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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A MATERIALIDADE LINGÜÍSTICA DA CONSTRUÇÃO DO ETHOS
– UMA PERSPECTIVA DISCURSIVA E COGNITIVISTA.
por
LUCIANO CARVALHO DO NASCIMENTO
Aluno do Curso de Mestrado em Língua Portuguesa
Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa apresentada à Coordenação
dos Cursos de s-Graduação em Letras
Vernáculas da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Professora Doutora Maria
Aparecida Lino Pauliukonis,Co-
orientadora: Professora Doutora Ana
Flávia Lopes Magela Gehardt.
Rio de Janeiro
2006
Defesa de Dissertação
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NASCIMENTO, Luciano Carvalho do. A
materialidade lingüística da construção do
ethos uma perspectiva discursiva e
cognitivista. Dissertação de Mestrado em
Língua Portuguesa apresentada à
Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________________________
Professora Doutora Maria Aparecida Lino Pauliukonis – UFRJ
Orientadora
______________________________________________________________
Professora Doutora Ana Flávia Lopes Magela Gehardt – UFRJ
Co-orientadora
______________________________________________________________
Professora Doutora Branca Falabella Fabrício – UFRJ
______________________________________________________________
Professora Doutora Regina Souza Gomes – UFRJ
______________________________________________________________
Professor Doutor Mario Eduardo Toscano Martelotta – UFRJ
Rio de Janeiro
2006
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3
Aos meus pais, à minha esposa e aos meus filhos,
por tudo que foram, são e serão para esta folha,
que só não é em branco porque traz em si as
marcas daqueles que a criam e recriam, todo o
tempo.
Nada disto existiria se não por vocês.
4
Agradecimentos
A Deus,
por tudo.
À Professora Doutora Maria Aparecida Lino Pauliukonis,
pela generosidade, e pela habilidade inata de demonstrar
que não há argumentos que se oponham à verdadeira
sabedoria.
À Professora Doutora Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt,
por seu desprendimento, sua compreensão e sua
amizade; por ter mostrado o caminho; pela zelosa
companhia na jornada.
Aos meus irmãos
Adalberto, Renato, Carolina (de fato), Mauro José e Diogo
(de direito), por ser tão bom poder chamar vocês assim.
5
SINOPSE
A construção da imagem de
credibilidade do enunciador em
textos jornalísticos de opinião. As
estratégias lingüístico-discursivas
envolvidas nesse mecanismo. O
processo cognitivo na construção da
imagem discursiva desse
enunciador.
6
RESUMO
NASCIMENTO, Luciano Carvalho do. A
materialidade lingüística da construção do
ethos uma perspectiva discursiva e
cognitivista. Dissertação de Mestrado em
Língua Portuguesa apresentada à
Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
Esta dissertação desenvolve uma análise discursiva e cognitivista do processo de
construção da imagem de credibilidade do enunciador em textos jornalísticos de
opinião. Foram selecionados vinte e cinco textos argumentativos do escritor
brasileiro João Ubaldo Ribeiro veiculados em jornais de grande circulação do país
entre 1999 e 2006. Os mecanismos de modalização compõem o instrumental de
análise, feita à luz dos estudos de Aristóteles, Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-
Tyteca, Dominique Maingueneau, Gilles Fauconnier e Margarida Salomão.
7
ABSTRACT
NASCIMENTO, Luciano Carvalho do. A
materialidade lingüística da construção do
ethos uma perspectiva discursiva e
cognitivista. Dissertação de Mestrado em
Língua Portuguesa apresentada à
Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
This dissertation develops an approach which combines discursive and cognitive
studies and applies it to the analysis of the construction of the enunciator’s credibility
in argumentative journalistic texts. Twenty-five opinion texts by Brazilian writer João
Ubaldo Ribeiro have been selected from two of Brazil’s most influential newspapers
between 1999 and 2006. The modal mechanisms are the tools used in the analysis,
based on the studies of Aristotle, Chaïm Perelman & Lucie Olbrechts-Tyteca,
Dominique Maingueneau, Gilles Fauconnier and Margarida Salomão.
8
SUMÁRIO
1 - Começando ............................................................................................................9
2 – Refazendo caminhos............................................................................................12
2.1 – A Retórica de Aristóteles........................................................................14
2.1.1 – Princípios da Retórica aristotélica.............................................14
2.1.2 – O Ethos aristotélico: phrónesis, areté e eunóia........................16
2.2 – A nova retórica........................................................................................19
2.2.1 – Entre persuadir e convencer.....................................................20
2.2.2 – Auditório universal e auditório particular...................................21
2.2.3 – Ethos segundo Maingueneau...................................................22
2.3 – A visão cognitivista.................................................................................26
2.3.1 – Um pouco das origens da Lingüística Cognitiva.......................26
2.3.2 – Conceitos básicos.....................................................................28
2.3.3 – A integração conceptual, ou mesclagem .................................31
2.3.4 – A mesclagem na enunciação....................................................34
2.4 – A modalização........................................................................................38
2.4.1 – Os modalizadores.....................................................................40
2.5 – A polifonia...............................................................................................44
3 – Concatenando as idéias.......................................................................................46
3.1 Análise dos
dados...................................................................................46
3.2 - Conclusões.............................................................................................48
3.2.1 – “Fiador” e “Enunciador” são elementos diferentes....................48
3.2.2 – A sucessão de mesclagens e a eficácia da argumentação......54
3.2.2.1 – Em “Senhor presidente”..............................................55
3.2.2.2 – Em “Eu sou leal”..........................................................56
3.2.3 – O ethos de JUR é areté............................................................57
4 – Por fim..................................................................................................................60
5- Referências bibliográficas......................................................................................62
6- Anexos...................................................................................................................65
9
CAPÍTULO 1 – COMEÇANDO
A necessidade de convencer o outro é tão antiga no homem quanto o
reconhecimento da intencionalidade nas ações alheias. Aliás, segundo Tomasello
(2003), é justamente essa capacidade de estabelecer relações de intencionalidade
que primariamente nos distingue dos outros animais.
Não tão longeva quanto o passo determinante de nossa evolução, mas ao
largo de incipiente, a Retórica tem, desde os sábios gregos, instigado nos homens o
desejo de desvendar, definitiva e categoricamente, os meandros do convencimento
pela palavra.
Aristóteles debruçou-se sobre o tema no intuito de teorizar acerca do que era
prática na sua época: as disputas dialéticas, em que os oponentes deviam por
meio de argumentos lógicos, verdadeiros e sustentáveis fazer o outro entrar em
contradição, ou, no nimo, corroborar, a contragosto, mas por força de respostas
que não se pudera furtar a dar, as idéias defendidas pelo adversário. Nisso, a
propósito, os confrontos dialéticos diferiam dos sofistas, nos quais importava mais
manter, a qualquer custo, mesmo ao da falácia, a discussão.
Ao longo dos séculos, muitos têm sido os filósofos e os teóricos da linguagem
a se ocuparem com os mecanismos de persuasão. Chaïm Perelman & Olbrechts-
Tyteca, Patrick Charaudeau, Ruth Amossy, Dominique Maingueneau estão entre os
maiores expoentes nessa pesquisa, justamente por levarem em consideração
partindo, essencialmente, dos estudos aristotélicos um efeito inquestionável da
invenção e do desenvolvimento da imprensa, desde Gutenberg: a propagação do
texto escrito.
Se antes se acreditou que estudar a figura do orador, de seu auditório, da
interação entre os dois, e de seu comportamento suas ações e reações era o
suficiente, algum tempo a problemática se afigura ainda mais complexa. A figura
do orador está eclipsada, emergiu a do “autor”, um ser, na maioria das vezes, sem
rosto, sem voz. Entretanto, a persuasão continua. O ente abstrato, quase
sobrenatural, cuja existência o texto pressupõe, convence. Mais, até: ele cria, no
leitor, uma sensação de confiança, e mesmo de credulidade e fé. Tal crença está,
inclusive, ancorada nas afirmativas de Aristóteles sobre o caráter do orador, em sua
Retórica.
10
Como isso se dá? Que mecanismos se articulam, textual e extratextualmente
para esse mister? Indo ainda mais longe: como nossa mente se organiza para
empreender e compreender a argumentação?
Todas essas são questões abordadas neste trabalho, que visará: a) identificar
marcas lingüísticas da construção da imagem discursiva do enunciador; b)
compreender como tal construção se processa cognitivamente; c) verificar de que
artifícios um autor se vale para construir sua imagem discursiva; e d) avaliar a
freqüência da recorrência a esses artifícios, e o resultado disso na sua
argumentação.
O estudo se inicia pelos escritos de Aristóteles sobre Retórica, refaz o diálogo
entre tais textos e a atual teorização acerca da Argumentação (por Chaïm Perelman)
e da Análise do Discurso (por Dominique Maingueneau), chegando ao que mais
recentemente se produziu no âmbito da Lingüística Cognitiva (Gilles Fauconnier e
Margarida Salomão) no que tange à enunciação.
O conceito de Ethos (o caráter do orador, assunto que será abordado
adiante), por sua centralidade, tanto na Retórica Clássica quanto na Nova, se impôs,
também aqui, como farol e termômetro: farol porque norteia na imensidão do tema;
termômetro, porque mede, a um tempo, metaforicamente, a temperatura da
interação orador/enunciador e a do auditório/leitor, aferindo, conseqüentemente, a
da própria argumentação. Por conta dessa dupla função, é ele quem emoldura este
trabalho.
Buscando apoiar-se em situações reais de convicção pelo Ethos via palavra
escrita, foram escolhidos como corpus para a pesquisa textos publicados em jornais
de grande circulação nacional (O Globo e O Estado de São Paulo). No intuito de
verificar a possibilidade de haver alguma recorrência no uso de determinada(s)
estratégia(s) argumentativa(s), era necessário fixar o recolhimento desse corpus à
produção de um único autor; a opção foi por João Ubaldo Ribeiro, o acadêmico
baiano que semanalmente tem crônica ou artigo veiculado por tais jornais.
Foram tomados vinte e cinco textos: dez que datam de 1999 portanto,
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso –, e quinze publicados entre 2004
e 2006 no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Tal escolha se deve ao desejo de
verificar, sob uma perspectiva mais dilatada, a estratégia de um enunciador diante
de interlocutores tão peculiares quanto os dois presidentes, e em situações não
11
menos peculiares
1
. Partiu-se, então, para a análise daquilo que, a princípio, aponta
a presença do enunciador por detrás do enunciado escrito de maneira mais
irretorquível: os marcadores de modalização. Deveria haver uma ocorrência maior
de determinado tipo de modalização? Caso afirmativo, a que conclusões poder-se-ia
chegar sobre a adoção de tal estratégia?
A maior incidência de um dos modalizadores pôde, efetivamente, ser
atestada, depois da totalização e classificação de todos os marcadores encontrados.
Tal classificação se deu de acordo com os traços apontados por Parret (1988),
Azeredo (1999) e Koch (2005). Esse procedimento comprovou a materialidade
lingüística da eficiência do ethos como estratégia argumentativa.
O trabalho se estrutura em quatro capítulos. O primeiro, uma introdução
esta que ora se na qual são apontados, basicamente, as motivações, os
parâmetros, os objetivos e os limites do trabalho. O segundo constitui uma
panorâmica do arcabouço teórico que sustenta a análise que se fez do corpus. É
nesse capítulo que são apresentados os pressupostos teóricos de toda a análise
que se realiza, e que dá base às hipóteses levantadas.
No terceiro capítulo vê-se justamente a análise do corpus, e as conclusões a
que chegamos a partir da observação dos dados colhidos. Nessa seção são
apresentadas três hipóteses que o estudo nos permitiu comprovar. O quarto e último
capítulo traz o inventário dos avanços obtidos com esta pesquisa, bem como as
questões por ela suscitadas.
Há, ainda, a seguir, a apresentação das referências bibliográficas e, em
anexo, todos os textos que compõem o corpus deste trabalho.
Uma última consideração deve figurar nesta Introdução: é necessário ter em
vista que não aqui a pretensão de reduzir a uma duas epistemes tão
diferentes quanto a AD e a LC; tampouco se buscará levar a limites impalpáveis o
diálogo entre as duas teorias. O que se busca é refletir sobre a possibilidade de uma
leitura duplamente articulada do mecanismo da enunciação em textos
argumentativos, sem que haja hierarquização entre as duas ciências, mas, sim, a
observação do olhar de cada uma delas para um mesmo fenômeno.
Partamos, pois, para a exposição daquilo que motivou toda essa
apresentação: a pesquisa.
1
Quanto a isto, observem-se com atenção os textos 1 e 11, constantes do apêndice, cada um deles
veiculado no decorrer do governo de um dos presidentes.
12
CAPÍTULO 2 – REFAZENDO CAMINHOS
É do maior discípulo de Platão que se aprende serem, na oratória, três as
“provas”
2
fornecidas pelo discurso na persuasão: ethos, pathos e logos. Logos é o
poder demonstrativo imanente às palavras, ao discurso em si, é, pois, racional;
pathos é o lugar discursivo em que os ouvintes estão colocados, seu
comportamento (presumido ou atestado); e ethos é a imagem de confiabilidade que
o orador inspira. Ao contrário do primeiro, os dois últimos são afetivos.
