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Fabíola Simão Padilha Trefzger
EXPEDIÇÕES, FICÇÕES:
SOB O SIGNO DA MELANCOLIA
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
2006
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Fabíola Simão Padilha Trefzger
EXPEDIÇÕES, FICÇÕES:
SOB O SIGNO DA MELANCOLIA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literios da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção dotulo de Doutor em Letras:
Estudos Literários.
Área de concentração: Literatura Brasileira
Linha de pesquisa: Poéticas da Modernidade
Orientadora: Profª Dra. Ruth Silviano Brandão
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
2006
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4
À Gabriela – que já nasceu inventora de
mundos possíveis.
Ao meu pai – ausência que trans-borda o
silêncio.
À minha mãe – doce palpitar de uma alegria
vinda de muito longe.
Ao Helder – sempre ao lado, em todas essas
horas. E em muitas outras também.
5
Meus agradecimentos:
Merci, merci,merci.
Estou empapelado!
Deixo, feliz, aqui,
o meu muito-obrigado
a ti.
(Carlos Drummond de Andrade)
Em especial, à Ruth Silviano Brano, que não só orientou com paciência,
carinho e cumplicidade – essa longa jornada, como também me ensinou rara lição:
letra e vida na frente do coração.
Ao Murilo Marcondes de Moura, por acreditar nos primeiros passos.
A Wander Melo Miranda e Georg Otte, pelas valiosas sugestões ofertadas durante o exame
de qualificação.
A Wilberth e Evando, que aceitaram embarcar com a gente nestas viagens.
Aos amigos – queridos – que tanto me ajudaram na aventura destas expedições:
Ana e Salsa,
Andréia,
Daise e Marquinhos,
Donária,
Paulo Sérgio,
Primo Kiko,
Seleny,
Tadeu,
Telma.
Ao Gustavo Bernardo, pela recepção acolhedora e iias partilhadas.
Aos colegas, professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ao FACITEC – Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia, da Prefeitura Municipal de
Viria (ES), pela bolsa concedida.
6
Le monde et le livre se renvoient éternellement et infiniment leurs
images reflétées. Ce pouvoir indéfini de miroitement, cette
multiplication scintillante et illimitée – qui est le labyrinthe de la
lumière et qui du reste n’est pas rien – sera alors tout ce que nous
trouverons, vertigineusement, ao fond de notre désir de comprendre.
(Maurice Blanchot)
Entre tantos corpos consumidos em sua exisncia atual, estão todas
as palavras eventuais, todas as palavras ainda por nascer que são
devoradas por essa linguagem saturnina.
(Michel Foucault)
7
RESUMO
A melancolia aporta no contexto contemporâneo em meio ao cenário de luto
decorrente da falência do sentido último e das certezas irrevogáveis, responsáveis pela
manutenção de um mundo regido por uma certa lógica de estabilidade ilusória. O vazio
aberto pela derrocada de uma perspectiva ontoteleológica franqueou a possibilidade de
reversão de antigos conceitos de caráter transcendental.
Na prosa brasileira contemporânea, verifica-se a expressão de uma sensibilidade
melancólica sintomaticamente afinada com as novas paragens que se descortinam nesse
horizonte antimetafísico, reordenando os eixos sobre os quais se apóiam controversas
questões, tais como origem, real, autoria, identidade, filiação, originalidade.
Incorporando, em sua artesania, o diálogo que o escritor atual entretém com o
passado, a literatura recente – sob o influxo da afecção melancólica, de natureza afirmativa
– desbrava caminhos que apontam uma profícua via de criação estética, marcadamente
irônica e auto-reflexiva.
É essa melancolia, à qual agregamos o suplemento afirmativo, que vamos encontrar
no decurso destas viagens, notadamente nos romances Barco a seco, de Rubens Figueiredo,
e O falso mentiroso: merias, de Silviano Santiago.
8
RÉSUMÉ
La mélancolie accoste dans le contexte contemporain au milieu de la scène de deuil
provenante de la faillite du sens unique et des certitudes irrévocables, responsables de
l’entretien d’un monde régi par une certaine logique de stabilité illusoire. Le vide ouvert
par la chute d’une perspective ontotéléologique a affranchi la possibilité de réversion d’
anciens concepts de caractère transcendantal.
Dans la prose brésilienne contemporaine, on vérifie l’expression d’une sensibilité
mélancolique symptomatiquement accordée avec ces nouveaux parages qui se dénudent sur
cet horizon antimétaphysique, en réordonnant les axes sur lesquels s’appuient des questions
controversées, telles que: origine, réel, nom d’auteur, identité, filiation, originalité.
En incorporant, dans son artisanie, le dialogue que l’écrivain actuel entretient avec
le passé, la littérature récente – sous l’influx de l’affection mélancolique, de nature
affirmative – défriche des chemins qui signalent une profitable voie de création esthétique,
foncrement ironique et auto-réfléchie.
C’est cette mélancolie, dont on agrège le supplément affirmatif, qu’on y trouve au
cours de ces voyages, notammnent dans les romans Barco a seco, de Rubens Figueiredo, et
O falso mentiroso: memórias, de Silviano Santiago.
9
ROTEIRO
EXÓRDIO: AVISO AOS NAVEGANTES....................................... ..........10
I PRIMEIRA PARTE: PREPARATIVOS................................................25
1 Melancolia e ceticismo nos limites da ficção........................................... 26
2 O escrivão e o parasita: uma questão de preferência................................65
2.1 A síndrome de Bartleby..................................................................65
2.2 O vampirismo do autor................................................................... 76
2.3 Os bosques possíveis da prosa brasileira contemporânea.............. 82
II SEGUNDA PARTE: VIAGENS............................................................101
3 Debruçando-se na borda de um barco a seco.........................................102
3.1 Entre marinhas e marolas: o cordão imaginário...........................102
3.2 Quem é esse que nada para se matar dentro da água?..................126
4 Numa rede de linhas que entrelaçam as memórias de um falso
mentiroso................................................................................................149
4.1 Em torno das negativas: o círculo da esterilidade........................149
4.2 Meu rosto, uma folha de papel em branco...................................156
EPÍLOGO: ACHO MELHOR NÃO CONCLUIR...................................199
ESTANTES PERCORRIDAS....................................................................204
10
EXÓRDIO: AVISO AOS NAVEGANTES
A certa altura de sua autobiografia sem fatos, o ajudante de guarda-livros Bernardo
Soares pondera:
Todo esforço, qualquer que seja o fim para que tenda, sofre, ao manifestar-se, os
desvios que a vida lhe impõe; torna-se outro esforço, serve outros fins, consuma
por vezes o mesmo contrário do que pretendera realizar. Só um baixo fim vale a
pena, porque só um baixo fim se pode inteiramente efectuar.
1
O fragmento acima serve como ponto de partida para o início de nossas expedições.
Antes de singrar mares incansáveis vezes navegados, uma necessária ressalva esclarece os
desvios operados aqui em relação aos caminhos inicialmente traçados, cuja destinação
sinalizava um itinerário um pouco diferente deste que ora se apresenta, ainda que, como se
verá, dele o dista muito.
Nesse percurso previamente delineado, ambicionávamos investigar a presença de
uma “sensibilidade melancólica” que viceja no âmbito da literatura brasileira
contemporânea, desde pelo menos o final da década de sessenta e início da de setenta do
século XX
2
(período por muitos considerado como pós-modernidade). A afecção
vislumbrada, tal como a compreendemos, irrompe como um “sintoma” de uma época que
testemunha “a incredulidade em relação aos metarrelatos” e a conseqüente deslegitimação
desse dispositivo metanarrativo
3
.
A derrocada de conceitos pretensamente universalizantes e hegemônicos, pautados
no cientificismo oitocentista, afiançou a emergência de um desconcertante, porém
estimulante, vazio. Esse vazio gerado pela perda dos referenciais que sustentavam a ilusão
de um mundo governado por verdades imperecíveis engendraria, por seu turno, um
sentimento ambíguo, em que o estado lutuoso conjugar-se-ia com o desejo de representação
desse vazio, circunscrevendo um binômio cuja súmula o termo alemão Trauerspiel traduz
(Trauer: luto; Spiel: jogo, representação). Ou seja, a tentativa de superação desse vazio não
implicaria a busca por um novo paradigma discursivo mais eficiente, um substituto capaz
1
PESSOA. Livro do desassossego, p. 163.
2
O que doravante denominaremos de contemporaneidade refere-se a esse recorte.
11
de renovar o afã ontoteleológico sob o qual repousam as aspirações de cunho dogmático.
Superar o vazio aberto pelo desmoronamento da crença na eficácia de uma vio metafísica
do mundo implicaria, contrariamente, o confronto com um cenário de ruínas e escombros.
Face a esse cenário, a restauração da antiga forma não mais seria motivada pelo apelo de
reconstituição do modelo original, objetivando recuperar o elo que o cinge à cadeia dos
acontecimentos vistos historicamente segundo a ótica da causalidade e da linearidade
cronológica. Mas seria imbuída de um olhar comprometido com a reconstrução de um
mundo originariamente fragmentado, que, contemplado pelo melancólico, só pode se
revelar como incompleto e inacabado, perpetuamente in progress.
Tal procedimento de reconstrução reivindica, por sua vez, o redimensionamento das
prerrogativas que orientam a concepção de história como um continuum, equacionadas pela
perspectiva historicista.
Em suas “Teses sobre o conceito de história”
4
, Walter Benjamin se insurge contra o
Historicismo, cuja pretensão reside na assimilação do passado “como ele de fato foi
5
. A
aproximação entre passado e presente, nesse caso, baseia-se no método da “empatia”,
fundado sobre um eixo fusional que subsume as difereas temporais, ignorando a distância
histórica que lhes é intrínseca. Essa manobra ocorreria pela intermediação da iia de
eterno humano”, espécie de estratégia que facultaria ao historiador, conforme supunha,
projetar-se no passado, adotando a perspectiva desse tempo pretérito para capturar de modo
mais preciso seus aspectos idiossincráticos. Como esclarece Georg Otte, esta fusão “parte
do pressuposto de uma identidade humana atemporal, que permitiria ao historiador
deslocar-se livremente de uma época para outra, como se ele e seus conceitos fossem
isentos de qualquer condicionamento histórico
6
. É contra essa aderência inconcussa do
historiador, que acreditava poder desembaraçar-se de suas próprias marcas históricas para
abraçar o passado “como ele de fato foi”, que se opõe então Benjamin
7
.
3
LYOTARD. A condição pós-moderna, p. xvi.
4
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 222-232.
5
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 224.
6
OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, f. 30.
7
Georg Otte detecta, todavia, uma certa imprecisão de Benjamin nas críticas contundentes que o filósofo
lança contra o Historicismo. Otte assinala queas críticas que Benjamin faz aos representantes do
Historicismo e seu conceito são vagas [...]. Além de o Historicismo não ser uma corrente homonea, o que
torna as referências a ele bastante vagas, há até várias afinidades entre o Historicismo e as idéias de Benjamin,
como p. ex. a crítica a um conceito teleológico da história como ele é representado por Hegel. [...]
Curiosamente, onexo causal’ que Benjamin critica no Historicismo [Andice 1 das Teses] é um dos
12
A crítica à idéia de um continuum histórico constitui o epicentro de suas Teses. Esta
continuidade reveste-se de um caráter negativo na medida em que abarca em seu bojo um
feixe de fatos isolados que, de acordo com Otte, não registraria “nenhuma continuidade no
sentido da permanência de algo concreto que resistiria às mudanças ou de algum princípio
que as perpassaria”
8
. Fundado no conceito de tempo “homogêneo e vazio”, o Historicismo
é incapaz de concentrar as “marcas do tempo”, uma vez que se limita a compreender a
história como “um revezamento de acontecimentos isolados, onde o velho é substituído
pelo novo, onde não há um solo comum à história que conservasse os vestígios de
acontecimentos nele gravados”
9
. A ruptura desta continuidade consiste, portanto, na
suspensão desse círculo vicioso de mudanças, de modo a “criar pelo menos a possibilidade
para a constituição de algo positivo”
10
.
É tarefa atribuída ao melancólico a liberação do passado dessa imposição totalizante
e redutora, em que a apreensão do particular é preterida em nome da monumentalidade do
universal. Para o homem melancólico, o mundo, dominado pelo signo da morte, reclama o
gesto de restauração das ruínas, gesto que permite resgatá-las de sua inércia, desbravando,
com isso, sendas capazes de descortinar uma região favorável para que “a constituição de
algo positivo” possa germinar.
Essa perspectiva estabelece o ponto de partida para o que propomos chamar aqui de
“melancolia afirmativa”. A noção de “melancolia afirmativa”, por nós defendida, filia-se a
esse impulso restaurador, que abre um campo infinito de possibilidades de se repensar a
nossa própria condição histórica, em termos não deterministas. Não pretendemos, com esse
sinal adjacente, que suplementa o termo melancolia, aderir a um regime de oposições que
conferiria à afecção um “valor de verdade”, atribuindo-lhe uma qualidade essencial. A
afirmatividade anexada constitui um expediente diferencial, que faz a melancolia
distanciar-se da pecha de pessimista, depressiva, mórbida – designações comumente
recrutadas para recortarem um certo estereótipo da afecção. Tampouco aspiramos à
elementos básicos da historiografia marxista, que procura ‘relações de causa e efeito’ dentro da história. A
crítica ao Historicismo parece antes ser uma tentativa benjaminiana de projetar um adversário teórico, cujo
defeito consistiria na falta de ‘armação teórica’, num procedimento ‘aditivo’ [Tese 17ª] que se contenta com
uma continuidade linear da história” (OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de
Walter Benjamin, f. 32-33).
8
OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, f. 33.
9
OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, f. 34.
10
OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, f. 34.
13
instauração de um conceito que circunscreveria o que denominamos de “melancolia
afirmativa”. A emergência da afecção, neste caso, traduz um “efeito da falta”, desdobrado
na escrita, não constituindo um dispositivo categorial externo e preexistente, tanto ao ato de
ler como ao de escrever. A melancolia afirmativa reflete, como veremos, um modo de se
fazer literatura, hoje, como um exercício performático que põe em cena um certo horizonte
de leitura.
A história que cabe ao melancólico registrar busca apreender o passado “como
imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”
11
. Em cada
recorte que elege, o melancólico manipula o fragmento sabendo-o perecível, ciente da
substância fugaz de que é feito, pois a história
12
a ser escrita, acrescenta Jeanne Marie
Gagnebin, “só pode ser verdadeira narração e verdadeiro advir se nossos atos e nossas
palavras forem penetrados pela finitude e pelo deperecimento, portanto preciosamente
únicos, insubstituíveis, atuais, sem o consolo da imortalidade
13
.
Esse modo de concepção histórica nos ajuda a compreender, sem o peso de uma
ameaça apocaptica, oriunda de uma tendência niilista
14
de cunho negativo, a época “pós-
moderna”. A menção a essa etiqueta controversa se apóia em Gianni Vattimo, que procura
pensar um tempo – o nosso – regido pela caducidade de uma lógica sedimentada na noção
de progresso e dominada pela idéia de superação. Nesse sentido, não seria lícito conceber o
prefixo pós” como um indicativo de um esgio mais avançado do que se designou chamar
de modernidade. A adoção dessa perspectiva fatalmente conduziria à continuidade daquilo
mesmo que o prefixo rejeita, eo uma ruptura epistemológica com os “fundamentos” da
modernidade: “A pura e simples consciência – ou pretensão – de representar uma novidade
na história, uma figura nova e diferente na fenomenologia do espírito, colocaria de fato o
s-moderno na linha da modernidade, em que domina a categoria de novidade e de
11
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 224.
12
A referência à “história” consente na não oposição dos núcleos compreendidos na homomia: hisria
como processo real, história como disciplina e história como narração (Cf. GAGNEBIN. História e narração
em Walter Benjamin, p. 2). Conforme observa Gagnebin, “literatura e hisria andam juntas sem que isso
signifique, necessariamente, um relativismo resignado da ‘ciência histórica’ ou um realismo militante da
literatura” (GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 2-3), visão partilhada por Walter
Benjamin, de que é exemplo sua filosofia da história e sua teoria da literatura (GAGNEBIN. História e
narração em Walter Benjamin, p. 3).
13
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 94.
14
A referência ao niilismo, neste caso, reporta-se ao seu sentido lato, doxal, de aniquilamento total da vontade
humana, excluindo, evidentemente, a perspectiva niilista tal como depreendida no âmbito do pensamento de
Nietzsche.
14
superação
15
. Com efeito, a engrenagem que faz girar o motor do novo é interrompida. A
marcha progressista suspende o passo. Como argumenta Vattimo, “os des-moderno
indica uma despedida da modernidade” motivada pelo desejo de “fugir das suas lógicas de
desenvolvimento, ou seja, sobretudo da idéia de ‘superação’ crítica em direção a uma nova
fundação
16
.
Ao invés de propor um novo paradigma que pudesse coimatar os espaços vazios
deixados pela modernidade, o pós-moderno instaura um estado de luto permanente pela
fancia dos ltiplos dogmas que revestiam a falsa idéia de totalidade acalentada pela
modernidade. Ao mesmo tempo, esse estado lutuoso é o que paradoxalmente propicia a
abertura para modos mais democráticos de se pensar a história e de, enfim, enfrentarmos
nossa finitude constituinte, “sem o consolo da imortalidade”:
Se a linguagem só torna presente quando diz, justamente, o objeto ausente e a
distância que dele nos separa, podemos, sem dúvida, sonhar com palavras
transparentes e imediatas, com uma prosa “liberada” como a chama Benjamin,
mas só continuamos falando e inventando outras frases porque essas palavras
“verdadeiras”, que nos atormentam, se nos esquivam. Nossa história também nos
escapa e nos desenraíza, mas é somente graças a essa fuga que podem cessar a
insistente repencia do previsível e a sedução triste do totalitarismo, e que algo
outro pode advir. Esse movimento de evasão e de dispero (Zerstreuung),
Benjamin o pensa [...] simultaneamente como o rastro de uma perda infinita e o
turbilhão de um possível nascimento.
17
A pertinência de uma afirmatividade agregada à melancolia encontra suporte na
forma peculiar de se lidar com a perda e com o vazio – tornando-os presentes, dando-lhes
voz, em lugar de simplesmente tentar sobrepujá-los, substituindo-os por objetos
encarregados de perpetuar a cadeia das significações perenes.
Guardadas as devidas diferenças, a abertura franqueada por essa afirmatividade
melancólica, patente na contemporaneidade, também foi vislumbrada, em registro diverso,
por Vattimo. Em seu livro O fim da modernidade, o filósofo italiano reflete sobre essa
reviravolta identificada na pós-modernidade, afirmando enxergar aí “uma possibilidade
diferente para o homem”, entrevista a partir dos pressupostos de Heidegger e Nietzsche, no
que concerne ao “ultrapassamento” (Verwindung) da metafísica. A crise da metasica
associa-se inextrincavelmente, como seu natural desdobramento, à crise do humanismo. A
15
VATTIMO. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, p. IX.
16
VATTIMO. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, p. VII.
17
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 95, grifos nossos.
15
culmincia do desenvolvimento tecnológico é o elo que une esses dois fundamentos
postos em xeque. Como pontifica Vattimo:
[...] a metafísica sempre concebeu o ser como Grund, como fundamento que
assegura a razão e de que a razão se assegura. Mas a cnica, em seu projeto de
concatenar tendencialmente todos os entes emnculos causais previsíveis e
domináveis, representa o desdobramentoximo da metafísica. [...] O fato de a
técnica se apresentar como uma ameaça para a metasica e para o humanismo é
apenas uma aparência, derivada de que, na essência da técnica, desvendam-se as
características próprias da metasica e do humanismo. Esse desvendamento-
desdobramento também é momento final, culminância e início da crise, para a
metafísica e para o humanismo.
18
O ultrapassamento da metafísica, segundo Vattimo, significa assim uma “chance
positiva” para uma época que, abdicando de prantear a morte de deus, propõe a experiência
do caráter estético e retórico, portanto construtivo, da verdade. Daí a referência aos dois
pensadores alemães – Heidegger e Nietzsche – que, cada qual a seu modo, se dedicaram a
pensar o humano, não mais em termos de uma essencialidade intrínseca e fundante:
O significado da referência teórica a esses autores [...] consiste na possibilidade
que eles proporcionam de passar de uma descrição puramente crítico-negativa da
condição pós-moderna, que foi típica da Kulturkritik do início do século e das
suas ramificações na cultura recente, a uma consideração desta como
possibilidade e chance positiva. [...] O acesso às chances positivas que, pela
própria essência do homem, se encontram nas condições de exisncia pós-
modernas só é possível se levados a sério os êxitos da “destruição da ontologia”
realizada por Heidegger e, antes dele, por Nietzsche.
19
A narrativa brasileira pós-moderna parece reencenar de forma alegórica esse duplo
movimento de desvendamento-desdobramento que abalou irremediavelmente o templo
metasico, ao abrigo do qual se alojava o homem na plenitude de sua “essência”.
Desvencilhando-se de seu caráter transcendente, o homem contemporâneo pode enfim
gozar da secularização que recobre a superfície do mundo, resultante do olhar imanente
com que retém as coisas que nele habitam. É nesse contexto que vemos assomar o caráter
ambivalente da melancolia, concentrando, de um lado, a subtração da transcendência,
descortinando um mundo povoado de escombros e governado pela presença da morte, e, de
18
VATTIMO. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, p. 29.
19
VATTIMO. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura s-moderna, p. XVII-XVIII, grifos
nossos.
16
outro, o impulso restaurador, motivado pelo desejo de reordenação dos fragmentos, não
vinculado, porém, à tentativa de recuperação de uma suposta forma original perdida.
A ambigüidade dilemática da melancolia consiste nessa tensão permanente entre a
perda do sentido e os inúmeros sentidos da perda, cuja “dinâmica vertiginosa” afasta-se da
idéia de um “sentido originário, único e seguro”. A multiplicação dos sentidos alia-se à
inexorabilidade desse impossível retorno a uma origem retida no passado. Conforme
explica Gagnebin: “a origem só se diz na sua perda, no movimento de afastamento de um
suposto e improvel início, numa torrente de imagens a cuja fonte não podemos voltar
20
.
Essa perspectiva, que congrega um duplo movimento – destruição e construção,
justifica nossa opção pelo “sintoma”, já que, como intervém Eric Santner, os sintomas
ocupam o lugar de alguma coisa que está , que insiste na nossa vida, apesar de nunca ter
chegado à completa consistência ontológica. Assim, os sintomas são, em certo sentido, os
arquivos virtuais dos vazios – ou, talvez melhor, defesas contra os vazios – que persistem
na experiência histórica”
21
.
A sensibilidade melancólica, correlacionada ao sintoma, afasta-se do campo
enrijecido dos conceitos, para ocupar o território inefável dos afetos. Como categoria de
natureza a-sistemática, a sensibilidade melancólica não se presta a formalizações
delimitadas, nem se deixa apreender como discurso institucionalizado. Ela irrompe no
contexto do Spätzeit – expressão que igualmente oferece resistência à articulação
conceitual, se por conceito devemos compreender um certo discurso de estatuto fixo e
estável, pautado na transparência de suas formulações, cuja estrutura porta o selo de uma
identidade reconhecível.
Walter Moser, participando do debate contemporâneo, no seu esforço de refletir
acerca da experiência latino-americana de uma “modernidade tardia”, discorre em seu texto
sobre opos do Spätzeit, termo que, aliás, dá título ao seu artigo. A manutenção da
expressão alemã denota a dificuldade de sua tradução, como reconhece o próprio autor:
Como traduzir Spätzeit? ‘época tardia’ não é corrente, ‘tempo da decadência’ é restritivo
20
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 41.
21
SANTNER apud ŽIŽEK. Bem-vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o onze de setembro e datas
relacionadas, p. 37-38, todos os grifos são do autor.
17
demais, ‘o tempo que chega tarde’ literal demais. Trabalhemos, pois, com o termo alemão
como a sigla de alguma coisa que resta precisar”
22
.
Ao deter-se sobre os possíveis “componentes semânticos” que atravessam a noção
de Spätzeit, Moser elege cinco ocorrências significativas: 1) a perda de energia: relaciona-
se à condição inexorável do “humano que chega tarde”
23
, reduzido a um “mundo
dimindo, esgotado”
24
, em que a energia criadora se escasseou; 2) a decadência: concerne
ao efeito destruidor, degradante, operado pelo tempo, sobre uma totalidade anterior que, no
presente, emerge sob a forma de detritos, só podendo ser recuperada, como prevê Walter
Benjamin em Origem do drama barroco alemão
25
, através de sua representação alegórica;
3) a saturação cultural: diz respeito ao volume excessivo de objetos culturais, que lotam o
cenário artístico contemporâneo, indicando que “o espaço cultural está saturado, e talvez
supersaturado de objetos, e de fragmentos de objetos que os ancestrais e os antecessores
legaram aos descendentes”
26
. Neste caso, a superabundância dessa heterogeneidade cultural
pode gerar, conforme Moser, dois tipos de reações antagônicas, que oscilam entre a
imobilidade face ao esgotamento, provocando, desse modo, uma “reação negativa”, que
percebe menos a plenitude que o excesso
27
, num contexto em que “o artista se
paralisado por esse excesso de objetos, por essa irrupção maciça do passado”
28
, e o
reconhecimento de uma nova dimensão criadora, legitimada justamente pela heraa
recebida, descortinando uma “reação positiva”, que “percebe menos o excesso que a
plenitude”
29
. Esse último tipo de reação coloca em evidência “o artista que não tem a
pretensão da criação ex nihilo, que não vive no etos do novo começo, [e que] poderá
perceber a plenitude que o envolve como uma fonte inesgotável
30
; 4) a secundariedade:
indica a prática da criação artística motivada pela “reação positiva
31
, acima citada,
derivando “um modo de produção cultural que trabalha a partir de um pré-construído
22
MOSER. Spätzeit, p. 33.
23
MOSER. Spätzeit, p. 34.
24
MOSER. Spätzeit, p. 36.
25
Cf. BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão.
26
MOSER. Spätzeit, p. 38.
27
MOSER. Spätzeit, p. 39.
28
MOSER. Spätzeit, p. 39.
29
MOSER. Spätzeit, p. 39.
30
MOSER. Spätzeit, p. 39.
31
Convém destacar que essas duas reações – tanto a positiva como a negativa, aqui muito brevemente
esboçadas – subsidiarão nossas reflexões acerca da melancolia na prosa brasileira contemporânea.
18
cultural, a partir de materiais previamente dados”
32
, passíveis de serem submetidos “a toda
espécie de transformações”
33
; e, 5) a posterioridade: refere-se à questão temporal que
abarca a própria noção de Spätzeit, compreendendo, segundo Moser, “uma determinação
relacional”, fundada no confronto passado/presente. Apesar de o Spätzeit evocar uma certa
“lógica evolutiva de natureza cíclica”
34
, resultante da perda de forças vitais, que lançaria no
horizonte do declínio o recomeço de mais um ciclo, condicionando, portanto, a alternância
apogeu e decadência, que se repetiria em todas as épocas e lugares, fora do âmbito de uma
especificidade histórica, o termo alemão autoriza, de acordo com a proposta de Moser, uma
outra ordem de sentido. Essa outra ordem alia-se a umcorpo a corpo textual,
comportando procedimentos derivados do exercício de leitura, tais como “desvio,
reescritura, transformão, apropriação, em relação a uma herança cultural forte e
incontorvel”
35
.
A perspectiva derivada das ponderações sobre o Spätzeit converge para os caminhos
que pretendemos seguir, na esteira da reflexão acerca da melancolia como sintoma atual de
uma sensibilidade que permeia uma certa parcela da escrita ficcional brasileira
contemporânea, profundamente comprometida em estabelecer um diálogo com o passado,
pondo em relevo a relação do escritor atual com a tradição.
O desenvolvimento dos caminhos contemplados seria, num primeiro momento,
guiado pelos pressupostos do filósofo Walter Benjamin, como, aliás, está posto no projeto
original.
No entanto, ao longo de nosso percurso (nossos esforços para tentarmos alcançar
um “baixo fim”), pesquisas e leituras adicionais descortinaram instigantes possibilidades de
(sem abrir mão do imprescindível pensamento benjaminiano) examinarmos o tema da
melancolia – tema nuclear para empreendermos uma leitura sincrônica de uma parte da
nossa produção literária recente – sob outros prismas que, acreditamos, robusteceram a
idéia inicial, contribuindo para enriquecer o embasamento teórico de nossa pesquisa,
ampliando consideravelmente as vias interpretativas que buscamos trilhar.
32
MOSER. Spätzeit, p. 41.
33
MOSER. Spätzeit, p. 41.
34
MOSER. Spätzeit, p. 44.
35
MOSER. Spätzeit, p. 47.
19
Nessas novas veredas, reconhecemos uma certa afinidade da idéia de melancolia por
nós defendida com o pensamento cético, afinidade de que se ocupa o primeiro capítulo do
trabalho. Cumpre ressaltar, entretanto, no que concerne à evocação do ceticismo, que não
constitui nosso objetivo perfazer um estudo minucioso desse tipo de vertente filofica,
resgatando o histórico de suas eminentes fundamentações teóricas, empreendimento cuja
envergadura demandaria minimamente o fôlego de uma tese. De modo a não nos
desviarmos de nosso propósito – investigar a presença de influxos melancólicos no circuito
da produção literária recente –, limitamo-nos a evidenciar apenas, na confluência
assinalada, um possível ponto de interseção capaz de legitimar o nexo entrevisto, que se
localizaria precisamente na faculdade de desarticular certezas estáveis, exercitada tanto pela
melancolia como pelo ceticismo, e que nos parece ser a tônica deste nosso tempo “pós-
moderno”.
Se de um lado experimentamos um permanente estado de luto, proveniente, como
foi dito, da perda do sentido último, por outro lado somos impelidos a acolher uma postura
mais flexível diante da realidade, menos sujeita à formulação de sentenças petrificantes e
unilaterais, que barrariam o fluxo contínuo do pensamento dubitativo.
A dúvida é inerente tanto aos espíritos melancólicos quanto aos céticos, que dela se
nutrem sem a pretensão de dissolver as indagações que os mobilizam. Como afirma o
personagem Gustavo Flávio, em E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu
charuto, de Rubem Fonseca: “[...] a dúvida incita, a certeza é repousante”
36
. O princípio da
suspeição da realidade figura, desse modo, como um dínamo responsável pelo ritmo
incessante desse pensamento que inquieta e açula, mas que busca também uma
aproximação com a ataraxia, um estado de tranqüilidade gerado pela salutar suspensão do
juízo (epoché).
Na medida em que a melancolia se emancipa de uma tendência depressiva,
inclinada à inação e à perda de interesse pelo mundo, aderindo, em contrapartida, a uma
postura de feição inica, portanto ostensivamente crítica e, sobretudo, autocrítica, uma vez
que encena o seu próprio drama (trauer), ela se aproxima do ceticismo. Nesse sentido, o
discurso ficcional seria aquele que, pondo a realidade sob suspeição, multiplicando os
36
FONSECA. E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, p. 36.
20
espectros de sua presença, nos devolveria a realidade mesma no limite de sua possibilidade
– precária, provisória, multiforme.
Um dos sintomas que percebemos agudamente disseminado na literatura brasileira
contemporânea (e mesmo na de outros países) consiste na encenação dessa postura crítica,
notadamente cética e melancólica, que não raro resvala no exercício auto-representativo. É
o que podemos ver, por exemplo, em obras de autores como Rubens Figueiredo e Silviano
Santiago, escritores convocados a integrar nosso festim melancólico, aos quais se junta a
participação também de textos de demais autores cuja afinidade com nosso assunto atestam.
Não é nosso intuito aqui fazer um mapeamento da produção ficcional brasileira
contemporânea, objetivando identificar as obras nas quais se reconhece a interferência de
uma disposição melancólica a orquestrar a composição narrativa. Não almejamos tampouco
circunscrever a melancolia dentro de uma determinada matriz conceitual coercitiva
(psicanálise, medicina, astrologia, filosofia etc.), que restringiria e limitaria a leitura das
narrativas por nós selecionadas, reduzindo-as a um estudo de casos.
Optamos, na contramão desses direcionamentos, de resto, incompatíveis com a
nossa proposta, por efetuar um estudo que busca evidenciar de que maneira a prosa
brasileira atual, na figura destes mencionados representantes – Rubens Figueiredo e
Silviano Santiago –, em consonância com uma tenncia anti-metafísica, predominante no
pensamento contemponeo, consti suas ficções sob os auspícios de um olhar
melancólico.
Este estudo bifurca-se em duas partes, contendo, cada uma delas, dois capítulos. A
composição bífida de nosso trabalho organiza-se assim da seguinte maneira: a primeira
parte, apelidada de Preparativos”, e composta pelos capítulos um e dois, destina-se à
exploração do tema da melancolia, associando-a com a prática da escrita/leitura, num
contexto que experencia o luto advindo da falência das grandes narrativas.
Dessa forma, o primeiro catulo debra-se sobre o agenciamento de algumas
noções de melancolia, constituindo um breve histórico da afecção, sua relação com a escrita
ficcional e, reiterando o que dissemos anteriormente, com o pensamento cético, bem como
busca examinar o modo como o escritor contemporâneo lida com o legado da tradição,
privilegiando-se – neste tópico cujo desenvolvimento performa o segundo capítulo – dois
casos emblemáticos da literatura universal: Borges e Calvino – “escritores fortes”, para
21
usarmos uma expressão de Harold Bloom, que enfrentam com bravura, por meio do
mecanismo da desleitura, o lume coriscante da herança cultural, sendo, pois, os destemidos
cavaleiros que nos abrem caminho nesta aventura pelos bosques da ficção brasileira
contemporânea.
Este segundo capítulo põe em relevo questões geradas pelo influxo melancólico
decorrente do impasse experimentado pelo escritor atual face a toda uma tradição literária
que o assombra. Lidar com esse impasse pode acarretar basicamente dois tipos de atitude.
De um lado, a decisão de suspensão definitiva da palavra, em que o escritor se vê engolfado
pela presença fantasmagórica do outro, aqui representado pela miríade de textos
consagrados a tolher o espírito neófito, configurando uma atitude simbolizada pela figura
de Bartleby, personagem de Melville, que encarna potencialmente o propósito incoercível
de desistência de toda e qualquer ação, culminando numa radicalidade que desemboca na
desistência da própria vida. De outro lado, a deliberação de uma espécie de reversão do
permanente confronto envolvendo presente e passado, resultando num procuo diálogo
estabelecido entre o escritor contemporâneo e seus insignes antecessores, diálogo
alicerçado na valorização da leitura, de que é tributário todo aquele que escreve.
O ato de ler, celebrado tanto por Borges como por Calvino, em suas obras,
desdobra-se no próprio fundamento que engendra a escrita, evidenciando-se o que
chamamos de “melancolia afirmativa”, aquela que nasce justamente de uma consciência
autocrítica, muitas vezes vazada de ironia, visando expor deliberadamente o gesto
vampiresco do escritor atual, que, ao mesmo tempo em que sobrevive do sangue alheio,
procura criar obras sem abrir mão de uma “irredutível individualidade”, imprimindo sua
marca inconfundível, fazendo sobressair, nesse processo de incorporação voraz, a diferença
de uma voz que não se deixa subsumir pelo outro, atestando, inversamente, afinidades que
se tangenciam.
Pensar a “melancolia afirmativa” não se limita, contudo, a discutir as relações
conflitantes entre o escritor atual e a tradição, que intervêm no “território demoníaco e
obscuro” da “angústia da influência”
37
. A afecção, tal como a propomos neste trabalho,
adornada afirmativamente, designa indubitáveis vínculos com o contexto histórico sobre o
qual se planta, um contexto feito de ruínas, posto que testemunha a falência do reinado da
37
Cf. BLOOM. A angústia da influência: uma teoria da poesia.
22
Verdade, em suas mais variadas roupagens. Ou, ainda, um contexto feito ruínas, em que,
não sendo mais possível pensar o resgate de uma ordem anterior, íntegra e imutável, vemos
tomar assento o exercício laborioso da tradução
38
, a partir mesmo de seu elemento
constitutivo – a perda, deflagrando um movimento que desemboca na tradução da própria
perda: de si e do outro, num gesto extremo e necessário de abandono de pretensas
identidades. Gesto que potencializa o ato de criação – também de si e do outro. Ampliando
o espectro da tradução, recorremos a Wander Melo Miranda, para quemtraduzir é marcar
intervalos e passagens, ultrapassar fronteiras e alargar limites”
39
. Esta é a tarefa conferida
ao melancólico, como tentaremos demonstrar, ao longo de nossas reflexões.
Diferentemente da primeira parte, a segunda parte de nossa tese, denominada
Viagens”, concentra uma investigação mais pontual acerca das letras brasileiras
contemporâneas, abrangendo dois capítulos inteiramente dedicados à leitura de duas obras
significativas – Barco a seco, de Rubens Figueiredo, e O falso mentiroso: memórias, de
Silviano Santiago, ambas publicadas neste princípio de minio
40
. Tais obraso foram
casualmente escolhidas. Nelas surpreendemos a existência de uma organicidade interna
38
A não de tradução, que procuraremos emoldurar, nos capítulos ainda por vir, será vista como “uma forma
privilegiada de leitura crítica”, nas palavras de Haroldo de Campos (CAMPOS. Da tradução como criação e
como crítica, p. 46). Leitura crítica profundamente comprometida com seu tempo – um presente que entrelaça
consciência da perda e desejo de restauração – e que, por isso mesmo, exibe, como prognostica Derrida,
reportando-se à imagem da “Torre de Babel”, “um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de
totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do
sistema e da arquitetônica (DERRIDA. Torres de Babel, p. 11-12). Se ler criticamente um texto significa
traduzi-lo, percebemos, hoje, de forma mais aguda do que em qualquer outra época, essa prática da tradução,
em sentido lato, elevada à última potência, ou seja, culminando no exercio de traduzir o mecanismo mesmo
da tradução, aqui vista como uma “tarefa necessária e impossível, que, ao contrário de ocultar seu caráter
irremediavelmente precário, reforça “sua necessidade como impossibilidade(DERRIDA. Torres de Babel, p.
21).
Amplificando a idéia de tradão, percebe-se, no âmbito da produção literária recente, que os escritores atuais
seguem “traduzindo, por assim dizer, o passado de cultura em presente de criação” (CAMPOS. Panorama do
Finnegans Wake, p. 69), inscrevendo, nesse gesto tradutório, tipicamente melancólico, o vácuo instaurado
pelo luto do sentido. Para dar estofo a essa noção de tradução, buscaremos apoio no pensamento de Walter
Benjamin – de resto, fundamental para o enfoque pretendido.
39
MIRANDA. Invenções de arquivo, máquinas de ficção, p. 68.
40
O corpus inicialmente proposto abarcava ainda o livro Mínimos, múltiplos, comuns, de João Gilberto Noll,
obra não menos significativa. Porém, no curso do estudo dos textos de Noll, percebemos a predominância de
uma nota de melancolia que destoa dos rumos empreendidos aqui, voltados para a identificação de um
narrador que, no limite, efetua, por meio de sua leitura, a problematização dos procedimentos de
representação mimética, pondo em xeque o regime da referencialidade. Em Noll, apesar de podermos divisar
essa problematização, prevalece ainda um outro viés melancólico, mais ligado à questão de uma angústia
inerente à errância dos personagens, decorrente da dissolução de suas supostas identidades, que não raro
resvala numa certa visão de mundo pessimista. Esse tipo de viés melancólico, grosso modo, peculiar ao
universo ficcional do autor, não comparece nas respectivas obras de Figueiredo e Santiago, razão pela qual
decidimos abdicar do livro citado acima, no presente recorte.
23
orientada pela presença marcante de um olhar melancólico que atravessa e estrutura, de
dois modos distintos, as narrativas em questão.
Em Barco a seco, deparamos com um narrador que experimenta o conflito
vivenciado pelo melancólico em seu ensejo inglório de modelar uma identidade para si,
construída a partir da tentativa de enlace fusional com o outro, encenando um movimento
agonístico que desemboca na impossibilidade de definir contornos nítidos – tanto de si
como do outro. O vazio detectado no eu não se pacifica nessa tentativa de assimilação, pois
esbarra justamente na alteridade irredutível representada pelo outro. Ao mesmo tempo, a
procura por traçar um perfil, ancorando uma imagem na qual o melancólico se reconheça,
denuncia seu esforço em edificar arbitrariamente algo como um eu, ainda que esse eu
retrate uma figura vaga, difusa, insuficiente. É esse o paradoxo enfrentado pelo
melancólico: a busca de superação do vazio de sentido só se realiza enquanto movimento
em direção aos possíveis sentidos do vazio. Um vazio desidealizado, sem ontologia.
Apenas promessa de não-vazio, que a demanda de sentidos inspira.
A narrativa de Silviano Santiago também se ergue sobre a mesma duplicidade
verificada acima, tensionando, sem síntese dialética possível, lacunas e significações. No
entanto, diferentemente de Barco a seco, em que o narrador se debate pela defesa de uma
Verdade localizada na origem, O falso mentiroso: memórias adota o vazio como condição
essencial para sua constituição assumidamente plural, protéica. Neste caso, o movimento de
desconstrução e construção, inerente à afecção melancólica, ensaia a dispersão do eu, por
meio da incorporação voraz de eus desdobráveis, afastando assim qualquer desejo de
retrocesso à origem, desinvestindo a verdade de sua pretensão idealizante.
Se Gaspar Dias, narrador de Figueiredo, ao empreender a tentativa de imprimir
feição ao eu, termina por confrontar-se com o não-eu – a imagem precária e inacabada que
o reflete –, Samuel, o pícaro personagem de Santiago, elege o não-eu como princípio e fim
de seu auto-retrato. Ambos, porém, se tangenciam no ponto exato em que a construção das
respectivas narrativas equivale à tradução de um certo modo de se conceber a literatura
contemporânea – como um eu que se vislumbra no ato de “saltar-por-sobre-si-mesmo”
41
,
refletindo(-se) numa miríade de textos que se entrecruzam. Como afirma Márcio
Seligmann-Silva: “O modelo do ‘eu’ como aquele que põe a si mesmo, a partir de si mesmo
24
– a partir do desdobramento do ‘eu’ num ‘não-eu’ –, corresponde ao modelo da tradução e
da literatura de um modo geral, como uma cadeia infinita de textos, leituras, traduções,
reescrituras e releituras”
42
. A narrativa de Figueiredo e a de Santiago emergem, pois, como
tradução alegórica de uma espécie de ficção eminentemente auto-reflexiva, que se
interroga, ao mesmo tempo em que se afirma, inscrevendo-se sob o nume tutelar da
melancolia.
Para subsidiar a análise dessas obras literárias, não nos furtamos a recorrer ao
pensamento benjaminiano, sobretudo às suas reflexões acerca de alegoria, barroco,
tradução, aura, narração e, claro, melancolia, que tanto inspiraram a idéia original desta
pesquisa. Tendo há muito abdicado de uma postura exclusivista quanto à escolha do
repertório teórico, cumpre esclarecer, porém, que a essas idéias agregam-se noções de
pensadores que aderem a uma tendência desconstrucionista, como é o caso, por exemplo,
de Blanchot, Derrida, Deleuze, Foucault e Barthes, além, evidentemente, de preciosas
contribuições que, de bom grado, cruzam os caminhos destas errâncias pela escrita
melancólica, conduzindo-nos a inlitas paragens .
41
NOVALIS. len, p. 152.
42
SELIGMANN-SILVA. O local da diferença, p. 187.
25
PREPARATIVOS
26
1 Melancolia e ceticismo nos limites da ficção
Somos incapazes de conhecimento certo ou de
ignorância absoluta. Flutuamos num meio de vasta
extensão, sempre derivando de maneira incerta,
soprados para cá e para lá; sempre que pensamos
que temos um ponto fixo a que nos segurar e
firmar, ele se move e nos deixa para trás; se o
seguimos, ele não se deixa agarrar, escapole, e foge
eternamente à nossa frente. Nada permanece parado
para nós. Esse é nosso estado natural e no entanto o
estado mais contrário a nossas inclinações.
Desejamos ardentemente encontrar um fundamento
firme, uma base definitiva, duradoura, em que
construir uma torre que se erga até o infinito, mas
todo o nosso alicerce desmorona.
(Pascal)
As primeiras linhas do romance Nove noites, de Bernardo Carvalho, soam como
uma advertência: “Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os
sentidos que o trouxeram a aqui
43
. O enunciado, endereçado a um possível remetente:
Isto é para quando você vier”
44
(nós, leitores?), pressupõe de imediato um limiar que, para
ser transposto, requer a suspensão de valores encarregados de demarcar a fronteira entre
verdade e mentira. Prevendo qualquer expectativa de crença nessas divisas, o autor da
sentença anuncia desde logo que “a verdade está perdida entre todas as contradições e os
disparates”
45
. A seqüência do discurso indica que se trata de uma espécie de testamento,
preparado por alguém convicto de que, num momento ulterior, será procurado para fornecer
respostas definitivas.
O parágrafo inaugural da obra de Bernardo sinaliza, neste século e milênio
igualmente inaugurais, a falência (e a falácia) dos discursos de inspiração positivista, que
creditavam uma visão apaziguante do mundo, cuja cartografia circunscrevia instâncias
virtualmente territorializadas e antagônicas, postas em confronto (como, por exemplo,
original/pia, real/fictício, autêntico/inautêntico etc.). A derrocada dessa vertente de
43
CARVALHO. Nove noites, p. 7.
44
CARVALHO. Nove noites, p. 7.
45
CARVALHO. Nove noites, p. 7.
27
pensamento dicotômico parece ser a tônica predominante dessa aurora histórica, o recém-
batizado século XXI, embora os sintomas, bastante evidentes, pudessem ser detectados
desde o final da década de sessenta e início da de setenta do século passado. Esse recorte
sincrônicoe em relevo a corrosão das Grandes Narrativas, que ancoravam os discursos
fundadores da Verdade. Com a derrisão das utopias modernas, catalisadas, no campo geral
das artes, pelas vanguardas do século XX, o desafio lançado às novas gerações reivindica
um modo de superação da orfandade. Como ocupar esse cenário habitado por escombros?
O dilema proposto por essa questão parece estar embutido na citada assertiva do
romance de Bernardo. A deposição dos referenciais que davam suporte à hierarquia dos
valores universais cede espaço a uma visão de mundo que adere à proliferação das
incertezas, ao invés de curvar-se à iluria busca por soluções estáveis.
E se as linhas que recortavam o perfil da antiga binomia, a que nos fornecia o real
por oposição ao fictício, foram borradas, o abismo que nos legou essa imagem desfigurada
não nos permite mensurar sua profundidade. É preciso de modo incessante redesenhar seu
traçado. Sem pretender com isso reconstituir sua antiga forma. Sem pretender sobretudo
fixar-lhe uma única forma. O movimento contínuo desse retraçar incansável constitui a não
menos penosa tarefa de interrogar acerca do real, ensaiando sempre uma aproximação, que
é a máxima realização da expectativa que se pode almejar. É esse empreendimento sisífico,
porquanto desde o princípio condenado ao malogro, ainda que absolutamente necessário,
que se encontra gestado exemplarmente na obra de Bernardo.
Com efeito, o romance nos conta a história de um narrador empenhado em
investigar o mistério acerca de Buell Quain, um etnólogo americano que, no ano de 1939,
após ter passado alguns meses vivendo entre os índios Krahô, no Xingú, comete suicídio. O
interesse pelo caso surge quando o narrador depara, quase sessenta e dois anos após o
ocorrido, com o fato noticiado num artigo de jornal. Motivado pelo desejo de saber as reais
circunstâncias da morte de Quain, o narrador se lança o desafio de colher todo tipo de pistas
que possam conduzi-lo à “verdade”: entrevistas, documentos, fotos, além de uma pesquisa
de campo que inclui uma breve estada entre os abogenes. À medida que a história avança,
aumenta a exigência de novos expedientes que, ao invés de favorecerem o descortino do
passado, reforçam seu caráter imperscrutável, preservando intacta a indagação sobre os
fatos sucedidos.
28
A própria estratégia de construção da trama converge nessa direção. O livro de
Bernardo perfila duas vozes que se alternam ao longo de toda a narrativa. Uma delas
compõe o testamento escrito por Manoel Perna, engenheiro e amigo de Quain. A outra
caracteriza o relato da busca obsessiva do narrador por indícios que o levem a esclarecer a
enigmática morte do etnólogo. O revezamento discursivo abala e relativiza a posição
unilateral e centralizadora ocupada pelo narrador em primeira pessoa, impedindo a fixação
de certezas irrevogáveis destinadas a iluminar os recônditos obscuros que a história
alimenta. E irremediavelmente conserva.
Se por um lado a subtração da (falsa) aparência de solidez de que se revestiam os
discursos lavrados em nome da verdade nos conduz a um estado de perda, nos
aproximando, portanto, de um certo sentimento melancólico a flagrar nosso abandono; por
outro, essa nova condição (pós-moderna?) nos permite a abertura para o múltiplo, para o
reconhecimento do que se modifica e se transmuta sem jamais deixar encastelar-se numa
forma perene, condenada à imobilidade.
Nesse contexto, as ruínas do passado se desdobram numa experiência ambivalente
que conjuga o luto, decorrente da ausência de um referente último, e o jogo, resultante da
multiplicação de sentidos de natureza efêmera e provisória. O termo alemão Trauerspiel,
posto em circulação desde o século XVII para designar tragédia
46
, condensa em sua
formação vocabular tanto o luto quanto o jogo. Afastado o horizonte da transcendência, que
abrigava conceitos de ressaibo essencialista, o jogo repõe em movimento a potência da
imaginação, em que o exercício interpretativo assume o espaço vacante da finada Verdade.
É o que podemos verificar ao final do romance de Bernardo, nas palavras que
rematam o testamento de Manoel Perna: “O que lhe conto é uma combinação do que ele me
contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar
ou escrever”
47
. Palavras que encontram ressoncia na voz do célebre personagem
Mandrake, figura recorrente em algumas obras de Rubem Fonseca. Em A grande arte, por
46
Na tradução que fez de Origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin, Sérgio Paulo Rouanet
explica, em sua “Nota do tradutor”, a dificuldade de verter para o português a palavra Trauerspiel, no sentido
preciso que a ela conferiu Benjamin, já que o filósofo efetua a distinção entre tragédia, tragédia barroca e
drama como categoria genérica. Neste caso, a solução encontrada por Rouanet, a de optar pela expreso
“drama barroco”, se apóia no “ponto de vista pragmático” do autor, que circunscreve o Trauerspiel
exclusivamente ao período barroco, “e é ao drama desse período, e de nenhum outro, que o livro é
consagrado” (BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 9).
47
CARVALHO. Nove noites, p. 134.
29
exemplo, buscando desvendar os misrios que cercam os crimes nos quais acaba se
envolvendo, o advogado, dublê de detetive, põe em xeque a veracidade dos fatos por ele
mesmo narrados, admitindo, para tanto, a ingerência de uma instância interpretativa em sua
narração:
Não tomei conhecimento dos fatos de maneira ordenada. [...] Os acontecimentos
foram sabidos e compreendidos mediante minha observação pessoal, direta, ou
então segundo o testemunho de alguns envolvidos. Às vezes interpretei episódios
e comportamentos – não fosse eu um advogado acostumado, profissionalmente,
ao exercio da hermenêutica.
48
Interpretar é pois “sujar as mãos” com o texto que se dá a ler. É “a inscrição do
traço continuamente reiterado no fluxo movente do devir escritural”
49
. Como afiança
Roberto Corrêa dos Santos:
A interpretação [...]o se encaminha nem para o descritivismo “neutro”, nem
para a paráfrase lamuriosa. [...] O que pretende, como uma de suas perveres, é
entrar no jogo da escritura, quebrando a passividade de uma leitura que tenda a
seguir, sem brincar e sem considerar a ação escritural, um fio unitário de estória
cujo desenlace se quer conhecer. A interpretação quer escrever sempre, diferente
cada vez que tocar um texto. Como quem toca rasga.
50
O exercício imaginativo configura uma realidade construída a partir de uma
perspectiva subjetiva, única via possível de acesso ao real. A eficácia da imaginação é
assinalada também por Montaigne, que inicia um dos capítulos de seus Ensaios, “A força
da imaginação”, com uma citação emprestada dos clérigos: “Uma imaginação fortemente
preocupada com um acontecimento pode provocá-lo”
51
. Afirmação que ricocheteia nas
palavras de Gustavo Bernardo: “[...] o conhecimento do possível deve preceder o
conhecimento do real, uma vez que o real se dá, ou se empresta, apenas enquanto
virtualidade e possibilidade”
52
.
O “conhecimento do possível” é uma prerrogativa da ficção, que, desse modo, nos
conduz a uma proximidade com o que nomeamos “real”. Verifica-se o dissimulado
48
FONSECA. A grande arte, p. 10.
49
TREFZGER. A cidade tomada e a ficção em dobras na obra de Rubem Fonseca, f. 102.
50
SANTOS. Para uma teoria da interpretação: semiologia, literatura e interdisciplinaridade, p. 20-21.
51
MONTAIGNE. A força da imaginação, p. 105.
52
BERNARDO. A fião cética, p. 88.
30
paradoxo que reside nessa asserção. O acesso ao real” só nos é dado pela sua negação
53
.
Reinventar ficcionalmente o real compreende reconhecê-lo a priori como insuficiente.
Lembrando ainda Fernando Pessoa: “a literatura, como toda arte, é uma confissão de que a
vida não basta”
54
. Se o processo de reinvenção do real obtém logro, somos arrebatados pela
contumácia desse real reelaborado pela ficção:
A ficção é o contrio da realidade, como sabemos; mas a ficção, como também
sabemos, procura nos explicar aquele real de que o cotidiano e a ciência não dão
conta. Quando consegue, sentimo-la “mais real do que o real” – ela nos passa
mais verdade (mais intensidade) do que a própria verdade. A ficção contradiz a
realidade, sim, mas por isso mesmo a ficção enriquece a realidade.
55
A ficção esculpe formas de existência configuradas pela linguagem,
desembaraçando-se do caráter pedagógico de ser explicativa, tampouco aspirando ser “pura
compreensão”, como pontua Blanchot: “[...] a fião não é compreendida, é vivida sobre as
palavras a partir das quais se realiza, e é mais real, para mim que a leio ou a escrevo, do que
muitos acontecimentos reais, pois se impregna de toda a realidade da linguagem e se
substitui à minha vida, à força de existir”
56
.
Se por um lado a ficção se origina do desejo permanente de construir mundos
possíveis, por outro a prodigalidade e o incansávellego com que ela se desdobra desde
tempos imemoriais assentam-se no fato de ter a morte como um elemento intrínseco, logo,
indispensável, que participa de sua substância e concorre para a manutenção de seu pleno
vigor. Blanchot considera o escritor como alguém que “recebe o seu poder de uma relação
antecipada com a morte”
57
, enfatizando o indestrinçável liame entre esta e a escrita:
Escrever para não morrer, confiar-se à sobrevivência das obras, aí está o que ligaria o
artista à sua tarefa”
58
.
A morte cinge, assim, dois fatores fundamentais que integram a natureza da ficção:
um deles, como vimos, diz respeito à negação de um “real” previamente dado; o outro
concerne à inescapável finitude que qualifica o humano. O homem narra porque é finito,
53
BERNARDO. A fião cética, p. 256.
54
PESSOA apud BERNARDO. A ficção cética, p. 90.
55
BERNARDO. A fião cética, p. 81.
56
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 326.
57
BLANCHOT. O espaço literário, p. 90.
58
BLANCHOT. O espaço literário, p. 90-91.
31
porque precisa contar sua história, passá-la adiante, assegurando sua existência mesmo
quando sua curta permanência for suspensa, impedindo-o de seguir narrando.
Privados de eternidade, estamos freqüentemente expostos à inexpugnável
experiência da perda. A tentativa de superação da finitude é franqueada pela ficção, que
sendo “mais real do que o real, salva do abismo o que já aconteceu, o que já morreu”
59
. Daí
ser a ficção, como postula Gustavo, “um dos ofícios necessários ao ser humano [...], que
percebemos, ao final, como um permanente processo de luto”
60
.
A ficção é o mecanismo pelo qual imaginamos poder vencer a morte, ensaiando
uma partida cuja vitória nos é dada a contrapelo de nossa impotência face à força suprema
de um implacável adversário.
O caso exemplar de Jaromir Hladik, personagem de Borges, confirma “o milagre
secreto” operado pela ficção, capaz de negacear a morte, dilatando o tempo que a
indesejada das gentes teima em abreviar. Condenado à morte, o escritor Hladik aguarda o
dia do fuzilamento, refletindo sobre Os inimigos, a tragédia inconclusa que tencionava
rematar. Solicita então a Deus o prazo de um ano para dar cabo de seu projeto: “Se de
algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como autor de Os
inimigos. Para levar a termo esse drama, que pode justificar-me e justificar-te, requeiro
mais um ano. Outorga-me esses dias, Tu de Quemo os séculos e o tempo”
61
. Os dias se
sucedem e, findo o prazo de espera, a execução ocorre sem que se tenha alterado um
minuto do tempo fixado para o cumprimento da sentença. Porém, o quádruplo disparo de
fuzil não o derruba antes de poder finalmente realizar a tarefa de pôr fim a seu drama. Tudo
se passa como se, em sua mente, houvesse de fato transcorrido um ano.
