amigo, era apenas um amigo escravo.
Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das
matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade: era o
29
rei do deserto, o senhor das florestas, dominado pelo direito da
força e da coragem.
As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as
árvores seculares, serviam de tronco, de dossel, de manto e
cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e
de todo o esplendor da natureza. (O Guarani, XI, p. 191-192)
Durante toda a narrativa é certo que Peri assume uma posição servil frente a
Ceci, típica dos cavaleiros medievais, que adoravam as amadas como a santas,
colocando-se a seus pés. Entretanto, no final, a relão entre o selvagem e a mocinha
ganha um novo aspecto, na medida em que ele se torna seu salvador, e a admiração fica
recíproca.
Essa posição de Ceci era necessária para que houvesse a fecundação das duas
culturas que dariam origem à nova nação. Nenhum “filtroalucinógeno, ou mesmo a
morte do herói foram necessários para que o indígena fosse aceito. Os exterminados
aqui pertencem ao povo português (a família de Ceci) e é este fator que a aproxima de
Peri. Em Iracema, a perda é indígena: perdem a virgem mantenedora do segredo da
jurema, portanto, parte de sua cultura; e Iracema, apartada de seu povo, acaba por perder
a vida.
* * *
Não no desfecho se demonstram os diferentes meios narrativos para a
exaltação do amor no Romantismo. Ainda contrapondo Lucíola e Inocência, é possível
perceber como a construção da primeira faz-se de maneira bem mais complexa, talvez
pela genialidade de Alencar. Por outro lado, Inocência segue à risca o paradigma da
heroína pura, idealizada, do amor inocente, e esta idéia realiza-se desde o título.
O enredo desta obra remete também a narrativas tradicionais, e mais diretamente
a Romeu e Julieta, que traduz o mito do amor impossível, cristalizado na morte.
Taunay retoma este mito, deslocando-o para o sertão do Mato Grosso.
em Lúcia, coexistem pureza e pecado, devido à díade corpo X alma, aceita
pelos românticos. A protagonista chega a apresentar dois nomes para reafirmar tal
separação. Sua condição de prostituta é fruto do meio e de aspectos sociais, mas, como
típica heroína romântica, ela possui a qualidade essencial da lealdade. Mesmo se
prostituindo continua leal aos preceitos morais e é por isso que não aceita a realização
30
amorosa integral ou mesmo ser mãe. Há, portanto, uma linearidade de caráter na
personagem.
Paulo, na verdade, apaixona-se por Maria da Glória. Pode-se fazer tal afirmativa
levando-se em conta que a primeira aparão da moça na obra se no Outeiro da
Glória, e ela está, como se saberá depois, mirando a infância em sua velha casa, do
outro lado da Baía de Guanabara. É como se, naquele momento, sem que ele o
soubesse, ela se transportasse à infância que tanto preza, voltando a ser a impoluta
Maria da Glória que fora antes da prostituta Lúcia e ele enxerga sua alma, transmutando
para seu corpo a castidade e a ingenuidade, como se vê no excerto:
A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras;
descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda
moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as
nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado.
Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema
elegância. O vestido que o moldava (...) dava esquisito realce a
um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parece o
desfazer-se ao menor sopro como os tênues vapores da
alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce
melancolia e não sei que laivos de o ingênua castidade, que o
meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparão.
(Lucíola, cap. II, p. 124)
Bem mais à frente, quando já estavam envolvidos Lúcia e Paulo, é que se
descobre o que, de fato, por que Paulo a havia visto desta forma, como já apontamos na
análise:
Partimos às 4 horas da madrugada numa falua, que atravessou
rapidamente a baía e levou-nos à praia de Icaraí. Não sei se
ainda perto existe um velho casebre, escondido no mato e
habitado por uma velha e dois filhos, que nos hospedaram, ou
por outra, nos deram sombra e água fresca.
Quando Lúcia s o pezinho calçado com a botina de duraque
preto na areia úmida da praia, pareceu que a mobilidade e
agitação das ondinhas que esfrolavam murmurando,
comunicou-se-lhe pelo contato. Em um instante chegou à casa,
abraçou a velha, correu todos os recantos, o terreiro, o quintal e
o mato que se estendia em roda. Ora suspendia-se aos ramos
das árvores e colhia os frutos verdes que saboreava com delícia;
ora pulava sobre a relva soltando gritos de prazer como as aves
quando atitam ao raiar da manhã.
E no meio de tudo isso voltava para mim, e me obrigava a
tomar a minha parte do prazer que ela sentia. O meio de o
31
comer frutas verdes quando elas nos são apresentadas entre
duas linhas de pérolas e à sombra de lábios vermelhos, que
fugiam furtando o beijo que prometiam? O meio de não fazer
toda a sorte de loucuras, quando um talhe esbelto suspende-se
ao vosso flanco, e uma voz aveludada murmura uma prece ao
ouvido?
Almoçamos. Lúcia contentou-se com uma côdea de pão e um
copo de leite, que bebeu sentada sobre a pedra.
Depois do almoço ela tomou-me pelo braço:
- Foi nesta casa que eu nasci, disse-me ela. o era então velha
como hoje está. Tudo muda; tudo passa!
Mostrou-me o lugar onde seu pai costumava trabalhar, onde sua
mãe cosia; lembrava-se de todos os cantos, do lugar de cada
móvel, da idade de cada fruteira, dos menores incidentes
passados nesta área de terra.
- Faz sete anos que deixei este lugar; parece-me que foi ontem.
Quando venho aqui alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha
infância o feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei para esta
praia. O senhor estava perto de mim. Mal pensava que três
meses depois viríamos aqui juntos! (Lucíola, XVIII, p. 224-
225)
A santidade do lugar e a atitude de Lúcia/Maria da Glória neste momento são
sintomáticas: no momento em que Paulo se embevecido, aproxima-a mais de sua
‘identidade pura’. Ou seja, a visão do narrador é que faz tal aproximação.
O grande problema, e, aliás, o conflito do enredo é exatamente o fato de a
sociedade enxergar Lúcia. Logo após Maria da Glória nascer’ aos olhos de Paulo, o
Sá derruba toda possibilidade de idealização, fazendo com que Paulo sinta-se um
ingênuo:
- Quem é esta senhora? – perguntei a Sá.
A resposta foi o sorrido inexprimível, mistura de sarcasmo, de
bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a
ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das
banalidades sociais.
- Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres
conhecê-la?...
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que
confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato
da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a
ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me
ter feito suspeitar a verdade. (Lucíola, I, p. 124)
32
A beleza, sendo identificada com o prazer, acaba por ofuscar qualquer valor
moral de Lúcia, na visão da sociedade. Sobre esta fala de Sá, discorre brilhantemente
Luís Felipe Ribeiro, ao analisar Lucíola, em seu Mulheres de Papel, num capítulo
intitulado A virgindade da alma”:
Como num passe de mágica, o narrador passa do
embevecimento à indignação. Quando os valores sociais se
interpõem entre ele e Maria da Glória, passa a ver nela a figura
de Lúcia. O preconceito social se exprime na observação de
que uma mulher desacompanhada só poderia ser o que o seu
desamparo social revelava. Por outro lado, a observação de Sá,
enciclopédia de mundanidade, revela uma outra faceta do
mesmo problema. Ao afirmar que ela o era uma senhora,
desqualificava-a social e moralmente; mas, ao dizer que é, ao
contrário, uma mulher bonita, está sugerindo que a beleza, o
erotismo e o prazer se encontram nessas mulheres
“perdidas”. Tese, aliás, que se sustentada por muitas outras
narrativas, e não dentre as pertencentes ao chamado
Romantismo. O prazer e a instituição não podem ser
encontrados juntos nesse universo de convenções e repressões
que se chama a “boa sociedade”.
19
Levando-se em consideração que houve a própria queda do anjo”, na visão de
Paulo, neste momento, a derrubada foi operada por Sá, representante da “boa
sociedade”. Mas Paulo não se conforma e a decepção é tanta que o acontecimento é
reiterado em outros momentos da narrativa, ainda que de forma metafórica:
Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos, admirar
alguma das brilhantes parasitas que pendem dos ramos das
árvores, abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a
linda flor, em vez da suave fragrância que esperava, sentiu o
cheiro repulsivo de torpe inseto que nela dormiu, não a atirou
com desprezo para longe de si? (Lucíola, II, p. 127)
Na casa de Sá, durante uma orgia, o ponto culminante da degeneração de
Lúcia. A partir d, se dá o encontro das almas entre ela e Paulo, num ‘crescendo’
redentor: a descoberta do amor, o afastamento do ambiente de luxúria da cidade para o
retiro purificador – uma chácara em Santa Teresa e, enfim, a morte, que, assim como no
19
RIBEIRO, 1996: p. 94-95.
33
Simbolismo, liberta a alma pura de um corpo-cárcere para sempre marcado pela
prostituição.
A tão estudada dualidade entre corpo e espírito faz com que um realmente
exclua o outro, pois quando Lúcia assume completamente o seu lado Maria da Glória,
retirando-se para a casa de Santa Teresa, são excluídos também os contatos físicos entre
o casal, como se estes fossem próprios da cortesã Lúcia e conspurcassem a alma “Maria
da Glória”. Tal como os simbolistas desenvolverão mais tarde, no caso desta, o corpo é
o cárcere da alma e é por isso que ela morre: liberta o espírito para amar Paulo.
Nas influências sofridas por Alencar em Lucíola, vale que se ressalte A Dama
das Camélias, de Dumas, que apresenta muitos pontos de contato com o romance do
escritor brasileiro: a protagonista prostituta dividida entre a pureza do amor e a cula
do corpo é o tema decalcado.
Assim, Lucíola, Inocência e Iracema constituem o paradigma do amor
idealizado, romântico, trágico, na Literatura Brasileira.
2.2.1 - O obstáculo à realização do amor em Lucíola: desejo X virtude
Lucíola representa o verdadeiro embate entre a visão de amor ferinus”, que a
sociedade imputa tradicionalmente às prostitutas, e amor divinus”, aquele
experimentado em relação a Paulo. Tal divisão é conceituada pela estudiosa Marilena
Chauí em um ensaio intitulado “O fogo escondido”, e publicado na coletânea O Desejo,
organizada por Adauto Novaes, que demonstra o tema-título sob diversas óticas, de
correntes diversas da psicologia e da filosofia: amor ferinus, desejo sensual para
sempre carente e insatisfeito, e amor divinus, desejo intelectual destinado à bem-
aventurança da plenitude
20
. Segundo o conceito da autora, com o qual fazemos coro,
o amor e a morte de Lúcia representariam não apenas a purificação da alma, mas
também a realização da plenitude amorosa, não significando, portanto, um desfecho
trágico.
20
CHAUÍ,1990: p. 23
34
Tão pungitivo poderia ser o desejo e tão íntima a contemplação,
que desprendesse completamente e retirasse a alma do corpo,
enquanto os espíritos se desligam, devido à sua forte e apertada
união, de tal forma que a alma, prendendo-se ternamente no
desejado e contemplando o objeto, poderia em breve tempo
deixar o corpo de todo exânime [...] Por isso os sábios declaram
que os bem-aventurados morrem beijando a divindade [ morte
per bocha di Dio], arrebatados pela amorosa contemplação e
união divina
21
Sobre este ponto, também nos fala Antonio Candido: A imagem da mulher
triparte-se na mulher-pureza que enobrece com o seu amor sincero; na mulher-sedução
que se torna corruptora; e naquela que, envilecida, pode ser redimida pelo amor.”
22
O crítico relaciona o primeiro tipo a Aurélia, de Senhora, e os outros dois a
Lúcia/ Maria da Glória, de Lucíola. No entanto, a última consegue, na verdade,
concentrar os três tipos, já que aparece envilecida pela posição de prostituta, como por
exemplo na orgia em casa de Sá; como possuidora de um sentimento puro, quando se
dedica exclusivamente a Paulo, sem trocas monetárias, e redimida ao renunciar à vida e
tornar-se só amor, só espírito.
O Romantismo brasileiro apresentava uma tendência à religiosidade cristã. Esta,
por sua vez, herdou do estoicismo romano a concepção de que ao desejo está ligada à
perda da virtude. Nos estudos sobre o tema, diz-se até que a expressão prazeres
vergonhosos” seria um pleonasmo.
Marilena Chauí, ainda no ensaio anteriormente referido, cita Sêneca, e nos diz
que o pensador realça com ainda mais força essa associação de ‘prazer’ com ‘maus
costumes:
[...] O prazer habitualmente se esconde e procura as trevas, fica
nas vizinhanças das casas de banho, das saunas e dos lugares
que temem a polícia; é mole, não tem força, é úmido de vinhos
e perfumes, pálido ou pintado, embalsamado com ungüentos
como um cadáver
23
Diante de tais proposições e das considerações sobre a tendência religiosa do
período literário em que a obra está inserida, pode-se entender porque Paulo evita Lúcia
21
CHAUÍ, 1990:p.23
22
CANDIDO & CASTELLO, 1987: p. 159.
23
CHAUÍ, 1990: p. 67
35
com todas as suas forças e, como, ao narrar, usa as mesmas tintas de neca ao falar do
prazer. O capítulo VI de Lucíola, que compreende algumas das descrições mais ricas da
obra, exemplifica bem a idéia do prazer escondido, embalsamado por bebidas, comidas
e perfumes. Trata-se do capítulo destinado a narrar a festa em casa do Sá. O primeiro
fator enfatizado é exatamente o isolamento da casa em que se dará a orgia, para que
nada de vergonhoso/ prazeroso ‘escape’ do ambiente:
Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma chácara, que
caprichara em preparar. (...)
A sua casa de moço solteiro estava para isso admiravelmente
situada entre os jardins, no centro de uma chácara ensombrada
por casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos
estouros báquicos ou das canções eróticas escapava pelas frestas
das persianas verdes, confundia-se com o farfalhar do vento na
espessa folhagem; e o ia perturbar, nem o plácido sono dos
vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por
ali velasse a horas mortas.(Lucíola, cap.VI, p. 145)
Quanto à citada ‘umidade’, o capítulo é rico em exemplos de embriaguez, sendo
citadas várias bebidas alcoólicas: o borgonha, o porto, ‘kirsch’, ‘rum’, gengibrada,
assim como há referências às cores, sabores e aromas marcantes:
Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial. Suntuosa e
delicada, como a sabem preparar aqui, sorria aos olhos e
trescalava de aromas penetrantes e deliciosos, que iam prurir as
fibras gástricas. Esse perfume sibárico e o aspecto brilhante das
iguarias esquisitas, entre as irradiações do cristal e os reflexos
áureos, rubros ou violáceos do madeira, do porto e do borgonha,
é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião de gosto
oferece aos seus hóspedes; porque nesse bocado homérico os
olhos e o olfato servem com fartura ao paladar um pouco de
tudo; um primor de todos os manjares que a capacidade do
estômago não permite absorver. .(Lucíola, cap.VI, p. 145)
Quanto à palidez e à maquiagem, exemplos em capítulos diversos: Estava
excessivamente pálida, e cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio(...)
Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela .(Lucíola, cap.XIII, p. 190)
Toda a obra é pontuada desses exemplos, representando, a um tempo, a época
em que foi produzida e todo o preconceito da sociedade, ao qual não ficaram refratários
36
os próprios protagonistas. Os estudos de Antonio Candido corroboram esta visão, o que
se comprova quando este diz que “(...) o Romantismo aparece realmente com o
Cristianismo; com a noção de pecado, os dramas da consciência, o dilaceramento
interior.”
24
José de Alencar assume a moral cristã, presente desde o início do Romantismo,
em contraposição aos ideais clássicos de literatura. O cristianismo prega a castidade
feminina antes do casamento, havendo, inclusive, na cerimônia religiosa, uma
simbologia que a representa: vestido branco, flores de laranjeira... e sendo a mácula do
corpo motivo para anulação da união religiosa, caso o noivo a pleiteie. E Lúcia
cristaliza esta moral e todo o preconceito arraigado na sociedade: como a perda da
virgindade é irrevogável, assim como o seu passado de comércio do corpo, ela está
eternamente condenada a não se unir a ninguém por amor, ainda que tal união passe
longe da igreja. Segundo a própria Lúcia, essa palavra divina do amor, minha boca
não a devia profanar enquanto viva” (Lucíola, XXI , p.249 )
Confirma-se tal perspectiva quando Lúcia oferece a mão de sua casta ir Ana
em casamento a Paulo: ela estaria pronta a desposá-lo. E o discurso acena exatamente
com a impossibilidade que a interdita ao amor integral de Paulo:
Porque este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a
consagração da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de
minha parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-
te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia
eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver
da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela
minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens;
e minha alma entre a sua boca e a tua gozaria dos beijos de
ambos. Que suprema delícia... (Lucíola, XXI, p. 246)
O desespero de Lúcia faz com que, em nome da moral, faça a Paulo uma
proposta completamente amoral como sendo algo simples e comum. Ela busca uma
forma de não transformar a autopunição em castigo a ele também.
Há que se destacar que a idéia de que Lúcia está completamente perdida parte de
sua própria ótica, não sendo compartilhada por Paulo. Ele, por sua vez, se compara a
24
CANDIDO, 1979: p. 300.
37
ela e confessa não ser puro nem de alma. Mas Lúcia não leva isso em consideração,
pois os costumes machistas vigentes não prescrevem a castidade masculina. Pelo
contrário: para preservar o casamento e a pureza de suas noivas e esposas é necessário
que freqüentem as mulheres de vida fácil a fim de saciar-se dos prazeres mundanos, -
como numa questão de equilíbrio necessário. Alencar, decididamente, cendossa a moral
vigente, nesse aspecto. Mas não a impossibilidade do matrimônio pune Lúcia pela
cula física: seu corpo não pode também abrigar a pureza de um filho com aquele a
quem ama com toda a alma, matando este fruto, pois.
Se Lúcia não pode ser perdoada e, portanto, está definitivamente impedida para
o matrimônio e para a maternidade, social e religiosamente, é como se o seu amor e o de
Paulo não existisse, ainda que ele tenha aceitado a relação sem contato carnal,
convivendo diariamente com a amada, felizes, enfim. Dada a falta de saída, de frutos,
de continuidade mesmo, para esse amor cheio de obstáculos, morre o corpo de Lúcia,
para que estes sejam eliminados de vez.
Não é incomum, no Romantismo, a exclusão da relação física no amor
cultuam-se amores puros e idealizados, e a sexualidade é, não raro, a parte suja” das
relações amorosas. Em Lucíola é descartado o sexo entre Maria da Glória e Paulo, para
viverem em paz; em O Guarani, Loredano é o único personagem portador de um desejo
sexual desvelado – e é o vilão.
O homem romântico expressa uma nova ordem social e, se exprime a sua
experiência individual, é porque se deixa envolver pelo clima do momento. Caso o
autor se mostre muito inovador, questionando sobremaneira a realidade circundante, a
obra não é bem aceita, como aconteceu com a peça teatral alencariana As asas de um
anjo, embora Lucíola seja construção quase idêntica. O fato é que condizia muito mais
com o momento social que a relação entre Paulo e Lúcia não passasse dos donios da
alcova. Seria inaceitável que um homem constituísse família com uma prostituta e
circulasse incólume na sociedade. E se a vida resolvesse imitar a arte?
uma aproximação das linhas gerais da peça teatral As asas de um anjo e do
romance Lucíola. Em ambos uma moça oriunda de família pobre perde-se na
prostituição, mas conserva um amor puro, resguardado de toda a sujeira mundana.
38
Ainda assim, a protagonista da peça, Carolina, delineia-se muito mais pérfida
que Lúcia. Em contrapartida, o herói, Luís, é muito mais puro e nobre que o Paulo do
romance.
Outras diferenças importantes distanciam tais obras de diferentes gêneros: Lúcia
surge na narrativa quando prostituta; Carolina, ainda pobre, sonhando com riquezas e
com um tal moço da sociedade, o Ribeiro, que foge com ela. Em Lucíola, a
protagonista interdita seu corpo à concepção; na peça, Carolina chega a ter uma filha,
mesmo que de outro homem que não Luís.
Apesar destes distanciamentos há pontos de contato inegáveis, talvez cenas
inspiradoras do romance, presentes no texto dramático. Os sonhos de festas, jóias e
luxo, reiterados por Carolina, transformam-se na realidade repudiada por Lúcia.
Vejamos a semelhança entre este trecho da peça e a cena da orgia em casa do Sá, que
acontece exatamente após uma apresentação teatral, em Lucíola:
RIBEIRO: Tu és bonita, e Deus criou as mulheres belas para
brilharem como as estrelas. Terás tudo isso, diamantes, jóias,
sedas, rendas, luxo e riqueza. Eu te prometo! Quando
apareceres no teatro, deslumbrante e fascinadora, verás todos os
homens se curvarem a teus pés; um murmúrio de admiração te
acompanhará; e tu, altiva e orgulhosa, me dirás em um olhar:
Sou tua.
CAROLINA: Tua noiva?
RIBEIRO: Tudo, minha noiva, minha amante. Depois iremos a
nossa felicidade e o nosso amor num retiro delicioso. Oh! Se
soubesses como a vida é doce no meio do luxo, em companhia
de alguns amigos, junto daqueles que se ama, e à roda de uma
mesa carregada de luzes e flores!... o vinho espuma nos copos e
o sangue ferve nas veias; e os olhares queimam como fogo; os
lábios que se tocam esgotam ávidos o lice de champagne
como se fossem beijos em gotas que caíssem de outros lábios...
Tudo fascina; tudo embriaga; esquece-se o mundo e suas
misérias. Por fim as luzes empalidecem, as cabeças se
reclinam; e a alma, a vida, tudo se resume em um sonho (As
asas de um anjo, p.227/228)
Também em As asas de um anjo toca-se na divisão corpo X alma, tão cara ao
Romantismo. Na voz da protagonista Carolina, lemos: “- E que zombem, não faz mal.
Toda a criatura boa tem seu fraco; assim, toda a mulher, por mais desgraçada que
seja, conserva sempre um cantinho puro onde se esconde a sua alma. “ (As asas de um
anjo, p. 263)
39
Em gérmen, há também, em As asas de um anjo, o destino de Lúcia, em Lucíola.
A sociedade e, com ela Paulo e própria cia não perdoa a mácula do corpo à mulher.
Na fala de Carolina é possível apreender tal posicionamento social que, se o é efetivo
em relação a esta (pois ela não é abandonada pelos amigos e todos estão sempre à sua
volta, dispostos a perdoá-la), e-se no tocante a Lúcia, no romance de Alencar.
Vejamos o trecho da peça que diz respeito a isso:
LUÍS Não fale assim, Carolina; a sociedade perdoa muitas
vezes.
CAROLINA Perdoa a um homem como este; recebe-o sem
indagar do seu passado, sem perguntar-lhe o que foi; contanto
que tenha dinheiro, ninguém se importa que a origem dessa
riqueza seja um crime ou uma inmia. Mas, para a pobre moça
que cometeu uma falta, para o ente fraco que se deixou iludir, a
sociedade é inexorável! Por que razão? Pois a mulher que se
perde é mais culpada do que o homem que furta e rouba?
MENESES – Não, decerto!
CAROLINA Entretanto, ele tem um lugar nessa sociedade,
pode possuir família! E a nós, negam-nos ao direito de amar!
A nossa afeição é uma injúria! Se alguém se arrependesse, se
procurasse reabilitar-se, seria repelida; ninguém a animaria com
uma palavra; ninguém lhe estenderia a mão... (As asas de um
anjo, p. 274)
As asas de um anjo está muito mais inserida nos moldes cristão do Romantismo
do que Lucíola, embora a peça tenha sido proibida após apenas três exibições. Vejamos
um dos trechos exemplares de tal afirmação:
MENESES (...) criaturas neste mundo que se tornam
instrumentos da vontade superior que governa o mundo. Não
foi Carolina que o arruinou, que do moço rico fez um cocheiro
de tílburi; foi, sim, a vaidade, a imprudência, e o desregramento
das paixões, sob a forma de uma moça. Incline-se, pois, diante
da Providência; e respeite na mulher desgraçada a tima do
mesmo erro, e o agente de uma punição justa. (as asas de um
anjo, p. 276)
A crítica social alencariana condiz com o desenvolvimento do Romantismo o
no Brasil, como também na Europa. As mudanças sócio-econômicas imprimiram no
estilo certas aspirações reivindicatórias, principalmente contrárias às bases sobre a qual
40
se estruturava a sociedade. E José de Alencar reflete a tendência questionando
costumes.
O amor-paixão, neste contexto, reclama seus direitos e sua liberdade em face
de restrições ou preconceitos de ordem moral e social
25
e é, em Alencar,
importantíssima peça do já citado questionamento. O amor puro entre Lúcia e Paulo,
por exemplo, inconcebível pela sociedade pelo fato de ela ser uma prostituta, realiza-se,
a despeito da ordem moral estabelecida.
É certo que triunfem a intuição e a fantasia no Romantismo, mas ainda assim o
questionamento da sociedade é feito sob os limites do bom senso do autor, para que sua
obra não seja relegada à marginalidade. Autor, personagens e sentimento amoroso
em-se sob o jugo da opinião pública, ou seja, a liberdade criadora dos artistas é, em
parte, condicionada por normas sociais. Eles têm a escolha das situações e dos choques,
mas estas provêm do aspecto cultural.
O amor entre Paulo e Lúcia, ainda que não ofereça ao leitor o “final feliz”,
exprime o questionamento, a insatisfação com o estado de coisas: é uma expressão de
inconformismo social e de ideal libertário. Lúcia retrocede na luta pelo amor porque
reconhece que a pressão social faria Paulo infeliz, se assumissem tal sentimento. Além
disso, ela também internalizou o preconceito acerca da sua condição, visto que também
fazia parte da sociedade (aliás, a função social da prostituta, de equilíbrio da libido, é
hisrica). A o aceitação do amor de Paulo por Lúcia justifica-se pelo fato de a
prostituição ser tida como irremediável, maculadora até mesmo da alma.
A aceitação total do amor, da maternidade, da carnalização unida ao espírito
aproximaria Lúcia da realidade, destituindo-a do caráter de heroína romântica e, ainda
mais, alencariana.
Alencar não opera o questionamento social através da trajetória de Lúcia,
propriamente, mas através da narração e do amor de Paulo. Os laivos de preconceito
que aparecem neste narrador são, geralmente, exteriores, impostos por marcadores
sociais, como o Sá. A sua recusa de fato se mostra tênue, mas inteligível dentro do
contexto da obra: diferentemente do Luís, de As asas de um anjo, Paulo sequer sugere
um casamento regular, porque ele também, de certa forma, internalizou os preconceitos.
25
ALENCAR, 2002: p. 232
41
A revelação do interior dos protagonistas coloca o leitor a seu favor e talvez por
esse motivo a renúncia de Lúcia à vida não revele uma aceitão passiva da
infelicidade.
Diz-nos Antonio Candido, sobre o Romantismo, que, ao ideal de pureza do
amor, junta-se a noção dos direitos do coração, o que freqüentemente vai de encontro
aos valores sociais e morais”.
26
E continua, numa análise passível de ser relacionada ao
amor, conforme apresentado em Lucíola: nesse caso, chega-se mesmo à defesa do
amor livre de conveniências ou convenções, só justificado perante Deus.”
27
Tu me purificaste ungindo-me com os teus bios. Tu me
santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o
consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no
céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia
profanar, enquanto viva. Ela se meu último suspiro. .(Lucíola,
cap.XXI, p. 249)
O fato de Lucíola, de Alencar, e Inocência, de Taunay romperem com os
padrões sociais, não representa uma crítica a tais padrões, conforme era usual na
literatura alencariana, como também reforça a característica do individualismo
romântico. O destino de cada personagem, sendo uno, separa-o da sociedade,
contrapondo-se mesmo a ela.
O individualismo, destacando o homem da sociedade ao forçá-lo sobre
o próprio destino, rompe de certo modo a idéia de integração, de
entrosamento quer dele próprio com a sociedade em que vive, quer
desta com a ordem natural entrevista pelo século XVIII. Daí certo
baralhamento de posições, confusão na consciência coletiva e
individual, de onde brota o senso de isolamento e uma tendência
invencível para os rasgos pessoais, o ímpeto e o próprio desespero.
28
É este individualismo que será especialmente rejeitado pelos realistas. Nas
obras românticas citadas, o ímpeto de Inocência, de querer desafiar a tradição do
casamento arranjado e o amor puro entre a prostituta Lúcia e um rapaz da sociedade são
26
CÂNDIDO & CASTELLO, 1987: p.159
27
CÂNDIDO & CASTELLO, p. 159
28
CÂNDIDO, 1979, p. 23.
42
mais uma autêntica prova do individualismo romântico de que estão imbuídas tais
personagens. E a temática amorosa é o instrumento desta reiteração.
A dialética perceptível no conflito entre indivíduo e grupo, apresentada em
Lucíola (a prostituta que se apaixona X toda a sociedade em que está inserida) é muito
cara à imaginação romântica. É fruto da transfiguração normal operada na realidade
para o romance; realidade essa, observada, herdada e transmitida.
A atitude de recusa de Lúcia é tipicamente romântica por significar a dolorosa
consciência do irreversível.
Além disso, o desfecho romântico pode ser trágico, desde que sentimental,
que, em geral, os românticos buscam uma desobediência a regras, contrapondo-se à
fixidez do neoclassicismo. Imprime-se a perspectiva pessoal do autor, o que exclui a
necessidade de desenlaces perfeitamente felizes como o de A moreninha, de Joaquim
Manuel de Macedo.
Lúcia, assim como o eu-lírico das poesias ultraromânticas, prefere abandonar-se
à morte, oferecendo a ir a Paulo, a macular sentimento tão puro com seu corpo
marcado pelo passado de prostituição. Destarte, em nome do amor, Lucíola vai do
vulgar ao sublime, do poético ao sarcástico e prosaico. De qualquer forma, o que
de substancial na temática romântica é a reivindicação da liberdade de exprimir a vida,
a partir da condição individual, surpreendendo a sua riqueza interior e a sua
inadequação à realidade
29
A entrega da personagem à morte corresponde ao sentimento dos poetas do Mal
do Século: em parte, o desejo de fuga, bastante encontradiço na literatura romântica; em
parte uma significativa manifestação de associação do sentimento amoroso à iia de
morte, representando a libertação da alma e do sentimento puro do corpo-cárcere
(metáfora tão cara, posteriormente, aos simbolistas).
A fuga se justificaria exatamente pela irreversibilidade das marcas deixadas pela
vida mundana: por não se considerar e não ser considerada digna de usufruir de um
amor verdadeiro.
a associação entre amor e morte sugere a transcendência, a purificação a que
os dois podem levar. Segundo esta abordagem, Lúcia segue o paradigma romântico do
sentimentalismo masoquista, morrendo por amor. A morte, inclusive, a transforma em
29
CANDIDO & CASTELLO, 1987: p. 162.
43
uma espécie de heroína, como se seu caráter ilibado e seu puro amor ficassem mais
convincentes se postos acima da harmonia sentimental.
Se não lógica na atitude de Lúcia ao oferecer sua ir para casar-se com
Paulo, esta é exatamente uma atitude em conformidade com o estilo romântico. Trata-
se ao mesmo tempo de uma ação simbólica da recusa a si própria e de profundo amor a
Paulo, por querer oferecer-lhe o que via de melhor no mundo: a pureza . O ilogismo, o
desrespeito às tradições e convenções são algumas das tônicas do espírito romântico.
Na verdade, a tentativa de se fazer “trocar” por Ana na união com Paulo
representa o ápice do delírio doloroso de Lúcia, a exacerbação do sentimento e da
paixão, que, bem ao estilo romântico, contraria qualquer atitude racional ou previsível.
O desfecho representa um meio-termo entre o que constituiria a verdade
sentimental e o que seria a verdade hisrica. Vale lembrar que, além da nobreza de
sentimentos e da elevação de caracteres, são características do Romantismo os detalhes
de costumes e de cor local, assim como o fornecimento de uma ilusão do verdadeiro,
real e acontecido. Sendo assim, nem Lúcia vence a sociedade tradicional, nem
Inocência e Cirino, da obra de Taunay vencem os costumes patriarcais. A realidade,
nesses casos, é bem idealizada, assim como a perfeição do sentimento amoroso. Mas o
desenlace, não.
Antonio Candido, ao analisar os pontos-de-vista de Machado de Assis, produz
um trecho que explica bem o compromisso a que se atam tais finais de obras:
Entendeu que os estilos sucessivos, através do tempo, representam, do
ponto de vista histórico, compromissos circunstanciais com o momento
e a ideologia dominante, o que determina o tratamento temático,
enquanto se processa o aprimoramento dos recursos expressivos.
30
44
2.2.2. Lucíola: a exaltação do amor através da ótica do narrador –personagem
Através das lentes de Paulo, em Lucíola, percebe-se que a imagem da
protagonista depende de como ele a julga em determinado momento. Ela aparece
abatida, doente, quando os acontecimentos fazem-na sofrer; descrevê-la assim é uma
espécie de preparação realizada pelo narrador, que sabe antecipadamente de sua morte
ocasionada pelas ‘chagas da alma’. Por outro lado, muito bela aparece Lúcia ao
entregar-se a Paulo por amor. Quanto a esta reprodução física de Lúcia, feita por ele,
pode-se aproximar do conceito de “imagem criada”, de Bachelard. Segundo ele, há um
distanciamento entre a imagem percebida e a imagem criada, como duas instâncias
psiquicamente diferentes e, para explicitar o conceito, o mesmo autor cita Novalis: Da
imaginação produtora devem ser deduzidas todas as faculdades, todas as atividades do
mundo interior e do mundo exterior
31
É exatamente impregnando a imagem de Lúcia com seus próprios sentimentos
que Paulo produz determinadas imagens.
O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce
claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora
uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os
lábios finos e delicados pareciam midos de desejos que
incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas
transparentes da narina que tremiam com o anélito do respiro
curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a
pupila negra. .(Lucíola, cap.IV, p. 136)
A forma autobiográfica forjada por Alencar na narração de Paulo ao leitor de
Lucíola a ilusão de que o romance penetra diretamente no coração da personagem,
apenas com a intermediação do tempo.
Aliás, esta prática pode ser considerada pica da narrativa romântica, que
permeia a narrativa de subjetividade. Antonio Candido versa sobre o assunto da
seguinte maneira: Se em primeira pessoa, sobretudo quando o romance, novela ou
conto são em forma epistolar, adquirem ênfase o subjetivismo e a sentimentalidade,
30
CANDIDO & CASTELLO, 1979: p. 299.
31
NOVAES, 1990: p. 13
45
assim como o tom confidencial da narrativa
32
. E é exatamente desta forma que se
constrói Lucíola: Paulo como narrador em primeira pessoa, fazendo ainda a introdução
à narrativa na forma epistolar, embora o desenrolar do enredo se distancie desta, tal o
envolvimento com os fatos narrados.
De acordo com as impressões de Paulo, dá-se mais ou menos relevo às cores
com que Lúcia está vestida, variando, inclusive, com a cena narrada. O ‘quadro’
pintado tem ligação direta com o aspecto psicológico do narrador, assim como com o
posicionamento da protagonista nas diferentes partes da narrativa. Como afirma Helmut
Hatzfeld:
A exaltação da visão e a ênfase na sensação (...) recorrem a
substantivos vistosos e a epítetos coloridos, os quais acabam, afinal,
mudando a tônica de um estilo verbal, necessariamente mais pálido,
para um estilo nominal pictórico, no qual até as nuances psicológicas
só logram expressar-se por traços e gestos fisionômicos.
33
Em Lucíola tal estratégia é recorrente, chegando a criar certa curiosidade no
leitor no que diz respeito à simbologia das cores e sua relação com os sentimentos
suscitados em determinados trechos da obra. No momento em que Paulo Lúcia no
Outeiro da Glória, desconhece sua posição social. As cores com que a envolve são
sóbrias, elegantes, em nada lembram a volúpia daquela que via conhecer, tanto que
diz realçarem pureza, suavidade. A natureza condiz com essa atmosfera e o céu mostra-
se limpo: azul e estrelado, como mais um elemento identificador do estado de espírito
do narrador. Na verdade, a visão de Paulo é que, ainda pura, pinta um quadro de pureza
naquilo que vê.
A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri
nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um
instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas
sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe
esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento
com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um destes rostos
suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menos sopro,
como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda
contemplação doce melancolia e não sei quê laivos de tão ingênua
castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa
aparição. (Lucíola, cap. II p. 124 - grifos nossos)
32
CANDIDO & CASTELLO, 1979: p. 166
33
COUTINHO, 2002: p. 10.
46
Depois, durante a sua relação com Lúcia, Paulo traz à baila rendas, penas
escarlates, ornatos caríssimos, jóias... tudo o que identificaria a cortesã, (“Júbilo
satânico dava a essa criatura ares fantásticos e sobrenaturais entre as roupas de negro
e escarlate
34
Lucíola, XIV, p. 195) para, ao final, destruir essa imagem e voltar à
moda da virgem pura, a renascida Maria da Glória, no retiro de Santa Teresa, com a
timidez de seu olhar velado pelos longos cílios, com o modesto recato de sua graça e o
seu vestido de cassa branca, Lúcia parecia-me agora uma menina de quinze anos, pura
e cândida” .( Lucíola, cap. XVIII p. 224)
O romancista usa como pretexto o amor de Paulo para fazê-lo porta-voz de cenas
detalhadíssimas e, segundo Heron de Alencar, para ele a arte de narrar consistia em
pintar com as palavras. Daí o predomínio do elemento descritivo, a descrição tendo
mais importância do que a coisa descrita
35
.
Para a construção do sentimento amoroso, tais observações são cruciais, pois a
passagem da imagem à imaginação traz uma diferença fundamental para a questão do
desejo
36
Paulo ama a Lúcia que criou em sua imaginação, o que a aproxima do padrão
da heroína romântica, idealizada, já que a história passa por ele, que funciona como
‘filtrodo que seria a imagem. Sobre imagem e imaginação, levamos em conta aquí o
conceito adotado por Adauto Novaes, que cita, por sua vez, Marilena Chauí:
A imaginação é idéia imaginativa , como escreveu Marilena
Chauí: “A imagem tem uma origem corporal (imago) e uma
réplica anímica (imaginatio) é uma afecção do corpo e uma
representação dessa afeão. Quando imagina, a alma não tem
idéia da imagem; simplesmente possui uma representação da
imagem, razão pela qual ‘reproduz figuras das coisas’. A
imaginação não é imago nem figura, é idéia imaginativa
37
A construção de Lucíola tendo Paulo como narrador-personagem faz com que a
liberdade de expressão da paixão avassaladora seja maior, de um colorido mais vibrante,
excluindo qualquer tom de objetividade.
A tradução deste trecho, originalmente em inglês, encontra-se na página 10 da mesma obra. Os grifos são
nossos.
35
COUTINHO, 2002: p. 268
36
NOVAES, 1990:. p. 13
37
NOVAES, 1990: p. 52.
47
Como Paulo está num tempo posterior ao do enunciado, vale-se da memória e do
sentimento de reviver situações através da narrativa, portanto a figura de Lúcia é
imaginação de Paulo e não imagem, tamanho o envolvimento do narrador.
Sendo assim, Paulo se apaixona ao ver Lúcia na carruagem, antes de conhecê-la.
A imagem que faz da amada cai por terra, ‘morre’, ao se deparar com a realidade de que
é uma prostituta. Ainda assim a imaginação romântica acena com a possibilidade de
que o seu amor por ele seja puro, diferente. Esse embate é gerador da complicação do
enredo e fonte das iias contradirias de Paulo à época do enunciado.
Na verdade, o que muitas vezes o se percebe é que ‘puromesmo é Paulo,
cujo coração não consegue aceitar os motivos racionais que lhe impõe a sociedade e,
embora hesite, acaba por aceitar Lúcia/Maria da Glória (mesmo sem assumir uma
relação formal, é bom ressaltar) já que é a segunda que o seu coração enxerga.
Mesmo que ao Romantismo seja permitido qualquer tipo de idealização, Alencar
cria uma provável motivação para esta pureza d’alma de Paulo: ele não foi criado na
Corte e não está acostumado a certas mundanidades, ainda que não desconheça de todo
os prazeres efêmeros, não reconhece quem se dedica a ele.
A própria Lúcia percebe o que/quem Paulo nela e, como prova deste
reconhecimento, ela lhe diz, à beira da morte: Tu me santificaste com o teu primeiro
olhar” (Lucíola, XXI , p.249 )
Ainda que enxergue o caráter primordial da amada, ele a deseja, e deixa de
lado o prazer de tê-la para não torturá-la:
A sua saída repentina fora um ato de desespero para vencer o
gélido espasmo que a marmorizava. Tinha quase esvaziado
uma garrafa de kirsch. Acreditei enfim na sinceridade da
repugnância de Lúcia; renunciei de uma vez ao meu desejo.
Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto me
enterneceu; chorei com ela. (Lucíola, XVIII, p. 222)
Paulo, além de enxergar Maria da Glória, narra para consolidar o seu amor e
para trazer a público esta faceta de Lúcia, redimindo-a perante a sociedade.
No tempo da enunciação, pode-se considerar que tudo é imaginação de Paulo,
visto que os fatos em sua totalidade dependem apenas da memória. A metaforização,
comum nas obras alencarianas, pode, em Lucíola, ser interpretada como uma
confirmação de que os acontecimentos e o próprio caráter da protagonista são revestidos
48
da imaginação romântica do narrador. Estão intimamente ligados, portanto, à
imaginação ao amor e ao desejo.
Discursar sobre a natureza das coisas por meio de metáforas e
alegorias nada mais é do que se divertir e jogar com palavras
vazias porque esses esquemas não exprimem a natureza das
coisas, mas apenas suas semelhaas e aparências [...] Todas as
teorias, na filosofia, expressas somente com termos
metafóricos, não são verdades reais, porém meros produtos da
imaginação
38
Assim sendo, infere-se que o sentimento amoroso é de suma importância na
narrativa romântica pela razão de despertar facilmente a capacidade de identificação no
leitor. Sua força, aliada à linguagem rica em imagens e comparações, diminui a
importância significativa da própria palavra.
Tal sentimento, assim como todas os outros que evocam emoções, é fundamental
para tal estilo, em que qualquer palavra parece não exprimir o que vai n’alma: no
espírito romântico uma profunda vocação rica. Antonio Candido versa sobre essa
incapacidade de expressão frente às emoções, tendência romântica: Entende-se bem
que um movimento literário, marcado pelo sentimento de inferioridade da palavra ante
o seu objeto, tendesse à aliança com a música como verdadeiro refúgio: a música, que
exprime o inexprimível, poderia atenuar as lacunas do verbo
39
As evocações sentimentais para fins de identificação do leitor com a obra eram
o uma questão de estilística, mas pragmática, devido à circunstância da falta de
leitores e de difusão intelectual satisfatória. E a receita para se alcançar o intento era:
emoção fácil e amor em detalhes.
38
CHAUÍ, 1990: p. 52
39
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, vol.II, p. 35
49
2.3 – Amor e sensualidade na prosa romântica brasileira
José de Alencar ousa tratar em Lucíola do aspecto carnal do amor de maneira
bastante direta, pois, à época, este era retratado nos romances como um sentimento
quase assexuado. Mesmo assim, tais imagens foram evocadas por Lúcia ser uma
prostituta, ainda que “vitimada” pelo sentimento verdadeiro.
Lucíola apresenta uma forte marca de sugestão sensual. No entanto, as cenas
que sugerem maior sensualidade não estão ligadas diretamente ao amor e ao desejo, e
sim à revolta de Lúcia por sua condição. Uma delas é o já citado episódio da festa na
casa do Sá, em que Lúcia faz um strip-tease; a outra se ao perceber as intenções
pouco louváveis de Paulo nas primeiras vezes em que vai a sua casa:
Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado,
ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se
embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios
modestamente ocultos pela cambraia. Com o seu primeiro movimento,
Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor
resistência, com um modo de tímida resignação.
Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito
estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me
que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e
precípites. Estava vida e mais branca do que o alvo colarinho do seu
roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como
dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face,
deo lentas que rolavam.
(...)
Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te
desagrado por qualquer motivo, dize francamente que eu tomo o meu
chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os
outros, não percas tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor
pode divertir os mocinhos de dezoito anos e os velhos de cinqüenta;
mas afianço-te que não lhe acho a menor graça.
(...)
Não me ofendi; e a prova é que não lhe dei sinal de desagrado, nem
conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e
não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.
(...)
Era uma transfiguração completa.
Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes
despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve
resistência dobrava-se sobre si mesma como uma cobra, e os dentes de
rola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que
lhe punha obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares,
50
as traas luxuriosas dos cabelos negros rolavam pelos ombros
arrufando ao contato a pele melindrosa(...) eu vi aparecer aos a meus
olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa
nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo
as uvas de Corinto.
(...)
É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade
que cauterizava.
(...)
De repente surgiu lívida, estendeu a mão aberta. Ouvi uma palavra
soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei.
(...) me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face dessa mulher.
(Lucíola, cap.IV, p. 135-137)
Toda a volúpia apresentada por Lúcia veio precedida de uma dor muito forte,
causada pelo fato de Paulo tratá-la como todos os outros homens, como mera prostituta,
quando estava oferecendo seu amor puro, e não pretendendo vender seu corpo a ele.
Sendo assim, mostrou-se como aparecia para os outros, de forma sarcástica, encenada, e
o por amor de fato. Desta maneira, uma das cenas mais sensuais da obra de Alencar
o tinha finalidade amorosa, mas vingativa, e deu-se como mera encenação da
personagem.
A lembraa de uma inocência perdida é não apenas possibilidade
permanente duma pureza futura (que desabrocha ao toque do amor),
mas a própria razão do seu asco à prostituição. A vigorosa luxúria com
que subjugava os amantes é um recurso de ajustamento por assim dizer
profissional, que consegue desenvolver; uma espécie de auto-
atordoamento; quase de imposição, a si mesma, duma personalidade de
circunstância que se amoldasse à lei da prostituição, preservando intacta
a pureza que hibernava sob o estardalhaço da mundana. Por outras
palavras, a sua sensualidade desenfreada nos aparece como técnica
masoquista de refoo do sentimento de culpa, renovando
incessantemente as oportunidades de autopunição. Este processo
psíquico, admiravelmente tocado por Alencar no mais profundo de seus
livros, reduz-se em termos da presente análise a uma dialética do
passado e do presente, cujo desfecho é a redenção final.
40
Tal análise de Antonio Candido esclarece muito apropriadamente a percepção de
Paulo de uma Lúcia transfigurada em poucos minutos. Ao ser tratada como prostituta,
40
CANDIDO, 1979: p. 228.
51
Lúcia se impõe uma personalidade que se amolda ao tratamento recebido, quando antes
apresentava a pureza do ser apaixonado.
Já no que diz respeito a Paulo, neste trecho, mostra-se o embate entre o amor e o
drama da convenção que amarra o burguês ao seu papel e que, neste episódio, aliena-o
do que, no tempo da enunciação, reponta nele de autêntico... que tarde demais. Toda
a resistência inicial dá-se em benefício da coerência exigida pela posição na sociedade.
A complexidade da personagem Lúcia reside exatamente na aparente
contradição que na mistura da pureza e da mundanidade num ser. A
temperamental personagem vai da raiva, da perfídia, ao amor puro, magoado, à
fragilidade total, em minutos. A importância desta complexidade para o tema é que, a
partir do amor, surge Maria da Glória. A sociedade conhecia uma faceta de Lúcia, a
que demonstrava frieza, a de sentimentos embotados pela prostituição, pela reificação.
Ressalte-se que, tanto o retrato social verossimilhante, de que falaremos adiante,
como esta união de características contrastantes em uma mesma personagem o
comuns no drama teatral romântico. E, como já vimos, Lucíola é obra baseada em peça
teatral do autor, censurada na época: As asas de um anjo, apresentando o romance
enredo bastante semelhante ao da peça.
Conhecendo-se, ainda, as considerações gerais de Heron de Alencar sobre o
gênero dramático no Romantismo, ainda que neste momento o faça referência direta à
obra de Alencar, é possível perceber a aproximação entre Lucíola e as tendências de tal
gênero:
Foi a própria exigência do drama romântico de fundo histórico,
reunindo problemas sociais, políticos, morais, psicológicos, religiosos,
assuntos vastos, personagens numerosas tratadas na sua evolução, sem
saltos que impôs a ruptura das unidades, pela necessidade de maior
margem de tempo e lugar para movimentar a ação.
Renunciando a essas unidades, o drama romântico virou-se para o
passado nacional e para a história moderna, em lugar da Antigüidade
greco-latina, em busca da forma nova, a cor local”, os costumes, base
da realidade e característica essencial da sociedade. Mas o drama
romântico distingue-se ainda pela união do nobre e do grotesco, do
grave e do burlesco, do belo e do feio, no pressuposto de que o contraste
é que chama a atenção, am de assim mostrar-se mais fiel à realidade
41
41
ALENCAR, 2000: p. 231
52
Ainda assim, através da análise, observa-se que o amor, em Lucíola, não fica
devendo nada ao amor retratado em outras obras do Romantismo, ou ainda do próprio
Alencar, em que as heroínas são moças castíssimas, virgens que nem sequer intentam o
contato carnal com os amados. Lúcia, se tem o corpo conspurcado pela prostituição, é
construída com uma alma virgem, possibilitada, como se viu, pelo dualismo romântico.
Seu amor por Paulo faz com que rridas cenas de amor carnal (assim classificadas de
acordo com a época em que são publicadas) estejam muito aquém da entrega espiritual,
emocional. A entrega do corpo ocorre, inclusive, mais em rompantes de raiva que de
amor propriamente. No entanto, as cores com que Paulo descreve tais cenas, por seu
lado, são apaixonadas e eróticas.
A pureza de Lúcia, Alencar não nos deixa deduzir ou interpretar, pois, na nota
introdutória, a e a nu, valendo-se para isso de uma pseudo-editora que veicula sua
visão da obra. Antecipa-se, assim, ás possíveis críticas dos leitores e tenta reduzir o
impacto na sociedade que o le no século XIX: Lucíola é o lampiro noturno que
brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem
verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d’alma?” (Lucíola,
Ao autor, p. 120)
As imagens dicotômicas neste trecho apontam mais uma vez para a dualidade
corpo X espírito: luz viva X charcos; abismo de perdição X pureza d’alma; nudez do
corpo X vestes de virtude.
Se em Lucíola, para se aproximarem os amantes Maria da Glória e Paulo faz-se
necessário anular a relação carnal, em Senhora, a distância racional imposta por Aurélia
vai se estreitando de acordo com o aumento do desejo carnal por Fernando, ainda que
totalmente metaforizado no romance:
Chegados à saleta, onde costumavam despedir-se, Aurélia
dirigiu-se para o toucador. Na porta, Fernando parou.
-Leve-me que eu não posso comigo, disse Aurélia atraindo-o a
si brandamente.
O marido levou-a ao divã onde ela deixou-se cair prostrada de
fadiga ou de sono. Não tendo soltado logo o braço do Seixas,
este reclinou-se para acompanhar-lhe o movimento, e achou-se
debruçado para ela.
