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Faculdade Santa Marcelina – FASM
Programa de Estudos Pós-Graduados em Artes Visuais
(Mestrado Acadêmico)
A SONORIDADE IMAGÉTICA DE “A ARCA DE NOÉ”
Érica Maldonado Julião
SÃO PAULO
2006
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2
ÉRICA MALDONADO JULIÃO
A SONORIDADE IMAGÉTICA DE “A ARCA DE NOÉ
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Artes Visuais da Faculdade Santa
Marcelina, como requisito parcial para a
obtenção do Grau de Mestre em Artes Visuais.
COORDENADORA: Profa. Dra. MIRTES MARINS DE OLIVEIRA
ORIENTADORA: Profa. Dra. MARIA APARECIDA BENTO
SÃO PAULO
2006
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3
Este estudo sobre os discos da Arca de Noé teve um significado
especial com o período em que vivi nesses dois anos de curso. Assim como o
dilúvio da famosa história da Arca de Noé destruiu tudo o que havia sobre a
Terra, o início desse curso foi marcado por uma perda repentina de um ente
querido: meu pai. Não sem dor nem sem esperanças, a saudade sempre me
motivou a pesquisar cada vez mais.
Quando a Arca repousou sobre os montes de Ara– segundo a Bíblia
–, as águas demoraram a baixar, mas baixaram. Também a minha produção
textual demorou a se concretizar devido a uma grande tristeza, até que as
idéias foram se tornando mais claras e pude retomar a idéia inicial.
O tempo passou, e, assim como no final das chuvas apareceu um
arco-íris prometendo uma nova vida, surpreendentemente, ao fim do período
de dificuldades, houve o ancio de um recomo: a vinda de Luíza trazendo
novas esperanças.
E é para a Luíza, meu bebê, e para o meu inesquecível pai que eu
dedico todo esse trilhar pelos caminhos da música, da alegria e da fantasia.
Com muito amor.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por ter-me dado a vida e pelas oportunidades que ela me
oferece.
Ao meu esposo, DÍDIMO, pelo incentivo e compreensão, e à minha mãe,
grande incentivadora na sua sabedoria e apoio oferecidos.
À Orientadora, Profa. Dra. MARIA APARECIDA BENTO, pela paciência e
sugestões nas revisões deste estudo, além do incentivo constante e segura
orientação.
À Faculdade Santa Marcelina, por esta oportunidade e por propiciar
excelência no aprendizado.
Aos professores e colegas de curso, pelo carinho e trocas maravilhosas, em
especial à HAYDEÉ GUIBOR, pela diagramação, e ao FLÁVIO LOTUFO, pelo
empréstimo dos preciosos discos.
Aos meus familiares e amigos, pelos bons momentos.
À RENATA CARNEIRO OLMEDO, pelas suas orientações como Psicóloga
elucidadora das questões pertinentes à Psicologia; à ANA LUCIA COSTA URBAN
MORA, pela orientação concernente aos aspectos de tradução e revisão gramatical.
Em especial, à VANESSA APARECIDA DA SILVA, companheira e peça-chave na
retaguarda da jornada diária pessoal.
Aos meus colegas de profissão e meus queridos alunos, que vivenciaram
comigo essa pesquisa sonora.
Enfim, agradeço a todos que, de alguma forma, colaboraram e me
incentivaram em mais essa conquista na minha vida acadêmica.
5
RESUMO
“A Sonoridade Imagética de “A Arca de Noé”” é um estudo desenvolvido com
o objetivo de investigar, a partir dos discos “A Arca de Noé”e Arca de Noé 2”, os
recursos melódicos e lingüísticos, utilizados pelos compositores para atingir e
interagir com o imaginário infantil.
Para entender a interação entre a criança e essas músicas, uma
fundamentação teórica a partir no pensamento piagetiano, observado sob a ótica
da psicologia, detectando como as canções dos discos favorecem a passagem
entre a fantasia e a realidade, tão comum na vida da criança, assim como o são os
contos de fadas e fabulas.
Também, a partir dos estudos semióticos realizados por Luiz Tatit, é
analisada a compatibilidade entre o texto e a melodia, como forma de persuasão
que conduz a criança a querer ouvir cada vez mais essas canções .
Foram transcritas as partituras das composições que tiveram como base os
discos originais, a fim de construir gráficos que demonstram o direcionamento
melódico percorrido pelas canções .
Este trabalho é, portanto uma nova possibilidade de estudo da relação
sonora com o imaginário da criança, capaz de vivenciar o faz de conta,
relacionando-o à experiência de sua vida.
ABSTRACT
The Sonority of Image of “A Arca de Noé”, is a study developed aiming to
investigate, through the records A Arca de Noé 1 and 2”, the melody and linguistic
resources used by the composers to reach and interact with children’s imagination.
In order to understand the interaction between the children and these songs,
there is a theoretic foundation based on Piaget, seen under the eyes of psychology,
discovering how these songs favour the path between fantasy and reality, so
common in children’s lives, exactly like the fables and fairy tales.
Using the semiotic studies carried out by Luiz Tatit, the compatibility
between text and melody is analysed as a persuasion that leads the children to wish
to listen more and more these songs.
The musical scores were transcribed, based on the original records ;graphs
were prepared to show the melody direction traced by the songs.
Therefore, this work is a new possibility of studying the sound relationship
with the children’s imagination and their ability to experiment the fantasy, linking it to
their life experiences.
6
ÍNDICE
INTRODUÇÃO.............................................................................................................8
I – O IMAGINÁRIO INFANTIL....................................................................................10
1. Desenvolvimento infantil..............................................................................11
II – MÚSICA E LUDICIDADE.....................................................................................17
III – A FANTASIA E A REALIDADE NAS CANÇÕES DE “A ARCA DE NOÉ” E
“ARCA DE NOÉ 2”.....................................................................................................30
IV – ARCA DE NOÉ: SONORIDADE VERBAL-MUSICAL.........................................47
1. Ordem seqüencial das canções em “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”....47
2. Dialogia textual............................................................................................50
3. A compatibilidade entre texto e melodia nas canções dos discos “A Arca de
Noé” e Arca de Noé 2”................................................................................................53
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................71
ANEXOS.....................................................................................................................73
1. Letras das canções do disco “A Arca de Noé”............................................74
2. Letras das canções do disco “Arca de Noé 2”............................................83
3.Partituras das canções do disco “A Arca de Noé”........................................93
4.Partituras das canções do disco “Arca de Noé 2” ....................................115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................130
REFERÊNCIAS EM FONTES ONLINE...................................................................137
DISCOGRAFIA.........................................................................................................137
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA...............................................................................137
7
Talvezo tenhamos conseguido fazer o melhor,
as lutamos para que o melhor fosse feito.
Não somos o que deveríamos ser,
mas somos o que iremos ser.
Mas, graças a Deus, não somos o que éramos.
Martin Luther King
8
INTRODUÇÃO
O presente estudo lança um novo olhar sobre as canções dos discos A Arca
de Noé”, de 1980, e “Arca de Noé 2”, de 1981, ambos nascidos da união dos
compositores brasileiros Vinícius de Moraes e Toquinho. Até o momento, inédito, por
traçar um perfil do papel representativo que a música exerce, em paralelo a outros
tipos de arte, para o desenvolvimento emocional do ser humano como um todo, em
especial o público infantil.
A dissertação, aqui apresentada, tem como objetivo geral proporcionar uma
análise sobre os recursos composicionais (lingüísticos e sonoros) utilizados pelos
compositores para atingir o imaginário da criança.
A maioria das canções dos discos “A Arca de Noé” e Arca de Noé 2” faz
parte do livro “A Arca de Noé”, lançado em 1970, pelo poeta Vinícius de Moraes .
São poemas que falam, em sua grande maioria, de animais que permaneceram no
imaginário das crianças, rompendo gerações. Muitos poemas contidos nesse livro
foram musicados por Vinícius, Toquinho e outros e apresentados nos dois discos
citados anteriormente.
9
Por tal razão, o primeiro capítulo trata do imaginário infantil observado sob a
ótica da psicologia, tomando como apoio a percepção de vários estudiosos, como,
por exemplo, Piaget, que abordaram o referido assunto.
O segundo capítulo tem como alvo a questão da música aliada à ludicidade,
cujo fator é apresentado como preponderante no mundo do faz-de-conta infantil e
como as canções dos discos estudados interagem com a criança.
No terceiro capítulo, o foco recai sobre o expressivo papel da fantasia e da
realidade na A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”, no universo infantil, tomado como
um indicador na formação de juízos de valores por parte da criança e o beneficio
que os recursos lingüísticos trazem para que isso aconteça.
Já, no quarto capítulo, o abordadas as estruturas internas de “A Arca de
Noé” e “Arca de Noé 2e analisadas questões relacionadas ao aspecto formal dos
poemas e as multifacetadas variáveis relacionadas à ordem seqüencial dos
mesmos, sua dialogia textual e a compatibilidade entre texto e melodia, sob a luz da
semiótica.
Após as considerações finais, encontram-se anexas as letras e as partituras
das canções dos dois discos, que foram transcritas pela pesquisadora a partir da
audição das canções, mantendo-se fiel à interpretação do disco original, para que as
análises propostas aqui e os desenhos melódicos transcritos em forma de gráficos
pudessem ser o mais fiel possível ao audível.
CAPÍTULO I – O IMAGINÁRIO INFANTIL
O imaginário é parte inseparável da existência humana, em todas as épocas e
em todos os lugares, sendo que presente em todas as nossas atividades, formando
a simbologia humana.
De acordo com Adelaide Consoni:
Como um visitante recém-chegado de um universo desconhecido, a criança é
introduzida de maneira forte e sem cerimônias ao nosso mundo de imagens
multifacetadas, existências diversas e fantasias surreais. Aos poucos, ela vai abrindo
os olhos para este novo estado de coisas que vão aparecendo na tela de sua vida,
compondo um cenário fantástico e incompreensível, moldando um sem-fim de
fantasias que aos poucos vão se firmando em sua mente, e moldando o seu novo
universo pelo qual ela irá participar como atora e autora até a sua maior
transformação como ser natural.
1
O imaginário infantil é um elemento em constante evolução, coloca-se numa
condição que possibilita a interferência de qualquer elemento que alcance o seu
universo. Assim, músicas, histórias, jogos de faz-de-conta, brincadeiras etc. fazem
parte desse repertório.
1
Adelaide CONSONI, A influência da mídia no imaginário infantil, p.2
A obra de Wallon
2
vem a acrescentar que a infância e o seu desenvolvimento
são processos cercados de conflitos que resultam das ações da criança e do
ambiente exterior, estruturados pela cultura e pelos adultos. Assim, o
desenvolvimento da criança é visto como uma construção progressiva em que
sucedem fases com predominância afetiva e cognitiva.
3
As canções dos discos “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2” conjugam
elementos oriundos do domínio da observação sensível do real e da capacidade de
imaginar e projetar vontades de significar. São canções que figuram inúmeras
possibilidades de confrontar o real, o percebido e o imaginário. A audição das
canções promove a imaginação e se instala entre o visível e o invisível. Cada
música apresenta uma particularidade, uma representação do que pode ser
percebido pela criança. Conforme vai ouvindo a música, ela tece uma rede de
hipóteses que vão ganhando significado, sendo estas comprovadas ou refutadas por
ele.
Segundo o professor e pesquisador Vygotsky
4
, a capacidade do indivíduo de
lidar com representações que substituem o próprio real possibilita que ele se liberte
do espaço e do tempo presentes, fazendo relações mentais na ausência das coisas,
imaginando, fazendo planos e tendo intenções. Esta é a diferença principal entre
realidade e fantasia.
