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S
É R G I O
A
N TÔ N I O
S
I L V A
P A P E L , P E N A S E T I N T A
A M E M Ó R I A D A E S C R I T A E M G R A C I L I A N O R A M O S
Belo Horizonte
2006
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S
É R G I O
A
N TÔ N I O
S
I L V A
P A P E L , P E N A S E T I N T A
A M E M Ó R I A D A E S C R I T A E M G R A C I L I A N O R A M O S
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Estudos Literários, da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em
Literatura Comparada.
Área de concentração: Literatura e Psicanálise
Orientadora: Profa. Dra. Lucia Castello Branco
Belo Horizonte
Facu ldade de Letras da U FMG
Julh o de 2006
4
Para Fernanda, parceira literária, romance sem fim.
5
A
G R A D E C I M E N T O S
A Lucia Castello Branco, pela orientação do texto e da vida.
A Ruth Silviano Brandão, pelo tempo dedicado a este trabalho.
Ao Ram Mandil, pelos ensinamentos sobre a angústia.
A Sônia Queiroz, pela casa da escrita.
A Maria Inês de Almeida, pelas prosas sobre Graciliano Ramos.
Ao paulo de andrade, pelos sinais fugazes.
À Pós-Graduação, pelo acolhimento e apoio.
Aos professores e amigos da Faculdade de Letras da UFMG.
6
Esta tese foi realizada com o auxílio
financeiro do CNPq.
7
R E S U M O
Leitura da obra de Graciliano Ramos, sobretudo dos romances Caetés, S.
Bernardo e Angústia, privilegiando, nesta leitura, duas questões teóricas. A
primeira delas diz respeito ao olhar que, na obra em estudo, volta-se para as
sombras, as névoas, construindo, assim, uma relação com o medo, o temor, a
angústia. A segunda delas trata da memória da escrita, conceito erigido a partir
da própria representação do ato de escrever nos romances de Graciliano Ramos,
especificamente, e em sua obra de uma maneira geral.
8
A B S T R A C T
This is a reading of Graciliano Ramos’s works, especially the novels Caetés, S.
Bernardo and Angústia, emphasizing two theoretical issues. The first one is
related to the look which, in the mentioned works, is directed towards the
shadows and the obscure, building a relationship with fear and anguish. The
second one deals with the notion of memory of writing, a concept built from the
representation of the act of writing itself in Ramos’s novels, specifically, and in
his work, generally speaking.
9
Não gozarás aqui de grande conforto mas sempre
encontrarás um quarto com duas cadeiras e uma mesa, um
bocado de livros, uma bilha d’água, papel, penas e tinta,
enfim o necessário a um indivíduo que tem fumaças de
literatura.
Graciliano Ramos, Cartas
era um vez um animal chamado escrita, que devíamos,
obrigatoriamente, encontrar no caminho; dir-se-ia, em
primeiro, a matriz de todos os animais; em segundo, a
matriz de plantas e, em
terceiro,
a matriz de todos os seres existentes.
Constituído por sinais fugazes, tinha milhares de
paisagens,
e uma só face,
nem viva, nem imortal. Não obstante, o seu encontro com
o tempo apaziguara a velocidade aterradora do tempo,
esvaindo a arenosa substância da sua imagem.
Maria Gabriela Llansol, Causa amante
10
L I S T A D E A B R E V I A T U R A S
Al: Alexandre e outros heróis
A: Angústia
C: Caetés
Ca: Cartas
I: Infância
Ins: Insônia
LT: Linhas tortas
MC: Memórias do cárcere
SB: São Bernardo
V: Viagem
VS: Vidas secas
VA: Viventes das Alagoas
11
S
U M Á R I O
Introdução: Fumaças de literatura
12
Parte 1: Gestos de escrita
Capítulo 1: O olho torto de Graciliano
16
Capítulo 2: Memória da escrita
63
Parte 2: Lugares de escrita
Capítulo 3: Caetés, o começo 85
Capítulo 4: S. Bernardo, o deslocamento
124
Capítulo 5: Angústia, o corte
158
Conclusão: Apenas um cisco no olho
198
Referências 209
12
I N T R O D U Ç Ã O
F U M A Ç A S D E L I T E R A T U R A
13
A intervenção social de um texto (que não se realiza necessariamente no
tempo em que se publica esse texto) não se mede nem pela popularidade
da sua audiência, nem pela fidelidade do reflexo econômico-social que nele
se inscreve ou que projeta para alguns sociólogos ávidos de recolhê-lo,
antes pela violência que lhe permite exceder as leis que uma sociedade, uma
ideologia, uma filosofia se dão para pôr-se de acordo consigo mesmas num
belo movimento de inteligência histórica. Esse excesso tem nome: escritura.
(Barthes, 1990, p. 13).
A obra de Graciliano Ramos, tal como as obras de escritores
contemporâneos seus, é reconhecida como intencionalmente voltada para a
“intervenção social”. Não lhe basta o valor ou a beleza da arte, é preciso que ela
combata as injustiças humanas, mais especificamente aquelas geradas por um
sistema de exploração dos pobres por classes dominantes, ricas, poderosas,
num Brasil totalmente contraditório, nesse sentido. Além disso, é preciso que
ela seja instrumento de tomada de consciência, de transformação, de superação
dessa realidade desigual e injusta. Aliás, são esses dois aspectos que fazem com
que uma boa literatura possa ser reconhecida como tal.
A riqueza integral da obra de Graciliano Ramos pode ser entrevista na
medida em que verificamos a sua íntima relação com o panorama social da
época. [...] O quadro brasileiro denunciado é aquele que vinha se
delineando desde os primeiros dias da República e acabou responsável
pelos conflitos armados do tenentismo, retaguarda da revolução de 30.
(Mourão, 2003, p. 164).
Essa mesma obra, por sua vez, surpreende ao adentrando por caminhos
menos referenciais, menos voltados às contradições históricas do capitalismo
num Brasil também ele contraditório. Desse modo, Graciliano Ramos escreve
sua literatura, com um olhar para dentro e outro para fora.
14
Na junção desses olhares surge uma terceira visão, o excesso de que nos diz
Roland Barthes, que é a escritura, no caso, de Graciliano Ramos. Para falar desse
excesso, da escritura desse autor, buscamos uma imagem nas histórias de
Alexandre, escritas por Graciliano Ramos.
1
Trata-se do “olho torto”, aquele que,
colocado às avessas, enxerga o dentro e o fora simultaneamente, promovendo
um olhar a mais, um terceiro olhar, ou, para usarmos uma expressão de
Maurice Blanchot, uma relação do terceiro tipo:
Nesta relação que isolamos de maneira não necessariamente abstrata,
jamais um é compreendido pelo outro, jamais forma com ele um conjunto,
nem uma dualidade, nem uma unidade possível; um é estranho ao outro,
sem que esta estranheza privilegie um ou outro. Esta relação chamamos de
neutro, indicando, então, que ela não pode ser de novo alcançada, nem
quando se afirma, nem quando se nega, exigindo da linguagem, não uma
indecisão entre esses dois modos, mas uma possibilidade de dizer que diria
sem dizer nem denegar o ser. E, com isso, caracterizamos talvez um dos
traços essenciais do ato “literário”: o próprio fato de escrever. (Blanchot,
2001, p. 128).
“O olho torto de Graciliano” é o primeiro capítulo desta tese. O olho torto
da história contada por Alexandre tanto ajuda-nos a situar Graciliano Ramos na
história da literatura brasileira e de sua recepção crítica, quanto aponta para a
estranheza provocada por um olhar que pode levar ao campo do medo, da
angústia, do real. Surgem daí nuvens, névoa, neblina. Ou o invisível, o excesso
de luz que ofusca.
1
As Histórias de Alexandre encontram-se atualmente publicadas em Alexandre e outros heróis.
15
E surgem fumaças, fumaças de literatura que nos levam ao traço de que
fala Blanchot, ao “próprio ato de escrever”.
2
A escrita em sua relação com a
memória a memória da escrita está no segundo capítulo, de maneira mais
teórica, e nos três seguintes, na leitura que fazemos dos romances Caetés
(terceiro capítulo), S. Bernardo (quarto) e Angústia (quinto). Assim, o olho torto
serve-nos como uma espécie de introdução à obra de Graciliano Ramos, e o
olhar que daí resulta como indício da angústia que permeia essa obra. A
memória da escrita conduz-nos, por fim, mais do que à representação, à
encenação do ato de escrever na obra de Graciliano Ramos, ao modo de se
entender a escrita a partir dos meios, instrumentos, gestos e métodos a ela
relacionados. A escrita segundo uma tradição: a dos alfabetos e das letras; do
papiro e do pincel; das penas; do pergaminho, do papel e da tinta; da
impressão. A tradição dos ditados, dos escribas, das cópias manuscritas. A
vontade de escrever à mão. A mão que escreve, o punho, o pulso, o corpo do
escritor. Escrever passa a ser, com isso, a defesa dessa memória a memória da
escrita.
2
Para adentrar a obra de Graciliano Ramos, voltamos à imagem que está no seguinte
fragmento, citado na epígrafe desta tese, retirado de uma de suas cartas: “Não gozarás aqui
de grande conforto mas sempre encontrarás um quarto com duas cadeiras e uma mesa, um
bocado de livros, uma bilha d’água, papel, penas e tinta, enfim o necessário a um indivíduo que
tem fumaças de literatura.” (Ca, p. 19).
16
C A P Í T U L O 1
O O L H O T O R T O D E G R A C I L I A N O
17
O
O L H O T O R T O
Achei que realizaamos instrospecção
direita examinando a coisa externa, pois o
mundo subjetivo não elimina o objetivo:
baseia-se nele.
Graciliano Ramos
– Os senhores já sabem por que é que eu tenho um olho torto?
Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo
hoje porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas
direito. (Al, p. 16).
Alexandre tem um olho torto, o esquerdo. Não que seja vesgo de nascença;
o estrabismo, ele o adquirira na mocidade, ao perder (para depois achar) o olho
em uma de suas aventuras, mais precisamente na caça a uma onça-pintada. A
perseguição acabara por lhe render isto: “o focinho em miséria: arranhado,
lanhado, cortado, e o pior é que o olho esquerdo tinha levado sumiço.” (Al, p.
21). Alexandre vai à procura de seu olho, encontrando-o mais rápido do que
poderia supor: “o infeliz me bateu na cara de supetão, murcho, seco, espetado
na ponta de um garrancho todo coberto de moscas.(Al, p. 23). Servirá esse
olho para tampar o “buraco vazio e ensangüentado” de seu rosto. Servirá,
ainda, para que Alexandre enxergue como nunca.
18
E foi um espanto, meus amigos, ainda hoje me arrepio. Querem saber o que
aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos muito brancos
as figuras de pessoas em que eu pensava naquele momento. Sim senhores,
vi meu pai, minha mãe, meu irmão tenente, os negros, tudo miudinho, do
tamanho de caroços de milho. É verdade. Baixando a vista, percebi o
coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais. Assombrei-me. Estaria
malucando? Enquanto enxergava o interior do corpo, via também o que
estava fora, as catingueiras, os mandacarus, o céu e a moita de espinhos,
mas tudo isso aparecia cortado, como expliquei: havia apenas uma parte
das plantas, do céu, do coração, das tripas, das figuras que se mexiam na
minha cabeça. (Al, 25-26).
Alexandre o dentro e o fora ao mesmo tempo, e os “de verdade”. O
seu olhar é capaz de passar a outro espaço, não exatamente constituído por dois
lados, mas pela simultaneidade do “enquanto”, pela (con)fusão dos lados
interior-exterior. “Refletindo, consegui adivinhar a razão daquele milagre: o
olho tinha sido colocado pelo avesso.” (Al, 26). Esse terceiro olhar, avesso,
Alexandre não o suportará por muito tempo: “Meti o dedo no buraco do rosto,
virei o olho e tudo se tornou direito, sim senhores. Aqueles troços do interior se
sumiram, mas o mundo verdadeiro ficou mais perfeito que antigamente.” (Al,
26). Mesmo depois de ajustado, o olho de Alexandre está torto, como que a lhe
garantir, se não o poder de uma terceira visão do avesso —, ao menos uma
percepção mais apurada do mundo:
Quando me vi no espelho, depois, é que notei que o olho estava torto. Valia
a pena consertá-lo? Não valia, foi o que eu disse comigo. Para que bulir
com o que está quieto? E acreditem vossemecês que este olho atravessado é
melhor que o outro. (Al, 26).
19
Alexandre é o narrador das histórias que hoje conhecemos publicadas em
Alexandre e outros heróis, de Graciliano Ramos.
3
A espacialidade que ele alcança
com seu olhar é a mesma da escrita de Graciliano: o dentro e o fora amarrados
de tal forma que, daí, possa surgir uma abertura na qual o olhar está voltado ao
invisível, e o invisível é “o que não se pode deixar de ver, o incessante que se
faz ver”. (Blanchot, 1987, p. 163).
As suas histórias se passam em um tempo remoto, em um espaço distante
das máquinas e do progresso. Segundo Rui Mourão, a “percepção que no caso
se procura passar é de um Nordeste ainda envolto em atmosfera pré-capitalista,
anterior ao rádio e a televisão, no qual contingentes da população humilde e
analfabeta, na aceitação complacente do seu próprio destino, transitavam de
fazenda em fazenda, transmitindo de boca em boca a saga de uma região de
mistério e encantamento”. (Mourão, 2003, p. 138).
4
Perdido no interior do país,
Alexandre representa o pobre sem muita vez (sem muita voz) na literatura.
Graciliano, ao simular a performance dos contadores de “histórias de
encanto e magia” nordestinos, acaba por se inscrever em uma tradição que tem
nas Aventuras do Barão de Münchhausen, do alemão Gottfried August Buerger, o
3
Essas histórias foram publicadas nos livros Histórias de Alexandre e Sete histórias verdadeiras,
ambos organizados pelo autor, e, por fim, em
Alexandre e outros heróis
, organizado
postumamente, tendo sido este título escolhido pelo editor (Martins).
4
A leitura que Rui Mourão faz das Histórias de Alexandre traz, entre outras coisas, o
entendimento deste livro como um romance, ao lado de Caetés, S. Bernardo, Angústia e Vidas
secas
. Essa classificação aparece na terceira edição de seu livro
Estruturas: ensaio sobre o romance
de Graciliano, lançada em 2003; na edição original, de 1974, logo tornada referência obrigatória
para os estudos sobre a obra de Graciliano, não o capítulo dedicado a Alexandre e outros
heróis.
20
modelo para uma literatura que, ao final das contas, “chama a atenção para
características psicológicas invariáveis do ser humano e exprime certos padrões
universais de comportamento”. Na tradição brasileira, “Alexandre guarda
semelhança com as estórias de Pedro Malazarte, que animavam os serões da
família patriarcal na calmaria de uma oralidade cedo derrotada pelos ruídos da
era eletrônica, o que significa uma adesão ao folclore”. (Mourão, 2003, p. 147).
Alexandre, com seu olho torto, enxerga o invisível em seu novelo de
histórias, verdadeiras máquinas de inventar. Graciliano Ramos imprime, em
suas histórias, um olhar que é mais do que o ver, olhar a mais trazendo àquele
que olha a presença do outro. Condutor de uma trêmula luz que surpreende o
sujeito, chegando mesmo a cegá-lo, esse olhar constitui-se como um grau
máximo da visão, um ato pulsional capaz de expressar “uma realidade
escolhida segundo os nexos da vida psíquica na constituição” do sujeito,
derivando, portanto, de “influências inconscientes”. (Branco, 1995, p. 75).
O O L H O D O O U T R O
Tomemos, então, o olhar torto de Alexandre como imagem do olhar de
Graciliano: aparentemente voltado para as coisas do mundo, para a observação
da paisagem e dos seres, das histórias e das palavras que estão à sua volta, a fim
de transformá-los em matéria de escrita, o olho torto acaba por exceder essa
21
realidade, deslizando para campos menos referenciais, realizando-se segundo
uma percepção do mundo atravessada pelo desejo, pelo que é do interior do
sujeito, mas que bom que se atente a isto) “só pode se realizar do lado de
fora, isto é, nesse lugar do Outro”. (Lacan citado por Branco, 1995, p. 25).
Essa imagem do olhar está disseminada ao longo da obra de Graciliano
Ramos. Tem várias conotações, uma delas sendo a observação e a experiência
(que é a experiência do ver) geradora, por sua vez, da memória, como
imprescindíveis ao seu processo de criação. Sobre essa questão, na citação
abaixo, retirada do artigo “Graciliano Ramos, das pérolas às críticas”, Letícia
Malard apresenta-nos as seguintes informações, a partir do comentário de um
trecho de uma carta escrita por Graciliano Ramos, quando ainda jovem, a um
seu amigo:
Ao afirmar que a poesia / literatura tem de pautar-se pela verossimilhança,
refletir o real, Graciliano adiantava, aos vinte e um anos, sua posição diante
da própria criação literária, com a publicação do romance Caetés, vinte anos
depois. Para o escritor, a experiência vivida, a realidade que o cerca, a
socialização do homem em seu contexto histórico-geográfico, o Nordeste
serão sempre a matéria-prima da sua obra. Caetés é a reconstrução literária
de Palmeira dos Índios, assim como S. Bernardo o é de Maniçoba, ou do
sítio de seu Paulo Honório conforme diz em Infância. Angústia reconstrói
fragmentos de Maceió. Vidas secas e Insônia são flashes, lembranças a
recuperar vivências em passado remoto ou próximo. Já nas crônicas-artigos
de Linhas tortas, 13 textos datados de 1915 e escritos para o periódico
Paraíba do Sul. Neles, a influência e o clima cultural da capital da república
de princípios do século XX estão evidenciados. (Malard, 2006, p. 201).
Em um dos poucos livros não citados na lista acima, Memórias do cárcere,
uma passagem (por sinal bastante citada) que também nos conduz ao
entendimento da demanda de (vi)ver para escrever, defendida por Graciliano:
22
Passei o dia a mexer-me do vagão para o restaurante, bebi alguns cálices de
conhaque, os últimos que me permitiriam durante longos meses. À noitinha
percebi construções negras num terreno alagado. Que seria aquilo?
— Mocambos, informou Tavares.
Bem, os célebres mocambos que José Lins havia descrito em Moleque
Ricardo. Conheceria José Lins aquela vida? Provavelmente não conhecia.
Acusavam-no de ser apenas um memorialista, de não possuir imaginação, e
o romance mostrava exatamente o contrário. Que entendia ele de meninos
nascidos e criados na lama e na miséria, ele, filho de proprietários?
Contudo a narração tinha verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante
proeza: só me abalanço a expor coisa observada e sentida. (MC, v I, 61. Grifo).
A passagem citada, em seu contexto original, que é o início das memórias,
funciona como introdução ao relato, não de uma experiência qualquer, mas de
uma experiência limite: o cárcere. No trem, viajam presos políticos, muitos
deles sem saber com certeza de que eram acusados, ou como se formalizariam
as acusações contra eles, como é o caso do próprio narrador-autor.
Além desse propósito de servir como momento da narrativa que visa a
preparação do leitor, para que também ele faça a sua viagem (a da leitura das
memórias de um preso político), no trecho (bem como em vários outros da obra
do escritor) há a exposição de um pensamento que toma a experiência (o olhar)
como uma condição para a escrita.
No entanto, essa “observação indispensável” acaba, como seria de se
presumir, relativizada pelo autor. “Todos os meus tipos foram constituídos por
observações apanhadas aqui e ali, durante muitos anos. É o que penso, mas
talvez me engane. É possível que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo
e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam.”
23
(LT, 196). Observar, em verbete de dicionário, é fixar os olhos em (alguém, algo
ou si mesmo). O olhar torto de Alexandre constrói-se aos pedaços: pedaços do
fora e pedaços do dentro vistos simultaneamente. O olhar de Graciliano assim
se dá: como base da memória, como condição para o relato, mistura os lados,
acrescenta o não-visto, rende-se à elisão da realidade, cria uma nova visão para
a literatura.
Com isso, na história da literatura brasileira, o lugar de Graciliano Ramos
é marcado por uma oscilação entre os “preceitos”, os combates dos novos
realistas ou regionalistas da década de 1930, que se caracterizam principalmente
pelo retrato, pela paisagem e pela denúncia sociais, e as explorações
consideradas psicológicas ou intimistas presentes em sua obra. Logicamente,
essa divisão estanque só é possível, pode ser entendida como explicação de
determinado uso da linguagem que, por si, é ilusória, representativa, estando
a realidade sempre em um nível de “efeito de real”, na expressão de Roland
Barthes.
5
Esse duplo direcionamento que Graciliano Ramos consegue operar em sua
escrita é algo que lhe rende elogios, fazendo com que seu estilo fosse
comparado ao de Machado de Assis, que, por sua vez, inaugurou o realismo
brasileiro, no final século XIX, a partir de um romance quase nada realista:
Memórias póstumas de Brás Cubas.
5
Cf. “O efeito de real”, de Roland Barthes, em O rumor da língua.
24
A aproximação de Graciliano com Machado é um tema que, até certa
altura, foi bastante explorado pela crítica, havendo, por um lado, aqueles que
defenderam e confirmaram tal procedimento:
Estamos diante de um caso semelhante ao de Machado de Assis, no
passado [...]. O Sr. Graciliano Ramos, ao criar e movimentar personagens
como Paulo Honório e Madalena, parece ter encontrado, definitivamente, o
seu plano de ficcionista: o do romance psicológico. [...] Neste sentido, o
mundo romanesco do Sr. Graciliano Ramos é pobre, limitado, deficiente. O
que transmite vitalidade e beleza artística aos seus romances não é o
movimento exterior, mas a existência interior dos personagens. Os
acontecimentos m significação pelos seus reflexos nas almas, nos
caracteres, nos pensamentos. (Lins, 1975, p. 136, 157).
Por outro lado, houve aqueles que acharam a comparação impertinente
ou, no muito, infrutífera: “A influência de Machado de Assis tem sido repetidas
vezes afirmada, sem provas concludentes. O argumento mais utilizado é o de
praticarem ambos a análise psicológica, o que, por si, não leva a grandes
conclusões [...]”. (Cristóvão, 1986, p. 215). A comparação com Machado de Assis
surge no lançamento de Caetés, primeiro livro de Graciliano Ramos, e, como
podemos observar na consideração do crítico acima citado, apesar de destacar a
capacidade de ambos de penetração em um universo “psicológico”, não tem
grandes desdobramentos.
6
Ainda com relação às escolas literárias, não podemos desconsiderar o fato
de o nome de Graciliano continuar presente em listas que reúnem, segundo
alguns estudiosos, os mais expressivos regionalistas brasileiros, consolidadores
6
Ainda assim, voltaremos a este assunto no terceiro capítulo, ao estudarmos o romance Caetés.
25
de uma tradição, em certo sentido, ainda não superada em nossa literatura.
Vejamos esta, de Walnice Nogueira Galvão:
Em rápida seqüência estrearão e dominarão a cena literária por vários
decênios, com apogeu nos anos 30 e 40, Rachel de Queiróz, do Ceará, José
Lins do Rego, da Paraíba, Graciliano Ramos, de Alagoas, e Jorge Amado,
da Bahia e estes para falar dos principais. [...] O fato é que essa safra
de ficção ao rés-do-chão e aspirando ao documentário impôs um cânone
que tem seus epígonos até hoje e que dominou a literatura brasileira,
impedindo por longo tempo que houvesse percepção estética de autores
que não atuassem dentro dessas normas. (Galvão, 2000, p. 155).
No entanto, mesmo que tenhamos a presença de listas como a citada
acima, a grande maioria das leituras da obra de Graciliano Ramos procura
distanciá-lo dos recursos estilísticos vastamente empregados na literatura
regionalista de 1930. Esse distanciamento se deve principalmente ao fato de o
autor ser “pouco afeito ao pitoresco e ao descritivo” (Candido, 1992, p. 13), ou
seja, à sua escrita econômica, declaradamente anti-retórica, de combate à
paisagem, enfim, ao seu estilo seco.
7
Mesmo as “Anotações à margem do regionalismo” de Walnice Galvão,
quando propõem uma linhagem regionalista da literatura brasileira e, a partir
daí, situam uma terceira geração, a do “regionalismo engajado” (que surge em
uma “década radical” e, bastante por causa disso, traz consigo a revolta, o
combate), esclarecem que muitas práticas formais e estilísticas presentes nos
7
Essa idéia do “estilo seco” de Graciliano Ramos, que já está nas primeiras críticas acerca de sua
obra, tornou-se recorrente, tendo a expressão se consagrado como uma espécie de “marca
registrada” de seu texto (a ordem direta, a escassez de adjetivos qualificativos e de advérbios, a
pouca coordenação e subordinação, a freqüência de orações independentes) e de si mesmo (um
tipo sico magro, ossudo, uma pessoa propensa ao isolamento, à falta de afetividade, à dureza
nos tratos, aos modos ríspidos). Sobre o assunto (que envolve, inclusive, respeitáveis opiniões
contrárias a essa qualificação dada a Graciliano), ver Cristóvão, 1986, p. 221.
26
regionalistas do início do século XX (ironizadas pelo próprio Graciliano,
declaradamente avesso ao abuso de cores e formas) já se encontravam, em 1930,
abandonadas, quase não havendo mais fidelidade aos preceitos e às técnicas
dessa escola, ainda que existissem, inevitavelmente, ligações com outros novos
preceitos e outras novas técnicas.
Wander Melo Miranda, ao passar pela classificação regionalista de
Graciliano, acredita ser “ocioso e desnecessário” retomar esse assunto. O autor
relembra os estudos de Casais Monteiro que estabelecem o “anti-regionalismo”
de Graciliano
8
para concluir que é insustentável a redução desse autor ao
modelo “pinturesco” e “documental” presente na maioria dos autores do
chamado “romance de 30”. (Miranda, 1992, p. 46).
Assim sendo, como se afirma, essa questão superada, voltaremos ao olhar
avesso que permite com que a escrita atinja um terceiro lado. Olhar que vai
além, olhar a mais que, nesse caso, não designa nenhum aumento ou grandeza,
pois é no corte, na subtração, que reside a técnica de Graciliano. Enxergar a
mais passa a ser uma questão de ângulo: a curvatura do olho presente na
curvatura da escrita, o olhar que não está no fora, no dentro ou sequer num e
noutro, mas sim em um intervalo que nos leva a pensar no olho da letra.
O olho da letra, no sistema tipográfico, é a parte do tipo móvel (que, em
seus primórdios, era de madeira, passando, depois, a ser de chumbo) que marca
8
Além dos artigos de Casais Monteiro: “Graciliano sem Nordeste” e A confissão de
Graciliano”, Wander Miranda cita o livro de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance? Uma
ideologia estética e sua história: o Naturalismo e um artigo de Osman Lins, “Homenagem a
Graciliano Ramos”. Cf. Miranda, 1992, p. 45-47.
27
a impressão, a parte que pressiona o papel, fazendo com que ele receba o traço
dos artistas que ali se projetam: o escritor com seus originais a serem
impressos, com suas palavras de grafita ou tinta a serem trocadas por letras e
sinais de chumbo, para depois voltarem ao estado de palavras tingidas e o
tipógrafo, aqui tomado não como simples impressor, mas como desenhista da
letra seu ofício primeiro, perdido no tempo e recuperado por outros
profissionais, como o designer ou artista gráfico, por exemplo.
O olho da letra é um lugar de passagem, é por onde o peso do chumbo se
transmuta (do latim transmutatio, onis, transposição das letras) na leveza do
papel tinto. É também uma espécie de antídoto: no impresso, a toxidez do
chumbo desaparece, ainda que, no corpo do tipógrafo-impressor e, por que não,
do escritor, o que sobra dessa toxidez pode ali se instalar de maneira inexorável.
O olho da letra, por tudo isso, exerce um fascínio sobre o tipógrafo e sobre o
escritor, pois o que lhes interessa está nesse lugar de passagem, intervalo,
suspensão.
E, se recuarmos ainda mais, entraremos no universo dos manuscritos, dos
textos ditados a escribas, de grandes livros de pergaminho copiados em
silêncio, da mão que escreve, que desenha a letra, que existência material ao
imaterial, a algo que existia, que estava lá, mas que se transmite após
esse gesto de inscrição, de escrita.
28
O
O L H O E S T R Á B I C O
“Graciliano Ramos trouxe a ficção nordestina para o círculo exato em que
se move o romance moderno. Não será difícil entrosar os seus livros [...] ao
complexo painel que, partindo do localismo para o universal, empreende a
sondagem da alma humana através da auscultação de uma determinada zona
geográfica.” (Filho, 1997, p. 164). Esse universalismo retirado do mais
tradicional, condição imprescindível para o escritor que faz parte de uma
tradição descentralizada, fora dos antigos e grandes centros letrados, foi
interpretado por Ricardo Piglia a partir de uma imagem que nos faz lembrar
Alexandre: la mirada estrabica.
Segundo Piglia, o escritor latino-americano (no caso específico, argentino)
está sempre às voltas com a obrigação de resgatar uma tradição perdida, de
trabalhar com a consciência de uma história rasurada. Por isso o escritor “hay
que tener un ojo puesto en la inteligencia europea y el otro puesto en las
entrañas de la patria”. (Piglia, 1991, p. 61). No país de Piglia, um escritor que
possui esse tipo de olhar é Jorge Luis Borges, que mantém um constante diálogo
com a tradição européia sem, contudo, distanciar-se daquilo que se denomina
“localismo”.
Borges, ao longo de sua vida, lentamente foi-se tornando cego, mantendo,
em relação à cegueira, a lucidez (a visão) de um adivinho. Cláudio Leitão
29
aproxima-o de Graciliano Ramos a partir de algumas confluências biográficas,
com destaque para a questão do olhar:
Ambos nasceram na última década de um século em vivência pessoal de
cegueira, gradativa e definitiva em Borges, periódica em Graciliano Ramos.
Os dois têm, na experiência visual, uma perda e, simultaneamente, uma
aquisição. Percebe-se que ambos foram-se afastando lentamente do século
que se apagava e construindo modos próprios de olhar um novo século.
(Leitão, 2003, p. 100-101).
