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Verdade, em suas mais variadas roupagens. Ou, ainda, um contexto feito ruínas, em que,
não sendo mais possível pensar o resgate de uma ordem anterior, íntegra e imutável, vemos
tomar assento o exercício laborioso da tradução
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, a partir mesmo de seu elemento
constitutivo – a perda, deflagrando um movimento que desemboca na tradução da própria
perda: de si e do outro, num gesto extremo e necessário de abandono de pretensas
identidades. Gesto que potencializa o ato de criação – também de si e do outro. Ampliando
o espectro da tradução, recorremos a Wander Melo Miranda, para quem “traduzir é marcar
intervalos e passagens, ultrapassar fronteiras e alargar limites”
39
. Esta é a tarefa conferida
ao melancólico, como tentaremos demonstrar, ao longo de nossas reflexões.
Diferentemente da primeira parte, a segunda parte de nossa tese, denominada
“Viagens”, concentra uma investigação mais pontual acerca das letras brasileiras
contemporâneas, abrangendo dois capítulos inteiramente dedicados à leitura de duas obras
significativas – Barco a seco, de Rubens Figueiredo, e O falso mentiroso: memórias, de
Silviano Santiago, ambas publicadas neste princípio de milênio
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. Tais obras não foram
casualmente escolhidas. Nelas surpreendemos a existência de uma organicidade interna
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A noção de tradução, que procuraremos emoldurar, nos capítulos ainda por vir, será vista como “uma forma
privilegiada de leitura crítica”, nas palavras de Haroldo de Campos (CAMPOS. Da tradução como criação e
como crítica, p. 46). Leitura crítica profundamente comprometida com seu tempo – um presente que entrelaça
consciência da perda e desejo de restauração – e que, por isso mesmo, exibe, como prognostica Derrida,
reportando-se à imagem da “Torre de Babel”, “um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de
totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do
sistema e da arquitetônica” (DERRIDA. Torres de Babel, p. 11-12). Se ler criticamente um texto significa
traduzi-lo, percebemos, hoje, de forma mais aguda do que em qualquer outra época, essa prática da tradução,
em sentido lato, elevada à última potência, ou seja, culminando no exercício de traduzir o mecanismo mesmo
da tradução, aqui vista como uma “tarefa necessária e impossível”, que, ao contrário de ocultar seu caráter
irremediavelmente precário, reforça “sua necessidade como impossibilidade” (DERRIDA. Torres de Babel, p.
21).
Amplificando a idéia de tradução, percebe-se, no âmbito da produção literária recente, que os escritores atuais
seguem “traduzindo, por assim dizer, o passado de cultura em presente de criação” (CAMPOS. Panorama do
Finnegans Wake, p. 69), inscrevendo, nesse gesto tradutório, tipicamente melancólico, o vácuo instaurado
pelo luto do sentido. Para dar estofo a essa noção de tradução, buscaremos apoio no pensamento de Walter
Benjamin – de resto, fundamental para o enfoque pretendido.
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MIRANDA. Invenções de arquivo, máquinas de ficção, p. 68.
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O corpus inicialmente proposto abarcava ainda o livro Mínimos, múltiplos, comuns, de João Gilberto Noll,
obra não menos significativa. Porém, no curso do estudo dos textos de Noll, percebemos a predominância de
uma nota de melancolia que destoa dos rumos empreendidos aqui, voltados para a identificação de um
narrador que, no limite, efetua, por meio de sua leitura, a problematização dos procedimentos de
representação mimética, pondo em xeque o regime da referencialidade. Em Noll, apesar de podermos divisar
essa problematização, prevalece ainda um outro viés melancólico, mais ligado à questão de uma angústia
inerente à errância dos personagens, decorrente da dissolução de suas supostas identidades, que não raro
resvala numa certa visão de mundo pessimista. Esse tipo de viés melancólico, grosso modo, peculiar ao
universo ficcional do autor, não comparece nas respectivas obras de Figueiredo e Santiago, razão pela qual
decidimos abdicar do livro citado acima, no presente recorte.