5
1. Desenvolvimento Infantil
2
Estudioso que se dedicou ao entendimento do psiquismo humano, seus mecanismos e relações mútuas, a partir
de uma perspectiva genética e, portanto, com grande interesse pelo desenvolvimento infantil.
3
Henry WALLON, As origens do pensamento na criança, passim.
4
Professor e pesquisador que constituiu uma teoria baseada no desenvolvimento do indivíduo como resultado de
um processo sócio-histórico.
5
Lev Semenovich VYGOTSKY, Pensamento e linguagem, passim.
Piaget
6
, psicólogo e investigador da nese do conhecimento, afirma que
todo conhecimento é uma construção, uma interação, contendo um aspecto de
elaboração novo.
Em seus estudos sobre a psicogênese do conhecimento, deixa claro que o
conhecimento não procede em suas origens nem de um sujeito consciente de si
mesmo, nem de objetos já constituídos do ponto de vista do sujeito e que se
apropriam dele. O conhecimento resultaria de interações que se produzem entre o
sujeito e o objeto. A troca inicial entre sujeito/objeto se daria a partir da ação do
sujeito.
Para ele, o conhecimento não advém de um mero registro de observações e
informações, e as estruturas inatas a um homem não existem, pois elas
acontecem em face de uma organização de ações freqüentes em cima dos objetos.
Tal pensamento contradiz as idéias de Chomsky
7
, pesquisador em semiótica e
lingüística, que observa o ser humano como aquele que possui uma capacidade
inata de aprender uma língua originária de uma base biológica. Considera a
linguagem uma construção da inteligência sensório-motora, construída passo a
passo até mais ou menos os 2 anos de idade. Sob este ponto de vista, o
desenvolvimento mental é uma construção contínua.
Os interesses modificam-se de um nível para outro, e as explicações
assumem formas diferentes de acordo com o grau de desenvolvimento intelectual,
quando se trata da inteligência que procura compreender e explicar o que se passa
a sua volta, embora as funções do interesse sejam comuns a todos os estágios.
6
Jean PIAGET, A formação do símbolo na criança, passim.
7
Noam CHOMSKY, Conditions on rules of grammar, passim.
O conhecimento não é constituído somente por uma simples associação entre
objetos, como também pela assimilação dos objetos aos esquemas do indivíduo. A
estrutura de assimilação irá variar desde as formas mais simples de incorporação de
sucessivas percepções e movimentos até as operações superiores.
Com base na assimilação dos objetos, ocorre uma adaptação entre a ação e
o pensamento que se reajustam, ocorrendo um equilíbrio entre eles. O
desenvolvimento mental será sempre uma adaptação progressiva e, cada vez mais,
precisa à realidade.
Tais mecanismos de assimilação e acomodação encontram-se nos diferentes
níveis do pensamento científico.
Cada estágio é responsável por determinadas construções, sendo estas
contínuas: no estágio sensório-motor, anterior à linguagem, constitui-se uma lógica
de ações, fecunda em descobertas.
No início da vida do bebê, não objetos permanentes, nem há separação
entre o sujeito e o objeto. Há uma indiferença completa entre o subjetivo e o
objetivo.
Mais ou menos aos 18 meses, começa a haver a descentralização das ações
em relação ao próprio corpo, quando a criança começa a se conhecer como fonte e
origem de seus movimentos.
Paulatinamente, o bebê efetiva novas combinações, cuja descoberta o levará
a novas tentativas, combinando abstrações separadas dos próprios objetos e
coordenando os meios para atingir tal fim. Essa fase vivida pela criança é conhecida
como período sensório-motor, quando se iniciam as construções de coordenações e
as relações de ordens, os encadeamentos de ações necessários a essas
coordenações, dando início à abstração reflexiva.
A partir dessas observações, Piaget assevera que a estrutura do
conhecimento forma-se anteriormente ao domínio da linguagem, constituindo-se no
plano da própria ação. Segundo o mesmo autor, há a existência dos primeiros
instrumentos de interação cognitiva. Tais construções, no entanto, estão situadas no
plano das ações efetivas e não refletem um sistema "conceitual".
A representação implica a função simbólica, e a criança torna-se capaz de
representar um significado (objeto ou acontecimento) através de um significante
único e diferenciado, tornando-se capaz de evocar os significados graças aos
significantes.
No nível pré-operatório, que se segue ao sensório-motor, a inteligência,
graças à função simbólica, é capaz de abranger num todo elementos isolados,
podendo, também, evocar o passado, representar o presente e antecipar ações
futuras. Nesse estágio, o campo da inteligência representativa liberta-se da
realidade concreta através da ampliação, tornando possível a manipulação simbólica
de algo que não está visível, diferentemente do campo da inteligência sensório-
motora, que se aplica apenas a ações concretas.
A linguagem, no período pré-operatório, que compreende aproximadamente
dos 2 aos 6 anos, é comunicativa e egocêntrica. Comunicativa porque é usada com
a intencionalidade de transmitir algo a alguém ou de procurar informações; e
egocêntrica pelo fato de a criança ter o prazer de falar, numa espécie de monólogo,
sem intenção de se comunicar com os outros. Também nesse período, a criança
possui a capacidade de produzir imagens mentais, de usar palavras para referir-se a
objetos e situações, agrupando-os, de forma pouco elaborada. Essa fase é chamada
por Piaget de pensamento intuitivo. A criança raciocina com base em intuições, e
não em uma lógica semelhante à do adulto.
Os juízos de valores são feitos à base das primeiras impressões, calcados em
instituições e dicotomias: certo/errado, melhor/pior.
Por encontrar-se num período intermediário entre o símbolo imaginado e o
conceito propriamente dito, a atividade simbólica da criança é reconhecida por
Piaget como a fase pré-conceitual.
por volta dos 7 aos 12 anos, ocorre o estágio do pensamento operatório
concreto, quando a criança torna-se capaz de efetuar operações mentais, dividindo
o todo em partes, conseguindo colocar idéias em seqüência, e inicia-se a construção
de operações reversíveis, considerando tanto o todo como rios reagrupamentos
de suas partes.
Nessa mesma fase, a criança consegue explorar diversos caminhos, a fim de
resolver situações-problema, já que tem a possibilidade de reversibilidade.
Como se encontra no estágio das operações concretas, é capaz de
classificar, agrupar, tornar reversíveis as operações que efetua e pensar sobre um
fato a partir de diferentes perspectivas. Sua linguagem perde as características de
egocentrismo.
A partir dos 11/12 anos, a criança encontra-se no estágio das operações
formais, momento em que inicia sua passagem para o modo adulto de pensar sobre
idéias abstratas.
Ao final desse período, mais ou menos aos 15 anos, a pessoa atinge sua
maturidade intelectual, quando a linguagem dá suporte ao pensamento conceitual:
formula hipóteses e propostas. O jovem caminha da anomia inicial, seguindo para a
heteronomia e, posteriormente, atingindo a autonomia ao reconhecer e praticar as
regras sociais.
Ao atingir a adolescência, a linguagem assume um papel cada vez mais
importante, de acordo com Piaget, não por oferecer conceitos abstratos
necessários à flexibilidade de pensamento, como também pelo acesso ao
conhecimento filosófico e científico.
CAPÍTULO II – MÚSICA E LUDICIDADE
Bréscia, musicista e educadora, afirma em seu livro que a música é uma
linguagem universal, tendo participado da história da humanidade desde as
primeiras civilizações
8
.
Hoje existem diversas definições para música, sendo que, de modo geral, ela
é considerada ciência e arte, na medida em que as relações entre os elementos
musicais são relações matemáticas e sicas; a arte manifesta-se pela escolha dos
arranjos e das combinações.
A música representa uma forma de linguagem facilmente compreendida pelo
indivíduo. Ela estimula, sensibiliza, interfere e orienta a sua imaginação.
Os discos “A Arca de Noée “Arca de Noé 2” oferecem essa sensibilização, à
medida que o ouvinte entra em contato com sua seqüência de músicas, sendo
possível, então, construir um caminho a se percorrer nesta representação. O desejo
de conhecê-la instala-se.
8
Veracia Passagno BRÉSCIA, Educação musical: bases psicológicas e ação preventiva, passim.
É possível perceber, ao longo de várias canções, o ouvinte ser incluído nas
mesmas, chamado à situação, convidado a fazer parte delas. Exemplo disso pode
ser encontrado em “O Porquinho”:
Muito prazer sou o porquinho
Eu te alimento também
Meu couro bem tostadinho
Quem é que não sabe o sabor que tem
Se você cresce um pouquinho
O mérito, eu sei,
Cabe a mim tamm.
Se quiser me chame
Te darei salame
E a mortadela
Branca, rosa e bela,
Num pãozinho quente
Continuando o assunto
Te darei presunto
E na feijoada
Mesmo requentada
Agrado a toda gente.
Se quiser me chame...
9
Nessa canção percebe-se a idéia de um diálogo entre o porquinho,
representado pelo intérprete, e o ouvinte. É um recurso sonoro, que, juntamente com
a sonoridade e a descrição do sujeito, no caso o porquinho, facilita a receptividade
da criança, tão comentada por Niocole Jeandot em seus estudos..
De acordo com Nicole Jeandot
10
, pedagoga musical e musicista, a
receptividade à música é um fenômeno corporal. Ao nascer, a criança entra em
contato com o universo sonoro que a cerca: sons produzidos pelos seres vivos e
pelos objetos. Sua relação com a música é imediata, seja através do acalanto da
mãe e do canto de outras pessoas, seja através dos aparelhos sonoros de sua casa.
9
As letras das canções dos discos “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”,que serão apresentadas neste estudo, são
escritas a partir da audição dos mesmos, o que pode indicar uma diferença na transcrão presente nos seus
respectivos encartes.
10
Formada em Pedagogia, Pedagogia Musical e Música gregoriana pela Universidade Católica de Paris.
Ainda no útero materno, a criança tem contato com um dos elementos
fundamentais da música, “o ritmo”, que se manifesta através das pulsações do
coração da mãe, afirma a mesma autora.
11
Para elucidar esses fatos, é necessário buscar-se conhecimentos no campo
da psicologia, que se trata de uma ciência que lida também com uma dimensão
não-consciente do ser humano e nos revela a capacidade imagética da vida onírica,
por exemplo, da vida artística, na busca da compreensão da natureza humana.
O ritmo está presente na respiração, nas caminhadas, nos pensamentos, ou
seja, tudo que executamos é determinado por um ritmo. Tem por objetivo
desenvolver a capacidade física da criança nos aspectos do equilíbrio, da saúde e
da qualidade de vida; procurar a descoberta do próprio corpo e de suas
possibilidades de movimento; desenvolver o ritmo natural e a criatividade, chegando
à conquista do estilo pessoal.
A criança, antes de completar o primeiro ano de vida, move seu corpo,
procurando acompanhar a canção. Tamm consegue imaginar uma música ao
ouvir uma melodia. Por volta da segunda metade do primeiro ano, ela interage com
o símbolo. A partir dos 2 anos, canta trechos musicais e imita o adulto e as outras
crianças durante a escuta musical. Lembra-se das canções que costuma ouvir, tem
suas preferências entre aquelas que conhece. Canta e mesmo brinca com a letra.
Quando tem o hábito de ouvir uma canção que gosta, como, por exemplo, “A
casa”
12
, de Vinícius de Moraes, insiste em pedir por ela e, quando a música toca,
imita os supostos movimentos descritivos que simbolizam a casa.