Aurélia conchegou as roupas, fazendo lugar à beira do divã, e
acenando com a mão ao marido que se sentasse. Entretanto,
com a cabeça atirada sobre o recosto de veludo, o colo nu
53
debuxava sobre o fundo azul um primor de estatuária cinzelado
no mais fino mármore de Paros.
Seixas desviou os olhos como se visse diante de si um abismo.
Sentia a fascinação e reconhecia que faltavam-lhe as forças para
escapar à vertigem.
- Até amanhã? – disse ele hesitando.
- Veja se não tenho febre!
Aurélia procurou a mão do marido e encostou-a na testa.
Debruçando-se para ela com esse movimento, Seixas roçara
com o braço o contorno de um seio palpitante. A moça
estremeceu como se percutisse uma vibração íntima, e apertou
com uma crispação nervosa a mão do marido que ele
conservava na sua.
- Aurélia, balbuciou Fernando, que a pouco e pouco resvalara
do divã, e estava de joelhos, buscando os olhos da mulher.
Ela ergueu de leve a cabeça, para vazar no semblante do marido
a luz dos olhos, e sorriu. Que sorriso! Uma voragem onde
submergiam-se a razão, a dignidade, todas essas arrogâncias do
homem. (Senhora, p. 303-304)
Ou, em alguns trechos, de maneira mais sensual e direta:
Aurélia fitou o retrato com delícia. Arrebatada pela veemência
do afeto que intumescia-lhe o seio, pousou nos lábios frios e
mortos da imagem um beijo fervido, pujante, impetuoso; um
desses beijos exuberantes que o verdadeiras explosões da
alma irrupta pelo fogo de uma paixão subterrânea, longamente
recalcada. (...)
Aurélia acabava de voltar-se para ele (Seixas), soberba de
volúpia, fremente de amor, com os olhos em chamas, os lábios
túrgidos, e o seio pulando aos ímpetos da paixão. (Senhora, p.
306)
Se a interdição ao erotismo é definitivamente estabelecida por Maria da Glória,
em Lucíola, Aurélia, de Senhora, sucumbe ao desejo, libertando-se da interdição,
unindo corpo e alma à do amado. Aliás, Aurélia encarna bem a teoria de Georges
Bataille sobre o erotismo: o interdito é, na verdade, o que o cria e o que o intensifica.
Em Lucíola, a união não é plena devido à impossibilidade do amor conjugal,
único a possibilitá-la.
Releva acentuar também, no que tange ao desejo, que, em Senhora, o tema do
relacionamento amoroso aponta para uma certa liberação da mulher, em que ela tenta
impor o interesse, consciente pelo próprio destino. Ainda que tal fato represente uma
54
tendência renovadora, ainda se percebe o compromisso com a realidade social brasileira
que, à época, ainda conspira pela autonomia feminina definitiva.
Por mais fortes e cheias de personalidade que sejam as personagens femininas
alencarianas, no amor, ainda acabam por submeter-se. Iracema abandona sua cultura
para seguir Martim, ainda que não sobreviva; Lúcia enterra-se para renascer Maria da
Glória, casta e simples; Aurélia casa-se com Fernando pretendendo vingança e acaba
por legitimar a união, perdoando-o; Emília joga-se literalmente aos pés de Augusto,
sacrificando seu caráter divino (altivo e casto)... mas o papel social da mulher era
mesmo este: submeter-se. Neste ponto, Emília, de Diva, que talvez se mostrasse a mais
altiva, é a que mais se submete, visto que verbaliza esta subalternidade quando
maltratada, como se esperasse todo o tempo por isso:
Que suprema delícia, meu deus, foi para mim a dor que me
causavam os meus pulsos magoados pelas tuas mãos! Como
abençoei este sofrimento!... Era alguma coisa de ti, um ímpeto
de tua alma, a tua lera e indignação, que tinham ficado em
minha pessoa e entravam em mim para tomar posse do que te
pertencia. Pedi a Deus que tornasse indelével esse vestígio de
tua ira, que me santificara como uma coisa tua! (Diva, XX, p.
244)
É importante ressaltar que, enquanto as mulheres não assumem este “seu papel”
na narrativa, a relação amorosa não se concretiza. Sobre este papel e a sua inversão,
que impossibilita a união em Senhora, Luís Filipe Ribeiro faz uma análise acertada:
A imagem da noite do casamento, com o homem aos s da
senhora, agride os valores da sociedade patriarcal, em que o
homem é naturalmente superior e a mulher deve-lhe submissão
codificada desde sempre. O narrador encarrega-se de não só
invertê-la, colocando Aurélia aos pés de Fernando, mas
fazendo-a, de sua própria voz, enunciar as regras de sua
voluntária submissão.
42
Iracema, ainda que represente a terra idealizada, também obedece ao padrão de
submissão feminina em relação ao homem amado. Esta análise o se deve apenas à
representação que faz a personagem da terra. Poti, amigo de Martim, também é
55
selvagem e, nem por isso, coloca-se como ou é inferiorizado em suas relações com
Martim. O trecho a seguir, de Iracema, revela tal posicionamento desnivelado:
Poti cantava:
- Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é
a amizade de Coatiabo e Poti.
Acudiu Iracema:
- Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta,
assim é Iracema junto a seu esposo.
Os guerreiros disseram:
- Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatiabo entre
o irmão e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratã, e
sua sombra protege a relva humilde.(Iracema, XXIV, p. 82)
Enquanto Poti e Martim estão representados num corpo, o da cobra, Iracema é
apenas uma relva humilde protegida pela árvore, que é Martim, abraçado a outra árvore,
Poti.
O desfecho simbólico da morte de Iracema, como a morte da raça indígena para
o nascimento de uma etnia híbrida é, ao mesmo tempo, a suprema submissão. Iracema,
ainda que personagem carregada de simbologia, renuncia a si mesma pelo bem de
Martim, a quem reconhece não amá-la, e do filho Moacir.
De qualquer forma, vale trazer à baila uma interessante teoria tecida por Heron
de Alencar a respeito da idéia central do nosso romance romântico, exatamente no que
diz respeito ao amor, que vem ao encontro do que aqui se diz: “(...) todo ser tem direito
de realizar a felicidade pelo amor, tem direito a escolher, sem constrangimento, o
companheiro ou a companheira da sua vida. Tal é a conclusão que se pode tirar do
exame de conjunto do romance romântico, seja ele urbano, histórico ou regionalista.”
43
42
RIBEIRO, 1996: p. 209 – grifos do autor.
43
ALENCAR, 2002: p. 302
56
2.4 – A relação romantismo – realismo no sentimento amoroso
Se comparado a outros autores românticos, como Joaquim Manuel de Macedo,
José de Alencar proe uma visão inovadora do amor em sua obra. Não se detém em
retratar o amor porque este leva ao matrimônio, finalidade de toda moça burguesa,
personagem constante nas obras, pois que representava o próprio público leitor,
proporcionando-lhe identificação com o enredo. Ao invés disso, questiona a lógica,
criando um Paulo apaixonado por uma prostituta, uma Aurélia que se vinga de um
homem através do casamento (“sonhode toda mulher), uma Iracema que abandona a
cultura de sua tribo, que a considerava intocável, para seguir um grande amor. É este
sentimento ainda o “mote” para o desenvolvimento da história, mas a ótica alencariana
é, de certa forma, particular. A forma lírica e a preocupação ornamental de Alencar
concorrem positivamente para a feição geral do romance romântico brasileiro, e a
intriga sentimental, dada em diferentes espaços (urbano, campesino, silvícola),
minuciosamente descritos, é, invariavelmente, a temática preferida.
Suas personagens, sob uma ótica moderna e libertadora de preconceitos, não
valorizam nem mesmo a castidade como condição sine qua non para o amor. Lúcia
oferece a pura ir para desposar Paulo, que acha a oferta um despropósito: o
sentimento não pode ligar-se a amarras sociais.
O realismo na descrição de costumes escapa mais de Alencar exatamente no
romance histórico de cunho indianista (considera-se aqui a classificação feita por Heron
de Alencar
44
). Nele, apresentava grande idealização da vida indígena e dos seus
costumes, e nessa análise incluem-se os enredos de amores exageradamente poetizados
entre representantes do povo colonizador com os nativos da terra americana. Mas o fato
de, especialmente no romance histórico, apresentar-se tamanha idealização, é reflexo do
desejo de apartar-se o Brasil cultural e politicamente de Portugal. Nesse ponto,
concordamos com a análise realizada por Heron de Alencar: Seria através da
valorização poética das raças primitivas no cenário grandioso da natureza americana,
que alcançaríamos aquele nível mínimo de orgulho nacional de que carecíamos para
uma classificação em face do europeu.”
45
44
ALENCAR, 2002.
45
ALENCAR, 2002: p. 259
57
Embora Jode Alencar mostrasse em suas narrativas uma descrição bem
realista dos costumes da sociedade de sua época, mesmo que para criticá-los, como fez
em Lucíola, tal tendência é efetivamente desenvolvida no Realismo. Além desta
característica, a relão entre os sexos em particular rejeita a idealização romântica,
adotada inclusive por Alencar. A ruptura também ocorre na adoção de um senso menos
convencional de estilo e de uma análise mais fria e objetiva dos caracteres.
Infere-se que, se Alencar reproduz em suas obras traços observados no mundo
real, em particular no que diz respeito ao comportamento social, o mesmo não acontece
com a abordagem dos relacionamentos amorosos, que obedece às leis da fantasia, em
que se cria um mundo novo, menos cruel que o real. Nesse âmbito (e em vários outros
o cruciais para este estudo), opõem-se radicalmente Romantismo e Realismo.
O retrato social realista em Alencar influi diretamente no desenvolvimento do
tema amoroso, na medida em que o desnivelamento nas posições sociais dos
personagens de Lucíola e Senhora, por exemplo, afeta a própria afetividade entre eles,
assim como a realização ou não da união (em Lucíola) ou ainda a sua postergação
(Senhora). O nível econômico influi diretamente no relacionamento dos casais em
ambas as obras. Em Senhora é o cerne do enredo. Em Lucíola, é parte dele.
A questão econômica, questão delicada em que se chocavam o seu
nobre interesse e a minha dignidade, havia sido felizmente resolvida.
Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a chave da gaveta
onde guardava o seu dinheiro. Cometi a indiscrição de abrir uma vez
por semana essa gaveta, e deitar a soma que comportava com a minha
fortuna e com o luxo em que ela vivia. (...)
A consciência que eu tinha, de o ser bastante rico para essa mulher,
pungia-me tanto e a cada momento, que à menor palavra dúbia, ao
menor gosto equívoco, os meus brios se revoltavam. Farejava uma
ironia a no seu próprio desinteresse, que podia ser inspirado pelo
conhecimento de minha pobreza. (Lucíola, capítulo XI, p. 176-177)
Trata-se de uma preocupação real e temporal. O enredo de Lucíola, por exemplo,
se passa num espaço que é o simulacro da vida social em 1855, época em que o narrador
diz ocorrerem os fatos que narra. Antonio Candido afirma, sobre várias outras obras de
Alencar, que o movimento narrativo ganha força graças aos problemas de
desnivelamento nas posições sociais, que vão afetar a própria afetividade dos
58
personagens.”
46
A explicação para a centralização dos romances românticos de
aspecto urbano ser o amor reside neste aspecto e é simples: no casamento ou união de
pessoas sempre se questiona a existência ou não deste sentimento, e a instituição
matrimonial, no século XIX, principalmente, concorria para decidir muitos outros
aspectos da vida. A mulher, como não representava força de trabalho, só poderia
classificar-se socialmente através do casamento, e o homem de classe baixa,
eventualmente, também era alçado a veis superiores por intermédio deste. Sendo
assim, o amor poderia dificultar ou facilitar a ascensão social e econômica, não se
tratando, portanto, de um enfoque filosófico.
Nos romances urbanos de Jode Alencar a visão das relações amorosas com
mulheres de classes inferiores passa, via de regra, pela exploração sexual, como será
comum nas mesmas relações entre classes díspares durante o Naturalismo. Em
Senhora, tal característica é posta a nu quando a mãe de Aurélia a faz expor-se à janela,
em busca de um noivo:
Não tardou que a notícia de menina bonita de Santa Teresa se
divulgasse entre certa roda de moços que não se contentam com
as rosas e margaridas dos salões, e cultivam com ardor também
as violetas e cravinas das rótulas.
A solitária e plácida rua animou-se com um tnsito desusado
de tílburis e passeadores a atraídos pela graça da flor
modesta e rasteira, que uns ambicionavam colher para
transplantar ao turbilhão do mundo, outros apenas se
contentariam de crestar-lhe a pureza, abandonando-a depois à
miséria. (Senhora, p. 236)
Mas cenas em que tal classe ganhe destaque não o comuns nos romances
românticos, porque estes têm como característica o cenário aristocrático e são lidos
exatamente pela burguesia da época.
Alencar desnuda, inclusive, este estado de coisas, questionando o dote, o
casamento por interesse em Senhora. Um grande amor chega a ser interrompido por
conta deste costume social, que avilta a figura feminina por descartar o valor de seu
caráter, e a moral masculina, por fazer do homem simples objeto comercializável.
É interessante perceber como a questão pecuniária difere em Lucíola e Senhora,
no que diz respeito às relações entre homem e mulher, pela origem do dinheiro.
46
CÂNDIDO, 1979: p. 225.
59
Fernando não se sente logrado em casar-se pelo maior dote; no entanto, Paulo vexa-se
de ser sustentado por Lúcia, que sua riqueza é oriunda da prostituição.
No primeiro caso, o de Senhora, tal questão é primordial para o
desenvolvimento do enredo. em Lucíola, é parte da problemática e mais um motivo
das brigas que distanciam o casal várias vezes durante a trama. Lúcia, para poder viver
mais próxima ao amado, renuncia ao luxo, mudando-se para uma outra residência,
passando a viver um cotidiano simples de dona-de-casa. Sua fortuna, passa-a à irmã.
Num enredo tipicamente romântico é preciso que o herói, ainda que o dote seja
aceito na sociedade do século XIX, prove de todas as maneiras seu amor sincero, a
despeito de qualquer interesse monetário. Este fator aparece em Senhora, em Lucíola e
também em Diva, em que a protagonista Emília testa de todas as formas o pretendente
que lhe atrai para que ela própria não seja usada como simples degrau para ascensão
social.
Em Alencar, portanto, os valores econômicos e sociais sempre aparecem
interligados aos afetivos, ainda que para serem negados, ou como forma de r os
segundos à prova. Tal dependência o pode ser ignorada, de tão presente na
sociedade. Mas, para se caracterizarem como heróis românticos de fato, suas
personagens precisam sobrepor as questões afetivas às pecuniárias. A prostituição, a
venda de si próprio, não é, na literatura romântica, aceita nem para homens nem para
mulheres. Se a instituição do dote é comum na sociedade, nesta literatura ela é
legitimada se for secundária, sendo o amor o motivo primordial da união. Legitima-se,
assim, o amor de Augusto por Emília, em Diva, e pune-se Fernando Seixas, de Senhora,
por se casar primordialmente por dinheiro.
A honra de Fernando é resgatada após muita humilhação e uma prova cabal
de que ama Aurélia, a despeito de seu dinheiro.
A de Lúcia, em Lucíola, , no entanto, a morte é capaz de resgatar, devido à
castidade a que se obrigam as mulheres e que, após perdida, é irrevogável.
No entanto, o questionamento social operado pelo autor em suas obras não
destoa dos preceitos da estética romântica, visto que é uma forma de repúdio às
obrigações exteriores, no intuito de fazer prevalecer o sentimento, o mundo interior. Eis
o que faz do tema do amor algo primordial no Romantismo.
60
Além disso, o leitor se identifica facilmente com as intrigas amorosas, e o
recurso de desenvolvê-las, assim como aproximar as obras do estilo folhetinesco, serviu
às intenções do Romantismo de ampliar deveras o público leitor. Resguardado o
distanciamento histórico entre a crítica atual e o Romantismo, pode-se afirmar que estas
técnicas, em princípio ingênuas, alcançaram o seu intuito.
Verifiquemos, sobre este aspecto, a morte de Lúcia, na obra em que é
protagonista. Embora aponte para a continuidade do amor, sua morte, que é a única
maneira de realização deste, causa uma certa frustração no leitor. Mas, na verdade, a
personagem funciona quase como um exemplo, uma ameaça às moças da época:
mostra-lhes o que acontece com quem não segue uma conduta baseada na moral - é um
processo moralizador. A descarnalização do amor, se é sublime, idealista, amedronta os
apaixonados que sempre querem ficar juntos.
Sobre a constância do tema do amor na prosa romântica brasileira, Heron de
Alencar tece considerações que reiteram o que aqui se afirma:
No Brasil, todos os românticos elegeram o amor tema fundamental de
suas obras e, do ponto de vista do romance, é possível afirmar que foi
esse tema que forneceu substância a todos os demais (...)todo ser tem
direito de realizar a felicidade pelo amor, tem direito a escolher, sem
constrangimento, o companheiro ou a companheira da sua vida. Tal é a
conclusão que se pode tirar do exame de conjunto do romance
romântico, seja ele urbano, histórico ou regionalista.
47
Mas não só no autor de Lucíola opera-se a mistura do real com o idealizado, e tal
tendência não é sequer inaugurada pelo escritor. Stendhal e Balzac já o faziam, ainda
que tanto estes quanto aquele fundissem heróis e situações idealizadas a uma sociedade
circundante de aspecto bastante realista. A descrição da sociedade e da paisagem
geográfica obedecem a uma característica muito realista; o amor, a relação entre os
protagonistas e a construção destes é que o completamente idealizados na maioria das
obras românticas. Há, no interior dos romances da época, um embate entre tendências
que, em princípio, seriam opostas: a realidade e a fantasia. O Romantismo não é, como
julga o senso comum, unicamente composto de idealizações. Tal assertiva corrobora
estudos anteriores de Antonio Candido:
47
ALENCAR, 2002: p. 302
61
Este acentuado realismo (em nada inferior muitas vezes ao dos nossos
naturalistas modernos, o marcados de romantismo) estabelece no
romance romântico uma contradição interna, um conflito por vezes
constrangedor entre a realidade e o sonho.(...) A cada momento a
tendência idealista rompe nas junturas das frases, na articulação dos
episódios, na configuração dos personagens, abrindo frinchas na
objetividade da observação e restabelecendo certas tendências
profundas da escola para o fantástico, o desmesurado, o incoerente, na
linguagem e na concepção.
48
O trecho abaixo disserta também sobre a mistura de traços no Romantismo:
Mais ou menos eqüidistante da pesquisa lírica e do estudo sistemático
da realidade, opera a ligação entre dois tipos opostos de conhecimento;
e como vai de um pólo ao outro, na gama das suas realizações, exerce
atividade inacessível tanto à poesia quanto à ciência. O seu fundamento
não é com efeito a transfigurada realidade da primeira, nem a realidade
constatada da segunda; mas a realidade elaborada por um processo
mental que guarda intacta a sua verossimilhança externa, fecundando-a
interiormente por um fermento de fantasia que a situa além do
quotidiano, - em concorrência com a vida. Graças aos seus produtos
extremos, embebe-se de um lado em pleno sonho, tocando de outro no
documentário. Os seus melhores momentos são porém aqueles em que
permanece fiel à vocação de elaborar conscientemente uma realidade
humana que extrai da observação direta, para com ela construir um
sistema imaginário e mais durável.
49
Com palavras brilhantes, Antonio Candido atesta, então, que o Romantismo o
exclui a realidade: apenas alia a ela doses de fantasia. A justificativa mais palpável para
esta mistura, a despeito de toda a idealização da proposta romântica original, é a
inflncia da fase decadente do Romantismo europeu, já embebido no Realismo. Sobre
esta influência, nos fala Heron de Alencar:
A observador mais atento, e que não pretenda previamente adaptar
conceitos e critérios de classificação europeus ao processo de
desenvolvimento da nossa literatura – mas estudar nos textos brasileiros
de que modo assimilamos as características da literatura européia,
transformando-as nacionalmente – não será permitido ignorar que o
nosso romance, filho do Romantismo, dele não herdaria senão aquelas
tendências mais populares, mais exteriores, que pertenciam à fase de
plena decadência do Romantismo e de transição para o Realismo.
50
48
CANDIDO, 1979: p. 115.
49
CANDIDO, 1979: p. 109.
50
ALENCAR, 2002:p. 240
62
A diferença entre o romance romântico europeu em seu pleno desenvolvimento e
sua fase decadente é que, inicialmente havia uma tendência à confissão pessoal, um
excesso de sensibilidade do indivíduo frente à nova condição histórica, não havendo
destaque para a observação da realidade. No segundo momento é que passou a
preocupar-se com a recriação do passado histórico e, depois, com a sociedade
contemporânea. E é dessa fase decadente, que retrata e questiona a sociedade
contemporânea, que o Romantismo brasileiro assimila as características, não por
mera cópia, mas porque as tendências desta fase combinavam mais com a condição
política e literária do Brasil àquela época: uma nação que precisava afirmar-se como
independente. Havia a intenção velada de que o leitor brasileiro se identificasse na
literatura de seu país, num momento de emancipação. Sobre este último fator, nos diz
Heron de Alencar:
Dominou mais o nosso Romantismo, na poesia e no romance, a
tendência orientada pela filosofia e pela estética dos socialistas
utópicos, embora a sua aclimação ao nosso meio sofresse
transformações muita vez desfiguradoras. E dominou porque o seu
conteúdo reivindicador e reformador melhor atendia às nossas
necessidades de nação que procurava afirmar-se e resolver problemas
graves que herdara de sua recente condição de colônia.
51
O enfoque crítico-social apresentado nos romances de Alencar, principalmente
nos urbanos, como Lucíola e Senhora, justifica-se pelo contexto político em que estava
inserido o próprio Romantismo: a Revolão burguesa, a recente independência e o
movimento pela democracia eram influências evidentes no meio artístico e cultural.
Alencar refletiu, portanto, um momento de efervescência social, através do
questionamento dos costumes em seu fazer literário. Lúcia Miguel pereira, em seus
estudos sobre a história da prosa de fião na Literatura Brasileira faz uma afirmação
simples e significativa: um clima, uma atmosfera moral e intelectual peculiar a
cada época, que impregna quantos nela vivem”.
52
Da importação resulta também a visão paradigmática de amor presente nas obras
do Romantismo brasileiro, descartando problemas mais profundos, específicos ou
51
ALENCAR, 2002: p. 241
52
PEREIRA, 1988: p. 28
63
filoficos. É uma convenção neste estilo de época, no Brasil, desenvolver o enredo
em torno de um amor supremo, cheio de obstáculos à sua realização. O conflito
alimenta-se basicamente das aspirações sentimentais das personagens, contrapondo-se à
realidade imediata, tão prezada pelo estilo romântico no Brasil. O lugar-comum no
enfoque do amor confere, por vezes, ao tema, um sentido um tanto inautêntico e
repetitivo.
Se Alencar desmascarava convenções e punha a nu certos preceitos da moral
burguesa, o mesmo não fez ao retratar o amor. Na verdade, carregou no idealismo
como instrumento básico para contrastar o amor com a sociedade constituída. Tal
sentimento serviu, portanto, como ferramenta para se questionar um estado de coisas, e
aproximar o romance da tendência moralizante tão em voga na época. Segundo esta
análise, pode-se dizer que a objetividade em Jode Alencar é, via de regra, o ponto de
partida para a transfiguração operada pela subjetividade. E o amor não integra este
ponto de partida: está muito mais próximo da chegada.
Pode-se dizer, também, que através de Lúcia apresentou-se um dilema amoroso
mais profundo que de costume, existencial, em que a própria personagem não se sente
digna de desfrutar do sentimento de modo efetivo.
Ainda assim, os traços realísticos estiveram presentes na não-realização de fato
do amor entre Lúcia e Paulo: Esta exigência de realismo, que assinala a maior parte
da novelística moderna, conduz, no Brasil, ao romance de costumes e ao romance
regional, que dentro do Romantismo limitam o vôo lírico (...)
53
Na construção de Lucíola subjaz uma crítica do autor: nem sempre o elemento
discordante da sociedade é a representação verdadeira do mal. Sempre uma
possibilidade de redenção, mas a comprovada reabilitação só é possível através da
análise psicológica. Em Lucíola, tal recurso preconiza, de maneira menos elaborada, a
técnica de Machado de Assis.
Ainda no que diz respeito à abordagem realística dos romances românticos,
ressalta-se que na obra Os dois amores, de Joaquim Manuel de Macedo, um diálogo
entre dois personagens aborda argutamente a questão da realidade de que estão
imbuídos os romances românticos, no que diz respeito à ordem social:
53
CANDIDO, 1979: p. 25.
64
(...) pensas que os romances são mentiras?...
Tenho certeza disso.
Neste ponto está muito atrasada, D. Celina; os romances têm sempre
uma verdade por base; o maior trabalho dos romancistas consiste em
desfigurar essa verdade de tal modo, que os contemporâneos não
cheguem a dar os verdadeiros nomes de batismo às personagens que aí
figuram.
54
Uma das maiores provas da realidade na obra romântica está, no entanto, em
Inocência. Para Antonio Candido,
o valor da obra dependia da autenticidade dos modelos(...) ele vira o
ambiente, quase os personagens de Inocência, para onde os transpôs,
diretamente e sem retoque, tipos observados em Santana do Paranaíba
(...). Portanto, não apenas o quadros naturais e os costumes, mas várias
das pessoas que viu, foram reproduzidas com uma fidelidade que dá
valor documentário à sua ficção
55
O crítico cita inclusive algumas pessoas que inspiraram Taunay para compor
alguns personagens, como a jovem leprosa de extraordinária beleza, Jacinta, que
inspirou a criação de Inocência. O autor alia a veracidade a um trabalho fabulador.
Ainda assim, a supremacia do sentimento e das paixões sobre a razão, e da
maneira como estes se desenvolviam, da sua grandiosidade, dependia a popularidade
das obras da época. A utilização da objetividade como ponto de partida para o romance,
ainda que depois ele se desenvolva da forma mais subjetiva, é histórica: trata-se de uma
característica da maioria dos autores brasileiros. Lúcia Miguel Pereira aborda o assunto
da seguinte maneira:
Acusava-se Euclides da Cunha de ser uma ave de vôo rasteiro, que
precisava subir a um arbusto para ganhar as alturas. Com essa
confissão, definiu uma das características da grande maioria de nossos
escritores. Quase todos se servem da realidade como de um trampolim
indispensável, de um ponto de apoio; ela representa um meio, e não um
fim. Por isso tivemos românticos fazendo, sem dar por isso, romances
de costumes (...)
56
54
CANDIDO, 1979: p. 139-40.
55
CANDIDO, 1979: p. 310.
56
PEREIRA, 1988: p. 26
65
Os elementos sociais, culturais, ideológicos, econômicos e poticos da época do
Romantismo começaram a ser questionados na 2
a
metade do século XIX, na Europa e,
no Brasil, só a partir dos anos 70 e, sobretudo, 80: o positivismo e a vanguarda
filosófica alemã fizeram adeptos ávidos de uma nova interpretação de mundo
57
A partir dos românticos passa a haver uma compreensão mais minuciosa do
mundo interior com Machado de Assis e com alguns modernistas. Mas isto não
significa crescimento da importância da temática amorosa. Tanto no que diz respeito a
ela, como a muitos outros aspectos literários, retomam-se sempre características
românticas ou realistas. Afrânio Coutinho versa de maneira sensata sobre estas
inflncias para a Literatura Brasileira posterior:
Substituindo a visão idealizada do mundo, que vigorou no Classicismo,
em todas as suas variedades, por uma imagem real e direta, inclusive
captando a atmosfera local interior e exterior, o Romantismo possui em
germe como traço essencial e primitivo o princípio realista, depois
desenvolvido na forma superior de ficção brasileira. Desta sorte, é no
período que vai do Romantismo ao Realismo que se deve focalizar o
estudo compreensivo da literatura brasileira, para interpretar sua
natureza e qualidades. Sobretudo, releva acentuar, apesar da aparente
oposição, o engavetamento, a continuidade, mesmo a identidade em
muitos aspectos, dos dois estilos no Brasil.
58
57
BRAYNER, 1973: p.17.
58
COUTINHO, 2002: p. 30.
66
3 – REALISMO: O MITO DO AMOR POSTO EM QUESTÃO
Na medida em que se cristaliza uma nova interpretação de mundo, fundada nas
teorias científicas que se afirmam na Europa, na segunda metade do século XIX,
também o amor vai ser enfocado sob uma nova ótica, bem diversa da que vigorava até
então. Não há dúvida de que, na fase subseqüente ao Romantismo, há uma nítida
redução da importância da temática amorosa no universo literário.
A corrente estética canônica do período, o Naturalismo, vai apresentar o amor
degradado, na medida em que o reduz a uma dimensão fisiológica.
Por outro lado, em Machado de Assis, o processo de dessacralização do amor
segue outra trajetória: embora se apresente igualmente reduzido e corroído, o fato se
por razões mais éticas do que biológicas, mais psicológicas do que fisiológicas. Tais
enfoques, bastante diversos entre si, se dão mesmo não havendo distanciamento
cronológico entre a produção machadiana e a naturalista. Comprova-se aqui que a
diversidade de pontos de vista depende não da época literária, mas também dos
autores, dos indivíduos que produzem as obras (Machado de Assis e Aluísio Azevedo,
por exemplo, escrevem contemporaneamente, embora o segundo seja de uma geração
mais jovem).
Em Machado, tanto o mito do amor romântico a idealização da mulher aparecem
corroídos por uma visão cética. É um enfoque bem diverso daquele praticado pelos
naturalistas, como Aluísio Azevedo, que retrataram as relações amorosas de maneira
mais postiça, mais exagerada que o idealismo romântico, sem deformar, mas anulando o
sentimento nelas.
Machado de Assis dirigiu uma crítica à estética de seu tempo, particularmente a
Eça de Queiroz, que ainda hoje nos serve de caracterização do Naturalismo. Na época,
o crítico Machado produzia ainda obras românticas, o que não anula a pertinência de
seu texto que, referindo-se a O Primo Basílio, pode ser estendido a toda a estética
naturalista. Machado de Assis condenava a tendência naturalista à redução das relações
aos sentidos, ao “espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas”
59
, a um
fenômeno animal e nada mais”
60
. Julgava também inadequada a estética de inventário,
59
ASSIS,1980: p. 952
60
Idem
67
apontando como defeito o descritivismo de Eça. O próprio Machado, mesmo após
superada sua fase romântica, sempre adotou uma perspectiva mais ontológica de temas
como o amor, por exemplo.
Em um dos trechos de crítica de Machado ao Naturalismo, representado neste
momento por Eça de Queiroz, nos diz:
Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica
e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez
aparecia um livro em que o escuso (...) e o torpe eram tratados
com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de
inventário.
61
E ainda, sobre a hipertrofia do corpo em que se apóia todo o Naturalismo e, mais
especificamente a obra criticada, O Primo Basílio, de Eça de Queiroz: Com tais
preocupações de escola, não admira que a pena do autor (...) nos talhe as suas
mulheres pelos aspectos e trejeitos da concupiscência; que escreva alusões e
reminiscências de um erotismo que Proudhon chamaria oni-sexual e onímodo
62
.
Mas o perturbador preconceito de que qualquer interesse amoroso é falso, pois
que baseado em outros, egoístas, capitalistas, não é particularidade da obra de Azevedo
nem mesmo do Naturalismo: é comum também na literatura realista machadiana.
A corrente dominante do Realismo o admite a existência do dualismo corpo X
alma, freqüente em obras românticas como Lucíola, em que a protagonista figura como
uma alma pura num corpo corrompido. O Naturalismo despreza qualquer teoria
espiritualista, ignorando tudo o que o seja matéria, corpo. Rompe-se a tradição que
concebia a relação entre a alma e o corpo como hierarquia do superior sobre o inferior.
O que em relação ao amor é, portanto, a materialização, sem complexidade
psicológica.
A visão machadiana se contrapõe à do Romantismo pela condição moral do
homem e, através dela, realiza a derrocada do amor sublime e redentor. Qualquer que
seja o ponto-de-vista do narrador das diferentes obras de Machado aqui analisadas, de
marido ou de amante, ele nunca está imbuído do tom apaixonado. O que ajuda nesta
construção é o distanciamento temporal, que permite visão crítica até dos proveis
61
Idem, p. 948
62
Idem, p. 952
68
sentimentos. Em Memórias póstumas de Brás Cubas ainda maior é o afastamento, pois
a morte destrói qualquer comprometimento do narrador para com a sociedade em que
esteve inserido em vida, liberando-o de saões, independentemente do que diga.
Como se vê, não é possível versar sobre tema algum em Machado de Assis sem
considerar a técnica narrativa, sempre peculiar, aliás.
A visão cética e degradada da natureza humana se reflete no modo como não se
desenvolve o amor: ele é degradado porque o homem é degradado.
Sendo assim, em sua posição dessacralizadora do amor, Machado de Assis
assume uma atitude objetiva diante do sentimento: em momento algum a racionalidade
de Brás Cubas é posta à prova. Virgília, embora figura quase constante na vida afetiva
do protagonista, não chega a ‘tirá-lo dos eixos’. Ele não alimenta sonhos e não há a
mínima idealização; portanto, não surpresas ou ‘queda de ídolo’ quando ela resolve
se casar com Lobo Neves.
Seja em Machado, seja no Naturalismo, o desmoronamento do amor é a
tendência dominante na fase Realista, e essa redução do seu papel na narrativa fica mais
evidente por suceder à inequívoca idealização no Romantismo.
Portanto, trata-se não da ausência do sentimento amoroso, mas da negação da
visão romântica do amor, da perda de sua aura por tal sentimento, que é trazido para seu
aspecto humano. O anti-romantismo é, assim, assíduo em Machado de Assis, e sua
atitude cética ante o sentimento amoroso, operando uma desmitificação, é uma das
maneiras de afirmar esta posição anti-romântica.
69
3.1 – Naturalismo: a visão materialista do amorO Cortiço
Durante o Naturalismo é abandonada qualquer visão de cunho espiritualista em
relação ao amor. Se no Romantismo casavam-se as almas, no Naturalismo a fusão
material, a posse imediatista. Este posicionamento fica muito claro em O livro de uma
sogra, onde Aluísio Azevedo e na fala de uma das personagens a concepção
naturalista da união de um casal, excluindo o sentimento: (...) aqui somos apenas um
casal que se ligou pelos únicos laços que Deus criou para unir o homem à mulher a
cópula! Aqui somos o macho e a fêmea”.
63
Muito mais clara fica esta concepção se nos lembrarmos da visão de amor
romântico, como consórcio de almas”, nas palavras de Lúcia, de Lucíola:
Tu me purificaste ungindo-me com os teus bios. Tu me
santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o
consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no
céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia
profanar, enquanto viva. Ela se meu último suspiro. (Lucíola, p. 249
– grifos nossos)
O desprezo pelos valores do amor romântico, que aspirava à pureza do corpo e
da alma, ao sentimento acima das convenções sócio-econômicas, deve-se às tendências
hisrico-filosóficas surgidas na Europa e com grande receptividade no Brasil:
O espírito do tempo, agitado por poderosa geração intelectual,
caracterizou-se, a partir de então, pelo predomínio das idéias do
materialismo, cientificismo, laicização, anticlericalismo. Procedeu-se a
uma vasta revisão de valores e postulados, que colocou em primeiro
plano o pensamento moderno”: as doutrinas positivistas, de Comte e
Littré, o biologismo de Darwin, o evolucionismo de Spencer, o
determinismo de Taine, a concepção historiográfica de Buckle, o
monismo de Kant, Schopenhauer, Haeckel.
64
O sentimentalismo amoroso é substituído, no Naturalismo, pela redução ao
aspecto físico, pela reiteração obsessiva do sexo. Esta transformação se devido à
63
AZEVEDO, 1973: p. 122.
70
preocupação científica, ao empirismo materialista e ao determinismo causal,
características do estilo herdado da França. Sendo assim, o amor naturalista é tão
artificial quanto o romântico, visto que segue prescrições, substituindo o sentimento por
instintos.
Na análise do amor, figura aqui mais o campo semântico sexual que o
sentimental. Escreve Lúcia Miguel Pereira, sobre a disparidade de abordagens das
relações amorosas:
E o sexo, que dantes fora banido das narrativas, entrou a ocupar uma
posição exagerada, refletindo talvez uma mudaa de ponto de vista em
relação às mulheres. O determinismo biológico eno em voga e as
lições de Charcot sobre a histeria transformaram, efetivamente, em
fêmeas os antigos anjos. Os estudos de temperamento desbancaram os
casos puramente sentimentais. Ao mesmo tempo em que penetrava na
fisiologia com Aluísio Azevedo e seus companheiros, e na psicologia
com Machado de Assis (...)
65
O esquematismo que, forçosamente, tenta comprovar teses científicas através do
enredo mostra-se incapaz de apreender a complexidade do real. A atração entre os
sexos não pode ser reduzida, na realidade palpável, a uma questão instintiva, animal,
que exclua sentimentalismo ou psicologismos.
De acordo com a estética naturalista, o amor espiritual não existe de fato, pois
ele se reduz a uma expressão violenta dos instintos.
Não individualidade no Naturalismo: as emoções e reações da coletividade
são fruto da fraqueza humana em geral, e não de encantamentos particulares. Para
representar tais emoções são criados “tipos”, evitando assim que se caia em qualquer
visão particularizante.
É difícil falar em amor quando a personagem é a multidão, a coletividade.
Sendo assim, o sentimental, o psicológico, o individual perdem terreno para o
sociológico, o coletivo, e é este fator que limita a análise de nosso tema nesta estética.
O Cortiço é, das obras naturalistas brasileiras, umas das que menos tende a
centralizar-se nos casos patológicos limitados à alcova. Ainda assim, pertencem a este
âmbito as cenas de maior crueza e detalhismo. Mas neste romance os temperamentos
64
COUTINHO,2002: p. 27
65
PEREIRA, 1988: p. 30
71
doentios não estão condicionados apenas pelo sexo, mas também pela ambição
desmedida, que não reconhece qualquer barreira ética.
Em outros, contudo, os instintos sexuais depravados tornam-se o tema único e
obsessivo da obra, como A carne, de lio Ribeiro e O Homem, do próprio Aluísio
Azevedo.
Provavelmente, por retratar além do sexo outras relações e outros problemas que
o os da alcova, O Cortiço tenha ganho destaque entre os romances naturalistas.
A ótica sob a qual não o amor, mas toda a vida é encarada no Naturalismo
está perfeitamente expressa na citada crítica feita por Machado de Assis, em 1878, a
O Primo Basílio. Estendendo as considerações do autor para toda a estética, e não
para a referida obra, tem-se, ainda assim, uma percepção adequada de suas
características. Machado acusava o Naturalismo de se preocupar com a parte
biológica, sensorial do homem, encarando a vida como um fenômeno animal nada
mais, tendo sido os personagens construídos apenas para representar o espetáculo
dos ardores, exigências e perversões físicas”. Sobre a fixação no tema do sexo, diz que
se trata de um erotismo que Proudhon chamaria de onissexual e onímodo”.
66
Tais argumentos ou acusações são bastante pertinazes ao presente trabalho, na
medida em que avaliamos como estreita a análise do amor no estilo em questão. A
união dos seres se pela atração dos corpos, por ganância ou ainda por instintos
patológicos.
Falar de amor em O Cortiço aponta-nos a ambição, a escalada por posições
sociais (como é o caso de João Romão e do próprio Miranda) e, principalmente, o
envolvimento com a questão erótica.
Para os estudos sobre o amor em o Cortiço, utilizaremos várias vezes a obra A
metáfora do corpo no romance naturalista, da professora nia Brayner. Nela, quando
se aborda tal tema, adota-se uma visão coincidente com a deste trabalho. As numerosas
citações desta obra justificam-se, portanto, por conter a expressão, de forma clara e
incisiva, da análise mais acertada sobre o sentimento amoroso em O Cortiço.
Para reiterar a ausência de idealização amorosa e a aproximação do amor com
instintos humanos básicos, cita-se a referida autora e alguns trechos de O Cortiço, em
que se faz uma comparação semântica comprobatória do que aqui se afirma:
66
ASSIS, 1980, p. 947 a 958.
72
A área semântica do instinto sexual é nesta nominação (zoológica)
muito explorada, quase sempre para representar a relação sexual em um
estágio primitivo, sem qualquer tintura amorosa mais idealizante:
67
Não podia chegar à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e
sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito (O
cortiço,cap. II, P. 29)
E gozou-a [Miranda], gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira
satisfação de animal no cio (O cortiço,cap. I, p. 18)
... e outros ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda
espécie, um exército de bestas sensuais... (O cortiço,cap. XII, p. 213)
E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando
(O cortiço,cap. XV, p. 258)
A afetividade também é identificada às reações animais, de forma
indeterminada:
... sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor
silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito... (O
cortiço,cap. XI, p. 190)
A preocupação com o caráter psicológico é bem menos aprofundada no
Naturalismo, tanto assim que, em O Cortiço, seres humanos são identificados como
“machos e fêmeas” em seus afetos e sentidos. Em outro aspecto são seres, mesmo
animais, ainda incompletos, não formados, posto que comparados a larvas, o que
diminui ainda mais a possibilidade de qualquer psicologismo ou requinte sentimental.
Tais seres não são fruto do amor, como se comprova na seguinte passagem:
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e
lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma
coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo,
daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (O cortiço,
cap. II, p. 27)
67
BRAYNER, 1973, p. 95
73
O amor o é o encontro de seres. O desejo nasce em um deles, e o outro é
como objeto receptor, já que a natureza é a causa: dir-se-ia que não era contra o
marido que se revoltava, mas sim (...) contra aquele sol crapuloso que fazia ferver o
sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de bode (O cortiço, cap. XVI, p.
144)
3.1.1 – Os casais n’O cortiço
Mesmo em se tratando de uma coletividade, a relação entre os casais, movida
ora pelo desejo, ora pela ambição é importante para o desenvolvimento de O Cortiço e
das teses naturalistas nele apresentadas. Neste ponto, a obra em destaque é bastante
pertinente ao tema aqui abordado.
O desejo e a sensualidade que cercam os brasileiros tropicais”, Rita Baiana e
Firmo, são exatamente os elementos desestruturadores do enredo. Veja o que diz
acertadamente Sonia Brayner sobre este tópico:
Os pares Jerônimo/Piedade, João Romão/Bertoleza, Firmo/Rita Baiana,
Miranda/ Dona Estela reúnem o enfoque principal das intenções
deterministas de Aluísio Azevedo. Representam os três estágios do
imigrante português e suas possibilidades de destino; o tropicalismo
surgirá como eixo dinâmico para a modificação da estabilidade, na
presença da sensualidade de Rita Baiana e no capoeira Firmo.
68
O amor/ atração sica é, de acordo com a visão naturalista, um dos fenômenos
inerentes ao Homem, e o importante é procurar ou demonstrar a causa que determina
seu desenvolvimento. Estão completamente abolidos a casualidade e o idealismo
românticos.
68
BRAYNER, 1973: p. 46
74
3.1.1.1 – A relação entre Jerônimo e Rita Baiana: determinismo e sensorialidade
Assim, Rita Baiana é desejada por Jerônimo e por Firmo, em O cortiço, por sua
sensualidade quente, instintiva, como sugerem as metáforas animalizantes de um dos
trechos mais citados e famosos da obra, quase um clichê em termos de estudos
literários:
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que
ele recebeu chegando aqui: (...) ela era a cobra verde e traiçoeira, a
lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em
torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras
embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe
cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma
nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela
nuvem de cantáridas que zumbiam em torno de Rita Baiana e
espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. (O cortiço, cap.
VII, p. 68)
nia Brayner, sobre o referido trecho, nos diz que:
A imagem da cobra ou serpente é a mais importante do texto, atingindo
nível simbólico. Rita Baiana é o termo de comparação, símbolo do
envolvimento sexual, sinuoso por excelência, trazendo para sua área
semântica música, sons, frêmitos, identificáveis aos vários aspectos da
cobra. Veneno e prazer, voluptuosidade e morte são constantes dessa
simbologia.
69
A autora chama a atenção, portanto, para a reiteração semântica e imagística da
cobra, como simbologia suscitadora de idéias ligadas ao sexo, confirmando a tese do
determinismo ambiental.
E a atração do português pela mulata, a tendência para o adultério, a
sensualidade, é “causada” pela tropicalidade brasileira. Aluísio Azevedo segue a
cosmovisão determinista de Taine. O envolvimento crescente de Jerônimo por Rita
significa para a economia da obra o determinismo do meio tropical sobre a frieza do
europeu; a adaptação deste à nova cultura.
69
BRAYNER, 1973: p. 100
75
É a ordem natural dos acontecimentos, e não uma particularização. Sobre estes
‘tiposgerais, tão caros ao Naturalismo, citemos novamente a crítica de Machado de
Assis a O Primo Basílio, exatamente no que tange à construção das personagens:
Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo
outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência.”
70
As leis da natureza, irrevogáveis, fazem surgir as generalizações. A ótica
sensorial pela qual é apresentado este conjunto, ou os tipos que o formam, é destacada
por Sônia Brayner:
A sensualidade está diretamente implicada na imposição de um sol
abrasador que cedo desenvolve os instintos: a imagem da crisálida a
transformar-se em borboleta à luz do sol é representativa dessa
preocupação.
O olfato possui uma distribuição quase animal na identificação da
brasileira, sempre rescendendo a baunilha ou almíscar, em
contraposição à portuguesa, com seu cheiro azedo. Observe-se que a
distribuição temática acha-se polarizada de forma bastante ostensiva.
Sinestesias ratificam essa dicotomia, na medida em que “aquela música
embalsamada de baunilha” refere-se à Rita Baiana e por conseguinte, ao
trópico.
A sinestesia supre a necessidade de simultaneidade de sensações
exacerbadas, na tese ambientalista explorada. Ao conjugar cheiros e
ruídos, cores e sonoridades, intensifica o poder operatório dos sentidos
sobre a linearidade da palavra, suprindo uma dificuldade na procura de
maior expansão perceptiva. A necessidade de conjunto é imposta no
nível vocabular, saturando significantes quase até à redundância.
Este testemunho dos sentidos depõe a favor da obsessão corporal
dominante no romance: uma contradição mal esboçada e não
problematizada surge no corpo, que é criador da vida e da morte.
71
O amor é, portanto, despertado pelos sentidos humanos e a sinestesia representa
esta característica do enredo na narrativa. A descrição das personagens envolvidas com
o amor erótico segue um ritual fetichista, que detalha movimentos, danças, cores, roupas
e cheiros, além das metaforizações. É um olhar muito preciso no enfoque dos objetos
eróticos.
Essa minúcia investe o narrador da atitude naturalista, que realiza uma tida
composição plástica, sensorial, de cenas e objetos eróticos. Este fazer literário
70
ASSIS, 1980: p.949.
71
BRAYNER, 1973: p. 43
76
aproxima-se do voyeurismo, de acordo com a visão de Marcelo Bulhões (autor de
Leituras do desejo: o erotismo no romance naturalista brasileiro), da qual partilhamos:
Tudo isso quer dizer que no romance naturalista não o somente os
corpos desnudados, as cenas eróticas que se realizam, a ação das
personagens, as manifestações sexuais; não é apenas a matéria que é
erótica, mas também o movimento da focalização narrativa que a
recolhe. Erótica é a procura do narrador para focalizar o universo
sexual. Com isso, a prosa naturalista cai numa espécie de armadilha:
revela, desvenda e “estuda” a perversão voyeurista e se transforma em
veículo e expressão do próprio voyeurismo.
72
Percebe-se também que, apesar de estar imbuído de um caráter vital, o amor, na
maioria das vezes, não é redentor. Pelo contrário: levou Jerônimo a arriscar-se, por
envolver-se numa briga por Rita Baiana e Piedade a desvios de conduta.
O tema da traição, tão caro à literatura romântica e às narrativas machadianas,
mostra-se importante também no desenvolvimento do enredo de O cortiço e na
pretensão do autor de comprovar as teses científicas da época através deste mundo
narrado que é sua obra.
Sobre o s casais de maior destaque, seguem algumas considerações acerca deste
assunto:
Jerônimo é o português trabalhador, “pescoço de touro e cara de
rcules”. Piedade, sua mulher, traz as características da camponesa
“um todo de bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela
boca numa simpática expressão de honestidade simples e natural”. Rita
Baiana, a mulata sensual, amante de pagodes e alegria, surge como o
eixo dinâmico que vai transformar a situação pafica do casal de
portugueses. A ela junta-se o companheiro Firmo, tipo do capadócio
brasileiro.
Também Aluísio Azevedo sabe que esta é uma fórmula eficaz de manter o leitor
atento; é necessário despertar emoções que o puro discurso científico não despertaria.
O gérmen da ligação amorosa está, na verdade, na relação entre Rita e Jerônimo.
O português já não demonstra interesse algum por sua mulher, e Firmo, na verdade,
exerce sobre Rita Baiana um domínio de medo e de sensualidade, mas não propriamente
72
BULHÕES, 2003: p.187.
77
da atração erótica. momentos em que todos, indiscriminadamente, são arrastados
pelos impulsos: Rita Baiana, Jerônimo, Firmo... todos agem de forma pulsional e
passional.
Como todos os acontecimentos na obra naturalista obedecem a certas leis
biofisiológicas, assim também ocorre com a atração entre os sexos.
A tropicalidade, a natureza brasileira, é fundamental na exacerbação do
erotismo, da promiscuidade. Sobre esta tendência de atribuir ao meio natural a
responsabilidade pelas transgressões das personagens, pondera Antonio Cândido, em
seu ensaio sobre o romance:
Mas além e acima dele (do ambiente) o romancista estabeleceu
outro meio mais amplo, a “natureza brasileira”, que
desempenha papel essencial, como explicação dos
comportamentos transgressivos, como combustível das paixões
e a da simples rotina fisiológica. Aluísio aceita a visão
romântico-exótica de uma natureza poderosa e transformadora,
reinterpretando-a em chave naturalista. Para ele, é como se a
nossa fosse incompatível com a ordem e a ponderação dos
costumes europeus; e ao cair nessa falácia mesológica, que
tanto perturbou naquele tempo a vida intelectual brasileira e a
própria definição de uma consciência nacional, ele deixa
transparecer o pessimismo, alimentado pelo sentimento de
inferioridade com que a sua geração retificou a euforia
patriótica dos românticos.
73
Tal prática tinha base em teorias científicas da época, que acabavam por
inferiorizar o meio tropical em relação ao ambiente europeu, mas eram aceitas por
estarem na Europa as culturas matrizes.
Mas não a Natureza justificava as transgressões. As diferenças raciais tinham
também um peso considerável nas teorias da época. Rita Baiana, exalando
sensualidade, é o motivo de brigas e separações e é mulata. Ela representa sua raça,
elemento transgressor e desagregador: No Brasil, quero dizer, n’O Cortiço, o mestiço
é capitoso, sensual, irrequieto, fermento de dissolução que justifica todas as
transgressões e constitui em face do europeu um perigo e uma tentação.
74
73
CÂNDIDO, 1993: p. 138
74
Idem, p. 139.