O tempo da ficção, rivalizando com o regido pela marcha incessante e progressiva
dos ponteiros do relógio, eleva-se generoso e condescendente. Contudo, o conto de Borges
nos mostra que, mais do que consagrar o vencedor, importa reconhecer a interdependência
instaurada entre ficção e morte, relação que deflagra um acirrado embate entre
competidores desiguais: “enfrenta-se a morte ficcionalmente, como se pudéssemos adiá-la
mais um pouco, como se pudéssemos protelá-la para adiante, como se pudéssemos negá-la
59
BERNARDO. A fião cética, p. 257.
60
BERNARDO. A fião cética, p. 256.
61
BORGES. O milagre secreto, p. 570.
32
por pelo menos um momento [...]
62
. E esse momento, sempre postergado, no breve espaço
de sua duração, converte-se em eternidade, quando um narrador se dispõe a contar suas mil
e uma histórias, tal como o faz a emblemática Šahrāzād ao rei Šahriyār, tal como acontece
com o condenado de Borges, a quem Deus sancionou o término da “obra suspensa no
parêntese da morte”
63
.
O permanente estado de luto, que abastece o impulso narrativo, se agudiza ao
contabilizarmos o sentimento de vazio decorrente da descrença generalizada que tomou
conta da paisagem contemporânea. Como argumentamos anteriormente, essa descrença
relaciona-se ao luto pelo sepultamento dos antigos dogmas que sustentavam a iia de uma
“verdade una e encouraçada”. Neste contexto, a experiência da perda afigura-se como uma
incontornável premissa destes nossos tempos. Uma certa melancolia parece pairar sobre
nossas cabeças, como um influxo saturnino a impregnar a atmosfera. No entanto, cumpre
reconhecer que essa aliança indissolúvel entre perda e melancolia não é prerrogativa da
época atual.
Se recuarmos no tempo, identificando um momento em que esse enlace foi
problematizado, vamos encontrar Constantino Africano, um dos mais notáveis
representantes medievos da Escola Médica de Salerno (a Civitas Hippocratica), que define
os melancólicos como aqueles “que perderam seus filhos e amigos mais queridos, ou algo
precioso que não puderam restaurar
64
. Antes dele, as reflexões sobre o tema da melancolia,
de que temos notícia, associavam a afecção a distúrbios corporais. A própria tradução do
termo aponta nessa direção: Melaina Chole significa, literalmente, bílis negra. A
superabundância dessa substância no corpo desencadearia alterações de ordem psíquica,
incidindo diretamente na formação do caráter do homem.
Esse double bind da melancolia, como doença do corpo e da alma, surge
ironicamente tematizado no conto “Um remédio para a melancolia, de Ray Bradbury. O
autor põe em cena, de forma bem-humorada, a dificuldade não de se identificar a
natureza da moléstia que acomete a personagem Camillia, como também a de se determinar
com precisão o antídoto para sua cura. Arrebatada por uma “misteriosa doença”, que a
62
BERNARDO. A fião cética, p. 257.
63
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura,sica e cinema, p. 49.
64
CONSTANTINO AFRICANO apud GINZBURG. Olhos turvos, mente errante: elementos melancólicos
em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo, f. 35.
33
deixa “muito pálida” e lhe provoca dores por todo o corpo, Camillia é submetida a
prescrições médicas que, ao fim e ao cabo, resultam inócuas, denunciando, de forma
caricatural, uma padronização generalizante na conduta científica ao recomendar, para
indistintas doenças, sempre o mesmo procedimento: sangue-sugas, pílulas etc.
A enferma, desfalecida, é então levada para a calçada de sua casa e exposta ao
público. Os passantes que porventura se sentissem tentados a dar algum palpite sobre o
estado de Camillia, sugerindo uma panacéia para o seu mal, poderiam fazê-lo mediante
uma pequena soma cobrada pelo irmão mais moço, que, assim, obtém lucro com o desejo
dos curiosos de dar opinião sobre a saúde alheia: “Mulheres, maridos e crianças não
querem saber o que os outros acham. Então pagam com prazer só para ter quem os ouça.
Pobrezinhos. Todos eles pensavam que só eles sabiam do remédio certo, e todos eles
sentem-se hoje felizes por haverem contribuído com seus conhecimentos médicos aqui em
nossa porta
65
. O diagnóstico certeiro é prontamente deferido por uma Cigana, que declara:
“É preciso um remédio para a melancolia”
66
, acrescentando sua receita extravagante:
Vocês têm em casa algum remédio de múmias trituradas? As melhores múmias são as
egípcias, árabes, líbias, todas elas muito usadas para distúrbios magnéticos. Procurem por
mim, a Cigana, lá em Flodden. Eu vendo bons remédios...”
67
.
Com indisfarçável ironia cáustica, Bradbury ridiculariza as inúmeras prescrições de
cura da melancolia, desde as preconizadas pela ciência até as que embasam a sabedoria
popular, trazendo à tona a iia da afecção como um mal que fustiga o corpo.
Tal idéia encontrou solo fértil na Antiidade e está no cerne da doutrina dos quatro
humores de Hipócrates. Em consonância com a medicina empírica de seus predecessores,
que encaravam os humores como causa ou sintomas de enfermidades, os escritos
hipocráticos identificam a melancolia como uma doença. A doutrina humoral de Hipócrates
centra-se nos quatro componentes materiais presentes no ser humano: a bílis negra
(melancolia), a bílis amarela, a fleuma e o sangue. Esses componentes, em perfeito
equilíbrio, responderiam pela saúde corporal, sendo a produção excessiva de um deles a
responsável pela sua debilidade. A concepção desse sistema não reúne contribuições
65
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 23.
66
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 21.
67
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 21.
34
herdadas dos pitagóricos, pioneiros na fixação das categorias tetrádicas, como também
equaciona a estreita relação entre corpo e mente, estabelecida por Empédocles.
No aforismo 23 do livro VI, de sua obra Aforismos, Hipócrates argumenta: “Se
tristeza (distimia) e medo duram muito, um tal estado é melancólico
68
. A disfunção
orgânica da bílis negra vincula-se inextrincavelmente às alterações de ordem psíquica,
evidenciando a dependência recíproca entre descontrole físico e perturbação emocional, o
elevado grau da produção desse humor desdobrando-se em doenças do corpo e da alma.
Destaca-se, aí, a dimensão maléfica da melancolia, bem como dos demais humores, em
condições de fartura no organismo.
No conto de Bradbury, a essa noção de melancolia, tratada de forma risível,
sobrepõe-se a noção de uma enfermidade cuja origem residiria num profundo sentimento de
falta. Essa falta desencadearia, por seu turno, um estado de espírito marcado pela
ambivalência, ocasionando oscilações entre euforia e disforia.
O temperamento inconstante gerado pela afecção constitui o fulcro de um
importante estudo atribuído a Aristóteles sobre o tema, o Problema XXX, I. O texto ostenta
no seu pórtico a seguinte indagação:
Por que todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à
ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e
alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem,
como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a
Hércules?
69
De imediato, notamos, embutida na pergunta, a afirmação que assinala um
indissolúvel liame entre genialidade e melancolia: os homens de exceção são melancólicos.
Esse liame, vale dizer, além de alcançar, séculos depois, enorme popularidade no
Romantismo, responde pelo mito, ainda hoje cultivado, do indivíduo cujo excepcional
talento muitas vezes é associado a uma não menos excepcional aparência “esquisita”,
amiúde introspectiva, sendo o sujeitoo raro avaliado como doido
70
.
68
Conforme PIGEAUD. Apresentação, p. 28-29 e 55.
69
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia, p. 81.
70
É inevitável recordar aqui a fotografia, mundialmente conhecida, de Albert Einstein, com os cabelos
revoltos e desgrenhados, os olhos bem arregalados e a língua ostensivamente estirada para fora, compondo
uma imagem que evoca claramente a súmula genialidade e loucura.
35
Em recente publicação, o escritor espanhol Enrique Vila-Matas recupera um
sintomático comentário de André Gide, em que este defende a aliança entre as doenças e as
“febris atividades criativas”: “Creio que as doenças [...] são chaves que nos permitem abrir
certas portas. Há um estado saudável que não nos permite compreender tudo
71
.
Comentário que guarda certas afinidades com a visão aristotélica acerca da melancolia.
Para Aristóteles, os efeitos orgânicos da afecção, além de determinarem a
excepcionalidade do indivíduo, definem ainda o caráter inconstante do melancólico. Na
tentativa de explicitar a dinâmica dessa labilidade, o filósofo trata de comparar a natureza
do vinho à da bílis negra. A ingestão da bebida provocaria manifestações de
comportamentos inconcebíveis quando em estado de lucidez. Os efeitos da ebriedade são
então análogos aos causados pela bílis negra. A loucura, a epilepsia, a erupção de úlceras
são “acidentes” cotejados ao desvario desencadeado pelas alterações derivadas do vinho
consumido em exagero: “O vinho, com efeito, tomado em abundância, parece deixar as
pessoas totalmente da maneira como descrevemos os melancólicos, e sua absorção produzir
um muito grande número de caráteres, por exemplo, os coléricos, os filantropos, os
apiedados, os audaciosos”
72
.
A aproximação entre vinho e melancolia serve de mote para imprimir contornos
especiais aos que nasceram sob o signo da bílis negra. Pois se de um lado os efeitos do
vinho, apesar de adulterarem o caráter do indivíduo, modelando-o à sua revelia (“Um sinal
é que o bebedor é incitado até a dar beijos em pessoas que ninguém, em estado de
sobriedade, trataria dessa maneira, seja em razão de sua aparência, seja em razão de sua
idade”
73
), são provisórios, por outro é notável verificar que, para Aristóteles, os homens
melancólicos oo por natureza, não podendo livrar-se dos efeitos permanentes da bílis
negra: “O vinho, portanto, cria a exceção no indivíduo não por muito tempo, mas por um
curto momento, enquanto que a natureza [da melancolia] produz esse efeito para sempre,
por todo tempo em que se vive”
74
.
A argumentação aristotélica atinge seu ponto nodal ao descrever o humor
atrabiliário como sendo uma mistura, de resto natural, do quente com o frio, estados,
71
GIDE apud VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 113.
72
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia, p. 83.
73
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia, p. 87.
74
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia, p. 87.
36
porém, mutuamente reversíveis. Aristóteles desse modo exemplifica: a água, normalmente
fria, torna-se quente, quando aquecida, podendo inclusive rivalizar com a própria chama se
submetida à ebulição, assim como a pedra e o ferro, igualmente frios, atingem graus
elevados de calor quando sujeitos ao fogo, superando às vezes o carvão incandescente. Da
mesma forma, a bílis negra, resultante desses dois componentes essenciais – o quente e o
frio –, provoca, quando um desses estados prevalece sobre o outro, reações paroxísticas:
A bílis negra é fria por natureza, e, não estando na superfície, quando ela se
encontra no estado que acaba de ser descrito [fria], se ela é em excesso no corpo,
ela produz apoplexias, torpores, atimias, ou terrores, mas se ela é muito quente,
ela está na origem dos estados de eutimia acompanhados de cantos, de acessos de
loucura, e de erupções de úlceras e outros males dessa espécie.
75
Aristóteles conclui que os melancólicos são indivíduos de natureza volúvel, que
transitam entre uma exuberante euforia e um total desinteresse pela vida. Daí serem
chamados de seres polimorfos, regidos pela inconstância. Essa instabilidade emocional
deriva da polarização que vai do muito quente ao muito frio, qualidades intrínsecas à bílis
negra. A “enfermidade da alma”, ligada a disfunções corporais, conjuga um diagnóstico e
uma etiologia, originando, como visto, uma alternância de estados psíquicos.
É a detecção desse traço dual inerente à melancolia que acaba “salvando” a
personagem de Bradbury. O derradeiro alívio, que restitui finalmente a plena saúde de
Camillia, coroando a mordacidade do autor, vem na figura de um lixeiro, de nome Bosco –
afinal, um santo remédio! O homem, de olhos muito azuis e dentes muito brancos, examina
a “paciente” e lhe revela os sintomas de sua doença: “temperaturas altas, frios repentinos,
coração disparado e depois muito lento, zangas fortes seguidas de calmas suaves,
embriaguez apesar de só beber água pura, tonteiras quando se sente tocada assim... [...]
devaneios, depressões, sonhos...”
76
. Sintomas que, semelhantes aos repertoriados por
Aristóteles, apontam a bipolaridade característica do estado melancólico.
Mas, diferentemente dos diversos tratamentos médicos aconselhados, o lixeiro
lança mão de uma estratégia que é apenas sugerida por Bradbury. Certo de que Camillia
padece devido à falta de algo, o personagem decide curá-la: é madrugada alta e ela está só
com o lixeiro, em sua cama, em plena rua, com a cumplicidade de uma lua cheia que banha
75
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia, p. 93.
76
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 25.
37
a cidade adormecida. Nesse cenário ilico, o “doce doutor” ministra o “Soberano
Remédio”, que livra Camillia definitivamente dos males da melancolia, concedendo-lhe
aquilo mesmo que lhe faltava: “A cura. E aqui está a cura...”
77
.
O desfecho ilustra, ainda que de modo sutil e sarcástico, o referido componente
agregado à melancolia: o sentimento da falta. É preciso superar a falta para tentar vencer a
força distímica que conduz ao arrefecimento do impulso vital. Urge, pois, preencher a
vacância que mitiga e assola a vontade de viver. A questão, contudo, é a de saber
exatamente o que falta questão que muito instigou Freud, como veremos.
É nesse ponto que se faz mister a reconvocação da idéia de melancolia desenvolvida
na Idade Média por Constantino, que, por sua vez, e bem antes de Freud, procurou situar
esse objeto faltante. Em relação aos estudos precedentes, o diferencial que reside nas suas
posições destaca o fato de o médico árabe adicionar à índole melancólica justamente o
elemento de perda, de resto imprescindível para a retomada do tema na contemporaneidade.
Relembrando o conceito que ele estabelece para os acometidos pela afecção: os
melancólicos são aquelesque perderam seus filhos e amigos mais queridos, ou algo
precioso que não puderam restaurar
78
.
As proposições constantinianas foram fecundas para os estudos pós-medievos, que
acoplaram à afecção a consciência do eu e, por extensão, a consciência da finitude e da
morte. Essa iia foi posteriormente validada por Freud, que igualmente conecta a condição
melancólica à experiência da perda, no clássico ensaio “Luto e melancolia”
79
, publicado em
1917. Nesse texto, Freud, partindo da detecção de um vazio que corrói de modo fulminante
o interesse pela vida, busca desvendar a identidade desse buraco que se aloca na alma do
melancólico.
A teoria de Freud sobre o tema começa a ser esboçada na correspondência mantida
com Wilhelm Fliess. Esse tangenciamento, que circunscreve perda e melancolia, surge num
texto denominado “Rascunho G, em que o melancólico é visto como indissociavelmente
ligado à anestesia sexual, ao luto pela perda da libido:
77
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 26.
78
CONSTANTINO AFRICANO apud GINZBURG. Olhos turvos, mente errante: elementos melancólicos
em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo, f. 35.
79
Cf. FREUD. Luto e melancolia.
38
[...] o afeto que corresponde à melancolia é o luto, ou seja, anseio por alguma
coisa perdida. A melancolia, portanto, vincula-se a uma perda, uma perda na vida
instintiva, e Freud estabelece um paralelo com a anorexia nervosa (neurose
alimentar): a perda de apetite como perda da libido. A melancolia, assim, pode
ser entendida como um luto pela perda da libido, e o efeito que produz é o de uma
inibão psíquica com empobrecimento pulsional e dor.
80
Nessa fase inicial de teorização, que vai de 1892 a 1899, Freud não fixa uma
rigorosa distinção entre melancolia e depressão, assim como, dada a “diversidade clínica da
melancolia”, não consegue situar esta última em um quadro definido
81
.
Apesar de o assunto comportar uma longa tradição, constrda com base em
conhecimentos polivalentes (medicina, astrologia, semiologia etc.), Freud ignora essa
longevidade profícua, realizando um estudo “imanente”, “sincrônico”, para usarmos as
palavras de Susana Kampff Lages
82
, preferindo adotar, para o registro das manifestações
psíquicas da melancolia, a perspectiva clínica psicanalítica.
No célebre texto freudiano, dedicado ao tema, emanam, da afecção melancólica:
[...] um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo
externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e
uma diminuição dos sentimentos de auto-estima [...].
83
Esses mesmos sintomas mentais são também encontrados no luto, à exceção de um
traço, ausente neste estado: a diminuição dos sentimentos de auto-estima, presente somente
no melancólico. Neste caso, o rebaixamento da auto-estima deflagra atitudes de auto-
recriminação e auto-envilecimento que, em seu extremo, levam o indivíduo a se autopunir.
Freud explica: “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de
qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser
expulso e punido”
84
.
Essa divergência detectada entre luto e melancolia, na perspectiva de Freud, decorre
dos respectivos processos pelos quais ambos os estados lidam com o elemento de perda. No
luto, identifica-se claramente o objeto amado que deixou de existir, desencadeando, a partir
80
PERES. Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica, p. 33.
81
PERES. Dúvida melancólica, dívida melancólica, vida melancólica, p. 35.
82
Cf. LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 58.
83
FREUD. Luto e melancolia, p. 89-90.
84
FREUD. Luto e melancolia, p. 91.
39
dessa constatação irrevogável, um mecanismo lento, porém gradual, de desligamento da
libido em relação a esse objeto, liberando-a para novos investimentos. No que concerne à
melancolia, a natureza da perda é de ordem mais ideal, já que o melancólico, apesar de
reconhecer a perda, não sabe exatamente o que foi perdido, conduzindo Freud à seguinte
conclusão: “[...] a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada
da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da
perda”
85
.
No cerne dessa distinção entre luto e melancolia, abriga-se a questão da
identificação narcísica. Enquanto no enlutado o sofrimento tem como causa a perda do
objeto amado, no melancólico a autodegradação reflete uma cisão no ego, em que uma
parte é arremetida contra a outra, desferindo-lhe duros golpes, tomando-a, assinala Freud,
como seu objeto. Recuperando uma das falas de Camillia, personagem do referido conto de
Bradbury, podemos surpreender aí o processo dessa cisão: “Desde que começou a
primavera, há umas três semanas atrás, eu me vejo como um fantasma no espelho. Chego a
ter medo de mim mesma”
86
. A personagem não se reconhece mais, perdendo o elo com a
imagem que, se antes lhe era, de alguma forma, familiar, agora tornou-se para ela uma total
estranha, originando uma outra imagem, desconhecida e inteiramente hostil.
De fato, Freud pôde verificar que as violentas auto-acusações do melancólico não se
aplicariam ao paciente, tout court, mas indiciariam recriminações endereçadas a outrem, “a
um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente
87
.
Isso ocorre porque a retirada da libido, depositada num objeto outrora eleito, que, por
algum motivo, gerou desapontamento, destruindo essa relação,o seguiu o curso
esperado, qual seja, o deslocamento para outro objeto, mas foi incorporado pelo próprio
ego, promovendo, dessa forma, uma “identificação do ego com o objeto abandonado”.
Nesse sentido, é curioso notar, retomando o conto de Bradbury, a sagacidade do lixeiro,
que, ao final da história, comunica à protagonista a causa obscura de seus males: “O nome
da doença é Camillia Wilkes”
88
. A personagem então se dá conta de que é a única
responsável pela sua própria moléstia, reconhecendo portanto o efeito devastador de seu
85
FREUD. Luto e melancolia, p. 91.
86
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 19.
87
FREUD. Luto e melancolia, p. 94.
88
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 26.
40
auto-envilecimento: “Que coisa estranha. [...] Então eu sou a minha própria doença? Como
me faço doente. É como estou agora”
89
.
Freud ressalta a ambivalência que move as relações amorosas com o objeto – amor
e ódio extremados – para refletir sobre as precondições da melancolia: “Se o amor pelo
objeto – um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio objeto o seja – se refugiar
na identificação narcisista, então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele
abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento
90
.
Em suma, a catexia objetal tanto pode empreender a regressão à etapa de identificação
quanto pode, devido à ambivalência, retornar à etapa de sadismo.
Este último caminho explicaria o “enigma da tendência ao suicídio”, resultante da
dominação absoluta do ego pelo objeto introjetado: “A análise da melancolia mostra agora
que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder tratar a si mesmo
como um objeto se for capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um
objeto, e que representa a reação original do ego para com objetos do mundo externo”
91
. É
o que vemos acontecer com Camillia, que a certa altura, cansada das investidas médicas
que lhe são aplicadas, solicita: “Chega. Por favor, deixem-me morrer em paz”
92
. De todo
modo, considerando os extremos de amor e ódio, flagrados na ambivalência, o objeto acaba
sempre subjugando o ego.
A dinâmica do processo melancólico pode ainda, em certos casos, culminar em
mania, que contrasta cabalmente com o estado depressivo. Em princípio, Freud esclarece
que os achaques de súbita euforia se devem à provável superação, pelo ego, da perda do
objeto, franqueando novas incures catexiais.
Mas essa via de reflexão é posta em dúvida, originando conjecturas que, longe de
desvendarem a questão, conferindo-lhe maior nitidez, preservam sua potência interrogativa.
A hipótese levantada por Freud parte da ambivalência inerente à relação do ego com o
objeto para supor a eclosão da mania após a suspensão do quadro de melancolia.
Retomando a inclinação às auto-recriminações surgidas em seguida a acontecimentos
fatais, Freud assinala três fatores desencadeadores da afecção: perda do objeto,
89
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 26.
90
FREUD. Luto e melancolia, p. 97.
91
FREUD. Luto e melancolia, p. 98.
92
BRADBURY. Um remédio para a melancolia, p. 20.
41
ambivalência e regressão da libido ao ego, dos quais somente o último figuraria como
elemento atuante no processo maníaco: “O acúmulo de catexia que, de início, fica
vinculado e, terminado o trabalho da melancolia, se torna livre, fazendo com que a mania
seja possível, deve ser ligado à regressão da libido ao narcisismo
93
.
O texto se encerra suspendendo momentaneamente a discussão acerca da mania,
cotejando a melancolia a uma “ferida aberta”, e sugerindo a busca de uma compreensão
mais satisfatória envolvendo a associação entre dor física e dor mental, que proporcione um
conhecimento mais fecundo sobre a afecção melancólica.
Marie-Claude Lambotte destaca que as contribuições de Freud para o entendimento
da melancolia inauguram uma relevante alteração no curso das perspectivas até então
exploradas. O fulcro da doença transfere-se da topografia física, passando a ser alojado na
esfera do território psíquico: “Ora, a novidade trazida por Freud é a de ter ousado deslocar a
origem da doença para o seio do domínio psíquico, mesmo que fosse ainda por uma questão
de método, e de ter colocado entre parênteses a preocupação de localização orgânica que
subentendia sempre os estudos precedentes”
94
. Porém, adverte a autora, essa transferência
não demonstra negligência em relação às implicações orgânicas “quanto à etiologia e à
evolução da doença”. Lambotte estima, no subsídio freudiano, que a queixa do paciente –
seu discurso – se revela como via de acesso à constituição da afecção, uma vez que “[...] se
tornou possível, com Freud, escutar o discurso ou o sintoma como a tradução, não mais,
neste caso, do desfalecimento orgânico ou das sensações cenestésicas, mas certamente dos
determinantes deste automatismo mental tão bem exumado por seus predecessores, isto é, o
inconsciente
95
.
Pensar o tema da melancolia hoje requer um redimensionamento das diversas
feições impressas na afecção ao longo de sua história. A que aqui pretendemos delinear
busca dar conta da relação entre melancolia e uma época privada de certezas. Mas busca
mostrar também de que modo essa melancolia, que pensamos ser peculiar em relação a
anteriores prefigurações, adquire uma profícua e inédita afirmatividade, revertendo o sinal
negativo que exaustivamente, em incontáveis épocas, lhe fora imputado. Esse cunho
93
FREUD. Luto e melancolia, p.103.
94
LAMBOTTE. O discurso melancólico: da fenomenologia à metapsicologia, p. 87.
95
LAMBOTTE. O discurso melancólico: da fenomenologia à metapsicologia, p. 87.
42
afirmativo aposto à melancolia filia-se à corrente de pensamento cético, que cultiva a
prática dubitativa em detrimento de proposições dogmáticas, pretensamente invulneráveis.
Se por um lado o enfraquecimento das crenças universais, resultando num
sentimento flagrante de perda, pode proporcionar uma certa desolação, conduzindo
fatalmente a um estado depressivo (uma das faces da moeda da melancolia), por outro lado
essa espécie de oco deixado pela ausência de certezas reconfortantes permite exercitar a
dúvida sem a inmoda exigência por respostas definitivas e peremptórias. Ou seja, ao
invés da rendição à imobilidade cavada por uma vertente de feição niilista, que enxergaria
na busca por respostas um esforço inútil, levando à paralisia do interesse pelo mundo, mais
rentável seria se a consciência de não poder tocar o núcleo da verdade impelisse o sujeito a
continuar no seu encalço, como se ela fosse uma miragem, acolhendo, contudo, sua
potência polimórfica e ilusória.
Sendo de natureza inverificável, os discursos sobre a verdade resultam na
eqüipolência de suas proposições. Ciente do caráter indecidível de que se revestem esses
discursos, o cético, recusando-se a tomar parte nos pronunciamentos dogmáticos acerca da
verdade, aproxima-se da ataraxia, conquistando um estado de quietude. Essa tranqüilidade
não se converte no abandono do que pode sempre ser contestado, mas revela a conscncia
de uma investigação que não se encerra e que, ininterruptamente, mantém seu curso. A
ataraxia “se localiza no horizonte do discurso, horizonte este que cumpre seu destino e se
desloca para longe, à proporção que o discurso se movimente”
96
.
A prosa brasileira recente ressuma de modo agudo a ambivalência do que
chamamos de melancolia afirmativa. A despeito do estado de luto que domina estes tempos
de descrença, prosseguimos numa investigação que não nos promete mais do que a
duplicação de nossas incertezas. Essa visão, que espelha um certo ceticismo, uma vez que
consagra avida, mobilizando o jogo pela busca do sentido, parece ser o tema central de
inúmeras narrativas. Em Barco a seco, por exemplo, romance de Rubens Figueiredo, que
será posteriormente analisado, o narrador comenta: “Tudo é mentira, qualquer coisa é
verdade: só resta deixar cair nesse vazio. O pior é que isso também seduz. Inspira uma
96
BERNARDO. A fião cética, p. 245.
43
folga, um caminho desimpedido. Como negar que também há nisso um consolo, um prazer
para ser saboreado?
97
.
Poder-se-ia pensar esse aparente quadro de indiferenciação, que colapsa as
instâncias em pauta – mentira e verdade –, como uma massa amorfa, cuja ausência de
qualidades distintivas desencorajaria um olhar desejoso de buscar divisá-las em suas
supostas particularidades, originando, com isso, uma postura equivocadamente rotulada de
relativista”. A ausência de contornos que encapsulavam essas instâncias conduz com
freqüência à falsa associação entre multiplicidade e relativismo.
Perspectivar o modo como lemos o mundo não é fazer tábula rasa para as variadas
e inconstantes formas com que o acolhemos, atitude que reduz a pó o caráter prismático
com que o mundo se oferece. Se assim fosse, cairíamos fatalmente na esparrela que o
relativismo, de modo insidioso, encobre, ao empreender uma perigosa aproximação com a
tendência que aparentemente lhe é adversa – a dogmática. Como oportunamente nos lembra
Gustavo, vistas sob o aspecto gramatical, “as coisas são relativas a outras, as quais, no
momento da relação, devem ser tomadas como absolutas”
98
. Portanto, salienta ainda:
Quando alguém tenta argumentar que ‘isso é relativo’, cabe sempre a pergunta: isso é
relativo a quê? Dependendo do ângulo de abordagem e do contexto, as coisas ora são
absolutas, ora são relativas àquelas que foram tomadas como absolutas. [...] Quando
absolutizam a própria relatividade, os relativistas se tornam dogmáticos”
99
. Ao contrário
dos relativistas, para os quais a verdade é “inexistente ou múltipla”, desativando o sentido
da investigação acerca de sua natureza, os céticos, face à pluralidade dessas “certezas
suspeitas”, segue explorando seus meandros. Renato Lessa ressalta que, em sua obra mais
famosa Esboços do Pirronismo –, Sexto Empírico confronta a posição assumida pelos
absolutistas e relativistas com a adotada pelos céticos: “Os primeiros crêem que a verdade
seja una; os relativistas ora a afirmam inexistente, ora lhe atribuem um lema: meu nome é
legião. Diante dessa proliferação de certezas, nos diz Sexto Empírico, os céticos
investigam”
100
.
97
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 28.
98
BERNARDO. A fião cética, p. 56.
99
BERNARDO. A fião cética, p. 56.
100
LESSA. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, p. 237.
44
O “tudo é mentira, qualquer coisa é verdade” provoca um rombo na (não tão)
sólida muralha que aprisionava as certezas dogmáticas, abrindo um imenso e alvissareiro
vazio, pois “inspira uma folga, um caminho desimpedido”. Comportas abertas, torna-se
possível extrair, do livre curso da dúvida, “um prazer para ser saboreado”.
Contrariamente à atitude niilista, que nega a vida, o ceticismo, como enfatiza
Lessa, “valoriza bíos – a vida – em extremo”
101
. É o que podemos ver também em Berkeley
em Bellagio, de João Gilberto Noll, em que o narrador, significativamente nomeado de
João, nome que deflagra um possível jogo auto-reflexivo, pontua todo seu relato com
indagações sobre sua própria identidade, bem como sobre a dos demais personagens com os
quais contracena: “Quem seria esse homem um tanto taciturno a encontrar estátuas, quadros
clássicos pela frente para impressionar americanos, colunas, obeliscos, [...], quem era esse
homem nascido em abril em Porto Alegre, no hospital Beneficência Portuguesa, às seis da
manhã, criado no bairro Floresta [...]?”
102
. Ou: “Quem é esse ragazzo, heim?, e quem será
esse homem aqui que já não se reconhece ao se surpreender de um golpe num imenso
espelho ornado em volta de dourados arabescos, um senhor chegando à meia-idade?”
103
.
A incansável interrogação acerca de si e das pessoas com as quais se relaciona não
lança âncora pondo fim à aventura exploratória. O esforço tampouco soçobra. Quase ao
final da narrativa, o narrador tenta apossar-se de uma brandura pacificadora – busca
alcançar a ataraxia – frente ao caráter aporético das questões que formula, sem no entanto
deixar de perpetuá-las: “Eu e Léo [...] começávamos a compreender que o desejo em
demasia enfraquece, paralisa, e que o melhor mesmo era a paciência, preparar o dia
seguinte sem pensar nele como um esposo que necessariamente nos dará mais do que
pedimos. O que é que pedimos, hein?”
104
.
Ao contrário de Camillia, protagonista do conto de Bradbury, que expressa sua
desistência diante da vida (“Por favor, deixem-me morrer em paz”), os respectivos
personagens de Figueiredo e de Noll não se deixam sucumbir à atitude de renúncia face à
constatação da ausência de sentido último, que, em seu paroxismo, pode conduzir à inércia
e à morte. Enquanto Camillia já abdicou da pergunta pelo sentido, os personagens de
101
LESSA. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, p. 237.
102
NOLL. Berkeley em Bellagio, p. 27-28.
103
NOLL. Berkeley em Bellagio, p. 29.
104
NOLL. Berkeley em Bellagio, p. 95.
45
Barco a seco e de Berkeley em Bellagio seguem indagando, ignorando as evidências de
cunho pessimista que anulariam qualquer esforço nessa direção. Desse modo, ambos os
narradores, tanto o de Figueiredo como o de Noll, cada qual a seu modo, se nutrem da
dúvida – seja a que envolva verdade e mentira, seja a que circunda identidade e sentido da
vida –, que impele o ato mesmo de narrar (“um prazer para ser saboreado”), na tentativa de
avistar o reino das significações, aquele que nos salva de sermos tragados pelo sincio,
mantendo sempre aceso o interesse pela permanência do jogo ficcional.
Esse jogo da ficção, por meio do mecanismo lúdico do como se, questiona nosso
suposto conhecimento da realidade. Com base nessa idéia, amplamente desenvolvida na
teoria de Wolfgang Iser, o como se, produto resultante dos atos de fingir, elabora uma
realidade reconhecível, embora posta entre parênteses. Isso ocorre porque, apesar de o
mundo representado não ser o mundo dado, é preciso que o entendamos como se fosse o
mundo dado. Porém, ao mesmo tempo que percebemos o fingimento como sendo a
realidade, concebemos a realidade da ficção como construção do imaginário. Daí ser o
como se uma maneira de pôr o mundo entre parênteses: “O pôr entre parênteses explicita
que todos os critérios naturais quanto a este mundo representado estão suspensos. Assim
nem o mundo representado retorna por efeito de si mesmo, nem se esgota na descrição de
um mundo que lhe seria pré-dado. Estes critérios naturais seriam postos entre parênteses
pelo como se
105
.
Para Iser, no processo de leitura, o leitor é convocado a mobilizar, mobilizando-se,
a realidade criada pela fião. Essa vontade de participação, que inclui comprometimento
com o lido, decorre doefeito da falta”, estratégia montada pelo escritor para provocar o
leitor, estimulando-o a entrar no jogo ficcional, fazendo-o relacionar-se “com aquele vazio
preenchendo as lacunas e ligando os segmentos de acordo com as instruções codificadas no
texto”
106
. O ato de ler, quando consegue produzir esse “efeito da falta”, afeta não só a
maneira como o leitor se relaciona com o mundo, como também altera a forma como ele se
vê inserido no mundo: “modificamos um texto com nossas estratégias de leitura ao passo
que ele também nos modifica, como se ao lermos um livro lêssemos a nós mesmos nos
inscrevendo na vida”
107
.
105
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 400.
106
BERNARDO. A fião cética, p. 92.
107
HEIDENREICH apud BERNARDO. A ficção cética, p. 93.
46
O mecanismo do como se deve sua expressão ao filósofo Hans Vaihinger,
organizador dos Congressos do Como Se, que buscavam discutir o papel da ficção na
cncia e nas demais reges do conhecimento humano
108
. Vaihinger direcionou seus
esforços no sentido de evidenciar a “ficcionalidade da ficção”, ligada à vontade de
desmistificação dos discursos que visam dissimular a natureza ficcional de sua
configuração. O desnudamento da ficção impede que o leitor se identifique a tal ponto com
o lido que julgue o material elaborado pela linguagem como reflexo da realidade. Ao
mesmo tempo, a experiência da leitura lhe acrescenta novos parâmetros de julgamento da
realidade, abrindo-lhe outras vias com as quais não contava anteriormente.
Dessa forma, a realidade passa a ser avaliada como se fosse realidade, a ficção
interferindo diretamente na relação sujeito x mundo. Não sendo a ficção o espelho da
realidade, mas uma das imagens possíveis de seu aspecto prismático, o leitor enfrenta a
permanente dúvida que corre subterrânea sob a superfície de todo texto ficcional: o que é o
real? Como certifica Gustavo: “A existência do discurso ficcional explicita avida crucial
que sentimos quanto à ‘realidade da realidade’”
109
. A ficção faz ecoar continuamente a
questão, consignando seu caráter aporético. Esse atributo, conferido ao discurso ficcional,
justifica-se pela valorização do impasse por ele mesmo gerado. Porque não se trata de
concluir nem pelo real, nem pela ficção, já que tal antagonismo, como tentamos mostrar,
figura como uma esparrela anacrônica, tendo sido já calcinados os axiomas inflexíveis que
o balizavam. É preciso eno jogar com a realidade, torná-la o próprio jogo, buscando
captar suas metamorfoses. Assim ensina um personagem do citado livro de Noll, um
equatoriano que “falava português perfeitamente”: “A realidade é um jogo. Todos devem
jogar seu jogo até o fim [...]. O aperfeiçoamento das regras desse jogo? – ah, a única
promessa”
110
.
Por isso, a recorrência a uma postura cética na contemporaneidade talvez seja,
como defende Gustavo Bernardo, uma das atitudes mais adequadas. O escritor e professor
opta pelo ceticismo porque ele se afasta tanto dos dogmáticos, que “têm certeza de que só
eles sabem alguma coisa”, quanto dos niilistas, que, por seu turno, “têm certeza de que não
se pode ter certeza de nada”, esclarecendo que os céticos, “ao desconfiar de dogmas,
108
BERNARDO. A fião cética, p. 93.
109
BERNARDO. A fião cética, p. 23.
110
NOLL. Berkeley em Bellagio, p. 41.
47
verdades definitivas e afirmações peremptórias, [...] se mantêm em constante estado de
incerteza e investigação intelectual”
111
.
Convém esclarecer, todavia, que não se trata aqui de compilar os diversos
ceticismos que ao longo do tempo tiveram vigência. Gustavo Bernardo lembra que:
“Historicamente, o ceticismo são vários: há o ceticismo acadêmico, pirrônico, efético,
fideísta, mitigado, antigo, moderno, moral, religioso
112
. Julgamos mais rentável, para o
curso de nossa discussão, mencionar apenas a distinção entre basicamente dois tipos de
ceticismo, cujos aportes se diferem: o ceticismo acadêmico e o ceticismo pirrônico.
Confrontado à inapreensibilidade do conhecimento, o ceticismo acadêmico sucumbe
à apátheia, à apatia, sentimento que se aproxima de um certo niilismo, tendência que, aliás,
caracterizou essa vertente cética. Já o ceticismo inaugurado por Pirro de Élis, que viveu
entre 360 e 270 a. C., aposta no movimento interminável da investigação. Sem ter deixado
gravada sequer uma linha, Pirro prescrevia, em seus ensinamentos, a “defesa por uma vida
simples, na recusa, através da epoché – suspensão do juízo –, em conceder valor a
discussões a respeito do caráter real ou verdadeiro das coisas, e na busca pela ataraxia
imperturbabilidade –, por ele considerada como o maior dos bens
113
. Sexto Emrico,
autor de Hipotiposes Pirrônicas e Adversus Mathematicus, obras que figuram como a
súmula “mais completa e amadurecida” do ceticismo grego, nas palavras de Renato Lessa,
define deste modo o pensamento cético:
Scepticism is an ability, or mental attitude, which opposes appearances to
judgements in any way whatsoever, with the result that, owing to the
equipollence of the objects and reasons thus opposed, we are brought firstly to a
state of mental suspense and next to a state of “unperturbedness” or quietude.
114
Reputado como uma “segunda versão” do ceticismo, o ceticismo acadêmico,
praticado por Arcesilau (315-240 a. C.) e Carneades (214-129 a. C.) na Nova Academia
(que remonta à velha Academia de Platão), distinguia-se da versão anterior pelo uso da
dialética como instrumento empregado para evidenciar que “o argumento que se invoca a
111
BERNARDO. A fião cética, p. 28.
112
BERNARDO. Ficção e ceticismo, p. 103.
113
LESSA. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, p. 27.
114
SEXTO EMPÍRICO apud LESSA. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, p. 34.
48
favor de uma tese deve ser ele próprio demonstrado por outro argumento e assim por
diante, o que torna impossível qualquer demonstração”
115
.
A convergência do ceticismo pirrônico e do ceticismo acadêmico se dá na
valorização das investigações filoficas e na importância concedida à epoché
116
. Ambos
porém se distanciam ao verificarmos que o ceticismo pirrônico, em face da impossibilidade
de se encontrar a verdade, seguia procurando-a em suas investigações, enquanto o
ceticismo acadêmico radicalizou as concepções céticas ao afirmar que “nada existe que se
possa saber, nem mesmo que nada se sabe”
117
. Essa visão espelha um determinado
rompimento com o exercício dubitativo, característico do ceticismo suspensivo,
deflagrando assim uma propensão dogmática com sinal invertido: “A afirmação de que a
verdade é inapreensível não caracteriza uma posição cética, mas sim uma espécie de
dogmatismo negativo. A posição cética exige a suspensão do juízo, e não o juízo de que
não é possível se saber nada
118
.
Adotar a perspectiva cética é aderir, portanto, à miríade de reconfigurações que
tentam dar conta do que chamamos de realidade. É pôr em questão a realidade reconhecida
como tal, sabendo que pôr em questão implica menos solucionar o problema do que admitir
sua clivagem, encarando sua fisionomia tentacular. É, como nos recomendam os céticos,
suspender o juízo (a epoché). E reconhecer afinal que, se nossas dúvidas não conhecem
limites, o pensamento necessita, para proteger nossa capacidade de duvidar, saber-se
“limitado”. Ou seja, saber que as soluções alcançadas possuem um curtíssimo prazo de
validade, portando um alto grau de vulnerabilidade, já que precárias e transirias.
A questão do limite sob o enfoque da delicada relação entre conhecimento e
verdade pode ser entrevista no já mencionado romance Barco a seco, de Rubens
Figueiredo. A história tem início com a seguinte asserção professada pelo narrador:
Existe um limite para tudo. Não é medo, não é convenção. Pelo menos, não é só
isso. Marcas invisíveis deslizam no chão, atravessam nosso caminho. Uma
fronteira, um litoral, nem sabemos em que nossos pés tropam, nem imaginamos
em que parede nosso ombro esbarra. Só um louco pode supor que o céu tem o
115
BERNARDO. A fião cética, p. 236.
116
LESSA. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, p. 28.
117
BERNARDO. A fião cética, p. 236.
118
BERNARDO. A fião cética, p. 243.
49
tamanho dos seus olhos. Só uma criança pode acreditar que o mundo inteiro cabe
no prato da sua fome.
119
A referência a um limite alude à consciência de uma dimensão incognoscível do
conhecimento humano. Essa visão limitada não expressa covardia (“não é medo”), nem se
constitui como mero clichê (“não é convenção”). Mas admite talvez a crença na falibilidade
das certezas que conferiam uma sustentação ilusória à nossa existência
120
. Não se pode
conhecer tudo. Como sentencia John Barrow: “não há fórmula capaz de nos fornecer toda a
verdade, toda a harmonia, toda a simplicidade. Nenhuma Teoria de Tudo nos levará à
compreensão total. Pois o ver através de todas as coisas nos deixaria sem ver coisa
alguma”
121
. Paradoxalmente, é da inconstância do saber que se alimenta a vontade de
investigação (“a única promessa”), mesmo reconhecendo serem efêmeros os seus
resultados, afinal estamos sempre tropeçando e esbarrando no desconhecido, naquilo que –
calçada ou parede – julgávamos familiar, descortinando para nós inusitadas perspectivas de
um sujeito/objeto em contínua mutação.
Se o mundo não provoca assombro no louco e na criança é porque ambos erigem
um universo moldado segundo suas demandas particulares, autônomas, dedicando-lhes uma
incondicional fidelidade. O louco, habitante de um terririo de relevo misterioso (como
sabê-lo?, interrogava Foucault), rompeu, em algum momento, o vínculo com os discursos
que se pretendem razoáveis, refugiando-se e alienando-se no seu próprio e impenetrável
mundo. A criança, inteiramente voltada para o seu ego, ainda não firmou esse vínculo, o
mundo ficando então restrito ao “prato de sua fome”. Além ou aquém dos impasses que
regem a nossa vida besta, dos quais a razão tenta (em vão?) dar conta, a criança e o louco se
assemelham à inocência dos que cultivam uma resposta para cada porquê, na esperança de
viverem em um mundo sem sustos, um mundo cuja transparência absoluta apazigua e afasta
o medo da morte.
Nem criança, mas talvez um pouco louco, Anselmo, o “curioso impertinente”,
personagem de uma novela que integra o romance O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la
Mancha, publicado por Miguel de Cervantes, em 1605, traduz, de forma emblemática, a
119
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 9.
120
Evando Nascimento observa, com base no pensamento derridiano, que “um limite é aquilo mesmo que não
se toca, porque nunca se presentifica de todo, mas que faz pensar” (NASCIMENTO. Derrida, p. 39, grifos do
autor).
50
vontade irrefreável de tudo conhecer. E as conseqüências desastrosas advindas da
realização dessa vontade. Na história, Anselmo se casa com Camila e vive intensamente
sua felicidade conjugal. Entretanto, o receio de que algo abale essa harmonia acaba levando
o personagem a querer provar a extensão da fidelidade de sua esposa. Decide então forjar
situações que favoreçam uma suposta traição de Camila. Caso ela não se rendesse às
tentações a que fosse submetida, Anselmo quedaria satisfeito. Para essa empreitada,
convoca seu melhor amigo, Lotário, a quem confessa: “[...] o desejo que me aflige é o de
esclarecer se Camila, minha esposa, é tão íntegra e perfeita como penso
122
. Posto em
prática o acordo secreto entre os dois, percebe-se que Lotário, dada a insistência das
investidas estimuladas pelo amigo, termina por se apaixonar efetivamente por Camila,
sendo também por ela correspondido. O desfecho dessa triangulação sublinha a punição
conferida ao “curioso impertinente”, que paga com a própria vida a desmesurada ambição
de apreender aquilo mesmo que escapa ao assédio do conhecimento humano – o acaso, às
vezes um tanto impertinente, outras tantas alvissareiro.
Gustavo Bernardo, no posfácio da novela de Cervantes, intitulado “A falha trágica
do curioso: um breve estudo
123
, distingue a “curiosidade fictícia”, advinda do desejo de
saber mais, encarregada de “multiplicar os enigmas para preservar o mistério”, da
curiosidade realista”, fruto do desejo de saber demais, empenhada em resolver todos os
enigmas e acabar com o mistério
124
. A curiosidade de Anselmo pertence a essa última
categoria. O cálculo das ações futuras de sua esposa deriva da vontade de varrer as
possíveis ameaças que pudessem arruinar a felicidade conjugal presente. Desse modo,
como assinala Gustavo, “a curiosidade de Anselmo não implica abertura para o novo, antes
medo do desconhecido”
125
.
A absurda manobra do personagem testemunha o fracasso dos que se enredam na
curiosidade realista”, aprisionados nas malhas urdidas pelo seu próprio engodo, como o
animal que engole a própria cauda. Para escapar dessa armadilha, é preciso, como
acrescenta Gustavo, “não saber tudo. Em outras palavras, é preciso proteger o enigma, em
121
BARROW apud BERNARDO. A fião cética, p. 113.
122
CERVANTES. A novela do curioso impertinente, p. 15.
123
BERNARDO. A falha trágica do curioso: um breve estudo, p. 109-122.
124
BERNARDO. A falha trágica do curioso: um breve estudo, p. 111.
125
BERNARDO. A falha trágica do curioso: um breve estudo, p. 120.
51
especial o enigma representado pelo outro, para que ele permaneça sempre como tal
126
. A
vontade de domínio sobre o outro esbarra precisamente nesse limite: o limite que confronta
o desejo de estabilidade com o temor do desconhecido, do imperscrutável – esse
componente demasiado humano que nos habita.
A questão do limite nos reconduz à reflexão sobre a finitude. A morte é nossa
incontorvel situação-limite. Somos inapelavelmente limitados porque, antes de tudo,
somos finitos e não podemos, a rigor, modificar essa condição. Não podemos? Vimos que a
ficção procura superar a limitação imposta pela morte nutrindo-se de sua indevassável
presença. Secundando novamente Blanchot: “Escrever para não morrer”. Escrever a
despeito de morrer, sabendo-se inscrito nesse horizonte abrigado pela morte. Escrever,
enfim, apesar desse limite supremo que é a morte.
Numa passagem do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de
Clarice Lispector, ressumam, com acentuada carga poética, as pródigas lições que obtemos
desse embate perpétuo com a morte. Quem nos ensina é o personagem Ulisses, dirigindo-se
a Lóri: “[...] uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve
comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o
próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia,
que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida”
127
. O “apesar de”, embora constitua
uma espécie de obstáculo a uma certa iia de plenitude da existência humana, provocando,
num primeiro momento, um sentimento melancólico (“Foi o apesar de que me deu uma
angústia”), figura como aquilo mesmo que deflagra, num segundo momento, o impulso
vital capaz de “criar a própria vida”.
A autoconsciência do poder de criação de si, do outro e da realidade traz à tona a
ênfase no jogo ficcional. Nas narrativas contemporâneas, nota-se uma acentuada presença
dessa autoconsciência, que, não raro, opta pelo viés do humor para problematizar a
ausência de referenciais universais e a necessidade subseqüente de invenção de novos
parâmetros de recriação da realidade. O romance O falso mentiroso: merias, de Silviano
Santiago, que também será analisado adiante, avulta como um paradigma dessa vertente ao
operar a crítica da “falsa aparência de totalidade”.
126
BERNARDO. A falha trágica do curioso: um breve estudo, p. 120.
127
LISPECTOR. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 26.
52
O autor desconcerta nosso olhar ao levar ao paroxismo o embaralhamento dos
terririos que confinavam o fato e a ficção. Além disso, a indicação do gênero – memórias
–, inscrita sob o título, reforça ainda mais a complexidade dessa imbricação. Afinal, de
quem são as referidas memórias? De Silviano ou de Samuel (o narrador que assim se
apresenta)? De que vale a resposta se, ao fim e ao cabo, “ele”, seja lá quem for, é um “falso
mentiroso”, que, como notifica a citação na quarta capa, cujo trecho é atribuído à
Enciclopédia Mirador, concentra o seguinte paradoxo: “se alguém afirma ‘eu minto’, e o
que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por
isso, novamente falsa etc.”
128
? Nesse enredamento contínuo, em que verdade e mentira se
contaminam mutuamente, sobressai o predonio do ficcional como potência capaz de
engendrar infinitas versões do real – artifício sintetizado na idéia de originar, que se
desdobra no ato mesmo de originar-se.
O conceito de “origem” aqui evocado não comporta a localização de um ponto fixo
a partir do qual, e em razão do qual, os fatos se desencadeiam, formando elos
indestriáveis. Apoiamo-nos em Walter Benjamin, para quem a não de origem alia-se a
um movimento em perpétuo devir, abarcando o binômio reconfiguração e incompletude.
Como define o próprio filósofo:
O termo origem o designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que
emerge do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material
produzido em sua gênese. O origirioo se encontra nunca no mundo dos fatos
brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma vio dupla, que o reconhece,
por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo,
como incompleto e inacabado.
129
Esse duplo vínculo condicionado ao termo origem aproxima-se de um fenômeno
recorrente na narrativa de Santiago – o mecanismo da disseminação discursiva que se nega
enquanto domínio de um saber estável. A rentabilidade desse procedimento assegura por
um lado a proliferação da voz narrativa, que, motivada justamente pelo desejo de
reprodução de uma “origem”, continuamente rasurada (visto que se multiplicam as
incertezas acerca dos progenitores do narrador), reinventa diversas possibilidades ligadas à
sua gênese, invertendo inclusive os fatores da equação: o pai gerador do filho, já que, nesse
128
SANTIAGO. O falso mentiroso: merias, quarta capa.
129
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 67-68.
53
caso, a paternidade ocupa, na história, um espaço de permutas, deslocamentos e
inconstâncias. Somos informados, por exemplo, desde as primeiras linhas das memórias:
“Não tive e. Não me lembro da cara dela. Não conheci meu pai. Também não me lembro
da cara dele”
130
. Informações acrescidas de uma boutade: “Posso estar mentindo. Posso
estar dizendo a verdade”
131
; por outro lado, essa rentabilidade aliada ao desejo de seguir
narrando caminha a contrapelo da negação do conteúdo veiculado pelo discurso do falso
mentiroso.
Os rastros ensaiados na recolha do que se delineia como uma história labiríntica,
como um empreendimento memorialístico tecido de dispersões, são cabalmente
desmentidos, abandonados um a um. Em lugar de afirmar uma possível genealogia, o
narrador busca apagar as próprias pegadas, tornando-as evanescentes, anulando-se, por
ricochete, nessa cadeia de desmistificações. O que resta dessa paradoxal operação não é
uma linhagem biológica, nem uma provável descendência. O legado assoma sob a forma de
objetos, de que as telas pintadas pelo narrador são exemplo. O que permanece segue sendo
um rastro, não de natureza bio, mas de natureza gráfica – o registro de suas pinceladas. A
vida contada consagra, mais do que a afirmação de uma mentira, a instância ficcional, em
que tudo pode ser reinventado: “Lego ao mundo as minhas telas. À história, uma família a
menos”
132
.
Inventar outra(s) vida(s) constitui uma maneira de preencher o espaço vacante
deixado pelas certezas petrificadas. Destituído de um suporte alicerçante capaz de garantir
sua pertença à “história oficial”, que nos conta como caminha a humanidade, o narrador
decide radicalizar o gesto de auto-aniquilação, implodindo a integridade da voz autoral, o
que inspirou o crítico português Abel Barros Baptista a denominar a narrativa de Santiago
de “memórias póstumas”: “Memórias póstumas, não porque literalmente de morto, mas
porque elaboradas após a perda de tudo o que as torna possíveis: o conhecimento seguro da
origem, a raiz da identidade, a sucessão
133
. Se de um lado a palavra manifesta sua
fertilidade, disseminando seu conteúdo suspeitoso, de outro o discurso se encarrega de
130
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 9.
131
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 9.
132
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 222.
133
BAPTISTA. A autobiografia como preservativo, p. 21.
54
esterilizar o que foi semeado em sua trajetória. É do tecer e do destecer que o narrador –
espécie de Penélope de calças – urde suas memórias.
Samuel, visto sob esse prisma, é umpico melancólico, no sentido que, aqui,
procuramos imprimir: o de uma melancolia afirmativa, que adere ao humor, próxima ao
que preconiza Italo Calvino, ao discorrer sobre a leveza, um dos seis valores que projetou
para este milênio. A imagem da leveza subtrai a compacidade da melancolia, gerando uma
gravidade sem peso”, que nasce de uma relação particular entre melancolia e humor.
Como atesta o próprio Calvino: “Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o
humor é o cômico que perdeu peso corpóreo [...] e põe em dúvida o eu e o mundo, com
toda a rede de relações que os constituem
134
.
O pôr em dúvida o eu e o mundo, que corresponde à suspensão do juízo (epoché),
irmana melancolia e ceticismo. Enquanto o melancólico é confrontado com um mundo
esvaziado de sentidos estanques, sendo, pois, impelido a recriar novos mecanismos de
significação, jogando com suas variadas formas de representação, o cético, abstendo-se de
negar e/ou afirmar verdades previamente formuladas, comprometidas com a definição
objetiva do mundo, é instado a manter uma atitude suspensiva, conspurcando as certezas
que consolidam as postulações dogmáticas. Tanto o melancólico quanto o cético partem
assim de uma mesma premissa: a inviabilidade de um mundo governado pela perpetuação
de valores universais. A recusa em propagar esse ideal totalitário conduz ao interesse pela
investigação, pela reflexão e pela meditação. Não por acaso, “investigar”, “refletir” e
“meditar” são verbos que integram a etimologia do termo “ceticismo”, termo que “deriva
do grego sképsis, que significaria ‘investigação’”. Como esclarece Gustavo:
o termo “investigação” é segundo, derivando do sentido primeiro,observação”.
Sképsis vem de sképtomai, verbo cujo sentido denotativo inclui as nões de
“voltar o olhar para”, “olhar atentamente”, “considerar”, “observar”. O mesmo
verbo pode ser usado com os sentidos figurados de “examinar”, “meditar,
“refletir”. Logo, o substantivo sképsis significa também “exame”, “reflexão”,
“especulação”, “meditação”. Skeptikós, portanto, é aquele que observa, que
reflete, que gosta de examinar.
135
A etimologia do vocábulo contribui para reforçar o vínculo que pretendemos fixar
entre melancolia e ceticismo, em tempos “pós-utópicos” (para usarmos uma expressão
134
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 32.
55
cunhada por Haroldo de Campos
136
). A postura meditativa e reflexiva é freqüentemente
recrutada para desenhar o perfil do melancólico. No campo específico da iconografia,
assoma com representatividade inconteste a gravura Melancolia I, de Albrecht Dürer,
espécie de tradutor visual do espírito saturnino, cujas imagens atravessam séculos
renovando sempre o desafio lançado a quem se dispõe a interpre-las
137
.
A fonte inspiradora principal dessa obra, concebida em 1514, encontra-se nas
páginas de Occulta philosophia, de Agrippa de Nettesheim, livro que concentra
conhecimentos de necromancia. Um de seus principais ritos consiste em ampliar
consideravelmente a iia de melancolia e do gênio saturnino ligada, até então, somente aos
homines literati. Na ótica do cabalista cristão alemão, os homens das letras portam-se lado
a lado aos homens da ação e da visão artística, de modo que “el arquitecto o pintor ‘sutil’ se
contaba con no menor derecho que el gran potico o genio religioso entre los ‘vates’ y
‘saturninos’”
138
.
Esse alargamento do território da melancolia, de configuração mais democrática,
desdobra-se, por sua vez, em três instâncias psicológicas: a imaginação, característica das
artes mecânicas, como a arquitetura, a pintura etc.; a razão, própria do conhecimento
voltado para a natureza e o ser humano (medicina, potica etc.); e, a mente, situada no
patamar mais elevado da inspiração saturnina e melancólica, ligada ao conhecimento de
segredos divinos, sobretudo ao que diz respeito à lei divina, à angelologia e à teologia.
Tendo em vista a hierarquia proposta por Agrippa, o número I, aposto ao título,
sugere que a gravura representa o primeiro dos três estágios da melancolia. Conforme
Susana Lages, outra gravura, São Jerônimo em seu gabinete, feita por Dürer no mesmo ano
de 1514, constitui uma espécie de complemento à antológica obra do artista. Remata a
135
BERNARDO. A fião cética, p. 50.
136
Em seu texto: “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”, Haroldo
defende a designação da época contemporânea como sendo pós-utópica, em oposição ao termo pós-moderno.
Diz ele: “Entendo que o momento que atualmente vivemos – momento que estamos vivendo desde, pelo
menos, o fim dos anos 60, quando se concluiu, segundo penso, o processo da poesia concreta enquanto
movimento coletivo e experimento em progresso não é propriamente um momentos-moderno, mas,
antes, pós-utópico” (CAMPOS. Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico,
p. 265).
