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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
PÓS-
GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
KARYNE JOHANN
ESCRAVIDÃO, CRIMINALIDADE E JUSTIÇA NO SUL DO BRASIL:
TRIBUNAL DE RELAÇÃO DE PORTO ALEGRE
(1874
-
1889)
PORTO ALEGRE
2006
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KARYNE JOHANN
ESCRAVIDÃO, CRIMINALIDADE E JUSTIÇA NO SUL DO BRASIL:
TRIBUNAL DE RELAÇÃO DE PORTO ALEGRE
(1874
-
1889)
Dissertação apresentada como requisito para obtenção
do grau de Mestre, pelo Programa de Pós-graduação da
Faculdade de História da Pontifícia Universi
dade
Católica do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Cristina Santos
Porto Alegre
2006
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KARYNE JOHANN
ESCRAVIDÃO, CRIMINALIDADE E JUSTIÇA NO SUL DO BRASIL:
TRIBUNAL DE RELAÇÃO DE PORTO ALEGRE
(1874
-
1889)
Disse
rtação apresentada como requisito para
obtenção do grau de Mestre, pelo Programa de
Pós
-graduação da Faculdade de História da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul.
Aprovada em _____ de ____________________ de ________________.
Ba
nca Examinadora
Prof. Dr. Álvaro de Souza Gomes Neto
FACVEST
Prof. Dra. Maria Cristina Santos –
PUCRS
Prof. Dra. Margaret M. Bakos
PUCRS
Ao meu pai, luz em minha vida.
AGRADECIMENTOS
Inicialm
ente agradeço a CAPES pela bolsa disponibilizada durante toda a realização deste
trabalho.
Aos professores e funcionários da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
pela formação e pelo apoio.
Aos amigos historiadores que de alguma forma fi
zeram parte deste trabalho com dicas
metodológicas ou com apoio nas horas difíceis. Em especial aos colegas de mestrado: André,
Ana Paula e Fabrício. A amiga e colega Elaine pelas dicas imprescindíveis.
A professora Tita pela orientação.
A professora Ma
rgaret pelas dicas e pela participação na banca.
Ao professor Àlvaro pelas discussões metodológicas, pelos livros, pela paciência.
Aos amigos que fizeram parte dessa dissertação me apoiando desde a seleção até aqui,
com muita paciência e compreensão: Van
essa, Melissa, Marina, Lisiane, Aguiar, Sheila, Álvaro,
Ariela, Neusa, Leonardo, Diogo, Rachel e Luiz.
A Luciana pela paciência da leitura e pela amizade.
A minha família por todo apoio e incentivo nesses dois anos e pela compreensão apesar
da saudade. Em
especial a minha mãe, meu exemplo de persistência.
Ao Jaime e a Marisa pelo carinho, incentivo e paciência.
Ao Walter pela esperança de um recomeço, pelo apoio, pelo carinho, pelo amor.
E por último e não menos importante agradeço a Vó Acidália (
in mem
orian
) pela sua
insistente pergunta: Falta muito pra terminar teu trabalho? É vó agora terminei.
RESUMO
A proposta desta
dissertação
consiste em uma análise de processos criminais que envolveram
africanos e afordescendentes dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, no final do
Império
, onde as duas comarcas estiveram sob a mesma Jurisdição na Segunda Instância, no
Tribunal de Relação de Porto Alegre no período de 1874-1889. Inicialmente produzi
mos
uma
resenha histórica acerca da Justiça, e analisamos a legislação e as posturas governamentais e
judiciais das duas províncias do sul do Brasil, no período próximo da abolição da escravidão. Em
um segundo momento, a partir da análise de evidências contidas nos autos judiciários que
investigaram
os crimes praticados, descrevemos desde o sentido social do crime na escravidão à
reconstituição de partículas da vida cotidiana, buscando reconstruir aspectos da vivência social
dos escravos,
libertos e homens negros livres.
Palavras
-
chave: Escravidão
– Justiça –
Sul do Brasil.
A
BSTRACT
This research proposes an analisys of the judicial records that involved africans and afro-
descendents
,
in the states of Rio Grande do Sul and Santa Catarina, at the end of the Imperial Age
in Brazil, in
which the two district courts were under the same jurisdiction in the Second Stage of
Appeal, in the Relation Court of Porto Alegre
(1874
-
1889)
. Primarely, the objective is to produce
a historical abstract of Justice, analising the governamental and judicial actions, in south of
Brazil,
taken near slavery abolition. Secondly, through an analisys of the evidences in the judicial
records,
to inteprate the crime’s social meaning in slavery
and
rebuild the every-day life, in wich
it’s possible to reassemble the social relations among slaves, black people who were born free
and those who had been freed by their owners.
Key
-
words: Slavery
Justice
South of Brazil.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1
Magistrados……………………………………………………………….
34
Figura 2 – Mapa de distribuição dos 11 Distritos de Relação no Brasil (1874-
1889).............................................................................................................................
42
Figura 3 Mapa da divisão judiciária das Províncias do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina em 1874.......................................................................................................... 48
Figura 4 Mapa da distribuição judiciária das Províncias do Rio Grande do Sul e
Sa
nta Catarina em 1889................................................................................................
49
Figura 5
Transportadores de Liteiras.........................................................................
67
Figura 6
– Carrega
dores de Água.................................................................................
68
Figura 7
Negros vendedores de aves.........................................................................
68
Figura 8
– Negras cozinheiras e quitandeira
s...............................................................
70
Figura 9
Preparação da raiz de mandioca..................................................................
74
Figura 10
Marinheiros................................................................................................
75
Figura 11
Oficina de Sapateiro..................................................................................
76
Figura 12
Barbeiros Ambulantes...............................................................................
77
Figura 13
Negros trabalhando no calçamento de ruas...............................................
118
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Tipos de processos apelados ao Tribunal da Relação de Porto Alegre
(1874
1889)............................................................................................................
51
Gráfico 2 Tipos de apelações recorridas ao Tribunal da Relação de Porto
Alegre (1874
1889)...............................................................................................
131
Gráfico 3 Armas utilizadas nos crimes cometidos dos processos apelados ao
Tribunal da Relação de Porto Alegre (1874–
1889)...............................................
. 159
Gráfico 4 - Sentenças dos processos que envolveram negros como réus ou
vítimas apelados ao Tribunal da Relação de Porto Alegre (1874
-
1889)...
.
...........
160
LISTA DE TABELAS
Tabela 1
Jurisdição dos Tribunais de Relação no Brasil (1874
1889).................
41
Tabela 2 Processos apelados ao Tribunal da Relação pelas Províncias do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina (1874 –
1889).........................................................
50
Tabela 3 Processos de negros vítimas e/ou réus no Tribunal da Relação de Porto
Alegre (1874
– 1889)................................................................................................. 107
Tabela 4 Tabela da tipologia dos crimes cometidos e/ou sofridos por negros em
processos apelados ao Tribunal da R
elação de Porto Alegre (1874
1889).............
126
Tabela 5 Tabela da tipologia dos delitos contra pessoa sofridos por cativos
apelados no Tribunal da Relação de Porto Alegre (1874 –
1889).............................
132
LISTA
DE SIGLAS
ACK
Acervo do Cartório Kotzias.
AHMF
Arquivo Histórico Municipal de Florianópolis.
APERS
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
APESC
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.
BPESC
-
Biblioteca Pública do Estado de Santa Ca
tarina.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................12
2. Capitulo 1 ESTADO IMPERIAL E JUSTIÇA NO SUL DO BRASIL: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES.............................................................................................................2
4
1.1 Rio Grande do Sul e Santa Catarina da colonização ao Império.................
.......24
1.2. A organização da Justiça do Brasil Colonial e Imperial.
............................
.......31
1.3. Justiça no sul do Brasil......................................................................................4
3
1.3.1 A criação do Tribunal de Relação de Porto Alegre.........................................4
5
3.
Capitulo
2 –
ESCRAVIDÃO E DIREITO NAS PROVÍNCIAS DO SUL DO BRASIL.
53
2.1. A escravidão e o discurso contra os perigos da miscigenação...........................53
2.2. Desvendando o mito da invisibilidade:
a presença do escravo negro n
o sul.....6
1
2.3 O
Direito e a Justiça nos estudos sobre escravidão ............................................79
4. Capitulo 3 - JUSTIÇA, CRIMINALIDADE E ESCRAVIDÃO NO TRIBUNAL DA
RELAÇÃO DE PORTO ALEGRE...................................................................................
.106
3.1 –
O cotidiano das relações sociais nos processos criminais:
negros e brancos na justiça do Sul do Brasil............................................12
2
3.1.1 Quanto aos processos de Primeira Instância..................................................127
3.1.2 Quanto aos processos de Segunda Instância..................................................129
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................16
1
6. Referências bibliográficas .............................................................................................166
12
INTRODUÇÃO
Ao buscarmos as fontes analisadas neste trabalho pretendemos, a partir da história social,
verificar as relações do cotidiano de africanos e afrodescendentes e sua relação com a Justiça em
finais do século XIX, em um período muito próximo a abolição da escravatura. A história social
está relacionada com o relativismo cultural da escrita e dos objetos, a qual surge a partir da
década de 1970 como uma nova forma de escrever a história voltada ao cotidiano e a história das
pessoas comuns. O estudo local ou regional dos breves momentos dos dominados como
indivíduos pode ser encontrado em diversas fontes pouco tempo “descobertas” pelos
historiadores, como por exemplo fontes ligadas a Igreja e a Justiça, como registros de batismos e
casamentos, e os processos judiciais, dentre eles os criminais, cíveis, comerciais, entre outros.
Muitas vezes essas fontes não colaboram para uma história quantitativa, como também para
uma história qualitativa. Discordamos então nesse ponto de François Furet
1
que de certa forma
defendia uma idéia de reintegração das classes inferiores na história pela demografia em um
estudo quantitativo das sociedades, pois acreditamos que dessa forma aparecendo somente em
números essas classes continuariam em silêncio.
Para Michel de Certeau qualquer investigação historiográfica se articula sobre um lugar
de produção socioeconômico, político e cultural, e é em função deste lugar que se instauram
métodos, que uma topografia de interesses se concretiza, que se organizam processos e questões a
pôr aos documentos.
2
O historiador trata, segundo os seus métodos, os objetos físicos (papéis,
imagens, pedras, etc), que distinguem, no
continuum
do percebido, a organização de uma
sociedade e o sistema de pertinências para transformá-lo em História. Uma obra histórica
participa do movimento pelo qual uma sociedade modifica a sua relação com a natureza. Mas o
historiador não se contenta com “traduzir” uma linguagem cultural para outra, isto é, produções
sociais para objetos da história. Pode transformar em cultura os elementos que extrai de campos
naturais.
3
Na História, segundo o autor, tudo começa com o gesto de pôr de parte, de reunir, de
transformar assim em “documentos”, certos objetos distribuídos de maneira diferente. Ocorre
1
FURET, François. O quantitativo em História. In: LE GOFF, Jacques, e NORA, Pierre. Fazer História . v.1. I
Ed.
Portuguesa, Livraria Bertrand, 1977.
2
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica
.
In: LE GOFF, Jacques. NORA, Pierre. Fazer História. v.1.
Livraria Bertrand. I Ed. Portuguesa, 1977, p.19.
3
Idem, p. 34.
13
uma distribuição cultural que consiste em produzir tais documentos, pelo fato de recopiar,
transcrever ou fotografar esses objetos, mudando ao me
smo tempo o seu lugar e o seu estatuto. A
partir disso o colecionador torna-se um ator, na cadeia de uma “História a Fazer” (ou a refazer),
segundo novas pertinências intelectuais e sociais.
4
Apesar de todas as tecnologias atuais, no caso de trabalhos específicos como teses ou
livros, muitas vezes o historiador se obriga ainda a utilizar técnicas simples, como a da
transcrição total dos documentos, processo utilizado em parte neste trabalho. E a partir daí
realizar a operação historiográfica que consiste,
após ter reunido, criticado e dissecado o conjunto
dos documentos disponíveis, em estabelecer encadeamentos entre os diversos componentes do
objeto estudado, de acordo com um método adaptado a cada caso, e a construir um discurso
atribuindo
-
lhes coerência
e sentido.
5
Ao questionarmos os documentos podem surgir muitas dúvidas sobre os silêncios que
podem estar presentes levantando questões como a do historiador Le Febvre que permance:
Toda uma parte e sem dúvida a mais apaixonante de nosso trabalho de hi
storiadores, não
consistirá num esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o
que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as
produziram, e para constituir, finalmente, entre elas, aquela vasta red
e de solidariedade e
de entre ajuda que supre a ausência do documento escrito?
6
A partir dos anos de 1980 e 1990 o “território do historiador” prosseguiu sua expansão
com a introdução de “novos objetos”, como por exemplo, a história das atitudes coletivas como a
morte, o medo, a vida. E as “novas abordagens” continuaram surgindo e reformulando análises
como na história social, nos espaços das relações e nas construções dos espaços de memória.
7
Le Goff descreve uma revolução quantitativa e qualitativa realizada pelos historiadores,
onde o interesse da memória coletiva e da história não se cristaliza exclusivamente sobre os
4
Ibdem, p. 36.
5
BEDARIDA, François.
As Respon
sabilidades do Histotriador Expert
. In: BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique.
Passados Recompostos: Campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/ED. FGV, 1998. p.
149.
6
LE GOFF, Jacques.
História e memória
.
4. ed.
Campinas
:
UNICAMP,
19
96.
p. 54.
7
BOUTIER, Jean e JULIA, Dominique. Op. Cit. p. 29.
14
grandes homens e os acontecimentos. A história que avança depressa, a história política,
diplomática, militar, interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou
menos implícita dos documentos.
8
Neste sentido, além da análise dos processos realizados em nossa pesquisa, em um
primeiro momento tentamos contextualizar o espaço a ser analisado: a região sul do Brasil e a
justiça imperial nas províncias de Santa Catarina e Rio Grande do Sul em fins do século XIX.
Buscamos verificar como funcionava o Tribunal da Relação de Porto Alegre e como era o
trânsito dos processos. Verificar os tipos de crimes em que estavam envolvidos africanos e
afrodescendentes, quem eram os réus e as vítimas, quem os julgava, quem os defendia, e quais
eram as penas. Cabe lembrar a dificuldade de pesquisa frente à História do Poder Judiciário, uma
importante instituição estatal que aos poucos vai sendo vislumbrada por historiadores. Muitas
vezes o pouco que foi escrito é obra de pessoas oriundas do aparelho judiciário, que com muita
boa vontade levantaram algumas referências acerca dos dirigentes, da legislação e “outros fatos
notáveis deste Poder
”.
9
É lugar comum em nossa historiografia a caracterização da justiça no Império como
ineficiente, inoperante e sobretudo inacessível aos que não perfilassem na estreita faixa social dos
homens de posses e recursos. Não deixa de ser curioso o fato de que a análise da justiça e seus
padrões de resposta às demandas sociais tenha sido reintroduzida e problematizada na discussão
historiográfica a partir das pesquisas que se ocuparam dos seus usos e significados para os
escravos que reinvindicaram seus “direitos” nos tribunais. Eram exatamente aqueles sobre os
quais a lei silenciava e que por definição se viam excluídos dos direitos civis. Ao nos depararmos
com a documentação produzida pelos tribunais de justiça somos obrigados a reconhecer que, em
alguma medida, os atores sociais que buscaram o reconhecimento e a efetivação de seus
direitos perfizeram um leque mais amplo e significativo socialmente do que o até então suposto.
Surgem homens e mulheres, representantes dos mais diversos estratos sociais, demandando a
ação da justiça e buscando a efetivação de seus direitos formalmente garantidos. À medida que
8
LE GOFF, Op. Cit. p. 541.
9
Consultas: FERNANDES NETO, Tycho Brahe. História do Judiciário Catarinense. Florianópolis: Diploma
Legal, 2000. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Memórias dos 110 anos. Ed. Comemorativa 1891-
2001.
Florianópolis: Divisão de Artes Gráficas, 2001. FÉLIX, Loiva Otero; GEORGIADIS, Carolina; SILVEIRA, Daniela
Oliveira.
Tribunal de Justiça do RS 125 anos de História –1874-1999. Porto Alegre: Departamento de Artes
Grá
ficas TJ-RS, 1999. E vários volumes da Revista: Justiça & História do Memorial do Judiciário do Rio
Grande do Sul
. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul.
15
ampliamos as percepções sobre os usos sociais da justiça torna-se possível redimensionar o
debate dos espaços de cidadania e ativação dfsdsfsos direitos civis na sociedade que se desenha
concomitante à emergência do Estado.
10
Em um segundo momento buscamos descrever o cotidiano das relações de cativos e
libertos nas províncias do sul, que pouco se diferenciaram das demais regiões do país. Relações
estas permeadas pelo sentido da criminalidade dos cativos que, transformados em mercadorias,
despojados de suas qualidades humanas e submetidos a péssimas condições de vida e trabalho,
tinham a sua humanidade aflorada apenas quando cometiam uma ação criminosa, quando fugiam
ou se aquilombavam.
Diversas nominações para africanos e afrodescenentes dessa época são encontradas nas
fontes. Hebe de Mattos descreve que durante todo o período colonial e mesmo até bem avançado
o século XIX, os termos “negro” e “preto” foram
usados exclusivamente para designar escravos e
forros. Em muitas áreas e períodos “preto” foi sinônimo de africano, e os índios escravizados
eram chamados “negros da terra”. “Pardo” foi inicialmente utilizado para designar a cor mais
clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência européia de alguns deles,
mas ampliou sua significação quando se teve que dar conta de uma crescente população para a
qual não mais era cabível a classificação de “preto” ou de “crioulo”, na medida em que es
tas
tendiam a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo. A emergência de uma
população livre de ascendência africana, o necessariamente mestiça, mas dissociada por
algumas gerações da experiência mais direta do cativeiro, consolidou a categoria de “pardo
livre”.
11
Também neste sentido, de acordo com George Andrews a sociedade colonial distinguia
entre os produtos da miscigenação (pardos ou mulatos) e as pessoas de ancestralidade africana
(pretos ou negros), atribuindo uma condição legal e social mais elevada aos primeiros. A
historiografia tem reiterado a forte conotação hierárquica contida na designação da cor.
Brancos, pardos, crioulos e negros seriam diferentes designações nas quais já estaria contida uma
nítida referência à condição
e a inserção social dos assim qualificados. Entretanto, como os dados
indicam havia diferentes formas de agregação de status diferencial que permitiam, sobretudo, os
pardos, mulatos, negros e crioulos, uma relativa mobilidade e o alcance de posições disti
ntivas
10
VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça:
Minas Gerais
século 19
. São Paulo: ANPOCS/EDUSC, 2004. p.25.
11
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
p. 17.
16
em relação aos demais assinalados pela mesma cor, a principal delas possibilitada pela inserção
profissional e ocupacional.
12
Neste trabalho consideraremos a terminologia descrita nas fontes
oficiais (processos criminais), descrevendo as cores e as
condições sociais nelas empregadas.
Verificamos também como a partir da legislação o poder imperial buscou o controle e a
normatização dos negros discutindo os discursos da coisificação e da eugenia no país. Nesse
contexto concordamos com Paul Veyne, quando se referindo a história dos coletivos o autor
descreve que a história precisa ser entendida no coletivo e não no individual, pois não podemos
determinar o que seria do indivíduo tomando à parte, fora das coalizões, das instituições, do
corpo político, pois quando ele ali entra está modelado pela sociedade, ou seja, pela história
anterior, e nunca o encontramos em estado natural. Ainda nesse contexto, para o autor o estudo
das mentalidades demonstra bem as dimensões coletivas do indivíduo, pois uma mentalidade não
consiste apenas no fato de que vários indivíduos pensam a mesma coisa: esse pensamento em
cada um deles está de diversas maneiras marcado pelo fato de que os outros o pensam também.
13
Neste sentido é preciso “apreciar os pormenores”, os “indícios”, e a partir da análise de
“dados negligenciáveis, remontar uma realidade complexa não experimentável diretamente” onde
muitas vezes o que não é dito, ou não realizado, é utilizado como um sinal de evidência, pois
mesmo
o silêncio pode ter muitos significados.
14
Nesse sentido,
Le Goff observa que:
A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos
dados do passado, preferindo-os a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que,
pelo meno
s em parte, depende da sua própria posição na sociedade de sua época e da sua
organização mental, insere-se numa situação inicial, que é ainda menos “neutra” do que
a sua intervenção. O documento é antes de mais nada o resultado de uma montagem,
consciente
ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas
também das épocas sucessivas durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que
pelo silêncio.
15
12
VELLASCO, Op. Cit. p. 89.
13
VEYNE, Paul. A História conceptual
izante
.
In: LE GOFF, Jacques. NORA, Pierre. Fazer História. v.1. Ed.
Portuguesa, Livraria Bertrand, 1977. p. 97
14
GINZBURG, Carlo.
Mitos, Emblemas e Sinais
. São Paulo: Companhia das Letras.1989.
15
LE GOFF, Op. Cit. p.548.
17
A maior parte da historiografia sobre a história dos negros no país discute sobre o caráter
brando ou cruel da escravidão no Brasil. A partir dos estudos de Gilberto Freyre
16
o eixo
fundamental do debate foi determinar se a escravidão teria sido boa ou má, em virtude dos
aspectos da violência, coisificação, patriarcalismo e paternalismo nas relações entre senhores e
escravos. Procuramos analisar os discursos das obras de historiadores da conhecida Escola de São
Paulo, como Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, entre outros, que procuraram
desmistificar a abordagem de senhores benevolentes, cativos submissos, fiéis, sem manifestações
de rebeldia, tratados severamente para evitar o vício e a indolência que lhes seriam “naturais”.
17
Em seguida estudamos outro grupo de historiadores, como por exemplo, Silvia Lara,
Sidnei Chalhoub, Célia Marinho de Azevedo, Keila Grinberg, que passaram a analisar estes
críticos da “benevolência e da suavidade” da escravidão questionando a sua imagem real como
bárbara e cruel, onde a própria violência constituiu
-se na força central de manutenção da ordem
e
do controle social que acabava também contribuindo para silenciar as ações autônomas dos
africanos e afrodescendentes.
18
Maria Helena Machado e muitos dos historiadores sociais dos anos 1980 e 1990
19
não
negam o conteúdo violento daquelas relações sociais. Para ela se constituíra uma sociedade
desigual na qual uma camada detinha o poder de expropriar não os frutos do trabalho, mas
também, a pessoa do próprio produtor. A autora cita também que não se pode negar a presença de
uma “pedagogia da violência” nessas relações entre senhores e cativos; igualmente, não podem
ser subestimados os laços que davam coesão aos membros daquela “comunidade”.
20
Assim, a
16
FREYRE, Gilberto.
Casa
-grande &
Senzala
. 45º Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. FREYRE,
Gilberto.
Sobrados e mucambos : decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbano. 14. ed. rev. São
Paulo: Global, 2003.
17
CARDOSO, Fernando Henrique e IANNI, Octavio. Cor e Mobilidade Social em Florianópolis (aspectos das
relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil Meridional).o Paulo: Companhia Editora
Nacional. v. 307, 1960. (Coleção Brasiliana). CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações
sociais e
econômicas
. Florianópolis: Insular, 2000. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no
Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
18
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário das elites século
XIX
. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1987. GRINBERG, Keila.Liberata: a Lei da ambigüidade: as ações de
liberdade da corte de apelação do Rio de Janeiro, no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumara, 1994
.
CHALOUB, Sidney. Visões de Liberdade: Uma História das últimas décadas da Escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. LARA, Silvia Hunold. Campos de Violência: escravos e senhores na
Capitania do Rio de Janeiro, 1750/1808
. Rio de Janeiro
: Paz e Terra, 1988.
19
Ver também: FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-
1924)
. 2 ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
20
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas (1830-
1888)
. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.p. 17. Vale lembrar que como anotou Lilia Schwarcz
18
expectativa de liberdade e, portanto, de mobilidade, deveria, para funcionar, ser muito mais que
mera ilusão. Nesse contexto, comparando as duas províncias e as relações de africanos e
afrodescendentes com a Justiça, visando principalmente a fonte de processos criminais,
pretendemos analisar a vigilância e as punições que os perseguiam, suas estratégias de
so
brevivência, suas respostas de resistência ao sistema escravista e como essas manifestações de
resistência eram punidas. Bem como entender mais sobre as relações sociais e o universo de
africanos e afrodescendentes que buscavam superar suas condições de ex
clusão e marginalização.
Verificamos também as discussões sobre a democracia racial. Ilka B. Leite
21
faz uma
crítica a essa questão e mostra a reatualização do racismo que, em narrativas depreciativas do
outro, se reproduz por gerações. A autora destaca que a identidade da região sul se constrói pela
negação do negro, pois um dos fortes componentes da identidade étnica da região Sul no âmbito
da Nação é sua branquidade e a sua europeização.
Um dos autores que discutiu o “mito da democracia racial” é Florestan Fernandes, que
ressalta que durante quase meio século permaneceu soberana e intocável uma ideologia racial que
colidia com as bases ecológicas, econômicas, psicológicas, sociais, culturais, jurídicas e políticas
de uma sociedade multirracial, de estrutura secularizada, aberta e em diferenciação tumultuosa.
22
A idéia de que o padrão brasileiro de relações entre “brancos” e “negros” se conformava aos
fundamentos ético-jurídicos do regime republicano vigente engendrou-se, assim, em um dos
grandes
mitos de nossos tempos: o mito da “democracia racial brasileira”. Admitia-se de
passagem que esse mito não nasceu de um momento para outro: ele germinou longamente,
aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como contendo “muito pouco
fe
l” e sendo suave, doce e cristãmente humano. Para o autor, as circunstâncias histórico-
sociais
fizeram com que o mito da “democracia racial” surgisse e fosse manipulando como conexão
dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes, co
mportamentos e ideais
“aristocráticos” da “raça dominante”.
23
Ilka B. Leite ao analisar os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina aponta duas
especificidades na historiografia: a primeira fundamentada a partir de uma análise do passado
em
O espetáculo das raças (1993), a racialização das relações escravistas ocorreu ao final do século XIX, no
bojo das luta
s contra a escravidão e como forma de atualização das hierarquias sociais.
21
LEITE, Ilka Boaventura. (Org). Negros no Sul do Brasil: Invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras
Contemporâneas, 1996.
22
FERNANDES, Florestan.
A integração do ne
gro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”
. Ed. USP.
v. 1. 1965.p. 195.
23
Idem, p. 205.
19
colonial, afirma que o negro teve e tem presença rara, inexpressiva, ou insignificante e atribui a
isto a ausência de um grande sistema escravista voltado para a exportação, como ocorreu em
outras regiões do Brasil. A segunda, menos explícita, porém não menos importante, sugere que
em algumas áreas e em certos tipos de atividade existiram relações mais democráticas e
igualitárias. Estas relações seriam decorrentes, sobretudo, do modelo econômico implantado e de
um menor contingente de escravos, tal como em anteriores ár
eas de exploração colonial. Segundo
a autora, com maior ênfase ou de modo mais discreto, sejam apoiadas ou não, as teses do
branqueamento foram se fortalecendo, quer no plano ideológico, quer no plano político ou no
plano mitológico. No plano ideológico estariam estudos como os de Dante Moreira Leite, que
descreve que embora em certos momentos possam reunir-se, racismo e nacionalismo são
conceitos independentes, pois o primeiro apresenta – mesmo quando deformado ideologicamente
- um conteúdo biológico, enquanto o segundo tem conteúdo histórico, cultural e político. De um
ponto de vista rigorosamente nacional, isto é, que procure englobar toda a população, o conceito
de raça é destrutivo, dadas as evidentes diferenças raciais existentes em todos os países. De
forma
que o racismo, antes de ser uma ideologia para justificar a conquista de outros povos, foi muitas
vezes uma forma de justificar diferenças entre classes.
24
Esse autor descreve o porque do racismo
ter conseguido grande prestígio no fim do século XIX e primeira metade do século XX, e define
duas razões: em primeiro lugar, era a fórmula preciosa para justificar o domínio branco sobre o
resto do mundo: se as outras raças eram biologicamente inferiores, se eram incapazes de atingir
os valores mais elevados da civilização, poderiam sobreviver com as massas trabalhadoras
submetidas aos brancos. Essa justificativa era mais sutil do que parece a primeira vista: através
dela, o europeu não chegava a sentir conflito ideológico com seus ideais democráticos e li
berais.
Não fora ele, o europeu, que intencionalmente estabelecera as diferenças entre as raças; ao
contrário, estas eram determinadas pela natureza. Em segundo lugar, o racismo parecia
justificado pela teoria evolucionista de Darwin e também sob este aspecto se harmonizava com a
vida intelectual européia: se o homem resultara de uma longa evolução, na qual sobreviveram os
mais capazes, as várias raças estariam em estágios diferentes de evolução e as menos capazes
deveriam ser destruídas pelas mais aptas.
25
24
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro: Historia de uma ideologia. 4 ed. São Paulo: Ed.
Livraria Pioneira, 1983. p. 17.
25
Idem, p.19.
20
No plano político é através da própria legislação e das ações administrativas que irão
beneficiar os imigrantes recém-chegados, em detrimento de índios, negros e caboclos.
26
no
plano mitológico, a autora se refere aos estudos de Roberto Da Matta, que descreve sobre o mito
de que a nação teria sido fundada por três raças. Visto de uma perspectiva antropológica possui
como elementos constituintes de sua narrativa a
supremacia
do português quase nunca citado,
por que subentendido como branco-, a
ginga
do negro e a
bravura
do índio como formadores de
uma identidade nacional, a brasilidade.
27
Entre as teses produzidas nessa época constava a crítica do mito da democracia racial no
Brasil que apontava a violência como a marca da escravidão no País. Como a maior parte dos
trabalhos da tradição historiográfica anterior versava sobre o período colonial por considerar a
grande lavoura o berço da sociedade brasileira, os novos estudos concentraram-se no mesmo
tema com o claro objetivo de debater as principais teses então vigentes sobre a escravidão. Nas
fontes primárias, como nos testamentos, censos, registros paroquiais, correspondências oficiais,
entre outros, essa nova corrente realizou um mergulho no cotidiano.
28
As estratégias escravas de luta desde as de caráter coletivo, como os quilombos e as
revoltas, até as individuais, como a família e a alforria, tornaram-se objetos prioritários de
reflexão por parte dos historiadores. Um novo corpo conceitual emergiu gradualmente,
redefinindo o escravo como um “sujeito social” capaz de posicionar-se diante da dominação
senhorial, alterando ou influenciando o “devir”. Essa virada historiográfica disseminou a certeza
de que a compreensão da trajetória da sociedade brasileira passa necessariamente pela
investigação das relações estabelecidas pelos escravos e o modo pelo qual, com o restante do
corpo social, elas deram forma à escravidão.
29
Pesquisas realizadas por Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, tendo em vista o
Brasil Meridional, são decorrentes principalmente da comparação com padrões de interação
racial elaborados nas áreas de grandes propriedades territoriais escravocratas, onde a economia
no Sul assumiria formas específicas de desenvolvimento que a diferenciaria do restante do país.
Cardoso e Ianni em sua obra sobre Florianópolis, buscaram em uma primeira parte um estudo
26
LEIT
E, Op Cit. p. 33.
27
DA MATTA, Roberto.
Relativizando: uma introdução à antropologia social
. Petrópolis: Vozes, 1981.
28
CAMPOS, Adriana P. Nas barras dos tribunais: Direito e Escravidão no Espírito Santo do século XIX. 2003.
Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em História Social ) Faculdade de História, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. p.19.
29
Idem, p. 20.
21
historiográfico sobre a escravidão na cidade, e em uma segunda parte em uma pesquisa de campo
descrever sobre a situação dos negros na sociedade local, onde o objetivo era conhecer “a
situação das relações entre negros e brancos no país, no passado e no presente”. Os autores
partem em busca de explicações para o preconceito e discriminação racial em uma sociedade com
o desenvolvimento pleno do capitalismo, que estava baseada em classes sociais, onde as
hierarquias sociais se confundem com a linha de cor. Porém, para eles, Florianópolis tenderia a
resolver esses problemas de ascensão social de populações de origem africana.
30
Os autores do livro Negro em Terra de Branco
31
, em contrapartida, procuraram também
compreender a manutenção da exclusão das populações negras no passado escravocrata, porém
tentaram encontrar no cotidiano das relações inter-raciais explicações para a existência do
preconceito e da discriminação intensa e ainda contemporânea. Descrevem, por exemplo, que no
estado de Santa Catarina, durante a Campanha Abolicionista, os próprios jornais promoveram, ao
lado de discursos em prol da abolição, não anúncios de venda e aluguel de escravos, como
também a racialização crescente de suas no
tícias e informações que envolviam pessoas de origem
africana. Nada que era publicado envolvendo a presença ou a participação de uma dessas pessoas
deixava de estampar uma referência explícita à cor do indivíduo e por vezes sua condição social
de escravo,
livre ou liberto. Ressaltam que de fato não se registraram manifestações significativas
de rebelião massiva dos escravos, o que reforça a idéia de que tudo ou quase tudo se passou entre
brancos.
32
Além disso, a documentação arquivística nos possibilitou compreender que a década de
1880 não poderia ser tomada por referência para pensar a escravidão no seu “funcionamento”
cotidiano. Bem pelo contrário, a década é ideal para pensarmos os arranjos institucionais e as
estratégias por partes das elites de re-
orden
amento do viver urbano. Bem como vislumbrar as
inúmeras ações a partir das quais africanos e afrodescendentes procuraram realizar seus projetos e
conquistaram a liberdade.
No caso dos processos criminais analisados como fontes de pesquisa, estes conduzem o
historiador em primeira instância ao crime, e posteriormente à sua remontagem no quadro das
30
CARDOSO, Fernando Henrique. IANNI, Octávio. Cor e mobilidade social em Florianópolis. São Paulo:
Nacional, 1960. Ver também: CARDOSO. Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e
econômicas
. Florianópolis: Insular, 2000.
31
PEDRO, Joana Maria. Et al.
Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no século
XIX
. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1988.
32
Idem, p. 24.
22
tensões sociais que o geraram e na multiplicidade de eventos que o qualificaram como ato social.
Através deles temos a possibilidade de reconstituir aspectos da vivência social dos escravos,
libertos e homens negros livres, a partir de evidências contidas nos autos judiciários que
investigaram os crimes praticados, tentando interpretar desde o sentido social do crime na
escravidão à reconstituição de partículas da v
ida cotidiana.
Nesse contexto buscamos a micro-história italiana desenvolvida a partir de Edoardo
Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, que tratam de um deslocamento de foco do objetivo que
aumenta o número e o tipo de dados possíveis, e de fazer emergir outras configurações onde
aparecem, em toda a sua complexidade, as relações sociais e as estratégias individuais e
coletivas: considerar as condutas pessoais e os destinos familiares permite, melhor que agregados
estatísticos, compreender as racionalidades específicas que informam os comportamentos de tal
ou tal categoria social, muitas vezes nos interstícios de sistemas normativos cuja coerência
inexiste.
33
Utilizando o paradigma indiciário do método proposto por Ginzburg, tentamos buscar
na análise dos processos aspectos da relação de cativos e libertos com a justiça no sul do Brasil,
verificando além do contexto e dos conflitos ocorridos, fragmentos, detalhes e palavras soltas,
que poderiam simbolizar costumes e práticas culturais do cotidiano. Conforme
Ginzburg:
Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indícios que permitem
decifrá
-la. Essa idéia, que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário ou
semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos, modelando
pro
fundamente as ciências humanas. Minúsculas particularidades paleográficas foram
empregadas como pistas que permitiam reconstruir trocas e transformações culturais.
34
Zubaran afirma que a legislação preocupava-se em garantir o controle social sobre a
popul
ação cativa, mas ao mesmo tempo realizava o papel de instância de conflito que permitiu
aos escravos aceder a importantes conquistas individuais; para eles a via judicial foi um
componente essencial na luta contra a escravidão e, portanto, um instrumento político de
limitação da dominação senhorial. Neste sentido a autora descreve que o acesso dos escravos à
justiça possibilitou-lhes o desenvolvimento de novas táticas de luta que resultaram em uma
33
Citado por BOUTIER, Jean e JULIA.
Dominique.Op. Cit. p. 48.
34
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e
sinais: Morfologia e história
. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 173
.
23
crescente capacidade de defesa de seus interesses e de sua liberdade, minimizando aspectos
coercitivos da lei e desafiando as relações de dominação escravista.
35
Os processos criminais constituem uma fonte especialmente rica, pois não oferecem o
relato de senhores, agregados, negociantes e até mesmo dos escravos a respeito de um mesmo
acontecimento, como também revelam aos olhos do historiador o dia-a-dia das relações pessoais
de dominação e exploração. Nesse contexto buscamos mostrar a importância da “História vista de
baixo”. Ela proporciona um meio de reintegrar a história dos grupos sociais que podem ter
pensado tê-la perdido, ou que nem tinham conhecimento da existência de sua história. Como por
exemplo faz Genovese
36
em seu livro, no subtítulo “O Mundo que os Escravos Construíram”,
onde descreve que os seres humanos que formavam sua temática, embora sem dúvida
socialmente inferiores, foram capazes de construir um mundo para si: por isso, eram
atores
históricos
, criaram história, muito mais do que foram apenas um problema” que contribui para
envolver políticos e soldados brancos em uma guerra civil, e que os políticos brancos iam
finalmente “resolver”. A maior parte daqueles que escreveram a “História vista de baixo”
aceitariam, em um sentido amplo, a opinião de que um dos resultados de terem seguido essa
ab
ordagem tem sido demonstrar que os membros das classes inferiores foram agentes cujas ações
afetaram o mundo (às vezes limitado) em que eles viviam.
37
É preciso ter certa cautela com essas fontes, pois conforme a distância que estamos dos
documentos, não em tempo, mas também pela diferença da mentalidade da época que nos
separa de seus autores, tanto mais é necessário entregarmo
-
nos a um trabalho crítico aprofundado
para avaliarmos seu peso histórico ou mais ainda sua autenticidade.
35
ZUBARAN, Maria Angélica. Escravos e a Justiça: as ações de liberdade no Rio Grande do Sul, 1865-1888
.
Revista Catarinense de História, nº 4, 1996.
36
GENOVESE, Eugene.
A terra prometida: o mundo que os escravos criaram
. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988
.
37
Citado por SHARPE, Jim. A História Vista de Baixo. In: BURKE, Peter. (Org). A Escrita da História. Novas
Perspectivas. Ed. Unesp, 1992. p. 60.
24
CAPÍTULO 1 - ESTADO IMPERIAL E JUSTIÇA NO SUL DO BRASIL: ALGUMAS
CONSIDERAÇ
Õ
ES
1.1 Rio Grande do Sul e Santa Catarina da colonização ao Império
A colonização da região sul do Brasil foi impulsionada principalmente para assegurar o
território para a Coroa Portuguesa. De certa forma, portanto, a colonização dessa região assume
formas específicas que irão se diferenciar do restante do país. Na dispersão de paulistas e
vicentistas pela costa sul, Santa Catarina teve seu primeiro povoamento. Nossa Senhora da Graça
do Rio de São Francisco (atual cidade de São Francisco do Sul), Nossa Senhora do Desterro
(atual cidade de Florianópolis), Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens (atual cidade de Lages),
e Santo Antônio dos Anjos de Laguna (atual cidade de Laguna), foram as primeiras vilas
formadas a partir de 1650.
38
A região sul permaneceu longo tempo inexplorada, principalmente nos séculos XVI e
XVII, por não apresentar interesses econômicos para Portugal passou a ser considerada “terra de
ninguém”.
Para Fernando Henrique Cardoso e outros autores, citados por Joana Pedro, que se
debruçaram sobre a história local, no início da colonização o território catarinense parecia ter
atrativos para as pessoas que buscavam refúgio em razão de crimes e perseguições sofridas em
outras regiões, reduzindo assim as possibilidades de êxito das tentativas de povoamento.
39
Esse
quadro começa a se transformar quando a Metrópole passa a investir na colonização.
O primeiro povoamento que passa a ser impulsionado é a colonização açoriana, q
ue chega
ao sul do Brasil a partir do século XVIII. Segundo Fernando Henrique Cardoso, esses imigrantes
foram instalados em pequenos lotes, obedecendo-se a uma política que pretendia favorecer a
organização e a exploração fundiária de pequena propriedade.
40
38
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. História de Santa Catarina. Florianópolis: Publicação do Governo do Estado,
1968
. p. 41.
39
PEDRO, Joana Maria, et al.
Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no século
XIX
. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p.
14.
40
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas. Flor
ianópolis:
Insular, 2000. p. 54.
25
Duas das mais importantes bases da penetração no Sul localizaram-se em terras
catarinenses: Laguna e Desterro. Estas bem representam os interesses básicos da ocupação do sul:
o econômico e o político-militar. Laguna foi o núcleo paulista por excelência dos caçadores de
gado. Desterro era fortaleza portuguesa e o ponto de apoio da navegação que demandava ao
Prata. Ambas serviram na retaguarda de cobertura para a penetração lusitana e paulista.
41
O Rio Grande do Sul passou a ser de domínio português duzentos anos depois dos outros
estados brasileiros, levando em consideração sua incorporação tardia ao território brasileiro e à
custa de lutas de fronteira. Ao findar o século XVII o contexto colonial brasileiro sofreu um
processo de renovação e a decadência do açúcar foi compensada pela descoberta das minas na
zona das Gerais. Interiorizou-se o pólo econômico de atração da colônia portuguesa. É neste
contexto que o Rio Grande do Sul passa a se destacar na ocupação que se fez, basicamente no
século XVIII, quando começaram a descer ao sul, paulistas e lagunistas objetivando prear o gado
para levar até a zona mineradora. Na província de Santa Catarina, Laguna fundada em 1676
tornou
-se o foco de irradiação da descida para o sul, num movimento espontâneo que, con
tudo,
teve incentivo da coroa portuguesa com o povoamento da área.
42
O caminho então foi aberto, e a partir de 1725 os lagunenses desceram para os campos do
sul, fixando-se nos campos de Viamão. Os paulistas dirigiram-se aos campos de Vacaria,
interessad
os na indústria pastoril e no comércio de gado. Em 1732 ocorreu a concessão de
sesmarias legitimando a fixação a terra e a organização das primeiras estâncias de criação.
Segundo Sandra Pesavento a Coroa distribuiu terras aos tropeiros que se sedentarizaram, e aos
militares que deram baixa e se afazendaram. Essas estâncias de gado realizavam a criação
extensiva do rebanho, utilizando como mão de obra os peões. Estes eram elementos subalternos
do antigo bando armado que tropeava gado, ou índios egressos das missões. Embora se
registrasse o uso de escravos nas estâncias, a atividade de criação subsidiária da economia central
do país não foi capaz de propiciar uma acumulação que permitisse a introdução regular de negros
na região. Estes, portanto, não se consti
tuíram na mão de obra fundamental.
43
Na falta de outras formas de comunicação os mascates e os tropeiros constituíam, na
época, o principal veículo de comunicação entre as cidades do interior e o mundo exterior. O
tropeio do gado fazia-se em termos de fornecimento de animais para o corte e para o transporte
41
Idem, p. 41.
42
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
História do Rio Grande do Sul
. 7ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994. p. 13.
43
Idem, p. 15.
26
na região das minas. Esta fase foi marcada pela abertura de vias de comunicação do Rio Grande
do Sul com o restante do país, ao longo das viagens dos tropeiros.
44
O ano de 1737 é dado como o da fundação oficial do Rio Grande do Sul através da
expedição do Brigadeiro José da Silva Paes e da fundação da Fortaleza de Jesus, Maria e José no
povoado de Rio Grande.
45
Oswaldo Cabral descreve que em 1738 Silva Paes conseguiu por provisão que Santa
Catarina e
o Rio Grande de São Pedro fossem separados do governo de São Paulo e subordinados
diretamente ao governo do Rio de Janeiro, pensando em melhor aparelhar o extremo sul do Brasil
“para servir de ponto de apoio à conquista e, principalmente, à fixação de portugueses à margem
esquerda do Prata”.
46
Foi constituído então o governo de Santa Catarina, ao qual ficaram
pertencendo as terras dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nessa época o Rio
Grande do Sul era na realidade um posto militar avançado, denominado de Comandância Militar
do Rio Grande de São Pedro, pertencente a Santa Catarina e subordinado ao Rio de Janeiro.
em 1760 o Rio Grande do Sul foi elevado à condição de Capitania, com a denominação de
“Capitania do Rio Grande de São Pedro”, com sede no povoado de Rio Grande, mas ainda
subordinada administrativa e judicialmente ao Rio de Janeiro.
47
A importância da região crescera de tal forma que em 1807 o Rio Grande do Sul foi
promovido a “Capitania Geral”, independente do Rio de Janeiro e subordinada diretamente ao
Vice
-Rei do Brasil. Todo este processo de apropriação militar da terra foi acompanhado da
expansão econômica da pecuária sulina, oportunizando o enriquecimento de sua camada
senhorial. O fortalecimento dos pecuaristas, contudo, tendeu a se expressar também no plano
político
-administrativo. Nos momentos finais do domínio colonial português no Brasil,
começaram a surgir áreas de atrito cada vez maiores entre os representantes da Coroa na região e
a camada senhorial, enriquecida pela pecu
ária.
48
Com a Independência as funções burocráticas e políticas ganharam novo relevo. De
acordo com a Constituição Imperial existia uma hierarquia de poderes, onde os ministros eram os
44
SILVA, Adriana Fraga. Estratégias materiais e espacialidade: uma arqueologia da paisagem do tropeirismo
nos campos de cima da serra/RS.
2006.
Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
45
FELIX, Loiva Otero (Org.). Tribunal de Justiça do RS: 125 anos de história 1874-1999. Porto Alegre: Projeto
Memória do Judiciário Gaúcho, 1999. p. 23.
46
CABRAL
,
Oswaldo
Rodrigues.
Os açorianos. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1951. p. 10.
47
FELIX, Op.Cit., p. 23.
48
PESAVENTO, Op.Cit. p. 24.