78
Assim, Jerônimo e Rita Baiana não se atraem de maneira consciente, mas são
impulsionados pelo determinismo do meio e do sangue (raça), de maneira irresistível.
João Romão, única personagem da obra a superar a força deste determinismo,
o se apaixona e suas relações se justificam apenas pelo dinheiro e nunca por qualquer
sentimento ou atração física.
A atração de Rita por Jerônimo também serve a propósitos ideológicos, mesmo
que representados pela fisiologia determinante e preconceituosa que faz da mestiça
mulher de “sangue quente”. A ideologia veiculada é a da atração de povos menos
desenvolvidos pelo europeu, visto como superior: o sangue da mestiça reclamou os
seus direitos de apuração e Rita preferiu no europeu o macho da raça superior”. (O
cortiço, cap. IX, p. 81)
A aproximação entre Jerônimo e Rita Baiana segue uma funcionalidade um
pouco diversa da dos outros casais: é a corroboração do “abrasileiramento do
português, a suplantação da cultura euroia pela tropicalidade. Jerônimo é objeto de
experimentação’ da prosa naturalista como criatura dominada pela irresistibilidade do
desejo sexual, expressão das pulsões, exacerbadas pelo clima tropical. O viés do sexo,
do desejo por Rita Baiana, é um dos fatores da queda de Jerônimo, que “abrasileirou-
se”. Já Rita aparece como elemento de sedução erótica. Sendo assim, a força da atração
entre ambos não se deteriora até o final do enredo. Este caráter transformador dos
trópicos, representado principalmente por Rita Baiana, está bem exemplificado no
seguinte trecho:
O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das
extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o
espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e
deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído
só por ela, só ela, e mais ninguém. (O cortiço,cap. XIX, P. 156)
Além de tudo o que foi apontado, Rita Baiana também está imbuída de toda uma
simbologia. Assim como Iracema representava a Terra em narrativa romântica, aqui,
com a personagem Rita, também é possível tal transposição. Antônio Cândido, em O
discurso e a cidade, faz uma aproximação brilhante, cuja explicação é bastante
concernente ao nosso tema:
79
O abrasileiramento de Jerônimo é regido quase ritualmente pela baiana,
que o envolve em lendas e cantigas do Norte, dá-lhe pratos apimentados
e o corpo lavado três vezes ao dia e três vezes perfumado com ervas
aromáticas”; e este abrasileiramento é expressivamente marcado pela
perda do espírito da economia e da ordem”, da “esperança de
enriquecer”. É que a sua paixão violenta é apresentada pelo romancista
como conseqüência das imposições mesológicas”, sendo Rita “o fruto
dourado e acre destes sertões americanos”. Sob tal aspecto n’O
Cortiço um pouco de Iracema coada pelo Naturalismo, com a índia =
virgem dos lábios de mel + licor da jurema, transposta aqui para a
baiana = corpo cheiroso + filtros capitosos, que derrubam um novo
Martins Soares Moreno finalmente desdobrado, cuja parte arrivista e
conquistadora é João Romão, mas cuja parte romântica e fascinada pela
terra é Jerônimo. Iracema e Rita são igualmente a Terra. Lá, com o
filtro da jurema, aqui, com o do café, que tem um sentido afrodiaco e
simbólico de beberagem atras da qual penetram no português as
seduções do meio: “(...) a chávena fumegante da perfumosa bebida que
tinha sido a mensageira dos seus amores”.
75
O erotismo era a maneira mais legítima, à época, de o brasileiro envolver o
branco europeu. Este, por sua vez, atraía o brasileiro, no caso representado pela mulata
Rita Baiana, simplesmente porque pertencia à “raça superior”.
3.1.1.2 - João Romão, Bertoleza e o egoísmo
Quanto ao casal João Romão e Bertoleza, a relação funciona muito mais como
um acordo comercial do que por qualquer interesse erótico-amoroso. Bertoleza serve de
amante e besta de carga
76
a João Romão em troca de uma falsa alforria. Em nenhum
momento ela aparece como objeto de desejo ou veículo de sensualidade, o que distancia
o relacionamento do casal do tema abordado neste estudo.
A relação entre João Romão e Bertoleza foge a toda classificação sentimental/
amorosa. Enquanto no Romantismo os heróis e heroínas lutavam contra o casamento
realizado apenas por motivações econômicas, que acabava por modelar todo o
organismo social, no Naturalismo buscam-se exatamente tais motivações para a união,
em sua maioria. O exercício sexual dá-se por pura necessidade fisiológica e não
instituição que una as duas personagens: trata-se apenas de exploração. A união dos
dois representa a lógica capitalista Bertoleza serviu a ele como degrau na fase em que
75
CÂNDIDO, 1993: p. 142.
76
Idem, p. 127.
80
São Romão ainda era cortiço. Com a ascensão para avenida, o papel da negra foi
dispensado, assim como as primitivas noventa e cinco casinhas”.
E o desejo de João Romão de se casar com a filha do Miranda é oriundo apenas
da ambição de galgar a uma classe social superior à sua. Bertoleza, por sua vez, era
grata por estar liberta, mas quando soube-se ludibriada, porque ainda era escrava,
matou-se por sentir-se usada e traída e porque não aceitaria novamente tal condição.
Seu desespero não inclui nenhuma razão lírico-amorosa. Percebe-se, portanto, que,
tanto na união informal com Bertoleza, quanto na perspectiva de casar-se com a filha do
Miranda, João Romão, como personagem tipicamente naturalista, exclui qualquer
relação afetiva, visando apenas enriquecer, no primeiro caso, e ascender socialmente, no
segundo.
O autor utiliza um recurso bastante interessante para não resvalar para o
sentimentalismo, ou ainda despertar no leitor arroubos emocionais: intervenções do
narrador com justificativas generalizantes, que endossam os valores aceitos na época:.
Bertoleza aceita unir-se a João Romão, “porque, como toda
cafuza, [...] não queria sujeitar-se a negros e procurava
instintivamente o homem numa raça superior à sua(capítulo
1). Rita Baiana é “volúvel como toda mesta”, Jerônimo
modifica-se no Brasil, “vencido, às imposições do sol e do
calor”. Basicamente, toda ação e seu personagem-agente possui
uma interpretação assertiva feita pelo narrador, que através
dessa avaliação controla a emotividade do leitor.
77
O egoísmo humano é outro aspecto nulificador de qualquer sentimentalismo em
O cortiço. João Romão se preocupa com sua ascensão social e permanece unido a
Bertoleza enquanto ela serve de instrumento à realização de seu intento, como força de
trabalho e válvula de escape para seus instintos sexuais. Ao passar de instrumento a
obstáculo, na iminência de realização do sonho de Romão, este a descarta, pois nenhum
laço afetivo se criou em meio ao egoísmo exacerbado.
No universo de O cortiço, o egoísmo e o interesse aparecem como forças
determinantes. O egoísmo de Miranda, por exemplo, mais do que mostrado, é
verbalizado, quando passa a cobiçar o título de barão:
77
BRAYNER, 1973: p. 54-55
81
(...) e desde então principiou a sonhar com um baronato, fazendo disso
o objeto querido de sua existência, muito satisfeito no íntimo por ter
afinal descoberto uma coisa em que podia empregar dinheiro, sem ter,
nunca mais, de restituí-lo à mulher, nem ter de deixá-lo a pessoa
alguma. (O cortiço,cap. II, p. 30)
Cabe ainda ressaltar a relação inequívoca de interesse que constitui o elo do
casal Miranda. Na burguesia também se observa a falta de sentimento e a ausência de
idealismo. nia Brayner, em A metáfora do corpo no romance naturalista, traça um
interessante paralelo entre os casais Miranda /Dona Estela, e Bruno/Leocádia. Ao final
de tal análise, percebe-se uma relação muito mais próxima do sentimento amoroso entre
os últimos.
As seqüências narrativas do casal Miranda/d. Estela contrastam com as
solões dadas para o casal do cortiço Bruno/Leocádia. O flagrante
adultério é a mesma razão para o afastamento, entretanto o português
não quer escândalo e perda de situação financeira e social: acomoda-se
entregando-se apenas a uma relação carnal desprovida de afeto, odiada
na sua inevitabilidade. Leocádia é expulsa e apontada publicamente
como adúltera: o nível é popularesco, instintivo, escandaloso na
seqüência da quebra dos bens jogados pela janela. Entretanto, o afeto
existe em Bruno, enquanto o interesse domina Miranda.
78
A acumulação de capital e o prestígio social, além de estarem acima de qualquer
outro valor, fazem com que aqueles tipos neguem a existência de familiares e
enxerguem quem quer que seja como degrau, mesmo suas companheiras. As
divagações de João Romão comprovam esta tese: Teria ânimo de dividir o que era seu,
tomando esposa, fazendo família e cercando-se de amigos?” (O cortiço, cap. X, p. 96)
João Romão, na verdade, é agente da redução naturalista sofrida mais
diretamente por Bertoleza e indiretamente pela escória do cortiço, como Jerônimo, Rita
Baiana e Firmo, que os equipa a animais explorados. E a sexualidade, da forma como é
exercida pelos pares, é mais um indício desta redução animalizante.
Tais tendências de abordagem não são individuais; pelo contrário: respeitam
fielmente os pressupostos do movimento naturalista. Vejamos a clara definição de
78
BRAYNER, 1973: p. 56
82
Naturalismo fornecida por Antonio Candido, para que se comprove o elo entre tais
conceitos e o que aqui fora afirmado:
Naturalismo”, no sentido mais amplo, significou a busca de uma
explicação materialista para os fenômenos da vida e do espírito, bem
como a redução dos fatos sociais aos seus fatores externos, sobretudo os
biológicos, segundo os padrões definidos pelas ciências naturais. As
instituições da sociedade, principalmente as jurídicas, deixaram de ser
consideradas como manifestações da Providência, ou da razão humana,
para serem interpretadas como produtos, como conseqüência necessária
de certos fatores condicionantes, dos quais se destacam o meio físico e a
raça. O romantismo foi combatido, entre outras coisas, no que tinha de
compromisso com as filosofias de cunho espiritualista, e no que tinha de
idealização da realidade. E os partidários das novas idéias foram
levados a investigar os caracteres originais da nossa sociedade, à luz do
determinismo da raça e do ambiente(...)”
79
O erotismo exacerbado de Jerônimo é uma das maneiras de demonstrar que este
português cedeu aos impulsos instintivos, nivelou-se aos nativos da terra e perdeu a vez
na luta por acumulação. O mesmo não acontece com João Romão, que, portador de
uma ambição cruel, não perde de vista seus objetivos de ascensão social, o se deixa
vencer pelos instintos baixos, usando as forças do meio, não se submete a elas
80
.
O egoísmo de Jerônimo percebe-se em relação à mulher e companheira fiel,
Piedade, traída, como a cultura portuguesa, pelo marido.
Por outro lado, a narrativa não apresenta indícios de que Piedade permaneça
todo o tempo ao lado do marido, por paixão ou por amor incondicional, ainda que ele a
traia. É mais uma fidelidade animal, obrigatória, da esposa ao provedor, que
propriamente amor. Trata-se de uma espécie de depenncia: E Piedade, assentada à
soleira de sua porta, paciente e ululante, como um cão que espera pelo dono... (O
cortiço, cap. XVI, p. 143)
Não sexualidade na obra que não envolva dinheiro, comércio, posição social.
Miranda permanece unido à mulher adúltera, que seduz subalternos, devido às
interligações entre seus bens e os dela; João Romão “compra” Bertoleza para que faça
as vezes de amante e criada. E o desejo de ascensão de Rita é um fator que a atrai para
Jerônimo.
79
CANDIDO & CASTELLO, 1987: p. 283
80
CÂNDIDO,1993: p. 135.
83
3.1.2 – O discurso do amor erótico: marcas da linguagem simbólica
Se a representação do erotismo já assume dimensão importante na corrente
naturalista desde a obra de seu iniciador, Zola, no Brasil impregnou-se de lirismo e
sensualismo, como bem demonstra a construção da personagem Rita Baiana. Ainda que
o discurso da ciência esmere-se para encontrar um efeito de objetividade, muitas cenas
em O Cortiço, principalmente as que flagram a descrição de Rita, adotam o discurso da
transfiguração simlica, promovendo uma abertura para a conotação e a polissemia.
Um outro aspecto da linguagem na obra de Aluísio Azevedo que interessa ao
nosso tema é que, embora haja expressões lexicais colhidas do plano da animalidade,
confirmando a concepção homem-besta, nota-se a ausência de vocaburio chulo
mesmo para representar situações de caráter sexual.
Embora Zola tenha demonstrado que, para o Naturalismo, deve-se procurar
produzir o efeito sistematizador da ciência, a representação do erotismo em algumas
obras naturalistas, como O Cortiço, aproxima-se, neste aspecto, muito mais do figurado,
do metafórico, do que do científico.
A linguagem científica procura ser antipolissêmica e anticonotativa, para fugir
da ambigüidade, por meio de termos com significado único e universal. Não é o que se
nas comparações e zoomorfizações presentes na obra. nela uma simbiose entre
os dois modos de representação, tendendo o discurso erótico-amoroso ao aspecto
transfigurador da linguagem. O corpo não é retratado apenas como organismo, mas
como ‘corpo erotizado’. Aliás, no Naturalismo, os sentimentos são dependentes dos
corpos.
Vejamos a figura da serpente, utilizada para a caracterização de Rita Baiana:
(...) feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e
muito de mulher. Mas ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio
tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; ela
era a cobra verde e traiçoeira (...) picando-lhe as artérias, para lhe cuspir
dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional (O
CORTIÇO, cap. VII, p. 68)
Tal imagem é tomada como exemplo de transfiguração simbólica, na obra
citada do professor Marcelo Bulhões. Segundo ele, a imagem é captada nos romances
84
naturalistas pelo privilégio que o próprio símbolo confere à temática da sexualidade e
do erotismo:
A serpente é uma imagem simbólica das mais poderosas a aplicadas ao
contexto do erotismo e da sexualidade, não apenas no que se refere à
prosa naturalista, mas à tradição remota da literatura e da mitologia. O
aspecto demoníaco associado à serpente por ser responsável pelo
pecado original, seu poder de hipnotizar e seduzir, sua forma lica de
sugestão libidinosa e obscena, tudo isso encontra oportunidade de
atualização nos romances naturalistas. Ela está presente em O Cortiço,
associada à sensualidade de Rita Baiana.
81
Esta é apenas uma das palavras que tornam possível o exercício do potencial
lexical sugestivo e polissêmico , colocando a nu a citada relação entre o nível simbólico
e o científico do amor-erótico na obra naturalista.
Na zoomorfização destacam-se outros elementos de associação lica, como a
lagarta e a muriçoca. Como um todo, o discurso converge para a construção de um
efeito baseado em movimentos eróticos, associados a uma dança cadenciada, em
rebolados, subidas e descidas. Assim, o prazer sexual na obra, é encarnado pelo
discurso do prazer, distanciado do discurso do saber científico.
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as
ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita,
como numa sofreguidão de gozo carnal num requebrado luxurioso que a
punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços
estendidos, a tremer toda, como se fosse afundando num prazer grosso
que nem azeite. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido
prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo,
subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava,
miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que
dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia
toda, fibra por fibra titilando. (O cortiço, capítulo VII, p. 67)
O discurso que mostra os objetos do prazer, como vimos na caracterização de
Rita Baiana, parece mergulhado no simlico e animado de visualidade; é sedutor.
A música é um outro fator que exacerba a sensualidade nas personagens de O
Cortiço. Esta também apresenta-se desvinculada de qualquer cientificismo:
81
BULHÕES, 2003: p. 137
85
Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o
sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe
fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e
outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dos
instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em
torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta
incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor, música
feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer,
fazendo estalar de gozo. (O cortiço, capítulo VII, p. 66)
Marcelo Bulhões ressalta também, em sua obra, a simbiose que existe no
Naturalismo entre o discurso literário e o discurso científico na exposição do amor-
erótico. Seu ponto-de-vista parece-nos bastante coerente:
No entanto, é preciso instaurar a percepção do estado de ambivalência
discursiva no interior da prosa naturalista brasileira na consideração do
corpo e de sua expressão erótica e sexual; ambivalência que não
compromete o projeto naturalista. Ao lado do efeito de sistematização,
o discurso encaminha-se na direção da produção de efeito em sentido
contrário: lirismo e transfiguração em matizes simbólicos e metafóricos.
Aqui, a busca do conhecimento carnal segundo o paradigma científico
se recolhe e cede espaço às investidas da linguagem metafórica e
simbólica, ao mesmo tempo em que as situações narrativas se envolvem
com os componentes da imaginação e da fantasia. Desse modo, num
aparente paradoxo, o senso do real da prosa naturalista precisa se
impregnar do elemento metafórico como motor para a eficácia da
comunicação.
82
Ainda que o Naturalismo condene a imaginação, é difícil, no fazer literário,
manter-se dela distante, principalmente em relação ao tema do erotismo, dentro do qual
se identifica comumente o binômio imaginação-desejo como parte dos arranjos
romanescos. É assim no romance de que tratamos.
Se não houvesse a transmutação metafórica operada por Aluísio Azevedo em O
Cortiço, haveria na obra, assim como ocorre em todas as narrativas naturalistas em que
essa não se opera, um Eros deformado, camuflado em saber científico. O prazer, aqui,
o é disfarçado de discurso científico puro.
Apesar de tudo o que se disse sobre o discurso simbólico acerca do amor erótico,
o afastamento dos aspectos naturalistas típicos, no que diz respeito à intriga: o
impulso sexual de contingência biofisiológica, o condicionamento do meio e o atavismo
82
Idem, p. 117
86
da fêmea e do macho estão presentes de forma marcante. O impulso irrefreável do
desejo se mostra, principalmente, no par Jerônimo-Rita, conforme foi visto.
Vê-se que as motivações para a formação e dissolução de pares no Naturalismo
são inúmeras, mas todas excluem o sentimento amoroso de fato. A redução à fisiologia
opera esta transposição do sentimental para o instintivo, o que, para o tema aqui
enfocado, resulta num sensível esvaziamento.
3.1.3 – O amor em O cortiço: império dos instintos eróticos
Na maneira de encarar o amor em O Cortiço reside uma das características
naturalistas mais marcantes, que distancia tal estética da romântica: a anulação da
dialética corpo X alma. Não há, na visão naturalista, o senso de transcendência das
essências em relação aos objetos físicos. As imagens belas e prazerosas, o agradável faz
o homem cativo de seu corpo.
No entanto, o exagero do concreto, da falta de psicologismo e de lirismo opera
tantas distorções na realidade quanto o idealismo romântico. O sentimento amoroso não
é encarado pelo homem de maneira tão crua quanto quer o cientificismo naturalista”.
Além disso, nem a vida, nem a ficção, nem mesmo o sentimento amoroso resume-se à
alcova, via única encontrada por muitos dos romances naturalistas. Tal deformão se
porque os autores forçam situações narrativas para que favoreçam à estética
fisiológica.
Assim, a finalidade de desmascarar o sentimentalismo em favor da razão é
ideologicamente alcançada, mas a razão naturalista também é deturpadora da realidade,
que por vias diversas das do Romantismo. Percebe-se que as paixões em O Cortiço
são todas comprometidas com vícios e estão a serviço do determinismo cultural e
fisiológico, assim como das ideologias estereotipadas.
No Naturalismo, foge-se à regulação normativa do amor sexual. A instituição
do casamento, por exemplo, a coabitação, desgasta o desejo, assim como a “fidelidade
genital”. Tal ponto de vista pode ser exemplificado não pelo afastamento de
Jerônimo e Piedade, como também pela repulsa do Miranda pela mulher que, no
87
entanto, envolve-se com os caixeiros. Faz-se apologia da sexualidade liberta e
espontânea da natureza, não deixando de retratar os entraves sociais interpostos a esta.
Nota-se através de toda esta análise sobre o amor, então, que o tratamento do
tema, em O Cortiço, é utilizado como meio para a comprovação de algumas das teses
defendidas no Naturalismo, como a influência do meio sobre o homem.
A inexistência de uma dimensão espiritual ao tratamento do amor, a redução
deste à pura atração carnal, no Naturalismo, se prende também à desvalorização do
indivíduo pela ciência da época. As personagens sofrem da ausência de qualquer
questionamento existencial, pois são expressões da coletividade, de o que é ser humano,
em geral. São representações do agrupamento social, jamais indivíduos, daí a anulação
das sentimentalidades, tão contrária à posição romântica que afirmava a autonomia do
indivíduo.
Em tais representações concentram-se os valores dominantes no espaço
hisrico-social do final do século XIX. As personagens não são dotadas de consciência
subjetiva, de tão próximas à pura animalidade. Na verdade, grande parte do contexto de
produção de obras como O Cortiço foi gerada pela ciência da época, e, para o tema aqui
abordado, o determinismo de H. Taine é a tendência mais importante, pois que parte do
princípio de que o comportamento humano é determinado por três aspectos básicos: o
meio, a raça e o momento histórico. Sob a sua influência, o Naturalismo crê na
subordinação da psicologia à fisiologia, e desta ao meio, portanto, na influência
determinante deste sobre o comportamento e a psicologia das personagens.
Contudo, em que pese a estreiteza de sua moldura ideológica, o Naturalismo,
pelo tratamento mais livre da sexualidade, pela ênfase concedida à dimensão erótica do
amor, terminou deixando um legado importante para o romance posterior, mormente o
da geração de 30.
88
3.2 –Memórias póstumas de Brás Cubas: a desmitificação do amor
Machado de Assis aliou a consciência crítica à inspiração. Após superada a fase
romântica de sua obra, não seguiu todas as características comuns à estética realista
subseqüente: antes, questionou-a. A presença do narrador interveniente é um exemplo
de tal questionamento. O Realismo tinha por princípio criar uma ilusão de verdade nos
acontecimentos narrativos e este tipo de narrador, arcaísmo que acredita-se tenha sido
inflncia de Sterne, é sempre um lembrete ao leitor do caráter ficcional da obra.
Machado, na verdade, absorve e transfigura as tendências realistas da época. Na
genealogia de sua obra encontra-se o romance inglês do século XVIII (Sterne, Fielding)
e ainda do português Garret. Por outro lado, a importância crescente do ponto de vista
em seus romances aponta para a prosa impressionista e moderna.
Talvez a forma literária mais eficaz de dessacralização do amor tenha sido a sua,
mais particularmente em Memórias póstumas de Brás Cubas. O processo se concretiza
paulatinamente durante a narrativa, da maneira mais racional possível A finalidade do
distanciamento temporal, neste caso, é de ironia crítica à sociedade e ao próprio
sentimentalismo hicrita, e não traduz um mea culpa.
Em sua obra, Machado de Assis desvenda as fraquezas da humanidade, e esta
tendência se reflete na perspectiva com que aborda o amor: ele existe, de fato, em certo
momento, entre Virgília e Brás, entre Bentinho e Capitu; no entanto, não da forma
inesgotável como acreditavam os românticos. A ambição de Virgília, o ciúme de
Bentinho, são algumas das fraquezas que esvaziam-no, aproximando-o da realidade
cotidiana do homem comum.
Em Dom Casmurro e em Memórias póstumas de Brás Cubas pode-se fazer a
análise das experiências sentimentais e amorosas de seus narradores através dos
meandros do discurso. Quanto às demais personagens, principalmente Virgília e
Capitu, é possível apenas uma visão exterior, a partir da perspectiva dos narradores.
O autor não se prende aos lugares comuns da observação geral e adota um
discurso, uma retórica, que particulariza sua visão de mundo. Sendo assim, as relações
amorosas são observadas por pontos-de-vista incomuns, imbuídos de um sarcasmo sem
par.
89
O casamento, por sua vez, é mais uma necessidade, pelo menos feminina, do que
uma questão de sentimento. A mulher solteira é mal vista pela sociedade do século XIX
e, Machado de Assis, assim como Alencar o fazia, reproduz este preconceito em sua
obra.
Em Quincas Borba, vale ressaltar, ainda que não nos aprofundemos no assunto,
a relação entre Sofia e Cristiano Palha: os dois acertam-se muito bem, mas o que os une,
claramente, não é o amor. São mais cúmplices, comparsas nos negócios, do que marido
e mulher amantíssimos. Ele dispensa os ciúmes e age como um agenciador da própria
mulher, em nome do dinheiro. Ainda assim, são insinuações e o adultério não se
consuma.
O adultério, aliás, na obra machadiana, assume uma estreita ligação com o tema
do amor. A não-idealização da mulher faz com que as mulheres solteiras busquem o
casamento por motivos unicamente sócio-econômicos. No entanto, as casadas buscam a
realização amorosa, ainda que fora do casamento. O amor é importante sim, mas não é
a intenção primeira - por isso, pensa-se nele após o casamento. Virgília é a prova cabal
desta tese. E mais: demonstra-se que mesmo este amor adúltero não é intenso tende
ao esvaziamento e não dispõe os amantes a lutarem contra tudo e contra todos. Virgília
e Brás separam-se sem dores, sem culpas, sem desespero.
A efemeridade do amor, o distanciamento dos amantes, não se pela morte,
mas pela própria instabilidade humana, pelos diferentes interesses e pontos-de-vista das
personagens. Através delas, o autor questiona a validade de muitos sentimentos e das
próprias relações: um gosto de cinza nos seus livros, as cinzas da inanidade de
tudo (...)”
83
O esvaziamento do amor é o mesmo esvaziamento de todos os sentimentos e da
vida; Bentinho termina a narrativa levando uma existência sem sentido; e Brás Cubas,
que não tem mais existência física, traduz esta falta de sentido nulificando toda a vida
passada, reduzindo-a à miséria:
Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que
não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que squite
com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro
lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a
derradeira negativa deste capítulo de negativas: - o tive
83
PEREIRA, 1955: p. 27
90
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria. (MPBC, capítulo CLX, p. 208)
Lúcia Miguel Pereira, na biografia de Machado, diz, sobre as reflexões do autor,
quando ensimesmado: (...) um abismo se abria a seus olhos: o nada, a obsessão do
nada, a voluptuosidade do nada’
84
e sua obra parece imbuída desta mesma
obsessão.
Para o esvaziamento de que falamos construiu-se Brás Cubas um perfeito
egoísta: se preocupava com a satisfação das suas vontades, fossem elas cavalgar o
moleque Prudêncio na infância ou dissipar o dinheiro do pai na tentativa de se tornar o
preferido da prostituta Marcela. Nas relações com Virgília não foi diferente, embora
esta lhe disputasse o cetro do egocentrismo. O amor de Brás era um teatro: ia do
apaixonado ao indiferente em dois atos e, se a indiferença se faz mais forte, opõe-se a
ela o fato de o protagonista o ter se casado com nenhuma outra mulher, mas ter
montado uma casa para viver os amores espúrios com Virgília, ainda que Lobo Neves
tenha aparecido quando os dois já namoravam. Ou o amor, apesar de disfarçado pelo
tom de desdém, era tanto que suplantou o orgulho, ou, de fato, Virlia não tinha para
ele significativo valor, não se importando o narrador em partilhá-la com outro homem.
Crê-se, pelo egoísmo que transparece no longo diálogo com a vida que é a narrativa de
Memórias stumas de Brás Cubas, que a indiferença suplanta o amor. Sobre este
egoísmo, nos fala Lúcia Miguel Pereira:
Cada criatura é um mundo fechado, impenetrável aos outros, que
abalroa se os encontra em seu caminho. O egoísmo, ora cínico, ora
hipócrita, ora ingênuo, é um dos móveis mais freqüentes nas ações. O
universo de Machado de Assis é, em grande parte, uma expressão do
egoísmo. Egoísmo da natureza, que sacrifica o indivíduo à espécie;
egoísmo da sociedade que, ara manter os seus estatutos, não hesita em
acorrentar as criaturas a situações desgraçadas; egoísmo da família, tudo
subordinado às suas conveniências; egoísmo de cada ser, exigindo
sempre dos outros muito mais do que lhes dá.
85
De qualquer forma, o tempo e o tédio arrefecem as relações entre os amantes,
nulificando a função deste sentimento. Este esvaziamento, que serve de tema a esta
84
Idem, p. 151
91
parte do trabalho, fica muito claro no capítulo VI, quando Brás Cubas faz uma análise
de sua relação com Virgília, vinte anos após terem namorado:
Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um
para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous grandes
namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos
depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e
saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. (MPBC,
cap. VI, p. 20)
A perenidade do sentimento, a falta de grandeza e a facilidade com que a volúvel
Virgília casou-se com outro esvazia o sentido de sentimento sólido que seria o amor de
fato. Nem o desejo restou, já que a expressão “saciados” tem clara conotação negativa,
de fastio mesmo, e o de satisfação.
As boas memórias afetivas são, o à toa, as mais distantes, como se a
juventude, e o o amor, colorisse um pouco mais o mundo e as relações. Mas ainda
assim, nada muito esfuziante. Para Machado, o tempo é um rato roedor das coisas
86
,
e isso fica claro também na passagem em que Brás Cubas, ao encontrar uma antiga carta
de Virgília, quando estavam por se separar, acha-a “descomunalmente audaciosa, mal
pensada e até ridícula” (MPBC, cap. CXI p. 161), por pensar que fora escrita em época
recente. É a prova de que o tempo corrói os sentimentos, dissolvendo-os e fazendo
nascer o tédio.
O romance entre Brás e Virgília é tão ziguezagueante quanto a narrativa. Nesta,
o caráter é dado pelas delongas, pelas intromissões do autor, pelo tempo psicológico.
Naquele, a interrupção, com o casamento de Virgília, a retomada após este, a nova
interrupção, com a transferência de Lobo Neves para outra província e o reaparecimento
da amante nas últimas horas de vida de Brás.
Entre os dois houve amor: pálido, sem entusiasmo, sem frutos, mas houve.
Chama também a atenção para as intenções do autor em Memórias póstumas de
Brás Cubas o fato de a biografia da personagem ser apresentada por partes justapostas,
o obedecendo à ordem cronológica, para abordar determinados aspectos humanos
85
PEREIRA, 1988: p. 77-78
86
ASSIS, Esaú e Jacó: p. 70.
92
com ironia mordaz. Este fator reitera a importância da crítica, ficando esta acima
mesmo do enredo.
A separação entre o tempo da enunciação e o tempo do enunciado tem uma
importante função em Memórias póstumas de Brás Cubas. A ótica racional pela qual é
visto o amor e muitos outros temas, na obra de Machado, tem como elemento
fundamental o ponto-de-vista do personagem-narrador, que avalia tudo com
distanciamento temporal, sem estar emocionado pelo “calor da hora”. Este recurso dá a
ele a autoridade de analisar a vida e a sociedade em que esteve inserido, e de optar pela
adoção de um enfoque objetivo, no lugar da sentimentalidade de Paulo, em Lucíola. Tal
opção deixa clara a tendência da época e dos romances em estudo.
Os enredos de Memórias póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro
representam uma espécie de resgate das relações vividas e, como estas não deram certo,
toda a visão cética que os perpassa. Muito mais ceticismo ainda na visão de Brás
Cubas, seja acerca do amor ou de qualquer outro sentimento positivo, já que, como está
morto, desvincula-se de qualquer amarra ou compromisso social: não precisa responder
a cobranças. A estratégia de fazer de um defunto o narrador-personagem tem a função
de livrar-se da visão comprometida com aquilo que é socialmente aceito, pica de
autores românticos, como comprovou a análise dos romances de José de Alencar.
Assim, o narrador fica fora do alcance das pressões sociais. Legitima-se, a partir
daí, desta situaçãopost mortem’, o caráter cético e descomprometido da ótica do
narrador, ainda que ele próprio seja um ‘filtrodos acontecimentos narrados, fator que
relativiza seu ponto-de-vista.
Desta forma, conclui-se que o distanciamento entre narrador e matéria narrada
minimiza os laivos de sentimentalismo típicos do momento dos acontecimentos, e talvez
seja por isso que o autor assim constrói duas de suas obras mais significativas na
abordagem das relações homem-mulher, ou do casamento: Memórias póstumas de Brás
Cubas e Dom Casmurro.
Não se pode deixar de notar, porém, que um narrador-personagem como
Bentinho procura, através da narrativa, reviver a história, de forma a convencer e
convencer-se do que acredita ter acontecido. O jogo verbal de Bentinho procura
permear de um caráter inequívoco sua visão da trajetória de seus amores com Capitu.
Sobre este tipo de construção, Luís Filipe Ribeiro diz, em sua obra já aqui citada:
93
Mas, para o analista, o perigo reside em confundir as imagens
que, depois de provocadas pelo verbo, se alojam em sua
imaginação, no indispensável amálgama texto-leitor que é o
próprio sangue e carne da grande literatura, com a totalidade do
fenômeno literário. Na tarefa analítica que se separar,
sempre que possível, os dois pólos do processo
87
Bentinho prende-se à sua visão unilateral e constrói o mundo narrativo de Dom
Casmurro, que é aquele que chega ao leitor. A ótica narrativa não é, portanto, objetiva
– o narrador em primeira pessoa a trai.
Todo esse processo narrativo é importante na discussão do tema do amor em
Machado. Bentinho, o ciumento marido que analisa até o olhar da esposa no enterro do
melhor amigo, julgando-o um olhar traidor, só narra sua história depois de Capitu
morta, assim como todas as outras personagens que pudessem contradizê-lo. A traição,
assim como as feições do amor entre as duas personagens, faz parte de uma construção
discursiva intrincada, que ilude o leitor. Bentinho enfatiza os momentos em que não
passava com Capitu, ocultando detalhes do tempo em que estiveram casados. Este
procedimento intenta camuflar o amor e as possíveis provas de inocência da esposa.
Sua opção foi, então, pelo silenciamento, não dela, em toda a narrativa, mas, neste
período de suposta harmonia, dele também. Relatou apenas o que importava à sua
versão da história: a dúvida.
em Memórias póstumas de Brás Cubas a história se cria não a partir de um
marido possivelmente traído, mas do próprio amante.
Virgília e Capitu são retratadas como dissimuladas pelos narradores de MPBC e
de Dom Casmurro, respectivamente. No entanto, o narrador de MPBC mostra fatos para
denunciar a dissimulação da primeira: ela assume um noivado com Lobo Neves quando
conhecia Brás Cubas, apenas porque aquele tem uma carreira potica promissora. E
depois torna-se amante de Brás. Ao receber as visitas deste, muitas vezes está presente
o filho legítimo de seu casamento, inclusive depois de adulto. Brás Cubas apresenta
cenas inequívocas da mais alta dissimulação.
Bentinho apresenta suposições, o havendo fatos palveis que
justifiquem a acusação de dissimulada feita a Capitu.
87
RIBEIRO, 1996: p. 237
94
Mas nossa intenção não é de descobrir “verdades” no texto machadiano, tarefa
de impossível realização e até de pouca valia, já que ele aponta, indubitavelmente, para
os desmembramentos interpretativos.
Além disso, a derrocada do amor na narrativa machadiana tem estreita ligação
com o “narrador volúvel” das obras do autor, assim denominado por Roberto Schwarz.
Este tipo de narrador desqualifica quaisquer posições ideológicas, ainda que sua própria
perspectiva, às vezes, precise ser mutante. Tal processo consiste em (o narrador) não
se dar jamais por achado, a olhos alheios ou aos próprios, e (que) se afirma através da
desidentificação sistemática de si mesmo, cuja contrapartida é a constante adoção de
novos papéis, logo postos de lado outra vez.”
88
Brás Cubas é um narrador que hostiliza o sentimentalismo, apresentando uma
visão não racional, como também pessimista em relação ao sentimento amoroso.
Trata-se da desmitificação do amor, realizada através da ironia, do exame social e moral
do ser humano. A construção de tal personagem exclui quaisquer fumos românticos,
pois ele não assumiria sentimentos que o deixassem à mercê de alguém. Sua
superioridade é proclamada através da crítica a tudo e a todos.
É apagado qualquer resquício de sentimentalidade, como o fato de Virgília estar
presente até o dia de sua morte é rebatido com ironia, revelando-se intenções e atitudes
ocultas que devem ser desmascaradas, expostos sarcasticamente os defeitos de
caracteres:
Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira
senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não
parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais.
Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era cousa altamente dramática... Um
solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna
em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que
menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da
cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal
podia crer na minha extinção.
Morto! Morto! Dizia consigo.
(...)
Deixá-la ir; iremos mais tarde; iremos quando eu me restituir aos
primeiros anos. (MPBC, capítulo I, p. 14)
88
SCHWARZ, 1990: p.32.
95
Nessa passagem, o fato de se dirigir à Virgília de maneira bastante impessoal e
de colocá-la de lado para apresentá-la depois, relegando-a ao segundo plano, tem a
função de relegar também ao limbo o lirismo.
Este mesmo capítulo, em que apresenta Virgília como um detalhe, o narrador de
MPBC conclui com a frase Imagine o leitor que nos amamos, como se amar fosse
algo absurdo, digno de incredulidade.
Virgília demonstra-se dissimulada e rende-se à vaidade ao aceitar o casamento
com Lobo Neves:
Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era ais esbelto do
que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simtico, e
todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de
poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. o
precedeu nenhum despeito; não houve ao menos violência de família.
Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a
candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi;
tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília
perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.
Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.
Virgília replicou:
Promete que um dia me fará baronesa?
Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde eno fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e
elegeu a águia, deixando o pavão com seu espanto, o seu despeito, e três
ou quatro beijos que lhe dera. (MPBC, Cap.XLIII, p. 81)
Brás Cubas, por sua vez, também não sofre de amor, como seria de se esperar
num romance romântico. Quando toma conhecimento do noivado de Virgília com Lobo
Neves, e vê seu pai arrasado com a perda da oportunidade de seu casamento com o
filho, tem uma crise de insônia. Com toda a objetividade que lhe é peculiar, o narrador
justifica a vigília com o despeito e não com o sentimento amoroso:
Não foi alegre o almoço; eu próprio estava a cair de sono. Tinha velado
uma parte da noite. De amor? Era impossível; não se ama duas vezes a
mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquela, tempos depois, não lhe
estava agora preso por nenhum outro vínculo, além de uma fantasia
passageira, alguma obediência e muita fatuidade. E isto basta a explicar
a vigília; era despeito, um despeitozinho agudo como ponta de alfinete,
o qual se desfez, com charutos, murros, leituras truncadas, a romper a
aurora, a mais tranqüila das auroras. (MPBC, Cap.XLIV, p. 82)
96
As personagens, então, aproximam-se em frieza, reiterando o caráter racional de
sua construção. As relações amorosas estabelecidas no enredo de MPBC são
conveniências sociais e o amor entre Virlia e Brás Cubas é tão lasso que ela não se
torna vi por, teoricamente, fugir à ética (do ponto de vista romântico, inclusive) e
casar-se com Lobo Neves. É apenas o desvendamento das relações, esperado em
narrativas realistas. Para mais uma vez negar o sentimento amoroso, o narrador insere
uma passagem em que afirma ser tal sentimento exclusividade das mulheres, porque nos
homens ele recebe uma conotação de mérito por manifestar a sua superioridade sobre os
outros homens:
A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI
e outras) entrega-se por amor ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou
puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou
polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas
o homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante o
homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e
refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro
homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular
com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem,
sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica
legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido
e menos secreto essa boa fatuidade, que é a transpiração luminosa do
rito.(MPBC, capítulo CXXXI, p. 181)
O amor é reduzido, enquanto prevalecem o amor-próprio, a vaidade, a sedução.
97
3.2.1 – A ironia mordaz no tratamento do amor
É muito interessante contrapor, ainda que esta não seja a relação central de
MPBC, os amores de Brás Cubas por Marcela à romântica relação entre Paulo e Lúcia,
em Lucíola. A escolha se faz pela ‘vida fácil’ que levam ambas (Lúcia e Marcela).
O narrador de MPBC faz desse relacionamento uma das análises mais irônicas
de toda a obra, sendo impiedoso ao mostrar a unilateralidade do amor que nutria por
Marcela. Mas este amormais parecia uma disputa pela posse de um objeto com um
tal Xavier, que à época era quem pagava mais por ter Marcela.
A espanhola era mais um jogo, uma disputa por ostentação do que um amor, e
Brás Cubas nem nomeia sentimentos por ela ou mesmo a relação entre ambos:
Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome,
que eu de nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na
primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais
acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a
credulidade não pôde resistir à evidência, o Xavier pôs as insígnias, e eu
concentrei todos os poderes na minha mão; foi a fase cesariana. Era
meu o universo; mas, ai triste! o o era de graça. (MPBC, cap. XV, p.
41)
O já citado distanciamento temporal entre o narrador e a matéria narrada torna a
crítica mais mordaz, pois que afasta qualquer sentimentalismo que pudesse haver à
época dos acontecimentos. Não uma réstia de piedade na visão do narrador sobre
Marcela – só o dinheiro era capaz de angariar-lhe os amores:
Era uma boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela
austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus
estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de
rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito
abastado e tísico, - uma pérola. (MPBC, cap.XIV, p. 40)
Comparar um tísico a uma pérola, pelo seu poder financeiro para manter
Marcela, não é, nem de longe, a expressão mais fria do narrador. Sem eufemismos, ele
diz sobre sua própria relação com a meretriz: Marcela amou-me durante quinze meses
e onze contos de réis; nada menos.” (MPBC, cap. XVII, p. 44)
98
Narrando um encontro acontecido mais tarde, Brás Cubas mostra nela as chagas
físicas da vida mundana, evidenciando aqui que não mais a divisão corpo X alma, tão
cara ao Romantismo. Se um dos dois vai mal, tudo se estraga e Marcela lhe aparece,
anos após terem sido amantes, como uma visão grotesca, de total degradação: feia,
oferecida e cheia de bexigas uma mulher marcada, de quem ele se afasta, evitando
qualquer contato. Nem piedade lhe suscita.
Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o relógio e
cai-me o vidro na caada. Entro na primeira loja que tinha à mão; era
um cubículo, - pouco mais , - empoeirado e escuro.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo
que se destacava era um espetáculo curioso. o podia ter sido feia; ao
contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e
uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas
tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e
encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa,
enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás
tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto,
logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão
poento como os portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda
fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? Essa mulher era Marcela.
(MPBC, cap. XXXVIII, p. 75)
Apesar de longa, a citão dispensa extenso comentário, pela sua transparência e
exatidão.
Sobre a moléstia de Marcela, pode-se dizer que, através da análise do que lhe
acontece, é possível também diferenciar a vio de Machado, ou ainda do próprio
Realismo, da visão naturalista. Em determinado momento o narrador diz sobre a
personagem: Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a
moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de
acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo
que me disseram depois”. (MPBC, cap. XXXIX, p. 77). Vê-se, pela citação, que o
interior é que faz o homem: seus aspectos psicológicos, sua moral, e não o exterior é
que o determina. Não é o meio que o define, e sim seus próprios sentimentos e índole.
Já no Naturalismo é o exterior que opera esta transformação.
O conceito de amor em Machado de Assis é esvaziado porque tal sentimento
resulta, no senso comum, em sacrifícios, atos grandiosos em seu nome, e as personagens
do autor são carentes de grandeza, porque é assim que a Humanidade é vista por ele. O
99
final de MPBC é sintomático neste aspecto: porque ao chegar a este outro lado do
mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo
de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria”. (MPBC, cap. CLX, p. 208).
O segundo interesse de Brás por uma moça o passa de um flerte sem
conseqüências (para ele) e o sentimento não pode desabrochar devido a um obstáculo
físico que se interpõe à visão potencialmente enamorada da personagem: o fato de
Eugênia ser coxa e filha de uma relação ilegítima. A moça é caracterizada com mais
frieza ainda que Marcela, pois nada faz para merecer a culpa dos defeitos que carrega.
Recebe adjetivos impiedosos: “Vênus manca”, “flor da moita” (porque fruto de uma
relação adúltera, às escondidas), “filha espúria e coxa”.
Por tudo isso, e pela falta de conveniência financeira, a relação amorosa não se
consuma em nenhum âmbito. E Brás ainda afirma ter recebido”, pelo tempo que
perdeu com a moça, o justo pagamento de um beijo: Com efeito, foi no domingo esse
primeiro beijo de Eugênia, - o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e
não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto
paga uma dívida”(MPBC, Cap XXXIII, p. 71).
A linguagem do autor corresponde às suas intenções, excluindo ambigüidades e
sobejos da alma, pois é precisa, prima pela concisão, tornando as expressões
inequívocas, ajustadas à reflexão e à análise. Um dos momentos mais interessantes
nesse sentido, em que o narrador ironiza o sentimentalismo é quando descobre que
Eugênia era manca: O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão
fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a
natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se
bonita? ” (MPBC, Cap.XXXIII, p. 70)
O tom de mofa é tão proposital que num capítulo posterior o narrador debocha
do leitor que pudesse estranhar ou se sentir incomodado por tais considerações atrozes
sobre o defeito da moça, e mais uma vez e à luz o que sempre se esconde, na medida
em que diz pensar assim por ser homem. Ou seja, todos pensam, mas poucos assumem
tal pensamento.
100
entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há uma alma
senvel, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior,
começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no
fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? (...)
Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem (...) (MPBC,
Cap.XXXIV, p. 72)
É o total desmascare da hipocrisia social. Aliás, o comportamento psicológico-
social é a base das criações de Machado, já que ele recusa a manutenção das aparências,
através da crítica. Enfim, fica a idéia de que qualquer homem evitaria Eugênia, sendo
ela coxa e estando numa situação social inferior à dele. Ou seja: algum benefício de
existir para que se realize uma união. Ressalte-se também o humor inico presente no
trecho. É sempre em tom de mofa que o autor faz tais comentários, como que para
alertar o leitor a possibilidade real de estes julgamentos serem feitos na sociedade, ainda
que não admitidos. É como se o narrador apenas verbalizasse o que todos sabem.
Crê-se que a visão machadiana exagera no ceticismo em relação ao amor,
através da trajetória de suas personagens, creditando quaisquer fumos sentimentalistas à
hipocrisia ou à competição. No entanto, alguns outros pensamentos e sentimentos
embotados por máscaras sociais são trazidos à tona com crua veracidade. Nesse
aspecto, a literatura de Machado de Assis exerce uma interessante função para o leitor,
o moralizadora, mas de autoconhecimento:
Esta experimentação com o personagem é que o torna tão vivo e
próximo da nossa vida profunda, na qual vai provocar o
estremecimento de atos virtuais, de pensamentos sufocados, de
toda uma fermentação obscura e vagamente pressentida. Na
medida em que atua deste modo, o romance tem para nós uma
função insubstituível, auxiliando-nos a vislumbrar em nós
mesmos, e nos outros homens, certos abismos sobre os quais a
engenharia da vida de relação constrói as suas pontes frágeis e
questionáveis.
89
O autor, não satisfeito em fazer um retrato moral desanimador do homem, e do
seu egoísmo exacerbado; mostra também a decadência física, derrubando a idealização
romântica, mostrando personagens doentes, como o próprio protagonista; pessoas à
89
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira, p. 213.
101
morte, como Marcela e Dona Plácida; defeituosos, como Eugênia, e ainda a velhice
decrépita.
No capítulo LXXV, intitulado Comigo”, desmonta-se por completo qualquer
tese romântica acerca do encontro entre duas pessoas. Brás Cubas, ao versar sobre a
origem de Dona Pcida, ressalta a falta de sentido da vida. A ironia feita à própria
existência, como um todo, resume a união de um casal a uma conjunção carnal e
passageira, que o dá bons frutos, devido à nulidade social do ser que dela pode provir.
O suposto amor entre o pai e a mãe de Dona Plácida é nomeado pelo narrador de
conjunção de luxúrias vadiase de momento de simpatia(MPBC, cap. LXXV, p.
121). A história, na verdade, endossa a visão filofica da obra, através dos
comentários do narrador, que ironiza a insensatez humana. A união, assim como sua
própria existência, é inócua para os próprios seres, que vêm ao mundo apenas para
sofrer e servir. A falta de sentimentalismo deste trecho da narrativa funciona como
veiculadora desta visão filosófica, que termina por ser reiterada como fechamento do
livro, em que o narrador, no Capítulo de Negativas, reflete sobre sua própria nulidade.
Negando novamente a possibilidade amorosa, mais tarde, ao narrar um
envolvimento de Dona Plácida com um carteiro que lhe deu “o golpe do baú”, em
nenhum momento Brás Cubas afirma ter ela se apaixonado, ou amado o carteiro. Os
termos usados são “espertar-lhe os sentidos ou a vaidade” (MPBC, cap. CXLV, p. 194)
Eugênia e Marcela são usadas e descartadas, tanto no plano dos acontecimentos
como no da construção das personagens, tal é a degradação sica e moral que as faz
serem repelidas pelo protagonista de maneira irremediável. E aquela a quem oferece o
matrimônio o repele em prol da ascensão social – Brás Cubas é tima da própria
sociedade que reproduz em seus atos e escolhas amorosas, ainda que faça outras
timas. É um círculo do qual as personagens não fogem, visto que não há idealizações.
Os amores de Brás Cubas esterilizam e matam os envolvidos, mas não de
paixão. uma decadência, não em conseqüência direta, de todas as mulheres com
quem se envolveu, exceto de Virgília, porque nunca foi exclusivamente sua. No
entanto, Dona Plácida, que lhes facilitou o romance, morreu em estado deplorável.
Assim também Marcela. Na miséria ficou e foi esquecida “a flor da moita”, Eugênia; e
morta também ficou Nhã-loló no fim da narrativa.
102
Ainda que seja uma escolha por motivações sociais, Virgília apresenta-se como
um divisor de águas nas memórias de Brás Cubas. o período antes dela,
resumidamente contado; o período em que o protagonista retorna ao Brasil, em que a
conhece, namora e é repelido como seu pretendente; depois, o longo período em que
Brás é seu amante (11 anos) e, por fim, o período que compreende desde o seu
reencontro com ela, no leito de morte, até o desenlace fatal.
3.2.2 – Virgília e Brás
Quando se o primeiro reencontro de Virgília com Brás, a partir do qual se
tornam amantes, ainda assim não se admitem sentimentalismos: para o narrador é como
se se apropriasse de um valor de outrem. Durante dois capítulos ele faz um jogo
semântico entre Virgília e uma moeda achada e um pacote de dinheiro. No caso da
moeda, o artifício discursivo deixa bastante clara a comparação. O final do capítulo L
de MPBC coincide com o final de um baile em que Brás Cubas valsou com Virgília; e o
capítulo subseqüente inicia-se com um pensamento recorrente na idéia de Brás Cubas:
– É minha.”
Percebe-se, neste momento, a consciência de posse de Virgília; logo depois, a
frase é dita com o mesmo tom para uma moeda encontrada na rua. A reificação da
mulher é clara, assim como o seu valor comercial. Mas Brás devolve a moeda ao dono,
assim como, na juventude, perde Virgília para Lobo Neves porque, como este era mais
proeminente, mais abastado, ela lhe pertencia “de direito”.
Entretanto, ao encontrá-la mais tarde, casada, também abastada, não é mais uma
moeda, e sim um pacote de dinheiro. Dessa vez ele se apropria dela, o como um
‘dono’, mas como amante, e sem culpa, visto que ela está a sua mercê pela falta de
cuidados de quem a possuía. Machado recria a trajetória do casal de maneira
completamente metafórica.