Logos e pathos têm, ainda hoje, no nosso léxico, ecos de sua existência. Se
algo é “lógico” não precisa, em tese, ser defendido, pois se basta, é prova per se; da
mesma forma, é comum nos agruparmos com outras pessoas (em fãs-clubes, em
clubes, em comunidades da internet etc) segundo aquilo que nos é “simpático”, ao
passo que rechaçamos prontamente o que nos causa “antipatia”.
Tais elementos se configuram como provas, assim, por sustentarem um ponto
de vista, ou melhor, por fomentarem a adesão do ouvinte a determinada nuance de
uma questão em detrimento de outra face da mesma problemática. É o jogo
argumentativo que, intrinsecamente, busca meios de se manter e de possibilitar um
vencedor: se o argumento é “lógico”, é racional aceitá-lo; ou como o ouvinte
“simpatiza” com o argumento, o aceita prontamente.
Hoje se vêem, também, resquícios do vocábulo ethos no léxico da Língua
Portuguesa: a palavra “ética” tem nele sua raiz. Entretanto (e infelizmente), mais por
razões sociais do que propriamente lingüísticas, o significado de “ética”, do que é
ético, moral, é cada vez mais abstrato, quando não obscuro. É necessário, então,
buscar a fundo a compreensão do conceito primitivo: ethos, o comportamento
discursivo do orador que chama para si a responsabilidade de persuadir. E, se hoje
os grandes oradores não se vêem com tanta facilidade em praças públicas
ainda que se possa considerar que os meios de comunicação tenham tornado o
mundo uma grande praça, embora nem sempre pública –, é inegável que a invenção
2
Entenda-se “prova” como argumento. Não no sentido teórico atribuído ao termo pelos estudos da
prática da redação, por exemplo, mas, sim, no sentido de mecanismo, ou de sustentáculo sobre o
qual se apóia o plano persuasivo.
13
da imprensa, a disseminação do texto escrito como forma loquaz de comunicação
tenha propiciado, ou, até, exigido um novo tipo de ethos.
3
Por isso tudo, ao lado daquelas considerações sobre ele, todas
historicamente concernentes ao texto oral, é necessário dar a devida atenção ao fato
de que, numa enunciação escrita, os parceiros interlocutores in absentia têm
seus lugares definidos
4
via o que de concreto numa relação, em essência, volátil:
a palavra, sua materialidade visual. Ou, indo ainda mais ao centro da questão, o
discurso.
marcas textuais explícitas desse processo de edificação imagética do
enunciador via discurso, todas elas, necessariamente, partindo do pressuposto da
existência de um Outro a ser convencido, assumindo uma identificação com esse
enunciatário, presumindo seus posicionamentos, questionamentos e concordâncias,
atribuindo-lhe caracteres e mobilizando-lhe as paixões. Sempre com vistas à
convicção.
É justamente na intersecção dessas duas entidades (texto e discurso) que o
ethos se institui. Não pelo dito, mas pelo mostrado. Ele é, a um tempo, fruto de um
constructo textual, e uma manifestação discursiva; instancia-se pelas escolhas
deliberadas que o texto apresenta, feitas, e com cujo sentido o leitor,
conscientemente, ou nem tanto, negocia. É exatamente esse mecanismo de
instanciação que permite afirmar que o ethos é procedural (Eggs, 2005).
A seguir se verá, especificamente, como Aristóteles tratou a questão.
2.1 – A Retórica de Aristóteles
2.1.1 – Princípios da Retórica aristotélica
O pensamento de Aristóteles é, também no que diz respeito aos estudos de
oratória, um divisor de águas. Até suas considerações sobre a Retórica, o que havia
de mais nuclear na matéria era a oposição entre a dialética, que Platão afirmava ser
o “método científico por excelência”, e a sofística o convencimento pela palavra
3
É na inexorabilidade dessa afirmação que assenta a escolha de Dominique Maingueneau como
aporte teórico para este trabalho: ele estuda o Ethos escritural” em textos de comunicação, nos
publicitários, e até textos literários.
4
Ainda que não sejam aceitos tacitamente, são, necessariamente, presumidos.
14
elaborada, pomposa, ainda que pouco sustentável –, essencialmente representada
por Isócrates e Górgias (Reboul, 2004).
Entretanto, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a grande
contribuição do sábio grego não se trata de uma elevação da Retórica a nenhuma
posição de superioridade em relação às demais artes; tampouco deriva de uma
atribuição de um status científico àquilo que o orador empreende. O que diferencia
sua teorização acerca da Retórica é justamente o fato de que Aristóteles apontou
seus limites, definindo-a precisamente como uma técnica: a técnica de encontrar
todos os argumentos cabíveis numa questão a fim de persuadir
5
certo auditório
sobre determinado aspecto.
Essa persuasão se prestava a fins específicos, ou seja, ela estava a serviço
de um interesse. A aplicabilidade da Retórica é o que mais tipicamente a distingue
da Sofística, para quem a verdade, ou o verossímil, pouco importa: o que vale é o
belo, a grandiloqüência. Basta, para a sofística, a imponência da oratória, que era
um fim em si mesma.
Para Aristóteles, a Retórica é diferente, também, da Dialética. Esta era um
jogo, um esporte, no qual o objetivo era calar o oponente, prendendo-o em suas
próprias contradições (Reboul, 2004: 27). A Erística como originariamente se
chamava a Dialética – era, segundo Platão (apud Reboul) o método de que a ciência
devia se utilizar, justamente por apoiar-se estritamente na lógica, naquilo que se
podia observar e do que se podiam tirar conclusões verdadeiras.
Como nos diz Reboul (2004: 37)
“(...) a dialética constitui a parte
argumentativa da retórica. Cabe
esclarecer, porém, que a
argumentação não tem a mesma
função, portanto o mesmo sentido, em
ambos os casos. A dialética é um jogo
especulativo. A retórica, por sua vez,
não é um jogo. É um instrumento de
ação social, e seu domínio é o da
deliberação (buleusis); ora, esse
domínio é precisamente o do
verossímil. (...)
Em resumo, a retórica é uma
‘aplicação’ da dialética, no sentido de
5
“Assentemos que a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser
capaz de gerar a persuasão.” Retórica I, cap. II.
15
que a utiliza como instrumento
intelectual de persuasão. Mas
instrumento que não a dispensa de
modo algum dos instrumentos
afetivos.”
Mais uma vez o discípulo suplanta o mestre: Platão é duramente contestado
por seu aluno. Este mostrou que de nada valeriam certos argumentos, por mais
lógicos fossem (sustentados pelo logos, pela razão, stricto sensu), se seus
auditórios fossem formados por pessoas de pouca instrução, que não seriam, assim,
convencidas pelo que não compreenderiam, não as tocaria. É nesse âmbito que
surge a Retórica aristotélica, voltada para ensinar aquilo que o orador devia saber a
fim de ser capaz de persuadir os mais variados tipos de auditórios.
Tendo como objetivo persuadir, era necessário delinear estratégias de
argumentação. Partindo da observação dos textos correntes na época, foram
identificados três gêneros básicos: o judiciário, o deliberativo e o epidíctico. O
primeiro trata da acusação e da defesa em litígios; o segundo, da apreciação de
questões de interesse público; o terceiro é o gênero da censura, o que ressalta
aspectos louváveis ou depreciáveis nos homens.
Cada um dos gêneros está associado, segundo Aristóteles, a um tipo de
auditório e a um tempo (gramatical). Assim, o judiciário se dirige aos juízes,
utilizando, principalmente, o passado (o que foi, e deve ser julgado); o deliberativo
volta-se para a assembléia, usando mormente o futuro (o que será ou não será, e
deve ser decidido); o epidíctico objetiva o espectador mais geral, usando o tempo
presente (uma vez que fala do que é
6
).
É claro que, hoje, o agrupamento dos textos em apenas três gêneros é
insuficiente. muitos mais gêneros, e os auditórios são muito mais variados e
potencialmente numerosos. Entretanto, são inegáveis o avanço que tal classificação
significou para sua época e a agudeza de raciocínio do pensador. E seu mérito
(tanto de Aristóteles quanto de sua teoria) é precisamente esse.
Mas a análise não pára aí. Seguindo, de maneira bastante coerente, sua
concepção sobre a retórica e sua finalidade, a persuasão, o filósofo aponta que,
consoante o auditório, o orador deve fazer uso de cada um dos três argumentos
6
“do que é” para o orador, uma vez que cabe a ele assegurar que seu argumento seja o vencedor,
por ser o mais forte.
16
(que ele chama de provas) apresentados no início da seção anterior: logos,
pathos, e ethos.
Voltando a eles e à linearidade da exposição, depois de pequena mas
importante digressão –, é mister ver como se estrutura “a mais importante das
provas”: o ethos. É o que se fará nas linhas seguintes.
2.1.2 – O Ethos aristotélico: phrónesis, areté e eunóia
É muito mais digno de confiança alguém que pareça ser honesto e sincero.
Mas essas qualidades devem ser mostradas por atos, por comportamentos, e não
por simples declarações verbais. Destarte, na oratória é mais importante o parecer
do que o de fato ser. Atendo-nos, pois, ao ethos, à imagem do orador, foco deste
estudo, verificamos serem, conforme preceitua Aristóteles, três as virtudes que
quem toma a palavra deve demonstrar a fim de alcançar seu objetivo, isto é,
convencer a audiência de sua honestidade. Ele diz:
“Os oradores inspiram confiança, (a) se
seus argumentos e conselhos são sábios,
razoáveis e conscientes, (b) se são sinceros,
honestos e equânimes e (c) se mostram
solidariedade, obsequidade e amabilidade para
com seus ouvintes.”
7
Persuade-se pelo ethos quando se demonstra: serenidade e racionalidade,
sinceridade e honestidade, e amabilidade. Esses caracteres são chamados,
respectivamente, de phrónesis, areté e eunóia, e são “demonstrados” por meio das
escolhas efetuadas pelo orador: “ter ar ponderado” (phrónesis), “se apresentar como
um homem simples e sincero” (areté) e “dar uma imagem agradável de si” (eunóia)
8
.
Esses são três tipos de ethos a serem usados diferentemente, levando-se em
consideração cada tipo de auditório.
Phrónesis, (cf. Eggs, 2005) a competência, o ar de quem tem “conhecimento
aprofundado”, confere ao orador o tom sereno que transmite confiança ao auditório.
7
Retórica II, 1378a6
8
Ibid, Apud Eggs, 2005.
17
Por isso, está relacionado também ao logos, pois é racional acreditar em quem se
mostra mais capaz, mais sábio. Não é dispensável, porém, nesse caráter, uma
exposição que vise, objetivamente, à adequação dos argumentos à realidade
específica de cada questão que se levanta. Um orador que demonstre phrónesis
persuadirá com mais rapidez se, além de erudito, parecer ser honesto e sincero.
Isto se dá, em grande parte, quando se alcança a “justa medida”, isto é, o
ponto de equilíbrio, a “virtude” que está entre os dois extremos (a “falta” e o
“excesso”). A feição “virtuosa” é associada a comportamentos (“héxeis”
9
) que se
devem a hábitos e a disposições do orador previamente conhecidos pelo auditório,
ou apreciáveis in actu, durante a própria enunciação. Assim é que phrónesis se
institui como ser digno de confiança: denota um posicionamento equilibrado,
intrinsecamente persuasivo.
Areté, por sua vez, é a honestidade, a franqueza “como uma disposição que
se mostra pelas escolhas deliberadas” (Eggs, 2005). É a busca da “eqüidade”, da
observação das questões segundo suas idiossincrasias, tentando sempre encontrar
a motivação para os fatos, verificar a totalidade das circunstâncias neles envolvidas,
e não só o que há de perceptível em sua superfície.
Honestidade e franqueza se mostram, muitas vezes, pelo “ar viril (...)
decidido, corajoso, desbocado” (Fiorin, 2001). Um orador com tal comportamento
pareceria dizer o que pensasse, pareceria ser seguro de si, logo, mais digno de
confiança.
É necessário, neste momento, atentar para o fato de que ao areté não falta,
essencialmente, capacidade de análise, nem raciocínio lógico (em termos
cartesianos). O que lhe sobeja é o envolvimento emocional com a questão discutida.
É que phrónesis, a princípio, apóia-se na qualidade do discurso seu logos como
elemento de convicção (parecendo, por isso, mais racional); não se vincula tão
declaradamente quanto areté à figura do orador. Este, ao contrário, está
visceralmente ligado à ética, ao comportamento moral do orador.
Resta-nos entender eunóia. É o caráter solidário (Eggs, 2005), simpático, que
trata de não agredir (Fiorin, 2001). É a amabilidade e a boa disposição para
entender e ajudar o outro, para pôr-se em seu lugar. Também é tridimensional “uma
vez que deve ser a expressão adequada do tema tratado, do ethos do orador e do
ethos do auditório.”(Eggs, 2005).