27
agentes do Poder Executivo, cujo titular era o Imperador, que tinha tot
al liberdade de escolhê
-
los.
O grupo seguinte eram os senadores, que pela lei eram escolhidos pelo Imperador, de listas
tríplices eleitas por votação popular. Seguindo, os deputados gerais formavam o grupo mais
numeroso e menos poderoso. O último grupo era formado pelos conselheiros de Estado, o cargo
era vitalício, mas os conselheiros poderiam ser suspensos de suas funções por determinados
períodos.
49
Durante o Império ocorreram muitas disputas entre liberais e conservadores. Em sua obra
José Murilo de Car
valho descreve:
Em geral as divergências eram referentes a concepções distintas sobre que modelo de
organização do Estado Liberal deveria ser adotado no Brasil. Dividiram-se os
conservadores mais favoráveis à centralização do tipo francês, dos liberais
entusiasmados com os modelos inglês e americano. Porém, tanto liberais quanto
conservadores, nos períodos turbulentos de consolidação do poder, quando várias
alternativas se colocavam como viáveis politicamente, concordavam em alguns pontos
básicos como os referentes à manutenção da unidade do país, a condenação de alguns
governos militares, à defesa do sistema representativo, à manutenção da monarquia e,
sem dúvida, também à necessidade de preservar a escravidão.
50
Nesses conflitos as capitais das províncias, quase todas, aliás, situadas no litoral,
tornaram
-se centros políticos-administrativos importantes, o que daria nova vida a esses núcleos
urbanos. Existiam grandes desigualdades entre as províncias em termos populacionais e de
riqueza, que levavam ao maior favorecimento de umas em relação às outras. Surge a partir daí
uma grande preocupação com a unidade nacional.
No sul, por exemplo, conforme Sandra Pesavento, existiam problemas no tocante aos
impostos do Império, pois, enquanto o charque sulino
era onerado pelas altas taxas de importação
sobre o sal, os pecuaristas eram obrigados a pagar pesadas taxas sobre a légua de terra. Por outro
lado, o charque platino concorrente do gaúcho, pagava baixos impostos nas alfândegas
brasileiras. Por trás deste tratamento preferencial ao produto estrangeiro, que forçava a baixa do
preço do artigo rio-grandense, manifestavam-se os interesses do centro e do norte do país, que
queriam comprar o alimento para seus escravos a baixo custo. Além disso, tornava-se claro
para
49
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a
política imperial
. Editora UFRJ; Relume
-
Dumará, 2.ed. rev. Rio de Janeiro: 1996. p. 50.
50
Idem, p.50.
28
os gaúchos que o Rio Grande do Sul era relegado à posição de “estalagem do Império”: fornecia
soldados, cavalos e alimentos durante as lutas fronteiriças, o que desorganizava a produção, mas
não recebiam indenização por danos sofridos.
51
Dentre outros problemas esse descontentamento resultou em 1835 em um movimento
revolucionário que ficou conhecido por Revolução Farroupilha, que destinava a libertar a
Província de um jugo político e econômico julgado intolerável pelos gaúchos. A grande maioria
dos aut
ores
52
ao analisar este movimento, concorda que os revolucionários lutavam por uma
autonomia que lhes era negada pelo governo centralizado do país. Revolucionários estes
alimentados por um ideal republicano e federalista, que em certo momento revelou uma at
itude
separatista, e levou o Rio Grande do Sul a abandonar a comunhão nacional e tentar formar uma
República independente do Império.
A história desse movimento registra de diversas formas a presença do escravo negro, que
utilizado em diversas campanhas militares tem longa tradição no país. em 1822, D. Pedro I
criou o Batalhão de Artilharia, composto de pretos libertos para auxiliar na defesa das costas
brasileiras. Nesse mesmo ano, o Imperador organizou o Regimento dos Henriques para o Rio
Grande do Sul, com vistas à sua participação em guerras externas e ajuda na manutenção da
ordem na Província.
53
Nada de novo portanto, na presença do escravo negro na Revolução de 35. Os
farroupilhas arregimentaram soldados através do alistamento e do recrutamento, re
cebendo
instruções em 1837 da Secretaria de Negócios de Guerra do Governo Republicano. Recrutavam
ainda solteiros, entre 18 e 35 anos, brancos, pardos, índios e pretos libertos. Um indivíduo pode
eximir
-se de servir na campanha oferecendo um escravo negro, com carta de alforria, para lutar
em seu lugar. Muitos escravos negros também foram desviados de seus proprietários pelos
farrapos em troca de promessas de liberdade.
54
Alguns escravos também lutavam pelos
legalistas. De certa forma, podemos dizer que quem pagava pelos escravos o elevado preço para
disponibilizá
-los a essas guerras, exonerava-se de suas “obrigações com a Pátria”, pois muitas
51
PESAVENTO, Op. Cit., p. 38.
52
Verificar FLORES, Moacyr.
A Revolução Farro
upilha
. 4. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2004.
FLORES,
Moacyr.
Negros na Revolução Farroupilha: traição em Porongos e farsa em Ponche Verde.
Porto
Alegre:
EST,
2004. PESAVENTO, Sandra Jatahy.
A Revolução Farroupilha
.
3. Ed.
São Paulo:
Brasiliense,
1990.
53
BAKOS, Margaret Marchiori. A Escravidão negra e os farroupilhas. In: BAKOS, Margaret Marchiori. et al.
A
Revolução Farroupilha: História e Interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto: 1985. p. 90. (Série Documenta
20). Verificar também: BENTO, Cláudio Mo
reira.
Estrangeiros e descendentes na História Militar do Rio
Grande do Sul: 1635
-1975
. Porto Alegre: IEL, 1976.
54
BAKOS, Op. Cit. p. 90.
29
vezes justificavam-se ao relembrar sua importância na retaguarda, para manter a economia em
funcionamento.
Eclodido
em 1835 o movimento teve um ritmo ascensional até mais ou menos 1839, com
a conquista de Pelotas e Rio Pardo e a invasão de Santa Catarina. Em Laguna, Garibaldi e Davi
Canabarro fundaram a República Juliana. A rebelião era sustentada pelos estancieiros ga
úchos
que mobilizaram a sua peonada. Em 1838 foi proclamada a República Rio-Grandense. O que os
revolucionários almejavam era a independência política com relação ao domínio do centro,
mantendo contudo, os laços econômicos com o resto do país, através da continuidade do
fornecimento do charque ao mercado interno. Nesta medida, propunham federar-se às demais
províncias que, como eles, quisessem adotar a forma republicana. É neste sentido que deve ser
entendida a projeção do movimento revolucionário até Santa Catarina, revelando ainda o
interesse na aquisição de um porto (Laguna) para escoamento da produção, pois, o porto de Rio
Grande estava fechado aos farrapos estando a cidade em mãos “legalistas”. Após um período de
relativa estabilização da guerra (1840-42), seguiu-se a partir de 1843 o declínio farroupilha. Em
nome do Império, Caxias ofereceu aos farrapos uma anistia geral e “paz honrosa”, resultando na
assinatura, em 28 de fevereiro de 1845, da “Paz de Ponche Verde”.
55
Mais ou menos nessa época,
a Guerra do Paraguai também foi uma das causas que estimulou a elite brasileira a reexaminar o
conceito de nação. Esta guerra despertou a verificação do atraso do país em educação e
transporte. Nessa época também foi despertada uma consciência nos militares que a partir daí
tornaram
-
se um grupo de pressão política.
56
Com a falta de voluntários foram para a guerra muitos escravos levados a lutar por
promessas muitas vezes falsas de alforria, o que acabou gerando mais descontentamentos. Criou-
se em janeiro de 1865 o Corpo de Voluntários da Pátria, para canalizar o movimento patriótico
que, num primeiro momento, levou muitas pessoas a se alistarem. Porém, como a campanha se
anunciasse longa, e o entusiasmo popular arrefecesse, iniciou-se o recrutamento forçado. Os
ci
dadãos que possuíam mais recursos ofereciam doações, equipamentos e escravos à Guarda
55
PESAVENTO, Op.Cit. p. 39.
56
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976. p. 24.
30
Nacional. A compra de substitutos, ou seja, a compra de escravos para lutarem em nome de seus
proprietários também se tornou prática corrente.
57
A partir dos anos de 1870, os dois partidos monárquicos, o Liberal e o Conservador,
cindiram
-se por não conseguirem chegar a um acordo sobre o ritmo e a maneira de levar a cabo
duas reformas, tidas pela maioria dos políticos como fundamentais: a transição do trabalho
escravo para o livre e uma reforma política para ampliar a representação das minorias. Enfezados
com a lentidão e a ineficácia das sucessivas reformas eleitorais, membros de uma facção liberal
radicalizaram
-se, fundando um Partido Republicano. De outra parte, uma ala do Partido
Conservador iniciou um programa de modernização econômica que pôs a escravidão em sua
agenda política.
58
Em fins do século XIX começaram a surgir problemas com relação à mão de obra. No
conjunto, o advento da imigração estrangeira para a região sul foi capaz de atenuar, em nível de
economia provincial, a relativa estagnação que passara a atravessar a pecuária sulina. O
progressivo crescimento dos produtos coloniais na pauta das exportações, nas quais continuavam
preponderando os tradicionais pr
odutos pecuários, contribuiu para que, na virada do século, o Rio
Grande do Sul fosse cognominado de “celeiro do país”.
59
Nesse momento o Brasil estaria vivendo a crise de decadência de pelo menos um dos dois
principais legados coloniais: o complexo econômico baseado na tríade latifúndio-monocultura-
escravidão e o caráter estamental das instituições políticas imperiais. Essa causa profunda da
crise teria viciado as demais dimensões da vida social: instituições, hierarquia social e racial,
cidadania; relaçã
o Igreja/Estado; definição de identidade nacional; relação público/privado .
60
57
TORAL, André Amaral de. A participação dos negros escravos na guerra do Paraguai. Estudos Avançados,
São Paulo, v 9, n. 24. p. 287
-
296. 1995. p. 292.
58
ALONSO, Angela. Reforma sem Revolução. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Ano 1,
n. 10, p 72
-
77, 2006. p. 73.
59
PESAVENTO, Op.Cit., p. 51.
60
ALONSO, Op.Cit., p. 76.
31
1.2 A organização da Justiça do Brasil Colonial e Imperial
Para nos referirmos à história do Poder Judiciário no Brasil precisamos retomar o passado
colonial, pois a organização judiciária brasileira seguiria o mesmo modelo existente em Portugal.
O órgão da Justiça começara como um comitê de conselheiros do rei D. João II (1481-1495). Ao
longo do tempo foram concentrando cada vez mais atividades judiciárias a ponto de, no
século
XVI, se constituírem oficialmente num conselho governamental, que assessorava o rei em
questões da justiça e administração legal, instituído pelas Ordenações Manuelinas de 1514 e em
Regimento de 1582.
61
Com a expansão do Império Português criaram-
se
novas demandas e a necessidade de
ampliação dos organismos judiciários. Alicerçados nas tradições de órgãos como o Conselho e as
Casas de Relação, foram criados em Portugal os primeiros Tribunais, formados por
Desembargadores.
62
No século XVI criaram-se os Tribunais de Instância, chamados de “Casas de Relação”,
correspondentes à “Casa da Relação de Lisboa” e à “Casa de Relação do Porto”. Em 1582, por
um Decreto Régio, a “Casa da Suplicação” foi elevada à terceira instância, com sede em Lisboa.
Até então, a justiça exercera-se na colônia apenas em Instância. No sistema das donatárias
(Capitanias Hereditárias –1532-1548), primeira modalidade de ocupação das terras coloniais, era
o donatário que enfeixava as prerrogativas administrativas e judiciárias.
63
Não nos esqueçamos, porém, que o Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina (de
atualmente) não faziam parte do domínio português nesta época, pois o Tratado de Tordesilhas,
que em 1494 dividira o novo mundo entre portugueses e espanhóis, dava como portuguesas as
terras até Laguna em Santa Catarina.
Com o Brasil dividido em capitanias hereditárias cada Governador trazia consigo o seu
Ouvidor, que acumulava funções judiciárias e administrativas. Denominava-se ouvidor porque
conhecia
- tomava ciência - dos pedidos e apelações. Na segunda metade do século XVII, a
61
FELIX, Op.
Cit. p.10.
62
Idem, p.10.
63
Ibdem, p. 12.
32
Coroa Portuguesa criou o cargo de Ouvidor-Geral do Sul do Brasil, com jurisdição sobre os
ouvidores das capitanias.
64
Posteriormente com a implantação do Governo-Geral (1548-1763), para corrigi
r
distorções do sistema anterior das capitanias, e não para substituí-lo, criaram-se novas instâncias
administrativas e judiciais embora não demarcadas, pois a tradição portuguesa aplicada no Brasil
colonial não delimitava a natureza das funções dos diversos tipos de funcionários reais
(característica que será mantida no período imperial). O Governador-Geral, representante da
Coroa portuguesa, enfeixava o poder maior reunindo atribuições referentes à guerra, à justiça e à
fazenda ao lado de outras duas autoridades: o Provedor-Mor, encarregado dos assuntos
financeiros do tesouro e do erário na colônia, e o Ouvidor-Mor, encarregado mais diretamente
das funções judiciais.
65
A administração municipal ficava a cargo dos “homens bons” reunidos na Câmara
Municipal
, espécie de senado composto por três ou quatro vereadores e presidida por um Juiz
Ordinário, não tendo, no entanto, poderes legislativos, uma vez que as municipalidades coloniais
brasileiras não possuíam forais, o que lhes daria a autonomia legislativa.
66
Em decorrência de não terem especificamente definidas suas funções, algumas
autoridades terminavam acumulando o poder judiciário e policial. Exemplo eram os Juízes
Ordinários e os de Fora, que acumulavam funções policiais, jurisdiscionais e administrativas. Os
primeiros juízes, denominados Juízes Ordinários, não eram necessariamente bacharéis em leis. O
cargo de Juiz Ordinário foi criado em 11 de março de 1521 “era leigo e eleito anualmente pelos
‘homens bons’ da vila”. Sua eleição deveria ser confirmada pelo ouvidor.
67
Tinham como
ofícios: fazer devassas sobre os Juízes anteriores a eles; procediam contra os crimes que ocorriam
no termo; participavam das sessões da Câmara; passavam mandado de prisão ou de soltura;
julgavam sem apelação até a quantia de quatrocentos réis, e acima desta quantia davam apelação
e agravo; substituíam os Juízes de Órfãos; processavam e julgavam com os vereadores, sem
recurso, os furtos cometidos por escravos até a quantia de mil e duzentos réis. Nas causas que
64
Acesso ao site oficial do Tribuna de Justiça de Santa Catarina -
http://www.tj.sc.gov.br/institucional/museu/historico.htm
06 de Junho de 2003. 15:40 hs.
65
FELIX, Op. Cit. p. 14.
66
Idem, p. 14.
67
FERNANDES NETO, Tycho Brahe.
História do Judiciário Cat
arinense
. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. p.
15.
33
excedessem a alçada, de suas sentenças havia apelação ou agravo para o Ouvidor da Comarca ou
para a Relação competente.
68
os Juízes de Fora eram letrados ou versados em lei e bacharéis em Direito, nomeados
pelo rei. Com sua chegada cessava a jurisdição do Juiz da terra, ou seja, do Juiz Ordinário.
Procedia contra os que cometiam crime no município, até a quantia de quatro mil réis nos bens
imóveis e até cinco mil réis nos bens móveis. Este cargo foi criado em 1696 e regimentado em
1709.
69
Fernandes descreve que de um modo geral a estrutura judicial nos primeiros tempos
primava pela simplicidade e informalidade. Mais tarde, e como decorrência da sofisticação dos
costumes, ou da intensificação da presença do Estado na vida cotidiana dos habitantes, foram
criadas novas funções ligadas à estrutura judicial, bem como novas formas procedimentais, que,
em última análise, ensejaram o surgimento de verdadeira burocracia judicial.
70
O crescimento da colônia e a necessidade de garantir o domínio e de atender aos pedidos
de seus reinos
levou o governo português da União Ibérica a decretar em 07/03/1607 a criação no
Brasil do primeiro Tribunal de 2º Instância, para ser instalado na Bahia, o que só veio a
concretizar
-se em junho de 1609, quando chegaram a Salvador, capital da colônia, os
primeiros
Desembargadores. Vieram em número de dez para constituírem a primeira Corte de Apelação em
terras brasileiras, suprindo a necessidade de atendimento judiciário próximo, não dependendo
assim da demorada espera pelo tribunal de além-mar (a “Casa da Relação” e a “Casa de
Suplicação” em Lisboa).
71
A denominação de “Tribunal da Relação” ou “Casa da Relação”
transposta de Portugal para o Brasil é originada da prática de os autos subirem ao Tribunal em
forma de relatório, chamado de “relação”. Casa da Relação era, portanto, o local onde chegavam
essas relações e decidiam-se em instância conforme a relação recebida, isto é, o relatório
acompanhado dos autos transladados. O modelo das Cortes Judiciárias portuguesas foi
implantado no Brasil no que se refer
e à denominação, funções, hábitos, costumes e cargos.
72
O cargo de Desembargador constituía o mais alto nível da burocracia profissional da
justiça, compondo a elite da magistratura. Manteve a denominação medieval dos antigos
68
NEQUETE, Lenine. O poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. v. 2. Brasília: Supremo Tribunal
Federal, 2000. p. 131.
69
FELIX, Op. Cit. p. 14.
70
FERNANDES, Op.
Cit. p. 12.
71
FELIX, Op. Cit.
p. 12.
72
Idem, p. 10.
34
“Desembargadores do Paço”. A figura do Desembargador era associada à probidade e
austeridade, e por essa razão deveriam vestir roupa escura no Tribunal ou na rua, sendo proibida
qualquer ostentação ou vaidade no trajar. A toga, inspirada nas vestes senatoriais romanas, era
obrigatória
nas sessões do tribunal.
73
As normas que regiam a carreira judicial procuravam
reduzir os contatos dos magistrados com a vida local, na suposição de que eles se afastariam do
cumprimento de sua missão que era a serviço do rei. Assim, os desembargadores eram nomeados
por apenas seis anos para o mesmo lugar; eram proibidos de casar sem licença especial; eram
proibidos de exercer o comércio ou possuir terras dentro da área de sua jurisdição. Porém, na
prática essas normas nem sempre eram seguidas.
74
Figura 1
Desembargadores. Litografia de Debret.
Fonte: FILHO, 2004.
75
Keila Grinberg afirma que nessa época não havia direito organizado em códigos e
uniformizações da jurisprudência em parte alguma. A ambigüidade de sentidos e as
po
ssibilidades de construção de interpretações, atribuídas até às características da formação social
brasileira, para o bem ou para o mal, não eram exclusividade única do Império que então se
73
FELIX, Op. Cit. p. 10.
74
CARVALHO, Op. Cit. p. 157.
75
FILHO, Alberto Venâncio. Sob o Império da Lei. Nossa História. Rio de Janeiro, n. 6, 1.ano, p.84-87, 2004. p.
87.
35
fundava.
76
O debate a respeito do que essa estrutura representava, em termos das possibilidades
de controle centralizado do aparelho estatal, está consagrado na historiografia brasileira.
Contrapõem
-se duas visões que balizam essa discussão: de um lado, a concepção que enxerga na
estrutura administrativa colonial, em seu modelo e em sua realização histórica, uma coerência
interna e uma capacidade ativa que teriam sido capazes de viabilizar o controle e a centralização
desde sempre tal visão encontra-se desenvolvida, por exemplo, na obra de Raimundo Faoro.
77
De outro lado, uma visão que, ao contrário retrata essa estrutura como caótica, arcaica e
irracional, portanto incapaz de estabelecer a ordem das coisas; defendida entre outros por, Caio
Prado Jr. que descreve:
Não precisamos ir procurar funções especializadas para descobrir as fraquezas da
administração colonial. Nas próprias atividades essenciais do Estado, ela é lamentável.
Justiça cara, morosa e complicada; inacessível mesmo à grande maioria da população.
Os juízes escasseavam, grande parte deles não passava de juízes leigos e incompetentes;
os processos, iniciados ai, subiam para sucessivos graus de recurso: Ouvidor, Relação,
suplicação de Lisboa, às vezes até Mesa do desembargo do Paço, arrastando-se sem
solução por dezenas de anos.
78
Por ocasião da chegada da Corte, a estrutura judicial da Colônia compunha-se da Relação
da Bahia, que abrangia as comarcas do norte e a Relação do Rio de Janeiro, criada em 1751, a
que se subordinavam as comarcas do sul.
79
O principal motivo para criação deste Tribunal no Rio
de Janeiro era solucionar os problemas resultantes das longas distâncias entre as comarcas sulinas
e a Relação da Bahia que dificultavam e encareciam o processamento das causas e
requerimentos.
80
Após a proclamação da Independência em 1822 a constituição de 1824 foi a primeira de
uma série de códigos e leis normativos surgidos no período. Para o sistema judicial, tão
76
GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Estudos
Históricos, n. 27. p. 63
-
83. 2001. p. 76.
77
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre: Ed. Globo,
2001. Ver também: GERTZ, René E. Raymundo Faoro. In: GUNTER, Axt; Fernando Luís Schüler. (Org.).
Intérpretes do Brasil: ensaios de cultura e identidade
. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2004. p. 278
-
299.
78
PRADO JÚNIOR, Caio.
Formação do Brasil Contemporâneo:
colônia.
São Paulo
:
Brasiliense,
1996.
p.332.
79
CARVALHO, Op.Cit
. p. 158.
80
SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. “Mando vir (...) debaixo de vara, as testemunhas residentes nessa
comarca (...)”: História do Tribunal da Relação de Porto Alegre, 1874-1889. 2003. Dissertação (Mestrado em
História)
Faculdade de História, Pon
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. p. 28.
36
importante quanto a Constituição, foi a criação do Código Criminal de 1830 e o Processo
Criminal de 1832. Mozart Linhares da Silva ressalta que não podemos considerar essa legislação
pós
-independência como um simples continuísmo ou acúmulo de experiências da legislação
portuguesa colonial. O Brasil quando de sua organização legislativa, mesmo aproveitando a
experiência lusitana no que se refere
ao aparelho jurídico, adquiriu características peculiares a sua
nova situação política, assim como aproveitou o que de melhor existia no direito da época. Acima
das nuanças políticas e sociais, o direito brasileiro foi “poroso” às idéias do direito moderno.
81
Conforme Wilson Carlos Rodycz a Constituição de 1824 foi o marco formal da separação
dos poderes políticos. Foi nela que os juízes e tribunais foram elevados ao status de poder
político. A Constituição declarou independente o “Poder Judicial” e assegurou as garantias
básicas da magistratura. A jurisdição deveria ser prestada por juízes de direito que, embora
removíveis, seriam de caráter vitalício (“perpétuos”), não podendo ser demitidos, a não ser em
virtude de sentença contra eles. Entretanto, o Poder Judicial e a função jurisdicional
permaneceram submissos ao Ministério da Justiça.
82
Nesse período os juízes de paz passaram a
ter atribuições administrativas, policiais e judiciais; eram eleitos e acumulavam amplos poderes,
até então distribuídos entre
diferentes autoridades (juízes ordinários, almotacés, juizes de vintena)
ou reservados aos juízes letrados (tais como julgamento de pequenas demandas, feitura do corpo
de delito, formação de culpa, prisão, etc).
83
O Código Criminal foi criado por juristas coimbranos, apresentado em 1826 e votado em
1830. Em 1828 iniciou-se a elaboração do Código de Processo Criminal, aprovado em 1832. De
acordo com Mozart Linhares, até a aprovação deste Código, seguiu-se uma seqüência de debates
na Assembléia, e analisando alguns discursos, o autor descreve a possibilidade de uma leitura da
sociedade brasileira da época, que vivia a ambigüidade de construir um diploma legislativo
inspirado nos princípios do liberalismo, e instrumentalizá-lo numa sociedade escravista. Nesse
sentido, a questão da alteridade, do outro, torna-se central nos debates, permitindo uma
apreciação da concepção de cidadania e organização social do Brasil naqueles anos iniciais da
81
SILVA, Mozart L.
Do império da lei às grades da cidade
. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 67.
82
RODYCZ, Wilson Carlos. O Juiz de Paz Imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil
.
Justiça & História, Porto Alegre, v. 3, n. 5. p.35
-
72. 2003. p. 40.
83
VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça:
Minas Gerais
século 19
. São Paulo: ANPOCS/EDUSC, 2004.
p. 100.
37
estruturação do Estado-
nação.
84
O autor descreve ainda que é consenso entre os autores que
comentaram o Código de 1830 a inspiração liberal e a atenção ao movimento reformista penal
moderno. Estavam presentes nele as garantias individuais, a garantia da propriedade e a
mitigação das penas, fortemente influenciadas pelo humanismo oitocentista, de caráter
filantrópico, evidenciado nas reformas penais americana, francesa e inglesa.
85
Verifica ainda uma
intenção bifurcadora nos debates da Assembléia: por um lado se contemplava, segundo os
princípios das luzes, a sociedade civilizada; por outro, se alcançava, no mesmo Código, a outra
metade social, considerada imoral, refratária à civilização pela própria natureza social; questões
como a “índole”, o nível civilizacional, educacional e principalmente o fato do escravismo, o
levados em
conta nesses debates.
86
Em linhas gerais o Código Criminal do Império dividia-se em quatro partes: a primeira
tratava dos crimes e das penas, qualificando-se as ações criminosas, estipulando as regras para o
conhecimento e graduação delas, e tratava da satisfação dos danos; definia as penas adotadas e
estabeleciam
-se as regras gerais para a sua aplicação e execução. A segunda parte tratava dos
crimes contra os interesses gerais da nação. A terceira, dos crimes contra os interesses
individuais; e a última, dos crimes policiais.
87
Este código também reorganizou o sistema
judiciário. Definiu na história brasileira a estrutura do Estado organizado em 4 poderes:
Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador. A situação do Judiciário estava definida como
Pod
er e estabelecida no seu art. 151: “O Poder Judiciário é independente e será composto por
juízes e jurados, os quais terão lugar assim no cível, como no crime, nos casos, e pelo modo que
os Códigos determinarem”.
88
Ivan Vellasco descreve a mudança na administração Judiciária do Império a partir do
Código do Processo Criminal de 1832 (2004, p.121):
Os cargos que ainda sobreviviam do período colonial (ouvidores, juízes de fora, e
ordinários) são finalmente extintos e, em seu lugar surge o juiz de direito, em número
máximo de três por comarca e nomeados pelo Imperador entre bacharéis formados em
84
SILVA, Mozart L. O império dos bacharéis: o pensamento jurídico e a organização do Estado-nação no
Brasil. Curitiba: Juruá, 2003. p. 239.
85
Idem, p. 227.
86
Ibdem, p. 240.
87
CABRAL, Oswaldo Rodrigues.
A Organização das Justiças na Colônia e no Im
pério e a História da Comarca
de Laguna
. Porto Alegre: Estabelecimento Gráfico Santa Teresinha Ltda, 1955. p. 78.
88
FELIX, Op.Cit. p. 9.
38
lei, o juiz municipal e o promotor público, um por termo, nomeados pela Corte e
presidentes de província, por indicação de lista tríplice das câmaras municipais,
pr
eferencialmente graduados em direito.
89
Em janeiro de 1833, de acordo com Lenine Nequete, foi estabelecido o Regulamento das
Relações do Império dispondo:
Cada uma das Relações se comporia de 14 desembargadores, dentre os quais um seria
seu presidente, escolhido dentre os três mais antigos, escolhido pelo Imperador, com
mandato de 3 anos. Outro dos 14 desembargadores seria “Promotor de Justiça e
Procurador da Coroa, Soberania e Fazenda Nacional”. Competia às Relações: conhecer
dos crimes de responsabilidade dos comandantes militares e dos juízes de direito;
conhecer de ordem de hábeas corpus; decidir agravos no auto do processo; julgar as
apelações interpostas das sentenças dos juízes de direito ou das de seus substitutos;
julgar as apelações interpostas das decisões dos juízes de órfãos; decidir os conflitos de
jurisdição entre autoridades; julgar as questões de jurisdição entre Prelados e outras
autoridades eclesiásticas, entre outras de menor importância.
90
Em 1841 houve uma reorganização da estrutura judicial com base em uma centralização
administrativa; dentre outras mudanças, foram transferidas aos Chefes de Polícia na Província e
aos Delegados nos Distritos policiais as competências dos Juízes de Paz, tais como de
passaportes, termos de bem viver, termos de segurança ou auto de corpo de delito, prisões de
culpados, fianças e julgamentos de crimes menores, que não recebiam penas severas.
91
José
Murilo de Carvalho descreve o caráter dessas reformas como um processo de instauração do
governo como “a
dministrador” de conflitos regionais e locais, como solução para os interesses de
controle das elites. Descreve que após 1841 definiu-se o sistema judiciário que duraria, com
pequenas modificações, até o final do Império. Permaneceu o juiz de paz eleito, mas com
atribuições muito reduzidas. A magistratura togada abrangia desde os juízes municipais até os
ministros do Supremo Tribunal de Justiça.
92
Conforme George Andrews a reforma judiciária de 1841 foi uma intervenção que
substituiu os juízes de paz eleitos no âmbito local por magistrados profissionais indicados pelo
89
VELLASCO, Op.Cit. p.23.
90
NEQUETE, Op.Cit. p.23.
91
CAMPOS, Adriana P. Nas barras dos tribunais: Direito e Escravidão no Espírito Santo do século XIX. 2003.
Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em História Social ) Faculdade de História, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. p. 125.
92
CARVALHO, Op. Cit. p.142.
39
Ministério da Justiça. Como os juízes de paz, os magistrados imperiais continuaram intimamente
ligados às elites locais, proprietárias de terras, e suscetíveis aos seus interesses. Mas, ao co
ntrário
dos juízes, os magistrados profissionais dependiam fundamentalmente não dos fazendeiros, mas
de seus superiores no ministério. Muitos juízes haviam sido fazendeiros ou eram negociantes com
poucos conhecimentos da lei; os magistrados, ao contrário, eram formados pela faculdade de
direito e faziam parte de um corpo prestigiado de administradores profissionais. O autor ressalta
também que durante seu treinamento legal muitos desses magistrados entraram em contato com a
literatura e com organizações abolicionistas; o que com certeza teve conseqüências importantes
para a população escrava, e particularmente para a capacidade dessa população de defender-
se
das exigências e das imposições da escravidão, pois os novos magistrados parecem ter estado
menos dispostos a ignorar as leis que entravam em conflito com os interesses dos senhores de
escravos.
93
Um dos grandes problemas da justiça no período imperial foi o número reduzido de
bacharéis em Direito para o exercício dos cargos da Magistratura. As primeiras faculdades de
Direito no Brasil são posteriores à lei de 11 de agosto de 1827, sancionada por D. Pedro I, que
criou os dois primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais em Recife e em São Paulo. O fato é
que os cursos não vieram apenas suprir as necess
idades de pessoal qualificado para o exercício da
justiça, mas terminaram propiciando a formação dos novos quadros dirigentes do País, agora
independente de Portugal. O saber jurídico passa a se sobrepor, a ter superioridade sobre as outras
formas de saber. O tulo de bacharel e o anel de doutor passam a significar, na prática, novos
títulos de nobreza como distinção de classe, salvaguardando-se, desta forma, a classe dominante
nacional. Inicia-se no país o período do bacharelismo, não no predomínio social e cultural,
mas também da política, espaço de ocupação prioritário pelos novos bacharéis, que especialmente
através dos jornais e outros periódicos, exercitavam seus dons de manejo das palavras para a
obtenção de prestígio que se traduziria em bons cas
amentos e cargos políticos.
94
As
duas únicas escolas de Direito do país formavam bacharéis para atender todo o
território nacional. Apesar de contemporâneas divergiam em seu aspecto teórico. A escola de São
Paulo era orientada mais por tendências liberais, preocupava-se com a formação de lideres
políticos que dirigissem a nação. Recife interessava-se pela formação de homens de ciência,
93
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-
1988)
. Tradução Magda Lopes. São Paulo:
EDUSC, 1998. p. 66.
94
FELIX, Op. Cit. p. 19.
40
teóricos que se preocupavam com a constituição e desenvolvimento da nação. Estas duas
orientações jurídicas na realidade se complementam e caracterizam a peculiaridade da formação
jurídica brasileira como um todo.
95
Verifica-se um grande número de magistrados nordestinos
atuando na magistratura gaúcha nos séculos XIX e início do XX, uma vez que no Rio Grande do
Sul o primeiro
curso jurídico surgiu em 1900, através da criação da Faculdade Livre de Direito de
Porto Alegre, que teve entre seus primeiros professores e diretores, bacharéis nascidos nos
Estados do nordeste do país, formados lá, e marcados pelo clima intelectual conh
ecido como o da
“Escola do Recife”.
96
Ser magistrado no Brasil Imperial significava mais do que ter uma carreira profissional
valorizada, era ter um diploma universitário e fazer parte da elite. As maiores chances eram os
cargos de juiz municipal ou promotor público. Os juizes municipais eram escolhidos entre os
bacharéis, com o mínimo de um ano de experiência forense, nomeados para um período de quatro
anos. Ao fim deste, poderiam ser promovidos a juiz de direito, ou nomeados para o exercício de
mais quatro anos, ou então abandonar a carreira, pois esse cargo não tinha estabilidade. A
situação funcional dos promotores era semelhante, sendo que seu mandato era de três anos. Esses
dois cargos eram importantes, pois as nomeações para juiz de direito davam preferência àqueles
que tivessem exercido um deles.
97
Os juízes de direito eram nomeados pelo Imperador, deveriam
ter mais de vinte e dois anos, ser formados em Direito e ter exercido um ano de prática no foro.
De acordo com a Constituição, tinham garantia da vitaliciedade (“perpétuos”), mas poderiam ser
removidos de um lugar para outro, na forma da lei. O critério de promoções e remoções de
comarcas, tanto na primeira, quanto na segunda instância era a Lista de Antiguidade. Sua
principal atribuição era de pres
idir o Conselho de Jurados, aplicar a lei aos fatos, e julgar os feitos
cíveis que não fossem da competência de outros juízes. Os juízes de direito exerciam jurisdição
nas comarcas, que eram circunscrições compostas de vários municípios. Era ainda de sua
competência conceder fiança aos réus sujeitos ao processo perante o júri, conceder
habeas
corpus
, proceder a qualquer diligência que entendesse necessária e julgar os feitos cíveis que
ultrapassem a competência do Juiz de Paz e dos juízes municipais.
98
95
SILVA, Op. Cit. p. 93.
96
FELIX, Op.
Cit. p. 19.
97
SODRÉ, Op. Cit. p. 56.
98
RODYCZ, Op.Cit. p. 55.
41
A
última grande reforma judiciária do Império deu-se em 1871, e seu principal objetivo
foi separar as funções policiais e judiciárias, misturadas em 1841, para atribuições dos delegados
e subdelegados de polícia. Quanto à carreira judiciária propriamente di
ta, a reforma levou adiante
um desejo antigo de profissionalizar mais os magistrados aumentando as restrições ao exercício
de cargos políticos.
99
Em 1873 o governo editou uma série de decretos regulamentando a criação
de mais sete Tribunais de Apelação para o Império, previstos para serem instalados no ano
seguinte. O território brasileiro ficou dividido em onze distritos de Relação, onde cada distrito
teria a sede de um tribunal e poderia jurisdicionar uma, duas ou três províncias. (Tabela 1, Mapa
1).
100
T
abela 1
Jurisdição dos Tribunais de Relação no Brasil (1874
-
1889)
Distrito
Sede do Tribunal
da Relação
Províncias jurisdicionadas pelo Tribunal da Relação
BELÉM
Pará e Amazonas
SÃO LUIZ
Maranhão e Piauí
FORTALEZA
Ceará e Rio Grande do Norte
RECIFE
Pernambuco, Paraíba e Alagoas
SALVADOR
Bahia e Sergipe
CORTE
Rio de Janeiro e Espírito Santo
SÃO PAULO
São Paulo e Paraná
PORTO ALEGRE
Rio Grande do Sul e Santa Catarina
OURO PRETO
Minas Gerais
10º
CUIABÁ
Mato Grosso
11º
G
OIÁS
Goiás
Fonte: Decreto 2342 De 6 de agosto de 1873. Coleção das Leis do Império do Brasil de 1873.
Tomo XXXII, parte I, Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1873.
101
99
CARVALHO,Op.
Cit. p. 159.
100
SODRÉ, Op.Cit. p. 3
8.
101
Idem, p. 38.
42
Figura 2
Mapa de distribuição dos 11 Distritos de Relação no Brasil (1
874
-
1889)
Fonte: Baseado no mapa do Império do Brasil.
102
102
SODRÉ, Op.Cit. p.39.
Veiculado in: www.ibge.gov.br.
43
Entre os principais argumentos utilizados para a criação das novas Relações estava o de
agilizar o julgamento dos processos. Segundo alguns legisladores que defendiam a teoria da
eficiência dos julgamentos, ocorreria um aumento proporcional se o Império tivesse mais
Tribunais de Relação. Entretanto, outros legisladores, ao contrário, defendiam a inexistência de
demanda para esses tribunais, logo, desnecessárias seriam suas criações.
103
A carreira jurídica exigia grande circulação, primeiramente entre as comarcas e depois
entre os Tribunais de Relação. Essa alternância acabava refletindo no andamento dos trabalhos,
pois a permanência dos magistrados estava diretamente relacionada com o desenvolvimento da
província onde estava sediada a Relação.
104
Até 1889 funcionou no Império uma Justiça única, de âmbito nacional. A administração
da Justiça até então era confiada a magistrados singulares, nomeados e demitidos livremente pelo
Rei, e aos Tribunais da Rel
ação, que podiam também decidir questões administrativas.
Com a implantação da República, e a instituição do federalismo pela Carta Magna de
1891, desapareceu a organização de Justiça única e introduziu
-
se em substituição o sistema dual
-
Justiça Federal e Justiça dos Estados. Cada unidade da federação passaria a reger-se pelas
constituições e leis que adotasse, respeitados os princípios constitucionais da União. A
Constituição do Estado foi promulgada em 1891 e nessa se dispôs que as funções judiciais s
eriam
exercidas por um Superior Tribunal, cuja sede seria a Capital do Estado, por juízes de comarca,
pelo júri e por juízes distritais. O Tribunal de Relação de Porto Alegre veio a ser extinto em
fevereiro de 1892
.
105
1.3 Justiça no sul do Brasil
Em 1749 foi implantada a primeira instituição judicial na região sul, a Ouvidoria de Santa
Catarina.
106
Logo após, em 1751, ocorreu à instalação da primeira Câmara Municipal em Rio
Grande, e o Rio Grande do Sul passa a ter nela Justiça de primeira instância. Nesse contexto, os
103
NEQUETE, Op. Cit. p. 120.
104
SODRÉ, Op.Cit. p. 58.
105
NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Rio Grande do Sul. Livro Comemorativo do Centenário do
Tribunal da Relação de Porto Alegre. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado, v. 1.1974. p. 23.
106
CABRAL, Op.
Cit. p. 11.
44
processos judiciais eram encaminhados ao Ouvidor da Comarca que julgaria ainda em primeira
instância e os casos em que houvesse necessidade de apelar à justiça recursal deveriam seguir
para a Relação do Rio de Janeiro.
107
Em 1812 o Rio Grande do Sul obteve a autonomia judiciária através da criação da
Comarca de Rio Grande de São Pedro e Santa Catarina, invertendo-se a situação, onde dava
jurisdição sobre todo o continente do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e tinha Porto Alegre
como cabeça da Comarca.
108
Em sua obra, Lenine Nequete abre um espaço que denomina “A
Justiça Brasileira Notas e impressões de viajantes estrangeiros (1802-1871)”; das quais uma se
refere à Justiça no Rio Grande do Sul:
Porto Alegre, 1 de Julho de 1820 Antes do governo do Marquês de Alegrete,
predecessor do Conde de Figueira, os criminosos da Capitania eram julgados no Rio de
Janeiro. Mas como nessa distante cidade era difícil reunir provas suficientes para os
condenar e como ninguém ficasse contra eles, era hábito deixá-los durante vários anos
nas prisões, terminando por dar-lhes liberdade sem julgamento prévio. O Marquês de
Alegrete pediu e obteve do Rei a criação de uma Junta Criminal, que se deve reunir
todos os anos, composta do General, do Ouvidor e do Juiz de Fora de Porto Alegre, dos
Juízes de Fora de Rio Grande e Rio Pardo e de dois desembargadores que residem
atualmente em Porto Alegre. A formação dessa junta apresenta o inconveniente de forçar
os Juízes de Fora de Rio Grande e Rio Pardo a abandonar suas funções ordinárias,
distanciando
-se um sessenta e outro trinta léguas de suas residências habituais. Em
conseqüência do proverbial descaso e morosidade que se aplica a tudo quanto diz
respeito à administração pública, a Junta ficou, durante muitos anos sem se reunir, e
quando se reunia era por pouco tempo. Este ano ela dissolveu-se após haver julgado
quatro indivíduos, entre os duzentos acusados existentes nas prisões de Porto Alegre.
Segundo me informou um dos membros da Junta, os crimes são aqui muito f
reqüentes
principalmente entre os negros, o que não é para admirar dado o fato de serem vendidos
nesta Capitania os escravos de má índole provenientes do Rio de Janeiro.
109
em 1821 foram desmembradas as comarcas de Santa Catarina e do Rio Grande do
Sul
por um alvará no qual constava, “não ser possível a um Magistrado corrigir anualmente na
vasta extensão da mesma Comarca todas as vilas de que ela se compõe, separadas a grandes
distâncias umas das outras”.
110
Assim, o Tribunal de cada província passa a julgar seus processos
em primeira instância, e recorria se preciso, ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.
107
SODRÉ, p. 30.
108
FELIX, Op. Cit. p. 24.
109
NEQUETE, Op. Cit. p.161.
110
FELIX, Op.Cit. p. 29.
45
Em meados do século XIX, o Rio Grande do Sul já apresentava uma fisionomia
própria resultante de diferentes ocupações do espaço; na área litorânea e na Capital, estavam
os imigrantes açorianos; no sul, a região mais antiga e tradicional, de ocupação da fronteira
com o Prata, uma mistura de “bugres”, portugueses e castelhanos; a região missioneira com o
predomínio de índios guaranis e “bugres”, e na região da serra, dos vales dos rios dos Sinos,
Caí e Taquari, as primeiras ocupações de imigrantes alemães chegados em 1825. Com
população rarefeita e diversificada, em amplos espaços geográficos, os problemas para o
exercício da justiça se faziam sentir com intensidade. A distância entre as comarcas, bem
como o pequeno número de funcionários, era um problema constante.
111
A província de Santa Catarina também passa a progredir a partir de 1840, e com o
crescimento de seu índice demográfico e desenvolvimento das colonizações de imigrantes,
bem como em conseqüência de necessidades de ordens administrativas, foram sendo criadas
várias vilas e comarcas.
112
De acordo com Felix entre 1875 e 1895 a relação entre as colônias e o governo foi
basicamente administrativa, e o poder local estava pulverizado entre diversos indivíduos e
instituições, situação que permaneceu por longo período, entravando também a criação de
comarcas nas áreas coloniais.
113
1.3.1
A criação do Tribunal de Relação de Porto Alegre
Existem várias obras históricas consideradas de cunho comemorativo que descrevem a
História do Poder Judiciário e muitas vezes, o pouco que foi escrito é obra de pessoas oriundas do
aparelho judiciário que com boa vontade, levantaram algumas referências acerca dos dirigen
tes,
da legislação e “outros fatos notáveis deste Poder”.
114
Bem como são poucos os autores que se
111
Idem, p. 24.
112
CABRAL, Op. Cit. p. 101.
113
FELIX, p. 37.
114
Consultas: FERNANDES NETO, Tycho Brahe. História do Judiciário Catarinense. Florianópolis: Diploma
Legal, 2000. Tribunal de Justiça de Santa Catarina.Memórias dos 110 anos. Ed. Comemorativa 1891-
2001.
Florianópolis:Divisão de Artes Gráficas, 2001. FÉLIX, Loiva Otero; GEORGIADIS, Carolina; SILVEIRA, Daniela
46
dedicam à história dos Tribunais de Relação no Brasil, como por exemplo os trabalhos de Stuart
B. Schwarcz
115
sobre o Tribunal da Relação da Bahia, e o de Arno e Maria Welhing
116
sobre o
Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, e a dissertação de mestrado da historiadora Elaine Sodré
que se dedicou a trilhar o caminho do Tribunal de Relação de Porto Alegre.
117
Chamada de Corte de Apelação, o Tribunal da Relação julgava processos criminais
sentenciados na primeira instância que ficavam sob responsabilidade de cada Província, e
recorridos à segunda instância. E julgava também em caráter de primeira instância os casos onde
o acusado é uma autoridade, julgando assim, em pri
meira e última instância.
118
Como foi descrito, a partir de 1871, ficaram definidas as atribuições das várias
autoridades integrantes da organização judiciária. Em agosto de 1873, através do Decreto 2.342,
foram então criados sete Tribunais de Relação, sendo um na cidade de Porto Alegre, com
jurisdição nos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O Decreto 5.456, de
05/11/1873, fixara o dia 03 de fevereiro de 1874 para a instalação do mesmo.
119
Conforme Elaine Sodré as condições materiais do Tribunal da Relação de Porto Alegre
eram precárias, a Presidência da Província providenciou o aluguel de uma casa, localizada na
cidade de Porto Alegre. As Províncias de São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina
correspondiam ao território jurisdicionado pelo Distrito, dividido em 24 comarcas, sendo 17
pertencentes ao Rio Grande do Sul e 7 à Santa Catarina. O quadro da divisão judiciária era
alterado constantemente, pois estava associado à configuração político-administrativa. a
criação ou extinção de municípios não implicava, necessariamente, em mudanças nas
comarcas.
120
Oliveira.
Tribunal de Justiça do RS 125 anos de História –1874-1999.Porto Alegre: Departamento de Artes
Gráficas TJ-RS, 1999. E vários volumes da Revista: Justiça & História do Memorial do Judiciário do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul.