137
Susana Kampff Lages, em seu admirável estudo Walter Benjamin: tradução e melancolia, corrobora a
elevada imporncia desse registro artístico, salientando: “Pode-se dizer que essa obra não é um marco na
história da gravura e na história das artes em geral, como também na história específica da representação da
melancolia nas artes plásticas e na história da melancolia tout court” (LAGES. Walter Benjamin: tradução e
melancolia, p. 38).
138
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 342.
56
trilogia uma gravura de 1513 – O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, encerrando a “unidade
espiritual” correspondente às três virtudes morais, teológicas e intelectuais, em consonância
com a classificação escolástica medieval das virtudes
139
.
No erudito compêndio Saturno y la melancolía, Klibansky, Panofsky e Saxl
dedicam-se com afinco à árdua tarefa de propor uma possível leitura da enigmática obra
Melancolia I, apontando, logo de início, para os inegáveis vínculos que Dürer manteve com
a tradição astrológica e humoral da Idade Média.
No universo medieval, circulava o estreito paralelo entre melancolia e acedia (ou
taedium cordis), um dos pecados capitais, que produzia uma espécie de letargia do espírito,
desembocando numa postura contemplativa e grave, cuja evolão ocasionava a inércia da
vontade humana, a paralisia e, finalmente, a tristitia, que levava o indivíduo ao suicídio.
Mas é sem dúvida a pregnância da astrologia na esfera do pensamento médico um
dos fatos mais notórios desse período.
A forte influência da medicina árabe, devida a Constantino, que, além de acumular
métodos e conhecimento de fármacos difundidos no Oriente, traduziu inúmeros
manuscritos árabes, agregou, em seu bojo, expedientes de natureza cosmológica. A adesão
ao sistema humoral, baseado na dependência direta entre a constituiçãosica e o tipo de
caráter, de acordo com a predominância dos elementos quente, seco, frio e úmido, presentes
no corpo humano, se uniu à idéia de que os melancólicos são regidos pelo planeta Saturno,
estendendo o jugo astral aos demais temperamentos e respectivos astros: a disposição
sangüínea era derivada da influência de Júpiter; a colérica, de Marte; e a fleumática, da Lua
ou Vênus.
Essa rede de conexões cosmológica deitou raízes no Ocidente trasladada dos
escritos árabes do século IX. Klibansky, Panofsky e Saxl salientam que Abū Ma ‘Šār
“atribuía aos diversos planetas as qualidades correspondentes aos temperamentos (frio e
úmido etc.), e reconhece neles uma influência sobre a constituição física, as emoções e o
caráter, que em grande parte se corresponde com os efeitos dos humores”, embora,
acrescentam, “não os relacione sistematicamente com os quatro humores”
140
.
Imputa-se também à astrologia árabe, baseada em fontes mitológicas gregas, a
resultante híbrida formada pela fusão de Saturno, o deus romano dos campos e das
139
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 42-43.
57
colheitas, com Cronos, o deus grego de aspecto dual, prevalecendo, nessa imbricação, o
caráter marcadamente ambivalente deste último. Cronos, considerado o deus dos contrários,
continha em sua esncia a malignidade e a benevolência, sendo detentor a um tempo da
vida e da morte:
Por una parte era el dios benigno de la agricultura, cuyas fiestas de recolección
celebraban juntos los hombres libres y los esclavos, el señor de la Edad de Oro en
que los hombres tenían abundancia de todas las cosas y disfrutaban de la felicidad
inocente del hombre natural de Rousseau, el señor de las Islas de los
Bienaventurados y el inventor de la agricultura y de la edificación de ciudades.
Por otra parte era el dios triste, destronado y solitario que habitaba “en el último
confín de la tierra y el mar”, “desterrado bajo la tierra y los abismos del mar”; era
“señor de los dioses del subsuelo”, via como prisionero o cautivo en el Tártaro,
o más abajo de él, y más tarde lle a pasar por dios de la muerte y de los
muertos. Por una parte era el padre de los dioses y de los hombres, por otra era el
devorador de niños, comedor de carne cruda [...], consumidor de todo, que “se
tragó a todos los dioses” y exigía sacrificios humanos a los bárbaros [...].
141
Na tradição antiga da astrologia árabe, os planetas eram qualificados de maléficos
(Marte e Saturno), de neutro (Mercúrio) e de benéficos (Júpiter e Vênus). Como vemos,
recuando às suas origens, o astro saturnino, desde pelo menos o século I a. C., já se
encerrava numa categoria sombria e nefasta. É por volta dessa época que surge uma sorte
de etiologia aliada à influência saturnina: “a él están subordinadas también una serie de
sustancias (como el plomo, la madera y la piedra), partes del cuerpo, enfermidades (sobre
todo las causadas por el frío o la humedad) y formas de muerte (sobre todo el ahogamiento,
el ahorcamiento, el encadenamiento y la disentería)
142
. Da mesma forma, à malfadada
biografia de Cronos perfilam-se intrincadas associações como:
[...] los tristes, los preocupados y maltratados, los mendigos, las cadenas, el
cautiverio y la ocultacn se deriva de su derrocamiento y prisión en el Tártaro; la
atribuición a él de “autoridad”, “tutela”, gran fama y alto rango se debe a su
posicn original como señor del mundo y rey de los dioses. El patrocinio de la
tierra, la madera, la piedra, la agricultura y la ganadería claramente se deriva de
las cualidades del Saturno italiano, dios de las cosechas; y el patrocinio de los
viajeros procede de su larga y arriesgada huida al Lacio. Por otra parte, la
asignacn de las lágrimas, de los que trabajan con objetos húmedos, del daño y
las enfermedades causadas por el frío y la humedad, de la vejiga, de las glándulas,
de la muerte por ahogamiento, etcétera, se basa en la interpretación pitagórica y
órfica de Kronos como dios marino y fluvial.
143
140
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 140, tradução nossa.
141
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 145-146.
142
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 152-153.
143
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 153.
58
Os traços descritivos atribuídos ao deus Cronos foram especialmente aplicados aos
indiduos nascidos sob o signo saturnino. Essa transferência sancionou um tipo natural de
caráter, em consonância com o correspondente tipo planetário. Dessa forma, os
melancólicos passaram a ser subordinados a Saturno, astro solitário e frio, de compleão
pessimista.
Já a tendência de pensamento neoplatônica operou um verdadeiro desvio na
interpretação das conexões entre astros e destino humano, ao suspender nessa relação a
autoridade planetária, subtraindo-lhe o poder de governar a vida na terra. A ascensão dos
corpos celestes sobre o mundo material, nessa perspectiva, era calcada no nexo recíproco e
indissolúvel entre o macrocosmo e o microcosmo. No neoplatonismo, os astros eram os
intermediários entre um Todo metafísico e a realidade empírica, o que explica a energia
estritamente benéfica a alimentar os astros e, por projeção vertical, como partes integrantes
desse Todo, os seres naturais do mundo material. É desse movimento de transferência que
nasce a doutrina neoplatônica da viagem da alma, preconizando dons conferidos pelas
potências astrais aos seres humanos ao nascerem, dons que deveriam ser devolvidos pelas
almas, após a morte terrena. Além disso, no circuito do neoplatonismo, influxos do
pensamento órfico registram a equiparação de Cronos com o deus do tempo, imbricação
que se deve, conforme esclarece o Dicionário da mitologia grega e romana, a “um jogo de
palavras” decorrente da paronomásia afiançada pelo grego
144
.
A positividade astral outorgou a Saturno um notável prestígio. A etiqueta que o
designava como maléfico é substituída por um nobre rótulo que o resgata das profundezas
do Tártaro para alçá-lo às alturas celestiais, posição que, segundo a topologia aristotélica, o
premiava com o mais alto valor metafísico.
Contudo, foi sem dúvida o aspecto ambivalente de Saturno, segundo suas
qualidades antitéticas, que facultou a analogia do astro com a melancolia:
Al igual que la melancolía, Saturno, demon de los contrarios, dotaba al alma tanto
de lentitud e inepcia como del poder de la inteligencia y la contemplacn. Al
igual que la melancoa, Saturno amenazaba a quienes tuviera en su poder, por
ilustres que fueran, con la depresión, o incluso con la locura.
145
144
O verbete dedicado a Cronos diz o seguinte: “Um jogo de palavras levou a que às vezes Crono fosse
considerado o tempo personificado (Kρόνος, com efeito, faz lembrar Xρόνος)” (GRIMAL. Dicionário de
mitologia grega e romana, p. 105).
145
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 167-168.
59
FIGURA 1 – Melancolia I (1514), Albrecht Dürer
60
Klibansky, Panofsky e Saxl concluem, citando Ficino: “Saturno ‘rara vez denota
caracteres y destinos ordinarios, antes bien personas que se distinguen de las demás, divinas
o bestiales, dichosas o rendidas por la pena s honda
146
.
Retomando a obra de Dürer, verificam-se inúmeras referências consubstanciais a
esse universo do medievo. A gravura é povoada de seres e objetos convencionalmente
representados no repertório bastante conhecido das artes visuais. Nesse sentido, por
exemplo, elementos como a escarcela e as chaves são lidos como signos de poder e de
riqueza, já que, na tradição medieval, o caráter avarento do melancólico denotava
conseqüentemente a capacidade de acumular valores materiais. Por analogia, a imagem
alada düreriana, possuidora de chaves que pendem de sua cintura, figuraria como detentora
de poder sobre tesouros mantidos sob sua custódia, uma vez que somente as chaves
franqueariam o acesso ao volume de riqueza do qual é guardiã. Imagem que se aproximaria
de Saturno, o astro mais poderoso na hierarquia planetária, paladino da prosperidade, a
quem cabia preservar valorosos patrimônios.
Entretanto, Dürer operou modificações significativas no traçado dessas imagens,
resultando em alterações que reivindicam a abertura para novas vias de interpretação.
Assim, a atitude da figura central – a melancolia – atesta, numa primeira instância, a
linhagem vetusta da cabeça apoiada na mão.
De fato, Klibansky, Panofsky e Saxl reconhecem, na mulher alada, a representação
da tade dor (anima tristis), fadiga (ou pensamento criador) e meditação (contemplação
profética)
147
. Mas, comparada às incontáveis reproduções registradas pela tradição,
sobressai, na versão de Dürer, o punho cerrado, dado original do artista, que poderia, em
princípio, remeter à própria avareza conferida a Saturno. No entanto, os autores de Saturno
y la melancolía chamam a atenção para o fato de que há um visível contraste entre a
posição da mão esquerda, com o punho fechado, e a da direita, abandonada à sua
imobilidade, como a indicar a suspensão de um gesto, o intervalo entre a reflexão e a
inscrição do impulso criativo. A mão crispada não indiciaria, aqui, uma provável
enfermidade detectada na sintomatologia da avareza excessiva, no desmedido zelo na
preservação de um estimado tesouro, mas simbolizaria talvez o momento exato em que a
146
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 168.
147
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 281-282.
61
mente emprega um descomunal esforço no exercício de concentração voltado para a
decifração de um problema cuja resolução lhe escapa.
Da mesma maneira, o olhar lançado ao horizonte já não fixaria apenas o vazio,
completamente rendido à letargia do espírito, sinal também de enfermidade melancólica.
Em direção oposta, o olhar da melancolia düreriana expressaria osojos desenfocados
picos del pensamiento absorto”
148
. Esse estado de ânimo seria acentuado pelo rosto
ensombrecido. Em princípio, a tez escura seria outra possível evocação aos aspectos físicos
que descrevem o melancólico com a face negra ou com a cor do barro, idéia encontrada em
textos medievais de medicina, em escritos astrológicos e em tratados populares sobre as
quatro compleições. O aspecto físico, na interpretação de Klibansky, Panofsky e Saxl, não
sinalizaria um caso patológico, mas intensificaria a atmosfera solene e grave que recobre a
melancolia, imersa em latente efervescência intelectual.
Outros dois elementos – o cão famélico e o putto em franca atividade – integram o
elenco das imagens ligadas a Saturno. O primeiro, que em diversas vertentes astrológicas é
visto como animal tipicamente saturnino, jazendo inerte aos pés da melancolia, espelharia o
sofrimento da figura alada na busca por soluções criativas, enquanto o segundo refletiria a
aurora do conhecimento, ainda o confrontado com o “tormento do pensamento: “El
dolor consciente de un ser humano que se debate con problemas está realzado tanto por el
sufrimiento inconsciente del perro dormido como por la feliz inconsciencia de sí del niño
atareado
149
. Apoiando-se em Aegidius Albertinus, Walter Benjamin, em Origem do drama
barroco alemão, lembra que, segundo a velha tradição, o baço é o órgão dominante no cão,
daí sua alusão à melancolia
150
.
Uma outra proposta de interpretação da imagem do putto é ainda exposta por
Susana Lages. Em seu estudo, a autora compara a visão de Panofsky à de Giorgio
Agamben. O primeiro “contrapõe a atividade do putto à inatividade da Melancolia,
interpretando-o como emblema da Prática (der Brauch), que age impulsivamente, como
oposto à Teoria, à Arte, die Kunst, que pensa, mas é incapaz de agir”
151
, visão desenvolvida
na obra The Life and the Art of Albrecht Dürer. Já o segundo defende que a imagem do
148
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 308.
149
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 310.
150
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 174.
151
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 48.
62
putto, justaposta à da mulher alada, deveria ser encarada como emblema erótico,
perspectiva que alia a figura do fantasma na Idade Média e na Renascença à moderna teoria
psicanalítica
152
. Sobre essa última perspectiva, Susana esclarece que:
[...] não parece em absoluto inadequado entender a figura do putto como
representação do Eros/Cupido da mitologia e da tradição iconográfica.
Reduplicada, por sua vez, nas asas que porta a figura da melancolia, aponta
evidentemente para o caráter erótico da imagem düreriana, se lembrarmos ainda
da tradão planica de Eros alado e associarmos o não-uso das asas como sinal
de imperfeão, de inacabamento, humanos; por outro lado, como enfatiza
Agamben, ambas as figuras remetem à tradição da representação do fantasma sob
a forma de entidade erótica dotada de asas.
153
Klibanky, Panofsky e Saxl assinalam que Dürer, provavelmente ligado à tradição da
alegoria pictórica do Norte da Europa, foi o primeiro artista a retratar a melancolia como
um símbolo: “un símbolo que presenta concordancia poderosa entre la idea abstracta y la
imagen concreta”
154
. Segundo os autores, a criação düreriana enraíza-se nas imagens
alegóricas que representam as “Artes Liberais”, notadamente a quinta delas – a Geometria,
fato comprovado pela presença dos objetos introduzidos por Dürer em sua composição:
esquadro, compasso, martelo, circunferência e roboedro. Contudo, a relação entre
melancolia e geometria é articulada de modo ambíguo. Apesar de sustentar em uma das
mãos um instrumento de medão, a melancolia resta estática, completamente alheia à
utilidade da ferramenta que retém, imobilidade que se projeta nos olhos erguidos para além
de toda atividade prática, para além, enfim, do pragmatismo utilitário emanado dos objetos
de precisão que a circundam, casualmente distribuídos, relegados ao ostracismo. A partir
dessa observação, os autores supracitados condensam sua interpretação da gravura em duas
vertentes da tradição: o typus acediae (o paradigma popular da inatividade melancólica) e o
typus geometriae (a personificação escolástica de uma das Artes Liberais). O gênio alado
sintetizaria uma “faculdade criadora” e um “estado de ânimo destrutor”. Mas, retificam
Klibansky, Panofsky e Saxl, não se trata de uma mera fusão de tipos, e sim de um
redirecionamento de significados já cristalizados pela tradição iconográfica.
Nas novas searas entrevistas, é possível perceber, de um lado, o rebaixamento da
esfera do conhecimento e método de uma arte liberal, convertidos em fracasso humano, e,
152
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 48.
153
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 49.
154
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 297.
63
de outro, a elevação do temperamento “triste, terroso”, guindado à altura do sublime
embate com questões intelectuais. Numa possível síntese, A Melancolia I, nessa
perspectiva, representaria:
[...] sobretodo una Melancolía imaginativa, todos cuyos pensamientos y acciones
se desarrollan en los ámbitos del espacio y la visibilidad, desde la reflexión pura
sobre la geometría hasta la actividad en los oficios menores; y es aquí donde
mejor recibimos la impresión de un ser a quien su ámbito asignado le parece
intolerablemente restringido: de un ser cuyos pensamientos “han alcanzado el
límite.
155
Com efeito, inclinamo-nos a pensar, em consonância com as idéias de Klibansky,
Panofsky e Saxl, essa imagem como a figura de um ser vis-à-vis os limites do cognoscível,
em direção aos quais, resignado, lança seu olhar impotente, registrando, de forma
simbólica, uma concepção de melancolia fortemente marcada pela introspecção reflexiva.
Porém, consideramos que o impasse experimentado diante de um limiar
intransponível, imprimindo uma expressão meditativa no rosto da figura que incorpora a
melancolia, não ratificaria tão-somente o registro de um momento expectante, decorrente
da dificuldade de resolução de dilemas que desafiam o espírito. Não se trataria aí
unicamente de fixar o retrato de um ser a quien su ámbito asignado le parece
intolerablemente restringido”, de um ser, enfim, “cuyos pensamientoshan alcanzado el
limite’”.
Interromper a atividade da mão, desviar o olhar dos resultados certeiros prometidos
pelos objetos de precisão espalhados à sua volta, não seria uma maneira de interrogar o
consabido, mantendo a busca por soluções em permanente compasso de espera? Não seria
ainda flagrar a suspensão do juízo ou a atitude efética, derivadas de um espírito
comprometido com a investigação do conhecimento?
Tendemos a encarar a imagem da melancolia como a representação simbólica do
indivíduo que, duvidando do próprio conhecimento, sabendo-o (e sabendo-se) limitado,
dispõe-se a indagar a respeito das coisas, repondo em movimento perpétuo aquilo mesmo
que se constitui como conhecimento. A melancolia düreriana seria assim a tradução desse
indivíduo, que, sob a reserva muda de sua aparente estaticidade, segue cogitando acerca da
155
KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 330.
64
existência do que se alberga naquela linha do horizonte que seus olhos fixam – e sobre a
qual repousam, com imutável hebetude.
Tomada como emblema do melancólico no instante mesmo em que o conhecimento
lhe ostenta sua face aporética, a figura alada de Dürer, com seu aspecto contemplativo e
sóbrio, inspira também outros impasses: como agir diante de questões para as quais não há
o acalento das soluções pretendidas? Entregar-se à paralisia ocasionada pela incapacidade
de apreender a natureza objetiva das coisas? Ou, certo de não se poder estabelecer um juízo
a respeito da natureza objetiva das coisas, empreender incansavelmente a investigação das
certezas radicadas pelo primado dogmático?
Essas duas posturas cogitadas contaminam o fazer literário, originando dois modos
distintos de se lidar com a melancolia relacionada à criação artística. Vejamos de que forma
procedem.
65
2 O escrivão ou o parasita: uma questão de preferência
Uma melancólica disposição de espírito [...]
engendrou em mim a idéia de escrever.
(Montaigne)
2.1 A síndrome de Bartleby
A melancolia ligada à fadiga do espírito, resultante da busca vã por respostas
seguras, contagiou incontáveis personalidades criativas. No âmbito da literatura, esse
estado melancólico, que leva à inação, reflete-se na suspensão temporária e/ou definitiva da
pena, desencadeando a afasia da escrita, vitimando uma legião de escritores. Talvez tenha
sido Herman Melville quem tenha talhado com justa precisão o arquétipo do indivíduo que
adota a irrevogável desistência de qualquer realização, gesto que, em sua radicalidade,
culmina na desistência da própria vida.
Em sua novela Bartleby, o escrivão
156
, o escritor norte-americano cria um
personagem que, num dado momento, sem apresentar qualquer justificativa, recusa-se a
realizar as tarefas para as quais é destinado. O narrador, um advogado pouco ambicioso,
possui um escritório em Wall Street, onde acumula as funções de “verificador de títulos,
preparador de documentos para transferências e copiador de documentos de todos os
tipos
157
, às quais vem se somar a de Oficial do Registro Público. O excesso de trabalho na
repartição leva-o a contratar Bartleby, um sujeito “levemente arrumado, lamentavelmente
respeitável, extremamente desamparado!
158
, para integrar sua equipe de copistas. De
imediato, o funcionário recém-admitido exibe uma espantosa competência e dedicação:
No início Bartleby escrevia muito. Como se estivesse faminto para copiar, parecia se
empanturrar com os meus documentos. Não havia pausa para a digestão. Trabalhava dia e
noite, copiando à luz natural e à luz de velas”
159
. Dentre as idiossincrasias que ostenta,
destacam-se o hábito de ficar “olhando para fora por muito tempo, através da janela branca
156
MELVILLE. Bartleby, o escrivão.
157
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 7.
158
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 7.
159
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 8.
66
atrás do biombo, para a parede cega de tijolos”
160
e o de se alimentar somente com pão-de-
mel.
Entretanto, subitamente, o escrivão começa a dar mostras dos primeiros sintomas de
sua inquietante e irremovível atitude de não fazer mais nada. De forma gradativa, principia
sua tendência à inação recusando-se a efetuar a conferência de documentos copiados. Às
ordens recebidas, ele responde com absoluta impassibilidade: “Acho melhor não”. A frase
desconcertante, cujo original é “I would prefer not to”, pontua toda a narrativa, tornando-se
uma espécie de bordão do imperscrutável Bartleby, chegando mesmo a contagiar, a certa
altura, a linguagem dos demais personagens.
Estarrecido, o narrador então percebe que o escrivão passa a negar a realização de
toda e qualquer tarefa solicitada, isentando-se até mesmo de continuar copiando
documentos, atestando, laconicamente: “Desisti de fazer cópias”
161
. Sem saber como agir
diante de uma deliberação sem precedentes, o advogado experimenta uma mescla de
sentimentos controversos: “As minhas primeiras emoções tinham sido a melancolia mais
pura e a compaixão mais sincera, mas na mesma proporção em que o desamparo de
Bartleby crescia na minha fantasia, aquela melancolia se transformava em medo, e a
compaixão em repulsa
162
.
Demitido, o excêntrico escrivão, que elegera o próprio local de trabalho como
moradia, recusa-se tenazmente a deixar o escritório, abstendo-se ainda de justificar sua
decisão de permanecer ali, coroando seu firme propósito com a iterativa expressão: “Acho
melhor não deixá-lo”
163
. Face à persistente determinação de Bartleby, o advogado decide
transferir seu escritório para outro endereço, na esperança de livrar-se de vez do importuno
funciorio-inquilino.
Sem obter sucesso na tentativa de convencê-lo a abandonar o escririo, o novo
proprietário do antigo imóvel da Wall Street é obrigado a acionar a pocia, que,
imediatamente, recolhe Bartleby e o leva encarcerado. Na prisão, o escrivão de aspecto
vido e inalterável mantém sua incorrupvel recusa, rejeitando desta feita alimentar-se.
Quando, algum tempo depois, o narrador resolve visitá-lo na cadeia, encontra Bartleby
160
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 18.
161
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 22.
162
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 18.
163
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 25.
67
morto: “Encolhido de um modo estranho na base do muro, com os joelhos levantados e
deitado de lado com a cabeça encostada nas pedras frias, estava Bartleby, abandonado. Mas
não se mexia. Parei; aproximei-me; inclinei-me sobre ele e vi que seus olhos turvos
estavam abertos; mas parecia dormir profundamente”
164
. O escrivão, que antes ingeria
apenas pão-de-mel, prefere não se alimentar mais, morrendo com os olhos fixos nos muros
da prisão, numa patética alusão ao vezo de cravar um olhar ausente sobre as paredes cegas
de tijolos da Wall Street.
O narrador conclui seu relato adicionando uma curiosa informação acerca de seu
mais estranho funcionário: Bartleby havia anteriormente trabalhado na Repartição de Cartas
Mortas, ocupação que consistia em separar correspondências, que remetiam “recados de
vida”, mas que jamais cumpriam seu destino, sendo logradas às cinzas, “pois elas são
queimadas todos os anos, aos montes”
165
. A associação com a enigmática figura de
Bartleby é inevivel: “Cartas mortas! Não se parece com homens mortos? Pense num
homem que, por natureza e infortúnio, era propenso ao desamparo; poderia haver um
trabalho mais adequado para aguçar o seu desempenho do que lidar o tempo todo com
cartas mortas, separando-as para jogá-las ao fogo?”
166
.
Como cartas mortas, que manifestam a ruptura dos laços entretidos entre remetentes
e destinatários, silenciando a corrente de vida que delas emanava, Bartleby encerra uma
profunda negação do mundo, com toda a cadeia de relações que circunda a condição de
vivente.
Em seu texto “Bartleby, ou a fórmula
167
, Deleuze propõe uma leitura desse gesto
radical de negação sob o enfoque do limite da agramaticalidade. Inserindo o escrivão na
mesma linhagem de personagens criados por Kleist, Dostoiévski, Kafka e Beckett, o
filósofo afirma que a frase inúmeras vezes repetida por Bartleby – “Acho melhor não” –
constitui um elemento perturbador na medida em que a tomamos em seu sentido literal.
Buscando responder à questão: “Mas em que consiste a literalidade da fórmula?
168
,
Deleuze adverte que a sentença – cujo emprego mais usual no inglês seria “I had rather
not”, ao invés de “I would prefer not to” – causa estranheza desde o momento em que é,
164
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 36.
165
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 37.
166
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 36-37.
167
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 80-103.
168
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 80.
68
pela primeira vez, proferida. Com efeito, a fórmula está, do ponto de vista gramatical,
correta. No entanto, do ponto de vista semântico, nota-se a omissão daquilo mesmo que o
verbo rejeita. Um impulso natural nos levaria à pergunta: preferiria não o quê? É na
suspensão arbitrária da continuidade requerida para que a elocução alcance o escopo
esperado que se encontra o que Deleuze chama de “função-limite”: “sem dúvida, ela é
gramaticalmente correta, sintaticamente correta, mas seu término abrupto, NOT TO, que
deixa indeterminado o que ela rechaça, lhe confere um caráter radical, uma espécie de
função-limite”
169
.
A fórmula, atingindo o limite do silêncio, exerceria sobre o sujeito que a produz um
efeito devastador e paralisante. Para melhor compreendermos o modo como o personagem
se faz silenciar, recordemos a primeira ocorrência do bordão. Ela se dá quando Bartleby
renuncia a cotejar uma cópia feita por outro escrivão. Porém, como esclarece Deleuze, ao
emitir a frase que ricocheteia a narrativa, o personagem de Melville já estaria assinando a
promissória de desistência de fazer o que quer que seja. Embora, até um determinado
instante, ele continue copiando documentos, e ainda que se verifiquem algumas ocorrências
anteriores da elocução reiterada, a impossibilidade de resgatar a situação anterior de
“normalidade” já está selada. O fio partido é irrecuperável:
desde que disse PREFIRO NÃO (cotejar), ele tampouco pode continuar
copiando. Contudo, jamais dirá que prefere não (copiar): simplesmente ele
superou esse estágio (give up). Sem dúvida não o percebe de imediato, já que
continua copiando até depois da sexta ocorrência. Mas quando o percebe é como
uma evidência, como o resultado diferido que já estava compreendido no
primeiro enunciado da fórmula [...]. A fórmula-bloco tem por efeito não só
recusar o que Bartleby prefere não fazer mas também tornar impossível o que ele
fazia, o que supostamente ainda preferia fazer.
170
Deleuze acrescenta que o desconcerto gerado pela fórmula advém do verbo nela
contido: “preferir” não expressa recusa, nem aceitação. Bartleby não estabelece com
precisão o conteúdo de suas vontades, antes “cava uma zona de indiscernibilidade, de
indeterminação, que não pára de crescer entre algumas atividades não-preferidas e uma
atividade preferível”
171
. A despeito da participação furtiva de alguns infinitivos que, por
vezes, se agregam ao estado puro da fórmula original (como vemos, nestes exemplos:
169
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 80.
170
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 82.
69
Acho melhor não ser sensato no momento”
172
, “Acho melhor não deixá-lo”
173
, “Acho
melhor não mudar nada”
174
etc.), permanece inviovel “a surda presença da forma insólita
que continua a obsedar a linguagem de Bartleby”
175
, deitando por terra qualquer vestígio
referencial que poderia aniquilar a passividade silenciosa de que é portador seu enunciado
recorrente.
O que incomoda nesse personagem, e acaba afetando de forma avassaladora o
narrador, é a percepção dessa “disfunção” lingüística, ou função-limite (como a batizou
Deleuze), que rompe definitivamente com os parâmetros normativos aceitos pela
comunidade de falantes. O ato de falar pressupõe uma relação com o interlocutor, uma
espécie de acordo prévio, que deve ser adaptado a cada situação de comunicação. Pode-se
ordenar, pedir, rogar, prometer etc. segundo a rede de convenções exigida nas mais diversas
circunstâncias. Assim, os atos de fala, como assinala Deleuze, são de natureza auto-
referencial: “eu efetivamente mando ao dizer ‘ordeno-lhe...’, enquanto as proposições
constatativas referem-se a outras coisas e a outras palavras”
176
. Bartleby implode o
mecanismo que faz girar “esse duplo sistema de refencias”. É essa atitude que deixa
exasperado o advogado, pois “todas as suas esperanças de trazer Bartleby de volta à razão
desmoronam, porque repousam na lógica dos pressupostos, segundo a qual um patrão
‘espera’ ser obedecido, ou um amigo benevolente, escutado, ao passo que Bartleby
inventou uma nova lógica, uma lógica da preferência que é suficiente para minar os
pressupostos da linguagem”
177
.
Nesse sentido, o escrivão é um autêntico ex-cêntrico, colocando-se à margem das
atribuições que lhe confeririam um certo estatuto social. A cada vez que a fórmula
bartlebyana vem à tona, fundando o “vazio na linguagem”, ela instaura uma região obscura
de incomunicabilidade, gerada paradoxalmente a partir da própria linguagem corrente. A
agramaticalidade da frase reincidente brota do solo comum do inglês standard, o estranho
sendo gestado no seio do familiar.
171
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 83.
172
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 20.
173
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 25.
174
MELVILLE. Bartleby, o escrivão, p. 31.
175
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 81.
176
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 85.
177
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 85-86.
70
Deleuze especula sobre a hipótese de uma língua estrangeira fecundada no interior
mesmo da ngua materna. Essa ngua estrangeira seria como um eco da “língua original”,
a “língua divina de tempestade e trovão”. Desse modo, Melville “inventa uma língua
estrangeira que corre sob o inglês e o arrasta: é o OUTLANDISH, ou o Desterritorializado,
a língua da Baleia”
178
. O resultado da criação dessa ngua original conduz ao confronto
com os limites da própria língua, “a fim de lhe descobrir o Fora, silêncio ou música”
179
.
Como conclui Deleuze: “cavar na língua uma espécie de língua estrangeira e confrontar
toda linguagem com o silêncio, fazê-la cair no silêncio”
180
.
Curiosamente, o silêncio que engolfa Bartleby parece ter sido soprado pelos
mesmos ventos que, um dia, açoitaram o próprio autor do famigerado personagem. De fato,
consta que Melville, antes da escrita de sua sintomática novela, experimentou na pele os
efeitos da síndrome imortalizada na sua criação, cuja enfermidade deriva de uma espécie de
pulsão negativa.
Enrique Vila-Matas, em seu livro Bartleby e companhia, aventa a possibilidade de
uma inevivel convergência entre vida e ficção ao comentar que “Melville teve a síndrome
antes que seu personagem existisse, o que nos poderia levar a pensar que talvez tenha
criado Bartleby para descrever sua própria síndrome”
181
. Podemos ir mais longe e
perguntar: teria Melville criado Bartleby para conjurar uma dispéptica abstinência?
Ao discorrer sobre a melancolia relacionada à escrita, Michel Schneider especula
sobre essa pulsão negativa e o paradoxo que ela encerra: ao invés de silenciar a escrita,
instiga a escrita a falar do silêncio que a assombra. Nas palavras de Schneider: “Só a
linguagem nos cura da linguagem, interminavelmente”
182
. O queo impediu Melville de
sucumbir a um período de desabrida afasia.
Atribui-se o retumbante sucesso do autor de Moby Dick a um equívoco na recepção
de suas primeiras obras, equívoco decorrente do modo como seus primeiros textos foram
recebidos pelo público, que o confundiu com um mero cronista da vida marítima”. Após a
acalorada acolhida quando da publicação desses escritos de estréia, as obras subseqüentes
acabaram gerando um certo desconcerto. Com um entalhe romanesco complexo, Mardi,
178
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 84.
179
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 84.
180
DELEUZE. Bartleby, ou a fórmula, p. 84.
181
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 114.
182
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 421.
71
Moby Dick e Pierre, or the ambiguities não lograram entusiasmar nem oblico, nem a
crítica. Portanto, quando Bartleby, o escrivão veio a lume (primeiramente uma narrativa
órfã, já que publicada numa revista, sem a assinatura do autor, e, em seguida, incluída ao
final de The Piazza tales, em 1853), Melville estava convicto de que amargara um nefasto
fracasso literário. Como pontua Vila-Matas: “Enquanto foi considerado cronista da vida
marítima tudo tinha ido bem, mas, quando comou a produzir obras-primas, o público e a
crítica o condenaram ao fracasso com a absoluta unanimidade das ocasiões
equivocadas”
183
.
Melville contudo não representa um caso único de súbita afasia registrado na
história da literatura. São incontáveis os exemplos de escritores arrebatados por um inefável
silêncio, com poder suficiente de barrar as palavras, impedido-as de se materializarem na
escrita – sintoma batizado por Vila-Matas de “síndrome de Bartleby”. Em sua citada obra, o
escritor espanhol dedica-se ao assunto com espantoso fôlego. Abdicando-se da construção
de um romance nos moldes tradicionais, o autor compõe um texto feito à maneira de um
diário, costurado com “notas de rodapé comentando um texto invisível”
184
.
O narrador se apresenta como um sujeito sem parentes, que suporta uma “penosa
corcunda” e trabalha num “escritório pavoroso”
185
. Quando jovem, publicou um romance,
após o qual sobreveio um período de infertilidade criativa que durou vinte e cinco anos, daí
seu enorme interesse pelos bartlebys“seres em que habita uma profunda negação do
mundo
186
. Disposto a rastrear o que chama de “literatura do Não, a de Bartleby e
companhia”, o narrador compõe um extenso inventário, em que resgata histórias de
escritores que, por motivos escusos e, às vezes, impenetráveis, se tornaram ágrafos:
Já faz tempo que venho rastreando o amplo espectro da síndrome de Bartleby na
literatura, já faz tempo que estudo a doença, o mal endêmico das letras
contemponeas, a pulsão negativa ou a atração pelo nada que faz com que certos
criadores, mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez
precisamente por isso), nunca cheguem a escrever; ou eno escrevam um ou dois
livros e depois renunciem à escrita; ou, ainda, após retomarem sem problemas
uma obra em andamento, fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre.
187
183
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 115-116.
184
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 9.
185
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 9.
186
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 9.
187
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 10.
72
Segundo o narrador, a única tendência válida para a literatura contemporânea seria
aquela inclinada a trazer à tona a escrita no limite mesmo de sua impossibilidade. Sob esse
ponto de vista, o silêncio seria uma espécie de combustível capaz de proporcionar o bom
funcionamento de sua maquinaria. Ali mesmo, onde a escrita se cala, brotaria a literatura
destes nossos tempos. Advogando em prol de sua tese, ele afirma que é nessa tendência
que se encontra o único caminho que permanece aberto à autêntica crião literária; que se
pergunta o que é e onde está a escrita e que vagueia ao redor de sua impossibilidade e que
diz a verdade sobre o estado, de prognóstico grave, mas sumamente estimulante – da
literatura deste fim de milênio”
188
.
Com as necessárias variantes, retornamos à questão: teria o narrador escrito seu
diário para conjurar uma dispéptica abstinência? Se Melville decidiu criar uma espécie de
alegoria da pulsão negativa, consagrada em torno à figura de Bartleby, Vila-Matas viu
nessa alegoria um oportuno filão para discutir, ficcionalmente, o estado atual da literatura,
cujos sintomas ventilam a hipótese de seu desaparecimento. O escritor espanhol, em seu
magistral “romance”, subverte a dimensão apocalíptica desse perspectiva, alimentando sua
própria escrita do silêncio que ronda ameaçadoramente a criação literária – silêncio que
bordeja todo escritor após fixar o rmino de mais uma obra. Será a última? Ele se pergunta,
sem que voz alguma lhe conceda a indulgência da resposta ansiada.
No rol de autores que sucumbiram à opressiva mudez da escrita, Vila-Matas inclui
consagrados nomes, dentre os quais se destacam: Robert Walser, escritor que, semelhante
ao renomado personagem de Melville, também foi um copista, tendo passado os últimos
vinte e oito anos de sua vida em manicômios; Juan Rulfo, autor que, após ter publicado um
romance de grande sucessoPedro Páramo, parou de escrever, prolongando a estiagem
numa abstinência de trinta anos; Hofmannsthal, emblemático caso da arte da negativa,
expressa na lebre Carta de lorde Chandos, uma missiva endereçada a Francis Bacon,
cujo conteúdo gira em torno da renúncia à escrita. Como comenta Vila-Matas: “a Carta
constitui um manifesto do desfalecimento da palavra e do naufrágio do eu no fluir
convulsionado e indistinto das coisas,o mais nomináveis nem domináveis pela
linguagem”
189
; Rimbaud, jovem poeta que, com apenas dezenove anos, havia encerrado
sua carreira literária, mergulhando, a partir de então, em perpétuo silêncio; Joseph Joubert,
188
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 11.
73
uma espécie de “caso extremo” de síndrome de Bartleby, uma vez que se trata de um
escritor sem obra: “Nunca escreveu um livro. Preparou-se, apenas, para escrever um,
procurando com afinco as condições apropriadas que lhe permitissem escrevê-lo. Depois
esqueceu também esse propósito
190
; Thomas de Quincey, escritor afásico dos dezenove
aos trinta e seis anos, período em que preferiu o ópio às palavras, fase só superada pela
escrita de Confissões de um comedor de ópio; Jerome David Salinger, o recluso autor que,
após ter publicado alguns livros, submergiu num silêncio que já dura mais de quarenta
anos; Enrique Banchs, poeta argentino cujo mutismo recebeu um comentário de Borges,
registrado num artigo da revista El Hogar, com o título “Enrique Banchs completou este
ano suas bodas de prata com o silêncio
191
. Mas, como salienta Vila-Matas: “O que Borges
não sabia nesse dia de Natal de 1936 era que o silêncio de Banchs ia durar cinqüenta e sete
anos, ia ultrapassar com folga as bodas de ouro de seu silêncio
192
; Oscar Wilde, que em
The critic as artist assinala o desejo de não mais escrever, tendo dedicado os dois últimos
anos de sua vida ao ócio, após concluir: “Quando não conhecia a vida, eu escrevia; agora
que conheço seu significado, não tenho mais nada a escrever
193
; Marcel Duchamp, artista
que, apesar de não ter sido escritor, foi igualmente infectado pela síndrome de Bartleby,
abandonando a pintura para dedicar-se ao jogo de xadrez; Kafka, autor que declara em seus
Diários sentir-se paralisado pelo peso excessivo que a influência de Goethe exerce sobre si.
Como vemos neste trecho citado por Vila-Matas: “Estou sentado no quarto e disponho de
silêncio, mas em vez de me decidir a escrever, atividade sobre a qual anteontem, por
exemplo, gostaria de ter-me debruçado por inteiro, fico agora longo tempo olhando
fixamente meus dedos. Acho que nesta semana tenho estado totalmente influenciado por
Goethe, acho que acabo de esgotar o vigor dessa influência e que por isso me tornei um
inútil”
194
. Mais adiante, acrescenta: “O entusiasmo ininterrupto com que leio coisas sobre
Goethe (conversas com Goethe, anos de estudante, horas com Goethe, uma temporada de
Goethe em Frankfurt) me impede totalmente de escrever”
195
.
189
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 18.
190
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 54.
191
BORGES apud VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 91.
192
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 92.
193
WILDE apud VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 121.
194
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 71.
195
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 71.
74
A lista prossegue, embora não seja nosso propósito esgotá-la. Em todos os casos, no
entanto, ressalta-se a súbita afasia que se apossa da escrita, roubando-lhe o direito a uma
existência digna. No instante em que o silêncio ostenta sua tirania, fazendo calar a palavra
mais indômita, vemos projetar-se, no rosto do escritor, o reflexo daquela imagem da
melancolia, tal como gravada por Dürer. A mesma gravidade, o mesmo olhar cravado no
longínquo horizonte, enquanto uma das mãos ainda conserva, na imobilidade de agora, a
lembrança de seu antigo e vigoroso ritmo, parecem apoderar-se inapelavelmente do
indivíduo diante da tela do computador ou do papel com sua alvura casta.
Nesses momentos, é também impossível o resgatar a figura do insubordinável
escrivão de Melville, fonte inspiradora para que Vila-Matas criasse a confraria dos
escritores do Não. Como Bartleby, imerso em seus devaneios face à parede cega, e fiel à
sua irremediável decisão de não fazer mais nada, resumida, como vimos, na reincidente
fórmula “Acho melhor não”, alguns escritores, em variados tempos e lugares, abrigam-se
no silêncio, tornando-o, em muitos casos, sua morada definitiva.
No Brasil, Milton Hatoum, em recente texto publicado numa revista, em que
discorre justamente sobre a difícil empresa de escrever, tendo no encalço o fantasma da
tradição literária, ao confessar que “as influências são o inferno e o paraíso de um
escritor”
196
, recorda-se, aliviado, de ter superado “um silêncio de dez anos que prometia ser
um encalhe para sempre”
197
. Outro exemplo clássico, que se destaca no cenário de nossa
literatura contemporânea, emerge na figura de Raduan Nassar, autor de Lavoura arcaica
(1975), Um copo de cólera (1978) e Menina a caminho (1997), este último uma reunião de
contos dos anos 60 e 70. Abdicando da atividade de escritor logo após sua estréia, Nassar
afirma que “não há crião artística ou literária que valha uma criação de galinhas”
198
.
Desde então, vem rigorosamente mantendo sua firme opção pela avicultura.
Contudo, o drama maior enfrentado pelos escritores, vale lembrar, não repousa
numa mudança de rota operada por vontade própria, ou seja, não decorre do simples
deslocamento do desejo, que levaria o indivíduo a empregar sua energia numa nova e,
quem sabe, mais interessante atividade. O drama maior do escritor localiza-se justamente
196
HATOUM. O inferno e o paraíso de um escritor, p. 26.
197
HATOUM. O inferno e o paraíso de um escritor, p. 27.
198
NASSAR apud DELMASCHIO. Entre o palco e o porão: uma leitura de Um copo de cólera de Raduan
Nassar, p. 68.
75
naquele ponto desconcertante e inapelável que interrompe, com ganas de predador, a carga
vital da escrita. É então quando um vazio avassalador se abre sob o solo frágil onde se
planta aquele que se destina a escrever – aquele que, ao contrário de Bartleby, preferiria
continuar escrevendo.
Vimos que um dos modos de se lidar com a melancolia relacionada à criação
artística aponta para a desistência da escrita, configurando um silêncio emblematizado na
consagrada fórmula melvilliana – “Acho melhor não”. Um outro modo, porém, abre
clareira nos bosques da ficção, apesar de reconhecer a árdua tarefa conferida àquele
destinado a seguir tecendo suas narrativas, a despeito de ser assombrado pela população de
histórias que povoam a literatura universal. É desse outro modo que agora nos ocuparemos.
76
2.2 O vampirismo do autor
O outro, minha caricatura, meu modelo, ambos.
O outro que imolo justamente no silêncio; que
queimo nas barbas de minha – alma!
E Eu! que eu dilacero, e que alimento com sua
própria substância sempre re-mas-ti-ga-da, único
alimento para que cresça!
(Paul Valéry)
Vários são os motivos que podem levar à desistência da escrita. E não cabe aqui
intentar repertoriá-los. Interessa-nos entretanto investigar, em especial, a maneira como a
literatura busca superar o temor de ser tragada por esse silêncio abissal, revertendo assim os
efeitos de uma certa melancolia inclinada à letargia do espírito, responsável pelo mutismo
da escrita. Um dos possíveis – e mais graves – desencadeadores desse mutismo nasce de
uma desconfiança íntima que ronda e persegue todo aquele que decide escrever (seja prosa,
poesia, ensaio ou tese acadêmica). Trata-se da certeza de que tudo já foi dito, certeza que se
destaca sobre um fundo de melancolia.
De acordo com Michel Schneider, esse sentimento melancólico produzido pelo
tudo já foi dito” emerge como um componente que “vem interromper ou ameaçar a
escritura de três maneiras. Ela [a melancolia] seca a própria fonte: ‘Em nome de quê, de
quem, posso ou devo escrever?’ Pesa sobre seu cumprimento: ‘Para quê, nada a dizer que já
não tenha sido dito.’ Compromete sua destinação última e íntima: ‘Para quem se
escreve?’”
199
. Mas a despeito de tantas coerções, a escrita prolifera seu curso. Apesar de
tudo já ter sido dito. Ou mesmo porque tudo já foi dito. Como se o destino da escrita se
aliasse a um permanente processo de luto, originando uma certa melancolia libri – título
dado por Schneider a um de seus capítulos, justificado, como referência clínica, pelo fato
de que “o melancólico está coberto pelas cinzas das palavras e carrega o luto de sua língua,
como se não pudesse falar senão uma língua morta”
200
.
Citando o antológico caso de Robert Burton, pai da monumental obra Anatomy of
melancholy, Schneider mostra como o autor do clássico tratado sobre a afecção melancólica
realiza, por meio de sua obra, um autêntico trabalho de luto. É sabido que Burton se
199
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 402-403.
77
apropria de incontáveis textos alheios a partir dos quais costura seu exaustivo compêndio.
Mas reconhece sua dívida ao dedicar “mais de cem páginas apertadas de desculpas e
pesares. Sob a forma de um longo comentário dos Antigos”
201
. Além disso, Burton estreita
ainda mais o vínculo com a tradição ao adotar como pseudônimo o nome de Democritus
Junior, referindo-se ao filósofo de Abdera. Com a pretensão de dar continuidade às
reflexões de um dos mais fecundos (e risonhos) pensadores da Antiidade, Burton escreve
sobre a melancolia a partir de pressupostos de seu próprio antecessor, dando
prosseguimento à discuso como se fosse o sucedâneo dileto de Demócrito. Como avalia
Schneider: “Burton se reconhece insolente o bastante para imitá-lo e, já que aquele tratado
ficara imperfeito e se perdera, para dar-lhe uma nova vida, prossegui-lo e acabá-lo”
202
,
arbitrou autonomear-se uma espécie de “substituto de Demócrito” – quasi succenturiator
Democriti.
A pretensão de dar continuidade à obra do passado, a partir do pressuposto de que
ela ficara inacabada ou que desaparecera, participa da economia do luto. Mas também
requer abdicar da responsabilidade que exige a figura austera do pai, como um modelo
irretocável a ser seguido, para abraçar, em contrapartida, a condição filial, menos sujeita à
rigidez de uma perfeição que lhe é cobrada e, portanto, mais passível de um olhar
condescendente e tolerante face às permissividades a que se entrega. O exemplo de Burton
é bastante ilustrativo, como avalia Schneider:
Essa necessidade de se inscrever numa linhagem é tão forte que podemos nos
perguntar, no presente caso, se a existência do tratado precedente, atribuído a
Demócrito (que parece ter sido uma invenção de Burton), não é alegada só por
mera preocupação de ter sido o primeiro, e de escapar à angústia de ser autor
travestindo-se com a figura modesta do copista ou do escriba que completa a obra
inacabada através do ditado imaginário de seu mestre.
203
A atitude do pastor anglicano dá a exata medida tanto do modo como os
renascentistas se relacionavam com o passado cultural que herdaram, como também da
maneira como eles punham em prática um procedimento que, guardadas as devidas
diferenças, antecipa o que hoje chamamos de releitura/reescrita. Susana Lages, comentando
o famoso livro de Burton, estima que a obra:
200
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 397.
201
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 405.
202
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 405.
78
é o exemplo cabal não apenas do tipo de visão que a Renascença alimenta a
respeito da melancolia e de seu tratamento, mas também de uma determinada
forma de lidar com os textos da tradição: incorporando-os, por meio de um sem-
número de citações e alusões, no próprio texto, um novo texto que afirma sua
autoridade como obra de cater necessariamente revisionista e cuja autoria pode,
graças ao recurso da imprensa, ser reconhecida inequivocamente como tal.
204
O “caso Burton” talvez possa então iluminar o paradoxo que envolve o “tudo já foi
dito” e o irresisvel impulso de continuar dizendo esse tudo: “O ‘tudo já foi dito’ assumiria
assim sua forma mais astuciosa: cômoda invocação de um passado que não houve e que, ao
invés de impedir um dizer novo, deste torna-se uma espécie de pretexto e de álibi”
205
.
A crião artística forjada com base nesse procedimento dialógico, constituindo
uma intrincada rede textual polifônica, encontra sua síntese no próprio ato de emular. Em
sua etimologia, o verbo “emular” comporta significados como: “seguir o exemplo de;
imitar; etc.”, mas igualmente designa “competir; emparelhar; rivalizar; igualar etc.”
206
. A
rentabilidade polissêmica aponta para a ambiidade entrevista na relação que o escritor
estabelece com as obras do passado. Esse tipo de postura é a um tempo subordinada e
transgressora, uma vez que afirma a descendência para, de certa forma, tr-la. Pois não se
trata de “imitar”, em sentido estrito, ou seja, de simplesmente usurpar sem peia o
patrimônio cultural alheio, sem alterá-lo uma única vírgula, plagiando o subtrdo. Mas se
trata de, premido pela “angústia da influência”, reverter um certo estado de indigência
criativa por meio do “ímpeto vampiresco”, procedimento que consiste em sugar a força
vital do “inimigo”, transformada em condição essencial para se atingir uma eqüipolência de
poderes.
Essa manobra é visivelmente exposta no banquete canibalístico preparado por
Enrique Vila-Matas, autor por nós amplamente citado, que, em O mal de Montano, a
despeito de escrever uma obra de ficção, constrói, sob a forma de um “diário”
207
, uma
narrativa que se alimenta do desejo de encarnar a literatura universal, numa tentativa
203
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 406.
204
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 35.
205
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 406.
206
FERREIRA. Novo Aulio século XXI: o dicionário dangua portuguesa, p. 742-743.
207
Vila-Matas emprega aqui uma estratégia semelhante à utilizada em Bartleby e companhia (2004), ao lançar
mão de um gênero – o diário – que contribui para polemizar a imbricação entre vida e ficção. Com efeito, há
uma espécie de diálogo entre as duas obras, uma vez que o narrador de O mal de Montano (2005) se reporta a
episódios relatados no livro anterior, o que torna ainda mais complexa a trama, que cinge elementos
biográficos e existência literia.
79
desesperada de salvá-la da iminente extinção, tal como declara o narrador em diversos
momentos de seu relato: “[...] decidi que em meu diário romanceado eu encarnaria de
imediato – para sal-la da extinção – a própria literatura, nunca tão gravemente ameaçada
quanto no princípio deste século”
208
.
Sob o pretexto desse gesto heróico, o narrador trilha caminhos que enredam
complexas relações envolvendo o escritor e a criação literária, abarcando aí o peso da
tradição que ele herda. E é justamente esse peso insustentável que o leva a auto-
diagnosticar-se como um “doente de literatura”, enfermidade batizada com o nome que dá
título ao livro de Vila-Matas – O mal de Montano – e que o torna um “ágrafo trágico”,
provocando-lhe um malfadado bloqueio criativo:
Sou um doente de literatura. A continuar assim, ela poderia acabar me tragando
como um boneco de palha dentro de um redemoinho, até fazer com que eu me
perca em seu terririo ilimitado. Asfixia-me cada dia mais a literatura. Nos meus
cinqüenta anos, angustia-me pensar que meu último destino seja me tornar um
dicionário de citações ambulante.
209
A crise se agudiza ao admitir para si mesmo que, em não raros casos, para compor
seus próprios textos, não se acanha ao extorquir seus escritores prediletos, acumulando
assim um débito impagável: “Dizia-me, por exemplo, que em demasiadas ocasiões eu havia
sido um ladrão de frases alheias, que muitas vezes eu tinha algo de parasita em relação aos
meus escritores mais admirados”
210
.
Confessando sentir “o orgulho do vampiro”, o narrador nos conta como, aos poucos,
conseguiu se livrar (embora não definitivamente) da condição de parasita, chegando mesmo
a dotar sua obra de um caráter singular:
[...] durante anos, atuei em literatura como um perfeito parasita. Posteriormente,
fui me liberando de minha atração pelo sangue das obras alheias e até, com a
colaboração destas, fui fazendo uma obra inconfundivelmente minha: discreta, de
culto, meio oculta, talvez excêntrica, mas que me pertence e já está muito distante
do uniformizado exército moderno do idêntico. Contudo, há temporadas em que
recaio ligeiramente no vampirismo de outrora.
211
208
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 231.
209
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 14-15.
210
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 113.
211
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 225.
80
Esse parasitismo confessado encontra ressonância também na prosa irônica dos
brasileiros Carlos Sussekind e Francisco Daudt da Veiga. No divertido romance O autor
mente muito
212
, o narrador nos conta a saga de Francisco Daudt, estagiário do Sanatório
Qorpo Santo, que nota uma espantosa semelhança entre as histórias de Carlinhos Manivela,
contadas por Teodoro Farpa (um “usuário”, como são chamados os internos da instituição
de longa data), e as narradas pelo incensado escritor Carlos Sussekind, em seu livro
Armadilha para Lamartine
213
. Intrigado com as “coincidências”, o aspirante a psicanalista
resolve investigar o caso para tentar, quem sabe, obter notoriedade com a revelação do
embuste. Trata então de se aproximar do escritor, aproveitando sua breve temporada no
sanatório.
Desmascarar a “verdade oculta de um romance tão conceituado” implicava saber se
o personagem de Teodoro, Carlinhos Manivela, não seria, de fato, o escritor Carlos
Sussekind: “Coceiras de ambição percorriam seu corpo, e um pensamento desejoso levava-
o a acreditar que aquilo tudo podia ser verdade”
214
. Mas implicava também descobrir o
secreto vampirismo do autor, que se nutre das histórias de outrem para criar suas narrativas.
Questionando, de modo bastante inico, a atitude da dupla, o narrador insere o leitor na
discussão, interpelando-o: “Quem, em sã consciência, poderia acusá-los de aproveitadores,
parasitas da ficção alheia, maliciosos à procura de proeminência social à custa dos outros?
Você pensaria isso, caro leitor?”
215
.
A provocativa indagação, uma vez que nos convida a participar do debate, nos
remete diretamente ao tópos do escritor e a maneira como este lida com o legado da
tradição. O drama de sua condição consiste precisamente em, enriquecido pela inestimável
herança deixada por seus predecessores, forjar uma imagem própria, que não seja mero
reflexo pálido desses últimos. Esse drama incontornável integra, por seu turno, a dinâmica
da melancolia, afecção que situa o impasse envolvendo a tradição como desafio e/ou
intimidação, definindo o êxito ou o fracasso do escritor, responsável pela continuidade da
vida literária.
212
SUSSEKIND; VEIGA. O autor mente muito.
213
SUSSEKIND. Armadilha para Lamartine.
214
SUSSEKIND. Armadilha para Lamartine, p. 15.
215
SUSSEKIND. Armadilha para Lamartine, p. 15, grifos nossos.
81
Nesse sentido, talvez seja Borges um dos escritores que mais exaustivamente
encarnaram, em sua obra, o monumental exercício de escrever repetindo, inserindo, no ato
da repetição, a diferença que imprime e resguarda a singularidade de sua escrita,
outorgando não só a legitimidade de sua assinatura, mas ainda o direito, plenamente
assegurado, de conquistar seu lugar no panteão da literatura de todos os tempos – conquista
obtida, paradoxalmente, por um efeito inverso à pretensão proclamada em sua poética (a
busca da rasura autoral), já que Borges ocupa hoje o seleto posto de “autor clássico”,
figurando como membro honorário do paideuma de Calvino
216
. E é com Borges, seguido de
perto pelo companheiro de rota Calvino, que ensaiamos os passos seguintes neste passeio
pelos bosques da ficção.
216
Cf. CALVINO. Por que ler os clássicos.
82
2.3 Os bosques possíveis da literatura brasileira contemporânea
Pensar, analisar, inventar [...]o atos anômalos,o
a normal respiração da inteligência. Glorificar o
ocasional cumprimento dessa função, entesourar
antigos e alheios pensamentos, recordar com
incrédulo estupor o que o doctor universalis pensou,
é confessar nossa languidez ou nossa barbárie. Todo
homem deve ser capaz de todas as idéias e suponho
que no futuro o será.
(Jorge Luis Borges)
A decisão de embrenhar-se pelas galerias hexagonais da “Biblioteca de Babel”, de
Borges, explorando seus espaços labirínticos recobertos de livros de toda espécie, constitui
uma aventura quixotesca. O cavaleiro-leitor, ou “o imperfeito bibliotecário”, que se dispõe
a percorrê-la, é impelido a empreender uma viagem cuja única certeza desemboca no desejo
inarredável de alcançar o Livro a súmula de todo o conhecimento humano, páginas
incontáveis do passado, remoto e imemorial, e tamm aquelas que ainda estão para serem
escritas. Suspeita-se que um certo Homem do Livro tenha realizado tal proeza:
Em alguma estante de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um
livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais: algum
biblioterio o consultou e é alogo a um deus. [...]o me parece inverossímil
que em alguma prateleira do universo haja um livro total; rogo aos deuses
ignorados que um homem – um só, ainda que seja mil anos! – o tenha
examinado e lido.