Dos escritos de Borges que dizem respeito ao olhar, o autor cita um trecho
do poema “Elogio de la sombra” (“Vivo entre formas luminosas y vagas”), e faz
uma reminiscência à conferência intitulada “A cegueira”, do livro Sete noites, ao
trazer o episódio (citado por Borges tanto no poema quanto no ensaio) de
Demócrito de Abdera, que “arrancou os próprios olhos para melhor pensar”.
Nessa conferência, Borges faz uma lista (recurso caro à sua obra) de poetas e
escritores cegos Homero (cuja cegueira, assim como a própria existência, é
duvidosa), Milton, Prescott, Groussac, Joyce para concluir que, para “a tarefa
do artista, a cegueira não é totalmente negativa, que pode ser um
instrumento”:
Não apenas o escritor mas todo homem deve se lembrar de que os fatos da
vida são um instrumento. Todas as coisas que lhe são dadas têm um
sentido, ainda mais no caso do artista: tudo o que lhe acontece inclusive
humilhações, mágoas e infortúnios funciona como argila, como material
que deve ser aproveitado para sua arte. (Borges, s.d., p. 181).
está um pensamento sobre a arte que se pode aliar àquele de Graciliano
Ramos a coisa observada, o acontecimento como condição e matéria para a
30
escrita acerca da literatura. Outra questão presente nesse texto de Borges, que
presenciamos também na obra de Graciliano, é a refencia à cegueira, não
exatamente como “um mundo negro”, totalmente escuro, mas sim como “um
mundo de neblina esverdeada ou azulada e vagamente luminosa”, um mundo de
sombras, “bastante incômodo e indefinido”. (Borges, s.d., p. 165-166. Grifo).
Quanto ao olhar estrábico de Graciliano, ele se efetiva pelo avesso,
enxergando o dentro e o fora, misturando-os, fazendo com que se transformem
em um espaço onde se encontram simultaneamente o visível e o invisível.
Assim, um olho (o esquerdo) revira as entranhas da pátria, ocupando-se das
questões de seu tempo (a política, a economia, a exploração, o capital, a pobreza
etc.) em uma linguagem correta, concisa, incansavelmente lapidada na reescrita,
nas revisões baseadas, principalmente, na eliminação, no corte. Contudo, apesar
desse trabalho (ou, devido a condições adversas, em sua falta), encontramos, na
obra de Graciliano Ramos, o excesso, o fragmentário, pontos que em sua obra
perduram, cenas que insistem, imagens impressas no corpo do escritor que
passam para o corpo das letras. A impressão desse excesso está presente, por
exemplo, em Angústia (que Antonio Candido chamou de romance “gorduroso”
e sobre o qual o autor lamenta não ter tido tempo para mais revisões,
9
além das
que havia feito) e em Memórias do cárcere, livro maior que a vida do escritor,
livro inacabado.
9
Graciliano Ramos encontrava-se preso quando José Olympio publicou a primeira edição de
Angústia. Em Memórias do cárcere encontram-se relatadas várias passagens acerca da publicação
desse romance; também o episódio do lançamento do livro no presídio, em uma
comemoração promovida por Heloísa Ramos.
31
o outro olho (o direito) enxerga, em suas leituras, as letras estrangeiras
e, logo em seu romance de estréia, de importar traços de autores europeus
consagrados. Com isso, Graciliano, assim como o seu primeiro “modelo”
estrangeiro, Eça de Queiroz,
10
tornar-se-á um clássico em função de sua precisão
lingüística, sua técnica de construção do romance os diálogos, as reflexões, a
narração, tudo, enfim, que faz deles grandes escritores da língua portuguesa.
O terceiro olhar, que surge do efeito provocado pelo ângulo oblíquo,
resulta em uma escrita ao mesmo tempo regional e universal, clássica e
transgressora. Além disso, ao pensarmos a condição dos escritores latino-
americanos retratada na formulação de Piglia – “un ojo puesto en la inteligencia
europea y el otro puesto en las entrañas de la patria” –, notamos que o “olhar
estrábico”, em Graciliano, além dessa visão da condição de latino-americano
(logo, sem tradição única, sem origem definida), traz consigo outro
desdobramento, que diz respeito às divisões internas de seu país, pois em seus
livros registram-se os lugares por onde o escritor passa, as cidades onde mora,
enfim, uma geografia que tem implicações em seu modo de produzir literatura
e em suas reflexões sobre essa produção. Assim, em relação a Graciliano,
possíveis variações para a frase de Piglia seriam: um olho posto nas fazendas, o
outro nas vilas; um em Palmeira dos Índios, outro em Maceió; um em Alagoas,
outro no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
10
A comparação com Eça de Queiroz se basicamente com relação a Caetés. Adiante,
voltaremos a este tema.
32
A fazenda – lugar das “brenhas”, das matas e das coisas confusas, secretas,
indecifráveis, por serem antigos os costumes de (do avô, por exemplo, que
“dormia numa cama de couro cru”; ou da preta Vitória, que, na cozinha,
“mexia-se, preparando comida, acocorada”) (C, p. 35) confronta-se com o
traçado das cidades do interior de Pernambuco (Buíque) e de Alagoas (Viçosa e
Palmeira dos Índios), suas ruas, seus recantos e edifícios, e neles negociantes,
políticos, padres, beatas, enfim, tipos humanos envoltos na mais profunda
monotonia, num “ramerrão” sem fim.
essas cidades interioranas confrontam-se com Maceió, onde Graciliano,
a certa altura da vida, torna-se amigo de pessoas como Aurélio Buarque de
Holanda, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego. Maceió e aquelas cidades, por
sua vez, confrontam-se com o Rio de Janeiro, onde jornais, revistas, editores,
livrarias facilitam, em parte, pelo menos, a vida dos que vivem do ofício de
escrever.
Por um lado, essa outra cultura representada pelo Rio de Janeiro é uma
extensão de um modo de vida e de práticas literárias e intelectuais presentes,
sobretudo, em Maceió, práticas estas centradas na necessidade, por parte dos
escritores, de imprimir, editar seus trabalhos, o que fariam com mais facilidade
no Rio de Janeiro. Por outro lado, essa cultura do impresso, bastante presente
nas capitais, escassas no interior, indica um embate com alguns dos costumes
“primitivos” mantidos, ainda que somente no nível do discurso, pelo escritor
do Nordeste.
33
Conheci esta semana o poeta Francisco Karan, paulista, católico, a pessoa
mais delicada que é possível imaginar. Entrar numa casa com ele é uma
dificuldade: não entra, passa meia hora querendo obrigar os outros a passar
primeiro. Uma educação perfeitamente chinesa. Tudo muito diferente dos
costumes bárbaros do nordeste. Não gosto disso. Vejo sempre indivíduos
que me dizem: “Sou um seu admirador”, pessoas que nunca me leram.
Horrível. Para que essas mentiras? (Ca, p. 177).
Apesar do fingimento e humor, no trecho acima o escritor nordestino
(migrante ou, mais do que isso, exilado) marca sua diferença valendo-se de um
traço negativo – ausência de “polidez”, de “civilização”, principalmente no
tocante à literatura, seus modos de produção e circulação. E assim podemos
acompanhar Graciliano Ramos, com máscara de sertanejo, a discorrer, em
vários de seus escritos, sobre as diferenças entre um mundo “bárbaro e um
“civilizado”, entre as brenhas e as livrarias.
Basta lermos alguns artigos seus, ou algumas cartas, e encontraremos a
paradoxal figura do literato provinciano, “inculto”, ele próprio a se reconhecer
nessa condição.
11
Assim, na leitura de Graciliano Ramos (e na de seus
biógrafos), tentamos (somos tentados a) reconstruir o percurso do escritor, e
percebemos logo a cisão, o desterro, a indecidibilidade como vestígios culturais
inevitáveis. A saída para isso esem seu olhar estrábico, no alcance de “zonas
11
Essas oposições são tomadas, por alguns estudiosos da obra de Graciliano Ramos, como
norteadoras de valores existenciais pelos quais o escritor busca retratar ou compreender a
condição humana. Fernando Cristóvão detém-se nos termos “natura” e “cultura”, tomando-os
como “antinomia fundamental” para a análise da obra do autor. Cf. Cristóvão, 1986, p. 281 e
seguintes. É interessante pensar também na presença, no contexto em que Graciliano Ramos
produziu grande parte de sua obra, do pensamento de intelectuais como Sérgio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre, que, movidos por interesses sociológicos e etnológicos, colocaram
em pauta discussões que passavam, direta ou indiretamente, pela questão da barbárie e da
civilização na cultura brasileira.
34
invisíveis” ao mesmo tempo em que se encena a visibilidade de fazendas,
cidades, casas, pessoas em determinados contextos históricos.
O O L H O D A L E T R A
O terceiro olhar presente na obra de Graciliano surge da junção do olho
torto com o olho certo. Porém, ao contrário do que se poderia pensar, não
constitui uma síntese nem aponta um centro, na medida em que compõe as
dobras que levam sua escrita da realidade social ao psiquismo humano, da
miséria nordestina à sua própria miséria, dos sintomas de suas personagens aos
sintomas dele próprio, Graciliano Ramos. Não nada totalmente fora, nem
totalmente dentro, porque o estilo do escritor está no intervalo desses lugares,
no registro da travessia, no deslocamento, no abalo.
12
As histórias de Alexandre fazem parte dessa nova forma de um escritor
conhecido como aquele que não se repete (não repete a forma, ou o gênero, por
assim dizer), seja se as consideramos um movimento de desprendimento, de
perda da “originalidade literária, que privilegia o indivíduo”, e investimento no
coletivo, “próprio da performance narrativa” (Almeida e Queiroz, 2004, p. 26),
ou como “uma rendição de Graciliano, que resolveu dar trégua à contundência
com que procurava revelar as condições inóspitas da região em que nasceu”.
(Mourão, 2003, p. 146).
12
Cf. A vida escrita, de Ruth Silviano Brandão.
35
Assim, ainda que consideradas uma espécie de pausa, uma suspensão dos
pesos que a escrita traz ao escritor, apenas narrativas menores, de pouca
importância, as histórias de Alexandre representam um modo diferente de
Graciliano lidar com a escrita. Isso talvez não passe de um movimento próprio
do autor (como foi dito, a cada livro ele experimenta uma nova forma, não se
repetindo, ou melhor, se repetindo na diferença), mas podemos também
entender essa “trégua à contundência” (que se dá, sobretudo, pelas vias de um
humor mais leve) como uma travessia de Graciliano em relação à sua escrita
não um avanço, mas uma mudança de posição, um deslocamento, um rearranjo
do traço, da letra, do sujeito.
O olhar atravessado de Alexandre surpreende o escritor em um momento
em que a saída do cárcere, o exílio ao mesmo tempo involuntário e voluntário, a
vida precária, atribulam a sua vida. Preso pelo regime ditatorial de Getúlio
Vargas, em março de 1936, em Maceió, onde morava, Graciliano é levado para o
Rio de Janeiro e, em janeiro de 1937, posto em liberdade nesta cidade. Desde
então, não mais voltará a Alagoas. Também não voltará a escrever romances
narrados em primeira pessoa, como os três que escrevera e publicara até então:
Caetés, S. Bernardo e Angústia. Ele agora está às voltas com as histórias, narradas
em terceira pessoa, de uma família de retirantes nordestinos, narrativa que ele
escreve aos poucos, publicando-a parte a parte, para depois, em 1938,
organizá-las no livro Vidas secas.
36
Nesse mesmo período, que é também o das histórias de Alexandre,
Graciliano escreve “A terra dos meninos pelados”, conto juvenil dirigido a um
concurso literário. Essa narrativa, por sinal, aborda a diferença que está na
cabeça e... nos olhos: “Havia um menino diferente dos outros meninos: tinha o
olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada.” (Al, p. 111). Por causa
dessas diferenças, seus conterrâneos “mangavam dele e gritavam: Ó
pelado!” Raimundo, o menino, acostumava-se ao apelido, mas sua diferença era
tão visível que os outros meninos lhe tinham medo. Por causa disso,
“Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais,
aborrecia-se, fechava o olho esquerdo. E a cara ficava toda escura.” (Al, p. 111).
É no escuro e no silêncio que Raimundo protege-se das maldosas falas
alheias que o perturbam. Em outro momento da narrativa, também depois de
zombarias dos outros meninos, ele se entrega à experiência da cegueira:
“Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida foi fechando o olho esquerdo,
não enxergou mais a rua. As vozes dos moleques desapareceram, só se ouvia a
cantiga das cigarras. Afinal as cigarras se calaram.” (Al, p. 112). Esse olhar para
dentro acaba por levá-lo a uma terra chamada Tatipirun, onde todos os
meninos têm a cabeça pelada e um olho preto, o outro azul e onde muitas
outras coisas “esquisitas”.
O protagonista busca, então, sair de um sistema opressivo, caracterizado
pela intolerância à diferença e pelo olhar vigilante e punitivo do outro. Ajudado
por sua visão de duas cores sua aloftalmia –, Raimundo descobre e, em uma
37
visita, percorre o mundo de Tatipirun, lugar lúdico em que os poderes se
encontram diluídos, sabendo, contudo, que deve voltar a seu mundo, para
estudar a sua lição de geografia. A viagem de Raimundo se dá em um momento
em que o seu autor está às voltas com outras viagens, certamente menos
coloridas, em um contexto político altamente oposto à liberdade:
Forçado a realizar um périplo punitivo através da geografia do governo
getulista, cujo mapa definitivo se consolidará com o Estado Novo, Mestre
Graça faz um trajeto bem diverso de seu protagonista infantil: em
Tatipirun, Raimundo convive, como veremos, com um poder heterotópico,
tendo como fonte a ludicidade; no Brasil desse período, o intelectual
conviverá com um poder localizado, punitivo, com rigoroso controle do
corpo do cidadão. (Santos, 1995, p. 89).
Ainda nesse período (década de 1940), Graciliano Ramos traduz,
novamente motivado pelo ganho pecuniário, o romance Memórias de um negro,
do ex-escravo norte-americano Booker Washington. Também escreve o prefácio
do livro de contos Neblina, de José Cavalcanti Borges. No título do livro
traduzido e no título de um de seus capítulos “Minha infância” a
confirmação de um caminho que Graciliano também estava percorrendo desde
a saída da prisão: seu próximo livro (que também estava sendo escrito e
publicado “aos pedaços”) terá sido Infância, que, junto com Memórias do cárcere,
compõe a sua obra “memorialística”. No título do livro prefaciado Neblina –,
uma imagem apropriada a essa escrita da memória que o escritor empreenderá,
posto que suas lembranças passam pela névoa, pela sombra, pelo esquecimento.
38
Com isso, o passado, que está perdido, retorna, mas não sem seu ponto
cego. A infância esna letra (miúda, feita para ser lida de perto) do escritor.
Trata-se de uma memória desterritorializada, de uma “escrita não resolvida,
mas sempre em evolução, sempre aberta para o próximo instante, [...] nunca
acabada, nunca fechada, mas sempre em feitura, sempre em construção”.
(Branco, 1994, p. 81).
Infância, assim como os livros mencionados anteriormente, é escrito
segundo a necessidade de publicação em periódicos. Tal como acontecera com
as histórias de Alexandre e os feitos de Fabiano e sua família, seus capítulos
foram publicados um a um, como pequenos contos, pois era com o pagamento
dessas publicações que Graciliano se mantinha (e também a sua família) na
cidade do Rio de Janeiro. Autor de três romances de reconhecido valor literário,
ainda assim Graciliano Ramos não pôde se furtar dos desajustes financeiros e
da falta de perspectiva que a vida, naquele momento, lhe oferecia.
O O L H O D E O R F E U
Um livro, mesmo que fragmentário, possui um centro que o atrai: centro
esse que não é fixo, mas se desloca pela pressão do livro e pelas
circunstâncias de sua composição. Centro fixo também, que se desloca, é
verdade, sem deixar de ser o mesmo e tornando-se sempre mais central,
mais esquivo, mais incerto, e mais imperioso. Aquele que escreve o livro,
escreve-o por desejo, por ignorância desse centro. O sentimento de o ter
tocado pode nada mais ser do que a ilusão de o ter atingido; quando se
trata de um livro de esclarecimentos, uma espécie de lealdade metódica
a declarar na direção daquele ponto para o qual parece que o livro se
39
dirige: aqui, na direção das páginas intituladas “O olhar de Orfeu”.
(Blanchot, 1987, p. 7).
Assim Maurice Blanchot anuncia-nos o “centro” de seu livro O espaço
literário, e, quando para lá nos dirigimos, percebemos que se trata de uma
releitura do mito de Orfeu que conduz o autor ao momento em que a obra de
arte aparece, momento este que, no pensamento paradoxal de Blanchot
(tradução da experiência que o mito lhe traz), é também o do seu
desaparecimento.
O aparecimento da obra se no instante em que Orfeu, voltando de sua
descida ao inferno, descumpre o acordo que lhe garantiria o resgate de
Eurídice, e para ela volta seu olhar. Mas o descumprimento do acordo, segundo
Blanchot, nada mais é do que a condição para que a tarefa de Orfeu se cumpra,
que ele “não quer Eurídice em sua verdade diurna e em seu acordo
cotidiano”, mas sim “em sua obscuridade noturna, em seu distanciamento”,
quer vê-la “não quando ela está visível, mas quando está invisível”. (Blanchot,
1987, p. 172).
Alcançar não o invisível, mas a invisibilidade do visível, é a tarefa daquele
que busca a obra, o que significa dispensar a visibilidade diurna, penetrar o
mundo da noite, a noite do mundo, tomar a obra no instante de seu
desaparecimento. O mito de Orfeu (assim como outros mitos gregos) serve para
que Blanchot construa sua teoria sobre a literatura, construção esta que passa
por um pensamento calcado na ambigüidade de frases como: “Para escrever, é
40
preciso que se escreva” (Blanchot, 1987, p. 176), na qual o tempo também se
configura de uma maneira outra, distante de uma ordem seqüencial, aberto a
uma “ausência de tempo”.
Centro do livro, o olhar de Orfeu é o lugar do fascínio para onde
convergem certas forças presentes no escrito. Ao voltarmos a Infância, de
Graciliano Ramos, podemos notar, de uma maneira um tanto quanto óbvia e
literal, a ordem seqüencial de seus capítulos coincidindo com a própria
localização do centro. Assim é que encontramos o centro de Infância no capítulo
intitulado “Cegueira”.
É válido relembrarmos que a composição e conseqüente publicação do
livro se deu depois de seus capítulos terem sido publicados em jornais e
revistas, de 1938 até 1945. Antes disso, porém, em janeiro de 1936, o escritor,
enquanto se encontrava às voltas com as revisões de Angústia, vislumbrara, no
banheiro de sua casa, “uma ótima idéia para um livro”:
Ficou-me logo a coisa pronta na cabeça, e até me apareceram os títulos dos
capítulos, que escrevi quando saí do banheiro, para não esquecê-los. Aqui
vão eles: Sombras, O Inferno, As Almas, Letras, Meu avô, Emília, Os
Astrônomos, Caveira, Fernando, Samuel Smiles. Provavelmente me virão idéias
para novos capítulos, mas o que dá para um livro. Vou ver se consigo
escrevê-lo depois de terminado o Angústia. Parece que pode render umas
coisas interessantes. (Ca, p. 161).
Infância, então, começa a ser escrito (a se escrever) quando Angústia está
sendo finalizado; aquele livro é uma continuação deste, posto que a infância
está em Angústia, bem como a angústia está em Infância. Aquilo que estava
41
escrito em um livro, ressurge em outro, segundo uma economia, segundo uma
repetição de marcas, traços, impressões que passam da vida do escritor aos seus
escritos, promessas da obra que ele busca de forma obstinada, incessante e, ao
mesmo tempo, paciente, posto que se trata de um escritor nada afeito a
improvisos, meticuloso, sempre a revisar seus escritos, sempre atento aos
detalhes da criação, mesmo quando, em determinados períodos de sua vida
(quando, sem outras ocupações,
13
dependendo exclusivamente do ofício de
escritor) às voltas com imposições editoriais, com apertos financeiros.
O processo de Graciliano escrever é marcadamente artesanal: a inteligência
estimula uma sensibilidade, muito pouco servida pela imaginação, a
reconstituir e recriar fatos e personagens, e organiza todos esses materiais
em seqüências narrativas entrecortadas por reflexões e diálogos.
A obra é montada a partir de elementos simples, os capítulos-contos, e
trabalhada peça a peça, tendo o seu autor plena consciência de realizar
tarefa de artífice e não empresa épica de gênio que, movido por inspiração
à maneira romântica, tudo modelasse num sopro impetuoso. (Cristóvão,
1986, p. 150).
A primeira edição de Infância é de 1945. Uma de suas provas gráficas
trazia um título mais longo do que o definitivo: Impressões da infância. O seu
centro, seu ponto de fascínio, é o capítulo “Cegueira”. Além do curioso fato de
este capítulo constituir-se como o meio exato do livro (levando-se em
consideração que, antes dele, estão dezenove capítulos e, depois, outros
dezenove, e, além disso, que ele começa na página 138, que é a metade das 276
13
Na verdade, sem outra fonte de renda, pois Graciliano, mesmo nos tempos em que fora
prefeito ou funcionário público, somente se ocupou da escrita, pelo menos em um sentido mais
restrito do verbo, que ele mesmo usa para indicar essa entrega a uma tarefa incerta e infinita.
42
totais, pelo menos na 22
a
edição),
14
tomamos esse capítulo como centro,
principalmente, no sentido de que ele atrai para si um ponto (um objeto)
presente ao longo de toda a narrativa o olhar explorando-o em seu limite
a cegueira.
“Além dos limites do relato intitulado ‘Cegueira’, o olhar é uma questão
de fundo em Infância, em descrição, narração ou reflexão, e, em maior ou menor
intensidade, verificável em todos os tipos de textos de Graciliano Ramos.
(Leitão, 2003, p. 103).
15
Essa “questão de fundo”, nós a tomamos aqui como
questão de centro: a cegueira do menino difunde-se pelo livro, como escrita da
angústia.
Angústia de ser alvo de um olhar vigilante, castrador e punitivo, de se ver
fragmentado, como um corpo que não se conhece, por lhe faltar o espelho e sua
solicitação de olhar. Assim se perde o menino, em seu mundo de nuvens e
sombras, entre o olhar que lhe é lançado e o olhar que lhe falta. “O que se trata
de discernir [...] é a preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em
minha existência sou olhado de toda parte.” (Lacan, 1998, p. 73).
14
Essas coincidências numéricas podem talvez não interessar aos leitores de Graciliano Ramos,
que elas, de alguma forma, apontam para certo misticismo distante do horizonte desse autor.
Por outro lado, tendo sido ele um escritor preocupado com a composição do livro em todas as
suas etapas, é provável que tenha percebido o lugar central e divisor ocupado pelo episódio
“Cegueira”. Além disso, em sua obra, dá-se importância a alguns números: em Angústia, o
número do bilhete lotérico, “16.384”, que aparece no final do livro como possibilidade de
redirecionamento da vida do protagonista, Luís da Silva, e que fora cogitado para ser o título do
livro; em Memórias do cárcere, o “3535”, ou “3335”, que, na lógica do presídio, em princípio
serviria para identificar o personagem-narrador, mas que, na verdade, despersonaliza-o; nas
Cartas
, o “13” a perseguir o escritor em sua viagem a São Paulo.
15
Sobre o tema do olhar, ou melhor, da cegueira, o autor publicou o artigo “Cegueira e olhares
em Borges e Graciliano Ramos” no livro Borges em dez textos, organizado por Maria Esther
Maciel e Reinaldo Marques.
43
A doença estirava-se – e eu sofria duplamente os efeitos dela. Parece que se
aborreciam por meu organismo teimar em conservar-se achacado e mofino.
De fato não havia medicação, mas punham-me às vezes nos olhos uma
camada pegajosa de clara de ovo batida, imobilizavam-me na cama de lona.
Isolavam o óro deteriorado: a clara transformava-se numa espécie de
resina, grudava as pestanas. Não me queixava nem gemia. Debaixo
daquela máscara, as feridas resguardavam-se dos mosquitos, mas as dores
eram atrozes, o calor imenso. Picadas multiplicavam-se: mãos invisíveis
metiam-me pregos finos na cabeça. (I, p. 141).
O que vem do outro, como remédio possível para o mal dos olhos do
menino, é clara de ovos, é a claridade do enigma, a origem a ser decifrada. Mas
não enganos, o ovo possui seu lado de indefinição, a origem mantém-se
desconhecida. Por isso a clara do ovo age apenas como paliativo (por atuar
sobre o sintoma, não sobre a causa), resguarda o menino do incômodo dos
mosquitos, mas não o livra da dor. Seguindo adiante, a clara transforma-se em
cola, resina que tampa, que apaga a luz, a claridade do olhar. Ao ovo feito só de
clara, falta-lhe a gema, o centro, o umbigo da vida.
Depois vêm as picadas, as mãos invisíveis, os pregos na cabeça, o medo da
escuridão. “Agora a sombra espessa cobria tudo.” (I, p. 141). Agora não é o
menino a sentir dor, mas a sombra da dor do menino a persistir, a recobrir o
texto da memória. “O muro se desmoronava, como o outro se desmoronara
anos atrás.” (I, p. 141). O muro de anos atrás separava o quintal da casa do
lugar onde ficava o descaroçador de algodão do Cavalo-Morto, e, ao desabar,
causara primeiro o embaçamento da visão do menino (“uma nuvem de poeira”)
e, logo depois, o seu alargamento (vê-se “o quintal subitamente crescido,
fundos de casas, o descaroçador do Cavalo-Morto”). (I, p. 72). O “agora” das
44
sombras tanto se refere à situação do menino, em seu momento de cegueira,
buscando na memória as imagens passadas, quanto ao mecanismo de
rememoração do narrador-escritor que voltas, que vai e volta ao
descaroçador e suas “nuvens de algodão”:
De novo surgiam as plantas meio esvaídas, o descaroçador do Cavalo-
Morto, nuvens de algodão esvoaçando. A igreja, os postes e os arames do
telégrafo, aves e flores, a fachada luminosa, transeuntes, dissipavam-se,
vagos e distantes: no rigor do verão envolviam-se numa densa garoa de
inverno. (I, p. 142).
Apesar de, na composição do livro, reconhecermos uma ordem temporal
que segue o crescimento do menino, começando com a sua lembrança das
pitombas (imagem da memória a inaugurar a narrativa), aos dois ou três anos, e
finalizando com ele, já adolescente, a ler novelas russas – podendo, por isso, ser
Infância classificado como “livro de memórias e romance de formação”
(Miranda, 2004, p. 52) –, , nesse mesmo livro, uma prática memorialística
“que se distingue pela natureza fragmentária, nebulosa e lacunar da
reminiscência”. (Miranda, 2004, p. 53). Dessa maneira, ao acompanharmos o
percurso desse menino, temos, não raro, a comprovação de que a escrita da
memória trabalha com a lembrança e o esquecimento, o visível e o invisível, o
grito e o silêncio.
Quanto à formação literária do menino, o enredo concentra-se em suas
primeiras e desconcertadas práticas de alfabetização e leitura, e, a partir do
momento de cegueira, da percepção do “valor enorme das palavras” (I, p. 141).
45
Mas a rememoração é trabalhosa e, muitas vezes, dolorosa. As impressões da
infância retornam como restos que trazem consigo a angústia. Daí, os
acontecimentos passam por filtros que os ofuscam, as imagens nos chegam
quase sempre nebulosas, enfumaçadas.
O capítulo que abre o livro intitula-se “Nuvens”, e nele surgem as
primeiras letras (o b-a-bá, o abecedário); o pai e a mãe, “entidades próximas e
dominadoras”, “grandes, temerosos, incógnitos” (I, p. 11, 14); outros familiares
e entes próximos à família; e, finalmente, um redemoinho trazendo “nuvens de
poeira”:
Nuvens de poeira enrolaram-se em briga feia, escureceu, um rumor
diferente dos outros rumores cresceu, espalhou-se, e no meio da terrível
desordem um couro de boi espichado quebrou o relho que o amarrava a
um galho e voou no turbilhão. (I, p. 13).
O turbilhão da cena prolonga-se em um trecho que parece fundir dois
tempos distintos, o da cena rememorada e o do próprio ato de rememorão,
tendência recorrente ao longo do capítulo e de todo o livro. “Composto de
fragmentos narrativos e estilhaços de imagens, o capítulo ‘Nuvens’ é uma sorte
de poética da memória, do modo pelo qual ela atua e dos interditos que lhe são
inerentes [...]”. (Miranda, 2004, p. 54).
Uma senhora magra, minha indistinta mãe, tentou com desespero fechar
uma porta balançada pela ventania. Folhas e garranchos entraram na sala,
um bicho zangado soprou ou assobiou, a mulher agitou-se pendurada na
chave. Findo o despropósito, vi a pessoinha com a mão envolta em panos.
Um dedo inchou demais, e foi necessário que lhe cortassem o anel com
lima. Em seguida perdi a moça de vista. E a letargia continuou. (I, p. 14).
46
Na cena descrita, uma passagem de um tempo a outro: em seguida a
quê se perde a moça de vista? Qual letargia continua? Eis uma memória que
se constrói sombria, nebulosa, porque entre sombras e dúvidas obtuso,
silencioso, miúdo, insignificante – vive o menino. Nesse trecho, há ainda a
presença da figura materna, em mais um de seus retratos que muito chamam a
atenção dos leitores do livro, por se tratar de uma mãe áspera, rude, incapaz de
auxiliar o menino na descoberta de si e do outro.
Ao longo do livro, encontraremos recorrentemente situações em que os
campos semântico e imagético se fecham em torno de nuvens, manchas,
sombras, nódoas, névoa, neblina, fumaça, trevas, escuridão até chegarmos ao
centro, até encontrarmos o menino temporariamente cego e, por estar nesse
estado, com a audição aguçada: “os ruídos avultavam, todos os sons adquiriam
sentido”. (I, p. 142). Na verdade, a voz parece ocupar, no livro, tal como o olhar,
o lugar de resto, de objeto
16
que, inesperadamente, entra em cena.