Após essa primeira vivência, na qual a criança foi cuidada e suas
necessidades foram antecipadas como que “magicamente” durante todo o período
11
Nicole JEANDOT, Explorando o universo da música, passim.
12
Canção presente no disco “A Arca de Noé”.
da primeira infância, será fácil prever que seus pensamentos sejam coloridos pela
mágica e pelo egocentrismo.
13
Nesse período, Piaget considera a existência de uma subdivisão em fases ou
estágios dentre as quais é merecedora de destaque, neste estudo, a quarta fase, em
que, por exemplo, a criança começa a imitar sons e gestos que lhe são novos, com
maior flexibilidade e responsividade. A partir daí, passa a ter um interesse pelas
coisas ao seu redor.
No sexto estágio, ele descreve a emergência do simbolismo lúdico, termo que
utiliza para definir os jogos infantis do faz-de-conta, em que um objeto simboliza
outro. Como, por exemplo, uma madeira simbolizar uma boneca ou mesmo um
tecido simbolizar uma cama. Assim, o faz-de-conta infantil se inicia, estimulando o
desenvolvimento do pensamento sobre os objetos não existentes, representados por
esses símbolos.
Nas canções “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”, o jogo simbólico acontece
quando a voz do cantor simula a voz de um personagem e cria uma situação
imaginária, na qual se faz uso de instrumentos musicais, objetos sonoros e sons
corporais, para que o faz-de-conta se concretize. Um exemplo desse recurso pode
ser ouvido na canção “O pintinho”, a qual é interpretada por um grupo de cantoras e
simula a fala dele, inclusive manifestando momentos de alegria e tristeza através da
entonação vocal. Para demonstrar também a utilização de objetos sonoros,
podemos ouvir logo no início da canção o som de um “sino” que mais parece um
despertar de forno elétrico para simular o “perigo” que o pintinho corre em
determinado momento.
Gardner, formulador da teoria das inteligências múltiplas, considera que os
13
Jean PIAGET, Seis estudos de Psicologia, passim.
jogos simbólicos constituem uma forma primária de uso dos símbolos para crianças
pequenas, na qual elas têm uma oportunidade de experimentar papéis e
comportamentos que irão, posteriormente, assumir no mundo adulto ou em conjunto
com “crianças grandes”.
14
Da mesma forma, Piaget
15
diz que o jogo simbólico aparece como uma
atividade que vai além de um ato descompromissado:
(...) a assimilação do real para o eu é para a criança uma condição
vital de continuidade e de desenvolvimento, precisamente por causa
do desequilíbrio do seu pensamento. Ora, o jogo simbólico preenche
esta condição dos dois pontos de vista ao mesmo tempo, das
significações (do significado) e do significante. Do ponto de vista do
significado, o jogo simbólico permite ao sujeito reviver experiências
vividas e tende mais à satisfação do eu do que à submissão ao real.
Do ponto de vista do significante, o simbolismo oferece à criança a
linguagem pessoal viça e dinâmica, indispensável para exprimir sua
subjetividade intraduzível somente na linguagem coletiva.
16
O exercício consiste na imitação das atitudes dos adultos e, quando esta
evolui para as representações, implica na função simbólica em que a criança torna-
se capaz de representar um significado através de um significante. Por que motivo,
com efeito, a criança sente prazer em fazer de conta que dorme, lava-se, balança ou
transporta um pássaro etc. Dormir e lavar-se não são jogos, evidentemente, mas o
fazer de conta que se dorme” ou “que se lava” é exercitar simbolicamente tais
condutas, convertendo-as em jogos a posteriori.
17
Segundo as psicólogas e estudiosas, Eliete Nogueira e Jussara Pilão, é na
fase do simbolismo lúdico, 2 a 5 anos, que a criança se interessa cada vez mais pela
música. “A poesia cantada favorece a formação da imaginação. O ser humano
14
Howard GARDNER, Inteligências múltiplas: a teoria na prática, p. 64.
15
Jean PIAGET, A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação, passim.
16
Ibid., p. 78.
17
Jean PIAGET, A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação, passim.
pensa por meio dos símbolos, que se tornam componentes importantes para a
nossa atividade mental”.
18
Piaget denomina esse período de pré-operatório, o qual abrange dos 2 aos 6
ou 7 anos. Nesse período a criança acredita, inicialmente, que tudo foi criado para
ela, mostrando-se egocêntrica na maior parte do tempo. Diante disso, Piaget
desvendou a maneira como a criança vê o mundo através de seu método de
questionamento flexível e aberto.
(...) o que queria dizer é que o pensamento de crianças pré-
operatórias tem como centro sua própria perspectiva pessoal, sua
própria experiência pessoal, e que elas acham difícil transpor e
superar essa experiência pessoal. Essa característica de
egocentrismo coloca a criança pré-operatória a meio caminho entre
a sensório-motora e a estritamente operatória (...)
19
Quando a criança ouve freqüentemente a canção A pulga”, por exemplo,
pode ser comum, nessa fase, pedir: “vamos cantar minha pulguinha?”.
O egocentrismo da criança pequena leva a presumir que todos
pensam da mesma forma que ela e que o mundo inteiro compartilha
de seus sentimentos e desejos”.
20
O raciocínio da criança pré-operacional não se baseia na lógica, mas sim no
pensamento concreto. A isso, o mesmo autor denomina de raciocínio sincrético.
Presume-se que objetos e acontecimentos que ocorrem juntos tenham uma relação
casual.
Observou, ainda, quatro estágios no desenvolvimento do animismo
21
. Até os 4
ou 5 anos, a criança acredita que qualquer coisa pode ser dotada de objetivo e
18
Eliete NOGUEIRA, Jussara PILAO, O construtivismo, p. 99.
19
Hans G. FURTH, Piaget na sala de aula, p. 63.
20
Jean PIAGET, A formação do símbolo na criança: imitação jogo e sonho, imagem e representação, p. 54.
21
Segundo o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa: “teoria filosófica que considera a alma como causa
primária de todos os fatos intelectuais e vitais”.
atividade consciente. É nessa fase que ela se envolve mais intensamente com todas
as canções de “A Arca de Noé” e Arca de Noé 2”, as quais são dotadas de animais,
objetos e plantas que falam, dançam e agem como seres humanos.
Vejamos a canção “A porta”:
Sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prasenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Eu fecho tudo no mundo
Só vivo aberta no céu!
Pode-se observar a idéia de que os objetos se igualam aos seres vivos dentro
do universo infantil. A porta se descreve como autônoma, sendo auto-suficiente e
viva, e age de acordo com seus sentimentos, quando se abre de maneiras diversas,
dependendo da pessoa que irá passar e do que esta representa para ela.
(...) A criaa acredita que o mundo da natureza é vivo, consciente e
dotado de objetivos, da mesma forma que ela. Isso surge porque a
criança, não tendo conscncia de si mesma, confunde-se com o
universo onde vive. O sol a segue para mostrar-lhe o caminho”, as
nuvens se movem por si mesmas e planejam seu curso. (...)
22
Dentro desse universo a criança, sem perceber se envolve com as
brincadeiras e canções, vivenciando toda a questão dos jogos simbólicos,
22
Jean PIAGET, A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representaçã, p. 56.
interagindo com personagens de faz-de-conta e objetos, numa verdadeira entrega
ao simbolismo lúdico.
Segundo Jeandot, os jogos musicais podem ser de três tipos, que
correspondem a três fases do desenvolvimento infantil:
o sensório-motor: envolve a pesquisa do gesto e dos sons. A criança
poderá encadear gestos para produzir sons e ouvir música expressando-se
corporalmente. A imitação é muito importante para o desenvolvimento sensório-
motor;
o simbólico: consiste em jogos através dos quais a criança representa
a expressão, o sentimento e o significado da música;
o analítico ou de regras: são jogos que envolvem a estrutura e a
organização da música.
23
Jeandot
24
trata desse assunto em seu estudo, afirmando que a criança, ao
entrar em contato com os objetos, rapidamente começa a interagir com o mundo
sonoro, que é o embrião da música, e, nessa medida, qualquer objeto que produz
ruído torna-se para ela um instrumento musical capaz de prender sua atenção por
muito tempo.
Existem elementos musicais que fazem parte do desenvolvimento da
imaginação da criança. Pressupõe-se que esses elementos podem ser os
parâmetros do som: altura, intensidade, timbre e duração e são características do
som, a “matéria-prima” da música.
Música, como discurso sonoro, envolve outras dimensões, como afirma o
23
Nicole, JEANDOT, Explorando o universo da música, p. 62, 63.
24
Ibid., passim.
musicólogo e semiologista musical Jean-Jacques Nattiez:
(...) não pretendemos usar uma única definição de música, e usá-la
como verdadeira, mas apontar a propriedade fundamental da
música que é sua dimensão sonora (...) As concepções de música e
do que é considerado musical o várias, pois são específicas e
situações ou contextos determinados. No entanto, a referência ao
som está sempre presente. O som, como vimos, e a condição
mínima, embora não suficiente, para que algo seja considerado
música.
25
Concordando e acrescentando a citação de Nattiez, Swanwick
26
, maestro
inglês, acredita que, para o som se tornar uma música, é preciso, antes de mais
nada, selecionar os que se deseja utilizar, relacioná-los entre si e ter a intenção de
se fazer música.
O autor apresenta um modelo que procura definir quais são as dimensões
que constituem a música e fazem com que reconheçamos algo sonoro como sendo
ou não algo musical. Ao investigar a natureza da experiência e do conhecimento
musical, o autor reconhece dois extratos. O primeiro deles refere-se à relação
pessoal do indivíduo com a música, uma experiência particular, muitas vezes
incomunicável, que pode mudar em função das características de cada pessoa ou
mesmo de cada criança. Argumenta que o conhecimento musical não é algo
exclusivamente individual; há um segundo extrato em que aspectos de experiências
individuais podem ser compartilhados, uma dimensão intersubjetiva, e é nela que o
autor concentra suas investigações.
Vivenciar música, ouvindo, cantando ou mesmo tocando um instrumento,
compondo, improvisando, atentando para as qualidades do som e como eles são
manipulados, é, para Swanwick, a dimensão que ele chama de materiais: a matéria
25
Jean-Jacques NATTIEZ, Combate entre o Cronos e Orfeu: Ensaios de semiologia musical aplicada.p. 43, 44.
26
Keith SWANWICK, Permanecendo fiel à música na Educação Musical, passim.
sonora que constitui a música e suas qualidades específicas. A criança, desde bebê,
começa a experimentar essa dimensão e é por volta da segunda metade do
segundo ano que ela começa a vivenciar a segunda dimensão, a da Expressão e
Forma
27
.
Além de nortear estudos e planejamentos em torno de Swanwick, é preciso
perceber que a música não pode ser dissociada do mundo e dos acontecimentos.
Entender crianças, música e prática são desafios que envolvem atenção, disposição
e valorização dos aspectos sociais, ajudando a criança a ser um crítico e um ouvinte
participante.
A música provém de efeitos significativos no campo da maturação social da
criança. É por meio do repertório musical que nos iniciamos como membros de
determinado grupo social.
É notável a organização de grupos através das preferências sociais. Com
base nas discussões sobre as músicas, o indivíduo desenvolve questões sociais,
bem como o pensamento crítico.
A música existe em qualquer faixa etária e em todas as culturas. Os acalantos
ouvidos por um bebê no Brasil não são os mesmos ouvidos por um bebê nascido na
Islândia, por exemplo. Portanto, podemos entender que a música sofre influência
sociocultural, bem como a influencia também. Nas canções da Arca de Noé, temos
ingredientes semelhantes aos acalantos. Temos a canção “Menininha”, também a
canção “O filho que eu quero ter”, tipicamente lentas e doces, como os acalantos.