217
Sabemos, contudo, que esse Homem do Livro sobrevive apenas como superstição;
que, assim como o compêndio requestado, segue sendo uma quimera, de resto necessária, já
que traduz a ambição desmedida de todo peregrino no seu embate constante com os
moinhos imaginários, transfigurados em espaço, ponto, vírgula e vinte e duas letras do
alfabeto, em infinitas combinações.
O conto emblemático de Borges encerra-se com a seguinte asserção peremptória do
narrador: “A Biblioteca é ilimitada e periódica
218
, acrescentando que: “Se um eterno
viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria que os mesmos volumes se
217
BORGES. A biblioteca de Babel, p. 523, grifos do autor.
83
repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem)”
219
. E se esse
viajante, numa noite de inverno, fosse o eterno começo de um romance interrompido? Essa
perspectiva em abismo, aqui forjada para entrelaçar duas obras paradigmáticas (o conto “A
biblioteca de Babel”, de Borges, e o romance Se um viajante numa noite de inverno, de
Italo Calvino), de dois autores que exaustivamente se dedicaram a pensar a relação entre
textos consagrados do passado e a produção literária contemporânea, impõe de imediato um
problema: o leitor, assim como o escritor, é um ser destinado a errar continuamente no
encalço de algo que sempre lhe escapa e cuja natureza é obscura? O que espera encontrar o
leitor ao aquiescer ao pacto firmado entre ele e as páginas de um romance que se ostenta
como promessa de prazer e/ou de revelação? O que essa expectativa condensa? Uma
posvel resposta, formulada pela leitora-modelo Ludmilla, personagem de Calvino, não
logra iluminar a zona de sombra na qual se abrigam essas questões, antes concorre para
adensar as indecifveis dúvidas que alinhavam a sedução exercida por esse mistério:
Ler é ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém sabe ainda o que será...
[...] O livro que eu gostaria de ler agora é um romance em que se narre uma
história ainda por vir, como um trovão ainda confuso, a história de verdade que se
misture ao destino das pessoas, um romance que dê o sentido de estar vivendo um
choque que ainda não tem nome nem forma.
220
A angústia que alimenta a condição de leitor encontra eco, por sua vez, em seu
avatar mais diretoo escritor. Semelhante à leitora de Calvino, para quem a leitura
consiste num esforço contínuo destinado a mitigar uma insuperável falta, o personagem-
escritor de Borges, que se apresenta somente como “autor”, admite também a dimensão
inaferrável de que se reveste a construção de uma obra, bem como o cabal
desconhecimento daquilo mesmo que poderia preencher esse inquietante espaço de
vacância:
Às vezes penso no assunto do livro a ser escrito como algo que já existe:
pensamentos pensados, diálogos proferidos, histórias já ocorridas, lugares e
ambientes vistos; o livro não deveria ser outra coisa senão o equivalente do
mundo não escrito traduzido em escrita. Outras vezes, ao contrário, creio
compreender que entre o livro a ser escrito e as coisas que existem não pode
haver mais que uma escie de complementaridade: o livro deveria ser a
contraparte escrita do mundo não escrito; sua matéria deveria ser aquilo que não
218
BORGES. A biblioteca de Babel, p. 521.
219
BORGES. A biblioteca de Babel, p. 523.
220
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 78-79.
84
existe nem poderia existir, exceto quando for escrito, e do qual se experimenta
obscuramente a falta em sua própria incompletude.
221
Ambos os viajantes peregrinam em busca desse objeto faltante. E enquanto
Ludmilla, em suas expedições pelas trilhas da leitura, segue no encalço do que “não está
presente porque não existe ainda, algo de desejado, temido, possível ou impossível”
222
, um
outro personagem, o narrador-escritor, da mesma obra de Calvino, expressa um sentimento
de melancolia, desencadeado, dentre outros fatores, pelas reflexões que envolvem o escritor
e o legado da tradição. Ambicionando alcançar a “fascinação romanesca” detectada nas
obras ditas canônicas, o personagem recorre a um patético artifício que lhe permita dotar
sua escrita de semelhante qualidade: Hoje vou copiar as primeiras frases de um romance
famoso para ver se a carga de energia contida naquele início se comunica a minha mão, a
qual, uma vez recebido o impulso certo, deveria correr por conta própria”
223
. Já para o
narrador do conto borgeano, a “fascinação romanesca” emitida pelos “monumentos
literários” converte-se categoricamente na melancolia que decorre da excessiva opressão
exercida pela tradição, herdada pelo escritor atual: “A certeza de que tudo está escrito nos
anula ou nos fantasmagoriza”
224
. Assertiva que vai ao encontro de um comentário de
Walter Benjamin sobre o sentimento melancólico experimentado pelo romancista face ao
legado que o oprime: “O romancista recebe a sucessão quase sempre com uma profunda
melancolia”
225
.
Essa disposição melancólica espraia-se largamente, assumindo diferentes
modalidades no cenário contemporâneo, na configuração esboçada desde as últimas três
décadas do século XX. Momento que se caracteriza pelo desafio lançado pelos modernos
aos seussteros: o que vocês vão inventar que s já não criamos? Como argumentamos
anteriormente, em lugar de uma inibição criativa improfícua, a literatura, bem como os
demais segmentos artísticos (pintura, cinema, música, escultura etc.), desembaraçou-se da
exigência pelo ineditismo como critério indispensável das propostas de vanguarda,
adotando, em contrapartida, uma postura que confina com a idéia de reescritura. O circuito
literário, âmbito que particularmente nos interessa, alforria-se, conquistando a liberdade de
221
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 176, grifos nossos.
222
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 78.
223
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 181.
224
BORGES. A biblioteca de Babel, p. 522.
85
optar por uma via que não mais se sujeitasse ao movimento – cuja exaustiva repetição
converteu-o em paradoxo – da “tradição da ruptura”, para lembrarmos o omoro de
Octavio Paz
226
.
Olhos postos no passado, sem, no entanto, o entrave da nostalgia que reclama uma
Idade de Ouro para a literatura, os escritores da atualidade (por muitos, denominados pós-
modernos) embrenham-se nos bosques da ficção refazendo, com novos traços, itinerários já
percorridos, e imprimindo, nas pegadas disseminadas, uma outra historicidade aos tempos e
espaços revisitados. Esses “bosques possíveis” são trilhados seguindo o protocolo da
reescritura, praticado com liberdade pelas novas gerações pós-vanguardistas, entendendo o
ato de reescrever como o estabelecimento de um diálogo entre presente e passado, que
presume a violência da desmontagem, a auncia de cerimônias no trato com a tradição, ao
mesmo tempo em que se rende homenagem a esse texto-interlocutor, realizando o duplo
exercício de “referência (crítica) e de reverência”, ao invés de encarar a obra canônica
como “modelo a ser seguido (visão clássica) ou negado (visão romântico-moderna)”, como
assinala Flávio Carneiro
227
.
O projeto estético de nosso Modernismo, por exemplo, que visava acertar os
ponteiros com os horloges da vanguarda internacional, se de um lado defendia o direito à
continuidade das pesquisas esticas, de outro assumia uma atitude profundamente imbda
de um componente ideológico, desembocando na militância política de diversos
intelectuais, no curso dos anos 20 do século passado. É no fulcro dessa perspectiva que é
fecundada a antropofagia oswaldiana, em que se buscava dar contornos a uma idéia de
nacionalidade, trazida a lume a partir da “possibilidade de pensar as diferenças da cultura
brasileira como um valor em si mesmo, não mais a ser avalizado pelo europeu”
228
, como
pontifica Evando Nascimento. E se o gesto de reescritura foi amplamente exercitado nessa
esfera modernista, revelando-se uma inestimável ferramenta para a deglutição da cultura
estrangeira, modus operandi da afirmação da diferença que configura o “ser antropófago”,
esse mesmo gesto verificado na contemporaneidade é regido por leis próprias, muito
distantes do repasto oferecido pelo manifesto de 28.
225
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 212.
226
Cf. PAZ. Os filhos do barro.
227
CARNEIRO. A vez da novela: um olhar sobre a ficção brasileira hoje, p. 11-22.
228
NASCIMENTO. A Semana de Arte Moderna no Brasil (1922): construção de uma ruptura, p. 51.
86
Não se trata mais de fixar objetivos precípuos com vistas à circunscrição de projetos
estéticos unificantes, como os preconizados pelas inúmeras vanguardas. O processo de
reescritura dos autores contemporâneos não mais se reveste do “espírito de combate” que
tanto impulsionou as gerações modernistas de 20 e de 30, e mesmo a de 50, como recorda
Flávio Carneiro:
Tanto a geração de 20 quanto a de 30, marcada, esta, pelo chamado romance
nordestino, eram guiadas por um projeto definido, ousado. Havia uma luta, havia
algo a ser combatido: o gosto aristocrático, a mesmice burguesa, para os
modernistas da Semana; o atraso político, a opressão, as desigualdades sociais, no
caso da geração seguinte. Por mais que haja diferença entre esses dois momentos
do Modernismo, há, em ambos, algo de missionário [...]. Combatendo burgueses
ou coronéis, a verdade é que houve combate. Havia um inimigo e ele tinha um
rosto. Como tinha um rosto o adversário dos concretistas, nos anos 50/60: o
atraso representado pela poesia da geração de 45.
229
A produção literária recente mostra-se mais afinada com a revolução de ordem
epistemológica verificada no âmbito do pensamento pós-estruturalista, que, prosseguindo
uma linhagem inaugurada por Nietzsche, expõe a corrosão do pensamento metafísico e de
seus representantes diletos: a noção de centro e de origem. Tendência filofica que,
guardadas as especificidades metodológicas de cada pensador, congrega figuras
importantes, como Derrida, Foucault, Deleuze, Blanchot, Bataille, Barthes, dentre outros.
A liberdade que move o procedimento de reescritura, na pós-modernidade, “consiste
em fazer da literatura uma estratégia de descentramento, uma dinâmica de transformações,
acréscimos, inversões e apropriações do vasto repertório herdado da tradição
230
. Insere-se
a iia implícita de bricolage, que traduz essa operação de desconstrução/reconstrução
sobre a qual se funda boa parte da literatura contemporânea, idéia que abarca, numa visão
mais ampla, o próprio mecanismo interpretativo.
O ato interpretativo compreendido no processo de reescritura aciona camadas
subterrâneas de sentidos que adensam a superfície textual, trançada com os “mil focos da
cultura” (essa expressão é de Barthes). Percorrer as fímbrias dessa artesania é seguir o fio
da extensa rede de múltiplas citações que come o estofo da escrita. É retornar sempre ao
ponto de partida, não para coagular o gesto original, mas para, nesse movimento de retorno,
revolver o solo de onde brota a escrita, reduplicando originariamente suas possibilidades de
229
CARNEIRO. Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no século XX, p. 14-15.
230
MIRANDA. Invenções de arquivo, máquinas de ficção, p. 67.
87
sentido. Ao tratar da “verdade da escrita”, Roland Barthes lança mão de dois personagens
emblemáticos da obra flaubertiana – Bouvard e Pécuchet – representantes “sublimes e
micos” dos eternos copistas, para ressaltar que “o escritor não pode deixar de imitar um
gesto anterior, nunca original; [e que] o seu único poder é o de misturar as escritas, de as
contrariar umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas”
231
.
Flaubert soube verter nos patéticos personagens de sua obra inacabada o incansável
fôlego da arte de copiar, perseguindo “até o fim [...] a quimera de um livro em que nada
seja dito pela primeira vez”
232
. Essa arte que sabidamente o autor cultivava desde a mais
tenra juventude nasce, ela também, motivada pelo sentimento melancólico do “tudo já foi
dito”, como ele mesmo se encarrega de admitir, num desabafo feito em missiva dirigida à
amiga Louise Colet: “Não escrevo mais – para que escrever? Tudo o que há de belo já foi
dito e bem dito. Ao invés de tentar fazer uma obra, é talvez mais sábio descobri-la, nova,
sob as antigas”
233
. E se dedicou com tamanho afinco ao penoso ofício de redigir sua
derradeira obra, copiando diligentemente manuscritos de variegada natureza (química,
medicina, geologia, filosofia etc.), que acabou por fundir-se às suas próprias criaturas:
Bouvard e Pécuchet me invade a tal ponto que me transformei neles!”
234
.
Insigne sucessor da linhagem dos copistas, Borges se notabilizou por cunhar uma
poética declaradamente tributária de sua obsessão pela leitura. A obra do escritor argentino
move-se sobre um eixo governado pela experiência facultada pela somatória de livros
agenciados em seus textos. O ato de ler impõe-se para ele como um exercício mais
relevante que o ato mesmo de escrever. É o que afirma nos conhecidos versos de “Um
leitor”: “Que outros se jactem das páginas que escreveram; / a mim me orgulham as que
li”
235
. Afirmação reiterada em diversos momentos de sua obra, como, por exemplo, no
prólogo à primeira edição de sua História universal da infâmia, em que diz: “Às vezes
creio que os bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons
autores. [...] Ler, entretanto, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais
civil, mais intelectual”
236
. O estudo da obra de Borges demanda, portanto, uma perspectiva
231
BARTHES. A morte do autor, p. 52.
232
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 32.
233
FLAUBERT apud SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 32.
234
FLAUBERT. Cartas exemplares, p. 243.
235
BORGES. Um leitor, p. 418.
236
BORGES. História universal da infâmia, p. 313.
88
que situe o autor antes de tudo como um leitor, perspectiva que instigou pensadores como
Blanchot e Genette, dentre tantos outros
237
.
Ao privilegiar a prática da leitura, construindo textos a partir da compilação, da
citação, da incorporação voraz do patrimônio lido, Borges opera o desdobramento da figura
autoral, que, em seu paroxismo, culmina no apagamento dessa instância identitária. Esse
traço peculiar da escrita borgeana, exaustivamente referido em textos críticos sobre o autor,
constitui o que Emir Monegal chama de “teoria da impessoalidade”, cujo paradigma seria a
seminal narrativa “Pierre Menard, autor do Quixote”.
O personagem-título, que acumula as funções de intelectual, crítico, tradutor e poeta
simbolista, proe-se a escrever nada mais nada menos que o imprescindível romance de
Miguel de Cervantes – Dom Quixote. Diferentemente dos copistas de Flaubert, que se
empenhavam em transcrever as obras lidas, o projeto de Menard consistia em criar um
texto intico ao de Cervantes: “Não queria compor outro Quixote – o que é cil – mas o
Quixote. Inútil acrescentar que nunca enfrentou uma transcrição mecânica do original; não
se propunha copiá-lo. Sua admivel ambição era produzir algumas páginas que
coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Cervantes”
238
. Esse
insólito feito resultou na escrita “dos capítulos nono e trisimo oitavo da primeira parte do
Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois”
239
.
A empresa “interminavelmente heróica”, como a denominou o narrador e confesso
entusiasta da obra invisível de Menard, promove a desmistificação e desmitificação da
diferença valorativa que polariza autor e leitor. O que os distingue irrompe como
acontecimento puramente contingencial, conferindo a ambos um mesmo estatuto. É o que
preconiza Borges no aviso remetido ao leitor de seu primeiro livro de poemas – Fervor de
Buenos Aires, antecipando já a iniciativa menardiana: “Se as páginas deste livro consentem
algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de tê-lo usurpado eu, previamente.
237
Sobre o enfoque dado por esses pensadores à obra de Borges, ver: BLANCHOT. Le livre à venir; e o texto
“L’utopie littéraire”, que primeiramente foi publicado em L’Herne (1964), sob o título “La littérature selon
Borges”, sendo posteriormente incorporado a Figures (Paris: Du Seuil, 1966), rebatizado aí como “L’utopie
littéraire”. Conferir também os comentários feitos por Emir Monegal sobre os respectivos estudos desses dois
pensadores em Borges: uma poética da leitura.
238
BORGES. Pierre Menard, autor do Quixote, p. 493.
239
BORGES. Pierre Menard, autor do Quixote, p. 492.
89
Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor
destes exercícios, e eu seu redator
240
.
O desejo de anulação da propriedade autoral, que se espraia fartamente na obra
borgeana, já se encontra inoculado nos seus mais incipientes rudimentos literários. Em Um
ensaio autobiográfico, Borges nos conta: “Comecei a escrever quando tinha seis ou sete
anos. Tentava imitar os clássicos espanhóis, como Cervantes. Tinha escrito em um inglês
muito ruim uma espécie de manual de mitologia grega, semvida plagiado de Lemprière.
Essa pode ter sido minha primeira incursão literária”
241
. O “trabalho da citação
242
levado a
cabo por Borges é coerente com sua teoria da “nulidade da personalidade”, distanciando-se
radicalmente da figura depreciativa do plagiário como um indivíduo que, limitado por
escasso e medíocre engenho, entrega-se à vilania da rapinagem de textos alheios. Antoine
Compagnon, afirmando a paridade entre escrita e reescrita (que, por sua vez, é equivalente
a citar
243
), avalia que:
A obra de Borges representa, sem dúvida, a exploração mais aguda do campo da
reescrita, sua extenuação. Pois se a escrita é sempre uma reescrita, mecanismos
sutis de regulação, variáveis segundo as épocas, trabalham para que ela não seja
simplesmente uma cópia, mas uma tradução, uma citão. É com esses
mecanismos que Borges organiza a violação.
244
É preciso lembrar que a questão do plágio fundamenta-se na consolidação do
estatuto de autor, deflagrando um movimento progressivo que culmina no século XIX
245
.
Como pontifica Schneider: “O plágio só aparece como contrafação infamante a partir do
momento em que o autor fica ideologicamente investido de uma individualidade de artista,
de criador, demiurgo solitário que tira de sua psique os recursos de seu estilo”
246
. Borges
não compactua com a deificação daquele que escreve, desconstruindo a idéia de autoridade
patrimonial e demiúrgica garantida ao autor. Postura, aliás, plenamente partilhada pelo
240
BORGES. Fervor de Buenos Aires, p. 13.
241
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 28.
242
Expreso que dá título ao livro de Compagnon, cujos tópicos tratam da “escrita como exercio da
intertextualidade”. Cf. COMPAGNON. O trabalho da citação.
243
Vale a pena citar o tópico de nome “Reescrita”, cujas primeiras palavras asseveram: “Escrever, pois, é
sempre reescrever,o difere de citar. A citação [...] é leitura e escrita, une o ato de leitura ao da escrita. Ler
ou escrever é realizar um ato de citação” (COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 31).
244
COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 31-32.
245
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 49.
246
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 49.
90
narrador de Se um viajante numa noite de inverno, de Calvino, que sentencia: “[...] toda
palavra pronunciada permanece e pode reaparecer a qualquer momento, com ou sem
aspas”
247
.
A dissolução do regime patriarcal de textos, sob cuja jurisdão encontra-se
resguardada a figura autoral, também é calorosamente defendida em “A flor de Coleridge”,
conto que traz em seu pórtico a seguinte citação de Paul Valéry: “A história da literatura
não deveria ser a história dos autores e dos acidentes de sua carreira ou da carreira de suas
obras, e sim a história do Esrito como produtor ou consumidor de literatura. Essa história
poderia ser levada a termo sem mencionar um único escritor”
248
. Afirmação que imanta
vozes afins, de outros tempos e espaços, consignando a máxima borgeana, de inspiração
clássica, pautada no lema de que “a literatura é o essencial, não os indivíduos”
249
, lema que
comporta, em sua impessoalidade, um “sentido ecumênico”, como comprovam as palavras
que encerram o conto:
Aqueles que copiam minuciosamente um escritor fazem-no de modo impessoal,
fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se
afastar dele em um ponto é afastar-se da razão e da ortodoxia. Durante muitos
anos, eu acreditei que a quase infinita literatura estava em um homem. Esse
homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-
Asséns, foi De Quincey.
250
Resgatando Pierre Menard, verificamos que a busca dessa impessoalidade se reflete
no próprio modelo reduplicado, uma vez que se reconhece na história do texto de Cervantes
o apagamento da figura do autor. Na “origem” do Quixote cervantino estaria a tradução de
um manuscrito árabe que o narrador encontrou num mercado de Toledo e que, por
conseguinte, teria sido traduzido por um conhecedor da língua árabe. Assim, como sintetiza
Eneida Maria de Souza, em seu texto “Borges, autor das Mil e uma noites”: “Se a história
‘nasceu’ do manuscrito e o Quixote, por sua vez, brotou dos livros de cavalaria, encarnando
a personagem como citação, também Borges se alimenta dessa escrita que já se apresenta
contaminada de falsificações e burlas”
251
.
247
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 22.
248
BORGES. A flor de Coleridge, p. 16.
249
BORGES. A flor de Coleridge, p. 18.
250
BORGES. A flor de Coleridge, p. 18.
251
SOUZA. Borges, autor das Mil e uma noites, p. 405.
91
Considerado pelo próprio Borges como “um passo intermediário entre o ensaio e o
verdadeiro conto”
252
, “Pierre Menard, autor do Quixote” encerra simbolicamente uma
poética da leitura”, tal como postula Emir Monegal, seguido de perto por João Alexandre
Barbosa, que, em Borges, leitor do Quixote”, também identifica no escritor argentino
uma poética em que a ficcionalização da realidade inclui a da leitura”
253
. Deixemos
contudo que o próprio conto realize, nas palavras de seu narrador, o epítome do método de
leitura inaugurado por Menard:
Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte fixa
e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições
errôneas. Essa técnica de aplicão infinita nos leva a percorrer a Odisséia como
se fosse posterior à Eneida e o livro Le Jardin du Centaure de Madame Henri
Bachelier como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de
aventura os livros mais pacíficos. Atribuir a Louis Ferdinand deline ou a
James Joyce a Imitação de Cristo o é suficiente renovação dessas tênues
advertências espirituais?
254
Enrique Vila-Matas, naNota parasita do referido romance O mal de Montano,
comenta o catulo “Segunda mão”, do livro O fator Borges, escrito pelo ensaísta Alan
Pauls, em que este empreende “uma reflexão especialmente aguda em torno do parasitismo
literio do grande Borges, em torno de um tema – o do vampirismo livresco [...]
255
. Neste
capítulo, Pauls avalia os efeitos benéficos que teve no Borges principiante uma ctica
hostil que escreveu, em 1933, um tal Ramón Doll sobre Discussão, o livro de ensaios que
Borges publicara um ano antes”
256
. Em seu feroz ataque, Doll acusa o autor de Ficções de
parasita literário”, como comprova o trecho seguinte, citado por Vila-Matas:
Esses artigos, bibliográficos por sua intenção ou por seu conteúdo, pertencem a
essenero de literatura parasiria que consiste em repetir mal coisas que outros
disseram bem; ou em dar por inédito Dom Quixote de la Mancha e Martin
Fierro, e imprimir páginas inteiras dessas obras; ou em simular que a ele
interessa averiguar um ponto qualquer e com ar cândido ir agregando opiniões de
outros, para que vejam que não, que ele não é unilateral, que é respeitador de
todas as idéias [...].
257
252
BORGES. Um ensaio autobiográfico, p. 111.
253
BARBOSA. Borges, leitor do Quixote, p. 66.
254
BORGES. Pierre Menard, autor do Quixote, p. 498.
255
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 119.
256
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 120.
257
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 120.
92
A condenação pública, ao invés de recair sobre Borges com o peso de uma
negatividade devastadora, intencional da parte do sujeito enunciador, foi encarada como
oportuna” por Pauls, já que Doll, malgré lui, havia então detectado o modo de
funcionamento da poética borgeana: “Com a astúcia e o sentido da economia dos grandes
inadaptados que reciclam os golpes do inimigo para fortalecer os próprios, Borges não
refuta a condenação de Doll, mas a converte – a reverte – num programa artístico
próprio”
258
, edificando sua obra sob a égide de uma “verdadeira ética da subordinação
259
.
Eminente integrante de uma galeria de personagens subalternos – “tradutores,
exegetas, anotadores de textos sagrados, intérpretes, bibliotecários”
260
etc. –, Pierre Menard
recorda “com incrédulo estupor o que o doctor universalis pensou”
261
. Afinal, como indaga
Pauls: “o que é Pierre Menard senão o cúmulo do escritor parasita, o iluminado que leva a
vocação subordinada a seu auge e a sua extinção?”
262
.
Também o narrador de O mal de Montano adere a essa fecunda prole de escritores
que declaradamente se alimentam da força alheia para erigir suas próprias obras, prestando
tributo a essa inestimável cooperação:
Pouco a pouco a porcentagem de copiado em meus poemas foi diminuindo, e
assim, lentamente, mas com certa segurança, foi aparecendo meu estilo próprio,
pessoal, sempre construído – pouco ou muito – com a colaboração dos escritores
dos quais extraía o sangue em benefício próprio. Sem pressa, fui criando para
mim um pouco de estilo próprio, não deslumbrante, mas suficiente, algo
inconfundivelmente meu, graças ao vampirismo e à colaboração dos demais,
daqueles escritores de que me valia para encontrar minha literatura pessoal.
263
Percebe-se que, a despeito das dívidas assumidas pelo narrador-escritor em relação
aos seus pares, persiste a busca de um traço emancipatório – “um resíduo extremo de
258
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 120.
259
Vale ressaltar que, ao fazer um balanço da recepção crítica de suas obras, Borges pondera, ao final de Um
ensaio autobiográfico: “As pessoas têm sido inexplicavelmente boas comigo”, dirigindo, porém, uma
divertida censura àqueles que assinam uma opinião adversa: “Todas as vezes que leio algo que escreveram
contra mim, não só compartilho o sentimento, como penso que eu mesmo poderia fazer muito melhor o
trabalho. Talvez eu devesse aconselhar os aspirantes a inimigos que me enviem suas queixas de antemão, com
a certeza absoluta de que receberão toda a minha ajuda e apoio”. E, fiel à sua prática das atribuições errôneas,
arremata com fina auto-ironia: “Secretamente, até desejei escrever, sob pseudônimo, uma longa invectiva
contra mim mesmo. Ah! As cruas verdades que guardo em meu interior!” (BORGES. Um ensaio
autobiográfico, p. 156-157).
260
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 120.
261
BORGES. Pierre Menard, autor do Quixote, p. 497.
262
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 121.
263
VILA-MATAS. O mal de Montano, p. 122.
93
irredutível individualidade” – que põe em evidência não os débitos cobrados, mas sim o
que, em meio a uma provável indiferenciação de vozes convocadas, sobressai como
resultado da reciclagem dessas vozes. Se o escritor que vem depois empreende um
anacronismo deliberado é porque ele, mesmo copiando palavra por palavra o texto de
outrem, produz um novo texto, talvez “infinitamente mais rico”, como atesta o narrador de
Pierre Menard, autor do Quixote”, ao cotejar a obra de Cervantes com a do personagem
que dá título ao conto. A capacidade de criar uma obra absolutamente intica à de
Cervantes tem como corolário a anulação da personalidade autoral. Portanto, se existe
imortalidade, essa só pode ser conferida à própria obra.
A abolição da identidade pessoal é consubstancial à abolição do tempo. Essa
questão comparece, dentre tantos outros lugares em que figura na obra borgeana, em “Nova
refutação do tempo”, quando, a certa altura, Borges relembra as impressões sentidas no
momento em que, flanando pelas ruas de Buenos Aires, depara com uma taipa rosada:
[...] essa pura representação de fatos homogêneos – noite em serenidade, murinho
límpido, cheiro provinciano de madressilva, barro fundamental – não é apenas
idêntica à que existiu nessa esquina faz tantos anos; é, sem semelhanças nem
repetições, a mesma. O tempo, se podemos intuir essa identidade, é uma delusão:
a indiferença ou inseparabilidade de um momento de seu aparente ontem e outro
de seu aparente hoje basta para desintegrá-lo.
264
Suprimir o tempo, neste caso, equivale a negar a consagração do indivíduo como
detentor de uma singularidade que lhe custodia o abrigo seguro da imortalidade, uma
espécie de premiação outorgada a poucos pelos grandiosos feitos legados à humanidade.
Como assevera Monegal: “O Tempo fica assim abolido não porque ele se sinta eterno ou
porque sua arte seja capaz de preservá-lo da eternidade da obra, mas porque ele, Borges,
o é ninguém. Ou melhor: é ninguém”
265
.
Porém, suprimir o tempo equivale ainda a consentir a simultaneidade dos fatos, que
só podemos conceber obviamente nos donios da ficção. Essa concepção é formulada, de
modo exemplar, em “O jardim de veredas que se bifurcam”, conto que explora a imagem
labiríntica do tempo múltiplo, imagem que pode ser representada pelo livro tentacular de
Ts’ui Pen: “Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas
alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta –
264
BORGES. Nova refutação do tempo, p. 159.
94
simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também
proliferam e se bifurcam”
266
. Essa passagem do conto é reiterada posteriormente num dos
Nove ensaios dantescos, intitulado “O falso problema de Ugolino”, em que Borges diz:
No tempo real, na história, cada vez que se depara com diversas alternativas, o
homem deve optar por uma e elimina ou perde as outras; mas não no ambíguo
tempo da arte, que se parece ao da esperança e ao do esquecimento. Hamlet,
nesse tempo, éo e é louco. Na treva de sua Torre da Fome, Ugolino devora e
o devora os amados cadáveres, e essa ondulante imprecisão, essa incerteza, é a
estranha matéria de que é feito. Assim, com duas possíveis agonias, sonhou-o
Dante e assim o sonharão as gerações.
267
Essa narrativa, que se apresenta como um “modelo das redes dos possíveis”, como a
denominou Calvino, expõe as regras da ficção, descortinando um universo sujeito à
inexaurível multiplicidade de suas combinações.
Como Borges, Calvino igualmente buscou trilhar veredas de bifurcados caminhos,
criando sua própria rede labiríntica de textos, inscrevendo-se na linhagem de escritores
subalternos, que rendem homenagem sobretudo à primazia da leitura. Sem temer o vento e
a vertigem, seu infatigável viajante percorre cidades invisíveis, desejando, para si mesmo, a
quimera da invisibilidade, como também a desejou o admirável parceiro Borges. Nas searas
textuais por onde excursiona, procurando apagar seus rastros, esse viajante sabe que são
inesgotáveis as histórias que esperam seu fim lá embaixo. E expressa o desejo profundo de
salvaguardá-las de um eu dominador a confrangir-lhes o perpétuo movimento de sua
tessitura:
Como eu escreveria bem se não existisse! Se entre a folha branca e a
efervescência das palavras e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem
que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique que é minha
pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a
experncia de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os
elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem
uma jaula que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão
decepada que empunha a pena e escreve... Mas o que moveria essa mão? A
multidão anônima? O espírito dos tempos? O inconsciente coletivo? Não sei. Não
quereria anular a mim mesmo para tornar-me o porta-voz de alguma coisa
definida. Só o faria para transmitir o escrevível que espera para ser escrito, o
narrável que ninguém narra.
268
265
MONEGAL. Borges: uma poética da leitura, p. 87.
266
BORGES. Os jardins de veredas que se bifurcam, p. 531.
267
BORGES. O falso problema de Ugolino, p. 395.
95
Essas divagações, tão familiares para um leitor de Borges, aparecem reiteradas ao
final de “Multiplicidade”, penúltima proposta para este milênio, idealizada por Calvino (a
sexta e última, como se sabe, cujo título seria “Consistência”, não chegou a ser escrita,
como nos informa Esther Calvino
269
). Aqui, vemos ressoar a busca da decomposição da
identidade na escrita, outrora encenada e sintetizada por Rimbaud no célebre “Je est un
autre”:
quem nos dera fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos
permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual, não só para entrar em
outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra, o
ssaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra,
o cimento, o pstico...
270
Em seu livro Se um viajante numa noite de inverno, citado anteriormente, Calvino
traz à cena o prazer sequioso da leitura, ao mesmo tempo em que põe em prática a tentativa
de apagamento da entidade autoral, criando, à maneira das “atribuições errôneas”, “uma
dezena de autores de romances imaginários”. Como ele mesmo explica:
tentar escrever romances “apócrifos”, isto é, aqueles que imagino tenham sido
escritos por um autor que não sou eu e que não existe, foi tarefa levada ao
extremo em Se um viajante numa noite de inverno. Trata-se de um romance sobre
o prazer de ler romances [...]. Mais que identificar-me com o autor de cada um
dos dez romances, procurei identificar-me com o leitor representar o prazer da
leitura deste ou daquele gênero, mais que o texto propriamente dito. Em alguns
momentos cheguei a sentir que a energia criativa desses dez autores inexistentes
me penetrava. Mas, sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na
presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros.
271
Tanto Borges como Calvino inscrevem-se nessa ordem de subordinação, que
consagra a figura do leitor como instância máxima para a qual os livros convergem. E da
qual tantos outros, multiplicados, partem, em inefável rumo. Como escribas melancólicos,
eles ensaiam um movimento de autodepreciação, que se confirma na rasura da autoria,
desdobrando-se, como vimos, no exercício das “atribuições errôneas” e dos anacronismos
deliberados”. Todavia, a autodepreciação do sujeito tem sua contrapartida na
268
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 175.
269
Cf. CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 5-7.
270
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 138.
271
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 266.
96
ficcionalização da angústia que enfronha o escritor, tomando-o de assalto no momento
mesmo em que se debate, buscando emancipar-se da opressiva presença do outro:
[...] o reconhecimento desse “roubo”, a incorporação dessa identidade outra
dentro da própria criação configura um movimento que é já uma via de escape,
uma defesa contra o temor que sempre acompanha os estados melancólicos: o
medo de, em vez de se apropriar, ser apropriado, serengolido” pelo texto alheio,
caindo na mais completa indiferenciação.
272
E se, como prodigaliza um personagem de Se um viajante..., “todos os livros
continuam além...”
273
, este passeio na companhia de Borges e Calvino recruta novos
companheiros, leitores igualmente compulsivos, que encetam suas trajetórias pessoais pelos
corredores labirínticos da babélica e interminável Biblioteca, conhecida também como “o
universo”. As novas gerações demonstram prosseguir com a aventura, proliferando a legião
de melancólicos que inaugura as primeiras fulgurações de um século ainda em sua aurora.
Prenunciados pelo ocaso do século XX, os escritores brasileiros contemporâneos
entretecem com a tradição um vínculo que passa necessariamente pela questão da
assimilação. Entendendo o processo de assimilação tal como o pensou Walter Benjamin, ou
seja, “não tanto como processo de simbiose ou fusão, em que os planos se confundem ou se
aniquilam numa unidade indiferenciada, quanto como procedimento fundamental de
interação não fusional entre diferentes planos de reflexão e interpretação
274
. Susana Lages
lembra que a relação de similaridade em Benjamin não pressupõe igualdade nem imitação,
mas aproxima-se da noção de afinidade, em que “assimilar-se equivale a relacionar-se sem
se tornar igual, reconhecendo as diferenças e fazendo com que elas entrem em contato entre
si
275
.
Na seqüência deste passeio, procuraremos seguir a trilha desbravada pelas novas
gerações saturninas, que traduzem, em suas obras, a criação literária de si como um extenso
mosaico urdido a partir da interseção de inumeráveis eus afins, fantasmas que simbolizam
esse outro –o odiado, o amado. Afinal, retomando uma vez mais Calvino:
quem somos nós, quem é cada um de nós seo uma combinatória de
experncias, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma
272
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 35-36.
273
CALVINO. Se um viajante numa noite de inverno, p. 77.
274
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 108.
275
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 108.
97
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de
estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as
maneiras possíveis.
276
Nos bosques da literatura brasileira contemporânea, encontram-se abertas sendas
que registram sulcos impressos pelas poéticas de Borges e Calvino. A importância da obra
desses escritores para a compreensão da prática ficcional contemporânea, numa época que
assistiu ao desmoronamento das grandes narrativas e à subseqüente entrada em cena dos
pequenos relatos, é constantemente reafirmada por nomes de peso da crítica literária.
Eneida de Souza, por exemplo, salienta que “o texto literário de Borges é uma referência
imprescindível para se repensar o século XX como sendo dominado pelo paradigma da
ficção, e, mais precisamente, pela ausência de limites entre a realidade e a sua construção
virtual”
277
. Conterrâneo de Borges, Ricardo Piglia, professor, crítico e autor de romances e
contos, igualmente reconhece que “a metáfora borgiana da memória alheia, com sua
insistência na claridade das lembranças artificiais, está no centro da narrativa
contemporânea”
278
. No mesmo diapasão que afina os comentários sobre Borges, Renato
Cordeiro Gomes especula acerca de Calvino: “Parece que Italo Calvino aponta, com suas
alegorias, para o esgotamento da cena moderna, para o ultrapassamento dos valores
utópicos em que a modernidade se fundamentava”
279
.
A dissolução de uma integridade identitária unívoca, em favor de uma concepção de
construção artificiosa da identidade, denunciando, portanto, um permanente vazio
ficcionalmente preenchido, ou seja, livre de pretensões ontologizantes, constitui um dos
princípios orquestradores dessas poéticas. Como certifica Eneida de Souza, acerca de
Borges, num comentário que bem poderia incluir Calvino: “Marcado fortemente pela
diluição do sujeito-autor na cena enunciativa, a criação ficcional borgiana se inscreve como
jogo de máscaras e de embustes, jogo que irá participar da invenção da realidade”
280
.
276
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 138.
277
SOUZA. O século de Borges, p. 28-29.
278
PIGLIA. Formas breves, p. 44.
279
GOMES. A cidade moderna e suas derivas pós-modernas, p. 29.
280
SOUZA. O século de Borges, p. 114-115.
98
Esse mecanismo, que opera na dupla clave do distanciamento e da auto-
reflexividade, embora possamos detectá-lo em precursores como Machado de Assis
281
, por
exemplo, espraia-se exaustiva e copiosamente no circuito das nossas produções literárias
contemporâneas. Encontramo-lo em Barco a seco, de Rubens Figueiredo, na frustrante
tentativa de Gaspar Dias, o narrador, empenhado no resgate da “verdadeira” história de
Emilio Vega, pintor excêntrico de marinhas, tentativa que resulta no entrelaçamento de
ambos os personagens, anulando qualquer possibilidade de fixação identitária:
Mas, a rigor, quem é esse que nada para se matar dentro da água? Quem pode ser
esse que dá a impressão de querer desmanchar-se nas ondas? Cada vez mais
nervosas, as ondas o perseguem. Enlaçam com força suas costelas, puxam-no
pelo pesco para baixo até esfregar sua cara contra o fundo de areia – tome,
prove um pouco do seu próprio gosto. Isto aqui não é você? Não é isto o que você
procura?
282
Encontramo-lo também, na sua versão inica, em O falso mentiroso: merias, de
Silviano Santiago, que borra incansavelmente a linha que recorta a iluria unicidade do
narrador no trabalho de reconstrução memorialística a que se proe: “Às vezes fala um de
mim. Às vezes fala o outro de mim. Às vezes o terceiro de mim e ainda o quarto – aquele
cuja biografia escamoteei, lembram-se? e até o quinto – o inverossímil formiguense, antes
referido
283
.
Pelas aléias desses bosques, desfilam igualmente, além dessas, tantas outras vozes
que, apesar de operarem cada qual em registros distintos, ressoam acordes comuns,
entoando uma espécie de “baixo contínuo”
284
, que perpassa os interstícios de diferentes
tessituras, emanando o tom de fatura melancólica, com dicção inclinadamente cética.
Walter Moser, ao abordar os afetos que integram o terririo do Spätzeit, destaca
dois dentre eles: a nostalgia e a melancolia, assinalando o lastro que os une: “Os dois têm
281
Basta lembrarmos um de seus mais célebres romancesMemórias póstumas de Brás Cubas – para
verificarmos aí a adoção de uma postura cética e auto-irônica, calcada, como ressalta Gustavo Bernardo em
seu artigo dedicado às narrativas machadianas, na reflexão e, ainda, na reflexão sobre a reflexão, postura que
o afasta diametralmente da estética realista, uma vez que dissemina a dúvida ee a realidade sob suspeição
(Cf. BERNARDO. Pode um cético dar conselhos? ou: o paradoxo machadiano).
282
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 189.
283
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 180-181.
284
O baixo contínuo, empregado aqui como metáfora que alinhava as narrativas de nosso corpus literário, é
uma expressão que, segundo o Dicionário Grove de música, “se refere à parte ininterrupta de baixo que
percorre toda a obra concertante do período barroco (também do Renascimento tardio e do primeiro período
clássico) e serve como base para as harmonias” (Dicionário Grove de música: edição concisa, p. 66).
99
em comum o fato de serem provocados pela experiência de uma perda, ou, pelo menos,
pela consciência de uma distância que deslizou entre nós e um objeto que nossa força
desejante desinvestiu”
285
. Mas esclarece desde logo a diferença existente entre ambos,
afirmando que a nostalgia nos impele a tentar “recuperar o objeto perdido e gozar dele
novamente, ou, pelo menos, encurtar a distância que nos separa dele”, baseando-se no fato
de que esse objeto “permaneceu intacto, esperando-nos alhures, numa temporalidade em
relação à qual a nossa se define como um Spätzeit
286
.
O afeto nostálgico, no afã saudosista de restituição do passado, negligencia o
presente, visto negativamente como um tempo incapaz de proporcionar a satisfação outrora
obtida com o objeto perdido, um tempo, pois, sempre em débito com o presente. Cativo do
passado, o objeto permaneceria incólume, com sua forma original preservada, à espera de
seu resgate. Como a restituição integral desse objeto é inviável, o impulso nostálgico
resvala fatalmente num certo niilismo, propenso à aniquilação total da vontade, à certeza da
nulidade de qualquer ação.
Já a melancolia, que guarda relações com o ceticismo na medida mesmo em que se
aplica na indagação do objeto perdido, sabendo-o irrecuperável, impossibilitada de cumprir
o trabalho de luto, e, portanto, impedida de desinvestir o objeto, compreende que “tem
ainda algum trabalho a fazer com esse objeto, se bem que à distância e sem esperança de
recuperá-lo. Ele [o melancólico] sabe que deve entender-se ao mesmo tempo com esse
objeto e com sua perda”
287
.
A permanência dos los entretidos com o objeto, a despeito da consciência de sua
intangibilidade, é consignada pela contemplação. O ato de contemplar não corresponde
aqui à observação passiva daquilo que se afigura inalcançável. Relacionar-se com o objeto
perdido por meio da contemplação pressupõe a desalienação desse passado, atrelado a uma
perspectiva histórica condicionada à idéia de constituição ontoteleológica da humanidade.
Subordinada a essa dimensão metafísica, a história se projeta linearmente sobre uma
temporalidade tecida de eventos que se sucedem segundo o princípio da causalidade, rumo
a um objetivo final preestabelecido por esse trajeto horizontal, de inspiração hegeliana.
285
MOSER. Spätzeit, p. 49.
286
MOSER. Spätzeit, p. 50.
287
MOSER. Spätzeit, p. 50-51.
100
Liberar o passado desse tipo de enfoque determinista e imobilizante é liberar as forças que
nele foram reprimidas e que, de outro modo, quedariam numa impotente mudez.
Nas narrativas brasileiras contemporâneas, que serão contempladas nos capítulos
seguintes, buscaremos evidenciar a rentabilidade da melancolia, vista como uma afecção
radicada na ambivancia apontada por Moser: se de um lado a melancolia exibe o vazio
deixado pelo objeto perdido, por outro trata de colmatar esse espaço lacunar, consciente de
ser essa uma tarefa infindável. Daí ser a afecção “intelectualmente produtiva”, nas palavras
de Moser. Daí ser a melancolia “afirmativa”, em nossas palavras.
Numa época dominada pelas incertezas e pela perda de referenciais estanques, a
literatura atual escapa de abismar-se no vazio, lançando-se num embate frontal com o
assombro que ele representa. Diante desse vazio, ela prossegue interrogando suas
profundezas, sem alimentar, contudo, o engodo de obter a utopia das respostas definitivas,
multiplicando com fortalecido ânimo o inexaurível universo da biblioteca, tal como a
pensou Borges:iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes
preciosos, inútil, incorruptível, secreta”
288
.
A aventura pelos corredores labirínticos da escrita de Borges e Calvino encerra
nossos preparativos para a próxima expedição, indicando que é hora de levantar âncora e
partir para outras viagens.
288
BORGES. A biblioteca de Babel, p. 522.
101
VIAGENS
102
3 Debruçando-se na borda de um barco a seco
A ausência é a permissão dada às letras para
se soletrarem e significarem, mas é também,
na torção sobre si da linguagem, o que
dizem as letras: dizem a liberdade e a
vacância concedida, o que elas “formam” ao
fechá-la na sua rede.
(Jacques Derrida)
3.1 Entre marinhas e marolas: o cordão imaginário
A verdadeira legibilidade sempre éstuma.
(Ricardo Piglia)
Barco a seco, de Rubens Figueiredo, é uma espécie de narrativa em filigrana, de
entrelamentos múltiplos, em que identidades se intercambiam, anulam-se para recriarem
suas biografias e, na vertigem dessa dispersão, espraiam a precariedade de sua
incompletude.
Na história, o narrador – Gaspar Dias – é um perito na arte de atestar a autenticidade
de quadros, que se lança o desafio de descobrir a verdadeira autoria de pinturas atribuídas
ao misterioso Emilio Vega. A própria existência emrica do artista, pintor de marinhas
disputadíssimas no mercado artístico, integra parte do enigma que bordeja sua figura.
A tarefa do narrador consiste em negar o discurso outorgado pela história oficial,
sancionando a imagem requestada do artista “moldado pelos folhetos e enciclopédias de
arte”: “Emilio Vega, o pintor do mar, era o que todos diziam. O homem que só pintava
botes, navios de pesca, barquinhos, marolas que lambiam as pedras em enseadas; o artista
adorado pelos colecionadores fúteis, diletantes, o grande pintor do mar, era o que todos
diziam – todos, mas não eu”
289
.
289
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 13.
103
O que está em jogo, aqui, é a homologação dos valores autêntico/inautêntico,
mito/realidade, vida/morte. O projeto de Gaspar visa a erguer um legítimo Emilio Vega,
operação que implica “descobrir o que é verdadeiro, identificar e pôr de lado o que está
errado, o que é falso
290
. Seu empenho é favorecido pelo pioneirismo, já que, como ele
mesmo proclama: “Antes de mim, nunca houve um estudo mais sério sobre Vega”
291
.
A linha divisória que separaria verdade e mentira, original e cópia, e que o narrador
insiste em traçar, é acentuada na narrativa pelas atribuições concernentes à sua profissão.
As inúmeras falsificações de Vega que aportam às suas mãos sujeitam-se à aferição de sua
perícia técnica, sendo cabalmente desmascaradas: “Eu era uma espécie de juiz que
condenava inocentes justamente por causa de sua inocência”
292
. Cada obra submetida a seu
crivo curva-se ao veredicto que anuncia sua glória ou sua derrocada:
Nesse ofício, o verdadeiro e o falso não podem empatar. A menor dúvida a
respeito de um quadro transforma em borrões murchos o que um minuto antes
parecia a radiosa vio de um artista.
Às vezes me confundo ao ver como uma operação estritamente técnica é capaz de
produzir nas pessoas o efeito de uma mágica. Para elas, a falta de autenticidade é
um feitiço lançado no fundo dos olhos, um sortilégio cujo poder as impede de
enxergar aquilo que as retinas, no entanto, continuam a ver. A palavra mágica é
pronunciada e no mesmo instante uma rigidez domina seus olhos, um choque faz
as feições afundarem ligeiramente no rosto e, dali em diante, nenhuma
explicação, nenhuma palavra razoável será capaz de recuperar nem sequer uma
parcela da afeição traída.
293
Gaspar dedica-se com obstinada devoção à desmistificação e desmitificação da
“lenda piegas” erguida em torno à figura de Emilio Vega. Sua obsessão o leva a querer
destruir o Vega usurpador, fabricado pela má-fé e pelo júbilo da vulgaridade”
294
. Ele parte
do princípio de que a imagem de pintor excêntrico e irreverente, propagada de forma
indiscriminada, oculta a “verdade” que se aninha nos subterrâneos de uma genuína história,
história que ele, Gaspar, quer apresentar ao mundo.
Trata-se de contrapor o discurso que, segundo o narrador, falseia o retrato do artista,
pintado com as cores da mediocridade, ao discurso que aspira ser a expressão da mais
autêntica “verdade”. De um lado, um perfil obscuro, cujas lacunas são justificadas pela
290
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 48.
291
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 30.
292
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 57.
293
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 49.
294
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 121.
104
fama de pintor extravagante e pela carência de informações sobre sua vida, resultando
numa imagem que rende gordas cifras para comerciantes de obras de arte, mas que não
passa de um engodo de pouco prestígio entre críticos e historiadores. De outro lado, o
“verdadeiro” Vega, o artista restaurado das cinzas originadas da combustão de uma história
vulgar, a face finalmente revelada após a remoção de espessas camadas de tinta.
Para infundir credibilidade ao seu retrato, Gaspar procura reunir documentos
comprobatórios, lavrados em cartório. Espera, de posse da prova viva fornecida por esses
documentos, recompor a unidade e a pureza de um original coeso.
A atitude do narrador, ao procurar restabelecer um fio linear na história da vida do
pintor, parece reeditar assim o cacoete positivista, detectado no Historicismo. Essa vertente
de pensamento, como mencionamos, assenta-se na defesa de uma continuidade temporal
destinada a eliminar a complexidade inalienável da realidade, submetida à construção de
uma artificiosa narrativa, que “se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários
momentos da história”
295
. Origem e fim, dois extremos de um vetor sempre em ritmo
ascendente, encerram seu enredo.
A ótica de Gaspar semelha à do homem comprometido com a fundação de verdades
unas e absolutas. O mundo criado segundo essa ótica assumiria uma transparência
impoluta. Uma ordem inabalável responderia pela permanência de valores últimos,
garantindo sua existência vitalícia. Essa ordem seria regida por uma concepção de história
calcada na seqüencialidade de fatos registrados consoante o critério de sua irrupção no
curso cronológico e, portanto, linear de um tempo teleologicamente determinado.
Tal como o historiador do historicismo, Gaspar se engaja na construção de sua
narrativa, desfiando entre os dedos os acontecimentos, “como as contas de um rosário”
296
.
Abjurando com veemência o Vega impreciso, fruto de uma lenda inescrupulosa, o narrador
almeja impor sua palavra sentenciosa, selando a paternidade do relato que envolve a vida
do pintor:
Na auncia de provas, na omiso da força mágica dos carimbos e tabeliães, não
admira que as tábuas de Vega tomassem a forma de relíquias de uma fé. O pintor
inventado, o extravagante, o improvisador, o desajustado que, descalço, quase
esmolava pelas ruas, podia circular à vontade na imaginação de quem gosta
dessas coisas. Eu, por meu lado, caçava documentos capazes de cunhar em aço o
295
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 232.
296
BENJAMIN. Sobre o conceito da história, p. 232.
105
relevo de um Vega genuíno, as feições puras, brutas, loucas que fossem, dane-se
– mas de um Emilio Vega que saísse do molde das minhas mãos, e que por isso,
o o nego, vivesse sempre sob o meu poder.
297
A percuciente tirania exercida por Gaspar sobre Vega reverbera na particular noção
de originalidade defendida pelo narrador.
De imediato, percebemos um certo paralelismo entre os métodos empregados por
Gaspar para autenticar ou não as obras de arte sob sua tutela – métodos esses exigidos por
sua profissão – e os mecanismos que adota na reconstrução biográfica do pintor. O ocio
de perito demanda a aplicação de parâmetros de análise baseados na idéia de um modelo
único e irrepetível. Esse modelo, harmonicamente composto, seria formado por um
conjunto de traços cuja configuração resulta numa grafia, numa espécie de assinatura, que
apontaria para uma marca autoral de caráter, em princípio, inimitável. A autenticidade,
nesse caso, seria atribuída às obras que se sujeitassem ao despotismo estatuído pelas
linhas letimas que traçam o original. Como se fossem um prolongamento natural dessa
escrita. Como se a somatória de suas inscrições ratificasse a singularidade de um gesto
primordial. O exame dos objetos artísticos, tendo em vista a verificação de sua
autenticidade, pressupõe a submissão incondicional a essa concepção de originalidade.
O exercício da faculdade judicativa do perito associa-se à sua capacidade de
traduzir os traços do outro buscando encontrar os vestígios do mesmo. J. Salas Subirat,
tradutor que verteu o Ulysses, de Joyce, para o espanhol, afirma que “traduzir é a maneira
mais atenta de ler
298
. Traduzir é pois penetrar na intimidade do lido sem o pejo de tocar
uma superfície casta. A tarefa do perito coaduna-se com a tarefa do tradutor, ambos leitores
acurados de seus respectivos suportes de decifração. Nesse sentido, Gaspar é duplamente
tradutor: traduz tanto as obras que almejam a consagração de uma suposta paternidade a
aferir-lhes valor de mercado, quanto os próprios fragmentos relacionados ao núcleo gerador
dessas obras, ou seja, o pintor Emilio Vega.
Na convergência da tradução desses dois componentes textuais – o homem e sua
obra – encontra-se um paradigma matricial de fatura ontológica, posto que engendrado a
partir da idealização da forma, que, no limite, é consubstancial à noção de forma ideal. Essa
convergência é expressa, por exemplo, quando Gaspar rechaça as histórias extravagantes
297
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 121.
298
SUBIRAT apud CAMPOS. Da tradução como criação e como crítica, p. 43.
106
que circulam sobre o pintor, buscando fundamentar uma imagem coerente, não
contraditória, de um Vega guiado pelo esprit de géométrie, de que sua arte seria
testemunha:
Retiraram de cena, aos trancos, o homem compenetrado, metódico. Cortaram do
braço a mão rigorosa. Trocaram Vega por um aventureiro, um irresponsável, que
eles se felicitam por chamar de espírito livre.
299
Nada de excêntrico, nada de leviano, nem sombra da imprevidência de um louco.
Vega agia, em cada detalhe, com rigorosa responsabilidade.
300
A aludida coerência seria então justificada pelos procedimentos típicos da estética
do pintor, em consonância com o seu suposto modo de ser, assegurando a
imperturbabilidade da relação de causa e efeito sobre a qual o narrador se apóia. É sob esse
viés que Gaspar lê as pinturas de Vega. Vida e obra em uníssono:
o é preciso régua, esquadro nem nada. Basta olhar a vela triangular do barco,
disposta enviesada, quase no centro do retângulo da caixa de charutos, para saber
quanta geometria e raciocínio moviam a mão de Vega. Despistar as simetrias com
cálculo de tamanho rigor é a maior honra que se pode conferir à simetria
propriamente dita. [...] Em cada detalhe, a precisão do olhar que enxerga atras
da pele do paciente.
301
O empenho de Gaspar, voltado para a edificação de um Vega original, indica, assim,
a vontade de traduzir as linhas “autênticas”, capazes de recuperar a plenitude de uma forma
anterior, que recorta a silhueta desse artista. O pressuposto que se encontra no esteio desse
projeto alia-se à convicção de que sob a imagem disforme e abstrusa do pintor oculta-se a
unidade totalizante de um retrato sem divergência e sem discrepância, à espera de seu
desvelamento.
Gaspar assume para si a tarefa de traduzir essa imagem idealizada e
supervalorizada de Vega. A tradução, tal como empreendida pelo personagem de
Figueiredo, funciona como artifício que visa a fazer coincidir, numa fusão utópica, o texto
original e o texto traduzido. O objetivo final desse tipo de tradução repousa na transmissão
de um conteúdo significativo, privilegiando-se, dessa forma, a dimensão comunicativa da
linguagem.
299
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 83.
300
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 110.
301
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 142-143.
107
Essa concepção de tradução remonta à vertente que vigorou especialmente na
França, no século XVIII, e pode ser sintetizada na expressão belles infidèles, cuja
prerrogativa assentava-se “numa submissão absoluta no ato da tradução à batuta da ngua
de chegada”
302
. Conforme preconizava essa tendência, a traição implícita no termo infidèles
dizia respeito à adulteração da forma apresentada pelo texto de partida, remodelada de
modo a assegurar a integridade da mensagem (sua “esncia”) ao alcançar seu destino – a
língua de chegada, língua infiel, que trai a forma original em nome da probidade do
sentido.
A postura exercida pelo narrador denuncia um horizonte metasico, já que
pressupõe, como salienta Márcio Seligmann-Silva, “a separação entre significantes e
significados
303
. A atitude de Gaspar, portanto, aponta para o tipo de atividade tradutória
que, partindo da premissa de um “ser” da tradução, hierarquicamente dominante, porta um
significado implícito que reivindica seu transporte para a língua do tradutor.
Contudo, apesar do reiterado esforço do narrador, o que percebemos ao longo de
toda a narrativa é justamente um constante pôr em xeque dessa idéia de tradução calcada no
mero traslado de sentido.
Com efeito, o romance mostra a total insuficncia dessa modalidade tradutória.
Gaspar fracassa ao buscar cingir a substância esquiva de que são feitos pintor e obra. A
alavanca que propulsiona seu irremediável malogro emerge na figura de Inácio Cabrera –
um velho que se anuncia como testemunha viva do pintor, mas que, ao final da história,
compreendemos ser ninguém menos do que o próprio Emilio Vega: “Tudo o que, durante
anos, eu havia proposto e comprovado ao preço de tantos argumentos, de tanto rigor e
método, compunha agora uma lenda, tão rarefeita, tão confeitada de pieguices quanto
aquela que Inácio Cabrera difundia e que ele, a seu modo, personificava diante dos meus
olhos”
304
. Essa derrota do narrador, ao tentar asseverar a qualquer custo tanto a verdade
sobre Vega quanto sobre seu legado artístico, é curiosamente sinalizada pelo seu próprio
discurso, sendo textualmente expressa nas linhas mesmas que tecem seu relato.