Tudo se passa, em efeito, como se olhar e escutar não se harmonizassem,
exercendo suas forças em contraponto: fechar os olhos não é a melhor
maneira de aguçar a escuta, com se fosse necessário tornar-se cego, de
alguma forma, para deixar o caminho livre para a audição? [...]
Inversamente, o olhar, em seu gozo de fascínio, siderado pela ocasião...
escuta, mas, de muito olhar, não compreende grandes coisas. (Assoun,
2001, p. 7).
16
“Lacan opera de certa forma a promoção desses dois ‘objetos’, referindo-se ao olhar e à voz
entre os objetos pulsionais, na mesma qualidade
dos objetos freudianos’ paradigmáticos, que
são os objetos oral e anal e o ‘objeto fálico’. Freud os teria omitido? [...] Tudo indica que os
registros escópico e vocal constituem desde a origem duas coordenadas maiores da experiência
clínica freudiana.” Assoun, 2001, p. 6.
47
Assim como o olhar surge, na maior parte das vezes, de imensa escuridão
(apesar de, em raros momentos, partir de brancas paisagens),
17
a voz, nas
lembranças do menino, atualiza afetos extremos: podemos ouvi-la, por
exemplo, na pronúncia que lhe desperta interesse, nas cantigas que o acalmam e
que compõem, ao lado dos livros, o seu repertório de contador de histórias
(parte dessas cantigas, inclusive, transcrita no próprio texto). Porém, na maioria
das vezes iremos ouvi-la extremada nos gritos (do avô, do pai...) que
amedrontam, no silêncio que desnorteia, ecoando, quase sempre, em gemidos e
choros ou mesmo na própria perda da fala pelo menino.
O que não quer dizer que esse grito tenha ficado para sempre como
impedimento à fala. O texto das memórias, em si, faz das experiências do olhar,
do grito, da escuridão, desvios de linguagem, ou seja, vai a um extremo, “a um
fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que não pertencem a
língua alguma. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Idéias que o
escritor e ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem.”
(Deleuze, 1997, p. 16).
17
Embora apenas apareça discretamente em alguns episódios do livro, o carneiro branco que
acompanha o menino chama-nos a atenção, como se aquele animal fosse, para o menino, o
companheiro “em branco”, aquele que, ainda que não escrito, o acompanha com sua branca
presença.
48
Ainda assim, as experiências ligadas aos extremos da voz
18
traduzem-se
em dor, em feridas que se abrem no corpo do menino e no tecido das
impressões da infância. Uma imagem muito próxima àquela produzida pela
dor ocular (“mãos invisíveis metiam-me pregos finos na cabeça”) aparece no
capítulo “Um cinturão”, no qual a cólera do pai, manifestada primeiramente
através de gritos, transforma-se, para o menino (acusado, pelo pai, de ter
sumido com um cinturão), em algo quase insuportável:
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia:
ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na
cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O
coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a
vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas dentro. A
horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
(I, p. 33).
Todos esses distúrbios (disritmia cardíaca, afasia, perda da visão)
aparecem no texto como atualização de um desconforto que se gravara no
corpo do menino, angústia que podemos reconhecer na imagem do furo
produzido pelo ferro. No capítulo, a ameaça direta vem do pai, mas podemos
supor que a mãe também reaparece, no ferro que está em seu nome Maria
Amélia Ferro Ramos –, instrumento (nome) que deixa marcas profundas,
manchas que não se apagam da retina do menino. A ferida aberta a ferro resiste,
nem mesmo a escrita consegue fechá-la. Ao contrário, a escrita é um meio pelo
18
“Usamos a voz também para rir ou chorar, para tossir ou espirrar: precisamos da voz para
gemer e para suspirar (entre prazer e sofrimento). Mas é exatamente no falar que a voz encontra
[...] sua vocação própria.” Assoun, 2001, p. 7.
49
qual a ferida se abre, tendo essa abertura a função (ou a pretensão) de evitar a
presença ou o acúmulo de pus no corpo do escritor.
19
Assim, na leitura de Infância, o que nos chama a atenção é o fato de o texto
se construir basicamente a partir de marcas recorrentes, pequenos traços que
sobram, “coisas adormecidas”, talvez encobertas pelo “efeito mortífero da
linguagem sobre o falante” (Laia, 2001, p. 91) e despertadas pela presença
(ausente) da coisa, por aquilo que resta da queda do olhar e da voz, tal como no
conceito de objeto a formulado por Jacques Lacan:
O objeto a [...] é o conceito lacaniano que aponta e nomeia o retorno no real
do gozo esvaziado da Coisa pela lei simbólica, ou seja, o resto da operação
simbólica promovida pela lei. [...]
A Coisa em psicanálise é o objeto perdido, que, na verdade, jamais existiu.
E, contudo, o sujeito deve reencontrá-lo, sem, no entanto, jamais conseguir,
constituindo a falta estrutural do desejo. (Quinet, 2002, p. 55).
Na busca pelo objeto perdido, o olhar traz consigo a falta, o vazio,
separando-se do olho enquanto órgão, ou, então, na tentativa de encobrimento
da falta, inscreve-se na papila óptica, na “mancha cega sobre a retina que marca
o local em que o nervo óptico penetra no globo ocular” (dicionário Houaiss da
língua portuguesa) escotoma que, ao ser escavado pela rememoração, revela,
deixa entrevisto o real.
20
Em Infância, o escotoma está associado a uma imagem
assustadora: o buraco da órbita de uma caveira. Diante desse buraco, o menino
19
A ferida, o corte, o pus serão temas de dois contos de Graciliano Ramos, “O relógio do
hospital” e “Paulo”, e estarão presentes também em algumas passagens de
Memórias do cárcere
.
Há, nesses contos e nessas passagens, reminiscências de uma operação sofrida pelo autor, para
sanar um mal na região ilíaca causado por uma queda.
20
Sobre o termo escotoma, ver “O fetichismo”, de Freud.
50
se vê, também ele, esvaziado, mortificado, como se o mundo das fantasias não
lhe fosse mais acessível, como se o mundo das palavras lhe faltasse, restando-
lhe somente a dureza horrível dos ossos, a dura realidade da morte.
Pensamentos sombrios invadem o menino a partir de uma visita que ele
faz ao ossuário de um cemitério. Nesse depósito de ossos humanos, o olho
vazio da caveira espia-o, acompanhando-o até a casa, até que ele, em um exame
de seu próprio corpo, vê-se transformado em caveira. “O que mais me
impressionava eram as órbitas: a pesquisa minuciosa prosseguia e achava-as
desertas. Ocas e sombrias, como as outras. E o resto? Não havia resto. Ali não
havia nada. Aqui não haveria nada.” (I, p. 186).
A “visagem terrível” de uma caveira aparece em outro capítulo do livro,
“Um incêndio”, no qual é descrita a imagem de uma mulher negra que morrera
queimada e que fora vista pelo menino, no chão, ainda em meio às fumaças e
cinzas do incêndio, deixando-o perturbado. “Não enxerguei pormenores: vi
apenas, de relance, a dentadura, as órbitas vazias, o fluxo purulento. [...]
Cheguei a casa precisando confessar-me, livrar-me da recordação medonha. [...]
Arrepiava-me, repetia a descrição, excitava-me tanto que meus pais tentaram
acalmar-me, reduzir o sinistro.” (I, p. 92).
O olhar vazio, o sinistro, o buraco da órbita que amedronta o menino,
deixando-lhe temíveis impressões, aparece ainda na figura do padre João
Inácio, especificamente, em seu olho de vidro:
51
[...] uma sombra às vezes nos toldava a alegria: a recordação do Vigário. Na
cozinha e na sala de jantar pintavam-no terrível, uma espécie de lobisomem
criado para forçar-nos à obediência. Citavam-se os despropósitos dele na
igreja. Isto não nos interessava. Tínhamos, porém, razão para temer aquele
homem tenebroso por fora e por dentro. Não ria. O olho postiço, imóvel
num círculo negro, dava-lhe aspecto sinistro. (I, p. 64).
O olho de vidro do padre e as caveiras causam, ao menino, efeitos
parecidos: arrepio, aperto na garganta, disritmia cardíaca, paralisia dos membros.
“A figura medonha prendia-me e o bugalho parecia querer sair da mancha que
se alargava na cara magra, saltar em cima de mim.” (I, p. 67). Essa experiência
aparece em um relato de horror, como se a encenação desses medos, via
linguagem, servisse como uma defesa diante da angústia, um redirecionamento
de seus efeitos por vezes nocivos, um ganho estético, prazeroso, ainda que
precário, incompleto e, em última instância, falho.
Assim, junto às sombras, às nuvens que ofuscam os olhos, percebemos em
Infância o sinistro, o assustador. Uma última passagem, a de um aluno em sala
de aula, numa escola que surge como lugar de opressão e castigo, confirma a
presença do horror que mortifica: “O lugar de estudo era isso. Os alunos se
imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia
vi moscas na cara de um, roendo o canto do olho, entrando no olho. E o olho
sem se mexer, como se o menino estivesse morto.” (I, p. 200).
Esse olhar parado, cadavérico, separa-se do olho, e o sujeito que o vê “não
é o da consciência reflexiva, mas o do desejo. Acredita-se que se trata do olho-
ponto geometral, quando se trata de um olho completamente diferente – aquele
52
que voa no primeiro plano dos Embaixadores”.
21
(Lacan, 1998, p. 88). O olho que
voa, na pintura a que se refere Lacan, é o olho da caveira que pode simbolizar
“a falta central expressa no fenômeno da castração”. (Lacan, 1998, p. 77). O olho
que o menino vê é de vidro, tampão artificial sobre o vazio da órbita. Ou, então,
quando nem mesmo esse tampão está presente, e o que aparece são órbitas
vazias, são furos nos olhos.
Com isso, o que o escritor faz é olhar para o ponto cego, o vazio do olho, o
furo na retina, a região das sombras. Sombras de si, sombras da opressão, de
um olhar que vigia, julga e pune. O escritor procura o mundo sombrio, sabendo
que a esse mundo ele poderá olhar de viés, com seu olho torto, assim como
Orfeu, que olha Eurídice sabendo que seu olhar a fará desaparecer.
A imagem que se fixa no ponto cego do olhar é como a imagem de
Eurídice para Orfeu. Ao olhá-la, Orfeu a vê em seu desaparecimento, mas isso é
o que lhe interessa – captá-la na noite dos tempos, segundo Blanchot. Isso
interessa ao escritor: transformar a visão de Eurídice o último instante do
olhar – em obra.
Na escrita de Graciliano Ramos, encontramos o fascínio pela letra em seu
paradoxal estado de sombria luminosidade. O escritor, ao olhar para si, ao
simular esse olhar, que sempre é duplo e torto, seu corpo e sua sombra, a
21
Quadro pintado em 1533 por Hans Holbein que serve a Lacan como base para o seu seminário
sobre “os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”. A partir da imagem da caveira, que
aparece em primeiro plano, Lacan vai designar o olhar como objeto a, resto que escapa à
simbolização, justamente por ser símbolo da falta. Ver O seminário, livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, de Jacques Lacan.
53
não-inteireza, a divisão do sujeito e a angústia dessa divisão. Da angústia
poder se escrever como uma estranha presença, como algo íntimo, porém
desconhecido.
O O L H O D A L U Z
Seja como for, existem olhares fascinantes. Apesar de todas as trevas, o
menino de Infância, talvez ainda sem a resposta à demanda do outro, talvez
ainda sem saber situar seu desejo enquanto desejo do Outro, vislumbra como
Alexandre no chão o olho que lhe tamparia (ainda que ao avesso) o buraco
do rosto, como Édipo, que arranca os próprios olhos para não ver (ao menos
com os olhos) a tragédia que lhe dera o destino – uma saída, uma luz no fim do
túnel, é como se costuma dizer. Em meio à “dura aprendizagem da norma
familiar e da lei social, incorporadas como instâncias privilegiadas da opressão”
(Miranda, 2004, p. 55), ele se apega aos hábitos e aos ofícios “inúteis” de alguns
seres que povoam o seu mundo, como o de cantarolar uma cantiga, engraçada e
lamentosa, do soldado José da Luz, que conquista a sua amizade com uma
“conversa gratuita”:
Éramos duas insignificâncias, uma loquaz, buliçosa, outra cheia de sonhos,
emperrada. [...] Esse mestiço pachola teve influência grande e benéfica na
minha vida. Desanuviou-me, atenuou aquela pusilanimidade, avizinhou-
me da espécie humana. Ótimo professor. Acho, porém, que era mau
funcionário. O Estado não lhe pagava etapa e soldo para desviar-se dos
54
colegas, sujos e ferozes, encher com lorotas as cabeças das crianças. Um
anarquista. (I, p. 103).
Outra personagem que está, para o menino, no campo da luz, da
iluminação positiva,
22
é o avô paterno, apresentado no capítulo “Manhã” como
voltado a ofícios “inúteis”, “insignificantes”, como a música (“especializara-se
no canto”) e a fabricação de urupemas que lhe serviam como “meio de
expressão”. Na descrição do avô, como em outras passagens do livro, acontece
uma junção dos tempos, o tempo do menino desaparece e, em meio a uma
sensação de apagamento, de falta de luz, o tempo do narrador também
desaparece, e nesse vazio surge o plural nós como a designar o
desconhecido, em mais uma das muitas e valiosas passagens em que o texto, em
uma tentativa de aproximação do que só se aproxima pela distância, volta-se
para aquilo que se registra como tentativa de decifração, revelação da obra,
esforço para torná-la talvez clara e compreensível, ao mesmo tempo em que se
reafirma o seu lado noturno, sua outra noite, sua insônia.
22
Diferente, talvez, daquela luminosidade marcada pelas referências ao verão, que, apesar de
ser a estação que se opõe às névoas, ao tempo cinzento do inverno, parece reverberar um
sentido angustiante ligado ao olhar (algo como: eles verão), além de produzir o efeito de
“claridades ofuscantes”, tal como na fotografia, assinada por Luís Carlos Barreto e JoRosas,
do filme Vidas secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Essa oposição verão / inverno é
recorrente em Infância, havendo, inclusive, um capítulo (o terceiro do livro) intitulado “Verão”,
no qual “figuras e acontecimentos se recortam mais nitidamente, embora a luminosidade que
o título expressa não desfaça as incertezas nem as lacunas do mundo enfim rememorado [...]”.
(Miranda, 2004, p. 54). Em Vidas secas, esse tema funciona como uma pré-estrutura para a
narrativa, que segue o ciclo das duas estações da seguinte maneira: verão inverno verão. É
interessante o fato de que, no final de
Vidas secas
, o verão traz a Fabiano e a sua família “um
mundo coberto de penas”, ou seja, a escuridão. Curiosamente, “O mundo coberto de penas” foi
o primeiro título que Graciliano deu ao romance, o alterando para Vidas secas em uma prova
de prelo, a partir da sugestão do editor, José Olympio.
55
Tinha habilidade notável e muita paciência. Paciência? Acho agora que não
é paciência. É uma obstinação concentrada, um longo sossego que os fatos
exteriores não perturbam. Os sentidos esmorecem, o corpo se imobiliza e
curva, toda a vida se fixa em alguns pontos – no olho que brilha e se apaga,
na mão que solta o cigarro e continua a tarefa, nos beiços que murmuram
palavras imperceptíveis e descontentes. Sentimos desânimo ou irritação,
mas isto apenas se revela pela tremura dos dedos, pelas rugas que se
cavam. Na aparência estamos tranqüilos. Se nos falarem, nada ouviremos
ou ignoraremos o sentido do que nos dizem. E como freqüentes
suspensões no trabalho, com certeza imaginarão que temos preguiça.
Desejamos realmente abandoná-lo. Contudo gastamos uma eternidade no
arranjo de ninharias, que se combinam, resultam na obra tormentosa e
falha. (I, p. 22).
Esses e outros personagens (Mário Venâncio, Emília, Laura), digamos,
iluminados, trazem ao menino, de uma maneira indireta, a experiência da arte.
A cantiga de José da Luz (bem como várias outras que se reproduzem em
Infância, verdadeiro apanhado de várias vozes), as urupemas do avô, a lição de
leitura da prima Emília, as idéias e o jornal de Mário Venâncio e a sintaxe de
Laura
23
são exemplos das voltas que o livro dá em torno desse objeto, também
ele, iluminado – a letra.
23
Mário Venâncio dá título a um capítulo da parte final do livro. É professor de geografia, ator e
leitor da literatura realista e naturalista, diferente daquela até então conhecida pelo menino, que
ainda se via habituado à biblioteca romântica de Jerônimo Barreto. O jornal fundado por Mário
Venâncio é O Dilúculo, no qual Graciliano Ramos publicou pela primeira vez os seus escritos, a
começar pelo poema “O pequeno mendigo” (que, na verdade, no jornal saiu com o título “O
pequeno pedinte”). A descrição de Mário Venâncio em Infância merece atenção, por ter sido sua
figura de literato comparada à de um rato: “o rosto fino como focinho de rato, modos de rato
um gabiru ligeiro e cabisbaixo, a dar topadas no calçamento.” (I, p. 237). Os literatos e os ratos
(ou os liter-ratos) serão figuras constantes também em
Angústia
e essa ligação entre as letras e os
ratos pode ser explorada como uma das imagens (negativas) da literatura disseminadas na obra
de Graciliano Ramos.
Laura título ao último capítulo de Infância. Com onze anos, o menino sente certas mudanças
em seu corpo, e vivencia o amor por uma menina inteligente, influenciado pela leitura (para ele
sombria, proibida) de O cortiço e pelas muitas dúvidas geradas por essa associação entre a
menina e a história do livro. Mais adiante, voltaremos a essa personagem, que nome ao
capítulo final do livro.
56
A letra iluminada é a letra descoberta na primeira leitura silenciosa,
incentivada pela prima Emília, que, para encorajar o menino (inseguro, fraco,
impossibilitado de “compreender as palavras difíceis, sobretudo na ordem
terrível em que se juntavam”) (I, p. 203) a se arriscar sozinho na decifração das
palavras, usa o artifício de comparar astrônomos a leitores:
Emília combateu a minha convicção, falou-me dos astrônomos, indivíduos
que liam no céu, percebiam tudo quanto no céu. [...] Ora, se eles
enxergavam coisas tão distantes, porque não conseguiria eu adivinhar a
página aberta diante dos meus olhos? Não distinguia as letras? Não sabia
reuni-las e formar palavras? (I, p. 203).
Contrapondo à visão distante do astrônomo o seu olhar de perto, o
menino pôde, enfim, aventurar-se sozinho na decifração de “histórias tristes,
em que homens perseguidos, mulheres e crianças abandonadas, escuridão e
animais ferozes”. (I, p. 204). Aos nove anos, ele conhece a leitura silenciosa das
letras impressas, como se somente aí, no universo das brochuras amarelas, dos
romances de letras miúdas, algum júbilo lhe fosse possível. Desde então, o olhar
de perto passa a ser o mecanismo possível para que o escritor veja o longe, o
que está lá, atrás da névoa, depois da nuvem, no vapor da letra.
O O L H O D E L A U R A
Laura é uma menina sabida. Sabe sintaxe, sabe leitura. Laura é assim, tão
especial que virou capítulo de livro não um capítulo qualquer, o final, não de
57
um livro qualquer, mas de Infância. “Aos onze anos experimentei grave
desarranjo.” (I, p. 253). Nas páginas (no corpo) de “Laura”, o limite da infância,
o fim de uma fase, o começo de outra. “Atravessando uma porta, choquei no
batente, senti dor aguda. Examinei-me, supus que tinha no peito dois tumores.
Nasceram-me pêlos, emagreci – e nos banhos coletivos do Paraíba envergonhei-
me da nudez.” (I, p. 253). O momento em que o menino se veste com o pudor
da sexualidade juvenil é descrito, assim como outros do livro, com os sinais da
angústia. Porém, nesse mesmo momento, ao atravessar a última porta da
infância, o livro (o corpo) encontra uma saída um bom uso da angústia –,
24
pouco comum nos finais dos livros de Graciliano Ramos.
Primeiro, o menino teve que suportar a ansiedade e a insônia, teve que
amanhecer com olheiras fundas, sufocado por aparições noturnas; depois,
precisou de censurar suas próprias leituras, tendo sido O cortiço o livro
“proibido” embrulhado “em muitas dobras de papel grosso” e escondido
“por detrás dos outros volumes, na prateleira inferior da estante”, tudo isso por
causa das “passagens cruas” do romance: “a contaminação me horrorizava”. (I,
p. 256).
Por fim, o menino presencia a divisão da figura feminina. Laura ora lhe
aparece, como nos romances mais pudicos, sem corpo, ora, em seus sonhos
24
“Um bom uso da angústia”: expressão usada pelo professor Ram Mandil na disciplina
“Graciliano Ramos: a angústia na literatura e na psicanálise”, ofertada na graduação do curso
de Letras da UFMG, no primeiro semestre de 2005. Esta, na verdade, parece ser a única via de
“tratamento” (seja literário ou psicanalítico) da angústia: o seu bom uso, ao invés de sua
impossível eliminação.
58
mais aflitivos, como “um ser membroso e espesso, todo carne e osso”. (I, p. 257).
Essa divisão (a maneira como o menino a experimenta) acaba por levá-lo ao
“tratamento” ofertado por Constantino, caixeiro da loja de seu pai: “quis
apresentar-me a Otília da Conceição”. Recusada numa primeira ocasião, na
segunda tal proposta se aceita pelo menino, que sucumbe ao insistente
convite do caixeiro: “E o moço renovou o conselho, citou o Dr. Garnier,
ameaçou-me com a loucura. Realmente a obsessão me havia endoidecido um
pouco. Tergiversei, relutei, sucumbi.” (I, p. 259).
Com isso, a figura feminina, mais uma vez, ganha seu duplo. O culto por
Laura acaba na cama de Otília, onde o menino vai saber como é deitar-se com
uma mulher, experiência que lhe chega não sem seu ponto cego, sua porção de
angústia, de medo diante do desconhecido:
Um dia, ao lusco-fusco, demos um passeio, enveredamos pela Rua da
Palha, entramos numa sala escura. Constantino falou baixo a alguém e
retirou-se. Ao cabo de instantes vi-me num quarto, examinando, sério e
encabulado, fotografias e santos que ornavam a parede, caixas de pó-de-
arroz e frascos expostos na mesa forrada de papel. Otília da Conceição, à
beira da cama, esperava em silêncio. Arriei sobre a mala pequena e, em
silêncio também, comecei a descalçar-me. A vista se turvou, os dedos
úmidos tremeram, o cordão do sapato deu um cego. Esforcei-me por
desatá-lo: molhava-me de suor, cada vez mais se complicava. E o meu
desgosto era imenso. (I, p. 259).
Finalmente, após a doença, o menino desata seu nó. “Capengando, abri a
estante, exumei O Cortiço, desempacavirei-o, restituí-o à convivência dos outros
romances. Não me inspirava curiosidade. E não era objeto de aversão.” A
saída final se pelo humor: “História razoável, com algumas safadezas para
59
atrair leitores.” (I, p. 260). Sua história está escrita, seu livro – o do prenúncio de
Mário Venâncio se escrevera. O cortiço, de Aluísio Azevedo, e Infância, de
Graciliano Ramos, acabam juntos. “Embrenhava-me agora em novelas russas.”
(I, p. 260). A literatura (o livro da infância que se es a escrever), ao final,
possibilita uma nova relação do escritor com o corpo (o enigma, a palavra)
feminino. “A figura que me perseguia à noite serenou e fugiu. E a outra, nuvem
colorida, evaporou-se.” (I, p. 260).
Assim, acaba-se em vapor o que, ao longo de uma infância (ao longo de
uma vida, ao longo de um livro), foi nuvem, névoa, neblina. O vapor é ar
quente contra o sufoco, contra a falta de ar. O vapor é a nuvem, menos a
angústia, ou a angústia submetida à operação de subtração, que, no caso, nunca
é exata, nunca é total: há sempre um resto de angústia, sempre há a angústia do
resto, do corte, da falta (resto que espresente no texto, que, muitas vezes, a
sensação que temos, na leitura, passa pelo aperto, pelo sufoco). Mas, sendo
vapor, para ela há tratamentos possíveis, o vapor das palavras sendo, no caso, o
mais eficaz deles.
A começar pelo título do capítulo, que é idêntico ao nome da personagem,
tudo indica que haverá um “final feliz” para a angústia da infância. “Menos
felizes (diga-se de passagem) são certos jogos verbais em moda, como a
interpretação simbólica dos nomes próprios a partir da etimologia”. Essas
palavras, do mestre Antonio Candido, aparecem em um texto de 1974, que é um
estudo sobre O cortiço, de Aluísio Azevedo, e também uma crítica à leitura
60
desse mesmo livro feita, em 1973, por Afonso Romano de Sant’Anna,
25
e
servem-nos, aqui, como alerta contra a obviedade dessa prática. No entanto,
não há como evitar o sentido que nos salta aos olhos, em Infância: “Laura”, o
capítulo final, vem coroar um ato de passagem, vem louvar o efeito que a
escrita da infância produziu sobre aquele que a escreveu (ou a leu). “Laura” (a
menina e seus duplos, a menina e o capítulo) é quem gera as folhas da coroa.
Confundindo a moça morena, com “as tranças negras, os olhos redondos e
luminosos”, com as “donzelas finas, desbotadas, louras, que deslizavam à beira
de lagos de folhetim” (I, p. 255), o menino constrói uma imagem perfeita para a
sua veneração. Laura, a morena, transforma-se em loura literária. Porém, a
literatura loura é insuficiente, porque romântica, porque incapaz de estancar as
inquietações noturnas que o vulto da mulher traz ao menino que conhecia
Otília e O cortiço, ainda que não pudesse revirar, sem culpa, seu corpo
amarrotado, suas folhas de papel.
Para que aconteça a passagem de menino romântico a leitor de Aluísio
Azevedo e de novelas russas, passagem que anunciará o surgimento de um
escritor, Laura deve migrar dos folhetins para a cama de Otília. À beira dessa
cama, o menino, com a vista turva, os dedos trêmulos e úmidos, terá que
desatar o nó de seu sapato. Nó cego que não se desata, que não se pode desatar,
25
Tomamos conhecimento desse texto de Antonio Candido por meio de uma resposta de
Afonso Romano de Sant’Anna às críticas do mestre. Ver Sant’Anna, 1977, p. 221.
61
mas que pode ser afrouxado, para que o sapato saia do pé, para que a cama, o
corpo de Otília, seja o lugar onde a angústia se transforma em vapor de escrita.
Não se trata, contudo, de fazer desaparecer a angústia, que é indestrutível
como certa sujeira encontrada nos sonhos do jovem: “Tinha nojo de mim
mesmo. Sujo, precisando água e sabão. Mas isto não me limparia, as manchas
eram indeléveis.” (I, p. 257). Trata-se de fazer com que a angústia possa ser
utilizada no processo de criação. Que a escrita seja o lugar escolhido para o
tratamento da angústia, não somente no sentido de sublimação (pode-se
sublimar a angústia?), mas no sentido de trabalho com os restos, que se tornam
matéria-prima de uma escrita que vem depois de estarem as “ilusões
quebradas, em cacos” (I, p. 257). Assim, concluímos que, em Graciliano Ramos,
há uma escrita dos restos.
Esse debate tende a nos conduzir a algo que diz respeito às propriedades
terapêuticas, por assim dizer, de um texto literário. Até que ponto a escrita pode
tratar a angústia, ou pode diminuir os malefícios cotidianos causados por
neuroses, obsessões, ou pode auxiliar na estabilidade (sempre arriscada) de um
sujeito psicótico? As respostas vêm de pesquisas que, no âmbito da literatura e
da psicanálise, lidam com experiências radicais (Artur Bispo do Rosário, Joyce,
Artaud, Silvia Plath) para mostrar justamente que, além de a arte (a literatura)
conter traços da estrutura psíquica de seu autor, ela pode também
redimensionar sua vida, ou seja, se marcas do autor na obra, há também
marcas da obra no autor.
62
Tudo isso, no entanto, não se dá de uma forma direta ou facilmente
detectável. Por ora, gostaríamos somente de destacar a importância de
pesquisas recentes, como a de Ruth Silviano Brandão, a partir dos estudos de
Jean-Michel Rey sobre certa produção de Antonin Artaud; a de Ana Cecília de
Carvalho sobre os efeitos de “remédio e veneno” da poesia de Silvia Plath; a de
Ram Mandil a partir da escrita de James Joyce, entre outros. Esses trabalhos
permitem-nos falar de uma outra relação entre vida e obra, que não aquela
calcada na vontade de se buscar “verdades” do autor em sua obra, por exemplo,
ou mesmo aquela que busca uma progressão no texto como reflexo de uma
melhora, ou cura, ou mesmo o contrário, uma piora ou uma definitiva perda de
si, na vida.
No mais, é bom notarmos que, em uma obra como a de Graciliano Ramos,
que a princípio pode parecer menos radical, menos atenta aos restos do que as
citadas no parágrafo anterior, por exemplo, também nela encontramos um
enfrentamento do real. Assim, para o que não tem palavra, para representar o
que está fora da representação, Graciliano Ramos desliza por entre
insignificâncias, restos que insistem em seu corpo, e que vão para o corpo do
texto. Aguardente, conhaque, cigarro, cadeia, doença, livro, escrita, mulher e
morte. Eis alguns dos significantes que incidem na veia obsessiva do escritor, e
se escrevem, como uma forma de apaziguamento dos excessos. Daí, é preciso
investigar como esses sinais se ligam na obra de Graciliano Ramos, compondo,
nela, os apertos da angústia.
63
C A P Í T U L O 2
M E M Ó R I A D A E S C R I T A
64
U
M A V E L H A Q U E S T Ã O
Em 1980, Carlos Garbuglio, Alfredo Bosi e Valentim Facioli convidam para
uma mesa-redonda, sob os auspícios da editora Ática, Antonio Candido,
Silviano Santiago, Franklin de Oliveira e Rui Mourão, na intenção de “apanhar
a imagem viva de Graciliano Ramos e o sentido atual de sua obra”.