O interdito aumenta o desejo, ou melhor, desperta-o. Essa idéia fica clara em
MPBC quando, ao narrar a época em que se torna amante de Virgília, o narrador-
103
personagem afirma: Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo
impediam, agora é que nos amávamos deveras”(MPBC, cap. LVII, p. 97).
Para a abordagem do tema do amor em Machado de Assis é imprescindível o
capítulo LXVII “A casinha”. O início do capítulo mostra a desconfiança de Lobo
Neves acerca do romance entre Virgília e Brás Cubas. Ela envia ao amante uma caixa
de charutos, com fita cor-de-rosa e um bilhete, avisando a ele sobre as suspeitas do
marido. A partir daí, desvela-se a ambição de Virgília, para quem, sem vida, a
posição social vale tanto quanto qualquer sentimento pelo protagonista:
- O melhor é fugirmos, insinuei.
- Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.
Vi que era impossível separar duas cousas que no espírito dela
estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração
pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para
conservar ambas as vantagens, e a fuga lhe deixava uma.
Talvez senti alguma cousa semelhante a despeito; mas as
comoções daqueles dous dias eram muitas, e o despeito
morreu depressa. Vá lá; arranjemos a casinha. (MPBC, cap.
LXVII, p. 112)
Brás, por sua vez, diante da tomada de consciência (mais uma vez) de seu valor
para Virgília, sente apenas um rápido despeito, o que indica que, para ele, não fazia
tanta diferença assim. O jogo das conveniências é muito mais importante que o amor
que possa haver entre as personagens em questão.
A partir da compra da casinha que garantiria a manutenção do romance, o
narrador constrói um discurso falsamente romântico, esvaziando-o através do caráter
irônico, em algumas passagens. Diz, por exemplo, ter desfrutado não da mulher
como da casa e do conforto do marido traído, dizendo-se cansado de tanto fazê-lo:
estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas
essas cousas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade.” (MPBC,
cap. LXVII, p. 113)
Fala ainda de um “mundo superior”, e aí é o extremo destroçamento do discurso
romântico, quando se refere à casa que servi ao desfrute carnal de uma mulher
adúltera e seu amante. Não nada de superior nisso, e, principalmente, no fato de
representar a casinha a própria recusa de Virgília em abriro de um mundo de
104
aparências em prol do sentimento, o que legitimaria o discurso romântico. Este é
negado a partir da sua própria utilização que, dentro do contexto, é uma farsa.
Se Virgília se preocupa em manter sua posição social, Brás não pensa muito
diversamente: além de rapidamente providenciar a casinha, afirma que, para ele, esta
representaria alguma coisa que o faria adormecer a consciência e resguardar o
decoro (MPBC, cap. LXVII, p. 112). Tal trecho evidencia que também ele se prende às
normas sociais e às conveniências e certamente não estaria disposto a, de fato, opor-se
frontalmente a elas.
Lobo Neves, por sua vez, também se acomoda à situação, para não ferir seu
prestígio potico e evitar escândalos que o expusessem à crítica da sociedade. Todos
compactuam da hipocrisia, secundarizando sentimentos. Assim, um trecho do capítulo
CXII sugere a falta de amor de Lobo Neves por Virgília, ou melhor, a sobreposição da
importância social a qualquer sentimento, assim como acontecia com Virgília e Brás:
Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se este meu juízo for
temerio!) pareceu-me que ele tinha medo não medo de mim, nem de
si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus
que esse tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e
julga, era o limite posto à vontade do Lobo Neves. Talvez já não
amasse a mulher; e, assim, pode ser que o coração fosse estranho à
indulgência dos seus últimos atos. Cuido (...) que ele estaria pronto a
separar-se da mulher; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a
vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do caso,
que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências,
induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas,
essa terrível opinião, o curiosa das alcovas, obstou à dispersão da
família. (MPBC, cap. CXII, p. 162-163)
O fim do romance entre Brás e Virgília tem caráter prático e nada sentimental e
é, mais uma vez, ditado pelas conveniências sociais: Lobo Neves, após descobrir o
romance através de um bilhete anônimo, interroga Virlia; esta nega tudo. Mesmo
assim, pouco tempo depois, o marido, alegando necessidade potica imperiosa (a qual
havia recusado anteriormente), afasta a mulher da cidade, dando fim a onze anos de
traição. Não desvarios praticados por nenhum dos três envolvidos que justifiquem
paixão ou ciúmes desmedidos.
105
O relacionamento aponta, aliás, para o fastio, a nulidade, e a metáfora da mosca
e da formiga, no capítulo CIII simboliza este cansaço ou esvaziamento, bem antes de a
narrativa chegar ao fim, ainda que esta não obedeça à marcação cronológica do tempo.
Tal capítulo trata de uma briga entre Brás e Virgília por conta de um atraso. Ele, sem
dar muita importância ao que ela diz, faz considerações acerca de dois insetos que, na
narrativa representam-nos:
Virgília dizia-me uma porção de coisas duras, ameaçava-me com a
separação, enfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno,
muito superior a mim, delicado, um primor de cortesia e afeição; é o
que ela dizia, enquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos,
olhava para o chão, onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe
mordia o pé. Pobre mosca! Pobre formiga!
- Mas você não diz nada, nada? Perguntou Virgília, parando diante de
mim.
- Que hei de dizer? expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei
de dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada,
que se aborrece, que quer acabar...
- Justamente!
(...)
Sentei-me ao dela, disse-lhe muitas cousas meigas, outras
humildes,outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à
distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa.
Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgília, que eu
inclinei-me a apanha-lo, e que a mosca de há pouco trepou ao brinco,
levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de
um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele casal de
mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta
Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num
episódio o mofino. Se concluís dque eu era um rbaro, enganas-
te, porque eu pedi um grampo a Virgília, a fim de separar os dous
insetos: mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asas e foi-se
embora. Pobre mosca! Pobre formiga! E Deus viu que isto era bom,
como se diz na Escritura. (MPBC, capítulo CIII, p. 153-154)
Na verdade, Brás era a mosca que tinha a formiga, Virgília, no pé. Neste
‘episódio tão mofino(ambigüidade entre os insetos presos e a briga com Virgília), ele
demonstra a tentativa de separar-se/ separar os insetos, mas a mosca abriu as asas e foi
embora, não realizando Brás os eu intuito. Ainda assim, o capítulo mostra o fastio e a
condição dos dois: um já ‘carregando’ o outro.
106
3.2.3 – Dom Casmurro: diminuição da impassibilidade e esvaziamento do amor
O escritor traz uma discussão sobre a validade do sentimento amoroso, através
de uma perspectiva filofico-existencial cética. Nesta, demonstra-se que o tempo
dissolve tudo. Se em Memórias póstumas de Brás Cubas a dissolução da relão
entre o protagonista e Virgília pelo cansaço do tempo em que sua situação permaneceu a
mesma, em Dom Casmurro percebe-se que a própria vida, o tempo, são uma traição.
Ainda que este último seja um drama de amor e de ciúme, há ainda a tentativa de manter
certa impassibilidade, presente em Memórias póstumas de Brás Cubas. Mas os
sentimentos de Bentinho, já que ainda vivo, marcam a narrativa e deixam-na mais
dolorida, mais inquietante do que inica. Bentinho nem de longe fica impassível diante
da sedutora Capitu; não a indiferea de Brás Cubas. E no livro um calor de
vida, uma transpiração de contato humano que raramente apareceu em Machado, e
nunca tão longamente
90
O amor é traduzido, em Dom Casmurro, por sensações; descrevem-se os
recônditos psicológicos do adolescente apaixonado: a sensação de um gozo novo, que
me envolvia em mim mesmo, e logo se dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava
não sei que bálsamo interior” (DC, capítulo XII , p. 27 ).
Mas com o correr da narrativa, morrem os envolvidos na trama de ciúme, não
sem antes se separarem irremediavelmente, e Bentinho cai no nada, na ausência de
sentimentos, e fica ‘casmurro’.
Antes disso, porém, a questão do triângulo amoroso fica mais patente, pois
Bentinho, no capítulo X, chega a afirmar que não uma pessoa a mais entre ele e
Capitu (Escobar, como ele cansará de afirmar mais à frente), mas duas. Eu, leitor
amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não pela verossimilhança, que é
muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um
duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...” (DC, cap. X, p. 25) Sancha e
Bentinho ensaiam, no capítulo que antecede a morte de Escobar, uma traição. Mas esta
o interessa confirmar, já que não seria condizente acusador e acusado serem a mesma
pessoa: Bentinho não poderia confirmar o próprio delito.
90
PEREIRA, 1955: p. 239.
107
Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da
janela. Quando o marido saiu, veio ter comigo. Perguntou-me de
que é que faláramos; disse-lhe que de um projeto que eu não sabia
qual fosse; ela pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma
viagem à Europa dali a dois anos. Disse isto de costas para dentro,
quase suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia
ressaca.
- Vamos todos? Perguntei por fim.
- Vamos.
Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu,
graças às relações dela e de Capitu, não se me daria beijá-la na
testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expressões
fraternais, pareciam quentes e intimativos, diziam outra coisa, e não
tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o
mar, pensativo. A noite era clara.
Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao do piano; encontrei-
os em caminho. Pararam os quatro e ficaram diante uns dos outros,
uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam.
Tal se na rua entre dois teimosos. A cautela desligou-nos; eu
tornei a voltar-me para fora.
(...)
Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão
dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.
(DC, cap. CXVIII, p. 156-157)
Constrói-se, então, o enredo em torno do trio Capitu Bentinho Escobar, que
vitimiza Bentinho, eximindo-o de qualquer culpa. Mas a narrativa não isenta a
citação anterior do erotismo.
Apesar de toda a crítica do narrador a Capitu, havia, sem vidas, muito
sentimento, à época em que eram jovens. A despeito do marcado desnível social
entre ambos, apontado no discurso de Jo Dias e pelo próprio narrador, na
descrição física de Capitu,
Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e
cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos
grossos, feitos em duas traas, com as pontas atadas uma à outra, à
moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e
grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As
mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não
cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água de
poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de
duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos. (DC,
cap.XIII, p. 27-28 – grifos nossos)
108
apesar da oposição de Dona Maria da Glória, Bentinho abandona o seminário e casa-se
com ela. E as convenções sociais eram dificilmente transponíveis àquela época. Ainda
que o relacionamento esboroe-se depois, não se pode negar a forte atração inicial.
Uma inversão inovadora marca a relação inicial entre Bentinho e Capitu,
pois é ela, a mulher, que aparece como superior, mais forte, ativa, frente a um passivo
Bentinho. Sendo assim, o ser feminino prepondera sobre o masculino nesta relação, o
que não é comum nas narrativas do culo XIX. Bentinho resume a superioridade de
Capitu em uma frase: Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais
mulher do que eu era homem”.(DC, cap. XXXI, p. 52)
Capitu exerce sobre o companheiro uma atração à qual este não consegue resistir e
que o narrador traduz na descrição dos olhos da adolescente:
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, olhos de
cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas
dissimulada sabia, e queria ver se se podia chamar assim. Capitu
deixou-se fitar e examinar. me perguntava o que era, se nunca os
vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas
conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia
do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de
perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto
atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal
expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para
dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem
capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e
me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me idéia
daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico,
uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia,
nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes
vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros;
mas o depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-
me. (DC, cap. XXXII, p. 55)
Os adjetivos “misterioso”, “enérgico” e escura”, e a força dos movimentos
arrastava”, “envolver”, “puxar”, “tragar” mostram o poder de Capitu frente à fraqueza
e à impossibilidade de resistência de Bentinho.
Mas talvez a construção de Capitu tenha sido assim realizada para, no decorrer
da narrativa, não restar dúvidas ao leitor de que Bentinho fora tima da dissimulação e
109
da traição da mulher: ardis narrativos que o caracterizam como digno de piedade não
vos enganeis, leitores.
Luís Filipe Ribeiro, em Mulheres de papel, ainda um outro aspecto do trecho
em que Bentinho analisa se os olhos de Capitu são de cigana oblíqua e dissimulada:
Por outro lado, existe uma expressão literária admirável do medo
adolescente diante da voragem sexual. O grande mistério abria suas
fauces para o inexperiente Bentinho e o narrador aproveita o ensejo para
marcar a mulher como devoradora e ameaçadora, como mistério e
desejo, como aventura e aniquilação. O homem apenas aventura-se nas
trilhas do desconhecido e não se pergunta nunca pelas dúvidas, anseios
e medos da parceira. Que parceira não é; é ameaça e sabedoria. Desde
Eva, aliás...
91
Estão presentes, portanto, o medo adolescente e a preparação para o que virá, na
narrativa. Esta superioridade é, primeiramente, motivo de admiração, e a dissimulação
de Capitu, vista como inteligência e astúcia. Com o passar do tempo, a ótica é outra: há
inveja e ciúmes, que desencadeiam toda a complicação do enredo, embora a inoncia
do leitor possa enredá-lo nas tramas de Bentinho e fazê-lo esquecer de todos esses
capítulos iniciais, acreditando que a traição é a verdadeira desencadeadora dos
acontecimentos.
A superioridade conferida a Capitu, na adolescência, por Bentinho, o condiz
com o posicionamento da personagem feminina quando do pedido de separação. O
discurso é direto, portanto lhe é dada a voz, e não a interpretação de Bentinho. Ele é
quem se decide pela separação, acusa, a sentença, exila a condenada. Ela apenas
aceita a decisão e cumpre-a. O homem reassume seu lugar social, também no enredo.
De qualquer maneira, os ciúmes, a certeza da traição, separaram as personagens
Capitu e Bentinho definitivamente e apagaram os vestígios do amor adolescente. Se
Bentinho revive os acontecimentos através da narrativa, a falta de comoção e mesmo a
displicência com que narra a morte de Capitu evidenciam o desamor e a pouca
importância que à imagem da ex-amada. Ao reencontrar o filho depois de anos sem
-lo, a notícia da morte de Capitu : Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou
quinze minutos na sala. depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e
91
RIBEIRO, 1996: p. 318
110
correr, abraçá-lo, falar-lhe da mãe... A mãe, - creio que ainda não disse que estava
morta e enterrada. Estava;repousa na velha Suíça.” (DC, cap. CXLV, p. 180)
Dom Casmurro é, enfim, muito mais uma história sobre a descrença no ser
humano do que uma hisria sobre amor, ciúmes e traição. O desfecho assemelha-se à
visão pessimista do poeta Augusto dos Anjos:
É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das
sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o
meu amigo, o extremosos ambos e tão queridos também, quis o
destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja
leve! (DC, cap. CXLVIII)
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
92
Transparece, portanto, no conjunto da obra de Machado, desencantamento em
relação não só ao amor, mas ao ser humano.
92
ANJOS, Augusto dos: 1965, p. 146. (grifos nossos)
111
4 – O AMOR NA FICÇÃO DE 30
Na geração de 22, a ficção teve um papel relativamente menos destacado e, nela,
o amor, conquanto aparecesse, raramente funcionou como tema central.
Já no romance de 30, o tema foi bastante desenvolvido e, como o nosso corpus é
limitado, optamos por analisar alguns romances desta geração, que apresenta
concepções unânimes no que diz respeito à problemática da terra, à denúncia social. No
entanto, no tratamento de outros temas, como o do amor, ou no posicionamento diante
da existência, enfoques bastante particulares. Seus autores abordam o sentimento
amoroso muitas vezes de maneira divergente. Jorge Amado e Graciliano Ramos, por
exemplo, adotam atitudes divergentes na construção do sentimento amoroso no mundo
ficcional. Essa divergência é a formadora do nosso material básico de análise.
Dentro da obra do próprio Graciliano, o amor ganha enfoques tão diversos
quanto o caráter das obras que são aqui analisadas. Em São Bernardo, o protagonista se
volta sobre a realidade de sua vida com um distanciamento quase tão intenso quanto
Brás Cubas, tal é o repúdio à sua vida. Passa a ter horror ao universo que ele próprio
representa, a seus sistemas de valores, porque tem a certeza de não ter sido traído pela
mulher e de tê-la levado ao suicídio. Mesmo quando a personagem sente ciúmes, a
narrativa tende à objetividade.
em Angústia, uma tendência ao subjetivismo expressionista. A narrativa
está imbuída de uma visão sombria, degradada do homem, e o amor é traduzido pelos
impulsos sexuais. O protagonista desta obra tampouco apresenta arrebatamento ou
ilusão em relação ao amor, apesar da obsessão pela personagem Marina.
Antonio Candido já havia ressaltado esta diversidade de que falamos nas obras
de Graciliano, atentando também para o fato de que, ainda assim, ela nos conduz a um
mesmo ponto-de-vista pessimista:
Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do
espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em
etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão
das mais vívidas emoções pessoais.
(...)
112
Se quisermos sentir esta unidade na diversidade, para reviver a
experiência humana que ela comporta, é aconselhável acompanhar a
evolução da sua obra ao longo dos diversos livros
93
Para perceber um pouco desta ‘unidade na diversidade’, em relação ao tema do
sentimento amoroso resolvemos aborda-lo em São Bernardo e em Angústia.
A visão do amor em Jorge Amado se oe frontalmente a essas. É um enfoque
que confere luminosidade, alegria, ao sentimento. Bem diferente da visão de
Graciliano, que aponta sempre para a não-realização deste. A obra amadiana é um
libelo à alegria e à liberdade.
Essa diferença de pontos-de-vista entre autores e de diferentes tendências de
abordagem até em obras do mesmo autor foi o que nos fez seleciona-los para o estudo a
que nos propusemos.
4.1 – Graciliano Ramos e o aspecto reduzido do amor
Graciliano Ramos mantém-se numa perspectiva pessimista de mundo, e uma
das características que comprova tal afirmação é o fato de ele apresentar o amor numa
dimensão empobrecida em relação à visão idealizada da estética romântica ou mesmo
de outros autores seus contemporâneos. Tal visão não é negativa, mas é cética quanto à
possibilidade de realização.
Poder-se-ia dizer que o ceticismo do enfoque amoroso na obra deste autor é tão
tido quanto o da obra de Machado de Assis. Todavia, as duas possuem propostas
diferentes. Machado de Assis segue o pessimismo schopenhaueriano: é cético quanto
ao próprio homem, visto como indiferente, egoísta. Tal ceticismo impregna também o
amor, abordado numa perspectiva filosófico-existencial. Em Memórias póstumas de
Brás Cubas, aborda-se a dissolução pelo cansaço do tempo; em Dom Casmurro, tanto a
vida quanto o próprio tempo são considerados uma espécie de traição. Por outro lado,
Graciliano Ramos envolve o amor num questionamento de natureza social, abordando
temas como o ciúme aliado ao sentimento de inferioridade, por exemplo, como reflexo
de um choque de valores sociais.
93
CANDIDO, 1992: p. 13.
113
Nos interessam São Bernardo e Angústia, pois em ambas o amor, assim como
todas as outras relações, é uma relação conflituosa.
Em São Bernardo, o tema central, que se desenrola através da história de Paulo
Honório, é a crítica à desumanização associada ao capitalismo. Sendo assim, o amor se
torna um meio de abordagem crítica da realidade social desumanizadora, o que
confirma a perda de importância deste sentimento em relação aos românticos, que
sempre o utilizavam como tema central no desenvolvimento do enredo. Parte-se, nesta
obra de Graciliano, do individual, para analisar o social.
Em Angústia, embora haja o problema social como pano de fundo, a questão
enfocada através da personagem Luís da Silva é muito mais de caráter psicológico do
que sócio-cultural. A sua personalidade doentia faz com que o amor esteja imbuído de
um caráter neurótico, destrutivo.
Em São Bernardo, o psicológico, as atitudes de Paulo Honório, são
determinados pelo cio-cultural, por suas metas e planos de ascensão social e
econômica. O acontecimento do amor significa na narrativa o momento de ruptura, em
que o protagonista o mais consegue subjugar plenamente seus pensamentos e
vontades. Antes de se descobrir apaixonado por Madalena, o amor era
instrumentalizado, fazendo parte de um planejamento material em que ela (ou qualquer
outra mulher) funcionaria apenas como reprodutora, para que houvesse um herdeiro que
perpetuasse o nome e as conquistas de Paulo Honório.
Com o amor, porém, a função inicial de Madalena passa a um papel secundário,
na medida em que ele começa a sentir ciúme da esposa, o que, na obra, está diretamente
ligado ao desejo e o à atividade procriadora. (...) o fracasso de Paulo Honório é de
natureza sobretudo existencial a constatação do vazio dos valores pelos quais lutava
– e, pouco tem a ver com a problemática socioeconômica da região.”
94
O sentimento não prevalece, mas faz com que Paulo Honório, a posteriori,
reavalie sua postura e desloque suas prioridades. Há, portanto, componentes novos,
como a atração erótica, não mais despreocupada e inevitável como a apresentada pelo
Naturalismo, mas ligada à problemática social.
O amor está, em São Bernardo, sob a luz da crise. Crise instaurada também pela
diferença de essências entre Paulo Honório e Madalena: ele, desumanizado pela vida;
94
ALMEIDA, 1999. p. 290
114
ela, humana, mesmo sem ser romântica (visto que aceita as justificativas racionais de
Paulo Honório para seu pedido de casamento), não concebe viver sem considerar que
pessoas ao seu redor.
A morte de Madalena representa o fracasso do projeto de vida de Paulo Honório
e aponta também para a falta de saída para a crise do sentimento.
É importante destacar que o protagonista o é construído como um mau-
caráter, mas como alguém endurecido pelas regras do jogo, que, por sinal, não foram
por ele estabelecidas ( a culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que
me deu uma alma agreste(SB, p. 100). É também este fator, o de ser bruto todo o
tempo, que gera uma certa inconsistência na construção psicológica da personagem,
que, passados apenas dois anos da morte de Madalena, faz uma autocrítica muito
sensata, como se nesse curto espaço de tempo ele adquirisse um distanciamento capaz
de lhe apontar todos os erros e a parcela de culpa que lhe cabia pelo fracasso coma
mulher.
4.1.1 – Amor X dominação em São Bernardo
Em alguns momentos, pensar no amor em relação São Bernardo, causa
uma certa inquietação, tal o esvaziamento de seu sentido primordial em grande parte da
obra.
E, de fato, o relacionamento entre os protagonistas Madalena e Paulo Honório
o é passível, a um primeiro olhar, da classificação de amoroso, mesmo que esta se
afaste da tradicional ótica romântica. Ele está muito mais próximo de um princípio
comercial, capitalista, de um contrato, do que de um sentimento. Mas Graciliano é
muito perspicaz: traduz o sentimento nas entrelinhas narrativas.
É interessante notar que, ao contar fatos importantes, como o modo com que se
apoderou de São Bernardo, Paulo Honório o faz em trecho narrativo bastante breve; no
entanto, nos capítulos referentes ao seu relacionamento com Madalena, tudo se narra de
forma mais morosa, descritiva.
Para teorizar um pouco sobre o assunto, utilizemos a concepção de narrativa
sumarizante (“summary”), utilizada por Norman Friedman: “é a exposição generalizada
115
de uma série de eventos, abrangendo um certo período de tempo e uma variedade de
locais
95
. Trata-se de uma exposição muito geral, que indica uma atitude quase
desinteressada, ou prática demais, do narrador. Este seria o método utilizado quando
Paulo Honório narra como fez com que Padilha se endividasse e perdesse São Bernardo.
Assim também é feito no capítulo 3, onde, em poucas páginas, o narrador descreve os
empregos por que passou, fala da velha Margarida, antes e na atualidade, de Germana e
de João Fagundes, da prisão, dos barulhos no sertão (que narra com uma rapidez e uma
frieza incríveis): Sofri de sede e de fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com
gente que fala aos berros e efetuei transações de armas engatilhadas”(SB, p. 12), do dr.
Sampaio e da surra que mandou lhe aplicar, e, por fim, de Casimiro Lopes. Em
capítulos como esse, o que importa é a atitude dominadora e dura que Paulo Honório
assume diante das dificuldades, arrostando-as e vencendo-as. Ao final, lembramo-nos
menos dos acontecimentos que das atitudes violentas de Paulo Honório. A ação
acontece para iluminar o agente, graças à modulação do tom narrativo. Nestas partes,
Paulo Honório mostra-se um rolo compressor, um elemento dinâmico por natureza, que
arrasta o mundo atrás de si, imprimindo-lhe seu ritmo.
Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, proibi a
aguardente.
Concluiu-se a construção da casa nova. Julgo que não preciso
descrevê-la. As partes principais apareceram ou aparecerão; o
resto é dispensável e pode interessar apenas aos arquitetos,
homens que provavelmente não lerão isto. Ficou tudo
confortável e bonito. Naturalmente deixei de dormir em rede.
(...) Aqui existe um salto de cinco anos, e em cinco anos o
mundo dá um bando de voltas. (SB, capítulo 8, p. 38)
Esta atitude de condensação traduz um certo desencanto, presente no tempo da
enunciação. Antonio Candido, sobre esta característica de Graciliano em São Bernardo
analisa: A vocação para a brevidade e o essencial aparece aqui na busca do efeito
máximo por meio dos recursos mínimos
96
.
Em contraposição, nos capítulos em que Madalena está presente, a narrativa se
desenvolve de maneira bem diferente, sob a forma de cenas plenamente desenvolvidas,
e não como simples sumários. Nessas cenas a apresentação de detalhes concretos e
95
FRIEDMAN, 1967.
96
CANDIDO, 1992:p. 16
116
específicos, dentro de uma estrutura bem determinada de tempo e lugar, o que mostra o
crescimento da importância da mulher para Paulo Honório.
Comprovando este posicionamento está o fato de que a utilidade inicial de
Madalena era dar ao protagonista um filho. No entanto, sempre que se refere a este
filho, o narrador o faz por sumário narrativo. Percebe-se isso quando ele informa que
Madalena está grávida:
- Por que foi aquela brutalidade?
Madalena estava prenhe e eu pegava nela como em louça fina.
Ultimamente dizia-me coisas desagradáveis, que eu fingia o
compreender. Via a barriga crescer-lhe. Uma compensação.
Sentei-me e, para não desgostá-la:
- Foi realmente brutalidade. Brutalidade necessária, mas enfim
brutalidade. É uma peste recorrer a isso. (SB, p. 113)
Ou ainda ao comunicar tardiamente, e com maus modos, que o filho nascera:
Madalena tinha tido menino”. (SB, p.124)
Madalena torna-se, a partir de certo momento, um objetivo em si própria, pois o
filho fica em lugar totalmente secundário, seja no plano estrutural, seja no modo como
se refere a ele, que nem ao menos compaixão demonstra. Em relação a ela, ainda
chegam a ser feitos elogios, como num ‘cochilo sentimental’:
Madalena soltava o bordado e enfiava os olhos na paisagem.
Os olhos cresciam. Lindos olhos. Sem nos mexermos,
sentíamos que nos juntávamos, cautelosamente, cada um
receando magoar o outro. Sorrisos constrangidos e gestos
vagos.(SB, p. 135 – grifo nosso)
Ao filho são destinadas palavras de agressividade, mesmo porque, a partir de
certo momento, ele passa a ter com este a mesma relação de rejeição nutrida por
Bentinho em relação ao filho Ezequiel, em Dom Casmurro, quando o protagonista passa
a ver no filho a prova de uma traição. Os dois personagens-narradores rejeitam os filhos
pelo que representam representam. Os trechos mais extensos de São Bernardo,
portanto, em relação à criança, são aqueles em que Paulo Honório consegue vê-lo
através do que sente pela mãe. Mais uma vez Madalena ocupa o tema principal da
narrativa:
117
Afastava-me, lento, ia ver o pequeno, que engatinhava pelo
quarto, às quedas, abandonado. Acocorava-me e examinava-o.
Era magro. Tinha os cabelos louros, como os da mãe. Olhos
agateados. Os meus são escuros. Nariz chato. De ordinário as
crianças têm o nariz chato.
Interrompia o exame, indeciso: não havia sinais meus;
também não havia os de outro homem.
E o pequeno continuava a arrastar-se, caindo, chorando, feio
como os pecados.(...) (SB, p. 137, grifo nosso)
As verdadeiras ‘cenas’ da obra são, portanto, dedicadas a Madalena. A mudança
de tema é, então, concomitante com a mudança de estilo: o tom sumarizante cede lugar
a uma narrativa desenvolvida, voltada para a caracterização do dia-a-dia na fazenda.
Isso coma a acontecer a partir do capítulo nono (em que os homens elogiam ‘uns
peitos e uma bunda’.(SB, p. 44)) .
Tudo isso porque Madalena, avançada, revolucionária, não podia simplesmente
submeter-se a ser um mero acessório ‘arrastadopelo marido. E, por o submeter-se,
foi esmagada: mas levou-o consigo. O rolo compressor de Paulo Honório esmagou o
Padilha, os Mendonça, Marciano, Dona Glória, Madalena, e a si próprio. Sobre este
dilaceramento, o ctico Carlos Nelson Coutinho faz a seguinte análise:
Personagem trágica, dilacerada entre um mundo vazio e
alienado e um ideal (ainda) utópico de solidariedade, Madalena
recusa o compromisso com a inautenticidade e se suicida. Este
ato repercute, na vida de Paulo Honório, atras de uma
dolorosa tomada de consciência: sua solidão ainda mais se
acentua (inclusive entre o abandono da fazenda por parte dos
outros personagens), e ele percebe a inutilidade de seus esforços
na busca de uma valor humano que se apoiasse na pura ambão
egoísta; seu “pequeno mundo” revela-se como um cárcere,
como uma danação”. O momento trágico encerra o romance:
nem Paulo Honório nem madalena conseguem se realizar
humanamente.
97
Pode-se avaliar também a mudança narrativa como um indício de sentimento ou
de mea culpa de Paulo Honório em relação a Madalena, e não somente por ela
representar um obstáculo difícil de transpor.
97
COUTINHO, 1977: p. 73
118
A divisão entre os pontos-de-vista do tempo do enunciado e do tempo da
enunciação traz à tona algum sentimento. Na verdade, a história relatada é revivida, por
isso o tom seco e direto cede lugar às lamentações ao se tornar linguagem, no relato, no
momento da escrita. Tal processo denuncia muito mais culpa do que amor.
4.1.1.1- Paulo Honório e a visão do casamento-empresa
Para analisar o amor em São Bernardo é preciso primeiramente deter-se na
personalidade do narrador-protagonista Paulo Honório, porque, sendo ele o “dono” da
narrativa e de tudo o mais, a questão do amor deve a ele ser reportada.
Tanto no nível narrativo, quanto no dos personagens, fica claro o papel
representado pelo egoísmo. Paulo Honório, seja o eu-narrador ou o eu-narrado, dispõe
das pessoas que o cercam. É um homem empreendedor, dinâmico, dominador,
obstinado, que concebe uma empresa, trata de executá-la, utiliza as pessoas para isso e
o capitula diante dos fracassos (pelo menos dos pequenos fracassos). Esta
manipulação das pessoas diz respeito mais ao eu” vivido, do que ao “eu” narrador, já
então consciente do seu fracasso. Aliás, esta passagem de um ao outro constitui o ponto
pouco convincente do romance, pois a mudança de ponto-de-vista foi muito radical para
ter ocorrido no curto espaço de tempo existente entre a época dos acontecimentos e a
época da narração.
Madalena foi a pessoa “necessária” à realização do projeto-casamento
concebido por Paulo Honório com o intuito de dar-lhe um herdeiro. Mas a empresa cai
por terra a partir do momento em que a vê e esquece o projeto inicial, porque ela lhe
‘agradou’.
Há, em São Bernardo, um trecho que denuncia o quanto o amor e o casamento
estão apartados na visão do protagonista: Amanheci um dia pensando em casar. Foi
uma idéia que me veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me ocupo com
amores, devem ter notado(...)”(SB, p. 57).
Para confirmar a idéia de que, para ele, o casamento era uma espécie de negócio,
vejamos como, inicialmente, mistura os assuntos, no parágrafo final do capítulo onze:
Recalquei as idéias violentas e esforcei-me por trazer de novo ao espírito as tintas e os
119
ss de d. Marcela. Vieram. Mas afastavam-se de quando em quando e nos intervalos
apareciam Marciano, a Rosa com o meninos, Luís Padilha e Costa Brito”(SB, p. 62)
Porém, sem que se conta, sua escolha realizou-se em desacordo com os
todos racionais a que estava tão acostumado: foi feita com base no sentimento,
contrariando, como ele próprio admitiu, os parâmetros estabelecidos anteriormente para
a mulher ideal, inclusive os físicos – morena, alta, sadia, trinta anos: “De repente
conheci que estava querendo bem à pequena. Precisamente o contrário da mulher que
eu andava imaginando mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D.
Marcela era um bichão. Uma peitaria, um pé-de-rabo, um toitiço!”(SB, p. 67)
No campo intelectual a distância entre Madalena e a mulher que almejava era
maior ainda: seu pensamento independente e renovador em nada coadunava-se com a
idéia de uma mera máquina procriadora. Ela aludiu a isso, na medida em que disse que
precisavam conhecer-se melhor para se casarem; mas ele estava resoluto. Ao aceitar a
proposta, mesmo admitindo não amá-lo, Madalena também se deixa levar pela idéia de
casamento- negócio: ela também admite, em sã consciência, que o ‘contrato’ seja feito.
- Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, acordar
cedo, cuidar de um jardim. um jardim, não? Mas por que não espera
mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor.
- Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso, eu não acreditava. E o
gosto de gente que se apaixona e toma resoluções às cegas. Especialmente
uma resolução como esta. Vamos marcar o dia.
- Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso preparar-me.
- Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que é que falta?
Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas. (SB, cap. 16, p. 93)
Talvez a resolução de Paulo Honório se devesse exatamente ao fato de ter ela
alguma formação intelectual, representando um desafio ao seu desejo de dominação
constante. Seria uma dificuldade a mais a ser transposta, o que daria mais gosto à
vitória. Este pensamento encaixa-se perfeitamente no mundo de Paulo Honório (que no
final da obra, ele diz ter-se tornado um “horrível estrupício”): um mundo que, em
última análise, se reduz à sua voz áspera, ao seu comando, à sua maneira de enfrentar os
obstáculos e vencê-los.
O fracasso do casamento como Paulo Honório o havia concebido é perceptível
mesmo antes das primeiras desavenças com Madalena. É interessante perceber como o
120
próprio objetivo da empresa perdeu-se. Como foi assinalado, o filho, razão
principal, é relegado a um plano completamente secundário, passando Paulo Honório a
importar-se muito mais com Madalena.
O aludido fracasso escapava ao seu domínio. Dedicou-se, então, a tentar reduzi-
lo. Desconhecia, contudo, que não não conseguiria, como também que o fato de
nunca retroceder significaria a destruição de Madalena e de si próprio.
4.1.1.2– Nascimento e morte prematura do amor
Em princípio, como já abordamos, a visão de Paulo Honório sobre o casamento,
ou melhor, sobre a escolha da mulher para se casar, tinha bases semelhantes às
naturalistas: Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos
pretos(...).(SB, p. 57).
Mas Paulo Honório o leva a cabo sua empresa de casar-se com uma mulher
com este aspecto, pois, neste ínterim, aparece-lhe Madalena e, embora seu coração
esteja bastante embrutecido, ela o arrebata. Numa das poucas vezes em que se
considera vencido, contrariada a sua razão, diz-nos: Precisamente o contrário da
mulher que andava imaginando mas agradava-me, com os diabos. Miudinha,
fraquinha.”(SB, p. 67)
Mesmo com toda a dureza e embrutecimento, percebe-se o aflorar dos
sentimentos rejeitados, nos elogios esparsos dedicados a Madalena (nunca revelados a
ela) ou, ainda, nos diminutivos utilizados na sua primeira visão da amada”: A loura
tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas cruzadas, lindas mãos, linda cabeça.” (SB,
p. 65)
Não se pode dizer que o amor romântico suplantou a visão realista,
dessacralizada, pois isso seria exagero. o chega a ser o amor à primeira vista, fatal,
dos românticos, mas o interesse foi crescendo num curto espaço de tempo, o que é
possível notar pela própria maneira de narrar, sem que isso seja dito claramente:
primeiro a presença de Madalena insinua-se por entre retalhos de conversa banal e
interesseira na casa do juiz. A primeira notação sobre ela é precisa e seca, como de
hábito: “(...) uma senhora de preto, alta, velha, magra, outra senhora moça, loura e
121
bonita.”(SB, p. 63). O segundo olhar já é mais detido, avaliador: D. Marcela sorria
agora para a senhora nova e loura, que sorria também mostrando os dentinhos
brancos. Comparei as duas, a importância da minha visita teve uma redução de
cinqüenta por cento”.(SB, p. 63)
A partir daí, Paulo Honório mostra um certo grau de
envolvimento e de fascinação: A loura
tinha a cabecinha inclinada e as mãozinhas
cruzadas, lindas mãos, linda cabeça.”(SB, p.67) Por fim, Madalena arrebata-o de vez,
fazendo-o, numa atitude única na obra, assumir um sentimento propriamente amoroso:
De repente conheci que estava querendo bem à pequena”(SB, p. 67). Madalena torna-
se, então, o lugar central dos acontecimentos, a narrativa passando a existir em função
dela.
Significativa, também, no trecho acima, é a diferença de linguagem empregada
em relação a Madalena e em relação a D. Marcela: miudinha, fraquinha”, contra um
bichão, uma peitaria, um pé-de-rabo, um toitiço”. D. Marcela estaria para Paulo
Honório, assim como ele mesmo se via, como um animal, enquanto Madalena parecia
mais humana, atraindo-o por oposição.
Como já foi dito, o mundo de Paulo Honório curvava-se à sua vontade. Este é o
motivo que o faz dedicar-se a matar o amor que nele nascia por Madalena; ou ainda, a
extirpar toda possibilidade de amor que ela pudesse dedicar-lhe. O amor iria deixá-lo à
mercê da mulher.
Num primeiro olhar, ingênuo, a morte da mulher poderia parecer a vitória de
Paulo Honório sobre sua alma aparentemente frágil: perante sua obstinação, o amor
arrefece e lugar à tragédia, com o suicídio de Madalena. Contudo, analisando-se
melhor, foi sua derrota, pois ela preferiu sacrificar-se a submeter-se, e o rolo compressor
do marido ficou emperrado: não conseguiu esmagá-la. Embora esta seja uma visão
idealista, a morte significou a liberdade para Madalena.
A morte, de certa forma, é também redentora, mas o do amor ou da própria
Madalena. Tem, em São Bernardo, o valor simbólico do nascimento da escrita. É a
partir da perda da esposa que Paulo Honório sente uma necessidade interior de escrever
e de refletir. Este tema é capital na obra de Graciliano Ramos: a função reveladora da
literatura aparece aqui não apenas através da trama criada pelo autor, mas também no
nível do personagem, como numa sublimação positiva dos sentimentos por que este
passou. O impulso da escrita pode representar a própria salvação. A solidão do
122
indivíduo aparece na opção de escrever, dada a impossibilidade de um encontro
satisfatório com outro ser humano.”
98
A arte, tendo seu nascimento ligado à morte de Madalena, funciona como uma
vela, utilizada, aliás, como símbolo, de forma reiterada na obra, como no seguinte
trecho: Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo, acendo-a. Sinto um arrepio. A
lembrança de Madalena persegue-me.” (SB, cap. 36, p. 188).
Embora o espaço de tempo que separa o narrador dos acontecimentos narrados
seja muito curto para a tomada de consciência e assunção da culpa, ainda assim escrever
é viver outra vez os acontecimentos, dando-lhes, porém, outra significação.
Corrobora-se a idéia de que a arte é redentora, e Paulo Honório, a julgar pelo
capítulo de negativas” com que é encerrada a obra, havia iniciado o processo de
reflexão...
4.1.1.3- As justificativas presentes
Um dos fatores perceptíveis na análise de São Bernardo é que a sede de
dominação do protagonista é fruto de um grande sentimento de inferioridade, gerado
pela infância miserável, pela falta de pais, pelo embrutecimento do corpo. Para
neutralizar todos estes fatores era preciso mandar em todos e ter muito dinheiro, já que
o alcançaria a cultura para suplantar ninguém, e achava-se feio como um animal:
Ocupado com o diabo da lavoura, ficava três, quatro dias sem raspar a
cara. E quando voltava do serviço, trazia lama até nos olhos: dêem por
visto um porco. Metia-me em água quente, mas não havia esfregação
que tirasse aquilo tudo.
Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras
como casco de cavalo.(SB, p. 140)
Sendo assim, não achava possível que alguém o amasse, começando a desconfiar
estupidamente de Madalena, imaginando-lhe amantes. Faltava-lhe, na verdade, amor
próprio. Não se permitia o amor por o se achar capaz de ser amado.
98
BRAYNER, 1977: p. 213.
123
A negação do sentimento em Paulo Honório já é anunciada no final do capítulo
3, quando ele diz que, ao sair da cadeia, não pensava mais em Germana, pensava em
ganhar dinheiro (SB, p. 12). é mostrada a incapacidade de unir os dois los, como
se prazer e progresso jamais pudessem andar juntos. Sobre tal impossibilidade,
Marcuse, em seu Eros e Civilização, nos diz: A livre gratificação das necessidades
instintivas do homem seria incompatível com a sociedade civilizada: dilação e renúncia
da satisfação constituem pré-requisitos do progresso”
99
e, ainda, que: Enquanto o
trabalho dura, o que praticamente, ocupa toda a existência do indivíduo amadurecido,
o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece.
100
O grande problema é que Paulo Honório o reserva tempo para o prazer: tudo é
trabalho e planejamento.
O amor que poderia ter frutificado entre Madalena e o protagonista ‘gorou’,
passando a fazer parte também de seu jogo de poder e dominação infindável. uma
tendência, em Paulo Honório, de afastamento de toda qualidade sensível das coisas, que
é substituída pela noção de quantidade ou de utilidade. A de Madalena era dar-lhe um
herdeiro, ou em última circunstância, conferir a ele, por associação, algum status
intelectual. O sentimento de propriedade significa, portanto, uma das linhas mestras
que norteiam a obra, esteja ele ligado à fazenda S. Bernardo ou à mulher com quem
pretende se casar, num processo de reificação desta. Mesmo tendo se interessado
afetivamente por ela, continua tratando o casamento como um negócio. E toda relação
humana se transforma, destruidoramente, numa relação entre coisas, entre possuído e
possuidor.
Depois da posse de São Bernardo, o novo desafio é, então, a posse de Madalena.
É possível fazer inclusive um paralelo entre a negociação das duas ações. Na
negociação de São Bernardo, Paulo Honório, após enredar Padilha em dívidas, vai à sua
casa no dia do vencimento de uma promissória. A visita se dá da seguinte forma: Paulo
Honório encontra Padilha dormindo, cobra-lhe a vida e os dois discutem. Padilha
pede mais prazo: - Tenha paciência, seu Paulo. Com barulho ninguém se entende. Eu
pago. Espere uns dias. A dívida é ruim para quem deve.”(SB, p. 22). E Paulo
Honório insiste: Não espero nem uma hora (...)”(SB, p. 22). A negociação que se
99
MARCUSE, 1968, p.27
100
MARCUSE, 1968, p.51
124
segue é um jogo de negaceios, avanços e recuos, propostas e contrapropostas.
Debatemos a transação até o lusco-fusco” (SB, p. 23). Afinal, mais forte nesta
disputa, Paulo Honório vence. Com Madalena, a história não foi muito diferente. Para
comprovar, transcreve-se o diálogo da forma como é narrado:
– (...) Vamos marcar o dia.
- Não há pressa. Talvez daqui a um ano... Eu preciso
preparar-me.
- Um ano? Negócio com prazo de ano não presta. Que
é que falta?
Um vestido branco faz-se em vinte e quatro horas.
Ouvindo passos no corredor baixei a voz:
- Podemos avisar sua tia, não?
Madalena sorriu, irresoluta.
Está bem.
(...)
- D. Glória, comunico-lhe que eu e sua sobrinha dentro
de uma semana estamos embirados. Para usar
linguagem mais correta, vamos casar (...)” (SB, p. 93)
Um indício da redução de Madalena à condição de simples propriedade está na
irritação de Paulo Honório por achá-la uma revolucionária. No discurso sobre a mulher,
aparecem palavras que costumamos ver ligadas ao tema propriedade: comunismo,
corrupção, dissolução da família, ausência de religião, materialismo. Logo depois, vem
Paulo Honório com um assunto que, embora não esteja diretamente ligado a tais
características, tem com elas uma relação indireta: o ciúme, conseqüência do fato de ele
considerar Madalena, em última análise, sua propriedade. O trecho específico a que
nos referimos é este: Comunista, materialista. Bonito casamento! (...) Que haveria
nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! Mulher sem religião é capaz de
tudo.” (SB, p. 133, cap. 24)
O sentimento de posse fica mais evidente no desejo de exclusividade, retratado
através do ciúme doentio que Paulo Honório sente de Madalena, em relação a tudo e a
todos: tem ciúme com os caboclos, com o Padre e, embora não o admita, de D. Glória,
por Madalena tê-la em alta consideração.
Por fim, o próprio Paulo Honório se reconhece deformado por este sentimento
doentio de posse de pessoas e coisas, Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou
um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos
nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.”(SB,
125
cap. 36, p. 188) vendo a si como aquele que não tem sentimentos, e que quer engolir e
pegar tudo o que for capaz. Seu desejo de subjugar Madalena é tanto, que ele não
consegue enxergá-la. É incapaz de senti-la em sua integridade humana, em sua
liberdade, considerando-a apenas uma coisa a ser possuída.
A morte de Madalena destrói também Paulo Honório, porque representa a
tomada de consciência de que a propriedade e o poder não constituem tudo, e que um
amor (ou algo muito próximo dele) de fato existia. A falta de humanidade e de afeto é
que passa a avultar, fazendo-o questionar sobre a validade de seu poder, de sua
perseverança, de seus esforços, e mesmo de São Bernardo.
Além disso estou certo de que a escrituração mercantil, os
manuais de agricultura e pecuária, que forneceram a essência da
minha instrução, não me tornaram melhor do que eu era quando
arrastava peroba. Pelo menos naquele tempo não sonhava ser o
explorador feroz em que me transformei.
Quanto às vantagens restantes casas, terras, móveis,
semoventes, consideração de políticos, etc. é preciso convir
em que tudo está fora de mim. (SB, cap. 36, p. 186)
Este capitalismo selvagem que o transformou no explorador feroz é o culpado
pela deformação que ele próprio encontra em si. Mas a tomada de consciência, a ponto
de fazê-lo reduzir a nada o valor que sempre deu a seus bens, foi rápida demais para um
homem tão deformado.
De qualquer forma, São Bernardo não é a história de um amor, mas a história da
derrota de um homem, ou antes, de seu projeto de vida.
126
4.1.2 - Angústia: a degradação do amor no mundo desencantado de Luís da Silva
A segunda obra aqui abordada de Graciliano Ramos segue uma linha bem
diversa de São Bernardo, embora ambas cheguem a um lugar-comum: o enfoque
pessimista em relação ao amor, o desencanto no que diz respeito às possibilidades de
sua realização plena ou mesmo parcial. Este caráter de, por diferentes perspectivas,
chegar ao mesmo aspecto empobrecido do amor, nos despertou a vontade de descrever
e analisar como se desenvolve o sentimento em Angústia. A perspectiva desta obra é
filofico-existencial, diversamente da aproximação com o aspecto sociológico presente
em São Bernardo.
Antonio Candido apresenta a referida obra da seguinte forma:
O leitor chega a respirar mal no clima opressivo em que a força
criadora do romancista fez medrar o personagem mais
dramático da moderna ficção brasileira Luís da Silva. Raras
vezes encontraremos na nossa literatura estudo o completo de
frustração (...) um frustrado violento, cruel, irremediável, que
traz em si reservas inesgotáveis de amargura e negação.
101
Por ser Angústia uma obra imbuída desse negativismo, resolvemos estudá-la
para analisar até que ponto o amor é também negado ou se, em vez disso, é deformado.
A narrativa, na verdade, aproxima-se do estilo expressionista que, no seu
sentido amplo, caracteriza a arte criada sob o impacto da expressão, mas da expressão
da vida interior, das imagens que vêm do fundo do ser e se manifestam
pateticamente.”
102
Tanto a aproximação com os animais, como algumas imagens recorrentes, como
a da corda/cobra que Luís passa a levar no bolso, antecipando a todo momento o crime
que cometerá, caracterizam a sua obsessão, manifestação interior que a obra o
caráter de subjetividade, de maior importância ao mundo interior da personagem do que
aos acontecimentos, conferindo a similitude com a literatura expressionista. O narrador
exerce, em Angústia, não a função de comunicar idéias, mas e distorcer o mundo
101
CANDIDO, 1992: p. 34.
127
objetivo, apresentando uma reação pessoal. Segundo Antonio Candido: Um zero
anterior anula os valores propostos ao pensamento: nele [Luís da Silva],
depravação dos valores, sentimento de abjeção ante o qual tudo se colore de tonalidade
corrupta e opressiva
103
.
Embora se sinta excluído da sociedade, Luís da Silva parece um vocacionado
para o isolamento, já que repele a todos que dele se aproximam. A obra trata da solidão
da personagem e da angústia que representa para ela o sexo, já que este lhe confere certa
conotação de culpa. Novamente Luís encarna a consciência pessoal expressionista, que
parte de fatores objetivos, personagens ou ações, interioriza-os, dando ao leitor uma
interpretação interior. Sua interpretação do amor é distorcida, não por apresentar
um obsessão pelo aspecto erótico, mas por associá-lo a um sentimento doloroso ou sujo:
O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa,
complicada e incompleta (Angústia, p. 110)
De todo aquele romance [com Marina] as
particularidades que melhor guardei na memória foram
os montes de cisco, a água empapando a terra, o cheiro
dos monturos, urubus nos galhos da mangueira
farejando ratos em decomposão no lixo. Tão morno,
tão chato! (Angústia, p. 98)
Portanto, solidão e culpa turbam a alma do protagonista. Sua relão com a
realidade e com o amor, que é parte dela, é dolorosa e traumática e ele nunca consegue
encarar tal realidade: esconde-se atrás de cercas, paredes, janelas, ou, como aconteceu
no caso extremo, aniquila o ‘adversário’.
O aspecto confessional, introspectivo, domina o romance, formando-se, assim,
traços individualizantes do narrador-protagonista. Mas esta introspecção tem um limite,
delineado de maneira clara por Nelly Novaes Coelho da seguinte maneira:
102
TELLES, 1986, p. 104
103
CANDIDO, 1992: p.34.
128
Contudo, nesta sondagem interior [em Angústia], Graciliano
não ultrapassa a área psicológica, não chega, como outros
pesquisadores da mesma problemática, à especulação do
transcendente. Nele o que temos é o mundo objetivo visto
através do prisma da alma humana: mundo fragmentado,
distorcido, dissolvido em emoções e sensações. E da complexa
riqueza dessa alma, Graciliano fixa, principalmente, duas forças
que se tornam obsessivas em toda sua obra: a Solidão interior
do homem e sua Luta pela afirmação da própria
individualidade.