A música também é importante do ponto de vista da maturação individual, isto
é, do aprendizado das regras sociais por parte da criança. Quando uma criança
brinca de roda, por exemplo, ela tem a oportunidade de vivenciar, de forma lúdica,
27
Tomamos aqui Expressão e Forma como a estrutura da música em termos de frases, períodos e partes, de
acordo com o pensamento de Keith Swanwick.
situações de perda, de escolha, de decepção, de dúvida, de afirmação.
O faz-de-conta nas canções infantis é vivenciado da mesma forma que na
literatura, pois a criança imagina toda a situação da canção. É a conjunção entre a
imitação, efetiva ou mental, de um modelo imagético ausente e as significações
fornecidas pelas diversas formas de assimilação que permite a constituição da
função simbólica. Na canção “O Pato”de A Arca de Noé”, percebemos que a
criança busca imitar o andar e a sonoridade do pato ao ouvir.
Se a criança, por meio do brincar, assimila significantes e convive com
situações em que, de forma autônoma, pesquisa, deduz e conclui, a variável do
processo passa a ser o conteúdo que ela assimila, e este conteúdo pode ser
direcionado.
Vygotsky
28
destaca um conceito para explicitar o valor da experiência social
no desenvolvimento cognitivo. Segundo ele, há uma “zona de desenvolvimento
proximal”, que se refere a distância entre o nível de desenvolvimento atual,
determinado através da solução de problemas pela criança, sem ajuda de alguém
mais experiente, e o nível potencial de desenvolvimento, medido através da solução
de problemas sob a orientação de adultos ou em colaboração com crianças mais
experientes.
A possibilidade de usar objetos para representar ("escrever”) uma história foi
investigada por Vygotsky. Ele conclui que a similaridade perceptiva dos objetos não
tem um papel considerável para a criança compreender a notação simbólica
utilizada na brincadeira-experimento, mas sim que os objetos admitem o gesto
apropriado para reproduzir o elemento original da história
29
. Gradualmente, o objeto
utilizado na brincadeira adquire função de signo, tornando-se independente dos
28
Lev Semionovitch VYGOTSKY, Pensamento e linguagem, passim.
29
Ibid., p. 123.
gestos das crianças. Daí considerar a brincadeira do faz-de-conta uma grande
contribuição para a aprendizagem da linguagem escrita pela criança.
30
Considerando a importância do brincar, pode-se perceber nas canções dos
discos estudados a presença dos jogos simbólicos.
Na canção “A pulga”, por exemplo, temos a simulação de uma brincadeira,
quando, na verdade, a canção descreve o pular e o ataque da pulga. A brincadeira
se acentua pelo caráter sonoro, no qual a melodia faz “saltos intervalares”
31
,
acompanhando o texto. A impressão
32
que a criança tem ao ouvir é esta:
Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
Com mais um pulinho
Estou na perna do freguês
Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
Com mais uma mordidinha
Coitadinho do freguês
30
Lev Semionovitch VYGOTSKY,Pensamento e linguagem, p. 25.
31
Esses “saltos” são intervalos entre as notas musicais. No caso da canção “A pulga”, aparecem 4as. Justas para
evidenciá-los.
32
Para destacar a melodia das canções, foi feito o desenho melódico através de gráficos, que obedecem a mesma
disposição dos versos das canções. Esses gráficos, que indicam o direcionamento melódico da canção, são
baseados nos trabalhos apresentados pela Dra. Maria Aparecida Bento que, sua vez, os fundamentou na proposta
musical-pedagogica de Maurice Martenot.
Um, dois, três
Quatro, cinco, seis
To de barriguinha cheia
Tchau, good-bye
Auf Wedersehen
Segundo Adriana Friedmann, autora de vários livros sobre o brincar e o
brinquedo, o brincar surge como oportunidade para o resgate dos nossos valores
mais essenciais enquanto seres humanos; potencial na cura psíquica e física; forma
de comunicação entre iguais e entre as várias gerações; instrumento de
desenvolvimento e ponte para a aprendizagem; possibilidade de resgatar o
patrimônio lúdico-cultural nos diferentes contextos socioeconômicos. O brincar como
desafio deste novo culo no uso do tempo livre surge como possibilidade criativa;
instrumento de inserção em uma sociedade regrada; possibilidade de conviver com
os outros. O brincar como desafio ao trabalho solidário, em equipe, aparece como
uma postura mais cooperativa e ecológica; como caminho do conhecimento e
descoberta de potenciais ocultos; caminho para a autonomia, a livre escolha, a
transformação e a tomada de decisões.
33
33
Adriana FRIEDMANN, A evolução do brincar, passim.
CAPÍTULO III – A FANTASIA E A REALIDADE NAS CANÇÕES DE “A
ARCA DE NOÉ” E “ARCA DE NOÉ 2
A literatura infantil facilita o acesso ao mundo da fantasia e do fantástico e
estimula a criatividade e a imaginação, é a chave para a criação do novo, bem
como a construção de uma identidade pessoal. Isso ocorre porque a arte fertiliza a
imaginação das crianças. Contar e ouvir histórias é essencial para o
desenvolvimento afetivo e cognitivo delas.
Vygotsky
34
aponta em seus estudos que a cultura forma a inteligência e que
a brincadeira de papéis é a atividade predominante do pré-escolar, que favorece a
criação de situações imaginárias, de reorganização de experiências vividas.
O contato com a arte literária, oral, poética, musical e dramática é
fundamental para este estímulo à imaginação, bem como para despertar o gosto
pela literatura infantil. Por isso, a poesia e as histórias podem tornar-se significativas
para as crianças.
34
Lev Semionovitch VYGOTSKY, Pensamento e linguagem, passim.
Os contos de fadas traduzem todo o universo infantil de forma clara e
definida. Favorecem o acesso a experiências, inicialmente, através da fantasia,
permitindo que as crianças as vivenciem. Costumam retratar variações de
sentimentos e comportamentos. Tornam-se verdadeiros à medida que mostram
nossa realidade de vida, bem como nossas experiências internas.
Segundo Silveira
35
, psiquiatra e defensora do pensamento junguiano, os
contos de fadas, do mesmo modo que os sonhos, o representações de
acontecimentos psíquicos. Mas, enquanto os sonhos apresentam-se
sobrecarregados de fatores de natureza pessoal, os contos de fadas encenam os
dramas da alma com materiais pertencentes em comum a todos os homens. Eles
nos revelam esses dramas na sua rude ossatura, despojados dos múltiplos
acessórios individuais que entram na composição dos sonhos.
Os contos de fadas são significativos para a criança que ainda não
consegue compreender o sentido dos conceitos éticos abstratos.
Eles trazem mensagens à mente consciente, à pré-consciente e à
inconsciente, em qualquer nível que a mente esteja funcionando no
momento. Lidando com problemas humanos universais,
particularmente os que preocupam o pensamento da criança, estas
histórias falam ao ego em germinão e encorajam seu
desenvolvimento, enquanto aliviam as pressões pré-conscientes e
inconscientes. À medida em que as histórias se desenrolam, dão
validade e corpo às preses do id, mostrando caminhos para
satisfazê-las e que estão de acordo com as requisições do ego e
super-ego.
36
Segundo o psicanalista Bruno Bettelheim, enquanto a criança diverte-se, o
conto de fadas a esclarece sobre si mesma e favorece o desenvolvimento de sua
personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes e enriquece a sua
existência de tantos modos que ainda nenhum livro pode fazer justiça à multidão e
35
Nise da SILVEIRA, Jung: Vida e Obra, passim.
36
Bruno BETTELHEIM, A psicanálise dos contos de fadas, p. 14.
diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança.
37
Assim se processa com a fábula, se tomarmos como base o conceito de que
fábula é uma narrativa alegórica, com personagens, geralmente animais, e
desenlace que reflete uma lição moral, com temática variada, e contempla tópicos
como a vitória da fraqueza sobre a força, da bondade sobre a astúcia e a derrota de
presunçosos.
Entre assírios e babilônios, a fábula era cultivada. Foi o grego Esopo,
contudo, quem consagrou o gênero. La Fontaine foi outro grande fabulista,
imprimindo à fábula grande refinamento.
Se o elemento desse conjunto de conhecimentos fizer parte do seu
desenrolar, de sua estratégia, de seus elementos de fantasia, da imaginação, a
canção também funcionará como uma mídia, um veículo de transmissão, uma
interessante ferramenta da imaginação.
Assim, observa-se nos discos “A Arca de Noé” e Arca de Noé 2” um conjunto
de símbolos que favorecem uma viagem ao imaginário infantil. Cada animal, objeto
ou personagem mencionado auxilia na construção do significado, da identidade e da
linguagem para criança. Verifica-se tal afirmação, por exemplo, na canção
“Corujinha“, em que a percepção sonora se da seguinte forma: a tonalidade
menor, o ritmo lento e as relações intervalares que oscilam entre graves e agudos
de acordo com o texto sugere o aparecimento do desenho melódico que, neste
caso, se repete ao descrever o personagem, fazendo com que a cena” simule o
real:
Corujinha, corujinha
Que peninha de você
Fica toda encolhidinha
Sempre olhando, não sei que
37
Bruno BETTELHEIM, A psicanálise dos contos de fadas, passim.
O mesmo ocorre em “O relógio”, em que a melodia é cantada em intervalos
de terça, com pouca variedade de freqüência
38
, e estimula a percepção do toque do
relógio o tempo todo, quando é reforçado pela própria onomatopéia
39
“tic-tac”. A
percepção do ouvinte, no caso a criança, acontecerá da seguinte forma:
Passa, tempo
Tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
38
Notas musicais.
39
Onomatopéia: Indicação de sons ou ruídos por meio de sinais gráficos.
A onomatopéia surge também em “O peru“:
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru
Em “A galinha d’Angola”:
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
To fraca! To fraca! To fraca!
Essas repetições, sonorizando características dos animais, de lugares e de
objetos, simulam os sujeitos aos quais se referem.
Todos os contos de fadas e fábulas têm significados diversos: é a criança na
sua representação que distingue o que para ela faz sentido no momento. As
músicas de “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2“, também por esses recursos,
externalizam e tornam compreensíveis os processos internos, à medida que o
vivenciados e internalizados pelo ouvinte, o que sugere o aparecimento de imagens
mentais.
A repetição do desenho melódico, como foi visto em “A corujinha” e O
relógio”, por exemplo, Tatit chama de tematização, e, nesses casos, o compositor
recorre a recursos lingüísticos
40
para reforçar a imagem do sujeito construído.
Determinados recursos lingüísticos, como, por exemplo, algumas figuras de
linguagem, favorecem a imaginação da criança por repetirem as conjunções
coordenativas, por exemplo, em “A galinha d’Angola”:
Ela vende confusão
E compra briga
Gosta muito de fofoca
E adora intriga
Fala tanto
Que parece que engoliu uma matraca
E vive reclamando
Que está fraca
O conectivo “e“ enfatiza a adição de idéias em progressão, e vai construindo
um sujeito que se torna imagético, pois, para a criança ficará nítida a presença da
galinha com tais características.
Também pode ocorrer uma comparação que se caracteriza pela transferência
de significado de um termo para outro, em virtude de uma associação subjetiva. O
compositor que produziu a metáfora é que a relação de semelhança entre o ser
ou a coisa e as palavras que escolheu para indicar essa semelhança.
Em “O girassol”:
O girassol
Fica um gentil
Carrossel
40
Tomemos como recursos lingüísticos quando palavras ou estruturas de frase apresentam-se de formas
diferentes das usuais e a isso denominam-se figuras de linguagem.