26
A certa
altura do debate, Silviano Santiago defende a idéia de que a atualidade, ou
melhor, a modernidade de Graciliano estaria no fato de ele, em Caetés,
estruturar “um romance que tem romance dentro de romance” (Garbuglio et
al., p. 445), colocando-se, assim, ao lado de outros grandes escritores que,
ultrapassando qualquer estilo de época (e por trazerem justamente essa
característica, esse traço estrutural do romance dentro do romance), são
modernos. Silviano Santiago, para comparar e exemplificar, cita André Gide,
que, em 1925, causava escândalo com Les faux-monnayeurs,
27
e Eça de Queirós,
“que estava fazendo a mesma coisa nO primo Basílio(Garbuglio et al., p. 445).
Sobre esse apontamento, Alfredo Bosi, também participante da mesa, faz o
26
O resultado dessa mesa-redonda está em Graciliano Ramos, livro organizado por José Carlos
Garbuglio, Alfredo Bosi e Valentim Facioli, publicado na Coleção Escritores Brasileiros da
mesma editora Ática. Esses três organizadores também participam da mesa.
27
O procedimento utilizado por Gide no romance citado classifica-se como mise en abime,
construção em abismo, sendo assim contextualizado por Lúcia Helena Carvalho: “Segundo
consta, teria sido Victor Hugo o primeiro a reconhecer tal recurso e encontra no seu
William
Shakespeare uma descrição bastante precisa do procedimento. [...] Coube a André Gide no
entanto, o mérito de provar que o emprego da construção em abismo ultrapassa em muito os
limites do século XVI, praticando intencionalmente esse procedimento de duplicação em suas
obras, assim como definindo-o, em 1893, como construção em abismo [...]. Quando retoma, em
1920, a teoria exposta em 1893, era ambição de Gide construir um sur roman ouvert, que viria a
ser Les faux-monnayeurs, no qual todas as significações possíveis se dariam de forma infinita.”
Ver Carvalho, 1983.
65
seguinte comentário: “Isso é velho!...”. A resposta de Silviano Santiago ao seu
colega é, então, a seguinte:
É velho, mas ao mesmo tempo é o grande dado da modernidade: você tem
a possibilidade da reflexão sobre o fazer... na própria obra. Se a gente
essa tradição baudelairiana, que passa por Mallarmé, Eliot, Faulkner etc., a
obra da modernidade seria aquela obra que contém em si uma reflexão
própria sobre o fazer dessa obra... de repente, então, Caetés pode não ser
modernista, mas é altamente moderno!... (Garbuglio et al., p. 445).
Esse traço dito moderno está em praticamente toda a obra de Graciliano
Ramos. Do romance à memória, da carta à crônica, perpassam seu texto o livro,
o jornal, a letra, a tinta, o papel, o prelo, a literatura, a leitura, o escritor e o
leitor, enfim, um mundo de palavras simultaneamente material e imaterial,
onde as relações de poder, presentes na linguagem, se mostram abaladas,
deslocadas. Aliás, a esse respeito, nessa mesma mesa-redonda, Silviano
Santiago faz referência à seguinte passagem de Memórias do cárcere, que está
logo no início do primeiro livro (e em quase todos os textos sobre as Memórias):
“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e
acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos
estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos
mexer.” (MC, I, p. 34).
Aqui, a visão da língua (para o escritor, entre outras coisas, instrumento
de trabalho) como cárcere remete o debate à Aula de Roland Barthes, que
recoloca, de outra maneira, a questão do trecho acima citado. Em sua “aula
inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França”, Barthes
66
articula seu pensamento a partir de correntes lingüísticas, filosóficas,
psicanalíticas de sua época; daí certa “antecipação teórica”, graças a uma
“clarividência”, da frase de Graciliano.
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder
que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma
classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao
mesmo tempo, repartição e cominação. Jákobson mostrou que um idioma
se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele
obriga a dizer. [...] Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar,
como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua é uma
reição generalizada.
[...] a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária,
nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir
de dizer, é obrigar a dizer. (Barthes, 1997, p. 13-14)
Com isso, só haveria liberdade (“não só a potência de subtrair-se ao poder,
mas também e sobretudo a de não submeter ninguém”) fora da linguagem, fora
da língua. Esse exterior da língua é dado, segundo os exemplos de Barthes,
somente a cavaleiros da fé, como Abraão em seu sacrifício, ou a super-homens,
segundo uma teoria nietzschiana, existindo, no entanto, ainda uma terceira
saída a literatura, assim nomeada e entendida como uma “trapaça salutar”:
“essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder,
no esplendor de uma revolução permanente da linguagem [...].” (Barthes, 1997,
p. 16).
A literatura, no contexto de Memórias do cárcere, aparece, então, como
combate, uma arma a mais capaz de abalar os poderes. O Departamento de
Ordem Política e Social é uma metonímia do fascismo que prendia o escritor.
67
Diante deste, de dentro do cárcere, dentro do livro, uma “revolução
permanente”, a insistência na escrita como forma de resistir e atacar. Nesse
sentido, é conhecida outra passagem das Memórias, quando, em diálogo com o
diretor do presídio onde se encontrava detido, o narrador revela seu intuito de
pôr no papel o que via e o que vivia ali.
Esses trechos dizem respeito à feliz coincidência entre a frase de
Graciliano e a de Barthes, ao mesmo tempo em que exemplificam aquilo que
Silviano Santiago reconhece como moderno no escritor: o romance dentro do
romance, a escrita sobre a escrita. Na verdade, essa característica, inaugurada,
como foi dito, em Caetés, estende-se por toda a obra (segundo orientações
diversas, obviamente) de Graciliano Ramos, e não passa despercebida aos
críticos leitores dessa obra, seja em artigos, ensaios, dissertações, teses ou livros.
Colocando esse traço moderno como centro das atenções, estudando-o segundo
classificações várias, reconhecendo-o no enredo ou na linguagem, seja de que
maneira for, o fato é que ele está presente nas leituras da obra do escritor.
Mesmo aqueles estudos que se fazem mais de acordo com orientações
sociológicas costumam passar, nas leituras que fazem de Graciliano Ramos, por
esse traço moderno. Porém, pelo visto, essa normalmente não costuma ser uma
discussão central na crítica que se faz da obra desse autor.
68
Q
U A S E A M E S M A Q U E S T Ã O
Seguindo a Aula, encontramos a seguinte definição de literatura: “Entendo
por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor
de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a
prática de escrever.” (Barthes, 1997, p. 17). A memória da escrita, tal como a
entendemos na leitura da obra de Graciliano Ramos, fundamenta-se na
encenação (ainda no sentido barthesiano do termo jouer: encenação, jogo e gozo
da / na palavra) do grafismo, do próprio ato de escrever, e de seus efeitos na
obra e naquele que a escreve (ou a lê). Essa encenação encontra-se tanto no nível
mais teatral no enredo, no drama dos romances quanto no campo da letra,
de um escrito que se formula a partir de inscrições inconscientes, poderíamos
adiantar.
Assim, nos romances de Graciliano (no caso, estudamos Caetés, S. Bernardo
e Angústia) encontramos os narradores-protagonistas, cada qual a sua maneira,
às voltas com o enredo, a produção de um livro, passando pelo enfrentamento
daquilo que a escrita representa para eles, personagens que ocupam o lugar de
escritores e que esperam escrever ou “de fato” escrevem suas histórias. O texto
de Graciliano Ramos, por sua vez, ocupa-se do entendimento desses
mecanismos da escrita, ou seja, de como ela passa da vida do escritor para o
papel, para o livro, e como, deste, ela volta à vida do escritor, por vezes leitor de
si mesmo. Essa presença da letra, digamos assim, encontra-se não só nos
69
romances em estudo, mas na sua obra, nas memórias Infância e Memórias do
cárcere –, nos contos, nas crônicas e cartas.
Assim é que a leitura da obra de Graciliano Ramos pode ir da escrita em
sua materialidade ligada, desde os seus primórdios, ao traço, ao gráfico, ao
desenho à mão; em seguida, às artes e técnicas de impressão – até a letra em sua
vertente, digamos, mais conceitual, com pensamentos vindos da filosofia
(Derrida, por exemplo, e todo um estudo acerca do tema da letra, toda uma
gramatologia, como ele mesmo quis a certa altura de sua obra) ou da psicanálise
(a letra de Lacan e seu retorno a Freud, que tratou também desse assunto,
indiretamente), vertentes estas que, em algum momento, necessariamente
promovem um giro no pensamento, um retorno à letra enquanto suporte.
Os significados da palavra escrita são dificilmente controláveis, por causa
do seu número e diversidade; a escrita é, em primeiro lugar, o resultado
material de um gesto sico que consiste em traçar, regularmente, signos,
seja usando a mão, seja (actualmente) de forma mecânica; é, a seguir, um
tipo de comunicação, visual, silencioso e estável; é ainda um conjunto de
valores complexos que afectam o conteúdo e a forma estética daquilo que
foi escrito, situando-se, assim, perto do “Estilo”; é também, de uma forma
mais específica, o depósito de uma revelação religiosa; é, finalmente
(sentido recente e mal conhecido ainda) uma prática significante de
enunciação, através da qual o sujeito se coloca na língua de uma forma
específica. (Barthes, Mauriès, 1987, p. 146).
Assim, a velha questão do romance moderno, ao colocar-se no campo de
uma prática que implica o sujeito e seu inconsciente, passa pelo campo da
metalinguagem e vai ao encontro da memória da escrita, que tem a letra
enquanto uma prática. Daí, podemos afirmar que a memória da escrita é, em
70
última instância, a memória da letra. Antes, porém, de avançarmos em direção
aos estudos da letra, gostaríamos de explorar alguns desdobramentos da
expressão “memória da escrita”.
Primeiramente, ela surge como inversão de um conceito bastante estudado
em relação à literatura de Graciliano: a escrita da memória. Boa parte dos textos
que se ocupam de Infância e Memórias do cárcere trabalham a memória, o
biográfico e seus modos de registro. Além disso, sempre o interesse pela
representação da vida na ficção. E, na escrita da memória, há muito que esta – a
memória – deixou de ser vista como totalizante, um resgate fiel do passado, um
testemunho fidedigno dos acontecimentos, para ser tomada como atravessada
pelo esquecimento, sendo o passado feito no presente, pela presença do texto.
Na memória operam restos, cacos que, ajuntados pela escrita, deixam à vista as
fissuras, as costuras ficcionais de que o sujeito que rememora (e escreve) não
consegue escapar, e que o lançam a um futuro em construção naquele exato
momento de retorno do passado.
Os gregos, com seus deuses e suas musas, moldaram a imagem de uma
memória – Mnemosyne
28
inseparável do esquecimento, transmitindo-nos algo
que, junto a estudos da linguagem, por exemplo, ajuda-nos a pensar esse
movimento de volta ao passado como uma construção incompleta, com base no
28
“Para os gregos, Mnemosyne, deusa da memória, é capaz não de promover o resgate do
passado como sua perda, seu esquecimento. Segundo Hesíodo, na
Teogonia
, a função da
memória não consiste apenas em tornar presente o passado, mas também em ‘deixar cair no
Oblívio e assim ser encoberto pelo noturno não-ser tudo o que não reclama a luz da presença’”.
Ver Branco, 1994, p. 85.
71
presente de uma escrita que, ao mesmo tempo em que constrói, desconstrói o
tempo passado, o tempo perdido.
Em Graciliano, a restauração da memória não se prende a métodos
apriorísticos de perquirição, dependentes de um horizonte de referência
meramente documental da experiência vivida e que visem a satisfazer
expectativas previsíveis de configuração textual. Lembrar é, para
Graciliano, esquecer-se enquanto sujeito-objeto da lembrança, esgueirar-se
para os cantos, colocar-se de certa forma à margem do texto ser escrito
por ele, ao invés de escrevê-lo –, para que a linguagem em processo
intermitente de produção possa cumprir seu papel efetivo de instrumento
socializador da memória. Na tessitura de vozes revividas, no reencontro
emocionado com o Outro, não se trata de eternizar o passado, mas de
confrontá-lo com o presente e inocular a própria mobilidade deste no
narrado, reinventando com as imagens arbitrárias da memória e da
imaginação a trajetória comum de vida percorrida. (Miranda, 1992, p. 120-
121).
Assim, a escrita da memória também se faz por meio da reinvenção do
passado, lançando-o nas águas do porvir. Nesse processo, além da memória do
escritor ou do leitor que penetra o texto, encontra-se uma outra memória,
anterior ao sujeito, anterior à sua palavra: a memória da escrita, a letra que
insiste, que fisga o sujeito, toma-o para si. Liberdade e cárcere, enigma e sinal
de hábitos antigos, de histórias de vida, a memória da escrita está na letra do
escritor que se no começo e no recomeço, no trabalho infinito da obra, na
travessia e no fracasso, posto que não se escreve tudo, não se deve (ou não se
pode) escrever com todas as letras.
Ainda sobre a memória, a psicanálise muito contribui com sua teoria. De
partida, lembramos o estudo que Freud faz de seu funcionamento a partir da
imagem do bloco mágico, conceito e metáfora da memória como escrita (traços)
72
da diferença. Freud, nessa altura de sua teoria, concebe a memória e, por
extensão, o funcionamento do aparelho psíquico como uma escrita operando a
partir de “efeitos de efracção e de conservação, de apagamento e de marca, de
controlo e de superfície”. (Barthes, Mauriès, 1987, p. 167). Esse traço que se
inscreve como diferença será, mais tarde, retomado por Derrida, que, em vários
momentos de sua obra, registra conceitos como marca, suplemento, grafema,
como equivalentes da escrita, a partir do reposicionamento de antigas questões
(muitas delas ligadas à origem e à relação da fala com a escrita) concernentes
seja à própria filosofia, seja à lingüística, antropologia, psicanálise e literatura.
O pensamento de Derrida, alterado a cada livro, faz, no entanto,
prevalecer a idéia de uma anterioridade da escrita em relação à fala. Isso o
coloca em posição contrária a uma vasta tradição segundo a qual a escrita
“refere-se à palavra [fala] e, através dela, ao que a metafísica designa, na
acepção mais geral, como ‘presença’ ”. Conseqüentemente, para Derrida, “a
escrita não é o simples objecto de um saber ‘positivo’, uma noção plena; pode
dizer-se que se dilata pela sua extensão (as suas relações com a prática literária,
com a questão do sujeito, com a neutralidade filosófica, etc.).” (Barthes,
Mauriès, 1987, p. 162).
No mais, se concordamos que há, na obra de Graciliano Ramos, uma
escrita da memória e uma escrita moderna (aquela que escreve o ato de
escrever), somos levados a pensar que, na confluência desses dois aspectos, está
a letra. E que, no geral, a escrita dobra-se sobre si não tanto para perquirir sua
73
origem, mas, talvez, para colocar em ação a sua memória. No fim das contas, é
por isso que a discussão sobre a escrita, sobre a experiência literária, parece
fazer parte de uma grande vontade de entendimento acerca do ofício do
escritor, no que ele tem de gráfico, grama, letra do impossível em meio ao
apenas possível, combinações infinitas na finitude da vida. Por isso o fato de
essa discussão estar presente em boa parte das obras literárias. Afinal, não se
escreve sem os desígnios da letra.
U M A N O V A E X P R E S S Ã O
Na expressão “memória da escrita”, além da proximidade (pela distância,
pela troca de lugares) com a escrita da memória (não se escreve a memória
salvo como memória da escrita), há, ainda, a proximidade com estudos que, ao
se valerem de uma sintaxe equivalente à que usamos, coloca a noção de escrita
como material e conceitualmente capaz de gravar, desejar, gozar. Podemos
citar, a tulo de uma pequena seleção, textos como “O desejo da escrita”, de
Lucia Castello Branco, “Lúcio Cardoso: a travessia da escrita”, de Ruth Silviano
Brandão, e O prazer do texto, de Roland Barthes.
Em “O desejo da escrita”, Lucia escolhe o “tom insustentavelmente leve
do depoimento” para pensar um desejo que logo se revela duplo: “trata-se não
do desejo do escritor pela escrita, mas do desejo da própria escrita, que é
74
então percebida em sua natureza de ser autônomo daquele que julga possuí-la,
o escritor”. (Branco, s.d., p.1). O depoimento vem em forma de relato de sua
experiência com o querer ser escritora e com o querer da escrita. Sobre o título
de um de seus livros, em co-autoria com Ruth Silviano Brandão: A mulher
escrita, ela diz: “Não sei se a Ruth diria também que essa mulher é ela, mas hoje,
passados quase dez anos da publicação desse livro, eu posso dizer que essa
mulher – a mulher escrita – sou eu.” (Branco, s.d., p.2).
Então, são trazidas para o texto duas outras escritoras: Clarice Lispector e
Maria Grabriela Llansol. Com elas, o desejo da escrita, seus sinais fugazes, suas
muitas paisagens. Trata-se, no fim das contas, de entender a escrita como “um
sistema autônomo da linguagem”, com reconhecida anterioridade e primazia
com relação à fala (Branco, s.d., p. 2), constituindo-se “no puro rastro, no traço
que, anterior ao sujeito, nele escreve, inscrevendo-o na ordem do simbólico, de
maneira que podemos dizer que ‘a escrita habita desde sempre a palavra e, sem
a primeira, a segunda não seria abordável’”. (Branco, s.d., p. 2).
Depois vêm outros escritores: Artaud, Joyce, Duras. Sobretudo Duras. Daí,
lutas, resistências, dores, loucuras, que não se trata mais (ou não só) de um
desejo de escrever, mas do desejo da escrita “naquele que por ela é possuído”.
Com isso, vai-se da literatura à escritura, que aparece como “essa matéria ainda
amorfa, essa massa interior que traga aquele que escreve e aquele que se abre à
leitura desses textos” (Branco, s.d., p. 5).
75
Felizmente, a escrita, esta que nos decompõe, é também capaz de construir
palavras, frases e, com elas, fazer algum sentido. E estamos de volta,
senão à Literatura, ao reino apaziguador de uma certa ficção que encobrirá,
com seu véu de beleza, o horror do real. Para que o romance não morra, a
escritura é capaz de também fazer ficção. (Branco, s.d., p.6).
A escritura de Graciliano Ramos faz ficção sem, contudo, se deixar
encobrir inteiramente pelo véu da beleza. Costurando a obra, migrando de um
livro a outro, está a angústia. Sobretudo, a angústia da escrita, de estar diante
da escrita, no domínio da letra. Nos contos, nos romances e nas memórias,
está a encenação da escrita, a escrita em cena, a letra em questão. Como escrever
o amor, a morte, o feminino, a escrita? Como escrever o que não se escreve?
O que não se escreve (completamente) é o gozo, segundo O prazer do texto,
de Roland Barthes. no título, o mesmo lugar de destaque é dado à escrita. “O
texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova
existe: é a escritura.” (Barthes, 1987, p. 11). Ocupa-se, assim, o escritor (e o
leitor) dessa “ciência dos gozos da linguagem”
29
a escritura sabendo do
vazio que enfrenta:
Texto de gozo: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta
(talvez a um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais,
psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de
suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (Barthes,
1987, p. 22).
Escrever (e ler) é entrar em crise, deixar-se tomar pelo corpo da letra não
a letra do prazer, da qual se pode falar, mas a do litoral, do gozo, do indizível,
29
Na tradução de J. Guinsburg: “ciência das fruições da linguagem”. Barthes, 1987, p. 11.
76
do impossível. O alcance desse exterior não é dado a (por talvez não ser a meta
de) todos os escritores e leitores; muitos deles preferem o prazer do texto,
30
“aquele que contenta, enche, euforia; aquele que vem da cultura, não rompe
com ela, esligado a uma prática confortável da leitura”. (Barthes, 1987, p. 22).
Por sua vez, o escritor e o leitor que assumem o estado de perda, a crise, enfim,
o gozo do texto, filiam-se a uma prática que passa pelo corpo, pelas pulsões,
pela estranheza do outro. O resultado dessa escrita ou leitura passa, então, a ser
algo também intransmissível, salvo se por um novo texto de gozo. Daí Barthes
falar em textos legíveis e textos ilegíveis, já que “o prazer é dizível, o gozo não o
é”. (Barthes, 1987, p. 31).
Os termos prazer e gozo, dizível e indizível, em Barthes, têm a ver com a
relação existente, ao longo dos ensinamentos de Jacques Lacan, entre o gozo e a
letra. Diz-se que, nessa relação, a letra é “uma materialidade desconectada de
qualquer sentido” (Mandil, 2003, p. 47). Essa letra, portanto, pode resultar
em uma escrita ilegível. “Um escrito, como eu o entendo, é feito para não se
ler.” (Lacan citado por Barthes, Mauriès, 1987, p. 169). A escrita andaria, assim,
em torno de um impossível, ao redor do inconsciente.
30
No livro, prazer e gozo são enunciados como opostos que por vezes se confundem. “(Prazer /
Gozo
: terminologicamente isto ainda vacila, tropeço, confundo-me. De toda maneira, haverá
sempre uma margem de indecisão; a distinção não será origem de classificações seguras, o
paradigma rangerá, o sentido será precário, revogável, reversível, o discurso será incompleto.)”.
Barthes, 1987, p. 8.
77
A escrita formula-se, portanto, sempre a partir de uma zona de silêncio:
toca os bordos do articulável, e, em certa medida, ao rés do inconsciente.
Esta apresentação não é evidente, e os próprios analistas se lhe opõem. A
questão a que é necessário responder é quase invariável e toca, mais uma
vez, a possibilidade de uma dupla inscrição. Para alguns, efectivamente, a
escrita de uma obra não está ligada à capacidade de aceder mais ou menos
directamente ao trabalho das representações inconscientes, é pelo contrário,
narcísica e mortífera, é o produto de uma luta de prestígio, de uma procura
de compensação e de um plus-de-jouir”: longe de ser da ordem do
significante, como articulação do desejo, é da ordem da aparência como
ocultação da cadeia significante. (Barthes, Mauriès, 1987, p. 170).
Talvez agora estejamos próximos do que Ruth Silviano Brandão chama de
travessia da escrita.
31
Em diálogo, ao que tudo indica, com a noção de travessia
do fantasma, compreendida por Lacan como o fim (em seu duplo sentido) de
uma análise, essa expressão também nos leva à leitura de que é a escrita quem
atravessa o escritor, a língua, o simbólico, dando um na representação, ao
passo que parte em direção ao inarticulável, ao impossível, ao real. Passa-se de
uma palavra apaziguadora, narcísica, da ordem do necessário, das neuroses e
dos sintomas que não cessam de se escrever, para uma escrita daquilo que não
cessa de não se escrever, escrita do impossível que, finalmente, chegaria na
contingência, que seria o cessar de não se escrever a causa do desejo, o falo.
Eis algo próprio à escrita que, segundo a citação de Barthes, é
articulação do desejo: atravessar (e fazer com que o sujeito atravesse) o
fantasma, situar-se em relação ao outro, num processo comparável ao que, na
análise, seria a cura. Assim encontramos o remédio da escrita, que, desde
Platão, é dúbio, visto que é também veneno. Sobre o phármakon, sobre Fedro,
31
Cf. “A travessia da escrita em Machado de Assis”, entre outros textos da autora.
78
Derrida escreve A farmácia de Platão e, passando por um e outro, e também pela
psicanálise (as pulsões de vida e de morte em Freud, o próprio gozo lacaniano),
surgem estudos acerca da toxicidade da escrita.
Bem, ao procurarmos expressões análogas a memória da escrita; ao
desconstruirmos sua sintaxe em prol da análise isolada de cada um de seus
termos memória e escrita e, por fim, ao insistirmos na passagem da escrita à
letra, devemos recorrer ainda à voz como uma instância relativa ao estudo da
letra. A voz é o verso da letra, seu contrário idêntico. Não é por mera
coincidência que Roland Barthes termina O prazer do texto anunciando uma
“escritura em voz alta”:
[...] a escritura em voz alta não é fonológica, mas fonética; seu objetivo não é a
clareza das mensagens, o teatro das emoções; o que ela procura (numa
perspectiva de gozo), são os incidentes pulsionais, a linguagem atapetada
da pele, um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a pátina das
consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne
profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da
linguagem. (Barthes, 1987, p. 86).
Situada entre desejo, traço e gozo, a memória da escrita não deve ser
aplicada, no caso, à leitura da obra de Graciliano Ramos. Trata-se de, a partir
dessa obra, construir tal conceito. Se ou não cura, se há ou não angústia no
texto, são questões que a leitura dos romances nos traz. Certamente, uma
economia da letra. Do escritor ao leitor, a escrita transforma-se em um encontro.
Seja como for, desde sempre “se reconheceu implicitamente àqueles que têm
algo a ver com a estranheza da palavra literária um estatuto ambíguo, um certo
79
jogo em relação às leis comuns, como se, através desse jogo, se deixasse o
terreno livre a outras leis mais difíceis e mais incertas.” (Blanchot, 1984, p. 36).
A respeito do desejo de escrever do leitor, lembramos o texto “Durante
muito tempo, fui dormir cedo”. Trata-se, inicialmente, do registro da
identificação de Barthes (escritor que ainda não escrevera um romance) com
Marcel Proust (que escreve Em busca do tempo perdido, a obra que Barthes
gostaria de ter escrito), construído em um dos últimos ensaios do próprio
Barthes.
Explico-me: na literatura figurativa, no romance, por exemplo, parece-me
que nos identificamos mais ou menos (quero dizer em dados momentos)
com uma das personagens representadas; essa projeção, creio eu, é a
própria mola da literatura; mas, em certos casos marginais, a partir do
momento em que o leitor é um sujeito que pretende, ele próprio, escrever
uma obra, tal sujeito não se identifica apenas com esta ou aquela
personagem fictícia, mas também e principalmente com o próprio autor do
livro lido, dado que ele quis escrever esse livro e não teve êxito; ora, Proust
é o lugar privilegiado dessa identificação particular, na medida em que a
Busca é a narrativa de um desejo de escrever: não me identifico com o autor
prestigioso de uma obra monumental, mas com o operário, ora
atormentado, ora exaltado, de qualquer maneira modesto, que quis
empreender uma tarefa à qual conferiu, desde a origem do seu projeto, um
caráter absoluto. (Barthes, 2004, p. 349).
Graciliano Ramos é um romancista, no sentido da citação. Suas histórias
passam por um desejo de escrever. Em seus livros, narradores e personagens
são leitores e escritores; por acaso, hábito, profissão, ou sem razão, estão lendo
ou escrevendo, então se cercam de livros, freqüentam redações de jornais,
livrarias.
80
Além disso, Graciliano Ramos se mostra um “operário” peculiar diante da
tarefa de escrever. Para ele, o projeto da obra é definitivo e absoluto, ainda que,
dadas as circunstâncias históricas e as subjetividades, muito diferente do de
Proust. Por isso talvez essa identificação não pelo escritor, mas pelo
escrever que ele representa, não imaginária, mas no campo da letra motive
muitas leituras que, finalmente, buscam não a biografia do autor, mas sim os
significantes que transitam por seus livros.
Surgem também as fumaças de literatura. O modo como Graciliano
descreve o ofício do escritor, em um trecho específico de uma de suas cartas, é
interpretado, neste trabalho, tanto como concernente às identificações
imaginárias, que fumaças são vaidades (em Graciliano Ramos, vaidades
cáusticas), quanto concernente ao vazio, à falta a que nos remete a imagem.
“Não gozarás aqui de grande conforto mas sempre encontrarás um quarto
com duas cadeiras e uma mesa, um bocado de livros, uma bilha d’água, papel,
penas e tinta, enfim o necessário a um indivíduo que tem fumaças de
literatura.” (Ca, p. 19).
Escrever nem sempre é um ato confortável, o corpo do escritor sente-se
porventura tomado por uma moléstia. O quarto muito se assemelha a um
cárcere, é o lado de dentro da vida, a penumbra, o silêncio, e também a porta
fechada para os acontecimentos mundanos, a solidão. As cadeiras e as mesas
dizem da dureza do ofício, com ecos na corcunda e nas lentes para melhor
enxergar. Um bocado de livros, uma pequena biblioteca que, na cidade
81
pequena, na casa de poucos gastos considerados desnecessários, agigantava-se,
muito em função do leitor que possuía e que, um pouco mais tarde, trará para o
seu texto este e outros bocados de livros. A água é deixada de lado a favor do
álcool, e nos livros escreve-se na companhia do conhaque e da aguardente.
Papel, penas e tinta, suportes, meios da escrita, figuram distantes, difíceis por
vezes, porém sempre ligados a uma economia monetária e subjetiva. Enfim,
fumaças são vaidades e vazios, a escrita e sua dupla possibilidade, adornos e
cacos, histórias e restos de histórias, o contingente e o impossível. O importante
é que, em meio a fumaças, Graciliano Ramos escreve.
* * *
A memória da escrita pode, por fim, ser conceituada a partir da
“concepção cartográfica” proposta por Gilles Deleuze, em debate com a
psicanálise.
Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da
psicanálise. Esta última vincula profundamente o inconsciente à memória; é
uma concepção memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre
pessoas e objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los,
identificá-los, autentificá-los. Desse ponto de vista, a superposição das
camadas é necessariamente atravessada por uma flecha que vai de cima
para baixo, e trata-se sempre de afundar-se. Os mapas, ao contrário, se
superpõem de tal maneira que cada um encontra no seguinte um
remanejamento, em vez de encontrar nos precedentes uma origem: de um
mapa a outro, não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação
dos deslocamentos. (Deleuze, 1997, p. 75).
82
Assim, investe-se a memória de trajetos, percursos que, longe de
representarem algo estável, estagnado, lançam mão do imprevisível, do
inesperado que nos deslocamentos, nos devires causados pela sobreposição
de mapas. Tornar-se outro, passar do eu ao ele, é o efeito desses devires sobre o
sujeito. Nesse sentido, curvas possibilitam passagens, cuidando para que sejam
registrados os resíduos materiais a materialidade da letra, no caso da escrita
que, superpostos, desenham o mapa da obra. “Toda obra comporta uma
pluralidade de trajetos que são legíveis e coexistentes apenas num mapa, e ela
muda de sentido segundo aqueles que são retidos.” (Deleuze, 1997, p. 79). Os
mapas dão à memória esse lugar de passagem e esquecimento, ao mesmo
tempo em que guardam uma legibilidade ligada à matéria na qual a obra se
comporta e a um fora, um exterior do sujeito. Nesse contexto, a literatura é vista
como um “agenciamento coletivo de enunciação”, um “delírioque deixa de
lado o passado calcado na relação edipiana, para se dedicar à construção de
uma saúde: “Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação
de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida.