9
Ética a Nicômaco (EN) 1106b 36, apud Eggs, 2005
18
Esse ânimo dispensa maiores explicações, uma vez que, se parte daquilo
desejado pelo auditório, se lhe é simpático, não há, por assim dizer, convencimento
por parte do orador (“convicção” stricto sensu, isto é, não há o “fazer crer” que
Perelman & Tyteca apontam, uma vez que o auditório já cria).
Como se pode ver, as três qualidades do ethos, que se definiu como “a
mais importante das provas”
10
, estão, também, em maior ou menor grau,
relacionadas às outras duas provas do discurso (logos e pathos). Phrónesis, areté, e
eunóia se relacionam, direta e respectivamente, com logos, ethos e pathos, sem que
se tripartam de maneira estanque. Antes, eles coexistem na convicção de um
ethos. Tal coexistência, nele, não implica a impossibilidade de que um caráter se
sobreponha aos demais em certa circunstância; ele deve adequar sua
argumentação às paixões (aos anseios) e aos habitus
11
de seu auditório, sem o que
de nada vale seu esforço, não haverá convencimento. O ethos é, pois, uma
“condensação específica” das demais dimensões.
12
A “condensação” se legitima pelo fato de que o ethos é, conforme se disse,
procedural
13
, ou seja, o caráter que ele assume, e sua eficiência, se devem,
essencialmente, às escolhas competentes, deliberadas e apropriadas que o orador
faz. Alguns procedimentos empregados na construção do ethos serão paulatina e
detalhadamente apresentados nos capítulos seguintes, em que se verá a análise do
corpus e dos dados dela advindos.
Por hora, é mister verificar como Perelman-Tyteca apresentam a Nova
Retórica.
2.2 – A Nova Retórica
O termo “Nova retórica” surge da observação, por Chaïm Perelman, dos
objetivos a que ele próprio se propunha nos seus estudos do julgamento de valor
dos argumentos no âmbito jurídico
14
. Sob a égide do pensamento filosófico
10
Eggs, 2005.
11
Entenda-se como habitus o comportamento do auditório (cf. Eggs, 2005), seu modo de agir/reagir
frente à argumentação do orador.
12
Eggs, 2005.
13
Essa afirmação é primordial para a análise a que se propõe esta dissertação, pois constitui pedra
fundamental da convergência que se quer provar existir entre as duas epistemes (AD e LC).
14
Cf. Fábio Ulhoa Coelho, no “Prefácio à edição brasileira” (In: Perelman-Tyteca, 1996)
19
aristotélico sobre a dialética, o estudioso belga discute a relação do orador com seu
auditório, no afã de delinear o que colabora para o estabelecimento do valor e do
mérito.
Voltando às origens da Retórica Clássica (a defesa dos próprios interesses,
que qualquer cidadão podia fazer, em praça pública, diante de um júri, na
Antigüidade
15
) a Nova procura descrever minuciosamente os artifícios
argumentativos de que alguém se pode valer em juízo no sentido de obter a adesão
de outras pessoas para seu ponto de vista. É, a princípio, um livro jurídico, mas que
transcendeu esses limites, chegando a constituir-se obra significativa para os
estudos de filosofia.
O orador, por exemplo, segundo essa nova vertente, é conforme o seu
auditório o exige; é um produto dele, na medida em que se deve moldar a partir
daquilo que mais eficiente se afigurar no intuito de convencer.
Toda a discussão suscitada no “Tratado da Argumentação” de Perelman-
Tyteca assenta em alguns pilares, dois dos quais essenciais para este trabalho: a
distinção entre persuadir e convencer, e as noções de auditório universal e auditório
particular.
É do que se trata a seguir.
2.2.1 – Entre persuadir e convencer
A distinção entre persuadir e convencer é bastante controversa. É
controversa, aliás, sua própria existência, bastante questionável. O fato é que, se em
língua natural a diferença é pouco perceptível, numa avaliação metalingüística
sucinta se pode entrever mais de um matiz para ambos os termos.
Perelman-Tyteca afirmam que persuadir é mais importante do que convencer
quando o interesse está no resultado. Convencer, então, fica para segundo plano,
por ser um primeiro estágio rumo a ação. Persuadir é, pois, fazer fazer, enquanto
convencer é fazer crer. Uma pessoa que é chantageada, por exemplo, pode ser
persuadida a fazer algo com que não concorde. O contrário também ocorre: alguém
que se convença dos males de uma alimentação nem por isso é persuadido a
mudar seus hábitos alimentares.
15
Reboul, 2004.
20
Os autores assinalam, outrossim, que uma argumentação é dita persuasiva
quando se presta a influenciar um auditório particular
16
, e convincente quanto visa a
todo ser racional. Afirmam, entretanto, que tal distinção ainda não é definitiva, uma
vez que depende do que se toma como parâmetro de normalidade, ou de
racionalidade.
Defendem, por fim, que “o matiz entre os termos convencer e persuadir seja
sempre impreciso e que, na prática, deva permanecer assim.” Isso se deve ao fato
de que as duas noções, por mais explicações que mereçam dos estudiosos da
argumentação, estarão sempre sujeitas às intempéries e variações dos auditórios a
que se dirijam.
Estando, pois, a argumentação, em sua essência, sujeita às idiossincrasias
do auditório, justificam-se as notas seguintes.
2.2.2 – Auditório universal e auditório particular
“Para que uma argumentação se desenvolva, é preciso, de fato, que aqueles
a quem ela se destina lhe prestem alguma atenção (Perelman-Tyteca, 1996).” Essa
afirmação está visceralmente relacionada com a proposta deste trabalho, uma vez
que, como afirmou Ruth Amossy (2005) “todo ato de tomar a palavra indica a
construção de uma imagem de si.”
A construção dessa imagem de si, portanto do ethos, se a partir das
expectativas de quem fala em relação a seu auditório, mas também consoante o
comportamento demonstrado perante a audiência. Do acerto no atendimento a
essas duas pré-condições depende o merecimento da atenção do auditório.
Perelman-Tyteca o definem como “o conjunto daqueles que o orador quer
influenciar com sua argumentação.” Nesse mister, adaptando-se a um auditório
particular, o orador corre o risco de utilizar argumentos que cabem perfeitamente
diante dele, mas que seriam absolutamente inadequados diante de outros tantos.
Como os argumentos que se adaptam a um número maior de auditórios o
mais valorizados, o orador deve buscar o acordo do auditório universal, isto é, a
concordância de todos aqueles que, uma vez sabedores da motivação e da
racionalidade dos argumentos, não se podem furtar a endossar tais idéias.
16
Este conceito será abordado mais detidamente na seção seguinte.
21
“Uma argumentação dirigida a um auditório
universal deve convencer o leitor do caráter
coercivo das razões fornecidas, de sua evidência,
de sua validade intemporal e absoluta,
independente das contingências locais ou
históricas
17
Neste caso, o “contato dos espíritos”, isto é, a identificação do expectador
com a exposição que se lhe apresenta, é alcançado por empatia com aquilo que
parece lógico ao auditório (ainda que verdadeiramente não o seja). Mais uma vez, é
necessário lembrar quão volúvel pode ser o conceito de razão. Em todo caso, se a
argumentação não convence a tantos quantos se esperava, o orador, dentro dos
limites do bom-senso, isto é, observando o quadro de discordâncias, pode
desqualificar os resistentes. Quer-nos parecer que é isso mesmo o que acontece,
muitas vezes.
Isso acontece porque “certos auditórios especializados costumam ser
assimilados ao auditório universal”
18
: certo de que sua argumentação é infalível para
o conjunto de todos aqueles que possuam as mesmas referências, o orador se dirige
aos seus ouvintes como se realmente fossem uma representação da unanimidade
que seu discurso vai merecer. Isso implica erro, normalmente punido com a falta de
adesão de um número grande de outros auditórios particulares.
Perelman-Tyteca terminam suas considerações sobre o tema afirmando não
haver independência entre os auditórios, mas, antes, uma alternância entre eles que
permite que eles “julguem uns aos outros.”
Tal conclusão antecipa, em outras palavras, aquilo que pretendemos
demonstrar: que a figura do enunciador se origina justamente disso que, por hora,
continuaremos a chamar de “julgamento”.
Vejamos, agora, como Dominique Maingueneau vê a questão do ethos.
2.2.3 – Ethos segundo Maingueneau
Dominique Maingueneau tem seus estudos em Lingüística voltados para o
âmbito da Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso, aplicando esse aparato
17
Perelman-Tyteca, 1996: 35
18
Idem, p. 38
22
não a textos em língua natural, mas também a textos religiosos, políticos,
literários e publicitários. O foco de sua produção tem sido a assunção do texto como
discurso, e, neste, identificar as marcas da subjetividade.
Nessa busca, que se perceber, segundo Maingueneau (2005), algumas
peculiaridades na estruturação da imagem de credibilidade do locutor de um texto
escrito. Primeiro o fato de que a aplicação das idéias de Aristóteles a respeito do
ethos oral a tais produções implica a postulação de um outro tipo de prova: o ethos
escritural
19
. Um tanto diferentemente do oral, demonstrado pelo grego, este é o que
se cria a partir do que o professor francês chama de “tom”, ou seja, a vocalidade
específica que emana de cada texto, fazendo emergirem traços do caráter do
enunciador, inferíveis de suas escolhas lexicais, das estruturas sintáticas por ele
praticadas, do padrão entoacional marcado pela pontuação, do gênero adotado, do
veículo em que o texto vem a voga, e que acabam por conferir (ao enunciador) uma
personalidade
20
.
Existem outras duas outras fontes geradoras do ethos escritural (além do
tom): o ethos prévio e o discursivo. O ethos prévio se erige do conhecimento prévio
de outras enunciações daquele enunciador, da sua história do que se sabe de sua
vida profissional, da pessoal, de sua figura pública etc. Erige-se, também, das
experiências de leitura (lato sensu) do leitor, advinda, por exemplo, do
reconhecimento do veículo pelo qual o texto vem a público, do gênero textual
adotado, de informações e mesmo idéias prontas ou pré-concebidas sobre o tema
abordado naquele texto. Pois
“... mesmo que o co-enunciador não saiba
nada previamente sobre o caráter do enunciador,
o simples fato de que um texto pertence a um
gênero de discurso ou a um certo posicionamento
ideológico induz expectativas em matéria de
ethos.”
21
19
É tendo por princípio a existência de outro ethos que Maingueneau articula a noção de
corporalidade, a imagem física que o leitor cria do enunciador, associada a fatores textualmente
engendrados.
20
Lembremos, com Barthes, que “São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório
(pouco importa sua sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se
apresentar.” (“L’ancienne rhétorique”, in Communicatios, 16 – 1966 - , p. 212)
21
Maingueneau, 2005.
23
A recorrência à noção de ethos prévio é absolutamente pertinente, ainda mais
se tendo em mente o que nos diz Aristóteles sobre as virtudes do caráter do orador
e sua relação com as práticas discursivas por ele assumidas.
22
O ethos discursivo, por sua vez, é o que se constrói concomitantemente à
leitura de cada texto, ancorando-se em mecanismos lingüísticos de seleção lexical,
de retomada, antecipação, projeção, inferência, nos processos de figurativização,
nas relações temáticas/ideológicas estabelecidas pelo enunciador, na concatenação
dos conteúdos, nos argumentos arrolados, na filiação ideológica que se permite
entrever naquela enunciação.Todo esse material discursivo se articula e se
reconhece, mormente, na memória rasa ou de trabalho
23
.
À personalidade construída via discurso, soma-se a imagem de um corpo
físico, imaginado pelo co-enunciador segundo sua própria vivência, a partir dos
estereótipos culturais que ele associa àquele comportamento. Ou seja, o leitor
atribui, ao lado e a partir da vocalidade que se reconhece no texto, uma
“corporalidade”, intrinsecamente ligada às referências socioculturais que ele próprio
possui. A esse processo, executado pelo leitor, de reconhecimento de uma
corporalidade e atribuição dela ao enunciador –, Maingueneau o nome de
“incorporação”. Sua assunção é essencial para este trabalho
24
.
É essencial aqui porque se liga intrinsecamente a o que Eggs (2005) afirmou:
o ethos é procedural. Os procedimentos do orador/enunciador visam a construir uma
imagem de confiança, de credibilidade. Em textos escritos, em que não há, a
princípio, um enunciador in loco, o leitor compõe uma imagem corpórea, dá um rosto
para quem lhe fala. Essa figura, configurada a partir das experiências pessoais de
cada leitor, tende a ser decisiva para a convicção, uma vez que guardará,
inalienavelmente, semelhanças com aquelas outras, reais ou não, que inspiram tal
sentimento no leitor.
A fim de melhor delinear aquilo que concorre para a construção do ethos
discursivo (uma das faces do ethos escritural, lembre-se), falta ainda abordar o
conceito de cenografia.
22
“Os oradores inspiram confiança, (a) se seus argumentos e conselhos são sábios, razoáveis e
conscientes, (b) se são sinceros, honestos e equânimes e (c) se mostram solidariedade, obsequidade
e amabilidade para com seus ouvintes.” Retórica II, 1378a6
23
Kleiman, 2002
24
Maingueneau fala em “três registros indissociáveis” de incorporação: o enunciador assumir uma
corporalidade, o leitor reconhecê-la, e a formação de corpo “da comunidade imaginária dos que
aderem a um mesmo discurso.”
