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3) o leitor, enunciatário, “incorpora, assimila um conjunto de esquemas que
correspondem à maneira específica de relacionar-se com o mundo, habitando
seu próprio corpo” (Maingueneau, 2005). Ou seja: o leitor imagina um corpo,
físico, e o atribui àquele enunciador que lhe dirige a palavra. Essa atribuição
não é imotivada: é originada das marcas textuais produzidas pelo enunciador
que, checadas com o conhecimento de mundo do próprio leitor, lembram a
este as “feições” de um indivíduo que se comporte socialmente de acordo
com o mostrado no texto;
4) esse processo de “incorporação” é cognitivamente realizado como uma
mescla, em que o leitor conceptualiza o ser que lhe fala a partir de um
conjunto de traços experiencialmente relacionados com aquela voz, com
aquele “tom”, para usar um termo cunhado por Maingueneau. Perceba-se que
tal “corpo” é intrinsecamente ligado às referências socioculturais do leitor,
fator com o qual o enunciador deve contar na persuasão
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.
As informações socioculturais (logo, compartilhadas) que se têm sobre João
Ubaldo Ribeiro, seu ethos prévio, são de um intelectual com um olhar voltado para a
condição social de seu povo, para questões políticas em geral, crítico contumaz de
“politicalhas”
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. Sabe-se, também, de sua ironia refinada e mordaz, de sua erudição,
e do valor artístico de sua obra literária, traduzida para vários idiomas.
Textualmente, o que se vê – nos dois trechos supracitados, e em muitos outros de
sua obra – é um enunciador que afirma saber o risco de assumir frontalmente suas
opiniões, mas, ainda assim, sarcástica ou duramente, o faz. É o ethos discursivo se
inscrevendo na franqueza da assunção do risco.
Logicamente, sarcasmo ou dureza fazem diferença para o leitor a ser
convencido. Alguém menos agressivo teria, a princípio, mais dificuldade em aceitar a
aspereza na exposição dos argumentos, estratégia essa provavelmente louvável
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É relativamente fácil compreender tal fenômeno, dois exemplos podem torná-lo bem visível. A
música “Meu guri”, de Chico Buarque, não traz, literalmente, nenhuma referência ao “sexo” do eu-
lírico. Entretanto, é comum encontrar homens que o percebam como um pai falando de sua relação
com seu filho; mulheres, em geral, reconhecem ali a figura materna. Outro exemplo tirado de nossa
música é a letra de Ivan Lins e Vítor Martins, “Começar de novo”. É difícil que alguém que conheça
essa canção, que lembre do contexto de seu surgimento, das condições e da magnitude do seu
sucesso, não a credencie a um eu-lírico feminino; alguém que nunca a tenha ouvido, não tenha as
mesmas referências, não passa por esse processo, porque não há, na letra, nenhuma marca de
incontestável feminilidade desse eu-lírico. O que há é a recorrência – muitas vezes inconsciente – ao
nosso conhecimento de mundo, e a imediata (ou a não) associação da canção, da melodia, ao
universo “Malu mulher”.
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Referimo-nos, mais especificamente, aos textos de opinião, que, mesmo não compondo a maior
parte da obra do acadêmico, nem, possivelmente, a mais importante, são o objeto de análise neste
trabalho.