115
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial
.
A Suprema Corte da Bahia e seus
Juízes: 1609
-1751
. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979.
116
WELHING, Arno e WELHING, Maria José.
Ativi
dade Judicial do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro,
1751-1808
. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 386, p. 79
-
92, 1995.
117
SODRÉ. Elaine Leonara de Vargas. “Mando vir (...) debaixo de vara, as testemunhas residentes nessa
comarca (...)” História do Tribunal da Relação de Porto Alegre, 1874-1889. 2003. Dissertação (Mestrado em
História) Faculdade de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.
118
Idem, p. 20.
119
Acesso ao site oficial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina -
http://www.tj.sc.gov.br/institucional/museu/historico.htm
06 de Junho de 2003 17:05hs.
120
SODRÉ, Op. Cit. p. 65.
47
Fazendo uma análise comparativa dos mapas da divisão judiciária no começo e no final
do período de jurisdição do Tribunal da Relação de Porto Alegre, Elaine Sodré ressalta o
aumento populacional das províncias. Em duas décadas o Rio Grande do Sul teve sua população
duplicada, e os efeitos dessa mudança, no contexto da justiça, vão além da burocrática subdivisão
de territórios jurisdicionais, de criar ou extinguir comarcas, representam a necessidade cada vez
maior de instituições reguladoras das normas sociais. Verificamos então os mapas 2 e 3.
121
121
Idem, p. 65 e 66
.
48
Figura 3
Mapa da divisão judiciária das Províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina em 1874.
Fonte: SODRÉ, 2003.
49
Fig
ura 4
Mapa da divisão judiciária das Províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina em 1889.
Fonte: SODRÉ, 2003.
50
As duas províncias jurisdicionadas pela Relação de Porto Alegre mantinham suas
especificidades regionais, logo, a recorrência nos casos jurídicos seguia também determinadas
singularidades. A mais evidente especificidade refere-se à diferença na quantidade de processos
apelados que quando observados de forma comparativa temos:
Tabela 2
Processos apelados ao Tribunal da Relação
de Port
o Alegre
pelas Províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina (1874
-
1889).
122
Província
de Comarcas em
1884
Nº de Comarcas
em 1889
Processos Apelados
entre 1874
-1889
Rio Grande do Sul
17
32
2552
Santa Catarina
7 9
372
Totais:
24
41
2924
Fonte: SOD
RÉ, 2003.
A segunda diferença é que a província de Santa Catarina mantém uma uniformidade na
quantidade de feitos judiciais recorridos. Nenhuma comarca tem grande quantidade processual
quando comparada com o todo. Já no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, por exemplo, tem quase o
dobro de processos recorridos pela cidade de Rio Grande, que junto com Pelotas forma um grupo
secundário na quantidade de processos. Um terceiro grupo, é formado pelas comarcas da região
fronteiriça, com maior quantidade de proces
sos.
123
As outras comarcas teriam menor número de
processos recorridos.
As capitais das províncias Porto Alegre e Desterro são as localidades que mais recorrem a
Corte de Apelação. No Rio Grande do Sul, a antiguidade e o desenvolvimento podem ser fatores
que contribuem para a grande quantidade de processos recorrentes das comarcas de Rio Grande e
Pelotas. em Santa Catarina, o destaque fica para Lages, a maior comarca da província, o que
talvez justifique o grande número de processos recorridos.
124
122
Processos encontrados e legíveis de acordo com: SODRÉ. Op.Cit. p.27.
123
Idem, p. 68.
124
SODRÉ, Op.Cit. p. 80.
51
Outro
dado diferencial entre as duas províncias refere-se à quantidade e ao tipo de
processos enviados por cada uma delas para o Tribunal da Relação
125
:
Gráfico 1
-
Tipos de processos apelados ao Tribunal da Relação de Porto Alegre (1874
-
1889).
0
200 400 600
800
1000 1200
Crime
Cível
Comércio
Não Consta
Comarcas do Rio
Grande do Sul
Comarcas de
Santa Catarina
O decreto de número 5457 do mesmo ano de 1873 continha as disposições referentes a
número, funções e vencimentos dos demais empregados; os funcionários na Relação de Porto
Alegre seriam: um Secretário, um Amanuense, dois Contínuos, servindo um de porteiro, e dois
Ofi
ciais de Justiça.
126
Quanto aos desembargadores que atuaram na Relação de Porto Alegre, entre 1874 e 1889,
a historiadora Elaine Sodré descreve cuidadosamente características gerais do grupo e detalhes
sobre alguns magistrados em seu trabalho; segundo ela, atuaram nesta Relação dezenove
magistrados. Além dos desembargadores, excepcionalmente juízes de direito poderiam julgar nas
Relações. A Relação de Porto Alegre, assim como a maioria das outras, nos seus primeiros
quinze anos de história, algumas vezes pela falta de desembargadores para proceder aos
125
Dados retirados de SODRÉ, 2003, p. 69.
126
SODRÉ, Op.Cit. p. 88.
52
trabalhos, recorreu ao dispositivo legal de convocar o juiz de direito da comarca para atuar no
Tribunal.
127
Os secretários do Tribunal da Relação eram nomeados por Decreto Imperial.
Desempenhavam funções burocráticas na Secretaria e nas Conferências. Sua competência era a
organização do arquivo, cartório e biblioteca do Tribunal. Nas Conferências, lavravam as atas e
assinavam juntamente com o Presidente. Quanto aos processos, entre outras práticas deveriam
recebê
-los, fazer duplo registro dos autos e apresentá-los ao escrivão que daria prosseguimento a
entrada dos documentos. O “gerenciamento” da Secretaria era função do escrivão, desde escrever
correspondências e selar as cartas de sentença até controlar a freqüência e as faltas dos demais
funcionários da Relação.
128
Os secretários eram auxiliados diretamente pelo amanuense em todos
os serviços de secretaria. Os Porteiros, Contínuos e Oficiais de Justiça eram escolhidos pelo
Presidente da Relação e tinham as mesmas obrigações tanto em primeira, quanto em segunda
instância, que era a notificação das partes chamadas à justiça.
129
Nesse primeiro momento verificamos como funcionava a justiça no Tribunal da Relação
de Porto Alegre. No próximo capítulo passamos a verificar as relações dos africanos e
afrodescendentes com a legislação e a Justiça do século XIX no sul, onde por mais de três
séculos, a história econômica da região, bem como de todo o país esteve ligada ao sistema
escravista.
127
SODRÉ. Op. Cit. p. 99.
128
Idem, p. 109.
129
Ibdem, p. 112.
53
CAPÍTULO 2
-
ESC
RAVIDÃO E DIREITO NAS PROVÍNCIAS DO SUL DO BRASIL
2.1 A escravidão e o discurso contra os perigos da miscigenação
nas primeiras descrições da “História do Brasil”, sob o olhar dos viajantes, o Brasil era
visto como um “laboratório racial”, exótico o pela própria natureza, como pela mistura de
raças que formavam sua população. Muitos dos primeiros viajantes relatavam a inferiorização
com a mestiçagem. Varnhagen por exemplo, em sua obra “História Geral do Brasil”, reconstrói a
imagem do Brasil sintetizando os seus diversos ritmos temporais, submetendo-os à lógica do
descobridor e conquistador. Para ele o vencedor português impôs sua superioridade étnica,
cultural e religiosa. Foi este quem trouxe a civilização européia superior a lei, o rei, a fé, a
razão. Assim, os brancos eram portadores de tudo aquilo que uma nação precisaria para se
constituir soberanamente. E aos vencidos restava a exclusão, a escravidão, a repressão e a
assimilação pela miscigenação, isto é, pelo branqueamento racial e cu
ltural.
130
Quanto aos índios Varnhagen descreve que foi preciso usar da força para que aceitassem
ser tutelados e cristianizados, e adotassem hábitos civilizados. Para ele era filantrópico civilizar e
evangelizar o índio não o deixando entregue a sua barb
árie.
131
Aos negros o autor dedica poucas
páginas, descrevendo que os traficantes negreiros fizeram um grande mal ao Brasil entulhando as
suas cidades do litoral e engenhos de negrarias. Varnhagen, entretanto, tinha a esperança de que
um dia as cores de tal modo se combinassem que iriam desaparecer totalmente do povo as
características de origem africana. Para ele a escravidão era injusta, mas mesmo assim “os negros
melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida, com a civilização e o
cristian
ismo”. Entretanto, fizeram mal ao Brasil com seus costumes pervertidos, seus hábitos
menos decorosos, despudorados.
132
Com a independência surgem muitas preocupações com a cor, pois a questão do elemento
negro sob o ponto de vista da
sciencia
emergia então com grande autoridade na medida que uma
130
Varnhagen (anos de 1850) conforme REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio
de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 34.
131
Idem, p. 41.
132
Ibdem, p. 43.
54
das correntes científicas que surgia considerava que a herança étnica dos negros poderia interferir
negativamente nos destinos da formação da nação.
João José Reis descreve que a escravidão brasileira alcançaria seu ápice no século XIX,
difundida como estava em todo o território nacional, nos diversos setores da economia. O autor
salienta que a propriedade sobre os escravos não se limitava a grandes senhores de engenho,
fazendeiros e mineradores. Tanto no campo como na cidade era grande o número de pequenos
escravistas, donos de um, dois, três escravos, trabalhadores na pequena lavoura, nos serviços de
rua, ou de casa. Por todas essas características os escravos marcaram em profundidade os
costumes, o imaginário, a cultura e, até através de intensa miscigenação, o próprio perfil étnico-
racial de nossa população.
133
Mesmo que o tráfico tenha sido proibido a partir de 1830 e efetivamente perseguido a
partir de 1850, o maior contingente de africanos entrou no Brasil nesse período. Vários autores
descrevem bem essa questão do tráfico no Brasil, como por exemplo, Manolo Florentino,
134
e
Alberto da Costa e Silva.
135
A partir de 1850 com o fim do tráfico e até 1888 finalmente com a abolição, surgiram
muitas preocupações com o “destino” do Brasil de grande população negra agora livre. Para os
altos funcionários imperiais o fim do contrabando negreiro e o início de práticas imigratórias
abria a oportunidade de “civilizar” o universo rural, e mais ainda o conjunto da sociedade,
reequ
ilibrando o povoamento do território em favor da população branca.
136
A grande busca pela imigração trouxe um enorme fluxo de estrangeiros para o Brasil entre
1880 e 1920. Durante o Império, “assimilação”, “mistura” e “miscigenação” são palavras-
chave
nos
discursos nacionalistas em um contexto de políticas de imigração e colonização. Em termos
gerais, buscava
-se uma raça, um tipo, ou um povo nacional.
Conforme observações de Hobsbawn, existiu um fenômeno a partir da segunda metade do
século XIX, o qual ele chamou de “nacionalismo étnico”, que foi impulsionado não pelos
movimentos nacionalistas nos impérios multinacionais, mas também através dos movimentos
133
REIS, João José. “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”: a resistência negra no Brasil oitocentista
.
In: MOTA. Carlos Guilherme (Org.). Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000) Formação:
Histórias
. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2000. p. 244.
134
FLORENTINO, Manolo Garcia.
Em costas negras: uma história do tráfico atlâ
ntico de escravos entre África
e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX)
. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
135
SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira; UERJ, 2004.
136
ALENCASTRO, Luiz F. RENAUX, Maria L. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: NOVAIS,
Fernando A. (Dir.)
História da vida privada no Brasil
. V.2. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 295.
55
imigratórios e da ciência que ajudou a transformar a raça em conceito central das ciências
sociais.
137
A miscigenação tornou-se assunto privilegiado principalmente junto aos intelectuais,
sendo vista por alguns como uma coisa ruim e por outros como solução, e as discussões frente à
política imigratória passam então a ter mais um sentido além da ocupação territorial. Era preciso
formar a “nação brasileira” de identidade branca.
Para Roberto Ventura os letrados se mostravam divididos entre a valorização dos aspectos
originais do povo brasileiro e a meta de se construir uma sociedade branca de molde europeu.
Adotavam teorias sobre a inferioridade das raças não-brancas e das culturas o-européias, e ao
mesmo tempo buscavam as raízes da identidade brasileira em manifestações mestiças. Observado
por viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo por cientistas europeus e norte-americanos, e
temido por boa parte das elites locais, o cruzamento de raças era tomado como pista para explicar
a possível inviabilidade do Brasil como nação.
138
Giralda Seyferth descreve que o Brasil possuía uma ciência das raças desde 1860 sob
influência da obra de Paul Broca, eminente anatomista e antropólogo francês.
139
A idéia de
constituição de uma “identidade racial brasileira” é totalmente construída sobre hierarquias
denotando desigualdade, e foi reforçada em primeiro lugar por interpretações raciais vindas de
fora do país, onde o fator “raça” era visto como influência vital no “potencial civilizatório de uma
nação”.
A teoria do branqueamento que passou a se desenvolver no Brasil implicava por um lado
na crença na desigualdade das raças humanas, e por outro uma seleção natural e social que
conduziria a um povo brasileiro branco num futuro não muito longínquo. Dentre os teóricos
podemos citar Nina Rodrigues, que foi considerado o fundador da antropologia científica no
Brasil. Em sua obra “As Raças Humanas”, considerava com relação à raça negra que a
inferioridade poderia ser estabelecida fora de qualquer dúvida científica, considerando ainda
como impossível e desprezível a idéia de que “representantes das raças inferiores” pudes
sem
137
HOBSBAWN, E. J.
Nações e Nacionalismos desde 1780
. Rio de Janeiro : Paz e Terr
a. p. 126.
138
VENTURA, Roberto. Um Brasil Mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à república. In: MOTA,
Carlos Guilherme. (org.). Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000) Formação: Histórias. São
Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2000. p.
332.
139
SEYFERTH, Giralda. Construindo a Nação: Hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raça, Ciência e Sociedade
.
Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz/CCBB, 1996. p. 4
8.
56
atingir através da inteligência “o elevado grau a que chegaram as raças superiores”. Embora
mulato, esse autor teria se tornado o principal doutrinador racista brasileiro dessa época.
140
Em 1911 o médico e especialista João Baptista Lacerda, professor do primeiro curso de
Antropologia Física e pesquisador do Museu Nacional, representou o Brasil no Primeiro
Congresso Universal de Raças em Londres onde defendeu a idéia de que não havia motivos para
maiores preocupações, que com a abolição e a dispersão dos negros em mais ou menos um
século esta raça tenderia a desaparecer.
141
A partir destas idéias defendidas por Lacerda, os
pesquisadores passaram a interessar-se principalmente na morfologia e classificação de tipos
indígenas e mestiços destinando seus estudos na premissa da desigualdade das raças, construindo
hierarquias baseadas na superioridade da “raça branca”, na inferioridade das “raças de cor” e nos
prejuízos da mestiçagem. Baseados em parte na Antropologia Física, buscaram classificar a
humanidade
em tipos naturais, arbitrando certas características fenotípicas por suas freqüências
em diferentes grupos humanos. Alguns estudiosos do campo das ciências sociais e humanas
usaram e abusaram da metáfora darwinista da “sobrevivência dos mais aptos”, e inventaram a
Eugenia para sugerir políticas públicas que, entre outras coisas, implicavam limpeza étnica.
142
A Eugenia foi um conceito implicado em uma política social onde era estabelecido que
havia uma maneira de lidar com o fenômeno da diferença: “cuidar das raças”. Ou seja, seria
preciso estimular certas uniões e impedir outras, estimular certos indivíduos e isolar outros.
Conforme Giralda Seyferth o darwinismo social foi a principal doutrina racista vigente na
passagem do século, e radicalizou o primado das leis biológicas na determinação da civilização
afirmando que o progresso humano é um resultado da luta e da competição entre raças, vencendo
os mais capazes (ou aptos), no caso os brancos, e as demais raças, principalmente os negros,
acabariam suc
umbindo à seleção natural e social.
143
Na época do surgimento dessas idéias, o Brasil aparecia em muitos relatos retratado
como primeiro grande exemplo de “degeneração num país tropical” de raças mistas. Vários
darwinistas sociais como Arthur de Gobineau er
am então cotados no Brasil devido as suas teorias
sobre a inferioridade negra, a degeneração das populações mestiças, e a decadência tropical. De
140
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976. p. 75.
141
SCHWARCZ, Lília Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX
. São Pa
ulo: Cia das Letras, 1987. p. 26.
142
SEYFERTH, Op.Cit. p. 42.
143
Idem, p. 43.
57
acordo com este e com outros intelectuais, a “promiscuidade” que ocorrera em épocas coloniais
produzira elementos degenerados, instáveis e, portanto, incapazes de acompanhar um
desenvolvimento progressivo.
144
Adrián Lavalle descreve que “de fato é uma tentação comum àqueles que dedicaram boa
parte de sua obra a inventariar e inventar a identidade nacional - o caráter nacional se remontar
a tempos ancestrais nos quais não existia a nação e sequer a noção de um ‘nós brasileiros’”.
145
Lavalle em José Bonifácio de Andrada e Silva e em Carl Friedrich Philippe Von Martius
autores que ampliaram sua influência sobre os intelectuais pósteros que ao longo das décadas
imperiais vieram a refletir sobre os desafios do Brasil-nação. Segundo o autor:
Martius propunha a consideração exaustiva das particularidades das três raças que aqui
concorreram para o desenvolvimento moral e físico da população; inclinava-se a supor
que as relações particulares pelas quais o brasileiro permite ao negro, influir no
desenvolvimento da nacionalidade brasileira designam o destino do país, em preferência
de outros Estados do Novo Mundo, onde aquelas duas raças inferiores (negros e índios)
são excluídas do movimento. E o papel de José Bonifácio, quando de seu engajamento
na concepção e defesa de um programa de reformas ousado exprimido de forma nítida
em suas iniciativas de lei junto à Assemb
léia Geral Constituinte e Legislativa do Império
do Brasil; onde suas propostas de reformas serviam a um único propósito superior: a
realização do seu projeto de nação para o Brasil, sob forma de governo monárquico
constitucional. Na percepção de Bonifácio
, os principais empecilhos para a ex
-
colônia se
consolidar como país civilizado diziam respeito, fundamentalmente, às questões da
unidade territorial e da identidade nacional... “Era preciso criar uma ‘nova raça’, com um
repertório cultural comum, que serv
isse de substrato para a nova identidade nacional”.
146
Oliveira Vianna foi outro dos intelectuais que tinham sua teoria baseada em uma
arianização progressiva que ocorreria no Brasil, não devido à imigração branca como também
pelos cruzamentos e pela mortalidade de negros e mestiços. Ele baseava seus estudos em
diferenciações nas raças, como por exemplo entre mestiços superiores e mestiços inferiores, e
descrevia que estes últimos eram oriundos de cruzamentos de tipos étnicos menos ricamente
providos d
e qualidades eugênicas.
147
144
SCHWARCZ, Op. Cit. p. 23.
145
LAVALLE, Adrián Gurza.
Vida Pública e Identidade Nacional
. São Paulo: Ed.Globo, 2004. p. 65.
146
Idem, p. 65.
147
SCHWARCZ, Op. Cit. p. 26.
58
Nessa época o governo brasileiro passa então a ter propósitos que visavam a construção
de um país “branco e civilizado”. A mestiçagem era vista como explicação para o atraso,
validando, portanto, práticas imperialistas de dominação e programas de higienização e
saneamento de cunho eugênico, que geravam projetos de reação violenta. Surge então uma
sociedade amedrontada com suas “possibilidades de controle” sobre africanos e
afrodescendentes, que nessa época constituíam a maior parte da população. A prática do racismo
passa a ser a forma pela qual são explicadas as contradições da sociedade brasileira. Assim, os
discursos que desqualificavam a população africana e afrodescendente e a visão negativa do
processo de mestiçagem assegurav
am as políticas de embranquecimento.
Para Hanna Arendt em uma citação de Seyferth, o respaldo científico dado às doutrinas
raciais vigentes na passagem para o século XX remete à sua importância como ideologia para fins
políticos. A tragédia do Estado-Nação estava justamente na “consciência nacional” que forçou o
Estado a reconhecer como cidadãos somente os nacionais, dando maior credibilidade aos
“pregadores científicos” que dão elementos convincentes para a afirmação das individualidades
nacionais.
148
Na intensa busca por imigrantes descartava-se como “atraso” qualquer corrente
imigratória africana ou asiática. A desqualificação dos não brancos se fez por critérios de
natureza moral e pela suposta “incapacidade de produzir num sistema de livre iniciat
iva”, onde os
descendentes de africanos estavam simplesmente “destinados ao desaparecimento” no contexto
de uma civilização não escravista.
149
A superação da escravidão no Brasil correspondeu mais a uma situação de cerco externo
do que propriamente a desenvolvimentos internos da sociedade brasileira que propiciassem o
surgimento de novas forças sociais, econômicas e morais. A escravidão tornara-se alvo de
ataques em seu valor simbólico: sua imoralidade de acordo com os valores predominantes no
contexto do mundo ocidental aparecia então como uma marca do atraso do país, e sua superação
era indispensável para o progresso.
150
148
SEYFERTH,
Op.Cit. p. 43.
149
Idem, p.46.
150
SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial (A Formação da identidade nacional no Brasil do Segundo
Império)
.Rio de Janeitro: Topbooks, 1996. p. 35.
59
Segundo Eric Foner entre os processos revolucionários que transformaram o mundo do
século XIX, nenhum foi tão dramático em suas conseqüências humanas ou teve implicações
sociais tão profundas como a abolição da escravatura. Realizada por revolução negra, legislação
ou guerra civil, a emancipação não apenas eliminou uma instituição em crescente antagonismo
com a sensibilidade da época, como também introduziu questões dificílimas acerca do sistema de
organização econômica e de relações sociais que substituiriam a escravidão.
151
Na virada do século alguns autores como Euclides da Cunha, Graça Aranha, entre outros,
profundamente influenciados pel
o positivismo
-
que teve nos tópicos “degeneração”, “barbárie” e
“enfermidade social” unidades básicas de análise - viam no cruzamento racial e na educação, por
vezes, com idéias até de forma conflitiva e incoerente, uma possível solução para os males do
Brasil, assim como uma forma de dar aos elementos africanos e indígenas uma expressão
nacional, incorporados a projetos pretensamente sincréticos, que constituíram formas de
hegemonia dos setores tidos como superiores em termos étnicos e culturais.
152
Nessa
época Silvio Romero foi um dos primeiros autores a pedir que se reconhecesse o
Brasil como produto de uma miscigenação. Muitas vezes com idéias contraditórias, o autor
acreditava em um feliz resultado para a futura evolução étnica, pois sua fórmula para melhorar o
país consistia em aumentar o influxo de alemães que deveriam ser distribuídos e disseminados
pelo país a fim de absorver a cultura brasileira e aceitar a autoridade do governo.
153
Dessa forma
ocorreria o embranquecimento e o progresso.
Essas discussões sobre a raça única permeavam o pensamento em toda a América Latina
nessa época: branquear para desenvolver, trazer a raça superior pela imigração, miscigenação
transitória para se chegar a uma homogenização e arianização. Presentes também na literatu
ra,
como por exemplo, na obra “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. A autora Ruth Gauer analisa esta
obra e descreve:
O personagem central do romance, o português Jerônimo, retrata um imigrante que,
chegado ao Brasil com todos os atributos conferidos à raça branca, tais como força,
persistência e o gosto pelo trabalho, opõe-se ao tipo humano autóctone e brasileiro por
excelência, o mulato. Ao se apaixonar por Rita Baiana (mulata) abrasileirou-se, isto é
151
FONER, Eric.
Nada além da liberdade
. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 17.
152
MARTINEZ
-ECHAZABAL, Lourdes. O Culturalismo dos anos 30 no Brasil e na América Latina:
Deslocamento Retórico ou mudança conceitual? In: MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (Org.).
Raça, Ciência e Sociedade
. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1996.p. 108
.
153
SKIDMORE, Op.Cit. p. 75.
60
tornou
-se preguiçoso, dengoso, indolente e sensual, ou seja, o autor diferencia as
qualidades raciais utilizando atributos comportamentais. O amolecimento” de Jerônimo
revela muito mais que a superioridade de Rita, revela um entre-lugar inominável, uma
sobrevivência; Jerônimo não se amoldou à barbárie. Repen
sar a metamorfose sofrida por
Jerônimo implica inovar teoricamente, focalizar aqueles momentos ou processos que são
produzidos na articulação de diferenças culturais.
154
na década de 30 outros estudos passam a ser elaborados, ao exemplo de Artur Ramo
s,
que buscou inspiração na Antropologia Cultural, e a partir dessas novas teorias trouxe saídas
diversas às concepções “biologistas” e ao conceito de raça que é agregado então ao conceito de
cultura, onde o elemento negro passava de presença exclusivamente patológica e negativa a
figurar como um fator de contribuição positiva para a cultura brasileira e para a constituição de
nacionalidade. O autor fala do aspecto sócio-psicológico do negro, que não era mais africano e
sim um brasileiro negro, pois a mestiçagem viria desde a África, e não existiriam culturas
negras puras no Brasil; a cultura negra desapareceria progressivamente tornando-se cada vez
mais similar a cultura dominante.
155
Nessa corrente estavam também as obras de Gilberto Freyre. Este autor estuda as relações
sociais entre brancos e negros para verificar a “solução do problema”. Em seus estudos ele define
que deixaríamos de ser três raças para sermos três culturas de valor: ao índio ele faz poucas
referências; o português brasileiro seria mestiço, benigno, ou seja, sem muitos prejuízos de cor; e
quanto aos negros, Freyre de certa forma “valoriza” a influência dos africanos na construção do
Brasil e tenta “amenizar” as discussões de identidade criticando a escravidão:
O negro nos aparece no Brasil, através de toda nossa vida colonial e da nossa primeira
fase de vida independente, deformado pela escravidão
.
Parece
-
nos absurdo julgar a moral
do negro no Brasil pela sua influência deletéria como escravo. A escravidão desenraizou
o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes
hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo
esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam.
156
154
GAUER, Ruth M. Chitto. Interrogando o limite entre historiciedade e identidade. In: GAUER, Ruth M.
Chitto.
Qualidade do Tempo: Para além das aparências históricas
. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2004. p 237.
155
SCHWARCZ, Op.
Cit. p. 27.
156
FREYRE, Gilberto.
Casa Grande e Senzala
. Rio de Janeiro: Record, 1989.p.315.
61
Além de Freyre, outros autores da literatura da época pareciam expressar uma nova visão
sobre “Identidade” e sobre os “destinos do Brasil”, como por exemplo, as obras de Mário de
Andrade
Macunaíma - e de Monteiro Lobato, que com seu personagem Jeca Tatu discute a
imag
em do “caboclo nacional”.
Essas teses de embranquecimento e de desenvolvimento do progresso das raças acabam
sendo reforçadas ao longo do século XX. Os mitos de superioridade irão resistir e outros mitos
serão construídos, como o de que a escravidão na região Sul teria sido mais branda porque o
senhor possuía menor número de escravos e trabalhava lado a lado com estes. Outro mito que
haveria no Sul menos discriminação racial e se construiria um sistema de posições sociais mais
igualitárias porque os negro
s eram raros e não ameaçariam os interesses dos brancos. Esses mitos
beiram a ingenuidade, o simplismo, mas muitas vezes, por trás deles se esconde uma justificativa
para o esquecimento”, para a aceitação da desigualdade ou para a afirmação da suposta
“de
mocracia racial”.
157
2.2. Desvendando o mito da invisibilidade: a presença do escravo negro no sul
A versão historiográfica que predomina até mais ou menos 1970 enfatiza que a população
do Sul do Brasil é formada principalmente por imigrantes italianos, alemães, portugueses e
açorianos. Muitos autores desconsideram que existiu escravidão na região Sul. Outros autores
descrevem um número reduzidos de cativos que teriam sido “melhor tratados” do que nas demais
Províncias, pois na região Sul ocorriam mais relações de amizade e compadrio entre senhores e
escravos, o trabalho realizado pelos escravos era mais “fácil”, e quase não recebiam castigos, ou
então, castigos brandos.
Essa questão da invisibilidade do negro no Sul do Brasil vem sendo discutida por muitos
historiadores nos últimos anos. Ilka B. Leite descreve que esquecidos pelas políticas públicas e
pelas pesquisas científicas os negros deixaram de fazer parte, ou talvez nunca fizeram, do perfil
étnico da região Sul, de sua identidade. Ou porque foram invisibilizados pelas várias formas de
157
LEITE, Ilka Boaventura. (Org.). Negros no Sul do Brasil: Invisibilidade e territorialidade. Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 1996. p. 41.
62
representação literária e política ou porque foram segregados social e espacialmente de modo a
serem tratados como não existentes.
158
Ieda Gutfreind descreve que os historiadores sul-
rio
-grandenses não deram muita atenção
ao estudo do negro e tomaram como suas as afirmações do viajante francês Auguste de Saint-
Hilaire transformando em matizes seus dizeres. O viajante francês identificava e separava os que
denominava de “nossa raça” (os brancos) e criticava a miscigenação que acusava de nociva.
159
Neste contexto a autora cita o exemplo dos estudos de Moysés Vellinho e seu projeto político-
ideológico de articular o Rio Grande do Sul ao restante do país. As preocupações do autor eram
político
-econômicas, sua ideologia era conservadora e elitista, e sua proposta era de uma
construção de identidade para o Rio Grande do Sul e o gaúcho, acima de tudo lusitana, na qual o
negro e o índio foram apenas elementos que “foram brotando de seus flancos na surda
promiscuidade do mato
e da senzala”.
160
Ruben Oliven descreve que de fato a historiografia gaúcha tradicional, apesar de
reconhecer a existência generalizada do escravo no Estado, insistiu na sua pouca importância no
processo de trabalho. Embora houvesse escravos negros no Rio Grande do Sul desde a primeira
metade do século XVIII, sua importância se acentua a partir do final do século em atividades
como a produção do trigo, nas fazendas de criação de gado e principalmente nas charqueadas.
Para o autor o argumento de que no Rio Grande do Sul a vida dos escravos era amena quando
comparada com a existente em outros lugares repousa numa confusão entre o escravo das
estâncias (que estava presente no Estado desde sua colonização, não fazendo, entretanto, parte do
processo produtivo) e o escravo das charqueadas, o que teria proporcionado uma visão
“idealizada” das condições de vida do negro do Estado; pois as condições de vida dos escravos
nas estâncias foram consideradas boas por uma série de viajantes estrangeiros, e as charqueadas
eram
caracterizadas pela extrema desumanidade, o que é atestado em muitos relatos.
161
Em Santa Catarina, Ilka B. Leite destaca que percorrendo a historiografia é
impressionante o silêncio que paira sobre a população negra. Ela destaca o autor Walter Piazza
162
158
Idem, p. 09.
159
VE
LLINHO, Moysés. (1944; 1957; 1960; 1970; 1974). In: GUTFREIND, Ieda.
O negro no Rio Grande do Sul:
O vazio historiográfico
. Estudos Ibero
-
Americanos, Porto Alegre, v. XVI n. 1
-
2, p. 175
-
187, 1990. p. 181.
160
Idem, p. 185.
161
OLIVEN, Ruben George. A invisibilidade social e simbólica do negro no Rio Grande do Sul. In: LEITE, Ilka
Boaventura. (Org.). Negros no Sul do Brasil: Invisibilidade e territorialidade. Florianópolis: Letras
Contemporâneas, 1996. p. 21.
162
PIAZZA, Walter.
Santa Catarina: sua história
. Flori
anópolis: Ed. Lunardelli, 1983.
63
e suas conclusões sobre a “falta de núcleos expressivos de população negra no Estado de Santa
Catarina”. Este autor, preocupado em apresentar provas documentais, não se dispõe a esclarecer
como foi o relacionamento entre senhores e escravos, quais eram e como foram demarcadas as
diferenças sociais, como era a organização do trabalho familiar, quais os índices de miscigenação
e o que diferenciava o escravo do ex-escravo, o tipo de organização social, tornando ainda mais
difuso o quadro histórico que tenta traça
r.
163
Sua maior preocupação era garantir a imagem de um
pedaço da Europa no Sul do Brasil. Para isso busca amparar
-
se em farta documentação, como por
exemplo, os jornais da Província, para justificar um reduzido número de escravos, vinculando
isso à imigração européia. O autor assinala que em face à formação, a partir de 1829 e mais
intensamente de 1850, de uma sociedade agrícola, com base em trabalhadores livres, estruturando
a sua economia (rural ou urbana) basicamente no trabalho familiar, “acentua-se o bloqueio à
escravidão negra e determina a diminuição e desprestígio do comércio de escravos”.
164
Ilka B. Leite também cita Oswaldo Cabral
165
, autor catarinense que teria explicado a
“redução progressiva” do percentual de população escrava, sustentada pela maioria das fontes
documentais do século XIX, como sendo conseqüência da evasão desta população para as áreas
do café, em decorrência da “estagnação” da economia local, do fim do tráfico e do aumento do
preço dos escravos. Este autor descreve que a partir de 1870 a “abolição se tornou fruto da
espontânea vontade dos senhores”, até que em maio de 1888 o Presidente da Câmara comunica
ao Presidente da Província de Santa Catarina que não havia mais nenhum escravo no território.
166
Em outra obra Oswaldo Cabral descreve a cidade de Desterro na qual relata a vida dos
escravos tentando traçar um panorama da história desse período. Para isso o autor utilizou-se de
várias fontes, principalmente os jornais, lançando questões sobre a situação dos escravos e
descrevendo o que
aconteceu no pós
-
abolição, porém não discute o preconceito e a discriminação
da sociedade.
167
Paulo Zarth é outro historiador que critica a historiografia tradicional que descreve que a
escravidão no Sul não teria tido tanta importância como em outras províncias. O autor destaca
que a historiografia mais recente desvinculada dos interesses meramente ideológicos que
orientavam alguns dos primeiros historiadores locais tratou de trazer a luz a real presença negra.
163
LEITE, Ilka Boaventura. Op. Cit. p. 45.
164
PIAZZA, Walter Fernando.
O escravo numa economia minifundiária
. Florianópolis: UDESC, 1975. p. 219.
165
CABRAL, Oswaldo Rodrigues.
História de Santa Catarina
. Rio de Janeiro: Laudes,
1970.
166
LEITE, Ilka Boaventura. Op. Cit. p. 45.
167
CABRAL, Oswaldo Rodrigues.
Nossa Senhora do Desterro
. Florianópolis: Lunardelli, 1979. v.2.
64
Uma tarefa simples, segundo ele, diante das evidências e das fontes nos arquivos. Porém, mesmo
superada aquela visão inicial, os historiadores recentes encontram dificuldades para caracterizar o
papel da escravidão na sociedade.
168
Na transformação da ex-colônia em uma nação existiram vários problemas. A colônia
tinha legado uma sociedade heterogênea, incompatível social e etnicamente. Era preciso criar
uma idéia de homem brasileiro, de povo brasileiro, no interior de um projeto de nação brasileira.
Porém, a identidade da nova nação não se assentaria sobre a ruptura com a civilização
portuguesa; a ruptura seria somente política. As elites preservavam um país que não queria ser
indígena, negro, republicano, latino-americano e não-católico. Esse Brasil português foi
defendido e produzido pelas elites bra
ncas, pelo Estado, pela Coroa.
169
Ilka B. Leite descreve que a defesa do branqueamento foi unânime, porém, diversificada
na sua fundamentação e motivada pela crença romântica de que seu sucesso seria conquistado
pela via do Sul, quer pela presença irrelevante dos negros, quer pela expectativa de intensa
mestiçagem entre “europeus brancos imigrantes” e “africanos negros ex-
escravos”.
170
Medidas que impedissem a introdução de mais escravos nessas Províncias também foram
tomadas para garantir o “sucesso” desta mestiçagem. Essas medidas foram implantadas pela
legislação:
Lei nº 183 de 18 de outubro de 1850
Art - É proibida a introdução de escravos no território marcado para as colônias
existentes e para as que para o futuro se formarem na Província.
...
Art 4º - Os escravos que forem introduzidos nas colônias, em contravenção a esta Lei,
serão expelidos por ordem do Diretor, pagas as despesas pelos donos dos mesmos
escravos.
171
168
ZARTH, Paulo Afonso.
Do Arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX
. Ijuí: Ed. Unijuí,
2002.
p. 106.
169
REIS, Op. Cit. p. 31.
170
LEITE, Op. Cit. p. 39.
171
BARBOSA, Eni. O processo Legislativo e a Escravidão negra na Província de São Pedro do Rio Grande do
Sul
. Porto Alegre: Assembléia Legislativa Estadual do Rio Grande do Sul. CORAG, 1987. p. 54.
65
Apesar do mito da invisibilidade desde a presença dos primeiros colonizadores na região
Sul, a exploração do trabalho de cativos existia, inicialmente com indígenas. E à medida que a
colonização chegava vinham com ela africanos e afrodescendentes escravizados. No Rio Grande
do Sul e Santa Catarina a escravatura de certa forma teve características diferenciadas. Conforme
descrevem vários autores citados a proximidade das repúblicas de língua espanhola onde a
escravatura deixara de existir, e a presença de uma grande população de origem estrangeira,
advinda da imigração que demonstrava pouco entusiasmo pela escravidão, foram fatos que
exerceram efeitos liberalizantes sobre a população. Além disso, mais tarde, com o comércio
interprovincial as duas províncias vão desfazer
-
se de grande volume de mão de obra.
De acordo com Fernando Henrique Cardoso o escravo foi utilizado de forma variável no
Brasil Meridional, pois, conforme a área considerada se inserisse, num dado momento histórico,
no plano da economia mercantil, a escravidão era organizada para atender os estímulos das ár
eas
mais desenvolvidas do País ou da região do Prata (isto é, para atender o mercado que se formava
graças à atividade da economia de exportação), ou era organizada nos moldes da economia de
subsistência. No primeiro caso havia a utilização regular do braço escravo e no segundo caso a
utilização do escravo tendia a ser insignificante.
172
O estado de Santa Catarina desde o processo colonial sofreu com o descaso do governo.
Essa região, porém, era área estratégica no processo de penetração e ocupação do sul
do país. Em
um primeiro momento esteve ligada à defesa da costa, como ponto de apoio da navegação
marítima para o Prata, e no interior como rota obrigatória do comércio de charque do Rio Grande
do Sul para o abastecimento das minas e centros urbanos emergentes. A região, portanto, foi
considerada durante o século XVIII terras de passagem, com pouca fixação e uma pequena
produção voltada para o abastecimento local. Assim a maioria dos autores tem atribuído ao
escravo uma participação reduzida nesse processo, pois descartam qualquer possibilidade de ter
havido nessa província uma atividade econômica que exigisse um expressivo investimento em
escravos ou que tivesse uma dependência irrestrita destes.
173
Porém, como bem lembra Joana Pedro, embora limitadas às condições para aquisição, a
população cativa em Santa Catarina foi relativamente significativa, sobretudo pela elite local da
época que, formada por comerciantes, burocratas e oficiais militares, buscou reafirmar
172
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul
. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 46.
173
LEITE, Op. Cit . p. 42.
66
comportamentos definidores da condição social com a propriedade de escravos e a negação do
trabalho braçal.
174
O homem ou a mulher livre que tivesse de assegurar seu sustento com o próprio trabalho
aproximava
-se, aos olhos da sociedade, da condição servil. Neste sentido, tentar mostrar uma
posição social mais respeitada era uma constante. Ter propriedade de pelo menos um escravo era
uma situação buscada por muitos. E alguns conseguiam. Possuir escravos não foi privilégio dos
grandes proprietários e comerciantes, mas o desejo de toda a população livre que almejava
alguma distinção frente aos pobres destituídos de qualquer atributo que os distinguisse dos
escravos, a não ser a própria liberdade. Pequenos agricultores e comerciantes, profissionais
liberais, funcionários públicos, religiosos, e até mesmo os escravos alforriados e seus
descendentes, todos que juntavam algum pecúlio buscavam ter ao menos um escravo para lhes
servir no trabalho pesado.
175
Era muito comum estar anunciado em jornais compra, venda e aluguel de escravos. Tanto
nos jornais da Província de Santa Catarina quanto do Rio Grande do Sul, das capitais e das vilas
do interior, existiam espaços para esse comércio:
Precisa
-se alugar um cozinheiro ou cozinheira de condição livre ou escravo, ou compra-
se um preto ou uma preta que saiba cosinhar; a quem convier, pode-se dirigir a casa de
residência do tenente coronel Enéas Galvão, no Mato Grosso.
176
Vende
-
se uma escrava cosinheira, por nome Aurélia; para tratar à Rua Trajano, nº 20.
177
Quem quiser comprar uma escrava de boa idade, boa lavadeira, engomadeira, e muito
sofrível cozinheira, procure na Rua da Igreja 30, para tratar com seu dono, que se
acomodará em preço.
178
Quem tiver um escravo, ou escrava que se entenda alguma coisa de cozinha, e queira
alugar, dirija
-
se à rua da Igreja nº 17,
onde achará com quem tratar.
179
174
PEDRO, Joana Maria, et al. Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no
século XIX
. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p.
28.
175
SALLES, Ricardo. & SOARES, Mariza de Carvalho. Episódios de história afro-
brasileira
. Rio de Janeiro:
DP&A/Fase, 2005. p. 55.
176
BPESC. Jornal
O Conservado
r
. Desterro. 20/03/1875. n. 217. p.03.
177
BPESC. Jornal
O Despertador
. Desterro. 20/03/1875. n. 1906. p.04.
178
Jornal Diário de Porto Alegre, 1827. In: BERND, Zilá. E Bakos, Margaret M. O Negro: consciência e
trabalho
. 2.ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998. p. 59.
179
Idem, p.59.
67
A partir desses anúncios podemos detectar a presença e os espaços ocupados por cativos e
libertos nas províncias, principalmente no espaço urbano. Na região Sul a escravidão urbana não
se diferenciou muito das demais províncias do Brasil. Os negros perambulavam pelas ruas das
cidades executando as mais diversas tarefas. Eram escravos de aluguel, escravos de ganho e até
mesmo escravos ligados aos seus próprios senhores, realizando a maioria das tarefas nas ruas.
Eram carregadores tanto de liteiras quanto de mantimentos, buscavam água nas fontes e também
carregavam os dejetos.
Figura 5
-
Transportadores de Liteira, fotografia de Alberto Henschel.
Fonte: Revista História Viva. Edição Especial Temas Brasileiros, 2006.
180
180
Fotografia vinculada na
Revista História Viva
. Edição Especial Temas Brasileiros, 2006, n.3. p.25.
68
Figura 6
-
Carregadores de água. Pintura de Johann Moritz Rugendas.
Fonte: RUGENDAS, 1979.
181
Estes negros também estavam pelas ruas a fazer seu comércio como vendedores fixos e
ambulantes.
Figura 7
-
Negros vendedores de aves. Litografia de Jean
-
Bapti
ste Debret.
Fonte: KOSSOY; CARNEIRO, 1994.
182
181
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução: Sérgio Milliet. 8 ed. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo
: Ed. Da USP, 1979. p. 231.
69
A labuta por conta própria não era uma experiência desconhecida dos escravos. A
escravidão urbana comportou formas de exploração do trabalho escravo para as quais era
imprescendível certa autonomia do trabalhador. Era o caso dos escravos de ganho, que não
trabalhavam diretamente para os senhores, mas realizavam determinadas funções remuneradas
com a obrigação de entregar ao fim do dia ou da semana uma quantia previamente fixada pelo
senhor. Para que esses senhores pudessem angariar sua “recompensa” pecuniária, era necessário
que tais escravos dispusessem de uma margem considerável de autonomia para trabalhar.
183
Com o desenvolvimento das cidades os serviços multiplicaram-se e as figuras do
ganhador e da ganhadeira tornaram-se comuns. A categoria dos negros ganhadores tem sido
confundida com o cativo de aluguel aparecendo muitas vezes como sinônimos. O regime de
ganho era exclusividade do ambiente urbano, enquanto o sistema de aluguel era largamente
praticado no c
ampo, embora em dimensões reduzidas.
184
O sistema de ganho proporcionava ao cativo um sentimento muitas vezes ilusório de
liberdade. De acordo com Valeria Zanetti, era conveniente ao escravo manter-se ganhador; este
deveria, sob pena de castigo, não faltar com o pagamento do ganho. A quantia obtida pelo cativo
que ultrapassasse o jornal ficava com ele, sob a forma de pecúlio, para sustentar seus gastos e
suas necessidades. Eram obrigados a sobreviver com o que sobrava do magro jornal obtido,
liberando seu proprietário de quaisquer despesas. no sistema de escravos de aluguel, não era o
cativo que recebia por seu trabalho, como acontecia com os ganhadores, mas era o próprio senhor
quem contratava e recebia do contratante a soma estipulada.
185
Também nos serviços domésticos, tanto na área rural como nas cidades, os escravos
foram amplamente utilizados sendo alugados ou servindo aos seus próprios senhores. Eles se
beneficiaram em determinadas circunstâncias de condições de vida mais favoráveis que os
escravos das senzalas, pois é inegável que o tratamento dispensado as “crias da casa” era
diferente. Além disso, tinham de certa forma uma liberdade de perambular pelo mundo urbano, e
nisto a região Sul não diferiu do restante do Brasil.
182
KOSSOY, Boris; CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. O Olhar Europeu: O negro na Iconografia Brasileira do
Século XIX
. São Paulo: Ed. Da USP, 1994. p. 35.
183
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição: Escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. Ed.
Fundação Perseu Abramo, 2001. p. 39.
184
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro
.
Petrópolis: Vozes, 1988. p. 69.
185
ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-
1860)
. Passo Fundo: UPF,
2002. p. 79.
70
Quanto às mulheres escravas, utilizadas tanto na área rural quanto urbana, costumavam
estar associadas às funções da cozinha, arrumação da casa e cuidado com as crianças. Porém,
eram procuradas também para trabalhar como costureiras, doceiras, lavadeiras, engomadeiras,
amas
-
de
-
leite
, fiadeiras, entre tantas outras funções. O chicote, a senzala e o terror também
devem ter sido os responsáveis pela visão de que todas as negras são “naturalmente” boas
cozinheiras.