24
Maingueneau preconiza que a cena de enunciação é composta de três cenas:
a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. A primeira “corresponde ao tipo
de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso,
filosófico...” A segunda “é a do contrato associado a um gênero, a uma ‘instituição
discursiva’: o editorial, o sermão, o guia turístico, a visita médica...” Quanto à
cenografia, “ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto: um
sermão, uma tese, uma conversa, até, podem ser enunciados por meio de uma
cenografia professoral, profética, etc.”
Assim é que a cenografia (ceno + grafia) pode ser entendida como a cena
que se inscreve no discurso, ou seja, que cria marcas e as sustenta, ao mesmo
tempo em que é por elas recriada e mantida, validada. As escolhas e combinações
que conferem a um texto um tom profético, por exemplo, devem estar em
consonância com o tema abordado, com as nuances desse tema que estão sendo
ressaltadas, com a(s) tese(s) defendida(s). Tais circunstâncias promoverão o
sucesso cenográfico.
A teorização de Maingueneau sobre o ethos escritural vem ao encontro do
que Aristóteles falou sobre o oral. Observe-se que “tom”, “corporalidade”,
“incorporação” e “cenografia” referem-se a elementos indiscutivelmente existentes
quando se tem um orador diante de si (o “tom” de sua voz, sua aparência, seu
comportamento). Trata-se, então, de uma extensão da teoria, sua aplicação ao um
novo corpus, mas mantendo, com suas origens, um laço inexorável: um
enunciador esteja ele presente ou não que busca influenciar o ânimo de seu
interlocutor quer ele o tenha diante de si ou não criando para si mesmo uma
imagem digna de inspirar confiança.
É esse vínculo bem claro entre Aristóteles e Maingueneau que justifica estar
este trabalho sob a égide de suas visões sobre a argumentação. Um, há dois mil
anos, vislumbrou a influência que a imagem (física e discursiva) do orador tinha
sobre o ânimo dos ouvintes; o outro refletindo sobre o que se disse (não o
filósofo grego, mas muitos outros, como Deleuze, Ducrot, Barthes Charaudeau,
Perelman, Amossy, Fiorin, Bourdieu etc), discorre sobre o que passou a chamar de
Ethos escritural, teorizando sobre sua existência factual e sobre sua eficiência
argumentativa em textos escritos, literários ou não, publicitários ou informativos.
Relacionando, diretamente, os estudos de Aristóteles e Maingueneau, este
trabalho pretende apurar a materialidade lingüística do ethos como prova
25
argumentativa. Tal materialidade se comprovará pelo uso dos modalizadores em
textos de opinião de um mesmo autor, e a dinâmica desses elementos será
explicitada no capítulo que segue.
2.3 – A visão cognitivista
2.3.1 – Um pouco das origens da Lingüística Cognitiva
A Lingüística Cognitiva (LC) tem seus primórdios em fins da década de 1960,
começo da cada de 1970, originando-se da observação da relação entre a forma
sintática e o significado, no seio da concepção gerativista da linguagem, mas se
diferenciando dela, definitivamente, por rechaçar a paridade “língua X mundo”.
O gerativismo, ao contrário do cognitivismo, postula, ainda, que a gramática
e, por conseguinte, o significado se articula em camadas. Tais camadas, ou
blocos, a e por princípio sintáticos, apresentariam cada vez um grau maior de
complexidade, segundo o falante entrasse em contato com estruturas também mais
elaboradas. Para os cognitivistas, a construção gramatical está intrinsecamente
associada a seu significado, e os elementos (lexicais) é que podem variar.
O novo paradigma em que se constitui a LC vê a linguagem como um sistema
cognitivo de conceptualização do mundo, portanto não há, para esta vertente, os
sistemas computacionais, inscritos de maneira modular e descontextualizada na
mente humana, capazes de “gerar” enunciados. Nesta nova visão, vários elementos
se articulam na realização da capacidade cognitiva da linguagem a percepção
corpórea, o conhecimento de mundo, os modelos interacionais, por exemplo. A
linguagem, sob essa perspectiva, é apenas mais uma das potencialidades
cognitivas, ao lado de tantas outras que estruturam nossa conceptualização do
mundo.
O experiencialismo é, assim, um dos sustentáculos da LC, em oposição ao
objetivismo gerativista. Segundo este, há uma paridade língua/mundo, e o
significado está diretamente ligado às coisas por intermédio da estrutura lingüística.
A mente é um espelho da realidade, e o pensamento, “uma manipulação mecânica
de símbolos abstratos” (Cuenca & Hilferty, 1999), independente das limitações do
corpo. O experiencialismo, por sua vez, entende que o pensamento surge de um
26
envolvimento corpóreo do indivíduo com o mundo à volta. Os defensores do
objetivismo apontam que o pensamento é atomístico, enquanto para os
experiencialistas é certo haver uma relação gestáltica mente/mundo, em que este
influencia diretamente aquela, e vice-versa.
O conceito de experiencialismo, logo, é de vital importância na discussão a
que este trabalho se propõe, pois, como afirmam Cuenca & Hilferty (1999) “não
significado independentemente da cognição”. A fim de que se tenha a devida noção
de tal relação, convém citar, textualmente, as palavras conclusivas dos autores
sobre o tema:
“(...) la conceptualización, que está
condicionada por la experiencia de nuestro
cuerpo
25
del mundo externo y de nuestra relación
con el mundo, es el punto de origen y de llegada
de la investigación sobre la cognición y sobre el
lenguaje.”
Objetivismo versus experiencialismo: divergência epistemológica tão aguda
não tardaria a tornar visíveis seus frutos. Conceitos e visões engessadas foram
revisitados, e re-significados, numa longa trajetória até a identificação do que se
chamou integração conceptual, ou mesclagem.
Cumpre rever o caminho.
2.3.2 – Conceitos básicos
Como se disse, a LC é uma espécie de dissidência da Lingüística Gerativa:
alguns de seus precursores eram estudiosos gerativistas. É o caso de Michael J.
Reddy. Em 1979 ele, ao traçar (delineando o que ele mesmo achou ser, apenas,
uma “estrutura poderosa”) um perfil detalhado da maneira como os falantes ingleses
se referiam à linguagem, demonstrou que a metalinguagem era metafórica. Ou seja,
a metáfora, que até então comumente era associada unicamente à linguagem
literária, estava e está na base de muitos enunciados sobre a linguagem,
conceptualizada pelos falantes a partir de uma analogia com a experiência corpórea
de troca de objetos.
25
Grifos meus.
27
Desta forma, enunciados como:
“O professor sabe passar a matéria.”
“Esse assunto não entra na minha
cabeça.”
Coloque pra fora logo o que você está
pensando.”
corriqueiros, representam bem o que Reddy chamou de metáfora do conduto”:
entendemos a comunicação por analogia, como troca de objetos entre os parceiros.
A informação estaria dentro das palavras e seria “transmitida” do emissor para o
receptor “fisicamente”.
Não é o que acontece. Entretanto, é fato que tais expressões são comuns.
Isto, então, corrobora a tese do experiencialismo, segundo a qual entendemos
conceitos abstratos a partir de nossa experiência física, concreta.
George Lakoff e Mark Johnson (1980) consolidaram, com seu “Metaphors we
live by”, o enquadre epistemológico dado por Reddy à metáfora. É neste livro que os
aspectos que comprovam a hipótese experiencialista se afirmam: por meio de
mecanismos de articulação de bases de conhecimento, o físico, concreto, serve de
sustentação para a compreensão do metafísico, abstrato.
As bases de conhecimento são campos, às vezes estáveis (mas não
estáticos), outras vezes fugazes (mas não irrelevantes), de informação
socioculturalmente acumulada (modelos culturais, scripts
26
, esquemas conceptuais,
espaços mentais). Elas possibilitam a referência, por exemplo, uma vez que
representam a organização do nosso conhecimento acumulado e socialmente
compartilhado sobre o referente. As bases são padrões sustentados, a priori, pela
articulação de domínios (“o conjunto de representações que sustentam uma área
específica de conhecimento: linguagem, números, física etc.”
27
), por meio de
projeções. Assim, a metáfora deve ser entendida como uma projeção interdominial
(entre domínios diferentes), ao passo que a metonímia é intradominial (dentro de um
mesmo domínio).
26
“Scripts represent stereotyped sequences of common events” (Coulson, 2001)
27
Karmiloff – Smith, 1992: 6.
28
Entre as bases de conhecimento estáveis os MCI’s, as molduras
comunicativas, os esquemas imagéticos e a língua. As instáveis, ou fugazes, são os
espaços mentais.
Os MCI´s (modelos cognitivos idealizados) são esquemas culturalmente
construídos, e, por isso mesmo, idealizados, uma vez que correspondem à imagem
socialmente moldada que o indivíduo tem de um evento. A palavra “casamento”, por
exemplo, ativa o MCI de uma cerimônia, com uma noiva, um noivo, um religioso etc.,
traços comuns na nossa cultura ocidental.
As molduras comunicativas são padrões interacionais, isto é, estão
diretamente relacionados à pragmática. Seu conhecimento é o que nos possibilita
reconhecer que uma dada comunicação é uma aula, uma entrevista de emprego,
uma conversa informal etc.
Os esquemas imagéticos são padrões espaciais, ou seja, são desencarnados,
que representam nossa maneira de conceptualizar nossa relação com o meio
físico à nossa volta. A noção “dentro X fora” tipifica bem o que é um esquema
imagético, uma vez que, para entendê-la, precisamos imaginar um recipiente, seu
interior e seu exterior, e um corpo alternando sua posição em relação a eles.
A língua, em si mesma um padrão cultural, porque convencionalizada, é
também uma base de conhecimento estável, talvez a que melhor exemplifique este
conceito, visto ser justamente sua estabilidade que permite a unidade lingüística
(ainda que esta seja uma questão controversa, strito sensu) de uma comunidade de
falantes de tal língua.
Há, ainda, as bases de conhecimento fugazes, cuja postulação ensejou o
surgimento da Teoria dos Espaços Mentais. Estes são “pequenos pacotes de
informação construídos conforme pensamos e falamos, a fim de possibilitar a
interpretação imediata e a ação
28
”. Salomão (1996: 27) afirma que
Espaços mentais são domínios
epistêmicos, processualmente evocáveis e
incompletamente especificados, onde se realiza
a operação referencial.”
Quanto ao caráter fugaz dos espaços mentais, diz Salomão (2003):
28
“Mental spaces are small conceptual packets constructed as we think and talk, for purposes of local
understanding and action.” (Fauconnier & Turner, 2002)
29
“(...) sua especificação é sempre parcial,
atendendo exclusivamente às necessidades
comunicativas de enquadramento ou de
especificação.”
Como se vê, a ativação de tais espaços se durante a interação
comunicativa . Daí sua importância nos estudos da construção instantânea (on line)
do significado.
A representação dos espaços mentais, convencionadamente em círculos,
esquematiza o mapeamento
29
de nosso pensamento. Isto é, o “gráfico” de como
construímos nossas “idéias” é feito a partir da figurativização dos espaços mentais
em forma de círculos, dentro dos quais alguns pontos são marcados. Esses pontos
valem pelos aspectos inerentes a cada conceito. A projeção entre os espaços
mentais é caracterizada por linhas unindo um ou mais pontos de espaços diferentes.
Os espaços mentais ativados são chamados inputs (figura 1)
30
. O significado se
produz, então na projeção entre esse espaços.
O desenvolvimento dos estudos sobre os espaços mentais levou à
identificação de um procedimento cognitivo diferente do que até então se estudara.
Nele, diferentes conceitos, contidos em, no mínimo, dois inputs diferentes, integram-
se dando forma a uma nova estrutura, que, a despeito de guardar semelhanças com
29
“Cross-space mapping”:Idem.
30
A opção por essa representação fracionada dos processos cognitivos atende não à fidelidade da
representação da ocorrência dos mesmos, mas àquilo que nos parece ser mais didático, visando a
compreensão do leitor leigo. Não se pode perder de vista, contudo, que a construção do significado é
on line, logo todo o processo é instantâneo, imediato, e, não em etapas.
Input 1
Input 2
a b
Figura 1
30
as primeiras, não é igual a nenhuma delas. Tal mecanismo recebeu o nome de
Integração Conceptual, ou, mais comumente, Mesclagem.
Dada sua relevância para este trabalho, trataremos da mescla numa seção à
parte, a seguir.
2.3.3 - A Integração Conceptual ou Mescla.
A mesclagem é um processo de criação de espaços mentais a partir de outros
espaços ativados (Guedes, 1999). Para isso, os inputs “emprestam” parte de sua
estrutura, que ressurgirá com características novas, atestando o surgimento de uma
estrutura emergente. Antes, porém, de se mesclarem, os elementos de cada um dos
inputs se reúnem, segundo suas semelhanças, num espaço genérico.
O espaço genérico (figura 2), representado graficamente por um retângulo, é
o que se compõe da interseção dos inputs. Ele traz o que de comum entre eles;
traz, também, o que tipifica as categorias em que os elementos dos inputs se
enquadram, uma vez que a semelhança entre os elementos pode se dar no vel
categorial, mesmo que não no individual. É, por fim, aquele em que os elementos de
cada um dos inputs são comparados e arrolados segundo suas características
comuns e/ou associáveis.