Escrever por esse povo que falta... (“por” significa em intenção de’ e não ‘em
lugar de’).” (Deleuze, 1997, p. 15).
Assim, o que se passa na literatura não pertence a uma pessoa, uma
subjetividade. Trata-se, antes, de alcançar uma via outra, passar pelo que se vê e
se ouve nas fendas da língua, nos interstícios da linguagem, revelar não o que
83
está fora da linguagem, mas sim o seu fora, o exterior. Dessa forma, ao escritor
cabe ouvir essa voz do exterior, criar espaços para uma memória impessoal.
Na leitura da obra de Graciliano Ramos, sobretudo de Caetés, S. Bernardo e
Angústia, percebemos que, tal como na proposta cartográfica de Deleuze, os
traços, os percursos que ali se sobrepõem uns aos outros criam um mapa. “O
mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói.”
(Deleuze, Guattari, 1995, p. 22). A idéia, então, é demonstrar como esse
inconsciente em construção (que nos remete ao saber em fracasso construído em
torno desse inconsciente) passa, na obra em estudo, pela materialidade da
escrita, por algo que cabe à letra desenhar, não em um único livro, mas ao longo
da obra, não de forma “arborificada”, mas rizomática, “porque é sempre por
rizoma que o desejo se move e produz [...]; o rizoma opera sobre o desejo por
impulsões exteriores e produtivas”. (Deleuze, Guattari, 1995, p. 23). O fora
define a multiplicidade, as linhas de fuga ou de desterritorialização por onde
passa a memória da escrita, que é impessoal, coletiva, e que se enlaça à
memória curta:
Esplendor de uma Idéia curta: escreve-se com a memória curta, logo, com
idéias curtas, mesmo que se leia e releia com a longa memória dos longos
conceitos. A memória curta compreende o esquecimento como processo;
ela não se confunde com o instante, mas com o rizoma coletivo, temporal e
nervoso. (Deleuze, Guattari, 1995, p. 26).
Assim, as letras contidas em um livro compõem um mapa em que a
memória que está em jogo não é uma memória pessoal, subjetiva, mas sim
84
aquela da própria escrita, em que os desenhos, os traços, o ato de escrever,
enfim, caracterizam uma espécie de prolongamento da literatura. Percorrer os
traçados desse mapa que se desenha na obra de Graciliano Ramos é o que nos
propomos a fazer nos próximos três capítulos desta tese.
85
C
A P Í T U L O
3
C
A E T É S
,
O C O M E Ç O
86
C
O M E Ç A R A E S C R E V E R
Caetés (1933) é o primeiro livro publicado por Graciliano Ramos. É o
romance de estréia de um escritor que passara dos quarenta anos, é a estréia
tardia daquele que se diz tardo, preguiçoso, e que, se ainda no primeiro livro,
ou mesmo antes dele, desperta atenção para a singularidade de sua escrita, um
ano depois, ao lançar São Bernardo (1934), deixará a certeza do destino
grandioso
32
de sua obra, certeza confirmada pelos lançamentos seguintes:
Angústia (1936), Vidas secas (1938), Infância (1945) e, postumamente, Memórias do
cárcere (1953).
33
Essa estréia tardia, no entanto, não nos diz que Graciliano só tenha vindo a
se interessar pela literatura depois de quatro décadas de vida. Muito tempo
antes começariam os ensaios, espécie de começos perdidos no tempo, de tempo
perdido para começar o que nunca começa, posto que é um eterno recomeçar:
32
Ao falarmos em “destino grandioso”, pensamos mais na duração da obra, na persistência ao
longo do tempo. Sobre a recepção, tanto dos leitores quanto dos críticos, da obra de Graciliano
Ramos enquanto ele ainda estava vivo, remetemos ao artigo de Letícia Malard, “Graciliano
Ramos, das pérolas às críticas”, que, a partir da análise de dados como, por exemplo, o número
de edições inventariadas na morte do autor e o crescimento das edições ao longo dos anos,
confirma que “Graciliano não conheceu a fama enquanto viveu. Porém, depois de sua morte, e à
medida que se passavam os anos, ia tornando-se dos escritores mais lidos e mais estudados do
País.” Malard, 2006, p. 210.
33
Além desses livros, considerados talvez os mais importantes da obra de Graciliano, foram
publicados do autor: Cartas, Alexandre e outros heróis, Insônia, Viagem, Linhas tortas, Viventes das
Alagoas, A terra dos meninos pelados, O estribo de prata, além de contos, crônicas e outros textos
esparsos.
87
a escrita literária.
34
Enfim, Graciliano Ramos desde sempre esteve às voltas com
a literatura, ou, se preferirmos, com a escrita. Sempre escreveu, sempre se
deixou escrever pela vontade de escrita. Ainda que fossem somente rabiscos,
garranchos, garatujas, ou mesmo poemas, contos, cartas, Graciliano escrevia.
Para escrever, Graciliano abriria mão de muita coisa em sua vida:
negócios, empregos, moradas. Para escrever, bastava-lhe “um quarto com duas
cadeiras e uma mesa, um bocado de livros, uma bilha d’água, papel, penas e
tinta, enfim o necessário a um indivíduo que tem fumaças de literatura.” (Ca,
p.19). A fumaça literária funciona como um paradoxo na vida do escritor: a
publicação envaidece e esvazia o sentido da escrita; terminado um livro, resta-
lhe começar outro. Muitos, porém, são os textos que não terminam, que
esperam anos a fio, no fundo de uma gaveta, por um desfecho, que tanto pode
ser a reescrita (cortes, remendos, mudanças) quanto simplesmente – o lixo.
Muitos foram os textos jogados fora por Graciliano, como foram muitos os que
esperaram na gaveta, anos a fio, para serem reescritos.
“A carta”, por exemplo, conto escrito em 1924, período em que o autor
ainda amargava a perda de Maria Augusta, sua primeira esposa, morta em
1920, no parto do quarto filho do casal. Nessa época, vivendo em Palmeira dos
Índios, cuidando dos negócios da “Loja Sincera”, Graciliano Ramos quase não
34
“A solidão do escritor, essa condição que é o seu risco, proviria então do que pertence, na
obra, ao que está sempre antes da obra. Por ele, a obra chega, é a firmeza do começo, mas ele
próprio pertence a um tempo em que reina a indecisão do recomeço.” Blanchot. O espaço
literário, p.14.
88
se dispunha a diversões. Sua rotina parecia resumir-se ao afazeres da loja e às
leituras de jornais (vindos do Sul e que, entre outras, traziam notícias do
movimento modernista de 1922) e livros, muitos livros, de a de Queirós,
Guerra Junqueiro, Anatole France, Flammarion, Maeterlinck etc.
35
“A carta”
ficaria, então, esquecido no fundo de uma estante até que, anos mais tarde, o
autor pudesse retomar o conto para transformá-lo no romance cujo título seria
S. Bernardo. O mesmo aconteceria com “Entre grades”, também escrito em 1924,
que serviria como base para a composição de Angústia. Segundo consta em
cartas e biografias do autor, esta foi uma fase difícil (houve alguma fase fácil?)
em sua vida: solidão, dificuldades na criação dos filhos e na condução dos
negócios, marasmo da rotina interiorana, tudo isso contribuía para que
Graciliano alimentasse um certo desespero em relação a sua vida.
“Encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda parte e desejei
suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão
idiota como parece. Abandonando contas correntes, o diário, outros objetos
da minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia criminal. Que me
induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me
perseguiam?” (Graciliano Ramos citado por Moraes, 1996, p. 47).
Os tratados de sociologia criminal dos italianos César Lombroso e Enrico
Ferri seriam consumidos nas noites de insônia e isolamento. Neles
estudaria o conjunto das motivações psicossociais que conduzem à
patologia do crime – quem sabe em busca de elementos para a configuração
de personagens que lhe rondavam a mente. Sentado na mesa da sala de
jantar, fumando e bebendo café, se inspiraria para escrever. (Moraes, 1996,
p. 47).
Os fantasmas que perseguem o escritor, seus próprios fantasmas, passam,
então, para o papel, na forma de assassinatos, mortes direta ou indiretamente
35
Estes são alguns dos autores citados nas cartas desse período.
89
provocadas pelos protagonistas dos dois contos inacabados. Também em um
terceiro conto, começado em 1925, ressurge a morte, não exatamente na forma
de assassinato, mas de devoração antropofágica (na reminiscência ao ato dos
índios caetés que comeram o bispo português D. Pero Sardinha) e também de
“parricídio simbólico”. Este conto, porém, terá um destino diferente dos dois
outros anteriores a ele, logo ganhando a extensão de romance, aliás, o primeiro
de Graciliano Ramos: Caetés.
Um ano depois de começado, estaria pronto ou melhor, pronto para ser
“consertado” até 1930 – o romance, mas sua publicação só se dará em dezembro
de 1933. A maneira pela qual Caetés desperta o interesse do editor Augusto
Frederico Schmidt tornou-se um episódio caro aos biógrafos habituados às
lendas. No fim de 1927, a vida de Graciliano sofria nova mudança de rumo: ao
mesmo tempo em que ele se envolve, quase que involuntariamente, na política
de Palmeira dos Índios, candidatando-se a (e elegendo-se) prefeito, conhece
Heloísa de Medeiros, uma jovem de Maceió pela qual se apaixona e, alguns
meses depois, com quem se casa. Já no cargo de prefeito, escreve dois relatórios
ao governo do Estado de Alagoas que, publicados no órgão de imprensa oficial,
serão transcritos e comentados em jornais da região, como o Jornal de Alagoas, O
semeador e o Correio da pedra, e até mesmo de outros estados, como o Rio de
Janeiro (o Jornal do Brasil e A esquerda publicariam trechos deles).
Os relatórios causam a admiração de escritores e artistas da época, e será
Santa Rosa, pintor e desenhista paraibano, que conhecera Graciliano em
90
Maceió, quem indicará a Schmidt a publicação de um suposto romance do
escritor alagoano. O editor acata a idéia e no início de 1930 envia uma carta a
Graciliano, relatando seus interesses. Essa carta é recebida com surpresa, e a
entrega dos originais, que de fato existiam, é adiada por quase um ano, para
novas revisões por parte do autor. Somente em dezembro daquele ano Caetés
seria endereçado ao editor. Aí, então, uma lenda emenda-se a outra: Schmidt
teria guardado os originais em uma capa de chuva e se esquecido desse
“esconderijo”, o que atrasaria a publicação em três anos, causando certa
impaciência ao escritor:
Promessas como essa o Schmidt tem feito às dúzias: não valem nada.
Escrevi a ele rompendo todos os negócios e pedindo a devolução duma
cópia que tenho lá. Assim é melhor. A publicação daquilo seria um
desastre, porque o livro é uma porcaria. Não me lembro dele sem raiva.
Não sei como se escreve tanta besteira. Pensando bem, o Schmidt teve
razão e fez-me um favor. (Ca, p. 130).
A crítica carregada de ironia, vinda do próprio autor, acompanhará a
trajetória do romance. Esse traço a autocrítica irônica, a vaidade cáustica
parece ser um dos mecanismos eleitos por Graciliano Ramos para lidar com as
fumaças literárias. Assim, vaidade, verdade e deboche misturam-se na relação
do autor com seus escritos e, sobretudo, com suas publicações.
Em relação ao primeiro livro, esse traço é acentuado, e sua trajetória será
sempre marcada por um menosprezo aparentemente contraditório. Aliás, a
própria fumaça, nesse sentido, é bia, que sopra tanto para a ostentação, a
imodéstia, a prosápia, o orgulho, quanto para a insignificância, o vapor, o vazio,
91
a ilusão. Esse vento bidirecional pode ser percebido em vários níveis, ao longo
da obra (e da vida) do autor, e a ele voltaremos adiante. Por ora, ficaremos com
os Caetés.
À época de sua publicação, Graciliano, com fumaças literárias na cabeça,
buscava ler, recortar e guardar as críticas a respeito do livro, normalmente
publicadas em revistas literárias e em jornais do país. A Casa Museu Graciliano
Ramos, em Palmeira dos Índios, conserva alguns desses recortes, com anotações
a punho do escritor alagoano.
36
Neles, motivos de sobra para o autor se
orgulhar de seu romance, que conquistara tanto críticos mais próximos, como
Valdemar Cavalcanti e Aurélio Buarque de Holanda, por exemplo, quanto
outros, mais distantes, vozes vindas do “Sul”. No geral, as leituras são
favoráveis ao romance, apesar de, em alguns casos, Caetés ser tomado apenas
como um laboratório, um exercício de técnica romanesca, uma preparação para
outros romances que certamente viriam a ser escritos pelo autor, sem grandes
qualidades a serem exaltadas, ou mesmo com alguns defeitos um tanto quanto
comprometedores.
Ainda assim, são mais fortes os elogios ao livro e, curiosamente,
aparecem em destaque, nessas resenhas inaugurais, muitos dos temas que, ao
longo da fortuna crítica do autor, serão retomados como básicos para o
entendimento de seu estilo. O mais difundido deles é, sem dúvida, o que diz
36
Visitamos a Casa em janeiro de 2005. Também guardam acervos do escritor o Fundo
Graciliano Ramos do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP)
e a Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
92
respeito à concisão, à precisão, à economia da linguagem. Em fevereiro de 1934,
no Boletim de Ariel,
37
Aurélio Buarque de Holanda afirmava: “O Sr. Graciliano
Ramos é um admirável técnico do romance. [...] Seu livro é admiravelmente
bem construído, um livro em que nada se perde e a que nada falta. Tudo nele é
muito justo, muito medido, muito calculado.” Nesse mesmo artigo, o crítico irá
usar a expressão que servirá como “marca registrada” do romancista: “O seu
estilo seco, a sua composição metódica, a ironia cortante, o travo de pessimismo,
o amargo humor espalhados no Caetés tudo isto que concorre para dar a
impressão de absoluta frieza, não impede, no entanto, que haja no livro páginas
cheias de viva comoção.”
Estão outros temas que também são recorrentes na leitura de Graciliano
Ramos, mas o estilo seco é o que mais se repetirá. Em março de 1934, o jornal
Estado de Minas publicada uma resenha assinada por Oscar Mendes que traz a
mesma expressão usada por Aurélio Buarque de Holanda: “O seu estilo seco,
desadornado, econômico de palavras, incisivo e cáustico, presta-se
admiravelmente ao desenho cruel daquela vida morna e estreita em Palmeira
dos Índios.” E, antes deles, Valdemar Cavalcanti, também no Boletim de Ariel,
em dezembro de 1933 utiliza uma expressão parecida, ao dizer encontrar no
autor de Caetés “uma simplicidade, uma disciplina, uma secura de fala”. Assim,
Graciliano é considerado um escritor “mais próximo da aridez que da fartura,
37
Revista literária editada por Gastão Cruz, proprietário da Ariel Editora, que, em novembro de
1934, lançou a primeira edição de S. Bernardo.
93
mais amigo da pobreza que da riqueza de estilo”. Esse tipo de observação está
também no comentário de Jorge Amado, publicado em Literatura, em dezembro
de 1933: “Realmente me assombrava no livro a sua secura, a sua justeza de
construção, volume onde não uma palavra inútil. Nenhum derramamento
de linguagem e de lirismo. Nenhum enfeite. Mas romance como o diabo.”
Como esses, existem vários outros exemplos, que podem ser sintetizados na
expressão de Agrippino Grieco, que, sobre Caetés, em fevereiro de 1934
escreveu n’ O Jornal: “romance com o mínimo de romance possível”.
Alguns anos mais tarde, o romance Vidas secas, desde o título até a
estrutura e o enredo, reforça essa leitura. No entanto, para a crítica, o estilo seco
parece ter encontrado o seu ponto máximo, os trabalhos em torno dessa idéia
parecem repetir os mesmos procedimentos de análise estilística, destacando a
pouca adjetivação, as frases curtas e independentes, entre outras características
lexicais, sintáticas e textuais. Por isso, para que seja retomada essa dimensão do
estilo de Graciliano Ramos, que se pensar no que, nesse estilo seco, nessa
economia de linguagem, de excessivo, de transbordamento do sujeito que,
pela via do corte, da precisão, chega até a obra. O corte estando relacionado,
dessa forma, ao irrepresentável, a uma totalidade apenas imaginada. O mínimo,
por sua vez, configura-se como uma economia, partindo do corpo do escritor (a
letra miúda, o aproveitamento do papel, o gesto de riscar palavras e frases,
cobrindo-as de tinta) e resultando em histórias escritas com poucas palavras,
pouca tinta, pouco grafite, muitas vezes em pouco espaço. Concluímos, então,
94
que, ao estudar essa escrita mínima, devemos saber que, nesse processo, o que
promove a secura do estilo é o corte de um excesso que, no caso, tem precisão,
ou seja, rigor e necessidade. Rigor vindo da necessidade, tudo muito seco,
árido, áspero, rude, tudo esgotado, vazio, e ao mesmo tempo, e por isso mesmo,
tudo desejoso, sequioso.
Outro ponto comum a esses primeiros comentários acerca de Caetés é a
comparação de seu autor com dois outros já na época clássicos da literatura: Eça
de Queiroz e Machado de Assis. Esse ponto, no entanto, gera um certo grau de
polêmica, que a influência, tal como vista na época, muitas vezes se revestia
de significados desfavoráveis, termos como cópia e imitação indicavam
inferioridade. Por outro lado, os críticos falavam (dadas as características
peculiares do romance em questão) em um tom que dava a entender a
superação, ou – para usarmos uma idéia difundida menos de uma década antes
do lançamento de Caetés, mas que, em seu surgimento, coincide com o
momento em que Graciliano Ramos começou a escrever esse romance, pelo
movimento modernista de 1922 a devoração antropofágica efetuada pelo
romancista.
De qualquer maneira, nessa primeira recepção crítica é recorrente a
lembrança de Eça de Queiroz e Machado de Assis como autores preferenciais
do leitor Graciliano Ramos. Parece ter sido Valdemar Cavalcanti, no artigo
citado, quem inaugurou o comentário, com esta comparação: “Em muitas de
95
suas páginas a gente percebe que Eça deixou nele marcas profundas”, que, no
artigo de Aurélio Buarque de Holanda, é ampliada:
Como Machado de Assis, de quem se aproxima pela secura do estilo, o Sr.
Graciliano Ramos não é homem de exaltações panteísticas. [...] A
construção de certas frases, certos achados de expressão, mesmo certas
palavras características do estilo de Eça de Queiroz, traem a influência
deste escritor sobre o romancista de Caetés. Quando digo influência, deve-
se ver que não acho imitação consciente. O que são pontos-de-contato
resultantes de longa infiltração, através de uma leitura apurada e contínua.
José Geraldo Vieira, em fevereiro de 1934, no jornal A Nação, corrobora
essa idéia: “Transparece no estilo a secura desmeantada [ ? ] de Machado de
Assis e no diálogo o jeito inesquecível de Eça e às vezes de Trindade Coelho.”
Também Agrippino Grieco: “assinale-se que, sem decalcomania, o Sr.
Graciliano Ramos é bem o homem que leu Machado de Assis e Eça de Queiroz.
[...] De Machado conserva ele um pouco do tom dubitativo, de eterno
fronteiriço do ‘sim’ e do ‘não’. Mas a influência do Eça é bem mais visível”.
Enfim, como no caso anterior, do estilo seco, também parece ter sido
praticamente unânime a triangulação Graciliano Eça Machado, sendo
muitos os exemplos que podem ser citados. Porém, como demonstramos em
outro capítulo, com o passar dos anos essas comparações diminuíram, até
mesmo passaram a ser questionadas, principalmente no que diz respeito a
Machado de Assis. Tornaram-se insuficientes ou repetitivos os argumentos de
que ambos, Machado e Graciliano, exploram a psicologia das personagens,
escrevem romances psicológicos e tendem a algo chamado pessimismo (um
96
pessimismo que levaria à mesma secura, à falta de comoção e de emoção, ao
humor cortante, à ironia) – e as diferenças avultaram.
De qualquer maneira, permaneceu o lado leitor de Graciliano Ramos, que
certa vez listara, em uma publicação, o romance Dom Casmurro como um de
seus prediletos. O escritor, por sua vez, também cultivaria um humor casmurro,
tecendo considerações contraditórias, muitas vezes agressivas, em relação a
Machado de Assis. Há, inclusive, o registro de um comentário seu que se tornou
símbolo desse humor eriçado:
[...] Assim que pôs o serviço em dia, Graciliano, entre um despacho e outro,
corrigia os originais de Caetés. Um dos visitantes mais assíduos em seu
gabinete era o professor de português, filólogo e contista Aurélio Buarque
de Holanda, que se divertia com o seu modo extravagante de fazer
julgamentos. [...] A respeito de Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, Aurélio ouviria, em dois dias seguidos avaliações
opostas.
No primeiro:
Ótimo! passei da metade. Formidável! Que simplicidade, que força! O
desgraçado do velho escrevia bem como todos os diabos. Que humor!
E no seguinte:
Uma palhada! Muito lugar-comum disfarçado! Negro burro, metido a
inglês, a fazer umas gracinhas chocas, pensando que tem humor! Não vale
nada, uma porcaria! (Moraes, 1996, p. 69).
Essas palavras, atribuídas ao escritor por um biógrafo, ressurgem como
anedota e também como forma de relembrar a maneira pela qual Graciliano
emitia seus juízos críticos, provocando seus interlocutores, valendo-se de uma
agressividade peculiar, com um humor que afronta, desafia. Ainda assim, as
comparações com Machado de Assis se tornam cada vez mais escassas. Como a
97
questão do “estilo seco”, a influência de sua obra em Graciliano Ramos ora
sofria oposição, ora um ou outro crítico a retomava, com pouco entusiasmo,
muitas das vezes, outras, com o intento de avançar a comparação, torná-la mais
interessante. Este é o caso, por exemplo, do artigo “Lusos & Caetés”, de José
Aderaldo Castello. Nele, o autor defende que algumas personagens femininas
dos romances de Graciliano estão próximas, m certos os mais duvidosos
traços, de personagens femininas machadianas. Distanciando-se da mulher
romântica, ou mesma da que se constrói como caricatura do romantismo, tal
como acontece em Eça de Queiroz, os narradores machadianos representam o
feminino naquilo que ele tem de enigmático, ou mais: na verdade, o que se
busca representar é da ordem do irrepresentável.
E como Graciliano Ramos supera o lugar comum do modelo do século XIX,
à Eça de Queiroz, e aproxima-se de Machado de Assis? Em O primo Basílio,
por exemplo, a heroína, caricaturada à romântica conforme a teoria realista-
naturalista, passa do estado febril à morte natural causada muito mais pelo
terror da possível vingança do marido traído do que propriamente pelo
remorso auto-punitivo. [...] Enquanto Machado de Assis, em Dom Casmurro,
rejeitando este esquema, aprofunda-se na análise psicológica da simulação
e da dúvida, atuantes somente depois da morte acidental do rival, por sinal
amigo íntimo do esposo traído.
As personagens femininas e a dúvida, nos romances de Graciliano Ramos,
se entrelaçam, e com elas o ciúme e a morte. Nesse sentido, podemos dizer que
S. Bernardo refaz a história de Dom Casmurro: o ciúme, o adultério, a morte da
mulher amada, a escrita da memória. Assim, um espanto, uma inquietação
diante do que se apresenta como enigma é capaz de mover a escrita, remover
98
restos, agir como um imperativo, como algo de que não se escapa. Escrever o
espanto diante do enigma, que não se pode escrever o enigma, que as
mulheres (algumas delas: Capitu, Madalena) estão envoltas no enigma da
morte, na morte que desde sempre, desde que as narrativas de que elas fazem
parte começam, elas sustentam.
A mulher e a morte como causa de escrita, a escrita como desejo de
reordenação dos restos, como acomodação dos restos, no dizer de Jacques Lacan
(1986), das sobras de sentido, do pouco que se faz diante de algo que não
produz sentido. O processo da escrita é outro enigma, outra morte aparece no
tempo que se leva para escrever a morte. Em Caetés, temos a situação de um
escritor às voltas com um livro apenas começado, enquanto escreve outro livro,
outra história: o romance de que participa como narrador e protagonista.
Aqui voltamos a Eça de Queiroz, que esse é um dos pontos de onde
minam comparações: A ilustre casa de Ramires traz aquilo a que chamam de
“narrativa dentro da narrativa”, tendo sido esta mesma situação “copiada” em
Caetés. Acontece, porém, que não foi Eça de Queiroz quem inventou essa
maneira de se compor uma narrativa, portanto não modelo fiel, assim como
não se copia, a Graciliano Ramos não seria dado somente copiar, ou seja, a
cópia, se há, se dá em outro nível.
[...] A primeira lembrança do leitor é a de que se trata de um procedimento
igual ao de Eça de Queiroz ao criar Gonçalo Mendes Ramires, um
contemporâneo, no romance que lhe traz o nome e ressalta a origem
longínqua: A ilustre casa de Ramires. Aqui, no decorrer da ação, o Autor
99
atribui a Gonçalo Mendes Ramires uma volta aos antepassados pela
elaboração de uma narrativa histórica dentro da narrativa de ação presente.
E ao chegar ao final do romance, agora é um dos protagonistas que, a partir
da novela atribuída a Gonçalo Mendes Ramires A torre dos Ramires,
delineia comparativamente e também sinteticamente o retrato deste
personagem. (Castello, 1993, p.38-39).
Graciliano Ramos distancia-se, assim, de um fazer literário em que
original e cópia ocupam lugares distintos. Em Caetés encontramos, logicamente,
inúmeras diferenças, acréscimos de leitura, mudanças em relação ao romance
de Eça, a começar pela “ênfase preponderante às origens indígenas do
brasileiro”. (Castello, 1993, p. 39). Nesse sentido, o livro está de acordo com a
investigação e a construção de identidades modernistas, nos idos dos anos 20,
apesar de seu autor ser, em princípio, um crítico dessa corrente paulista do
modernismo.
Enfim, vale atentarmos para a maneira como essa “narrativa dentro da
narrativa” é interpretada, como se entende o fato de esses escritores dos livros
(João Valério, Paulo Honório, Luís da Silva), em certo sentido, fracassarem,
visto que estão diante da escrita do fracasso (da perda da mulher, da morte).
Como exceções entre nós, Graciliano Ramos de Caetés e José Lins do Rego
de Pedra Bonita, com grande poder de apreensão de persistências
psicológicas e culturais de nossa formação, souberam fazer com que os
protagonistas centrais de suas narrativas se erigissem em representações
coletivas. E se a também o fez com Portugal e nele Graciliano Ramos se
inspirou, por sua vez, o próprio Eça não foi original no recurso
fundamental de A ilustre casa de Ramires, isto é, da narrativa dentro da
narrativa, uma esclarecendo a outra. Basta relembrar o Hamlet de
Shakespeare. (Castello, 1993, p. 40-41).
100
O livro que João Valério escreve, nós o conhecemos dentro de outro
livro. Sua “ilustre casa” são os índios caetés, antepassados de quem herdara o
lado selvagem, a brutalidade, a aspereza. No entanto, seu livro pára no segundo
capítulo, e o livro que de fato se escreve passa-se numa outra atmosfera.
O leitor está diante de equação em que o narrador de Caetés, João Valério,
escreve um livro sobre os índios caetés. De outro modo: Caetés de
Graciliano é também a história de um livro cujo título, apesar de em
nenhum momento ser explicitado, deve chamar-se também “Caetés”. O
leitor está diante de dois livros, um falso, outro verdadeiro, um simulacro e
um fato. (Bulhões, 1999, p. 29).
O livro dentro do livro, os “Caetés” de João Valério, é estudado por
Bulhões como metalinguagem, como manifestação de “tensão, de reflexão a
respeito da linguagem e da literatura”. (Bulhões, 1999, p. 15). O estudo desse
procedimento traria, ainda segundo o crítico, duas vantagens imediatas: a
primeira é que ele é comum na obra de Graciliano Ramos, estando presente em
praticamente todos os seus livros: “Toda a sua obra está impregnada de
momentos metalingüísticos, ou melhor, a metalinguagem é aspecto
indissociável de sua produção literária.” (Bulhões, 1999, p. 15). A segunda é
que, apesar de ser assim tão comum, este seria um aspecto de sua obra que, “se
não totalmente negligenciado, não fora devidamente valorizado pela crítica”.
(Bulhões, 1999, p. 16). Com isso, o autor percorre a obra de Graciliano Ramos
em busca da metalinguagem, entendida da seguinte maneira:
O termo está sendo tomado numa acepção bastante ampla: linguagem
sobre linguagem. Como foi dito, convencemo-nos de que a prosa de
Graciliano Ramos é essencialmente metalingüística no sentido em que
101
promove uma discussão permanente no plano da linguagem,
direcionando-se crítica e reflexivamente para o contexto da literatura
brasileira. [...] Por outro lado, em último estágio, estaremos buscando o
perfil de Graciliano como “crítico” e o esboço de sua concepção de
literatura, a partir do embate extremamente tenso que sua obra estabelece
com a cultura literária do país, quer nos textos de cunho jornalístico ou de
ensaios, quer naqueles de natureza essencialmente estética e ficcional.
(Bulhões, 1999, p. 19).
Assim, são analisadas tanto as situações nas quais aparecem livros que são
suposta ou efetivamente escritos dentro de outros livros (João Valério, Paulo
Honório e Luís da Silva colocam-se no lugar de escritores) quanto aquelas nas
quais livros são tomados enquanto objeto de leitura e reflexão crítica, tal como
em Infância, por exemplo, em que está em jogo a formação do leitor e escritor,
ou em Linhas tortas, em que o exercício da crítica exige o falar, o opinar sobre
livros. A partir daí, o autor busca apreender uma “concepção de literatura”
presente na obra de Graciliano Ramos. Essa busca baseia-se principalmente
naquilo que figura como modelos contrários ao do autor, e que, por isso
mesmo, são alvos de crítica: a retórica, o artificialismo, o pitoresco etc. Assim,
cercando esses alvos de ataques, via metalinguagem, Marcelo Bulhões procura
definir a literatura basicamente pelo que ela não é para Graciliano Ramos.