104
Toda a realidade aparece sempre filtrada pela sensibilidade deste, e o mundo
ficcional, assim como o retrato da amada Marina, se constrói aos olhos do leitor, a partir
da perspectiva deturpadora de Luís da Silva.
Não se pode, por exemplo, analisar o amor a partir de Marina, que o que se
tem na obra é quase um monólogo de Luís; todas as demais personagens se tornam
dependentes do ponto-de-vista do narrador-personagem. Marina, além de secundária na
obra, não possui voz própria: funciona apenas como fator desagregador, que detona a
‘bomba’ Luís da Silva e todas as frustrações reprimidas da personagem.
Luís da Silva não realiza bem, em nenhum ambiente, a convivência com o outro,
seja em meio à família de Marina, seja em casa com Vitória, ou ainda no ambiente
profissional. Se ele deformidade em tudo e em todos, fica claro que sua visão é
deformadora.
Angústia contém uma manifestação de inconformismo com os valores sociais,
através da revolta e do pessimismo do protagonista. Sob esta justificativa aparece na
obra um mundo caótico, que não se move com regularidade; a narrativa, embora parta
da realidade que circunda a personagem, apresenta apenas suas reflexões acerca dessa
realidade, revelando, assim, sua mente, seu pensamento (caótico, aliás). Opera-se tudo
isso numa espécie de processo de livre associação de idéias. É o realismo escondido
atrás de uma abstração, às vezes simbolizada por algumas imagens concretas. O
inconformismo desta maneira expresso é, também, uma particularidade expressionista:
o desespero em relação a alguns aspectos da vida. Em suas considerações sobre o
expressionismo, o crítico Addison Hibbard faz a seguinte colocação:
104
COELHO, 1977: p. 61
129
In general, expressionistic writers seem to despair of life:
spciety, government, industry, religion, man himself, are
presented as in a chaotic state. This impression of chaos is, at
least parcially, inherentn in the subjective quality of
expressionism.
105
Luís da Silva nunca satisfaz o desejo, estando sempre vazio. O impulso de frustração,
decorrente deste vazio, acaba por cristalizar-se no ódio a Julião Tavares, que leva o
protagonista a matá-lo. O assassinato, clímax do enredo, desencadeia um processo de
doença em Luís da Silva, e esta é o elo de ligação entre desfecho e início da narrativa,
conferindo a Angústia uma estrutura circular. O romance inicia-se com o
restabelecimento do protagonista:
Levantei-me cerca de 30 dias, mas julgo que ainda não me
restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas
noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam
à realidade e me produzem calafrios.(...)
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que
emagreceram. As mãos não o minhas: são mãos de velho, fracas e
inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.(Angústia, p. 19)
Ao chegar ao final, nota-se que a doença que o acomete e que o deixa acamado,
delirante, é o último fato da obra. Otto Maria Carpeaux, em tom de conselho ao leitor,
fala sobre este caráter circular de Angústia: Após ter lido Angústia até o fim, é preciso
reler as primeiras páginas, para compreendê-las. É um mundo fechado em si
mesmo.”
106
O narrador-personagem tinha a ilusão de que sua existência não seria mais
definida nem condicionada por qualquer outra pessoa que não ele próprio, mas a
memória, a consciência está lá. O devir é convertido no rculo que se move em si
mesmo: passado e presente estão encerrados no rculo. O enredo tem por limite
temporal o momento exatamente anterior ao icio do ato de narrar. A estória passada
deságua no presente, de forma que as temporalidades se apresentam misturadas: não
limites claros entre o passado remoto, o passado próximo e o presente. Esta mistura é
exposta por Antonio Candido da seguinte forma: A narrativa não flui, (...) constrói-se
aos poucos, em fragmentos, num ritmo de vaivém entre a realidade pressente, descrita
105
HIBBARD, 1967: p. 1170.
130
com saliência naturalista, a constante evocação do passado, a fuga para o devaneio e a
deformação expressionista”.
107
Luís da Silva se afoga na corrente da consciência, e busca a claridade através da
narrativa, que é, de certa forma, busca de auto-conhecimento. A escrita é uma espécie
de purgação para a personagem. O pessimismo da obra se exprime na própria
circularidade de sua estrutura: não se saída para o personagem-narrador, preso em si
mesmo. No exercício da linguagem, o protagonista persegue em seu interior sua
significância. Às vezes, a narrativa de Luís da Silva mistura ação e contemplação,
como conseqüência da sua personalidade conturbada.
Esse mergulho profundo no inconsciente faz com que a estória de Angústia não
seja assumida como uma narrativa, pois está misturada com a própria vivência de Luís
da Silva: sua visão é mais importante que o fato que narra.
A personagem é o retrato da desagregação do eu social, e o desajuste no âmbito
amoroso, sentimental, é um dos aspectos desta desagregação. Para que o leitor
acompanhe o processo mental doentio de Luís da Silva, a estória se centra no seu
pensamento; portanto, há participação total do sujeito na narrativa, através da técnica
do monólogo interior, utilizando o fluxo da consciência.
Estas últimas considerações fazem-se importantes neste estudo, pois é através
deste fluxo de consciência que se pode avaliar a natureza dos sentimentos de Luís da
Silva, inclusive daquele que nutre por Marina, evidencia-se o desequilíbrio e a
dissolução psíquica da personagem, reproduzindo com mais intensidade o desespero e a
derrota. Sobre o fluxo da consciência, citamos um trecho breve, mas bastante
esclarecedor, de Roger Shattuck: O estilo narrativo conhecido como fluxo da
consciência consiste no puro ponto de vista, sem nenhum outro processo além do eu
lutando para atingir o âmago do sentimento (ou para escapar dele) em cada sucessivo
momento
108
O discurso “colado” à introjeção nos a impressão de que “ouvimos” a mente
de Luís da Silva enquanto ele pensa, planeja, julga... Sendo assim, os estados pré-
lógicos da consciência da personagem marcam, para o leitor, seu desajuste, inclusive no
plano sentimental.
106
CARPEAUX, 1977: p. 30
107
CANDIDO, 1992: p.80.
108
SHATTUCK, Roger, 1964, p.68. Trad. Luiza Lobo.
131
O fracionamento da consciência de Luís da Silva decompõe, então, a própria
narrativa. Ainda que ele nos comunique ações e pensamentos, estes parecem integrados
numa expressividade primitiva, como num fluxo inconsciente, sem “vestir-se” da
narrativa objetiva, de composão escrita de fato. Não se trata de uma questão
vocabular, léxica, mas da lassidez’ da coesão da estrutura, do pensamento da
personagem. E o amor, por doentio que se apresente, também é construído dessa forma:
os dados expostos à maneira intuitiva carecem ser unificados pelo leitor, que encontra e
interpreta a patologia.
Toda essa construção revela um grande trabalho de criação e estruturação da
obra, para dar-lhe um sentido. um movimento de interiorização da personagem,
passando sempre o real por sua consciência.
Luís da Silva, indivíduo frio e melanlico, parece particularmente disposto ‘por
natureza’, à mania, entendida aqui como a espécie de loucura que a Renascença chamou
de furor e que era inseparável do amor e do desejo. Com o aparecimento da
personagem Marina, tal tendência torna-se fato e o enredo passa a girar em torno dessa
mania-angústia, até que Luís torna-se um assassino e adoece.
Se, como já foi dito, em São Bernardo, o psicológico é determinado pelo sócio-
cultural, em Angústia, o caráter psicológico, ainda que intimamente ligado ao recalque
social, sobrepõe-se a qualquer outro. O fator social reside na derrocada sócio-
econômica da família, comprovada pela perda de sobrenomes com o passar das
gerações:
Volto a ser criança, revejo a figura do meu avô, Trajano Pereira de
Aquino Cavalcanti e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na
fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva,
ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do
copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno,
sonhando com a vitória do partido que Padre Inácio chefiava. Dez ou
doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, envergavam o
espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos
cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as linhas da casa. No
chiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia
debaixo das catingueiras sem folha. Tinham amarrado no pescoço da
cachorra Moqueca um rosário de sabugos de milho queimados(...)
Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha
avó, sinhá Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas,
que não existiam. (Angústia, p. 23)
132
E também pelo distanciamento social entre Luís da Silva e Julião Tavares. Tais
fatores funcionam como elementos da frustração necessária ao desenvolvimento da
complicação narrativa. A reflexão de José Maurício Gomes de Almeida corrobora esta
análise:
O núcleo dramático de Angústia, de natureza psicológico-existencial,
tem entretanto sua raiz sociológica no sentimento de frustração social de
Luís da Silva, descendente de uma família rural outrora próspera, que
veio decaindo ao longo de duas gerações, até atingir o estado de quase
privação em que vive o personagem, pequeno funcionário com
pretensões intelectuais.
109
Antonio Candido situa da seguinte forma o problema da família na formação da
personalidade torturada de Luís da Silva:
A decadência do avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, e a
do pai, “reduzido a Camilo Pereira da Silva”, criaram um ambiente de
derrota prévia para a sua carreira; e a educação, forçando-o a refugiar-se
no próprio eu, transformou as pessoas em seres agressivos.
110
O amor é tratado também sob a luz da eterna insatisfação. A visão degradada
deste sentimento como um desejo erótico sempre impedido demonstra que é também
esta uma relação de dimensão frustrada. Diz-se “uma” porque na verdade toda relação
de Luís da Silva com o real é doentia, perseguida, humilhada. Em princípio, pode-se até
confundi-la com loucura; mas, numa segunda alise, descarta-se esta hipótese, visto
que o louco apresenta uma ruptura com o real, e o protagonista não chega ao
distanciamento total, e sim, como já foi dito, tem uma relação problemática com a
realidade. Através da narrativa percebe-se, inclusive, uma tentativa de justificar tal
problematização, que, no entanto, é apenas seu ponto de partida: a decadência familiar.
O problema reside, de fato, no próprio Luís da Silva.
109
ALMEIDA, 1999, p. 291.
110
CANDIDO, 1992: p.38.
133
4.1.2.1 – A imaginação deformadora
No mundo de Luís da Silva, a racionalidade é anulada. Montaigne, nos Ensaios,
narra de maneira minuciosa a força da imaginação: “Sou desses sobre os quais a
imaginação tem um grande domínio. Todos são atingidos por ela, mas alguns que
ela derruba. Ela me persegue e eu me esforço por fugir da impossibilidade de lhe
resistir
111
A realidade passada ao leitor é fruto da mente conturbada do protagonista, seu
reflexo. Pode-se ponderar que a imaginação de Paulo, de Lucíola, também “cria” Lúcia,
mas, se ambos os narradores são dominados pela imaginação, Luís da Silva é daqueles a
quem ela derruba. A sua falta de controle em relação à fantasia e aos instintos, assim
como o aspecto degradado destes, direcionam-no para a tragédia.
Luís da Silva sente-se impelido para Marina mesmo após perceber que ela
desejava o mundo que ele sempre repudiou. Acaba por persegui-la e desejá-la de
maneira infrene. A tragédia consuma-se com o assassinato de Julião.
O mundo burguês que repudia é, na verdade, aquele do qual não consegue fazer
parte por impotência, inadequação. O desejo por Marina seria, no fundo, um desejo de
inserção social e, como a consciência de Luís responsabiliza a burguesia, na figura de
Julião Tavares, por todos obstáculos neste âmbito (as dívidas, o fracasso profissional...),
responsabiliza-o também pela perda de Marina. O protagonista é a imagem do
ressentimento e, para tal tentar anulá-lo, cria uma solução destrutiva e fatalista: o
assassinato daquele que representava a burguesia e, conseqüentemente, a interdição de
todos os seus sonhos, segundo sua consciência doentia. Tal representação é também
apontada por Antonio Candido:
[Em Luís da Silva] A misantropia degua em asco ou agressiva
indiferença, pelos homens do Instituto Histórico, os ricaços, os altos
funcionários, os literatos. E tudo converge para Julião Tavares,
“patriota e versejador”, caricatura do tipo que lhe desagrada e intimida –
desde a capacidade de comunicação fácil aa ligação entre literatura e
arrivismo.
112
111
NOVAES, Adauto. p. 12
112
CANDIDO, 1992: p.42-3.
134
Embora procure atribuir características grotescas a Julião Tavares, é o próprio
narrador-personagem quem se impregna destas, como aponta, por exemplo, sua relação
problemática com o sexo e com as mulheres.
indícios de que o amor é ideologicamente repudiado por Luís da Silva, por
considerá-lo um sentimento ‘contaminadotambém pelo caráter capitalista, burguês. O
casamento, mais ainda, pois é visto como um jogo de interesses.
A inacessibilidade amorosa é ditada pelo próprio Luís da Silva e a decadência
social parece ser o início de todos os traumas, por tê-lo feito sentir-se inferiorizado ou
mesmo incapaz de casar-se ou mesmo relacionar-se de maneira natural com uma
mulher.
No entanto, à margem de sua consciência, tamm deseja ser burguês, na
medida em que inveja Julião Tavares a ponto de exterminá-lo. Ao pensar em se casar,
Luís na iniciativa uma forma de se aproximar da sociedade que o excluía. Por outro
lado, Marina se preocupa com a parte material, que enquanto solteira, não possui
nem pode almejar: alianças, enxoval sofisticado... negligenciando qualquer tipo de
envolvimento amoroso de fato.
Como a distância entre Luís e a sociedade burguesa é essencial, e não passível
de ser anulada pelo simples casamento com Marina, ele acaba por se distanciar da moça,
embora continue a vê-la como única maneira de inclusão; ela, por sua vez, aproxima-se
de Julião com o mesmo intuito.
O fato que demonstra mais claramente as intenções de Marina, no que diz
respeito aos relacionamentos, é a sua admiração por Dona Mercedes: Dona Mercedes é
linda, parece uma artista de cinema.(Angústia, p. 93). E é também essa admiração
que faz cair por terra o idealizado retrato de Marina feito por Luís da Silva.
Para Luís, a idéia de alcançar uma mulher que desejava estava sempre ligada a
gastos, o que o desanimava. Por outro lado, o percebia outra forma de fazê-lo. Numa
das primeiras passagens em que aventa a possibilidade de se casar, demonstra
pensamento quase idêntico ao de Paulo Honório, em São Bernardo: o casamento como
necessidade social e econômica.
135
Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel
social, mas enfim valor. O aluguel da casa estava pago.
Andava em todas as ruas sem precisar dobrar esquinas. Por
uma diferença de dois votos, tinha deixado de ser eleito
Secretário da Associação Alagoana de Imprensa. Quinhentos
mil-réis de ordenado. Com alguns ganchos, embirava uns
setecentos. Podia até casar. Casar ou amigar-me com uma
criatura sensata, amante da ordem. Nada de melindrosas
pintadas. Mulher direita, sisuda. (Angústia, p. 67)
Assim, Luís critica Marina por ela gastar demais, por dar excessivo valor à
aparência, por ser fútil, e, além de não querer, não se em condições de satisfazer
esses caprichos. Todavia, não consegue desatar-se dela, pois a deseja mesmo assim.
Quando Julião Tavares se aproxima, acenando com tudo o que Luís da Silva não
podia oferecer-lhe, Marina rapidamente faz sua escolha por ele. Luís afrouxa então e
abandona a disputa, responsabilizando Julião também pela perda da noiva.
Reconhece-se a paixão obsessiva de Luís por Marina no fato de, mesmo estando
apartado dela, sua ausência ser sentida em todos os seus atos, desde que a pela
primeira vez, até o desfecho.
O amor, como movimento ascensional de purificação, o existe em Angústia,
visto que não passa da esfera sensual, semelhante à naturalista. Se o romantismo
exacerbado beira a irracionalidade, também o faz Angústia, que é o oposto desta
tendência. O desejo irracional é o sentimento privilegiado na obra, expressão de um
mundo desencantado e do conseqüente desencantamento do amor, ainda que através de
um processo diferente do machadiano.
O assassinato de Julião é a conseqüência do caráter destrutivo do desejo
insatisfeito, associado à imaginação exacerbada do protagonista. E a imaginação aqui é
levada ao paroxismo da desagregação moral. O comportamento doentio do protagonista
deve ser entendido como instância última de sua degradação sica e mental.
Luís tenta culpar Marina e Julião por seus problemas, chegando à anulação do
rival pela morte. No entanto, a amada não representa o início de sua vivência erótica.
Antes mesmo apresentava uma sexualidade problemática, como confirmam os
trechos que se referem ao rápido flerte com a neta de Dona Aurora.
Fantasiar, antecipar a relação sexual, para Luís da Silva, não é uma experiência
prazerosa, mas dolorosa: a experiência erótica é vivência do mal-estar. Para isso usa a
136
imagem de ratos a roerem-lhe as entranhas, por exemplo. O caráter punitivo imputado
ao sexo pelo protagonista se como afirmação da própria animalidade, mesmo no
interior da realização imaginária.
A partir do aparecimento de Marina, a imaginação de Luís volta a se manifestar
para a consecução do prazer, como elemento de excitação e é, ao mesmo tempo, afetada
pela insatisfação do desejo, a partir do rompimento das relações do casal, atingindo o
paroxismo do delírio, do desequilíbrio.
4.1.2.2 - O amor sádico e egoísta.
Percebe-se, através das narrativas de diferentes épocas, que o amor, ao se
aproximar do máximo de desejo, tende a uma aproximação com a morte. Daí,
figurarem, nas mais diversas obras, exemplos de sadismo, que podem ser
compreendidos como amor ardente e incontrolável. No próprio Romantismo, numa das
passagens mais significativas da narrativa, Paulo demonstra tal característica para
expressar todo o amor dedicado a Lúcia e todo o ciúme, já que os amantes em geral
desejam a posse exclusiva:
Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. É verdade, tinha
frenesi de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes,
sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma última vez, deixando-a
cadáver e mutilada para que depois ninguém mais a possuísse.(Lucíola,
p. 193)
Paulo desejava, na verdade, matá-la de amor, e o trecho denuncia a incapacidade
de manter-se racional diante do sentimento amoroso.
Em quase todas as obras em que há um amor exacerbado, ou um sentimento
doentio em relação ao próximo, reponta o sadismo ou o masoquismo, ainda que de uma
forma dissimulada. Em Lucíola, a maneira como a protagonista se castiga, entregando-
se à luxúria contra a vontade, de maneira aparentemente voluptuossima, ou ainda
quando propõe a Paulo que se case com sua irmã, é uma forma de masoquismo.
(...) sentimentos e gozos que ainda o sentiste, e só uma esposa
casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de o santas
afeições, comoo o amor conjugal e o amor paterno?
137
Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade?
Repliquei com um sorriso amargo.(...)
Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu
merecer, mas não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de
que um dia me podes abandonar por uma mulher a quem deves
consagrar toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me
preocuparia com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no
meio único de evitá-la.
E esse meio?... Qual é ele? Dize-me.
Ana! Respondeu Lúcia timidamente.(...) Poderias escolher uma
noiva rica, de alta posição, porém não acharás alma tão pura, nem mais
casto amor.
Queres casar-me com Ana? Com tua irmã, Maria? (Lucíola, p. 193)
Já em Senhora, um requinte sado-masoquista, na medida em que Aurélia faz
sofrer o arrependido Fernando ao lembrar a todo momento que o comprou e ao mesmo
tempo a si mesma, já que, apaixonada por ele, não consegue acreditar na autenticidade
de seu sentimento, por tê-lo “negociado”. A cena que se desenrola na câmara nupcial,
logo após o casamento, é uma das mais ricas neste aspecto:
Tornemos à câmara nupcial, onde se representa a primeira cena do
drama original, de que apenas conhecemos o prólogo. Os dois atores
ainda conservam a mesma posição em que os deixamos. Fernando
Seixas, obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se e fitava na
moça um ar estupefacto. A moça arrastou uma cadeira e colocou-se em
face do marido, cujas faces crestava o seu hálito abrasado. (...)
Aurélia calcou a mão sobre o seio para comprimir a emoção que a ia
dominando.(...)
- A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos
permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas.
Quando a recebi, conhecia o mundo e suas misérias; sabia que a
moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa
riqueza servi para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste
mundo. Mostrar a esse homem que não me soube compreender que
mulher o amava, e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma
esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei
lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a minha riqueza, que a
dissipe se quiser; mas consinta-me que eu o ame. Essa última
consolação, o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o
cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o
coração; era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não
desespere, o suplício não pode ser longo: esse constante martírio a que
estamos condenados acabará pa por extinguir-me o último alento; o
senhor ficará livre e rico.
138
Proferidas as últimas palavras com um acento de indefinível irrisão, a
moça tirou o papel que trazia passado à cinta e abriu-o diante dos olhos
de Seixas. Era um cheque de oitenta contos sobre o Banco do Brasil.
- É tempo de concluir o mercado. Dos cem contos de réis, em que o
senhor avaliou-se, recebeu vinte; aqui tem os oitenta que faltavam.
Estamos quites, e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este o nome
de convenção. (Senhora, última parte da “Quitação”, p. 105/106)
Em São Bernardo, o caráter sádico é mais perceptível que o masoquista.
Paulo Honório maltrata Madalena após se casarem, inventando-lhe amantes ou
fazendo-lhe proibições esdrúxulas; tratando-a com desdém ou fazendo desfeitas
à tia que a criou.
E se eu soubesse que ela me traía? Ah! Se eu soubesse que ela me traía,
matava-a, abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue correr um
dia inteiro.
Mas logo me enjoava do pensamento feroz. Que rendia isso? Um
crime inútil! Era melhor abandoná-la, deixá-la sofrer. E quando ela
tivesse viajado pelos hospitais, quando vagasse pelas ruas, faminta,
esfrangalhada, com os ossos furando a pele, costuras de operações e
marcas de feridas no corpo, dar-lhe uma esmola pelo amor de Deus.(SB,
p. 150/151)
D. Glória chegou à porta, assustada.
- Pelo amor de Deus, estão ouvindo lá fora.
Perdi a cabeça:
- amolar a puta que a pariu. Está mouca, aí com a sua carinha de
santa? É isto: puta que a pariu. E se achar ruim, rua. A senhora e a boa
de sua sobrinha, compreende? Puta que pariu as duas.(SB, p. 141)
Já o caráter masoquista reside nos ciúmes e no sentimento de inferioridade que o
acomete por ser um homem sem instrução, frente à sensível e instruída Madalena.
Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era
um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a culpa era
minha: não me tratava. (...)
Que mãos enormes!As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras
como cascos de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e
grossos. Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos!
As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como pelica, e as
unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam. Se ele só pegava em
autos! (SB, p. 140)
139
Em Angústia, o caráter sado-masoquista perpassa toda a obra, e está muito mais
evidente que nas outras obras em estudo, visto que tais idéias estão ligadas também ao
corpo, elemento importante nesta narrativa. A sexualidade surge nela exatamente como
a projeção sado-masoquista de uma culpa patológica, sem sentido racional.
São, enfim, incontáveis, os exemplos que demonstram tais perversões sexuais, e
a reiteração do rato roer as entranhas, na narrativa de Luís da Silva, suscita a idéia de
masoquismo, no sentido freudiano de psicopatologia. Mas além da evocação zoológica
passagens de evidente sadismo, como aquela já citada em que imagina Marina
serrada viva. Muitas outras são masoquistas, porque é recorrente a identidade com
bichos. O caráter inferior que atribui a si mesmo é uma tortura à própria consciência:
Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como
um rato assustado. Como um rato, exatamente. (Angústia, p. 6)
Os olhos estão quase invisíveis por baixo da aba do chapéu, e uma folha
da porta oculta-me o corpo. Uma criaturinha insignificante, um
percevejo social, acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que
entram e pelos que saem.(Angústia, p. 24)
Com os olhos arregalados e os queixos contraídos, o que me dava à
boca uma aparência de focinho, era como um rato, um rato bem-
educado, as patas remexendo o maço de cigarros.(Angústia, p. 178)
Eu e Julião Tavares éramos umas excrescências miseráveis. (Angústia,
p. 217)
Se levarmos em conta que Julião Tavares representava tudo quanto Luís repelia,
abominava, igualar-se a ele era, de fato, uma tortura. E toda esta identidade com bichos
também o afastava de qualquer possibilidade de realização amorosa, o que aumenta o
sofrimento da personagem. Antonio Candido corrobora esta visão afirmando que (...)
vemos em Luís da Silva uma fúria evidente contra a sua vida e a sua pessoa, pelas quais
o tem a menor estima.”
113
.
A solidão a que de condenam as personagens de Graciliano também é uma
espécie de tortura, e o são deixadas possibilidades reais de evasão desta condição,
visto que o egoísmo é inerente a elas. Os temas da solidão e do egoísmo são assim
relacionados por Nelly Novaes Coelho:
113
CANDIDO, 1992: p.34.
140
Na verdade, o Egoísmo está constantemente presente nas
personagens de Graciliano, as, a nosso ver, o é ele a mola
propulsora do comportamento e das reações a que assistimos,
mas sim, uma das conseqüências do estado de solidão a que está
condenado o Homem
114
A descoberta do Outro, tanto para Luís da Silva quanto para Paulo Honório,
uma sensação de asfixia, de impossibilidade de convivência. Isso acontece, inclusive
em relação a Madalena e marina, o que acaba por anular também a possibilidade de
realização do sentimento amoroso. O pessimismo expressa-se, finalmente, na solidão
inevitável, Tanto em São Bernardo, na fala final de Paulo Honório: É horrível! Se
aparecesse alguém!... Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse... Nem
sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria! Casimiro Lopes está dormindo.
Marciano está dormindo. Patifes!”(SB, p. 191), quanto em Angústia: Desejava ser
como um bicho e afastar-me dos outros homens (...)”(Angústia, p. 233)
Paulo Honório destrói a única possibilidade de evadir-se da solidão, mas o
drama de Luís da Silva ainda é mais grave, porque este sofre a rejeição afetiva, não
sendo apresentada a ele sequer tal possibilidade.
4.1.2.3 - A unicidade amor-desejo doentio em Angústia
Luís da Silva, com sua visão deturpada, percebe o amor como desejo carnal. Ao
referir-se a todas as mulheres com quem se relacionou descreve coxas, pernas,
preliminares de relações sexuais que não acontecem, e os gastos ‘desnecessáriosque
advêm da conquista, do flerte.
Ora, um dia, sem motivo, convidei D. Aurora para o cinema. Tenho
desses rompantes idiotas. Faço uma tolice sabendo perfeitamente
que estou fazendo uma tolice. Quando tento corrigir o disparate,
caio noutro e cada vez mais me complico. Foi o que se deu.
Convidei D. Aurora e a neta para o cinema. Arrependi-me e
ofereci-lhes refrescos. Aceitaram tudo e começou a minha
tortura. fui com elas, capiongo, pagar bonde, sorvetes e três
cadeiras. Tipo besta.
Agüenta, maluco, trouxa, filho de uma puta.(Angústia, p. 47)
114
COELHO, 1977: p. 62
141
O desejo sem sentimento, sem grandeza, de Luís da Silva, apresenta-se também
em relação a Marina. Embora mais pungente e obsessivo, também se reduz ao aspecto
físico desde o princípio. Sua paixão surge ao olhá-la no quintal e ele alimenta uma
espécie de voyeurismo, mesmo após o término da relação.
Ao espiá-la pela primeira vez tenta negar o interesse. No entanto, em dois dias,
se mostra atraído, a deduzir pelo vocabulário utilizado para fazer referência à
pequena”. Luís da Silva lia no quintal e espiava para a casa de Marina; em vez de ver
sua mãe, naquele dia, avistara Marina e, observando-a, primeiro imprimiu-lhe defeitos
e um tom irônico, sarcástico:
O vulto que se mexia não era a senhora idosa: era uma sujeitinha
vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam
oxigenados. Foi o que vi, de supetão, porque não sou indiscreto, era
inconveniente olhar aquela desconhecida como um basbaque. Demais
não havia nada interessante nela. (...) - Sim, senhor, disse comigo, muito
poética, aí entre as roseiras, com os cabelos pegando fogo e a cara
pintada. Sentia a ausência da senhora idosa, cheia de rugas, tranqüila,
um pano amarrado à cabeça e o regador na mão, movendo-se tão
devagar que era como se estivesse parada. Essa outra estava em todos
os lugares ao mesmo tempo, ocupava o quintal inteiro. Um azougue.
- Que diabo tem ela?
E mergulhava na leitura, desatento, está claro, porque o livro o valia
nada. Virava a página muitas vezes, e quando isto não acontecia,
olhava, fingindo desinteresse, a mulher dos cabelos de fogo. Tinha as
unhas pintadas.
- Lambisgóia! (Angústia, p. 45)
E, em pouco tempo, ainda durante o mesmo momento de observação, começou a
se interessar por ela:
Era engraçada o diabo da pequena. Para o inferno. Um homem lido e
corrido, pegando trinta e cinco anos, preocupando-se com aquela
guenza !
(...)
E foi exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha me
inspirou interesse.(Angústia, p. 46)
Assim como a paixão, o voyeurismo de Luís da Silva prossegue após o
rompimento, ressaltando a obsessão, já que agora nem em seu discurso a tentativa de
dissimulação do real interesse. Aliás, utilizamos aqui o termos “voyeurismo” de um
142
modo deslocado, porque no romance, muitas vezes o se trata do ato de ‘olhar’, mas de
ouvir. Os detalhes sórdidos da descrição do que ouve e do que imagina vêm comprovar
o distanciamento do amor e a aproximação do comportamento cada vez mais
patológico.
O banheiro da casa de Seu Ramalho é junto, separado do meu por uma
parede estreita. Sentado no cimento, brincando com uma formiga ou
pensando no livro, distingo as pessoas que se banham lá. (...) Marina
entra com um estouvamento ruidoso. Entrava. Agora está reservada e
silenciosa, mas o ano passado surgia como um pé-de-vento e despia-se
às arrancadas, falando alto. Se os botões não saíam logo das casas, dava
um repelão na roupa e largava uma praga: - “Com os diabos!” Lá se iam
os botões, lá se rasgava o pano. Notavam-se todas as minudências do
banho comprido. Gastava dez minutos escovando os dentes. Pancadas
de água no cimento e o chiar da escova, interrompido por palavras
soltas, que não tinham sentido. Em seguida mijava. Eu continha a
respiração e aguçava o ouvido para aquela mijada longa que me tornava
Marina preciosa. Mesmo depois que ela brigou comigo, nunca deixei
de esperar aquele momento e dedicar a ele uma atenção concentrada.
Quando Marina se desnudou junto de mim, não experimentei prazer
muito grande. Aquilo veio de supetão, atordoou-me. (...) A espuma
entrando nos sovacos e na virilha fazia um gluglu que me excitava
extraordinariamente (...) Nunca tive o desejo de vê-la nesse estado. No
alto da parede há um tijolo deslocado que se pode retirar facilmente (...)
A experiência não me tentou.(...) Contentava-me com aqueles rumores,
e percebia-a como se a visse. (Angústia, p. 144/145 – grifos nossos)
Para a psicanálise, o ato de olhar que deriva do tocar pode ser considerado
uma perversão quando ocorre um prolongamento dessa atividade sem que o ato social
prossiga. Assim, o olhar deixa de ter uma função preparatória para a realização
sexual, terminando por suplantá-la”.
115
No caso de Luís da Silva, o obstáculo que se
interpõe é ainda maior, porque ele não tenciona sequer vê-la, contentando-se em ouvi-
la.
Além do desejo desmedido, percebe-se no trecho destacado que o imaginário em
Luís da Silva sobrepõe-se ao desejo de realização, sendo ele mesmo o responsável pelo
distanciamento daquilo que supostamente gostaria de concretizar. Ou seja, embora
apresente manifestações aberrantes do desejo, nesse âmbito suas ões não são tão
115
FREUD, Sigmund. s/d. Vol 1., p. 197
143
passionais: o potencial de sexualidade fica restrito ao plano do pensamento e a
personagem não dá vazão aos instintos. Talvez essa interdição voluntária aumente-lhe o
caráter obsessivo.
Sobre o mesmo aspecto, mas sem citar o termo ‘voyeurismo’, Antonio Candido
faz a seguinte análise: Luís tem a obsessão da intimidade dos outros. Fareja
safadezas, vê em tudo manifestações eróticas e vestígios de posse
116
.
Marina o poderia ser simplesmente aquilo que Luís dela esperava, porque
segundo ele próprio, parte dela era uma construção sua:
Naturalmente gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de
mim, que é diferente da outra, mas se confunde com ela. Antes de eu
conhecer a mocinha dos cabelos de fogo, ela me aparecia dividida numa
grande quantidade de pedaços de mulher, e às vezes os pedaços não se
combinavam bem, davam-se a impressão de que a vizinha estava
desconjuntada. (Angústia, p. 79)
Ver Marina por pedaços acentua o voyeurismo, pois faz parte de um sedutor
processo de velamento-desvelamento do corpo feminino. Trata-se de pedaços de nudez,
vistos pelas fendas. A própria fragmentação dos pensamentos do protagonista favorece
este movimento de mostrar-esconder que o deixa numa postura sempre contemplativa.
Seu olhar ‘recorta’ as partes sensuais do corpo despido: coxas, nádegas...
Luís da Silva procura perceber Marina através dos objetos: das portas das
alcovas, das paredes dos ambientes íntimos (como o banheiro), dos locais que recolhem
os desejos, os corpos e os movimentos erotizados, como o de ensaboar-se. Ele atualiza
seu desejo sexual através da atitude perversa de conduzir o ‘ouvidoindiscreto ‘pelo
buraco da fechadura’, ou melhor, pela fenda da parede.
Este narrador efetua um olhar “por dentro, perscrutador e auscultador de si
próprio, pondo a nu para o leitor a região de desejos, fantasias eróticas e paranóias. O
fato de estar em primeira pessoa auxilia no processo. O narrador o apenas adentra o
local de banho de Marina, por exemplo, mas dá acesso também às imagens de sua
própria fantasia sexual.
116
CANDIDO, 1992: p.37.
144
Há, em Luís, o eterno conflito entre o impulso e o recalque, que aponta para o
caráter inalcançável da realização erótica. Esse é um dos motivos que imprime no
enredo um conteúdo trágico, que impele o protagonista ao assassinato.
A consciência da personagem Luís da Silva é atormentada por medos e
ansiedades neuróticas, e sua própria vida interior o degrada. A incapacidade de
desatrelar-se do meramente sensorial e sua consciência deturpadora fazem com que veja
as mulheres sempre ligadas à devassidão e aos interesses materiais, sejam elas
prostitutas ou mulheres comuns, como a neta de dona Aurora, a própria Marina, dona
Mercedes, a datilógrafa dos olhos verdes ou a vizinha que fazia ruídos na cama com o
marido.
A moral sexual do protagonista é responsável pelas frustrações e por uma
sexualidade perturbada, que atrapalha a realização amorosa e outros aspectos sociais.
Ele vive no ambiente claustrofóbico da moral restritiva. Obedecer às prescrições dessa
moral resulta em sofrimento, perversão, ou mesmo no crime.
A insistência no aspectosico do amor leva-nos à tentativa de aproximação com
o Naturalismo, além de remeter a devaneios verdadeiramente obsessivos de Luís da
Silva. Angústia reitera, inclusive, a animalização das personagens no que tange ao
desejo sexual. Luís da Silva faz menção a ratos e outros bichos sempre que se vê
acometido por tal desejo e, no Naturalismo, a referência é freqüente, até mesmo no trato
de outros temas. Estes trechos simulam o próprio pensamento da personagem através
de suas percepções mais existenciais, atemporais e íntimas, num processo de livre
associação de iias.
Estava linda. Tinha corrido por ali alguns minutos, como um rato,
chiando. Eu era um gato ordinário. Podia saltar em cima dela e
abocanhá-la. (Angústia, p. 72)
As ruas estavam cheias de mulheres. E o rato ra-me por dentro.(...)Na
sala de projeção a neta de D. Aurora abriu um leque enorme em cima
das coxas e meteu a minha perna entre as dela. Subitamente o rato
deixou de roer-me. O que eu estava era indignado(...) As coxas da
moça eram frias. Com certeza fazia aquilo por hábito. Naquele tempo
eu andava como um bode.Mas esfriei também. (Angústia, p. 47)
- Chi, chi, chi.
145
O cochicho risonho afastava-se, chegava-me aos ouvidos como o chiar
de um rato. Chiar de rato, exatamente. Chiar de rato ou carne assada na
grelha. Parecia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, que a
minha carne se assava e chiava. Os tacões vermelhos viravam-se para o
outro lado. As biqueiras surgiam e avançavam. vinham pedos de
canelas. As mãos puxavam a saia para trás, distinguiam-se os joelhos e
as coxas. Como vinha curvada para a frente, a barriga desaparecia.
- Chi, chi, chi.
O rato roía-me por dentro. Senti cheiro de carne assada. Não, cheiro de
fêmea, o mesmo cheiro que antigamente me perseguia, em meses de
quebradeira. (Angústia, p. 72)
Antigamente era uma existência de cachorro. As mulheres tinham
cheiros excessivos, e eu me sentia impelido violentamente para elas.
(Angústia, p. 46)
Um galo no galinheiro pôs-se a arrastar a asa a uma franga. Eu estava
fazendo ali a mesma coisa, apenas com mais habilidade e mais demora.
A franga não aparecia(...) De repente a franguinha surgiu dentro do meu
reduzido campo de observação (...) Para ir ao quintal, sapato de sair e
meia de seda esticada no pernão bem feito. Ótimas pernas. As coxas e
as nádegas, apertadas na saia estreita, estavam com vontade de rebentar
as costuras.
Talvez a franguinha tivesse percebido que eu fingia dormir: pôs-se a
ciscar por ali, rindo baixinho, avançando, recuando, mostrando-se pela
frente e pela retaguarda.” (Angústia, p. 69)
Há, nas referências a animais, um trecho sobre Marina, que dialoga com uma das
caracterizações de Rita Baiana em O Cortiço. A aproximação o é com cobras ou
lagartas, como nesta, mas com formigas. No entanto, o veneno de que as mulheres são
possuidoras é uma reiteração.
Como se viu, na obra naturalista muitas dessas alusões no que tange ao
desejo suscitado por Rita Baiana, como na passagem que se segue, em que Jerônimo se
acometido pelas “cobras” do desejo: (...) e compreendeu perfeitamente que dentro
dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos da mulata, principiavam a formar
um ninho de cobras negras e venenosas”(O cortiço, p. 69)
Já em Angústia, vemos:
Marina apareceu, enroscando-se como uma cobra de cipó (...)
Ao pegar-me a mão, ficou agarrada, os dedos contraídos, o
braço estirado, mostrando-se, na faixa de luz que entrava pela
janela. Isto me dava a impressão de que o meu braço havia
146
crescido enormemente. Na extremidade dele um formigueiro
em rebuliço tinha tomado subitamente a conformação de um
corpo de mulher. As formigas iam e vinham, entravam-me
pelos dedos, pela palma e pelas costas da mão, corriam-me por
baixo da pele, e eram ferroadas medonhas, eu estava cheio de
calombos envenenados. Não distinguia o movimentos desses
bichinhos insignificantes que formavam o peito, a cara, as coxas
e as degas de Marina, mas sentia as picadas e tinha
provavelmente os olhos acesos e esbugalhados. (Angústia, p.
81)
O descritivo está entrelado a um sensualismo exagerado em Angústia e em O
cortiço. No entanto, “a falta de coração”, a insensibilidade está muito mais presente em
O cortiço. O sofrimento lancinante de Luís da Silva, que acaba por fazê-lo assassinar
Julião Tavares, não tem lugar no Naturalismo. Em O cortiço, percebe-se nas atitudes
violentas de Firmo contra Jerônimo, por exemplo, ou no suicídio de Bertoleza, que as
situações incômodas são resolvidas num impulso imediato, para garantir a neutralidade
sentimental.
Ainda que haja aproximação entre a forma como se apresenta o desejo nesta
obra de Graciliano e no Naturalismo, não há identificação total entre as abordagens.
O distanciamento reside no fato de que, no Naturalismo, a animalização não
aparece como um problema. O homem é mesmo visto como um ser composto de
impulsos e necessidades fisiológicas, e o lado psicológico não é sequer levado em conta.
A sexualidade é fator unicamente externo, biológico. em Angústia, a animalização
ganha dimensão psicológica, visto que o próprio narrador se identifica como animal ou
tima de animais que o torturam por um desejo sexual problematizado, o aceito com
naturalidade. As metáforas animalizantes em Angústia são representativas da
humilhação e da degradação de que se faz tima o próprio protagonista. É, portanto,
uma ótica inversa à do Naturalismo.
Nelly Novaes Coelho, num ensaio sobre a obra de Graciliano ramos aponta para
o caráter distanciador que assinalamos:
Atras de suas personagens, Graciliano vai oferecendo aquele
complexo mundo posto em voga pelo Modernismo, isto é, o
mundo debruçado nas surpreendentes galerias do espírito
147
humano. Mostrar a realidade filtrada pelas fendas dessas
galerias é o que vem sendo a desesperada tentativa da ficção
universal, da arte contemporânea. A esta o interessa o
homem inteiriço, uno, visto em bloco de fora para dentro, como
o que nos ofereceu o naturalismo, mas sim o homem
fragmentado, complexo, feixe de múltiplas reações e impulsos
contraditórios que brotam da misteriosa fonte vital, cuja
profundidade e segredos ele tenta sofregamente tocar.
117
A visão biológica, materialista, do amor, na referida obra de Graciliano, embora
difira da naturalista, ainda assim remete a um aspecto do pensamento literário do século
XIX, que é a metáfora orgânica. A animalização do desejo, de si próprio e da mulher,
operada pela mente de Luís da Silva, harmoniza-se perfeitamente com o elemento
metafórico utilizado pelo Naturalismo.
A literatura realista-naturalista é puramente fisiológica, já que exime-se das
reflexões psicologizantes ou tentativas de justificar atitudes e necessidades, como as
apresentadas pelo narrador em Angústia. O próprio caráter obsessivo e reiterado de
certas imagens aponta para uma estrutura pessimista, desregrada, de associações
caóticas. Antonio Candido analisa bem tais devaneios de Luís da Silva, que aqui
delineiam-se através da obsessão pelo sexo deformado, subvertido por sua mente:
(...) o devaneio chegará em Angústia ao crispado monólogo interior,
onde à evocação do passado vem juntar-se uma força de introjeção que
atira o acontecimento no moinho da dúvida, da deformação mental,
subvertendo o mundo exterior pela criação de um mundo paroxístico,
tenebroso, que, de dentro, rói o espírito e as coisas.
118
A atitude em Angústia, diferentemente das obras naturalistas, aponta, como
dissemos, para o expressionismo, na medida em que o conturbado mundo interior do
narrador-protagonista opera uma transmutação no mundo exterior. Não é o mundo
exterior que determina suas atitude e visões.
Uma outra característica que confirma este afastamento é o contraste entre o
objetivismo da estética naturalista e a visão subjetiva de Angústia, que, como já
117
COELHO, 1977: p. 60-1
118
CANDIDO, 1992: p. 20.
148
vimos,contém muito de expressionismo, que é uma exacerbação da tendência
romântica. O narrador externo e onisciente em O cortiço concorre para a representação
da realidade como algo exterior, com uma exisncia em si, captável pelo artista. o
ponto de vista subjetivo de Angústia subverte de forma radical a pretensão objetiva dos
naturalistas: representa-se não o real, mas a visão que dele tem o narrador-personagem.
Tal distanciamento é evidente também na utilização da linguagem. A serviço da
representação do que é mais próximo ao real, a literatura realista-naturalista sofre a
inflncia do pensamento científico, onde clareza é a palavra de ordem. Em
contraposição, desde a narrativa circular à consciência conturbada de Luís da Silva,
Angústia enreda o leitor no mundo fechado da personagem, distanciando-se da relativa
simplicidade do texto naturalista.Zola afirma categoricamente que ‘o Naturalismo nas
letras é a anatomia exata, a aceitação e a pintura do que existe’. Com isso a
proposição estética é o sacrifício da ficção em favor da observação”.
119
Angústia segue alguns dos pressupostos do Naturalismo, na medida em que
descarta a paixão espiritual, o amor romanesco, e privilegia nervos, sentidos, reações de
temperamento. No entanto, não identidade completa, ou retomada integral, pois não
se pode afirmar, em relação à obra de Graciliano, que as análises psicológicas cedem
lugar à mera descrição comportamental, como ocorre nas obras naturalistas.
A diferenciação primordial se por serem as bases ideológicas de Aluísio
Azevedo e Graciliano bastante diversas. As influências sofridas por este são marxistas e
psicanalíticas, pois que em sua obra estão indissociáveis amor e sociedade; enquanto
naquele, o darwinismo, o determinismo, a hereditariedade fazem do amor e do próprio
homem objeto de estudo fisiológico, que serve de base à criação literária. Portanto, no
Naturalismo sobressaem o impulso biológico e as forças atraentes do meio, enquanto na
obra de Graciliano dominam as relações entre o social e o psicológico. Esta confluência
resulta numa duplicidade das visões de mundo, sendo uma delas a do questionamento da
organização social, de raiz marxista; a outra é uma sondagem do ego, com um
delineamento cuidadoso das motivações psicológicas. Em São Bernardo estão
presentes também o psicológico e o sociológico, como expõe JoMaurício Gomes de
Almeida em sua análise de São Bernardo:
119
BRAYNER, Sonia. 1973, p. 11-12.
149
(...) o conflito psicológico reflete em o Bernardo uma
problemática mais ampla, de raiz sociológica, que constitui o
seu verdadeiro tema: a desumanização a que o homem
inevitavelmente se submete, quando o ter passa a predominar,
na escala dos valores vitais, sobre o ser. No final do romance,
depois da crise existencial provocada pelo suicídio de
Madalena, o personagem finalmente descobre a verdade.
120
O que caracteriza a concepção naturalista do amor é que nela predomina uma
visão determinista, onde fatores externos, de natureza biológica e sociológica definem a
vida e os sentimentos humanos. na obra de Graciliano, o amor é gerado não apenas
por ação de fatores externos, mas impulsos e frustrações forjados pela consciência
conflituada do protagonista.
No Naturalismo, os seres aparecem, então, como produtos, como
conseqüências de forças preexistentes, que limitam a sua responsabilidade e os tornam,
nos casos extremos, verdadeiros joguetes das condições.”
121
A zoomorfização a que o próprio Luís da Silva se submete no que diz respeito ao
sexo, por exemplo, revela uma visão degradada de si próprio, mas trata-se aqui de uma
degradação de caráter psico-social: a própria personagem se vê como a escória da
sociedade. O isolamento social a que se condena o é imposto por fatores externos e a
sua visão deformada do sexo não aparece condicionada por nenhuma hereditariedade ou
experiência traumática.
120
ALMEIDA, 1999. p. 289.
121
CANDIDO, Antonio, Presença da Literatura Brasileira, p. 286.
150
4.1.2.4 – O universo fragmentado de Luís da Silva
A narrativa de Angústia, constrda como uma projeção da consciência do
narrador, revela a tendência à fragmentação, ao caos. Em seu delírio, Luís da Silva
apresenta fatos e pessoas a partir de elementos parciais que marcaram a sua experiência
e fixaram-se na sua memória: o pai, Marina, enfim, todas as lembranças chegam ao
leitor decompostas, para que o quebra-cabeças da construção da personagem seja por
ele, leitor, recomposto. A narrativa introspectiva contribui para tal fragmentação, assim
como o tempo psicológico.
O ponto-de-vista de Luís da Silva é fracionado, tem múltiplos cortes, e a
narrativa apresenta uma estrutura circular. Tal fracionamento também se dá nas suas
relações sociais, a exemplo daquela que travou com Marina e que funciona como
indicador da instabilidade do protagonista.
Em determinado momento, o próprio narrador afirma a fragmentação da sua
existência: Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fiz um gesto vago, procurando
no ar fragmentos da minha existência espalhada”. (Angústia, p. 57)
A construção de Marina é tão fragmentária que, fisicamente, esta chega a ser
apresentada pela consciência doentia do narrador numa espécie de esquartejamento:
Nesse ambiente gelatinoso Marina se movia, nadava, desesperadamente
bonita, o peitinho redondo subindo e descendo, a querer saltar pelo
decote baixo, pimenta nos olhos azuis, os cabelos de fogo
desmanchando-se ao vento morno e empestado que soprava nos
quintais. Veio-me o pensamento maluco de que tinham dividido
Marina. Serrada viva, como se fazia antigamente. Esta idéia absurda e
sangüinária deu-me grande satisfação. degas e pernas para um lado,
cabeça e tronco para outro. A parte inferior mexia-se como um rabo de
lagartixa cortado. Mas eu não reparava na parte inferior, que tanto me
perturbara: recebia as faíscas dos olhos azuis e desejava enxugar com
beijos a saliva que umedecia os beiços um pouco grossos da minha
amiga. (Angústia, p. 57)
Na totalidade da narrativa, falta a Marina consciência, voz, consistência
psicológica, já que é apresentada apenas pela visão de Luís da Silva. Marina aparece na
narrativa com a função de demonstrar e exacerbar as características do narrador-
personagem. A partir da presença da moça se desenrola a complicação do enredo, mas
suas ações só chegam ao leitor filtradas pela interpretação do narrador.
151
Luís da Silva, tendo transformado a potencialidade em realidade concreta,
colocou em prática o seu ‘projetode ser: matar o padrão burguês, na figura de Julião,
que, em sua psique atormentada bloqueava até a possibilidade de um relacionamento
amoroso bem sucedido.
Com a liberação dos instintos mais baixos percebe-se também o início do
processo de auto-destruição da personagem, simbolizado pela perda de capacidade para
o trabalho, representante sempre do equilíbrio:
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que
emagreceram. As mãos não são minhas: o mãos de velho, fracas,
inúteis. (...)
Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para
datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a
cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus
dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E
vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha.
Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida.
À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca
emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o
jornal.(...)
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina (...)
Não posso pagar o aluguel da casa.(...)
O artigo que me pediram afasta-se do papel.(...)
Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre
desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas
mal impressas, caixilho, Dr. Gouveia, Moisés, homem da luz (...)
(Angústia, p. 19/20)
Tal processo comprova-se em Angústia não pela presença dos pensamentos
violentos, admitida pelo narrador, mas também pela obsessão pelo nome de Marina no
momento em que deveriam aparecer pensamentos produtivos.
que a narrativa é posterior ao crime, o personagem-narrador problemático faz
com que imagens se tornem recorrentes. A maioria destas recorrências está ligada ao
seu desejo. São constituídas principalmente pelas cenas em que este é representado por
animais, significando um desejo culpado, doentio: As ruas estavam cheias de
mulheres. E o rato roía-me por dentro (Angústia, p.47). As citações que
exemplificam esta característica são inúmeras e muitas já foram citadas ao longo deste
estudo.
Luís da Silva critica Marina e a identifica com mulheres vulgares, mas ainda
assim procura ouvi-la através das paredes, persegue-a quando desconfia que ela vai
152
fazer um aborto e mata Julião Tavares para vingar-se e para vingá-la. Vejamos um dos
momentos em que associa Marina a uma mulher que identifica como vulgar:
Que estaria fazendo Marina? Pensei em D. Mercedes. Vida bem
sossegada a dessa galega. Um sem-vegonha o figurão que a sustentava,
um caloteiro: devia os cabelos da cabeça e dava festas, punha
automóveis à disposição da amásia. Como diabo podia um macho
gostar daquela tipa de carnes bambas? (Angústia, p. 67)
Este embate já foi estudado por Marilena Chauí, em “Laços do Desejo”: (...) os
desejos imaginários nos arrastam em sentidos opostos e nos deixam desamparados,
amando e odiando as mesmas coisas, afirmando-as e negando-as ao mesmo tempo
122
.