Input 1 Input 2
Espaço Genérico (EG)
a’
b’
a’
b’
z
y
x
w
a’ b’
Figura 2
31
Depois de agrupados no espaço genérico, as estruturas se reorganizam no
espaço mescla. Ele é a estrutura emergente, ou seja, a que resulta da interseção
dos inputs e concorre para a significação
31
. A figura 3 aponta a representação de
uma mescla. No input 1 em-se os aspectos (a’, b’ e c’) de um dado conceito; no
input 2, os itens (a’’, b’’ e c’). Os elementos de cada espaço são projetados no
espaço genérico segundo suas semelhanças. É justamente por ser este o critério (a
semelhança) que uma linha cheia liga diretamente os dois c’, presentes nos inputs 1
e 2: é a representação da ligação de um elemento à sua contraparte.
31
Nem todos os elementos presentes nos dois inputs fazem parte, necessariamente, do espaço
genérico nem da mescla. Também pode acontecer que um dado aspecto, presente num dos inputs,
não seja representado no espaço genérico, mas apareça no mescla (Fauconier &Turner, 2002:46). O
que ocorre no processo de integração conceptual é a reunião dos aspectos de dois domínios
diferentes, que guardam identidade entre si, e que, assim relacionados, possibilitam o surgimento de
um novo conceito. Sabendo disso, mas a fim de permitir uma menor “poluição visual” na
representação que se faz do processo na figura 3, não são representados ali elementos que não
concorram para a ocorrência da mescla figurando em ambos os espaços (EG e EM).
Input 1 Input 2
h
x
z
Espaço Genérico (EG)
t
Espaço Mescla (EM)
a’ b’ c’
c’’ b’’ a’’
c’c’’
b’b’’
a’a’’
Figura 3
32
A apresentação esquemática do processo de mesclagem, que, talvez, tenha
parecido obscura por estar dissociada de um exemplo lingüístico de sua ocorrência,
será retomada na próxima seção, em que se demonstrará que o lugar discursivo do
enunciador é fruto de integração conceptual.
2.3.4 – A mesclagem na enunciação
Observado o processo de integração conceptual, é possível vislumbrar que,
na interação comunicativa não é diferente o que se dá. A moldura comunicativa
uma base de conhecimento, em essência pressupõe a existência de, pelo menos,
dois elementos: o enunciador e o enunciatário.
32
Cada um a seu turno, os
comunicantes projetam sua própria imagem sobre o outro, conforme Salomão (2003)
descreve:
“Esta específica condição de reflexividade
procede pela projeção a partir de domínios
conceptuais distintos (as identidades
comunicativas que interagem no discurso), as
quais se relacionam homologicamente a partir
de um esquema genérico da ação comunicativa
(esquema que corresponde à propriedade
diferencial de conceber o outro como a si
mesmo) e daí emerge um espaço mescla (...)”
Essa projeção imagética suscitada pela interação comunicativa é
potencializada sob certas circunstâncias. É potencializada porque o sucesso da
interação depende, nesses casos, grandemente, do grau de consciência que os
interlocutores tenham, ainda que empiricamente, desse processo
33
.
Quando se trata de um texto argumentativo, como os que compõem o corpus
analisado neste trabalho, não é exagero afirmar que sua eficácia assenta justamente
na capacidade do orador/autor de colocar-se no lugar de seu interlocutor, tentar
32
Podemos, para efeito de descrição do mecanismo, entender os enunciadores “despersonalizados”
(como no caso do editorial de um jornal, por exemplo, em que o que se entrevê é a “fala” do veículo, e
não de uma pessoa), e os auditórios (potencialmente imensos e variados) como uma pessoa
cada um: um enunciador, e um enunciatário.
33
Ainda que do ponto de vista da cognição seja impróprio falar em “sucesso da interação”, é
necessário ter em mente que este trabalho busca aliar duas epistemes, e, do ponto de vista da
argumentação, sucesso e fracasso são duas constantes.
33
adivinhar-lhe as expectativas e correspondê-las. Quanto a isto, dizem Perelman-
Tyteca (1996: 27),
“É, de fato, ao auditório que cabe o papel
principal para determinar a qualidade da
argumentação e o comportamento dos
oradores.”
A fim de se colocar no lugar de seu interlocutor, é essencial que o
orador/autor reconheça como deve (a)parecer. Na busca por essa imagem, que, em
última análise, será decisiva para o seu sucesso ou fracasso na convicção (ou
persuasão), ocorre exatamente o que Salomão sublinha da citação pouco acima: o
orador/autor “imagina” o que seu interlocutor espera ver, quer dizer, ele tenta
conceber a imagem que seu interlocutor quer que quem lhe fala tenha. Logicamente,
essa concepção leva em consideração de que maneira ele próprio, orador/autor,
de si mesmo.
A figura 4 mostra os elementos ativados na mente de um orador/autor quando
na tentativa de imaginar como seu ouvinte/leitor o vê. O input 1 aponta
(hipoteticamente, claro) como ele orador/autor concebe a si mesmo; o input 2
mostra (também hipoteticamente) como ele crê que seu interlocutor o veja.
Salomão (2003) alude à existência da “construção discursiva da auto-
identidade, pela exploração de correspondências internas às configurações
Figura 4
Cortês
Inteligente
Persistente
Autoridade no
assunto tratado
Irônico
Convincente
Input 1:
Orador/autor 1
Cortês
Intelectualizado
Insistente
Arrogante
Cínico
Convincente
Input 2:
Orador/autor 2
34
interativas.” Tal “construção” da “auto-identidade”, quer-nos parecer, dá-se esteada
na presunção das características que o Outro atribui a quem lhe fala. A “construção”
está, desta forma, circunstanciada por todas as contingências que a interação
comunicativa pressupõe: as intenções, as expectativas, as pré-condições, a moldura
e as construções lingüísticas.
Essas contingências figuram no espaço genérico do mapeamento da
“construção” cognitiva da “auto-identidade” (esta anterior à discursiva):
Da interseção dos dois inputs
34
, na interação, emerge uma terceira estrutura,
mesclada, que não é o orador/autor como se vê, nem como imagina ser visto. É, na
verdade, um constructo discursivo, o enunciador. Este tem características tanto do
input 1 quanto do input 2, mas, traz, também, inapelavelmente, traços que lhe são
peculiares, advindos, em grande parte, do caráter efêmero, instantâneo da própria
comunicação, e também da inevitável variação dos interlocutores.
34
A fim de preservar a clareza da representação, optamos por adotar, doravante, letras representado
os elementos dentro dos Inputs.
Input 1:
Orador/autor 1
Input 2:
Orador/autor 2
Figura 5
Espaço genérico
a’ b’
c’ d’
e’
b’’
a’’
d’’ c’’
e’’
Interação
a: Intenções
b: Expectativas
c: Pré-condições
d: Moldura
e: Construções lingüísticas
35
O enunciador, ente comunicativo em essência, é um constructo discursivo,
uma instância cognitiva intrinsecamente, na medida em que é fruto de um processo
de mesclagem, para o qual todo o aparato comunicativo coopera. Ou seja, a própria
comunicação engendra o aparecimento de uma figura que se constitui na
interação verbal.
T W
Input 1:
Orador/autor 1
Input 2:
Orador/autor 2
Figura 6
Espaço Mescla:
Enunciador
Espaço genérico
a’ b’
c’ d’
e’
Y
b’’
a’’
d’’ c’’
e’’
Z
Interação
a: Intenções
b: Expectativas
c: Pré-condições
d: Moldura
e: Construções lingüísticas
E
D
C
B
A
36
Resta-nos, agora, definir o instrumental que possibilitará atestar a
materialidade lingüística da estratégia de construção discursiva desse enunciador. O
ferramental escolhido foi a modalização, assunto da próxima seção.
2.4 – A modalização
A modalização é o mecanismo lingüístico à disposição dos falantes a fim de
possibilitar estabelecimento e reconhecimento precisos “dos limites dos sentidos da
fala e de sua utilização” (Pauliukonnis, 2004). Seu estudo é, pois, o estudo do
posicionamento do enunciador frente à construção e ao conteúdo da mensagem.
Pela observação da estratégia de modalização do enunciador é possível reconhecer
as crenças do orador/autor, e o que ele pressupõe que seu interlocutor pense ou
possa vir a pensar delas.
As modalidades o objeto de investigação da lógica e da semântica desde
muito tempo, e, por não ser este o cerne deste trabalho, não cabe aqui um
aprofundamento maior. Urge saber que três modalidades básicas, ou
modalidades “stricto sensu” (Koch, 2004): a alética (necessário/possível), a
epistêmica (certo/incerto) e a deôntica (obrigatório/facultativo). Além dessas três, a
mesma autora aponta a existência de “modalizadores lato sensu”: os axiológicos
(avaliativos), os atitudinais (afetivos) e os atenuadores (visam à preservação da
face
35
).
É mister, também, esclarecer como as diferentes modalidades se mostram
num texto verbal. Para Azeredo (1999), são marcas de modalização:
- sintagmas adverbiais ou preposicionados (p.e.: Compraram várias malas;
naturalmente vão viajar);
- predicadores seguidos de que + oração, ou justapostos no enunciado
(p.e.: É claro que eles gostaram de você.);
- verbos modais (p.e.: Eles devem chegar por volta das 10 horas.);
35
Brown & Levinson, 1987)
37
- modos verbais (p.e.: Aceito o papagaio que fala, mas prefiro um que
cante também.);
- marcadores de foco (p.e.: Até minha avó faria esse gol.);
- empregos modais dos tempos verbais (p.e.: A essa hora a notícia terá
corrido a cidade inteira.);
- conjunções (p.e.: Se ele se candidatar também, a oposição vai se dividir.);
- verbos que explicitam o ato praticado pelo locutor (p.e.: Nego que ele seja
meu filho.); e
- pela entoação (p.e.: Que tipo mais esquisito! - entoação exclamativa)
36
.
Essas primeiras marcam, para Azeredo (1999), “as apreciações do locutor”.
Há, ainda, para o autor, as marcas da expressão das “intenções e interesses do
locutor”, que são:
- predicados seguidos de infinitivo ou de que + oração (p.e.: É proibido
estacionar.);
- verbos modais (p.e.: Você precisa ser mais audacioso.);
- verbos que explicitam o ato praticado pelo locutor (p.e.: Ordeno que
vocês saiam daqui.);
- modos do verbo (p.e.: Deixem o poeta em paz.);
- entoação (p.e.: Entrem, por favor. – com entoação imperativa).
Tais foram as marcas observadas no corpus estudado. A fim de que essa
observação se coadune com a classificação referendada por Ingedore Koch, e
36
Exemplificação colhida ipisis litteris à “Iniciação à Sintaxe”, de José Carlos Azeredo.
38
também aqui mencionada, passemos a uma pequena vista sobre esses
modalizadores.
2.4.1 – Os modalizadores
Os modalizadores aléticos são os que expressam a necessidade ou a
possibilidade da existência das coisas do mundo. Compõem o chamado “eixo da
existência”
37
:
‘“Mas não é necessário que o senhor
passe por esse constrangimento, pois, do
mesmo jeito que o senhor pode fingir que não
me vê, a mesma coisa posso eu fazer..
(O Globo, 18/10/98)
“Sei que pensam que faço chiste, mas
não faço. Os tempos andam mudados, esse
tipo de coisa pode acontecer mesmo (...)”
( O Globo, 17/03/99)
No primeiro trecho acima, o “constrangimento” tem sua própria existência
posta em dúvida. Isto é, se “não é necessário o constrangimento, ele não existirá.
No segundo excerto, a existência da circunstância aventada é possível. Observe-se
que não se trata de uma oposição possível/certo, o que caracterizaria modalização
epistêmica, mas, sim, uma oposição possível/impossível, marca inquestionável de
modalização alética.
Confundem-se, freqüentemente, a propósito, os modalizadores aléticos com
os epistêmicos, ou com os deônticos, uma vez que o conhecimento da existência de
algo nos leva ao julgamento de sua obrigatoriedade ou facultatividade, mas menos
comumente ao questionamento de sua existência (Koch, 2004).
Os modalizadores epistêmicos, por sua vez, são os que denotam mais
evidentemente o grau de engajamento do enunciador com o conteúdo enunciado
(Koch, 2004)
38
. É, ainda, como diz Parret (1988), “o eixo da crença, e se constata
37
Cf. Parret, 1988.
38
É justamente esse traço que justifica a escolha dos mecanismos de modalização como instrumento
metodológico para investigação da materialidade lingüística do Ethos, e dos epistêmicos como “fiel da
39
que as implicações conversacionais são aqui mais determinantes que no eixo da
existência”.
Essas “implicações conversacionais” são “determinantes” também para este
trabalho, pois, como se articulam entre o “certo” e o “duvidoso”, possibilitam,
também, um potencial maior de manipulação das paixões do interlocutor por parte
do enunciador.
39
“Pode ser que nunca tenham dito à
gente isso com todas as letras, mas todo
mundo entendia que os pagamentos seriam
em dólar.”