Uma leitura displicente enxergaria aqui apenas uma visível “contradição” do
personagem. Mas, aumentando o foco sobre esse aspecto desarticulador, a visibilidade
302
SELIGMANN-SILVA. O local da diferença, p. 169.
303
SELIGMANN-SILVA. O local da diferença, p. 169.
304
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 186.
108
permite revelar recônditos inesperados, que reenviam à problemática inicialmente proposta
– a questão da tradução. Levando em conta o fracasso surpreendido na voz narrativa, o
gesto tradutório nos obriga a um redimensionamento de seu estatuto, bem como das
prerrogativas que encampam a noção acima evocada.
Essa flagrante “contradição” do narrador, embora formulada com as suas palavras,
não é entretanto percebida claramente por ele. Tudo se passa como se o narrador não se
desse conta do que o seu próprio discurso professa, como se não tivesse plena consciência
da total impossibilidade de concreção de seu projeto, incontáveis vezes declarado como
intenção de percurso. Tal intenção, exaustivamente repetida – a de desmascarar uma falsa
história, em nome de uma incondicional fidelidade à verdade (“Eu tinha certo prazer em
dizer a mim mesmo que minha destreza consistia em banhar em ácido as deturpações, até
que algum vestígio de verdade emergisse dali”
305
) –, é assim traída pelo modo como
consti seu discurso narrativo. Um dos inúmeros sentidos atribuídos a “trair” concerne ao
ato de “dar a perceber, involuntariamente
306
. Essa designação alcançada pelo verbo ajusta-
se com perfeição ao discurso de Gaspar, que demonstra não perceber o que seu relato, no
entanto, revela – a inaferrabilidade da verdade.
Ao dardejar críticas àqueles que multiplicam, de forma irresponvel”, as
incongruências sobre Vega, o narrador reverte, sem o saber, a mira de seus ataques,
tornando-se, ele mesmo, involuntariamente, como num efeito bumerangue, seu alvo. Isso
ocorre, por exemplo, quando Gaspar afirma: “Ninguém fala pelos mortos, a não ser para
traí-los
307
, parecendo não compreender que seu ventriloquismo é uma evidente
demonstração do delito de “lesa-defunto”, pois, convém lembrar, a história do pintor, que o
narrador supunha morto, é uma história saída do molde das suas mãos, como ele próprio
faz questão de enfatizar.
É interessante notar, nesse sentido, a maneira como Gaspar, em face da descoberta
de que Cabrera e Vega são uma única pessoa, exprime receio e perplexidade ao ver
naufragarem todos os esforços recrutados a fim de dar espessura à verdade que buscava:
“Como não ficar apreensivo em confronto com um hóspede que se instala no pensamento
com ganas de um predador, que toma as minhas palavras e as volta uma a uma contra
305
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 84.
306
FERREIRA. Novo Aulio século XXI: o dicionário dangua portuguesa, p. 1983, grifo nosso.
307
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 84.
109
mim?
308
. Não é mais o morto que é traído por ser apropriado de forma espúria. Mas é o
“morto”, com sua indevassável “verdade”, quem acaba traindo os que pretendem enredá-lo.
Daí a conclusão a que chega Gaspar, ao final de seu relato:
Cada vida é uma traição, pensei. Tem de ser uma traição. Não pode ser outra
coisa, mesmo queatrás, no fundo do tempo, lá de onde tudo se desencadeia,
não exista nada, nem uma concha vazia, nem uma unha, nem um simples caco de
osso, que possa representar aquilo que é, desse modo, tantas vezes traído.
309
O estatuto de justiceiro, expresso na aversão que nutria pelos falsários das obras de
Vega e no prazer que desfrutava ao desmascará-los, é relativizado em face da descoberta de
que Cabrera falsificara obras atribuídas ao pintor. Na posição de defensor da verdade,
Gaspar parece ignorar a traição a esse princípio, embutida no seu discurso:
Eu sabia com quem estava lidando e, se me mantinha calado, seo o obrigava a
confessar abertamente o seu crime, era também porque ainda vislumbrava com
cobiça a oportunidade de algumas descobertas sobre o verdadeiro Vega, mediante
o testemunho de Inácio. Por mais suspeito e por mais corrompido que fosse esse
testemunho.
310
A rígida militância propagada em nome da verdade sofre aqui concessões, ainda que
o narrador não demonstre consciência disso. Como bem o nota Luiz Costa Lima:Como
um bomhomem sem traços particulares’, o narrador não capta que a diferença que faz
entre sua ‘cobiça’ e a corrupção de Cabrera comprometia a sua distinção de justiceiro”
311
.
Há uma ingente defasagem entre aquilo que Gaspar planeja executar e a maneira
como se desenrola na prática esse projeto. A narrativa demonstra que a percepção do
narrador está em descompasso com o que o seu discurso mesmo manifesta: a
impossibilidade de obter logro nessa busca desenfreada pela verdade.
Essa dissimetria, que se instala entre a declaração de uma vontade e o fracasso de
sua realização, já se insinua no curso da narração desde as primeiras linhas, quando,
sintomaticamente, Gaspar afirma: "Há tempos, tracei eu mesmo meu limite. [...] Mas nem
sempre basta. Nem sempre funciona”
312
. Da mesma forma, ainda nas páginas iniciais de seu
308
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 81.
309
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 187.
310
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 172.
311
LIMA. Três aproximações de Rubens Figueiredo, p. 301.
312
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 10.
110
relato, ao discorrer sobre a compulsão de Vega pela pintura, transformando em marinhas os
mais díspares suportes, o narrador deixa escapar um significativo comentário, inteiramente
ambíguo: “Não havia como contê-lo
313
. Sentença que já atesta, à revelia de Gaspar, a
inexeqüibilidade de seu empreendimento.
Percebemos então que nos encontramos diante de um narrador aquém daquilo que
narra, de um narrador desdito pela sua própria narrativa. Costa Lima, comentando esse
descompasso, salienta: “A astúcia do romancista está em não ‘saber’ que seu ‘brinquedo
contém uma bomba. Ou seja, em conceber um narrador menos complexo do que o que
narra”
314
.
Se de um lado Gaspar afirma categoricamente seu intento, por outro a estrutura que
performa sua linguagem desfaz ponto por ponto qualquer possibilidade de realização desse
propósito. Seu relato não segue uma organização linear. Pelo contrário, o tecido de sua
narrativa adquire a configuração de um mosaico, cujas partes se articulam por meio da
reiteração de imagens que, intermitentemente, se cruzam, intensificando, a cada
tangenciamento, a complexidade de sua malha. A expressa busca pela verdade, almejada
com “rigor e método”, é irremediavelmente ofuscada por um discurso fragmentado,
costurado com oscilações, titubeios e tergiversações, denunciando, sob a capa
pretensamente inquebrantável da verdade, a ótica de um “saturniano melancólico”, de um
pesquisador alegórico”, para tomarmos de empréstimo as expressões de Jeanne Marie
Gagnebin
315
, imputadas a Walter Benjamin.
O todo de que se serve o melanlico, o alegorista, para conferir significação às
coisas contrasta com o adotado pelo homem humanista, para quem o pensamento deveria
ser governado pela ânsia de totalização voltada para o conhecimento da verdade. Se essa
última inclinação surge expressa como uma quase obsessão na voz do narrador, é essa
mesma voz que, paradoxalmente, se consti seguindo a deriva típica do melancólico. Sem
imporlimites” previamente vislumbrados, o melancólico lança o de um método
definido por Benjamin como uma forma análoga ao exercício da contemplação.
A atividade contemplativa, aliada à figura do melancólico, atravessa quase toda a
tradição da melancolia, dando origem, como visto, a diversas interpolações, abrigando
313
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 20, grifo nosso.
314
LIMA. Três aproximações de Rubens Figueiredo, p. 300.
315
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 88.
111
desde os estados contemplativos inerentes à intensa atividade intelectual (de que a figura
alada da gravura de Dürer assoma como emblema) até a contemplação grave e imobilizante
da acedia medieval (o taedium cordis), que conduzia à inércia e ao suicídio.
O método benjaminiano, comparável à faculdade de contemplar, não segue um
percurso linear e ininterrupto rumo a uma destinação a priori instaurada. Benjamin defende
a idéia de que “método é caminho indireto, é desvio”
316
. A rentabilidade permitida por esse
modus operandi não assegura a conquista de diretrizes prefixadas, como suporia a tradição
classicista, mas, optando justamente pela liberdade de ação, possibilita uma clivagem do
objeto, descortinando uma organicidade fundada na precariedade e na trasitoriedade,
favorecendo a proliferação de suas vias de sentido:
Incanvel, o pensamento coma sempre de novo, e volta sempre,
minuciosamente às próprias coisas. Esse fôlego infatigável é a mais auntica
forma de ser da contemplação. Pois ao considerar um mesmo objeto nos rios
estratos de sua significação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o
recomeço perpétuo e uma justificão para a intermitência do seu ritmo.
317
O discurso de Gaspar Dias espraia os movimentos ondeantes e vacilantes que
circunscrevem a postura contemplativa, sinalizando a ruminação característica do olhar
melancólico. Como vimos anteriormente, em virtude do assinalado descompasso entre
enunciador e enunciação, é flagrante a maneira como o narrador denota a fragilidade de seu
objetivo precípuo, ensaiando uma derrota desde há muito prenunciada. Nesses momentos,
vem à tona um narrador hesitante, rendido pela dúvida e pela insegurança, consciente de
suas limitações. É o que ocorre, por exemplo, na abertura do terceiro capítulo, em que
Gaspar reconhece: “Não consigo ir adiante. Não posso forçar minha mão a escrever a
seqüência. Por esse caminho omais onde se segurar
318
. Ou ainda no início do décimo
capítulo, quando, reiterando ipsis litteris frases registradas nas páginas iniciais do romance,
declara:
Conheço mais ou menos bem esse mar. Não costumo nadar para longe. Mas nem
sempre lembro que no aspecto rotineiro da água está o seu maior engano. [...] a
simples delícia de nadar pode insinuar a impressão de que não só meu corpo, mas
tudo, sem saber, está também flutuando. Pode sugerir que não existe, em parte
alguma, nada de sólido por baixo. D nasce um outro receio: se um dia o mundo
316
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 50.
317
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 50.
318
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 28.
112
se der conta disso, se o seu equilíbrio distraído se romper, como ele pode
impedir que tudo cesse de repente, como ele poderá evitar que ele mesmo afunde,
de uma vez por todas?
319
A obliqüidade da narrativa reforça tanto o aspecto impalpável da verdade quanto a
impossibilidade de fixação identitária baseada na ilusão de uma integridade a ser resgatada.
Acerca dessa deriva que frustra a fixação de contornos definidos já se manifestava São
Jerônimo, tradutor do Antigo Testamento, cuja versão das Escrituras Sagradas foi
proclamada “autêntica” pelo Concílio de Trento, em 1546
320
. Dizia ele: “É dicil, para
quem segue o rastro das linhas de um outro, não se desviar em algum lugar”
321
. Em Barco
a seco, essa dificuldade de linearidade na reconstituição do outro ricocheteia na estrutura
fragmentária do relato, numa adesão mimética ao objeto da contemplação.
A ruminação do melancólico narrador vai ao encontro da tarefa de traduzir o objeto
que se oferece ao seu olhar. Porém, o fluxo dessa ruminação é elíptico, desviante, não
seguindo, como vimos, um curso retilíneo. Dessa forma, a noção de tradução aqui afasta-se
daquela anteriormente referida, balizada pelo prosito de transferência de sentido, pelo
enlace fusional entre texto original e texto traduzido. O romance de Figueiredo traz à tona
esse tipo de tradução utópica para melhor desarticulá-lo, invalidá-lo enquanto modo de
conhecimento do mundo. Nesse sentido, é sintomática a alise do narrador sobre as
pinturas de Vega, fazendo ressoar a cisão entre as palavras e as coisas, ao declarar que “o
oceano nunca espelhava o céu”
322
.
Torna-se patente, nessa declaração, uma outra idéia de tradução – a que circunda o
duplo movimento de desconstrução e reconstrução, que repele a reprodução do original
como modelo a ser imitado. Essa outra idéia é defendida por Benjamin, no clássico A tarefa
do tradutor
323
, em que o termo Aufgabe, condensando os significados de renúncia e tarefa,
já aponta a necessidade de desistência de recuperação do original. A tentativa de
recomposição do texto primeiro é articulada em termos metafóricos por meio da imagem
dos cacos de um vaso. Recomposição decantada num ato amoroso:
319
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 104.
320
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 42.
321
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 134, grifo nosso.
322
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 22.
323
Cf. BENJAMIN. A tarefa do tradutor.
113
[...] do mesmo modo que, se quisermos juntar de novo os cacos de um vaso, estes
têm de corresponder uns aos outros, sem serem todavia necessariamente iguais
quanto às suas ínfimas particularidades, também a tradução, em vez de imitar o
original para se aparentar a ele, deve insinuar-se com amor nas mais ínfimas
particularidades tanto dos modos do “querer dizer” original como na sua própria
língua, isto de maneira a juntá-las como se fossem cacos de um vaso [...].
324
O conceito benjaminiano de tradão, como nota Lages, é atravessado pelo influxo
melancólico, pois “pressupõe, de um lado, a aceitação de uma distância, de uma separação
de um fundo textual reconhecido como anterior, por definição, inapreensível em sua
anterioridade; por outro, implica a destruição involuntária desse texto anterior e sua
reconstituição, em outro tempo, outra língua, outra cultura, enfim em uma situação de
alteridade ou outridade radical
325
. A tradução melancólica, abstendo-se de se apossar do
original, supõe cortejá-lo amorosamente, redefinindo seus traços primordiais, endossando-o
como outro.
A impossibilidade de cingir a alteridade irredutível que o outro representa resvala na
exigência de “des-marcação”, como desaparecimento da “marca original” ou “marca de
origem”, configurando assim uma “outra lógica”, que impede a apropriação: “O horizonte
indemarcável dessa outra lógica afirma a lógica do outro, impossível de se opor
diretamente à lógica do idêntico. Que o outro possa ser outro, sem redução a qualquer
identidade prévia, nem mesmo a título de comparação
326
.
O apagamento da inscrição primária, na obra de Figueiredo, desdobra-se na idéia de
auto-des-marcação, sugerindo a aniquilação das próprias marcas originais, idéia traduzida
plasticamente nesta bela passagem: “Nadar era jogar fora tudo o que lhe pertencia, afastar-
se dos traços que ele deixara na terra, fugir até das marcas da sua passagem pela água, que
o mar guardava por alguns instantes”
327
.
Em Barco a seco, a problematização dos limites – a questão da “des-marcação” – é
levada ao paroxismo ao verificarmos que o empreendimento de re-construção de Vega alia-
se inextrincavelmente à determinação do narrador no sentido de retraçar sua própria
324
BENJAMIN. A tarefa do tradutor, p. 41.
325
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 204.
326
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p. 95,
grifos do autor.
327
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 140, grifo nosso.
114
história, erigindo uma identidade para si desenhada com as linhas que decalcam a
fisionomia do outro.
A imbricação dos dois personagens surge logo no primeiro capítulo, inteiramente
dedicado à descrição do quase afogamento do narrador. Essa cena, que ocupa todo esse
capítulo de abertura, adquire uma insuspeitada relevância no contexto da trama, sobretudo
ao alcançarmos as últimas páginas do livro, que, ao espelharem, embora de modo ambíguo,
a “situação-limite” vivenciada por Gaspar, nos convocam, por essa razão, a refazer o
caminho desse enquadramento inicial, reexaminando mais de perto os posveis efeitos do
movimento reflexivo – movimento que, de resto, atravessa toda a história –, aproximando,
na diferença, as duas pontas do romance, início e fim.
O caráter emblemático dessa cena se deve não ao descortino da reflexividade
observada entre os capítulos inicial e final, mas a um complexo enredamento de
identidades, que amplia consideravelmente o jogo especular anunciado desde a abertura do
romance. Esse intercâmbio reflexivo permite-nos rastrear as incursões de um melanlico
dividido entre a vontade de fixar uma identidade incorruptível para si e para o outro e o
fracasso desse projeto, que culmina num duplo malogro: o que envolve a tentativa de
tradução do outro e de si mesmo, e o que cerca a deliberação de fundar uma verdade capaz
de sustentar ambas as instâncias identitárias. Acompanhemos de perto esse processo.
Apesar de demonstrar uma certa desenvoltura combinada a uma boa dose de
precaução na sua relação com o mar (“Existe um limite para tudo. [...] Por isso não costumo
nadar para longe. Não gosto de ver a faixa branca da praia se esconder muito tempo atrás
das ondas”
328
), a confiança depositada por Gaspar na familiaridade com a topografia
marítima e com suas vicissitudes é relativizada. Ele pressente que, no íntimo, esse
conhecimento prévio não lhe patenteia um contato sem riscos. Vale a pena recuperar o que
diz o narrador:
Conheço mais ou menos bem esse mar. Há tempos, tracei eu mesmo meu limite.
Escolho como guia uma rocha em forma de pombo, na ponta da praia. Dali
desenrolo mentalmente um cordão, paralelo à areia, e demarco a pista de água
onde nado. Mas nem sempre basta. Nem sempre funciona.
329
328
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 9.
329
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 10.
115
Há um ponto de incerteza que acompanha o movimento dos braços ao costurar as
ondas, avançando mar adentro. Um ponto que deságua no reconhecimento de que, a
despeito de qualquer estratégia de fixar uma margem de segurança, toda margem pode
frustrar seus limites, borrando indefinidamente seu traçado. Gaspar, no entanto, embora
alimente essa sabedoria cautelar, sucumbe aos perigos da auto-confiança indulgente,
desafiando as leis que seu discurso mesmo postula: “Iludido pela sensação de segurança de
me mover em um mundo de estátuas, tentado pelo prazer de desdenhar todos os avisos,
resolvi ir para o outro lado do cordão imagirio”
330
.
É precisamente nesse intervalo de descuido que o narrador se vê confrontado com a
situação-limite de quase afogamento. Atravessar o “coro imaginário” implica aventurar-
se em território desconhecido, imergindo na supercie oscilante de suas águas turvas. “Ir
para o outro lado” requer ainda abrir mão de uma ilusória segurança interna, para abraçar a
densidade duvidosa do impalpável. Lição que se aprende ao levantar âncora nessa aventura:
o mar não é traiçoeiro (atributos dessa natureza, obviamente, não se aplicam ao mar). Neste
caso, cabe uma errata: o mar representaria uma espécie de zona franca onde é livre o
exercício da imprevisibilidade.
Embora relativize a auto-confiança depositada no conhecimento do mar, Gaspar age
como se a frustração de suas expectativas fosse um ultraje à sua capacidade de donio
sobre o objeto. Por isso, ao mesmo tempo em que luta, com todas as forças, pela sua
sobrevivência, desfere inúmeras auto-recriminações, não admitindo a perda de controle da
situação:
Seria ridículo morrer assim, no mar, por causa de uma distração tola. [...] A
verdade é que ter quase me afogado por causa de uma bobagem parecia, e era
mesmo, um tanto grotesco. O vigor, a astúcia e até a fração de coragem que me
permitiram salvar a vida não pagavam o ridículo da desatenção e da má sorte que
haviam provocado tudo.
331
A atitude do narrador descerra uma ótica que se fia na estabilidade inspirada pelo
saber prévio de caráter irretorquível. Gaspar ambiciona possuir um total controle sobre a
região demarcada pelo seu conhecimento, espaço dentro do qual se sente plenamente
confortável, a ponto de experimentar, pela constância de uma rigorosa disciplina (“O
330
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 11.
116
nadador sabe, a cada minuto, que depende de uma disciplina para não ir ao fundo”
332
), uma
espécie de “torpor agradável [que] destila um sentimento egoísta de liberdade”
333
.
Entretanto, ele se vê traído justamente pelo entorpecimento causado pela crença
incondicional nesse saber, e na sensação de autonomia que ele lhe proporciona, levando-o a
negligenciar as conseqüências de um ultrapassamento das margens desse ilusório donio
(“Quando vi, já era tarde”
334
.). Esse descuido lança-o num espaço inóspito que lhe subtrai
qualquer garantia de preservação de sua integridade. Daí as violentas censuras dirigidas
contra si mesmo. Ele não se perdoa o fato de, por uma breve distração, ter sido levado a
afastar-se da zona de segurança (o lado de cá do “cordão imaginário”) dentro da qual
acredita estar a salvo, livre de todos os perigos. Porque justamente ultrapassar esse limite,
adentrar o território pantanoso do desconhecido, significa o confronto com os seus próprios
limites.
Essa cena inicial assume um caráter alegórico no contexto geral da trama, uma vez
que reedita, em registro diverso, a experiência liminar, acima descrita, experimentada pelo
narrador. Essa experiência inclui ainda, com forte teor indicial, o processo de dissolução de
Gaspar. Num instante extremo, em que se debate pela sua sobrevivência, o narrador se
deixa capitular pela imagem do outro, seu objeto idealizado e interiorizado, que emerge
aqui na figura do artista Emilio Vega: “Quando afinal vim à tona, tossi, cuspi, respirei com
toda a força da garganta. Senti que tinha areia entranhada até no vão embaixo das unhas, e
eno me veio à mente o pintor Emilio Vega
335
. A emersão do narrador, com a vida por
um fio, é pontuada por essa imagem que irrompe pela primeira vez na história. Gaspar
entrelaça seu “renascimento” (se assim considerarmos sua vitória sobre a morte iminente)
com a inadvertida lembrança de Vega, que, por seu turno, “nasce”, nesse instante, para nós,
leitores. A convergência dos dois personagens perpassa toda a narrativa, fazendo ressoar a
tentativa de dissolução da linha divisória que demarca a fronteira entre o eu e o outro.
Essa fronteira, alegoricamente representada na cena do primeiro capítulo, como
visto, é problematizada pela dificuldade de se estabelecer estritamente seus domínios,
divisando o “cordão imagirio” que deveria funcionar no sentido de manter a distância
331
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 15 e 17.
332
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 10.
333
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 10.
334
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 11.
335
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 13.
117
entre o eu e o outro, evidenciando a alteridade irredutível que esse outro assume. Como
argumentamos anteriormente, constatar a irredutibilidade do outro é aquiescer à
impossibilidade de assimilação fusional. O narrador de Barco a seco ignora cabalmente as
margens que delimitam o reduto do outro, desrespeitando a barreira que impede a
conversão de sua identidade na desse outro.
Num primeiro momento, seria preciso reconhecer, na complexa relação que Gaspar
entretém com Vega, a interferência de influxos melancólicos, segundo a concepção da
afecção preconizada por Freud. Retomando seus pressupostos psicanalíticos, o quadro de
melancolia se instala, como forma patogica do luto, no momento em que o sujeito, ao
invés de proceder ao gradual desinvestimento do objeto perdido, incorpora esse objeto, que,
através do mecanismo de identificação, se funde ao ego, total ou parcialmente. Dessa
forma, os sentimentos ambivalentes de amor e ódio, outrora alimentados pelo sujeito em
relação ao objeto, antes de sua perda, são reativados e redirecionados, consumada a
introjeção, ao próprio ego. As auto-acusações e autopunições empreendidas pelo
melancólico são, com efeito, ataques desferidos ao objeto perdido e assimilado pelo
processo de regressão narcísica.
No romance de Figueiredo, a dinâmica dessa identificação com o objeto,
ocasionando uma desvalorização do ego, surge numa passagem de grande beleza,
desenhada por uma imagem surreal de forte impacto. Trata-se de um momento crucial do
“instante-limite”, já referido anteriormente, relacionado ao quase afogamento do narrador,
momento que faz aflorar a consciência de sua subjugação em face da imperiosa figura do
pintor que persegue:
A parte mais fraca de mim já queria, com precipitação, com sede, se resignar à
morte, e ainda por cima confirmava a associação estreita entre o mar e Emilio
Vega a fim de fazer disso tudo uma sepultura confortável para o meu espírito,
quem sabe, excessivamente escrupuloso. Eu sempre repudiava aquela associação.
Enxergava nisso uma forma de diminuir o pintor, torná-lo vulgar, uma espécie de
utilidade doméstica. Mas reconheço que, na emoção violenta da hora, naquele
início de desastre em que eu me havia metido por um descuido, por uma
bobagem, não foi só uma parte desprezível de mim que lembrou Emilio Vega e
me imaginou, pela primeira vez, completamente assimilado pela sua pintura. Por
infantil que para, a verdade é que me descobri mergulhado em um quadro de
Vega. Naquela hora, me vi varrido pelo golpe de suas pinceladas, sufocado pelos
grossos empastamentos da sua espátula.
336
336
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 14.
118
Tal imbricação identitária não promove, contudo, uma condensação harmônica, algo
como uma síntese coesa e uniforme que fizesse coincidir plenamente as imagens em
questão. Se o resgate da autêntica história do pintor se revela inócuo, a busca por compor
um auto-retratolido prova não ser menos desastrosa, o enredamento identitário
resultando desse modo numa dupla falência. Assim como não consegue imprimir contornos
tidos à figura de Vega, Gaspar tampouco alcança dar relevo ao perfil que modela.
Infecundas tentativas de re-marcação. Sucessivos esforços convertidos em enfáticas
indagações. É o que podemos ver na última cena do romance – reflexo anamórfico do
capítulo inaugural –, na sobreposição de imagens que retratam a passagem do quase
afogamento:
Mas, a rigor, quem é esse que nada para se matar dentro da água? Quem pode ser
esse que dá a impressão de querer desmanchar-se nas ondas? Cada vez mais
nervosas, as ondas o perseguem. Enlaçam com força suas costelas, puxam-no
pelo pesco para baixo até esfregar sua cara contra o fundo de areia – tome,
prove um pouco do seu próprio gosto. Isto aqui não é você? Não é isto o que você
procura?
337
O reconhecimento de sua própria dissolução, cristalizada sob a forma de uma
avassaladora expropriação subjetiva promovida pelo objeto, nos conduz a um segundo
momento, desviando o curso das reflees sobre a melancolia, tal como prefigurada por
Freud. Adotando trilha diversa, apoiamo-nos em Walter Benjamin, por julgarmos sua
perspectiva mais pertinente e profícua para o exame da obra literária em questão.
A primeira referência de Benjamin à melancolia surge no antogico Origem do
drama barroco alemão, precisamente na terceira parte do capítulo “Drama barroco e
tragédia”. A introdução do tema avulta num cenário que ressuma o contexto religioso do
Barroco. O catolicismo da Contra-Reforma é contraposto ao luteranismo, ao qual se
filiaram os grandes dramaturgos alemães do período. O embate expõe divergências
dogmáticas entre as duas doutrinas, mormente a anulação, por parte dos luteranos, do valor
das “boas obras”, condicionado ao destino das almas cristãs, de inspiração católica.
Citando como exemplo o próprio Lutero, Benjamin chama a atenção para o impacto
causado pela “doutrina negadora das boas obras”, impacto que, no limite, teria gerado,
entre “os grandes”, a melancolia. A ruptura dos elos que asseguravam compulsoriamente a
337
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 189.
119
ligação de Deus com o homem destilou uma onda de paganismo, cuja deriva arrastou
consigo o sentido da existência humana ancorado numa vida virtuosa. Eliminada a
exigência de fazer o bem, requisito de resto fundamental para o catolicismo, responsável
pela redenção do homem, reina, soberana, a primazia da fé:
Naquela reação excessiva que em última análise excluía as boas obras como tais,
e não apenas seu poder de determinar o mérito e de servir como expiação,
manifesta-se um elemento de paganismo gernico e uma crença sombria na
sujeão do homem ao destino. As ações humanas foram privadas de todo valor.
Algo de novo surgiu: um mundo vazio.
338
É nesse contexto do barroco de um mundo esvaziado de sentido, assombrado pela
depreciação das boas ações humanas – que vemos guindar-se o olhar do melancólico
benjaminiano.
Nessa primeira referência à afecção, sobressai um forte sentimento de abandono e
perplexidade, recobrindo o homem em seu aturdimento pela perda de sua mínima parcela
de segurança, aquela que, sustentada pelo mérito pessoal, justamente lhe assegurava a
eterna recompensa. Benjamin faz ecoar aqui, no modo como inaugura o tema, antigos
nculos com o histórico da melancolia, em especial com as proposições de Constantino,
que, como vimos, anexou à melancolia um elemento de perda.
O universo comandado pelo discurso das “boas ações” representava um mundo de
conexões previsíveis, em que movimentos de causa e efeito eram a garantia de um télos
previamente instituído. Ao homem, bastava tão-somente seguir o itinerário de seu destino,
de antemão traçado, para aceder ao paraíso das benesses vitalícias. Esse circuito, que
estabelecia uma espécie de contrato virtual entre os homens e Deus, pressupunha a iia de
continuidade linear da marcha humana, dividida entre os praticantes do bem, de um lado, e
os negligenciadores das boasões, de outro. O mundo se inscrevia numa ordem
inabalável: o futuro determinava o presente, e o passado determinava o futuro, num
encadeamento que excluía sobressaltos e incertezas, como um texto que já revela o
desfecho da trama antes de finda a leitura da última linha.
É nesse ponto que se torna tão significativa a opção benjaminiana de introdução ao
tema da melancolia. É a perda desses elos supostamente indestrinçáveis que possibilita a
338
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 162.
120
irrupção do olhar melancólico. Arruinadas as certezas reconfortantes que amparavam a
existência humana, amontoam-se, em caótica dispersão, estilhaços e fragmentos à espera de
sua recolha. Essa é a imagem inicialmente apresentada ao leitor de Benjamin – um cenário
de escombros, gerado pelo devastador rompimento com a legibilidade apaziguadora de um
libelo (o discurso religioso) que preconizava o modo como a humanidade deveria caminhar.
Imagem que guarda uma certa semelhança com outro cenário – o contemporâneo, em que
também as verdades mais íntimas, os dogmas potencialmente utópicos, a fé no progresso e
na ciência são corroídos e não encontram mais um suporte seguro onde possam ser
ancorados. Época portanto de luto, é verdade. Porém, diferentemente do homem barroco, o
homem contemporâneo não é mais assolado pelo dilema que o coloca na linha de fogo
entre “ideal religioso e realidade potica”, entre os imperativos da fé cristã e a “cruel
imanência” do contexto político, varrido pelas guerras de religião que solaparam o século
XVII.
Respeitadas as distâncias históricas que nos apartam, retenhamos apenas a
pertinência de uma valorização do alegórico, que ressurge agudamente nas nossas
representações artísticas atuais e, de forma específica, posto que é nosso interesse, na prosa
brasileira contemporânea.
A idéia de alegoria como possibilidade de conferir significação aos objetos mortos é
inerente ao homem melancólico. É sob o olhar do melancólico que o mundo como ruínas é
alegorizado. Conforme esclarece Sérgio Paulo Rouanet, “para a alegoria, o mundo das
coisas tem como função significar a morte”
339
.
Para que isso aconteça, é necessária uma imersão no abismo, para onde esse olhar se
inclina, buscando atingir o âmago das coisas, movimento que impede os objetos de serem
engolfados pelo silêncio abissal de seu esquecimento. Nas palavras de Rouanet:
Toda a sabedoria do melancólico vem do abismo: ela é obtida pela imersão no
mundo das coisas criadas. Desleal para com os homens, o melancólico é leal para
com as coisas. [...] É para salvá-las que as penetra com seu olhar, que as trespassa
com sua ruminação. Mas essa lealdade é fatal aos objetos. Para que eles possam
salvar-se, têm que deixar de existir enquanto objetos. Só mortas as coisas podem
significar.
340
339
ROUANET. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin, p. 16.
340
ROUANET. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin, p. 17.
121
O conceito de alegoria, segundo Benjamin, fundamenta-se no confronto entre a arte
simbólica da estética clássica, orientada para a redenção (espécie de télos que visa a atingir
um patamar de transcendência, patenteado pela linguagem, numa espécie de “epifania
mística”), e a construção alegórica da estética barroca, sinalizando aquilo mesmo que na
história escapa ao donio da redenção, já que a instantaneidade do sentido, resultado da
fusão imediata de significante e significado, tal como ocorre no símbolo, jamais é
alcançada.
À imediatidade do sentido e sua vocação unificadora, derivada de uma transparência
impoluta na relação indissociável entre a imagem e a significação, característica do
símbolo, opõe-se a arbitrariedade labiríntica das construções alegóricas, que buscam,
somente por meio de um desvio (como sugere a própria origem grega do termo: allos,
significando “outro”, e agorein, que quer dizer “falar”), aceder ao conceito: “Enquanto o
símbolo [...] tende à unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade
essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa [...] que aquilo que visava, porque ela
nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último
341
.
Ao tratar do tema da melancolia, Benjamin traça um breve histórico em que
demonstra conhecer a longa tradição que circunscreve o conceito da afecção, em suas
diversas versões. Entretanto, é possível perceber, no percurso teórico urdido, que ele se
distancia da explicação científica proposta por Freud, preferindo recorrer a fontes que, além
de Constantino, já mencionado anteriormente, incluem Aristóteles, a doutrina dos
temperamentos, a escola médica de Salerno, a influência astrológica, notadamente de
Saturno, emblema astral do melancólico, abarcando ainda a melancolia sublime, a
melancolia illa heroica, de Marsilius Ficino e de Melanchthon.
Uma importante distinção, que sobressai do embate entre os dois enfoques, o de
Freud e o de Benjamin, reside justamente na suprema sabedoria que o melancólico
benjaminiano exibe, sabedoria que ele extrai de sua ruminação do objeto. Ao contrário do
melancólico de Freud, que desconhece a identidade de seu objeto perdido, o melancólico
benjaminiano consegue discernir muito bem o conteúdo daquilo que ele perdeu. Por meio
da contemplação alegórica, a imersão no mundo dos objetos, vistos como ruínas, é o modo
como o melancólico abastece sua vontade de saber. Como afirma Sérgio Paulo Rouanet, o
341
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 45.
122
melancólico, “se mergulha no objeto e se perde nele, é para compreendê-lo, e através dele
compreender o mundo. Rumina sobre a morte, para entender a essência da vida; aninha-se
nas ruínas, para perceber a natureza do mundo como ruína. [...] Sua lealdade para com as
coisas é de fato tributária da sua vontade de saber”
342
.
Retomando Barco a seco, observa-se que a própria narrativa em primeira pessoa
atesta um esforço de compreensão impulsionado pelo imperativo da “vontade de saber”. Ao
narrar, o personagem procura imprimir significação ao vivido. A consciência desse saber,
na concepção de Benjamin, proporcionada pela imersão no mundo das coisas, é portanto
inerente ao mecanismo da ruminação solitária. E é precisamente aqui que o filósofo se
afasta da visão psicanalítica.
Vimos, com Freud, que o melancólico experimenta uma perda, mas não sabe
identificar exatamente a identidade do objeto perdido. Ele só consegue restabelecer
conexões, outrora perdidas, com esse objeto psíquico, por meio da inter-subjetividade, na
sua relação com o analista, a quem cabe interpretar o discurso melancólico. Essa relação
paciente x analista só produz resultados se o melancólico aceita as interpretações deste
último. O analista deve eno detectar, no fluxo discursivo do melancólico, o lapso, ou seja,
uma intenção recalcada que, driblando a vigilância da censura imposta pelo consciente,
manifesta-se, interferindo na ordem desse discurso, transgredindo-a, a ponto de produzir
um outro discurso, à revelia do melancólico, de natureza híbrida, enredando camadas do
consciente e do inconsciente. Compete, portanto, ao analista desmascarar a transgressão
para que ela não passe desapercebida, retirando-a da correnteza por onde circulam os
demais atos psíquicos. Ao trazer à tona o fragmento transgressor, este passa a revelar os
motivos de sua ocultação. Por intermédio do trabalho anatico, as conexões são então
restabelecidas, e não rompidas, como vemos na concepção de Benjamin. Na teoria do ato
falho, a atenção dirigida ao particular, ao lapso – matéria espúria, com seu caráter de detrito
– leva ao conhecimento da verdade: “A matéria sobre a qual trabalha a psicanálise é o
rejeitado (Verworfenes), o objeto expulso, como um lixo inassimilável. Quanto mais
desprezível esse particular, maior a probabilidade de que abra caminho para a descoberta da
verdade”
343
.
342
ROUANET. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin, p. 42.
343
ROUANET. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin, p. 36.
123
Benjamin igualmente se detém no particular, no detalhe cuja natureza é
monadológica. Como Freud, Benjamin também restaura o rejeitado e o desprezível,
investindo-o de significação, por meio, no seu caso, do procedimento alegórico: “A
esncia da melancolia está em sua fidelidade ao rejeitado
344
. Ao realizar a imersão
alegórica, é preciso, porém, que o objeto seja privado de uma significação própria. Salvá-lo
do fluxo contínuo do qual foi resgatado implica subtrair-lhe a própria vida. Só assim pode o
objeto, pelas mãos do melancólico, aceder à redenção, “ressuscitando” como suporte de
significação.
Entretanto, diferentemente do que preconiza Freud, para quem a reconexão de
vínculos interceptados, através do resgate dos fragmentos, se dá mediante a intervenção do
analista, Benjamin dota o melancólico de um profundo conhecimento auto-suficiente, de
uma inesgotável vontade de saber, fruto de sua fidelidade incondicional ao mundo das
coisas. Isso lhe permite, solitariamente, por um processo ruminativo que lhe é próprio,
outorgar significação aos objetos, enquanto que, para Freud, como salienta Rouanet, “uma
relação solitária com os objetos – externos ou introjetados – não pode nunca ser fonte de
saber”
345
.
Na teoria freudiana, a desvalorização do ego, levada ao paroxismo, conduz o sujeito
ao suicídio, coroando um processo gradativo de depreciação da existência, decorrente da
perda de interesse pela vida. Para Benjamin, entretanto, apesar de ter abraçado essa atitude
extrema, pondo fim à própria vida, a melancolia não representa desistência e arrefecimento
das forças vitais. A inércia é vista por ele como atitude resignada, que compactua
passivamente com a marcha progressista da história oficial. Como pontua Olgária Matos:
“É a acedia, a tristeza, a falta de coragem, o que leva o historiógrafo a entrar em empatia
com o vencedor, a se reunir ao cortejo triunfal dos espólios históricos”
346
.
Paradoxalmente, sob o enfoque benjaminiano, o autêntico espírito revolucionário
não seria aquele dotado de capacidade de ação, uma vez que “o ativismo revolucionário que
se faz passar por ação inviabiliza o pensamento, a reflexão”
347
. Nesse sentido, a
344
ROUANET. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin, p. 37.
345
ROUANET. Édipo e o anjo: itinerários freudianos em Walter Benjamin, p. 42.
346
MATOS. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant, p. 27.
347
MATOS. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant, p. 26, grifo da autora.
124
contemplação alegórica emerge como potencial possibilidade de restaurar o que foi
recalcado pela história oficial, tornando manifesta a vioncia implicada nesse recalque.
A imobilidade do melancólico contrapõe-se à aceleração imposta pelo raciocínio
prático, geométrico, retilíneo. Sua lentidão, análoga ao ritmo de Saturno, “planeta da
revolução mais lenta”, segue as hesitações próprias do espírito, inerentes ao pensamento
não conceitual.
Na narrativa de Rubens Figueiredo, nota-se, no fluxo discursivo do narrador, como
já salientamos, esses movimentos ondeantes e labirínticos, típicos do alegorista
melancólico. Se por um lado a ânsia de Gaspar na reestruturação de uma totalidade
universal e estável coaduna-se a uma certa nostalgia em relação à origem, sentimento esse
que “vê no aprofundamento da interioridade um encontro com a verdade maior do
sujeito
348
, por outro lado o confronto com a impossibilidade de realização desse desígnio
desdobra-se na necessidade de reinterpretação do objeto, livre da idealidade que o revestia.
Não se trata somente de constatar a dimensão paradoxal que encerra o personagem.
Trata-se de examinar a ambigüidade que o molda como fator constituinte da afecção
melancólica. Nessa perspectiva, não haveria pois uma “contradição” propriamente dita,
porquanto falar em contradição é ainda permanecer na lógica oposicionista, que converge
para uma resolução sintética, abolindo o desacordo entre as proposições em causa. Mas
haveria, ao contrário, uma constituição bífida, expondo a permanente tensão entre a busca
da origem, de que as constantes remissões do narrador nessa direção seriam exemplo, e o
confronto com a indeterminação desse ponto primacial.
Essa busca, marcada pela falta é acentuada precisamente pela incapacidade de
superação dialética – algo como uma resolução que poria fim ao exercício ruminativo do
melancólico. Ao mesmo tempo, essa falta é o que fundamenta o sujeito enquanto tal,
instando-o a continuar perseguindo o objeto perdido, objeto que, no limite, não pode ser re-
apresentado. É essa a dimensão aporética constitutiva da melancolia.
A ambigüidade de que é feito o personagem, ao invés de torná-lo claudicante,
mostrando-o ora aferrado à idéia de verdade una e imperecível, ora mergulhado em
inquietantes dúvidas, que o lançam numa existência incerta, como um barco à deriva, expõe
a face “afirmativa” da melancolia, definida de acordo com nossa proposta, agregando, de
348
LOPES. Nós os mortos, p. 61.
125
um lado, a impossibilidade de o narrador se deixar guiar por dogmas e fundamentos, e, de
outro lado, a despeito da desintegração do Sentido, o impulso de continuar perseguindo os
inúmeros sentidos que compreendem sua busca.
No horizonte da pós-modernidade, talvez seja esse o caminho que se abre ao
melancólico, demasiadamente ciente da superfluidez que constitui a substância de sua
exauvel existência. Cada passo, uma aposta. Cada aposta, um drible na finitude, a
contrapelo da força inexpugvel do inimigo. Imprevisível, como nadar no mar. Por isso, a
experiência de que se extrai é, no máximo, esse talvez que precede a toda marcha, a toda
braçada. Assim termina Barco a seco. Ou recomeça. Pois o último capítulo repete, em
anamorfose, a cena do primeiro. Há um quase afogamento, mas já não sabemos mais quem
se debate nas ondas – Gaspar/Vega/Cabrera? Quem quer que seja, luta bravamente para
vencer. De novo. Como quem desafia, uma vez mais, o talvez, não temendo nele perder-se:
Golpeia o mar com as mãos retas, com os dedos bem unidos, apontados para a
frente, num esforço já sem nenhuma compostura. A dor da fadiga escorre dos
ombros para os braços, uma dormência coma a vazar dentro dele e se infiltra
nos músculos. [...] De repente, por trás de um pico de espuma, ele avista umas
pedras familiares. Sabe que um jeito de usar o impulso das ondas para ser
levado até lá. [...] Não ignora que de encontro à rocha os ossos podem se partir e,
depois disso, o mar vai moer o seu corpo inerte, golpe após golpe, contra a pedra
e as conchas. [...] Tenta sentir alguma elasticidade no corpo, mas só sua vontade
voa, só ela se estica até as rochas, através das rajadas frias da chuva. E atrás da
sua vontade ele acredita que ainda pode se deixar arrastar. [...] Ele se prepara para
acolher os próximos segundos, que avançam ligeiros, que já borbulham em sua
direção. Eles vão levá-lo aos trancos para uma ponta de granito onde, quem sabe,
mesmo machucado, e contra toda rao, e até contra a mera decência, ele espera
mais uma vez se salvar.
349
349
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 189-191.
126
3.2 Quem é esse que nada para se matar dentro da água?
O rastro não é somente a desaparição da origem,
ele quer dizer aqui [...] que a origem não
desapareceu sequer, que ela jamais foi
retroconstituída a não ser por uma não-origem, o
rastro, que se torna, assim, a origem da origem.
(Jacques Derrida)
A rasura dos traços originais, o recuo a um centro transcendental desde sempre
cindido, nos remete diretamente à problemática da representação. Apesar das evidências,
talvez não seja ocioso ressaltar que não nos encontramos no território da representação
como tradução do conceito platônico de mímesis. Não há nenhuma conivência de nossa
parte em relação ao sistema hierárquico, de fatura ontoteológica, proposto por Platão em
diálogos como, por exemplo, A República. Vale lembrar que, nesse sistema, explicitado no
Livro X deste diálogo, Platão avalia os diversos graus de afastamento verificados entre o
original e suas cópias, culminando na condenação da mímesis poética. Quanto mais distante
do eĩdos, mais degradada é a imitação, sendo pois o simulacro desqualificado como
degenerescência da verdade, cópia da cópia, incapaz de “fundamentar o valor de verdade
como alétheia, isto é, revelação enquanto re-apresentação legítima da presença em sua
visibilidade”
350
.
Em sentido diverso, a noção de representação a que recorremos concerne ao abalo
sofrido pela metafísica da origem, operado por pensadores como Nietzsche, Deleuze,
Blanchot, Derrida, Foucault, para citarmos somente alguns. Tomemos a título de exemplo a
noção de jogo e a de suplemento, propostas por Derrida. Excluído o horizonte de
totalização, definido como impossível por uma perspectiva clássica, que revela “o esforço
empírico de um sujeito ou de um discurso finito correndo em vão atrás de uma riqueza
infinita que jamais poderá dominar
351
(poder-se-ia resgatar aqui a figura patética do
“cavaleiro impertinente”, com sua vontade de “saber demais”), vem tomar assento a iia
de não-totalização que, ao invés de se insurgir como fatalidade imposta pela finitude (a
350
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p. 65.
351
DERRIDA. A escritura e a diferença, p. 244.
127
insuficiência do tempo humano para se atingir o topo do tudo que aguarda ser desvelado), é
consubstancial ao conceito de jogo:
Se então a totalização não tem mais sentido, não é porque a infinidade de um
campo não pode ser coberta por um olhar ou um discurso finitos, mas porque a
natureza do campo – a saber a linguagem e uma linguagem finita – exclui a
totalização: este campo é com efeito o de um jogo, isto é, de substituições
infinitas no fechamento de um conjunto finito. Este campo só permite estas
substituições infinitas porque é finito, isto é, porque em vez de um campo
inesgotável, como na hipótese clássica, em vez de ser demasiado grande, lhe falta
algo, a saber um centro que detenha e fundamente o jogo das substituições.
352
Na narrativa de Figueiredo, surpreendemos a imagem dessa maquinaria lúdica
engendrada pela noção de jogo, expressa numa passagem que evoca os procedimentos
técnicos da mise en abyme
353
:
Dentro de uma caixa de charutos feita de madeira, uma caixa de couro. Dentro da
caixa de couro, uma caixa feita de osso. Dentro da caixa de osso, uma concha
pintada, a imagem de um rosto cujas feições não consigo distinguir, como se
estivesse embaixo de cinco palmos de água, a não ser por uma mancha vermelha
perto do centro, uma mancha que sugere um coração, ou uma boca aberta, que
tenta dizer alguma coisa, mas tudo o que consegue emitir contra o peso da água
são bolhas sem som nenhum, bolhas onde cada grito fica aprisionado.
354
Esse recurso reflexivo tende a abalar o postulado da referencialidade ao instaurar a
idéia de um abismo cujo fundo – o ponto central, de apoio, que imporia fim à vertigem da
queda, estancando sua propulsão – é indivisável. O fundo é sem fundo. Nenhum núcleo
fixo e estável coroa o término dessa trajetória – sem princípio, sem remate. Esse novo
regimee em cena um “teatro de máscaras”, como um artifício que privilegia a superfície,
uma vez que não há a verdade de um rosto, oculta sob sua aparência cosmética
355
.
Descartada a oposição entre essência e aparência, o ornamento (pintura, máscara, disfarce)
funciona irredutivelmente como aquilo mesmo que origina o molde de um rosto, como “um
traje que não se poderia tirar sem arrancar a pele”
356
.o mais um modelo de identidade
a ser descoberto com a retirada dos véus. Sob estes, a “mancha vermelha” tanto pode ser
352
DERRIDA. A escritura e a diferença, p. 244-245.
353
Cf. RICARDOU. Le nouveau roman.
354
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 31.
355
Cf. LICHTENSTEIN. Da toalete platônica, p. 45-61. Conferir também o estudo de Maria Cristina Franco
Ferraz: “Teatro e máscara no pensamento de Nietzsche” (FERRAZ. Teatro e máscara no pensamento de
Nietzsche, p. 117-132).
356
LICHTENSTEIN. Da toalete platônica, p. 51.
128
um coração como uma boca aberta. Que não seja exigida desta última a emissão de
nenhuma verdade. Tudo o que dela podemos obter é um “grito aprisionado”, como “bolhas
sem som nenhum”.
Na ausência de centro e de origem, entra em campo o “movimento da
suplementaridade”. Diferentemente do complemento, que visa a superar a carência de algo
que demanda completude (a outra metade da laranja), o suplemento ultrapassa a imposição
totalizante, vindo a suprir algo que se julgava a priori completo: “Não se pode determinar o
centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa
o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento
357
.
Capaz de romper com a lógica da identidade, instaurando, em seu lugar, uma lógica
da différance
358
, o suplemento funciona como um dispositivo que impulsiona a cadeia da
significação – uma cadeia de natureza ex-cêntrica, figurando como uma ameaça à
integridade de um todo que se quer plenamente constituído. As implicações do
descentramento” operado pela lógica do suplemento vão ao encontro da idéia de
representação não como repetição da origem (imitação da essência), mas como
apresentação de um devir que se origina do diferido, destituído de qualquer fundamento
último que o sustente.
Assim, a representação conhece caminhos que se bifurcam, resultando em duas
formas distintas de se conceber a mímesis. De um lado, a representação como via de acesso
a uma presença plena, à qual se reverencia e da qual urge cercar-se por fidelidade à
verdade. De outro lado, a representação como gesto que repõe continuamente em jogo esse
movimento em direção a uma origem marcada pela falta, pela indeterminação de seu
centro, caracterizando, portanto, “uma origem desde sempre dividida”. Conforme sintetiza
Evando: “Representação como re-apresentação da origem estável, segura e fixa nalgum
lugar, e representação como impossibilidade de recuperação da origem simples, como
apresentação da dupla fonte, como des-apresentação, em suma”
359
.
357
DERRIDA. A escritura e a diferença, p. 245.
358
A rasura do termo em francês, só perceptível graficamente e de natureza intraduzível em outra língua,
implica a tentativa de Derrida de imprimir “o valor diferencial antes mesmo que as oposições binárias se
estabeleçam, pois o termo marca sua diferença para com a différence, esta última se guardando ainda para
uma lógica opositiva” (NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da
desconstrução, p. 140). Cf., além do imprescindível livro de Evando Nascimento, o glossário supervisionado
por Silviano Santiago: Glossário de Derrida.
359
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p. 68.
129
No romance Barco a seco, é possível dizer que há ali uma grande afinidade com
esta última modalidade de representação. Vimos que a tentativa de Gaspar de
reconstituição da história de Vega entrecruza-se com a busca pela reescrita de sua própria
biografia. Do ponto de vista do narrador, é preciso considerar, portanto, a fixação de duas
origens, forjadas deliberadamente. Assinalar o forjar, como sinônimo de “fabricar,
inventar, maquinar”, tal como preconiza o verbete dicionarizado
360
, não é mera gratuidade
de nossa parte. Com efeito, não está em questão a recuperação da origem a partir da qual
fosse possível estabelecer uma linhagem segura e mapeável de ambos os personagens.
Insistimos no gestoarbitrário” do narrador, que se esmera em talhar uma progênie não
tributária de um início localizado no passado, preferindo moldar com as próprias mãos o
perfil de si e do outro, como um oleiro que imprime suas marcas ao trabalhar o barro.
Como Gaspar mesmo admite: “Aprendi que conhecer alguma coisa significa impor ao
mundo a marca da minha mão
361
.
É a sua grafia que origina ambas as histórias, a da sua vida e a do pintor Emilio
Vega o curso da vida se transformando em dis-curso, para recordarmos o jesuíta Gracn.
A escrita afirma, desse modo, sua potência criadora. Se no princípio era o verbo, esse verbo
é o sopro demiúrgico de Gaspar, de que deriva sua narrativa – berço esplêndido onde ele e
todos os personagens de sua história são gestados, seu texto constituindo-se como uma
espécie de errata, que altera os registros de uma narrativa “equivocada”, suplementando-a
com novas inscrições. Nesse circuito, a escrita mais recente não pretende se opor à anterior
por ser mais “verdadeira”. Não estamos mais no âmbito da binaridade em que os opostos se
enfrentam até que um dos lados sucumbe, aniquilado pelo outro. Conforme ressalta Lopes:
O que está em jogo não é uma verdade oculta, mas um conhecimento que se constrói na
procura”
362
. Nesse circuito, a rasura assoma como acréscimo, perpetuando o movimento de
suplência requerido pela falta original. Na narrativa, essa falta é assinalada em diversos
momentos, redundando sempre no esforço dos personagens de reverterem uma certa
indigência que os assola. Mudar a rota de suas histórias equivale a um imperativo para
manter-se vivo. É o que acontece com Gaspar, ao analisarmos sua condição de órfão.
360
FERREIRA. Novo Aulio século XXI: o dicionário dangua portuguesa, p. 928.
361
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 146.
362
LOPES. Nós os mortos, p. 44.
130
Vivendo num mundo cheio de privações, forçado a aprender depressa as estratégias
de sobrevivência que modificariam um dia sua sorte, Gaspar sempre havia desconfiado que
a incômoda diferença física entre ele e seus quatro irmãos ia além de um acaso genético.
Filho de pais adotivos, representava o estorvo, o erro sem remédio”, que contriba para
cavar ainda mais fundo o abismo de miséria que parecia ameaçar a todos. Expulso da
família, como uma excrescência que perturba a harmonia dos que se unem pelo sangue,
Gaspar consegue superar o abandono e a humilhação a que sua condição de bastardo o
expôs. Para isso, agarra-se com voracidade às chances e oportunidades de uma vida melhor,
como a que entreviu ao conhecer Angelina, dona da galeria promissora que o admite e que
o salva da vida miserável que levava. Essa parceria, firmada quando Gaspar ainda estudava
na faculdade, redundaria em benefícios pecuniários para ambos, uma vez que o narrador,
tendo consolidado sua reputação de exímio especialista em Vega, acaba atraindo
colecionadores de obras de arte, ávidos por sua palavra judicativa, reputação que se firmava
paradoxalmente à sombra das crescentes falsificações do pintor: “[...] posso ser grato a
esses falsários. Ganho a vida menos em função de Emilio Vega do que dos seus
falsificadores. E sua crescente habilidade na fraude aumenta ainda mais o valor do meu
trabalho”
363
.
Para Gaspar, seu passado é uma história que deve ser esquecida, poeira varrida pelo
vento. Ou página que sacudiu o pó de seus antigos registros, cujo corpo, feita a assepsia, se
oferece passivamente como suporte de outras narrativas:
Emudeço, nada explico. Permito que minha fama de homem reservado trabalhe a
meu favor. Deixo que imaginem para mim um passado a seu gosto. [...]
Esboçaram no vazio que se estende às minhas costas uma origem compatível com
a fome de lugares-comuns, com o seu desdém, quando muito com a sua
tolerância.
364
Indisfarçavelmente auto-inico, Gaspar referenda sua nova origem, fixando um
princípio arbitrário para a identidade que incorpora: “Eu, Gaspar, eu, Dias, sem pais, sem
família, fui concebido e gerado ali mesmo – atrás dos quadrados de vidro fosco e lavrado,
363
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 50.
364
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 102.
131
presos aos caixilhos das janelas centenárias da faculdade, que assim impedem que se veja o
que acontece no lado de dentro”
365
.
Assim como o exercício da profissão de perito é tão mais auspicioso e rentável
quanto mais se verifica a proliferação das falsificações da arte vegariana, consignando uma
atividade que se beneficia daquilo mesmo que falta no original, assim também o não
enraizamento, a recusa em perpetuar uma genealogia, aliada ao propósito de reconfiguração
identitária, converte-se em dividendos, que o melancólico embolsa a contrapelo de uma
supressão congênita: “A experiência da privação, da nulidade de referências, revela-se
como quesito para a reconstrução de referências. A dispersão da identidade é caminho para
a rearticulação de novas identificações”
366
.
É interessante notar nesse sentido que a auto-ironia do personagem tanto mais é
acentuada quanto mais nos damos conta de que ele sempre se mostrou, desde o início da
narrativa, um defensor ferrenho da verdade como portadora de uma essência inabalável,
que permearia a história linear e ininterrupta do indivíduo. Auto-ironia que, aliás, participa
da referida incompatibilidade entre enunciador e enunciado.
Como Gaspar, Emilio Vega igualmente se vê impingido a alterar a rota de sua
história como artifício para driblar a miséria, desvencilhando-se de seu passado penurioso.
Para despir-se da antiga capa, chegou a forjar uma nova idade, que o onerava com uma
década suplementar na contagem dos anos. Como Gaspar, ele também foi salvo, no
momento derradeiro, pelas mãos de uma mulher, que o alçou das águas quando o último
fôlego já se extinguira. Aproveitou então a ocasião para “afogar” Vega e promover o
nascimento de seu duplo – Inácio Cabrera, passando a viver do espólio do pintor que
outrora havia sido. “Morto” o pintor, suas obras atingem um alto valor de mercado, razão
pela qual Cabrera se esmera em “falsificá-las”. Encontramo-nos uma vez mais no circuito
de uma lógica paradoxal, em que perder é ganhar. É deixando de existir empiricamente que
Vega aumenta sua cotação no mercado artístico. É “matando” o pintor que Cabrera adquire
uma outra existência, indubitavelmente mais auspiciosa.