186
Essas escravas principalmente cozinheiras e quitandeiras, além de trabalhar na casa de
seus senhores estavam nas ruas vendendo suas guloseimas, cumprindo ordens de levar recursos
financeiros a seus “patrões”. Escravas alforriadas muitas vezes também tiravam dessas vendas
sua sobrevivência.
Figura 8
-
Negras cozinheiras
e quitandeiras. Litografia de Jean Baptiste Debret.
Fonte: SOUZA, 2006.
187
186
BERND, Zila; BAKOS, Margareth M. O negro: consciência e trabalho. 2 ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1998.
p. 59.
187
SOUZA, Marina de Mello e.
África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2006. p. 108.
71
De acordo com Fernando Henrique Cardoso, o comércio que passa a se desenvolver nessa
época possibilitara a formação e a prosperidade de algumas cidades. Para atender a algumas
ne
cessidades dos núcleos urbanos desenvolveu-se o artesanato, onde é ressaltada a participação
do escravo. Para obter maior rendimento do trabalho escravo na cidade, a sociedade escravista
transformou em artesão o escravo que antes era força brutal em geral,
apto apenas para o trabalho
indiferenciado. O escravo-artesão possuía uma “qualidade” diversa do simples escravo e era
então mais valorizado pelo senhor. Além disso, os próprios requisitos para o desempenho do
trabalho artesanal permitiam que o escravo se adestrasse em técnicas culturais e sociais que
ultrapassavam o limite mínimo dos aprendizados que a socialização parcial impunha à massa de
escravos, e em alguns casos, por exemplo, chegaram a alcançar a instrução elementar.
188
As cidades funcionavam como centros políticos, administrativos, econômicos, militares e
religiosos. Os núcleos urbanos “desempenhavam atividades comerciais financeiras e outros
serviços, sem jamais terem rompido os profundos laços de dependência que mantinham com a
produção rural”.
189
Nesse contexto a escravidão não esteve presente somente nas cidades
litorâneas das províncias. No planalto catarinense e gaúcho o escravo também se fez presente nas
mais variadas atividades. Cristiane de Bortolli, por exemplo, descreve em seu estudo sobre
a
região do Planalto Gaúcho, através da análise de inventários, que a presença de escravos era
verificada nas atividades domésticas, nas roças de subsistência e no corte e na preparação da
erva
-
mate.
190
No interior da Província do Rio Grande do Sul eram encontrados também cativos
servindo nas estâncias de criação de gado. Segundo Paulo Zarth, os historiadores tendem a
considerar o escravo como não-essencial nesses estabelecimentos pastoris. Ele cita como
exemplo o historiador Décio Freitas
191
, que inscrito nessa linha de interpretação, não nega a
existência de cativos nas estâncias, mas afirma que eram pouco numerosos e apenas encarregados
dos serviços domésticos e da produção de subsistência.
192
Conforme Fernando Henrique Cardoso,
nas estâncias a quantidade de negros utilizados não chegou a ser grande, tanto porque houve a
utilização concomitante do trabalho indígena e do trabalho de peões gaúchos livres, como
188
CARDOSO,
Op. Cit. p. 78.
189
MAESTRI, Mario.
A servidão negra
. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p. 45.
190
BORTOLLI, Cristiane de Quadros de. Vestígios do passado: a escravidão no Planalto Médio Gaúcho. Passo
Fundo: UPF, 2003. p. 72.
191
FREITAS, Décio.
O escravismo b
rasileiro
. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,
Vozes, Instituto Cultural Português.
1980.
192
ZARTH, Op. Cit. p. 110.
72
também porque a quantidade de mão-
de
-obra requerida pela empresa criatória era pequena.
193
Paulo Zarth descreve as atividades dos escravos no interior de uma estância e os classifica em
três categorias básicas:
Os roceiros, que eram lavradores encarregados do abastecimento de produtos agrícolas,
paralelas à pecuária como no caso da farinha de mandioca; provavelmente formavam a
maioria do contingente de cativos. Os campeiros, eram encarregados do pastoreio do
gado e demais atividades pastoris. Os escravos domésticos, onde predominavam as
mulheres, e que tratavam dos serviços rotineiros ligados a casa.
194
Em Santa Catarina a criação do gado na zona do planalto também foi grande
impulsionador da economia no século XIX.
Essa atividade possibilitou uma concentração
relativamente importante de escravos em Lages e na zona de sua influência.
195
No Rio Grande do Sul foi a indústria do charque, porém, que tornou a exploração do
escravo regular. O aproveitamento da carne através da salga e do curtimento data de 1780. Antes
dessa época abatia-se o gado somente para o aproveitamento do couro. Porém, as charqueadas
nem
sempre foram prósperas. A concorrência dos saladeiros do Rio da Prata era intensa e a
produção platina possuía condições favoráveis para vencer a competição. Todavia, depois que o
mercado platino começou a ressentir
-
se das guerras e das lutas pela indepen
dência, houve alguma
prosperidade nas charqueadas rio-grandenses. A exportação do charque e de couros teve grande
incremento no primeiro quartel do século XIX e, conseqüentemente, houve enorme fluxo de
escravos negros para as zonas das charqueadas.
196
Est
er Gutierrez levantou cerca de quarenta charqueadas existentes na região de Pelotas,
onde basicamente a produção de carne seca era obtida com mão-
de
-obra escrava. De acordo com
a autora, um estabelecimento saladeril tinha em média oitenta escravos, mas poderiam ser
encontrados mais de cem deles. As duras condições de trabalho e a baixa remuneração expeliam
193
CARDOSO, Op. Cit. p. 80.
194
ZARTH, Op.Cit. p. 110.
195
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas. Florianópolis:
Insular, 2000. p. 93.
196
CARDOSO, Op.Cit. p. 71.
73
o trabalho livre dessa atividade num contexto em que o mercado de trabalho escravo era ainda
dominante.
197
O charque veio transformar-se num pólo de atração muito forte ao criar um mercado
regional para o gado e conferir um novo valor para a carne, ligando-se a um mercado que
independia das flutuações da economia nacional (servia de alimento para a escravaria).
198
Com este grande desenvolvimento somado ao da economia pastoril, a atividade comercial
intensificou
-se extremamente na Província de Rio Grande de São Pedro. Porto Alegre, Rio
Grande e Pelotas tornaram-se grandes empórios. Na região de Rio Pardo, como nos campos de
Santa Maria e Alegrete, a atividade comercial também era grande. As vilas eram empórios de
onde se distribuíam os gêneros necessários para as estâncias da região e para a Província das
Missões.
199
Conforme descreve Margaret Bakos, existem provas também do trabalho escravo nas
atividades de courama e nas plantações de linho cânhamo, pelas informações de viajantes,
relatórios de presidentes de província, relatos de imigrantes, etc.
200
Fernando Henrique Cardoso destaca que nos primeiros anos do século XIX a exploração
do trigo também teve um per
íodo próspero para a agricultura no Rio Grande do Sul. Segundo ele,
graças ao trigo, ao comércio de gado e, mormente, à exploração de couros e do charque, a
economia da região pôde suportar com mais êxito a sobrecarga da política colonial. Por causa
destes
ramos da atividade econômica houve a articulação regular da economia sulina com os
mercados de outras áreas coloniais, e mesmo com a Metrópole. Do comércio resultou a
acumulação de alguma riqueza e a vitalidade necessária para que, apesar dos desmandos e
das
invasões, a economia do extremo sul pudesse, na quadra colonial, manter
-
se e expandir
-
se.
201
O mesmo autor também descreve que na Província de Santa Catarina o trigo também era
cultivado ainda no começo do século XIX nas cidades de Laguna e Tubarão.
202
Também em
constante e considerável ascensão na economia agrícola da Província esteve a farinha de
mandioca. Porém, esta não se impunha noutros períodos que não os de escassez nos grandes
197
GUTIERREZ, Ester. Negros, charqueadas e olarias. Um estudo sobre o espaço pelotense. 1993. Dissertação
(Mestrado em História) Faculdade de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, 1993.
198
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
História do Rio Grande do Sul
. 7.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994. p. 17.
199
CARDOSO,Op. Cit. p. 76.
200
BAKOS, Margaret Marchiori. Rio Grande do Sul: Escravismo e Abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1982. p. 13.
201
CARDOSO, Op. Cit. p. 57.
202
Idem, p. 90.
74
centros consumidores, porque não estava em condições de concorrer favoravelmente com os
demais centros produtores. Outro destaque da economia agrária catarinense no século XIX foi a
cana de açúcar. A partir de 1840 a lavoura de cana estendeu-se, havendo um renascimento da
produção da aguardente, do açúcar e do melado. A irregularidade na produção dos derivados da
cana foi constante. Impunha-se então o processo alternativo de cultura da cana e da mandioca
como recurso contra a flutuação dos preços no mercado exportador.
203
Figura 9
-
Preparação da raiz de mandi
oca. Litografia de Johann Moritz Rugendas.
Fonte: RUGENDAS, 1979.
204
Nos serviços acessórios do comércio, como os transportes urbano e fluvial, também
utilizavam
-se os negros. Os transportes de navios encontraram na mão–
de
-obra cativa ou liberta
um rec
urso regular para manter o trabalho braçal. A marinhagem geralmente era ofício de livres e
libertos de origem africana, ligados também a outras profissões e habilidades, como os ofícios de
pescador e canoeiro. Em toda a zona litorânea de Santa Catarina sempre se praticou a pesca,
desempenhando uma função essencial nos quadros da economia de subsistência da região.
Segundo Fernando Henrique Cardoso, com a progressiva integração de Santa Catarina à
economia colonial, a pesca passou de atividade de subsistência a atividade lucrativa. A
203
CARDOSO, Op. Cit. p. 86.
204
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução: Sérgio Milliet. 8 ed. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; Sã
o Paulo: Ed. da USP, 1979. p. 215.
75
conservação do peixe pela salga e sua exportação para outras regiões da Colônia, bem como a
exploração da pesca da baleia e de alguns dos seus derivados, logo se firmaram como um dos
primeiros núcleos de expansão da economia.
205
A
exploração da baleia teve sua ênfase no século
XVIII. Empregando homens livres era realizada no período de junho-agosto, quando os cetáceos
surgiam nas costas brasileiras. Em terra, depois de pescada a baleia, o trabalho era exercido pelos
escravos, principalmente no fabrico do azeite. Na primeira metade do século XIX a pesca da
baleia em Santa Catarina sofreu um colapso. Apesar dos esforços e das tentativas de ser
reorganizada, essa atividade nunca mais teve êxito. A sua derrocada afetou principalmente a
navegação de cabotagem que se encarregava do transporte do azeite; e a falta deste, prejudicou as
atividades de preparação de alguns produtos agrícolas. O insucesso da pesca da baleia deu-se por
um conjunto de fatores, dentre os quais a deficiência de técnicas racionais para a disposição das
armações e a concorrência de baleeiros estrangeiros, norte-americanos principalmente, por
possuírem maiores recursos.
206
Figura 10
-
Marinheiros. Litografia de Johann Moritz Rugendas
207
Fonte: RUGENDAS,1979.
205
CARDOSO, Op. Cit. p. 59.
206
CARDOSO, Op. Cit. p. 81.
207
RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução: Sérgio Milliet. 8 ed. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da USP, 1979. p. 226.
76
Nas d
uas Províncias do Sul, como nas demais regiões do país, livres e libertos juntamente
com os cativos também foram utilizados em outras atividades. Aos libertos normalmente eram
oferecidas poucas atividades diferentes das dos cativos, pois estavam “condenados por sua cor”,
pelo preconceito e pela discriminação. Vários deles conquistavam ofícios específicos,
normalmente ligados as atividades urbanas onde tinham mais facilidades, e arranjavam maneiras
e recursos de aprender e praticar alguma atividade. Os cativ
os buscavam sua alforria, e os libertos
buscavam muitas vezes sua sobrevivência, em ofícios como o de artesão, sapateiro, barbeiro,
alfaiate, entre outros.
Figura 11
-
Oficina de Sapateiro. Litografia de Jean
-
Baptiste Debret.
Fonte: KOSSOY; CARNEIRO,
1994.
208
208
KOSSOY, Boris. CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. O Olhar Europeu: O negro na Iconografia Brasileira do
Século XIX
. São Paulo: Ed. Da USP, 1994. p.62.
77
Figura 12
-
Barbeiros Ambulantes. Litografia de Jean
-
Baptiste Debret.
Fonte: KOSSOY; CARNEIRO, 1994.
209
Cocheiros libertos também eram muito comuns nas cidades no século XIX, e na região sul
também eram utilizados:
Registro do Título de Izídi
o José da Silva
Título de habilitação de cocheiros e condutores de vehiculos (veículos) número quatro
Doutor Chefe de Polícia da Província José Antônio Gomes A vista do exame que
prestou na presença do delegado de polícia e respectivos peritos, julgo habilitado Izídio
José da Silva, natural desta cidade, idade vinte annos, estado solteiro, côr preta, para
guiar carros ou veículos de quatro rodas e dois animais. Pelo que se me passou este
título. Secretaria da Polícia da Província de Santa Catarina, doze de julho de mil
oitocentos e oitenta e um/ Estava uma estampilha do valor de duzentos (duzentos) réis,
competentemente inutilizada/ = José Antônio Gomes = Cumpra-se e registre-
se:
Desterro, dezoito de agosto de mil oitocentos e oitenta e um O Presidente da Câmara,
Manoel José de Oliveira. Em 18 Agosto 1881.
Peixoto
210
De certa forma estes libertos deveriam ter uma maior circulação pela cidade e uma maior
autonomia, de maneira próxima aos citados escravos de ganho, que normalmente exerciam as
ativ
idades ligados a contratos de locação, através dos quais muitas vezes, além de formar pecúlio,
também eram utilizados para o pagamento de suas alforrias
211
:
209
KOSSOY, Boris. CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. O Olhar Europeu: O negro na Iconografia Brasileira do
Século XIX
. S
ão Paulo: Ed. Da USP, 1994. p. 47.
210
AHMF. Livro de Atas da Câmara de Desterro do ano de 1881. n. 245. Registro de títulos de cocheiros e
condutores de veículos desta cidade. p. .3.
211
O assunto de alforrias será abordado nas próximas páginas deste trabalh
o.
78
Escriptura de contrato de locação de serviços que faz o pardo liberto José a Francisco
Duarte Silv
a
, na forma abaixo. Saibão quantos este publico instrumento de escriptura de
contrato de locação de serviços serviu que no Anno de Nascimento do Nosso Senhor
Jesus Christo de mil oito centos e oitenta e seis, aos vinte um dias do mês de agosto do
dito anno, nesta cidade de Desterro em meu cartorio comparecerão os outorgantes deste
instrumento d’uma parte como locador o pardo liberto José, e de outra como locatário
Francisco Duarte Silva, domiciliados nesta cidade reconhecidos pelos próprios de que
sou e das suas testemunhas presentes abaixo assignados, em presença dos quais pelo
locador me foi dito e declarado que para obter sua plena liberdade, tinha tomado por
empréstimo da mão do locatario a quantia de tresentos mil reis, (300$000), que lhe
emprestou em moeda corrente deste Império, os quaes se obriga a pagar com seus bons
serviços pelo tempo de sete annos a contar da presente data, fasendo todo o serviço que
lhe for ordenado pelo locatario e sua familia,
obedecendo
-o e respeitando-o como se
escravo fosse, bem como obriga-se a acompanhar o locatario e sua familia para a
qualquer lugar que tenha d’ir.
212
Pelo locatario Francisco Duarte Silva, foi dito que
acceitava a confissão e declaração de dividas e os serviços do pardo liberto José e
obriga
-se a dar-
lhe
alimento e vestuario necessario para o trabalho e a tratar em suas
enfermidades uma ves que estas não excedão a quinse dias, e quando excedão serão
descontadas em outros tantos dias de serviços; e se for que alguma circunstancia quiser
sahir da casa delle locatario será obrigado a dar lhe quinse mil reis mensaes de aluguel,
na casa em que elle locatario alugal
-
o até completar.
213
Como podemos verificar, estes contratos possuíam diversas exigências, aos quais, para
obter sua liberdade ou até mesmo a sua própria sobrevivência, vários cativos se sujeitavam.
Percebemos então que, diferentemente do que propõem alguns historiadores, os negros
-
cativos e
libertos
- estiveram presentes nas mais diversas atividades ligadas à economia das Províncias de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente nos séculos XVIII e XIX, e com certeza m
até hoje sua participação no desenvolvimento e crescimento destes Estados.
212
Grifo nosso.
213
ACK. Escriptura de locação de serviços. Cartório Kotzias. Livro de Notas n.º 50
1878
-
1880. v 3 p. 28v e 29.
79
2.3
O Direito e a Justiça nos estudos sobre escravidão
Existem na historiografia controvérsias sobre o Direito constituir ou não um campo de
reflexão próprio à história social. Foucault por exemplo, aventurou-se no estudo das punições e
mostrou que a História das “penas” era importante para a compreensão do comportamento do
homem conte
mporâneo.
214
Com relação aos estudos de escravidão, a compreensão do Direito como uma prática
social capaz de fornecer informações seguras sobre o passado de uma sociedade escravista é
analisado como um fenômeno recente. Alguns estudiosos consideravam essa linha de pesquisa
“imprópria”, pois assumiam a posição de que a vontade senhorial sendo soberana na constituição
das situações jurídicas tornava as fontes oriundas do mundo legal duvidosas em relação à
“realidade” vivida pelos escravos. Tal interpretação
guiava
-se pelo enganoso pressuposto de que,
independente de sua natureza, as sociedades escravistas haviam sido moldadas unicamente pelos
senhores e, por conseqüência, o Direito “representaria” apenas os interesses dos donos de
escravos. Para Adriana Campos essa postura representa um inequívoco retrocesso em relação a
toda a produção realizada até o momento, pois, refletindo sobre o uso das fontes judiciais
pressupõe
-se a validade do Direito como um ramo pertinente à história social. As antigas
concepções de superestrutura aplicadas indiscriminadamente ao Direito, à Justiça e às Leis, que
concebiam as instituições como meros reflexos da estrutura socioeconômica, ou mesmo como
simples instrumentos da classe dominante, cederam lugar ao entendimento dessas inst
âncias
como espaços institucionais de luta e conflito na sociedade.
215
Adriana Campos descreve ainda que o diálogo com o Direito por intermédio de suas
fontes e de sua história converte-se numa oportunidade ímpar para a discussão da escravidão
brasileira, pois a ordem escravista faz-se representar no Direito Criminal, tanto em seus aspectos
mais violentos, como penas de morte e galés perpétuas, quanto em seus aspectos mais políticos,
214
FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes,
1987.
215
CAMPOS, Adr
iana Pereira.
Nas barras dos tribunais: Direito e Escravidão no Espírito Santo do Século XIX.
2003. Tese (Doutorado em História)-Faculdade de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2003. p. 22.
80
como a perpetuação das diversas hierarquias sociais, que diferenciavam escr
avos nascidos no país
dos recém
-
chegados da África, cativos de forros, nascidos livres de libertos, entre outros.
216
Examinar a relação entre Direito e Escravidão no Brasil em fins do século dezenove,
período deste trabalho, é estudar o próprio momento de formalização do Direito brasileiro. Foi
nesse período formalizada a primeira legislação imperial, porém, nunca existiu no Brasil nenhum
código específico que legislasse a escravidão. Existiram, sim, decretos e leis esparsas inseridas
em outras legislações. De acordo com Campos, no Brasil ao invés de códigos negros operou-
se
uma práxis jurídica provida de expedientes de legitimação apoiados amplamente na herança
jurídica romana, legada pela antiga legislação portuguesa, e destinados a forçar a legislação
naci
onal a adaptar
-
se às exigências de disciplina e controle da população escrava e liberta.
217
Nesse contexto, de acordo com Silvia Lara, as Ordenações Filipinas acabaram se
constituindo na principal referência legal durante toda a vigência do domínio metropolitano e
mesmo depois dele. Foram sendo substituídas em 1830 pelo Código Criminal do Império; em
1832 pelo Código Processo Penal; em 1850 pelo Código Comercial do Império do Brasil, pelo
Regulamento 737 que reordenava o juízo no Processo Comercial e pelo De
creto 738 referente aos
tribunais comerciais; e finalmente em 1917, já no período Republicano, pelo Código Civil.
218
Além das Ordenações outros documentos legais nesse período que exprimem a vontade régia,
diretamente ou em seu nome, através de seus minis
tros, chamada legislação suplementar:
Essas leis expressam ordem de caráter geral, válidas em todo o Reino e seus domínios,
tem validade indeterminada e costumam trazer mencionada a legislação por elas
revogadas. Os alvarás referem-se a modificações, declarações sobre assuntos
estabelecidos, normalmente deveriam conter disposições com até um ano de validade,
mas é freqüente perpetuar-se indefinidamente através de uma cláusula expressa em
contrário. As cartas régias são dirigidas a uma autoridade ou pessoa determinada,
constituem também uma ordem real. E o decreto é o equivalente a uma ordem real.
219
216
Idem, p. 29.
217
Ibdem, p. 50.
218
LA
RA, Op. Cit. p.25.
219
Idem. p. 25.
81
Em seu estudo das Ordenações, Silvia Lara ressalta, referente à escravidão, que o
princípio comum é o de não interferência no poder senhorial e em seu direito de propriedade
sobre o cativo, pois existia uma tradição jurídica portuguesa que regulava as relações entre
senhores e escravos e que foi de certa forma ser preservada após a proclamação da
independência.
220
Possivelmente ligadas às tradições do Império português, dificuldades em outros setores
também foram encontradas. De acordo com Campos, as dificuldades de estruturação da
administração real na colônia, conjugadas com a busca de cargos públicos por parte de brasileiros
viriam permitir o exercício de uma negociação mais intensa entre colonos e as autoridades
metropolitanas com a finalidade de evitar, modificar ou retardar a implementação das políticas
provenientes dos altos escalões portugueses. Além dos interesses coloniais, muitas vezes
prevalece
ram nos tribunais, por conta do envolvimento dos magistrados com os homens de posse
local, as especificidades das regiões remotas que exigiam a criação de leis regulamentando e,
conseqüentemente, legitimando os usos e os costumes das comunidades ali radica
das.
221
Neste sentido Mozart Linhares da Silva descreve em sua obra o panorama do direito
brasileiro do século XIX. O autor identifica a construção de um projeto político nacional no qual
a formação desse direito passou a forjar não só a classe política dirigente do país como também a
área científica, unindo a medicina legal e a antropologia criminal, que buscou combater o mal de
origem da sociedade brasileira: o negro. Contou tal projeto com a influência marcante do
positivismo e do evolucionismo social.
222
A formação do Direito Imperial brasileiro está ligado ao Direito Latino-Americano, que
por sua vez baseou-se no Direito Romano transplantado para a América pelas potências
metropolitanas. A tradição romana emprestou, por exemplo, para a legislação brasileira voltada
para a escravidão, à definição de que o escravo deve ser juridicamente definido como “coisa”,
pois por não possuir personalidade jurídica estaria impedido de ser parte processual em causas
cíveis. no Direito Penal essa regra não era aplicada, pois os escravos quando cometiam algum
crime tornavam-se réus respondendo por seus atos em processos jurídicos. De fato conforme o
Direito Imperial brasileiro baseado por sua vez no Direito Colonial Português, o escravo era
220
LARA, p. 38.
221
CAMPOS, Op. Cit. p. 88.
222
SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade
. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
p 96.
82
considerado “coisa”, privado de qualquer direito, seja político ou civil, e incapaz de manter
qualquer obrigação. No entanto, as mesmas leis que permitiam a um homem a posse e
propriedade sobre o outro negavam aos senhores o direito de vida e morte sobre seus escravos,
puniam aqueles que os castigavam demasiadamente e consideravam que o escravo devia
responder pessoalmente pelos crimes que porventura viesse a cometer. Ou seja, no que se refere à
lei penal o escravo era uma pessoa que tinha responsabilidades por seus atos, podia ser levado à
justiça, julgado e condenado.
223
De acordo com Luis Felipe Alencastro, no novo contexto do escravismo, o direito de
possuir escravos incide diretamente sobre a concepção da vida privada brasileira. No decorrer do
processo de organização política e jurí
dica nacional, a vida privada escravista desdobrou
-
se numa
ordem privada e preencheu-se de contradições com a ordem pública. Manifestou-se essa
dualidade durante todo o Império: o escravo era um tipo de propriedade particular cuja posse e
gestão demandavam
, reiteradamente, o aval da autoridade pública. Tributado, julgado, comprado,
vendido, herdado, hipotecado, o escravo precisava ser captado pela malha jurídica do Império.
Por esse motivo, o Direito assume um caráter quase constitutivo do escravismo, e o
e
nquadramento legal ganha uma importância decisiva na continuidade do sistema.
224
As mudanças políticas que ocorreram não alteraram a escravidão brasileira. A elite
dirigente, embora não fosse formada por fazendeiros escravistas, estava atada ao compromisso
de
manutenção da escravidão. A reforma judiciária não chegou a produzir um Direito especialmente
relacionado aos escravos, sobretudo no campo penal. Enquanto no Direito Civil o alicerce da
escravidão estava assentado sobre o conceito de propriedade, lido de forma indireta na
Constituição, no Direito Penal os códigos produzidos - Criminal e o Processual Criminal -
reservaram um tratamento jurídico diretamente vinculado à figura do escravo. Essa distinção
produziu inclusive uma cisão de tratamento penal: às
pessoas livres estava reservado o tratamento
preconizado pelas luzes, inspirado no direito Natural; aos escravos mantinha-se a tradição
medieval de suplícios.
225
Além disso, coube ao Judiciário e às autoridades policiais parte da tarefa de definição de
uma
p
ráxis
que diferenciasse homens livres de escravos. É verdade que a aplicação de penas
cruéis pelo Estado unificava toda a legislação penal do País, mas a dispersão e o localismo eram
223
GRINBERG, Keila.
Código Civil e Cidadania
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.p. 53.
224
ALENCASTRO, Op. Cit. p. 16.
225
CAMPOS, Op. Cit. p. 60.
83
as marcas visíveis do sistema jurídico voltado para o escravo no Brasil. Ao que tudo indica a
preocupação com a ordem pública e a repressão das camadas perigosas conferiram um caráter
muito pragmático à legislação voltada para a escravidão, que definia em termos mínimos a
situação jurídica dos escravos e confiava às autoridades a imposição dos dispositivos que
julgassem mais oportunos para o cumprimento da missão de controle e disciplina desse segmento
da população.
226
A prática jurídica alinhavava o perfil institucional do cativeiro tornando-
se
assim especial na análise da relação entre Direito e Escravidão. Talvez a prática judiciária seja o
locus
mais dinâmico desse entrelaçamento por envolver disputas não entre as classes sociais,
mas também entre os grupos profissionais que nelas desenvolveram suas atividades. Podemos
dizer que no “campo jurídico”, conforme Bordieu, existia uma disputa entre os agentes investidos
de competência social e técnica para interpretar um
corpus
de textos que definem o Direito. Em
verdade, a participação no “jogo” requer a aceitação prévia de suas r
egras e a renúncia à violência
física e às formas elementares de violência simbólica.
227
Quanto aos estudos voltados a prática jurídica, Silvia Lara descreve que o trato com as
fontes judiciais tem exigido dos historiadores, de certa forma, uma formação suplementar sobre
direito e jurisprudência. A pequena bibliografia histórica sobre o funcionamento da justiça
fornece elementos importantes, mas o percurso para aquisição de conhecimentos nesta área tem
sido realizado freqüentemente de modo solitário, através de uma bibliografia de época, ou muitas
vezes a partir da própria leitura do material processual. Ao mesmo tempo estas dificuldades tem
levado os pesquisadores a entrar em contato mais direto com os personagens que habitavam os
tribunais (letrados, advogados, procuradores, curadores, depositários, etc.), e com o modo da
construção dos argumentos jurídicos e da prática processual. Isso tem resultado também em uma
nova visão do Direito, da Justiça e da Legislação. Com estudos incidindo geralmente sobre o
per
íodo Imperial no Brasil, a lei vem deixando de ser compreendida pelos historiadores apenas a
partir do ponto de vista parlamentar para ser flagrada como resultado de projetos e perspectivas
que, no confronto, constroem um texto minimamente consensual, cuja ambigüidade permite que
todos nele se reconheçam. Esta característica permite que os textos legais sejam objeto de leituras
226
Idem, p. 67.
227
Ibdem, p. 27.
84
contraditórias em meio a contendas jurídicas e judiciais: novas arenas de luta em outras forças de
conflito.
228
Muitos historiadores trabalharam com processos criminais, como por exemplo o estudo
de Carlo Ginzburg
229
sobre o moleiro Menocchio, e a obra de Natalie Zemon Davis
230
sobre
Martin Guerre. Essas obras utilizam-se de processos criminais para de certa forma descrever o
cotidiano
de uma época. Esses historiadores encontraram nessas fontes, muitas vezes,
informações que não foram previstas pela instituição produtora da documentação. Em trabalhos
de História Cultural e História Social, buscaram idéias, valores e comportamentos de uma
sociedade que transparece nos autos. Talvez a busca por esses processos judiciais seja uma das
soluções encontradas por alguns historiadores para os quais “a fala desses personagens, quando
envolvidos, é sempre recuperada como ponte para reconstruir vivências muitas vezes ocultas”.
231
O processo criminal é um documento que se caracteriza a partir de sua funcionalidade, qual seja,
de documento oficial, normativo, interessado no estabelecimento da verdade sobre o crime.
Apesar do caráter institucional desta fonte, ela permite o resgate de aspectos da vida cotidiana,
uma vez que, interessada a Justiça em reconstituir o evento criminoso, penetra no dia-a-dia dos
implicados, desvenda suas vidas íntimas, investiga seus laços familiares e afetivos, registrando o
cor
riqueiro de suas existências.
232
Neste sentido, para Boris Fausto:
Na sua materialidade, cada processo é no período considerado um produto artesanal,
com fisionomia própria, revelada no rosto dos autos, na letra caprichada ou indecifrável
do escrivão, na forma de traçar uma linha que inutiliza páginas em branco. Não por
acaso, as resistências à introdução da datilografia de depoimentos articularam-
se
historicamente, nos meios forenses, em torno dos riscos da perda de autenticidade do
processo. O processo penal como documento diz respeito a dois “acontecimentos”
diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a
partir da atuação do aparelho repressivo; este último tem como móvel aparente,
reconstituir um acontecimento originário, com o objetivo de estabelecer a “verdade” da
qual resultará a punição ou a absolvição de alguém. Por sua vez, os autos, exprimindo a
materialização do processo penal, constituem uma transcrição/elaboração do processo,
228
LARA, Silvia Hunold. Legislaçao sobre escravos africanos na América Portuguesa. In: AUDRÉ-
GALLEGO,
José. (coord.).
Nuevas
Aportaciones a la Historia Juridica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Távera . p. 13. (
Colección Proyetos Historicos ).
1 CD-
ROM.
229
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição
.
São Paulo: Cia das Letras, 1987.
230
DAVIS, Natalie
Zemon.
O Retorno de Martin Guerre
. Rio de Janeiro: Paz E terra, 1987.
231
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Clamores da Escravidão: Requerimento dos Escravos da Nação ao
Imperador, 1828
. Revista de História Social da Unicamp, São Paulo, nº 4/5, 1997/1998. p. 01
.
232
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: Trabalho, luta e resistência nas lavouras
paulistas (1830
-
1888)
. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987. p. 23.
85
como acontecimento vivido no cenário policial ou judiciário. Os autos traduzem a seu
modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou
absolver.
233
Em sua obra - Senhores e Caçadores: a origem da lei negra -, E. P. Thompson, descreve o
campo da lei e do
direito como espaços indeterminados de lutas e conflitos de interesses diversos.
A justiça é descrita pelo autor como um espaço que pode ser influenciado por diferentes
interesses e capaz de modificar as relações sociais já estabelecidas.
234
Analisando os campos do Direito e da Justiça podemos verificar que a legislação
destinada à defesa do cativo era duvidosa. Na sociedade brasileira do final do século XIX ainda
imperava livremente a autoridade senhorial; o senhor representava a Igreja, a polícia e a Justi
ça.
Foi apenas ao longo do século XVIII que algumas vozes se levantaram questionando a escravidão
dos africanos. Nesse contexto, Silvia Lara ressalta três autores: Benci, Antonil e Ribeiro Rocha,
que embora nunca chegassem a contestar a legislação, incitavam a certos princípios, apesar de
que se preocupavam mais com os senhores que com os escravos, e pretendiam conciliar a
salvação de suas almas com a manutenção de um comércio que tantos benefícios trazia ao Reino
e a Deus.
235
Para esses autores
236
a escravidão devia seguir certas regras: enquanto os cativos
estiverem no poder de seus possuidores, a estes e a eles correm também as mútuas e recíprocas
obrigações. Assim, o cativo devia obedecer e trabalhar para seu senhor, e este devia dar-lhe o
sustento, vestuário, cuidado nas enfermidades, além de instruí-los na doutrina divina e moldá-
los
nos bons hábitos e costumes cristãos.
237
Estas regras dependiam principalmente do poder dos
senhores, os quais preferiram não alterar a situação. Porém quando a quantidade de n
egros
começou a aumentar no país e o pensamento abolicionista começou a ganhar espaço entre a elite
brasileira, as leis passaram a ser elaboradas e ter maior validade.
Essa questão foi reforçada pela pressão exercida pela Inglaterra, que durante as quatro
décadas do início do século XIX se atribuiu o direito de combater a escravidão onde quer que ela
233
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: A Criminalidade em São Paulo (1880-
1924)
. Ed. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2001. p. 30.
234
THOMPSON. E. P.
Senhores e caçadores. A origem da lei negra
. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
235
LARA, Op. Cit. p. 29.
236
Ver mais sobre esses autores em: VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão. Os letrados e a sociedade
escravista no Brasil Colonial
. Rio de Janeiro: Petrópolis, Vozes, 1986.
237
Ver por exemplo: BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijallo,
1977.
86
existisse, em especial no Brasil, onde ela era mais intensa. Acordos já haviam sido assinados com
D. João VI visando à transição para o trabalho livre, facultando inclusive à Marinha inglesa
apreender navios em portos brasileiros, mas essas medidas costumavam ter efeito
contraproducente.
238
Desde 1830 foram elaboradas pelo governo diversas tentativas de conter o tráfico ilegal de
africanos para o Brasil. A Lei de 7 de novembro de 1831, que proibiu o tráfico atlântico, foi
amplamente burlada pelos traficantes e proprietários de escravos nas décadas de 1830 e 1840.
Nos anos conturbados da consolidação do Estado Imperial, o governo brasileiro deixou para os
britân
icos a função de repressão ao tráfico de escravos e abriu mão de aplicá-la, facilitando o
crescimento vertiginoso do contrabando. A repressão efetiva só foi retomada em 1850 apoiada na
Lei Eusébio de Queirós.
239
De acordo com esta lei, a importação de escravos foi considerada ato
de pirataria e como tal deveria ser punida. As embarcações envolvidas no comércio ilícito seriam
vendidas com toda carga encontrada a bordo. Os escravos seriam reexportados por conta do
governo para os portos de origem ou qualquer outro porto fora do Império. Enquanto isso não
fosse feito, eles deveriam ser empregados em trabalhos públicos ficando sob a tutela do governo.
240
A conjugação de fatores como a ameaça inglesa, a disponibilidade interna de mão-
de
-
obra escrava e a percepção da ameaça que uma população escrava, em sua maior parte africana,
representava para ordem estabelecida, explicam porque a partir de 1850 a disposição das
autoridades imperiais em reprimir o tráfico internacional mostrou-se efetiva. Desembarques
clandestino
s ainda ocorreram por alguns anos, mas o lucrativo comércio estava definitivamente
encerrado.
241
Neste momento, para suprir as necessidades da região Sudeste, as províncias do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina tornam
-
se fornecedoras de mão de obra escrava
através do tráfico
interprovincial. As vendas foram fortalecidas também com a entrada de imigrantes, pois estes
eram proibidos de possuir cativos:
238
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira. 1975. p. 32
-
34.
239
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. O Direito de ser africano livre. Os escravos e as interpretações da lei de
1831
. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli M. Nunes. Di
reitos e Justiças no Brasil: ensaios de História
Social.
São Paulo: Campinas. Ed. Unicamp, 2006. p. 131.
240
COSTA, Emília Viotti da.
A abolição
. São Paulo: Global Ed. 1982. p. 29.
241
SALLES, Ricardo. & SOARES, Mariza de Carvalho. Episódios de história afro-
brasileira
. Rio de Janeiro:
DP&A/Fase, 2005. p. 94.
87
Lei nº 183, de 18 de outubro de 1850.
Art. - É proibida a introdução de escravos no território marcado para as colônias
existentes e para as que para o futuro se formarem na Província.
(.
..
)
Art 4º - Os escravos que forem introduzidos nas colônias, em contravenção a esta Lei,
serão expelidos por ordem das autoridades, pagas as despesas pelos donos dos mesm
os
escravos.
242
As províncias da região Sul juntamente com algumas do Nordeste foram as maiores
exportadoras de escravos para os municípios cafeeiros do Sudeste durante as três décadas de
vigência do tráfico interno dos anos de 1850 até 1880. A partir dessa época as províncias
cafeeiras implantaram taxas proibitivas de importação de novos escravos temendo que o
desequilíbrio regional pudesse conduzir as províncias exportadoras a apoiar a abolição.
243
A partir da década de 1860 os escravos passam a obter várias conquistas. O intercâmbio
entre escravos e livres aumentou, fazendo com que se ampliassem as redes de relações sociais.
Com o fim do tráfico também podemos falar em uma certa estabilidade da família escrava. A
partir dessa época sucessivas legislações vinham sendo discutidas. Os maiores problemas
estavam na formalização das locações, pois além dos libertos, muitos escravos alugavam seus
serviços, vivendo independentes de seus senhores, o que dificultava fazer a diferenciação entre
cativos e libertos.
O
impacto do recrutamento de cativos e libertos na Guerra do Paraguai (1864-
1870)
sobre uma opinião pública cada vez menos ligada aos interesses escravistas contribuiu para que o
governo decidisse empreender reformas que acelerassem o fim da escravidão.
244
Em
1871 foi apresentado o chamado Projeto Rio Branco, do qual resultou a lei conhecida
como Lei do Ventre Livre. Apresentado em 12 de maio o projeto converteu-se em lei em 28 de
setembro. De acordo com Ademir Gebara esta lei tinha a seguinte estrutura:
242
Transcrição da Lei nº 183 de 18 de outubro de 1850. In: BARBOSA, Eni. O processo Legislativo e a
Escravidão negra na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Assembléia Legislativa
Es
tadual do Rio Grande do Sul. CORAG. 1987. p. 54.
243
PENA, Eduardo Spiller. Burlas à lei e revolta escrava no tráfico interno do Brasil Meridional, século XIX
.
In: LARA & MENDONÇA. Op. Cit. p. 164.
244
MATTOS. Hebe Maria. A Face Negra da Abolição. Revista Nossa História, Rio de Janeiro, ano. 2. n. 19. p.16-
20, 2005. p. 19.
88
Pri
meiramente foi decretado que os filhos de escravos nascidos após 28 de setembro de
1871 seriam livres. Estas crianças permaneceriam sob os cuidados de seus senhores, que
por sua vez, seriam obrigados a cuidar delas e educá-las até seu oitavo ano de vida.
Depois o proprietário poderia opcionalmente, ou receber uma indenização pela criança,
ou utilizar seus serviços até que este completasse 21 anos. Em segundo lugar, esta lei
criou um Fundo de Emancipação para libertar tantos escravos quantos a renda anual
di
sponível no Fundo permitisse. Esse Fundo de Emancipação seria financiado por um
imposto sobre escravos, um tributo sobre propriedade na transferência de escravos de um
dono para outro e por seis loterias anuais, mais um décimo do rendimento das outras
lote
rias existentes no Império. Além disso, permitia-se aos escravos possuir dinheiro
ganho sob forma de heranças, presentes ou legados, assim como economias pessoais
juntadas com o consentimento de seu dono, provenientes ou não de seu trabalho ou de
economias
. Em terceiro lugar esta lei criou sociedades emancipadoras e libertou os
escravos pertencentes ao Estado, bem como aqueles que haviam sido abandonados por
seus proprietários ou aqueles que fossem parte de heranças não
-
reclamadas.
245
A passagem dessa Lei pelo Parlamento foi marcada por intensos debates e forte oposição,
tanto de conservadores como de liberais, tanto de ferrenhos escravagistas como de deputados que
a consideravam insuficiente para promover as reformas que almejavam. O principal ponto de
oposição ao projeto no Parlamento girava em torno da liberdade concedida às crianças nascidas
de mães escravas. O argumento central era que tal medida desrespeitava o “direito de
propriedade” dos senhores; postos diante da proposta de libertar o ventre das escravas muitos
parlamentares defenderam a necessidade de que o Estado indenizasse os proprietários, privados
de sua propriedade pela anulação do princípio que definia a condição escrava para crianças
nascidas de mães escravas.
246
A formação do pecúlio também gerou muita polêmica. Esse recurso poderia ser utilizado
pelos escravos para comprar de seus senhores a alforria ou, nos termos preferidos pelos
legisladores, para “indenizar” os senhores pela liberdade. O escravo que escolhesse utilizar dessa
forma as suas economias teria a proteção da lei, que obrigava os senhores a alforriar os que lhes
apresentassem a quantia correspondente ao seu valor. O artigo do parágrafo da lei de 1871
dizia que o “escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para indenização de seu valor,
tem direito à alforria”. Os senhores, em contrapartida, eram compelidos a alforriar os escravos
245
GEBARA, Ademir. Evolução da Legislação Civil e o problema da indenização. In: SZMRECSANYI, Tamas;
LAPA, José Roberto do Amaral. (Orgs). História Econômica da Independência ao Império. 2 ed. Revista.
EDUSP, 2002. p. 77-97. ( Coletânea de textos apresentados no I Congresso Brasileiro de História Econômica - USP,
setembro de 1993).
246
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição: Escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. Ed.
Fundação Perseu Abramo, 2001.p. 24.
89
que lhes “indenizassem” pela liberdade. Essa forma de outorga da liberdade foi logo apelidada,
pela obrigatoriedade que impunha aos senho
res, de “alforrias forçadas”.
247
O Fundo de emancipação tornou-se uma alternativa comum e legal para os cativos para a
compra da liberdade a alforria para si ou para algum parente. Geralmente esta compra se
inseria numa estratégia de grupo que visava garantir a liberdade dos descendentes, tornando
livres principalmente as mulheres para que concebessem filhos livres. O recurso para essa alforria
era obtido com a formação de um pecúlio, eventualmente combinado a empréstimos conseguidos
junto a irmandades ou organizações civis. Escravos mais raramente podiam ser libertados por
iniciativa de seus senhores. Isto podia ocorrer por diversas razões, algumas vezes sem qualquer
negociação, outras mediante pagamentos em parcelas ou em trabalho. Era comum o senhor
con
ceder a liberdade em testamento para ser cumprido por seus herdeiros após sua morte, porém
esse desejo nem sempre era respeitado.
248
Estudando o Fundo de Emancipação em Lages nessa época, o historiador Álvaro Gomes
descreve que ao Fundo de cada município caberia certa quantia em dinheiro (cota), que estaria
disponibilizada para a compra pelo Estado de um determinado número de escravos relacionados
na lista de matrícula existente em cada município. Esta lista deveria conter, obrigatoriamente, o
registro de todos os escravos do respectivo município, sendo obrigatório, aos senhores,
matricularem todos os seus cativos, sob pena de sofrerem sanções em forma de multas em
dinheiro.
249
Nas negociações de alforria, quando os senhores mostravam-se renitentes ou queriam
estabelecer um alto preço, os escravos apelavam através de procuradores para as autoridades,
para que estas interferissem em seu favor. Ainda que sem suporte legal, freqüentemente as
autoridades pressionavam os senhores a conceder a alforria. Quando o que estava em discussão
era o preço da alforria indicavam um árbitro para examinar a questão.
250
De acordo com Lenine
Nequete, nesta espécie de ação é quase imprescindível a nomeação de um curador que alegue os
247
Idem, p. 55.
248
SALLES, & SOARES, Op. Cit. p. 52.
249
NETO, Álvaro de Souza Gomes. O Fundo de Emancipação de Escravos: uma reflexão sobre o
funcionamento e resultados no Termo de Lages, Santa Catarina. Caderno de Resumos: II Encontro
“Escravidão
e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre, 2005. p
250
Idem, p. 54.
90
direitos do escravo, o qual não pode se fazer representar por procurador ou advogado, por
depender, ainda, de reconhecimento da sua capacidade jurídica.
251
Pela primeira vez na história do Império o escravo teve concedido o direito legal de
guardar as economias (pecúlio) que tivesse reunido do produto de seu trabalho ou doações e com
o consentimento de seu dono. Assim, de certa forma estava “assegurado” o privilégio de comprar
sua própria liberdade quando tivesse uma quantia em dinheiro igual ao seu “valor”.
252
Quando a
quantia oferecida pelo escravo não era aceita pelo senhor a lei definia que se instaurasse um
processo de arbitramento, os seja, uma ação judicial para acordar essa definição.
253
Durante todo
o andamento do processo o escravo deveria ser retirado da companhia do senhor e colocado em
depósito. Esse depósito geralmente era realizado pela entrega do escravo à responsabilidade de
uma pessoa livre e de idoneidade reconhecida pelo juiz. Algumas vezes o curador indicava um
depositário, outras vezes este seria nomeado pelo juiz.
254
Possivelmente, mais importante que os sucessos ou fracassos que os escravos possam ter
tido ao acionar elementos tais como a Justiça na avaliação que definiria o preço a ser pago pela
alforria, era o fato de que essas eram possibilidades que começaram a se abrir aos escravos que
bu
scavam sua liberdade enfrentando seus senhores.