(O Globo, 07/02/99)
“Ninguém duvide de que eles serão
erguidos e a providência seguinte vai ser a
instituição de postos de fiscalização, onde os
transeuntes terão (...)”
(O Globo, 18/04/04))
Observe-se que o enunciador não afirma certeza, mas apresenta-se como
modesto, ciente de que o que vai enunciar “talvez” não seja verdade. Essa
modalização atende à máxima da modéstia (“minimize o louvor de si mesmo,
maximize o louvor do outro”) de Leech
40
.
Por outro lado, a afirmação da certeza da construção de muros em torno das
favelas do Rio de Janeiro confere status de verdade a o que, na verdade, não passa
de opinião do enunciador.
Observa-se, pois, que, como diz Pauliukonis,
“A análise do posicionamento do sujeito
frente ao dito ou ao modo de sua enunciação
permite graduações diferentes de seu
engajamento ou de seu afastamento em
relação ao que afirma. Por sua vez, as formas
de verificar o compromisso assumido pelo
falante diante de uma enunciação permitem
balança”.
39
Foi pensando nisso que assumimos, neste trabalho, a hipótese de que a modalização epistêmica
seria mais freqüente que as demais nos textos opinativos, hipótese que se confirmou, como veremos.
40
Apud Eggs, 2005.
40
situar o papel da subjetividade na construção
do discurso.(Pauliukonis, 2004)
Os modalizadores deônticos “indicam o grau de imperatividade/facultatividade
atribuído ao conteúdo proposicional” (Koch, 2004). Postular “imperatividade” ou
“facultatividade” é, também, muitas vezes, envolver-se com o que se declarou.
Entretanto, neste caso, o que se observa é mais uma descrição da natureza do
elemento ou evento aludido, do que a opinião do enunciador sobre ele.
“O resultado não pode ser classificado de
divertido.”
(O globo, 26/06/05)
“Por exemplo, a elite política me preocupa,
será ela? Não pode ser, porque elite política é a
que está no poder e quem está no poder é o
presidente.”
(O globo, 09/06/04)
“Esse tipo de argumento para mim deve
ser considerado frescura e fuga da discussão,
porque se trata do presidente e acabou-se, ele
que se vire.”
(O globo, 01/05/05)
O modalizadores axiológicos (chamados modalizadores lato sensu, como
se disse neste trabalho, ou de “Índices de avaliação”, cf. Koch 2003) são os que
veiculam uma avaliação do enunciador sobre aquilo a que o enunciado faz menção
(Koch, 2004)
Claro que, num certo sentido, ele trabalha.
Faz discursos, faz viagens, faz promessas, faz
reuniões, usa bonés de qualquer extração, faz
uma porção de coisas.”
(O Globo, 18/04/04)
“Quem entrar na água certamente está
desiludido com a vida e quer ter uma morte mais
desagradável do que o estritamente necessário,
uma hepatitizinha seguida de cirrose, quiçá um
41
cólera, dermatites, infecções para todos os
gostos, um verdadeiro festival.”
(O globo, 18/04/99)
São ditos modalizadores, ou “indicadores” (Koch, 2003), atitudinais aqueles
que traduzem o posicionamento psicológico do enunciador frente ao conteúdo
enunciado (idem, 2004).
“A coisa vai ficar difícil e é com tristeza que
prevejo o surgimento de novas modalidades de
crime organizado - o contrabando e o tráfego de
piadas, com os infratores algemados e
condenados a ler as atas das sessões do
Congresso.”
(O Globo, 07/03/99)
“Hoje não, hoje não artigo sobre
problema social que não mencione minorias e
hoje todos nós pertencemos, sempre
orgulhosamente, a incontáveis minorias, algumas
das quais esquisitíssimas, tais como negros (no
sentido americano, agora aqui muito usado (...)”
(Idem)
Os atenuadores são os modalizadores que “têm em vista a preservação das
faces dos interlocutores” (Koch, 2004). Vejamos exemplos da ocorrência desse tipo
de modalização:
“Pela parte que me toca, fiquei meio
chateado, porque nunca me imaginei desleal.”
(O Globo, 18/04/04)
“Fazendo as exceções que com certeza
são em menor número do que a gente
esperançosamente pensa, na minha opinião o
Congresso abriga elevada população de faltos de
hombridade, larápios, carreiristas, mentirosos,
venais, descarados, aproveitadores e membros
da futura escola de samba Unidos do
Deboche(...)”
(O Globo, 02/04/06)
42
. O enunciador, utilizando-se da atenuação, preserva sua face na medida em
que busca parecer relativizar sua própria lealdade. Demonstrando que aquela é uma
opinião pessoal, portanto questionável (duvidosa, por que não? O que aprexima
inapelavelmente os atenuadores dos modalizadores epistêmicos), ele foge da
asserção, que é a enunciação com modalidade zero (Parret, 1988).
2.5 – A polifonia
Além da modalização um outro mecanismo, apontado por Osvald Ducrot
(1987) e também por Ingedore Koch (2003): a polifonia. Segundo a autora, o termo
“designa o fenômeno pelo qual, num mesmo texto, se fazem ouvir ‘vozes’ que falam
de perspectivas ou pontos de vista diferentes com os quais o locutor se identifica ou
não” (p. 63).
Essas “vozes” que se inscrevem no discurso do enunciador são nitidamente
reconhecíveis, uma vez que suas marcas são lingüísticas, se dão no nível lexical, no
morfológico, no sintático.e no semântico-discursivo.
Os operadores argumentativos, marcadores de pressuposição, algumas
formas verbais (como o futuro do pretérito do indicativo), o uso das aspas, são
“índices de polifonia” (Koch, 2003) e apontam a presença do que Ducrot afirma
serem os “vários autores” de um enunciado.
Num enunciado como
“Existem claras indicações de que
mesmo uma conspiração da direita para derrubar
o governo e instituir uma ditadura entre nós, das
mais brabas.”
(O Globo, 17/07/05)
fica patente, pelo uso do intensificador “mesmo”, a
noção de que quem negue a existência de tal “conspiração”. Na verdade,
acompanhando os textos e o estilo do autor, João Ubaldo Ribeiro, percebe-se que,
de fato, o que ocorre é uma grande ironia de sua parte, pois a negação da
“conspiração” é seu próprio mote. Isto importa dizer que, via ironia, marcada pelo
uso do vocábulo “mesmo”, o enunciador deixa entrever a existência de outras vozes,
43
com quem o texto dialoga, e, neste caso, inclusive, a voz com que ele dialoga é a do
próprio autor.
Em
Não sou desrespeitoso, pelo
contrário, sou enquadrado ao extremo...
(O Globo, 29/05/05)
o operador “pelo contrário” não estabelece oposição entre as
duas orações. Na verdade o que ocorre é uma espécie de réplica tácita a quem
insiste que ele seja de falto um desrespeitoso.
inúmeros outros exemplos de índices de polifonia no corpus analisado.
Entretanto, por haver sido escolhida a modalização como instrumental de análise,
não cabe, aqui, um maior aprofundamento no conceito de polifonia, apesar de
também ser ela importante fator na construção da imagem de credibilidade do
enunciador, seu ethos, na medida em que os enunciados polifônicos, se o são
justamente por reverberarem várias vozes, implicam, ato contínuo, a mobilização
dessas vozes, e, não raro, sua adesão a uma determinada causa. Entretanto,
observar como esses índices se comportam dentro da estratégia argumentativa d
um enunciador seria questão para um outro trabalho.
Partamos, pois, para a análise dos dados.
CAPÍTULO 3 – CONCATENANDO AS IDÉIAS
3.1 – Análise dos dados
N.º TOTAL DE
OCORRÊNCIAS DE
MODALIZADORES
MODALIZADORES
EPISTÊMICOS
DEMAIS MODALIZADORES
461 187 274
44
A modalização, processo que orienta a maneira como determinado
enunciado deve ser lido, é bastante utilizada nos textos de JUR. Os números falam
por si sós: se tamanha preocupação em modalizar, isto é, em orientar a
percepção do sentido do enunciado, o menos relevante tentativa, por parte do
autor, de imaginar as possíveis leituras (lato sensu) que o texto suscitará.
Esses números comprovam, também, aquilo que Perelman-Tyteca chamam
de “adaptação do orador a seu auditório”: pressupondo o Outro, JUR pressupõe,
também, que ele possa se opor a seus argumentos, e busca, por esse mecanismo,
falar a um auditório universal, formado por todos aqueles que, racionais, concordem
com suas provas, racionalmente dispostas.
Racionalmente, mas de maneira direta, sem rodeios, sincera. A modalização
se presta, no caso da maioria dos textos, a promover uma espécie de “salvo-
conduto” de que o enunciador se vale para dizer o que pensa, sem se comprometer
(pelo menos, não judicialmente). É nesse sentido que se confirma a hipótese inicial
de que poderia haver uma marca de modalização mais recorrente.
A modalização epistêmica, o grau de certeza ou dúvida que o enunciador
demonstra em relação ao conteúdo enunciado, por ser tão freqüente, permite-nos
afirmar que é patente (e muitas vezes declarada, aliás) a preocupação do escritor
baiano com a reação dos leitores, mais especificamente se eles, ou alguns deles,
são citados, direta ou indiretamente, nos seus textos. Evitando comprometer-se com
41%
59%
EPISTÊMICOS
DEMAIS
FREQÜÊNCIA DA MODALIZAÇÃO EPISTÊMICA EM
RELAÇÃO AOS DEMAIS PROCESSOS
45
aquilo que não pode provar, fugindo a agressões verbais frontais, ou apenas
insinuando suas idéias, JUR joga com o dito e o não-dito.
Tal comportamento comprova, assim, também, que o enunciador é produto de
uma mesclagem de bases de conhecimento: o sujeito, como se e como imagina
ser visto.
Entretanto, há ainda outras implicações que essa estratégia faz perceber.
3.2 – Conclusões
3.2.1 – “Fiador” e “Enunciador” são elementos diferentes.
Pela análise pormenorizada dos mecanismos de modalização utilizados por
João Ubaldo Ribeiro nos seus textos de opinião, verifica-se que a preocupação do
enunciador em proteger a própria face é visível. A face negativa (Brown & Levinson,
1987), o desejo de impor sua opinião, é suavizada por procedimentos discursivos de
modalização que atendem à máxima da concordância de Leech (1983, apud Eggs,
2005): “minimize a discordância entre si e o outro/ maximize a concordância entre si
e o outro
41
.”
É visando à satisfação dessa máxima que o enunciador deixa, muitas vezes,
de ser categórico em suas afirmações, passando a usar modalidade epistêmica.
Outras vezes, ele dá sinais explícitos de que sabe que precisa modalizar, e de que o
faz conscientemente:
“Resolvi tomar a liberdade de dizer o que
me parece no momento, sem eufemismos ou
ressalvazinhas bestas, embora, é claro, me
arrisque bastante.”
(O Globo, 02/04/06).
41
Tradução minha.
46
Os representantes do povo, alegadamente,
se vendiam e, além de tudo, atrapalhando a
governabilidade do país, obrigaram o PT a
envolver-se em práticas que (alegadamente, é
tudo aqui alegadamente; se ameaçarem
processo, retiro tudo, sou da paz, mermão)
sempre condenou e que (alegadamente)
engendraram um novelo infindável de falcatruas,
ladroagens, traição e quase tudo o que de ruim
pode estar contido na natureza humana.”
(O Globo, 17/07/05)
Ele sabe que “eufemismos” e “ressalvazinhas bestas” fazem parte de uma
espécie de protocolo lingüístico que pode poupá-lo de alguns aborrecimentos. Tal
comportamento vem comprovar que o enunciador:
1) projeta sua própria imagem sobre a do seu interlocutor, “criando”, assim, um
terceiro ser, diferente dos dois primeiros, dono de poder crítico suficiente para
contrapor-se às idéias lidas. Isto é, via mescla de bases de conhecimento
(EU-ENUNCIADOR X LEITOR-ENUNCIATÁRIO), ele reconhece que,
potencialmente, há, no outro, traços comuns a si mesmo (o enunciador),
como a capacidade de alegar que tudo que foi dito naquele texto é
questionável, inclusive judicialmente. Ele concebe, então, inconscientemente,
um ser que, na verdade, não tem individualidade, mas é com ele que o
enunciador dialoga em primeira instância, e a quem tenta convencer;
2) prevendo uma possível interpelação de seu interlocutor, o enunciador usa
ou deixa de usar, conforme o caso , uma estratégia discursiva que põe em
dúvida a própria natureza do fato citado, esquivando-se, desta forma, de
assumir a responsabilidade por uma informação que, a rigor, não pode
provar. A consciência da necessidade de proteger-se do ponto de vista
legal, inclusive, como foi dito –, e a referência explícita a essa
circunstância, deixa transparecer, tanto quando se fala no respeito a ela,
quanto quando se quer ignorá-la, a sinceridade do enunciador, o que erige
sua imagem de credibilidade, seu ethos;
47
3) o leitor, enunciatário, “incorpora, assimila um conjunto de esquemas que
correspondem à maneira específica de relacionar-se com o mundo, habitando
seu próprio corpo” (Maingueneau, 2005). Ou seja: o leitor imagina um corpo,
físico, e o atribui àquele enunciador que lhe dirige a palavra. Essa atribuição
não é imotivada: é originada das marcas textuais produzidas pelo enunciador
que, checadas com o conhecimento de mundo do próprio leitor, lembram a
este as “feições” de um indivíduo que se comporte socialmente de acordo
com o mostrado no texto;
4) esse processo de “incorporação” é cognitivamente realizado como uma
mescla, em que o leitor conceptualiza o ser que lhe fala a partir de um
conjunto de traços experiencialmente relacionados com aquela voz, com
aquele “tom”, para usar um termo cunhado por Maingueneau. Perceba-se que
tal “corpo” é intrinsecamente ligado às referências socioculturais do leitor,
fator com o qual o enunciador deve contar na persuasão
42
.