Entretanto, cumpre notar que, a despeito de as obras serem produzidas pela mesma
mão, afinal Cabrera é Vega, existem diferenças entre as pinturas do tempo em que este
vivia e as que, sob a assinatura do afamado artista, foram executadas por Cabrera. De fato,
365
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 33.
132
do ponto de vista legal, não se poderia considerar aqui um crime de contrafação: são obras
do mesmo pintor. Porém, da perspectiva de uma visão continuísta, que regula a “linha
evolutiva” do percurso do artista, avaliando a uniformidade de seus traços, a obra
stuma” de Vega revela indícios de uma fraude, como o detecta Gaspar: “Inácio
surpreendeu-se ao constatar que ganharia mais depois de morto do que enquanto vivo e se
enciumou de quem ele mesmo tinha sido, cobiçou o talento que sabia ser seu, mas que ele
já não possuía, pois logo ficou claro, mesmo para ele, que não conseguia pintar como
antes”
367
.
Cabrera falsificara Vega, é verdade. Misturava tábuas pintadas nos tempos em que
era jovem e morava num barco às pintadas pelao que já não empunha os pincéis com o
mesmo vigor. A nova identidade exigia seus tributos, sua parte no engodo, arrebatando-lhe
as forças que, outrora, lhe concedera meios de vida e de sobrevida, porquanto, mesmo
depois de extintas, asseguravam e garantiam sua existência.
No último encontro relatado por Gaspar, Inácio lhe levara seis tábuas para serem
examinadas. Era preciso decidir: conferir autenticidade às seis obras, dentre as quais apenas
uma fora feita, décadas atrás, pelo então imberbe pintor, tendo sido as demais realizadas
pelo esforço de um náufrago decrépito, beneficiaria Angelina, cuja galeria estava afogada
em dívidas, por conta do golpe que lhe dera seu próprio filho, Humberto. Beneficiaria
também Cabrera/Vega, que não tinha outro meio de sobreviver senão fraudando(?) pinturas
que eram imputadas à identidade de um morto. Finalmente, beneficiaria a ele, Gaspar, que,
assim, conjuraria o fantasma de seu passado, aniquilando o temor de encarar o mendigo,
convidando-o a partilhar novamente a calçada, o abrigo público, a pensão miserável, a
marquise insuportavelmente familiar. Este último argumento emerge para Gaspar com
particular eloqüência. Ele quer impedir que se restabeleça o fio partido de uma narrativa
eivada de miséria, de privações:
[...] minha mente roda para trás, refaz todo meu caminho ao longo dos anos. Fica
claro que por muito pouco não sou eu que estou ali no co, por muito pouco não
é a minha carne que evapora em álcool e em imundície, no lugar daquele homem.
Por isso eles me assustam. Tento ignorar, tento até ter pena, como faz muita
gente, em busca de um remédio. Mas prevalece o medo de que eles se levantem
366
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 59.
367
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 181-182.
133
da calçada de repente, apontem para mim com o dedo trêmulo, com sua unha
enegrecida, e exijam que eu devolva a vida que podia ser deles.
368
Se o melancólico, como assevera Olgária Matos,é aquele que se prende ao
passado, que encontra dificuldades em esquecer
369
, a melancolia de Gaspar se transforma
em ingente ódio diante da face ameaçadora que seu passado representa: “um ódio que
morde fundo e segura apertado entre os dentes aquilo que, a duras penas, conquistou e lhe
pertence”
370
.
Certo de não estar traindo a si mesmo, Gaspar atesta a autenticidade das obras
apresentadas por Cabrera, dobrando-se à versão do artista por tanto tempo abjurada.
Na lógica do narrador, trata-se de manter uma relação de fidelidade para com a
identidade do pintor morto. Afinal, as tábuas foram pintadas pelo mesmo indiduo:
“Minha lealdade era com o pintor – o pintor, quem quer que ele fosse, onde quer que ele
estivesse. Eu atribuiria, sim, as seis tábuas a Vega. Eu as investiria com a minha autoridade
incontestada, mas apenas porque elas eram mesmo de Vega. De quem mais poderiam
ser?”
371
. Dúvida retórica que justifica o parti pris astutamente firmado segundo as leis da
conveniência e da necessidade pessoal.
A narrativa mostra a inviabilidade de se imprimir uma linearidade inflexível na
recuperação do passado. A “verdade” que o narrador esperava encontrar ao perseguir a
história do outro esvaeceu-se, como um “borrão murcho”, tornando-se irremediavelmente
difuso o molde extraviado. As questões que o inquiriam, assaltando-lhe o espírito,
encalharam como barcos sem leme, expulsos da água pela força das ondas: “O que eu
procurava não era o que descobri. Minhas perguntas não foram formuladas para receber
uma resposta daquele teor”
372
.
Porém, mais que a “verdade” que se inscreve, como uma miragem, na busca pelos
interstícios da imagem do outro, é a busca em si que confere sentido não só à tentativa de
acercar-se desse outro, mas também, e sobretudo, à tentativa de dar contornos à sua própria
imagem.
368
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 51.
369
MATOS. Os arcanos do inteiramente outro: a Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução, p. 21.
370
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 51.
371
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 186.
372
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 187.
134
Ao restaurar uma história coerente que insuflasse sentido a uma vida, Gaspar
esforça-se por reconstituir uma outra história – a de sua vida mesma. Por sua vez, Inácio, ao
aniquilar sua antiga identidade, também decide reescrever sua biografia, sustentando a
versão que lhe convém. Ambos, porém, acabam traídos pelas suas próprias “criações”.
Enquanto Gaspar, não tendo conseguido patentear seu personagem, literalmente encara,
frente a frente, a imagem do pintor que tanto repudiara, rendendo-se, afinal, ao seu lendário
enredo; Cabrera, ao tentar protagonizar a recriação de si mesmo, fracassa diante de um
olhar adestrado pelas marinhas do pintor de outrora, o que o obriga a reconhecer que nem
seus olhos sãos os mesmos, nem suasos obedecem mais à impetuosidade de seus
antigos traços.
Cabrera depara com uma armadilha por ele mesmo tramada: não pode ser outro,
sendo Vega, como ainda não pode ser Vega, sendo outro. Se a máxima, citada páginas atrás
– “Ninguém fala pelos mortos, a não ser para traí-los” – aplica-se ao projeto de criação
embutido tanto no propósito de Gaspar em relação ao pintor, como no de Cabrera
igualmente em relação a Vega, uma outra máxima, também mencionada anteriormente, não
menos irônica, abrindo uma via de mão dupla, poderia lhes ser dirigida: falar pelos mortos
pode significar ser traído por eles.
Do cruzamento dessas identidades cambiantes, sobrevém não simplesmente a
falibilidade de todo e qualquer empreendimento que implica fixar limites preestabelecidos,
o fracasso dos que pretendem subjugar verdades indômitas, ou a impossibilidade de impor
fronteiras rígidas entre fato e ficção, autêntico e inautêntico, original e cópia etc. Seria
demasiado redutor imaginar que a ficção contemporânea se limita a prestar tributo ao
estado de falência geral das certezas que conferiam uma ilusão de solidez inabalável à
nossa existência.
se pode avaliar como infrutífera a busca pelo sentido da vida quem espera
encontrar no fim(?) dessa busca o almejado sentido. Entretanto, a frustração cede lugar ao
prazer ao se abandonar a visão teleológica em prol do aprofundamento na própria busca, do
alargamento desse espaço que se instala entre o indivíduo e o objeto ausente, que ele
desconhece e que, contudo, o faz mover-se continuamente ao seu encontro. É o que acaba
concluindo o narrador de Barco a seco. Convém repetir o que diz: “Tudo é mentira,
qualquer coisa é verdade: só resta deixar-se levar, deixar-se cair nesse vazio. O pior é que
135
isso também seduz. Inspira uma folga, um caminho desimpedido. Como negar que também
há nisso um consolo, um prazer para ser saboreado?”
373
. É no movimento-em-direção-a que
reside o sentido dessa busca. Somente por esse motivo vale a pena narrar o passado, recriá-
lo, vê-lo emergir com as forças e as formas do presente.
Essa é a prerrogativa do melancólico, que, por meio da alegoria, restaura um mundo
habitado por escombros, imprimindo-lhe uma configuração que só se dá na precariedade e
na incompletude. Nessa perspectiva, a imagem que encerra Barco a seco é paradigmática.
Como vimos, o livro termina com uma cena semelhante à que abre o primeiro capítulo,
como a indicar o recomeço de uma nova história, deixando que as ondas apaguem os
rastros da anterior. Essa narrativa, que se quer suplementar, revela a cisão entre história e
vida, pois “a história não é a vida, mas uma forma de atribuir sentido a ela: uma forma de
narrativa. A história não é o conjunto de todos os eventos que ocorrem no desenrolar do
tempo humano, mas um mecanismo de selecionar, organizar esses eventos e,
simultaneamente, construir uma significação para eles”
374
.
É sempre possível inventar tudo de outra forma, efetuar a releitura das pegadas,
proliferando ad nauseam as versões – inverter a ordem do mundo, potencializar, como o
alegorista melancólico, a multiplicação indefinida das significações, em que “cada pessoa,
cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra”
375
. Como nos lembra ainda
Benjamin: “[...] a alegoria é o único divertimento, de resto muito intenso, que o
melancólico se permite
376
– um prazer enorme para ser saboreado.
Se, como vimos, o símbolo apresenta a congenial qualidade de pôr em evincia a
transcendência na nossa linguagem humana”
377
, a alegoria, enquanto mecanismo que
opera por desvios, busca “ressaltar a deficiência desta linguagem na qual o sentido
verdadeiro nunca é alcançado
378
. A inapreensibilidade desse “sentido verdadeiro” cede
espaço à escrita alegórica, cuja “beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão do
saber divino
379
.
373
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 28.
374
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 88.
375
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 196-197.
376
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 207.
377
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 34.
378
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 34.
379
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 198.
136
Nessa dinâmica da “intenção alegórica”, como assinala Benjamin, “o falso brilho da
totalidade se extingue”
380
. A arbitrariedade aí figura constitutivamente de modo ineludível,
pois, mesmo se porventura encontrássemos o ‘verdadeiro’ sentido, não conseguiamos
reconhecê-lo
381
.
Gagnebin chama a atenção para a pertinência de qualificarmos escrita e alegoria
como sendo expedientes eminentemente arbitrários, apesar de tal atributo poder,
contrariamente ao pretendido, imprimir densidade à perspectiva metafísica que recobre a
noção de símbolo:
[...] o caráter arbitrário da escrita e da alegoria é primeiro, ou melhor, escrita e
alegoria somente são ditas “arbitrárias para uma posição que mantém a
afirmação da possibilidade de um saber necessário, transparente e imediato – cuja
imagem seria ombolo, imprescindível desvio metafórico para dizer esse não-
desvio!
382
Talvez pudéssemos estender a discussão sobre o parentesco que agrega escrita e
alegoria, propondo um outro desdobramento para os termos postos em relação, defendendo
a idéia de que a escrita é naturalmente alegórica, a condição de sua existência radicando-se
na propalada falta original.
É notório observar, nesse sentido, o modo como a narrativa contemporânea (pós-
moderna, se se quiser) converge incansavelmente para a direção que afirma o fundamental
estatuto alegórico da escrita, de que Barco a seco, como vimos, é um insigne exemplo.
A ex-centricidade dessas narrativas – sua bastardia intrínseca – possui como um de
seus corolários o já discutido abandono de uma visão progressista e progressiva, que
abastece a noção de história tradicional, empenhada em ordenar os fatos segundo os
princípios da causalidade. A prosa atual busca dar espessura à distinção recalcada entre
história, designada como experiência humana em sua dimensão temporal, seu processo de
contínua transformação
383
, e historiografia, que constitui “não a experiência humana em si,
mas o relato desta
384
.
380
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 198.
381
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 41.
382
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 41.
383
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 89.
384
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 89.
137
Tal distinção não se presta, cumpre esclarecer, a reabilitar o preconceito metasico
que desqualifica a escrita como artifício que degenera o modelo. Ao contrário. A escrita
avulta como procedimento que invalida o privilégio concedido à realidade, de que a
representação seria, sob o viés platônico, pálida cópia
385
. Ao mesmo tempo, a escrita, como
mecanismo interpretativo, formaliza a inviabilidade de todo regresso cuja pretensão
consiste em alienar o passado, com o intuito inglório de resgatar a verdade encalacrada nos
fatos pretéritos. A escrita enfim denuncia o constructo, a arbitrariedade, que se encontra no
âmago de toda verdade. Daí Benjamin afirmar que “não existe documento da cultura sem
ao mesmo tempo ser um [documento] da barbárie”
386
.
A narrativa, nas palavras de Brandão, conjuga uma “ação associativa”, pois se
constrói pelo agenciamento livre e intencional de dados que, não necessariamente, foram
testemunhados pelo indivíduo. O fim da experiência
387
fornece pois o tom desse tipo de
narrativa. Essa perspectiva possibilita pensar a questão da identidade não mais em termos
de uma ontologia subjetiva, mas como o “estabelecimento de alianças entre concepções,
referências, interesses que possam ser compartilhados”
388
. É essa dimensão conectiva
móvel que se encontra presente na relação estabelecida entre os personagens Gaspar e
Vega/Cabrera.
A deliberação de uma origem para si, entramada na criação de uma origem para o
outro, além de patentear uma postura crítica frente ao princípio de fundação genealógica,
reivindica a legitimação de um outro regime o que se articula na concepção de afinidade,
e que partiria não do condicionamento dos laços consangüíneos, mas do compartilhamento
de uma determinada condição de marginalidade a que ambos os personagens se
subordinam. Se Vega, ao emigrar, sentia-se um “deslocado em seu novo país”, vivia no
limite da fome e da miséria – era, enfim, “um nômade, sempre a vagar de uma rua para
385
Conforme defende Deleuze, em sua proposta de “reversão” do platonismo: “O problema não concerne
mais à distinção Esncia-Apancia, ou Modelo-Cópia. Esta distinção opera no mundo da representação;
trata-se de introduzir a subversão neste mundo,crepúsculo dos ídolos. O simulacro não é uma cópia
degradada, ele encerra uma poncia positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a
reprodução” (DELEUZE. Platão e o simulacro, p. 267, grifos do autor).
386
Agradecemos ao professor Georg Otte a gentileza da tradução dessa célebre passagem de Benjamin, que se
encontra na sétima tese do texto: “Sobre o conceito da história (Cf. BENJAMIN. Sobre o conceito da
história, p. 222-232).
387
Cf. BENJAMIN. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, p. 197-221.
388
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 105.
138
outra
389
, Gaspar também experimentou, após abandonar a casa dos pais adotivos, a
ausência de um lugar fixo para morar, amargando a situação de um sem-teto, dividida com
incontáveis companheiros, igualmente reféns de uma situação de absoluto descaso social,
dormindo, como eles, “em bancos de rodoviária, encolhido ao pé de estátuas em praças
escuras e até metido em buracos escavados na areia da praia”
390
.
O nomadismo a que os personagens se entregam representa uma maneira de resistir
à permanência de qualquer fixidez imposta como determinação prévia, como um espaço de
relações de antemão delimitado. A opção categórica pelo não estabelecimento de vínculos
afetivos, a restrição ao convívio social, deliberada pelos personagens, reforça um certo
desejo de liberdade, expressamente declarado tanto por Vega como pelo narrador. Ambos
constroem assim verdadeiras fortalezas simbólicas em torno de si, que funcionam como
barreira de proteção contra as ameaças externas de “filiação
391
. Daí a decisão de Vega de
habitar uma embarcação abandonada. Daí também o cuidado de Gaspar de não estreitar
demais as relações com Ester, sua namorada, evitando até mesmo conhecer pormenores de
sua vida pessoal.
Tal distanciamento revela-se fundamental para a conquista da almejada liberdade a
que ambos tanto aspiram. Por isso, ser livre equivale a residir numa “casa de verdade”:
Uma casa, uma casa de verdade, é feita menos de um teto e paredes do que de um
intervalo, um fosso escavado ao redor, todos os dias, pela força de nosso artrio, de nosso
desacordo com tudo
392
. Ser livre corresponde a alargar esse fosso.
Alçar a liberdade, para os personagens de Figueiredo, de modo geral, implica
desvencilhar-se das marcas de pertencimento (filiação, sectarismo, estabelecimento de
relações sociais, vinculação afetiva etc.), o que compreende um estágio que passa
389
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 27.
390
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 34.
391
A decisão obstinada de repelir qualquer risco que possa desencadear a proliferação de uma estirpe, selando
laços filiais, prolonga-se na mais recente publicação de Figueiredo – Contos de Pedro. Como constatamos no
conto “Céu negro”, em que o narrador nos informa, acerca do protagonista: “Com relação aos filhos, Pedro
não se conformava. Não conseguia entender que festejassem como uma façanha aquilo que nascia com as
cicatrizes de uma sujeição” (FIGUEIREDO. Céu negro, p. 195). Se gerar um filho é uma forma de “sujeitar-
se”, para preservar um certo ideal de liberdade é preciso, pois, afastar de todo modo o inmodo “acidente”:
“Décadas atrás, ocorrera um acidente desse tipo também com ele. Porém Pedro sempre fez questão de se
manter alheio, distante, de não receber nenhuma notícia. Na verdade às vezes lembrava a contragosto. Mas o
objeto dessas lembranças, a pessoa, o fato propriamente dito, nem pareciam dizer respeito a ele”
(FIGUEIREDO. Céu negro, p. 195-196, grifo nosso).
392
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 73.
139
necessariamente pela questão da des-identificação, até culminar numa “outridade” gerada a
partir de um “grau zero” da identidade. Um caminho que possibilita a reinvenção de si
mesmo, um “esboço de outra possibilidade de identificação, de outra ordem, cuja principal
feição é ser precária e provisória”
393
.
Essa idéia surge metaforizada, por exemplo, no conto “As palavras secretas”, que dá
título à coletânea. Na história, Matias, o protagonista, submete-se a um processo paulatino e
recrudescente de des-corporificação, isolando-se na floresta e transformando-se num
eremita que se alimenta de neblinas:
Matias sorveu entre os dentes os fios de neblina. Sentiu rolar na língua o contato
encorpado do vapor, a espessura que parecia até inflar um pouco suas bochechas.
Saciado, Matias seguiu adiante, se equilibrando pelas beiradas e quinas do
desfiladeiro. Pouco depois, ao virar para trás num movimento casual, sem que
fosse essa a sua intenção, sem que tivesse nem de longe imaginado, viu a terra
intocada, sem o mais leve sinal da passagem dos seus pés.
394
A transformação ocorre após o rompimento irreversível de Matias com seu núcleo
familiar. O personagem decide embrenhar-se definitivamente no mato as ver seus
escritos secretos serem queimados pelo pai. O conto deixa patente que a desejada liberdade
exige o seu quinhão – o da não existência social, apagando por completo os registros da
interferência do indivíduo no mundo. Suas pegadas, suas digitais. Seu corpo, enfim.
Situação semelhante assistimos no conto “Sem os outros”, da mesma coletânea, em
que a personagem Joana, enquanto aguarda seu vôo no saguão do aeroporto, adormece
profundamente. Ao despertar, descobre que o avião no qual deveria viajar não só já havia
decolado, como também sofrera um acidente aéreo. Perplexa, a personagem se dá conta de
que seu nome figura entre as timas fatais anunciadas pelo monitor luminoso. Percebe
então que o processo de dissolução já iniciado anteriormente atinge seu zênite. Até aquele
momento, Joana era uma espécie de arrivista, que se empenhava em trocar de identidade
sempre que antevia uma oportunidade de se dar bem na vida. Quando isso acontecia, “uma
pele nova nascia de dentro dela e apagava tudo o que havia sido escrito antes”
395
. Mas, ao
confrontar-se com a inusitada situação da notícia de sua morte, Joana conclui que “pela
393
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 59.
394
FIGUEIREDO. As palavras secretas, p. 61.
395
FIGUEIREDO. Sem os outros, p. 70.
140
primeira vez, não pesava em suas costas a necessidade de reviver com outro nome, outros
interesses, outra existência
396
.
A subtração de tudo o que conferia consistência às suas sucessivas dermes
desobstrui o “peso da vida”, fardo que se traduz, como pondera Calvino, na “intrincada
rede de constrições públicas e privadas [que] acaba por aprisionar cada existência em suas
malhas cada vez mais cerradas”
397
. Aceder à leveza, neste caso, compreende a capacidade
de conquistar uma “plenitude vazia”. Nas palavras de Luiz Costa Lima: “A cara
individualidade do sujeito contemporâneo consiste em uma moeda que tem por face
adaptar-se a um papel e por contraface, a liberdade de escolha do vazio”
398
.
Por isso, naquele intervalo, em que a existência de Joana parece ter sido posta em
suspensão, um sentimento de liberdade abre caminho, vindo habitar esse espo oco:
Joana olhava admirada para si mesma e tinha a sensação de haver alcançado uma
forma de perfeição, uma plenitude vazia – a liberdade, ela podia até pensar. Veio
a idéia de que poderia sair caminhando pelo saguão do aeroporto e atravessar os
objetos sólidos, como a sua imagem, que via refletida na vidraça da livraria.
399
Em Contos de Pedro, Figueiredo desdobra, imprimindo porém uma outra inflexão, a
idéia de ruptura com os esquemas sociais preestabelecidos, diretamente ligados às
estratégias coercitivas que permeiam as relações vigentes entre os membros de uma
coletividade.
O referido processo de subtração pelo qual os personagens passam para atingirem
um certo estágio de autonomia, a expensas mesmo de uma des-identificação, desemboca,
nesta recente safra de histórias, num processo de privação, em amplo sentido, em que se
evidencia, em sua grande maioria, a condição precária dos que tentam se equilibrar no
limite da escassez. Os inúmeros Pedros que desfilam por suas histórias – padeiro, zelador,
garimpeiro, cozinheiro, pedreiro aposentado, escritor, músico etc. – apesar de não
pertencerem todos à casta dos desvalidos, possuem em comum o fato de lidarem com uma
certa insuficiência que os molda e que lhes é constitutiva.
Com efeito, essa renitente supressão, em suas diversas manifestações (os
personagens padecem de falta de dinheiro, de respeito, de credibilidade, de talento, de
396
FIGUEIREDO. Sem os outros, p. 79.
397
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 19.
398
LIMA. Três aproximações de Rubens Figueiredo, p. 193.
141
malícia etc.), que recorta as várias versões de Pedro oferecidas pela coletânea, emerge ora
na forma de uma ostensiva marginalidade, que subordina o personagem a um certo
isolamento e menosprezo sociais, como é o caso do Pedro do conto de abertura, visto como
uma pessoa negligente, fraca – alguém que, por estupidez, se deixou ficar para trás”
400
, ora
também na forma de projetos de vida abortados ainda in nuce, de que é exemplo o fracasso
do Pedro escritor: “[...] Pedro jurava ter sempre procurado o que havia de melhor, em si e
no mundo à sua volta. Só depois, quando já era tarde e nada mais adiantava, começou a
desconfiar que o melhor de verdade – fosse lá o que fosse – devia ter estado bem perto,
quase dócil, ao alcance de um toque dos dedos”
401
.
Embora seja gritante uma certa atmosfera desesperançada a comandar o gris
monocromático dos cenários que acolhem as histórias com seus Pedros, é flagrante uma
tentativa de escapar ao círculo vicioso do pessimismo que, num primeiro momento, salta
aos olhos. A despeito de suas carências, os personagens, por vezes, ostentam uma força
pétrea, fazendo assim justiça ao que seu próprio nome evoca, ou seja, resistência, solidez,
firmeza. Como o já citado Pedro do primeiro conto, o porteiro de “O dente de ouro”, que,
após ser espoliado e demitido, condenado por “sua lentidão, sua passividade, seu olhar
destituído de cobiça
402
, expulso da cidade, e passando a viver como um mendigo em sua
terra natal, constrói um universo particular, inteiramente auto-suficiente, um mundo à parte,
prescindindo de todo o resto, exceto de sua imaginação – verdadeiro dispositivo que calibra
fartamente esse mundo paralelo de Pedro. Um mundo onde, além das cabras, cabiam ainda
os extraterrestres, as criaturas do mundo subterrâneo, o plasma da última galáxia, onde
milhões de mortos vertiam suas mágoas em um único lago gigantesco – e tudo o mais que
ele pudesse inventar
403
.
Em alguns momentos, essa capacidade de sobrevivência, essa marcha a contrapelo,
conjuga-se a uma certa veleidade utópica, naïve, surpreendida, por exemplo, no também
mencionado Pedro escritor de “A última palavra”, que acreditava poder extrair “da leitura a
imagem da sua vida como ele queria que fosse. Uma vida possível e tão viável que, às
vezes, ao levantar os olhos do livro, ela parecia estar pronta, presente, ao alcance da mão,
399
FIGUEIREDO. As palavras secretas, p. 79.
400
FIGUEIREDO. O dente de ouro, p. 27.
401
FIGUEIREDO. A última palavra, p. 132.
402
FIGUEIREDO. O dente de ouro, p. 26.
403
FIGUEIREDO. O dente de ouro, p. 30.
142
no vôo de uma mosca
404
, chegando mesmo à conclusão de que “afinal, tinha de haver
alguma coisa a mais, ali – tinha de haver alguma coisa a mais neste mundo
405
.
A posição marginal que os personagens ocupam nos diversos contextos das histórias
acaba facultando uma perspectiva distanciada do entorno, do qual se alienam e do qual são
alienados, perspectiva que expressa a autoconsciência da transitoriedade e precariedade de
que as coisas se revestem: “Um reflexo na porta de vidro, uma buzina na rua, as antenas de
uma barata na fenda de um ralo: o mundo era encenação pura. Cada fato pronunciava uma
senha destinada a abrir a porta para um outro fato
406
.
Essa autoconsciência referenda a idéia de instabilidade, mutabilidade e inconstância,
que se encontra no cerne daquilo que nomeamos como “real”. Nesse sentido, o discurso
literário expõe as “nervuras do real”, exibindo seu processo de formalização – a linguagem
que performa e, portanto, enforma oreal” emprestando-lhe espessura e densidade.
Conforme assevera Brandão: “As ficções literárias deixam patente o jogo no qual a
plasticidade humana revela seus sentidos
407
.
No caso específico de Rubens Figueiredo, suas ficções trazem à tona a dimensão do
precário, do contingencial, como condição fundamental para a reinvenção do real e, no
limite, para a reinvenção da (im)própria identidade. Como um “místico das coisas mais
rasteiras”, seus personagens insuflam vida nova aos dejetos que a sociedade rejeita,
recuperando o direito de existirem, ainda que desviados de sua original “utilidade” (ou,
talvez, por isso mesmo). Nessa tarefa, um objeto resgatado do lixo pode enfim “ressuscitar
pelas mãos de um Pedro alegórico:
Uma coisa vistosa, uma coisa de boa cor, que se revelasse rara ao tato. Estar
quebrada não importava. Ao contrário, era até bom. Nada se quebra do mesmo
jeito. A maneira de quebrar e o local do estrago vinham salvar uma coisa da
pressão geral das muitas outras coisas. Vinham desviá-la do caminho, romper a
pele estranha que, de fora, se fechara sobre ela. Danificado, o objeto ainda podia
escapar.
408
404
FIGUEIREDO. A última palavra, p. 108.
405
FIGUEIREDO. A última palavra, p. 107.
406
FIGUEIREDO. O dente de ouro, p. 11.
407
BRANDÃO. Grafias da identidade: literatura contemponea e imaginário nacional, p. 13, grifo nosso.
408
FIGUEIREDO. O nome que falta, p. 94.
143
Assim como este Pedro, de “O nome que falta”, também Gaspar, de Barco a seco,
procura igualmente salvar do abandono o que foi repelido. À diferença, porém, que aqui se
trata de salvar-se a si mesmo, procurando reinventar-se pela reconstrução do outro.
A orfandade de Gaspar deflagra a possibilidade de auto-engendramento. É a
autoconsciência de sua própria precariedade que está em jogo – os sentidos mesmos da sua
plasticidade humana.
Figueiredo explora até as últimas conseqüências esse exercício de auto-reinvenção,
que se desdobra no cruzamento identitário. Exercício cuja repercussão incide diretamente
na configuração estrutural do relato. A organicidade do discurso ficcional reproduz
mimeticamente a desintegração da idéia de identidade estável, performando os movimentos
oscilatórios e fragmentários da voz narrativa. A aparência de inacabamento do romance
converge para a perspectiva do melancólico, para quem o “livro do mundo” não nos oferece
uma narrativa contínua e linear, mas apresenta-se como “cifra de um saber obscuro”, uma
escrita hieroglífica” a ser perscrutada. Acompanhemos de perto o modo como esse
processo ocorre em Barco a seco.
As lacunas da biografia desse órfão, rejeitado pelos pais adotivos e pelos “irmãos”,
se mesclam aos silêncios desconcertantes que se enxertam na silhueta evasiva de Vega.
Como vimos anteriormente, a tentativa de reinventar a vida desse pintor se confunde com a
tentativa de reescrever sua própria história. Daí constatarmos que a maior parte de seu
relato seja consagrada às reflexões que giram em torno de si mesmo, a história do outro se
tornando então pretexto para prestar contas com o passado, esboroá-lo, redefinindo com
novo entalhe a figura sólida (de si e do outro) que enseja erigir.
Dos dezessete capítulos que perfazem o romance, apenas quatro (respectivamente,
capítulos dois, sete, treze e dezessete) são dedicados a contar a incógnita vida do pintor,
como se fosse uma história quadripartida, cujas segmentos, no entanto, alinhavam uma
dissonante linearidade cronológica. São capítulos que esboçam uma provável biografia de
Vega, perfilando detalhes minuciosos de seu quotidiano, desde o tempo de criança, quando
ainda morava na aldeia de pescadores espanhola, até o périplo de seu nomadismo,
vivenciado já do outro lado do oceano, incluindo suas arriscadas incursões no mar que, ao
contrário do narrador, “ele conhecia muito bem”.
144
Estes capítulos, dedicados exclusivamente à vida de Vega, são marcados, de forma
singular, pelo uso das reticências, ora finalizando-os, ora iniciando-os, ora também
circunscrevendo tanto seu prinpio como seu fim, o que sugere um certo apagamento da
origem da voz narrativa, cujo discurso não élimitado” por um circuito progressivo e
vetorial, disparado por uma maiúscula e suspenso por um ponto final.
Como “botes de casco incompleto”, tais capítulos enfeudam uma região
desconhecida, acenando para um antes e um depois, arrematando as margens discursivas. É
emblemática, nesse sentido, uma passagem do décimo capítulo em que Gaspar se
reencontra com Cabrera. A frase “conheço mais ou menos bem esse mar”, presente no
primeiro capítulo, é aqui retomada, reafirmando, uma vez mais, o grau de incerteza que
domina, à revelia(?), o discurso do narrador. Cabrera dirige-se à praia, onde esperava,
algum tempo, rever Gaspar. A aproximação é pontuada pelas considerações de Cabrera
acerca do mar: “Sabe, eu conheço esse mar [...] Nadei bastante aqui. Mas fazia muito tempo
que não vinha à praia”
409
. No entanto, Gaspar percebe que, antes desse comentário, algo
havia sido dito, algo inaudível que ele, Gaspar, não conseguira captar – feito um prólogo de
reticências, mergulhado em silêncio: “Antes, ele tinha dito alguma coisa que não pude
ouvir, pois começou a falar comigo ainda de longe, assim que me avistou caminhando pela
areia em sua direção, como se eu já estivesse bem na frente dele”
410
.
É curioso notar aqui que os episódios narrados nos quatro catulos supracitados
(dois, sete, treze e dezessete) dão testemunha de uma imagem do pintor energicamente
rechaçada por Gaspar, que, como já assinalamos, se debate por um Vega metódico e
rigorosamente previdente, imagem deposta, por exemplo, numa observação presente no
capítulo dois: “Supor que Vega, de repente, desenhasse para si um plano de vida ou
largasse âncora capaz de frear seu cotidiano à deriva seria incompatível com a índole do
artista”
411
.
A simulada dissonância que entrevemos ao contrapormos esse recorte específico aos
demais capítulos do romance sinalizaria uma espécie de território litrofe, em que, de um
lado, se situa uma história condensando uma trajetória linear, embora sejam rasurados seu
prinpio e seu fim, emoldurando sem entremeios a suposta vida de um pintor marginal; e,
409
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 106.
410
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 106.
411
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 26.
145
de outro, se estende uma extensa rede de episódios entrecortados, intercalados por dilemas
e considerações de uma narrador traído pela causa a que se dedica – a busca pela verdade.
Entre uma instância e outra, as versões sobre o pintor divergem, agonizam, desmanchando
pontos já rematados, entretecendo enredos sempre por vir.
A particularidade dos quatro capítulos destacados, praticamente autônomos face aos
outros, “descolados” da voz narrativa central, uma vez que a ela se oem de forma
contumaz, desautorizando-a, nos inspira a levantar uma hipótese que, na falta de outros
elementos comprobatórios, cinge ruidosas interrogações: haveria aqui dois focos
narrativos? E, em caso afirmativo, quem nos conta a “lenda de Vega”? Indagações que,
provocativamente, reverberam, como um esgar do autor, no último capítulo: “Mas, a rigor,
quem é esse que nada para se matar dentro da água? Quem pode ser esse que dá a
impressão de querer desmanchar-se nas ondas?”
412
.
Se, à primeira vista, um impotente mutismo é tudo o que dessas questões podemos
obter, uma atenção mais demorada lança, num segundo momento, uma aposta arriscada que
vê nessa aparente rotura da voz narrativa predominante, comandada pela batuta de Gaspar,
não uma dissensão propriamente dita, mas uma manobra que agudiza o movimento,
assinalado desde o início de nosso percurso de leitura, de enlace da figura de Gaspar Dias e
da imagem de Emilio Vega/Inácio Cabrera. Essa hipótese se confirmaria no capítulo
dezessete, o último do romance, encenando o instante em que ocorre a solda ensaiada entre
Gaspar e o pintor.
Essa “fusão plástica”, entrelaçando as duas imagens, simbolizada pelo jogo
reflexivo promovido pela situação de quase afogamento de Vega/Cabrera, repercutindo o
quadro do iminente afogamento de Gaspar, descrito no primeiro capítulo, culmina com a
ilação a que chegam ambos os personagens: a absoluta impossibilidade de imprimir uma
história linear, de erguer uma identidade sólida, de criar um percurso sem percalços, de,
enfim, tentar alinhavar uma forçosa continuidade ao que não se deixa reger pelos ditames
da causalidade.
Se, como diz Luiz Costa Lima, “a vida desconhece fronteirasgidas, podeamos,
aquiescendo, acrescentar: também as narrativas desconhecem fronteiras rígidas. Da mesma
forma que Gaspar, no instante derradeiro em que é abocanhado pelas ondas, se vê
412
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 189.
146
subitamente arrebatado pela imagem do pintor, fruto da sua imperfeita criação, Cabrera se
torna presa da identidade que ele próprio lavrara, e que também fracassara:
O pior é ver que o que parece ser o seu último fôlego serve apenas para dar vida,
em sua mente, à imagem em que ele se vê misturado às tintas de suas próprias
tábuas. O mais lamentável é que ele se vê arrastado pelo correr da pasta oleosa,
afogado nos botes que ele mesmo fez, refez e largou na areia, nem vivos nem
mortos. Barcos cuja perfeão reside em não ter um lugar no mundo nem fora do
mundo. Visões de um pintor que ele inventou, que ele roubou, o pintor com quem
ele quis de todo jeito fazer uma troca mas que, no último instante, se recusava e
fugia. O pintor que ele mesmo encarnou tantas vezes, sem conseguir ser, na
verdade, mas também sem conseguir inventar inteiramente, como gostaria. O
pintor que, no entanto, sem ele, sem o seu sopro repetido e tenaz, nem mesmo
teria existido.
413
A narrativa apresenta um duplo fracasso, de Gaspar e de Cabrera, cada um a seu
modo buscando traçar uma linearidade que, ao fim e ao cabo, não se sustenta. Mas que faz
emergir a prevalência do ato de narrar, a força da criação no limite mesmo de sua
(im)possibilidade. A imagem desse fracasso, testemunhado pela narrador, é sintetizada pelo
que sugere o título do romance – Barco a seco: barco ocioso, encalhado, atópico,
condenado ao ostracismo. Imagem que se desdobra ainda nos botes pintados por Emilio
Vega:
Botes meio tombados, às vezes apoiados com displicência em toras de madeira.
Botes perdidos, desastrados, que escorregavam e afundavam em pequenos
montes de areia acumulada pelo vento, ou encostados em tufos de capim que
emergiam por baixo do casco. Botes à espera não se sabe de quê, mendigando o
respeito de um céu indiferente, de um mar que já os abandonara, barcos inúteis,
jogados no seco.
414
Esse fracasso, experimentado por ambos os personagens, se converte, então, numa
narrativa que inspira uma discussão envolvendo o próprio ato de criação. Gaspar tenta
recriar (reescrever) Vega (e a si mesmo) tanto quanto Cabrera, ao recriar (reescrever) sua
identidade, se reinventa. Empreendimento que resulta em imagens cujos contornos não se
divisam, como capítulos que emergem inadvertidamente das profundezas do branco da
página, e que para lá retornam, depois de nos instigar, indiferentes ao nosso estupor pelas
respostas não concedidas, rasurando as duas pontas de seus extremos, início e fim.
413
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 190.
414
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 18.
147
Ao acompanharmos o périplo de Gaspar, reconhecemos, no seu empreendimento
“fracassado”, direcionado à recriação de um autêntico Emilio Vega, a impossibilidade de
retroceder à origem, bem como a ausência de uma totalidade harmoniosa e apaziguante a
desenhar o perfil de uma forma única e verdadeira. O que, numa primeira instância,
denotaria falência traduz-se, pois, numa sabedoria típica do alegorista melancólico, já que a
versão do pintor que Gaspar modela e acalenta revela-se tão “arbitrária” quanto a versão
por ele mesmo contestada. Essa sabedoria, que nasce do cruzamento entre significação e
morte, a partir do reconhecimento de uma perda, instaura, como esclarece Gagnebin, “um
túmulo tríplice:
O do sujeito clássico que podia ainda afirmar uma identidade coerente de si
mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos objetos que não são mais os
depositários da estabilidade, mas se decompõem em fragmentos; enfim, o do
processo mesmo de significação, pois o sentido surge da corrosão dos laços vivos
e materiais entre as coisas, transformando os seres vivos em cadáveres ou em
esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas.
415
Nas páginas finais de Barco a seco, Gaspar denota assimilar a desintegração do
sentido único, sobre o qual se assenta, no limiar do luto e do jogo, o funcionamento do
aparato alegórico. Como um autêntico melancólico, dividido entre a evanescência de
antigos dogmas e a liberdade de “inventar novas leis transirias e novos sentidos
efêmeros”
416
, ele agora sabe que:
Lembrar, conhecer, provar, saber tudo isso é muito bom de se dizer, muito
bonito de se ouvir. Mas está condenado a ser pouco mais do que o esforço para
que alguém acredite em alguém. O esforço para uma pessoa se convencer de uma
história montada, inventada, adulterada ao gosto das circunstâncias. Mais do que
simplesmente silenciar, minha tarefa de agora em diante era esquecer tudo: só no
esquecido podia subsistir alguma verdade.
417
No romance de Figueiredo, a antiga forma de narrar os fatos, enfronhada numa
rigidez linear, é acionada para ser lida criticamente, para ser borrada em seus “limites”. A
suposta falência dos personagens criadores é na verdade a vitória do ato de narrar,
construído sobre um fundo de perda, a partir do olhar melancólico que Gaspar e Cabrera
lançam para suas respectivas criações – e também, claro, para si mesmos.
415
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 39.
416
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 38.
148
O esforço empregado na tentativa de esculpir identidades, remodelando formas já
talhadas, resultam em “histórias mal contadas”, para lembrarmos aqui o recente lançamento
de Silviano Santiago
418
. Como esclarece Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em resenha
sobre a mencionada obra de Santiago: “As histórias mal contadas são aquelas que nos
perseguem, as que não se deixam calar, pois precisariam ser bem contadas para que
pudéssemos morrer em paz, como uma alma reconvertida à verdade [...]”
419
. Opino
semelhante é expressa pelo narrador de “A terceira vez que a viúva chorou”, da coletânea
de contos O livro dos lobos, de Rubens Figueiredo, que em dado momento discorre sobre o
prazer que se obtém dos enredos inacabados: “O prazer incompleto que se sente nas
histórias interrompidas no auge, deixadas em suspenso. Um prazer incompleto e que, no
entanto, sabemos ser maior do que experimentaríamos no caso de a satisfação ter vindo
inteira, correndo direto para seu final”
420
.
Em Barco a seco, os episódios se bifurcam e se entrelaçam, alimentando-se das
ruínas do sentido. Porque narrar é “ressuscitar os mortos”, é dar “uma alma à matéria
inerte, como nos ensina Gaspar Dias, um saturnino atravessado pelos influxos da
melancolia afirmativa.
A ficção brasileira contemporânea reafirma, desse modo, a necessidade de continuar
narrando histórias, sobretudo, como arremata Vera Follain, “se elas nos parecem mal
contadas”. Pois são histórias que renovam perpetuamente a indagação da qual extraem sua
força produtiva. Justamente por prescindirem de toda e qualquer resposta que, de forma
definitiva, interrompa a cadeia de ecos que se propaga quando, com assombro expectante,
interrogamos: que história espera seu fim lá embaixo?
Um certo “falso mentiroso” nos acena com um gesto, sinalizando o próximo destino
destas viagens. Nessa rede de linhas que se entrelaçam, uma outra história mal contada nos
aguarda.
417
FIGUEIREDO. Barco a seco, p. 187.
418
SANTIAGO. Histórias mal contadas.
419
FIGUEIREDO. Entre ordem e caos: narrativa equilibrada, p. 6.
420
FIGUEIREDO. O livro dos lobos, p. 68.
149
4 Numa rede de linhas que entrelaçam as memórias de um falso mentiroso
Tudo dobra, tudo se duplica. Nada é um. Tudo é
dois. Tudo é a coisa e o seu fantasma.
(Silviano Santiago)
4.1 Das negativas: o círculo da esterilidade
Sabemos dizer muitas mentiras semelhantes aos
fatos, mas sabemos, se queremos, fazer ouvir a
verdade.
(Hesíodo)
Irmão mais novo de Orfeu, Samuel, narrador de O falso mentiroso: merias, é
uma mentira. A evocação mitológica, acoplada ao pícaro personagem de Silviano Santiago,
é arrebatada da imagem reproduzida num cartão postal enviado por Maria Luiza ao autor.
Neste, a frase que paira “ao lado e um pouco acima da cabeça de Orfeu” talvez possa
elucidar o fraternal parentesco: “je suis un mensonge qui dit toujours la vérité
421
. Entenda-
se bem: Orfeu não é um sujeito que tem por hábito proferir mentiras a torto e a direito, sem
eira nem beira. Como trata de esclarecer a primeira pessoa do texto “Epílogo em 1ª pessoa:
eu e as galinhas-d’angola”: não está em questão a prática da mentira como ato moral e
socialmente reprovável. Contornemos a esparrela. Retenhamos estritamente o que a frase
anuncia: je suis un mensonge. Orfeu é uma mentira. Orfeu é a personificação da mentira
422
.
Em que sentido, então, compreender a mentira – que é Orfeu, que é Samuel, e que é,
claro, “Santiago”
423
, já que este mesmo confessa, em tom de modéstia, a herança genética
421
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 250.
422
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 250.
423
O nome do autor entre aspas busca resguardar a dimensão de persona alcançada pela voz discursiva que se
abriga sob sua assinatura, acatando os vários eus de que esta se traveste, ainda que coincida com o nome civil
registrado em cartório, atestando a exisncia de um certo sujeito chamado Silviano Santiago. Essa questão,
que traz à tona uma discussão envolvendo identidade, autoria, empiricidade etc., será desenvolvida mais
adiante.
150
recebida e partilhada: “A experiência da mentira me torna irmão mais novo de Orfeu,
embora a ele não me iguale”
424
?
A possível resposta é dada pelo próprio Santiago, numa entrevista em que comenta
o lançamento de O falso mentiroso: memórias. Instado a falar sobre a série de paradoxos
que atravessam, de ponta a ponta, seu romance, flagrados desde o título, o autor se detém
no que elege como o maior dos paradoxos, a saber, a literatura mesma.
Santiago é um mestre nas artes do paradoxo. Além de praticá-lo sobejamente,
discorre sobre o mesmo com freqüência, ora enaltecendo esse expediente mental
labiríntico: “Encantam-me os paradoxos. Ou melhor: sou vítima dos paradoxos. Se levanto
o punhal para assassiná-los, zombam de mim. Quanto mais zombam, mais os admiro pela
inconsistência sedutora
425
, ora simulando uma afetada reprovação pela sua falta de
precisão: “Vocês sabem que não é do meu feitio contradizer-me pelo meio do caminho das
histórias e das lembranças. Não, nunca adorei nem adoro paradoxos. Sou cartesiano de
formação, com diploma da Aliança Francesa. Brasileiro obcecado com a verdade sobre o
mundo e o ser humano
426
.
Tomando como base a binomia verdade x mentira, para evidentemente colocá-la em
xeque, problematizando-a, Santiago explica o emprego do paradoxo, amplamente
disseminado em sua obra, por meio de outro paradoxo, o que encampa a matriz de que se
serve para compor seu discurso e que atende pelo nome de ficção: “A ficção é antes de
mais nada, enquanto configuração ou definição, uma mentira, uma invenção, uma
fabulação. Uma mentira, uma invenção, uma fabulação que acompanhada da palavra
‘ficção’ ou da palavra ‘literatura’ adquire um valor de verdade sobre aquele tema que está
sendo tratado”
427
.
Relendo então a frase do cartão postal, que encabeça a figura de Orfeu, a partir da
compreensão de Santiago do que seja ficção, podemos inferir que esta última é uma mentira
que entrama a verdade.
A mentira que Samuel encarna constitui suas memórias. Uma invenção a muitas
vozes. De seu extrato melódico, distinguimos variegados timbres, irmanados todos na
424
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 251.
425
SANTIAGO. Todas as coisas à sua vez, p. 122.
426
SANTIAGO. Bom-dia, simpatia, p. 79.
427
html://p.php.uol.com.br/tropico/html/textostextos//2375,2.shl
151
mentira que entoam: Brás Cubas, João Miramar e Leonardo, de Memórias de um sargento
de milícias, vêm fazer solo. Catalogar todos os participantes seria um trabalho à parte.
Garimpagem numa mina generosa, farta, abundante.
Se Machado inaugura as memórias de seu defunto autor com o óbito do galhofeiro
personagem, Santiago inicia as de Samuel registrando a orfandade de sua condição. O
desconhecimento dos pais biológicos, sua absoluta ausência de vínculos com os
progenitores, é comunicado em forma de sucessivas negativas: “Não tive mãe. Não me
lembro da cara dela. Não conheci meu pai. Também o me lembro da cara dele”
428
. A
opção não é casual. Integra um projeto maior de adesão à arte de negar: “[...] sou
abertamente a favor da estilística da negativa. Não
429
.
O processo iterativo de negação é coroado ao final das memórias, por meio do
pastiche de “Das negativas”, capítulo que encerra Memórias póstumas de Brás Cubas,
quando então a “verdade da mentira” consagra o intuito de rarefação gradual que percorre,
como uma espinha dorsal, todo o discurso do narrador. Último acorde de sua ópera
burlesca. Subtrai-se o que a memória ofertou, logrou ofertar, ao leitor incauto, um
desavisado nas artimanhas de Santiago. Com engenho e troça, muita manha e arte, o
narrador toma de assalto o leitor em sua derradeira performance:
Chega de mentiras.
o serei um falso pai falso, como o doutor Eucanaã.
Não me casei com Esmeralda. Não tive filhos com ela.
Se me colocarem contra a parede deste relato, confessarei. Tive dois filhos
virtuais.
o poderia tê-los tido.o os tive. Inventei-os.
Inventar não é bem o verbo. Gerei-os em outro útero. Com ao esquerda (sou
canhoto) e a ajuda da bolinha metálica da caneta bic. Com tinta azul lavável.
Inseminação artificial.
O resto, pa-ra-rá, pa-ra-rá, pa-ra-rá...
Fim.
Lego ao mundo as minhas telas.
À história, uma família a menos.
430
A opção radical pelas negativas, como veremos adiante, constitui um propósito
fundamental, em torno do qual as memórias são tecidas. A consecução desse propósito,
bem como a garantia de seu pleno êxito, implica a exclusão de qualquer atenuante, como
428
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 9.
429
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 220.
152
seria o caso do uso das adversativas, aplainando as arestas ostensivas do “não”, debilitando
assim sua aspereza. Não. O sectarismo não é discriminatório, derivando pura e
simplesmente de uma total incompatibilidade com os prolitos do mas, porém, contudo,
entretanto, no entanto, todavia.
Não há uma só adversativa nas duzentas e vinte duas páginas de seu relato. A
estreita fidelidade a essa postura é assinalada na penúltima página das memórias. Como
prova da veracidade do que afirma, Samuel nos desafia a reler o livro,de fio a pavio”, a
ver se não tropeçamos numa adversativa que, porventura, tenha escapado à sua severa
vigilância, imiscuindo-se traiçoeiramente no texto. A tentação de desmentir o narrador
brota diante de sua promessa de pagar cem dólares por cada adversativa encontrada.
Esforço vão. Samuel não mente. Diz a verdade. Frustração do leitor que espera obter
dividendos com a releitura da obra. Adverte o memorialista: “Nada tenho a ver com a
geração dos artistas da adversativa”
431
. Sua estirpe é a dos que dizem sim ao não. Sem
perhaps: “Pertenço a uma geração afirmativa. Afirma pela negativa. Tem não. Não tem
mas. Não tem talvez. [...] Há o sim. Ele cavalga com esporas o não. A pêlo. Nada entre.
Nem sela. Confundem-se. Nenhuma partícula adversativa entre o sim e o não
432
.
Numa rápida avaliação, poder-se-ia considerar Samuel um primo de Bartleby, o
solitário escrivão de Melville. Nas artérias de ambos, correria o sangue comum da pulsão
negativa. Não seria de todo absurdo toparmos, de repente, com as seguintes frases de
Samuel: “Acho melhor não [ter filhos]”, “Acho melhor não [me casar] etc. O personagem
de Santiago seria assim um tipo Bartleby, embora com muito mais leveza e humor,
indubitavelmente.
Como vimos no segundo capítulo da tese, a irresistível e obscura força que conduz à
negação da vida inspirou Enrique Vila-Matas a conceber o que chama de “síndrome de
Bartleby”, “doença” que, sob a perspectiva da relação que o escritor atual estabelece com a
tradição, encarada como um fardo pelo neófito, pode despertar uma afasia, total ou parcial,
naquele que se destina à escrita. A ótica do escritor contemporâneo espanhol, calcada na
leitura que faz da novela de Melville, concorre para evidenciar a dificuldade de seguir
escrevendo em face da presença fantasmagórica de Homero, Dante, Cervantes,
430
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 222.
431
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 220.
432
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 221.
153
Shakespeare, Goethe, Musil e tantos outros espíritos que assediam o autor, inibindo-lhe a
pena. Como resultado dessas incômodas e obsedantes presenças, muitos escritores se
curvam ao silêncio, resignando-se a aderir à rmula bartlebyana: “Acho melhor não
[escrever]”. Outros, porém, como também vimos, acabam revertendo a “angústia da
influência” numa prolífera fonte de energia para suas criações literárias, dando total vazão
ao impulso vampiresco, que imprime vitalidade à sua escrita.
Um exame um pouco mais demorado do personagem de Santiago desfaz de
imediato a aventada e equivocada “conexão”
433
com a casta dos Bartlebys suicidas. A cepa
docaro memorialista não desmente sua vocação hematófila. Seu lema, parodiando
Bartleby, seria antes: “Acho melhor [morder você]”, lema, aliás, praticado literalmente no
suculento bracinho da prima Dorothy
434
: “Nhoc! [...] Dorothy gostava de ser mordida. Se
gostava. Secretamente amava o priminho antrofago
435
.
Com insaciável apetite, Samuel devora tanto ícones da cultura popular quanto da
cultura de massa, passando ainda pela chamada cultura erudita. Os mais diversos segmentos
estão presentes nessa barafunda de referências assimiladas: cinema, filosofia, música,
indústria cosmética, literatura, televisão, rádio, quadrinhos, circo, artes plásticas, ciências,
sociologia... Tudo devorado, promiscuamente, sem preservativo. Cavalgada a pelo. Nada
entre. Nem sela.
O falso mentiroso: memórias participa, por eletivas afinidades, do quadro presidido
por Borges e Calvino, ilustres confrades aos quais Silviano Santiago “se conecta”. A
aproximação justifica-se pelo modo como o escritor brasileiro se relaciona com os textos da
tradição: incorporando-os dialogicamente, fazendo derivar desse diálogo, desse entretien
infini, uma obra carimbada com a “marca registrada de [sua] arcada dentária”.
Permanecendo ainda no registro da devoração, poderíamos dizer que Samuel se
assemelha ao freguês glutão de Julio Cortázar, citado por Santiago em um de seus mais
433
Wander Melo Miranda, em seu livro Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, recupera uma
importante (e sintotica) consideração feita pelo próprio Santiago, que considera o autor “como ser de papel
e [da] sua vida como uma bio-grafia [...] matéria de uma conexão e não de uma filiação” (MIRANDA.
Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, p. 118). Essa idéia desmobiliza, como ressalta
Miranda, “o muro da origem e da propriedade”, além de acarretar uma reavaliação das questões acerca de
autoria, dívida, filiação, linhagem, queses que invariavelmente são redimensionadas ao rompermos o cordão
das relações filiais.
434
O nome “Dorothy”, por metonímia, evoca aqui a cultura estrangeira – “made in...”, devorada
“antropofagicamente” pelas chamadas “culturas periféricas”.
435
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 19.
154
célebres textos, “O entre-lugar do discurso latino-americano”
436
. Ao ins de solicitar ao
garçon do restaurante parisiense um “château saignant”, o personagem lhe pede um
castillo sangriento”, gravando (e grafando) na derme da língua estrangeira a violência
perpetrada pelo escritor latino-americano no seu gesto tradutório. Dupla degustação: a
língua do outro se dobra ante à demanda de um egresso do Novo Mundo, antes mesmo de
este banquetear-se com um apetitoso bife malpassado, servido pelo europeu. Dupla
condição do escritor que, não bastasse a sensação de ter chegado tarde ao encontro com a
musa, ainda tem de buscar superar o peso de seu passado colonial. Condições a que
estamos submetidos, nós, os latino-americanos.
Nessa clave dúplice, convivem afetos ambivalentes. Amor e ódio digladiam-se no
palco onde os conflitos se encenam, conferindo ao escritor “periférico” o desafio de seguir
“vivendo entre a assimilação do modelo original, isto é, entre o amor e o respeito pelo já-
escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o
negue”
437
.
O propósito de afirmação pela negação, entrevisto em O falso mentiroso: memórias,
já se delineia aqui. Embutidas nesse propósito eso tanto a recusa à concepção tradicional
da invenção artística”, como a rejeição à incorporação passiva de modelos preestabelecidos.
Realiza-se pois a transgressão ao modelo, no movimento imperceptível e sutil de
conversão, de perversão, de reviravolta”
438
. É esse o intuito que dá estofo às memórias de
Samuel, como ele mesmo se encarrega de clarificar ao explicitar seu conceito particular de
originalidade”: “Sou original na maneira de conceber. Olho para copiar. Copio para
enxergar. Melhor. Sou original na maneira como copio as xilogravuras de Goeldi na
tela”
439
.
É esse também o mecanismo que agita os renditos subterrâneos da melancolia.
Amor e ódio pelo objeto perdido. Por um lado, respeito e devão. Por outro lado, agressão
e rebelo. Sentimentos que expõem o conflito vivenciado pelo sujeito melancólico em seu
permanente trabalho de luto.
436
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano, p. 9-26.
437
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano, p. 23.
438
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano, p. 25.
439
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 185.
155
Transpondo a questão para a discussão envolvendo o redimensionamento do
conceito de originalidade, levado a termo pelo escritor latino-americano, para ficarmos no
recorte proposto por Santiago no texto acima citado, podemos afirmar que no âmago dessa
delicada relação entre cultura periférica e cultura hegemônica, no plano espacial de
comparação, ou, se se quiser, entre tradição e s-modernidade, no plano temporal de
comparação, a autodepreciação característica dos estados melancólicos é consubstancial à
deflagração do eu como um conglomerado polifônico, heteróclito, de natureza comsita.
Em suma, um território de intenso trânsito e rotatividade, onde se concentra todo o
burburinho das vozes acopladas: Penso, falo, trepo, escrevo, como, me emociono, gozo,
cago, pinto, mijo, existo. Sinto. Quem? Nós”
440
.
Se os europeus decretaram a cisão do eu, sua fragmentação, sua constituição
ltipla, os filhos datria mãe gentil, os latino-americanos, sempre soubemos que sob o
eu se abrigava uma multidão ruidosa e afoita.
Lá na “origem”, naquele ponto de onde tudo se desencadeou, o objeto não nos
acena, advertindo-nos de sua presença. Perdemos o que jamais tivemos. Introjetamos essa
presença/ausência, carnavalizando-a matreiramente. Sem lágrimas. Com muito riso e pouco
siso. Somos melancólicos? Melancólicos jocosos, talvez. Feito uma melancolia irônica
afirmativa. Que se afirma pela negação. E sabe tirar proveito disso.
440
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 181.