O livro de Marcelo Bulhões é uma boa fonte de pesquisa, sobretudo no
que diz respeito às considerações, ao longo da obra de Graciliano Ramos, acerca
do fazer literário. São muitas as situações analisadas, o que o faz constituir um
rico acervo, um bom roteiro de citações pertinentes ao tema. Além disso, suas
102
conclusões acerca da metalinguagem buscam rever o lugar de Graciliano Ramos
na historiografia literária brasileira.
De um lado, acostumamo-nos a enxergar no procedimento metalingüístico
um componente experimentalista – sobretudo com a ânsia de inventividade
do Modernismo e imaginar que o texto ao voltar-se para si mesmo estaria
se fechando para o mundo. De outro lado, acostumamo-nos a imaginar na
figura biográfica de Graciliano Ramos uma aspereza que parece afastar
qualquer experimentalismo. Todavia, a ingenuidade está na identificação
necessária entre metalinguagem e experimentalismo estético, o que torna
complicado imaginar a aproximação daquela figura difícil o Graciliano
Ramos militante do PCB, no qual o modelo artístico será o Realismo
Socialista com um procedimento muitas vezes associado ao grupo
paulista de 1922. De qualquer modo, o percurso que percorremos
evidencia, a nosso ver, que o processo de discussão acerca da linguagem,
cuja conseqüência será a contestação do discurso dominante, confere à
atividade metalingüística o poder de intervenção na relação entre texto e
mundo. (Bulhões, 1999, p. 166).
É proveitoso esse percurso de Marcelo Bulhões acerca dos procedimentos
metalingüísticos presentes na obra de Graciliano Ramos. No entanto, essa
percepção de que, na maioria das narrativas (e nas mais importantes) de
Graciliano Ramos coloca-se a situação de leitores, literatos, escritores e livros
dentro das histórias, causando, entre outros, o efeito de metalinguagem, não é,
obviamente, exclusiva do crítico Marcelo Bulhões, que, aliás, afirma tê-la
reconhecido em outros estudos.
38
Um estudo que se concentra em Angústia, trazendo uma leitura sobre essa
questão, é A ponta do novelo: uma interpretação de Angústia, de Graciliano
Ramos, de Lúcia Helena Carvalho. Valendo-se de terminologia e da escuta
38
“Alguns críticos haviam tratado do assunto, como é o caso do trabalho de Fernando Alves
Cristóvão”. Ver Bulhões, p. 25. Na citação, o autor refere-se ao livro Graciliano Ramos: estrutura e
valores de um modo de narrar, de 1975.
103
da psicanálise, a autora, a respeito da obra de Graciliano, fala da obsessão
39
que
se mostra no interesse pelo livro e, por extensão, pela leitura e pela escrita.
Logo no início do artigo, uma nota em que se localizam os textos que trazem
essa questão, a partir de outro estudo, anterior ao dela, justamente o de
Fernando Alves Cristóvão:
Na verdade, o livro, enquanto objeto de escritura, constitui verdadeira
obsessão para Graciliano Ramos. No conjunto de sua obra, a situação de
um sujeito-autor, às voltas com um romance para escrever, multiplica-se,
tematizada em variantes, não nos romances Caetés, S. Bernardo e
Angústia, mas também em várias outras obras, conforme atesta o
levantamento cuidadoso realizado por Fernando Alves Cristóvão, no livro
Graciliano Ramos; estrutura e valores de um modo de narrar. Além dos
romances citados, o crítico português aponta como exemplos da produção
do escritor em que a atividade literária se encontra tematizada: Brandão
entre o mar e o amor, em que o personagem Mário escreve um diário; os
contos “Uma visita” e “Silveira Pereira”, de Insônia; Histórias de Alexandre e
dois romances esboçados a partir dos contos “A prisão de J. Carmo Gomes”
e “Luciana”, em que é grande o número de escritores representados através
da ficção. Observe-se ainda que Infância conta pormenorizada da
aprendizagem da leitura e da escrita e que, em Memórias do cárcere,
Graciliano alonga-se sobre suas preocupações literárias passadas e projetos
futuros, ocupando-se de vez em quando em comentar os seus romances.
(Carvalho em Garbuglio, CF D, p. 341).
Lúcia Helena opera com o conceito de construção em abismo (mise en
abime) para a interpretação das micronarrativas contidas em Angústia. Adiante,
voltaremos aos seus comentários. Por ora, basta-nos o registro da listagem
contida na citação acima. De qualquer modo, é interessante notar que a
construção em abismo é justamente a imagem tomada por Lacan para definir o
“saber em fracasso” da psicanálise. Também em Graciliano Ramos essa
39
Em Caetés: “Deitei-me vestido, às escuras, diligenciei afastar aquela obsessão. Inutilmente.
Ergui-me, procurei pelo tato o comutador, sentei-me à banca, tirei da gaveta o romance
começado.” (C, p. 22).
104
construção aponta para isso, como se houvesse um “saber em fracasso” sobre a
escrita.
E S C R E V E R A E S C R I T A
Apesar de podermos identificar essa presença de textos dentro de textos,
livros dentro de livros, linguagem sobre linguagem, em praticamente todas as
obras de Graciliano Ramos, nosso recorte, em relação ao que nomeamos
memória da escrita, concentra-se nos romances Caetés, S. Bernardo e Angústia.
Além disso, nossa preocupação não está tanto no fato de haver, nesses livros,
uma metalinguagem que, em última instância, contesta e combate o discurso
dominante, a língua em seu funcionamento meramente ideológico. Por isso
migramos para a escrita, por isso não é mais a (meta)literatura que está em jogo,
mas algo anterior, algo que apenas se insinua no enredo desses romances, posto
que se situa no trabalho de uma memória que é da escrita.
O lápis, o papel, a escrivaninha, enfim, os objetos da escrita, ganham a
cena nessa memória. Igualmente, as primeiras letras, a letra impressa
conduzindo a uma metalinguagem acrescida do que não é meta, levando-nos a
um entendimento da relação do escritor com a escrita que se passa por esses
objetos. Além deles, o corpo do escritor, seus olhos, suas mãos, principalmente.
O que a escrita provoca nos personagens-escritores dos romances de Graciliano
105
Ramos, quais são os seus efeitos? E, além disso, o que tem a ver essa escrita dos
livros com a vida do autor, o que, de sua relação com a escrita, se projeta nesses
enredos? É bem verdade os estudos que se ativeram a essa questão encontraram
suas respostas. Sendo assim, trataremos apenas de lhes dar novos contornos,
iniciando essa análise por Caetés, por uma aproximação com o “saber em
fracasso” presente neste romance: um livro que não sai do começo, uma escrita
que não consegue reconstruir uma história por completo, deixando sempre
sobras a serem reorganizadas em outras novas histórias, numa construção em
abismo que, finalmente, esbarra na letra.
Para João Valério, a literatura, como se sabe, representa, primeiramente,
um recurso a mais em sua ascensão econômica e social. O personagem, que vive
em uma cidade interiorana e que absorveu dessa cidade o marasmo, o
desânimo, é funcionário de um estabelecimento comercial, um guarda-livros
que, em súbitos momentos de euforia, pensa em seguir carreira, ganhar
dinheiro, ser grande e respeitado. Apesar de não passar de um funcionário
pequeno de uma firma relativamente pequena. A prática de escrituração já
coloca em jogo sua relação com a escrita, que, prolongada para além da
profissão, culmina em colaborações no jornal da cidade e no projeto do romance
histórico que está por ser escrito enquanto se escreve Caetés. Antes disso,
porém, aparece-lhe um outro livro e, como se fosse uma personagem, uma
página, uma letra desse livro, a sua leitora.
106
Assim, logo no início de Caetés encontramos João Valério perturbado pela
visão da mulher que, com o corpo inclinado, lê um romance. Nesse instante, seu
ato um beijo soa como loucura. A cena se passa no interior da casa de
Adrião e Luísa:
Adrião, arrastando a perna, tinha-se recolhido ao quarto, queixando-se de
uma forte dor de cabeça. Fui colocar a xícara na bandeja. E dispunha-me a
sair, porque sentia acanhamento e não encontrava assunto para conversar.
Luísa quis mostrar-me uma passagem do livro que lia. Curvou-se. Não me
contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se, indignada:
– O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu... (C, p. 9).
Interrompido o diálogo pelas lágrimas de Luísa e pelas desculpas gagas de
João Valério, o capítulo segue narrando a volta deste para a pensão onde mora.
No caminho, a projeção do dia seguinte atormenta a consciência do herói, que
passa a temer a censura: de Adrião Teixeira: “Você, meu filho, não presta.(C,
p. 10); de Vitorino Teixeira: “Nós julgávamos que o Valério fosse homem
direito. Enganamo-nos: é um traste.” (C, p. 10). Na trama, Adrião é o marido de
Luísa e empregador de João Valério; Vitorino é o seu sócio na Teixeira & Irmão.
O guarda-livros do estabelecimento “que vende aguardente, álcool e úcar”
(C, p. 10), por sua vez, está interessado também na sociedade da firma.
Nesse cenário, há o prenúncio de uma triangulação tanto comercial (na
aspiração de Valério, a Teixeira & Irmão seria dos três) quanto amorosa, que
Valério, ainda na segunda página, declara: “Eu amava aquela mulher”. Luísa, a
amada, nessa hora é a leitora desatenta, “criaturinha delicada e sensível” (C, p.
10), contrapondo-se ao bárbaro que é João Valério, um animal “estúpido e
107
lúbrico” (C, p. 10). O triângulo comercial diz respeito às aspirações de um
escriturário de poucas ambições preguiçoso, segundo ele mesmo. O triângulo
amoroso, por sua vez, é mais ramificado, pois, além de passar por um certo
narcisismo do protagonista, por certo fascínio dado pela condição de amante da
jovem senhora, passa ainda por um desejo seu de transgredir a regra, o que vai
direcionar uma leitura do romance a partir da teoria freudiana do complexo de
Édipo (nesse sentido, basta ouvirmos a fala de Adrião Teixeira, que se dirige a
Valério tratando-o por “filho”, para constatarmos a pertinência desse tipo de
leitura).
40
Independentemente disso, há, a certa altura, uma reviravolta, uma
revolução na vida de Luís Valério, por conta da paixão por Luísa, que requer, no
mínimo, a transgressão moral, o rompimento com os costumes da cidade, tão
presentes na narrativa. Essa ruptura, pode-se dizer que João Valério a persegue,
sendo a relação com Luísa apenas um dos caminhos possíveis para tanto.
Havia dentro de João Valério uma barreira que ele não chegava nunca a
transpor. Fizera a segunda decisão a respeito de Luísa, mas aquela ainda
não havia sido verdadeiramente uma tomada de posição. Falecia-lhe o
ânimo na hora de romper com princípios arraigados.
Um dia a revolução nele acontece. Corta relações com o seu mundo mais
exterior [...]. Começa a desrespeitar todas as convenções, liquida
sumariamente as suas antigas reservas e os seus escrúpulos: “Só Luísa me
preocupava. Desejei-a dois meses com uma intensidade que hoje me
espanta. Um desejo violento, livre de todos os véus com que com que a
princípio tentei encobri-lo. Amei-a com raiva e pressa, despi-me de
escrúpulos que me importunavam, sonhei, como um doente, cenas lúbricas
de arrepiar.” (Mourão, 2003, p. 49).
40
Ver “Édipo guarda-livros: leitura de Caetés”, de João Luiz Lafetá.
108
Por fim, atravessando esse desejo, está o livro. A “passagem ao ato”, o
beijo que desencadeia toda a aventura amorosa, se dá na presença desse terceiro
termo: o livro. A junção do feminino com a escrita se repete (na diferença) em
Madalena (a cena, em S. Bernardo, da carta que desencadeia o desfecho trágico;
antes disso, o próprio fato de Madalena ser letrada) e Marina (a cena, em
Angústia, da leitura de Luís sob as árvores do quintal coincidindo com a
primeira visão um coup de foudre que ele tem de Marina; o nome dela como
um conjunto instável de letras etc.). Quanto a Luísa, João Valério logo torna a
vê-la, porém imaginariamente.
Que estariam fazendo na sala do Teixeira? Ele, com a calva brilhando sob
um foco elétrico, o beiço caído, a pálpebra meio cerrada, os óculos na ponta
da venta, percorria a parte comercial dos jornais. Luísa lia um romance
francês; ou tocava piano; ou pensava indignada nos beijos que lhe dei no
pescoço. (C, p. 21-22).
A leitura que acontece na sala é distraída e previsível: jornais, romances
franceses, tudo bem à moda daqueles seres esquecidos no interior do país,
daquela sociedade patriarcal, fundiária, pequeno burguesa. Luísa, a essas
alturas, ainda guarda, para João Valério, algo de romântico; a leitura é uma
distração, uma saída das dores do mundo pelas vias do imaginário. Por tudo
isso, ao longo da história, os devaneios de João Valério misturam-se aos
acontecimentos mundanos.
41
Assim, no trabalho, na pensão, na cidade, suas
experiências costumam ser confusas, passando por uma subjetividade também
41
A esse respeito, Rui Mourão argumenta que dois níveis, dois planos narrativos em Caetés.
Cf. Mourão, 2003, p. 27-29.
109
ela confusa. Para contornar essa confusão, em noites insones, João Valério tenta
escrever sobre algo que lhe é distante, o passado dos caetés que habitaram o
lugar em que vive – Palmeira dos Índios.
“Deitei-me vestido, às escuras, diligenciei afastar aquela obsessão.
Inutilmente. Ergui-me, procurei pelo tato o comutador, sentei-me à banca, tirei
da gaveta o romance começado.” (C, p. 23). O romance, velho conhecido das
gavetas, ainda não saiu do começo. Os acontecimentos que desencadearam esse
começo de romance também não saíram da cabeça de João Valério: “Iniciei a
coisa depois que fiquei órfão, quando a Felícia me levou o dinheiro da herança,
precisei vender a casa, vender o gado, e Adrião me empregou no escritório
como guarda-livros.” (C, p. 22). Nessa rápida lembrança familiar, os pais estão
faltantes. Felícia é uma personagem sobre a qual mais nada se sabe, salvo o fato
de ter se apossado da herança de João Valério. Assim, seu começo de escrita se
entre a falta e a pobreza. Quando nada tem, João Valério torna-se guarda-
livros e, apossando-se deste significante livro investe em um
empreendimento impossível, dado ao fracasso.
Li a última tira. Prosa chata, imensamente chata, com erros. Fazia semanas
que não metia ali uma palavra. Quanta dificuldade! E eu supus concluir
aquilo em seis meses. Que estupidez capacitar-me de que a construção de
um livro era empreitada para mim! [...] Folha hoje, folha amanhã, largos
intervalos de embrutecimento e preguiça um capítulo desde aquele
tempo. (C, p. 22).
110
O desejo do livro
42
esbarra na brutalidade e na preguiça de seu suposto
autor. Esbarra, principalmente, no fato de esse livro não coincidir com o livro
do seu desejo: a orfandade e a pobreza motivam a dedicação à escrita, mas não
ganham o estatuto de algo a ser retomado, ressignificado. No livro, pairam
vagas reminiscências desses fatos, apenas isso. O outro aparente motivo da
escrita do romance é recorrente, porém parece tratar-se ainda de uma projeção
do eu, da vaidade que leva João Valério a contabilizar os ganhos que teria com a
publicação do livro: seria respeitado pela cidade, admirado por pessoas do
lugar, amado por Luísa. Esse projeto, por ser ilusório, tende a não alcançar o
livro enquanto desejo.
Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer
história! Os meus caetés realmente não têm verossimilhança, porque deles
apenas sei que existiram, andavam nus e comiam gente. Li, na escola
primária, uns carapetões interessantes no Gonçalves Dias e no Alencar, mas
esqueci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança de poder
transformar esse material arcaico numa brochura de cem ou duzentas
páginas, cheia de lorotas em bom estilo, editada no Ramalho. (C, p. 23).
O livro do Valério conta a história dos índios, o do Ramalho conta a
história de um livro que não foi escrito, como um grande ramo cortado da
árvore. Cabe ao Ramos, então, escrever e assinar, assumir a autoria de (apesar
de a narrativa em primeira pessoa nos levar a identificar Valério como o seu
escritor) o livro do desejo de Valério a partir de sua relação com Luísa, que,
enquanto objeto, desliza de mulher para livro, de livro para letra, pois Valério a
42
Cf. o capítulo “O livro do desejo / o desejo do livro”, em A ponta do novelo, uma interpretação
de Angústia, de Graciliano Ramos, de Lúcia Helena Carvalho.
111
tem, inicialmente, ligada ao prazer da leitura, ao livro, à escrita. Cabe ao Ramos,
ainda, escrever o livro do fracasso de Valério: sua relação com Luísa é
atravessada pela morte de Adrião (antes do suicídio, o simbólico: Valério quer a
todo custo livrar-se do marido de sua amante, pensa em matá-lo e, em certo
momento, acredita tê-lo feito), seu livro não sai do começo, mas o começo de
seu livro volta como uma espécie de justificativa para o fracasso da relação com
Luísa. A herança remota da brutalidade dos caetés gerara nele incapacidade
para amar, é a justificativa encontrada.
Aliás, essa herança, essa origem indígena, motiva Valério a escrever o
livro e, ao mesmo tempo, a reprimir, em sua narrativa, fatos relativos à sua
origem. Sobre isso, sobre a orfandade e as origens de João Valério, há
comentários no já mencionado ensaio de João Luiz Lafetá, “Édipo guarda-
livros: leitura de Caetés”:
O narrador não diz, mas Felícia pode ser uma irmã ou uma madrasta. Se
aceitarmos essa hipótese, teremos um padrão narrativo que se aproxima do
arquétipo: o filho órfão, despojado pelo irmão rival ou pela madrasta. É
interessante, de qualquer maneira, notar que talvez a necessidade de
“deslocar” o arquétipo tenha levado o minucioso narrador a omitir-se aqui,
ou a “reprimir” (agora em termos freudianos) uma informação preciosa
para o entendimento de seu passado. (Lafetá, 2001, p. 113).
Lafetá localiza, então, a partir desta e de outras voltas ao passado de João
Valério, algo que se assemelha ao “romance familiar”, que, na teoria de Freud,
tem mais de uma versão. Uma delas passa pelo Enjeitado (em Caetés, “a magia,
o onirismo, o ‘reino de parte alguma’, a idéia de uma criação a partir do nada, a
112
atribuição de uma ascendência nobre, a intervenção do sobrenatural”), criando
uma “ilusão compensatória” a partir da retomada de “um universo arcaico,
infantil, em contato com a natureza, e no qual os desejos podem ser satisfeitos”.
(Lafetá, 2001, p.114).
Com isso, o que não pode aparecer diretamente, o que merece o disfarce
dos selvagens, é “a fúria primária do desejo”. “Matar Adrião e apossar-se
diretamente de Luísa é o desejo ‘primário’ de João Valério, desejo que no
entanto precisa percorrer meandros caprichosos, longas digressões, parênteses
inumeráveis, antes de realizar-se e findar-se com a morte de Adrião.” (Lafetá,
2001, p. 118).
Ao dissolver o triângulo amoroso, a morte de Adrião muda os papéis,
afasta o lugar do marido ou, se acompanhamos a leitura edipiana, do pai. O que
acontece, então, assemelha-se a um parricídio (já que Valério traz consigo, até
certo ponto, a culpa da morte) seguido, ainda de acordo com a lógica edipiana,
de incesto. Essa nova situação, de uma maneira não muito clara, acaba por
trazer certa apatia aos amantes, como se o desejo deles se mantivesse no
registro da proibição.
Há ainda a questão dos papéis sociais que, no livro, estão traçados à
maneira naturalista (de um naturalismo às avessas, no entanto, ressignificado
pelo estilo de Graciliano Ramos) e que, por isso, são definidores da
personalidade de Valério, de Luísa e das demais personagens. É como se a
cidade tão bem retratada e suas figuras centrais (o comerciante, o padre, o
113
jornalista etc.) agisse sobre as personagens, definindo suas ações. Nesse sentido,
Rui Mourão (2003, p. 53) usa a expressão “romance de espaço” para classificar
Caetés.
43
Luísa, no início da trama, apresenta-se em sua casa, onde ela e o marido
recebem os amigos para encontros embalados por conversas, leituras,
declamações, jogos, música ao piano. Nessas reuniões, além dela e do marido,
Adrião Teixeira, descrito como um velho desprezível e com a saúde frágil,
aparecem outras personagens, cada qual vestida de seu atributo social: o padre,
o bacharel, o vigário, o tabelião etc.
Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo
estirado cavaqueando e era para mim verdadeiro prazer tomar parte em
duas conversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes Luísa
falava de contos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou então, com
enormes bocejos, se ia claudicando, a lamentar que a enxaqueca não lhe
permitisse saborear um enredo tão filosófico. Ele entendia bem de
comércio; o resto era filosofia.
Dentre as figuras que aparecem nesse cenário, uma merece destaque, por
ser uma espécie de contraponto aos anseios de Valério. Trata-se do advogado
Evaristo Barroca, que, ao longo da narrativa, mostra-se dono de um discurso
excessivo, uma retórica voltada para interesses escusos e mesquinhos. O
discurso (o texto) de Barroca é um elemento a mais na trama textual, uma
escrita traduzida por João Valério da seguinte maneira, numa ocasião em que
este um artigo que aquele lhe entregara para que o apresentasse à redação do
43
No que diz respeito à sobreposição da cidade, em relação às personagens, o autor conclui seu
raciocínio da seguinte maneira: “O interesse primordial do escritor [Graciliano Ramos]
concentra-se na descrição do corpo coletivo, em bases sociologizantes.” Ver Mourão, 2003, p. 53.
114
jornal A Semana, da qual Valério fazia parte: “Desdobrei as tiras e li burrices
consideráveis em honra do Mesquita, recheadas de adjetivos fofos.” (C, p. 28).
Assim, o advogado aparece como um opositor e, em certo sentido, um
duplo de Valério, que acredita que sua colaboração no jornal da cidade, seus
sonetos mal acabados e seu projeto de romance sustentam-se em um estilo e
valores mais próprios à literatura do que os artigos e discursos de Barroca.
44
Por
outro lado, a personalidade do advogado causa uma reação estranha no
narrador, ele e seus adjetivos fofos se tornam uma espécie de obsessão, Evaristo
Barroca é logo eleito inimigo, suas palavras, porque perseguem o narrador, são
por ele perseguidas, atacadas.
O estranhamento de Valério diante do outro se novamente quando ele
cogita levar adiante um envolvimento afetivo com Marta Varejão (por força de
amigos que o aconselham a engatar um namoro com a moça, mostrando-lhe as
vantagens que esse namoro lhe traria), que, comparada a Luísa, logo aparece
em desvantagem. “Confrontando-a com Luísa, eu notava entre as duas uma
diferença enorme.” (C, p. 59).
Marta Varejão, no entanto, guarda uma semelhança com Luísa: para que
João Valério a possa querer como esposa, duas mortes precisam acontecer: a de
seu pai, Nicolau Varejão, um pobre coitado, e a de D. Engrácia, viúva rica que é
44
Em seu livro sobre a metalinguagem em Graciliano Ramos, Marcelo Bulhões trata o texto de
Evaristo como o “texto do outro”, considerando que sua presença – tal como a da carta anônima
que denuncia os encontros de Luísa e Valério permite ao romance uma “construção híbrida”,
em que ora esse discurso do outro é rechaçado, atacado pelo narrador, ora é por ele
incorporado, ainda que inconscientemente.
115
sua madrinha e, supõe-se, lhe deixará boa herança. Não que o amor de João
Valério por Luísa esteja condicionado à morte de Adrião, mas isso é colocado ao
Valério como uma questão: para assumir esse amor, terá que desejar essa morte.
Luísa é objeto do desejo de Valério enquanto se mantém na indecisão
da morte de seu marido. Desde o início do livro, Adrião es fraco, doente,
sinalizando que está prestes a morrer, mas não morre. Assim é que, tanto em
relação a Luísa, quanto a Marta, João Valério, em devaneios noturnos, projeta
uma situação em que a relação amorosa se resolve com a morte, no caso, de D.
Engrácia e Nicolau, ou de Adrião.
Embrenhei-me numa fantasia doida por aí além, de tal sorte que em poucos
minutos Adrião se finou, Padre Atanásio pôs a estola sobre a minha mão e
a de Luísa, os meninos cresceram, gordos, vermelhos, dois machos e duas
fêmeas. À meia-noite andávamos pelo Rio de Janeiro; os rapazes estavam
na academia tudo sabido, quase doutor; uma pequena tinha casado com
um médico, a outra com um fazendeiro e nós íamos no dia seguinte
visitá-las em São Paulo. (C, p. 24).
Em poucas linhas, uma vida se constrói. O Rio de Janeiro é sempre o lugar
ideal, o da civilização, do progresso, de tudo o que avança. Em Palmeira dos
Índios, João Valério chega à pensão onde mora. É tarde, a cidade é pequena, um
mundo pequeno com pequenos acontecimentos, nada de importante, nada de
muito novo, apenas a mesma velha pasmaceira. “Um cão uivava na rua; os
galos entraram a cantar. O Dr. Liberato pigarreava; Isidoro Pinheiro roncava o
sono dos justos; esmoreciam no corredor as pisadas sutis do Pascoal e um
rumor, também sutil, na porta do quarto de D. Maria José.” (C, p. 24).
116
Com isso, as fantasias de João Valério se misturam aos acontecimentos, os
caetés de seu livro ganham o livro de sua vida, ou melhor, a fantasia do livro
atravessa o real de sua vida. Dessa mescla surge a vida, o realismo de
Graciliano Ramos passa por outras sombras. Sabe-se que mesmo a literatura
realista reage como um distanciamento da realidade; nela, o que se tem com
real produz-se como efeito de real, na expressão de Roland Barthes.
O livro, nesse contexto, surge como distração, suporte para o
desassossego: “Como me sentisse inquieto, resolvi distrair-me aproveitando
parte da noite para trabalhar no meu romance.” (C, p. 43) A inquietação é
tamanha que João Valério se conduz em função de seus mais estranhos desejos,
a ponto de não conseguir se distrair o bastante para escrever o livro dos caetés.
A noite da escrita requer a suspensão do tempo, é uma noite insone, e João
Valério dorme, sonhando com as glórias que a publicação lhe dará. “O meu fito
realmente era empregar uma palavra de grande efeito: tibicoara. Se alguém me
lesse, pensaria talvez que entendo de tupi, e isto me seria agradável.” (C, p. 44).
O texto de agrado, que em Evaristo Barroca é agravo, em João Valério é
promessa que não se cumpre, pois, ao se tornar um leitor de seu próprio texto,
nele fraquezas, miudezas, dúvidas. De qualquer maneira, é somente por
meio dessa leitura que o livro de Valério é escrito. Seu texto, nós o lemos
(indiretamente, aos pedaços, como falsos prenúncios) em Caetés. O ato
antropofágico dos índios que comeram o bispo D. Pêro Sardinha, no litoral
117
brasileiro, bem próximo a Palmeira dos Índios, é o (o começo) da história
que ele não consegue contar, a não ser indiretamente.
João Luiz Lafetá, em sua leitura de Caetés, associa esse antropofágico a
outro, mais central o do desejo incestuoso de João Valério. Assim, o livro
que ele escreve seria (nessa leitura dupla a que estamos condicionados a fazer,
que os caetés estão dentro de um livro outro), além de “uma espécie de aula
bem humorada e auto-irônica sobre criação literária”, uma “alegoria repleta de
significados latentes”. Por isso, por trás “do realismo de João Valério, da
fantasiosa invenção dos caetés, trabalha uma outra fantasia, mais profunda e
mais oculta: a morte do patrão e marido / rival, única maneira de resolver o
impasse em que a narrativa se meteu”. (Lafetá, 2001, p. 100).
A função da escrita do livro, para João Valério, seria, então,
simbolicamente, a morte do bispo. Como isso não se (o livro não sai de seu
começo), acontece um desvio desse nó (a morte do bispo), desvio este repetido
na própria organização dos Caetés: “O problema dos Caetés é outro: é a evitação
sistemática do nó, o desvio constante do conflito central e a digressão
interminável pelos aspectos da vida cotidiana da cidadezinha.” (Lafetá, 2001, p.
115-116). Dessa técnica narrativa, o que mais chama a atenção do crítico é, pois,
a série de “retardamentos” que, motivada pela impossibilidade da relação
amorosa que se precipita, acaba também por acrescentar ao romance “uma
trama bastante rica, na qual motivos aparentemente desconectados do
ligam-se a ele de forma indireta” (Lafetá, 2001, p. 101).
118
Nesse contexto, o livro que João Valério se põe a escrever representa desde
uma ascensão social (assim como o interesse por Marta) até outros tantos
motivos diferentes: “é reflexão sobre a composição do romance, é índice de
cisão da subjetividade (índice de ironia e demonismo, portanto), é
oportunidade de projeção dos sentimentos reprimidos de João Valério, palco
onde se desenvolveriam suas paixões disfarçadas”. (Lafetá, 2001, p. 101).
O que rompe o disfarce, fazendo a história tomar outro rumo, é a carta
anônima “reproduzida” no início do capítulo 26. Escrita a Adrião Teixeira por
“um dos seus amigos mais sinceros” (C, p. 181), a carta denuncia o caso
amoroso de Luísa e João Valério, explicitando que, não se sabe por qual razão, a
esposa acolhera os “sentimentos libidinosos” do guarda-livros, nesse trecho da
carta tratado como um “celerado”. Adrião faz com que João Valério a leia em
sua presença, e o vai interrogando: “– A verdade, João Valério. “– Mentira,
naturalmente.” (C, p. 182). A palavra falada, contudo, não desbanca a palavra
escrita (ainda que anônima) e no capítulo seguinte, Adrião, mesmo sem uma
prova do adultério (salvo, é preciso relembrar, a carta), dá um tiro em seu
próprio peito. A bala perfura um pulmão e ele demora um capítulo e oito dias
para morrer. Nesse tempo, um misto de culpa pela situação e apagamento do
desejo por Luísa vai tomando conta de João Valério, o suicídio do marido
desloca o amor, fazendo, da amada Luísa, a mulher viúva. Essa mudança, sem
outra razão óbvia, afasta os amantes.