Reitera-se a análise de que o protagonista nos apresenta uma visão deformadora
da realidade e, sendo assim, rios acontecimentos ganham ares de alucinação, como
por exemplo a evocação da história contada por seu Ramalho, em que Luís mistura
imagens trágicas e deprimentes a outras ligadas a mulheres, de maneira sádica:
Seu Ramalho deu um suspiro e empurrou a história do moleque da
bagaceira, o que havia arrancado os tampos da filha do patrão (...)
Nunca pude saber com precisão a data da morte do moleque (...)
Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco
distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre
era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na
agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca,
sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta
medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro
arquejava. Corria sangue entre as frestas dos paralelepípedos e
empoçava na sarjeta. A pa crescia, em pouco tempo transformava-se
num regato espumoso e vermelho. (...)
A vitrola de D. Mercedes rodava marchas de carnaval; D. Adélia abriu
os postigos: - Hum, hum!”; a cabeça de D. Rosália tinha os cabelos
vermelhos. Antônia, pintada de vermelho, as pernas abertas, passou
bamboleando-se. Das saias dela desprendeu-se um cheiro forte de
sangue. Provavelmente estava menstruada e não se lavava. Os arames
do Nordeste balançavam como cordas. Eu receava que os transeuntes
tropeçassem no moleque estendido no calçamento.(...) Mas a figura
continuava a escabujar no chão. Agora não era preta nem estava nua.
Pouco a pouco ia embranquecendo e engordando, o sangue estancava,
as feridas saravam.
123
122
CHAUÍ, 1990, p. 62
153
Posteriormente, fica-se sabendo que a culpa produz tais alucinações em Luís da
Silva, e que elas se encontram no tempo da enunciação, quando acontecera o
assassinato. No entanto, isto não exime Luís do crime premeditado, que culminou com
a morte de Julião Tavares.
As forças obscuras da alma destroem a superfície da lógica. O discurso
fragmentado é reflexo da maneira também fragmentada e confusa com que o narrador-
personagem apreende a realidade. Luís da Silva isola-se num mundo próprio e não
verbaliza de modo completo seus pensamentos e ações. São frases soltas e iias
repetitivas, obsessivas, fruto do desajuste social e da personalidade doentia. Assim
também é seu amor: desajustado e deformado.
4.1.2.5 –Luís da Silva e Paulo Honório
A diversidade entre a atração de Paulo Honório, em São Bernardo, por
Madalena, e de Luís da Silva por Marina em Angústia é perceptível desde a construção
das cenas em que se deparam pela primeira vez com suas “amadas”, embora ambos
fiquem imediatamente atraídos por elas. Paulo Honório encanta-se pela delicadeza, e
até demonstra uma certa ternura por Madalena. Luís da Silva, em princípio, nega de
maneira a atração, mas acaba, através do discurso, rendendo-se aos encantos físicos
de Marina. Mas, neste caso, o que sobressai é o desejo carnal. Por outro lado, em
momentos diferentes, tanto Paulo Honório quanto Luís da Silva reagem de maneira
submissa em seus discursos: ambos depreciam-se, e mostram considerar-se inferiores,
principalmente em aparência, a elas.
O protagonista de Angústia demonstra seu sentimento de inferioridade logo nas
primeiras vezes em que observa Marina: A pequena estouvada não me prestava
atenção: descontentara-a provavelmente o exame da véspera. Um sujeito feio: os olhos
baços, o nariz grosso, um sorriso besta e a atrapalhação, o encolhimento que é mesmo
uma desgraça. (Angústia, p. 46)
123
RAMOS, Graciliano, Angústia, p. 121/122.
154
A necessidade de casar-se, aliada a uma situação financeira estável estão
presentes tanto nas justificativas de Luís da Silva como nas de Paulo Honório para um
pretenso envolvimento amoroso. O último, antes mesmo de conhecer Madalena,
pensou em procurar uma candidata à união, apenas para perpetuar seu nome, deixando
herdeiros para São Bernardo. Neste caso, a idéia de casar-se estava, em princípio,
totalmente apartada de qualquer sentimento amoroso, já que surgiu antes mesmo de ter
visto aquela por quem se interessaria.
Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me
veio sem que nenhum rabo-de-saia a provocasse. Não me
ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que
mulher é um bicho esquisito de governar. (SB, p. 57)
O discurso representa uma fuga daquilo que significaria uma fragilidade, uma
queda: não dominar os próprios sentimentos, estar vulnevel, ao de alguém. Por
isso, o medo da mulher, bicho difícil de governar”, expressão profética do que seria a
relação entre Paulo Honório e a futura esposa.
Luís da Silva, embora apresente tendência similar, e na narrativa justifique o
fato de pensar em se casar com uma certa “sobra” de economias, é um pouco menos
racional do que denota no nível do discurso. Não possui herança que justifique o desejo
de perpetuação de seu nome, e apresenta a motivação de um possível casamento
quando já está sendo arrebatado por Marina:
Apesar destas desvantagens, os negócios não iam mal. E foi
exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha
me inspirou interesse novidade, pois sempre fui alheio aos
casos de sentimento. Trabalhos, compreendem? Trabalhos e
pobreza. (Angústia, p. 46)
O fato de, tanto Paulo Honório, quanto Luís se dirigirem nestes momentos ao
leitor possui uma significação singular: uma tentativa de convencer de que o
arrebatamento foi consentido, quase planejado e de que não estavam sendo enlaçados ou
submetidos ao jugo de um sentimento, e muito menos de uma mulher. No entanto, com
o decorrer da narrativa, prova-se o contrário.
155
Ambos são arrebatados, mesmo que de formas diversas. Paulo Honório,
aparentemente tão rude, fica enternecido por Madalena. O afeto logo transpira através
de diminutivos, carregados de afetividade, da adjetivação e da mudança repentina de
objeto de interesse.
Luís da Silva, no entanto, desde o momento em que e os olhos em Marina,
deseja-a da maneira mais carnal, tentando também negar o arrebatamento, o interesse,
mas não consegue desprezar sua presença.
A adjetivação presente no seu discurso também difere bastante da adotada no
discurso de Paulo Honório: em Angústia são palavras fortes, agressivas, e os
diminutivos são pejorativos. Em momento algum o narrador demonstra ternura ao
referir-se à pretendida: são sempre imagens grosseiras, animalizantes, que a aproximam
da vulgaridade ou mesmo da prostituição: Era engraçada o diabo da pequena (...) Um
homem lido e corrido, pegando trinta e cinco anos, preocupando-se com aquela guenza
(...) E foi exatamente por me correr a vida quase bem que a mulherinha me inspirou
interesse.”(Angústia, p. 45-46)
A submissão amorosa fica patente quando tanto Luís da Silva quanto Paulo
Honório demonstram uma certa autodepreciação diante das mulheres, como se não
fossem dignos delas ou de serem amados. Luís da Silva o faz logo que avista Marina
pela primeira vez, como já citamos.
Paulo Honório sente-se desvalorizado ao comparar-se com outros homens de
suas relações. A autodeprecião vem acompanhada, portanto, dos ciúmes, como se
no excerto abaixo:
Procurei Madalena e avistei-a derretendo-se e sorrindo para o
Nogueira, num vão de janela.
Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a
roupa bem-feita, a voz insinuante. Pensei nos meus oitenta e
nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas.
Cruzei descontente as mão enormes, cabeludas, endurecidas em
muitos anos de lavoura. (SB, p. 133)
Mas percebe-se que a auto-depreciação é muito mais por sentir-se culturalmente
inferior do que apenas por uma questão sica. Isso fica claro no trecho em que Paulo
Honório, enciumado, compara-se ao dr. Magalhães:
156
Com o dr. Magalhães, homem idoso! Considerei que tamm
eu era um homem idoso, esfreguei a barba, triste. Em parte, a
culpa era minha: não me tratava. Ocupado com o diabo da
lavoura, ficava três, quatro dias sem raspar a cara. E quando
voltava do serviço, trazia lama a nos olhos: dêem por visto um
porco. Metia-me em água quente, mas não havia esfregação
que tirasse aquilo tudo.
Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas,
calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também
enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com
semelhantes mãos!
As do dr. Magalhães, homem de pena, eram macias como
pelica, e as unhas, bem aparadas, certamente não arranhavam.
E ele só pegava em autos! (SB, cap. 26, P. 140)
A ambição desmedida acabou pro deformar não só o pensamento de Paulo
Honório, como também passou a refletir no seu aspecto físico, ao menos de acordo com
sua própria visão.
O pessimismo que unifica a obra de Graciliano Ramos é sinalizado por Antonio
Candido: A decisão de encarar pela frente, sem ilusões, a vida interior, completa-se
nele com a decisão simétrica de encarar do mesmo modo a vida social, permitindo-lhe
em ambos os casos uma corajosa amargura.
124
Os caminhos contrários tomados nas obras aqui estudadas (todos desembocando
no pessimismo) também são opostos em relão à trajetória das personagens e à
justificativa de sua relação problemática com o sentimento amoroso. Enquanto Paulo
Honório é violento na imposição de suas vontades e só enfraquece após suplantar
Madalena, que representava a possibilidade de realização amorosa, Luís da Silva sofre
com a ausência de vontade e de crença em si próprio, que o afasta de qualquer
possibilidade positiva de realização assim que ela se apresenta. Antonio Candido
também aponta este fator:
É, portanto, como se houvesse um sistema de barreiras que
apenas a determinação da vontade permite transpor;
conseqüentemente, e de acordo com a atitude pessimista, o
homem se agita entre dois limites: abulia e violência; isto é, a
ausência rbida de vontade e vontade desvirtuada pela força.
No entanto, a realidade não é simples: ordena-se conforme um
124
CANDIDO, 1992: p.60.
157
espectograma onde vemos o violento e arbitrário Paulo Honório
abalar-se a a fraqueza; o abúlico Luís da Silva embeber-se
longamente na idéia de assassínio, até afirmar-se no delírio com
que ilumina o rival pela força.
125
Diante das análises feitas acerca da obra de Graciliano Ramos, consideramos
acertada uma crítica feita por Antonio Candido, que sintetiza muito bem não só a
questão do pessimismo que permeia o sentimento amoroso em tais romances, como
também o que espresente no conjunto da obra:
Os livros de Graciliano Ramos se concatenam num sistema
literário pessimista. Meninos, rapazes, homens, mulheres;
pobres, ricos, miseráveis; inteligentes, cultos, ignorantes – todos
obedecem a uma fatalidade cega e má. Vontade obscura de
viver, mais forte nuns que noutros, que os leva a caminhos pré-
traçados pelo peso do meio social, físico, doméstico. A vida é
um mecanismo de negaças em que procuramos atenuar o peso
inevitável dessas fatalidades: e parecemos ridículos, maus,
inconseqüentes. Às vezes somos fortes e pensamos esmagar a
vida; na realidade, esmagamos apenas os outros homens e
acabamos esmagados por ela. Nada tem sentido, porque no
fundo de tudo há uma semente corruptora, que contamina os
atos e os desvirtua em meras aparências.
126
Tanto em Angústia quanto em São Bernardo, tanto no aspecto social como no
filofico-existencial, a tendência unificadora da obra de Graciliano Ramos é a
derrocada dos valores burgueses. Em São Bernardo Paulo Honório questiona a
validade de tais valores, que sempre julgara primordiais, até a perda de Madalena; em
Angústia, o estrangulamento de Julião Tavares simboliza a vontade de aniquilá-los. A
relação entre este questionamento e a questão do sentimento amoroso é bem expressa
por Carlos Nelson Coutinho em seu ensaio sobre Graciliano:
É sem dúvida um fato importante, digno de registro, que tanto
emo Bernardo como em Angústia tenha sido a tentativa mais
imediata de superar o isolamento e a solidão, a ligação amorosa
individual, a causa imediata da tragédia de Paulo Honório e
Luís da Silva.
127
125
CANDIDO, 1992: p.62-63.
126
CANDIDO, 1992
127
COUTINHO, 1977: p. 96
158
As obras demonstram a incapacidade das personagens em superar o egoísmo e,
conseqüentemente, a solidão. A inabilidade para o amor traduz-se em uma confusão
entre casamento e aquisição de propriedade em Paulo Honório e em Luís da Silva, no
puro e estanque erotismo.
159
4.2 – Jorge Amado e a essência do amor romântico
A obra de Jorge Amado figura neste estudo por ter no amor um dos principais
motivos de complicação em seus romances. Além disso, este sentimento recebe um
tratamento diferenciado no universo literário amadiano, principalmente se levarmos em
conta a sua produção inicial em relação à época em que está inserida.
O romance modernista de 30, fase em que está incluída a primeira parte da
produção literária do autor, apresenta um perfil dominantemente neo-realista, em que se
sobrepõe a preocupação com o questionamento social e potico da realidade
representada. Em Jorge Amado, contudo, o tratamento do amor parece fugir a esse
tendência, pois ele apresenta uma visão neo-romântica para exprimir o impulso afetivo.
Realiza-se uma retomada vigorosa e nada antiquada do sentimento amoroso na literatura
brasileira.
A dualidade de tendências apontada nesta tese aproxima o modernista Jorge
Amado da estética romântica: são marcadamente românticas algumas obras que, num
primeiro momento, o encaradas como documentos sociais. A diferença primordial é
que nessa época todos os assuntos são admitidos, possibilitando maior compreensão do
meio e dos relacionamentos. Finalmente o corpo ganha uma aceitação como
possibilidade saudável, libertadora. Se no Naturalismo havia uma tendência obsessiva,
unívoca, patológica, em Jorge a sexualidade ganha um caráter positivo, como
conseqüência natural do amor.
Jorge Amado realizou uma longa trajetória ficcional e, por isso, em seus
romances, podem ser percebidos certos conjuntos de características relativamente
variáveis de acordo com a época. Para figurar em nosso trabalho, de sua primeira fase,
selecionamos Terras do sem fim, pertencente ao ciclo do cacau”. Gabriela cravo e
canela figura como o início de uma fase menos marcadamente política e, como a
questão do amor é imprescindível para o desenvolvimento da ideologia libertária
veiculada neste romance, não pudemos deixar de analisá-lo.
A essência da atitude psicológica e literária própria dos românticos está mais
marcadamente presente em Mar Morto, romance em que o amor transcende todos os
limites, o que fez com que este romance fosse um dos selecionados para estudo.
160
Dona Flor e Teresa Batista adotam uma visão mais despreocupada em relação à
política e pertencem à fase posterior da produção literária amadiana.
Ainda que se considerem as modificações culturais que se deram, a visão de
amor em Jorge Amado se assemelha à da tradição romântica. Em seu discurso de posse
na Academia Brasileira de Letras, o escritor, ao ressaltar aquelas que considera as linhas
norteadoras da literatura nacional, a primeira, fundada aqui por Alencar; a segunda, por
Machado de Assis, filia-se, ele próprio, à alencariana, ao proferir: Sou um rebento
baiano da família de Alencar
128
. Tal posicionamento confirma nossa análise e aguça a
curiosidade para o enfoque amoroso no romance amadiano.
Quanto ao uso da linguagem, Jorge Amado adota um estilo fluente que o faz
capaz de captar as sensações fortes e carregadas da Bahia, na intenção de “imitar” o
real. E o amor surge em suas obras como forte e redentor, nunca dissociando os
aspectos carnal e espiritual. Tereza Batista é o exemplo mais claro desta união, pois seu
coração, sua alma, buscam Januário Gereba durante toda a saga e, no final, o encontro
dos corpos, numa cena sensual, é que traduz o fim da busca. Em sua obra, aliás, o
erotismo adquire um saudável sentido de libertação. Tanto mais quanto, na sociedade
burguesa, a repressão sempre se voltou com particular ferocidade contra o sexo e o
instinto
129
.
A construção do romance Mar Morto, como assinalamos, segue o modelo
romântico, em que o amor sobrevive a tudo, o que faz dele um romance muito popular.
José Maurício Gomes de Almeida diz, sobre tal narrativa: vem a ser a obra na qual
mais nitidamente transparece a vocação essencialmente romântica e lírica do seu
autor
130
. O casal protagonista luta contra a oposição familiar, fruto da diferença social
entre os dois; contra os problemas de saúde de via; contra a sedutora Esmeralda, que
tenta desestruturar a união dos dois, e ainda contra os desafios diários da profissão de
Guma e o amor resiste a tudo. O desfecho de Mar Morto significa o resgate
romântico da mulher.
O primeiro obstáculo apresentado é o da origem social diversa dos amantes:
Lívia foi criada dentro dos padrões da classe média pelos tios comerciantes, que
128
AMADO, Jorge. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. In.: ___ Jorge Amado povo e
terra – 40 anos de literatura : p. 14.
129
ALMEIDA, 2004, p. 661
130
ALMEIDA, 1999. p. 255
161
vislumbravam para ela um futuro promissor; já Guma sempre fora um ‘marítimo
simples, muito diferente dos pretendentes almejados pela família da moça. Cria-se aí a
oposição mulher da cidade X homem do mar.
A harmonia do casal é por vezes desestabilizada porque Lívia insiste em que
Guma se aproxime do mundo do qual é oriunda, assumindo a quitanda dos tios. Mas,
para o pescador, a vida burguesa representava a suprema degradação. via acaba
cedendo ao perceber que aquela vida contrariava a natureza do marido, fazendo-o
infeliz. O amor supera este obstáculo, bem aos moldes românticos, em que o
sentimento amoroso suplanta qualquer ambição financeira ou social, por constituir o
valor mais alto na vida das personagens.
Em Mar Morto, a posse antes do casamento se desenrola em uma espécie de
encenação romântica. Tudo é construído de maneira envolvente, desde a expectativa da
posse, iniciada com a interdão que gerou a fuga, até o cenário de perigo, de
tempestade, com um mar bravio, que mais aumenta o desejo de aproximação, e o fato de
afirmar-se a castidade de Lívia. O desejo criara antes o ato, desde que Guma trouxera
Lívia, em fuga, para o mar:
Lívia está cansada do dia inteiro de espera, da angústia de tudo poder
fracassar no último momento, se os tios fizessem questão de levá-la
com eles, e vem se deitar no madeirame do saveiro, aos pés de Guma
que vai ao leme. Ele sente a carícia dos cabelos dela. Muito a deseja e
talvez nunca a possua. Talvez sigam os dois para as terras de Aiocá
sem que os corpos se unam. A hora de morrer não chegou porque não
se possuíram ainda, ainda conservam um desejo nos corpos que
estremecem de prazer quando tocam um no outro, apesar da tempestade,
do mar bravio em torno. Guma não quer morrer sem a possuir, porque
então há de voltar sempre em busca daquele corpo. (Mar Morto, p. 125)
E o momento da posse de fato é tão marcante que se supõe que o amor dos dois
transforme a lenda de um local, e um costume daquele povo marítimosobre as noites
de amor. Dá-se a este sentimento um caráter iluminador, inadiável, idílico. A citação é
longa, mas fala por si só:
Guma sustenta o leme com toda a força, governando o seu barco apesar
da fúria do vento e das vagas. Lívia se aperta contra a sua cabeça,
suplica:
- Se a gente vai morrer, vem ficar com eu...
- Talvez a gente se arranje...
162
Nem uma estrela no céu, essa noite não é para o amor. Tanto assim que
não cantam no cais, só o vento assobia. No entanto eles querem se
amar nessa noite que bem pode ser a última. Tudo épido e incerto na
vida do mar. A o amor tem pressa. As vagas banham os corpos e o
saveiro. Pouco adiantaram em todo esse tempo (...) Lívia infunde
coragem, o desejo de tê-la, de viver para ela consegue que ele
continue. Nunca teve medo dum temporal. Hoje é a primeira vez.
Medo de morrer sem a ter possuído.
Conseguiram entrar no rio (...) Guma procura uma pequena bacia onde
possa encostar o saveiro. São poucas naquele começo de rio. Só
mesmo nas terras onde corre a assombração do cavalo branco existe
uma. Porém para um marítimo é melhor ficar em meio à tempestade
que parar ali, ouvir o cavalgar do antigo senhor de engenho. Estão
perto. Já se ouve perfeitamente o tropel da cavalgada estranha. O
cavalo passa, volta, os caçuás batem nas suas costas, os raios desenham
seu vulto.
Lívia canta baixinho uma canção que é um convite para Guma. Mas o
cavalo branco corre, é melhor morrer na tempestade. Mas como deve
ser bom possuí-la, apertar o seu corpo contra o corpo virgem de Lívia!
Ela vê a bacia à luz do raio que corta a noite:
- Espie, Guma... O barco pode ancorar ali.
Que importa o cavalo branco? Ele o deixará que ela morra naquela
noite que era sua noite de núpcias. O cavalo branco corre, mas Lívia
canta e não tem medo dele. Ela teme é a tempestade, o vento sul, o
trovão que é a voz colérica de Iemanjá, os raios que o o brilho dos
olhos de Iemanjá.
E Guma embica o saveiro para a pequena bacia
(...)
Muitos anos depois um homem (um velho do qual ninguém sabia a
idade) contava que o só as noites de lua eram para o amor. Também
as noites de tempestade, noites de cólera de Iemanjá, eram boas para o
amor. Os gemidos de amor eram música das mais lindas, os raios
pairavam no céu e viravam estrelas, as vagas eram ondas pequenas
quando vinham bater na areia onde alguém amava. Também as noites
de tempestade são boas para o amor. Porque no amor há música,
estrelas, bonança.
Havia música nos gemidos de dor de Lívia. Havia estrelas nos seus
olhos e os raios pararam no céu. O grito de orgulho de Guma calou os
trovões. As vagas vieram mansas bater na areia da pequena bacia,
mansas como ondas. E eles foram tão felizes, foi tão bela essa noite
escura, sem lua e sem estrelas, tão cheia de amor, que o cavalo
encantado sentiu que lhe tiravam os arreios e seu castigo terminara. E
nunca mais trotou pelos caminhos da margem do rio, onde agora os
marinheiros vêm amar. (Mar Morto, p. 126-127)
A estrutura dramática desta cena, assim como a forma de deixar subentendida a
conjunção carnal, a linguagem metafórica (Porque no amor estrelas, música,
bonança”), poética mesmo, a presença do mitológico (noites de cólera de Iemanjá”, a
163
assombração do cavalo branco”...) indicam uma tida aproximação da abordagem
romântica do amor, bem distante do enfoque naturalista.
Além disso, a obra reitera uma concepção idealizada da mulher, típica do
Romantismo: assim, a castidade de Lívia é ressaltada nos pensamentos de Guma.
Entretanto, além deste erotismo que aponta para uma visão luiminosa, de alegria
e amor, também em Mar Morto está presente um tipo de erotismo que contraria aquele
comumente ressaltado nas obras do autor de maneira positiva. Trata-se de um erotismo
destrutivo, presente na relação entre Guma e Esmeralda. A mulata, mulher de seu
amigo Rufino, após provocar Guma insistentemente, oferece-se a ele de tal forma que
ele sente-se seduzido e a relação sexual se consuma. O aspecto diabólico deste erotismo
é tão forte que logo após a posse, como se acordasse de um pesadelo, Guma tenta
enforcar Esmeralda, e não o faz porque os tios de Lívia chegam para visitá-la neste
momento. A cena foge completamente à idéia positiva que Jorge Amado consti do
erotismo. Neste caso, sendo Guma um herói bastante humano, não divinizado, cai em
tentação, pondo suas virtudes em jogo. O impulso erótico, nesse caso, torna-se
diabólico porque vai ferir um valor máximo do universo amadiano (e romântico): a
lealdade.
A queda de Guma representa um duplo pecado, porque fere o código ético
dentro do universo romântico, já que ele pratica um crime contra a lealdade ao trair não
a mulher, como o amigo Rufino, de quem Esmeralda é mulher.
Ime-se aí mais um obstáculo à plena realização do amor entre os
protagonistas, que este, imbuído de um caráter muito mais sério, porque mais grave
do que qualquer questão sócio-econômica, e em xeque o sentimento amoroso e a
lealdade, valores cruciais no modelo romântico. O cenário agrava ainda mais a
situação: Guma possui Esmeralda no cômodo ao lado daquele em que está Lívia,
grávida, muito doente:
(Esmeralda) sentou-se na rede. Agora suas pernas tocam nas de Guma.
E de repente ela se atira sobre ele e o morde na boca. Enrolam-se na
rede e ele a possui sem sequer a despir, sem pensar. A rede range e
Lívia acorda:
- Guma!
Sacode Esmeralda, que está trepada nas suas pernas. Corre para o
quarto. Lívia pergunta:
- Tu tá aí?
164
- Tou, sim.
Ia alisar o cabelo dela, mas sua mão ainda traz o calor do corpo de
Esmeralda e ele suspende o gesto. Ela chama:
- Vem dormir comigo...
Ele fica sem saber o que dizer. Na outra sala Esmeralda o espera para
concluírem o que começaram. (...)
E recomeçaram. Ele agora está louco, não sabe mais o que faz, não
pensa, não se recorda de ninguém. do corpo que aperta contra o seu
na luta que mais parece de morte. E quando caem um sobre o outro
Esmeralda fala baixinho:
- Se Rufino visse isso... (Mar Morto, p. 165-166)
A solução para o resgate da dignidade do herói, para que merecesse o amor
eterno de Lívia, foi uma morte heróica.
O amor a Guma fez com que Lívia desafiasse o destino das mulheres que vivem
em torno do cais, porque aquelas que não estão fadadas a esperar os maridos voltarem
de longas viagens, são viúvas transformadas em prostitutas, para sobreviverem na
miséria daquele mundo masculino de marítimos.
A transcendência do amor comprova-se pela profunda identificação dos amantes,
representada pelo fato de Lívia assumir o papel de Guma após sua morte. Esta atitude
leva também à mitificação da heroína, que passa a ser retratada como uma espécie de
Iemanjá:
Suspendem as velas dos saveiros. Lívia inclina o rosto. O
vento que passa levanta seus cabelos. Misturou suas lágrimas
com o mar, é irremediavelmente dele porque nele está Guma.
Para se sentir novamente com Guma terá que vir ao mar. Ali o
encontrasempre para as noites de amor . No mar encontrará
Guma para as noites de amor. Em cima do saveiro recordará
outras noites, suas lágrimas serão sem desespero.
(Mar Morto, p. 251-252)
Lívia suspendeu as velas com suas mãos de mulher. Seus
cabelos voam, ela vai de pé. (...) Uma vez, quando fez o que
nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar.
E não é ela que vai agora de pé no Paquete Voador? Não é ela?
É ela, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita
para os outros no cais:
Vejam! Vejam! É Janaína.
Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da
escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu
milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam
Iemanjá, a dos cinco nomes.(Mar Morto, p. 256-257)
165
O amor, que não reconhece limites nem na morte, faz o resgate romântico do
casal, transformando Lívia numa verdadeira heroína e purificando Guma de seu pecado,
através da morte.
4.2.1 – A Bovary das terras do cacau
Terras do sem fim é um romance que desenvolve seu enredo em torno da
problemática da terra, fruto da concepção de uma situação central específica, que é a
luta pelas terras do cacau, próximas a Ilhéus. No entanto, em meio à narrativa,
apresenta-se uma relação interdependente a esta principal, que consideramos importante
para o desenvolvimento do tema do amor nesta parte inicial da obra do ficcionista Jorge
Amado: trata-se da relação de adultério entre Éster e Virgílio que, em princípio parece
aproximar-se do bovarismo.
Ester, a mulher do coronel Horácio, é caracterizada primeiramente como uma
jovem sonhadora, órfã de mãe, criada e mimada pelos avós, e educada em um colégio
de freiras. Nos tempos de estudante, seus planos de futuro eram casamentos ricos e de
amor, vestidos elegantes, viagens ao Rio de Janeiro e à Europa” (TSF, p. 60-61) .
que o destino fê-la casar-se com um coronel das zonas do cacau e viver numa espécie
de prisão em regime semi-aberto, numa fazenda cercada por plantações, capatazes, e
pela mata, que era o que mais a assustava. A posse sexual, pelo marido Horácio, era
violenta, e é tratada metaforicamente, durante boa parte da narrativa, como equivalente
à de uma rã engolida por uma cobra. Não por acaso, Ester ouve os gritos de rã, pela
primeira vez, durante o jantar que antecede sua primeira relação sexual com o marido.
Ao ouvir o barulho, pergunta de que se trata; Horácio lhe responde, com indiferença: -
Uma na boca de uma cobra(TSF, p. 63). No parágrafo seguinte acontece a relação
sexual, que se repetiria por muito tempo da mesma forma: e de repente, mal terminado
o jantar, foi aquele rasgar de vestidos e do seu corpo na posse brutal e
inesperada”(TSF, p. 64). Ester é devorada como uma rã indefesa.
Uma mulher criada na “cidade grande’, como ela, não se contenta com dinheiro,
terras e muito menos com homens que a tratam como objeto (mesmo que seja um
bibelot de cristal). Ela quer amor, paixão, romance.
166
Sendo assim, Ester não se acostuma à vida monótona de Ilhéus e o casamento
com Horácio representa a destruição dos seus sonhos românticos de moça. Ele a amava,
mas de uma forma reificada, da mesma maneira que amava suas plantações de cacau:
Tomou do fruto do cacaueiro, sabia que aquilo agradaria ao marido.
Horácio sorriu já alegre, já feliz da esposa, os olhos descendo pelo
corpo dela. Ali estavam as únicas coisas que ele amava no mundo:
Ester e cacau.(TSF, p. 69)
E Horácio era visto por ela não como um marido, o que reafirma a relação
reificada, mas sim como o dono, o patrão, o coronel”(TSF, p. 68). Ela era a mulher
‘com tutano’, ‘adquirida’ pelo coronel, e ambos reconheciam tal relação de posse: Quem
é que tem em Ilhéus e mesmo na Bahia ... uma mulher tão educada?... não é
boniteza... falava com orgulho como um dono falaria de uma propriedade sua.(TSF,
p. 94)
Nesse aspecto, Horácio se identifica com Paulo Honório, tanto por sua posição
social, quanto pela forma como a mulher o via, embora Horácio não negasse que a
amava, mesmo que a seu modo bruto. Força política em Terras do sem fim, ele se
preocupava em acumular poder e riquezas com as plantações de cacau, e era tão bronco
e ignorante que não atendia às necessidades de romantismo e de amor de Ester: talvez
por isso tenha sido traído. Não se pode atribuir a ele, também, a falta de amor pela
mulher: a incompreensão de um pelo outro, já que eram pessoas de naturezas tão
diferentes, estabeleceu o distanciamento do casal. Até a encomenda da morte de Virgílio
é compreensível dentro do universo em que estava inserido o coronel, e diante dos fatos
que se expunham aos seus olhos. Sobre este fator, discorre JoMaurício Gomes de
Almeida:
(...) Horácio o pode de forma alguma ser visto, no episódio, como
uma figura grotesca ou odiosa. É necessário situar corretamente a sua
posição de homem sem grandes delicadezas de sentimentos, mas
movido por um autêntico amor à mulher e atado aos valores rígidos e
inapeláveis que governam aquele mundo primitivo, para que se possa
sentir a violência do seu drama íntimo e o inevitável de sua atitude.
Também ele, a seu modo, foi vítima de uma situação que não poderia
jamais compreender. Como nas grandes construções trágicas, os seres
humanos estão presos aqui nas malhas de um destino que os envolve a
todos e cujo controle escapa às suas mãos.
131
167
Horácio, desconhecendo o romance de sua esposa, orgulha-se de ela ser tão
inteligente que acompanhe o pensamento e a sensibilidade de um advogado como o dr.
Virgílio. O coronel achava o advogado o amigo perfeito para Ester, já que ele próprio
o sabia conversar sobre livros, moda, e não sabia a língua francesa.
Ao travar conhecimento com o advogado Virgílio, Ester vê seus sonhos de
romantismo renascerem na figura daquele homem sensível e inteligente, vindo da
cidade grande, com modos cosmopolitas, contratado pelo Coronel Horácio. O
advogado também se encanta por ela, e nasce o romance.
Devido à forte atração entre as duas personagens, a análise do amor erótico
ganha um importante momento: o desejo da mulher é retratado de uma forma tão
intensa quanto o do homem, e o autor dedica duas páginas a este momento. Ester passa
inicialmente a entregar-se a Horácio, imaginando-o Virgílio: ...esmaga nos lábios de
Horácio os lábios desejados de Virgílio... E vai morrer, sua vida escoa pelo sexo em
chamas”.(TSF, p. 111) Neste episódio, o desejo de Ester, o amor que passa a sentir por
Virgílio faz com que deixe de ser o objeto sexual e passe a sujeito mesmo da ação
erótica. Ela também exterioriza o amor e o prazer que Virgílio lhe desperta, o que
confere um aspecto de reciprocidade ao desejo sexual das personagens.
Em Jorge Amado, a representação do amor erótico feminino, no caso de Ester,
aparece ainda de uma forma poetizada, metafórica.
A construção do enredo de Terras do sem fim, no que diz respeito ao núcleo que
envolve Ester, Virgílio e Horácio, segue uma linha bastante interessante. Jorge Amado
utiliza-se dos mesmos elementos que Flaubert, em Madame Bovary: a insatisfação
feminina com o casamento, o adultério, a descoberta do marido através da leitura de
cartas, a morte da mulher... só que o faz de uma forma diversa. Se a obra francesa é um
marco do Realismo, Jorge Amado cria um enredo romântico.
A trajetória de Ester lembra, até certo ponto, a de Emma Bovary, mas se
constrói de maneira essencialmente romântica. Tanto uma como a outra não realizam as
expectativas que tinham sobre o casamento. No entanto, as compensações que arranjam
são parecidas, mas diferentes em essência. Madame Bovary tem vários amantes, mas
continua um ser não realizado; Ester encontra um parceiro, que corresponde aos
131
ALMEIDA, 199. p. 277-278.
168
seus ideais românticos. Embora ambas morram, Emma se suicida e passa seus
momentos de agonia sozinha, desesperada, longe de seus amantes, que a abandonaram à
sorte; Ester, pelo contrário, só morre após uma despedida romântica e emocionada
deVirgílio, feliz por amar e ser amada, mesmo na doença. Mas os elementos que
identificam e ao mesmo tempo separam as duas obras não são apenas estes. A
coincidência mais extrema é a descoberta que os maridos de uma e da outra fazem de
seus romances: ambos do mesmo modo lendo as correspondências das esposas. Mas
ainda assim, a utilização que os autores fazem deste fato é bem diversa. O mote do amor
proibido, do triângulo amoroso fadado a um final trágico, até pela condição de Horácio,
é muito caro aos românticos, enquanto a obra flaubertiana obedece aos moldes
realísticos.
A própria morte de Ester pode ser interpretada como purificadora, já que seu
amor, por ser adúltero, era conspurcado. O encontro transcendental entre os amantes
aponta no mesmo sentido romântico de resgate.
Jorge Amado foi ‘benevolente’ com a personagem, fazendo-a morrer pela febre,
indiretamente por causa de Horácio (que foi o agente da contaminação). A mesma sorte
o teve o doutor Virgílio, que praticamente se entrega a uma tocaia encomendada pelo
coronel, quando seu romance é descoberto após a morte da amada. A cena de sua
morte é poética, visto que ele a esperava, e de certa forma a desejava. Em Jorge
Amado, a descoberta do romance por Horácio serve como ponto crucial para um
desfecho ainda mais romântico, que o aproxima de Inocência. Em Terras do sem fim, o
‘dono por direito’ de Ester resolve matar o amante da esposa, assim como Manecão
resolve matar Cirino, em Inocência. O que aproxima o desfecho de um e de outro
romance é a atitude adotada pelas timas: ambos se oferecem à imolação em nome do
amor. Numa estrada da mata, Cirino declara seu sentimento pela noiva do cruel
Manecão ao próprio noivo, sabendo que morreria; de modo similar, Virgílio toma uma
estrada em Tabocas, adivinhando uma emboscada com a finalidade de matá-lo. O
caráter de entrega à morte fica mais claro em Virgílio, pois as cenas finais são ricas em
metáforas em que a personagem mostra sua crença no encontro com Ester após a morte,
reiterando o romantismo que envolve tal núcleo da história (o amor além de todos os
limites):
169
Uma vez Virgílio sonhara um sonho romântico: aparecer à noite, num cavalo
preto, na varanda da casa-grande. Seria a enorme lua amarela no céu, sobre os
cacaueiros e sobre a mata. Ester o esperaria medrosa e tímida, afoita porém no
seu medo e na sua timidez, ele nem pararia o cavalo. Tomaria dela pela
cintura e a poria na garupa, partiriam por entre as ras de cacau, cortariam
as estradas, os povoados e as cidades. Cortariam no seu cavalo negro o mar
dos transatlânticos e dos cargueiros, iriam no seu galope para outras terras
distantes. (...) Ester vai na garupa do cavalo, de onde veio ela? Virgílio solta
a rédea, segura na sua cintura. Uma história de espantar. Irão para o fim do
mundo, os pés livres do visgo de cacau mole que os prende ali...(TSF, p. 293)
A tradicional imagem do príncipe encantadoque chega a cavalo, arrebata a
princesa e foge com ela, mito do amor romântico, é retomada pela personagem, o que
inegavelmente comprova o caráter neo-romântico sugerido pela análise deste capítulo.
4.2.2 – Gabriela: amor à liberdade
A partir de Gabriela cravo e canela as relações amorosas desempenham um
papel de maior relevância na obra de Jorge Amado, pois o autor liberta-se um pouco das
amarras partidárias, dos problemas sociais como o da divisão de terras e passa a abordar
valores humanos mais individuais, ainda que digam respeito à posição do indivíduo na
sociedade. A alegria e a liberdade serão, entre tais valores, os de maior peso, e o amor
está, na literatura amadiana, da realização de Gabriela em diante, a serviço do alcance
destes.
A busca pela liberdade a todo custo, seja através do amor, que é a vertente aqui
estudada, ou por qualquer outro caminho, é analisada por José Maurício Gomes de
Almeida como umtipo de anarquismo instintivo, de raiz romântica
132
, tal a sua
desvinculação de qualquer preconceito classista.
Sendo assim, Gabriela, como marco inicial de um novo período na obra de Jorge
Amado, foi um dos romances escolhidos para análise em nosso estudo.
As mulheres, na obra do autor, aparecem em defesa de ideais de liberdade
humana pela primeira vez de forma marcante em Gabriela cravo e canela (“É que
132
ALMEIDA, 2004. p. 655.
170
começa a se afirmar em meus livros o sentimento do amor como uma coisa
inteiramente livre, no melhor sentido da palavra, isto é, livre de qualquer interesse
medíocre.”)
133
. A busca pela liberdade é tão intensa que em suas obras, há uma
tendência à defesa de um certo anarquismo, pois os valores constituídos, a sociedade
bem pensante, é sempre questionada em suas atitudes e, invariavelmente, retratada
como repressora.
Assim, o autor constrói Gabriela como uma pessoa não criada na sociedade,
portanto portadora de um olhar virgem quando chega a Ilhéus, capaz de servir
inteiramente ao anarquismo amadiano. Sendo estrangeira àquela cultura, está livre de
pré-concepções; a insensatez e o absurdo da moral burguesa, dos comportamentos
convencionais, afloram. Seu erotismo é a forma de desmontar a repressão desta moral.
O desejo de Gabriela independe da representação que a seduz, pois não fica
restrito a apenas um objeto. Em todos os homens que a cortejam ela parece ver beleza,
sedução. O desejo de Gabriela confunde-se com liberdade, constante alegria de viver
aquela mesma visão positiva de que estão imbuídas tantas outras personagens do autor.
A personagem em questão ama, sem preconceito, do retirante ao burguês, vendo
beleza em todos. O amor e o sexo, nesta obra, despem os homens do papel social, ao
menos aos olhos da heroína. É sintomática a cena em que Sinhazinha Guedes
Mendonça é encontrada morta, em circunstâncias comentadas por todo o povo:
Essa história de amor por curiosa coincidência, como diria Dona
Arminda começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o
fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, Dona
Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local,
morena mais para gorda, muito dada às festas de igreja e o Dr.
Osmundo Pimentel, cirurgião dentista chegado a Ilhéus poucos
meses, moço elegante, tirado a poeta. (GCC, p. 9)
O fato mostra que as pessoas, independentemente da posição social , estão à
mercê dos desejos e podem ficar submissas à paixão, colocando-se em igualdade com
Gabriela ou com qualquer outro ser. A inautenticidade da família burguesa perfeita cai
por terra com este episódio.
133
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.277.
171
A imposição de padrões gidos de comportamento é questionada pelo autor
desde o princípio da obra, anunciando acontecimentos ulteriores, protagonizados pela
própria heroína.
Gabriela deseja o prazer como uma aspiração à vida e ela exerce essa vitalidade
através dos objetos e atividades que mais aprecia: os homens e o sexo. Contribui para
isso a iia corrente de que a mulher tem com o amante uma relação baseada no amor,
no sentimento e na entrega de ambos. Já o homem tem com sua amante uma relação de
propriedade.
Das personagens estudadas, Gabriela é a que mais tem os desejos satisfeitos,
pois sua satisfação reside em realizar o desejo dos homens que dela se aproximam,
querendo desfrutá-la.
Mas este caráter peculiar da protagonista faz com que Nacib magoe-se, pois não
se sente reconhecido por Gabriela quando ela busca outros homens: ele encara este
comportamento como falta de respeito da amada. No entanto, Gabriela sente-se plena
relacionando-se com rios homens, já que reconhece neles o desejo por ela e não
consegue recusar sua própria satisfação e a deles.
Tradicionalmente, interpreta-se a expressão do desejo por outro como a negação
do desejo por um primeiro, o que, no caso da personagem em questão, o se confirma.
A livre satisfação é forma inata de alegria e liberdade plena, e a confirmação de que o
sexo, nesta obra, possui uma função alegórica.
O progresso do desejo sensual é fonte de vida e de felicidade para a personagem.
O sentimento de liberdade exige a plenitude da realização sexual e tal realização no
âmbito feminino apresenta-se como uma conjugação de fatos diários, e não apenas o ato
em si. Por isso Gabriela acaba procurando no sexo com Tonico Bastos o meio de se
libertar. As exigências de Nacib tinham-na deixado insatisfeita, o que impedia sua
realização plena e, conseqüentemente, Gabriela via ameaçada sua essência: a liberdade.
A energia do corpo de Gabriela revolta-se contra a repressão intolerável, que é a figura
do ‘moço bom’ Nacib, lançando-se instintivamente contra ele. Um outro ponto
representativo do seu caráter é o fato de ela não se dispor a fazer o papel de propriedade
de poderosos. Esta renúncia está expressa no próprio pensamento de Gabriela, sobre o
fato de Nacib desejar a todo custo casar-se com ela:
172
Seu Nacib estava querendo, com medo de perdê-la, dela ir embora.
Besteira de seu Nacib. Por que ir embora, se estava contente a mais não
poder? Com medo dela trocar a cozinha, a cama e seus braços por casa
posta, em rua deserta, por um fazendeiro. Cada velho horroroso,
calçado de botas, revólver na cinta, dinheiro no bolso. (GCC, p. 332)
A sexualidade e o idealismo de Jorge Amado em relação à liberdade aparecem
identificados, criando uma leitura alegórica, em que Gabriela figura como a própria
liberdade. Tal figuração oscila entre o literal e o metafórico: aparece em falas claras de
personagens como Fagundes e na própria maneira de ser de Gabriela, sendo que dentro
da trama, ela o prega nada, apenas age, sem maiores intenções . Gabriela é
inconsciente de sua realidade social e pessoal,
Uma interpretação mais convencional define alegoria como uma narrativa com
dois níveis paralelos de significação
134
. Na obra analisada , um dos níveis é aquele
que concebe a personagem como uma construção ingênua, para puro desfrute do leitor,
que leva em consideração apenas a função lúdica da literatura. Logicamente este é o
mais tênue. O segundo nível concebe a personagem como essencialmente alegórica, na
qual as ideologias são praticamente aparentes; na verdade, não é uma personagem: são
valores com uma roupagem humana. Trata-se de uma articulação entre o romanesco e o
social. Os dois níveis (...) são diferentes, o que nos permite assinalar uma estrutura
alegórica
135
, como se houvesse ao mesmo tempo um romance-fruição e um romance-
ideologia no mesmo corpo literário. Nossa maneira habitual de ler envolve os
personagens e a trama. Freqüentemente denominamos política’ a nossa leitura
quando lemos esses dois itens como, grosso modo, alegóricos.
136
Na verdade, qualquer
tema em Jorge Amado, não se poderia deter no individual, devendo necessariamente
conter uma dimensão político-social, um princípio legitimador. Criam-se, então,
personagens sentimentalizados para representar a alegoria ideológica que deseja trazer à
tona. A questão da prioridade entre os registros pessoal e político é insolúvel.”
137
A
alegoria disfarça o imediatismo das idéias veiculadas.
134
SOMMER, Doris. “Amor e pátria na América Latina”. Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. In.:
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 170.
135
Idem, p. 169
136
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.265.
137
Idem, p. 277.
173
O autor endossa o caráter alegórico, quando diz em entrevista: Então publiquei
Gabriela eu decidira escrever uma história de amor, insistindo em que fosse uma
história de amor, mas sem abandonar o contexto social, a questão da realidade
brasileira.”
138
A alegoria e o real, a ideologia e a ficção unem-se na trama deste
romance que é um marco na obra de Jorge Amado. Mas a não-compreensão da
personagem sobre seu papel a isenta de veicular qualquer ideologia propositadamente
na trama.
O amor, da forma como é exercido por Gabriela, tem relação estreita com a
liberdade, valor usualmente representado pelo herói amadiano. Este procura suplantar
qualquer obstáculo à realização plena da individualidade e, no caso de Gabriela, a forma
de afirmação destes valores é, através da livre satisfação do prazer, negar ser
propriedade exclusiva de Nacib. Não pode haver trocas e compromissos que amputem
desejos e expressões. E esses compromissos é que Nacib tentava impor, reproduzindo a
sociedade em que sempre estivera inserido e da qual Gabriela era elemento exterior.
Na metáfora que aproxima a sertaneja do pássaro sofrê, fica patente a intenção
capciosa de Nacib em querer “adestrá-la”, para que se interesse por ele e se satisfaça
apenas com ele. A característica semi-selvagem da moça não se submete a tal
adestramento e a tristeza de Gabriela é crescente. Para conferir algo de
verossimilhança, Jorge Amado fê-la uma sertaneja retirante da seca que chegou a Ilhéus.
Em princípio, pode parecer apenas uma marcação social, mostrando a questão do êxodo.
Mas com o desenrolar da narrativa desnuda-se o caráter ideológico deste “não-
pertencimento”.
Sendo assim, o amor, em Gabriela, tem o propósito de desrespeitar amarras
sociais, em nome da alegria e da liberdade. Sobre este tema, nos diz José Maurício
Gomes de Almeida, em seu ensaio “Jorge Amado: criação ficcional e ideologia”:
Uma única opção existencial é inaceitável para o herói amadiano: o
enquadramento na “normalidade” da máquina social - máquina sinistra
que tritura a individualidade e a substância humana das criaturas para
reduzi-las à condição passiva de pas de engrenagem
139
138
Idem, p. 170.
139
ALMEIDA, 2004. p. 653.
174
O fato de Gabriela não ser virgem e ainda assim conseguir um “bom” casamento
mostra o seu valor como mulher capaz de revolucionar costumes, através do amor que
desperta. Mais revolucionário ainda é ela conseguir tal vitória e esnobá-la, por não se
sentir à vontade num relacionamento que tolhe a liberdade.
Em Gabriela, o princípio do prazer se sobrepõe ao princípio de realidade,
propostos ambos por Freud, o que a tornaria um ser à parte, que o princípio do
prazer irrestrito entra em conflito com o meio natural e humano
140
. Como para ela
o há valor na produtividade, no esforço e na segurança, estes são superados pela
atividade lúdica, pela satisfação imediata e pela ausência de repressão, o que faz com
que se torne uma personagem especial dentre todas. Ela não consegue tornar-se uma
mulher preparada para uma racionalidade que a sociedade tenta impor: Se a ausência
de repressão é o arquétipo de liberdade, então a civilização é a luta contra essa
liberdade”
141
. A personagem representa, então, a encarnação deste arquétipo, por isso
rejeita todos os símbolos civilizados.
Uma das metáforas mais significativas para a insatisfação de Gabriela por sentir-
se presa se quando Nacib presenteia a então esposa com um ssaro sofrê. Como se
sabe, o pássaro é uma metáfora esvaziada para a liberdade; prender um pássaro na
gaiola é como subtrair-lhe a natureza, pois o que há de mais belo é o seu vôo. Jorge
Amado reconstrói tal metáfora, traçando um paralelo pássaro - liberdade - Gabriela. Ao
mesmo tempo em que Gabriela ganha um pássaro preso, é proibida de ir ao bar.
Demonstra a impossibilidade de viver cativa ao soltar o pássaro, dizendo que ele fugiu.
Quer ser livre sem magoar Nacib, a quem é de fato afeiçoada. Mas Nacib não alimenta
por ela um sentimento tão puro. Ele é humano e, mais do que isso, machista como os
coronéis. Gabriela achava que tudo o que ele fazia era por bondade, no entanto, a
verdade é que ela satisfazia o aos seus desejos sexuais, mas também, e
principalmente, às suas vaidades. Para prendê-la, ele tentava proporcionar-lhe o que
desejavam as mulheres comuns. Gabriela tornara-se como uma peça rara, uma ‘coisa’
que todos queriam, mas ele possuía (ou pensava possuir): e de ‘papel passado’. Tal
relação é mais uma forma de Jorge Amado propor uma instigante reflexão sobre a
sociedade da época. O autor denuncia a sordidez da sociedade burguesa, que prioriza o
140
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. p. 19
175
sucesso individual e destrói a cooperação e os sentimentos sinceros entre as pessoas.
Gabriela representava quase uma mercadoria, que Nacib achou que poderia obtê-la
definitivamente através dos meios utilizados para enfeitar qualquer outra mulher.
Além do status que ela lhe proporcionaria, tratava-se de uma mercadoria especial: a
força de trabalho. O caráter especial desta mercadoria reside em que seu valor de uso
para o capitalista é gerar valor de troca ou valor comercial
142
, e Gabriela atraía lucros
para Nacib. E atra a ele e aos outros também por sua ‘submissão sorridente’, por
representar a doméstica cobiçada, que servia o homem na cama e na mesa.