156
4.2 Meu rosto, uma folha de papel em branco
Durante muito tempo, deitei-me por escrito.
(Georges Perec)
O comentado paradoxo presente no título do último romance de Silviano Santiago
pode ser visto como síntese metonímica da rede de paradoxos que constitui o texto das
merias. Como argumentamos, O falso mentiroso alude à escrita ficcional, a uma mentira
que se toma por verdade, suspendendo qualquer critério prévio que viesse em socorro da
distinção do que, no limite, seriam verdade e mentira. Entramos no campo ardiloso das
aporias antes mesmo de avançarmos a primeira página. O aviso só nos chega muito depois,
quase ao final. Tarde demais para recuarmos: “Decifra-me, ou te devoro! T’esconjuro!”
441
.
Traquinagens de Samuel, que escapa à menor de tentativa de apreensão.
O subtítulomemórias – agrega um problema a mais ao ensejo de decifração. O
gênero memorialístico evoca o resgate do vivido com vistas a salvar o passado de seu
esquecimento, circunscrevendo a história do sujeito e o sentido extraído dessa experiência
pretérita. Definição inócua para os que não se atêm à relação especular entre o sujeito que
escreve e o registro de sua vida pregressa. Afastado o viés metafísico, na suposição que
encerra a verdade una e imperecível a ser reconstituída, a imagem desbastada, de relevos
tidos, que recorta a silhueta do indivíduo, afastado, pois, esse viés metafísico, o relato de
uma vida não passa de mais uma mentira.muito já aprendemos a creditar o postulado
do eu à escrita ficcional, construída a partir da “tradução criativa” desse eu. Em síntese,
todo eu erige-se como um constructo discursivo.
Posto que a primeira parte dotulo concerne, como vimos, à ficção, a segunda, ao
designar o gênero que enforma a história a ser lida, arremata a charada: o falso mentiroso:
memórias trata, afinal, da literatura, tal como concebida e elaborada pelo autor que assina a
obra – Silviano Santiago. Título e subtítulo se suplementam nesse espelhamento
anamórfico e “misenabimático”: ficção sobre a ficção.
Enquanto rubrica da “escrita de si”, as memórias configuram um empreendimento
auto-interpretativo que tem como pano de fundo o impulso de imprimir unidade ao que já
441
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 163.
157
nasce naturalmente diverso, provirio e em constante mutação: a identidade do sujeito. A
tentativa de ordenar a mixórdia de eus que se agitam no indivíduo ao longo de sua história
resulta portanto numa “fabulação de si mesmo”, para usarmos as palavras de Santiago, que
acentua:
A construção da identidade, depois da psicanálise, a questão da identidade é um
“constructo”, é uma constante reelaboração, como no conceito de Lacan e Derrida
de a posteriori, après coup, que diz que constantemente estamos reorganizando a
“placa-mãe” da nossa meria, e essa reorganização da placa-mãe é sempre uma
nova invenção de identidade que está sendo proposta.
442
No texto memorialístico, essa forma de ordenação pressupõe o arranjo momentâneo
de uma dispersão passada, um bricabraque dos fragmentos retidos pela placa-mãe, à qual se
roga para que descortine seu arquivo. Em sua extensa e desarticulada superfície, tenta-se
domesticar uma certa indisciplina, de modo a conter a disjunção dos elementos que
circulam nos intrincados meandros de seu esteio. Cada formão obtida desse exercício
recapitulativo flagra um instantâneo, no que o arresto revela de efêmero e transitório.
Como gênero discursivo que reenvia à precedência de um eu, em torno do qual a
escrita se organiza, buscando fornecer uma imagem possível desse eu que se dá a ver no
registro do testemunho, as memórias se vinculam a outras modalidades discursivas, que
igualmente engendram a exposição dos “caminhos imprevisíveis de uma vida vivida”, tais
como a autobiografia, o diário íntimo e as confissões, sendo, contudo, bastante tênue a linha
que enfeuda cada uma dessas modalidades
443
.
Michel Foucault
444
, debruçando-se sobre “a escrita de si”, deflagradora de uma
estética da existência”, recupera documentos precursores de práticas escriturais que
envolvem vida e obra, e que se aliam ao posterior esforço empregado na consolidação da
singularidade individual, posta em relevo nas autobiografias. As anotações monásticas, os
hypomnémata e a correspondência, guardadas as devidas diferenças, redundam em retratos
de um eu que ganha corpo no ato da escrita, passível de ser confrontado com o corpo
daquele ao qual o texto se reporta.
A distinção entre sujeito que escreve e sujeito da escrita, rompendo definitivamente
com a iia reducionista de uma coincidência especular entre essas instâncias, possibilitou
442
html://p.php.uol.com.br/tropico/html/textostextos//2375,2.shl
443
Cf. MIRANDA. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, p. 25-41.
158
a leitura/escritura dos gêneros confessional, autobiográfico e memorialístico sob a égide do
ficcional, sem excluir contudo a inquietante presença fantasmática de uma empiricidade
não mais perceptível em seus estritos contornos. Ou seja, se a vida não se confunde mais
com a escrita, é fato também que vida e escrita estão profundamente comprometidas,
imbricadas, não estabelecendo entre si uma relação isomórfica, porém anamórfica, situada
na interseção dos elementos em jogo.
Philippe Lejeune refere-se a esse tipo de produção textual, que problematiza a
identificação da primeira pessoa do discurso, ao prognosticar um “pacto fantasmático”, que
exige do leitor a ampliação de seu “horizonte de expectativas” na recepção, por exemplo,
tanto do que se convencionou chamar de romance como de autobiografia:
Le lecteur est ainsi invité à lire les romans non seulement comme des fictions
renvoyant à une vérité de la “nature humaine”, mais aussi comme des fantasmes
révélateurs d’un individu. J’appellerai cette forme indirecte du pacte
autobiografique le pacte fantasmatique.
445
Tal pacto instaura um circuito de vasos comunicantes que entrelaça letra e
empiricidade, tornando improfícua as tentativas de dissociação das duas esferas. Conforme
esclarece Wander Melo Miranda: “Há, pois, uma visão e uma escrita duplas, inscritas num
espaço onde as duas categorias – autobiografia e romance – não são redutíveis a nenhuma
das duas isoladamente, num jogo em que ficção e não-ficção se interpenetram, não se
restringindo, no conjunto de uma mesma obra, a territórios nitidamente demarcados”
446
.
Para compor suas memórias, Samuel, autodesignando-se escritor, confessa ter
aproveitado os “vários volumes” de seu Diário íntimo, reciclagem da qual resulta uma obra
que opera um trânsito discursivo livre, mesclando diversos gêneros prosaicos (romance,
memórias, autobiografia), sem a restrição de uma exigência unidirecional. Como nos
informa a orelha do livro:O falso mentiroso é um romance picaresco extremamente
divertido que brinca com a própria identidade da obra autobiográfica, ampliando
engenhosamente as controvérsias críticas relativas à divisão entre fato e ficção, e às idéias
de subjetividade, autoria e representação”.
444
Cf. FOUCAULT. A escrita de si, p. 144-162.
445
LEJEUNE. Le pacte autobiographique, p. 42.
446
MIRANDA. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, p. 37.
159
Ao impedir qualquer decisão classificatória, o texto de Santiago aponta para aquilo
mesmo que, por meio da afirmação, é negado: as memórias não se limitam a um resgate
autobiográfico do narrador, a história sendo edificada como a impossibilidade de uma
escrita memorialística nos termos tradicionais. Tal impossibilidade, como se verá, se
constrói a contrapelo de uma outra história que se vai tecendo – a de um narrador que se
auto-engendra com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia [irônica]”, abalando, no
interior do próprio gênero do qual emerge, os pressupostos convencionais das memórias,
frustrando o voyeurismo do leitor que deseja conhecer a vida de um sujeito chamado
Samuel.
O narradore em xeque assim a lei do gênero
447
, por intermédio de sua causticante
degeneração. A corroo do que o invólucro promete – um texto memorialístico – origina
(palavra que integra o campo semântico de “gênero”) o paradoxo de que, afinal, as
memórias (às avessas) de Samuel dão “testemunho”, afinando-se harmonicamente ao título
que as enfeixa, ao mesmo tempo em que expõe a menção ao gênero a uma congenial
abertura, de natureza aporética, indecidível, uma vez que um “axioma de não-fechamento
ou de incompletude cruza nele a condição de possibilidade e a condição de impossibilidade
de uma taxinomia”
448
.
De acordo com Evando Nascimento, o génos grego, em seu sentido mais clássico,
compreende um interdito, norma ou regra. De caráter prescritivo, essa lei clássica do gênero
permite a distinção entre a phýsis (o gênero natural) e seus opositores: téchne, thesis, nómos
(os gêneros culturais), com o intuito de se preservar a identidade de cada um deles: “o
dever de não permitir a mistura seria o télos da teoria do gênero, sua aspirão última”
449
.
Essa teoria, baseada num selo de pureza que garantiria a qualidade vestalina do
génos, conduz, entretanto, Derrida a questionar justamente o princípio sobre o qual a lei se
ergue: “E se houvesse, alojada no coração da própria lei, uma lei de impureza ou um
princípio de contaminação? E se a condição de possibilidade da lei fosse o a priori de uma
contralei, um axioma de impossibilidade, enlouquecendo-lhe o sentido, a ordem e a
447
Cf. DERRIDA. Parages.
448
DERRIDA. Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio, p. 73-74.
449
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p.
288.
160
razão?”
450
. A partir dessas questões, que desmobilizam o conceito clássico de gênero, o
pensador argelino, na contramão do critério oposicional, desenvolve sua argumentação na
direção que aponta para um mecanismo de contaminação mútua inerente à fundamentação
do gênero: “O princípio de contaminação é enunciado por uma ‘lei de transbordamento
(loi de débordement) ou de ‘participação sem pertencimento’ (participation sans
appartenance) que diz que todo texto participa de um ou mais gêneros sem pertencer
inteiramente a nenhum”
451
.
A transgressão à lei do gênero no romance de Santiago vai ao encontro de uma
demanda mais ampla, que evidentemente ultrapassa a mera tendência de mistura de
gêneros, como a promulgada pelo Romantismo, por exemplo, e exercida com liberdade
ilimitada por gerações sucessivas, cada qual a seu modo, cada qual com suas próprias
motivações. A transgressão aqui vai também muito além da recorrente prática pós-moderna
de manipulação de diferentes códigos e discursos agenciados na composição textual, apesar
de essa prática, como já foi dito, ser facilmente identificada no tecido de O falso mentiroso:
merias.
Compreendido nesse gesto transgressivo encontra-se todo um esforço consciente de
des-possessão de uma marca originária responvel pela figurão do eu, inscrita, essa
marca, no âmbito mesmo que recorta os domínios da auto-bio-grafia. Tal região assoma
como um ponto de fuga para onde converge o discurso memorialístico, com o objetivo de
moldar a fisionomia desse eu – finalidade última do empreendimento retrospectivo.
O ato de desapossar-se de si, num texto que se pretende memorialístico, acarreta
inúmeros desdobramentossmicos, que vão do abalo da própria entidade autoral, passam
pela dissolução de uma suposta identidade construída a partir da restituição do passado, até
desembocar em questões que versam sobre origem e originalidade, cuja abrangência
comporta ainda considerações acerca do “ultrapassamento da metafísica”
452
e suas
implicações para a economia geral do texto. São esses justamente os desdobramentos que
ora nos interessam desenvolver.
450
DERRIDA apud NASCIMENTO. Derrida e a literatura: “notasde literatura e filosofia nos textos da
desconstrução, p. 288.
451
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p.
290.
161
O romance(?) de Santiagoe em cena um narrador performático que mobiliza,
para melhor desarticular, o gênero memorialístico, consignando uma participação sem
pertencimento a esse tipo de discurso. Se fosse possível arriscar uma definição que desse
conta da trama urdida pelo autor de O falso mentiroso: memórias, talvez pudéssemos
argumentar em favor de uma escrita que se aproxima do exercício ensaístico. Santiago
elabora uma literatura ensstica, ou um ensaio literário. Não nos preocupemos
demasiadamente com as nomenclaturas
453
. Convocá-las torna-se, na verdade, um pretexto
para desenvolvermos a hipótese de uma obra situada num “entre-lugar” discursivo, tal
como convencionalmente se concebe o ensaio: “O lugar do ensaio é o entre [...]: entre
realidade e ficção, entre objetividade científica e subjetividade biográfica, entre prosa e
poesia”
454
.
É nesse espaço intersticial, território da indecidibilidade por excelência, que
também se encontra a melancolia – o ensaio se constituindo então como a deriva típica do
pensamento melancólico. Oscilando entre natureza e cultura, sem porém apoiar-se em
nenhum desses extratos, o olhar do melancólico se entrega à contemplação de uma
superfície sem centro, cujo vazio ele almeja preencher, sabendo no entanto que povoar esse
espaço desértico significa pavimentá-lo com escombros, reunidos e justapostos como se
fosse um mosaico.
O ensaio tangencia essa modalidade de composição artística na medida em que
possibilita um arranjo formal de natureza “protéica”
455
. Sua artesania híbrida possui o dom
da metamorfose, apresentando-se sob diferentes máscaras, não estando portanto sujeito a
injunções prefixadas, pois “tentar definir o gênero ensaio através da descrição de caracteres
exaustivos é reduzi-lo a uma fôrma ou inscrevê-lo no céu das idéias platônicas”
456
. A
escrita ensaística reproduz a inexaurível disposição do melancólico ao perscrutar o objeto
de sua investigação.
452
Gianni Vattimo desenvolve a perspectiva de um “ultrapassamento da metafísica”, como fenômeno
intrínseco ao fim da época moderna e à emergência da pós-modernidade, à luz do pensamento de Nietzsche e
Heidegger. Cf. VATTIMO. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna.
453
O próprio Santiago se apressa em conjurar o vezo classificatório: “Nunca distingui os gêneros (romance,
conto, ensaio etc.). Os gêneros só têm sentido para a indústria cultural” (SANTIAGO. A absoluta perfeição do
crime, p. 8-12).
454
NASCIMENTO. Literatura e filosofia: ensaio de reflexão, p. 60.
455
NASCIMENTO. Literatura e filosofia: ensaio de reflexão, p. 60.
456
NASCIMENTO. Literatura e filosofia: ensaio de reflexão, p. 60.
162
Na medida em que o melancólico ensaia uma aproximação com o objeto perdido, a
contrapelo mesmo de sua irrecuperabilidade, ciente de que o conhecimento obtido dessa
aproximação não respalda uma certeza livre de dúvidas, ele [o melancólico] realiza um
exercício ruminativo característico do ensaio. Como pontifica Adorno: “o ensaio não só
dispensa a certeza indubivel, quanto a denuncia como o ideal do pensamento
estabelecido
457
. O que não significa que a deriva do melancólico, seu pensamento
desviante, prescinda do método: “O ensaio o é bem contra o método, mas sim contra sua
pretensão totalizante”
458
.
Essa concepção de ensaio coincide com as formulações de Walter Benjamin acerca
do tratado, ao qual o filósofo opõe o conceito de sistema e a presumida universalização a
que este aspira. Conforme ele mesmo explica neste longo trecho, do qual citamos,
anteriormente, algumas frases avulsas:
A quintessência do seu método [do método do tratado] é a representação. Método
é caminho indireto, é desvio. A representação como desvio é portanto
característica metodogica do tratado. Sua rencia à intenção, em seu
movimento contínuo: nisso consiste a natureza básica do tratado. Incansável, o
pensamento começa sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, às
próprias coisas. Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da
contemplação. Pois ao considerar um mesmo objeto nos vários extratos de sua
significação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o recomeço perpétuo
e uma justificão para a intermitência do seu ritmo. Ela não teme, nessas
interrupções, perder sua energia, assim como o mosaico, na fragmentação
caprichosa de suas partículas, o perde a majestade. Tanto o mosaico como a
contemplação justapõem elementos isolados e heterogêneos, e nada manifesta
com mais força o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da
verdade.
459
Percebe-se, no modo como Benjamin desenvolve a defesa do tratado, a reprodução,
visível na sua escrita, dos procedimentos preconizados: “Benjamin transforma em prática as
afirmações teóricas, oferecendo ao leitor uma verdadeira performance do próprio
pensamento
460
.
Os movimentos sinuosos, epticos, executados com ritmo intermitente,
coreografam também o texto ensaístico. De caráter ex-cêntrico, o ensaio se encaminha
menos para a resolução das questões que estimulam seu excurso, do que para a
457
ADORNO apud LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, p. 93.
458
LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, p. 93.
459
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 50-51.
460
OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, f. 232.
163
multiplicação das interrogações que, no decorrer da trajetória, atravessam seu caminho
461
. É
nesse sentido ainda que ensaio e ficção se avizinham, como bem o detectou Costa Lima, ao
constatar que o discurso ficcional identifica-se “com o discurso de questionamento e
perspectivização do que uma sociedade toma por verdade”
462
.
Em O falso mentiroso: memórias, o narrador abandona a perspectiva retilínea em
favor de um trajeto difuso, comportando múltiplas vias, projeções ilusórias de um eu que se
refunde, prodigamente. Nesse sentido, é possível atribuir a Samuel umtemperamento
saturnino”, cuja característica é “a relação consciente e implacável com o eu, que nunca
pode ser dada como certa”
463
, pois, como assevera Susan Sontag,o eu é um texto – precisa
ser decifrado
464
.
O exercício de decifração, no entanto, transmuta-se, pelas mãos de Samuel, num
exercício de re-cifração, repondo permanentemente em jogo, a tensão que congrega a
ausência de uma verdade oculta sob um rosto em branco, e o impulso lúdico, alimentado
por uma melancolia afirmativa, de retraçar possíveis figurações sobre essa superfície
seminal. Daí a invenção de prováveis versões para seu nascimento, dinamizando a
proliferação vertiginosa de incontáveis eus.
Com divertida ironia – tônica dominante das memórias –, Samuel, deitando-se por
escrito, professa o princípio da multiplicidade como determinação genética, em que o eu
dominante avulta como uma espécie de fatalidade inerente a um regime natural de livre
concorrência:
Não sei por que nestas memórias me expresso pela primeira pessoa do singular. E
não pela primeira do plural. Deve haver um eu dominante na minha
personalidade. Quando escrevo. Ele mastiga e mascara os embriões mais fracos,
que vivem em comum como nós dentro de mim. A teoria genética diz que toda
grávida carrega no útero gêmeos, trigêmeos e até quadrigêmeos. Somos
concebidos como múltiplos. É o gene dominante que – constrangido a ser
imperador, primeiro e único – estrangula e come os genes recessivos, ou débeis,
para poder, sozinho e endemoninhado, sair da caverna materna para a claridade
do mundo.
465
461
Recordemos também a prática dubitativa do ceticismo, evocada no capítulo 1 de nossa tese.
462
LIMA. Limites da voz: Montaigne, Schlegel, p. 93.
463
SONTAG. Sob o signo de Saturno, p. 91.
464
SONTAG. Sob o signo de Saturno, p. 91.
465
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 136.
164
E para justificar a permanência de um eu que sobrevive a expensas da duplicação
originária, o narrador esclarece: “O eu é a forma que encontrei para comungar, na mesa
deste escrito, com os embriões que assassinei no útero da mamãe”
466
. O eu aqui adquire
espessura na medida em que incorpora outros eus compartilhados – e simultaneamente
descartados, de modo que algo ainda como um eu resta, fruto de uma hesitação entre o
próprio e o impróprio da marca, que subsiste no texto autobiográfico:Somos três,
possivelmente quatro, talvez cinco, compartilhando um único cérebro
467
. O je, como tantas
vezes já foi citado, é um outro, outros tantos, outros trezentos ou trezentos-e-cinqüenta, por
.
As ponderações disseminadas por Samuel no fluxo de suas memórias nos impelem a
reconvocar as indagações proferidas por “Silviano Santiago”
468
, a fim de cotejar as
impressões desses dois eus (Samuel e Santiago) que se debruçam sobre o emprego da
primeira pessoa do singular. Convidado a pronunciar-se sob a tutela do nome próprio, por
ocasião de uma palestra na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em
setembro de 2004, Santiago pontuou sua fala com uma série de questões acerca da
complexa autoridade que subjaz à chancela da primeira pessoa do singular. Como um
melancólico prostrado diante do espelho, ele se pergunta: “Sem identidade, sem rosto e sem
nome próprio estável, qual é a minha primeira pessoa que, para se exprimir neste preciso
momento, devo invocar e convocar?”
469
.
Numerosas cogitações vêm somar-se a uma intrincada reflexão em torno do assunto
proposto, contribuindo para robustecer o dilema aporético tecido em torno à figura do eu.
Assinalando as afinidades que elege para prosseguir desdobrando o mote de sua condição
deambulatória, “Santiago” prossegue argumentando:
Por que será que a minha primeira pessoa, para ser mais assumidamente ela
própria, goste tanto de brincar com a minha terceira? Será por gostar de se
travestir de póstuma e irônica ao ver anteontem caneta-tinteiro e papel em branco
e ao deparar hoje com microcomputador e sua tela? Não estarei sendo precursor
de Machado de Assis, que deu início à obra madura pela voz dum “defunto autor”
que diz ser também “autor defunto”? No deslocamento do adjetivo da esquerda
para a direita do substantivo-chave, o bruxo do Cosme Velho não encontrou um
modo de desassociar a primeira pessoa autobiográfica da primeira pessoa
466
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 136.
467
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 180.
468
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 245. O nome do autor encontra-se
aspeado em seu próprio texto.
469
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 246, grifos do autor.
165
ficcional? Nas nossas obras literárias, ele e eu não estaríamos habitando um não-
lugar solitário e poético de observação dos seres humanos e dos acontecimentos,
que não se confunde com o lugar que os cientistas sociais chamam de
realidade?
470
Do fulcro dessas questões desponta o germe de um conceito de literatura que coloca
entre parênteses (para retomarmos Iser) a polarização fato x ficção, tal como aponta um dos
caminhos abertos pelo texto de Santiago.
A utopia de um “não-lugar” estende os domínios dessa suspensão sobre o
imperativo do autor, acarretando o desmembramento dessa entidade, vista como uma
constituição monotica por longa tradição, promovendo o embaralhamento dos limites que
recortam o autor empírico e o “autor de papel”, de modo a impedir a instalação de uma
ordem dicomica entre eles.
Neste “não-lugar”, Machado e Santiago, confortavelmente alojados, contam suas
profusas mentiras, como forma de veicularem suas mais sinceras e destemperadas verdades:
Não estaríamos nos iludindo e aos leitores com estórias ilusórias para que todos nós –
autores e leitores conheçamos melhor os fatos propriamente históricos?
471
. Esse conceito
de literatura, formulado por Santiago em termos indagativos, encontra ressonância nas
idéias desenvolvidas por Iser acerca das relações entre real e ficcional, pensadas a partir da
seguinte observação de Adorno: “A arte é de fato o mundo mais uma vez, tão igual a este
quanto não-igual”
472
. Comenta então Iser, nesta extensa citação:
O texto ficcional é parecido com o mundo na medida em que projeta um mundo
que concorre com aquele. Este mundo se distingue das representações existentes
do mundo pelo fato de não poder ser derivado de conceitos dominantes do real.
Se medimos a ficção e a realidade, tendo por critério a qualidade do que é dado,
constatamos apenas que a ficção não dise de traços objetivos. A ficção se
revela um modo deficiente e até é tida como mentira por não possuir os critérios
do real, embora simule tê-los. Se a ficção for classificada só mediante critérios
que definem o que é real, então seria impossível tornar a realidade representável
por meio da ficção. Ela não ganha sua função pelo cotejo nocivo com a realidade,
mas pela transmissão de uma realidade que ela mesma organiza. Essa a razão por
que a ficção mente e é mentira desde que seja definida a partir do ponto de vista
da realidade dada [...].
473
470
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 248.
471
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 248.
472
ADORNO apud ISER. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, p. 124.
473
ISER. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, p. 124-125, grifos nossos.
166
Podemos entrever, nas postulações de Iser, uma notável afinidade com as
afirmações do próprio Santiago, no que tange às propriedades da literatura: “O que é a
literatura? É um texto ‘mentiroso’, uma ficção que não apreende de maneira direta o real,
mas que, nos melhores casos, contém a verdade”
474
. Afinidade que ricocheteia ainda nas
palavras de Samuel, que, com a habitual galhardia, manifesta ser “totalmente contra a coisa
real [e] a favor de algo extra que você acrescenta à coisa real para que ela, sem se tornar
irreal, seja mais bonita, frajola e fofa do que já é”
475
.
Outra via que se descortina por intermédio das sucessivas perquirições semeadas
por Santiago fornece subsídios para melhor compreendermos o modus operandi de um
sujeito que se afirma pela negação de uma voz que o legitima. Esse artifício proporciona a
compreensão de um rastro que, no curso do auto-apagamento, vai sendo paradoxalmente a
fonte onde esse mesmo eu, que busca anular-se, se alimenta. Essa outra via comparece in
nuce no interior de uma seqüência conjetural:
Ou a minha primeira pessoa a ser invocada e convocada nesta palestra seria
aquela que existe no momento em que, na minha casa, coloco ponto final no texto
que acabei de escrever – neste, por exemplo –, e o assino com o nome que me é
próprio por direito civil? Ou seria aquela minha primeira pessoa que escreveu fim
em outro texto recente, um romance, a que dei o título de O falso mentiroso –
Memórias?
476
Santiago desarticula a unicidade subentendida na “primeira pessoa”,
desmembrando-a em copiosos eus, que se ramificam no horizonte das interrogações
alternativas. O que lhe permite reconhecer, nas condições que dariam suporte à ancoragem
do eu, uma necessária exclusão do privilégio concedido à voz enunciativa, compreendida
como detentora dos direitos assegurados a uma identidade estável, que precederia, senhora
de si, a todos os enunciados.
A subsistência de um “nome de autor”
477
, a preeminência de um eu que se projeta
como uma grife, hoje, deve muito de seu esforço ao fator incontornável que intermedeia a
474
SANTIAGO. A absoluta perfeição do crime, p. 10.
475
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 141.
476
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 249.
477
O “nome de autor foi pensado por Michel Foucault em termos de uma “função” relacionada ao “prinpio
de agrupamento” do discurso. Diz ele: “um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso
[...]; ele exerce relativamente aos discursos um certo papel; assegura uma função classificativa; um tal nome
permite reagrupar um certomero de textos, delimitá-los, selecioná-los, o-los a outros textos. Am disso,
o nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si. [...] A ‘função autor’ é, assim, característica do
167
relação autor/público leitor: o mercado, que altera a fisionomia dessa relação, balizada por
cláusulas comerciais, ao transformar autor em produtor, e público leitor em público
consumidor.
Não é nossa intenção desenvolver a polêmica que norteia o controverso debate
envolvendo, de um lado, a literatura, e, de outro lado, o autoritarismo do mercado, ditando
suas cifras sob a salvaguarda do copyright. Essa via de investigação certamente
proporcionaria uma fecunda e estimulante arena de discussões, bastante rentável, que
mereceria portanto uma atenção exclusiva, dado o alto grau de complexidade que presume.
Interessa-nos sobremaneira examinar as implicações da dramatização da
desconstrução do eu, tributária, como estamos vendo, de um influxo melancólico, visto no
registro aqui proposto – o de uma melancolia fundamentalmente afirmativa.
A configuração deste eu, outrora concebido como perene e indivisível, ordena-se
como uma legião de “eus desdobráveis que se interpenetram
478
, para falarmos com
Wander Melo Miranda, desencadeando não uma subtração que restringe e termina por
anular qualquer resquício autoral, mas uma subtração que franqueia comportas para se
pensar a questão da autoria como a anexação de eus plurais, acumulados segundo o grau de
voracidade e ruminação demonstrado neste banquete canibalístico:
Há que distinguir. Vozes, tons, falas, sentimentos, idéias de cada um dos três
corpos, dos quatro ou dos cinco eus que coexistem em mim. Normal. Há que
aprender a voltar a entrecruzar, depois de desentrecruzados, vozes, falas, tons,
sentimentos, idéias. [...] no entrecruzamento de vozes, falas, tons, sentimentos,
idéias, sobressai o gene dominante, constitutivo da personalidade. Antropófago
pela lei da natureza. Este eu que não quis ser nós. E é. É expressão de nós. Nós
atados com escrúpulo e cuidado, que eliminam o nós. Dão autonomia ao eu.
479
Grafar a “escrita de si” é aventurar-se no confronto com o outro – que se ama e se
odeia, por meio da devoração desse outro, para recuperarmos a dinâmica operada pelo
melancólico. Susana Lages afirma que “o canibalismo do melancólico é conseqüência das
modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”
(FOUCAULT. O que é um autor?, p. 44-46). Preferimos, em nosso trabalho, explorar um outro tipo de
enfoque, privilegiando a questão autoral vista, como destaca Italo Moriconi, na perspectiva de uma
“superposição ou entrecruzamento de vozes”, obtida, no caso de Silviano Santiago, a partir da rapinagem
criativa de textos alheios (MORICONI. Improviso em abismo para homenagem, p. 59).
478
MIRANDA. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, p. 66.
479
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 181.
168
necessidades de um ego frágil, esvaziado por sua constante autodeprecião
480
, por isso,
conclui, “o impulso devorador torna-se a única possibilidade de ele constituir uma imagem
de si como sujeito, precário, mas com alguma integridade, sua única possibilidade de
satisfação, ou gozo, em termos de uma reflexão de vertente lacaniana”
481
. A imagem que o
melancólico constrói de si mesmo é, portanto, uma imagem clivada, que desaloja o
privilégio de um eu homogêneo, refinado pela escrita autobiográfica.
Evando Nascimento, ao decompor o vocábulo “autobiografia”, na perspectiva da
desconstrução, avalia porém que auto o significa uma auto-referência narcísica –
embora um certo grau de narcisismo próprio à marca singular, ao seing, firma, não esteja
excluído –, mas a inscrição de um traço que de imediato se divide com o outro”
482
. A
insuficiência do prefixo, uma vez que reenvia a um núcleo centralizador, reduto do uno, é
suplantada pela rasura do termo composto, optando-se por um expediente que abarque a
alegada pluralidade contida no “si próprio”: A (autobio)grafia se vê então deslocada por
uma (heterobio)grafia que lhe é incomensurável. A (heterobio)grafia significa a experiência
singular como prova da aporia, abrindo o caminho para o outro
483
.
A afirmação da alteridade, ao equacionar a heterodoxia do eu, produz um efeito
performático, na medida em que o auto-engendramento implica a um tempo o declarado
auto-aniquilamento do sujeito indiviso e imutável e sua concomitante reconstrução a partir
do caminho aberto pelo outro. Assim, a certa altura de suas memórias, Samuel revela:
“Meu rosto, uma folha de papel em branco”
484
, inaugurando uma zona franca e fértil, apta a
albergar uma legião de eus.
O caráter performático, identificado na escrita de Santiago, pode ser aproximado de
uma certa tendência que se verifica atualmente (mais do que em qualquer outra época) nas
letras contemporâneas
485
. Trata-se justamente da tentativa de desmitificação do próprio ato
480
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 62.
481
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 62.
482
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p.
305, grifos do autor.
483
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p.
306.
484
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 140.
485
Esse caráter performático pode abranger, em sentido amplo, o conjunto das práticas culturais
contemponeas, não mais com o prosito de “chocar” ou “romper” com formas artísticas tradicionais, como
tencionavam fazer as vanguardas do século XX, mas com o intuito de desmobilizar os princípios que norteiam
a representação mimética. Como ressalta Márcio Seligmann-Silva: “A marca dessa arte [a arte
contemporânea] é a saída do campo da mesis como imitatio e passagem para uma noção de arte como
169
da escrita no momento de seu nascedouro, captando o átimo de sua materialização. O
enigmático gabinete onde o escritor se refugiava para então receber as benesses da musa
escancarou suas portas. Tremendo strip-tease daquele que escreve, deixando-se surpreender
“no extremo de si mesmo”, como diz o poeta,se exercendo nessa nudez, a mais nua que
há”
486
. O narrador pós-moderno não faz pose, não se estanca, como salienta ainda Ana
Maria de Bulhões Carvalho. Intrépido, “seu gesto agora é vivo, imprevisível,
transforvel”:
A narrativa contemponea, incorporando a seu tecido a dramatização do
escrever, permite ao leitor flagrar o escritor em sua mesa, esperá-lo ter uma idéia
e registrá-la. Torna a leitura ato simultâneo ao da escrita. De uma escrita per-
fortica, isto é, cujo percurso, desenrolar, caminha em torno da forma e se
desdobra em espaço físico/imaginário das linhas/imagens que o leitor torna reais
e atuais. O narrador torna-se performer. Entra e sai de um transe que o transforma
simultaneamente de narrador em personagem de si mesmo.
487
A folha de papel em branco se torna palco onde o eu encena a figuração de seu
próprio rosto. O narrador assume a função de “pintor de si mesmo”, tornando-se
sujeito/objeto do discurso que assina.
No século XVI, ao compor seu auto-retrato, Montaigne já exprimia uma concepção
de subjetividade forjada na e pela escrita, mostrando estar muito distante da prerrogativa
platônica no que diz respeito às artes miméticas. Em seus Ensaios, no capítulo
curiosamente intitulado “Do desmentido”, presente no Livro II, Montaigne escreve:
Fazendo o molde de meu próprio rosto, mais de uma vez precisei enfeitar-me e
ajustar-me de modo que o modelo se afirmou e tomou forma sozinho. Pintando-
me para outrem, pintei a minha alma com cores mais nítidas do que a apresentava
primitivamente. Fez-me o meu livro, mais do que eu o fiz; e autor e livro
constituem um todo.
488
O auto-retrato realizado por Montaigne conduz irremediavelmente à problemática
da escrita auto-reflexiva e aos abismos que ela engendra. A exposição do percurso trilhado
pelo autor dos Ensaios no processo de composição pictural de si traz a lume a emergência
manifestação das pulsões: rito, performance”. E, citando Perniola, arremata: “A transmissão ritual dos usos
tende a caracterizar a cotidianidade: todos os gestos e todos os comportamentos estão implicados numa
circulação que os subtrai à identidade e à origem” (SELIGMANN-SILVA. O local da diferea, p. 59-60).
486
MELO NETO. Obra completa, p. 413.
487
CARVALHO. Ich bin der und der, p. 207-208.
488
MONTAIGNE. Do desmentido, p. 48-49.
170
inadvertida de um desvio no decurso da reflexidade. A forma alcançada pelo retrato rebela-
se contra o modelo, “adquirindo cores mais nítidas” do que este em princípio apresentava.
O autor faz questão de realçar a disjunção, admitindo: “o modelo se afirmou e tomou forma
sozinho”. Não há espaço aqui para pensarmos a auto-reflexidade nos termos estritos ditados
por uma longa tradição de representação. A repetição só é possível como exercício da
diferença. O movimento da auto-reflexividade é uma insólita expedição aos abismos da
experiência inquietante de capturar o familiar.
Nos domínios por onde costuma excursionar Silviano Santiago, a aventura da auto-
reflexividade está presente em todos os seus itinerários de viagem: ensaios, contos,
romances, novela... Sua rubrica é incansável, cobrindo a superfície de seu extenso território
textual. Dosando o fingimento ao seu bel prazer. Brincando às vezes de esconde-esconde
com o leitor. Flertando, outras vezes, mais ostensivamente com ele. Santiago se desloca,
daqui para ali, dali para lá, sempre em trânsito. Em liberdade.
A construção em abismo promove a dobra do texto, tensionando os limites “entre o
fora e o dentro, entre o vazio e o pleno, manipulando com habilidade as questões da falta e
do suplemento
489
. Nesse enleio, sem resolução dialética possível, os vários Silvianos,
“monstros” terríveis, dão pano para manga: “Tradução. Encobrir-se. Deixar encobrir-se.
Passar por outro. Passar por ninguém. Caso fosse preciso adotar uma identidade, que fosse
por baixo do pano
490
.
É assim, por exemplo, que Silviano acoberta Graciliano, subsume-se sob o nome
próprio do escritor alagoano, fraudando sua dicção e espoliando sua assinatura. Por meio do
pastiche, Em liberdade, obra publicada em 1981, alinhava memorialismo e fingimento,
originando um diário íntimo que deflagra um verdadeiro curto-circuito no jogo reflexivo
das personae em pauta. E o faz de maneira que “nem o eu-textual espelhe o corpo-vivo do
escritor, nem os corpos-escritos de Graciliano e Silviano se identifiquem totalmente”
491
.
Como mecanismo transgressivo, inscrito na clave da homenagem, o pastiche
empreendido por Silviano, na mencionada obra, pode ser considerado, conforme a proposta
de Ana Maria de Bulhões Carvalho, uma alterbiografia, para contabilizarmos mais um
prefixo aos já convocados. O novo comsito congrega traços da autobiografia, do
489
HELENA. Olhares em palimpsesto, p. 82.
490
SANTIAGO. O falso mentiroso: merias, p. 102, grifos nossos.
491
HELENA. Olhares em palimpsesto, p. 78.
171
ficcional e do factual, não concedendo privilégio a nenhuma dessas instâncias discursivas,
contribuindo, ao contrário, para alargar o abismo em direção ao qual a escrita ensaia seu
vôo livre. Como explicita Carvalho, a alterbiografia:
[...] falsifica a autobiografia a tal modo que a autenticidade do documento vai se
decidir pelo rigor da imaginação, a sinceridade do falar pode render-se à fala do
Outro, e a veracidade do fato instaura-se ironicamente pedindo perdão à
realidade. [...] As características mais aberrantes da alterbiografia – a
desqualificação dos gêneros, a dramatização do processo da escrita e a
problematizão do gesto de leitura – pelo fato de privilegiarem a subjetivão
dos pontos de vista e a valorização do indivíduo, colocam em xeque o único
direito inabalável de cada um – o direito sobre a própria vida.
492
A reflexividade compreendida na alterbiografia, reencenando a construção do eu
nos interstícios da imagem do outro, põe em relevo – ao lado do despojamento
incondicional de uma voz predominante, singular, em benefício da “balbúrdia” de vozes
entoadas – não somente o escritor no ato de seu ocio, mas, e sobretudo, o exercício
mesmo de leitura, atividade suprema e fundamental de todo aquele que escreve,
desnudando o mecanismo de ruminação do amplo repertório adquirido no curso das viagens
pela escrita alheia.
Ao fim e ao cabo, numa síntese não de todo forçada, o que está em jogo neste
processo de des-subjetivação, é a operação pela qual o escritor escancara seu arquivo
bibliográfico, fazendo confluir nessa imagem que se des-dobra a interdependência da
prática da leitura e da escritura – práticas essas profundamente mobilizadas pelo influxo
melancólico. Como nota Susana Lages, “o humor melancólico [é] produto de dois atos
complementares: o ato de ler e o ato de escrever”
493
, salientando ainda que:
A melancolia se instala entre esses dois momentos concretos fundamentais da
atividade intelectual, como resultado de uma determinada atitude diante do
mundo das coisas, mediada pelo objeto livro, por sua vez, corporificação de todas
as virtualidades – simultaneamente destruidoras e renovadoras – da escrita.
494
A obra de Santiago centra o foco nessa relação de mão dupla, colocando em cena
um narrador que, ao escrever suas memórias, não parte em busca do tempo perdido,
almejando recuperar a dimensão do vivido. Mas procura registrar a dimensão do lido.
492
CARVALHO. A imaginação perigosa (sobre a alterbiografia na literatura contemporânea), p. 93-94.
493
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 158.
172
A leitura, tanto quanto a escritura, é um processo ligado à satisfação do desejo – que
se desconhece e que nem sequer pode ser nomeado, como nos lembra Roland Barthes
495
. O
apanágio do desejo é ser encobridor de uma falta, ao mesmo tempo em que dela se origina.
Um certo erotismo permeia o ato de ler, destilando o que Barthes designou como “leitura
desejante”, desdobrada em dois tipos de “sujeitos humanos”: o sujeito amoroso e o sujeito
místico
496
.
A constituição de base do desejo, calcada numa falta que se tenta suprir, converge
para um dos modos de se conceber o elemento desencadeador da afecção melancólica. Tal
como vimos, páginas atrás, na Idade Média, Constantino já havia localizado no melancólico
uma perda de natureza irreparável, derivada de uma separação definitiva, imposta pela
morte de alguém muito estimado. Tânatos e Eros cruzam-se aqui. O desejo que impele à
leitura (e à escritura) esbarra na morte como seu horizonte ineludível. Daí afirmar Susana
Lages que toda narrativa é de alguma forma tributária de um impulso melancólico, pois ao
mesmo tempo que atualiza eventos do passado reafirma seu caráter por definição passado,
isto é, que passou, morreu, deixou de existir e, portanto, pranteável”
497
.
Walter Benjamin traduz admiravelmente esse desejo insaciável do leitor, cuja
volúpia busca aplacar, semelhante ao que faz o melancólico, pelo método da incorporação
daquilo que, em última instância, é pura promessa de satisfação. E, como promessa,
permanece uma dádiva sempre adiada.
Em seu texto “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”
498
,
Benjamin discorre sobre o leitor, em especial sobre o leitor de romances, encerrado em sua
solidão inviolável, nos seguintes termos: “Nessa solidão, o leitor do romance se apodera
ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo
modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha na fogueira”
499
.
Sobressai, de imediato, a apetência do leitor, que busca deleitar-se com o corpus
que a ele se oferece. Destruição e devoração se conjugam de modo a abrandar o que não
pode ser saciado.
494
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 158.
495
BARTHES. Sobre a leitura, p. 34.
496
BARTHES. Sobre a leitura, p. 35.
497
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 131.
498
BENJAMIN. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, p. 197-221.
499
BENJAMIN. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, p. 213.
173
O objeto de desejo do leitor acena para a compreensão dosentido da vida”, que ele
não encontra em sua própria existência. Ora, de acordo com Benjamin, o “sentido da vida”
é alcançado na experiência-limite. Em outras palavras, na morte. Paradoxo da humana
existência: só após a conclusão de sua jornada é que o indivíduo pode dela extrair algo
como o “sentido da vida”. A vida em curso é ausência de sentido, que, por isso mesmo, nos
move em direção a ele. É essa utopia da existência que é transferida para a leitura de
romance.
O “interesse absorvente” do leitor se alimenta dessa possibilidade – a de encontrar
na morte do personagem de romance o tal “sentido da vida”. Como sintetiza Benjamin: “O
que seduz o leitor de romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte
descrita no livro
500
. Essa passagem evidencia o erotismo implicado na relação leitor x
romance. O leitor é seduzido, tem seu desejo ativado, pela fresta que se lhe abre a
perspectiva de socorrer o vazio intrínseco e irretorquível de sua vida insípida. Posto que o
desejo jamais é satisfeito, a vida cálida que aspiramos não é mais que uma esperança. Ou
uma promessa, como dissemos acima
501
.
Uma ressalva, porém, se faz necessária. Que não se veja aqui uma variante do
processo catártico, simplificadamente entendido como uma maneira de purgar as paixões
humanas por intermédio da dramatização de suas mazelas. Esse tipo de compreensão,
reducionista e equivocada, certamente levaria à conclusão de que existe um método,
didaticamente aplicável e infalível, de “aprimoramento” da humanidade, pela gradual
domesticação de suas pulsões. Em sentido diametralmente oposto, a relação vislumbrada
entre leitor e romance pretende antes ressaltar a dimensão de falta que nos constitui, na
medida em que, não sendo passível de ser coimatada, é essa falta que nos impulsiona em
direção à leitura/escrita. Numa palavra, em direção à vida mesma. Como esclarece
Benjamin: “O romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino
500
BENJAMIN. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, p. 214.
501
Curiosamente, também a melancolia possui sua contrapartida num apelo a uma certa descarga erótica.
Klibansky, Panofsky e Saxl nos informam que Constantino Africano, retomando Rufo de Éfeso,
recomendava, para o caso da “enfermidade mental melancólica”, a prática sexual, acreditando queel
comercio sexual moderado era deseable”. Citando literalmente Rufo, o médico árabe prognosticava: “Coitus,
inquit, pacificat austeriorem, superbiam refrenat, melancholicos adiuvat”, cuja tradão, segundo os
estudiosos, seria: “El coito, dea, apacigua, refrena la austeridad soberbia, ayuda a los melancólicos
(KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL. Saturno y la melancolía, p. 103).
174
alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o
calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino”
502
.
Ressalva feita, pé na estrada. Sigamos em frente.
Como eminente leitor/narrador perfomer que é, Samuel reproduz para nós a relação
erótica que estabelece com a escrita deglutida vorazmente. O procedimento de introjeção
que adota é a cópia, em torno da qual erige sua particular teoria estética:
Sobram ainda muitos patamares para alcançar. Para que eu chegue à perfeição na
arte da cópia. chegando, terei tido uma carreira original. Novo Leonardo da
Vinci. Novo Rembrandt. Novo Cézanne. Novo Picasso. Devorem-me como tal. A
pia me torna modelo que serve de exemplo para os pósteros. Ou me
vomitem.
503
Incorporando o leitor no seu pprio texto, convidando-o a ser, por uma manobra
reversível, nessa cópula abissal, o objeto de desejo do autor das memórias
(Samuel/Santiago), o narrador incita a devoração, ratificando-a na abertura do capítulo
seguinte – todo ele um extenso pantese, suplementando explicitamente o capítulo
anterior. De forma provocativa, ele nos lança a seguinte “cantada”: “(Devore-me como
exemplo e modelo. Será esse, caro leitor, o motivo que o levou a procurar estas memórias
na livraria mais próxima? A comprá-las e a lê-las? [...])
504
.
A interpelação do leitor, ensaiando uma ativa participação deste no âmago da
narrativa, subtrai sua condição clandestina, voyeurista. O leitor se vê eno reduplicado na
trama, adquire visibilidade, terminando por ficar inteiramente condicionado às vicissitudes
de um narrador muito pouco confiável. Participa, pois, do movimento vertiginoso de sua
escrita em abismo. A imagem do leitor vista pelas lentes de Samuel é a de alguém que está
sempre aquém das travessuras maquinadas por ele, e por isso é considerado incapaz de
obter satisfação com a leitura de suas mirabolantes memórias:
Você chegou até aqui. Calculo. A duras penas. Parans. Imagino. Suas pernas
estão trôpegas e sinalizam cansaço. Pergunto-me. Será que seus olhos
compreendem as segundas e terceiras intenções que se escancaram a cada página
das memórias? Duvido. Não está tirando prazer da leitura nem usufruindo os
conselhos. Arrefeço. Tudo vale a pena.
505
502
BENJAMIN. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, p. 214.
503
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 173.
504
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 174.
505
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 174.
175
Como compulsivo leitor que demonstra ser, Samuel se desdobra na imagem desse
interlocutor virtual que ele projeta (seu “leitor modelo” e um de seus múltiplos eus,
concomitantemente), duplo que ele coopta do exterior para o interior de sua escrita,
abalando, aqui também, os limites entre o fora e o dentro:Serei leitor? Meu camaradinha e
irmãozinho de fé, o seremos todos leitores?
506
. Questão que amplifica a dimensão
mesma dessa categoria que nos irmana, respaldando a versão contemporânea do leitor: “O
leitor perante o infinito e a proliferação.o o leitor que lê um livro, mas o leitor perdido
numa rede de signos”
507
.
Esse abalo que se instala no limiar da letra e da vida tanto mais é contundente
quanto mais vemos que a ele outro duplo se agrega – o (im)próprio “Silviano Santiago”,
presença que se anuncia desde a capa, emprestando às memórias a tradução visual de sua
persona: a fotografia em preto e branco estampando um sorridente bebê de olhar maroto.
Outros indícios do indivíduo Santiago se disseminam, enredando-se nas malhas das
letras de Samuel. É o caso, por exemplo, das referências à data e ao local de nascimento do
autor (Samuel/Santiago), bem como dos dados de seus supostos progenitores, que
“coincidem” entre si, favorecendo a intrincada mise en abîme sobre a qual a narrativa se
edifica. Numa das inúmeras versões de seu nascimento, mais precisamente a quinta delas,
Samuel declara que “teria nascido em Formiga, cidade do interior de Minas Gerais. No dia
29 de setembro de 1936. Filho legítimo de Sebastião Santiago e Noêmia Farnese
Santiago”
508
. No entanto, como sói acontecer com o falso mentiroso, ao elencar distintas
histórias envolvendo sua(s) origem(ns), essa bula, como as demais, é igualmente
rasurada, conservando porém o traço do que foi rechaçado: “A versão é tão inverossímil,
que nunca quis explorá-la. Consistente só a data do nascimento. Cola-se à que foi declarada
em cartório carioca pelo doutor Eucanaã e Donana”
509
.
O agenciamento de dados biográficos do autor empírico (Santiago), transportados
para a narrativa autobiográfica de um “autor de papel” (Samuel), induz a um jogo auto-
reflexivo que, no limite, emerge como fundamentação de uma idéia específica de literatura.
Essa idéia estaria calcada na concepção da prática literária como repetição diferente de um
506
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 192.
507
PIGLIA. O último leitor, p. 27.
508
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 180.
509
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 180.
176
traço. A assinatura, como uma marca de caráter absolutamente singular, já conteria em seu
bojo a inclinação ao múltiplo, ao se inscrever como potencial abertura para o seu
desdobramento. Esse processo – a que Derrida dá o nome de contra-assinatura – implica a
concepção de leitura e escrita como atos mutuamente reversíveis e suplementares:
O que dá vez a uma obra literia é um arquivo, informado e informante de um
jogo e suas regras, por natureza, inacessíveis. Todavia, no próprio processo de
inscrição por assim dizer idioletal, desde sempre um traço se divide e ao se
dividir abre a possibilidade de acesso como repetição noutro lugar. Com a
divisibilidade e a iterabilidade do traço começa a aventura da leitura, suplementar
da aventura primeira, a da escrita, que, por sua vez, tinha-se dado em algum
momento também sob a forma da leitura. Derrida reserva o nome de contra-
assinatura para esse movimento de recepção do traço na produção de um outro
texto [...]. Ao acontecimento inaugural do texto deve corresponder esse outro
acontecimento também inaugural que é a leitura como contra-assinatura.
510
O rumo adotado por essas formulações nos remete novamente aotulo da obra de
Santiago. O paradoxo da primeira parte – O falso mentiroso – define a rasura imposta ao
nero designado pelo subtulo – memórias. A “escrita de si” só reconhece sua
singularidade na convergência da “escrita do outro”, uma vez que a “impureza” se localiza
pois desde a “origem”. Samuel contra-assina seu texto, que recebe a contra-assinatura de
Santiago, cujo livro é contra-assinado por nós, seus leitores, e assim por diante. Ficção
sobre ficção, numa superposição indefinida de traços que “re-encena[m] a origem (dividida
e insituável) de toda a escrita”
511
. Não por acaso, encontramos, na autobiografia de Samuel,
uma instigante conceituação de originalidade, inspirada numa postura anti-metafísica, a
partir da reabilitação da cópia como expediente dotado de autenticidade e legitimidade
originais.
O narrador investe na des-construção da tradição platônica de rebaixamento da
mímesis, subvertendo o estatuto que a sentenciava depreciativamente. A cópia surge assim
como uma espécie de artifício destinado a desmobilizar a glorificação do modelo como
única forma legítima a reinar absoluta (e é de fato de um absolutismo que se trata nessa
510
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p.
300.
511
NASCIMENTO. Derrida e a literatura: notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, p.
301.
177
escala hierárquica) no universo das representações: “O ilegítimo [...] é o bom
512
, defende
ele.
A idéia de cópia que assoma aqui rejeita a mera reprodução submetida à fidelidade
irrestrita ao modelo, reiterando seu privilégio, confluindo para a reavaliação do próprio
conceito de “originalidade”. Iia que se inscreve no horizonte da melancolia – um
horizonte sem transcendência, sob cuja linha se projeta uma origem que não cessa de se
reproduzir.
Com a costumeira ironia, Samuel apregoa a apologia à cópia, invertendo os sinais
que conferiam a esta uma negatividade condenatória. Aliás, vale ressaltar, é por meio do
habitual recurso à afirmação pela negação que o narrador enuncia sua transgressão:
Não podia não ser a favor da cópia. Era a salvação da lavoura. Tinha ojeriza por
tudo o que se apresentava aoblico como original e autêntico. Puro. Imaculado.
[...] Sou a favor da cópia. Da auntica cópia legítima. [...] A cópia é platônica.
Reino do belo, do bem e do bom. A cópia substitui o feio, o mal e o mau.
Substitui o que é original e que, ao nascermos, nos é dado de presente pelomen
que fecunda o óvulo. Pelos deuses, melhor dito.
513
O parti pris da cópia, correlacionado à expressão de uma certa noção subjacente de
literatura, que se vai construindo ao longo da narrativa, assenta-se sobre três princípios
primordiais, segundo o narrador:
Questão de repertório, em primeiro lugar. Quem inventa tem repertório
diminuto.[...] Quem copia tem repertório imenso e variado. Confunde-se com os
vários volumes duma enciclodia visual ambulante. Um filme de longa-
metragem. Cada fotograma é uma obra de arte. Para criar, que procurar dar
seência às imagens desencontradas. Processo de montagem ardiloso. A graça
mais engraçada está em misturar. Locais e épocas. Em embaralhar. Nomes,
nguas e procencias. [...] Questão de estilo, em segundo lugar. Quem inventa
desenvolve um estilo próprio. Intransferível. [...] Quem copia desenvolve vários,
entretidos e divertidos estilos. Escreve sob várias e poderosas bandeiras. [...]
Quem diz o diz, imitando a alguém que disse antes dele. Não há filho que fale
sem pai falante. O artista é filho de vários pais falantes. Muitos falsos, nenhum
verdadeiro.[...] Queso de visão de mundo, em seguida e finalmente. Quem
inventa acredita na liberdade individual. Desenvolve a intolencia. [...] O similar
é semprepia. Esta é desprezada como delito. Ofensa hedionda. [...] Quem
copia sabe que a liberdade humana é tão limitada quanto a flor o é pela haste que
a sustenta no ar. [...] Quem copia não corta cordão umbilical. Pelo contrário.
Coleciona cordões umbilicais ao ar livre da imaginação.
514
512
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 218.
513
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 141-143.
514
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 182-184.
178
Esse numeroso apanhado de sentenças aforísticas fornece-nos uma visão geral das
concepções estéticas que norteiam o empreendimento memorialístico do narrador, e, por
extensão, a noção de literatura que daí inferimos. O cotejo, pondo em relevo as distinções
entre aquele que inventa e aquele que copia, possibilita exaltar as vantagens que a cópia
obtém sobre a invenção, subvertendo a tradicional perspectiva de filiação platônica.
A teoria estética de Samuel, que sustenta seu favoritismo pela prática da cópia,
remete à irrupção da arte desauratizada – tema medular do clássico texto “A obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica”
515
, de Walter Benjamin. A perda da aura implica o
reconhecimento da perda (diríamos, salutar) de um distanciamento que encarcerava a obra
de arte numa redoma espácio-temporal intransponível.
O valor de culto, inerente à arte aurática, encontrou amparo, em suas extremas
manifestações, no sentimento nostálgico, impulsionado pelos instantâneos captados pelas
lentes fotográficas, que flagram o ausente em sua dimensão inabarcável: “O refúgio
derradeiro do valor de culto foi o culto da saudade, consagrada aos amores ausentes ou
defuntos. A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos. É
o que lhes dá sua beleza melancólica e incomparável”
516
.
O desaparecimento da aura, decretando o fim doaqui e agora da obra de arte, sua
existência única, no lugar em que ela se encontra
517
, é conseqüência das modalidades
técnicas de reprodução em série, implementadas num circuito governado pelas mercadorias
e fantasmagorias. No núcleo dessa concepção de aura, encontra-se o fundamento da
tradição como um cânone a ser preservado e reverenciado perpetuamente.
De caráter autoritário, esse tipo de pensamento, cuja localização embrionária
remonta ao Renascimento, época para a qual o passado constituiu uma inequívoca fonte de
conhecimento verdadeiro, impunha um critério valorativo que concedia uma superioridade
suprema ao original, contrastada com o menoscabo dirigido à cópia. A distância temporal,
selando a preeminência do passado sobre o presente, recrudesce com a instauração dos
museus – verdadeiros templos destinados a salvaguardar as obras artísticas de uma
mundaneidade ameaçadora. A aura não poderia aí receber melhor abrigo. O museu,
conforme argumenta Otte, “garantia à obra a autoridade da originalidade, como se a
515
Cf. BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 165-196.
516
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 174.
517
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 167.
179
distância temporal exigisse ser representada como uma barreira no espaço”
518
. Tal
autoridade é a prerrogativa incontornável de toda tradição, o museu simbolizando o lugar
sagrado onde reside o pai, o inconspurcável reduto do original – a voz imperativa (e
intimidadora) de nossos antepassados.
A desmitificação do original decorrente da perda da aura possibilitou a ascensão e o
triunfo da cópia. Nesse contexto, a própria relação com a tradição, compreendendo o
passado e seu insuperável distanciamento, é redimensionada. No campo da literatura, mais
especificamente, assistimos hoje a um intenso diálogo com os textos ditos canônicos,
testemunhando uma convivência que, sem deixar de ser respeitosa, mas cum grano salis,
transpõe as barreiras espácio-temporais que os apartavam, a releitura do passado impedindo
assim a musealização das obras.