119
Fazia uma semana que eu não falava com Luísa. No primeiro dia ela ficara
para um canto, cheirando éter e bebendo flor de laranja. Não a vi. Depois,
naquela organização de acampamento bárbaro, baixava a cabeça e
estremecia quando a encontrava. Creio que ela também fugia de mim. Em
conseqüência as suspeitas haviam esmorecido. [...] O suicídio de Adrião era
explicado como efeito de longos padecimentos e embaraços comerciais.
(C, p. 201).
Toda a intensidade do desejo de João Valério por Luísa, o desespero e a
violência que antecedem à conquista amorosa, a brandura e a lassidão que se
seguem a ela, tudo isso acaba nos dias e nas noites de vigília em torno do estado
de saúde de Adrião que, com uma bala no pulmão, entre a vida e a morte,
recebe visitas constantes. Nesse ambiente, João Valério se move, aéreo, perdido,
chocado com o desfecho do romance.
Voltei para a saleta como um sonâmbulo. Coisa estranha: ainda não tinha
visto Luísa, em nem uma vez havia pensado nela. Confessei a mim
mesmo que era o causador da morte de Adrião, mas no estado em que me
achava esqueci a natureza da minha culpa. (C, p. 195).
O moribundo, no dia da morte, ainda assusta Adrião, quer vê-lo,
despedir-se dele. Sem ar, cego, frio, é como Valério o na cama. O assunto da
despedida não podia ser outra: Adrião desculpa-se com Valério, diz acreditar
na inocência de Luísa. Quer morrer em paz. “E não se aflija com a minha morte.
Esta vida é uma peste. Havia de acabar assim. Adeus. Dê-me um abraço.
Adeus... até o dia do juízo.” (C, p. 198). Após abraçá-lo, Valério sai do quarto,
aturdido, atormentado por algo insuportável que se revela nos sintomas que
atingem seu corpo.
120
Saí. Ao atravessar o salão, encostei-me a uma parede porque os móveis em
torno começaram a girar. Isidoro, que me esperava à entrada da saleta,
amparou-me. Apertei a cabeça com as mãos e entrei a soluçar
desesperadamente. Eram soluços secos, ásperos, que me agitavam todo o
corpo. Ao mesmo tempo sentia marteladas nas fontes, zumbiam-me os
ouvidos.
Como uma criança, acompanhei Isidoro. E como uma criança, comecei a
dar pancadas na testa com a mão fechada. Depois tive necessidade de
afrouxar a gravata e o colarinho. (C, p. 198).
Estes são alguns dos sinais da angústia que atravessam a obra de
Graciliano Ramos: visão distorcida, marteladas, zumbidos, pancadas,
sufocamentos. O “bom uso da angústia” passa pela escrita desses sintomas. Em
Caetés, eles reaparecem no momento de desfecho, amparados, no entanto, na
ironia, por um lado, e em certa superficialidade, por outro, características do
protagonista.
Angustiado com a morte de Adrião, com o desenlace da história, que lhe
surgia “como uma cena indistinta entre as névoas de um sonho ruim” (C, p.
202), João Valério se ainda pressionado por Isidoro, o amigo seu confidente,
a casar-se com Luísa. No entanto, ele não a procura imediatamente, protela a
decisão por dois meses e, quando o faz, encontra uma mulher “de preto e muito
pálida” (C, p. 216), resignada em sua condição de viúva, um fantasma que, com
a ajuda de outro fantasma, o de Adrião, que ressurge enquanto “voz mortiça”,
diz ter desaparecido tudo entre eles, e que o esforço de Valério era
desnecessário. Assim termina a cena:
121
– Adeus, balbuciou Luísa com uma lágrima na pálpebra.
– Adeus, gemi.
Apertei-lhe a mão, fria, mas os dedos dela permaneceram inertes sob a
pressão dos meus. Quis beijá-los – faltou-me o ânimo.
– Adeus.
Fui até a porta da saleta, voltei-me ainda uma vez. Luísa soluçava, caída
por cima do piano. Vacilei um instante e depois saí. (C, p. 217).
Assim como Luísa se apaga, sustentando-se apenas nesse lugar de
apagamento eso livro que João Valério escreveria. Depois de três meses da
morte de Adrião Teixeira, o guarda-livros torna-se sócio da firma e faz dessa
nova ocupação uma justificativa para se ter afastado do romance: “Abandonei
definitivamente os caetés: um negociante não se deve meter em coisas de arte.
(C, p. 218). No entanto, logo a seguir vemos, devido à “vontade hesitante” do
narrador, uma descrição do livro dos caetés, uma volta a suas páginas
guardadas no fundo da gaveta, como se a tentativa de excluí-lo totalmente de
sua vida, desviar-se dele pela ocupação nos negócios, falhasse. Além do livro,
há ainda o jornal (a redação, a tipografia):
Às vezes desenterro-os [os caetés] da gaveta, revejo pedaços da ocara, a
matança dos portugueses, o morubixaba de enduape (ou canitar) na cabeça,
os destroços do Galeão de D. Pêro. Vem-me de longe em longe o desejo de
retomar aquilo, mas contenho-me. E perco o hábito. (C, p. 218).
Vou quase todas as noites à redação da Semana. Não para escrever, é claro,
julgo inconveniente escrever. Limito-me a dar, quando é necessário, algum
conselho ao Pinheiro. uns verbos que ele estraga, uns pronomes que
atrapalha. Escorregaduras sem importância: na Semana de qualquer
maneira que estejam estão bem. (C, p. 218).
1
22
João Valério não leva o enfrentamento da angústia ao limite, como Paulo
Honório ou Luís da Silva; ele procura desviar-se, distrair-se, e, até certa
medida, se satisfaz dessa maneira, absolvendo-se de culpas, conduzindo sua
existência de acordo com hábitos antigos, mascarando o real, refugiando-se
em pequenos devaneios, em lembranças apaziguadoras.
A lembrança da morte de Adrião pouco a pouco se desvaneceu no meu
espírito. Afinal não me devo afligir por uma coisa que não pude evitar. A
minha culpa realmente não é grande, pois estão vivos numerosos homens
que certas infidelidades molestam. E sou incapaz de sofrer por muito
tempo. O Dr. Liberato falou em nevrose, e eu não tenho razão para
pretender saber mais que o Dr. Liberato. Repito isto a mim mesmo para
justificar-me. (C, p. 220).
No capítulo final, o narrador encontra-se a vagar pela cidade, relembrando
seu passado com Luísa, seu interesse pelos caetés. “Que sou eu senão um
selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora?” (C,
p. 221). Essa é a conclusão a que chega João Valério, desiludido, sem mais
querer escrever o livro, passando a ser, ele próprio, o caeté de que tanto falara, e
que, nessa descrição final, evoca a origem de certos hábitos seus. Na narrativa,
momentos antes, quando da discussão em que se coloca publicamente seu
romance com Luísa, havia se sentido derrotado, a cidade estava toda contra ele,
o livro que ele ofereceria aos concidadãos, para ser respeitado e admirado por
todos, não passava de um projeto inacabado. Agora, as suspeitas de seu caso
amoroso com Luísa haviam esmorecido, sua vida tomara outro rumo. Tornara-
123
se comerciante, acomodara-se às tradições da cidade, engrandecera sua vaidade
sem precisar da literatura, do sucesso do livro que abandonara antes do fim.
Ainda assim, a escrita continua a ser uma veleidade sua, uma “vontade
hesitante”. Escrever para depois riscar, enfeitar para depois deixar cair os
enfeites, ficar despido diante da escrita, devorar o texto do outro, tudo isso
compõe o desfecho do livro, em que o narrador se um caeté. Com os
despojos, os restos de seus traços (simbólicos, certamente) de índio, acrescidos
de diferenças (“outras raças, outros costumes, quatrocentos anos”) (C, p. 223),
João Valério constrói seu mundo. Na arqueologia do espaço em que vive,
percebe que o melhor é viver de acordo com os costumes, casar-se com Josefina
Teixeira, herdeira de seu sócio. O amor, este talvez fosse mais ou menos o
mesmo dedicado a Luísa: primeiro, incendiário, impetuoso; depois, incerto,
reticente, convencional. As leituras, também elas incertas. O certo são os
negócios, o comércio, o cotidiano da cidade. No entanto, no escritor João
Valério ainda continuam guardadas letras que, independente de sua decisão de
abandoná-las, vão, uma hora ou outra, tomar seu punho, ocupar sua mão,
enrijecer seus dedos, escrever sua vida de caeté em Palmeira dos Índios.
124
C A P Í T U L O 4
S . B E R N A R D O , O D E S L O C A M E N T O
125
F
A Z E N D A L I T E R Á R I A
Palmeira dos Índios, Alagoas, 1932. Graciliano Ramos escreve seu
segundo romance. O primeiro, Caetés, ainda não fora publicado, apesar de
entregue um bom tempo ao editor. Mas, nesse momento, publicar um livro
parece não ser o mais importante para Graciliano, que, aos trinta e nove anos,
deixava a família (Heloísa e dois filhos) em Maceió e voltava a morar
provisoriamente em Palmeira dos Índios, sozinho em sua antiga casa ou na
companhia de uma irmã e dos quatro filhos de seu primeiro casamento.
45
Na volta “forçada” a Palmeira dos Índios, escrever é o que lhe importava.
Tanto é que produziu um romance em onze meses, pouco mais, pouco menos.
Anterior ao romance, a história de um conto perdido na gaveta, uma história
guardada durante o tempo necessário para ser esquecida, para, depois de
perdida, tornar a ser escrita. Escrever de novo é escrever o novo. A cidade
não era mais a mesma de tempos atrás, de quando, voltando do Rio de Janeiro,
fez-se comerciante, casou-se, enviuvou, elegeu-se prefeito.
É dessa época (de 1924) “A carta”, um conto “chinfrim”, segundo ele
mesmo, redigido em meio a fantasmas que povoavam seu pensamento
sobretudo assassinatos, crimes, mortes lhe vinham à mente. Depois desse conto,
45
Em abril de 1930, Graciliano Ramos renuncia ao cargo de prefeito de Palmeira dos Índios
para, a convite do então governador de Alagoas, Álvaro Paes, assumir a direção da Imprensa
Oficial, mudando-se, assim, para Maceió. Com a Revolução, o horizonte de Graciliano nesse
cargo se reduz ao ponto de ele pedir demissão, em dezembro de 1931. “Não havia emprego à
vista na Capital. Que indicação mais segura senão retornar a Palmeira dos Índios? Heloísa
permaneceria com Ricardo e Luísa na casa do pai, em Maceió.” (Moraes, 1996, p. 77).
126
escreveu outro e, além deste, ainda outro. O terceiro, como foi visto, é o que
imediatamente se amplia até se tornar romance (Caetés). O segundo conto
(“Entre grades”), anos mais tarde, também serviria como ponto de partida para
outro romance (Angústia).
Mas foi o primeiro conto, “A carta”, ou melhor, o que dele sobrou
(algumas poucas passagens, alguns tipos e motivos), que tomou os dias e as
noites do escritor ao longo de 1932. Uma carta que ainda não chegara ao seu
destino, que talvez nunca pudesse chegar, se não pelo desvio, pelo viés do
esquecimento. Retornar ao conto, voltar à cidade onde ele fora escrito, seria o
mesmo que o rasurar, apagar, para que outra história pudesse ser contada.
Assim, Graciliano Ramos, o autor da carta, reafirma, com o livro que es
escrevendo, o seu desejo de escrita. S. Bernardo, nesse momento, parece ter, para
ele, o sentido da confirmação de uma obra por vir. A literatura seria o seu
ofício, a sua missão, o seu abismo.
Resta-me agora o S. Bernardo. Tenho alguma confiança nele. As emendas
sérias foram feitas. O trabalho que estou fazendo é quase material: tolice,
substituição de palavras, modificação de sintaxe. Mas tenho trabalhado
demais: um dia destes estive com os meus bichos de S. Bernardo das seis da
manhã à meia-noite, sem me levantar da banca. (Ca, p. 130).
A reação do autor diante do segundo livro é também uma novidade. Se
Caetés aparece envolto em um discurso de rejeição, com S. Bernardo esse
discurso tende a se alterar. Apesar de ainda se valer de certa auto-ironia nas
considerações que faz da própria obra, ao falar ou escrever sobre este livro,
127
Graciliano deixa claro que encontrara uma nova forma (uma nova língua) em
sua obra. Estava ali um trabalho que surgia como um abalo, um
deslocamento, sobretudo graças ao investimento em uma nova variante da
língua literária.
O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como
você viu. Agora está sendo traduzido para brasileiro, um brasileiro
encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da
cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de
expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem.
Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas locuções que vou
passando para o papel. O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me
servem de dicionários. O resultado é que a coisa tem períodos
absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés.
Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes para a fixação, da
língua nacional. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um
clássico? Os idiotas que estudarem gramática lerão S. Bernardo, cochilando,
e procurarão nos monólogos de seu Paulo Honório exemplos de boa
linguagem. (Ca, p. 135).
S. Bernardo reafirma, com isso, um projeto literário calcado em um estilo que
logo se tornaria conhecido. O “estilo seco”, a frase perfeitamente limpa aliada
a um léxico constituído por regionalismos e brasileirismos confunde-se, pois,
com a marca, a assinatura Graciliano Ramos.
É curioso notar como o autor parece esperar por esse livro. Os trechos
retirados das Cartas
46
demonstram a entrega e a euforia em sua escrita. É curioso
também observar como as cartas que tratam de um livro ainda inexistente, da
construção de um livro, transmitem a sensação de que, mesmo trabalhando na
conclusão desse livro, projetando sua conseqüente publicação, permitindo-se
46
A respeito da edição das cartas de Graciliano Ramos, ver os artigos “Sinal de menos”, de
Zenir Campos Reis, e “Graciliano, das pérolas às críticas”, de Letícia Malard.
128
pensar, ainda que por meio da ironia, em futuras traduções ou até na
possibilidade de tornar-se um clássico, mesmo assim a sensação é de que o
escritor fala de um lugar aberto, sem garantias. “O S. Bernardo vai indo, assim
assim. Pareceu-me ontem que aquilo é uma porcaria, sem nem cabeça.” (Ca,
p. 126).
47
O destino do livro não lhe pertence. “O livro é livro quando não remete
para alguém que o teria escrito, tão puro do seu nome e livre da sua existência
quanto o é do sentido próprio daquele que lê.(Blanchot, 1984, p. 240).
48
No
entanto, Graciliano Ramos está entregue ao romance que escreve, sua vida gira
em torno (em função) desse livro. “S. Bernardo foi o romance que projetou
Graciliano Ramos como um dos maiores escritores brasileiros. Muitos o
consideram a sua obra-prima.”
49
Em 1932, Graciliano Ramos experimentava não
exatamente a glória do livro, mas a solidão da obra, se considerarmos esse seu
investimento na literatura coincidente com o que Blanchot reconhece como
passagem do “eu” ao “ele”:
47
“O medo da opinião alheia reaparece nas menções a S. Bernardo. Obra-prima do autor na
opinião de muitos, foi o que menos recebeu dele avaliações agressivas. Em contrapartida, faz-
lhe restrições de caráter moral ‘frases cabeludíssimas que não podem ser lidas por meninas
educadas em conventos’ – e teme que o padre Macedo venha a falar mal dele na igreja.”
Malard, 2006, p. 206.
48
Maurice Blanchot faz referência ao Livro concebido por Mallarmé. “Estamos aqui o mais
longe possível do livro das tradições romântica e esotérica. Este é um livro substancial, que
existe pela verdade eterna de que é a revelação oculta, embora acessível: revelação que coloca
aquele que a ela acede na posse do segredo e do ser divinos. Mallarmé rejeita a idéia de
substância como idéia de verdade permanente e real. Quando fala de essencial quer seja o
ideal, o sonho –, refere-se sempre a qualquer coisa que tem por fundamento a irrealidade
reconhecida e afirmada da ficção.” Ver Blanchot, 1984, p. 240-241.
49
Quarta capa da 57
a
edição, Record, 1991.
129
Quando escrever é entregar-se ao interminável, o escritor que aceita
sustentar-lhe a essência perde o poder de dizer Eu”. [...] O “Ele” que
toma o lugar do Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor por
intermédio da obra. “Ele” não designa o interessse objetivo, o
desprendimento criador. “Ele” o glorifica a consciência em um outro
que o eu, o impulso de uma vida humana que, no espaço imaginário da
obra de arte, conservaria a liberdade de dizer Eu”. “Ele sou eu
convertido em ninguém, outrem que se torna o outro, e que, no lugar
onde estou,o possa mais dirigir-se a mim e que aquele que se me dirige
não diga “Eu”, não seja ele mesmo. (Blanchot, 1987, p. 17, 19).
De janeiro a novembro deste ano, quando retorna para Maceió (é o mês de
nascimento de sua filha Clara), seu tempo é dedicado à tarefa ora prazerosa, ora
exaustiva, de escrever o livro. Contudo, antes desse retorno, esteve em Maceió,
numa situação adversa:
Quando escrevia a capítulo 19 do romance [S. Bernardo], Graciliano sofreria
uma queda ao descer de um degrau. Com febre e fortes dores na perna
direita, interromperia o trabalho e seguiria para Maceió, onde os exames
indicariam o diagnóstico: psoíte (inflamação do músculo na região ilíaca).
Internado às pressas no Hospital o Vicente de Paula, seria operado para
extrair o abcesso que se formara. (Moraes, 1996, p. 80).
Essa queda (e suas conseqüências: a intervenção cirúrgica, a
convalescença, as dores), acontecida enquanto o autor dedica-se a S. Bernardo,
tornará, ela própria, matéria de escrita. Nesse sentido, sempre são citados os
contos “Paulo” e “O relógio do hospital” e passagens de Angústia e Memórias do
cárcere. A memória da queda se constrói com elementos que misturam o
“trauma” da cirurgia (o dilaceramento, a divisão, a parte boa e a parte podre, a
viva e a morta, a “barriga aberta a derramar pus”) com a dor sica (a
dificuldade de locomoção, a fraqueza, o entorpecimento).
130
Entre agosto (que é quando o autor sai do período de convalescença e
volta para Palmeira dos Índios) e novembro de 1932, além de dedicar-se a
escrever S. Bernardo, Graciliano ainda discutia, por cartas, com Schmidt, o editor
que demorava na publicação de Caetés. Como se sabe, o lançamento deste livro
se deu em dezembro de 1933. Assim, aos quarenta anos, Graciliano Ramos
escreve seu segundo romance, sem ao menos ter publicado o primeiro e, ao
mesmo tempo, com a certeza de que a obra se realizava. Para sustentá-la,
solidão, dias perdidos, noites de escrita, cigarro e café. “Quanto ao cigarro e ao
café creio que não me fazem muito mal: se fizessem, eu não estaria vivo.” (Ca,
p. 133).
S. Bernardo foi lançado em novembro de 1934, pela editora Ariel. À época
de seu lançamento, as crônicas literárias, normalmente publicadas em jornais e
revistas, comparando-o ao Caetés, que saíra um ano antes, viam nele algo de
mais definitivo, uma espécie de visto de entrada para a literatura brasileira,
coisa que o romance anterior, ainda segundo as crônicas, apenas prometia. Era
“o livro de um novo escritor”. Um novo livro para a literatura brasileira.
Somente com Caetés, a promessa talvez pudesse se transformar em fracasso, e
em vão seriam todos os esforços do escritor na busca da obra.
O que não acontece, pois S. Bernardo cumpriu-se como confirmação,
espécie de passaporte para a posteridade. Tudo isso por causa da diferença
(para uns, bastante tida, para outros, obscura) entre os dois romances. Muitas
explicações se deram a respeito, como a de Álvaro Lins, que aposta em outra
131
categoria para S. Bernardo: a do romance psicológico, mais ao gosto do nosso
Machado de Assis do que de Eça de Queiroz.
Apenas um ano depois de Caetés, em 1934, aparecia São Bernardo; e dir-se-ia
que era o livro de um novo escritor, tal a diferença entre um e outro, quanto
ao valor literário e à significação humana. [...] O sr. Graciliano Ramos, ao
criar e movimentar personagens como Paulo Honório e Madalena, parece
ter encontrado definitivamente o seu plano de ficcionista: o do romance
psicológico. (Álvaro Lins, Visão geral de um ficcionista. Correio da Manhã,
26 junho 1947).
Antes ainda de Álvaro Lins, muito se comentou acerca da grandeza de S.
Bernardo, como se ali, sim, começasse a obra de um grande escritor. No mesmo
ano de sua publicação, encontramo-lo eleito “o maior romance de 1934” por
Jorge Amado, “superior a Banguê [de José Lins do Rego] e Maleita [de cio
Cardoso] e qualquer outro deste anno”. o seu autor, Graciliano Ramos, é
visto como um “sujeito optimo e secco” que Jorge Amado conhecera, havia
poucos anos, em Maceió. (Jorge Amado, Balanço dos romances de 1934. Diário
da manhã, 18 julho 1935).
A par dos elogios, as críticas da época contribuem com o exercício de
apontar os defeitos do romance, sendo o mais visível deles a contradição
existente no caso de o narrador, Paulo Honório, assumir também, não
exatamente a autoria, mas a escritura do romance. No mesmo artigo citado
acima, Álvaro Lins trata dessa questão:
132
O principal defeito de São Bernardo tem sido apontado mais de uma vez:
é a inverossimilhança de Paulo Honório como narrador, é o contraste entre
o livro e seu imaginário escritor, o que se verificara em Caetés. De certo
modo, em todos os romances escritos na primeira pessoa concede-se uma
margem para a inverossimilhança. Contudo, em São Bernardo ela é
excessiva e inaceitável. Uma novela de tanta densidade psicológica,
elaborada com tantos requintes de arte literária, não suporta o artifício de
ser apresentada como escrita por um personagem primário, rústico,
grosseiro, ordinário, da espécie de Paulo Honório. (Álvaro Lins, Visão geral
de um ficcionista. Correio da Manhã, 26 junho 1947).
O fato de o livro ter um “imaginário escritor” capaz de requintes literários,
apesar de rude, torna-se, aos olhos da crítica, inaceitável, posto que
inverossímil. Esse ponto de vista, no entanto, sofre revisões na medida em que
surgem novas leituras de S. Bernardo, como, por exemplo, a de Graça Paulino:
Acreditamos, todavia, que a perícia do narrador nada tem de inverossímil.
Não se explica a criação literária bem-sucedida ligando-a necessariamente à
erudição. Nada de erudito, de letrado no livro. Há, sim, uma construção
instintivamente habilidosa, que revela a esperteza natural de um discurso que
deseja conquistar seu destinatário, sem pretender-se superior a ele.
(Paulino, 1979, p. 51).
Essa questão não se coloca para Caetés, pois o romance de João Valério não
sai do começo, e mesmo o seu começo não nos é dado a ler, ao contrário do que
acontece com S. Bernardo, cujo texto é todo ele atribuído a Paulo Honório.
Assim, se em Caetés, em termos de técnica narrativa, o plano do livro a ser
escrito é tomado pelo plano de ação, que prevalece sobre o outro, em S. Bernardo
os dois planos se confundem, o que faz com que a história se organize em
função do tempo em que é escrita. Nesse sentido, segundo Rui Mourão, no
livro, percebemos:
133
como os dois planos da composição se encontram profundamente
penetrados. A passagem de uma superfície a outra corresponde a simples
variação de perspectiva para a contemplação do mesmo fenômeno. E
sentimos que o sopro de vida que anima os dois primeiros capítulos é mais
verdadeiro e convincente do que supúnhamos. Aquelas páginas não nos
oferecem informações sobre a vida, porque são a própria vida acontecendo.
(Mourão, 2003, p. 59).
50
O já citado Álvaro Lins, por sua vez, parece esperar do romance um
enredo mais centrado no movimento (ainda que interior, psicológico) das
personagens, o que ajudaria no necessário andar da trama:
Nota-se a princípio uma certa hesitação na marcha do enrêdo de São
Bernardo. Os primeiros capítulos se lançam em várias direções, como se o
próprio romancista não estivesse ainda no domínio da linha central do
desenvolvimento dramático. mesmo alguns trechos que parecem
enxertados, podendo figurar ou não no conjunto, indiferentemente, como o
capítulo VII, com a história de Seu Ribeiro. Como ficção, rigorosamente, o
livro se afirma e define a partir do casamento de Paulo Honório com
Madalena. (Álvaro Lins, Visão geral de um ficcionista. Correio da Manhã, 26
junho 1947).
Esses “enxertos” serão mais tarde entendidos como um importante
recurso narrativo do romance. O capítulo VII mesmo pode ser entendido como
um “exercício de técnica”, um “retardamento”, no sentido proposto por João
Luiz Lafetá em sua leitura de Caetés. No capítulo anterior, Paulo Honório trama
com seu capataz, Casimiro Lopes, o assassinato de Mendonça, dono da fazenda
Bom-Sucesso, vizinha de S. Bernardo. Mendonça aparece no romance como um
inimigo, um empecilho diante dos planos de Paulo Honório. O assassinato,
50
Os dois primeiros capítulos são mencionados porque, segundo o narrador de S. Bernardo, são
“capítulos perdidos”, pois se limitam à discussão das maneiras possíveis de se contar a história,
e não faz avançarem os acontecimentos, ao menos em um sentido restrito.
134
porém, não é claramente assumido, o há uma confissão do crime (apesar de
a sua premeditação, a sua trama estar à vista do leitor) e, mesmo se houvesse,
esta ficaria a cargo de Casimiro Lopes, segundo nos a entender o mandante
do crime.
Domingo à tarde, de volta da eleição, Mendonça recebeu um tiro na costela
mindinha e bateu as botas ali mesmo na estrada, perto de Bom-Sucesso. No
lugar há hoje uma cruz com um braço de menos.
Na hora do crime eu estava na cidade, conversando com o vigário a
respeito da igreja que pretendia levantar em S. Bernardo. Para os futuros,
se os negócios corressem bem.
Que horror! exclamou padre Silvestre quando chegou a notícia. Ele tinha
inimigos?
Se tinha! Ora se tinha! Inimigo como carrapato. Vamos ao resto, padre
Silvestre. Quanto custa um sino? (SB, p. 41).
Na seqüência, o capítulo VII desvia-se do tema do assassinato.
51
Ao leitor
que espera encontrar a repercussão de tão grave acontecimento, resta distrair-se
com a história de seu Ribeiro, um velho guarda-livros que o narrador, “por esse
tempo”, conhece “na Gazeta do Brito”, em Maceió. O narrador descreve, então,
o procedimento que irá tomar para escrever aquele capítulo. “Simpatizei com
ele e, como necessitava um guarda-livros, trouxe-o para S. Bernardo. Dei-lhe
alguma confiança e ouvi a sua história, que aqui reproduzo pondo os verbos na
terceira pessoa e usando quase a linguagem dele.” (SB, p. 43).
51
“O assunto do assassinato de Mendonça volta à narrativa ainda em três outras oportunidades:
Costa Brito acusa Paulo Honório de assassino na
Gazeta
, Madalena faz o mesmo, Padilha se
refere a ‘calúnias’. Em nenhuma dessas vezes o narrador admite claramente sua culpa. [...]
Talvez interesse mais ao narrador cativar a simpatia de seu leitor que arriscar-se à crueza da
confissão.” (Paulino, 1979, p. 53).
135
A história de seu Ribeiro é a de sua autoridade de “major”, ao longo de
sua vida, e de sua decadência, quando velho, esta atribuída à própria
decadência do sistema no qual sua patente significava principalmente comando
político, algo impraticável na nova ordem do lugar, que crescera, ganhara
vigário, delegado, juiz etc. De início, seu Ribeiro, coerente com a nova profissão,
é apresentado como alguém que se distingue dos outros por ser alfabetizado,
por dominar as letras. “Todos acreditavam na sabedoria do major. Com efeito,
seu Ribeiro não era inocente: decorava leis, antigas, relia jornais, antigos, e, à
luz da candeia de azeite, queimava as pestanas sobre livros que encerravam
palavras misteriosas de pronúncia difícil.” (SB, p. 44).
No entanto, segundo a percepção do narrador, seu Ribeiro é um tipo
daqueles que se deixam derrotar pelo tempo, mais um daqueles que, na vida,
são perdedores. Tanto que, no final do capítulo, ao resumir a trajetória do
guarda-livros, Paulo Honório, a seu modo, assim conclui: “– Tenho a impressão
de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automóvel, seu Ribeiro. Por
que não andou mais depressa? É o diabo.” (SB, p. 46).
Seu Ribeiro, então, passa a cumprir seu papel de guarda-livros (o mesmo
de João Valério, em Caetés), cuidando da escrituração da fazenda. Além disso,
entendia-se bem com Madalena e d. Glória, o que muito desagrada a Paulo
Honório. Sua figura, no entanto, fica novamente de lado, pois o capítulo
seguinte volta ao tema do assassinato: “O caboclo mal-encarado que encontrei
um dia em casa do Mendonça também se acabou em desgraça.(SB, 46). Mais
136
uma vez, Paulo Honório é elíptico, esquivando-se de qualquer tipo de acusação,
nada se podendo provar contra ele. O que escreve, aliás, parece ter o sentido
contrário, pois ele busca, de certa maneira, livrar-se das acusações (alucinações)
dos assassinatos e das mortes que fazem parte de sua história.
Uma limpeza. Essa gente quase nunca morre direito. Uns são levados pela
cobra, outros pela cachaça, outros matam-se. [...]
Na pedreira perdi um. A
alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva
e órfãos miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas
comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se.
Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, proibi a aguardente.
(SB, p. 47).