Para João José Reis a lei de 1871 se tratava do primeiro instrumento legal que estabelecia
abertamente certos direitos dos escravos diante dos senhores. Pela primeira vez o Estado se
intrometia em profundidade nas relações escravistas, e os escravos souberam aproveitar a nova
situação acionando-o com bastante freqüência em seu favor. Embora a resistência legal dos
escravos tivesse o teor de batalhas individuais, esse fenômeno não teria se generalizado sem
algu
ma elaboração coletiva, através de canais informais, da circulação de boca em boca, de
informações sobre novas possibilidades de ruptura com o domínio senhorial.
255
Assim, ainda que
251
NEQUETE, Lenine. O escravo na Jurisprudência Brasileira: Magistratura e ideologia no Segundo Reinado
.
Porto Alegre, 1988. p. 294.
252
CONRAD, Op. Cit. p. 113.
253
Autores que discutem a questão de processos de alforria sendo questionados na Justiça: CASTRO, Hebe Maria
Mattos de. Das cores do silencio: os significados da liberdade no sudeste escravista Brasil século XIX. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. CHALOUB, Sidney. Visões de Liberdade: Uma História das últimas décadas
da Escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Faces da
liberdade, Máscaras do Cativeiro: experiências de liberdade e escravidão, percebidas através das Cartas de
Alforria
Porto Alegre (1858/1888).
Porto Alegre: Arquivo Público do Estado: EDIPUCRS, 1996.
254
MENDONÇA, Op. Cit. p. 61.
255
REIS, João José. “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”: a resistência negra no Brasil oitocentista.
In: MOTA, Carlos Guilherme. (Org). Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000) Formação:
Histórias
. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. p. 256.
91
o empenho dos senhores nesses processos estivesse voltado para preservar o domínio sobre seus
escravos, o que se colocava em questão com ações de liberdade pululando nos tribunais de
Justiça era a própria manutenção da escravidão de forma geral. A lei de 1871, ao introduzir no
campo legal a possibilidade da “alforria forçada”, provocara transformações importantes nas
relações entre senhores e escravos. Ela não só proporcionou aos cativos condições mais propícias
de consecução da liberdade, como possibilitou que os Tribunais de Justiça se tornassem lugares
privilegiados para a ação
de advogados e mesmo magistrados abolicionistas.
256
Keila Grinberg, em seu estudo comparativo sobre alforria, direito e direitos no Brasil e
Estados Unidos, ressalta que as semelhanças entre a ocorrência de ações de liberdade em países
como os Estados Unidos e o Brasil residem no fato de que, com poucas exceções, os conflitos
que acabaram nos tribunais dos dois países versavam sobre a propriedade dos cativos, e não sobre
a liberdade dos mesmos. Em termos jurídicos, quando se discutia o direito de um escravo
receber
a carta de alforria prometida ou dada por um senhor, estava-se discutindo o direito de doações.
Quando um escravo reivindicava a alforria com base na compra de sua liberdade, ele estava
procurando legitimar uma transação comercial mesmo que não estivesse escrita em lei.
257
A
autora também descreve que a ocorrência de ações de liberdade em fins do culo XVIII e boa
parte do século XIX demonstra que havia um espaço dentro do universo das leis e da
jurisprudência, mesmo partindo de tradições jurídicas distintas, para que se discutisse a questão
da mudança de condição de uma pessoa nas bases de um regime escravista, exatamente em um
momento em que a noção política de indivíduo começava a ganhar mais conteúdo e projeção.
258
A idéia que se pretende defender, portanto, é que justamente por conta das turbulências
sociais e políticas, e
não por coincidência
também pelas indefinições e aberturas no campo da
lei, muitos escravos urbanos perceberam que essa era a hora certa para reivindicar a liberdade.
Mas não era apenas isso. Ao usarem ações de liberdade para tentar mudar sua condição sócio-
jurídica, esses escravos estavam fazendo uso de um recurso antigo, mas atribuíram a ele um novo
significado. Até então as ações de liberdade podiam ser entendidas, genericamente, como uma
característica do antigo Regime, quando a autoridade era chamada a resolver conflitos nos quais
os reis apareciam como mediadores necessários e quase naturais. Apesar de que essa mudança
256
MENDONÇA, Op. Cit. p. 76.
257
GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Estudos
Históricos, nº 27, 2001. p. 74.
258
Idem, p. 75.
92
não tenha se dado de uma hora para outra - tratava-
se
de um processo que, pelo menos no Brasil,
mal havia começado -, as ações de liberdade começavam a ser dotadas de um novo significado
que exigia o reconhecimento de direitos a esses indivíduos. Por mais fortes que fossem seus
opositores, o movimento que unia os escravos e seus representantes continuava traçando
estratégias. Através da publicidade e da politização dos atos de curadores e advogados, que por
vezes deslegitimavam a escravidão, os cativos passam a contestar a legalidade de suas
condições.
259
Não menos conturbada foi a passagem da chamada Lei dos Sexagenários pelo
Parlamento. Nas críticas em relação à proposta de libertação dos sexagenários a defesa do direito
de propriedade foi a questão mais discutida no recinto parlamentar. Em 28 de setembro de 1885
foi sancionada a lei conhecida como Saraiva-Cotegipe, a lei que libertava os sexagenários. Esta
lei definia que “os escravos de sessenta anos serão obrigados, a título de indenização pela sua
alforria, a prestar serviços aos seus ex-senhores por espaço de três anos”. Fixada como forma de
indenização, a obrigação de prestação de serviços cessaria para os escravos que atingissem 65
anos, não importando se tivessem cumprido um tempo de serviço menor que os três anos.
De acordo com Mendonça, havia no texto da lei de Liberdade aos Sexagenários uma série
de medidas para preservar os laços entre libertos e seus ex-senhores. Um deles dizia respeito à
obrigatoriedade de o liberto fixar residência pelo tempo de cinco anos no município em que fora
alforriado. Aquele que se ausentasse de seu domicílio seria considerado vagabundo e apreendido
pela polícia para ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas. A permanência no
município em que fora alforriado combinava-se com a obrigatoriedade do trabalho. O liberto
encontrado sem ocupação seria obrigado a se empregar no prazo que lhe fosse determinado pelas
autoridades.
260
Sob a ótica de alguns estadistas as leis geravam significativos problemas. Por
exemplo, a libertação dos nascituros traria desentendimento e discórdia ao seio das famílias
escravas, inimizades entre pais e filhos, dificultando o sentimento de “família”.
261
E a liberdade
aos “velhos escravos” representaria uma situação de desproteção, de desamparo, e condenava-
os
à miséria absoluta e a morte.
262
259
Ibdem, p. 27.
260
MENDONÇA, Op. Cit. p. 46.
261
Idem, p. 29.
262
Ibdem, p. 31.
93
Idéias de “necessidade de proteção aos libertos” muitas vezes serviram de matriz
argumentativa para direcionar e buscar legitimar aspectos da legislação, que defendidas por
abolicionistas ou escravagistas, geraram muita discussão na Câmara e no Senado. Em todo o
processo de discussão e aprovação das leis emancipacionistas o anseio pela indenização foi
amplamente contemplado. Como vimos, as crianças nascidas livres deviam obrigação de
prestação de serviços e assim também os sexagenários. Muitas vezes eram os próprios escravos
que vinham “indenizando” seus senhores para se tornar livres. A legislação parece ter garantido
aos senhores, fosse por meio da indenização mediante serviços, fosse por pagamento da alforria,
que a liberdade de seus escravos lhe seria devidamente indenizada. Parece mesmo que os
senhores recebiam provas de que a manutenção de sua autoridade e de sua força moral vinha
sendo contemplada pela lei. Entretanto, ainda que objetivando negar somente sua própria
escravidão, os escravos ao manipularem a lei ao seu favor tornavam algumas estratégias de
liberdade concretas, o que estremecia a continuidade do poder senhorial.
Muitas vezes a liberdade era concedida ao cativo quando este não mais conseguia
trabalhar devido a doenças incuráveis e sem chances de recuperação; ou quando, por excesso de
trabalho ou outros problemas, ficava impossibilitado fisicamente de executar tarefas produtivas.
Nesses casos é possível que os cativos fossem libertados pelo seu senhor que, através dessa
medida, livrava-se de um indivíduo indesejado, isentando-se das despesas com alimentação,
médicos, remédios e funeral.
263
Neste sentido, Günter Weimer registra em seu trabalho que em
1859, na província do Rio Grande do Sul, havia uma alta taxa de masculinidade na população
liberta com mais de 65 anos de idade. Para o autor, essa grande quantidade “deve ter sido uma
forma muito hipócrita de se livrar da carga dos velhos escravos improdutivos”.
264
Jacob
Gorender também observou, em relação aos escravos mais velhos, que alguns
senhores resolviam
o problema da “improdutividade das suas peças” por um processo extremamente direto:
assassinavam os escravos inválidos.
265
Tanto neste aspecto quanto em toda a legislação referente à escravidão, para os senhores
era muito difícil aceitar a intervenção do Estado em suas relações com seus cativos,
principalmente no que dizia respeito a limites em relação aos castigos, um assunto normalmente
263
ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-
1860)
. Passo Fundo: UPF,
2002
. p. 62.
264
WEIMER, Günter.
O trabalho escravo no Rio Grande do Sul
. Porto Alegre, Sagra: Ufrgs, 1991. p. 24.
265
GORENDER, Jacob.
O escravismo colonial
. 5 ed. São Paulo: Ática, 1988. p. 190.
94
tratado como um direito privado. Os projetos apresentados no parlamento visando melhorar as
condições de vida dos escravos despertaram forte resistência. Porém, a imprensa preparava a
opinião pública para aceitar as idéias emancipadoras.
266
A mobilização a favor e em oposição ao projeto de abolição da escravatura foi grande não
no recinto parlamentar como em vários espaços da sociedade. Associações de proprietários
inundaram a Câmara com representações que a repeliam. Artigos favoráveis e contrários às
medidas propostas eram publicados na imprensa. A população parecia acompanhar os debates,
fosse nas galer
ias da Câmara, fosse pelas ruas ou fosse pelos jornais que os publicavam.
267
Conforme
José Murilo de Carvalho, o Império foi o período da história brasileira em que
a imprensa foi mais livre. Mas ela o constituía poder independente do governo e da
organi
zação partidária. Havia folhas independentes e os jornais radicais, mas eram poucos e com
raras exceções não duravam muito. A grande maioria era vinculada a partidos ou a políticos. O
governo tinha sempre seus jornais, o mesmo acontecendo com a oposição. Os jornalistas lutavam
na linha de frente das batalhas políticas e muitos deles eram também políticos. Muitos políticos
por seu lado, escreviam em jornais nos quais o anonimato lhes possibilitava dizer o que não
ousariam na tribuna da Câmara ou do Senado.
268
De acordo com Lília Schwarcz, o negro aparece em diferentes espaços dos jornais, e cada
uma dessas seções, por sua vez, parece oferecer como que pedaços de significação, que se
amoldam ou não uns aos outros, mas que de toda a forma montam um quebra cabeça
s que mostra
múltiplas imagens. A autora descreve, por exemplo, os negros nos editoriais, em seções criminais
e “
scientíficas
” da época. Eles estão presentes também em anúncios de venda, aluguel e de fugas.
A presença do negro retratado de diferentes maneiras era constante, ora aparecia como um
assassino frio e cínico, ora como humilde e serviçal.
269
Robert Conrad descreve que a maior parte da imprensa da época estava ligada direta ou
indiretamente aos interesses agrícolas e comerciais, e assim, de certa forma, os abolicionistas
receberam pouco apoio de jornais sólidos durante a primeira fase da luta. Na maioria das regiões
266
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos deci
sivos
. 7 ed. São Paulo: Fundação Editora
da Unesp, 1999. p. 333.
267
MENDONÇA, Op. Cit. p. 24.
268
CARVALHO, Op. Cit. p. 46.
269
SCHWARCZ, Lília Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX
. São Paulo: Comp
anhia das Letras, 1987. p. 100
-
119.
95
certos elementos da imprensa simpatizavam com o abolicionismo, mas de modo geral
permaneceram indiferentes, rejeitando a emancipação r
ápida por razões econômicas.
270
Um dos jornais mais importantes dessa época ligado a abolição foi O Abolicionista”,
fundado em 01 de novembro de 1880, visto como um “Orgão da Sociedade Brasileira Contra a
Escravidão”.
271
Impresso de novembro de 1880 à dezembro de 1881, mostrava em seus
noticiários os vários aspectos da luta contra a escravatura, como o já descrito em seu manifesto na
linha editorial do jornal:
A Nossa Missão
A apparição d’este jornal na imprensa brazileira significa o progresso que tem feito a
consciencia publica, relativamente á escravidão. Hoje ter escravos não é um título de
honra. A responsabilidade do domínio augmenta, e a sociedade começa a pedir contas
aquelles homens ou mulheres, que antes açoitavam e suppliciavam seus escravos no
meio da indiferença e até da cumplicidade dos estranhos. A escravidão também,
protegida pelo governo e coberta pela camara dos deputados com respeito filial, está
desmascarada publicamente como sendo a reducção de pessoas livres ao
captiveiro...Estud
ando
-se nossa producção, vê-se que o trabalho escravo é a causa unica
do atrazo industrial e econômico do paiz...Nas cidades somos um objecto de estudo para
os estrangeiros... É para luctar com a escravidão que este jornal apparece; é para
denunciar
-
lhes o
s abusos e os tristes episodios; é para formar o archivo historico, em que
no futuro as gerações, que nos sucederem, possam ver a degradação do nosso tempo, e
odiar para sempre o stigma impresso na fronte da nação Brazileira pelo trafico de
escravos que el
la tolera em pleno século XIX.
272
Um dos principais mentores e escritores deste jornal foi Joaquim Nabuco - Presidente da
Sociedade Contra a Escravidão - , que na mesma época foi deputado na Câmara Federal, onde
lutou pela causa abolicionista. Nabuco, quando de suas viagens pela Europa, de acordo com o
jornal, sempre foi bem recebido e suas idéias muito aplaudidas. Este jornal descrevia vários
discursos de Joaquim Nabuco da época no exterior, um deles:
270
CONRAD, Op. Cit. p. 180.
271
Essa sociedade foi fundada em 28/09/1880, na casa de Joaquim Nabuco, destinada a promover a propaganda
abolicionista e a agitação por todos os meios legais e pacíficos. Participam dela, dentre outros : Joaquim Nabuco,
Muniz Barreto, Saldanha Marinho, Visconde de Rio Branco, André Rebouças.
272
Jornal O Abolicionista. Manifesto Editorial de de novembro de 1880. Rio de Janeiro: n.1. p.02-08 , 1880, p.
01. In: SILVA. Leonardo Dantas.
O Abolicion
ista
. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988. p. 09.
96
A Sociedade Abolicionista Brasileira, como todas as sociedades abolicionistas, não se
limita a trabalhar pela liberdade dos escravos do paiz a que pertence: ella considera, a
escravidão como um espírito que renasce sempre, que affecta mil formas, e que nunca
será de todo extincto num ponto, se não for radicalmente extincto em todo o mundo
civilizado,...é por estar convencido de que estes são os vossos sentimentos, que vou
expor
-vos, do modo mais breve que me seja possível, o Estado da questão no Brazil,...É
pela generalidade do mal, que não pode existir n’um ponto do mundo civilisado sem o
contaminar todo, que se explica a universalidade do sentimento abolicionista de
sociedades como esta, cuja esphera abrange o mundo inteiro, a escravidão toda,...Nas
manifestações que acabais de fazer-me, nos aplausos com que tendes recebido minhas
palavras, vos me daes a prova de que a causa da emancipação não é de um povo só, mas
de todos os povos, e ainda mais de o sentimento liberal não se detem nas fronteiras do
paiz, mas associa-se a todas as luctas que travam pela liberdade humana, em qualquer
parte que seja do planeta.
273
Segundo Thomas Skidmore, Joaquim Nabuco foi um dos mais influentes teóricos do
abolicionismo. Nabuco defendia as idéias abolicionistas porque para ele “a escravatura fizera um
Brasil vergonhoso e anacrônico face ao mundo moderno, e fora de compasso com o ‘progresso
do século’”. Em seus discursos dizia que o Brasil nunca poderia progredir até que se obliterasse a
escravidão, pois “o que nós temos em vista, porém, não é só a libertação do escravo, é a
libertação do país; é a evolução do trabalho livre, que se de fazer sob responsabilidade da
geração atual”.
274
Segundo Nabuco a condenação moral da Europa e da América do Norte tinham
grande peso: “O Brasil não quer ser uma nação moralmente só; o leproso lançado fora do
acampamento do mundo. A estima e o respeito das nações estrangeiras são para nós tão
apreciáveis como para os outros povos”.
275
Este jornal durou pouco tempo, pois seu principal ideólogo Joaquim Nabuco, em 1881
quando perdeu a tribuna da mara, retirou-se para Londres e abandonou a redação. Naquela
época os discursos abolicionistas começam a ganhar mais força e surgiram várias sociedades
emancipadoras em várias províncias.
273
Jornal O Abolicionista. Discurso feito por Joaquim Nabuco em Madrid, para a Sociedade Abolicionista
Espanhola, e impresso na íntegra, em 01 de maio de 1881. Rio de Janeiro: n.7. p.02-08 , 1881, p. 01. In: SILVA.
Leonardo Dantas.
O Abolicionista
. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1988. p. 75.
274
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976. p. 34. Ver também: SILVEIRA, Helder Gordim da. Joaquim Nabuco e Oliveira Lima: faces de
um paradigma ideológico da americanização nas relações internacionais do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2003.
275
SKIDMORE, Op. Cit. p. 34.
97
Em Santa Catarina, em novembro de 1884, surge o primeiro número do jornal
Abolicionista, outro jornal de mesmo nome, criado pelo Clube Abolicionista de Desterro para
fins de divulgação da emancipação dos escravos.
276
Além de incentivar a emancipação, eram
divulgados nominalmente os senhores que fizessem a matrícula de seus escravos no Fundo de
emancipação ou os alforriasse:
277
Vinte e três cartas de liberdade foram distribuídas pelo Exm. Sr. Dr. Presidente da
Província na noite de 28 do passado, em sessão solene do “Club Abolicionista”!
Um hurrah ao ilustrado admini
strador.
População Escrava
Apontamento coligidos e publicados pelo Sr. Ramos Junior: Movimento da matrícula
geral dos escravos no município desta capital, até 31 de março do corrente ano.
Matriculados da Lei nº 2.040 de 28/09/1871 3.032
Av
erbados por entradas
525
Soma
3.557
Destes libertaram
-
se a diferentes títulos 32,02%
1.139
Saíram do município 22,09%
786
Falecerão
12,90% 459
278
Em janeiro de 1881 apareceu em Pelotas o primeiro jornal gaúcho que se propunha a
desenvolver uma campanha antiescravagista: “A Voz do Escravo”. Em seu primeiro número
estavam descritos os objetivos do jornal:
O Brasil goza de sua liberdade política, mais de meio século; porém essa liberdade
não tem fundamentos sólidos, por isso que repousa toda na influência do trabalho
escravo. Milhão e meio de nossos infelizes compatriotas arrastam os ferros da escravid
ão
! o sono não lhe é permitido; família eles não tem; filhos são tirados dos braços de suas
mães, que nenhum direito tem sobre eles... Nós escutamos essas vozes, e vamos
transmiti
-las ao povo brasileiro... Queremos ser o eco transmissor dos sentimentos
de
sses nossos irmãos, que em imundas senzalas esperam em vão por uma voz que os
console e lhes mitigue as dores com o bálsamo da esperança,...
279
276
CABRAL, Op. Cit. p. 188.
277
BPESC. Jornal
O Abolicionista
. Desterro: 05/10
/1884. n. 2 p. 2.
278
Idem, p. 2.
279
A Voz do Escravo, Pelotas, 16 janeiro de 1881. In: BERND. Zila.e BAKOS. Margareth M. O negro:
consciência e trabalho
. 2 ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998.p. 28.
98
A historiadora Margareth Bakos elaborou uma análise sobre a questão escravocrata na
imprensa gaúcha e revelou a intensa participação do jornalismo nas questões abolicionistas. A
autora cita inúmeros jornais editados na época em favor da abolição, e até mesmo outros jornais,
como os jornais tradicionais independentes ou ligados a partidos políticos que em determin
ado
momento passaram a discutir a abolição.
280
Preocupações ligadas à política nessa época diziam respeito também à ampliação do
número de livres e libertos, e à dificuldade de distinções entre eles. É possível que tenha se
tornado um problema o que fazer com o grande número de africanos e afrodescendentes que
passavam, em tese, a compor a sociedade da época como cidadãos. Alguns estadistas e cientistas
até pensaram em devolver à África os libertos, mas além da indecisão dos dirigentes havia a
impossibilid
ade prática disso ocorrer.
281
Além disso, mais ou menos nessa época a África estava
sendo partilhada entre as grandes nações européias.
282
Existia também o “medo” gerado na população, pois grande parte da concepção de que o
liberto não poderia gozar da liberd
ade “por inteiro” decorria do entendimento de que a escravidão
imprimira “deformações” nos indivíduos que a vivenciaram. Os ex-escravos estariam, então,
impedidos de experimentar a liberdade de forma “adequada”. Dos problemas associados à
conduta dos libertos, a recusa ao trabalho era dos mais temidos; porque fora escravo e como tal,
tivera suas “necessidades” mantidas em um nível extremamente baixo, faltaria ao liberto o
elemento fundamental de estímulo ao trabalho. Por ter um baixo nível de necessidade”, este
liberto trabalharia um mínimo que lhe pudesse assegurar a subsistência. Eles apresentariam
“defeitos” que os inabilitavam para a continuidade do trabalho, pois estariam “embrutecidos”,
“sem preparo”, “sem desenvolvimento moral”, seriam “ignorantes e
boçais”. Isso tudo se traduzia
em perigo quando se concluía que com essa gente “ávida de ociosidade não se poderia contar”.
283
Apesar dessas discussões, a partir de 1880 as idéias abolicionistas ganham maior ênfase.
Elas encontram maior adesão nos núcleos urbanos entre os grupos sociais menos vinculados à
escravidão. Nessa época organizavam-se centros abolicionistas com o objetivo de auxiliar a
emancipação dos escravos e esclarecer a opinião pública quanto à legislação abolicionista.
280
BAKOS, Margareth Marchiori.
RS: escravismo e
abolição
. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
281
RODRIGUES, Nina.
Os Africanos no Brasil
. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.
282
WESSELING, Henk L.
Dividir para Dominar
. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
283
MENDONÇA, Op.
Cit. p. 35.
99
No Rio Grande do Sul foi fundada no final da década de 1860, pela elite intelectual da
província, o Partenon Literário; um clube de jovens dispostos a discutir letras, artes, cultura e
sociedade brasileira, como é pico de uma intelectualidade jovem num país com necessidade d
e
mudanças estruturais como o Brasil daquela época. Esses homens letrados passaram a divulgar
idéias abolicionistas em suas revistas, organizaram festivais e peças de teatro, desenvolvendo um
amplo trabalho de opinião pública favorável ao abolicionismo. Mais do que isso, fundaram a
Sociedade Libertadora dos Escravos com o propósito de libertar crianças. Este clube da capital
serviu de exemplo para toda a província, de forma que, na maioria das cidades e vilas, se
reproduziram clubes semelhantes.
284
Também em Porto Alegre, na década de 1880, o Jornal O
Mercantil”,cria a “Caixa Libertadora Mercantil” contando com o “óbolo espontâneo” do
“generoso” povo da capital que contribuiria com as “dádivas” para as alforrias que deveriam ser
enviadas ao escritório do jorn
al.
285
Dentre as mais antigas associações particulares com a
finalidade de libertar escravos no Rio Grande do Sul encontra-se também a
Sociedade
Libertadora de Passo Fundo, criada em 1871; e em 1872 criada em São Gabriel, a
Sociedade
Aspirantes da Liberdade
.
286
De acordo com Walter Piazza, na Província de Santa Catarina foram criados três clubes
abolicionistas, dois em Desterro, capital da Província, e um na Freguesia de Tubarão.
287
Nessa época ocorriam no Parlamento grandes discussões sobre a abolição. O movim
ento
tomaria definitivo impulso nos centros urbanos e a agitação política dos clubes abolicionistas se
articularia com um grande aumento das fugas dos escravos. O quadro era de desordem
generalizada, por isso apenas alguns representantes das províncias do Rio de Janeiro e de Minas
Gerais votaram contra a Abolição, reivindicando indenização pela propriedade. Porém, a Lei
Áurea foi aprovada sem indenização aos senhores e sem medidas de reparação aos ex-
escravos.
288
A idéia de que a abolição se fez no Brasil de forma “pacífica” foi propagada por diversos
representantes abolicionistas na Câmara e nos jornais, que procuravam destacar a unanimidade da
nação em torno da abolição realizada no campo da legalidade, preservando-se a ordem, sem os
284
ZARTH, Op. Cit. p.137.
285
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Faces da Liberdade, Máscaras do Cativeiro: experiências de liberdade e
escravidão, percebidas através das Cartas de Alforria – Porto Alegre (1858/1888). Porto Alegre: Arquivo
Público do Estado: EDIPUCRS, 1996.p.39.
286
BAKOS, Op.
Cit.
p. 36.
287
PIAZZA, Op. Cit. 45. p.179.
288
MATTOS, Op. Cit. p.20.
100
conflitos que ocorreram
em outros lugares, como por exemplo nos Estados Unidos. Neste sentido
considerava
-se que a elite, ou pelo menos parte dela, foi protagonista nessa história, e que
atuaram orientadas por motivações “humanitárias”. Por obra e graça do abolicionismo do
govern
o imperial e da legislação emancipacionista, a nação mantivera-se coesa, sem “guerras”
que dividissem o país.
Vários estudos dialogam com essa interpretação que viu a abolição como resultado da
“benevolência” das elites brasileiras. Por outro lado, porém, podemos vislumbrar a abolição e
toda a legislação que ao contrário de uma ação humanitária em favor dos escravos, ocorreu em
razão de interesses específicos da própria elite.
Neste sentido, Joseli Mendonça assinala que se pensarmos que as relações de es
cravidão
se mantinham pelo exercício do domínio privado dos senhores sobre seus escravos poderemos
imaginar que a intervenção do poder público, por meio de uma legislação que definia direitos aos
escravos, tenha sido importante elemento perturbador do controle senhorial sobre os cativos e,
portanto, definidor dos rumos da abolição. Ainda mais em tempos em que pululavam pelas ruas
advogados abolicionistas, dispostos a encaminhar demandas de escravos nos tribunais de Justiça,
e quando, em alguns desses mesmos tribunais, o faltavam juízes dispostos a favorecer as
causas de liberdade.
289
A escravidão tornara-se alvo de ataques em seu valor simbólico: sua imoralidade de
acordo com os valores então predominantes no contexto do mundo ocidental aparecia como uma
mar
ca do atraso do país. O movimento abolicionista foi insuficiente porém, para agregar forças
que significassem uma verdadeira superação de todas as mazelas da escravidão. Os grandes
proprietários escravistas compreenderam em tempo a inevitabilidade da abolição e rapidamente
se recompuseram para garantir seu suprimento de mão-
de
-obra, através da imigração, e
aproveitaram o momento para se apoderarem do poder político.
290
Concepções e expectativas específicas sobre a forma como os libertos deveriam viver em
lib
erdade impuseram, no encaminhamento parlamentar da abolição, a necessidade de discutir
medidas de controle social a ser exercido sobre a população “egressa” da escravidão. Tal controle
na ótica de vários parlamentares se efetivaria por medidas de amparo, “proteção” e “instrução”
para que os libertos pudessem viver a liberdade de forma “adequada” e por ações disciplinares
289
MENDONÇA, Op. Cit. p.12.
290
SALLES, Op.Cit. p. 36.
101
que coibissem condutas “indesejáveis”. Um dos aspectos que se colocava de forma mais
premente nessas discussões estava relacionado ao âmbito em que se efetivaram tais ações. E o
que se evidenciava a muitos parlamentares era a absoluta incapacidade do Estado para viabilizar
qualquer medida voltada ao “preparo” e ao controle dos libertos.
291
A liberdade para os cativos não significava a ruptura completa com os elementos que
haviam permeado as relações entre senhores e escravos. Pautando-se na concepção de que os
libertos eram, ao mesmo tempo, indivíduos que necessitavam de proteção e contra os quais era
necessário se proteger, reconhecendo no poder público a incapacidade de prestar proteção ou
exercer o controle social necessário, os senhores eram designados como os melhores provedores
de proteção e os únicos capazes de conter a desordem que poderia decorrer de uma liberdade
desassistida.
292
Ne
ste sentido são criados os Códigos de Postura, legislações específicas normalmente
vinculadas e diferenciadas de acordo com cada província ou município. Regulamentavam por
exemplo, aspectos físicos, econômicos, sociais e culturais dos municípios. Utilizadas também na
época em que vigorava a escravidão, essas posturas municipais versavam sobre assuntos
pertinentes à administração da comunidade e tinham uma organização e redação comum, mas
encobriam algumas peculiaridades, mais precisamente quanto aos tópicos que tratavam dos
escravos e libertos.
Quanto ao Poder Provincial e Municipal, conforme Luis Felipe Alencastro, desde 1828 no
Primeiro Reinado começou a erodir um autonomismo municipal que passou a restringir a
competência das câmaras às matérias econômicas e locais. A regionalização instaurada pelo Ato
Adicional (1834) criou assembléias provinciais. Porém, o exercício do poder público por
autoridades designadas pelos presidentes de províncias, ou seja, pelo governo central em
detrimento das autoridades locais escolhidas pelos proprietários, afigurou-se em certa época
como uma ameaça à ordem privada, isto é, à ordem em geral.
293
De acordo com Emilia Viotti da Costa, a legislação posterior à Independência não chegou
nunca a conceder grande autonomia às cidades, mantendo-as na dependência do poder provincial
291
MENDONÇA, Op.Cit. p. 43.
292
Idem, p. 51.
293
ALENCASTRO, Op. Cit. p. 17.
102
e limitando seus recursos financeiros. Até mesmo a aprovação das posturas urbanas ficava
subordinada à Assembléia Provincial.
294
Preocupado com a vigilância de uma multidão de negros agora livres, o poder local adota
junto ao Governo Imperial o Código de Posturas Municipais, onde tudo que estava relacionado
aos escravos acabava incluído nas sessões policiais. Colocando-os em condição de “coisas”,
procuravam controlar ao máximo sua circulação e suas condutas no espaço urbano. Para a
aplicação dessas práticas as posturas municipais e a polícia atuavam como agentes de execução
desta política, aplicando multas e cadeia para a normatização das condutas e dos atos da
população, principalmente no controle de libertos e outros “desclassificados”. As posturas das
províncias do sul do Brasil não se diferenciavam muito das posturas nas demais regiões do país.
Algumas, além de punir os infratores, acabavam cobrando multas e o pagamento era direcionado
aos cofres público
s:
Registro do Ofício dirigido ao Ex.
mo
Presidente da Província :
Il
mo
e Ex.
mo
S
r
. A Câmara
Municipal desta cidade, de Nossa Senhora do Desterro,... lhe ordena remeta com
urgência para sevir a Assembléia Legislativa Provincial, uma Postura por esta Câma
ra
adotada depois do encerramento da seção Legislativa, sobre escravos que forem
encontrados depois do toque de recolher, exigindo igualmente a declaração das quantias
que tem entrado para os seus cofres provenientes das multas por infração da dita
Postura
...
295
O desenvolvimento desses mecanismos de controle visava principalmente manter
africanos e afrodescendentes nos limites da legalidade que a sociedade escravista impunha. Neste
sentido, Oswaldo Cabral descreve:
Escravo não poderia ser caixeiro de casa de negócio. Nem era permitido que se sentasse
às suas portas. Entrar, o tempo necessário para realizar as compras. Se fossem eles
pilhados a jogar pelas ruas e praças, eram multados em 400 réis e, se o dono e senhor
não quisesse pagar, iam em cana, recebendo 3 dias de cadeia, com a obrigação de
294
COSTA, Op. Cit. p. 249.
295
AHMF. Registro da Correspondência da Câmara Municipal de Nossa Senhora do Desterro, 1840/1843. N 85 143
B.C). (Ofício da Postura do Toque de recolher dos escravos) p. 05.
103
trabalhar nos serviços públicos, isto é, carregar lixo e fezes, tapar buracos nas ruas, e
outros do mesmo nível...Não poderiam cantar pelas ruas, principalmente de noite,...não
poderiam alugar casas, salvo com
autorização do seu senhor.
296
O espaço das ruas estabelecia o esteio dos relacionamentos sociais experimentados pelos
trabalhadores negros, constituindo a principal dimensão de sua interação com os demais grupos
da sociedade e com o poder político da cidade. Nesse cenário a visibilidade dos mesmos grupos
comprova o desfrutar da liberdade de ir e vir, e a existência de margens amplas de sociabilidade
delineiam também a série de contrapartidas à qual, nessas circunstâncias, estariam sujeitos.
297
As posturas da Vila de São João de Cachoeira, no Rio Grande do Sul, também proibiam o
escravo negro de sair após as nove horas da noite; poderia somente quando “tinha bilhete do
senhor, receita para o prático e lampião aceso”. Todos que fossem presos sem estas condições
permaneciam na cadeia até serem procurados por seus senhores.
298
O Código de Posturas da Câmara Municipal de Passo Fundo também tinha determinações
aos escravos:
Art. 22º - Ficam proibidos os batuques ou fandangos neste município que não forem
precedidos de licença da autoridade policial, sob pena de multa que será paga pelo dono
das casas em que se fizerem.
299
Esses batuques estavam normalmente ligados à religião, aos cultos africanos - tolerados
ou clandestinos -, realizados por irmandades e confrarias, constituídas sobre moldes católicos e
aproveitadas para revestir os agrupamentos de um certo reconhecimento social e jurídico.
300
296
CABRAL, Oswaldo Rodrigues.
Nossa Senhora do Desterro
.
Florianópolis: Lunardelli, 1979.p. 387.
297
WISSENBACH, Op.Cit. .pg. 18
7.
298
BAKOS, Margaret Marchiori. A Escravidão negra e os farroupilhas. In: FREITAS. Décio, et al. A Revolução
Farroupilha: História e Interpretação
. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.p.87. (Série Documenta 20).
299
Posturas da Câmara Municipal da Vila de Pas
so Fundo.
In: BARBOSA. Op. Cit. p.113.
300
MORTARI. Claúdia.Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário (1841-
1860).
2000. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de História, Pontifícia Universidade
Católica
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
104
Ainda no mesmo Código de Posturas Municipal de Passo Fundo existe um capítulo
relacionado quase que especificamente aos escr
avos:
Art. 139 Não é permitido ao senhor do escravo ou escrava consentir que este viva sobre
si dentro da cidade, e seus subúrbios, sem autorização da autoridade policial que
concederá quando tiver certeza, que o escravo ou escrava se emprega em trabalhos lícitos
para haver o jornal que paga ao senhor e sustentar
-
se...”
Art. 140º - Todo o escravo que for encontrado jogando cartas ou dados ou qualquer outro
jogo a dinheiro ou coisa que valha, em taberna, casa, ou
qualquer parte da povoação,
ou subú
rbios, será recolhido a cadeia como em flagrante e sofrerá oito dias de prisão.
Art 141º - O escravo que for encontrado armado com faca, punhal, adaga ou qualquer
outra arma cortante, ou perfurante, ou contundente, pistola ou arma de fogo, será preso em
flagrante e apreendida a arma, incorrendo além das mais penas na prisão por oito dias.
301
Nas duas províncias e nas diversas câmaras as posturas eram muito parecidas. Podemos
destacar nas duas províncias, por exemplo, que de acordo com as posturas vigentes eram
proibidos principalmente qualquer ajuntamento de escravos:
Registro de um ofício á Presidência. A Câmara Municipal desta cidade tem a honra de
dirigir á V.Ex.
a
para que se digne ordenar a colocação de uma patrulha ou sentinela no
largo da caixa de água da Carioca desde’ o anoitecer até ao toque de sino policial para
evitar os ajuntamentos , assoadas, e atos imorais de escravos que, aquela hora, ali se
reúnem todos as noites quando vão buscar água. Deus Guarde a V. Ex.
a
. Desterro 06 de
Setembro de 1843. = Ill
mo
e Ex.
mo
S
r
Marechal Antero José Ferreira de Brito, Presidente
da Província.
302
Com as fortes intenções de branqueamento da cidade que acompanhavam os intentos
modernizadores a clamar pelos trabalhadores imigrantes, um clima discriminatório e
discricionário se expandiu. Quando das tentativas de instituição dessa “sociedade civilizada”,
tanto as elites como o povo tinham na violência o principal meio de resolver os problemas
pessoais, principalmente aqueles voltados a moralidade e a honra. E
ssa questão enfatiza a falta de
uma Justiça imparcial que resolvesse essas pendências em grau satisfatório para ambas as classes.
301
Idem, p. 117.
302
AHMF - Registro de Correspondência. Livro de Ofícios da Câmara Municipal de Desterro. 1843-1845. n. 94. p.
20 v.
105
A manutenção da ordem e do controle social, aspectos centrais na viabilização das
formas de dominação, não se assentavam exclusivamente, nem poderiam, no recurso à violência
e às forças de repressão, até porque são temas constantes dos documentos da época
correspondências de juízes e magistrados, relatórios de ministros e presidentes de províncias
sobre a segurança pública as queixas sobre a ineficiência das forças de repressão e a
apresentação sistemática de um quadro nada promissor a respeito do aparelhamento das forças
públicas. Nesse campo o judiciário parece efetivamente ter se constituído um canal através do
qual o Estado não regulava a disputa e os conflitos entre os grupos sociais, como absorvia e
respondia às demandas daqueles grupos dominados que destituídos de recursos políticos
estratégicos para intervir no domínio estatal tinham a única face do poder público que lhes
seria acessível.
303
A tentativa de controlar os atos e comportamentos é indicativa dos receios das elites
brancas. Muitas vezes travestido de humanista, o sistema jurídico formado no Brasil sempre
procurou preservar os valores das classes dominantes, onde a legislação, bem como seus
articuladores, sempre tomaram atitudes de cunho nitidamente racista, quer enquanto ação, quer
enquanto omissão, dentro de suas funções na instituição estatal onde o papel coercitivo do direito
era exercido sobre a população miserável do Estado, sobre a qual atuava a polícia e a estrutura
judiciária penal para atender a um requisito do “bem comum” da sociedade: defender a
propriedade e evitar a violência.
303
VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça:
Minas Gerais
século 19
. EDUSC, 2004. p. 22.
106
CAPÍTULO 3 CRIMINALIDADE E COR NO TRIBUNAL DE APELAÇÃO DA
RELAÇÃO DE PORTO ALEGRE (1874
-
1889)
“Com efeito, um pouco de intimidade com os arquivos da escravidão
revela de chofre ao pesquisador que ele está lidando com uma realidade
social extremamente violenta: são encontros cotidianos com negros
espanc
ados e supliciados, com mães que tem seus filhos vendidos a outros
senhores, com cativos que são ludibriados em seus constantes esforços
para a obtenção da liberdade, com escravos que tentam a fuga na
esperança de conseguirem retornar à sua terra natal. As histórias são
muitas e seria preciso uma dose inacreditável de insensibilidade e
anestesia mental para não perceber muito sofrimento..
.”
304
Sidney
Chalhoub
Neste capítulo analisaremos as relações de africanos e afrodescendentes e a Justiça no Sul
do
Brasi
l
especificamente em processos criminais. De acordo com a pesquisa realizada por Elaine
Sodré
, foram encontrados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, no período de
1874 a 1889, um total de 1429 processos
judiciais
apelados ao Tribunal da Relação de Porto
Alegre
.
305
Em um segundo momento, pesquisando no Arquivo Público de Santa Catarina,
encontramos mais 255 processos
judiciais
apelados em segunda instância ao mesmo Tribunal, no
mesmo período.
306
De todos
os
processos
judiciais
das duas províncias
escolhemos
para o estudo
somente os processos criminais que envolvessem negros como réus ou vítimas, dos quais
encontramos
:
307
304
CHALHOUB, Sidney.
Visões de Liberdade: Uma História das últimas décadas da Escravidão na Corte
. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 35.
305
SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas.
“Mand
o vir (...) debaixo de vara, as testemunhas residentes nessa
comarca (...)”: História do Tribunal da Relação de Porto Alegre, 1874-1889. 2003. Dissertação (Mestrado em
História)
Faculdade de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
, Porto Alegre, 2003.
306
Como relatado no primeiro capítulo, os dois estados, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, foram jurisdicionados
em segunda instância pelo mesmo Tribunal, o Tribunal da Relação de Porto Alegre.
307
Foram encontrados 30 processos envolvendo negros como réus e vítimas. Ressaltamos que este número pode não
ser o exato, pois da quantidade geral de processos, alguns não foram encontrados e de outros encontrados apenas
partes. Para efeito de análise utilizaremos somente os processos encontrado
s em sua totalidade.
107
Tabela 3
Processos Criminais envolvendo negros
como
vítimas e/ou réus no
Tribunal da Relação de Porto Alegre (1874
-
1889)
Província
Total de
Processos
Processos envolvendo
negros como réus
Processos envolvendo
negros como vítimas
Rio Grande do Sul
1185
15
2
Santa Catarina
499
9 4
Fonte: A autora, 2006.
Não podemos deixar de descrever todo o caminho percorrido dentre folhas e folhas
amareladas, manuscritas com canetas tinteiro, envelhecidas e muito deterioradas pela falta de
cuidados que especificamente merecem fontes tão valiosas. No começo parece desesperador
encarar várias e várias páginas com uma escrita quase indecifrável, cheia de termos jurídicos e
uma detalhada burocracia, porém a leitura e os acontecimentos dos processos vão se tornando
cada vez mais interessantes e as curiosidades das informações que vão surgindo até aliviam o
trabalho cansativo da transcrição.
Para compreendermos o universo da criminalidade nos processos criminais, precisamos
diferenciar todas as partes que correspondem aos passos comuns de um processo criminal. No
processo
, após ser constatado o delito o réu é preso e são reunidas as partes do inquérito:
arrolamento de testemunhas, recolhimento de provas e o auto de corpo de delito. Descreve-se a
autuação e o autoamento com a formulação da queixa e identificação do delito, funções dos
Chefes de polícia, Delegados e Subdelegados.
As instituições policiais do Brasil tiveram sua origem com a vinda da Família Real e,
ainda em 1808, criou-se a Intendência Geral de Polícia que ficou responsável por um grande
número de tarefas da administração pública, além da segurança individual dos cidadãos. O
en
gajamento de policiais dev
er
ia, pela lei, ser realizado voluntariamente. No entanto era comum
a baixa procura por essa função, eram grandes as dificuldades em diversas províncias e, não raro,
as autoridades utilizavam o recrutamento forçado para completar seus quadros, embora negassem
o fato.
308
308
BRETAS, Marcos Luiz. A polícia carioca no Império. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 219-
234. 1998. p. 230.
108
José Murilo de Carvalho descreve que nas áreas rurais e urbanas havia o poder dos
comandantes da Guarda Nacional. Essa Guarda era uma organização militarizada que abrangia
toda a população adulta masculina. Seus oficiais eram indicados pelo governo central entre as
pessoas mais ricas dos municípios, sendo combinadas as influências do governo, dos grandes
proprietários e dos grandes comerciantes.
309
As elites locais fizeram uso de normatizações formais expressas em leis, regulamentos e
posturas, de pressão freqüente sobre as autoridades policiais e judiciais como forma de manter o
comportamento dos segmentos desfavorecidos. A ação de policiais estava voltada à supressão de
transgressões e, para tanto, as Posturas Munici
pais eram sobejamente utilizadas como legitimação
da ação repressora dos inspetores de quarteirão, dos subdelegados, dos delegados e
dos
chefes de
polícia.
310
A partir de 1841 a polícia passa a ser um órgão dirigido pelo chefe de polícia, escolhido
pelo presidente da província entre um dos juízes de Direito, permanecendo no cargo por dois
anos
e podendo ser substituído por um desembargador em caso de necessidade. O inspetor de
quarteirão era escolhido pelos subdelegados entre um dos moradores do quarteirão, que ficava
responsável pela vigilância informando qualquer irregularidade ao subdelegado de seu distrito,
podendo pedir auxílio de praças da polícia para efetuar prisões em flagrante.
311
Conforme Wilson Rodycz, a partir de 1871 ocorreram algumas mudanças nas atribuições
das autoridades policias. Nos crimes comuns a polícia elaborava um inquérito em que coligia as
provas e as enviava ao Juiz de Paz encarregado da formação de culpa; a sentença de pronúncia
também passa
va
para o juiz de direito. A legislação também declara
va
incompatível o cargo de
juiz municipal com os cargos policiais. Segundo o autor, a reforma separou a justiça da polícia
sem estabelecer controle efetivo de uma sobre a outra, resultando no afastamento do controle
judicial efetivo da legalida
de dos procedimentos policias.
312
O inquérito Policial que constava nos processos era realizado pela polícia,
que
ouv
ia
o
ofendido e o indiciado, efetua
va
as perícias, colh
ia
as provas, proced
ia
o recebimento e as
309
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 32.
310
CAMPOS, Op. Cit. p. 127.
311
MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-
1915
. Tese (Doutorado em História ).Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.p. 74
-
75.
312
RODYCZ, Wils
on Carlos.
O Juiz de Paz Imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil.
In: Justiça & História, Porto Alegre, v. 3, n. 5. Edição do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Departamento de Artes Gráficas, 2003. p. 70.
109
acareações, fornec
ia
uma “ficha” social e moral do indiciado e exped
ia
o auto de prisão.
313
O
objetivo maior do inquérito quando a intenção é acusatória consiste em extrair a confissão. Os
Chefes de Polícia, Delegados e Subdelegados, por ordem do Juiz Municipal, também realizavam
o interrogatório de
testemunhas e demais diligências do inquérito policial:
(...) O Major Affonso d’Albuquerque e Melo, Juiz Municipal desta cidade, (...) Mando a
qualquer official de Justiça a quem este r apresentado hindo por mim assignado, que
intime,
- (as testemunhas nominadas no processo) - as quais deverão comparecer no dia
15 do corrente pelas deis horas da manhã na sala das audiencias e ahi disporem sobre o
facto criminoso praticado pelo reo preso Alfredo Mauricio de Lacerda, sob pena se não
comparecer serem consideradas debaixo de vara, além das mais que incorrem, bem
como intime o reo para se ver processar, o que cumpra.