Como vimos com Borges e Calvino, dentre outros, o peso da herança recebida, em
lugar de assombrar e intimidar a imaginação dos que seguem escrevendo apesar da
magnificência que recobre o mito da tradição, torna-se, em muitos casos, conforme também
salientamos, um dispositivo que alavanca e impulsiona a criação literária. Dessa forma, a
melancolia provocada pelo “já-dito”, a melancolia libri, como a denominou Michel
Schneider, é trabalhada terapeuticamente na e pela escrita. O escritor extrai seu fôlego
daquilo mesmo que o faria emudecer, paralisando sua pena. Daí reconhecermos um efeito
afirmativo” manifestado pela afecção melancólica. O pleno exercício dessa escrita
saturnina pressupõe pois um subreptício desejo parricida. É preciso, para desfrutar o gozo
de uma autonomia criativa, negar obediência ao pai, furtar-se à sua vigilância,
autoproclamando a independência. Em sua necessária radicalidade, é preciso ir ainda mais
longe, abjurando, em última instância, a existência de uma filiação mesma, tal como, de
fato, faz declaradamente Silviano Santiago.
É o que podemos ver em uma de suas sete histórias apropriadas, intitulada “Hello,
Dolly!”. Neste texto, da coletânea Histórias mal contadas, o personagem escreve uma carta
endereçada a Walter Benjamin, a quem trata de “velho amigo”. O conteúdo da missiva gira
em torno justamente das reflexões irônicas acerca das conseqüências advindas da perda da
aura, estabelecendo um franco diálogo com o autor de “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”.
518
OTTE. Linha, choque e mônada: tempo e espaço na obra tardia de Walter Benjamin, f. 113.
180
O texto de Santiago é inaugurado com as seguintes considerações: “Muitos perdem
o guarda-chuva. Eu perdi a aura. O aqui e agora da minha autenticidade. [...] A culpa do
terremoto que causou o incêndio biogenético que nos avacalha é sua. Só sua”
519
. Ao figurar
ao lado do guarda-chuva, a aura é duplamente perdida. Comoaparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja”
520
, a aura é da ordem do imaterial, remetendo ainda
ao registro do religioso, ao halo que circunda as cabeças santificadas. Cotejada a um objeto
utilitário, prosaico, a aura adquire, por contaminação, forma e espessura, semelhante a algo
que, se o solicitado para exercer suas qualidades prestimosas, é facilmente esquecido em
um canto qualquer, tal é a sina do guarda-chuva. A aura perde aqui sua aura. É reificada,
sofrendo as mesmas conseqüências atribuídas à arte tecnicamente reproduzida. Ou seja,
experimenta um processo de desmitificação, trazendo definitivamente para o contexto do
presente essa arte retida no passado. Como nota Márcio Seligmann-Silva: “A perda da
aura/auréola [...] é uma conseqüência do fim da autenticidade, do arrancar a obra da
tradição que leva a uma aproximação e transformação da ‘obra única’ em meio
potencialmente onipresente”
521
.
Ao mesmo tempo, ao descrever a aura comoo aqui e agora da minha
autenticidade”, o personagem reivindica para si o status de objeto artístico (desauratizado),
ocupando seu lugar. Ele não recrimina Benjamin, censurando-o pelo estado geral das artes,
desprovidas de seu carátertico e stico. Mostra-se indignado porque se percebe
espoliado, extorquido. Surrupiaram-lhe o invólucro, sua majestosa autenticidade: “Sinto-me
mais pobre, destripado duma célula. Vo me dirá, mais rico. Conseguiram me retirar de
dentro do meu invólucro. Acabar com a singularidade da minha imagem. [...] Será que
conseguirei continuar vivendo sem a minha aura?”
522
.
A teatralização farsesca que responde pela inflexão irônica da correspondência
forjada com o filósofo alemão põe no centro do palco uma instigante reflexão acerca dos
pressupostos estéticos praticados com desenvoltura por Santiago em seus textos, tanto
literários como crítico-teóricos. Trata-se da crítica ao conceito platônico de cópia, a partir
da qual se pode pensar uma escrita dotada de reinvenção criativa (operação tradutória),
519
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 153.
520
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 170, grifo nosso.
521
SELIGMANN-SILVA. O local da diferença, p. 24.
522
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 153-154.
181
fruto de um diálogo amplamente travado com os textos da tradição. O próprio autor se
encarrega de fornecer as coordenadas que perfilam sua concepção de cópia como gesto
essencialmente transgressivo gesto que, por sua vez, originou seu famoso conceito de
entre-lugar”:
[...] quando eu falo de cópia, estou usando a palavra “cópia” no sentido de
transgressão a alguma coisa, não é cópia xerox. A cópia repete em diferença. E o
que conta nessa repetição em diferença é exatamente a diferença, não a repetição.
[...] a cópia no sentido em que a utilizo requer uma leitura em transparência,
porque você tem de ler através da cópia o texto ou os textos canônicos de que se
valeu o criador para produzi-la. Foi a partir daí que criei o conceito de “entre”,
“entre-lugar”, o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá,
nem lá, é um determinado “entre” que tem que ser inventado pelo leitor. É
capital, em tudo que penso, o leitor como manipulador de objetos. E esse leitor é
que fica “entre”, entre o canônico e a cópia. Esse leitor, portanto, é capaz de ler e
interpretar o que é a transgressão.
523
A noção de cópia como repetição que engendra a diferença é igualmente defendida
por Samuel, quase ao final de suas memórias: “A semente da produção artística é uma
planície por onde planam os olhos à cata dos pequenos relevos que sobressaem, se repetem,
se repetem, se repetem. Em diferença. disse e reitero
524
.
EmHello, Dolly!”, a transgressão levada a cabo pela cópia, na definição de
Santiago, abrange a questão da des-filiação, da ruptura com a iia de linhagem, inerente ao
histórico da tradição: “Seu profetazinho de merda, você bem que imaginou que eu tinha
vindo ao mundo para, solteiro, inaugurar uma tradição sem antepassados. [...] Sou hoje
antepassado e prole de mim mesmo”
525
. Essa espécie de autogamia prolífera encontra um
paralelo implícito na saudação estampada no título. A referência à ovelha Dolly, resultado
da primeira experiência de clonagem em seres vivos, também acena para a perspectiva do
auto-engendramento: “Virei reprodução e exposição de mim através de todos os outros que
estão sendo fabricados à minha imagem e semelhaa
526
.
O universo dos replicantes avança das páginas de ficção-científica, faz uma
desastrosa e breve coneo no mundo “real” (Dolly se foi, sem deixar “herdeiros”), para
523
html://p.php.uol.com.br/tropico/html/textostextos//2375,2.shl
524
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 219.
525
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 153.
526
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 153.
182
diretamente aterrissar no fecundo território sem lei do senhor Santiago: “Caminhando pela
Rua Visconde de Pirajá, cruzo com o primeiro (papel carbono? Xerox? Replicante?). Com
o segundo. O quinto. O centésimo. Somos legião hoje na cidade de São Sebastião
527
. Vista
sob o prisma (inico) dessa “história apropriada”, a clonagem deita por terra os
argumentos que sustentam o discurso em favor da identidade, inaugurando um circuito que
arranca o mesmo ao mesmo, desferindo um golpe mortal na consolidação do diferencial, de
natureza narcísica, instituído pelo desejo de ser único, singular. É essa controversa questão
– a formação da identidade – que está no cerne da afecção melancólica.
Segundo a perspectiva psicanalítica, a melancolia pode ser considerada uma
doença da identidade”, provocada devido a uma falha ocorrida durante o estágio do
espelho. Nessa etapa, localizada ainda na infância, a criança seria privada, por algum
motivo,de um olhar próximo que lhe teria significado seu contorno”
528
. Na auncia desse
olhar “apto a lhe dar um Duplo”
529
, a imagem refletida no espelho permanece para ela
definitivamente estranha
530
.
O melancólico está por isso condenado a errar continuamente em busca de um eu
Ideal, que possa preencher o contorno vazio de sua imagem, ainda que reconheça a
impossibilidade de êxito dessa empreitada. Consciente desse mecanismo, que revolve os
subterrâneos da afecção melancólica, Silviano Santiago se indaga: “Isso a que chamo de
‘minha experiência de vida’ e isso a que chamo de meus escritos’, não seriam uma
sucessiva e sempre interrompida e sempre retomada cadeia de escolhas narcísicas de
objeto, de manufatura de manequins que, pela leitura e pela identificação a posteriori e,
agora, neste meu corpo, são eu não sendo eu?”
531
.
Os dilemas que envolvem a identidade, experimentados pelo melancólico, também
estão presentes no contoHello, Dolly!”. O autor da missiva traz à tona reflexões que
problematizam a questão da identidade, colocada sobre o pano de fundo da reprodução
indefinida do semelhante. Ora, se o dilema crucial do melanlico gira em torno da
dificuldade de forjar a ilusão de uma identidade para si, se seu sofrimento deriva da
obsessão por juntar as peças que poderão auxiliá-lo nessa tarefa inglória de traduzir o eu
527
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 154.
528
LAMBOTTE. Estica da melancolia, p. 41.
529
LAMBOTTE. Estica da melancolia, p. 85.
530
LAMBOTTE. Estica da melancolia, p. 85.
531
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’angola, p. 246, grifos do autor.
183
idealizado, então o confronto com réplicas idênticas a si, a proliferação vertiginosa de si
mesmo, só pode lhe provocar um ingente descontentamento, uma avassaladora sensação de
fracasso. Todo seu esforço cai por terra ao defrontar-se com simulacros de não-eu no
caminho que supunha levar ao encontro com o eu. É a consciência desse fracasso que o
personagem expressa quando, assumindo a ambivalência constitutiva da afecção
melancólica, na dupla determinação que conjuga euforia e disforia, encerra sua carta:
Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem, depois desse falimento?
532
o é a
minha própria identidade que está sendo manuseada por profissionais
incompetentes? Será que outro que não eu conseguirá me representaro bem
quanto eu me represento nas minhas crises de angústia, na montanha-russa da
minha depressão e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta sua, e não
me chame de retrógrado, por favor. Sou benjaminiano e pós-moderno, graças a
Deus.
533
Não deixa de ser curioso o fato de que, apesar de atestar seu “falimento”, na
aventura que conduz às tortuosas (e desviantes) trilhas da des-identificação, o narrador
termina por introjetar o outro (Benjamin) sobre quem supostamente lança sua revolta –
justamente o outro acusado de responsável pela sua derrocada. A impotência experimentada
diante da impossibilidade de construir seu eu ideal é, todavia, superada pela devoração
(“Sou benjaminiano”) daquele que precisamente vaticinou essa impossibilidade, mediante a
constatação da morte da singularidade e da autenticidade. Walter Benjamin figura assim
como um duplo a um tempo amado e odiado, objeto de projeções identificatórias do
personagem: “Você se lembra, foi a partir de nossas conversas que você elaborou as teses
sobre as tendências evolutivas do Homem nas condições produtivas do capitalismo”
534
.
O filósofo alemão é aqui a imagem que do espelho devolve a Samuel sua real
condição melancólica, ratificando a patente homologada: “Sou benjaminiano” –
aparentando ser tão melancólico quanto o destinatário da missiva, que, certa vez, declarou,
em carta encaminhada a seu amigo Gershom Scholem, ser “filho de Saturno”, inscrevendo-
se na tradição melancólica pela evocação do astro que preside a afecção
535
. Dessa forma, o
personagem de Santiago e o autor de Origem do drama barroco alemão cruzam aqui seus
532
O personagem-missivista se apropria aqui de uma frase expressa pelo narrador de “A terceira margem do
rio”, de Guimarães Rosa, no final de seu relato (Cf. ROSA. A terceira margem do rio, p. 37).
533
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 156.
534
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 154.
535
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 104.
184
reflexos, multiplicando (reproduzindo) especularmente a imagem que emoldura um
incontornável vazio que a ambos enreda.
Nas linhas de suas memórias, Samuel brinca abertamente com o drama que circunda
as investidas malogradas, dirigidas à construção da identidade. Descrevendo-se como uma
folha em branco, recusando-se a fixar no papel a harmonia de um rosto único, Samuel se
compraz em comunicar: “Sou o mais original dos impostores”
536
. Convém lembrar, a
impostura, neste caso, não participa de um regime de oposições, situando-se do lado oposto
à sinceridade. O termo se inscreve com a devida rasura, sugerindo a movência própria das
elaborações identitárias provisórias. É o autor mesmo – Santiago – quem se manifesta em
defesa de seu personagem: No limite, meu personagem não é um impostor. Qualquer
pessoa que tenha experiência de psicanálise sabe que você está constantemente fabulando
sua própria identidade, refazendo a sua identidade, até o momento em que tenha certa
tranqüilidade em relação àquela construção que você fez”
537
. Guardadas as devidas
diferenças, opinião similar é compartilhada também por Montaigne, que, em seus Ensaios,
discorre acerca da dificuldade enfrentada na tarefa de pintar-se:
o posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o
efeito de uma embriaguez natural. Pinto-o como aparece em dado instante,
apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como
diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no
momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante
mais tarde o somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada,
como também minhas próprias idéias possivelmentenão seriam as mesmas.
[...] Se minha alma pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente,
como um homem seguro de si.
538
Pintor da passagem, do que está em permanente trânsito, Montaigne nos acena de
longe com uma importante via de compreensão da contemporaneidade, desconhecendo,
contudo, o alcance adquirido pelos desdobramentos das idéias que nos soam familiares. É
provável que não suspeitasse a que longínquas paragens a noção de transitoriedade
aportaria. Nem calculasse as resultantes de sua extensão. Em tempo e lugar bem distantes
dos seus, numa cidade brasileira, no século XXI, alguém sentenciaria, atualizando a
questão: “Trânsito é uma noção derivada da experiência contemporânea do fim das
536
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 218.
537
html://p.php.uol.com.br/tropico/html/textostextos//2375,2.shl
538
MONTAIGNE. Do arrependimento, p. 153-154.
185
fronteiras estáveis. Se tudo é provisório e nenhum lugar corresponde à origem, só resta o
deslocamento e o tnsito”
539
.
Transitar é esquadrinhar o vazio. Uma viagem sem repouso. Sem concessões. Saber
lidar com esse vazio é uma maneira de não ser tragado por ele. Reconhecê-lo como
condição fundamental é uma questão de sobrevivência. “Só eu sei o que é ter personalidade
zero”, afirma Samuel. A “personalidade zero” marca a possibilidade do trânsito, a
devassidão da folha em branco, por onde navegam “palavras invisíveis, que nunca eram ou
seriam pronunciadas – e foram lidas, entendidas e assimiladas pelo espectador, meu
espelho
540
. O trânsito é a garantia de emancipação da cópia, a ascensão do simulacro, a
implosão da origem, por meio da reprodução ao infinito: “É através de um ‘mimetismo
vertiginoso’ que a ‘cópia’ se emancipa – e a unicidade, a marca ontológica do ser original,
dissolve-se
541
.
Nesse sentido, o procedimento de auto-correção, as constantes erratas introduzidas
por Samuel nas suas memórias, sinalizando um movimento incessante de superposição das
inscrições, dissipa qualquer tentativa de se fixar, na superfície palimpstica de seu texto,
uma verdade sobre o passado restitdo.
O ato de corrigir corresponde à expressão de uma vontade de verdade. Essa vontade
de verdade, elevada à potência máxima, mimetizada vertiginosamente, por meio da
retificação, torna-se a impossibilidade mesma de se apreender algo da ordem da verdade,
subsumindo-se no torvelinho de suas infatigáveis encenações.
Se de um lado a errata, em sentido amplo, atesta um esforço de aproximação da
verdade, que parece sempre escapar ao sujeito mesmo que ambiciona originá-la, de outro
lado o gesto retificador, rasurando continuamente o discurso, abalando a irrefutabilidade do
narrado, contradiz o fechamento da obra, contestando a autoridade de seus estreitos
donios, a cartografia de suas fronteiras. A aporia da errata consiste justamente nessa
ambivalência: a correção põe em causa o que foi afirmado, confere visibilidade à
imperfeição, chama a atenção para o seu aspecto inacabado, ao mesmo tempo em que,
suplementando o “erro”, acena com a promessa de uma perfeição e de um acabamento
sempre por vir.
539
SELIGMANN-SILVA. O local da diferença, p. 57.
540
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 140.
541
SELIGMANN-SILVA. O local da diferença, p. 58.
186
Em sentido restrito, uma errata é uma “excrescência do livro”, para falarmos com
Abel Barros Baptista
542
, o suplemento perverso que produz um efeito retrospectivo sobre a
leitura terminada, ao tempo em que também figura como advertência para os que se
dispõem a efetuá-la. É portanto “a declaração formal de que o livro que acabou de se ler ou
que se vai ler se tornou provisório no próprio momento da sua elaboração e ainda antes de
chegar às mãos do leitor: um livro provisório que aguarda a edição definitiva em que não
está afastada a possibilidade de nova errata a vir tornar, por sua vez, provisória”
543
.
Vista dessa forma, a errata, tal como tradicionalmente é conhecida, é um posterior
agregado ao corpo do livro, um acréscimo que indica que o autor, imaginando ter alcançado
uma perfeição satisfatória com a sua obra, ao liberá-la para o leitor, descobre-se fraudado
por ela. A errata vem assim frustrar, por um lapso, a utopia de todo autor: criar a obra
perfeita (nem que seja no quesito tipográfico! Aquele que negar esta utopia estará
mentindo). Talvez seja esse o motivo pelo qual, na pós-modernidade, até mesmo as erratas
estejam ultrapassadas. Como sublinha Baptista:
Hoje, os livros ostentam mais facilmente os seus erros e vícios do que
suportariam a lista deles no final e em folha avulsa. O motivo não é apenas o
desprestígio lançado sobre o rigor do trabalho tipográfico, conseqüência perversa
de um rigor que procurava o efeito contrário. Digamos antes que tal desprestígio
se alia à inevitável suspeita de incompletude que lança sobre si mesma.
544
Emprestando seus significados ao mecanismo de auto-correção que atravessa de
ponta a ponta o texto das memórias, poderíamos dizer que Santiago opera um importante
desvio no estatuto da errata
545
, ao deslocá-la para o interior de sua obra, costurando-a ao
discurso narrativo, obrigando-a a integrar a própria trama
546
. Lançando o de seus efeitos
542
BAPTISTA. Autobibliografias, p. 105.
543
BAPTISTA. Autobibliografias, p. 105.
544
BAPTISTA. Autobibliografias, p. 104.
545
Cumpre ressaltar que o termo “errata” – “um plural neutro que designa tanto o conjunto dos erros como o
lugar da respectiva correção” (BAPTISTA. Autobibliografias, p. 104) – possui a mesma etimologia de
“errar”, que tanto significa “cometer erro, enganar-se”, como também “vagar sem destino, desviar-se do
caminho”, conforme o verbete do Aurélio (FERREIRA. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua
portuguesa, p. 786).
546
Na literatura brasileira, esse artifício foi previamente utilizado por Machado de Assis em Memórias
póstumas de Brás Cubas. A rentabilidade extraída desse recursotransgressivo”, no caso específico da ficção
machadiana, foi criteriosamente examinada por Abel Barros Baptista, num estudo de fôlego dedicado à
“solicitação do livro” na obra do autor brasileiro. Cf. BAPTISTA. Autobibliografias.
187
perversos, Santiago subverte o papel “antagônico” que a errata comumente exerce,
destinando-lhe a fuão de “protagonista” do discurso. Vejamos como isso ocorre.
Desde as primeiras páginas, Samuel – qual Penélope de calças – ensaia esse
movimento de coser e descoser, que compromete inexoravelmente o curso unitário do
narrado. Assim, as rias versões sobre seu nascimento redundam em histórias
mirabolantes, envolvendo seqüestro e venda de be, óbito de mãe no parto, nascimento de
gêmeos, bigamia etc. Assim, também, as não menos numerosas versões sobre o fim do caso
amoroso entre o Doutor Eucanaã (“pai” de Samuel) e Teresa (a “Miss Suéter”, suposta
“verdadeira mãe” do memorialista) resultam em apimentados desvarios narrativos, que
impedem a centralização de uma direção única a ser seguida (Qual pai? Qual mãe? Qual o
falso? Qual a verdadeira?).
Ao lado desses procedimentos retificadores dispersivos, a auto-correção ainda se faz
presente no dizer e desdizer que invalidam qualquer aspiração à “transparência” do
discurso. É o caso, por exemplo, das incontáveis passagens rasuradas, dentre as quais: “O
santo remédio é a tração. Corrijo-me. O santo paliativo
547
; “Zé Macaco foi o meu primeiro
morto. Minto. Meu terceiro morto”
548
; “Ela não perguntou se tinha visto dona Ana. Corrijo-
me. Disse Donana, para mostrar intimidade”
549
.
Além desses exemplos, colhidos ao acaso, é preciso mencionar ainda a atuação da
auto-correção em dois outros momentos cuja relevância nos impede de negligenciá-los.
Trata-se, o primeiro, da abertura de um dos capítulos, iniciado pela frase exclamativa:
“Falha nossa!”
550
, em que o narrador admite ter cometido um descuido, atribuído à
empolgação com que realizou, no capítulo anterior, o retrato de seu “pai”, o Dr. Eucanaã. A
negligência não só é anunciada em altos brados, como também é “corrigida”, mediante a
exposição didática e eloqüente da retificação. O segundo momento diz respeito às últimas
palavras do narrador, que encerram suas memórias dando um verdadeiro “golpe de mestre”
no leitor. Ao desmentir sua história de família – o casamento, os filhos, enfim, a
continuação da “linhagem”, sua perpetuação genealógica –, Samuel retrata-se. Ou seja,
traça seu retrato, espelha-se, ao mesmo tempo em que revela, deixa transparecer o desdito,
547
SANTIAGO. O falso mentiroso: merias, p. 11, grifo nosso.
548
SANTIAGO. O falso mentiroso: merias, p. 38, grifo nosso.
549
SANTIAGO. O falso mentiroso: merias, p. 52, grifos nossos.
550
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 89.
188
confessando a “mentira”, ativando, dessa forma, a riqueza semântica compreendida no
verbo “retratar(-se)”. Jogo reflexivo que realça a diferença: “A tela. Meu espelho
551
. Não
por acaso, a herança deixada por Samuel são suas... cópias, fruto de falsificações de obras
originais. O triunfo da cópia sela a coerência que alinhava o caldeirão multicultural de
Santiago. Sela sobretudo uma opção estética – e ética! – que tem como alvo o
questionamento da lei, da regra, enfim, da Verdade, pela reversão/perversão de seus valores
mais caros. Dito pelo próprio autor:
O que está em jogo é a questão de norma. A gravidade ética dessa atitude do meu
narrador é a afirmação de que “transgredir é necessário”. E uma das maiores
transgreses que você pode fazer ao platonismo é afirmar que a cópia é legítima.
A cópia, por definição platônica, é ilegítima. Portanto, quando você coloca a
pia dentro de uma clave do sublime, que é uma das propostas do livro, é natural
que você possa qualificá-la como boa e como bela. Porque eu estou formando
uma outra cadeia. Uma cadeia que transgride o platonismo, que me permite
portanto estabelecer valores que estão mais próximos da nossa condiçãos-
moderna do que do platonismo. A própria noção que temos hoje de invenção, ela,
a partir do conceito de escritura de Derrida, já não possibilita crer que exista um
criador absoluto, um demiurgo. Ele será sempre objeto de escárnio, jamais se
tomado a sério. Embora ele possa aparecer na obra de arte, será sempre nessa
chave irônica.
552
As palavras de Santiago corroboram a perspectiva transgressora que, no limite,
desconstrói o gênero memorialístico, como vimos anteriormente. Nesse sentido, as
memórias de Samuel encontram-se extremamente distantes das do autor de A la recherche
du temps perdu, por exemplo. Sabemos que Proust buscou resgatar, com excepcional
empenho e furor
553
, a dimensão do vivido, que hiberna nas imperscrutáveis divisas da
memória involuntária, marcando, como enfatiza Benjamin, a “discrepância entre poesia e
vida”, assinalando a impossibilidade de, pela escrita, recuperar o encanto de uma felicidade
originária. De acordo com Benjamin
554
, “o esforço frenético de Proust”
555
consistiria em,
tal como se passa no universo onírico, em que “acontecimentos não são nunca idênticos,
mas semelhantes”
556
, extrair a “semelhança mais profunda”
557
entre seres e coisas, que não
551
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 160.
552
html://p.php.uol.com.br/tropico/html/textostextos//2375,2.shl
553
Susana Lages reconhece em Proust uma manifestação melancólica que se aproxima “do furor ancestral da
melancolia heróica e inspirada da Antigüidade e da Renascença” (LAGES. Walter Benjamin: tradão e
melancolia, p. 140).
554
BENJAMIN. A imagem de Proust, p. 36-49.
555
BENJAMIN. A imagem de Proust, p. 39.
556
BENJAMIN. A imagem de Proust, p. 39.
189
pode nunca ser atingida em estado de vigília. A melancolia de Proust derivaria desse desejo
incessante de enlaçar as semelhanças, cristalizando-as na “obra de toda uma vida”.
Conforme certifica Susana Lages, baseando-se na leitura de Benjamin: “A melancolia
proustiana [...] é uma melancolia onírica que desejaria perpetuar o vivido na recordação e
eliminar as semelhanças deformadas que abandonaram os sonhos para se instalar
artificialmente no mundo surreal dos pequenos gestos e imagens relembrados”
558
. O matiz
melancólico, neste caso, denuncia tonalidades nostálgicas, porquanto reviver uma
felicidade passada implica o desejo de “recuperar o objeto perdido e gozar dele novamente,
ou, pelo menos, encurtar a distância que nos separa dele
559
.
Em direção oposta ao percurso trilhado por Proust, O falso mentiroso: merias
denota uma afinidade que se encaminha mais na direção indicada por Beckett. Santiago cria
um personagem que exibe despudoradamente as estratégias empregadas na articulação de
suas memórias, impedindo assim qualquer adesão ao contexto ficcional. Essa forma de
exposição, que coloca em primeiro plano os andaimes da construção, mobiliza o leitor no
sentido de induzi-lo a adotar uma postura crítica e distanciada frente ao narrado.
A auto-reflexividade crítica de Samuel aciona verdades de diferentes extratos para
serem sacudidas, uma a uma, por sua verve irônica. Passando a palavra novamente a
Santiago: “Em última instância é uma atitude literária antiproustiana, não há uma memória
involuntária, é uma memória, por assim dizer, beckettiana, na medida em que ela se
arruma, mas se dá conta de que aquilo que arrumou é uma armação, no duplo sentido da
palavra, de ser construída e, no sentido vulgar, de ser logro, de enganar, a si próprio e ao
outro”
560
.
As memórias de Samuel, em seu movimento de re-construção, de contínua auto-
correção, não reivindicam um núcleo de subjetividade passível de delineamento. Tampouco
lançam em relação ao passado um olhar sequioso por reaver o prazer já saboreado, do qual
retira apenas a nostalgia que advém da impossibilidade de satisfazer seu desejo.
557
BENJAMIN. A imagem de Proust, p. 39.
558
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 139.
559
MOSER. Spätzeit, p. 50.
560
html://p.php.uol.com.br/tropico/html/textostextos//2375,2.shl
190
O texto autobiográfico de Samuel põe em relevo um outro tipo de manifestação
melancólica, de natureza afirmativa, voltada, como vimos, para a fundação de uma origem,
por definição, múltipla e mutável. Relembrando o que postula Benjamin:
O termo origem o designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que
emerge do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material
produzido em sua gênese. O origirioo se encontra nunca no mundo dos fatos
brutos e manifestos, e seu ritmo só se revela a uma vio dupla, que o reconhece,
por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo,
como incompleto e inacabado.
561
Como foi ressaltado, o melancólico, sob a perspectiva psicanalítica, entretece
com o objeto perdido e desconhecido um liame indissolúvel, que acarreta um fatal
esvaziamento de seu ego, alvo permanente das constantes investidas autodepreciativas do
sujeito, a falha no processo de identificação do objeto tendo ocorrida na chamada “fase do
espelho”, comentada anteriormente de forma breve. Como atitude compensatória para essa
falha no desenrolar da formação identitária – o imenso vazio impreenchível –, o
melancólico sucumbe ao impulso canibalístico, de resto, “única possibilidade de ele
constituir uma imagem de si como sujeito, precário, mas com alguma integridade, sua única
possibilidade de satisfação
562
.
A percepção desse enfoque, dado à afecção melancólica, contribui para o
entendimento dos diversos procedimentos apropriativos – pastiche, paródia, plágio,
paráfrase, citação etc. –, abrigados sob a tutela da reescritura e praticados hoje com ênfase e
freqüência inigualáveis. É essa produtividade, tal como se afigura no contexto recente, que
confere um estatuto afirmativo à melancolia.
Não se trata de saudar tais práticas como sendo sinônimo de pós-modernidade.
Cotejada a distintas épocas que prodigalizaram seu exercício, a reescritura, na
contemporaneidade, considerando suas inúmeras modalidades, se diferencia por não mais
pretender nem reverenciar o passado, como valor supremo a ser cultuado devotamente, nem
superá-lo, num embate de forças visando a uma resolução dialética – a resultante que
engendra o “novo”, determinando uma paradoxal disputa em que, tão logo a superação é
alcançada, ela se torna, ela mesma, superada.
561
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, p. 67-68.
562
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 62.
191
A compreensão dos mecanismos de reescritura, na atualidade, apóia-se na sua
inerente dualidade, apontando, de um lado, o rebaixamento da figura autoral, secundarizado
em favor da valorização da figura do leitor, ou seja, a articulação do texto como registro das
leituras empreendidas pelo autor; e, de outro lado, a busca da afirmação de uma identidade,
forjada a partir da assimilação do outro, entendendo a assimilação, recordando o que diz
Lages, “não tanto como processo de simbiose ou fusão, em que os planos se confundem ou
se aniquilam numa unidade indiferenciada, quanto como procedimento de interação não
fusional entre diferentes planos de reflexão e interpretação”
563
.
É sob esse prisma que podemos ler as memórias de Samuel. Vimos que a orfandade
do narrador corresponde à suspensão da genealogia inaugurada por seus antepassados, a
brusca interrupção de uma linhagem, assumida por ele na forma de uma veemente negação.
Retomando suas palavras iniciais: “Não tive mãe. Não me lembro da cara dela. Não
conheci meu pai. Também não me lembro da cara dele”
564
. Palavras ipsis litteris reiteradas
muitas páginas depois. Essa condição declarada peremptoriamente, ao mesmo tempo em
que abre uma via desimpedida, liberando o personagem para deleitar-se com o jogo das
incorporações arbitrárias, estabelecendo conexões a seu bel prazer, sinaliza uma ausência,
tecendo seu contorno com a sombra daquilo mesmo que falta – a presença do pai.
As menções constantes à sua bastardia acusam essa ausência, sedimentando o vazio
com o qual tem de se haver o melancólico: “Não há família conhecida a que me referir. Não
há sangue de parente que respalde ou confirme. Solitário com a minha própria constituição
física e psicológica. Solitário com o meu sangue de bastardo, enjeitado e pobre”
565
.
A falta da figura paterna emerge ainda de maneira sintomática, afetando fisicamente
o personagem, que é acometido por inmodos e dolorosos torcicolos. A falta sobressalta o
corpo, como um golpe que, abrupto, sulca a pele da alma, deixando um rastro de cicatriz
irremovível, uma marca indelével: “A voz do meu pai é fonte e razão dos meus torcicolos.
Ela me acompanha. Como uma sombra na calada da noite. Como um punhal – pelas costas.
Nunca fica aqui ao lado. Nem um passo à frente, para me afrontar. Olhos nos olhos. Voz
imaterial e atemporal. Sem corpo, sem pele e invertebrada. Voz espiritual”
566
.
563
LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, p. 108.
564
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 9.
565
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 163-164.
566
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 10.
192
Interessante notar que o personagem demonstra conhecer claramente o terririo
deserto e sombrio onde o eco paterno se faz ouvir: “O torcicolo podia ter sido efeito não do
excesso de peso dos conselhos paternos. Do oposto. Efeito duma lacuna. Da falta de
imagem paterna na minha lembrança dos primeiros dias de vida. A falta de imagem paterna
pode ser também a causa da lacuna. Causa ou efeito?”
567
.
A lacuna, plenamente identificada pelo narrador, deflagra, num primeiro momento
uma atitude de auto-reprovação, levando o narrador a se defrontar com o “peso” de seu
sangue de “bastardo, enjeitado e pobre”. Entretanto, considerando a dimensão picaresca do
personagem, aliada aos seus constantes desmentidos (as suas “erratas”), tornando seu
discurso tentacular, e dispersando, portanto, qualquer possibilidade de se depreender uma
verdade sobre sua vida, as implicações da orfandade, da bastardia, da ausência paterna,
decantadas pela verve inica de Samuel, filtram o que de trágico haveria caso não fosse
mica a tonalidade dessas memórias, escritas com a pena da galhofa e a tinta da
melancolia irônica. É, aliás, no limiar do trágico e domico que o personagem identifica o
reflexo de sua imagem – um intervalo em que a verdade humana lampeja, pois, conforme
sublinha Gustavo Bernardo, “como a verdade humana é sempre trágica e ridícula ao mesmo
tempo, apenas aquele que consegue enxergar essa combinação paradoxal reconhece o seu
espelho
568
.
A ironia assume, no contexto das memórias, um papel preponderante, que modela (e
modula) a atitude crítica e auto-crítica do narrador, sendo responsável, por exemplo, por
enfraquecer a concepção tradicional do gênero memorialístico, transgredindo seus limites
por meio do mecanismo da auto-reflexividade. Porquanto esse mecanismo não gera a
duplicação do mesmo, incidindo, ao contrário, sobre o elemento diferencial que daí
redunda, a noção de ironia que subjaz, neste caso, sedimenta o substrato aporético que
sustenta a própria idéia de reflexão, que, dentre outros significados, exprime a “volta da
consciência, do espírito sobre si mesmo, para examinar o seu próprio conteúdo por meio do
entendimento, da razão; cisma, meditação, contemplação; ponderação, observação, reparo
[...]”
569
, idéia que, notadamente, congrega qualidades atribuídas ao influxo melancólico.
567
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 13.
568
BERNARDO. Verdades quixotescas, p. 16.
569
FERREIRA. Novo Aulio século XXI: o dicionário dangua portuguesa, p. 1727.
193
A auto-reflexão como atitude crítica seria, portanto, um questionamento incessante
acerca de si mesmo, que reverbera a índole paradoxal da ironia. De acordo com Gustavo
Bernardo:
Tão-somente a ironia permite este dizer e não-dizer ao mesmo tempo, como uma
boa pergunta – eironeia, em grego, quer dizer “interrogação”. Na ironia, a mente
tem de combinar duas alternativas que parecem excludentes. Tão somente a
ironia fala menos para significar do que para surpreender e ainda sugerir que o
sentido está em outro lugar [...].
570
A especulação que se origina desse tipo de postura reflete o aspecto inacabado da
obra, evidenciando a um tempo a inviabilidade das formas fechadas e o caráter inconcluso
que as fundamenta – dupla determinação que confere contornos ao próprio narrador e que,
de resto, confere contornos ao sujeito melancólico, uma vez que a melancolia arrosta a
consciência de uma falta constituinte, obrigando o melancólico a experimentar um
insuperável estado de luto pelo objeto irrecuperável.
Na narrativa, a incompletude, o reconhecimento da insuficiência do gênero
memorialístico, não se subordina, em seu desdobramento radical, à aspiração a um ideal
absoluto de arte, numa alusão, por exemplo, às aspirações do Romantismo. Descartado esse
télos platônico, a opção estética de Santiago indica com efeito a opção pelo fragmentário,
pelo inacabado. Contudo, essa opção alia-se ao desmoronamento de toda e qualquer
perspectiva idealizante, e em particular, como vimos, à contestação tanto do caráter
monumentalizante da arte, como do gênio artístico que a produziu. Obra e autor perdem sua
aura. E experimentam as delícias da vida mundana. Com eles, todo o império cai em ruínas,
levando à bancarrota a imortalidade do original, sua autenticidade, e a consagração do
criador como ser privilegiado e único.
O solo anti-transcendentalizante, no qual germina a obra desinvestida de sua
idealidade, possibilita o florescimento de um genno diálogo entre extratos arsticos de
diferentes dicções – diálogo que transcorre com base numa relação de equivalência entre as
vozes em questão, e não numa relação intimidadora, intermediada pela hierarquia
valorativa.
Na obra em estudo, de Santiago, esse diálogo adquire uma inflexão manifestamente
paródica, compondo um mosaico heteróclito de citações inventariadas e reconfiguradas. O
194
recurso à citação, pondo em xeque a questão da originalidade, destitui a primazia do autor e
confere visibilidade à condição de leitor, condição que, como visto, fornece as bases para
sua criação. Samuel adota o recurso à citação como programa estético de suas memórias. E
admite: “Não gosto de criar nada a partir do zero
571
.
Ao abrir mão da exclusividade de um subjetivismo autônomo, privando-se da
consagração da genialidade inventiva, o “autor” – tanto Samuel quanto o próprio Santiago,
posto que autor, narrador e personagem se acoplam – reduplica as possibilidades de
desdobramento identitário, impedindo a fixação de um modelo estanque que barraria o
fluxo das incorporações.
O princípio da citação – repondo em movimento fragmentos extraídos de um
contexto preexistente, de modo a reintegrá-los num outro suporte de significação, cuja
lógica é regulada pela idéia de provisoriedade e incompletude – coaduna-se ao princípio
que rege a afeão melancólica. A ambivancia da melancolia articula, como vimos, a
reencenação de um inexorável vazio e a superação dessa realidade precária, operando com
vários elementos substitutivos, sem fazer, porém, nenhuma concessão ao imperativo de
uma ordem precedente cuja perfeição almejaria ser resgatada. O recurso à citação emerge
aqui como tradução possível dessa perspectiva melancólica e anti-metafísica: “A citação
atua no trabalho de arrancar o texto das suas falsas totalidades [...] e trazê-los para o
presente, atualizá-los, reestruturando-os, sobre a base de um princípio construtivo
572
.
A não exigência de recomposição de uma totalidade perdida a direcionar a recolha
dos fragmentos, favorecendo a proliferação interminável de formas remodeláveis, conflui
para o impulso melancólico de reconstruir indefinidamente uma imagem para si a partir da
introjeção de outros eus com os quais o sujeito se defronta. Desse modo, o auto-retrato que
Samuel busca pintar é um mosaico de eus agenciados ao longo de sua narrativa, delineando
um quadro de identificações que transitam sobre um fundo de ausência indemarcável.
Na rede de linhas que entrelaçam os eus apreendidos, Samuel se desdobra em Ana,
sua “falsa mãe”: “Sou – nos resume. Somos os dois quase que um. Indistintamente”
573
. O
efeito especular é potencializado ao equacionarmos os possíveis significados da palavra
570
BERNARDO. Verdades quixotescas, p. 46.
571
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 138.
572
SELIGMANN-SILVA. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica literia, p. 214-
215.
573
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 150.
195
Ana – prefixo grego que remete à decomposição, ao movimento contrário, à repetição, à
separação e à inversão. Significados ativados pelo mecanismo reflexivo e evocados pelo
movimento de des-identificação do personagem. Donana, como é tratada pelos íntimos,
representa a separação, a ruptura dos laços genéticos que uniam Samuel aos seus
“verdadeiros progenitores”.
O gosto pelo espelho, pela reduplicação de imagens, que desemboca na defesa da
precedência da cópia, é também alimentado por Donana: “Foi ela quem despertou essa
devoção ao espelho, que me embala, nutre e expressa”
574
.
Curiosamente, Donana é descrita como ágrafa, impossibilitada de reproduzir ou
copiar o que quer fosse”
575
. Descontava sua frustração redesenhando sua imagem sobre a
supercie do espelho: “A cópia dela é que tinha o contorno das linhas faciais acentuado, os
pequenos defeitos da pele retocados. O reflexo do rosto pintado, a pele espelhada
colorida”
576
. Como o melancólico, Donana, duplo do narrador, também busca desenhar um
perfil com o qual se identifique, transferindo para a sua “cópia” – sua imagem refletida no
espelho – o realce das linhas projetadas. A detecção de uma incompletude impele o desejo
de aperfeiçoamento dos traços que conferem nitidez à cópia – sua autêntica derme.
Assim como Donana, o Dr. Eucanaã – seu “falso pai”, cujo nome, não podemos
ignorar, contém o eu na sua composição – acrescenta igualmente mais um outro a essa
cadeia de eus devorados. A convergência ocorre paulatinamente: “O filho crescia tão
impostor quanto o pai, o falso”
577
, consignando um ambivalente atavismo que os enreda –
na semelhança e na diferença: “Éramos falsos. Ele, na paternidade. Eu, na
descendência”
578
. De caráter ambíguo, Eucanaã exibia as virtudes do filósofo Malthus,
“modelo de dedicação à cncia e à religião”, para, na verdade, entrar em comunhão com
Falópio, inventor da camisinha, comunhão que se converte em gordos benefícios
econômicos para os bolsos do falso pai.
A referência ao preservativo atesta grandes afinidades com o propósito inerente às
memórias de Samuel. Ao interceptar as chances de reprodução biológica por meios
naturais, a camisinha, ao mesmo tempo em que afasta o risco de uma concepção indesejada,
574
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 148.
575
SANTIAGO. O falso mentiroso: merias, p. 148, grifos nossos.
576
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 149.
577
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 134.
578
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 110.
196
abre caminho para o livre exercício do prazer cujo fim último se esgota nele mesmo. O
prazer pelo prazer. Nada mais conveniente para um narrador que quer gozar a liberdade de
estabelecer conexões, sem o incômodo ameaçador das filiações. Talvez por esse motivo,
numa demonstração de total independência, Samuel declare ser “propenso à
masturbação”
579
, dando plena vazão à auto-satisfação solitária.
O dispêndio de energia, justificado unicamente pelo desejo de obter prazer, encontra
ainda ressonância no transbordamento discursivo de Samuel, atestado pelas tergiversações,
digressões e divagações, as mais diversas, operando desvios na narrativa, retardando seu
ritmo, que deixa então de ser governado pela seqüencialidade dos fatos perfilados,
claudicando segundo as veleidades do narrador.
Essa descarga energética, desvinculada de um preceito utilitário, possibilita pensar o
funcionamento da racionalidade humana posta a serviço de determinações práticas. A
justificativa em dividendos da aplicação de um esforço é o móvel do capitalismo. Nesse
sentido, o desperdício praticado pelo personagem, numa escala alegórica, coloca em
questão “o modo como a acumulação capitalista enforma a produção artístico-cultural do
Ocidente, acorrentando-a à norma ‘usurária’ de controle e donio da energia e da força
libidinal dos diferentes indivíduos que comem a sociedade, o que reforça a separação
entre vida e arte, entre o universo mercantil do trabalho e o universo do prazer”
580
.
A ejaculação verbal de Samuel responde também pela invenção de Mário, o mentor,
espécie de conselheiro, cujo mérito incide no fato de estabelecer uma relação não filial com
o narrador: “Mentor e discípulo nada tem a ver com pai e filho.o há envolvimento. Tipo
carne da minha carne. Sangue do meu sangue”
581
. Por um processo de inversão, é Mário
quem exerce um ingente donio sobre seu criador, fazendo sobressair um Samuel
inteiramente receptivo às determinações da criatura: “Que eu me deixasse moldar por ele,
que nem argila nas mãos de oleiro. Atualizo a comparação. Meu disquete de vida seria
formatado pelo software dele”
582
.
Assim como o mentor, a refencia ao mestre – Zé Macaco – adiciona mais um
duplo ao lote de apropriações destinadas a povoar a desértica folha em branco de Samuel. A
579
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 15.
580
MIRANDA. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, p. 80.
581
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 161.
582
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 157.
197
bastardia, sendo uma condição comum a ambos, assinala de imediato um dos pontos de
interseção: “Éramos enjeitados e irmãos”
583
. É Zé Macaco quem ministra as primeiras
lições anti-metafísicas ao narrador, embasando sua defesa da cópia: “‘Nenhum homem é
solitário. Há sempre um iromeo à espreita, me disse. ‘Nenhum homem é perfeito.
Somos todos cópia do original que se desfez’, acrescentou’”
584
. Ensinamento que é já, ele
mesmo, a prática do que o conteúdo veicula, ao construir-se a partir da repetição
diferenciada do célebre verso de Donne: “Nenhum homem é uma ilha isolada”.
Semelhante ao mentor e aos pais postiços, o mestre também repele a possibilidade
de vínculos genéticos, assumindo diversas metamorfoses: “Mestre não precisa ser humano.
Mestre pode ser conversa inesperada com desconhecido. Páginas de romance. Livro de
poemas, de filosofia ou de história. Mensagem pela Internet. [...]”
585
.
As sucessivas incorporações – os duplos agregados –, confiscando uma série de eus,
confluem para a articulação de uma espécie de “teoria estética”, fundamentada na
transgressão da perspectiva metafísica, no que concerne à condenação da cópia. Investida
de autenticidade e legitimidade, a pia é celebrada por Samuel como mecanismo
imprescindível para a criação artística.
A acoplagem desses outros eus, no entanto, não representa uma simples inversão do
esquema platônico, o que suporia recobrir a cópia com a mesma autoridade inconteste que
por muito longo tempo serviu de manto para abrigar o original. Tal inversão corresponderia
a trocar seis por meia dúzia, não implicando nenhuma alteração efetiva da escala valorativa
e maniqueísta que permeia o julgamento da obra de arte, avaliada sob o prisma platônico.
Samuel/Santiago contornam o problema ao abjurar não só o original, como também
a cópia mesma. Dupla transgressão: ao destronar o original, a cópia não herda seu cetro,
redefinindo o quadro hierárquico. Tanto quanto o original, a cópia é igualmente descartada
e, portanto, descarvel. Exemplo disso encontramos, em sentido amplo, no movimento de
coser e descoser que, como vimos anteriormente, constitui o tecido das memórias. Esse
dúplice movimento impede, assim, qualquer ameaça de fixidez que possa contrariar o gesto
transgressivo.
583
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 37.
584
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 35.
585
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 163.
198
Os vários eus assimilados por Samuel, convocados a locupletar um espaço vazio,
são eles mesmos como que “esvaziados” ao longo da narrativa, sucessivamente descartados
pelo narrador. É o que acontece com Donana, a quem Samuel rejeita, sob o pretexto de ser
contraditória: “Mamãe é contradição. Não quero ser contradirio como ela”
586
. É o que
acontece também com o Dr. Eucanaã, que, sob o crivo do narrador, é visto como “um
verdadeiro escroque do dinheiro público”
587
. E, embora Zé Macaco e Mário,
respectivamente mestre e mentor, não recebam o mesmo tratamento crítico dirigido aos
falsos pais, o primeiro morre logo nas páginas iniciais, e o segundo, fruto do marco zero da
imaginação de Samuel, é enfim tido como “uma desculpa esfarrapada que só serviu para
encher mais um capítulo do livro
588
.
A gradativa rarefação dos duplos inclui ainda o desmentido do casamento com
Esmeralda e a invenção dos aventados filhos. Ao confessar ter gestado estes últimos com a
ajuda da bolinha metálica da caneta bic, Samuel nos lembra que, afinal, ele e todos os
demais personagens de suas memórias são seres feitos de tinta azul lavável – multiplicação
exponencial da ficção.
A obra de Santiago confirma assim a suposição das memórias como um texto
consagrado à criação ficcional. Como Orfeu, seu irmão, a mentira que é Samuel reduplica
outras tantas mentiras geradas pelo método da “inseminação artificial”. Prole impulsionada
pela melancolia afirmativa.
O menos converte-se em mais.
A negativa, em afirmativa.
O resto, pa-ra-rá, pa-ra-rá, pa-ra-rá...
586
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 148.
587
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 109.
588
SANTIAGO. O falso mentiroso: memórias, p. 163.
199
EPÍLOGO: ACHO MELHOR NÃO CONCLUIR
A arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele
nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a
página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que
sabíamos é realmente nada.
(Italo Calvino)
A viagem é o tempo-espaço comprimido de uma massa de pão
que, fermentada, vai se inchando, inchando.
(Silviano Santiago)
Numa passagem do filme grego Politiki Kouzina, cujo título foi traduzido em
português por O tempero da vida, um personagem explica para seu sobrinho: “Na vida, há
dois tipos de viajante. Aqueles que olham no mapa e aqueles que olham no espelho.
Aqueles que olham no mapa estão partindo. Aqueles que olham no espelho estão voltando
para casa”
589
. A viagem, neste caso, desdobra-se em duas imagens distintas, em que os
vetores parecem apontar direções contrárias. A primeira corresponde à do indivíduo em
busca da aventura insondável que o futuro lhe reserva. Ele aposta no amanhã, que o seduz
com promessas de inéditas e emocionantes descobertas. A segunda corresponde à do
indivíduo ocupado em escavar as superfícies do outro que ele vê refletido no espelho,
procurando resgatar indícios do familiar, sedimentados pelo tempo. Por isso, ele quer voltar
para casa” – o lar-doce-lar que se alberga no passado.
Como todo deslocamento espacial implica também distância temporal, poderíamos
dizer que essas duas categorias de viajante, mencionadas no filme, antes de serem
antagônicas, encerram uma mútua dependência. Daí podermos inferir que os viajantes em
pauta não divergem propriamente entre si. Ambos partem em direção a algo que imprima
sentido às suas erncias. Talvez o desejo de explorar o desconhecido seja, no limite, o
desejo de explorar as divisas indemarcáveis que enformam o precário e impermanente
território do eu. O avançar em direção a novas paragens é um passo a mais rumo à casa, a
200
viagem constituindo, todavia, um retorno sempre adiado, em que o derradeiro repouso
encontra-se fora do alcance do viajante que regressa.
É inevitável recordar aqui o nóstos exemplar de Ulisses, o herói épico homérico:
Ulisses reencontrará, pois, sua Ítaca lá mesmo onde a havia deixado, mas o
Ulisses de outrora, aquele que deixou sua ilha, ele não encontrará mais. Ulisses é
agora um outro Ulisses, que reencontra outra Penélope. E Ítaca é também uma
outra ilha, no mesmo lugar, mas não na mesma data. A viagem no espaço é uma
viagem no tempo, e o ponto de chegada, o ponto fixo ansiado não existe,
deixando-nos à deriva.
590
A ausência de um ponto fixo a conduzir os passos do viajante respalda a incerteza
de toda destinação. Narrar as peripécias vivenciadas no itinerário percorrido é alargar o
lastro dessa ausência – “baixo fim” que se alcança, cuja imagem o mapa e o espelho nos
devolvem. Como quem se reconhece paisagem e reflexo. Afinal, como afirma Bernardo
Soares: “As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que
somos”
591
.
Se o ponto de chegada inexiste, o extravio é a condição inexorável do viajante.
Palmilhar o desconhecido, desafiar sua geografia, constitui a heróica empresa da humana
odisséia. Intrépida aventura que lança à deriva as determinações prévias e as variantes
antecipadas, refutando o cálculo limitado das resolutas probabilidades.
Nessa viagem, as fronteiras se tornam difusas. Real e irreal borram suas margens. O
paradigma dessa experiência encontra-se já representado pela figura do famoso personagem
homérico. Ulisses é um herói épico, embora enfrente as ameaças aterrorizantes de bruxas,
monstros, gigantes e sereias, criaturas oriundas de um universo “mais arcaico”. Nessa
mescla de tradições, o solerte guerreiro desbrava caminhos que hoje conhecemos bem,
conforme afiança Calvino: “Talvez para Ulisses-Homero a distinção mentira/verdade não
existisse, talvez ele narrasse a mesma experiência ora na linguagem do vivido ora na
linguagem do mito, como ainda hoje para nós cada viagem, pequena ou grande, sempre é
Odisséia”
592
.
589
O TEMPERO da vida. Direção: Tassos Boulmetis.
590
MATOS. O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant, p. 172.
591
PESSOA. Livro do desassossego, p. 398.
592
CALVINO. Por que ler os clássicos, p. 24.
201
Um outro célebre viajante – um certo cavaleiro da triste figura –, na contramão,
entretanto, dos grandes feitos épicos, realizou também, a seu modo, a dissolução das
fronteiras entre fato e ficção. Dom Quixote, ao buscar vivenciar na “realidade” as heróicas
façanhas lidas nos antigos romances de cavalaria, embaralha, nos episódios narrados, os
donios ambíguos que encerram autor e narrador, “multiplicando vozes narrativas e
possibilidades de autoria”
593
, como nos mostra Gustavo Bernardo, com suas indagações
hipotéticas:
Qual era o verdadeiro nome do fidalgo, antes de se autobatizar como Dom
Quixote: Alonso Quijada, Alonso Quesada, Alonso Quejana ou Alonso Quijano?
Qual é o verdadeiro nome da mulher de Sancho Pança: Joana Gutiérrez, Maria
Gutiérrez ou Teresa Pança? Qual é a verdadeira identidade do narrador: Cide
Hamete Benengeli, Miguel de Cervantes ou ainda um terceiro e anônimo?
594
Nem herói, nem anti-herói, apesar de seu DNA conter uma parcela de cada um, o
viajante pós-moderno é um andarilho melancólico. Enfrenta ciclopes como Ninguém. Luta
igualmente contra moinhos de vento. Mas sabe que ciclopes e moinhos de ventoo uma
maneira de indagar o real via ficção. E segue incontinente em suas infativeis expedições
pelas galerias intermináveis das bibliotecas. Estantes e mais estantes, corredores labirínticos
de livros, a turvarem-lhe os sentidos. No entanto ele erra, encorajado por uma melancolia –
uma melancolia afirmativa, que o impulsiona a prosseguir viagem. Atravessa mapas e
espelhos. Prefere não desistir.
O bibliotecário-flâneur, como pode ser definido o leitor-escritor, que assim se
performa nas letras contemporâneas, compreende que a literatura é “o lugar onde os livros
são todos retomados e consumidos: lugar sem lugar, pois abriga todos os livros passados
neste imposvel ‘volume’, que vem colocar seu murmúrio entre tantos outros após todos
os outros, antes de todos os outros
595
.
Se “o ponto fixo ansiado não existe”, é esse vazio que o instiga a reinventar
itinerários vários que re-apresentam a falta em sua origem. Pois a literatura, cúmplice do
593
BERNARDO. Verdades quixotescas, p. 16.
594
BERNARDO. Verdades quixotescas, p. 68.
595
FOUCAULT. Estética: literatura e pintura, música e cinema, p. 59.
202
ceticismo, “é um caminho de conhecimento que precisamos percorrer carregados de
perguntas, não de respostas”
596
.
Dotada de uma sensibilidade melanlica, suplementada afirmativamente, a prosa
brasileira contemporânea, como pudemos perceber no roteiro aqui proposto, encena, de
forma alerica, o luto pela dispersão do sentido único, consagrando o vazio que anima “a
mão que hoje deseja escrever”. Um dos traços mais marcantes que definem o estado atual
da literatura talvez resida justamente na expressão especular de seu caráter dispersivo.
Conforme observa Blanchot:a experiência da literatura é ela mesma experimento de
dispersão, é a aproximação do que escapa à unidade, experiência do que é sem
entendimento, sem acordo, sem direito – o erro e o fora, o inacessível e o irregular”
597
.
A consciência dessa experiência é condição inalienável de todo escriba melancólico.
É condição também da voz em primeira pessoa do plural que resiste em terminar a jornada
destas expedições. E, por isso, acha melhor não concluir.
* * *
Recupero meu eu constrangido, obscurecido por um nós dominante – cartografia de
minhas errâncias. Vestígios do outro em mim.
Carrego na bagagem não o mapa da mina, contendo indicações precisas para a
descoberta de um antigo tesouro escondido. Estas andanças conduzem a inusitados
caminhos, a paragens insólitas, a sentidos (des)encontrados. À medida que avanço,
trilhando atalhos e desvios, as dúvidas se reduplicam. Porque os livros não respondem às
perguntas que lhes fazemos. Onde a verdade? E eles replicam: onde as verdades? Não só
reverberam a indagação que lhes dirigimos, como ainda multiplicam nosso estupor
598
.
596
MONTERO. A louca da casa, p. 43.
597
BLANCHOT. O livro do por vir, p. 300.
598
Abel Barros Baptista, comentando essa indiferença dos livros em face das perguntas que lhes são feitas,
aborda a questão sob o viés da solicitação como procedimento de leitura, em que “toda a exincia de
resposta enfrenta a inexorabilidade de uma não-resposta” (BAPTISTA. Autobibliografias, p. 12-13). O
estudioso examina o assunto a partir da idéia de “autobibliografia”, baseada na solicitação do livro no interior
da ficção, e definida como “o movimento em direção a si mesmo como não-identidade” (Cf. BAPTISTA.
Autobibliografias, p. 195).
203
Contemplo a somatória de títulos que perfilam em desordem nas prateleiras.
Percorrê-las não encerra o fôlego destas viagens. Tantos são os desmedidos rumos. Tantas
são as combinações possíveis.
Estanco o olhar que passeia pelas lombadas desse bosque de densas aléias. Breve
pausa nesta aventura em que o trânsito é a condição permanente.
Fabíola,
primavera de 2006
204
ESTANTES PERCORRIDAS
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. Trad. Alexei Bueno. Rio de Janeiro:
Lacerda Editores, 1998.
BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.
BAPTISTA, Abel Barros. A autobiografia como preservativo. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 18 abril 2004.
BARBOSA, João Alexandre. Borges, leitor do Quixote. In: SCHWARTZ, Jorge (Org.).
Borges no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p.51-
75.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Trad. António
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 49-53.
BARTHES, Roland. Sobre a leitura. In: ______. O rumor da língua. Trad. Annio
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 31-38.
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Trad. Fernando Camacho. Humboldt, Munique,
F. Bruckmann, 19 (40): 38-45, 1979.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: ______. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 36-49. (Obras escolhidas; v. 1)
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio
Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196. (Obras escolhidas; v. 1)
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In:
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