O magnetismo exercido sobre os homens, então, não é apenas fruto de seu
comportamento sensual: a personagem não é sujeita ao patrão - ela concede servir, o
que a torna mais atraente aos olhos masculinos. Representa um fetichizado ‘sujeito
perfeito’
143
do ponto de vista machista, que tem em seu âmago, por natureza, a
vontade de agradar ao outro. Jorge Amado faz dela uma retirante da seca para justificar
a aceitação do trabalho duro com baixa remuneração, ou ainda a troca desigual de
tempo de trabalho doméstico por subsistência, e retrata a todo momento o zelo com que
cuida da casa, a aptidão na cozinha, que faz o negócio de Nacib crescer, aliada à sua
sensualidade. Mostra ainda, como Gabriela, após todo este trabalho, ainda serve Nacib
fogosamente na cama. Isso tudo sem requerer regalia alguma ou exigir exclusividade.
É a mulher perfeita para qualquer homem inserido numa sociedade patriarcal,
radicalmente machista. O casamento (...) e o trabalho doméstico são vistos como
parte de uma relação contratual em que os membros do casal buscam atingir
utilitariamente uma situação melhor para ambos,”
144
mas, na verdade, para caracterizar
melhor aquela sociedade, o homem levava vantagens. (...) as mulheres na esfera
doméstica são exploradas por seus companheiros, sejam eles trabalhadores ou até
capitalistas, pois o trabalho doméstico é o tipo mais comum de trabalho não-pago.
145
Do ponto de vista econômico, o homem que estivesse com Gabriela estaria então em
situação privilegiada, pois suas apties eram reconhecidas por todos, e o casamento
141
Ibidem
142
MELO, Hildete Pereira de. & SERRANO, Franklin. “A mulher como objeto da teoria
econômica”. In.: Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres, p. 142
143
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “Introdução”. In.:Tendências e impasses: o feminismo
como crítica da cultura, p.11
144
Idem, p. 16
145
AGUIAR, Neuma. “Para uma revisão das ciências humanas no Brasil desde a perspectiva
das mulheres”. In.: Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres, p. 27
176
faria com que todo o trabalho estivesse pago’. Não é provável que Nacib tenha sido
construído como um personagem turco em vão. Os elementos desta nacionalidade têm
fama de grandes negociantes, e ele não é uma exceção. Ainda sob o ponto de vista
econômico, pode-se analisar racionalmente o casamento de Gabriela e Nacib:
As pessoas fazem suas escolhas de maneira racional, visando ao
benefício próprio, e tais escolhas são afetadas pelos incentivos
econômicos que recebem (...) Becker, partindo de uma visão
essencialmente econômica, analisa os motivos pelos quais as pessoas se
casam, com quem, quando e por que se separam.
O casamento é visto como uma relação contratual entre homens e
mulheres e estas decisões casar ou separar irão ocorrer se, e
somente se, ambos atingirem uma utilidade melhor na nova situação.
146
Gabriela, como ser ‘estrangeirofoge a este esquematismo. Foi, evidentemente,
prejudicada em sua nova situação de esposa, que, além de servir a Nacib, teve sua
liberdade tolhida. Para ele, a posição de marido da personagem mostrou-se moda e
vantajosa, já que elevava seu nível sócio-econômico e o deixava acima dos outros
homens, seus rivais em potencial.
a parte louvável, já que a moça não é todo o tempo submissão e
domesticidade: uma ‘zona selvagem’ em Gabriela, que talvez a faça mais
interessante aos olhos das personagens masculinas. Ela fascina não por ser a
empregada que o modelo androcêntrico requer, mas por ter a situação erótica desviada,
segundo este mesmo modelo; esse desvio é representado por sua insaciedade e
liberdade. O desvio, em Jorge Amado, é fascinante, porque sua ideologia não-repressiva
é que desencaixou a experiência feminina de Gabriela dos padrões machistas. Neste
momento, ela representa a revolução dos costumes, chocando, causando dores de amor
e, principalmente, fascinação.
Em certo momento da narrativa, Fagundes, pertencente ao mesmo grupo de
retirantes que Gabriela, faz um discurso a Clemente, em que descreve com precisão a
natureza da personagem-título: Tu pode dormir com ela, fazer as coisas. Mas ter ela
mesmo, ser dono dela como é de outras, isso ninguém nunca vai ser” (GCC, 141).
146
MELO, Hildete Pereira de. & SERRANO, Franklin. “A mulher como objeto da teoria econômica”.
In.: Desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres, p. 141
177
Uma outra personagem que fala acertadamente de Gabriela é João Fulgêncio,
comerciante liberto de preconceitos que, poeticamente, de forma metaforizada, adverte
a Nacib: Tem certas flores, você reparou? que são belas e perfumadas enquanto
estão nos galhos, nos jardins. Levadas pros jarros, mesmo jarros de prata, ficam
murchas e morrem.”(GCC, 268)
Posteriormente, a inadaptação de Gabriela às grades de um casamento, de uma
relação monogâmica e rotineira, faz com que se concretize o que foi profetizado
metaforicamente por João Fulncio. Ela não queria ser ‘dona’ de ninguém, mas
também não suportou ter um ‘dono’.
Gabriela acaba despertando sentimentos quase opostos aos seus. Se por um lado
ela era livre e deixava os homens com quem se relacionava livres, não se importando
nem que Nacib se deitasse com raparigas dos cabarés, eles ficavam cada vez mais
presos a ela, queriam-na exclusiva. Ela entregava-se por prazer, sem compromisso,
como um alegre passatempo. Quando retirante da seca, vinda para a Bahia, deitara-se
com Clemente: tinha alegria em fazê-lo. Contudo, atraiu sentimentos possessivos e
mórbidos no negro, que pensou em matá-la e matar-se, por ela não querer acompanhá-lo
na ida para as roças de cacau. Os homens, tão acostumados a terem as mulheres
sempre como seus acessórios ou apêndices, ficavam fascinados ao se relacionarem com
Gabriela.
É demonstrado, através de atitudes innuas ou até infantis, que a felicidade e a
liberdade andam juntas. Um dos sinais de tal liberdade é a aversão que Gabriela tem
aos sapatos. Muito mais do que uma condição sica, é uma demonstração de repulsa à
civilização, simbolizada por estas peças, que tolhem os movimentos dos pés. A
obrigatoriedade do seu uso foi iniciada após o casamento: sinal de que este era uma
convenção imprópria para a personagem. A todo momento aparecem outros destes
sinais: o riso sem motivo, a dança, a brincadeira de roda em meio às crianças e, por fim,
o que causou a maior polêmica: a sexualidade que não conseguiu reprimir mesmo
estando casada com Nacib. Não era prostituta: gostava da beleza humana. Não ia para
a cama com homem algum por dinheiro e principalmente não aceitava velhos. Amava a
juventude e a beleza masculina. O sexo funciona como sinônimo de festa, de alegria. O
erotismo em relação a esta personagem, é uma experiência ligada à vida, à liberdade.
Gabriela é, enfim, uma ode a tais valores e, segundo palavras do próprio autor, sua
178
parcialidade tem sido pela liberdade contra o despotismo e a prepotência (...) pela
alegria, contra a dor
147
Gérard Lebrun, em “A neutralização do prazer”, referencia esta idéia de
adestramento e de educação do prazer, a pensadores clássicos: Se ficarmos apenas nos
pensadores do século IV a. C., em Platão e Aristóteles, podemos afirmar em primeiro
lugar que eles consideram o adestramento em relação aos prazeres uma tarefa
essencial da educação
148
Assim como Nacib e a sociedade impuseram a Gabriela a ida
a uma tediosa conferência, no lugar da ida ao circo, e o uso de sapatos apertados a pés
que sempre viveram descalços, pretendem também refrear seu desejo sexual.
Desta forma, com a visão de que o prazer é sempre uma espécie de vício a ser
contido pela educação, assim como a liberdade dos s de Gabriela deveria ser domada
pelos sapatos, corrobora-se sua rejeição pela sociedade, visto que é refratária a tais
modelos.
O discurso de Platão, após a morte de crates, reflete bem o desejo de a
sociedade conformar a seus moldes tudo e todos os que estão em torno:
Restava, assim, o ideal de construir uma nova pólis, regida pela
justeza/justiça e pela proporcionalidade, onde o governante fosse um
sábio (...), onde a razão se sobrepusesse à insensatez e ao passional,
onde o prazer fosse controlado pela medida, onde Apolo contivesse
Dioniso. E onde o justo não u, mas juiz e métron da cidade
pudesse viver.
149
A estas regras não se adapta Gabriela, construída por Jorge Amado como a dos
instintos irrefreáveis, a da liberdade acima de tudo.
Sua vida segue seus próprios parâmetros, pois o único mal de que ela sofre é o
desejo de Nacib em tê-la cativa. O amor erótico que oferece e recebe transfigura-se em
alegria, desde que livre. A ausência do prazer significaria o desequilíbrio, porque seria
geradora de sofrimento.
Gabriela passa a encarnar um valor: a própria liberdade. Não toma partidos para
o estar presa a ninguém e procura viver dentro das leis da boa convivência. O sexo
147
SOMMER, Doris. “Amor e pátria na América Latina”. Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. In.:
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 163.
148
LEBRUN, Gerard. “A neutralização do prazer”, in: O desejo, p. 67
149
PESSANHA, José Américo Motta. “A água e o mel”. In: ___ O Desejo, p. 96
179
o é um fenômeno que contribui para ela apenas como prazer sico e emocional, mas,
da forma como o pratica, é a garantia de sua integridade: ela é livre, e não o será de
forma íntegra se for exclusividade de alguém.
Gabriela não cederia por interesse algum às propostas de coronéis, juízes ou de
qualquer poderoso de Ilhéus, de montar-lhe casa para que fosse sua amásia. Como
foi dito, sujeitar-se a tal papel significava tornar-se bem, propriedade. Jorge Amado
criou-a não com o intuito de mostrar apenas uma mulher forte e participante na
narrativa, mas como uma bandeira simbolizando a liberdade humana, e não só feminina.
Ela fazia tudo o que desejava e era isenta de ambições, de hipocrisia, falsa moral ou
sexualidade reprimida. Não conhecia ou respeitava leis que não fossem as da natureza,
instintivas; não soube viver segundo os padrões de uma sociedade burguesa que
impunha regras que tolhiam as vontades e com isso, a alegria; era uma sociedade, além
de tudo, machista, onde homens podiam tudo e mulheres apenas podiam contentar-se
com a monogamia eterna, caso contrário seriam rejeitadas, degradadas.
A personagem também sofre com o preconceito.. Sua maneira libertária de amar
é malvista por toda a cidade de Ilhéus, já que a sociedade estabelecida funda sua
educação na repressão erótica ou, quando não, na hipocrisia. Mesmo os homens
mantendo amantes fora do casamento e freqüentando as ‘casas de mulheres-damas’,
voltam-se para os ‘maus costumes’ de Gabriela, que, por não dissimular suas vontades,
transforma-se numa ‘ameaça à ‘boa’ sociedade’.
No entanto, Jorge Amado rebate a crítica social, fielmente retratada em sua obra,
com a libertação do amor e da mulher. Gabriela não cede às pressões exteriores e não
renega o seu amor-alegria.
Não será exaustivo lembrar um dos trechos mais importantes em relação à
denúncia de tal hipocrisia: o fato de todos os membros da sociedade, até uma contrafeita
Gabriela casada, terem de comparecer a uma palestra feita pelo poeta Argileu
Palmeira, na qual a maioria das pessoas ficava sem entender nada e estava presente
apenas para manter o status, por pura convenção social. A hipocrisia dos burgueses
(Nacib entre eles) condenava manifestações populares como o circo e o Terno de Reis e
se castigava com uma conferência ininteligível: a imagem perante os outros
predominava sobre a satisfação pessoal, e reside a crítica do autor à burguesia. Em
180
sua entrevista a Alice Raillard, o autor critica a pseudo-erudição europeizante
150
, o
que se coaduna perfeitamente com este episódio. Jorge Amado investe Gabriela,
portanto, do caráter popular, que não entende e portanto é contrário a essas expressões
postiças. Eis a idealização do povo como sincero e autêntico, e da burguesia como falsa
e estereotipada, estando assim os noivos Nacib e Gabriela afastados em atitudes, mesmo
antes do casamento.
A personagem recusa aquilo que todas as mulheres da sociedade enfocada
sonhavam: casar-se com um homem próspero, possuir bens materiais que satisfizessem
sua vaidade, freqüentar as rodas sociais; era enfim, sem ter disso consciência, uma
revolucionária.
Gabriela é construída de uma maneira poética, diferente de qualquer outra das
obras estudadas: seu jeito de ser, de falar, sua simbologia. Há trechos que se
assemelham aos típicos de um gênero rico bastante simples, popular: Voou o sofrê,
num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! Gabriela
sorriu. O gato acordou.”(GCC, 234) metáforas como esta, em que o gato se
incomoda com a liberdade e a alegria do pássaro e de Gabriela; uma cadência em
muitas das falas da personagem, principalmente quando ela suprime artigos. ainda
sinestesias, como a do próprio título, que sugere cheiro e gosto sensuais atribuídos a ela,
e antíteses que sugerem seu trânsito por todos os lados da vida e a aceitação de todos:
calor e frio, doce e amargo, ingenuidade e sensualidade, variação de amores. A vida
era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar goiabas, comer
manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço
dormir. Com outro moço sonhar”.(GCC, p. 233)
Em meio a um acontecimento anterior, era anunciada a força de Gabriela, como
símbolo da natureza, do povo, sobre a artificialidade dos burgueses: ela saíra em meio
ao ‘Reveillon’ dos ricos para juntar-se ao popular Terno de Reis, quando de sua
passagem. Contagiados, todos os presentes aderiram também: sinal de que até os
burgueses têm guardada alguma identificação com manifestações populares. Gabriela
funcionou, neste momento, como agente da tentativa de mudança e libertação. Poderia
150
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.105
181
dizer-se agente de um ideal igualitário do autor. Se a Sra. Saad prevalecesse sobre
Gabriela, a intenção significativa de Jorge Amado seria outra.
É imprescindível ressaltar que não mais a separação dicomica entre carne e
espírito, presente no Romantismo, porém inconcebível no contexto em que está inserida
a obra de Jorge Amado. Retoma-se, portanto, à integração das dimensões biológica e
psicológica. O erotismo, antes degradante, representa agora a afirmação da vida. Em
Gabriela, cravo e canela, ele é característica inata da personagem-título e está a serviço
de um ideal libertário, portanto mostra-se incontrolável. Cercear a sensualidade de
Gabriela, deixando-a cativa de Nacib, tira sua alegria e deforma sua individualidade. O
trecho que melhor comprova esta análise está inserido no capítulo “Suspiros de
Gabriela”, em que os pensamentos da personagem demonstram sua insatisfação com o
casamento:
Por que casara com ela? Era ruim ser casada, gostava não... Vestido
bonito, o armário cheio. Sapato apertado, mais de três pares. Até jóias
lhe dava. Um anel valia dinheiro, Dona Arminda soubera: custara
quase dois contos de réis. Que ia fazer com esse mundo de coisas? Do
que gostava, nada podia fazer... Roda na praça com Rosinha e Tuísca
não podia fazer. Ir ao bar, levando a marmita, não podia fazer. Rir pra
seu Tonico, pra Josué, pra seu Ari, Seu Epaminondas? o podia fazer.
Andar descalça no passeio da casa, não podia fazer. Correr pela praia,
todos os ventos em seus cabelos, descabelada, os dentro d’água?
Não podia fazer. Rir quando tinha vontade, fosse onde fosse, na frente
dos outros, não podia fazer. Dizer o que lhe vinha à boca, não podia
fazer. Tudo quanto gostava, nada disso podia fazer. Era a Senhora
Saad. Podia não. Era ruim ser casada. (GCC, p. 332)
182
4.2.3 - Dona Flor: uma análise à parte
O relacionamento de Flor e de Vadinho é algo incomum, se comparado a
qualquer outro retratado na obra de Jorge Amado. Em essência, Vadinho é um símbolo
da liberdade, assim como Gabriela.
Dona Flor é uma apaixonada por ele, mas, de acordo com as iias de Bataille,
nunca devemos esquecer que, apesar da promessa de felicidade
que a acompanhou, a paixão começa por introduzir a
perturbação e a desordem. A a paixão venturosa introduz
uma tão violenta desordem que a felicidade em questão, antes
de ser uma felicidade desfrutável, é tão grande que é
comparável ao seu contrário, ao sofrimento.
151
Tomando como verdadeiro tal conceito sobre a paixão, justifica-se o fato de
Dona Flor, desde o primeiro dia de casada, já ter experimentado tais contrários: a
felicidade por ter uma vida em comum com Vadinho e a decepção de ser deixada por
uma roleta, um bacará, ou coisa pior.
A sociedade retratada em Dona Flor e seus dois maridos, embora seja mais
moderna que aquela das primeiras obras em estudo, é quase tão machista quanto esta. A
mulher continua a se submeter ao marido e a ter uma grande capacidade para o
sofrimento e a subserviência. Dona Flor é surrada por Vadinho, trabalha para sustentar
suas jogatinas, é traída e sabe-se traída, mas ainda assim o ama e, ao se ver livre dele,
implora sua volta.
A tida impressão de que Flor nutre sentimentos muito mais intensos por
Vadinho do que pelo doutor Teodoro é facilmente explicável: As possibilidades de
sofrer são tanto mais vastas quanto o sofrimento revela inteiramente a significação
do ser amado
152
. Sendo assim, se por um lado Vadinho a fazia sofrer, fosse por
atitudes infiéis, fosse pelo vício do jogo, ou pelos maus tratos, cada vez mais as opostas
151
BATAILLE, Georges. O erotismo, p. 18-9.
152
Idem, p. 19
183
atitudes amorosas ‘deste’ marido tinham significado positivo mais marcante. É como
enxergar melhor o objeto branco, quando ele tem a cor preta de fundo.
Em relação ao doutor Teodoro Madureira, não houve a mesma paixão, e sim um
sentimento calmo e estável, já que, (novamente citando Georges Bataille) uma
felicidade calma em que o sentimento de segurança é dominante tem sentido quando
vem apaziguar um longo sofrimento que a precedeu
153
. Tal sofrimento foi a perda do
objeto de paixão (representada pela morte de Vadinho) e a constatação de que, mesmo
sem ele, ainda tinha desejos vivos.
Dona Flor, ao ficar viúva, tenta suplantar seus instintos sexuais: em vão. O
triunfo do princípio da realidade, que controla a moral, disfarçado de civilização, nunca
é completo sobre o princípio do prazer. Ela tenta dominar e reprimir a si própria, mas
seu desejo acaba por chamar Vadinho para junto de si, tão forte é a natureza. Flor não
podia contentar-se com a ‘economia’ sexual de Teodoro, se já tinha conhecido os
prazeres da carne sem medida, com Vadinho.
A luta pelo destino da liberdade e felicidade humanas é travada e decidida na
luta pelos instintos
154
e é esta luta que se trava no íntimo de Dona Flor, que, sendo
uma personagem especial, consegue, depois de muito sofrer, alcançar a felicidade plena,
conjugando ambos os instintos.
Partindo, portanto, de uma análise de D. Flor à luz das teorias freudianas, que
erguem-se em torno do antagonismo entre os instintos do sexo (libidinais) e do ego
(autopreservação), pode-se levar em consideração que cada um de seus maridos
preenche as necessidades de seus diferentes instintos. Vadinho, as do primeiro, e
Teodoro, as do segundo, já que deixava Flor a salvo de qualquer perigo e era o álibi
irrefutável que a deixava longe das más nguas. D. Flor, ao término da narrativa,
mesmo com dois maridos, não é uma mulher dividida. Pelo contrário: é mais íntegra do
que nunca, levando-se em consideração o sentido literal da palavra: inteira, plena.
uma possibilidade de comparar-se as três personagens em questão às
principais camadas de uma estrutura mental, o que daria a eles uma unicidade, como
se participassem de apenas um todo, tão complementares são, cada um com seus
153
Idem
154
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, p. 41.
184
caracteres definidamente marcados. Vadinho sem vida seria equivalente ao ‘id’, o
domínio do inconsciente, dos instintos primários”.
O id está isento das formas e princípios que constituem o indivíduo
consciente e social. o é afetado pelo tempo nem perturbado por
contradições; ignora valores, bem e mal, moralidade. o visa à
autopreservação: esforça-se unicamente pela satisfação de suas
necessidades instintivas, de acordo com o princípio de prazer.
155
As necessidades que Vadinho esforça-se por suprir são jogar e praticar sexo.
Não reconhece mal em surrar a esposa para lhe tirar dinheiro, porque o que importa é a
satisfação do jogo, que tal dinheiro vai lhe trazer; não reconhece erro ou perigo no
adultério, em relação a si próprio ou às mulheres casadas com quem se relaciona.
Vadinho, vivo ou morto, seria a representação do id’.
D. Flor seria o ‘ego’, o contato com a realidade, a mediadora dos extremos de
Vadinho e de Teodoro; aquela que recebe influências e estímulos de ambos. Sem ela
o haveria como juntar as partes complementares do todo. Os dois pólos (seus
maridos) só podem unir-se em suas curvas, caso contrário haveria o choque.
Por fim, dr. Teodoro seria o superego’. Jorge Amado parece construí-lo de
forma proposital para que assim seja visto, afinal o superego tem origem na
prolongada dependência da criança (...) em relação aos pais; a influência parental
converte-se no núcleo permanente do superego
156
, e Teodoro Madureira mantém uma
tardia dependência materna, até pouco antes de relacionar-se com Dona Flor, o que lhe
confere um senso de moralidade acima dos padrões. Tal comportamento faz com que o
personagem seja considerado superior perante a sociedade bem-pensante, representada
no romance pela mãe de Flor e pelos vizinhos. Mas para a própria Flor, em relação à
vida sexual, a união constitui-se num problema.
Prevalece o equilíbrio, a vontade de D. Flor, mesmo que esta seja representada
de uma maneira fantástica, o que se dá pela aceitação da presença constante do
‘fantasma’ Vadinho: o id’, que, mesmo quando vivo, o era socialmente aceito como
indivíduo digno de respeito. D. Flor completa-se com a presença daquele que é
recriminado pela maioria das pessoas centradas, retratadas na obra.
155
Idem, p. 47
156
Idem, p. 48
185
O desfecho é interessante: Flor consegue unir a calma e a inquietação, o
sofrimento permanente pela inconstância de Vadinho e a segurança quase monótona do
doutor Teodoro. Pôde ter ao seu lado a vida economicamente estável, a integração social
e a timidez ao lado do novo marido, e o furor sexual, o ciúme e a adrenalina garantidos
por Vadinho, mesmo que em presença espiritual. Situação inlita, que demonstra a
quase impossibilidade de plenitude do indivíduo num relacionamento. O fato de contar
com o sobrenatural é uma prova de que conjugar instintos antagônicos é algo apenas
desejável, mas praticamente irrealizável. Jorge Amado, com este desfecho, ironiza a
sociedade, o casamento, e suas escolhas unilaterais, que deixam-na fadada a um só
caminho, já que cria uma hipótese completamente inusitada em Dona Flor e seus dois
maridos
.
.
4.2.4 - Tereza Batista: amor e superação
Tereza Batista é ainda uma das representantes de Jorge Amado com os pobres e
oprimidos, mas sua construção assemelha-se a uma epopéia individual, em que Tereza
mostra seu caráter meio humano, meio divino. É representado na obra o drama interior
da vida da personagem, acima da caracterização de determinada classe, como costuma
fazer o autor. Ela, assim como alguns outros personagens do autor são uma autêntica
mensagem de otimismo, de que apesar de tudo vale a pena viver: Os personagens de
Jorge são almas indomáveis, resistentes, que não se deixam vencer pelas misérias do
drama social. As injustiças gritantes, os amores enfrentando as forças do ódio, o amor
unido à liberdade, lutando por fazer da vida o bem-viver (...).
157
Tereza Batista é uma história de superação, que se inicia com o retrato da
problemática da miséria nordestina e se desenvolve de maneira bastante romântica, com
a dialética do bem contra o mal. O desfecho é típico dos de Macedo: após mil
peripécias, a heroína não pode deixar de vencer, o que é um dos aspectos românticos
apontados nesta tese.
157
NERY, Hermes Rodrigues. “A dinâmica criadora de Jorge Amado”. In.: Conversando com Jorge
Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. 10.
186
O enfoque do amor na prosa romântica é retomado nesta obra com nova
roupagem. Elementos impostos pela sociedade, como a castidade feminina, não
representam obstáculo ou ainda condição para a realização do amor. A desvalorização
destes elementos para sentimento tão sublime pode ser apontada em Tereza Batista, por
exemplo. Neste romance, a virgindade tem preço, é comercializável, como nuca
poderia ser o amor. O coronel Justo vai à roça negociar a de Tereza com a tia, para
anexá-la à sua coleção.
Tereza Batista o completara ainda treze anos quando sua tia Felipa a
vendeu, por um conto e quinhentos, uma carga de mantimentos e um
anel de pedra falsa, porém vistosa, a Justiniano Duarte da Rosa, capitão
Justo, cuja fama de rico, valente a atrabiliário corria por todo o sertão e
mais além. (...)
Contavam de morte e tocaias, de trapaças nas brigas de galo, de
falsificações nas contas do armazém, cobradas no sopapo por Chico
Meia-Sola, de terras adquiridas a preço de banana, sob ameaça de
clavinote e punhal, de meninas estupradas no verdor dos cabaços,
meninas eram o fraco de Justiniano Duarte da Rosa. Quantas
deflorara menores de quinze anos? Um colar de argolas de ouro, sob a
camisa do capitão, por entre a gordura dos peitos, vai tilitando nas
estradas que nem chocalho de cascavel: cada argola uma menina sem
falar nas de mais de quinze anos, essas não contam. (TB, p. 68)
Para a realização amorosa de fato, isto não tem o mínimo valor. Pelo contrário:
a liberdade, a entrega e a sensualidade das mulheres de Amado é que as fazem atraentes
a seus pares românticos.
A construção da protagonista sujeita-se docilmente a um padrão ideal e absoluto
de grandeza épica. Tereza luta não pela realização do sentimento amoroso (com
Januário Gereba), como também por liberdade e justiça social (como no caso da Greve
do Balaio Fechado em favor das prostitutas). Toda essa trajetória é ocasionalmente
pontuada pelo auxílio sobrenatural das divindades do candomblé. Tais episódios
surgem em meio à narrativa num tipo diferente, como que para ressaltar exatamente um
outro plano, paralelo ao dos acontecimentos humanos.
Milagres demais, na opinião do amigo, descrente dessas abusões.
Orixás acontecendo a cada instante, encantamentos e magias. Velho de
barbas e bordão surgindo de repente, a fechar os caminhos da polícia, a
abrir portas de igreja, poeta morto há cem anos salvando raparigas,
187
Ogum Peixe Marinho infundindo confiança, Exu empurrando o
revoltado comissário, fazendo-o estatelar-se, quebrando-lhe de vez as
duas pernas, Santo Onofre velando no deserto chão da zona o corpo de
Vovó para um materialista é dose bruta, o amigo deseja o relato da
verdade pura e não de feitiçarias.(TB, p. 404)
Nunca encontrou em seu caminho, em hora de perigo, um velho de
bordão?
É verdade. Nunca o mesmo, mas sempre parecidos.
Oxalá cuida de si.(TB, p. 409)
A fuão do amor na narrativa é representar uma espécie de prêmio: um troféu
ao final de tantas provações. Antes do ‘amor perfeito’ de Janu, Tereza encontra o amor-
gratidão por Emiliano, que acumula também a função de apresentar também um retrato
social. A verossimilhança literária está presente no fato de um coronel influente manter
uma casa com todos os luxos para uma amante, paralelamente a uma família oficial,
constituída.
Em certo momento da narrativa, Tereza é comprada pelo doutor Emiliano
Guedes, que a instala numa casa, transformando-a em uma amante exclusiva. Com o
tempo, surge entre eles um relacionamento diferente do que se instaura geralmente
nestes casos. Entre eles passa a haver amor sincero, sexo, satisfação, aparições públicas
muito mais do que uma relação para satisfazer vaidades ou demonstrar poder. O
doutor protegeu Tereza de uma vida de desventuras enquanto esteve vivo ( uma espécie
de casamento “até que a morte os separe”), e ela o protegeu dos aborrecimentos de uma
vida atribulada de capitalista. Não houve exploração, mas uma relação de troca justa.
Tereza ganhava sem pedir, não conseguia acostumar-se à boa vida das raparigas
mantidas por coronéis, diferentemente das que foram vistas até então. Tal diferença é
colocada de maneira clara pelo narrador de Tereza Batista: Afeto, carinho, ternura,
amizade, regalos e dinheiro, com certeza, são moedas correntes no trato das amásias.
Mas amor, desde quando, Emiliano?”.(TB, 274) Tereza é uma personagem construída
de forma mais realística e, talvez por ser a protagonista, o autor pintou-a com tintas
diferentes das raparigas vistas anteriormente. Ser amásia do doutor Emiliano Guedes
representou uma trégua em sua vida de desenganos.
Mas nem por representar um lenitivo às dores de Tereza, Emiliano Guedes é
menos machista. É um capitalista próspero, chefe de um clã, e não poderia ser
diferente, na sua posição. Talvez seu ponto positivo fosse a sinceridade, pois se
188
personagens anteriores atuavam de maneira machista maquinalmente, Emiliano fala de
modo claro desses costumes, justificando porque os acata, resumindo em poucas
palavras o que é retratado nas outras obras. Trata-se de um dos discursos mais
machistas da obra de Jorge Amado, que desmascara de forma verbal o pensamento do
macho opressor:
Não quero filho na rua. – a voz educada porém crua, inflexível: Sempre
fui contra, é uma questão de princípios. Ninguém tem o direito de
pôr no mundo um ser que já nasce com um estigma, em condição
inferior. Ademais, quem assume compromisso de família não deve
ter filho fora de casa. Filho a gente tem com a esposa, se casa para
isso. Esposa é para engravidar, parir, criar filhos; amante é para o
prazer da vida, quando tem de cuidar de menino fica igual à outra, que
diferença faz? Filhos na rua, não é assim que eu penso. Eu quero
minha Tereza para meu descanso, para me fazer a vida alegre nos
poucos dias de que disponho para mim, não para ter filhos e amolações.
(TB, 264)
São papéis estabelecidos pela sociedade: o do homem, o da esposa e o da
amante, imutáveis, segundo as palavras do doutor. E quem estabelece tais papéis, é
claro, são os homens, pois trata-se de uma sociedade essencialmente patriarcal e as
mulheres não têm livre artrio nem mesmo sobre seus corpos. Ainda assim, a relação
de Emiliano com Tereza é apresentada com certa simpatia (não tanto como a que
entre ela e Januário Gereba, é claro).
O gozo com a esposa nunca é pleno, pois tem finalidade reprodutora,
diferentemente da amante, por isso Emiliano recusou ser pai de um filho de Tereza.
Enfim, todas as mulheres, esposas e amantes, são vistas pela sociedade ( e não só pelos
homens) como bens de utilidade: as primeiras, úteis para dar-lhes filhos; as outras,
prazer e descanso. O dinheiro e a manutenção das necessidades sicas de ambas
(moradia, vestuário, alimentação) são a moeda de troca para o cumprimento de tais
deveres. Sentimentos e insatisfações não são reconhecidos: o das mulheres, porque são
uma subclasse que veio ao mundo para obedecer. Os dos homens, porque têm que
cumprir seu papel aconteça o que acontecer, e este papel inclui fazer filhos na esposa e
abandonar a amante caso sua honra e sua vida pessoal e familiar sejam ameaçadas.
Amor não entra em tais relações: torna as pessoas condescendentes e democráticas
demais.
189
Mas, ironicamente, o autor faz com que a personagem Emiliano Guedes
arrependa-se de se fazerem cumprir tais papéis em sua vida. Sua família e seus filhos
são de tal modo ‘podres’, que ele desejou não ter feito Tereza abortar um filho seu para
fazer jus aos seus princípios. Para aproximar as relações homem-mulher da realidade
moderna, ou ideologicamente desejada, Jorge Amado fez com que Emiliano desejasse
unir em Tereza os dois papéis: o de mulher feita para o prazer, e o de esposa,
companheira, passando a levar em consideração os sentimentos e deixando de lado as
convenções. A personagem não pôde realizar tal intuito: morreu antes; todavia foi dado
o sinal para a mudança das relações e a valorização da mulher, não mais como um bem
material.
Inicialmente, Tereza é símbolo de uma problemática social: a venda de meninas
para a satisfação sexual dos poderosos, como solução imediata para a miséria de suas
famílias. A partir daí, aproximando-se da narrativa neo-romântica, a heroína enceta a
luta perpétua entre o bem e o mal, sendo imbuída de uma dimensão simbólica, quase
tica. Ainda assim, em substância, permanece o caráter realista do enredo.
A descrição crua dos abusos cometidos pelo Coronel Justiniano da Rosa, das
práticas mundanas das prostitutas e da pocia corrupta (na figura do policial Nicolau
Peixe-Cação) e ainda do aborto a que foi obrigada por Emiliano, além de constituírem
pinceladas realistas, conferem maior força à heroína, que foi capaz de superar todos
esses obstáculos interpostos a sua realização: encontrar com Januário Gereba e se unir a
ele.
É interessante, nessa trajetória, ressaltar alguns pontos: a prostituição em Tereza
Batista não é vista como desequilíbrio moral ou social, como em Lucíola, por exemplo.
A sociedade convive com ela, graças ao sentimento humanitário que perpassa toda a
obra do autor.
Mas a narrativa não apresenta uma Tereza submissa aos desígnios do destino,
como talvez fosse uma heroína tipicamente romântica. Ela é um ser como os demais,
seja no amor, no pranto, no desejo de maternidade, na lera, na ternura. Não se culpa
todo o tempo pelo destino cruel, como o faz a Maria da Glória, de Lucíola, que também
entregou-se à prostituição diante das circunstâncias adversas. Os tempos são outros. A
literatura amadiana confere a Tereza uma dignidade lírica, incapaz de ser conspurcada.
O seu sentimentalismo amoroso percorre a gama completa da carne e do espírito: é
190
adulto. Nisso distancia-se do amor essencialmente espiritual dos românticos
tradicionais.
Pôs a mão sobre a de mestre Januário Gereba, Janu do bem-querer,
fazendo-o mover o leme, mudar o rumo do saveiro, dirigindo-se para
pequena enseada entre bambus na margem do golfo, escondido
remanso. Estende-se Tereza na popa do saveiro:
Venha e me faça um filho, Janu.
Sou bom nisso como quê.
Ali, na barra da manhã, rio e mar.
158
O amor tem uma amplitude capaz de transportar Tereza da morte à vida, da treva
à luz, do cativeiro à redenção, da tirania à liberdade. Resulta num movimento
ascensional que completa o seu caminho épico, fazendo-a superar todo o lado negativo
destas antíteses.
Nesta luta pela redeão, Jorge Amado mostra-se tão idealista na construção da
personagem como Castro Alves, seu admirado conterrâneo. E o por acaso, cita-o em
Tereza Batista como um espírito agindo em prol de uma das causas da personagem,
junto a orixás afro-brasileiros:
lhe disse como vi naquela noite vazio o pedestal da estátua do poeta
Castro Alves, na praça do mesmo nome, onde faço ponto. Pois, ao
acordar novamente, bem mais tarde, à passagem dos carros da polícia
conduzindo o mulherio preso no fim da briga, tendo levantado os olhos
para o monumento, o que vejo? A estátua do poeta em seu lugar de
sempre, o braço estendido para o mar e na mão um cartaz rasgado, com
figuras de mulheres e palavras sem sentido, todo poder às putas,
pensou? E agora saia dessa se puder, o caro amigo. Boa noite eu lhe
desejo, tome cuidado com Exu.
159
E o romantismo amadiano acaba por unir os amantes separados pela desgraça.
A criação literária de Jorge Amado, no que diz respeito à liberdade sexual,
assunto aqui abordado, é totalmente legítima. Tal afirmação é feita, partindo-se da
noção de que a fantasia está intimamente ligada à arte, da qual a literatura é uma das
formas:
158
AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra, p. 421.
159
AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra, p. 405.
191
A fantasia desempenha uma fuão das mais decisivas na estrutura
mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais
elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade,
preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas idéias da
memória coletiva e individual, as imagens tabus da liberdade.
160
Daí, Jorge Amado fazer do comportamento de Gabriela, do desfecho de Dona
Flor, e dos Romances Tieta e Tereza Batista, verdadeiros símbolos da liberdade sexual,
do desejo sem repressão. Ele utilizou uma ideologia quase utópica, onde as
personagens de comportamento livre são as protagonistas com quem o público, que faz
parte da sociedade criticada, simpatiza. Os padrões sugeridos obedecem ao princípio do
prazer, da liberdade, do desejo e da gratificação desinibidos mas a realidade funciona
conforme as leis racionais, não vinculada aos instintos.
O desfecho de Tereza Batista não surpreende como o inusitado de Dona Flor e
seus dois maridos. Pelo contrário: o que o leitor sempre espera é o que acontece a
superação da angústia e da dor, para além de todas as ruínas. É como se Tereza
passasse por um processo de purificação e triunfasse após todos os sacrifícios impostos
pela vida. Depois de tanto lutar, a protagonista tem um final glorioso. É um romance
que segue uma linha neo-realista, com descrições de cenas cruéis, de violência, como as
dos abusos sexuais cometidos pelo capitão Justo. Mas seu desfecho se encaminha
exatamente para a tendência neo-romântica do autor, já assinalada neste estudo.
A sociedade, em Jorge Amado, é apresentada como vilã, interditora, e percebe-
se a intensidade da frustração de algumas personagens femininas, porque o obstáculo à
sua realização é a sociedade dominante. Chega-se à conclusão que o autor pretende que
o leitor, identificando-se com tais personagens, insurja-se contra a burguesia hipócrita e
contra a pseudomoral que esta prega. A tendência às vezes é tão radical que chega ao
maniqueísmo social. Ao se identificar com as personagens, o leitor é levado a se
posicionar social e ideologicamente no mesmo sentido de seu criador. Os romances de
Jorge Amado buscam corrigir” modelos sociais tidos como negativos ou injustos, ou
pelo menos compensar alguns desejos frustrados do indivíduo reprimido pela sociedade.
Não existe arte isenta na obra deste escritor, pois seu engajamento espresente em toda
a criação, inclusive no desenvolvimento do tema do amor, transformando-o num libelo a
160
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, p. 132.
192
favor da liberdade. Essa liberdade, porém, não é apresentada como um valor
filosófico abstrato, mas como um movimento instintivo do ser em direção à plenitude da
vida
161
.
Jorge Amado pertence a uma geração dominantementeneo-realista, mas sua obra
tem fumos românticos, idealizadores, sem se fazer anacrônica. São velhos caminhos
para um novo rumo, que, apesar de criar heis e heroínas, esses não são perfeitos,
mas impregnados da imperfeição humana. Ainda assim, há os amores perpétuos, puros,
como o Tereza Batista por Januário Gereba, o Janu do amor-perfeito. Trata-se,
portanto, de um subjetivismo realista.
Nos romances amadianos, o amor é percebido muitas vezes como uma explosão
erótica, sem nada que a contenha. Mas muitas vezes, também, o erotismo ganha força
de patologia, descambando para as taras, como nas personagens Coronel Justiniano da
Rosa e Nicolau Peixe-Cação, em Tereza Batista.
o erotismo ligado ao amor sem regime, bem exemplificado por Gabriela, tem
um vitalismo intrínseco a ele, e significa mais uma maneira de defender as bandeiras
ideológicas do autor, libertário que era.
161
ALMEIDA, 2004, p. 660.
193
5 – O ENFOQUE DO AMOR NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA
Procuramos incluir Guimarães Rosa em nosso estudo, sob o critério
predominante da originalidade no enfoque do amor. Este sentimento recebe na obra do
escritor um valor de totalidade, quando se alcança a realização de todos os seus
aspectos.
O capítulo abrange a análise do sentimento amoroso em tr~es novelas: “Dão-
lalalão”, “A estória de Lélio e Lina” e, mais brevemente, ‘Buriti”. Para algumas
analogias não se de dispensar também o romance Grande sertão: veredas. Optou-se
por dedicar-se a estas porque, além de abordarem principalmente este sentido totalizante
que Guimarães ao tema, de-se fazer uma comparação sobre o seu tratamento nas
três.
Interpretar o sentimento amoroso, assim como outras temáticas, em Guimarães
Rosa, exige algumas chaves para a decifração de enigmas, já que envolve problemas de
plurissignificação e até da mitologia universal. Trata-se de uma linguagem específica e
irredutível ao significado denotativo.
Assim, não é possível analisar “A estória de Lélio e Lina”, no que diz respeito ao
tema aqui abordado, como uma narrativa primária, apenas em seu significado literal. É
preciso encará-lo como uma mensagem comunicativa com um código a ser
reconstruído, abrindo, desta forma, seu sistema para estudo. Como toda obra de
Guimarães Rosa, é preciso decifrá-la.
Para desenvolver esta parte do estudo foram indispensáveis os textos críticos de
Benedito Nunes (“o amor na obra de Guimarães Rosa”) e de José Maurício Gomes de
Almeida, “Buriti: o ritual da vida”.
“Buriti apresenta ao leitor uma riqueza talvez inigualável entre as obras
abordadas, para a compreensão do amor. Este é visto de forma simlica, erótica,
através de metáforas que compõem um jogo de velamento desvelamento fascinante.
Em contos como este, o elemento simbólico é mais evidente, embora nem sempre cil
de ser interpretado. Em outros, ele está bem escondido. Em Dão-lalalão”, a
impressão inicial é de que se trata simplesmente da narrativa de estórias da vida de um
sertanejo.
194
Embora seja impossível analisar detalhadamente “Buriti”, pois este trabalho se
estenderia demasiadamente, não há como não se referir a tal narrativa quando se aborda
a visão positiva do amor erótico em Guimarães Rosa. Nesta novela, praticamente todos
os aspectos o passíveis de uma segunda interpretação, não sendo ela inteligível num
campo de significação realista. Mesmo assim, sempre restará, na narrativa rosiana, algo
de indefinível, ‘inanalisável’.
O tema do amor é desenvolvido de maneira peculiar. O autor introduz
mensagens codificadas num enredo que rompe padrões. Além disso, o há também a
dicotomia presente no Romantismo: o amor é uno; o erotismo não o nega, mas é
intrínseco a ele. Rosa, ao desenvolver tal tema, trabalha com a interpenetração das
diferentes fases de Eros, e esse aspecto confirma-se em várias de suas narrativas.
Grande sertão: veredas apresenta o tema da seguinte forma: Riobaldo tem três
amores, e um não exclui o outro, sendo, pois, complementares. Diadorim é o amor
caótico, sentido mas renegado, porque ele acredita que a personagem é homem;
Nhorinhá representa o amor carnal e, como é recorrente na obra do autor, a personagem
é uma prostituta; por fim , o degrau mais sublime do amor aparece na figura de Otacília,
o amor espiritual, quase divino, e que contém os outros.
A união de todos os aspectos de Eros, ainda que Riobaldo a realize através de
diferentes seres, confirma-se pela reiterada expressão “mundo misturadoque, sendo
plurissignificativa, pode também referir-se ao amor.
O amor, em Rosa, volta a ser força de afirmação da vida, ganhando amplas
dimensões, como na ficção romântica. que, na narrativa rosiana, aparece integrado,
numa conjunção carne-espírito e, mais especificamente, numa abordagem filofica. O
modo de encarar a vida da personagem Soropita, em “Dão-lalalão”, por exemplo, é
desnudado pela sua maneira de considerar o amor, na figura de Doralda.
Nesta novela o caráter de permanência já aparece conjugado num ser.
Soropita começa a amar Doralda primeiro através do sexo. Continua a amá-la assim até
o tempo da narrativa, mas passa também a amá-la e admira-la pela sua dedicação a ele e
ao lar, pela sua correção de caráter, demonstrada na vida conjugal.
Para que o amor do casal parta, nessa estória, do caráter mais sico de Eros, o
físico, um recurso comum na obra do autor é utilizado: a inserção da figura da
prostituta. Doralda era, antes de se casar com Soropita, uma prostituta.
195
Tanto em Jorge Amado quanto em Guimarães Rosa a presença marcante das
prostitutas. Nas obras destes autores, elas não são reduzidas a objetos ou apenas
comerciantes do corpo – há um papel social e, no caso de Rosa, alegórico ou mítico, que
faz muitas diferença no desenvolvimento do enredo, quando não são alçadas a papéis de
destaque, como Tieta e Tereza Batista, em Jorge Amado e a própria Doralda, em Rosa.
A relação entre Doralda e Soropita parte do amor carnal para o amor complexo,
total, a plenitude amorosa. Tal comunhão caracteriza a trajetória ascensional em “Dão-
lalalão, em que, no entanto, não são dispensados os alicerces do amor carnal. Sobre tal
trajetória, ligada ao tema do amor, discorre Benedito Nunes: O prazer sexual, que
nada tem de obscuro ou de pecaminoso, marca um começo, o início de uma trajetória
(...) o sexo é trânsito, passagem, e as energias primárias do sexo, que lhe dão origem e
que o mantêm, ainda subsistem em seus estágios mais elevados
162
O fato de, na travessia de Soropita do Andrequicé ao Ão, várias vezes serem
feitas referências à natureza, como em comunhão com seus pensamentos e sentimentos
em relação a Doralda, é mais uma prova de que seu amor, inicialmente carnal, é
cósmico, pois transubstancia-se e irradia para tudo ao redor. Os seres ficam em
harmonia, como um todo indivisível, no “mundo misturado”.
Em Soropita convivem a violência e a brutalidade de um ‘valentãoe o lirismo
de um homem apaixonado pela esposa; em Doralda, convivem a respeitabilidade de
uma senhora casada e a experiência nas artes do amor de uma prostituta. Ninguém é
isto ou aquilo, e sim isto e aquilo. Tal comunhão demonstra perfeitamente como na
obra de Guimarães Rosa não se apartam as múltiplas dimensões do amor, mas formam
um todo completo.
A linguagem empregada nesta novela é repleta de uma carga de afetividade,
trazida pelos diminutivos, pela farta adjetivação, pela abreviação, pelos apelidos
carinhosos
Tinha havido, principal, uma rapariga bonita, clara, com os olhos que
riam sozinhos a boca não ria, uma boquinha grande, dadivada de
vermelha o afilado do nariz, um pingo de pontozinho preto por cima
de um dos cantos da boca; essa se requebrava, talo de azedim, boneca
de cinturinha(...) (CB, p. 301)”
162
NUNES, 1969, p. 148
196
Presentes neste aspecto vocabular estão ainda a natureza e os animais (as borboletas
que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se no roxoxol de poente ou oriente
o deslim de um riacho.” (CB, p. 289)). O papel da natureza é, aliás, reiterado em todas
as obras do autor.
É possível perceber na narrativa de “Dão –lalalão” uma alusão intertextual,
sinalizada pelo próprio Guimarães Rosa na correspondência com seu tradutor
italiano
163
, com o Cântico dos Cânticos, de Salomão. Verdadeiro poema de amor, o
texto bíblico conjuga o amor erótico ao espiritual, como ocorre na obra rosiana.
No trecho a que chamam A pastora na vinha”, certa referência ao caráter
errante da mulher, como na prostituição de Doralda, na novela rosiana, assim como há a
intenção de fugir desta vida para seguir um só amado: Dize-me, ó tu, que meu coração
ama,/ onde apascentas o teu rebanho,/ onde o levas a repousar ao meio-dia,/ para que
eu não ande vagueando/ junto aos rebanhos dos teus companheiros
164
.
Assim como o interlocutor da mulher no texto bíblico, Soropita também dirigia
rebanhos, era boiadeiro, antes de se casar com Doralda: “Havia mais de três anos
Soropita deixara a lida de boiadeiro, e se casara com Doralda”. (CB, p. 296)
A referência ao casamento é feita, no “Cântico dos cânticos”, da seguinte forma:
Ele introduziu-me num celeiro
165
/ e o estandarte, que levanta sobre mim, é o amor.”
166
A separação temporária de Soropita e Doralda, em sua viagem ao Andrequicé,
(“Separaçãozinha breve, uma ou outra, meu bem, é a regra de primor(...) ” (CB, p. 290)
também está subentendida em Salomão: Volta, ó meu amado,/ como a gazela, ou o
cervozinho sobre os montes escarpados./ Durante as noites, no meu leito, busquei
aquele que meu coração ama; procurei-o, sem encontrá-lo.”
167
Quanto ao ciúme de Soropita, que imagina cenas de Doralda com Dalberto, com
o negro Sabará, seu ex-amante e com o negro Iládio, há um trecho figurado que
corresponde ao mesmo tema, no texto bíblico a que nos referimos: Apanhai-nos as
163
Rosa, s/d: p. 50.
164
Cântico dos Cânticos, 1,7. – Todas as referências ao Cântico dos Cânticos foram retiradas da versão
da Bíblia Sagrada constante na Bibliografia Geral.
165
Num celeiro. Outra trad.: “Numa casa onde se bebe vinho em sinal do amor”.
166
Cântico dos Cânticos, 2,4.
167
Cântico dos Cânticos, 2,17.
197
raposas/ essas pequenas raposas/que devastam nossas vinhas,/ pois nossas vinhas estão
em flor.”
168
A viagem de Soropita e sua aproximação do Ão, trazendo presentes cheirosos
para Doralda, acompanhado de Dalberto e sua comitiva de capangas,tem também uma
correspondência no “Cântico dos cânticos”:
Que é aquilo que sobe do deserto
como colunas de fumaça
exalando perfume de mirra e de incenso,
e de todos os aromas dos mercadores?
É a liteira de Salomão,
Escoltada por sessenta guerreiros,
Sessenta valentes de Israel;
Todos hábeis manejadores de espada,
E exercitados no combate;
Cada um deles leva a espada ao lado
Por causa dos terrores noturnos.
169
O trecho de Salomão que intitula-se “os encantos da esposa” é tão idílico quanto
aquele que Soropita utiliza para a descrão da esposa. O final do trecho bíblico faz
referência aos amigos e à esposa na chegada do dono-da-casa, assim como acontece na
chegada de Soropita a casa, em “Dão-lalalão”:
Entro no meu jardim,
minha irmã, minha esposa,
colho a minha mirra e o meu bálsamo
como o meu favo com meu mel,
e bebo o meu vinho com meu leite.
Amigos, comei, bebei,
Inebriai-vos ó caríssimos.
170
Por fim, ambos os textos estão pontuados por referências eróticas à mulher,
comparáveis em poeticidade. Em “Dão-lalalão” lê-se: Cruzara as pernas, brincava de
curvar os dedos dos pés. Ela mesma olhou seu umbigo, e meneou o corpo, de
divertimento. Ao fogo dos olhos de Soropita, as pontas de seus seios oscilaram” (CB, p.
335)
168
Cântico dos Cânticos, 2,15.
169
Cântico dos Cânticos, 3,6-7-8.
170
Cântico dos Cânticos, 5,1.
198
A curva de teus quadris assemelha-se a um colar,
obra de mãos de artista;
teu umbigo é uma taça redonda,
cheia de vinho perfumado;
teu corpo é um monte de trigo
cercado de lírios;
teus dois seios são como dois filhotes
gêmeos de uma gazela
teu pescoço é uma torre de marfim;
teus olhos são as fontes de Hesebon
junto à porta de Bat-Rabin.
teu nariz é como a torre do Líbano,
que olha para os lados de damasco;
tua cabeça ergue-se sobre ti como o Carmelo;
tua cabeleira é como a púrpura,
e um rei se acha preso aos seus cachos.