314
Em regra, o que se encontra materialmente na peça do processo em primeiro plano é a
apresentação
, caracterizada como processo crime ou sumário. Logo após, todos os dados
deveriam ser anexados e apresentados ao Promotor Público a fim de que fosse dado andamento
ao processo. O processo era iniciado judicialmente pela denúncia, um resumo minucioso do ato e
de suas circunstâncias. A denúncia ou queixa, de acordo com o Art. 41 do Código Processual
Penal, deve conter “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, o
qualificado do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do
crime e, quando n
ecessário o rol de testemunhas.”
315
Quando o delito requeria, eram solicitados pelo delegado ou subdelegado os autos de
busca e apreensão e de corpo de delito, bem como eram designados peritos e testemunhas para
procederem e acompanharem respectivamente este feito. O auto de busca e apreensão relatava os
dados de identificação do réu com informações mínimas e detalhadas descrevendo todo o
histórico: nome, idade, filiação, ocupação, moradia, traços característicos, traços de
personalidade, motivo da prisão, além de descrever com detalhes o crime, entre outros.
316
O
Exame de corpo de delito era geralmente realizado na presença de um juiz, de um cirurgião, do
313
APE
RS -
Publicação do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
Maria Degolada: mito ou realidade?
Porto Alegre: EST, 1994. p. 67.
314
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Desterro, maço 05, processo 67. fls. 17.
315
APERS
-
Arquivo Público do Es
tado do Rio Grande do Sul.
Maria Degolada: mito ou realidade ?
Porto Alegre:
EST, 1994.p. 68.
316
LIMA, Solimar Oliveira. Resistência e Punição de Escravos em Fontes Judiciais no Rio Grande do Sul:
1818-1833. 1994. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de História, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, 1994. p. 53.
110
escrivão e de duas testemunhas.
317
Nos delitos que deixavam vítimas fatais ou gravemente
feridas, o auto de corpo de delito, na maioria das vezes, procedia-se imediatamente ao
conhecimento do fato pela autoridade.
318
De acordo com a maioria dos processos nos quais foram realizados autos de corpo de
delito
,
as perguntas a serem respondidas pelos peritos eram a
s seguintes:
Se ferimento ou o ophensa physica; Se he mortal; Qual o instrumento que o
occasionou; Se houve ou resultou mutilação de algum membro ou órgão; Se pode
haver ou rezultar dessa mutilação ou destruição de membros; 6º Se pode haver ou
rezultar inhabilitação de membro ou órgão sem que fique elle destruído; Se pode
haver ou rezultar alguma diformidade e qual seja; Se o mal rezultante do ferimento
ou ophensa physica produz grave incommodo de saúde; Se inhabilita do serviço por
mais de trinta dias; 10º Qual o valor do danno cauzado.
319
Na continuidade do processo procedia-
se
a inquirição das testemunhas,
a
qualificação do
réu e interrogatório, e o encaminhamento ao Promotor. O Promotor fazia parte do Ministério
Públi
co junto aos Juizes de Direito de instância cível e criminal; era o representante da Justiça e
integrante do Tribunal do Júri em todos os julgamentos. Ele era o responsável pelo
encaminhamento do processo para a apreciação do Juiz, que revisa
ria
os dados e
tinha por função
pronunciar o réu ou revogar os despachos.
320
Quando o juiz recebe a denúncia, está iniciado o processo. O acusado torna-se réu e é
interrogado. Nos processos criminais
normalmente
a fala do acusado é limitada, ou mesmo
suprimida, pois u
m progressivo emudecimento se dá ao longo do processo, onde sua voz é menos
livre do que a das testemunhas. Em juízo o réu responde ao que lhe é perguntado e suas
respostas
, tendo influência ou não de seu
advogado
, deveriam ajustar-se não à sua verda
de,
mas
à
versão da defesa.
321
317
Idem p. 15.
318
PEREIRA, Lucia Regina Brito. Fábulas de Escravos e Libertos no Cenário da Justiça em Porto Alegre
1870-1888. 1994. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de História, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, 1994. p. 47.
319
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Desterro, maço 05, processo 67, fls 6v.
320
PEREIRA, Op. Cit. p. 38.
321
GAETA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. Os
Súditos
de Satã: Lembranças, representações e resistência de
prisioneiros
. São Paulo, Revista de História, v. 10, p. 1
-
15, 1991. p. 03.
111
De acordo com Boris Fausto
,
uma armadilha espreita a fala do acusado: em princípio tudo
o que disser a seu favor não constituirá prova em seu beneficio, mas o que disser em contrário
poderá levar a condenação ou ao agravamento da pena. Dessa regra não decorre, porém, a
conseqüência de que a melhor estratégia é calar-se. Pelo contrário, se o acusado não fala, o
silêncio, tanto quanto as declarações incriminatórias
,
pode reverter em seu desfavor.
322
Em sua defesa muitas vezes o réu apresentava seus antecedentes que formavam um
documento juntado, em regra, pelo defensor ou pelo réu, valendo-se de sua rede de relações
vizinhos, patrões, colegas, compatriotas, conterrâneos, fregueses. Este documento serve para
demonstrar a conformidade do acusado com o modelo sócio-familiar, sua origem respeitável,
etc.
323
O depoimento das testemunhas citadas nos antecedentes e das inqueridas para participar
do processo poderia ser muito relevante, uma vez que, mais do que as provas materiais, seus
depoimentos é que constituíam a matéria da acusação ou da defesa. De acordo com o Código do
Processo Criminal em seu Art. 134, bastavam para a formação do auto de corpo de delito, na
inexistência de “vestígios que podem ser ocularmente examinados (...) duas testemunhas, que
deponham da existência do fato e de suas circunstâncias”. Para proceder à formação de culpa era
suficiente que o juiz procedesse “a inquirição de duas até cinco testemunhas que tiveram notícia
da existência do delito e de quem seja o criminoso”. A lei da reforma de 1841 ampliaria esse
número nos casos de denúncia
de
“cinco até oito testemunhas”.
324
As testemunhas eram obrigadas a prestar depoimento, indicadas pelas partes, acusação e
defesa,
e
divididas em juradas e informantes. As primeiras prestavam juramento aos Santos
Evangelhos
e seu depoimento era considerado válido. Q
uanto
à
s
testemunhas
informantes,
se
dividiam entre os escravos ou parentes de uma das partes envolvidas.
325
Através das falas dessas testemunhas podemos descrever: a procedência, a profissão, o
sexo, a idade e
as
características físicas, tanto das mesmas quanto dos réus. Alguns desses dados
muitas vezes estão ausentes ou confusos. Muitos escravos, por exemplo, não sabiam o nome dos
pais,
sequer
o dia, mês e ano de nascime
nto. A idade
,
por exemplo, era geralmente calculada pelo
322
FAUSTO, Op. Cit. p. 35.
323
Idem, p. 31.
324
VELLASCO,
Op. Cit. p. 204.
325
PEREIRA, Op.Cit. p. 50.
112
escrivão
que,
diante das respostas dos réus, inferia termos ou expressões como
“ignorava”,
“tinham de idade aproximada”, “pouco mais ou menos teria” ou “parecia ter”.
As falas nesses depoimentos retratavam não o crime, bem como tenta
vam
reconstruir o
dia
-a-dia das relações conturbadas entre diversos segmentos sociais. Limitadas a um número de
trinta
testemunhas, o “destino” dos réus estava nas mãos dessas pessoas, que deveriam ser de
“boa fama”
e “que se presuma, dirão a verdade”.
326
Era comum que algumas das testemunhas presentes no rol dos processos não
comparec
essem
para depor. Para uma pessoa das classes populares,
sobretudo, o aparelho policial
e judiciário representa
va
uma perigosa máquina, movimentada segundo regras que lhe
eram
estranhas
, e era bastante inibidor falar diante dela. Com seus depoimentos normalmente
condicionados, em regra a testemunha discorre sobre aquilo que lhe é perguntado
. S
ua palavra
é cortada quando a narrativa, a critério das autoridades, não é pertinente para o esclarecimento
dos fatos.
327
A
ausência
das testemunhas
também pode nos oferecer importantes pistas a respeito
das relações que eram estabelecidas entre elas, as vítimas e os réus. Muitas vezes a distância p
ara
chegar ao local do depoimento também poderia atrapalhar, pois poderia ser complicado para as
testemunhas arcar com as despesas e vencer as agruras da viagem. Conforme um dos processos
podemos comprovar o fato, pois quando da primeira intimação das testemunhas nenhuma
delas
apareceu,
e
na segunda e terceira intimação somente parte delas, o juiz então expede mandado e
determina:
(...) que faça citar e vir debaixo de vara, as testemunhas residentes nessa comarca para
comparecerem na Sala das Conferências
deste Tribunal da Relação no dia 30 do corrente
mes de junho ao meio dia, a fim de deporem no processo (...).
328
Precisamos levar em conta também que nem sempre a fala dos réus e das testemunhas era
a total expressão do que pensavam, pois muitas vezes não sabiam ao certo o que
e
nem
como
dizer
. Suas falas poderiam também ser manipuladas, sem contar que seus depoimentos passavam
ainda pela leitura do curador, do juiz e do escrivão. Seguindo todos os procedimentos, a
326
LIMA, Op. Cit.. p. 178.
327
FAU
STO, Op. Cit. p. 35.
328
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Camaquã, maço 36, processo 783, fls. 43.
113
formalidade do discurso e a pontualidade de muitas perguntas faziam com que muitos
depoimentos perdessem a sua autenticidade, confundindo muitas vezes o fato, ou então fazendo
com que correspondesse aos padrões do sistema manipulador vigente.
Preparado o processo,
com
o nome do u colocado no rol dos culpados, e autorizada sua
seqüência pelo Juiz de Direito, abriam-se os preparativos para o julgamento: a promotoria
elaborava o
libelo
-
crime
acusatório formado pelos diversos quesitos que orientariam o
julgamento e as penas.
329
Inicia
vam
-se então as acusações e a defesa. Em nossa pesquisa, tanto os discursos de
acusação quanto de defesa representam uma fonte importante para a apreensão de valores e
representações sociais, permitindo localizar pontos sensíveis, capazes de determinar,
por
exemplo,
a
s opções do corpo de jurados.
O Advogado era o membro da jurisprudência, que aconselhava e auxiliava as partes
litigantes no processo. Algumas vezes a Justiça nomeava um advogado (público) para ser o
curador do réu, para a função de defensor nos casos em que o réu fosse menor, provasse ser de
condição miserável ou fosse escravo.
330
O Advogado e o Promotor busca
vam
uma versão
coerente, um conjunto de dados apresentados ao longo dos depoimentos e das demais diligências
realizadas, com a intenção de absolver ou condenar, respectivamente. Seguiam-se os autos de
acusação e as declarações da defesa que muitas vezes não constam nos registros analisados. Em
vários processos o advogado do u redige um termo de defesa e solicita
um
habeas corpus,
recurso embasado pela concepção liberal da defesa do indivíduo frente ao Estado, como uma
garantia pessoal contra o arbítrio injusto ou ainda injustificado. O escravo também tinha acesso a
esse direito que, de fato, se refere à proteção do indivíduo, porém, o pedido de ha
beas
corpus
para o escravo poderia ser feito somente por pessoa livre. Sendo assim, o beneficiário do direito é
o pedinte, e o escravo um subproduto desse direito, uma espécie de salvaguarda da propriedade
pelo cidadão adquirente.
331
329
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez
.
Sonhos Africanos,Vivências Ladinas: Escravos e forros em São Paulo
(1850
-
1880).
São Paulo: Editora HUCITEC,
1998. p. 41.
330
PEREIRA, Op. Cit. p. 38.
331
SILVA, Mozart Linhares da. O império dos bacharéis: o pensamento jurídico e a organização do Estado-
nação no Brasil
. Curitiba: Juruá, 2003. p. 260.
114
O
Libelo Crime Acusatório era a peça processual que antecedia a sessão do Tribunal do
Júri e era fundamental, pois tinha a finalidade de resumir e articular a acusação da denúncia,
descrevendo o fato criminoso, indicando o artigo correspondente e postulando a condenação.
332
O julgamento em si era cercado de formalismos: o porteiro do júri assinalava com sua
campainha a abertura das portas e o início das sessões; as partes envolvidas se dispunham na sala
do Tribunal, que era presidido pelo Juiz de Direito. Celeste Zenha aponta três tipos de
julgamentos, um primeiro efetuado pela autoridade policial, julgando ou não procedente o corpo
de delito, que também serve de base para a formação da culpa; um segundo onde o Juiz
Municipal pronuncia ou absolve o réu; e um terceiro no qual o réu é co
ndenado ou absolvido pelo
juiz, com base nas respostas dos jurados.
333
No Tribunal o Juiz dividia suas atribuições com os jurados: interrogava os réus e
apresentava os quesitos aos quais os jurados deveriam responder. Ouvidas as partes, os jurados se
retir
avam para reunião na sala secreta, de onde trariam, sem fundamentar, suas decisões a
respeito de cada um dos quesitos. Os oficiais de justiça eram os responsáveis por guardar a porta
da sala secreta
,
além de já terem sido enviados para efetuarem as prisões
, buscas ou intima
ções à
s
testemunhas.
334
Baseados em análises de uma relação de quesitos, os jurados condena
vam
ou absolv
iam
o
réu. O conjunto de jurados integra
va
um outro grupo de indivíduos, normalmente sem vinculação
com o judiciário, que são convidados a participar na confecção de um processo penal.
335
Para ser
jurado era necessário ser cidadão ativo, isto é, ser eleitor e de reconhecido bom senso, excetuados
os parlamentares, membros do clero, magistrados, etc. A reforma de 1841 criou restrições para
se
r jurado, incluindo o requisito da alfabetização e estabelecendo diferenças na renda mínima
para a qualificação de acordo com a atividade econômica. As listas dos elegíveis para o cargo de
jurado eram preparadas por uma junta presidida pelo Juiz de Paz, completada pelo pároco e por
um representante do Conselho Municipal.
336
Esses “homens bons julgam determinados
332
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São Paulo na
segunda metade do século XIX
. 2003. Tese (Doutorado em História) Unicamp, Campinas, 2003. p. 66.
333
ZENHA, Celeste. As Práticas da Justiça no cotidiano da pobreza. São Paulo: Revista Brasileira de História v.
05, n.
10, p.123
-
146, 1985. p. 127.
334
Idem, p.130.
335
Ibdem, p. 129.
336
RODYCZ, Op.
Cit. p
.58
.
115
comportamentos tendo em vista as normas escritas do Código Penal e as normas mais amplas que
se corporificam em identidades sociais.
337
Esta instituição foi o princípio da participação popular na magistratura. De acordo com o
Código
Penal, o procedimento criminal poderia ser ordinário ou sumário. O sumário era de
competência do Juiz de Paz. O ordinário era de competência do Conselho de Jurados sob a
presidência do Juiz de Direito.
338
O processo ordinário se iniciava pela denúncia do promotor, ou
por queixa da vítima perante o Juiz de Paz, que procedia à “formação da culpa” e, após, remetia
os autos ao juiz de direito, que submetia o caso aos dois conselhos: o da acusação ou de
pronúncia, composto por 23 jurados, com a atribuição de aceitar ou não a queixa; e o da sentença,
composto por 12 jurados, com competência para decidir pela procedência ou improcedência da
acusação.
339
O Juiz era quem emitia a sentença final, às vezes em conformidade com a sentença dos
jurados, outras em oposição a eles. Ao Juiz de Direito cabia o julgamento das ações cíveis em
primeira instância, a decisão dos agravos interpostos pelos Juízes Inferiores e a pronúncia ou não
dos acusados. Ele era o responsável pela jurisdição criminal nos distritos especiais. O Juiz de
Direito era designado
na Corte
pelo Governo Imperial e nas Províncias pelos Presidentes.
Ao Juiz
cabia o julgamento dos termos de bem viver e segurança: o processo e julgamento das causas
cíveis, com apelações e execuções. Ele tinha ainda a autoridade para ordenar prisões e proceder
aos atos de formação de culpa nos distritos especiais. Estava ainda sob sua competência, além da
formação de culpa do acusado, observar o artigo em que estaria inserido o delito, bem como o
grau da pena.
340
A sentença final de um julgamento poderia tomar dois rumos: absolvição ou condenação.
A partir da decisão ocorriam as apelações. Segundo Elaine Sodré, as decisões que foram tomadas
pel
o Tribunal da Relação de Porto Alegre entre 1874 e 1889 foram: procedente, improcedente,
novo julgamento, não tomaram conhecimento ou anularam a apelação. O requisito para a Relação
tomar a decisão de negar provimento à apelação, confirmando a sentença proferida na comarca,
na maioria das vezes, era a regularidade em todo o processo. O cumprimento da lei em todas as
etapas dos autos era a condição necessária para esse tipo de decisão. Isso significa que o tipo de
337
FAUSTO, Op. Cit. p. 249.
338
RODYCZ, Op. Cit. p. 57.
339
Idem, p. 58.
340
SILVA, Op.
Cit. p. 260.
116
pena proferido na comarca, nesses casos, não influenciava nas decisões da Relação em confirmar
a sentença.
341
A decisão de apelação improcedente poderia ser de anulação,
indicando
algum tipo
de erro nos autos e proferindo suas decisões no sentido de corrigir os enganos; ou de reforma de
sentença
, quando o juiz não concordava com a sentença julgada em primeira instância.
342
Quanto
a Relação “não tomar conhecimento da Apelação”, acontecia quando se evidenciava algum tipo
de irregularidade no processo como ilegitimidade
,
por exemplo.
343
Quanto às penas no pe
ríodo imperial brasileiro
,
estavam vigentes de acordo com o Código
Criminal de 1830 as penas de galés, prisão com trabalho, prisão simples, banimento, degredo,
desterro, multa, suspensão e perda de emprego, açoites e pena capital. No Código Criminal entre
os artigos 50 e 52 estavam as determinações sobre as penas de banimento, degredo e desterro. O
banimento
, além de proibir o u de habitar no território, retirava-lhe os direitos de cidadão
brasileiro. As penas de degredo e de desterro, de uma forma simplista, diferiam no seguinte: a
primeira determinava o lugar onde o réu deveria cumprir a sentença; na segunda o réu poderia
optar para onde iria desde que fora “dos termos dos lugares do delito, da sua principal residência,
e da principal residência do ofend
ido”.
344
A prisão simples estava anunciada no Art. 47 do Código Penal do Império e
disp
unha
que
esta obrigará os réus a estarem reclusos nas prisões públicas pelo tempo marcado nas
sentenças”. Atenta ainda para a questão do lugar onde deverá o réu cumprir sua pena: “na maior
proximidade que for possível dos logares dos delictos”.
345
A prisão com trabalho está disposta no Art. 46 do Código que
assim
normatiza
va
:
“obrigará os réus a occuparem-se diariamente no trabalho, que lhes for destinado dentro do
recint
o das prisões, na conformidade das Sentenças, e dos Regulamentos policiaes das mesmas
prisões”.
346
A pena de Galés ficou estabelecida no Art. 44 do Código Criminal do Império que assim
normatiza
va
: “sujeitará os us a andarem com calceta no pé, e corrente de ferro, juntos ou
separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da Província, onde tiver sido comettido o
delicto, á disposição do Governo”. De acordo com Elaine Sodré, os casos de homicídio que
341
SODRÉ, Op. Cit. p. 151.
342
Idem, p. 152.
343
Ibdem, p. 154.
344
SILVA, Op. Cit. p. 392.
345
Idem, p. 236.
346
Ibdem, p. 252.
117
chegaram para serem julgados na Relação de Porto Alegre, na sua maioria, receberam como
sentença na primeira instância pena de galés perpétuas, e ressalta que dentre esses casos podemos
observar que tanto livres quanto escravos foram condenados a essa pena.
347
O termo “Galés”
inicialmente
passou a designar os sentenciados ao serviço de remar as
embarcações
. Com o gradual desaparecimento dos barcos galés, a pena foi sendo comutada para
trabalhos públicos; geralmente calçando e limpando ruas, em construções de diques ou estradas.
Muitos senhores e autoridades policiais e governamentais discordavam da pena de galés, pois
achavam uma ineficiente punição, tendo em vista que as condições de trabalho eram geralmente
melhores do que seu antigo cativeiro privado
;
achavam,
portanto, que essa pena não atuava como
exemp
lo de intimidação, mas sim como atrativo e esperança.
348
De acordo com Algranti, a idéia de utilizar prisioneiros para tais serviços ligava-
se
obviamente a uma questão econômica, pois era uma forma de se aproveitar um grande número de
pessoas que necessitavam ser alimentadas e mantidas às custas do Estado; e por outro lado,
poupavam
-se também despesas de contratação de trabalhadores para estes serviços públicos.
349
Encontramos essa pena nos julgamentos de primeira e segunda instância, e por ela os presos
serv
iam as cidades e a Província. Em Desterro, em certa época, o cumprimento das prisões de
galés poderia estar comprometido pela falta de guarnição dos presos:
Officio ao Presidente da Província
Ilmo. Exmo. Sr. Tendo esta Camara Municipal precisão de
empregar na limpeza
publica, os presos sentenciados à pena de galé, visto a falta de numerario em seus cofres
para de prompto attender a tão urgente necessidade publica; roga à Ilmo. Exmo. Se digne
expedir as necessarias ordens para que diariamente se apresentem ao Fiscal da Camara
dose praças do Corpo de policia ou de qualquer dos Corpos de 1.ª linha existentes nesta
Capital, afim de escoltarem a dose galés, que são indispensáveis para o mesmo
serviço.Registro dos titulos de liberdade que abaixo se declarão. D. A Campos .Desterro
vinte e um d’Agosto de 1884.
350
347
SODRÉ, Op. Cit. p. 162.
348
LIMA, Op. Cit. p. 153.
349
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro.
Petrópolis: Vozes, 1988. p. 80.
350
AHMF
-
Paço da Camara Municipal d
a Cidade do Desterro, 16 de janeiro de 1877. Livro de n. 206, de registro da
correspondência da Câmara Municipal com o Governo da Província
1872 à 1886.
118
O governo da Província do Rio Grande do Sul também utilizou os prisioneiros
sentenciados a pena de galés, que
normalmente
eram enviados para labutar na abertura de
estradas, nas ruas e nas restaur
ações de edifícios públicos.
351
Figura 13
-
Negros trabalhando no calçamento de ruas.
Litografia de Jean Baptiste
D
ebret.
Fonte: DEBRET,1989.
352
A pena de morte de acordo com o Código Penal de 1830, era descrita para os crimes de
homicídio com agravantes, para os roubos seguidos de morte, para os cabeças de movimentos de
insurreição de escravos, ou crimes contra a segurança interna do Império.
353
Esta pena descreve:
Art. 39 (...) depois que se tiver tornado irrevogável a sentença, será executada no dia
seguinte ao da intimação, a qual nunca se fará na véspera de domingo, dia santo ou de
festa nacional.
Art. 40 - O réo com seu vestido ordinário, e preso, será conduzido pelas ruas mais
públicas até a forca, acompanhado do Juiz Criminal do logar aonde estiver, com seu
Escrivão, e da Força Militar, que se requisitar. Ao acompanhamento precederá o
Porteiro, lendo em voz alta a Sentença, que se for executar.
351
ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-
1860)
. Passo Fundo: Ed.
UPF, 2002. p. 97.
352
DEBRET.
Viagem pitoresca e histórica ao Brasil
. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1989. (Coleção
Reconquista do Brasil. 3 série. v.7) p. 37.
353
SILVA, Op. Cit. p. 243.
119
Art. 42 - Os corpos dos enforcados serão entregues a seus parentes, ou amigos, se os
pedirem aos Juizes que presidirem a execução; mas não poderão enterral-os com pompa,
sob pena de prisão por hum mez a hum anno.
354
Do montante de processos julgados no Tribunal de Relação de Porto Alegre (1874-
1889),
essa
pena foi sentença de 11 deles. Desses processos, dois réus condenados à pena capital eram
negros.
355
Um deles da cidade de Cruz Alta
na província do Rio Grande do Sul, no ano de 1881:
(...) De conformidade com as decisões do Jury, julgando o réo Feliciano incurso no grao
maximo do artigo 193 do Código Criminal pelo assassinato perpetrado na pessoa do
pardinho Adão, de propriedade de Manoel Bento de Almeida, no grao maximo do art
192 do mesmo Código Criminal pelo assassinato praticado contra José Antonio Ferreira,
no grao máximo do citado artigo 192 do mencionado Código Criminal pelo assassinato
comettido contra a pessoa de Maria Ignacia Guandej, no grao maximo do mesmo art
192, combinado com o artigo 34 do dito Código Criminal pela tentativa de morte contra
Eliza, mulher de José Antonio Ferreira, e, finalmente no grao maximo do referido artigo
192, combinado com o art 34 do citado Código Criminal pela tentativa de morte contra o
menor Manoel, cunhado de José Antonio Ferreira, o condenno a pena de morte, que será
dada na forca. Para tal fim, depois de decidido os recursos legaes, e passada esta
sentença em julgamento, se levantará o patíbulo nos subúrbios dessa cidade, na estrada
que segue desta mesma cidade para a Villa de São Martinho, duas horas antes da
execução do reo (...)
356
Outro process
o no qual a sentença final foi
a pena de morte foi o da acusada Lucinda que:
(...) por unanimidade reconheceu o juri que a ministrara o veneno na xícara de sua
senhora; que o veneno causara grave incomodo de saúde ; (...) o juri entendeu ter a
pra
ticado o crime casualmente e no exercicio da pratica de um ato lícito feito com tenção
ordinária.
357
Em sua defesa a ré alega:
354
Idem, p. 245.
355
SODRÉ, Op. Cit. p.162.
356
APERS
Cartório Cível, Cruz Alta, maço 255, processo 552, fl 171 e 171v.
357
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre, maço 254
-
B, processo 756, fls 42.
120
(...) que como dentro do armário em que se guardão as chicaras andassem muitas
formigas, ela agarrou, como uma pitada, o verde pariz
358
que existia na calçada (...) e
botando dentro de uma chicara com um pouco de agua, guardou esta no armário
referido, e ahi, todas as vezes eu mexia com um paninho, bezuntava com o verde pariz,
todas as frestas do armário (...) ate que estas desaparecerão; que com o desaparecimento
das formigas não mecheo mais na chicara, ate que esqueceo-se dela (...) que no domingo
a noite (...) domingo este em que sua senhora a tinha castigado com varadas de
marmeleiro (...) indo tirar as chicaras não lembrou-
se
da que estava com o verde pariz, e
teve a desgraça de trazer esta com as outras (...) servindo as pessoas da caza, cabendo a
sua senhora a tal chicara (...)que não fez isto de propozito, que foi unicamente
esquecimento(...)
359
O que teria acontecido realmente não podemos saber, pois até mesmo os jurados tiveram
dúvidas em relação a condenação ou absolvição da ré, que acabou enfrentando três julgamentos.
A senhora da nada de grave sofreu, mas para muitos jurados o ato da acusada foi proposital e
não um simples acidente.
360
O juiz, em julgamento de primeira instância, concordou com os
jurados decidindo pela absolvição da ré, mas apelou para segunda instância do Tribunal da
Relação de Porto Alegre. O desembargador que recebeu o processo anulou o pedido de
apelação
por ser a sentença final a absolvição. Porém ocorreu um segundo julgamento onde a acabou
sendo condenada à pena capital, conforme relatório final do juiz:
(...) Dos doze jurados onze entenderam não ter a praticado o crime casualmente no
ex
ercício da pratica de ato lícito feito com attençao ordinária. Em conformidade com a
decisao do juri, o juiz de Direito interino, condenou a Lucinda escrava de Heliodoro
de Azevedo e Souza a pena de morte, como incursa no art.1 da Lei de 10 de junho de
1835 n 4, e nas custas na forma da lei, a seo senhor.
361
De acordo com o Decreto de 14 de outubro de 1854, era facultado a todos os réus que
incorressem na pena capital o direito de impetrar recurso de graça ao Poder Moderador, pedindo
sua comutação para a pena de Galés perpétuas. Cabia ao juiz de direito da comarca apresentar a
petição de graça do réu, enviando juntamente um relatório do processo criminal e da reunião do
358
Conforme Paulo Moreira, o Verde Paris é um corante de uso domestico que tinha em sua fórmula o arsênico,
muito utilizado pelos escravos para cometer suicídios. MOREIRA. Op. Cit. p. 88.
359
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre, m
aço 254
-
B, processo 756, fls 39.
360
De acordo com Nikelen Witter chás e práticas de cura de escravos eram muito comuns no século XIX e muitas
vezes eram encarados como feitiços. WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no sul
do Brasil (1845 a 1880).
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
361
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiç
a, Porto Alegre, maço 254
-
B, processo 756, fls 73.
121
“Tribunal do Jury”.
362
A possibilidade de comutação da pena era muito solicitada nos tr
ibunais.
De acordo com Silvia Lara, a importância das comutações e, sobretudo, o “caráter massivo do
perdão na prática penal da monarquia corporativa” significava que, do ponto de vista doutrinal e
das práticas jurídicas, a clemência real era tão important
e quanto o rigor das punições.
363
De todas as penas normatizadas pelo Código, a única que se refere exclusivamente ao
escravo é a de açoite, com agravantes de humilhação e extensão punitiva através do “ferro”. Em
seu Art. 60 o Código dispõe:
Se o réo for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital, ou de galés, será
condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se
obrigará a trazel-os com um ferro, pelo tempo e maneira que o juiz designar. O numero
de açoutes ser
á affixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de 50.
364
Conforme George Andrews, quando a Constituição condenou os açoitamentos, a tortura e
a marcação a fogo, e “todas as outras punições cruéis” e sua declaração de liberdade e iguald
ade
como “direitos alienáveis dos homens”, isso foi simplesmente compreendido como não se
aplicando aos escravos.
365
Em termos legais os escravos e por vezes os libertos eram vistos e tratados como seres
judicialmente incapazes. A Justiça Criminal foi obrigada a conferir relativa personalidade e plena
responsabilidade a esses réus escravos.
366
Nesse contexto Claude Meillassoux descreve que,
embora o Direito juntamente com a Etimologia tenham contribuído para se perceber o fenômeno
da
escravidão buscando compre
endê
-lo baseado no Direito Romano, e apesar de os senhores
tentarem
representar os cativos como coisas, era a condição de pessoas, Homo sapiens, que os
senhores invocavam.
367
Os cativos africanos, principalmente, recebiam tratamento diferenciado: quando r
éus
deveriam fazer-se acompanhados desde os primeiros interrogatórios de curadores juramentados
362
AZEVEDO, Op. Cit. p. 43.
363
LARA, Silvia Hunold. Senhores da Régia Jurisdição. O particular e o público na vila de São Salvador dos
Campos dos Goitacases na segunda metade do século XVIII. In: LARA, Silvia H. e. MENDONÇA, Joseli M.
Nunes.
Direitos e Justiça no Brasil: ensaios de História Social
. São Paulo: Ed. Unicamp, 2006. p. 85.
364
SILVA, Op. Cit. p. 250.
365
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-
1988)
. Tradução Magda Lopes. São Paulo:
ED
USC, 1998. p.57.
366
WISSENBACH, Op. Cit. p. 38.
367
MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1995.
122
que os assistiriam ao longo do processo. Quando testemunhas
eram
arrolad
os entre os
informantes e suas declarações teoricamente avaliadas como tais. Aos escravos era interditado o
juramento costumeiro, porém a Justiça teve de reconhecer a capacidade de ação deles, colher seus
depoimentos, julgá
-
los e pun
i-
los por seus atos e iniciativas criminosas.
368
Valeria Zanetti descreve em sua obra vários delitos e infraçõe
s
às posturas encontrados
nos livros de Rol de Culpados do Cartório Júri de Porto Alegre que, por serem considerados
secundários, não determinaram a instauração de processos judiciários. Depois de autuado, o
cativo infrator, para ser solto, deveria cumprir a pena de prisão ou açoites, ou então pagar, ele ou
seu senhor, a multa correspondente à infração.
369
A partir do relato da autora, e levando em
consideração a quantidade de processos encontrados, podemos inferir que muitos senhores
deveriam preferir resolver suas contendas com seus escravos no ambiente particular para evitar
mais custos e perdas.
3.1 O
cotidiano das relações sociais nos processos criminais: negros e brancos na justiça do sul
do Brasil
Sem dúvida, na historiografia brasileira o exame da resistência e o estudo dos crimes
praticados pelos africanos e afrodescendentes escravizados
se
manteve
, por muito tempo,
circunscrito a série de comportamentos violentos que exprimiam o inconformismo dos cativos
com as regras, as fórmulas e as circunstâncias do domínio a que estavam sujeitos. Tratava-se de
uma posição coerente de um discurso historiográfico onde os cativos foram pensados como
“coisas”, sem direito a palavra ou qualquer tipo de manifestação. Nesse discurso formara-se uma
sociedade escravista baseada no paternalismo, constituída pela violência como força central de
manutenção da ordem e do controle social, onde a realidade de africanos e afrodescendentes e
ra
descrita como dura, muitas vezes bárbara e cruel. Pautada contrariamente ao que se diz sobre o
caráter pacífico e cordial da escravidão brasileira, a utilização da violência como forma de
controle e de adestramento do negro justificava-se com o fato de o escravo ser considerado
368
WISSENBACH, Op. Cit. p. 39.
369
ZANETTI, Op. Cit. p. 202.
123
animal que
precisava ser domado.
Por isso os castigos eram co
muns e se mostravam na utilização
de instrumentos que deixavam marcas profundas no corpo que, mutilado pelo ferro em brasa ou
pelo chicote, funcionava como uma advertência aos transgressores.
370
Conforme José Alípio Goulart, ao longo do período escravista brasileiro a intolerância do
negro não foi só uma realidade presente como a de ação permanente. Ora barulhenta, ora
silenciosamente, ele a punha em prática sem esmorecimento, fosse individual ou coletivamente:
fugindo, amotinando-se, assassinando, roubando e até suicidando-se, quando imprimia à auto-
eliminação a marca inconfundível de sua rebeldia. Jamais o negro foi conformado. Antes, um
subjugado; e se como subjugado obedecia, como inconformado reagia. Suas manifestações de
intolerância tanto mais são dignas de admiração, quando se consideram os terríveis obstáculos
enfrentados para concretizá-las. Revelavam então, coragem, fortaleza de ânimo, inabalável
decisão, indomável espírito de luta, férrea e retilínea vontade, desmoralizando o falso conceito de
raç
a inferior, desprezível, de povo dócil, resignado. A tudo e a todos o negro enfrentou e
afrontou. Nada o detinha quando se dispunha a rebelar
-
se, posto que mínimas, senão inexistentes,
fossem as possibilidades de êxito.
371
De acordo com Foucault
,
onde há po
der há resistência; não existe propriamente o lugar da
resistência, mas pontos móveis e transitórios. Portanto, o poder é luta, afrontamento, relação de
força
; não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa; onde
se ganha ou se perde.
372
Nesse contexto podemos dizer que em crimes cometidos encontrados
por exemplo nos processos estudados, os cativos buscavam “seu próprio poder”, muitas vezes
inconscientemente, com a resistência ao enfrentar de diversas formas o poder senhorial vigente
no sistema escravista.
Para analisarmos os crimes que envolveram negros nos processos selecionados,
utilizaremos como referência o sentido descrito por Boris Fausto
:
As duas expressões tem sentido específico: “criminalidade” se refere ao
fenômeno social
na sua dimensão mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrões através da
constatação de regularidades e cortes. “Crime” diz respeito ao fenômeno na sua
370
FONSECA, Maria Nazareth Soare
s.
Visibilidade e ocultação da diferença: Imagens de negro na Cultura
Brasileira
. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares. (Org) Brasil Afro-
Brasileiro
. Belo Horizonte: Ed. Autêntica,
2000. p. 97.
371
GOULART, José Alipio. Da fuga ao suicídio: aspectos da rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro:
Conquista, INL, 1972. p. 21.
372
FOUCAULT, Michel.
Microfisica do poder.
15º Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2000. p.14.
124
singularidade, cuja riqueza em certos casos não se encerra em si mesma, como caso
individual, mas abre caminho para muitas percepções.
373
Maria Helena Machado e muitos dos historiadores sociais das décadas de 1980 e 1990 não
negam o conteúdo violento das relações sociais da sociedade escravista. Para a autora, no Brasil
do século XIX se constituíra uma sociedade desigual na qual uma camada detinha o poder de
expropriar não os frutos do trabalho, mas, também, a pessoa do próprio produtor.
374
Neste
contexto
,
para Silvia Lara:
Naquela sociedade os senhores buscavam assegurar a estabilidade do sistema e a
manutenção da mão-
de
-obra forjando mecanismos, os quais os cativos respondiam com
manifestações de resistência, como acomodação, rebeldia e crime. Senhores e escravos
constituíam categorias efetivamente separadas, onde as diferenças raciais obstavam
quaisquer possibilidades de mobilidade social. Para esses senhores a experiência do trato
com os escravos impunha a necessidade de violência: ela os conservava obedientes,
obrigava
-os ao trabalho, mantinha-os submissos com castigos e dominação. a
violência do escravo contra a ordem, era vista como transgressão, violação do domínio
senhorial, rebeldia.
375
Devemos ressaltar também que se o podemos negar a presença de uma pedagogia da
violência nessas relações entre senhores e cativo
s,
e
igualmente não podem ser subestimados os
laços que davam coesão aos membros daquela “comunidade”. Assim, a expectativa de liberdade
e, portanto, de mobilidade, deveria, para funcionar, ser muito mais que mera ilusão.
Muitos cativos buscavam “seus direitos” nas autoridades públicas, fossem impulsionados
pela idéia de que as cadeias e a pena de galés eram mais convenientes que a escravidão, ou por
terem na justiça a esperança de uma interferência efetiva nas relações com seus senhores, sendo
capaz de produzir mudanças significativas em suas condições de vida. Essas atitudes escravas
geravam o desespero de cidadãos que esperavam do poder judiciário e da polícia o anteparo para
manter a ordem e o controle das relações escravistas.
376
373
FAUSTO, Op. Cit. p. 19.
374
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: Trabal
ho,
luta e resistência nas lavouras
paulistas (1830-
1888)
. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.p. 17. Vale lembrar que como descreve Lilia Schwarcz
em
O espetáculo das raças (1993), a racialização das relações escravistas ocorreu ao final do século XIX, no
bojo das lutas contra a escravidão e como forma de atualização das hierarquias sociais.
375
LARA, Op.Cit. p. 37.
376
AZEVEDO, Op.
Cit. p. 56.
125
Ivan Andrade Vellasco descreve que a violência no século XIX era parte constitutiva e
indissociável da forma como o mundo era percebido e aceito como tal. As próprias condições de
dominação justificavam-se largamente, em função da legitimidade da violência como forma
necessária
e naturalizada das interações sociais, que definiam as situações de poder e de
submissão, o que garantia, afinal, uma estreita correspondência entre as disposições mentais e a
estrutura social. Para o autor, entender a violência antes de tudo como um fenômeno cultural,
permite contornar as dificuldades postas pelas concepções de anomia, como recurso explicativo
das condutas que aparentemente indicariam uma incapacidade de apreensão de regras e normas
desejáveis; e pela idéia de irracionalidade da violência, uma vez que, aos olhos do observador,
haveria uma desproporção entre seu uso e as finalidades pretendidas.
377
No período estudado das últimas décadas do século XIX, como foi descrito, vigorava o
Código Criminal do Império. Neste código os crimes eram classificados como públicos,
particulares e policiais. Os crimes públicos abrangiam os delitos cometidos contra a existência
política do Império, contra o livre exercício dos Poderes Políticos, contra o livre gozo e exercício
político dos cidadãos, contra a segurança interna do Império e a tranqüilidade pública, contra a
boa ordem e administração pública e, por fim, contra o Tesouro e a propriedade pública. Os
crimes particulares eram os atentados contra liberdade individual, contra a propriedade e contra a
pessoa e propriedade. Os crimes policiais eram as ofensas à religião, à moral e aos bons
costumes, as sociedades secretas, os ajuntamentos ilícitos, a vadiagem e a mendicância, a
utilização de armas de defesa, o fabrico e o emprego de instrumentos para roubar, a apresentação
sob nome suposto e títulos indevidos, bem como o exercício ilegal da imprensa.
378
Os processos que encontramos e que foram analisados, envolvendo negros cativos ou
libertos, como réus ou vitimas, que foram apelados em Segunda Instânc
ia ao Tribunal da Relação
de Porto Alegre foram os seguintes:
377
VELLASCO, Op. Cit. p. 248.
378
CAMPOS, Op. Cit. p. 128.
126
Tabela 4
-
Tipologia dos crimes cometidos e/ou sofridos por negros em processos apelados ao Tribunal
de
Relação
de Porto Alegre (1874
-
1889)
Tipo de Crime
Negros como vítimas
Negros como
réus
Negros como réus
E vítimas
Contra Pessoa
Homicídio
3 6 5
Ferimentos
1 1 4
Tentativa
de homicídio
1 3
Contra a Propriedade
Arrombamento
e Furto
1
Furto
2
Incêndio
1
Contra a Ordem Pública
Destruição
de Patrimônio
1
Resistênc
ia e fuga 1
127
3.1.1 Quanto aos processos apelados em Primeira Instância
De acordo com o segundo parágrafo do Art. 10º do decreto nº 5618, o Tribunal de
segunda instância deve: “Proceder na forma do Art. 157 do Código de Processo Criminal,
quando
em autos e papéis, de que tiver de conhecer, descobrir crime de responsabilidade, ou crime
comum em que tenha lugar à ação oficial”. A especificidade do julgamento em Primeira Instância
numa Corte de Segunda ocorria quando o suspeito do delito era membro da “ação oficial” e t
inha
foro especial.
379
Os mais freqüentes
foram
os crimes de responsabilidade contra juízes de direito
e municipais,
relacionados
aos processos que estavam em seu poder, quanto aos procedimentos
tomados
em relação a estes
e
ao tempo em que ficavam retidos. Nesses processos a sentença
normalmente foi
a
absolvição.
380
Encontramos apenas um processo criminal onde a vítima era de cor e réu um juiz.
Processo este
,
da Vila de São João Batista de Camaquã, que descreve a morte da parda Ger
trudes,
escrava de serviços domésticos da família Vasconcellos, residente naquela localidade alguns
anos. Seu senhor era Ignácio Accioli de Vasconcellos, ilustre magistrado de carreira, desde 1882,
designado para a comarca de São João Batista de Camaquã na função de Juiz de Direito, natural
da província do Pará, casado, pai de família.
381
No atestado de enterramento constava que a dita parda fora vítima de uma congestão
cerebral. Imediatamente após o sepultamento começaram a circular na vila boatos de qu
e
Gertrudes havia falecido em conseqüência de graves ferimentos feitos por seu senhor. Devido a
esses boatos o delegado da cidade providenciou a abertura do inquérito policial para investigar se
havia fundamento no que descreveram os populares. O cadáver da parda foi então exumado. Este
foi encontrado enterrado em um caixão de madeira forrado de chita preta, o corpo também estava
envolvido em chita, e quase nada se via. Foi necessário cortar a mortalha para que os peritos
pudessem examinar melhor o cadáver, que representava ser de uma mulher aparentando 25 anos
ou mais, com cabelos carapinhos, que estava com muitas marcas de violência, feitos
provavelmente por um instrumento contundente, e várias marcas de graves queimaduras, o que
379
SODRÉ, Op. Cit. p. 114.
380
Idem, p. 117.
381
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Camaquã, Maço 36, processo, 783.
128
apontavam um assassinato o
corrido
a poucos dias, e teria sido torturada e sofrido até a morte. De
acordo com o corpo de delito descrito com detalhes pelos peritos, os ferimentos indicavam
requintes de crueldade, pois o cadáver apresentava na cabeça dois grandes ferimentos, tendo ca
da
um duas polegadas de comprimento, uma de largura e meia de profundidade; na boca, um
ferimento no canto do lado direito; o lábio superior todo cortado e as gengivas machucadas. Na
testa outro ferimento que parecia feito por um instrumento contundente. No corpo as marcas da
violência não eram menores: no braço esquerdo onze ferimentos, dois grandes sobre os
cotovelos; no direito, seis contusões, sendo uma delas no pulso. As duas mãos provavelmente
tinham sido queimadas com água quente, pois a pele caía ao simples contato. Havia também
marcas de queimadura nas costas e na boca, ambas do lado direito. O ombro direito parecia
deslocado. Nas costas e no peito mais contusões. O cadáver estava perfeito e muito mole, e todas
essas evid
ên
cias apontavam no sentido de que o brutal assassinato havia ocorrido há poucos dias.
A intencionalidade em ocultar os vestígios também ficava evidente, pois os braços estavam
envolvidos em um pano de chita cor de rosa. Sobre os cotovelos havia grossas tiras de algodão
atadas. Na cabeça um lenço da mesma cor tapava cuidadosamente os ferimentos. O corpo estava
limpo, parecendo ter sido lavado ao ser amortalhado. A vítima estava vestida por uma camisa de
algodão branco e uma saia. Por último, chamou atenção dos peritos que o caixão est
ava
ensangüentado, e o sangue ainda fresco.
382
A partir destas evidências o Promotor Público da Comarca solicitou abertura de inquérito
e arrolamento de testemunhas. Diante de vários indícios é indicada a culpa ao Juiz Inácio Accioli
de Vasconcellos, senhor da vítima, que teria, devido a seu cargo, foro especial. O bacharel então
foi
indiciado no Tribunal da Relação de Porto Alegre a responder pelo homicídio praticado na
parda Gertrudes.
383
Este foi sujeito a prisão e livramento como incurso nas penas do Art. 193 do
Código Criminal, condenado a pena de Galés perp
étuas no grau máximo;
de prisão com trabalho
por 12 anos no médio; e seis no mínimo. Fazendo sua própria defesa o réu declara-
se
injustiçado.