Em “Menininha”:
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão
Em “Os bichinhos e o homem“:
Nossa irmã, a barata
Bichinha mais chata
É prima da borboleta
Que é uma careta
Ainda para enfaizar a construção do sujeito o compositor faz uso de uma
expressão menos agressiva, em lugar de uma expressão desagradável ou chocante,
para transmitir suas idéias, como acontece em “O filho que eu quero ter“:
Quando a vida, enfim, me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Também em “Os bichinhos e o homem“:
E o homem que pensa tudo saber
Não sabe o jantar que os bichinhos vão ter
Quando seu dia chegar quando seu dia chegar
O uso do exagero com objetivo de realçar uma idéia também é presente nas
canções “O filho que eu quero ter“:
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Quando o compositor atribui qualidades ou ações humanas a animais,
objetos, fenômenos da natureza ou conceitos abstratos, está fazendo uma
personificação -também muito utilizada um fábulas- que exerce grande fascínio
pelas crianças, como foi mencionado por Piaget, em sua abordagem sobre o
animismo.
Em “A porta”:
Sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Não há coisa no mundo
Mais viva que uma porta
Em “O gato”:
O gato passa
Do co ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao co
(...)
Ouriça o pêlo mal-humorado
Um preguiçoso é o que ele é
E gosta muito de cafuné
Em “O pingüim”:
Pingüim, meu amigo
Não zangue comigo
Nem perca a estribeira
Não pergunte por quê
Mas todosem você
Em cima da geladeira.
Todos esses recursos são empregados, geralmente, pelos compositores a fim
de criar um efeito inesperado e, assim, obter maior expressividade e criatividade na
linguagem, assim como nos contos de fadas e fábulas.
De acordo com Silveira
41
, os contos de fadas têm origem nas camadas
profundas do inconsciente, comuns à psique de todos os humanos. Por isso,
pertencem ao mundo arquetípico. Este é o motivo pelo qual os contos de fadas
interessam à psicologia analítica.
Silveira
42
acrescenta que a mente de uma criança na faixa etária de 2 a 5
anos contém um conjunto de impressões, com freqüências mal ordenadas e apenas
parcialmente integradas, que se expande rapidamente: alguns aspectos da realidade
vistos corretamente, mas muito mais elementos completamente dominados pela
fantasia.
Segundo Bonaventure
43
, também estudiosa dos pensamentos junguianos,
“similares aos contos de fadas e às fábulas, cheios de imagens, são nossos sonhos
e nossas fantasias, que nos parecem tão misteriosos e tão impenetráveis”.
41
Nise da SILVEIRA, Jung: Vida e obra, passim.
42
Ibid., passim.
43
Jette BONAVENTURE, O que conta um conto?, passim.
A criança começa a fantasiar a partir de algum significado da realidade mais
ou menos corretamente observado, que lhe provoca ansiedade ou necessidade tais
que ela seja carregada de roldão por elas. Seus pensamentos com freqüência se
tornam tão misturados que ela não é capaz, em absoluto, de classificá-los, mas se
organiza mentalmente e volta à realidade sem ser enfraquecida ou derrotada, porém
fortificada por estas incursões nas suas fantasias.
44
As fábulas e os contos de fadas contribuem muito para o desenvolvimento da
personalidade da criança, o que pode ser evidenciado também na análise das
canções nos discos de A Arca de Noé:
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque mundo é ruim, é ruim e você
As músicas parecem representar experiências da vida prática de uma criança,
colocando-a em contato direto com elas. Estabelecem relação tênue entre fantasia e
realidade, evocando o tempo todo, uma visitação a esse ambiente mágico. Dessa
forma, propicia o contato saudável com um repertório de conhecimentos sobre o
mundo, bem como transfere os dilemas e os principais dramas da vida real para os
44
Nise da SILVEIRA, Jung: Vida e Obra, passim.
personagens. Isso acontece em “O pintinho”:
E se ligeiro você escapar
Tem um granjeiro
Que vai te adotar
Assim como os contos e as fábulas, as músicas funcionam como válvula de
escape e permitem que a criança vivencie seus problemas psicológicos de modo
simbólico, saindo mais feliz dessa experiência.
Através deles, as crianças começam a elaborar melhor os problemas do
cotidiano e se fortalecem para enfrentá-los. Envolvidas com as histórias, as crianças
entram em contato com textos distintos sem precisar estar fisicamente em contato
com essa realidade.
Muitas vezes, presenciamos desfechos das histórias sendo alterados. Esta é
uma reorganização da sociedade moderna, que vem cultuando a prática de poupar
as crianças de entrar em contato com questões pertinentes à vida adulta. Assim,
essa tendência de retirar o mal, o medo e o castigo das narrativas apazigua as
emoções que precisam ser vivenciadas pelas crianças. Portanto, acredita-se que
não é saudável evitar que elas enfrentem esses conflitos.
As estórias modernas escritas para criaas pequenas evitam esses
problemas existenciais, embora eles sejam questões cruciais para
todos nós. (...) as estórias, fora de perigo, o mencionam nem a
morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o
desejo pela vida eterna. O conto de fadas, em contraste, confronta a
criança honestamente com os predicamentos humanos básicos.
45
A música “O leão“ retrata exatamente este animal como ele se apresenta na
natureza: feroz, ágil, que busca sua comida com persistência, mata suas presas,
assusta etc.
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês
O salto do tigre é pido
Como um raio, mas não há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o leão
Podemos perceber, na música “O leão“ esta realidade sendo retratada como
na canção “Os bichinhos e o homem” quando, após descrever sobre a vida dos
insetos, os compositores finalizam a canção fazendo uma reflexão sobre a
fragilidade do homem diante da morte. Essa fragilidade é acentuada pela melodia,
45
Bruno BETTELHEIM, A psicanálise dos contos de fadas, p. 14, 15.
que varia sua freqüência
46
, direcionando-se para o grave e rallentando
47
sua
velocidade ao falar sobre o “jantar” dos bichinhos, assumindo novamente o caráter
lúdico presente nas canções, através da aceleração do ritmo no final:
E o homem que pensa tudo saber
Não sabe o jantar que os bichinhos vão ter
Quando seu dia chegar
Quando seu dia chegar
A criança, ao ler e ouvir as canções, entende que estas lhe falam na
linguagem simbólica e na realidade cotidiana. Transita, desde o início, através de
trama, e no seu final, a idéia de que a narrativa trata não de fatos concretos ou
lugares e situações reais, mas de situações fantásticas.
Nas canções da Arca, o texto se apresenta de forma subjetiva, abre
46
Notas musicais.
47
Rallentando: palavra utilizada no decorrer da música para indicar diminuição da velocidade. O termo, em
italiano, é sempre abreviado da seguinte forma: rall.
possibilidades para a criança desenvolver o imaginário infantil. Tal exemplo é
encontrado em “A casa”:
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Segundo o escritor paulistano Azevedo
48
, os textos assim primam pela
subjetividade, pela ambigüidade, pela motivação estética, pelo estranhamento, pela
plurissignificação, pela visão poética e particular da realidade. Como desenhar
“objetivamente” uma casa mágica? Janelas que abrem para paisagens “que
imaginamos”? Como demonstrar visualmente que o pensamento “é coisa de
repente”? A que referência recorrer, por outro lado, diante de um poema que
menciona e descreve uma casa sem teto, nem parede, nem chão?
A referência é sonora. Para tal efeito, a canção faz uso de backing vocals e
variações de velocidade. No final utiliza ainda palmas. A melodia é repetitiva, o que
facilita o entendimento da criança. O que se pode observar no trecho abaixo, em que
o desenho melódico é o mesmo do trecho citado anteriormente:
Ningm podia
Entrar nela, não
Porque na casa
Não tinha chão
48
Ricardo AZEVEDO, Texto e imagem: diálogos e linguagens dentro do livro, p. 4.
Assim, fica pertinente estabelecer relações entre as canções e a ação do
símbolo. Segundo Jung, ambas despertam emoções e evocam idéias complexas,
que dão margem à significação variada. Da mesma forma, as músicas da Arca de
Noé fazem parte de um repertório de símbolos, que propiciam uma soma de
sensações no ouvinte, tornando-se disponíveis à sua consciência.
CAPÍTULO IV – ARCA DE NOÉ: SONORIDADE VERBAL-MUSICAL
1. Ordem Seqüencial das Canções em “A Arca de Noé” e “Arca de Noé
2”
uma estrutura de organização resente em ambos os discos.No primeiro,
aparece o texto narrativo da canção A Arca de Noé”, que nome ao disco; e, no
segundo, sua continuação na primeira canção, que leva o nome de “Abertura“,
colocado estrategicamente com o papel de prefácio. As canções representam o
início de uma história que será contada aos ouvintes.
Percebe-se ainda que nos dois discos, além dessa narrativa, existe uma
ordem seqüencial que se processa da seguinte maneira: após os textos narrativos
iniciais, é focado um conjunto de canções, cujas letras representam os animais
escolhidos para ocupar a arca. Em seguida, no primeiro, uma quebra dessa
seqüência com uma canção que faz referência a São Francisco, protetor dos
animais, santo este que remete o ouvinte “ao mundo dos animais racionais”,
retomando os próprios animais antes da apresentação de A aula de piano”, canção
irreverente ao universo infantil. Já, no segundo disco, tal quebra é representada pela
canção “O girassol”, conduzindo o mesmo ouvinte ao mundo vegetal. “O girassol”
funciona como um indicador do término do dilúvio, que essa flor gira em direção
ao sol e demonstra o fim das chuvas. Em continuação a essa, a canção “O ar (O
vento)” evidencia uma mesma irreverência, porém dentro do universo infantil, e
retoma a linha dos animais.
Adota-se em seguida, no primeiro disco, a personificação de seres
inanimados comprovada em “A porta”, “A casa”, passando por “O relógio”, o maior
indicador temporal que remete a criança à realidade demonstrada, ao finalizar o
disco, pelo ser humano real “Menininha”.
No segundo disco, essa tomada de realidade é processada através da
reflexão sobre a morte e o posicionamento do ser humano em face do desejo de ter
filhos: a criança é querida e esperada. Verifica-se tal procedimento em “Os bichinhos
e o homem” e “O filho que eu quero ter”.
No que se refere à parte musical, a canção “A Arca de Noé” inicia-se com um
instrumental forte e grave, como se marcasse passos; em seguida, com leveza,
caminha para o agudo na mistura de sons de variados instrumentos numa orquestra
organizada, invocando cada naipe de instrumentos para uma conversa, um passeio,
como se chamasse cada animal para adentrar a arca. A seguir, Chico Buarque, que
declama um poema no início da canção, descreve a paisagem, o arco-íris, a água,
remetendo o ouvinte à situação pós-diluviana. Quando inicia o discurso sobre os
animais, entra um ritmo agitado, uma marcha marcada e alegre, com um coral
entoado por vozes de crianças. A melodia oscila de acordo com o ritmo, ora mais
alegre, ora mais doce. Vozes “infantis” são colocadas, com o intuito de ligar a alegria
da criança com a naturalidade dos animais.
O ritmo varia de acordo com a poesia, ora mais rápido, ora mais lento, mais
forte e mais fraco. Cria-se uma alegoria com o ritmo apressado e marcado nas
estrofes em que se destacam os animais. Quando o assunto é a paisagem, o ritmo
se torna lento e emocionante, como no começo, quando a poesia é apenas recitada.