As informações socioculturais (logo, compartilhadas) que se têm sobre João
Ubaldo Ribeiro, seu ethos prévio, são de um intelectual com um olhar voltado para a
condição social de seu povo, para questões políticas em geral, crítico contumaz de
“politicalhas”
43
. Sabe-se, também, de sua ironia refinada e mordaz, de sua erudição,
e do valor artístico de sua obra literária, traduzida para vários idiomas.
Textualmente, o que se nos dois trechos supracitados, e em muitos outros de
sua obra é um enunciador que afirma saber o risco de assumir frontalmente suas
opiniões, mas, ainda assim, sarcástica ou duramente, o faz. É o ethos discursivo se
inscrevendo na franqueza da assunção do risco.
Logicamente, sarcasmo ou dureza fazem diferença para o leitor a ser
convencido. Alguém menos agressivo teria, a princípio, mais dificuldade em aceitar a
aspereza na exposição dos argumentos, estratégia essa provavelmente louvável
42
É relativamente fácil compreender tal fenômeno, dois exemplos podem torná-lo bem visível. A
música “Meu guri”, de Chico Buarque, não traz, literalmente, nenhuma referência ao “sexo” do eu-
lírico. Entretanto, é comum encontrar homens que o percebam como um pai falando de sua relação
com seu filho; mulheres, em geral, reconhecem ali a figura materna. Outro exemplo tirado de nossa
música é a letra de Ivan Lins e Vítor Martins, “Começar de novo”. É difícil que alguém que conheça
essa canção, que lembre do contexto de seu surgimento, das condições e da magnitude do seu
sucesso, não a credencie a um eu-lírico feminino; alguém que nunca a tenha ouvido, não tenha as
mesmas referências, não passa por esse processo, porque não há, na letra, nenhuma marca de
incontestável feminilidade desse eu-lírico. O que há é a recorrência muitas vezes inconsciente ao
nosso conhecimento de mundo, e a imediata (ou a não) associação da canção, da melodia, ao
universo “Malu mulher”.
43
Referimo-nos, mais especificamente, aos textos de opinião, que, mesmo não compondo a maior
parte da obra do acadêmico, nem, possivelmente, a mais importante, são o objeto de análise neste
trabalho.
48
para os mais impetuosos. Em contrapartida, o sarcasmo pode entediar os mais
sisudos, ou os cartesianos, ao passo que encantaria os lúdicos.
Se as marcas textuais se mantêm as mesmas, o que faz com que um mesmo
texto, irônico ou casmurro, alcance aceitação tanto dos mais gentis quanto dos
igualmente ríspidos? A incorporação se estabelece, é certo, com ambos os tipos de
leitor. Com quaisquer, na verdade. No entanto, era de se esperar que a figura
incorporada pudesse, em casos de maior diferença entre os caracteres do
enunciador e do enunciatário, causar afastamento, ou, até, repulsa.
A fim de esclarecer esse ponto, recorrer-se-á aos conceitos de “fiador” e de
“cenografia”, apontados por Maingueneau, conforme já mencionado aqui. É
necessário transcrever, literalmente, fragmentos um pouco maiores do autor:
Primeiro sobre o “fiador”, uma “instância subjetiva encarnada”:
“O ‘fiador’, cuja figura o leitor deve
construir com base em indícios textuais de
diversas ordens, vê-se, assim, investido de um
caráter e de uma corporalidade, cujo grau de
precisão varia conforme os textos. O ’caráter’
corresponde a um feixe de traços psicológicos.
Quanto à ‘corporalidade’, ela é associada a uma
compleição corporal, mas também a uma forma
de vestir-se e de mover-se no espaço social. O
ethos implica assim um controle tácito do corpo,
apreendido por meio de um comportamento
global. Caráter e corporalidade do fiador apóiam-
se, então, sobre um conjunto difuso de
estereótipos sobre os quais a enunciação se
apóia e, por sua vez, contribui para reforçar ou
transformar. Esses estereótipos culturais circulam
nos registros mais diversos da produção
semiótica de uma coletividade: livros de moral,
teatro, pintura, escultura, cinema, publicidade...
44
O fiador tem origem em aspectos discursivos e socioculturais. “Estereótipos”
são criações culturais, logo, ainda que sejam superiores aos indivíduos, não é
igualmente que os influenciam.
Quanto à “cenografia”, diz Maingueneau:
44
Maingueneau, 2005.
49
“A cenografia implica, desse modo, um
processo de enlaçamento paradoxal
45
. Logo de
início, a fala supõe uma certa situação de
enunciação que, na realidade, vai sendo validada
progressivamente por intermédio da própria
enunciação. Desse modo, a cenografia é ao
mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que
ele engendra
46
; ela legitima um enunciado que,
por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que
essa cenografia onde nasce a fala é
precisamente a
47
cenografia exigida para enunciar
como convém, segundo o caso, a política, a
filosofia, a ciência, ou para promover certa
mercadoria...”
48
“(...) Em uma cenografia, como em
qualquer situação de comunicação, a figura do
enunciador, o fiador, e a figura correlativa do co-
enunciador são associadas a uma cronografia
(um momento) e a uma topografia (um lugar) das
quais supostamente o discurso surge.”
49
Como se pode verificar, a cenografia corresponde a um conjunto de
elementos inscritos isto é, instituídos, engendrados no e pelo texto –, que
continuamente valida o discurso, ao mesmo tempo em que é por ele validado. Um
discurso político, por exemplo, pode ter uma cenografia professoral, juvenil, profética
etc. Está, pois, a cenografia, diretamente relacionada ao ethos, que ela se deve,
em boa parte, às escolhas deliberadas do enunciador.
Entretanto, o é ao fiador, nem ao texto/discurso que se deve a
cenografia; tampouco a “cena” se “grafa” nos liames desses dois constructos. Na
verdade ela se edifica na interação dos três elementos: enunciador texto co-
enunciador.
50
. Este último tem papel vital na configuração daquela, visto suas
próprias experiências serem, necessariamente, ativadas e articuladas,
ininterruptamente, durante a leitura, no trabalho um tanto inconsciente de
construção do sentido.
45
Grifo do autor.
46
Idem
47
Idem.
48
Maingueneau, 2004.
49
Idem, 2005.
50
É necessário não perder de vista que este trabalho propõe um diálogo entre a AD e a LC, logo o
pressuposto é que não se acredita na “metáfora do conduto” (Michael J. Reddy, 1979), ou seja, o
significado o está dentro das palavras, mas é construído, essencialmente, na interação dos
comunicantes.
50
Por isso mesmo, atentando para o conceito de fiador o que afirma
Maingueneau sobre a influência de fatores culturais no seu reconhecimento e,
agora, para o que se viu sobre a cenografia, é possível afirmar que o caráter
subjetivo, experiencial, da assunção desses elementos os faz encarnar, não uma,
mas várias feições diferentes, segundo, justamente, as experiências pessoais de
cada leitor. Isto é, cada co-enunciador traz consigo marcas de situações por ele
vividas, lembranças, referências que, em face de sua personalidade, vão fazer com
que um texto adquira sentidos diversos do que adquirirá para outro leitor.
Tal afirmação, a princípio paradoxal, pressupõe haver um nimo de
informações socialmente compartilhadas que permite identificar, no texto, um
elemento primário, discursivamente marcado, sujeito da enunciação
51
. A esse
elemento, cada leitor, de maneira subjetiva, atribui características que emergem
iminentemente de seu próprio olhar, exterior ao texto e pessoal, sobre aquelas
marcas textuais, constituindo um segundo ser. A primeira instância corresponde ao
enunciador; a segunda, ao fiador.
O significado da palavra “fiador” colabora para a compreensão de tal
diferença: “fiador” é aquele em quem alguém “fia”, a quem crédito, confia. E,
logicamente, cada um de nós confiamos em pessoas diferentes. Isso corrobora a
idéia de que “enunciador” e “fiador” sejam, na verdade, no que tange à
argumentação, duas faces de uma mesma moeda: o ethos. O segundo, porém, está
condicionado às experiências do leitor/co-enunciador, e é impotente, a partir de certo
ponto, para mudar as crenças, anular as lembranças de seu interlocutor.
Vejamos um exemplo: um texto político, de crítica a um determinado quadro,
tem uma cenografia professoral assim pretendida pelo enunciador. Dois leitores
têm acesso a esse texto. Ambos comungam os mesmos posicionamentos políticos,
compartilham, genericamente, as mesmas influências culturais, têm o mesmo perfil
socioeconômico, e reconhecem tal cenografia. Acontece que um deles tem um
histórico de problemas de relacionamento com seu pai, que, se antes de uma
profunda decepção, via como herói, agora como prolixo, formal demais frio, até
–, adepto de longos monólogos sobre temas invariavelmente desinteressantes. Para
esse leitor, dificilmente o tom professoral será confiável, pelo menos não a priori.
51
Ducrot (1987) chamou de locutor “L”, a “ficção discursiva”’, e de locutor “λ”, o ser do mundo”. Ou
seja, “‘eu’ como sujeito da enunciação e ‘eu’ como sujeito do enunciado”.
51
O que se verá, nesse caso, será um leitor convicto dos argumentos do
enunciador, pois terá encontrado, ali, um fiador de suas próprias idéias. O outro, em
virtude de sua vivência, poderá ser persuadido pelos argumentos, sem ser, contudo,
convencido por eles.
52
É assim que um mesmo texto, aquele de que se falou, irônico ou casmurro,
pode agradar (para fugir, por hora, dos termos persuadir e convencer) a “gregos e
troianos”: o enunciador é, em linhas gerais, um só; o fiador varia. Essa variação,
potencialmente enorme, possibilita a identificação leitor-enunciador/fiador.
3.2.2 – A sucessão de mesclagens e a eficácia da argumentação
A segunda conclusão a que chegamos após a análise do corpus é que, na
argumentação (na comunicação em geral, mas mais prototipicamente nesse tipo de
textos), além da mesclagem que origina a figura do enunciador, pelo menos duas
outras que sustentam o gênero: a do enunciatário, e a realizada pelo leitor que se
erige à condição de enunciatário de um texto que, a priori, não lhe foi endereçado.
A primeira é facilmente reconhecível, pois se trata de uma espécie de
contraparte da que discutimos. Assim como o autor, que tem uma imagem de si,
supõe a imagem que seu leitor faz dele, e, a partir dessas duas, constrói sua feição
discursiva o enunciador –, o leitor também se imagina, e também supõe como o
autor o vê, e, levando em conta tais conjecturas, reconhece-se (ou não) no texto
que lê. Essa sucessão de “suposições”, na maioria das vezes tão rápida e natural
que inconsciente, sustenta-se, inalieanavelmente no que Salomão (2003) chamou
de “específica condição de reflexividade”, ou seja, a propriedade humana de
conceber o Outro tal qual a si mesmo, e vice-versa.
Ocorre, ademais, em determinados textos como “Senhor presidente” e “Eu
sou leal”, por exemplo outro jogo ainda mais interessante: direta ou indiretamente
o enunciador se dirige a um enunciatário específico, sem, todavia, se esquecer de
que haverá, potencialmente, outros milhares de enunciatários (o que é uma
imposição do próprio gênero); ele se utiliza, antes, dessa circunstância, simulando
dar-lhe pouca importância, como estratégia de convicção
53
. O leitor, ao entrar em
52
Assumimos, com Perelman (1996), que “persuadir” é fazer fazer, e “convencer” é fazer crer.
53
Patrick Charaudeau teoriza sobre essa estrutura textual em sua Teoria Semiolingüística, falando
nos vários atores envolvidos no ato comunicativo.
52
contato com aquele texto, se coloca nos dois lugares: no do destinatário apontado, e
no do emissor. Pela escolha e concatenação dos argumentos, o enunciador tenta
convencer, uma vez que suscita a identificação do leitor incidentalmente
enunciatário e enunciador – com suas opiniões.
Vejamos, a título de exemplo, como isso se dá nos dois textos citados.
3.2.2.1 – Em “Senhor presidente”
Numa “carta” escrita em primeira pessoa do singular é bastante claro que a
subjetividade é um traço determinante. As impressões do autor, suas opiniões e
“verdades” estarão ali representadas, e por isso mesmo, se ela se dirige a apenas
uma pessoa (especificamente, e não a uma coletividade), não há, a princípio, motivo
para generalizações.