384
Em sua defesa faz referências a falta de provas e pede que o processo seja
considerado improcedente. Poucas testemunhas apareceram, foram intimadas várias vezes, e o
apresentaram provas que atribuíssem ao Juiz Ignácio a culpabilidade do crime. O réu em sua
defesa descreve:
382
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Camaquã, Maço 36, processo, 783. fls. 10 a 15.
383
Idem, fls. 23.
384
Ibdem, fls. 31.
129
(...) a parda Gertrudes faleceu de morte natural congestão cerebral que o auto de
exumação não se pode concluir a existência de um assassinato, que a morte tivesse por
causa as lesões encontradas e que estas lesões fossem praticadas pelo réu, sendo inexatas
as circunstancias notadas no processo no intuito de provocar esse designo de sua parte,
que os peritos, não sendo profissionais, eram incapazes de verificar no caso e quando o
cadáver apresentava sinais adiantados de putrefação, se a morte fora resultado de um
crime, quando não eram ev
identes ou verificáveis por um superficial exame (...)
385
O juiz em sua sentença final absolve o réu considerando que:
(...) nada se encontra de certo sobre a autoria do crime, que se atribui ao reo,
(...)Considerando que não bastam suposições, suspeitas, boatos e presunções, por mais
veementes que sejam, para ter lugar a imposição de pena, como terminantemente dispõe
o art 36 do Código Criminal; (...) absolvem o réo da acusação, mandam que se lhe
baixa na culpa, seja seu nome eliminado no rol dos c
ulpados, e solto (...)
386
Podemos nos questionar até que ponto chegaria a influência de um Juiz em uma comarca
ou região, principalmente para encobrir um crime onde foi vítima a parda Gertrudes, escrava de
serviços domésticos, que pela lei não era considerada cidadã. Poderia ser também que a parda
tivesse realmente morrido de morte natural”, e que os peritos realmente estavam totalmente
errados, ou que eles, aliados a fofoca pública, estavam somente querendo incriminar um
magistrado de carreira.
3.1.2
Quanto aos processos apelados em Segunda Instância
O sentido principal da Corte de Segunda Instância é verificar a sentença julgada na
primeira, pois se uma das partes recorreu é porque se sentiu prejudicada. Segundo a legislação
imperial, o cumprimento da justiça na primeira instância era de responsabilidade do Tribunal do
Júri e do Juiz de Direito da Comarca, sendo que a sentença final era dada por ele. A mesma
385
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Cam
aquã, Maço 36, processo, 783. fls.116.
386
Idem, p.122.
130
legislação previa a possibilidade de recurso após proferida a sentença do Júri. A apelação
deveria
ser lavrada e era a última etapa do processo na primeira instância. Concluída essa fase, o escrivão
responsável remetia os autos para o Tribunal da Relação. A apelação era possível para as partes
envolvidas, que poderiam recorrer voluntariamente. Por outro lado havia os casos em que era
obrigatória
, chamada apelação
ex
-
officio
, na qual, mesmo que os envolvidos não a solicitassem, a
justiça deveria ocupar o lugar de apelante.
387
A maioria dos casos julgados na Relação de Porto Alegre estava incluí
da
nos dispositivos
do artigo 449 do Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842: “As apelações necessárias, ou
ex
-officio tem lugar, quer a parte também apele, quer não”, ou seja, em um certo sentido
encerravam um caráter de obrigatoriedade. Em seu parágrafo 1º: Quando o Juiz de Direito
entender que o Júri proferiu decisão sobre o ponto principal da causa contrária resultante dos
debates, depoimentos e provas perante ele apresentadas”. Mas noutro sentido, preservava os
direitos do condenado, em seu parágrafo 2º: Quando a pena aplicada em conseqüência da
decisão do Júri for de morte, ou galés perpétuas
”. O caráter que adquiria as apelações ex
-
officio,
se de obrigação, se de direito
,
dependia do julgamento de cada um dos juízes que apelavam. Cada
apelação é en
volta por especificidades, portanto, cada processo acaba apresentando uma apelação
singular.
388
As apelações voluntárias estavam descritas no regulamento 120, de 31 de janeiro de
1842 entre os artigos 450 e 453. Esse tipo de apelação poderia dar-se tanto para primeira, quanto
para a segunda instância. As sentenças proferidas pelos juízes municipais, delegados e
subdelegados eram passíveis de apelação, que seriam julgadas na primeira instância por ser
competência do juiz de direito. Já o recurso para segun
da instância dava
-se quando:
(...) Das decisões definitivas ou interlocutórias, com força de definitivas, proferidas
pelos Juízes de Direito, nos casos em que lhes compete haver por findo o processo.
Das sentenças dos Juízes de Direito, que absolverem, ou condenarem nos crimes de
responsabilidade.
4º Nos casos do art. 301 do Código do Processo Criminal.
Das sentenças dos Chefes de Policia, nos casos em que lhes compete o julgamento
final.
389
387
SODRÉ, Op. Cit. p. 129.
388
Idem, p. 131.
389
Ibdem,
p. 140.
131
De acordo com Elaine Sodré, dentre as apelações podemos encontrar o Juiz ou o
Promotor como apelante
;
podemos também encontrar nas apelações voluntárias, feitas pelas
partes sem a presença do juiz, as duas partes como apelante ou apelada, e também a alternância
dentre as partes e a justiça ora apelante, ora
apelada.
Após ser proferida a sentença, se uma das
partes decidisse apelar contra a outra, deveria seguir o disposto no art. 451:
As apelações que forem interpostas pelas partes, o serão dentro de oito dias (contados
daqueles em que forem notificadas as decisões, ou sentenças as mesmas partes, ou seus
Procuradores), em audiência, ou por meio de uma simples petição assinada pelo apelante
ou seu legítimo Procurador, dirigida ao Juiz que proferiu a decisão ou sentença de que se
apela, o qual mandará tomar as apelações por termo nos respectivos autos, sendo
interpostas em tempo.
390
Quanto às apelações ao Tribunal da Relação de Porto Alegre no período de 1874-
1889,
encontramos
391
:
390
Idem, p. 141.
391
Idem, p. 130.
Gráfico 2
Tipo
s
de Apelaç
ões
recorridas
ao Tribuna
l
l
da
Relação de Porto Alegre (1874
1889)
59%
39%
2%
ex
-
officio
voluntaria
ambas
132
Nessa época surgiam muitos conflitos judiciais envolvendo escravos, seus senhores,
libertos e homens livres pobres, sugerindo a existência de relações sociais intensas e complicadas
entre essas camadas. Boris Fausto afirma que vários comportamentos definidos como crime não
são
, muitas vezes, outra coisa senão a expressão de desejos ou de um potencial de agressividade
reprimidos que se explicitam.
392
É possível também que grande parte dos conflitos no interior da população acabava sendo
resolvido diretamente pelos envolvidos, no ambiente privado, não dando conhecimento deles a
autoridade pública, hipótese aventada pelos próprios governantes.
393
Em Santa Catarina, por
exemplo, ao comentar o estado da segurança pública na Província, no ano de 1882, Antonio
Gonçalves Chaves afirmou que:
(...) nem todos os factos criminosos chegam ao conhecimento da autoridade, e quando,
porém, omittidos em mero igual, o que não é presumível, ainda assim não era couza
de extranhar
-
se.
394
Dos crimes contra pessoa
Nos processos apelados na Segunda Instância ao Tribunal da Relação de Porto Alegre
encontramos alguns cativos que quando vítimas recorreram ao Tribunal:
Tabela 5
-
Tipologia dos delitos contra pessoa sofridos por cativos apelados
ao
Tribunal da Relação de Porto Alegre (1874
-
1889)
Tipo de Crime
Cometidos por escravos
Cometidos por senhores, livres e
libertos
Contra Pessoa
Homicídio
1 6
Ferimentos
3 1
Tentativa de homicídio
- 1
392
FAUSTO, Op. Cit. p. 27.
393
Idem, p. 27.
394
APESC
Relatório do Presidente da Província de Santa Catarina, Antonio Gonçalves Chaves. 1882, p. 21.
133
Precisamos levar em conta que dificilmente os escravos encontraram formas legais de
questionar seus direitos na Justiça. Para fazer alguma queixa eles necessitavam da intermediação
de seu senhor. E de acordo com o parágrafo do artigo 75 do Código do Processo Criminal, era
vedado ao escravo o direito de “dar denúncia contra o senhor”. Bem como figurar nas ações da
justiça como testemunha, somente como um mero informante, pois considerado um bem
semovente, um objeto de propriedade, era
-
lhe negado qualquer direito político ou civil.
395
Esse artigo foi relembrado em um processo julgado no Tribunal da Relação de Porto
Alegre, por João Cezar de Oliveira Branco, fazendeiro de Lages, o qual foi preso, acusado de
ferimentos graves em seu escravo Luis. Dizia João Cezar:
(...)vem na conformidade da lei pedir para si uma ordem de
hábeas
-
corpus,
e para que
sua petição seja devidamente attendida passa o paciente a expor as razões em que se
funda para mostrar a illegalidade ou improcedência de sua prizão (...) o escravo com
quanto se diga offendido por seu senhor, não pode por si comparecer em juízo e
mormente como denunciante contra seu senhor conforme art. 75 paragrafo 2º do
Cod.Proc.(...) portanto não legalidade no procedimento que tem tido a autoridade no
andamento desse feito e na prisão do paciente.
396
O réu em sua defesa ainda alegou
legítima defesa descrevendo que:
(...) no dia vinte e um do mês passado, seriao oito oras da noite pouco mais ou menos
estando elle respondente e sua família já recolhidos ouvio um barulho na cozinha,
provocado por seu escravo Luis, barulho este que teve lugar com uma escrava; que a
vista disto elle respondente reprehendeo ao dito seu escravo para que se acomodasse, e
não querendo este attender a sua reprehensão, continuou o mesmo barulho. Sendo este
procedimento um ato de desobediência, elle respondente saira da cama onde estava
acomodado e dirig
iu
-se a cozinha para mandar recolher o escravo para a senzala, sendo
que antes de chegar a mesma cozinha encontrou o dito seu escravo Luis que vinha sobre
elle armado de uma faca e um cacete. Que vindo elle respondente a ser agredido, que a
sua vida se achava em perigo, fez uso de um cacete que levava com sigo e com elle deo-
lhe duas cacetadas uma na cabeça e outra no braço esquerdo. Teve em conseqüência
dessas ofensas que elle respondente se acha preso em virtude da ordem do Juiz
Municipal (...) mas que s
eo procedimento foi dado em defesa própria.
397
395
AZEVEDO, Op. Cit. p. 25.
396
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Lages, maço 13, processo 178, fls. 2v.
397
Idem, fls. 7 e 7v.
134
Luis
, o escravo ferido por João Cezar, possivelmente procurou a polícia para queixar-
se
ou defender-se de alguma forma de seu senhor, pois de acordo com o corpo de delito feito pelos
peritos “o dito Branco deu várias cacetadas no seu escravo Luis, menor de dezoito annos, de qual
acto fica o mesmo escravo com um dos braços quebrados”,
398
além disso os peritos ainda
descreveram outros ferimentos e consideraram crime de ferimentos graves. Neste, como na
maioria dos crimes, podemos descrever algumas hipóteses que de certa forma nos relembram as
características violentas da manutenção da escravidão; o senhor em sua defesa descreve que ao
“levantar
-se da cama e dirigir-se à cozinha”, queria somente chamar a atenção de seu escravo e
encaminhá
-lo a senzala, e, para isso, estava armado de um cacete. Luis, o escravo
responsável pelo barulho repreendido, estaria armado esperando para atacar seu senhor, como
descrito, ou apenas tentou defender-se das cacetadas de João C
ezar
. Podemos pensar que o
escravo pode
ria
também ter apanhado calado e ter recorrido à polícia mais tarde. Nesse processo
o réu acaba absolvido em primeira e segunda instância, pois o Juiz alega falta de provas contra o
réu.
399
Também são poucos os senhores processados por maus tratos que chegavam à segunda
instância, pois com certeza eles exerciam seu poder total em suas propriedades, o que fazia parte
do sistema escravista, e eram poucos os escravos que conseguiam chegar a delegados ou juízes
com suas q
ueixas, quando podemos pensar que estes também poderiam ignorá-
las. A maioria dos
trabalhos
de autores
400
que estudaram cativos como vítimas de maus tratos o julgados em
primeira instância e normalmente os senhores são absolvidos, como por exemplo, o ci
tado
processo julgado no Tribunal da Relação de Porto Alegre envolvendo o bacharel Ignácio, que
teve j
ú
ri especial.
Se perante o direito civil o escravo era considerado um bem semovente, portanto sem
nenhum direito ou obrigações jurídicas, perante a lei penal não era plenamente
responsabilizado por seus crimes como deveria responder por processo, ir à Júri e ser condenado.
398
Idem, fls. 8.
399
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Lages, maço 13, proc
esso 178, fls. 10.
400
Ver: ZENHA, Celeste. As Práticas da Justiça no cotidiano da pobreza. São Paulo: Revista Brasileira de
História. V. 05, n. 10, p.123-146, 1985; LIMA, Solimar Oliveira. Resistência e Punição de Escravos em Fontes
Judiciais no Rio Grande do Sul: 1818-1833. 1994. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1994; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e
Escravidão: Trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas(1
830
-
1888)
. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987; PEREIRA, Lucia Regina Brito. Fábulas de Escravos e Libertos no Cenário da Justiça em Porto Alegre
1870-1888. 1994. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de História, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, 1994.
135
Fossem cometidos por réus escravos ou livres, os crimes no Império incorriam nas prescrições do
Código Criminal de 1830. No entanto, se no Código Criminal os escravos eram tratados como
homens plenamente responsáveis por seus atos, a lei de 1835 apresentava-se como um estatuto
penal especial, ao investir de intocabilidade a figura da autoridade senhorial. Assim, ao se voltar
contra o seu proprietário, o escravo deixava de ser considerado legalmente incapaz e arcava com
suas responsabilidades criminais perante o júri como um cidadão qualquer; ao seu proprietário,
contudo, era concedido, através do anteparo legal, o poder de vida e morte
sobre seu escravo.
401
Dentre os processos apelados à segunda instância encontramos um processo onde são réus
dois senhores, e a vítima fatal um cativo. Processo este da cidade de Tijucas, na província de
Santa Catarina, do ano de 1884, onde são réus Joaquim
Marcos da Silva e seu pai Marcos José da
Silva, acusados de ferimentos graves em seus escravos Adão e Dionísio, e de homicídio causado
por maus tratos em seu escravo Lazaro. Conforme testemunha do processo:
Joaquim Marcelino Barros denunciador ao Juiz de Direito de São Miguel (Santa
Catharina) (...) que dera sepultura ao escravo Lazaro de Joaquim Marcos da Silva
resultando de seu falecimento de sevícias, como se poderá verificar exumando o cadáver
o que era publico em Tijucas, que tendo fugido Lazaro com outros seus parceiros do
poder de seu senhor que este os tendo aprehendido os amarrara, e em caminho para sua
casa tocou na de seu pai Marcos José da Silva; na casa deste castigou
-
os barbaramente, e
dahi conduzios em um carro coberto com um couro, para casa dele, a distancia de três
kilometros, onde novamente lhes foram feitos novos castigos, o que occasionara a morte
de Lazaro.
402
Buscando verificar a acusação o juiz determinou que se realizasse a exumação do cadáver,
que resultou na afirmação dos peritos de que a tima sucumbira devido aos maus tratos. Na
seqüência foi procedido o auto de corpo de delito nos outros escravos também castigados. O
inquérito policial respectivo aberto pelo Delegado de Polícia
descreve
que:
(...) procedendo o corpo de delicto nos escravos Dionísio e Adão, ambos do mesmo
Joaquim Marcos, parecendo que somente ferimentos leves foram observados pelos
peritos, que imperitamente deram suas respostas aos quesitos que offerecera a autoridade
policial; e tendo-se procedido o auto de perguntas ao mesmo Joaquim Marcos e a seu
pai, assim aos escravos Dionísio e Adão. Depois de ouvidas algumas testemunhas, o
delegado requisitou a prisão preventiva de Jose Marcos, effectuando
-
se a prisão.(...)
403
401
AZEVEDO
, Op. Cit. p 50.
402
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Tijucas, maço 42, processo 590, fls 03.
403
Idem, fls.04.
136
Esse processo acaba anulado no Tribunal da Relação
,
pois
como já observado no inquérito
“os peritos imperitamente deram suas respostas aos quesitos que offerecera a autoridade policial”,
ou seja, o juiz alega que existiram erros na formação do processo, além do que, todas as
testemunhas que depõem no processo negam que os réus tenham cometido tal crime.
404
Embora
descrit
os
no processo, a morte de Lazaro não foi comprovada e os ferimentos nos outros cativos
foram considerados leves.
O crime de homicídio estava expresso no Código Criminal na terceira parte, que tratava
dos crimes particulares; título dois, dos crimes contra a segurança individual; capítulo primeiro
contra a segurança da pessoa e da vida; primeira seção, artigos cento e noventa e dois a duzentos.
As penas eram de sentença de morte,
galés perpétuas, ou até vinte anos de prisão.
405
O homicídio
é a ação humana mais uniformemente considerada como crime em diferentes sociedades. O
alcance da definição, a maior ou menor reprovação social do ato, de acordo com as circunstâncias
ou contra quem se dirija, podem variar, porém a regra básica é a da cominação de pena a quem
suprime uma vida. Caso-limite da agressividade física, o ato homicida pode aproximar-se de
agressões que não resultam em morte, das quais às vezes se distingue somente no plano da
eficácia de meios e não da intencionalidade.
406
Em muitos casos as diferenças entre ferimentos graves e homicídios estavam na sorte da
vítima em sobreviver às agressões, pela intervenção de outras pessoas, ou pelo atendimento
recebido de imediato, ou ainda pela recuperação dos ferimentos. Algumas vezes a
responsabilidade do homicídio, quando resultante, seria compartilhada inclusive com a própria
vítima, uma vez que o Código Criminal, no artigo 194, considerava atenuante “quando a morte se
verifica não porque o mal causado fosse mortal, mas porque o ofendido não aplicasse toda a
diligên
cia para removê-lo”. Ou seja, as agressões que ocasionavam a morte eram homicídios, as
demais, ainda que igual em violência e mesmo que houvesse indícios da intenção de m
atar,
caracterizavam ofensas físicas.
407
404
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Tijucas, maço 42, processo 590, fls. 77.
405
PERE
IRA, Op. Cit. p. 85.
406
FAUSTO.
Op. Cit. p. 107.
407
VELLASCO, Op.
Cit. p. 253.
137
O Código Criminal do Império tratava de ferimentos e ofensas físicas especificamente na
terceira parte, título segundo, capítulo primeiro, quarta seção, artigos duzentos e um a duzentos e
seis. As penas variavam de d
ois meses a seis anos de prisão.
408
Nos processos estudados também encontramos os crimes de ofensas físicas graves e
tentativas de homicídio. Em Santa Catarina na cidade de Lages, no ano de 1884, João Evangelista
dos Santos, tentou assassinar sua mulher, Maria Caetana Moreira Ferraz, que dormia, desferindo-
lhe um golpe na cabeça, com um pequeno saco de chumbo. Esta acordou-se, e o marido
utilizando um facão, desferiu-lhe vários golpes, inclusive deixando a arma enterrada na vítima.
Logo após o réu dirigiu-
se
ao paiol, onde dormia seu escravo de nome Quirino, desferindo-
lhe
dois tiros de pistola, e não produzindo a morte, o réu ainda utilizou-se da mesma arma para dar
pancadas na cabeça da vítima. O último ato do réu foi arrastar a mulher para junto do escravo e
deixar junto a eles os sapatos dela. Possivelmente o objetivo de João era criar evidências de que a
mulher e o escravo estavam tendo um caso, e assim justificar o crime. As vítimas porém não
morreram. Quando de seu julgamento, somados aos ferimentos que causara no escravo estavam
os ferimentos que causara na esposa, que com certeza definiram a condenação agravando mais a
situação o fato de ela estar prestes a dar a luz. A sentença foi de galés perpétuas proferida pelo
Tribunal do Júri e confirmada pela R
elação.
409
Além de maus tratos e brigas com os senhores, sabemos que era muito comum, de acordo
com a historiografia da escravidão, ocorrerem brigas entre cativos de mesma propriedade,
de
escravos de senhores diferentes, bem como brigas de cativos com liber
tos e outros homens livres.
Boris Fausto afirma que um grande número de homicídios apresenta a forma de uma briga
súbita que poderia estar relacionada ao envoltório ritualizado e socialmente aceito para a
supressão de um inimigo pessoal, o
que geralmente d
esemboca
va
no desfecho fatal.
410
Em Laguna, em uma briga entre cativos, o escravo José Candinho acabou preso e
condenado a prisão com trabalho por ferir gravemente outro cativo, conforme denúncia:
(...)
O Promotor Publico vem denunciar o preto José Candinho, escravo de Francisco da
Rosa Alves pelo facto que passa a referir: No dia 5 do mez de outubro findo, as 8 horas
da noite, mais ou menos, achando-se o denunciado e o preto Antonio, escravo da orphã
408
PEREIRA, Op. Cit. p. 65.
409
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Lages, maço 179, processo 968.
410
FAUSTO, Op. Cit. p. 135.
138
Maria, tutellada de José Sebastião de Souza Júnior, além de outras pessoas, na venda de
Francisco de Souza Martins, no lugar Sambambaia, da freguesia de Imaruhy , deste
Termo, onde estavão conversando e festejando uma corrida de cavallos, ordenou Martins
ao preto Antonio que queimasse um foguete, o que foi o
bastante para que se enfurecesse
o escravo José, que armado de uma faca, provocara as pessoas presentes, nada
conseguindo, porem, porque não foi respondida a provocação. Entretanto, decorrido
algum tempo, e depois de tudo calmo, e sem que se pudesse esperar incidente algum
dessa provocação, que fora desprezada, encostaria-se o denunciado á porta da referida
venda, e quando della sahia o escravo Antonio, atirou-se a este inopinadamente, e com a
faca de que estava armado, fez-lhe os ferimentos constantes do auto de corpo de delicto
(
...)
411
Estas brigas entre negros e brancos, cativos, livres e libertos muitas vezes se davam em
lugares públicos, em momentos de lazer e distração. Antagonismos poderiam vir a tona depois de
uns goles a mais. Como ocorreu na comarca de Rio Grande, no ano de 1874, onde Candido,
escravo de Joaquim da Costa Torres, foi condenado pelo assassinato de Isidoro Borges. A
denúncia dizia que, num baile ocorrido na casa de Julio Santa Barbosa, Candido “alterou-se por
motivo frívolo” com Isidoro Borges e Agostinho José da Silva, ocorrendo uma briga que foi logo
“apaziguad
a pelos outros convivas”. Quando do final do baile, mais ou menos 3 horas da manhã,
Isidoro acompanhou Agostinho até sua casa e logo pegou a estrada. Em seguida recebeu um ti
ro
fatal no peito desferido por Candido. A pena proferida pelo Tribunal do Júri condenou o réu a 20
anos de galés perpétuas e o senhor do escravo ao pagamento das custas. Essa s
entença
confirmada em segundo julgamento pelo Tribunal da Relação.
412
Podemos perceber certa mobilidade desses cativos, que não eram completamente
controlados por seus senhores. Essa liberdade de movimentação dos escravos possivelmente
constituía
-se através de contatos em seus trabalhos. Em outra briga na cidade de Bagé, o escravo
Mar
cos também foi condenado por crime de homicídio:
O Promotor Publico (...) vem denunciar o pardo Marcos, escravo de João Anacleto
Gularte, morador deste Município pelo facto que passa a referir: Em o dia 11 do
corrente, no 1 Districto deste Termo, na fazenda de João Gularte, lugar denominado
Pirahy Grande, foi encontrado barbaramente assassinado Jeronymo Silveira, sendo o
autor desta morte o referido pardo Marcos. Pelos indícios que este crime deixou apesar
de ter sido praticado sem que testemunha alguma o presenciasse, todavia não pode
existir a menor dúvida acerca de seu verdadeiro autor. E quando é certo que o
denunciado logo depois do facto criminoso foi visto ferido e com a roupa manchada de
411
APESC
-
Cartório Superior Tribunal de Jus
tiça, Laguna, maço 317, processo 582, fls 3.
412
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Rio Grande, maço 347
-
A, processo 73.
139
sangue, este que há pouco se tinha encontrado com o pacient
e junto de umas carretas que
se achavão perto do lugar do conflito: quando ainda é de prezumir que entre elles
houvesse prevenções pelas palavras que depois proferio o denunciado junto do cadáver
que ainda doião-lhe os laçaços que por elle havia soffrido = manifestando ainda signaes
de satisfação pelo tempo que ahi se conservou; quando finalmente, se embaraçado e
confuzo, tentando negar o facto criminoso que lhe era imputado, perante a autoridade a
quem o interrogava, tudo isto leva a convicção de que é
o denunciado o verdadeiro autor
desta morte. Pelo inquérito junto mais evidente se achão todos esses e outros indícios, e
pelo exame a que se procedeo tanto no cadáver quanto nos ferimentos do denunciado, é
fora de duvida que entre elles houve conflicto, resultando deste a morte de Jeronymo
Silveira, cujo cadáver foi depois encontrado degolado, com quatorze punhaladas em
diversas partes do corpo e com mais oito ferimentos na cabeça. E assim para que seja o
denunciado nas penas do art 193 do Cod. Crim.
413
Outro crime por causa de brigas ocorreu na cidade de Laguna. O preto Mariano, escravo
de Fidelis Alves Campos, foi preso, julgado e condenado pelo crime de ferimentos graves na
pessoa de Damásio José da Silva,
na
noite de 26 de fevereiro de 1884, na praia do Rincão. O réu
foi condenado em primeira instância e quando da apelação ao Tribunal da Relação de Porto
Alegre seu julgamento e condenação foram anulados, possivelmente por razões de intermédio de
seu senhor.
414
Quando cometiam delitos os escravos transfo
rmavam
-se em sujeitos de Direito e lhes era
conferida a capacidade de serem punidos pelo Judiciário. É verdade, porém, que por disposição
legal os senhores respondiam com o patrimônio pessoal por eventuais danos causados por seus
escravos. Entretanto, para tal propósito específico, a riqueza senhorial não podia ser empenhada
numa quantia superior ao preço do próprio escravo. Esse preceito visava preservar, claramente, o
patrimônio acumulado pelos senhores. Quando os escravos cometiam crimes “menos graves”,
cujas penas estipulavam a prisão com trabalho ou a prisão simples, a regra era a comutação das
penas por açoites. Desse modo, os senhores, rapidamente obtinham de volta sua propriedade,
evitando
-
se, assim, maiores prejuízos.
415
As brigas e os crimes evitando fugas também aconteciam bastante, como ocorreu na
cidade de Rio Grande:
413
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Bagé, maço 347, processo 102. fls. 21v e 22.
414
APESC
Cartório Superior Tri
bunal de Justiça, Laguna, maço 42, processo 562.
415
CAMPOS, Op. Cit. p. 218.
140
(...)
O promotor publico vem perante este juizo denunciar o preto Bernardino, escravo do
(Finado) Antonio Martins de Freitas, no dia 31 de maio, por andar fugido foi pegado por
Alexandre Luiz Pedro e condusido, para ser entregue ao seu senhor, e chegando a casa
deste pode escapar das mãos do dito conductor, e correo amparado por uma faca que
trasia, e na mesma carreira entrou pela venda de Lamosa, que fica na rua Paysandu de
exq
uina para a rua Sete de setembro. O caixeiro da venda de nome Antonio Soares quis
impedir a entrada violenta de sua casa, mas o pretto a elle se arrojou de faca em punho, e
fez lhe ferimentos constantes do auto de corpo de delito(...)
416
Em sua defesa o réu afirma não querer machucar ninguém, queria somente fugir, porém
sua vítima foi atacada por
que
não lhe deixar
a
passagem, conforme descreve em seu
interrogatório:
Ao 01 de Junho de 1875, nesta cidade do Rio Grande do Sul, na sala dos interrogatórios
da
Cadeia Civil, onde foi (vindo) o subdelegado de Policia João Carlos Lucima, comigo
escrivão de seu cargo abaixo nomeado, presente o preto Benvindo livre de ferros e sem
constrangimento algum, o subdelegado lhe fez as perguntas seguintes: Qual seu nome,
na
turalidade,idade,officio e condição? Respondeo chamar-se Bernardino, natural do Rio
de Janeiro, de idade 27annos, (cozinheiro), escravo do Tenente Coronel Antonio Martins
de Freitas. Perguntado se sabe por qual motivo foi preso e recolhido a cadea ?
Respondeo que sabe que foi por andar fora de casa, e sendo preso quis entrar na venda
da esquina da praça sete de setembro, e como o menino se oppusece entrou a força e
ferio o menino com a faca que havia consigo e apanhou a na ( Charqueada do S.
Amaral). Perguntado se pretendia assassinar o menino ? Respondeo que não, que foi por
estar (aucolizado) e por elle ter pegado n’uma acha de lenha.Perguntado se sabe como se
chama o menino e se elle era caixeiro da venda referida? Respondeu que não sabe.
Perguntado se conhece a faca que lhe foi apresentada ( foi lhe mostrada a faca com que
foi preso) ?Respondeo que conhece porque é a própria que tinha na mão,e com que ferio
o menino. (...)
417
A quantidade de casos de brigas, agressões e ferimentos que se originaram das
tentativas
de acerto de contas privadas, cobranças de pequenas dívidas e soluções de conflitos de posses
indicam que não eram poucos os que recorriam a soluções privadas para problemas dessa
natureza, entretanto, acabavam por verem-se envolvidos no cerimonial jurídico como agressores
e us.
418
Um desses casos foi parar no Tribunal de apelação de Porto Alegre, onde, por uma
briga por dívidas, o crioulo Alfredo assassinou o escravo Delgício, conforme descreve uma das
testemunhas:
416
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Rio Grande, maço 342
-
A, processo 101, fls. 3v.
417
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Rio Grande, maço 342
-
A, processo 10
1, fls. 16 e 17.
418
VELLASCO, Op. Cit. 175.
141
José Manoel da Rosa, de desenove annos de idade, solteiro, natural do Rio Grande do
Sul, marinheiro do Encouraçado Bahia, aos costumes nada disse testemunha jurada dos
Santos Evangelhos (...) Disse que na noite de vinte e sete do mes próximo passado
estando a porta do cortiço sentado com seu companheiro Manoel José da Conceição e
mais Alfredo; vio Delgicio entrar em casa de Alfredo e este hindo atraz delle, puxara-
o
pelo braço e o pos fora da casa dizendo que ali não era casa de prostitutas, nem a
Figueira. Uma vês no patêo começara Alfredo a esbofetear a Delgicio, pedindo elle
testemunha que tal não fizesse, sendo desta ves attendido entrando Alfredo para casa e
fechando a porta. Momentos depois Alfredo tornou a sahir ao pateo e encontrando
Delgicio que ahi se conservara em de novo se atracara com elle independente de
provocação da parte de Delgicio. Entrando Alfredo novamente em casa, tornando a sair
pouco depois, encontrara Delgicio de quem se aproximara, agarrando-se Delgicio ao
Paletó de Alfredo e a calça e as rasgou; Alfredo tirando o pedaço de Paletó que lhe
ficara, sahio para rua; algum tempo depois voltou Alfredo de novo, e encontrando
Delgicio encostado a porta dirigio-se a elle dizendo-
lhe
– Negro tu és Captivo – cahindo
neste acto Delgicio, e Alfredo sobre elle, e vio que este dava em Delgicio com a mão
ignorando elle testemunha o instrumento que elle continha retirando-se depois Alfredo.
Nesta occasião vendo elle testemunha correr sangue do Corpo de Delgicio, disse a seo
companheiro que fôsse a Policia das partes do ocorrido para que não se lhes atribuísse a
authoria desse crime.
419
Em seu julgamento final o réu Alfredo Mauricio Lacerda foi incurso nas penas do Art.
193 do Codigo Criminal “por se achar plenamente provado dos autos o homicidio por elle
praticado em a noi
te de 27 de fevereiro do corrente anno”
.
É importante ressaltar nesse processo o local onde ocorreu o crime: “o cortiço da rua do
Coronel Fernando Machado, situado no bairro da Tronqueira”. Em Desterro, bairros como a
Tronqueira, a Figueira e o Rita Maria na zona do porto, concentravam uma grande quantidade de
atividades mercantis e de transportes. Não por acaso, a Figueira tornou-se celebre palco de
pequenos incidentes policiais durante todo o período estudado. Soldados, marinheiros,
estivadores, criados, policiais, calafates, carpinteiros, vadios de todas as ordens pareciam adorar
aquele bairro a beira mar que
,
segundo Oswaldo Cabral, cheirava a alcatrão.
420
No sul do Brasil, bem como na maioria dos estados que possuíram escravos como mão de
obra, os negros livres normalmente dividiam com os escravos moradias coletivas,
compartilhavam relações de parentesco, mesmo que informalmente estruturadas, e disputavam
oportunidades num mercado de trabalho sem muitas possibilidades. Nesses locais e nessas
relações norm
almente ocorriam graves conflitos.
419
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Desterro, maço 05, processo 67, fls. 35v e 36.
420
CABRAL, Oswaldo Rodrigues.
Nossa Senhora do Desterro
. Florianópolis: Lunardelli, 1979. v.2.
142
De acordo com Maria Odila Dias os escravos e libertos, geralmente, tinham quartos
alugados nas ruas secundárias do centro, onde se reuniam em cortiços de “má fama”,
onde
observavam
-se aglomerações de negros, quartos alugados e ajuntamentos, que chamavam
constantemente a atenção das autoridades policiais.
421
Os cortiços eram habitações populares muitas vezes surgidas do abandono de velhos
casarões de famílias abastadas (seja por falência familiar, problemas no inventário, etc) que
tinham seus diversos aposentos locados, ou então eram conjuntos habitacionais compostos de
minúsculos casebres (quartos) distribuídos ao longo de um pátio o qual servia de “serventia
comum” dos inquilinos para lavagem de roupas, cozinha, encontros muitas vezes localizados
aos fundos de uma venda ou taberna. Pelas denúncias divulgadas pelos jornais, os cortiços
engendravam contatos inter-étnicos variados, nos quais os negros cativos acabavam inseridos no
grupo dos populares. O estudo dessas habitações, estabelecidas no próprio centro das cidades,
demonstra a proximidade física existente entre os subalternos e a elite, havendo apenas
claramente demarcada a distância cultural.
422
Neste sentido Chalhoub descreve que ter qualquer moradia - como cortiços, casebres,
casas de meretrizes, entre outras - era importante para
os
cativos e libertos, para poderem
estabelecer
relações com seus parceiros com relativa autonomia, afinal a liberdade para eles não
se esgotava no “viver fora do cativeiro”, pois “havia modos radicalmente distintos de conceber a
vida em liberdade”.
423
Paulo Moreira descreve
sobre
o Rio Grande do Sul, em especial na cidade de Porto
Alegre, que os senhores de relativas posses residiam em sobrados que tinham como parte
integrante de sua arquitetura porões bem espaçosos que serviam de senzala para os trabalhadores
cativos, principalmente domésticos. No caso de os senhores serem comerciantes, poderiam
utilizar os armazéns que possuíam junto ao porto para morada de seus cativos e de outros
trabal
hadores livres.
424
A circulação da população escrava nas cidades e no campo, as relações de amizade de
escravos entre si e entre estes e outras camadas não proprietárias, o compadrio, a existência de
421
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 2
Ed. 1995.p. 37.
422
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano.
Porto Alegre
1858
-1888
. Porto Alegre: EST Edições,
2003. p. 61.
423
CHALHOUB, Op. Cit. p. 80.
424
MOREIRA, p. 54.
143
uma criminalidade específica à categoria são indícios da elaboração pelo escravo de uma
concepção própria de seu universo.
425
Ainda neste crime, depois de cessarem as primeiras bofetadas, Adelgício rasga o paletó e
a calça de Alfredo, o que muito o enfurece, pois nessa época as vestimentas de um liberto
geralmen
te os diferenciavam dos cativos, e uma boa roupa geralmente significava presença e
estabilidade social, principalmente a um sapateiro. Após isso
,
Alfredo sai em busca de uma arma,
e voltando mata a Adelgício gritando Negro tu és captivo diferenciando-o da sua condição de
superioridade por ser liberto e discriminando Adelgício. Nesse contexto o crime revela como a
expressão
“mais livre” desnuda simbolicamente pontos sensíveis de afirmação da personalidade
masculina, entre eles a necessidade de preservar a honra ou de demonstrar superioridade com
relação a parceiros da mesma condição social.
426
Alfredo também tinha melhor condição social
por ter um oficio, ele era sapateiro.
Paulo Moreira descreve que percebendo a situação concreta na qual os libertos estav
am
situados, observamos que, se eles queriam permanecer na cidade onde haviam sido escravos
onde haviam conseguido estabelecer relações que os favoreciam profissional e particularmente
– ,
seria aconselhável manter relações cordiais com seus ex-
senhores.
Não emergiam completamente
livre
s do cativeiro, mas passavam para o status de liberto, o qual estava profundamente marcado
pelas cicatrizes do cativeiro e no qual era arriscado abdicar dos sistemas de proteção dados pelas
boas relações com seus ex-senhores. Ser reconhecido e recomendado identificava pertencimento
comunitário, o que permitia fugir do paradigma negativo do vadio.
427
Além do direito de ir e vir freqüentando livremente lugares públicos, existiam outros
critérios de distinção simbólica que os libertos manipulavam para se distanciarem o máximo
possível do cativeiro, como a obtenção de uma especialização profissional, principalmente entre
os ofícios manuais mais valorizados no espaço urbano (pedreiros, alfaiates, carpinteiros) e a
filiação em assoc
iações.
428
Uma
dúvida surge ao nos questionarmos o porque de a ex-senhora de Alfredo não
aparece no processo, ela é citada
e,
além de ser a ex-proprietária do mesmo réu, ainda o
protege da polícia, pois de acordo com o relatório do delegado:
425
MACHADO, Op. Cit. p.21.
426
FAUSTO, Op. Cit. p. 137.
427
MOREIRA, p.292.
428
MOREIRA, p. 295.
144
(...) na caza da Rua do Coronel Fernando Machado, se achava homiciado o pardo
Alfredo que a poucos momentos havia assacinado dentro de um cortiço na mesma rua á
Delgicio crioulo escravo do cidadão João de Souza Freitas, pelo que dirigindo-se a dita
Caza o mesmo Major Commandante pedindo a respectiva dona da Caza para proceder a
prisão do referido pardo Alfredo, no que aquella objectara dizendo que não consentia
varejar sua caza, por ser noite, então deliberou fazer cercar a mesma caza por praças
policiais ate que fosse dia; e então as seis horas da manhã depois de precedidas as
formalidades da luz; foi intimada a referida dona da caza, perante as testemunhas abaixo
assignadas e entrando na caza supra declarada procede a mais minucioza busca
examinando todas as salas quartos e mais compartimentos, encontrando em um porão da
mesma caza escondido o criminoso pardo Alfredo, a quem prendi e fiz condusir a Cadeia
Publica pres a minha ordem onde ficou recolhido (...)
429
Quando do enfrentamento de Delgicio, enfurecido buscando cobrar sua dívida, Alfredo
ainda faz uma afirmação de que “ali não é casa de mulheres públicas e nem a Figueira”,
referindo
-se a maneira que Delgicio invade o cortiço onde ele vivia com sua amazia. Maria
Joaquina da Conceição, de quarenta anos, amazia do réu foi uma das testemunhas intimadas no
processo, e de acordo com que a própria testemunha relata, ela mantinha relações de intimidade
com o Alfredo, pois este, depois de matar Delgicio voltara para buscá-la, levando-a consigo para
seu refúgio:
(...) depois de iniciar a briga, a testemunha trancara-se em seu quarto, e que poucos
momentos Alfredo batera na porta e chamara por ella testemunha que sahi-se para fora e
que obedecendo sahio precipitada para a rua e que então vira na entrada geral do cortiço
cahido no chão e gemendo a Delgício hindo então pernoitar em casa de uma vizinha e
que dormiu com elle (...)
430
Tentar descrever o estilo de relação em que ocorria entre Alfredo e Maria Joaquina
reflete
em várias reflexões da realidade do século XIX, onde as normas e valores ideológicos relativos
ao casamento e a organização da família nos meios senhoriais não se estendiam; a formalização
de casamentos religiosos era caro demais, não tinha sentido na vida cotidiana do escravo, nem
para população livre m
ais pobre.
431
Limitados em seus planos de “viverem sobre si”, ou seja, alugarem casas ou quartos
próprios, os escravos e muitas vezes os libertos tentavam conseguir “testas-
de
-ferro” que
figurassem como falsos inquilinos, ludibriando as autoridades, ou mantinham relações com
429
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Desterro, maço 05, processo 67, fls. 09.
430
Idem, fls.
09
.
431
DIAS
,
Op. Cit pg. 47
145
meretrizes, usando suas casas como refúgio temporário e guarda de objetos particulares. Se o
conseguissem morar efetivamente fora da casa de seus senhores, os escravos pelo menos
procuravam garantir um local onde pudessem “pararocasionalmente. Além de depositar objetos
diversos nas casas das mulheres com que mantinham relações, os cativos também gastavam na
companhia das mesmas os capitais que conseguiam obter de diversas maneiras, investindo em
relações que podiam trazer
-
lhes vários
benefícios, não apenas os sexuais.
432
Os crimes envolviam igualmente situações em que escravos e parceiros livres disputavam
mulheres escravas ou libertas, nas alterações dos jogos de valentia, nos preconceitos raciais e
sociais que perpassavam suas relaçõe
s.
433
Disputas essas que também ocorriam com imigrantes
de diferentes nacionalidades, principalmente com os portugueses, como por exemplo, o crime
passional cometido na cidade de Rio Grande pelo escravo Raimundo que não admitiu ser
trocado” pelo português
Joaquim, porém a vítima foi a própria mulher que “disputavam”:
O Promotor Publico vem denunciar a V. S. que na noite de dezoito do corrente mez de
março por volta das sete horas, o preto Raymundo escravo de João Fernandes Braga,
com uma facada no craneo
atrás da orelha esquerda, matou a parda Querubina escrava de
D. Maria Joaquina Lorena, e para o dito Raymundo tomara resolução de cometter o
assassinato deu
-
se a circunstancia seguinte: Era Raymundo amasiado com Querubina,
porem esta procurando romper as
relações que a ligavam a elle, achou bom ensejo um
novo conhecimento que travou com Jacintho Hypolito de Tal, e despedio Raymundo por
não lhe fazer conveniência, como escravo que era, e desta recusa nasceo o projecto
apesar de combatido e reprovado por pe
ssoas ou parceiros d’amizade de Raymundo, este
o levou a efeito. Cumpre mais ponderar que Raymundo já é habituado a cometter crimes
idênticos, por idênticos motivos. E que seja punido o agente criminoso, incurso no art
192 do código crime.
434
De acordo co
m Paulo Moreira
,
a ocorrência de casos de relações sexuais ou mesmo de amasiamento entre portugueses e escravas ou
libertas tem relação com o fato dessa população ser majoritariamente masculina, jovem e imigrar individualmente,
principalmente
a partir de
1
850.
435
Com relação aos crimes envolvendo estrangeiros
,
Boris Fausto descreve que:
na medida em que a violação das normas penais vinha associada à recente presença
maciça de estrangeiros, o preconceito contra estes e a sua associação com a
criminalidade g
anhou nítido contorno naqueles anos.Aparece aqui a outra face da
432
MOREIRA, Op. Cit. p. 58.
433
WISSENBACH, Op.
Cit. p.50.
434
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Rio Grande, maço 315, processo 35, fls. 2.
435
MOREIRA,
Op. Cit.
p. 58.
146
imigração, a dos fracassados, dos aventureiros, dos fugitivos da justiça, que não se
enquadram nos moldes do abnegado trabalhador, da gente ativa que estava suplantando
os nacionais na pequen
a indústria e no comércio. Relatórios policiais responsabilizam os
estrangeiros pelo avanço da criminalidade, teme
-
se que o Brasil comece a receber
alienígenas de “etnias indesejáveis.
436
Nos processos analisados também foram encontrados crimes de cativos contra seus
senhores. Já em Santa Catarina, na cidade de São Francisco em 1876, o escravo Adão foi acusado
de ser cúmplice na morte de seu senhor. O crime é narrado pela testemunha Wenceslau Justino da
Rocha:
oito meses mais ou menos, que a testemunha fora fazer uma caçada nas mattas entre
o Sahy Guassu e o Sahy mirim, e chegando a um rancho em que morava Thomaz
Francisco de Souza, e vio, que Pacífico Francisco de Souza e o escravo Adão ahi se
achavão, tendo o referido Pacifico uma faca toda ensangüentada na mão, occupando-
se
Adão em limpar o sangue que estava espalhado pelo chão; interrogado Pacifico
respondera que viera encontrar seu irmão morto, então Wenceslau, examinando o
cadáver que estava embrulhado em um lençol, presenciara que tinha um ferimento no
peito e outro na cabeça.
437
De acordo com o relatório do Promotor, o crime descrito pela testemunha foi
comprovado:
Com effeito exhumado o cadáver como consta do auto junto, verificaram os peritos, que
no craneo havia um golpe de uma pollegada de largura e duas de comprimento e que o
pedaço do dito craneo, onde rachou-o a pancada, estava mergulhado para dentro; bem
como ainda verificando que junto ao dito golpe, estava quebrado o craneo em uma
extenção de 14 centímetros. O facto assim relatado por Wenceslau a diversas
testemunhas, e ainda mais a offerta feita pelo primeiro denunciado a aquelle para
guardar segredo, e mesmo o próprio silencio em que se tem conservado o mesmo
denunciado ate poucos dias, são circunstancias que indusem a fazer recahir sobre elle
vehementes indícios de haver conjuntamente com o escravo Adão, assassinado a seu
irmão. E neste caso, para que sejão os delinqüentes punidos com as penas do art. 192,
grao maximo do Cod.crim. , por concorrerem os aggravantes do art. 16 pag 1 e 4, além
dos pág 11 e 17 do mesmo cod.
vem a Promotoria dar a presente denuncia (...)