Quanto ao segundo disco, a canção Abertura” é feita com uma junção, um
pot-pourri das canções do primeiro disco, retomando a primeira obra, possibilitando,
com isso, aos que nunca ouviram o primeiro disco, tomar conhecimento sobre ele e,
aos que já possuem, a oportuna lembrança.
Em primeiro lugar, temos cantada uma estrofe da música “Menininha”:
Menininha, não cresça mais o
Fique pequenininha
Na minha canção
Em seguida, uma valsa alegre, com baixo alternado. Temos a melodia de “A
porta”, que emenda com o refrão de “As abelhas”. Modula novamente e faz o refrão
de “Aula de piano”. São seguidas por “A casa”, “São Francisco”, quando se torna
mais lenta ao relembrar “Corujinha”; o ritmo se acelera com O patoe salienta os
baixos em “A pulga”, finalizando com duas estrofes de “A foca”.
A Arca – poema cantado no primeiro disco – é recitada no segundo:
A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.
Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.
Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista...
O segundo disco, como pode ser notado, complementa o primeiro,
imprimindo-lhe um tom seqüencial.
2. Dialogia Textual
Segundo Mikhail Bakhtin, crítico literário e estudioso da teoria de Dostoievski,
as palavras e as formas na linguagem são vozes sociais e históricas que permitem
significações concretas e que se organizam em um sistema estilístico harmonioso.
Para ele, a língua é “uma opinião plurilíngüe concreta sobre o mundo”
49
.
Entende-se como dialogia textual não somente o diálogo das forças sociais,
como também o diálogo dos tempos, das épocas.
Para a lgara Julia Kristeva
50
, psicanalista e professora de lingüística, o
processo de leitura realiza-se como ato de colher, de tomar, de reconhecer traços.
Como uma história pode remeter a outras, ocorrendo uma somatória e um
reconhecimento, assim também acontece com a canção A Arca de Noé”, que nos
49
Mikhail BAKHTIN, Questões de literatura e estética: a teoria do romance, p. 100.
50
Julia KRISTEVA, Semiotike: recherches pour une sémanalyse, p. 120, 121.
remete ao texto bíblico de Gênesis, capítulo 7, no qual Deus recomenda a Noé que
recolha em uma arca sua família e sete machos e sete fêmeas de cada espécie de
animal “limpo”, a fim de que sejam salvos do dilúvio que Ele enviará à Terra e para
que possam, após as águas baixarem, repovoá-la.
O número bíblico sete é considerado perfeito, colocação assumida em as sete
cores do arco-íris, o que evoca o arco também estabelecido entre Deus e Noé, no
capítulo 9, da mesma passagem bíblica, no versículo 16: “E estará o arco nas
nuvens, e eu o verei, para me lembrar do concerto eterno entre Deus e toda alma
vivente de toda carne que está sobre a Terra”.
Outra passagem bíblica que indica característica de dialogização é a do
capítulo 9, versículo 20: “E começou Noé a ser lavrador da terra e plantou uma
vinha”; com os versos da canção A Arca de Noé”, em que diz Noé: “que boa
terra/Pra plantar as minhas vinhas”.
Outra dialogia textual pode ser observada em “O peru”, que evoca a mitologia
grega com o mito de Narciso:
O peru se viu um dia
Nas águas do ribeirão
Foi-se olhando, foi dizendo
Que beleza de pavão
Até aqui comprovadamente uma dialogia textual somente em relação cujo
foco é a palavra; no entanto, acontece uma outra dialogia entre texto palavra e
melodia, como a que é notada em “A aula de piano”, que, no seu refrão, passa a ser
uma paródia de “O Bife”:
Ai, ai, ai
La, sol, fa, mi,
Tira a mão d
Dó, dó , ré, dó, si
Aqui o dá pé
Mi, mi, fá, mi, ré
E agora o sol,
Pra lição acabar.
51
Ainda, segundo Kristeva:
A linguagem poética aparece como um diálogo de texto, toda
seqüência se faz em relação a uma outra proveniente de um outro
corpus, de maneira que toda seqüência está duplamente orientada:
para o ato de reminiscência (evocão de uma outra escrita) e para
o ato de intimação (a transformação dessa escritura).
52
Essas canções, que dialogam com os textos citados, acabam por se tornar o
eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores e
crenças.
51
O Bife, hoje popularmente conhecido é um trecho musical de uma obra de Arthur de Lulli, executada nos
filmes “Melodia Imortal” (1956) e “Semeador de Felicidade”( 1955).
52
Júlia KRISTEVA, Semiotike: recherches pour une sémanalyse, p. 120, 121.
3. A Compatibilidade Entre Texto e Melodia nas Canções dos Discos “A
Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”
A eficácia da canção popular depende fundamentalmente da
adequão e da compatibilidade entre o seu componente melódico e
seu componente lingüístico.
53
Quando faz esta afirmação em seu livro “A Canção”, Luiz Tatit discute a
compatibilidade entre texto e melodia, demonstrando ser esta a união atraente das
canções. Chama de destinador (o “locutor”) e de destinatário (o ouvinte) as peças-
chave dessa comunicação.
Ainda segundo Tatit, o destinador deve “saber fazer”, e o destinatário deve
“querer ouvir” para que a eficácia da canção aconteça. Não há canção de sucesso
sem público. Não há cantor sem platéia. Um deve saber como fazer o outro querer.
Nas canções dos discos “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2”, percebe-se
facilmente essa compatibilidade entre o texto e a sonorização.
Ao pensar, por exemplo, na canção O pato”, observa-se essa
compatibilidade no texto que descreve o balanço do andar do pato “lá vem o pato,
pata aqui, para acolá”, cuja melodia e acompanhamentos reiteram alternadamente
os seus motivos, reforçando a mesma regularidade. Isso persuade a criança, que é
levada a querer ouvir cada vez mais a música e reconhecer o quanto ela lhe agrada.
Esse tipo de acontecimento o locutor saber fazer o ouvinte querer ouvir
Tatit chama de sobremodalização, que está implícito no texto. O ouvinte não tem tal
conhecimento; porém entre ambos uma tensão comunicativa, que estabelece
um intercâmbio entre o querer fazer e o querer ouvir.
53
Luiz TATIT, A canção, eficácia e encanto, p. 3.
Ainda na canção “O pato”, ocorre a alternância das sílabas átonas e tônicas.
Na primeira estrofe, por exemplo, os finais de versos se alternam em paroxítonas e
oxítonas a partir da última sílaba tônica. Isso casa perfeitamente com o ritmo, que
simula o andar do pato através de sons instrumentais e compasso quaternário, com
sua subdivisão binária. O pato da canção grasna em duas vozes, uma oral e outra
instrumental, no contratempo que, propositalmente, nos dão os movimentos dos
passos do pato, que, quando anda, balança o corpo de um lado para outro.
Entre a primeira e a segunda estrofe, um discreto protesto social
manifestado pelo backing vocal, num volume baixo, num tom não muito nítido,
através da frase “eu sou o pato brasileiro, eu to com fome... ai , ai”, cuja colocação o
ouvinte só conseguirá ouvir se estiver atento ou escutar várias vezes a canção.
Na segunda estrofe, a última sílaba tônica de cada verso pertence a palavras
paroxítonas, enquanto o ritmo da canção muda para ternário (valsa). A entoação o
uso da tônica e da átona – enfatiza a compatibilidade.
A presença das vogais nas últimas sílabas tônicas dos versos é outro
facilitador para as crianças, pois estas iniciam o cantar pelos finais de frases.
Um outro recurso utilizado pelos compositores em A Arca de Noé” é a
figurativização, que, segundo Tatit
54
, é o processo no qual o locutor tenta fazer com
que o ouvinte reconheça na canção uma situação do dia-a-dia. Para analisar essas
canções, faz-se necessário saber quais são os recursos que possibilitam a
figurativização, os quais dão à canção a naturalidade e a familiaridade do discurso
coloquial.
A persuasão figurativa, considerado como um dos recursos, faz com que a
criança acredite ser parte da história; ela vivencia aquele momento, interagindo com
54
Luiz TATIT, A canção, eficácia e encanto, p. 7.
o personagem principal, e a música acaba fazendo parte da sua realidade. Para
isso, Tatit diz: “o D.
o
R loc instaura um simulacro de sua própria relação com o D.
a
RIO
ouv, que pode ser chamado de simulacro de locução
55
.Como, por exemplo, na
canção “O porquinho”:
Muito prazer, sou o porquinho
Eu te alimento também...
Outro recurso de persuasão figurativa presente em A Arca de Noé” é o
diálogo, que acontece quando o locutor entra em síncrese com o interlocutor e o
interlocutário. Verificamo-lo na canção “O pintinho”, quando temos a presença do
vocativo:
Pintinho novo
Pintinho tonto
(...)
Pintinho raro
Nesse caso, o direcionamento para o pintinho, é seguido pela resposta do
próprio pintinho:
O meu ovo tá estreitinho
me sinto um galetinho
posso sair sozinho
Eu já sou dono de mim
Vou ciscar pela cidade
55
Luiz TATIT, A canção, eficácia e encanto, p. 9.
Grão-de-bico em quantidade
Muito milho e liberdade
Por fim
No presente diálogo, o locutor passa a ser o interlocutor por meio do
personagem conselheiro, quando canta em coro e também ao representar a voz do
pintinho, cujo solo é cantado por cada integrante do grupo. Quando acontece esse
fato, o interlocutário que deixa de ser o simples ouvinte e já está vivenciando a
canção – acredita que a cena relatada por ela é viva, e não ocorre a distinção.
Além dos citados anteriormente, um outro recurso de persuasão existente
nas canções de A Arca de Noé: a acomodação da melodia ao texto. Vide, por
exemplo, “A cachorrinha”. É comum as entoações das palavras terem a função de
enfatizar as informações mais pertinentes do texto e a melodia adequar-se a elas.
Porém, a inteligibilidade melódica pode anteceder a inteligibilidade lingüística:
(...) quando o texto escrito não é pensado ritmicamente, no sentido
de estabelecer algumas regularidades métricas, e, de fato, o texto
do discurso oral não as estabelece, a melodia entoativa que o
acompanha, certamente, apresentará o mesmo caráter inconstante
e irregular do ponto de vista sonoro.
56
Esse procedimento pode ser observado em “A Arca de Noé” na canção “A
pulga”, em que, para não quebrar a acentuação melódica, os compositores
mudaram a localização da tônica, que de “barriguinha” passou a ser “bárriguinha”.
To de bárriguinha cheia
Tchau,.
Good-bye
Auf Wesdersehen
Para enfatizar a tônica” da palavra “barriguinha”, deve-se destacar os tempos
mais fortes do segundo compasso, e tempos ( sílabas “bar” e che”), em que
naturalmente num compasso quaternário são tocados forte e meio forte,
respectivamente, obrigando, portanto, o cantor a enfatizar as sílabas que
correspondem a essas notas.
Dessa forma, percebemos que, apesar dessa acomodação lingüística à
melodia, não houve prejuízo da inteligibilidade da canção.
Outro recurso de persuasão são os dêiticos
57
, que se fundem à melodia,
estabelecendo entre eles uma simbiose que favorece o ouvinte a presentificação da
cena, dando-lhe a impressão de que a situação ocorre naquele exato momento.
56
Luiz TATIT, A canção, eficácia e encanto, p. 7.
57
Dêiticos: segundo Luiz Tatit, palavra esdrúxula que vem do grego deiktikós (próprio para mostrar) e tem um valor especial
para a análise da canção. Os dêiticos são todos os elementos lingüísticos que servem para caracterizar uma situação de
locução.A canção, eficácia e encanto, p.15
Exemplo típico é “O leão”.
1) itico vocativo: é o recurso do chamamento.