171
A narrativa segue um caminho ascensional. Soropita inicia por reafirmar seu
amor por Doralda. Logo depois, apresenta a vida pregressa e preocupante da mulher,
embora ele inicialmente negue tal preocupação, dizendo que tanto ele quanto ela
concordaram em enterrar o passado. Mas a questão da prostituição vira um tema cada
vez mais presente em sua narrativa, aumentando a recorrência a partir do encontro com
Dalberto. Brota a semente da insegurança de que o passado de Doralda venha à tona. A
culminância do movimento ascensional se primeiro com o desnudamento total da
mulher, quando ele a faz se despir e falar sinceramente de sua vida no meretrício,
assunto que antes era tabu entre eles. Depois, com a explosão de violência em que ele
ameaça de morte o negro Iládio, que significava, para Soropita, um símbolo dos homens
que possuíram Doralda, embora nem a conhecesse.
Ainda que tenhamos partido da relação amorosa entre Soropita e a esposa, vale
ressaltar que, em geral, a obra de Rosa tem sempre este aspecto ascensional. A vida se
compraz em desarrumar tudo, para revelar a completude existencial.
171
Cântico dos Cânticos, 7, 1-2-3-4-5
199
5.1 – Apenas comparações
Dão-lalalão” é uma narrativa essencialmente sobre o amor. É o sentimento
alimentado por Doralda em Soropita que norteia toda a narrativa. Os trechos de
discurso indireto livre mostram que todas as ões deste sertanejo têm a mulher como
causa e fim. Trata-se de uma narrativa de puro realismo psicológico.
Ao refletir ao longo da estrada acerca da oposição existente entre o universo
árido do trabalho, presente na luta cotidiana, e o universo doméstico do amor e do
prazer, presente na figura da mulher Doralda, a personagem vai embrenhando-se rumo
ao re-conhecimento de si mesma.
Esta novela é um exemplo indiscutível de que o amor ocupa, na narrativa
rosiana, um papel central e positivo, aproximando-a da visão romântica. Em
contrapartida, um abismo entre o enfoque de tal sentimento em Rosa e a
dessacralização machadiana deste, a animalização naturalista, ou ainda o pessimismo
antológico de Graciliano Ramos.
Doralda é posta por Soropita em um patamar superior aos dos outros seres e a
ele mesmo, que praticamente se coloca numa posão de adoração. O próprio nome da
personagem (quando já casada) remete a este aspecto semântico: Doralda aproxima-se
de Adorada. No entanto, seu amor não é apenas espiritual; tampouco Doralda, ainda
que afastada da prostituição, devota-lhe um amor casto. O amor entre ambos é
plenamente realizado, num Eros combinado que integra os aspectos espiritual e sico.
Nisso uma oposição básica ao Romantismo, que centraliza seu enfoque apenas no
aspecto espiritual.
O par Soropita e Doralda remete como contraste a Lúcia e Paulo, de Lucíola. O
ponto central, decisivo deste contraste é que não , em Guimarães Rosa, a oposição
entre o amor sico e espiritual, como nos românticos. Em ambas as narrativas a mulher
amada tem uma história de prostituição que representa um entrave ao relacionamento
perfeito e proporciona a complicação da narrativa.
Como a literatura de Guimarães Rosa prima pela afirmação da vida, e neste caso
o amor incondicional a representa, Soropita casou-se com Doralda na igreja e no
cartório, crendo em sua restituição à vida de mulher honrada.
200
Paulo, no entanto, nunca assume de fato Lúcia: não se casa com ela, não a
assume publicamente e, mesmo que não seja sua a decisão, nunca mais realiza a
conjunção carnal após afastá-la do ambiente em que se prostituía.
Isolar a mulher é, aliás, uma atitude comum a estes que, de uma forma ou de
outra, se unem a ex-prostitutas. Soropita chega a considerar a hipótese de se afastar
ainda mais do convívio social, trocando suas terras pelas do Seo Zomo, num lugar
afastado, chamado Campo Frio:
Jõe Aguial, Seo Zosímo, Campo Frio. Por Doralda, não, pois ela
mesma estava em acordo que eles mudassem para lá, para aquele
mundo-longe do Goiás, nem ela perguntava bem por que razões
principais ele preferia negociar aquela barganha de terras. – “Nunca vi o
céu de lá, o chão de lá... Com você, Bem, eu quero ir, eu vou. Pois
vamos...” (CB, p. 338)
Lúcia também passa a levar uma vida frugal, numa afastada chácara em Santa
Teresa, afastada dos bailes e do glamour da Corte. Ambas também têm seus nomes
modificados, como símbolo de uma nova vida. Lúcia volta a usar seu nome de batismo,
de antes da prostituição: Maria da Glória. Doralda, quando no meretrício, era
chamada de Sucena, quando o apelidada de “garanhã” ou Dãdã”.
Paulo martiriza Lúcia, chega a abandoná-la, faz-lhe várias acusações injustas;
em contrapartida, Soropita planeja matar qualquer um que descubra o passado
desonrado de Doralda, mas afasta qualquer possibilidade de magoar ou causar dor à
mulher.
O amor em Rosa é gratificante, misto de alegria espiritual e erotismo. Embora
as bases filoficas deste autor divirjam das de Jorge Amado, os dois chegam a um
ponto em comum: a alegria, constituída dia-a-dia, e não gratuita; a alegria como traço
ético de afirmação, como decisão ética moral do indivíduo. Tais autores abordam temas
concordantes por diferentes vias.
a visão romântica, presente em Lucíola traz um erotismo marcado pela
conspurcação, imbuído da visão religiosa, trágica. o há um aspecto positivo de
encontro com a vida no sexo, envolto sempre na degradação. As personagens, neste
caso, têm uma relação erótica culpabilizada. Esta última análise comparativa é bastante
elucidatória, pois tais obras apresentam uma relação inicial semelhante, com um
201
desenvolvimento diverso, a partir do comportamento também divergente das
personagens.
5.2 . Amor e erotismo em “A estória de Lélio e Lina”
Guimarães Rosa, em seu universo ficcional, criou muitas vezes narrativas
passíveis de serem interpretadas de formas diversas, como um poliedro de mil faces. Na
obra Corpo de Baile é assim: há novelas perfeitamente inteligíveis num campo de
significação realista, mas num campo simbólico, é possível identificar um segundo
significado riquíssimo. O primeiro pode parecer suficiente a um leitor ingênuo, mas o
segundo com certeza apresenta-se muito mais fascinante.
O conceito de erotismo, amor e sexualidade, encontrado na obra A dupla chama:
amor e erotismo, de Octávio Paz, serve perfeitamente a este estudo. Ele considera que:
sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenômeno,
manifestações do que chamamos vida. O mais antigo dos três, o mais
amplo e sico, é o sexo. É a fonte primordial. O erotismo e o amor
são formas derivadas do instinto sexual: cristalizações, sublimações,
perversões e condensações que transformam a sexualidade e a tornam,
muitas vezes, incognoscível.
172
E filia sua concepção de amor à de Platão, que bem nos serve de guia neste
ponto de nosso estudo: Devemos a Platão a idéia do erotismo como um impulso vital
que ascende, degrau por degrau, até a contemplação do bem supremo
173
.
O amor na novela A estória de Lélio e Lina pode ser interpretado de uma
maneira geral como a ânsia metafísica de totalidade, no caso, a busca de Lélio, o
protagonista, por essa totalidade.
Esta busca, seja através do amor ou não, já fora anunciada na epígrafe geral da
obra Corpo de baile, no conteúdo do folclórico “Côco de festa”.
172
PAZ, 1999, p. 15.
202
Da mandioca quero a massa e o beijú,
Do mundéu quero a paca e o tatu;
da mulher quero o sapato, quero o pé!
quero a paca, quero o tatu, quero o mundé...
Eu, do pai, quero a mãe, quero a filha:
também quero casar na família.
Quero o galo, quero a galinha do terreiro,
quero o menino da capanga do dinheiro.
Quero o boi, quero o chifre, quero o guampo;
Do cumbuco do balaio quero o tampo.
Quero a pimenta, quero o caldo, quero o molho!
eu do guampo quero o chifre, quero o boi.
Qu’ é dele, o doido, qu’ é dele, o maluco?
Eu quero o tampo do balaio do cumbuco... (CB, p. 5)
O que poderia parecer uma ingênua música folclórica apresenta-se como um
texto eivado de significados que revela relação intertextual com a maioria dos contos e
novelas da obra. Mostra a ânsia de posse da totalidade, do absoluto; o eu- rico quer
tudo: o conteúdo e a própria caixa (até a tampa), seja o que for (“balaio ou cumbuco”).
Tal interpretação foi afirmada pelo próprio Guimarães Rosa na correspondência com
seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri.
174
A estória de Lélio e Lina” é a narrativa da busca de Lélio pela completude.
Em princípio, quando Lélio chegou à fazenda do Pinhém, o que buscava era
uma ‘divisão’ das coisas. Tencionava fugir do todo rotineiro de antes:
Antes, nos outros lugares onde morara, tudo acontecia já emendado e
envelhecido, igual se as coisas saíssem umas das outras por obrigação
sorrateira – os parentes, os conhecidos, até os namoros, os divertimen-
tos, as amizades, como se o atual nunca pudesse ter uma separação cer-
ta do já passado; e agora ele via que era dessa quebra que a gente preci-
sava às vezes, feito um riachinho num ribeirão ou rio precisa de fazer
barra. (CB, p. 157)
Pensando desta forma, lio faz do amor uma das partes do seu desejo. não
percebe que através desta divisão, encontra-se sempre insatisfeito, e inicia uma busca
totalmente contrária àquela a que se propôs.
A personagem passa a diferenciar o amor carnal (descido no comum da vida”,
querendo outras mulheres, de carinhos fortes(CB, p. 161)) do amor espiritual (Sinhá
173
PAZ, p. 24.
203
Linda), mas precisa dos dois para satisfazê-lo. Não se trata de uma simples dicotomia,
que realmente diferentes faces do amor, mas lio tem para elas sempre objetos
diferentes, e é como se buscasse todas essas faces num objeto. Daí vem a
insatisfação com cada uma das mulheres com que se envolve, até chegar a Rosalina.
Num primeiro aspecto, aparece a mulher vista de forma pura, angelical, quase
santificada (“adorando como a uma santa”(CB, p. 175)), numa idealização próxima ao
do amor trovadoresco, em que o homem serve à amada inacessível. Neste caso ,ele
deixa claro que a interdição é, principalmente, a desigualdade social. Como nas
cantigas medievais, Lélio em sua narrativa diversos nomes à amada, como Sinhá
Linda e Mocinha; mostra subserviência, respeito, vassalagem, servindo à sua dama
(admira seus pés, e traz doce de buriti, que ela repudia e desdenha).
Mas também este amor acaba por o satisfazer Lélio, já que logo depois da
oração’ em que compara Sinhá Linda a uma santa, vem a cobiça carnal, representada
por Jiní (CB, p.175). Eis aí uma das tentativas de completude em duas mulheres
diferentes.
Quem sinaliza a incompletude do amor de Sinhá Linda para Lélio, é Rosalina,
numa das vezes em que tenta mostrar-lhe que é necessário que haja unificação dos
diferentes aspectos do amor:
‘Modo outro, meu Mocinho, eu vejo que isso é um madras-
tio que voarranjou para si, nessa Mocinha de fantasma...’
Lélio não respondeu. E ela foi dizendo: ‘Do que estou
sabendo, por trás de você, pode ser que essa moça nem seja boa,
nem saúde verdadeira de mulher ela não demonstra ter. Escuta:
mulher que não é fêmea nos fogos do corpo, essa é que não
floresce de alma nos olhos, e é seca no coração... Tira isso. Te
esconde do à-vez da tetéia coitadinha, que ela nunca vai saber o
que a vida é. Pede a você mesmo para ir se esquecendo dela
aos poucos, meu Mocinho... (CB, p. 200)
Deduz-se que esta falta de sexualidade sinalizada por Lina em Sinhá Linda é
representada pela recusa ao doce de buriti, que, como veremos, no tocante à simbologia,
representa o desejo sexual masculino, sendo o buriti, na maioria das novelas e contos de
Corpo de Baile, símbolo de virilidade ( tal fato é mais claramente exposto na última
novela da obra, “Buriti”).
174
ROSA, s/d: p. 74
204
Como este amor trovadoresco de Lélio fica no nível do sonho, ele representa
uma fuga, o que também é traduzido por Rosalina: porque ela está tão fora de
alcances, tão impossível, que você tem licença de pensar nela sem a necessidade de
pensar logo também no que você é e não é, no que você queria ser...”(CB, p. 16)
O protagonista é aos poucos levado a refletir sobre sua própria identidade, a
crescer, e a direcionadora destas transformações é Rosalina, com seus comentários
sobre o amor. O amor é o caminho através do qual Lélio vai pouco a pouco
conquistando a sua maturidade. Essa é uma das possibilidades de leitura do
relacionamento enfocado, pois as várias experiências doamor constituem um caminho
através do qual Lélio vai aos poucos descobrindo e conquistando a plenitude do amor,
que só alcançano final, com D. Rosalina.
Opostas e complementares a este lirismo representado pelo amor à Sinhá Linda,
vêm a violência e a brutalidade do amor carnal, provocadas pela mulata Jiní.
Quando travou conhecimento com Jiní, vários vaqueiros já haviam comentado
sobre ela, e seu primeiro olhar fora malicioso. Linda, cobiçada e sensual, todos a
‘viam’ com o sexo; olhavam olhos, pernas, ‘as partes’. Toda a apresentação já indicia a
metade oposta à Sinhá Linda, e durante algum tempo lio vai crer que Jiní é seu
‘todo’.
As descrições dos encontros, de fato, misturavam sensações sinestésicas, todas
muito sensuais:
Nem ele pôde abrir nem ouvir palavra nenhuma, ela se abraçou,
se agarrou com ele, era um corpo quente, cobrejante, e uma bo-
ca cheirosa, beiços que se mexiam mole molhados, que beijan-
do. Ali mesmo, se conheceram em carne, souberam-se. E dali
foram para a casa, apertados sempre, esbarrando a cada passo
para o chupo de um beijo, e se pegando com as mãos,
retremiam, respiravam com barulho, não conversavam. (CB, p.
202)
Mas toda a empolgação de Lélio, rapidamente se lhe afigura estéril quanto ao
caminho de completude que, inconscientemente, busca. Independente de toda a culpa
que sentia em relação ao marido de Jiní, mas pela própria relação que travou com a
mulata, já se sentia insatisfeito. O amor unicamente sexual também não o satisfazia; era
preciso que houvesse os dois pólos. Erotismo e amor são diferentes da mera sexualidade
205
animal. Embora a sexualidade seja o ponto de partida, se for encarada como o ponto de
chegada, fim em si mesma, é estanque. A consciência da incompletude vem também
numa linguagem crua: Não via o mingo amor, não sentia que ele mesmo fosse para
ela uma pessoa, mas uma coisa apreciada no momento, um de pau de que ela
carecesse.”(CB, p. 203)
Jiní possuía, então, o que Octávio Paz denomina a chama primordial
175
, que é
a sexualidade, mas o despertou em Lélio o amor, que seria uma sensação mais
requintada, derivada desta primeira e do erotismo. A sexualidade apartada de seus
derivados está próxima do conceito pejorativo de sexo dado por Paz: o sexo é
subversivo: ignora classes e hierarquias, as artes e as ciências, o dia e a noite; dorme e
acorda para fornicar e voltar a dormir
176
Este aspecto é corroborado pelo fato de
Jiní relacionar-se com outros homens, além do marido e de Lélio, concomitantemente.
Seu desejo não é erótico, mas apenas sexual; ela vive num eterno cio.
Lélio, em sua ‘falta’ inconsciente, procura sempre a casa de Lina para sentir-se
completo, trazendo a satisfação carnal para completá-la com o que não encontra em Jiní:
a conjunção espiritual. Faz isso também quando pensa em Sinhá Linda, ou quando vem
da casa das ‘tias’. Essa aspiração à completude é o início do reconhecimento de Lina
como a sua metade, o início do processo de ascensão.
Aliás, ‘as tias’ também representam uma de suas tentativas de preencher o vazio
através da sensualidade. Só que Lélio não se envolve com elas tanto como com Jiní.
Neste dois tipos de amor sensual que se apresentam na narrativa há uma
diferença no aspecto como essas mulheres tratam as relações. As tias’ exercem o
princípio do amor-alegria, o degradado, tentando satisfazer a todos, como numa
demonstração de amor ao próximo. Já Jiní é uma das poucas personagens rosianas de
erotismo degradado, narcisista, fechado em si próprio (repare que a certa altura Lélio
reclama que ela nem ao menos fala com seu parceiro). Nela, a sexualidade é vista de
forma mesquinha, tanto é que seu desfecho é com um rico fazendeiro, com quem vai
embora, superior e soberba. Não se trata, portanto, do amor desinteressado das ‘tias’.
A relação com Jiní é, portanto, mais uma parte da ‘passagem’ de lio, quando
ele descobre que sexo é vida, beleza, cor, mas o é tudo.
175
PAZ, 1999, p. 7
176
PAZ, 1999, p. 17
206
Conclui-se que um processo progressivo de crescimento, já que ao resolver
deixar a fazenda do Pinhém, Lélio descobre que sua busca acabou o sendo pela
divisão (as mulheres para se ver e casar, e as mulheres no simples, para as
necessidades”(CB, p. 161)), como foi citado no início deste pico, mas sim o oposto.
O Todo original é sua verdadeira meta, e quem vai paulatinamente auxiliando neste
caminho de reconhecimento é Lina.
O ponto máximo, em que Lélio admite a real necessidade, é quando atinge a
maturidade, como se aquele período no Pinhém significasse exatamente uma passagem,
travessia: Então ele ia; ia. Tinha vivido, extrato, no Pinhém
demais, em tempo tão
curto. Ali não cabia. Aquele lugar o repartia em muitos, parava como uma
encruzilhada.”(CB, p. 236)
A modificação radical no interior de lio é mostrada exatamente neste trecho,
que diz exatamente o contrário do que expressara na sua chegada ao Pinhém. Após
atingir a ‘quebra’ que desejava, ele toma consciência de que ela não é satisfatória.
O final da novela é significativo quanto ao desejo de totalidade: Ele a ela:
“É nada?” E ela a ele:
É tudo. E vamos por aí, com chuva e sol, Meu-Mocinho,
como se deve...” (CB, p. 238).
A união dos opostos, mostrada no trecho acima, reflete bem esta intenção,
sendo mais significativa ainda por estar numa das últimas falas do casal Lélio e Lina.
Estes opostos não estão apenas no campo semântico chuva/sol e nada/tudo; estão
também nas próprias personagens, se levarmos em consideração que a todo momento
chamava-se a atenção para a disparidade entre as idades dos dois, seja no chamamento
de Rosalina (“meu Mocinho”), seja na implicância do filho de Rosalina, Alípio, com o
relacionamento dos dois. A completude se dá na união dos opostos complementares.
O papel central de Rosalina A estória de Lélio e Lina está no fato de que é ela
quem desencadeia o processo de descobrimento protagonizado por lio. Ela
representa para Lélio algo próximo do que Dito representa para Miguilim em “Campo
Geral”: são os desencadeadores das percepções iniciais, a sabedoria que faz com que
Lélio e Miguilim, respectivamente, tomem contato consigo próprios e busquem ou
encontrem a tal totalidade.
Lina representa bem a idéia de amor-alegria. Tem sempre um ensinamento,
compreende tudo sem ódios ou mágoas e está sempre com um sorriso estampado no
207
rosto. O carinho com que trata seu Mocinho nunca é ‘arranhado’. Os conceitos que
profere sobre o amor dão ao sentimento um caráter filofico e poético.
Em Campo Gera,l Miguilim passa a ver o mundo com novos olhos a partir da
morte de Dito. Do mesmo modo, em A estória de Lélio e Lina, desde que trava
conhecimento com D. Rosalina, lio começa a ver o mundo com olhos novos. Esta
visão inicial faz com que Lélio veja Lina como uma moça e experimente uma sensação
de imobilidade neste encontro (“Lélio não se sentia”) :
E, vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de
claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se curvava, por
pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha. (..) E – só a voz –
baixinho no natural, como se estivesse conversando sozinha,
num simples de delicadeza: - “...goiabeira, lenha boa: queima
mesmo verde, mal cortada da árvore...”- mas voz diferente de
mil, salteando com uma força de sossego. Era um estado
sem surpresa, sem repente – durou como um rio vai passando
(...) Lélio não se sentia, achou que estava ouvindo ainda um
segredo (...) e mais ele mesmo nunca ia saber, nem recordar
ao vivo exato aquele vazio de momento.” (CB, p. 188)
Neste trecho, a ‘visão de primeira vez’, extática, está diretamente ligada à
descoberta do amor. Observe-se que Lina é vista por Lélio como diferente de todas as
outras pessoas (“voz diferente de mil”), e expressão semelhante pode ser encontrada no
corpo da narrativa: (...) Falava de velha para moço, quase brincalhã. Abria os braços,
mas sem estouvamento nenhum. Era diversa de todas as outras pessoas.” (CB, p. 188)
Os trechos mostram que Lélio encontrou o que não encontrara em nenhuma
outra pessoa.
Há, a serviço da amenização do interdito da diferença da idade, o fato de que
Rosalina mostra entender de homens, seja quando fala do primeiro marido, Izaque (p.
192), ou ainda quando fala dos homens com quem “dançou” na juventude:
Você devia de ter me conhecido era há uns quarenta anos, dan-
çar quadrilha comigo... Então, você havia de me chamar de-
lia: como o Major João Pedro, o Doutor Guilherme, o N
Eustáquio pai de seo Senclér, o André Faleiros, pai de meu filho
Alípio, o Anselmão, o João Toá, o Bóque... (CB, p. 191)
O erotismo nesta novela aparece várias vezes através de metáforas, sendo apenas
descrito de modo mais direto, quando diz respeito ao relacionamento entre lio e Jiní.
208
Isso se explica pelo fato de Jiní desenvolver apenas uma sexualidade mais próxima à
animal, o que a distancia da forma do erotismo, segundo o conceito de Octávio Paz: O
erotismo não é mera sexualidade animal é cerimônia, representação. O erotismo é
sexualidade transfigurada: metáfora.”
177
Alguns símbolos anunciam o amor de Lélio e Lina, como o papagaio
(anunciando que Lina quer amor), o amor ao entardecer (p.198), o doce de mangabas
de-vez (que será abordado mais à frente) e o vocativo Meu Mocinho para se referir a
Lélio.
A imagem de “um gavião gritando por outro” (CB, p.188) é apresentada
exatamente quando Lélio, não satisfeito com as ‘tias’, sai e encontra pela primeira vez
Dona Rosalina. A busca do gavião é a mesma de lio, que encontrará sua metade em
Rosalina. Tem o deslumbre de encontrar “o outro” ao vê-la de costas. Mas, como tudo
em sua vida, o foi capaz de perceber o que ela representa. Ele se deixa enganar pela
aparência (velhice) e não ouve sua intuição, que leva à essência de Rosalina: juventude,
mocidade. Destas últimas características, é que vem o simbolismo da cor verde,
sempre presente nas roupas de Rosalina ( o lenço verde na cabeça quando encontra
Lélio pela primeira vez, a roupa e o chapéu verdes quando deixa o Pinhém,
acompanhando-o). Esta cor significa verdor, início, esperança e juventude (“Ela ia no
seu cavalo de silhão, o Mariposo, capaz de todos os passos, e estava com um vestido
verde-escuro, chapéu do mesmo pano veludo, com uma grande pena de ssaro presa
na fivela(...)”- (CB, p. 229)
Ainda sobre o gavião, podemos encontrar no Dicionário de Símbolos algo
significativo:
Em nossa linguagem, o gavião é símbolo de usura, de rapacidade,
assim como a maioria das aves da mesma espécie, munidas de gar-
ras aduncas. E pelo fato de a fêmea ser mais forte a mais hábil do
que o macho, o gavião simboliza também (na França) o casal em
que a mulher é quem domina (no Brasil: indivíduo esperto, vivo,
fino; propenso a conquistas amorosas). Ave caçadora e agressiva,
ele também designa com freqüência o pênis.
Na China antiga, foi um gavião que, associado à tartaruga, segun-
do o Cho-Ching, ensinou a Ruen a construção dos diques que de-
veriam impedir o transbordamento das águas do dilúvio.
178
177
PAZ, 1999, p. 12.
178
CHEVALIER & GHEERBRANT, 1996, p. 792
209
Sob este aspecto, pode-se ressaltar também a simbologia do gavião na França,
sendo Lina de uma personalidade mais forte que Lélio, que depende desta visão para
‘traduzir-lhe’ o mundo.
São também utilizadas simbologias para representar o amor sexual feminino e o
masculino. O doce de buriti (a que nos referimos) representa o amor sexual
masculino, sendo o buriti uma árvore representativa da virilidade. Aparece na recusa de
Sinhá Linda a lio, o que se torna mais significativo quando Rosalina, para abrir os
olhos deste, esclarece que a Mocinha de Paracatú não era “Fêmea dos fogos do corpo”.
A recusa do doce está então ligada à recusa sexual.
Num segundo momento aparece o doce de mangaba, como representativo do
amor sexual feminino. Talvez para não modificar o tom simbólico da narrativa e
agredir o leitor, é assim representado o amor de Lina sendo oferecido a lio. Ela vai
preparando ‘o doce’ lentamente. E a simbologia fica mais evidente ao dizer que é “doce
de mangaba de vez”, ou seja, madura, assim como a própria Rosalina. Ela diz que este
é o melhor, exatamente quando Lélio está enfeitiçado pela sexualidade de Jiní:
A velhinha estava fazendo doce de mangabas: Você vai pro-
var, depois. O doce melhor que tem nesse mundo...”As manga-
bas de-vez, muitas mãos, muitos dias, ferventadas, no tacho de
cobre. Com espinhos de laranjeira e palitos de taquara, ela
continuava a crivar, uma a uma, devagarinho, para as livrar do
visgo borrachento. Lélio olhou, por um momento teve pena de
si mesmo, não cabia naquele sossego”(CB, p. 190)
Livrar as mangabas do seu visgo seria o mesmo, neste caso, que livrar lio
da sexualidade sem frutos de Jiní, do visgo da mulata.
A dificuldade da busca de Lélio por sua ‘metade’, a penosa ascensão, é
simbolizada por uma reiteração da imagem de um morro/serra muito íngremes, em que
nunca se chega ao topo. Essa figura aparece muitas vezes nas canções de Pernambo. É
interessante o fato de Octávio Paz utilizar a mesma metáfora para simbolizar a visão
platônica do amor: À medida que avançamos (no discurso de Diotima), descobrimos
210
novos aspectos do amor, como alguém que, ao subir a colina, contempla a cada passo as
mudanças do panorama.
179
Lélio se une a Lina após descobrir que ela forma o seu “Todo”, o fim de sua
busca. Esta leitura estaria de acordo com teses defendidas por Bataille e Octávio Paz,
segundo os quais haveria uma união entre sexualidade, o amor e o sagrado. Segundo
Paz, o erotismo é antes de tudo e sobretudo sede de outridade. E o sobrenatural é a
radical e suprema outridade.”
180
Além disso, a conjunção Lélio-Lina está mais ainda
ligada ao erotismo religioso se é levado em conta o caráter de interdição sexual ditado
pela diferença de idade. Bataille nos diz: No erotismo religioso se inverte
radicalmente o processo sexual: a expropriação dos imensos poderes do sexo em
favor de fins distintos ou contrários à reprodução
181
A renúncia à sexualidade carnal é
algo divino.
A visão religiosa do amor consiste na sua raiz de religar (do lat. RELIGARE),
tornando contínuo o ser. Sendo assim, como nos diz também Bataille, “a plenitude
ansiada não é somente uma característica saliente da sensualidade do homem, mas
também da experiência dos místicos.
182
Lélio e Lina encontram-se fora do plano humano, das impossibilidades
concretas. A busca final de um pouso para os dois sugere uma integração harmoniosa,
que significa um coroamento, a completude, a consagração do amor.
Rosalina não é para ser lida em termos biológicos, psicológicos ou sociais. Ela é
a vida, unida em suas duas metades: juventude e maturidade. Integra o sonho: a
sabedoria da velhice e o vigor, o arroubo da mocidade. É uma figura simbólico-tica.
Lélio e Lina precisam ser lidos como um casal mítico e não realista.
179
PAZ, 1999, p. 44
180
PAZ, 1999, p. 20
181
BATAILLE, 1987, p. 9
182
BATAILLE, 1987, p. 224
211
5.3 – O amor erótico em “Buriti
“Buritié uma narrativa que aborda quase que exclusivamente o amor erótico,
sensual. O ponto de partida para que se despertem todas as emoções que já estão
latentes é a chegada de Miguel.
A novela é construída a partir de dicotomias que, aos poucos, vão sendo
resolvidas, até que o final aponta para uma luminosidade. Um exemplo disso é que
Guimarães Rosa leva os encontros de Liodoro e Lalinha ao máximo do jogo erotismo X
repressão. Um outro exemplo está inserido em duas personagens por natureza
dicomicas: Glória, que representa a vida, e Maria Behú, a morte.
O plano da verossimilhança caminha lado a lado com o simbólico: as mulheres
da cozinha, por exemplo, tem sentido se relacionadas a este último, assim como o
Buriti-Grande e o Brejão-do-Umbigo, que metaforizam o sexo masculino e o feminino,
respectivamente.
Nesta obra, o caminho para a luminosidade, para a liberação dos aspectos
reprimidos e repressores é demonstrado em várias relações. Os barulhos que o chefe
Zequiel ouve o dia inteiro cessam, apontando para a sua cura: acaba-se a dicotomia
noite/dia e inicia-se um novo dia; dá-se o encontro de Liodoro e Lalinha e também a
morte de Behú, além de a narrativa apontar para a realização plena de Glória, com a
chegada de Miguel. Este último relacionamento, mais do que todos, esimbuído do
Eros complexo, total, de que vimos falando.
Durante a novela, percebe-se que Eros aqui apresenta-se como uma força difusa
que caminha para a consumação positiva. Assim como o Buriti pertence à floresta, o
sexo pertence à natureza humana e a sua busca é a busca da vida, da alegria, da
completude. A necessidade de iniciar tal busca, aliás, é verbalizada pelo narrador ao
refletorizar Lalinha, antes da chegada de Miguel, quando toda a sexualidade ainda
estava reprimida: “Ali nada se realizava, e era como se o pudesse manar – as pessoas
envelheceriam, malogradas, incompletas, como cravadas borboletas; todo desejo
modorrava em semente, a gente se estragava, sem um principiar; num brejo.(CB, p.
469).
O erotismo, neste narrativa, é, portanto, um ritual do qual participam
personagens, natureza e objetos, como o monjolo, que adquirem sentido simbólico e
212
representam a própria essência da vida. Aquelas que se oem a esta essência, que se
colocam contrárias ao movimento erótico, são anuladas: Maria Behú morre e Dona-
Dona enlouquece.
Sobre a procura da complementaridade nos diz acertadamente José Maurício
Gomes de Almeida:
Tal procura, nem todas conseguem leva-la a termo neste
mundo, talvez porque, como Maria Behú (ou o Dito, de “Campo
Geral”, atendam ao chamado distante de uma antiga verdade”,
escolhidas para os claros encantamentos do sofrer”; mas
mesmo estas não renegam, em momento algum, o valor
incomensurável da vida-busca. Outras, mais felizes Maria da
Glória e Miguel; Lalinha e Liodoro - , ao deixarem-se
conduzir pela força universal de Eros, acabam, depois de muito
errarem, por encontrar as hastes perdidas, completando-se: cabe
ao amor, entendido aqui em seu sentido mais abrangente, o
milagre deste encontro; daí o sentido extremamente afirmativo
que o erotismo recebe na novela, como fonte de um autêntico
ritual da vida. Longe da negação romântica e da extrema
banalidade e degradação a que o reduziu grande parte da cultura
contemporânea, o erotismo se alça em Guimarães Rosa a uma
dignidade quase mística, caminho necessário para a plenitude da
experiência amorosa e parte inseparável de sua realizão.
183
5.4 – A permanência
Em todas as narrativas rosianas que aqui consideramos para desenvolver o tema
do amor há a correlação, ou melhor, a permanência dos opostos: Soropita vive o
paraíso conjugal e o inferno de ‘os outros’ descobrirem o passado de Doralda, além de
ter em sua casa a experiência sexual da prostituta aliada à correção de uma devotada
esposa; a juventude de Lina está contida na sua velhice; Reinaldo, de Grande sertão:
veredas, contém Diadorim, e Riobaldo contém em si só três amores de natureza diversa.
“Buriti”, além de, no final conjugar o amor idílico ao carnal, na relação entre Miguel e
Glória, contém, na própria narrativa, dois aspectos que se interpenetram: um
‘subterrâneo’, que não se verbaliza racionalmente, e outro mais exterior o mundo da
natureza, simlico, e o mundo humano, da realidade visível.
Sendo assim, não a vida, mas também o amor é uma travessia: este, uma
travessia do amor carnal ao cósmico, em que o percurso não se apaga.
213
6 – CONCLUSÃO
Os escritores apresentam as relações sociais de modo que representem sua visão
de mundo e, entre elas, recebem papel de destaque as relações amorosas, por sempre
ocuparem um dos focos principais do imaginário social e, portanto, da atenção do leitor.
Nas obras analisadas, portanto, é em torno de casais que são tecidos os conflitos centrais
– e o amor ou a falta dele – é, invariavelmente, o motivo.
Mesmo em se tratando do mesmo período, da mesma tendência literária, há
maneiras diversas e até contrapostas de apresentar a redução, a exaltação ou até a
anulação do sentimento amoroso na ficção. A personalidade do autor ou as influências
literárias ou sócio-políticas são algumas das razões para tal multiplicidade. Assim, em
função de variadas exigências, o amor sofre tratamentos distintos.
O motivo era tradicional nos românticos, como não o será nos naturalistas ou em
modernistas como Graciliano Ramos. Nesta época, o amor imperava, com uma
exacerbação de demonstrações sentimentais traduzidas em desmaios, suspiros e muito
choro.
O Romantismo é, sem dúvida, a tendência literária onde mais se evidencia o
tema aqui estudado, visto que, no Brasil, os anseios e aspirações de liberdade, o
predonio do mundo interior, a escolha individual, o mundo ideal são sempre
traduzidos pelo amor. É este o alicerce de todos os romances românticos nacionais.
Alencar, comopico romântico, cria em redor do sentimento amoroso uma
atmosfera de drama social, humano e moral, principalmente em Lucíola e em Senhora.
O tema é importantíssimo nos romances urbanos do autor, pois seu mundo narrativo
gira em torno de namoros e casamento, excluindo trabalho, estudos ou potica. Neste
mundo, o amor ajuda a perfazer os desfechos ideais e os conflitos realçam o triunfo
final da manutenção do sistema. Apontou-se que a ficção romântica, embora retrate
com fidelidade muitos aspectos da sociedade, nunca abandonou a idealização do
sentimento amoroso e de seus heróis e heroínas.
Viu-se também que a literatura alencariana, no que diz respeito ao ambiente
social em que se inserem os personagens, foge um pouco à caracterização típica do
estado de alma ou temperamento romântico. Este último procura idealizar a realidade, e
183
ALMEIDA, 2001, p. 32
214
o reproduzi-la, mas os romances urbanos de Alencar, principalmente os que ganham
destaque nesta tese, o retratam com fidelidade, como também criticam costumes
sociais do século XIX.
Os romances românticos apresentam-se num tom freqüentemente declamatório,
melanlico, numa linguagem cheia de metáforas e hipérboles, em que a descrição é um
dos elementos fortes na elaboração dos quadros onde se processam as ações. Quanto à
temática, as obras deste período exprimem o destino do indivíduo rejeitado pela
sociedade, os amores insolúveis e as paixões que só encontram refúgio na morte.
Como algumas dessas obras, a exemplo de Lucíola, exprimem sentimentos e
idéias particulares sobre o homem e a sociedade, nascem narrativas de cunho
marcadamente social e de costumes, e a maneira como o amor se dá, bem como os tipos
de obstáculos que lhe são interpostos auxiliam na formação deste tipo de panorama.
Em Iracema, o amor tem valor de símbolo, visto que representa a atração entre
colonizado e colonizador; em Lucíola e em Senhora, está a serviço do
questionamento de costumes sociais. Os romances do século XIX reproduzem a cultura
que via no matrimônio uma relação comercial, legitimada ou não pelo sentimento
amoroso. Em Alencar as relações são idealizadas, portanto marcadas pelo amor; em
machado de Assis, tais relações não são usualmente permeadas por esse sentimento.
De qualquer maneira, a exposição das “mercadorias humanas” era feita nos
salões de baile e nas casas de família, onde tinham lugar reuniões em que se exibiam os
dotes e a beleza das moças casadoiras, em busca de uniões rentáveis. Matrimônio,
portanto, na prosa literária do século XIX, assim como na sociedade desse tempo, não
era primordialmente uma questão de amor, mas de interesse sócio-econômico.
Alencar reproduz alguns aspectos do sistema social, respeitando sempre os
valores sancionados pela sociedade em relação ao casamento. Prova disto é Lucíola,
que, apesar do amor entre Lúcia e Paulo, não apresenta o matrimônio entre os dois em
seu enredo, devido à impureza da protagonista. É lógico que a forma de vida e de
sociedade é retratada nos romances urbanos. nos indianistas, por exemplo, como
Iracema, não matrimônio, pois embora a “noiva” seja virgem, é uma selvagem, não
cristã. Mas o branco cristão também não a conspurca, só ocorrendo o ato sexual porque
ela lhe uma bebida alucinógena. Caso a violentasse, Alencar estaria pondo a perder
toda a idealização de colonização pacífica a que se propõe o Romantismo.
215
A questão em Iracema não é, portanto, a do matrimônio, mas a da miscigenação
que deu origem ao povo brasileiro. Nessa obra, o amor funciona como parte da
expressão do nacionalismo literário romântico no Brasil, aproximando culturas e, numa
leitura metonímica, o consórcio entre o povo europeu e a terra brasilis.
Enquanto Alencar sempre associa os interesses econômicos ao casamento,
Machado de Assis denuncia, através de suas personagens que o trama romântica
que persista quando o que esem jogo são os interesses econômicos. Se por um lado
Alencar “salva” a instituição do casamento, Machado denuncia a sua hipocrisia.
É interessante perceber como as visões do amor podem ser tão contrastantes,
como em Machado e em Aluísio Azevedo, mesmo estando as obras inseridas no mesmo
contexto histórico. O capítulo que enfoca o amor na época realista é um dos que
comprova bem claramente a tese aqui defendida, na medida em que a vertente
naturalista adota o mecanicismo determinista, e Machado de Assis, a tendência
psicologizante, para efetuarem a desmitificação do amor romântico. Machado rompeu
com as limitações da escola dominante, em sua aguda percepção da hipocrisia social e
dos interesses escusos que moviam quaisquer ‘sentimentos’. O amor é visto por ele com
ceticismo.
A partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis passa a seguir
algumas tendências que nos interessam o sentimentalismo é esvaziado, assim como o
falso moralismo burguês e as palavras excessivamente melífluas. O amor surge
contaminado na base pelo egoísmo e é corroído pelo tempo. Derruba-se a idéia de
unidade, de constância do ser humano e também a de que o amor predomina sobre todas
as outras paixões, conforme procuramos evidenciar em nossas análises. Surgem
homens e mulheres de fato, e não anjos. Não há personagens exclusivamente boas ou
más, assim como parece não haver o amor eterno e inatingível.
O corrosivo Brás desnuda o jogo dos sentimentos e dos interesses, deixando
claro que se alternam sem a necessária sobreposição dos primeiros, como efeito
moralizador. Tudo eivado de ironia para conferir uma frieza particular e não trair as
intenções.
As relações amorosas retratadas na obra de Machado o mais um motivo para
apreciar o indivíduo em face de si próprio e da sociedade em que se insere. Suas
216
personagens não se reduzem a um reflexo mecânico do meio, como as naturalistas, e o
temperamento as faz reagir às situações a que são expostas.
O cinismo com que desvenda as relações amorosas faz com que a narrativa
machadiana contenha em si própria a crítica ao que é narrado. O leitor apreende que se
trata de uma visão cruel, mordaz, desmascaradora, construída como instrumento de
questionamento dos moldes estabelecidos pela sociedade burguesa do século XIX.
A visão naturalista restrita do sentimento amoroso faz com que as obras desse
estilo sejam as de análise mais reduzida neste trabalho. O condicionamento do amor
aos impulsos primitivos dos instintos limita também o desenvolvimento do estudo
acerca dos romances filiados a tal estética.
Ainda assim, as tendências do Naturalismo foram além de sua época e influíram
na formação de alguns romances modernistas, como comprova Graciliano Ramos em
Angústia. O corpo tem presença marcante e predominante na literatura naturalista e
nesta obra, embora estejam longe de se identificar.
Mais distantes ainda, entre si, em relação ao enfoque do sentimento amoroso,
estão alguns romances de Graciliano Ramos e de Jorge Amado.
Graciliano, a partir de bases filosóficas um pouco diferentes, segue uma
tendência comum ao pessimismo machadiano. O seu enfoque sobre o amor é
desencantado, sombrio, amargo.
A opção do autor em Angústia e em São Bernardo é a do esvaziamento do amor,
ou mesmo a de enfocá-lo como um tema secundário para a comprovação de uma tese
maior, principal. No caso de São Bernardo, por exemplo, a da reificação do homem
operada pelo capitalismo. Tais obras trazem , através de novas necessidades e
interesses, a marca das mutilações, das repressões e da inautenticidade que acompanha o
desenvolvimento dos homens na sociedade de classes.
O sofrimento aparece ligado ao sentimento amoroso tanto na literatura
romântica, como também nas obras de Graciliano Ramos enfocadas nesta tese.
Angústia herdou dos realistas o aprofundamento da análise psicológica e, do
Naturalismo, os aspectos sexuais da conduta. Nos romances do autor, predomina, no
enfoque do amor e, permeando o enredo como um todo, uma tendência psicológica e
existencial inegável.
217
em obras contemporâneas a estas, Jorge Amado prima pela preeminência do
sentimento amoroso como superação, seja da morte ou do sofrimento (Mar Morto,
Tereza Batista), ou como afirmação da alegria (Gabriela Cravo e Canela). Embora
predomine nos ficcionistas da geração de 30 um enfoque de tipo neo-realista, o
tratamento do amor nas narrativas de Jorge Amado manifesta clara tendência neo-
romântica. Conclui-se, a partir da análise, que o autor operou uma renovação da
importância do sentimento amoroso, de maneira bastante fecunda. Fez-se neste
trabalho, inclusive, uma aproximação entre a trajetória da personagem Madame Bovary,
com a Ester, de Terras do sem fim. Comprovou-se que a posição desta no desfecho, no
entanto, difere do realismo flaubertiano, porque Emma Bovary desmorona sozinha,
enquanto Ester e Virgílio correspondem-se no sentimento.
As teorias libertárias de Jorge Amado impregnam o tema do amor, seguindo a
vocação do romance moderno brasileiro de posicionamento crítico em relação às
estruturas sociais tradicionais.
Mesmo que o caráter otimista e resistente das heroínas signifique uma
idealização, isso o representa problema algum, refletindo apenas a faceta romântica
do escritor, trazida à tona. Em Jorge Amado sempre a mistura da realidade social
com o lirismo. Talvez Tereza Batista seja a maior expressão deste amálgama.
Esta análise confirma o fato de que, ao mesmo tempo que retrata a cultura e a
sociedade brasileira, o autor idealiza a sua camada popular, o que torna acertada a
classificação que faz de si próprio como umrealista romântico
184
.
A narrativa romântica desenvolvida em torno da temática amorosa é um
questionamento à imposição de limites à expansão do “eu”, realizada pela sociedade.
Mas nessa busca de afirmação do indivíduo e de sua autenticidade, a técnica romântica
atrai como “comparsa” o leitor.
Se o sentimento amoroso é totalmente idealizado, o realismo permeia todo o
resto do romance romântico na medida em que os autores adotam como motivo da
imaginação criadora o quotidiano e a descrição objetiva da vida e dos costumes sociais.
Percebe-se também a recuperação pela memória de alguma vivência que se
perdeu, através do ato de escrever em personagens marcantes de romances distanciados
184
MOTA, Lourenço Dantas. O personagem da semana. Ano V, número 49. O Estado de São Paulo,
17/5/81.
218
temporalmente, como Lucíola, Dom Casmurro e São Bernardo, e este aspecto foi
bastante importante na análise de tais obras.
No romance de 30, obras como São Bernardo, Angústia e Gabriela retratam um
mundo onde surge a tensão entre a individualidade pessoal e a entidade social, gerando
conflitos que, nas obra de Graciliano evidenciam a impossibilidade de verdadeira
comunicação e comunhão entre os homens, mas em Jorge Amado, apontam para uma
solução luminosa dada pelo alcance da liberdade individual e social completa.
É interessante notar como, por várias vezes, independentemente da época, a
despeito da morte que separa fisicamente os amantes, o amor vence, como a última
palavra, como transcendência, como redenção. É assim em romances paradigmáticos
do Romantismo, como Lucíola e Inocência; em Mar morto, de Jorge Amado; e em
Terras do sem fim, em relação a Ester e Virgílio.
Percebeu-se também, no desenvolvimento do trabalho, ser necessária a inserção
do tema do desejo, como subjacente à temática amorosa.
Jorge Amado e Guimarães Rosa apresentam muitas diferenças entre si, mas
concordam na visão positiva da vida e do erotismo. Neste aspecto, aproximam-se
Gabriela e “Buriti”. Ambos têm na alegria um tema em comum, embora seus
enfoques sejam bastante diversos.
É ressaltado, na análise do amor em Guimarães Rosa, o valor cósmico,
totalizante, de Eros, em todas as narrativas estudadas. Rosa aponta, ainda, para a
natureza positiva da busca erótica, do sexo como início essencial da completude que
se espera como fim da “travessia”.
Na literatura romântica, o amor também aparecia como a única força
redentora capaz de conferir sentido pleno à vida. No entanto, a postura ligada à
tradição cristã restringia o amor de fato ao seu aspecto espiritual, de sentimento
casto, e as exigências da carne poderiam degrada-lo ou maculá-lo, como se pôde
comprovar na análise de Lucíola com bastante clareza, pois que talvez seja o
exemplo mais exacerbado do que ora se afirma. Jorge Amado e Guimarães Rosa
concebem, como se viu, sexo e erotismo como componentes da completude
amorosa, finalidade, talvez, da própria vida.
As aproximações e confrontos realizados no desenvolvimento do trabalho
trazem à luz, de forma eloqüente, os múltiplos enfoques que o sentimento amoroso
219
recebe na narrativa brasileira, conseqüência das mutações culturais, bem como da
postura dos diferentes escritores diante do mundo, da vida. Sendo assim, tal sentimento
torna-se uma importante matriz temática e o seu tratamento ajuda a mapear tendências
literárias ou a caracterizar autores.
220
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233
8 - APÊNDICE
I – Resumo
II – Abstract
234
RESUMO
GONÇALVES, Janaina F. Rebello de M. A
multiplicidade de enfoques sobre o amor na
narrativa brasileira . Rio de Janeiro: UFRJ Fac.
De Letras, 2006. 227 fl. Tese de Doutorado em
Literatura Brasileira.
Este estudo procura analisar o sentimento amoroso como representação de
posturas literárias diversas dentro da prosa literária brasileira. Para tanto, é feita a
observação e descrição do sentimento amoroso em algumas obras literárias, ao mesmo
tempo em que se tece um estudo comparativo entre esses enfoques diversos. O
‘corpus’ foi escolhido tomando-se como ponto de referência autores e obras que
desenvolveram de maneira mais original ou mais literariamente perfeita o tema do amor
em suas épocas.
Num primeiro momento, figuram as obras de Jode Alencar e de Taunay,
que, durante o Romantismo predomina o mundo interior, a escolha individual e a visão
de mundo ideal, sempre traduzidos pelo amor. Ele é, portanto, o alicerce de todos os
romances românticos.
Logo depois, aparece no estudo a visão naturalista, que restringe o sentimento
amoroso, direcionando-o apenas para o aspecto sexual e instintivo. Para melhor
observar seus aspectos utiliza-se como exemplo literário O cortiço. Ainda no mesmo
capítulo, analisa-se a produção de Machado de Assis, com destaque para Memórias
póstumas de Brás Cubas. A visão cética deste autor realiza um esvaziamento do
sentimento amoroso, derrubando-se a idéia de unidade, de constância do ser humano e
também de que o amor predomina sobre todas as outras paixões.
No Modernismo, mais especificamente no romance de 30, optou-se por abordar
a literatura de Graciliano Ramos e de Jorge Amado.
A opção de Graciliano em Angústia e em São Bernardo, por vias diferentes num
e noutro, também é a do esvaziamento do amor: um realiza o processo questionando
aspectos sociais; no outro predomina a tendência psicológica e existencial.
235
as teorias libertárias de Jorge Amado impregnam o tema do amor e o
sentimento, em sua obra, surge revestido de um caráter otimista, muito próximo à
idealizada visão romântica.
Por último, e ainda imbuída de uma alegria incomensurável, fazendo do amor
caminho para a plenitude, vem a obra de Guimarães Rosa, que fecha o ciclo de análises
operando a intersecção de vários aspectos do tema: estão presentes na poética rosiana do
amor erótico, ao mais sublime, espiritual, que aproxima o homem da integração
cósmica.
236
ABSTRACT
This work tries to analyze the loving feeling as a presentation of various literary
attitudes in Brazilian literary of various literary attitudes in Brazilian literary prose,
through the examinations and the description of loving feeling in some literary works
and also through a comparative study among those different points of view. The
corpus” was chosen taking as a reference authors and works that developed love theme
in different periods using originality and literary perfection.
Firstly we stand out Jose de Alencar’s and Taunay’s literary works as we can
say that during the Romantism Period, the inner nature, the individual choice and the
ideal world vision were manifested by love. Love is the foundation of all romantic
novels.
After that, we point the naturalist vision that limits loving feeling leading it only
to sexual and spontaneous point of view. Those aspects are analyzed in the novel O
cortiço and we also analyze Machado de Assis’ works, especially Memorias postumas
de Bras Cubas. The author empties loving feeling, destroying the idea that love is more
important than other passions.
In Modernism, especifically in the novels of the thirties, we analyze Graciliano
Ramos’ and Jorge Amado’s works.
Graciliano chose to empty loving using different ways in Angústia and o
Bernardo. One reviews social aspects, the other shows psicological and existencial
tendencies.
Jorge Amado’s libertarian theories were soaked by love theme and we can say
that in his works feeling comes covered by an optimistic view.
At least, we analyze Guimaraes Rosa’s work full of incommensurable joy,
showing love as a way of fullness. His work shows the interesction of some aspects of
the theme his work goes from the erotic love to the most perfect and spiritual one that
makes man get closer to cosmic integration.
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