438
Outro escravo acusado de matar seu senhor foi Bento, na cidade de Lages:
436
FAUSTO, Op. Cit. p.23.
437
APERS
Cartório Superior T
ribunal de Justiça, São Francisco, maço 324, processo 302.fls. 5.
438
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, São Francisco, maço 324, processo 302.fls. 2.
147
No dia 11 do corrente mez de outubro, propagou-se noticia do desaparecimento do
mencio
nado Silvério Correa de Oliveira, morador naquella Freguesia e cuja noticia fora
pela primeira vez dada pelo referido escravo Bento, sendo tambem dada no mesmo dia
por Mancio Victorino de Chaves, a noticia da morte de Silvério attribuindo esta ao dito
escr
avo Bento; sendo assim dada esta noticia os parentes e amigos de Silvério o forão
procurar e com effeito acharão-no morto perto da própria casa, e com signaes
verdadeiros de ter sido a morte perpetrada por outrem, e dentro da casa de moradia, cuja
veracida
de se comprehende por pormenores seguintes: foi visto (?) por onde havia sido
conduzido o cadáver desde a casa ate o lugar onde foi encontrado; na cama e colchão do
dito Silvério foi visto manchas de sangue, umas lavadas e outras ainda escuras porem
secas;
vio-se o laço que ainda estava attado aos pés, e as botas calçadas, a do direito
calçada no esquerdo, e vice-versa; no rastilio achou-e um relicário; e outros muitos
pormenores que serão relatados por testemunhas. Era sabida a inimizade existente entre
Silvério e Mancio, assim como entre o escravo e o Senhor, e mais que esse escravo
sempre declarou que Silvério se arrependeria de o possuir, e uma das vezes que fez essa
declaração, foi no acto em que se procedia a um inventário no qual entrava esse escra
vo,
e era interessado o mesmo Silvério cuja declaração foi feita perante o Juiz do inventário
e outras pessoas por occasião da realização da partilha. Por estes pormenores que são (?)
indícios do Crime, e por outras circunstancias, taes como, por ter Silv
ério em sua compra
esse único escravo que lhe era desafecto, por amizade reinante entre Mancio e Bento,
forçoso é conhecer-se que a referida morte foi comettida por o supracitado escravo
Bento de commum acordo com o mencionado Mancio Victorino de Chaves . Como os
denunciados tornarão-se criminosos, e para que, neste caso sejão pronunciados com o
maximo das penas declaradas no art 192 do Código Criminal, isto quanto ao escravo
Bento, e no mesmo artigo combinado com os artigos 34 e 35 do referido Código, o
mplice Mancio Victorino de Chaves
439
Como podemos verificar, os crimes não ocorriam somente nas cidades, ocorriam também
no interior e nas matas da região, lugares propícios também para se esconderem negros fujões e
criminosos. Como foi o caso de Feliciano, que ao fugir de seu senhor “vivia vagando nas matas
do Rincão dos Vallos”. Temendo ser descoberto matou um escravo de Manoel Bento de Almeida,
como ele mesmo descreve em seu interrogatório:
(...)Perguntado como se deo o facto do assassinato do pardinho, escravo de Manoel
Bento de Almeida ? Respondeo que tendo
-
o encontrado de madrugada na estrada junto a
uma porteira e receando que elle o conhecesse e descobrisse a sua estada naquelle lugar,
desferiu
-lhe um tiro de pistola que acertando-lhe o fez cahir por terra; e aproximando-
se
elle interrogado do corpo deo sobre o corpo do referido pardinho duas ou três bordoadas,
estando ainda roncando na occasião de sua retirada, ignorando elle interrogado se
morreo ou não. (...)
440
439
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, maço 315, processo 53. fls 2 e 2v.
440
APERS
C
artório Superior Tribunal de Justiça, Cruz Alta, maço 255, processo 552. fls. 37v.
148
O escravo Feliciano ainda foi acusado de outros crimes, como ele mesmo continua
descrevendo em seu interrogatório:
(...)Perguntado como se derão os assassinatos de José Antonio Ferreira e Maria Ignacia
Guandej; os ferimentos da mulher e de um cunhado do mesmo Ferreira, e do incêndio da
casa deste ? Respondeo que passando a noite pela casa de JoAntonio Ferreira, este
soltara seus cães, e sahira com sua família, tendo aquelle uma vella acesa e uma
espingarda de dous canos, com a qual lhe desfeichara dous tiros, os quaes não lhe
acertarão
, então elle respondente lançou fogo na casa de Ferreira. Perguntado como tinha
assassinado a Ferreira e Guandej e ferido a mulher e um cunhado d’aquelle ? Respondeo
que tendo estes se recolhido para a casa e vendo elle interrogado que Ferreira carregava
a espingarda avançou para dentro e assassinou-os com um cacete, ferindo com este
tambem a mulher e um cunhado do mesmo Ferreira. Perguntado aonde deixou o facão
que disse ter tirado do finado Ferreira ? Respondeu que lhe tomarão em occasião que
procurarão p
rendel
-
o (...)
441
Em primeira instância o juiz condenou Feliciano à pena de morte. Apelada a sentença ao
Tribunal da Relação de Porto Alegre, orientado por seu advogado, e tentando livrar-se da pena, o
acusado muda todas as respostas em seu segundo interrogatório: quanto aos crimes “respondeo
que não se lembra de ter assassinado o pardinho; (...) respondeu que não se lembra de ter matado
Ferreira e Guandej; (...) respondeo que não se lembra de ter ferido outras pessoas.”
442
Ao ser
questionado onde estava ao tempo do crime respondeo que em tempo do acontecido estava em
viajem ao Alto Uruguai.”
443
O resultado do último julgamento:
De conformidade com as decisões do Jury, julgando o réo Feliciano incurso no grao
maximo do artigo 193 do Código Criminal pelo assassinato perpetrado na pessoa do
pardinho Adão, de propriedade de Manoel Bento de Almeida, no grao maximo do art
192 do mesmo Código Criminal pelo assassinato praticado contra José Antonio Ferreira,
no grao máximo do citado artigo 192 do mencionado Código Criminal pelo assassinato
comettido contra a pessoa de Maria Ignacia Guandej, no grao maximo do mesmo art
192, combinado com o artigo 34 do dito Código Criminal pela tentativa de morte contra
Eliza, mulher de José Antonio Ferreira, e, finalmente no grao maximo do referido artigo
192, combinado com o art 34 do citado Código Criminal pela tentativa de morte contra o
menor Manoel, cunhado de José Antonio Ferreira, o condenno a pena de morte, que será
dada na forca. Para tal fim, depois de decidido os recursos legaes, e passada esta
sentença em julgamento, se levantará o patíbulo nos subúrbios dessa cidade, na estrada
que segue desta mesma cidade para a Villa de São Martinho, duas horas antes da
execução do reo.Em observância ao disposto no artigo 449 paragr
afo 2º do Regulamento
120 de 31 de janeiro de 1842, appelo da decisão do Jury para o Tribunal da Relação
441
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Cruz Alta, maço 255, processo 552. fls. 38 e 38v.
442
Idem, fls. 158.
443
Ibdem, fls. 174.
149
do Districto; pagas as custas pelo senhor do reo, José Carlos Nogueira, de fls 1 a 50, e
pelo reo de fls 50v em diante ate o final.
444
O curador do réu ainda tenta solicitar apelação ao poder moderador, mas o Juiz da
segunda instância do Tribunal da Relação de Porto Alegre nega apelação
.R
esta uma questão sem
reposta
:
saber se o mesmo réu foi realmente condenado a pena que ficou imposta em seu
julgamen
to final.
As cativas também se voltavam contra seus senhores, como foi o caso da já citada acusada
Lucinda escrava do comendador Heleodoro de Azevedo e Souza, que em 1882, na cidade de
Porto Alegre, serviu à sua senhora uma xícara de chá com uma substância venenosa e por isto
recebeu a pena capital, apesar de ter causado somente algum incomodo de saúde.
As brigas entre mulheres cativas e libertas também ocorriam. Em Pelotas, no ano de 1882,
a preta Josepha, escrava do Dr. Miguel Barcellos, foi até a casa de Eva Maria da Conceição,
possivelmente indo cobrar dívidas, ou cobrar algo solicitado por seu senhor, sendo lá assassinada.
Para cometer o ato, de acordo com o auto de corpo de delito e conforme depoimento da própria
liberta Eva, teria desferido uma forte
pancada na cabeça da escrava, e logo em seguida enrolado o
pescoço da vítima com um lenço “em quatro voltas extremamente apertados por quatro nós”
provocando asfixia e morte por estrangulamento.
445
Em sua defesa e confissão a liberta Eva disse
que cometera
o crime por que tinha desavenças com a escrava Josepha e a filha, que acusaram
-
na
de ter cometido roubo na casa do senhor da escrava. A sentença dada pelo Tribunal do Júri em
primeira instância condenara Eva Maria a 14 anos de prisão. Através de seu advogado, a
solicitou novo julgamento, por considerar a pena injusta. O júri em segundo julgamento, quando
da apelação ao Tribunal da Relação de Porto Alegre, altera a pena proferindo uma sentença
maior, condenando a ré a prisão perpétua, pena correspondente
ao grau máximo do art. 193.
446
Quanto às mulheres e sua relação com a Justiça, foram punidas normalmente quanto aos
crimes de prostituição, aborto ou adultério. Em outros crimes a
parece
m mais como vítima do que
como autora. De acordo com Boris Fausto, a mulher é com freqüência instigadora ou pivô de
crimes, como sujeito oculto ou objeto de disputas, vinculada tipicamente à família
,
à vida afetiva,
444
APERS
Cartório Superior Tribunal
de Justiça, Cruz Alta, maço 255, processo 552. fls. 171.
445
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Pelotas, maço 255, processo 710, fls 02.
446
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Pelotas, maço 255, processo 710, fls 57.
150
às obsessões da honra e das relações sexuais proibidas.
447
A prostituição das mulheres estava
ligada a aumentar o ganho para sustento das famílias. Escravas eram “empregadas” por seus
senhores prestando “favores sexuais”.
Conforme Dias, a prostituição muitas vezes era secundária, casual e complementadora de
outros recursos de ganho das escravas e libertas,
freqüentem
ente morando em quartos alugados
com a possibilidade de juntar-se com companheiros fixos, escravos de outros proprietários, ou
libertos.
448
O crime do aborto deveria ser muito comum, porém bem disfarçados em uma época
em que existiam pouquíssimos métodos anticoncepcionais, e o nascimento de filhos ilegítimos
era condenado pela sociedade através da igreja. A solução para as mulheres que deixavam nascer
seus filhos e não poderiam criá-los, era entregá-los na “roda dos expostos” de instituições que
foram designa
das a criar essas crianças abandonadas.
449
Também encontramos crimes em que as negras cativas e libertas também poderiam ser
vítimas de crimes relacionados ao sexo, como por exemplo
,
o caso do denunciado:
(...)
preto Miguel, preso na cadea civil desta Villa, escravo de Dona Paula de Tal, viúva
do finado Francisco das Chagas e Oliveira que fato que passa a referir: Na noite do dia
28 próximo passado no rincão denominado ( Carovy) quarto Distrito deste termo,
dirigindo
-
se o denunciado a casa de Maria Venanc
ia de Oliveira situada em lugar ermo e
afastada de vizinhos, por occasião de alli acharem
-
se sós, Cândida Antunes de Oliveira e
sua innocente filha de nome Josefina com (um) e meio anno de idade mais ou menos, e
entrado nella depois de transpor a porteira e o pateo que lhes resguardam os fundos,
pretendeu forçar para fins libidinosos a referida Candida e porque essa resistisse à
violência, o mesmo denunciado pucha de uma faca e depois de fazer-lhe com ella
diversos ferimentos, lançou mão de um machado e com elle a golpes tirou-lhe a
existência. Em acto continuo arremessa-se sobre a infeliz Josefina e pegando-lhe pelas
pernas bárbara e cruelmente joga-a por vezes contra uma parede ate espedaçar-lhe o
craneo deixando-a immediatamente sem vida como tudo se vê dos autos de corpo de
delicto inclusos e confissão do próprio denunciado constante dos officios juntos.(...)
450
447
FAUSTO,
Op. Cit. p.91.
448
DIAS, Op. Cit. Pg 53.
449
PEREIRA
OLIVEIRA
,
Henrique
Luiz; FRAGA, Estefania Knotz Cangaçu. Os filhos da falha: assistência aos
expostos e remodelação das condutas em Desterro (1828-
1887)
. 1990. Dissertação (Mestrado) - Pontificia
Universidade Catolic
a de São Paulo, 1990.
450
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, São Borja, maço 181, processo 163. fls. 2 e 2v.
151
Em sua defesa as mulheres cativas e libertas também cometiam crimes como o crime
cometido em Nossa Senhora da Conceição do Arroio, pela pret
a Maria:
(...) O Promotor Publico vem denunciar a preta Maria escrava de Claudina Maria
Antonia, moradora no Distrito das Torres, no lugar denominado = Itapera= , como autora
dos ferimentos graves feitos no preto Manoel escravo de Luis Silveira, (...) pela maneira
seguinte: Vivendo a denunciada inimizada com o preto Manoel escravo de Luis Silveira,
succedeu
-se no dia 21 de fevereiro passado do corrente anno, encontrando-se ambos no
caminho da roça de um filho da denunciada com quem o escravo Manoel se tin
ha
ajustado para trabalhos da lavoura e ahi depois se trocaram algumas palavras, a
denunciada munida de seu mao gênio como é reconhecida, e acostumada andar armada
encontrando o escravo Manoel indefezo, isto é, dezarmado, prevalendo-se da faca que
trazia com ella e acometteu o escravo Manoel dando-lhe diversas facadas sendo uma
empregada na barriga que seguem da oppinião dos peritos que servirão no auto de corpo
de delicto, julgarão ser mortal, e além desse ferimento ainda foi encontrado outros,
sendo Fls2v um delles na sobrancelha, e no dedo polegar da mão direita, de cujos
ferimentos tem estado o offendido em perigo de perder a vida.
451
A brutalidade destes crimes nos prova a violência dentre as relações na sociedade
escravista no sul do Brasil, mostrand
o-
nos que ela pouco se diferenciou do restante do país.
Crimes contra a propriedade
Os crimes contra a propriedade também estavam descritos no Código Criminal do
Império. O roubo estava expresso na segunda parte que tratava dos crimes particulares,
tulos
terceiro e quarto, artigos duzentos e cinqüenta e sete a duzentos e setenta e cinco. As penas
variavam entre dois meses a quatorze anos de prisão simples ou com trabalho, de galés
temporárias ou perpétuas, da pena de morte ou degredo, e multa.
452
Enquanto o roubo implicava
ação violenta, o furto restringia-se a simples apropriação. No estelionato, a apropriação de bens
se dava indiretamente, mediante utilização de artifícios fraudulentos ou argumentos de má
-
fé.
453
451
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Nossa Senhora da Conceição do Arroio, maço 324, processo 133,
fls.3.
452
P
EREIRA,
Op. Cit. p. 99.
453
WISSENBACH, Op. Cit. p. 51.
152
Nessa época a propriedade era um sinal de diferenciação daqueles que nada possuíam e
uma razão recorrente de recurso à justiça, sobretudo em defesa de seus direitos como
proprietários e do reconhecimento público de suas posses. Através do registro público de suas
posses eram reconhecidos como senhores de algo ou alguém, afastando-se daqueles contra quem
davam suas queixas, em uma sociedade contraposta entre senhores e escravos, possuidores e
possuídos.
454
Emilia Viotti da Costa descreve as cidades no século XIX:
(...) nas cidades do interior os únicos edifícios dignos de registros eram as igrejas e os
conventos, e mais raramente os edifícios da Câmara e da cadeia. O abastecimento de
água era precário, ficando os moradores na dependência de poços e chafarizes. Dada a
falta de esgotos, os dejetos eram despejados nos ribeirões ou no mar (quando a cidade
era litorânea), escorrendo, freqüentemente pelas ruas. A iluminação era precária,
prevalecendo o óleo de peixe. A população dos núcleos urbanos do interior vivia isolada,
ignorante do que se passava no mundo. Apenas os fazendeiros mais importantes
freqüentavam periodicamente os grandes centros para tratar de negócios ou em busca de
distração, ansiando por um “banho de civilização”. Essa prática se tornaria mais
freqüente à medida que os meios de transporte ficaram mais rápidos e a influêcia da
europeização penetrou mais profundamente na alta classe.
455
As portas das casas nunca se trancavam: os crimes contra a propriedade eram pouco
comuns numa sociedade ainda não totalmente permeada por valores capitalistas. Mais freqüentes
eram os crimes passionais, fundados em conceitos de honra pessoal ofendida e rivalidades de
família.
456
Normalmente quando o produto de algum roubo feito pelos escravos era um conjunto de
mercadorias (e não dinheiro), eles deveriam usá-las em seu próprio consumo (ou com pessoas
próximas), ou procuravam conseguir receptadores que o se preocupassem com a origem dos
objetos para vendê
-
los.
457
Procurando resolver o problema da venda dos furtos realizados pelos cativos, através da
lei nº223 de 22 de novembro de 1851, as autoridades proibiram a população da Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul de comprar de qualquer escravo objetos que se presumem furtados.
454
VELLASCO, Op. Cit. p. 174.
455
COSTA, Op. Cit. p. 243.
456
Idem, p. 244.
457
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano
.
Porto Alegre
1858
-
1888. Porto Alegre: E
ST Edições, 2003. p. 34.
153
Além da multa e pena de quatro a oito dias de prisão, os infratores eram obrigados a restituir o
objeto comprado.
458
Concordamos com Maria Helena Machado quando
ela
descreve sobre a existência de
pequeno número de processos criminais relativos aos atentados contra propriedade cometidos por
cativos, que residia na consideração do costume, arraigado entre senhores, de resolver,
amigavelmente, as pendências relativas aos prejuízos causados pelos furtos e roubos de
escravos.
459
Apenas uma diminuta parcela dessas ocorrências era transferida para a esfera
jurídica, e
menor ainda a qu
antidade que deveria chegar a apelaç
ão
em segunda instância.
Em Laguna, na Província de Santa Catarina, no ano de 1884, foram julgados os réus:
Joaquim
– escravo de Antonio Pereira da Silva Candomil, Antonio ex-escravo de Manoel Pinto
da Rosa e Silva, e João Antonio de Almeida vulgo João pipoca, por terem cometido furto
conforme denúncia:
(...) Na noite de vinte e sete de agosto do corrente anno, os dous primeiros denunciados
Joaquim e Antonio arrombarão a casa de negocio de Manoel da Costa Santos à rua da
Praia d’esta cidade da qual subtrahirão diversos gêneros de negocio e quantia incerta em
dinheiro; (...)
460
Também em Laguna no ano de 1889, foram presos Crescencio e Antonio, escravos de
Manoel Monteiro Cabral, acusados de arrombamento e furto. Du
rante o processo surgem dúvidas
se realmente os dois escravos haviam cometido o crime. Antonio foi absolvido, e Crescencio
condenado a um
mês
de prisão. Na apelação ao Tribunal da Relação de Porto Alegre o senhor do
réu conseguiu comutar a pena para 85 aço
ites.
461
Nesse caso podemos verificar que se realmente
o crime ocorreu, o senhor estava muito interessado em manter sua propriedade e não ter muitos
custos,
e com ajuda do curador consegu
iu
absolver um dos réus, e comutar a pena do outro, que
ao invés de fi
car preso levaria os açoites e voltaria para sua propriedade.
na Província do Rio Grande do Sul, na cidade de São Jerônimo, o escravo de dona
Justina Antonia de Souza
, chamado Bento, foi acusado pelo crime de roubo de gado pelo lavrador
Manoel Dias da Silva, residente no quarto distrito de São Jerônimo, que dizia que tempos
458
BARBOSA, Op. Cit. p.106.
459
M
ACHADO, Op. Cit.
p.44.
460
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Laguna, maço 08, processo 111.fls 03.
461
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Laguna, maço 42, processo 579. fls 5v.
154
sumiam animais de seu campo. Quando da acusação, Manoel, sem provas não poderia acusar
nenhuma pessoa, porém alegava que alguns de seus vizinhos indicavam que seria Bento o autor
dos furtos. Manoel dizia que “parecia-lhe impossível que um escravo tivesse tal arrojo e
audacioso proceder”, pois também dizia confiar
nele
. Até certo dia de abril do mesmo ano,
quando estava a caminho da vila de São Jerônimo, Manoel reconheceu uma égua de propriedade
de sua filha, um dos animais que tinha desaparecido. Após alguns questionamentos acabou
descobrindo que Jerônimo Ferreira da Luz estava de posse do animal por compra feita do crioulo
Bento. Com estas provas resolveu, então, procurar a polícia e a justiça. O escravo Bento então
acabou preso e respondendo ao processo movido contra ele. Em seu primeiro julgamento, Bento
foi condenado a dois anos e um mês de prisão com trabalho e multa de doze por cento do valor
dos animais furtados, pena correspondente ao grau médio do art. 25 do Código Criminal. O réu
apela da sentença através de um curador e o processo segue para o Tribunal da Relação, que
acaba negando provimento à apelação e confirmando a sentença do Júri.
462
Na capital da Província do Rio Grande do Sul, cidade de Porto Alegre, no ano de 1884,
foi preso José Velho, de dezenove anos, solteiro, carroceiro, brasileiro, nascido na Província,
escravo de Marcos Antonio Costa que de acordo com a denúncia:
(...) o réu entrou no segundo andar do sobra
do após forçar algumas portas foi pressentido
pelo caixeiro da casa; fpoi perseguido e preso com os objetos roubados. O escravo não
negou o roubo e justificou o seu procedimento, (...) por se ver atrasado com seu senhor
Marcos de Tal, empregado no escritório da bilheteria das loterias, na quantia de 26$000
R$ porque o apoquentava com ameaças, provenientes de jornais, que por se achar doente
deixou de o fazer no devido tempo(...).
463
Podemos verificar a partir deste processo o desespero de um escravo de ganho que se
põem a cometer um crime para poder pagar sua dívida ao seu senhor, por algumas jornadas que
não pôde cumprir por estar doente. Somente o caixeiro que efetuou a prisão de Jose Velho,
desabonou a sua conduta. As outras testemunhas nada tinham contra o seu procedimento. O
curador do acusado alegou que a atitude
criminosa
tenha se dado “talvez por susto atenta a sua
menor idade coagido pelas ameaças de seu ex-senhor”. No julgamento ocorrido em junho de
1884, os jurados ficaram divididos quanto a intencionalidade de José Velho praticar o crime; seis
462
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, São Jerônimo,maço 174
-
A, processo 392.
463
APERS
Cartório Superior Tribunal de Justiça, Porto Alegre, maço 59, processo 1519.fls 7.
155
entenderam que sim e seis que o réu não havia cometido o roubo. Devido à divisão dos jurados,
o Juiz Ernesto Francisco de Lima Santos absolveu o réu, mas apelou da sentença proferida para o
Tribunal da Relação. Os jurados na segunda instância permaneceram divididos quanto a
culpabilidade do réu
, sendo novamente absolvido.
Crime contra a ordem pública
Nos crimes contra a ordem que e
nvolve
ram
cativos e libertos destaca
ra
m-
se
principalmente a embriaguez e
a
desordem. No Código Penal de 1830 não havia um tipo penal
intitulado “desordem” ou “embriaguez”, existia, com efeito
,
um artigo (
280), que previa a pena
de dez a quarenta dias de multa correspondente à metade do tempo para quem praticasse qualquer
açã
o, em lugar público, considerada como evidentemente “ofensiva da moral e dos bons
costumes”. o Código de Processo Criminal incluía entre as atribuições policiais (art. 58)
“obrigar a assinar o termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por hábito, prostitutas,
que perturbam o sossego público; e aos turbulentos, que por palavras ou ações ofendam os bons
costumes a tranqüilidade pública, e a paz das famílias”.
464
Boris Fausto descreve que a embriaguez aproxima-se da desordem na medida em que
reflete
uma preocupação com o comportamento das pessoas em público, mas é indicativa de
atitudes que combinam autodestruição e agressividade. Certas condutas passíveis abstratamente
de sanção se tornam puníveis quando se referem aos pobres; basta pensar na emb
riaguez,
contravenção aplicável apenas aos indivíduos pouco respeitáveis, pois os demais não são
bêbados, mas pessoas “tocadas” ou “um pouco altas”.
465
A vadiagem também era condenada. De acordo com Boris Fausto, a vadiagem representa
o receptáculo maior onde se enquadra o “viveiro natural da delinqüência”, na linguagem dos
relatórios policiais. Neste “viveiro”, de acordo com os relatórios policiais, poderiam ser
encontrados grandes e pequenos “malandros”, além de uma massa de desempregados e mendigos
que en
travam na categoria inclusiva de vadios.
466
Quando estes vadios se juntavam
aos
escravos e
464
CAMPOS, Op. Cit. p.165.
465
FAUSTO, Op.
Cit. p.30
.
466
FAUSTO, Op. Cit. p.4
6.
156
libertos que passavam pelas ruas, algumas confusões poderiam surgir. As voltas pelo centro da
cidade o escravo Sabino foi preso por destruição de patrimônio p
ú
blico, c
onforme denúncia:
O Promotor Publico da Comarca vem nos termos dos art. 74 pag 4 do Cod. Crim. E 2
pag 4 do Decreto 1090 de 1 de Setembro de 1860, denunciar perante V. S. o crioullo
Sabino escravo de José Joaquim da Roza, morador deste Termo, pelo facto criminoso
seguinte: No dia 21 do mez de Maio próximo passado, junto da carioca publica d’esta
Cidade, achava-se o crioullo Sabino escravo do referido José Joaquim da Roza, que
pretendendo
como fez – passar de encontro a um dos pilares do ódeo da c
arioca
publica, a fim de tomar a parte opposta ao tanque de lavar ; derrubou á pulso a maçaneta
que lhe servia de adorno, danificando assim uma obra da municipalidade franqueada do
uso publico. E o fez sob pretexto inconfessavel, visto como deixou de passar pela porta
que da communicação para por maldade forçar a passagem por um lugar, que só poderia
ser vencido com grande esforço e muita agilidade. Sendo, portanto, denunciável o facto
criminoso que vimos de referir, attento a disposição citada do Decreto 1090 de 1 de
Setembro de 1860, e previsto no art. 175 do Cod. Crim. Grao maximo, que se da a
circunstancia aggravante do art 16 pag 4 do mesmo Cod. , por isso se offerece a presente
denuncia (...)
467
Sabino danificou um dos pilares de uma carioca (fonte de água) no centro da cidade de
São José, próximo da capital da província de Santa Catarina. Ao ser preso em flagrante o cativo
conseguiu fugir da polícia e esconder-se. Quando encontrado, foi preso e condenado a prisão por
danos, conforme o relatório
do
juiz municipal:
(...) deve prevalecer a doutrina de que é crime publico o de dannificação de bens
municipais, e não simples crime particular de dannos, em que deva a municipalidade
como em tudo o mais comparecer perante o poder judicial em a sua acção e por seus
legítimos representantes; (...)
468
De acordo com o réu e com o depoimento das testemunhas, Sabino cometeu o ato
casualmente e não propositalmente. Essa foi a defesa que prevaleceu e o Tribunal da Relação de
Porto Alegre absolve
u
o réu.
469
Como
no caso de Sabino, muitos escravos fugiam quando cometiam ou eram suspeitos de
crimes. Outros fugiam dos maus tratos de seus senhores, ou buscando melhores condições de
vida.
As severas leis da escravatura tiveram de conviver com o perigo das revoltas e das
467
APESC
Cartório Superior Tribunal de Justiça, São José, 324, processo 292, fls
03.
468
Idem, fls.05.
469
Ibdem, fls.
115.
157
insurreições, reação natural de um sistema que era exercido num mundo em que o trabalho se
resumia à utilização da força do escravo que, por isso mesmo, era controlado com mãos de
ferro.
470
Segundo Karasch, a ação do Estado requerida pelos senhores para a proteção de sua
propriedade envolvia a formação de uma força policial com a missão de formar “patrulhas”, em
geral chefiadas
por um capitão
-do-
mato para trazer de volta escravos foragidos; após a apreensão,
o castigo ficava a cargo do senhor.
471
As fugas de escravos, como não pod
er
ia deixar de ser,
acarretavam desastrosas conseqüências econômicas e sociais para os senhores, pois
normalmente
eles eram sua única fonte de lucro. De acordo com Flávio dos Santos Gomes, as ações de fuga
estavam inseridas na experiência cotidiana dos escravos; os processos de fuga constituíam um
aspecto revelador dos mecanismos de resistência escrava, de
stacando
-se a constituição de
comunidades, identidades e culturas
,
tanto nas cidades como nas áreas rurais.
472
Muitos escravos das vilas do interior fugiam para as cidades em busca de liberdade. Esses
escravos fugidos, forros e homens livres negros eram tidos como desordeiros, indisciplinados e
potencialmente perigosos. Se os escravos do interior fugiam em direção a cidade, também os
escravos da cidade encontravam proteção na periferia da mesma, nos arrabaldes. Na periferia,
eles misturavam-se com os libertos e livres pobres, trabalhando em seus próprios ofícios ou em
subempregos, vivendo em constante sobressalto, inventando e reinventando estratégias para
burlar a vigilância policial. Alguns escravos também fugiam e acoutavam-se nos arredores da
cidade, mora
ndo em casebres, matos ou nas chácaras onde se empregavam.
473
No caso do Rio Grande do Sul muitos
escravos
fugi
ram para o outro lado da fronteira.
Segundo José Alípio Goulart, depois da Lei de 1831 os escravos fugidos do Brasil e entrados em
outro país poderiam retornar ao Império completamente livres.
474
De acordo com Helga Piccolo
muitos escravos do Rio Grande do Sul fugiram para o Estado Oriental, onde a escravatura fora
abolida em 1842, tendo como decisão tomada pelos próprios escravos ou por resultado de um
470
FONSECA, Op. Cit. p.98.
471
KARASCH. Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-
1850)
. São Paulo: Companhia das Letras,
200
0. p 414.
472
GOMES, Flávio dos Santos. Experiências atlânticas: ensaios e pesquisas sobre a escravidão e o pós
emancipação no Brasil
. Passo Fundo: UPF, 2003. p
.
44.
473
MOREIRA,
Op. Cit. p. 79.
474
GOULART, Op. Cit. p. 49.
158
aliciamento feito por “caudilhos” platinos que prometiam alforria em troca de serviços
prestados.
475
M
uitos escravos que fugiram e foram capturados ou escravos que comet
er
am crimes eram
abandonados nas prisões. Muitos dos senhores não se interessavam em reavê-los por diversos
motivos, como ônus de sua captura e carceragem, ônus de seus crimes. Era mais prático também
punir os fujões na esfera privada do que abrir processos e gerar despesas com os trâmites legais.
F
lávio dos Santos Gomes descreve que no
desfile das estratégias dos fugitivos, além de mudar de
nome, trocar de roupa e “esquecer” o nome do senhor, os escravos fugidos também tentavam
passar
-
se por livres e libertos. Para tentar resolver esse problema, em 1839 a Secretaria de Estado
dos Negócios da Justiça mandou publicar instruções a respeito dos procedimentos para com os
negros fugitivos. Após ser preso, o escravo deveria ser imediatamente interrogado a fim de se
identificar o verdadeiro proprietário. Também era necessário fazer a maior publicidade possível
sobre sua captura através de jornais ou de editais, revelando seus “sinais” e características.
476
O suicídio também era uma das fugas dos cativos. Segundo Goulart, foi o mais trágico
recurso de que se valeu o negro escravo para fugir aos rigores do regime que o oprimia, e em
muitos casos para eliminar com a própria vida o banzo saudade da pátria distante. Além de
constituir a abreviação dos sofrimentos físicos e morais que o atormentavam, muitas vezes o
escravo via no suicídio certa modalida
de de vingança contra seu senhor.
477
Podemos também concordar de certa forma com George Andrews, que descreve que
muitas vezes, em vez de fugir, os escravos estavam cada vez mais recorrendo à polícia,
confessando seus crimes e solicitando a oportunidade de ter seus casos ouvidos nos tribunais.
Para o autor, alguns aparentemente fizeram isso na esperança de ser
em
sentenciados à prisão ou a
galés, pois consideravam
a pena
preferível a trabalhar nas fazendas.
478
O porte de armas também era considerado crime contra a ordem pública. Boris Fausto
descreve que entre 1880 e 1889 os instrumentos cortantes representaram uma esmagadora
maioria de 75% contra 13% de armas de fogo, segundo os processos criminais que analisou. Ele
afirma que os instrumentos utilizados na prática do homicídio são indicativos dos padrões da
atividade cultural de determinada sociedade, assim como da maior ou menor “democratização”
475
PICCOLO, Helga I. L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul: reação ou afirmação? Porto Alegre:
Estudos Ibero
-
Americanos. PUCRS, XVI (1,2)
p
241
-
251, 1990. p. 243.
476
GOMES, Op.
Cit. p.57.
477
GOULART, Op.Cit. p. 72.
478
ANDREWS, Op. Cit. p. 67.
159
do porte de armas, sobretudo das armas de fogo.
479
Pistolas e garruchas constituíam uma garantia
de defesa, seja do ataque de animais no campo, do ataque de salteadores nas estradas, seja para
impor respeito e temor nas festas e ajuntamentos. Facas faziam parte dos acessórios básicos de
qualquer das profissões ou ocupações a que um homem se dedicasse, e suas infinitas funções as
tornavam objetos de necessidade imprescindível na época. A proibição do uso de armas pelos
escravos existia desde o início do século XVIII, no entanto, seu controle efetivo parece ter se
restringido às armas de fogo, e na medida da capacidade das autoridades de fazê-lo. Quanto às
armas brancas e outros instrumentos de trabalho com igual poder agressivo, era praticamente
impossível a restrição do seu uso pelas mesmas raz
õ
es das necessidades que elas cobriam.
480
Nos processos analisados a maioria das armas são as facas e instrumentos cortantes, que
eram de fácil acesso e também muito utilizadas pelos cativos em seu trabalho diário, o que
podemos verificar no gráfico (n
º
3):
479
Idem, p. 110.
480
VELLASCO, Op. Cit. p. 272.
0
5
10 15
20
Arma Fogo
Facas ou Instrumentos
Cortantes
Outros
Gráfico 3
-
Armas utilizadas nos crimes
d
os processos
que envolveram
negros como réus ou vítimas
apelados ao
Tribunal da Relação de
Porto Alegre (1874
-
1889)
160
A maioria dos processos analisados que chegaram ao Tribunal da Relação para serem
julgados em Segunda Instância nos quais os réus eram senhores, estes foram absolvidos ou
tiveram seus processos anulados. Como podemos imaginar a maioria dos processos nos quais os
réus eram cativos, estes acabavam
condenados
. Esses dados são apresentados no
gráfico (n
º
4):
Gráfico 4
-
Sentenças dos process
os
que envolveram negros como réus
ou
vítimas apelados ao Tribunal da Relação de Porto
A
legre
(1874
-
1889)
Condenados
Anulados
Absolvidos
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise dos processos criminais encontramos o espaço dos africanos e dos
afrodescendentes (vítimas, réus, e testemunhas) e sua relação com a justiça. Suas relações
condicionadas por interesses pela sobrevivência, onde os momentos de descontração e
cumplicidade estavam geralmente relacionados com tensões e conflitos, além de suas dívidas,
suas brigas, seus crimes. Verificamos aspectos do cotidiano de cativos e libertos, tendo que levar
em conta que, por mais interessantes que possam ser tais fontes, elas próprias possuem uma
história e, desta forma, não necessariamente são capazes por si sós, de contar a história
de cativos
e libertos de origem africana. Tais testemunhos parecem aqui e ali cifrados, muitas vezes
expressos em uma linguagem jurídica. Contudo, esses documentos lidos atentamente dão pistas
para investigar os acusados, as condições de sobrevivência
e,
especificamente, evidenciar como
reagiam em relação às forças repressoras. As falas dos crimes, por exemplo, revelam não o
momento da ação, mas relatam o dia
-a-
dia das relações entre diversos segmentos sociais.
Acreditamos que esta investigação possa contribuir para dar visibilidade às marcas da
presença africana no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Analisando a região sul, que
teve
sua ocupação tardia em relação às outras regiões do Brasil, verificamos que a utilização da mão
de obra escrava também esteve presente nas mais variadas atividades desde o início da ocupação
das duas províncias. Neste sentido definimos semelhanças e diferenças nas posturas judiciárias, e
de governo dos dois estados frente à escravidão.
Os processos criminais são fontes
importantes porque nos remetem às regras formalizadas
na época, nos informando sobre o conjunto de normas sociais,
da
justiça e
os
ideais de ordem que
estavam sendo elaborados e instituídos ao longo do século XIX. Além da possibilidade de trazer
destes documentos os padrões sócio-culturais daqueles que eram vistos como criminosos e seus
mecanismos de resistência e as formas de repressão representadas pela força policial e judiciária,
descritas em uma linguagem burocrática e de época
,
que muitas vezes tinham
o objetivo maior de
atingir os interesses das elites frente às autoridades. Neste sentido, verificamos por exemplo que
o Código Criminal de 1830, reformulado em 1841, e as posturas ligadas as províncias e as
municipalidades foram instrumentos utilizados com o objetivo de garantir a ordem e a
162
estabilidade pública. Como percebemos nas fontes analisadas entre os registros indiretos sobre a
vida de africanos e afrodescendentes, entremearam-se intenções fiscalizadoras ou repressivas
ligadas ao poder particular dos senhores, e ou ao poder público, onde suas atividades eram
vigiadas e ordenadas,
evita
ndo por exemplo ajuntamentos ou determinando o “toque de
recolher”.
Analisamos
a época da abolição da escravatura que vai
aparecer
, em um primeiro
momento,
como resultado da ação benemérita de proprietários de bom coração e imbuídos de um
espírito “civilizatório”
;
a liberdade surge não como uma dádiva, mas como sinal de novos
tempos.
481
Verificamos que a partir do século XIX o Estado passa a intrometer-se nas relações
entre
senhores e escravos através da legislação. Várias leis e decisões do governo passam a
regulamentar a escravidão, inclusive a correção dada pelos senhores aos seus cativos infratores. A
legislação que passa a regrar a escravidão e organizar a abolição promove diversas mudanças na
sociedade brasileira em fins do século XIX. Nas vilas e cidades o controle e a aplicação da lei e
da ordem ampli
aram
-se, passando a incluir as autoridades político-
administrativas
responsáveis
pela criação e imposição de normas de comportamento, formalizando-as e diluíndo-as em uma
organização burocrática.
As últimas décadas da escravidão foram anos de muitas conquistas para os negros. Muitos
deles souberam tirar proveito das possibilidades de ganhos econômicos no meio urbano, e
tiveram a experiência marcante de conseguir comprar sua liberdade através do trabalho árduo e
da ajuda de familiares e amigos. Além disso, o surgimento de um movimento abolicionista
aguerrido e o paternalismo calculado de um imperador carismático podem
ter sugerido aos negros
que dias melhores estavam por vir.
482
Não foram muitos os crimes envolvendo pessoas de cor se comparados com a quantidade
de processos encontrados. Acreditamos que muitos dos crimes não chegaram a polícia nem
a
Justiça, pois deveria ser muito comum os senhores de escravos ocultarem crimes, ou até mesmo,
que procurassem resolve-los em sua esfera de poder privado. Neste sentido, Ivan Andrade
Vellasco descreve que a clientela do sistema de justiça que se vai desenvolvendo durante o
Oito
centos, apresentava uma diversidade social muito mais ampla, abrindo um leque que
481
PEDRO, Op. Cit. p. 49.
482
CHALHOUB, Op. Cit. p.180.
163
incorporava as demandas das diferentes classes e grupos étnicos que compunham a rede social.
Descreve também, que as expectativas sociais em torno da justiça manifestavam-
se
em toda a
sociedade e, de modo acentuado, entre aqueles que não detinham poder pessoal ou posição para
fazer justiça por seus próprios meios. Por último, descreve que era exatamente no horizonte
da
visão dos homens e mulheres sem posses que o ritual da justiça parecia ganhar contornos mais
nítidos e carregados de significados.
483
Vários indícios
verificados
nos processos encontrados revelam a capacidade dos escravos
em conquistar espaços ou de ampliá
-
los segundo seus interesses. Mesmo os aspectos mais ocult
os
(pela ausência de discursos) podem ser apreendidos através das ações. Tantas vezes considerados
simples feixes de músculos, os escravos falam, freqüentemente através deles. Suas atitudes de
vida parecem indicar, em cada momento histórico, o que eles consideravam um direito, uma
possibilidade ou uma exorbitância inaceitável.
484
De acordo com Paulo Moreira, cativeiro e
liberdade não eram mundos tão estanques e absolutamente diferentes. Eles se interpenetravam e
conviviam com influências recíprocas, compostos
de experiências comuns, inúmeras mediações e
estágios intermediários.
485
Como verificamos, a violência também estava muito presente
nas
relações
desses cativos
e libertos com a sociedade da qual faziam parte
.
Concordando com Lara, não podemos atribuir
uma
noção geral de “violência” à pratica do castigo físico, pois significa desconsiderar a
historicidade dessa noção e ignorar que seu significado era produzido no interior e no decorrer de
relações sociais específicas e que, portanto, não pode ser atribuído de modo exterior,
preconcebido.
Conforme a autora, de certo modo, o discurso que enfatiza a violência acaba por
igualar
-
se ao que insiste na tecla da coisificação do escravo. Ao conceberem a resistência escrava
apenas quando ela rompe a relação de dominação, quando os escravos tentam deixar de ser
cativos, acabam ambos também por negar-lhes, enquanto cativos, sua condição de agentes
históricos. Neste sentido, transformam lógica e linearmente a própria escravidão num resultado
da ação empreendida pelos senhores, cristalizando o social como produto da vontade de apenas
alguns homens de natureza dominadora e violenta.
486
483
VELLASCO, Op. Cit. p. 35.
484
REIS
,
João José; SILVA, Eduardo.
Negociação e conflito
. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p.15.
485
MOREIRA, Op. Cit. p.12.
486
LARA, Op.
Cit. p.345.
164
Analisando o comportamento dos negros como réus e vítimas frente a justiça,
concordamos com
Chalhoub
, que é impossível imaginar escravos que não produzam valores
próprios, ou que pensem e ajam segundo significados que lhes são inteiramente impostos. Para o
autor
, a violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes de ação
autonômica”, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem tampouco em rebeldes
valorosos e indomáveis. De alguma forma eles se manifestaram em relação a sua condição, e
agiram de acordo com lógicas ou racionalidades próprias, e que seus movimentos estavam
vinculados a experiências e tradições particulares e originais, no sentido de que não o simples
reflexo ou espelho de representações de “outros” sociais.
487
Conforme Chalhoub a liberdade, por
exemplo, pode ter representado para os escravos, em primeiro lugar, a esperança de autonomia de
movimento e
de maior segurança na constituição das relações afetivas. Não a liberdade de ir e vir
de acordo com a oferta de empregos e o valor dos salários, porém, a possibilidade de escolher a
quem servir ou de escolher não servir a ninguém.
488
Verificamos através dos processos algumas manifestações de cativos e libertos contra o
sistema escravista, e como estabeleciam suas relações para poderem conquistar sua liberdade
e/ou, melhores condições de sobrevivência. Conforme Faria, o homem negro o queria a
escravidão. Dentro dela, entretanto, não se tornou um mero fantoche nas mãos de seus senhores.
Parte da premissa de que os escravos portavam lógicas individuais, coletivas e ativas de resposta
ao cativeiro, criando situações que permitiram compor uma identidade social à revelia dos
senhores.
489
Também verifica
mos
que a justiça se tornou uma instituição na qual os
cativos
conquistaram
alguns direitos,
mesmo sem poder tentar nada sem auxílio de homens livres por não
ter direitos civis e não poderem agir judicialmente buscaram curadores para defender seus
direitos perante os tribunais.
Conforme descreve Lara, o escravo era ao mesmo tempo visto como um inimigo
doméstico e público, porque estas duas instâncias tinham objetivos divergentes em relação ao
controle dos cativos, ainda que pudessem estar associadas em momentos e circunstâncias
específicas. Por outro lado, era ao mesmo tempo inimigo doméstico e blico porque as ações de
resistência escrava eram empreendidas nesses dois níveis: tanto podia, na relação direta com seu
487
CHALHOUB, Op.
Cit. p
.42.
488
Idem, p.80.
489
Ibdem, p. 292.
165
senhor, recusar-se ao trabalho, fugir ou conseguir sua alforria, quanto apelar para a instância
judicial ou pública para questionar o poder de seu senhor ou conseguir sua liberdade. Tanto num
caso quanto noutro, podia ainda aproveitar-se dos conflitos existentes entre os senhores,
mediados ou não pela instância pública, selecionando forças, estratégias e alianças possíveis ou
favoráveis à consecução de seus próprios objetivos.
490
Remexendo em muitos papéis encontramos diversos crimes. Crimes sem culpados, ou
c
ulpando inocentes, posturas descrevendo limites a africanos e afrodescendentes, excluindo
-
os da
sociedade; ofícios policiais e provinciais diferenciando e limitando seres humanos por sua cor.
Analisando processos criminais de diferentes cidades das duas províncias e, diferentes anos do
período entre 1874 e 1889, busca
mos
situá
-los na região Sul de um Brasil Imperial e escravista,
verificando
os limites do paternalismo para a estabilidade desta organização social e o papel na
manutenção da mão-
de
-obra, e os mecanismos de coerção e de controle social. Vislumbramos
neste sentido, as instituições públicas comprometidas com a manutenção das relações escravistas
(leia
-se os vínculos de subordinação dos afrodescendentes às elites européias), especialmente as
organi
zações policiais e judiciárias. Além de verificarmos as dimensões do cotidiano de cativos e
libertos, e seus esforços para resistir e negar sua condição servil e buscar alternativas de
sobrevivência.
490
L
ARA,
Op. Cit.
340.
166
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