Leão! Leão! Lo!
És o rei da criação!
2) itico espacial: indicadores do espaço na comunicação, viabilizados
através de advérbios, locuções adverbiais e pronomes demonstrativos,
especificados respectivamente abaixo.
Leão longe, leão perto
Nas areias do deserto
(...)
O leão fica olhando aquilo
No último verso, o termo “aquilo” representa um real movimento de alguém
apontando algo distante do falante e do ouvinte.
3) itico temporal: elemento indicador do tempo demonstrado na canção
por meio, por exemplo, de uma oração subordinada adverbial temporal.
Quando se cansam, o Leão
4) itico imperativo: pode aparecer na seqüência dos vocativos, que
acabam por vivificar a situação locutiva, que estabelecem um discurso
direto entre interlocutor e interlocutário. Isso acontece na canção “O
pingüim”
Pingüim, meu amigo (vocativo)
Não zangue comigo
Nem perca a estribeira
Não pergunte por quê (...)
5) Exclamação e interjeição: são outros dêiticos que permitem a realização
de uma unidade entoativa, com valor, ao mesmo tempo, musical e
lingüístico. Percebe-se esse entrelaçamento em “A cachorrinha”:
Uau, uau, uau, uau!
Uau, uau, uau, uau!
Isso também acontece em “O peru”:
Glu! Glu! Glu!
O que chega a favorecer a presença de uma onomatopéia.
6) Gírias: palavras ou expressões usadas na linguagem coloquial,
representando variações lingüísticas modificadas após algum tempo de
uso. Esse tipo de dêitico aparece em “O pingüim”:
Lelé da caixola
Em “A galinha d’Angola”, no verso:
Regulando da bola
(...)
Ela é uma bagunceira
De uma figa
Conforme Tatit:
O rendimento dessas expreses é o mesmo da linguagem
coloquial. Melodia e texto acusam algm falando naquele exato
momento.
58
Será importante perceber que há um esforço de deitização empreendido pelo
compositor e que encontra eco no intérprete. Acontece o processo completo de
figurativização: música, letra e interpretação entoativa ocorrendo simultaneamente.
Tal fusão infere uma compatibilidade entre texto e melodia, sugerindo uma
linguagem coloquial.
um outro aspecto de construção do sentido da canção popular, chamada
por Tatit, de modalização. O compositor coloca no discurso os seus estados
psíquicos e seus desenvolvimentos narrativos. Quando o compositor entra em
síncrese com o intérprete, valoriza seu ponto de vista e personaliza os sentimentos
relatados, ocorrendo o processo de sobremodalização.
O intérprete acaba por se apresentar como protagonista de uma aventura
narrativa e, dependendo de seu estado de ânimo (alma), ocorrerá a compatibilidade
modal do texto com a melodia de uma maneira persuasiva, e, então, a
sobremodalização se completa, o que irá estabelecer uma cumplicidade emocional.
uma espécie de sentimento de solidariedade provocado pelo aspecto passional
do intérprete, originado pela persuasão passional.
A persuasão passional é notada em “O filho que eu quero ter”:
É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme, que a noite já vem
58
Luiz TATIT, A canção, eficácia e encanto, p. 24.
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem
De repente eu vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim
Dorme, menino levado
Dorme, que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem
Quando a vida, enfim, me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme, que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter
Observa-se, ainda, que o desenho melódico da canção se repete duas vezes
dentro de cada estrofe, que também é repetido em todas as estrofes. A estrutura
desenhada a seguir é a mesma durante toda a canção, o que faz acentuar ainda
mais o aspecto passional da mesma.
no centro dessa tensão emocional um estado juntivo. A própria conjunção
é vista como um fator que desencadeia emoções positivas, o que Tatit chama de
figura passional de satisfação. Esse tipo de modalização textual é encontrado em
“Menininha”, em seus versos finais:
Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei
Às vezes, a emoção pode ser causada pelo estado disjuntivo, em que um
actante aparece em disjunção com outro actante, o que acaba por provocar um
desequilíbrio narrativo e uma quase obrigatoriedade de um equilíbrio que deverá ser
conseguido através de um novo estão de conjunção. Tal situação pode ser
encontrada na canção “O filho que eu quero ter”:
(...) Quando a vida, enfim, me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme, que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter
Nesses versos, essa disjunção manifesta-se também por meio da
modalização da melodia, quando a fala se reproduz esteticamente: se o compositor
quer expressar uma certeza ou uma convicção a respeito de alguma idéia, ele
acentua a descendência melódica, e o discurso parece ficar concluído.
O último tipo de persuasão citado por Tatit
59
é a decantatória. Com base
nesse termo, ele afirma que Não é nem a figurativização (referência à fala) nem a
modalização que garantem, aqui, a compatibilidade entre texto e melodia. É a
identificação programada de um tema melódico com um actante construído”.
O recurso maior de significação melódica é a reiteração, pois é através desse
recurso que podemos prever, com base no que ouvimos, o que ainda ouviremos.
Quanto mais reiteração, maior a independência melódica, ou seja, a melodia se
basta.
Quando a melodia mais se afasta das entoações da fala e da posição de
coadjuvante do texto, mais opera lado a lado com ele, estabelecendo um outro tipo
de compatibilidade que pode ter uma raiz entoativa, como, por exemplo, em “O
leão”:
Leão! Leão! Lo!
Foi Deus que te fez ou não?
59
Luiz TATIT,A canção, eficácia e encanto, p.47.
De acordo com Tatit, “o ritmo e as acentuações do componente melódico
fundam os gêneros que estamos acostumados a ouvir”
60
. O gênero acaba sendo
extremamente valorizado pelo processo intensivo de tematização, o que resulta na
sua própria exaltação. Temos como indicador desse processo, por exemplo, a
canção “As abelhas”:
Num zune-que-zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar com o jasmim
Havendo comentário recíproco entre texto e melodia, ocorre o que Tatit
chama de persuasão somática. O intérprete conduz o ouvinte a preparar o seu corpo
para o ritmo que irá escutar. Tal situação concretiza-se, se houver, por parte do
ouvinte a questão cognitiva, ou seja, o reconhecimento do gênero musical, o que
resulta uma euforia empática.
Dentro da persuasão decantatória, temos o fator exaltação, que evidencia os
atributos do actante que pode ter a função daquele que desencadeia o processo de
sedução, como acontece na canção “A cachorrinha”:
Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!
Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
60
Luiz TATIT, A Canção: eficácia e encanto., p. 49.
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
A reiteração melódica assegura a persuasão somática e a persuasão
cognitiva, em que o actante, no caso a cachorrinha, é dotado de uma competência
para a sedução. O ouvinte passa pelo processo do poder fazer querer.
Nessa canção “A cachorrinha”, ocorre uma compatibilidade chamada de
periodicidade, ou seja, o caráter cíclico da melodia que sempre retorna ao mesmo
ponto“, o que ocasiona uma espécie de hipnose produzida pela melodia e pelo texto
em traços de complementaridade.
O mesmo ocorre em “O pato“:
Esse recurso é largamente utilizado nas canções dos discos “A Arca de Noé”
e “Arca de Noé 2”
61
.
O termo decantação foi utilizado por Tatit tendo duas acepções. A primeira
significa celebrar ou exaltar alguém em cantos ou em versos”. A segunda tem o
sentido de “repetir sempre a mesma coisa, repisar“, levando ao encantamento.
Na persuasão decantatória, existe, segundo Tatit, um simulacro de
persuasão, em que o ouvinte vive a situação exaltada na canção como se ele fosse
o próprio personagem da mesma. Ele se dentro daqueles atributos dirigidos ao
ser principal da narrativa. Observa-se em “O filho que eu quero ter”:
De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim
A eficácia de uma canção popular depende desses três processos de
persuasão: figurativização, passional e decantatória. Seja por um deles ou pela
simultaneidade dos três, tal fato ocasiona no ouvinte uma ação de procura da
canção desejada.
Tome-se como um exemplo-síntese Menininha”, em que ocorre essa
simultaneidade.
A persuasão figurativa é reconhecida em alguns versos, em que acontece a
situação locutiva, como, por exemplo:
Menininha o cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
61
Recurso comprovadamente demonstrado nas partituras escritas durante o estudo feito com base na
audição dos discos analisados. As mesmas encontram-se anexas após o anexo das letras das
canções.
Nesse momento, existe um direcionamento da fala do locutor com o ouvinte,
no caso a criança, o que resulta numa cumplicidade entre ambos.
Por outro lado, a persuasão passional é percebida nos versos:
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei
nesses versos a predominância da persuasão passional, quando o
intérprete faz com que o ouvinte se emocione com a canção comunicada.
Já a persuasão decantatória aparece nos seguintes versos da canção:
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
A identidade da canção neste estudo é salvaguardada pela melodia e pelos
versos, sendo que as canções dos dois discos analisados têm a predominância da
persuasão figurativa e decantatória. A primeira acentuada pelos dêiticos e a
segunda pelas reiterações temáticas. A persuasão passional acontece, porém,
apenas em duas canções, em “Menininha” e “O filho que eu quero ter”.
O êxito de uma canção, como pôde ser observado, origina-se da eficácia do
encanto adquiridos durante as etapas de composições e destinação, consolidadas
por meio de uma estética específica e publico-alvo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o presente estudo, em que foram delineadas vertentes diferentes,
porém não inesgotáveis, chega-se a algumas possibilidades que norteiam a eficácia
das canções de “A Arca de Noé” e “Arca de Noé 2“.
Através das análises realizadas, pôde-se verificar a importância da interação
possível entre melodia e texto, favorecedora da imagem poética infantil e o
despojamento da criança ouvinte, ao interagir ludicamente com a música, envolvida
pelo seu encantamento.
Os discos “A Arca de Noé” e Arca de Noé 2” delineiam um rico universo que
aborda as questões em estudo. uma integração entre os sons musicais e a
palavra, advinda de uma leitura comparativa de ambos, envolvida por uma fantasia
calcada em fábulas e contos de fadas, cuja sinestesia acaba por construir e
estimular o imaginário infantil.
Essa pesquisa rastreia as maneiras de favorecimento quanto à questão da
formação de uma determinada imagem mental. A repetição do texto e do desenho
melódico, por exemplo sonorizam, as características dos actantes, levando a
criança a criar o simulacro sonoro a partir da sua escuta.
Há que se pensar ainda em outros fatores que favorecem a eficácia da
canção popular como por exemplo o ritmo e as questões do arranjo instrumental,
que, apesar de não se constituírem no objeto da análise deste trabalho podem
incentivar futuros estudos nessa área.
“A Sonoridade Imagética de “A Arca de Noé” “, é, portanto, um estudo que,
ao abordar os recursos composicionais somados às investigações da recepção por
parte da criança, torna-se o início de um caminho a ser percorrido , pois tanto o
imaginário infantil quanto as singularidades cancionais o instigantes e
desafiadores .
ANEXOS
1. Letras das canções do disco “A Arca de Noé”
1) A Arca de Noé
Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água mpida e contente
Do ribeirinho da mata.
O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplandecente
No céu, no chão, na cascata.
E abre-se a porta da arca.
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca.
Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas.
Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante
E de dentro de um buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece
“Os bosques são todos meus!
Ruge o soberbo leão
“Também sou filho de Deus!”
Um protesta, o tigre – “não!
A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair.
Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.
Os maiores m à frente
Trazendo a caba erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.
Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros em glória
Enchem o céu de seus caprichos.
Em meio a noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada.
2) O Pato
Lá vem o pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o pato
Para ver o que é que há.
O pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco
Pulou do poleiro
No pé do cavalo
Levou um coice
Criou um galo
Comeu um pedo
De genipapo
Ficou engasgado
Com dor no papo
Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela.
3) A Corujinha
Corujinha, corujinha
Que peninha de você
Fica toda encolhidinha
Sempre olhando, não sei que
O seu canto de repente
Faz a gente estremecer
Corujinha, corujinha
Todo mundo que te vê
Diz assim, ah! Coitadinha
Que feinha que é você
Quando a noite vem chegando
Chega o teu amanhecer
E se o sol vem despontando
Vais voando te esconder
Hoje em dia andas vaidosa
Orgulhosa com quê
Toda noite tua carinha
Aparece na TV
Corujinha, corujinha
Que feinha que é você!
4) A Foca
Quer ver a foca
Ficar feliz?
É por uma bola
No seu nariz
Quer ver a foca
Bater palminha?
É dar a ela
Uma sardinha
Quer ver a foca
Comprar uma briga?
É espetar ela
Bem na barriga
Lá vai a foca
Toda arrumada
Dançar no circo
Pra garotada
Lá vai a foca
Subindo a escada
Depois descendo
Desengoada
Quanto trabalha
A coitadinha
Pra garantir
Sua sardinha.
5) As Abelhas
A abelha mestra
E as abelhinhas
Tão todas prontinhas
Para ir numa festa
Num zune-que-zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar como jasmim
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu (4 vezes)
A abelha rainha
Está sempre cansada
Engorda a pancinha
E não faz mais nada
Num zune-que-zune
Lá vão pro jardim
Brincar com a cravina
Valsar como jasmim
Da rosa pro cravo
Do cravo pra rosa
Da rosa pro favo
E de volta pra rosa
Venham ver como dão mel
As abelhas do céu (4 vezes)
6) A Pulga
Um, dois, três,
Quatro, cinco, seis,
Com mais um pulinho
Estou na perna do freguês
Um, dois, três,
Quatro, cinco, seis,
Com mais uma mordidinha
Coitadinho do freguês
Um, dois, três,
Quatro, cinco, seis,
To barriguinha cheia,
Tchau
Good-bye
Auf wedersehen
7) Aula de Piano
Depois do almoço na sala vazia
A mãe subia pra s recostar
E no passado que a sala escondia
Sua filhinha ficava a esperar
O professor de piano chegava
E começava uma nova lição
E a menininha, tão bonitinha
Enchia a casa feito um clarim
Abria o peito, mandava brasa
E solfejava assim
Ai, ai, ai,
La, sol, fá, mi,
Tira a mão d
Do, do, ré, dó, si
Aqui o da pé
Mi, mi, fá, mi, ré
E agora o sol,
Pra lição acabar
Diz o refo quem não chora não mama
Veio o sucesso e a consagração
No repertório e na execão
Que finalmente deitaram na fama
Tendo atingido a total perfeição
Nunca se viu tanta variedade
A quatro mãos em concertos de amor
Mas na verdade, tinham saudade
De quando ele era seu professor
E quando ela menina e bela
Abria o berrador
Ai, ai, ai
Lá, sol, fá, mi,
8) A Porta
Sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Não há coisa no mundo
Mais viva que uma porta
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de sopetão
Pra passar o capitão
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Eu fecho tudo no mundo
Só vivo aberta no céu!
9) A Casa
Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ningm podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão
Ningm podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ningm podia
Fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita
Com muito esmero
Na rua dos bobos
Numero zero.
10) São Francisco
Lavai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.
Lá vai o Francisco
De pé no chão
Levando nada
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão
Lá vai o Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.
11) O Gato
Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Do co ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao co
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
Se num novelo
Fica enroscado
Ouriça o pêlo
Mal-humorado
Um preguiçoso é o que ele é
E gosta muito de cafuné
Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Do co ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao co
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando à noite vem a fadiga
Toma seu banho
Passando a língua pela barriga
12) O Relógio
Passa, tempo
Tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
13) Menininha
Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha o cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão
Meninha que gra é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, e você
Vai sofrer de repente
Na desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão
Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.
2. Letras das canções do disco “Arca de Noé 2”
1) Abertura (texto falado)
A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair.
Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.
Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Quem passam, passam até
Onde a vista não avista...
2) O Leão
“Leão! Lo! Leão!
Rugindo como um trovão
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.
Leão! Leão! Lo!
És o rei da criação!
Tua goela é uma fornalha
Teu salto uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda
Leão longe, leão perto
Nas areais do deserto
Leão alto sobranceiro
Junto do despenhadeiro.
Leão! Leão! Lo!
És o rei da criação!
Leão na caça diurna
Saindo a correr da furna.
Leão! Leão! Lo!
Foi Deus quem te fez ou não!
Leão! Leão! Lo!
És o rei da criação.
O salto do tigre é pido
Como o raio; maso há
Tigre no mundo que escape
Do salto que o leão dá.
Não conheço quem defronte
O feroz rinoceronte
Pois bem, se ele o lo
Foge como um furacão.
Leão! Leão! Lo!
És o rei da criação
Leão! Leão! Lo!
Foi Deus quem te fez ou não!
Leão se esgueirando à espera
Da passagem de outra fera...
Vem um tigre como um dardo
Cai-lhe em cima o leopardo
E enquanto brigam tranqüilo
O leão fica olhando aquilo.
Quando se cansam, o lo
Mata um com cada mão.
Leão! Leão! Lo!...”
3) O Pingüim
Bom dia, pingüim
Onde vais assim
Com ar apressado?
Eu não sou malvado
Não fique assustado
Com medo de mim
Eu só gostaria de dar um tapinha
No seu chapéu jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca
Quando você caminha
Parece o Chacrinha
Lelé da caixola
E um velho senhor
Que foi meu professor
No meu tempo de escola
Pingüim, meu amigo
Não zangue comigo
Nem perca a estribeira
Não pergunte por quê
Mas todosem você
Em cima da geladeira
4) O Pintinho
Pintinho novo
Pintinho tonto
Não estás no ponto
Volta pro ovo
Eu não me calo
Falo de novo
Não banque o galo
Volta pro ovo
A tia raposa
Não marca touca
Ta só te olhando
Com água na boca
E se ligeiro você escapar
Tem um granjeiro
Que vai te adotar
O meu ovo ta estreitinho
Já me sinto um galetinho
Já posso sair sozinho
Eu já sou dono de mim
Vou ciscar pela cidade
Grão-de-bico em quantidade
Muito milho e liberdade
Por fim
Pintinho raro
Pintinho novo
Ta tudo caro
Volta pro ovo
E o tempo inteiro
Terás pintinho
Um cozinheiro
No teu caminho
Por isso eu digo
E falo de novo
Pintinho amigo
Então volta pro ovo
Se de repente
Você escapar
Num forno quente
Você vai parar
Gosto muito dessa vida
Ensopada ou cozida
Até assada é divertida
Com salada e aipim
Tudo é lindo e a vida é bela
Mesmo sendo a cabidela
Pois será numa panela
Meu fim
Por isso eu digo
E falo de novo
Pintinho amigo
Então volta pro ovo
E se ligeiro
Você escapar
Tem um granjeiro que vai te adotar.
5) A Cachorrinha
Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!
Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?
Uau, uau, uau, uau!
Uau, uau, uau, uau!
6) O Girassol
Sempre que o sol
Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel
Fica um gentil
Carrossel
Roda, roda, roda
Carrossel
Roda, roda, roda
Rodador
Vai rodando, dando mel
Vai rodando, dando flor
Sempre que o sol
Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel
Fica um gentil
Carrossel
Roda, roda, roda
Carrossel
Gira, gira, gira
Girassol
Redondinho como o u
Marelinho como o sol
7) O ar (O vento)
Estou vivo, mas o tenho corpo
Por isso é que eu não tenho forma
Peso eu também o tenho
Não tenho cor
Quando sou fraco
Me chamo brisa
E se assobio
Isso é comum
Quando sou forte
Me chamo vento
Quando sou cheiro
Me chamo pum
8) O Peru
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!
O peru foi a passeio
Pensando que era pavão
Tico-tico riu-se tanto
Que morreu de congestão
O peru dança de roda
Numa roda de carvão
Quando acaba fica tonto
De quase cair no co.
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!
Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!
O peru se viu um dia
Nas águas do ribeirão
Foi-se olhando, foi dizendo
Que beleza de pavão
Foi dormir, teve um sonho
Logo que o sol se escondeu
Que sua cauda tinha cores
Como a desse amigo seu.
9) O Porquinho
Muito prazer sou o porquinho
Eu te alimento também
Meu couro bem tostadinho
Quem é que não sabe o sabor que tem
Se você cresce um pouquinho
O mérito, eu sei,
Cabe a mim tamm.
Se quiser me chame
Te darei salame
E a mortadela
Branca, rosa e bela,
Num pãozinho quente
Continuando o assunto
Te darei presunto
E na feijoada
Mesmo requentada
Agrado a toda gente.
Se quiser me chame...
Sendo um porquinho informado
O meu destino bem sei
Depois de estar bem tostado
Fritinho ou assado
Eu partirei
Com a tia vaca do lado
Vestido de anjinho
Pro céu voarei.
Do rabo ao focinho
Sou todo toicinho
Bota malagueta
Em minha costeleta
Numa gordurinha
Que coisa maluca
Minha pururuca
É uma beleza
Minha calabresa
No azeite fritinha.
10) A Galinha D’Angola
Coitada, coitadinha
Da galinha d’angola
Não anda ultimamente
Regulando da bola
Ela vende confusão
Compra briga
Gosta muito de fofoca
Adora intriga
Fala tanto
Que parece que engoliu uma matraca
E vive reclamando
Que está fraca
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
Coitada, coitadinha
Da galinha d’angola
Não anda ultimamente
Regulando da bola
Come tanto
Até ter dor de barriga
Ela é uma bagunceira
De uma figa
Quando choca, cocoroca
Come milho e come caca
E vive reclamando
Que está fraca
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
11) A Formiga
As coisas devem ser bem grandes
Pra formiga pequenina
A rosa, um lindo palácio
E o espinho, uma espada fina
A gota d’água, um manso lago
O pingo de chuva, um mar
Onde um pauzinho boiando
É navio a navegar
O bico de pão, o Corcovado
O grilo, um rinoceronte
Uns grãos de sal derramados
Ovelhinhas pelo monte.
12) Os Bichinhos e o Homem
Nossa irmã, a mosca
É feia e tosca
Nosso irmão, o mosquito
É mais bonito
É mais bonito.
Nosso irmão, o besouro
É feito de couro
Mal sabe voar
Mal sabe voar.
Nossa irmã, a barata
Bichinha mais chata
É prima da borboleta
Que é uma careta
Que é uma careta.
Enquanto que o grilo
Que vive dando estrilo
Só pra chatear
Só pra chatear
E o bicho-do-pé
Que gostoso que ele é
Quando dá coceira
Coça que não é brincadeira
E nosso iro carrapato
Que é um outro bicho chato
É primo-iro do bacilo
Que é irmão tranqüilo
Que é irmão tranqüilo
E o homem que pensa tudo saber
Não sabe o jantar que os bichinhos vão ter
Quando o seu dia chegar
Quando o seu dia chegar.
13) O Filho Que Eu Quero Ter
É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme, que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem
De repente eu vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim
Um menino sempre a me perguntar
Um por qque o tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim
Dorme, menino levado
Dorme, que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem
Quando a vida, enfim, me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme, que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter
3.Partituras das canções de “A Arca de Noé”
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4. Partituras das canções de “Arca de Noé 2”
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130
131
132
133
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TATIT, L. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
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