O texto de JUR é “endereçado” a FHC, mas é publicado num jornal. Não se
trata, então, na realidade, de uma “correspondência”, apesar de simular sê-lo. Sob
a égide de uma parcialidade ancorada nas próprias características do gênero, o
enunciador, num processo de escalaridade, se equipara a seu interlocutor (FHC).
Isto é, por meio de sucessivos alçamentos a posições socioculturais e discursivas
que lhe credenciam a criticar o então presidente: ele também é professor, também
ensinou ciência política, ele é um eleitor, é também é um intelectual, é nordestino, é
um jornalista. Essa escala chega ao ponto em que o enunciatário não se pode
mais equiparar ao enunciador, uma vez que este é membro da Academia Brasileira,
e o outro não.
O leitor que é conhecedor do ethos prévio de JUR, abre o jornal e espera ler
mais um de seus textos leves, de fina ironia e críticas agudas. Entretanto o que se
é um enunciador que, num tom confessional, fala a seu interlocutor como quem
lamenta algo muito grave; fala como quem tem um compromisso com a sinceridade,
a ponto de “ousar” fazer comentários desagradáveis sobre a conduta de seu
interlocutor. É o ethos discursivo se construindo. O reconhecimento, por parte do
leitor, desse tom, textualmente marcado pela uso da primeira pessoa, ou por
declarações de respeito intrínseco, ou expressões comparativas (“muitos outros
como eu”, que se repete, inclusive), o faz reconhecer ali, também, um duelo de titãs:
dois intelectuais de renome internacional frente a frente. Ele, leitor, é expectador
53
dessa disputa, e se coloca no lugar de um e/ou de outro segundo os contornos do
próprio texto. Esse “colocar-se no lugar do Outro”, vimos, se opera por meio de
mesclagem.
O leitor que não conhece o ethos prévio de JUR um enunciador que se
outorga o direito de criticar seu interlocutor, alguém que assume chorar enquanto
escreve, que assume sua posição de governado, mas que, também, impõe-se como
jornalista e cidadão. É, contudo, um cidadão diferenciado, pois alcançou a
“imortalidade”. Esse enunciador se dirige a um outro intelectual, o presidente da
República, e, apesar de se dirigir a ele “respeitosamente”, diz-lhe, com sinceridade,
aquilo que pensa sobre sua reeleição e sobre sua pessoa. O ethos discursivo é, de
novo, de um homem que, num tom confessional, diz ao seu interlocutor, o que pensa
sobre ele. Ao leitor cabe, de novo, ver-se como um e/ou outro. A mesclagem realiza
tal operação.
3.2.2.2 – Em “Eu sou leal”
Nesse texto o enunciador não se dirige diretamente a seu interlocutor. se
sabe que o artigo é endereçado ao presidente Luís Inácio Lula da Silva quando se
tem conhecimento do contexto em que o texto é publicado: o presidente, dias antes,
pedira “lealdade” à imprensa nacional.
O texto dialoga com tal fato, uma vez que, se é publicado num jornal,
assinado por um “jornalista”, escrito, inclusive, em primeira pessoa do singular, é
uma resposta, ainda que indireta, à “exortação de nossos líderes, notadamente o
presidente”.
Acontece que essa resposta discreta ao presidente é percebida como tal por
meio de uma série de mesclagens. Além das duas iniciais (já comentadas, que
possibilitam o surgimento das figuras do enunciador e do enunciatário), algumas
outras: a) o presidente se reconhece como destinatário daquela mensagem, pois,
ainda que não haja referência direta a seu nome, nem a assunção de que se trata de
uma réplica, foi ele quem pediu lealdade à imprensa, logo, se ela diz que é leal,
nega o pressuposto do pedido; b) o leitor que reconhece a mensagem velada
dirigida ao presidente se coloca na posição do enunciador (que, inclusive, modaliza
algumas afirmações em busca de cumplicidade, como quando diz “Como muita
54
gente, jornalistas ou não, bastante tempo acho que o presidente, por falta de
prática, não trabalha.”), mas também na posição do presidente, que, implicitamente,
é chamado de desleal, pois, se foi eleito para trabalhar e não trabalha, é o que é;
Lula se projeta na pessoa do (e)leitor, tentando aferir se aquela argumentação pode
convencê-lo ou não.
vários processos de mesclagem envolvidos na construção do significado
desse texto. Ele, talvez, seja o melhor exemplo, dentre os existentes no corpus
recolhido, de como os sujeitos são construídos na argumentação por meio da
integração conceptual de bases de conhecimento. É um ótimo exemplo, também, de
que, como se afirma no início dessa seção, a eficácia da argumentação está
relacionada com uma sucessão de mesclagens.
Vejamos, agora, a terceira das conclusões a que a análise do corpus nos
permitiu chegar.
3.2.3 – O ethos de JUR é areté
Areté é o ethos viril, áspero, franco. Pela observação dos textos que
compõem o corpus deste trabalho, é possível notar que, apesar da modalização, o
enunciador quer (parecer) dizer exatamente o que pensa, e com esses argumentos
convencer o leitor. Além disso, justamente pela existência tão abundante desse
mecanismo, pode-se vislumbrar uma preocupação constante por parte do
enunciador dos textos em dificultar a contra-argumentação, a retaliação da parte
daqueles que, por ventura, discordem de sua opinião.
Há vários exemplos dessa postura do enunciador. Citando apenas dois:
“Antes de mais nada, quero tornar a
parabenizá-lo pela sua vitória estrondosa nas
urnas. Eu não gostei do resultado, como,
aliás, não gosto do senhor, embora afirme
isto com respeito. Explicito este meu respeito
em dois motivos, por ordem de importância.
O primeiro deles é que, como qualquer
semelhante nosso, inclusive os milhões de
miseráveis que o senhor volta a presidir, o
senhor merece intrinsecamente o meu
respeito. O segundo motivo é que o senhor
incorpora uma instituição basilar de nosso
sistema político, que é a Presidência da
55
República, e eu devo respeito a essa
instituição e jamais a insultaria, fosse o
senhor ou qualquer outro seu ocupante
legítimo.”
(O Globo, 18/10/98)
“(...) Como muita gente, jornalistas ou
não, bastante tempo acho que o
presidente, por falta de prática, não trabalha.
Por favor, não me entendam mal. Claro que,
num certo sentido, ele trabalha. Faz
discursos, faz viagens, faz promessas, faz
reuniões, usa bonés de qualquer extração,
faz uma porção de coisas. Mas não é o tipo
do trabalho que agora se esperaria dele, as
necessidades são outras.” (...)
(O Globo, 18/04/04)
Nesses casos, apesar de, aparentemente, dizer de maneira espontânea o
que pensava, o enunciador cercou-se de cuidados: primeiro, em relação a FHC, ele
afirma insistentemente dirigir-lhe a palavra “com respeito”; depois, em relação a
Lula, ele atenua, retifica, ameniza a afirmação em si mesma ofensiva: “o presidente
não trabalha”.
A modalização nesses casos é mais evidente pela própria estrutura textual
do que pelo uso de marcadores lexicalizados. No segundo trecho citado acima,
como se vê, a sucessão de orações coordenadas assindéticas (a maior parte delas
repetindo o verbo “fazer”) culmina na idéia de que o presidente “faz uma porção de
coisas”, corroborando-a, inclusive pela omissão do conectivo, o que denota um certo
grau de simultaneidade nas ações. Entretanto o período seguinte inicia com uma
conjunção coordenativa adversativa, negando todas as orações anteriores, embora
ele mesmo traga uma forma verbal o verbo “trazer” no futuro do pretérito que
também modaliza o enunciado.
Tal suavização no modus dicendi, contudo, não caracteriza um ethos
phrónesis. Ao contrário. Não pudor, mas sim premeditação. Prova disto é que,
no texto “Me visitem na cadeia”
54
, de 02/04/06 por exemplo, há trinta marcadores de
modalização diferentes, justamente num artigo que se inicia com a afirmação de que
“eufemismos e ressalvazinhas bestas” não seriam usadas.
54
Texto 24 do Apêndice
56
Nesse texto, aliás, se observam bem nitidamente esses dois fatores:
sinceridade e premeditação. Para atestar isso basta observar o tratamento textual
diferenciado dado ao poder judiciário. Apesar de os comentários sobre os três
poderes aparecerem modalizados, executivo e legislativo mereceram, cada um, oito
adjetivações diferentes; o judiciário, só duas.
Esse cuidado parece claramente indicar que o autor não desejava atacar tão
duramente a justiça, talvez porque fosse mais interessante ter a simpatia de quem
poderia vir a julgar se o enviaria ou não para a cadeia (o título é bastante sugestivo
nesse sentido).
Conclui-se, então, que ele apresenta uma franqueza ou espontaneidade
calculadas, premeditando a forma da sua sinceridade para que ela pareça
espontânea. A partir dessa descoberta, é possível hipotetizar que um leitor menos
competente teria dificuldade em recuperar o cálculo ou premeditação embutidos no
texto, construindo apenas o sentido da franqueza ou espontaneidade.
55
Assumindo essa hipótese com verdadeira, a conseqüência natural é que a
imagem de um enunciador sincero e honesto se institui, destacando-se,
logicamente, sua coragem de pôr-se em risco em nome de sua franqueza. É,
inapelavelmente, areté.
Esse comportamento discursivo é uma constante nos textos de JUR. Talvez
não seja exagero afirmar que quanto maior a irritação demonstrada, maior também a
preocupação com a modalização. É provável até, que haja alguma gradação entre o
grau irritação demonstrado e os três tipos de ethos (o mais irritado possivelmente
refletiria uma espécie de catarse com os leitores e sua presumível irritação com o
tema abordado, configurando um ethos eunóia
56
). Isso, entretanto seria tema para
um outro trabalho.
CAPÍTULO 4 – POR FIM
55
Verificar, por meio de testes de leitura, a validade dessa hipótese seria um desdobramento
interessante desta nossa pesquisa.
56
“Se for preciso defender alguém que sofreu uma injustiça por parte do acusado, deve-se mostrar
maior ou menor grau de piedade, de cólera ou de indignação.” (Cf. Eggs, 2005)
57
Revisitados alguns caminhos, observadas em detalhes suas margens, feitas
algumas incursões não muito extensas, verdade, mas atentas, certamente , é
chegado o momento do inventário: quais eram as sombras? Quais ainda são?
A proposta deste trabalho era ambiciosa. Reunir duas epistemes (Análise do
Discurso e Lingüística Cognitiva) cujos escopos são bastante amplos, e
empreender uma pesquisa a fim de entender que mecanismos se articulam, textual
e extratextualmente, na construção da imagem de credibilidade de quem argumenta.
Para alcançar esse fim, foi necessário observar a argumentação in actu,
verificar a existência do ethos, a “mais importante das provas”, como disse
Aristóteles, em textos escritos contemporâneos. Analisamos a construção do ethos
por meio das estratégias de modalização empregadas pelos enunciadores de vários
textos, e comprovamos sua eficácia. Foi mapeado os processo cognitivo que nos
permite reconhecer a figura do enunciador, e então as descobertas se multiplicaram.
O que a princípio era desafio constituiu-se pedra fundamental. Havia um
ponto de convergência entre as duas Teorias: a corporalidade e o tom atribuídos
pelo leitor ao enunciador do texto escrito (conceitos de AD postulados por
Dominique Maingueneau), sustentam-se indelevelmente num dos apótemas dos
estudos cognitivistas – a experiência.
O tom e a corporalidade podem ser atribuídos pelo leitor a um enunciador
por comparação com outras experiências de situações concretas por que ele leitor
tenha passado, em que certo tom de voz foi empregado (e que a leitura daquele
texto o fez “lembrar”), ou em que comportamento semelhante ao apresentado no
texto foi assumido por alguém com determinadas características físicas, àquele
enunciador associadas, conseqüentemente.
O processo cognitivo que possibilita essas associações é a mesclagem. O
apuro epistemológico que a descrição desse mecanismo possibilita é tal, que
pudemos inferir serem todos os atores no processo de comunicação, e não apenas
os enunciadores de textos argumentativos, entendidos via integração conceptual.
Quebra-se, assim, a noção de uma linguagem monolítica, “conduto”
57
pelo
qual um emissor sempre ativo passaria suas idéias para um receptor eternamente
passivo. Todos os comunicantes estão intrínseca e simultaneamente envolvidos na
construção do significado global da comunicação.
57
Cf. Reddy.
58
Comprovamos a materialidade lingüística da construção do ethos como
estratégia argumentativa. E fomos além: o levantamento de tantos aspectos
interessantes relativos à edificação das imagens discursivas dos sujeitos fez-nos
estender bastante os limites a princípio estabelecidos para este trabalho.
Mas nenhum assunto se esgota, nem havia aqui a pretensão de fazê-lo.
Efetuar testes de leitura a fim de investigar a eficácia das estratégias de persuasão,
por exemplo, seria um tema interessante. Verificar se há comportamentos
discursivos socioculturalmente prestigiados, e como tal prestígio se construiu e
sustenta também certamente geraria bons frutos. Mas tudo tem seu tempo.
Por hora, acreditamos ter cumprido nossos objetivos.
59
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