E, assim, crimes se sucedem, enquanto Paulo Honório se esquiva de
ameaças constantes, cuidando de melhorar e expandir seus negócios, até que
lhe vem uma vontade de se casar, até chegar, enfim, o capítulo que Álvaro Lins
destaca como aquele que novo sentido, novo ritmo ao livro o XVII, do
casamento de Paulo Honório e Madalena. Além dele, o crítico destaca ainda
outro como “ponto alto do romance”, o XXXI, do suicídio de Madalena. “Este
capítulo XXXI de São Bernardo é sem dúvida uma pequena obra-prima.” (Álvaro
Lins, Visão geral de um ficcionista. Correio da Manhã, 26 junho 1947).
Aliás, a composição de pequenas obras-primas, de capítulos que, mesmo
curtos, como os de S. Bernardo, atingem, por si, uma existência independente,
uma força, uma intensidade única, é uma característica de Graciliano Ramos.
No caso de S. Bernardo, são citados, nesse sentido, além dos que Álvaro Lins
destaca, os dois primeiros (“capítulos perdidos”, no dizer do narrador), o
137
capítulo XIX (mais confuso, mais fragmentado, mais delirante) e o final (em que
a encenação do tempo da escrita coincide com o fim do livro).
No capítulo eleito como “pequena obra-prima” por Álvaro Lins, encontra-
se a coruja, signo (significante, melhor dizendo) que traz, para Paulo Honório, a
escrita, o saber (ou, pelo menos, o querer saber) da morte, o estremecimento
diante de um vazio – Madalena – que, desde o primeiro capítulo do livro (desde
o primeiro pio da coruja), vai sendo bordejado, costurado pelas mãos a um
tempo hábeis e desastrosas do narrador. Não exatamente a coruja, mas sim o
pio da coruja anuncia a ausência de Madalena, e a vontade imperativa de
escrever sobre essa ausência, de traçar no papel o som da sua falta.
No entanto, nesse capítulo XXXI, o pio está mais próximo de um mau
agouro, que abre a seqüência de acontecimentos que culminam na morte de
Madalena. Ao retornar como memória de Paulo Honório, o pio da coruja se
transforma, por deslizamento, por metonímia, no traço que ficou dessa morte.
Assim, aos ouvidos de Paulo Honório, o pio alcança o estatuto de letra, tornando-
se inscrição sobre outra inscrição, rasura sobre a ferida quase insuportável, tal
como acontece com os gritos do pai aos ouvidos do menino de Infância.
“Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas.
Algumas se haviam alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os
ouvidos da gente. Eu desejava assistir à extinção daquelas aves amaldiçoadas.
(SB, p. 183). Paulo Honório não seu desejo se realizar, as aves não se
extinguem, pelo contrário, cada vez mais, atormentam seus ouvidos com o pio
138
que anuncia a tragédia.
52
Nessa hora, do alto da torre, avista Madalena
escrevendo (“– Em que estará pensando aquela burra? Escrevendo. Que
estupidez!”) e, em outro espaço, uma outra mulher, Rosa do Marciano, com seu
“remeleixo de bunda que era mesmo uma tentação” (SB, p. 184-185). Além
dessas figuras, ele também recantos da casa e a paisagem externa: “campos,
serra, nuvens”. A técnica exibida na condução da narrativa é realmente
admirável, vai-se de um ponto a outro no tempo certo, paisagens e
pensamentos vêm e vão (em um desvio, no fim das contas, inútil) na lenta
indecisão do narrador, como se a evitar a tragédia que se precipita.
Paulo Honório não vive enquanto constrói sua existência, enquanto realiza
seu sonho de proprietário de fazenda, ele age simplesmente e mata; mas,
quando chega ao auge de sua ação, vai procurar numa mulher o veneno
que o atacará, que dissolverá suas forças, que minará não de fora, como
mulher, mas de dentro, como imagem, como representação de seu espírito,
a sanidade de seus músculos de caboclo, o vigor de suas vísceras e lhe dará
essa volúpia de morte, confundida com a vida em febre. (Bastide, 2001,
p. 139).
Por isso, a escrita de S. Bernardo se faz para a morte, e na carta que
Madalena escreve, na letra que voa ao vento está o seu começo. Para que sua
história se faça, é preciso que se estabeleça uma relação com a morte. Nesse
sentido, o livro de Paulo Honório é um ato de criação e de morte. Aliás, essa é
uma condição própria da literatura, posto que a palavra é a morte da coisa, ao
passo que a coisa ganha nova existência na palavra, que “me dá o que ela
significa, mas primeiro o suprime”:
52
A esse respeito, ver o artigo de Roger Bastide, “O mundo trágico de Graciliano Ramos”.
139
Certamente, minha linguagem não mata ninguém. No entanto: quando
digo “essa mulher”, a morte real é anunciada e está presente em minha
linguagem; minha linguagem quer dizer que essa pessoa que está ali
agora pode ser separada dela mesma, subtraída à sua existência e à sua
presença e subitamente mergulhada num nada de existência e de
presença; minha linguagem significa essencialmente a possibilidade dessa
destruição; ela é, a todo momento, uma alusão resoluta a esse
acontecimento. Minha linguagem não mata ninguém. Mas, se essa mulher
não fosse realmente capaz de morrer, se elao estivesse a cada momento
de sua vida ameaçada de morte, ligada e unida a ela por um laço de
essência, eu o poderia cumprir essa negação ideal, esse assassinato
diferido que é minha linguagem. (Blanchot, 1997, p. 311-312).
Na literatura, essa morte, essa capacidade de morrer que atravessa o
sujeito, se faz tão presente que aponta, a partir de sua exposição a um estado de
desaparecimento, para uma relação de fracasso, para uma “linguagem em
fracasso”.
53
Eno o perigo se mostra: a relação com o indizível, com o fracasso,
e, finalmente, como a morte, a que o escritor está sujeito (assujeitado) torna
sua atividade arriscada e forçosamente em fracasso”. Em seu ofício, sempre
haverá a ponta que sobra, a ferida que se abre, o desejo que não se completa, a
demanda que o termina.
Quem vai querer? Quem vai se entregar, assim, a esse processo sem
garantias, a essa viagem possivelmente sem retorno? Aos escritores,
àqueles para quem, no dizer de Bataille, a “literatura é o essencial, ou ela
não é nada”, isso não parece ter sido indagado. Pois a questão que se
coloca parece ter sido anterior a essa, que a linguagem parece ter
fracassado para que depois, depois, fosse dada ao escritor essa
estranha capacidade de, entregando-se a ela, à linguagem, ser-lhe possível
vislumbrá-la assim: a linguagem em fracasso”. (Castello Branco, 1997,
p. 14).
53
Ver a introdão ao livro Para que serve a escrita? assinada por Lucia Castello Branco.
140
Enfim, o capítulo em destaque, além de comprovar a maestria da prosa de
Graciliano Ramos, constitui-se como ponto-chave para a narrativa (devido,
entre outras razões, aos acontecimentos que nele se encerram, devido à
presença da carta que sentencia a morte) e para a compreensão do estatuto da
escrita no romance.
Ali pelos cafus desci as escadas, bastante satisfeito. Apesar de ser um
indivíduo medianamente impressionável, convenci-me de que este mundo
não é mau. Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga sensação
de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos
rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas,
tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive
gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós,
uma grande serenidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos fortes.
E se há ali perto inimigos morrendo, sejam embora inimigos de pouca
monta que um moleque devasta a cacete, a convicção que temos da nossa
fortaleza torna-se estável e aumenta. Diante disto, uma boneca traçando
linhas invisíveis num papel apenas visível merece pequena consideração.
(SB, p. 185).
A boneca que, ao entardecer, traça “linhas invisíveis num papel apenas
visível”, é Madalena. A pequena consideração dada a esse seu gesto, algumas
linhas adiante, quando o narrador, ao se encaminhar para o pomar, descobre no
chão “uma folha de prosa”, se agigantará. O momento é de dúvida, ao lusco-
fusco “ali pelos cafusnão se pode ler bem, principalmente quando se trata
de uma folha avulsa, perdida de outras que porventura lhe completariam o
sentido. Porém, está a letra de Madalena, a materialidade de uma carta que
Paulo Honório julga ser dirigida a outro destinatário, que não ele. “Não estava
o nome do destinatário, faltava o princípio, mas era carta a homem, sem
dúvida.” (SB, p. 185).
141
O equívoco causado pela carta de Madalena está no fato de Paulo Honório
não se reconhecer como seu destinatário. Uma folha voa pelo jardim e lhe chega
antecipadamente às mãos, traduzindo-se em acaso que traz consigo a tragédia,
visto que sua interpretação, incompleta, obscura, leva Paulo Honório, mais uma
vez, ao erro, aos delírios de ciúme. Certamente, a carta já traz a sua sorte
desenhada; trata-se de uma despedida, uma carta-desastre, letras a serem lidas
depois da anunciada morte de sua autora.
Sendo assim, o erro da letra, a folha que voa, acaba apenas por causar mais
desespero ao seu destinatário: “Li a folha pela terceira vez, atordoado, detendo-
me nas expressões claras e procurando adivinhar a significação dos termos
obscuros. Está aqui a prova, balbuciei assombrado. A quem serão dirigidas
estas porcarias?” (SB, p. 186). Destacam-se, aqui, duas questões: a primeira, é
que Paulo Honório não consegue decifrar a escrita de Madalena;
54
a segunda, é
que ele não sabe que é o destinatário da carta, ou, antes, constrói, em sua
fantasia, outro destinatário: “As suspeitas voaram para cima de João Nogueira,
do dr. Magalhães, de Azevedo Gondim, do Silveira da escola normal. [...] Afinal
a noite caiu, não enxerguei mais as letras.” (SB, p. 186).
Escrita e traição encontram-se associadas. A literatura é o campo da
traição. Ao escrever, o escritor é traído por ele mesmo, pela linguagem que o
atravessa. Na escrita, é-se a um tempo traidor e traído. “Trair seu próprio
54
O não-entendimento verbal (relativo tanto à palavra escrita quanto à falada) entre as duas
personagens é explicitado em outros trechos da narrativa.
142
reino, trair seu sexo, sua classe, sua maioria qual outra razão de escrever? E
trair a escrita.” (Deleuze, 1998, p. 56).
A traição literária, nós a encontramos na artimanha de Pelope, em seu
jogo de fiar e desfiar a espera, de bordar o esquecimento na trama da
memória; no gesto precavido de Ulisses, na traição que esse gesto comporta,
não às sereias, mas ao próprio Ulisses; finalmente, no olhar de Orfeu, em seu
ponto de fuga:
[...] é para Eurídice que Orfeu desce: Eurídice é, para ele, o extremo que a
arte pode atingir, ela é, sob um nome que a dissimula e sob um u que a
cobre, o ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte,
o desejo, a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se
aproxima com a outra noite.
Esse “ponto”, a obra de Orfeu, não consiste, porém, em assegurar a
aproximação, descendo para a profundidade. Sua obra consiste em trazê-lo
de volta para o dia e dar-lhe, no dia, forma, rosto e realidade. Orfeu pode
tudo, exceto olhar esse “ponto” de frente, salvo olhar o centro da noite na
noite. Pode descer para ele, pode, poder ainda mais forte, atraí-lo a si e,
consigo, atraí-lo para o alto, mas desviando-se dele. Esse desvio é o único
meio de se acercar dele: tal é o sentido da dissimulação que se revela na
noite. Mas Orfeu, no movimento da sua migração, esquece a obra que deve
cumprir, e esquece-a necessariamente, porque a exigência última do seu
movimento não é que haja obra mas que alguém se coloque em face desse
“ponto”, lhe capte a essência, onde essa essência aparece, onde é essencial e
essencialmente aparência: no coração da noite. (Blanchot, 1987, p. 172).
No escuro, Paulo Honório procura Madalena; “linhas invisíveis num
papel apenas visível”, é o que ele encontra. Os sinais no corpo, que
completam o ciúme, estão ligados, mais uma vez, a distúrbios na audição e na
visão: “[...] zumbiam-me os ouvidos, dançavam-me listras vermelhas diante dos
olhos. Ia tão cego que bati com as ventas em Madalena, que saía da igreja.” (SB,
p. 186). Afinal encontram-se. À luz de vela, na sacristia da igreja, Madalena se
143
assemelha a um fantasma, a voz vaga, murmurante, o olhar distante, a
lembrança perdida entre o futuro (a hora da morte) e o passado (a infância). Na
carta que não fora completamente lida, sua morte se encontra escrita com as
mesmas letras “miudinhas” que usava na escola, “para economizar papel”.
Anoitece. Depois da estranha conversa (marcada pelo toque do relógio da
sacristia) que tivera com Madalena uma despedida sem acenos, sem beijos e
abraços, uma carta a ser lida –, Paulo Honório adormece ali mesmo, na igreja.
Ao amanhecer, sai da casa e, de volta, encontra a mulher morta: “Madalena
estava estirada na cama, branca, de olhos vidrados, espuma nos cantos da
boca.” (SB, p. 194).
55
Sobre a banca de Madalena estava o envelope de que ela havia me falado.
Abri-o. Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Li-a, saltando
pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a
cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita. Faltava uma
página: exatamente a que eu trazia na carteira, entre faturas de cimento e
orações contra maleitas que a Rosa anos atrás me havia oferecido. (SB, p.
195).
A mensagem da carta continua compreendida “pela metade” (aliás, para
nós, leitores das memórias de Paulo Honório, nenhum trecho sequer da carta é
transcrito), o enigma da morte da mulher não se desfaz de todo. Mas a função
da carta não é portar mensagens. Como objeto, ela se antecipa ao seu destino
e, em seguida, deposita-se na carteira de seu destinatário, ao lado de tipos
heterogêneos de escrita (faturas e orações), cumprindo assim o seu papel de
55
Novamente aparece o olho de vidro como algo assustador, angustiante.
144
letra, de resto de uma materialidade capaz de traçar destinos diferentes
daqueles produzidos pela mensagem.
56
Entre papéis velhos, a página perdida ocupa um lugar na carteira de Paulo
Honório que não é nem do dinheiro (o cimento), nem da doença (a maleita),
nem da sua cura (a orão). A folha que sobra é uma parte de Madalena que resta
incompreensível, seu traço mais indecifrável, mais até do que sua linguagem,
repleta de “palavrões”, como quer o narrador, ele próprio assumidamente afeito
a outro tipo de “palavrões”. A folha solta não faz sentido, é letra (miúda, como
nos tempos de pobreza) que não se escreve (ou não se lê) toda.
Nos cinco últimos capítulos que se seguem ao XXXI, vemos a crescente
solidão de Paulo Honório. Logo em seguida à morte de Madalena, as figuras
mais ligadas a ela, d. Glória e seu Ribeiro, despedem-se de S. Bernardo. Luís
Padilha e padre Silvestre desaparecem, envolvidos na revolução de 1932.
Aqueles que freqüentam a fazenda (João Nogueira, Azevedo Gondim), aos
poucos se ausentam de lá. Casimiro Lopes, meio homem, meio animal – um cão
fiel, assim como o Tubarão –, fica na fazenda.
57
Marciano, Rosa e outros velhos
empregados seus também ficam. Mesmo assim, Paulo Honório está só, sem
56
É um pouco nesse sentido o seminário Jacques Lacan sobre o conto “A carta roubada”, de
Edgar Allan Poe. Valendo-se de um trocadilho de James Joyce, a letter, a litter (uma carta, uma
letra que Lacan também se vale do duplo sentido presente no termo francês
lettre
–, um
lixo), Lacan propõe uma leitura do conto focando, em relação à carta que “desaparece”, o seu
lado material, em uma de suas investidas na construção do conceito de letra. Cf. Jacques Lacan,
1978, p. 17-67.
57
“Casimiro Lopes representa a situação ideal do homem reificado que se identificou de tal
modo com outrem que deixou de querer ou desejar, é um puro objeto que os outros manipulam
e que se situa para além da alegria ou da tristeza, da felicidade ou infelicidade.” (Cristóvão,
1977, p.218).
145
distração, e em desassossego: “E os meus passos me levavam para os quartos,
como se procurassem alguém.” (SB, p. 213).
Levado por seus passos a um quarto vazio, ele se depara, então, com um
novo modo de enfrentamento de sua melancolia: a escrita de um livro. Assim,
no capítulo final, Paulo Honório está sentado à mesa de jantar, escrevendo uma
carta “a certo sujeito de Minas, recusando um negócio confuso de porcos e gado
zebu” (SB, p. 215), quando novamente ouve o pio da coruja e, desviando-se da
carta (ou, antes, sendo por ela desviado), começa o seu livro.
Nessa situação, a narrativa surge como “a teimosia que resta quando tudo
desaparece e o estupor do que aparece quando não há nada”. (Blanchot, 1997, p.
316). A literatura se encontra entre o tudo e o nada; a tarefa do escritor é
conceber no mundo das palavras a presença das coisas, o ritmo, a respiração
dos seres. Daí que, para esse escritor em desespero que é Paulo Honório, resta a
tentativa de encontrar uma saída para a vida justamente ali, onde a vida falta.
F A Z E N D E I R O D O A R
O começo da escrita de Paulo Honório coincide com o fim da história a ser
contada. Madalena morreu, o filho, a seus olhos, não tem futuro (“É certo que
havia o pequeno, mas eu não gostava dele. Tão franzino, tão amarelo!”) (SB, p.
206), a fazenda está em plena decadência, a conjuntura política lhe é
146
desfavorável, enfim, o mundo a seu redor parece ruir. Além disso, delírios,
vozes, vultos (a visão de Madalena, sobretudo) lhe tiram o sono. Desse mundo
em ruínas surge sua fazenda literária, da qual o pio da coruja é o chamado, a
palavra de ordem: escreva.
Maurice Blanchot, em A besta de Lascaux (1982), nos diz da desconfiança
de Sócrates frente à palavra escrita, e de sua não aceitação da palavra oracular
que voz ao sagrado. Dessa última, Blanchot, na leitura de um poema de
René Char, aproxima a palavra começante, que não se apóia em alguma
coisa que seja, nem sobre uma verdade em curso, nem sobre a única
linguagem já dita ou verificada. Essa palavra é, por excelência,o canto do
pressentimento, da promessa e do despertar. (Blanchot, 1982, p. 13-14).
Distante, contudo, da autoridade profética, mesmo voltada para o porvir,
furta-se de qualquer sustentação de um futuro que existirá, de uma
revelação feliz ou infeliz, mantendo-se somente como “advento de um
horizonte mais vasto, a afirmação de um dia primeiro. Sendo assim, a
palavra começante torna-se reserva de uma palavra por vir”:
Palavra densa, fechada em sua própria ansiedade, que nos interpela e nos
faz avançar, de forma que ela parece às vezes unir poesia e moral e nos
dizer o que ela espera de s, mas ela é, para ela mesma, essa injunção
que é a forma de todo começo. Toda palavra começante, ainda que seja o
movimento mais doce e mais secreto, é, porque ela nos ultrapassa
infinitamente, aquela que agita e que exige mais: tal como o mais doce
nascer do sol em que se declara toda a vioncia de uma primeira
claridade, e tal como a palavra oracular que não diz nada, que não obriga
a nada, que até mesmo nem fala, mas faz desse sincio o dedo
imperiosamente fixado na direção do desconhecido. (Blanchot, 1982,
p. 18).
147
Com isso, ao escritor que se entrega à escrita, seja de um fragmento, um
conto ou um romance, ainda que com intenções previamente definidas, a ele
só caberá a palavra comante, aquela que o lança em direção ao que ainda
não é, que ainda não tem precedentes no mundo, mas que, no instante mesmo
em que se laa, age sobre o mundo, sobre aquele que escreve e lê. “As
palavras, como sabemos, têm o poder de fazer desaparecer as coisas, de as
fazer aparecer enquanto desaparecidas.” (Blanchot, 1987, p. 37). É esse
estranho poder das palavras que a literatura vai colocar em cena, fazendo
desaparecer o mundo pré-existente, fazendo aparecer um mundo que não
existia, que o existiria se o fosse por ela, a literatura.
Feito o chamado, pronunciada a palavra de ordem, que diz da imposição a
que é submetido o escritor pela escrita, tomada como exterior
58
e anterior a ele,
não como escapar à tarefa. Na solidão da noite, “sentado à mesa de jantar,
fumando cachimbo e bebendo café, à hora em que os grilos cantam e a
folhagem das laranjeiras se tinge de preto” (SB, p. 215-216), encontra-se Paulo
Honório, com seus poucos recursos, escrevendo. A essa altura, quando se abre
seu tempo de escrita, sua vida (sua narrativa) foi lida por nós. No fim do
livro, os dois tempos se unem, o tempo da diegese, da história que se conta, e o
tempo da enunciação, da escrita que redimensiona o tempo. Aquele, ao ser
58
O exterior entendido a partir de uma topologia moebiana que lhe permite, ao ser
representado em superfície em torção, confundir com o interior, e vice-versa. Cf. Arreguy, 2003.
148
rememorado, é dado como perdido, o que confirma a condição trágica da
existência do narrador: “Julgo que me desnorteei numa errada.” (SB, p. 216).
Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida
inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um
porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando
comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas
gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?
(SB, p. 216).
A vida inútil é fruto de um sistema que transcende o sujeito, tornando-o
engrenagem da máquina, peça condenada a agir segundo orientações das quais
ele próprio desconhece a razão. “Não se trata, evidentemente, do resultado
mecânico de certas relações econômicas. Uma profissão, ou uma ocupação
qualquer, é um todo complexo, integrado por certos impulsos e concepções que
ultrapassam o objetivo econômico.” (Candido, 1962, p. 21-22). Sendo assim, o
drama de Paulo Honório em relação a sua vida se faz mais forte justamente
quando ele percebe em si mesmo restos de humanidade, uma vida outra,
àquelas alturas possível somente no condicional, no âmbito da fantasia, porém
geradora de desespero, raiva, angústia. Contudo, essa sua vida se foi, ficando
somente a melancolia do que poderia ter sido. Assim, quanto a S. Bernardo,
segundo Antonio Candido:
Dois movimentos o integram: um, a violência do protagonista contra
homens e coisas; outro, a sua violência contra si mesmo. Da primeira,
resulta S. Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como
atributo penosamente elaborado; da segunda, resulta S. Bernardo-livro de
recordações, que assinala a desintegração da sua pujança. De ambos, nasce
a derrota, o traçado da incapacidade afetiva. (Candido, 1962, p. 23).
149
A fazenda da vida está, pois, arruinada pela violência que, no caso de
Paulo Honório, tem uma vertente psicológica calcada na posse do outro,
levando-o, no que tange ao seu relacionamento com Madalena, ao “cultivo
implacável do ciúme” que se torna “a causa final da sua desgraça” (Candido,
1962, p. 23).
59
A outra fazenda, a literária, abre espaço para esse ciúme e outras
tantas dores e derrotas, como se tudo o que Paulo Honório até então construíra
pudesse ser destruído nesse momento em que ele resolve testemunhar sua
própria sorte.
Quanto ao seu testemunho, ele tanto terá o caráter de redenção (Paulo
Honório, “no momento em que se conhece pela narrativa, destrói-se enquanto
homem de propriedade, mas constrói com o testemunho da sua dor a obra que
redime”) (Candido, 1962, p. 24), quanto de perdição, visto que a escrita do livro
se em um tempo sem garantias, numa noite sem fim: “E eu vou ficar aqui, às
escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa
e descanse uns minutos.” (SB, p. 221). Esse tempo é também um tempo perdido,
no sentido em que só se escreve a partir do momento em que se entra na
ausência de tempo, tal como pensada por Blanchot:
Escrever é entregar-se ao fascínio da ausência de tempo. Neste ponto,
estamos abordando, sem dúvida, a essência da solidão. A ausência de
tempo não é um modo puramente negativo. É o tempo em que nada
começa, em que a iniciativa não é possível, em que, antes da afirmação,
59
Para Rui Mourão, em
S. Bernardo
, o que “fere Paulo Honório é ciúme e ao mesmo tempo não
é. Não é simples sentimento de frustração amorosa, mas uma complexidade emocional que
procede da suposição de estar sendo traído ao mesmo tempo por Madalena mulher e Madalena
inimiga de seu patrimônio, negação de sua verdade”. Cf. Mourão, 2003, p. 80.
150
existe o retorno da afirmação. Longe de ser um modo puramente negativo
é, pelo contrário, um tempo sem negação, sem decisão, quando aqui é
igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em sua imagem e o “Eu”
que somos reconhece-se ao soçobrar na neutralidade de um “Ele” sem
rosto. (Blanchot, 1987, p. 20).
Nesse tempo sem tempo, nessa proximidade de uma exterioridade, o
escritor atravessa a noite.
Às vezes entro pela noite, passo tempo sem fim acordando lembranças.
Outras vezes não me ajeito com esta ocupação nova.
Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde
canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da
serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga
compreensão de muitas coisas que sinto. (SB, p. 216).
A escrita das lembranças traz consigo a compreensão vaga, o
esquecimento, como se o retorno do vivido se desse a partir desse lugar de
não-saber sobre si mesmo e sobre o outro. Um não-saber, finalmente, sobre a
escrita: como ocupar-se de algo desconhecido? Pelo desvio, pela aceitação da
noite, enfim, pela desocupação. Trata-se, para Paulo Honório, de deixar práticas a
que estava acostumado, mais brutais e de acordo com o mundo da propriedade
e do trabalho, que não fazem sentido, e assumir a condição de escritor, que é
a de um ofício destinado não exatamente ao poder e à glória, segundo Blanchot:
“Daí a riqueza e a miséria, o orgulho e a humildade, a extrema divulgação e a
extrema solidão do nosso trabalho literário, que tem pelo menos o mérito de
não desejar o poder nem a glória.” (Blanchot, 1984, p. 257-262).
É bem verdade que o resultado desse ofício – o livro – em algum momento
pode render capital a Paulo Honório, que pensa em “colocar seu nome na
151
capa”. Mas essa percepção em relação ao livro é passageira, a publicação e o
sucesso apenas existem enquanto o livro é uma idéia, uma intenção que, nesses
termos, destina-se ao fracasso, dado que sua realização passa por um outro
registro, o da solidão da obra. Tanto é que o livro começa de fato quando
Paulo Honório escreve sem indagar se isso lhe traria “qualquer vantagem,
direta ou indireta”. (SB, p. 11).
A solidão da obra a obra de arte, a obra literária desvenda-nos uma
solidão mais essencial. Exclui o isolamento complacente do individualismo,
ignora a busca da diferença; não se dissipa o fato de sustentar uma relação
viril numa tarefa que cobre toda a extensão dominada do dia. Aquele que
escreve a obra é apartado, aquele que a escreveu é dispensado. Aquele que
é dispensado, por outro lado, ignora-o. Essa ignorância preserva-o, diverte-
o, na medida em que o autoriza a perseverar. (Blanchot, 1987, p. 11).
Em S. Bernardo, no entanto, a solidão da obra se faz acompanhar da
solidão do escritor. É em noites insones que a escrita chega, é num ambiente
sombrio, enfumaçado e silencioso que Paulo Honório escreve. Sua tentativa de
construir coletivamente o livro, numa espécie de resgate da antiga técnica do
ditado, do dictare, usada na composição de manuscritos como, por exemplo, os
de São Jerônimo,
60
é abortada. Seus escribas não o convencem, Azevedo
Gondim, o jornalista encarregado da redação final do relato, “uma espécie de
folha de papel destinada a receber as idéias confusas” de Paulo Honório,
60
Ver, a respeito, o livro de Dom Paulo Evaristo Arns, A técnica do livro segundo São Jerônimo.
152
“acanalhou o troço”, redige em língua muito distante da fala, contrariando o
projeto inicial do mentor do livro. “O mingau virou água. Três tentativas
falhadas num mês! Beba conhaque, Gondim.” (SB, p. 9).
Nesse lugar de preparação para a escrita, Madalena ressurge como
ausência que conduz à solidão. O pio da coruja é a voz de Madalena; o livro de
Paulo Honório, a tentativa, não de calar essa voz (o que seria impossível, pois
não se pode calar a angústia), mas de fazer com que se torne suportável a sua
audição. No livro, a voz se traduz em letra, tanto que ele não se constrói de
acordo com os planos relatados no primeiro capítulo (coletivamente, ou
encomendado ao escriba afeito a uma língua literária distante e artificial),
61
mas
sim no acaso de uma carta aparentemente sem nenhuma importância. A carta é
de negócios, uma carta sem significado que fisga o sujeito por ser suporte,
papel, tinta e letra, enfim, meios e gestos do escrever. Por essa carta, Paulo
Honório começa o livro.
Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os
amigos deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável.
Foi que me surgiu a idéia esquisita de, com o auxílio de pessoas mais
entendidas que eu, compor esta história. A idéia gorou, o que declarei.
Há cerca de quatro meses, porém, enquanto escrevia a certo sujeito de
Minas, recusando um negócio confuso de porcos e gado zebu, ouvi um
grito de coruja e sobressaltei-me.
Era necessário mandar no dia seguinte Marciano ao forro da igreja.
61
“Ao contrário de João Valério, Paulo Honório nega o beletrismo da tradição literária
brasileira, ainda porque não possuía instrução no que diz respeito ao conhecimento das ‘letras
nacionais’.” (Bulhões, 1999, p. 94).
153
De repente voltou-me a idéia de construir o livro. Assinei a carta ao homem
dos porcos e, depois de vacilar um instante, porque nem sabia começar a
tarefa, redigi um capítulo. (SB, p. 215).
Essa cena da escrita está no primeiro capítulo, ressurgindo logo no
segundo. As corujas (é preciso insistir) estão no mesmo cenário (a torre da
igreja) da parte que descreve a morte de Madalena. A intenção de eliminá-las,
com a ajuda de Marciano, também é a mesma. Assim, à sombra da morte, sob o
viés da carta, começa o livro de Paulo Honório. No segundo capítulo, ele se
encontra sentado à mesa, fumando, bebendo café, escrevendo, numa cena que
nos remete à prática do escritor tal como ela volta, insiste, se inscreve na obra de
Graciliano Ramos, ou seja, sempre associada a uma economia subjetiva. No
fragmento de uma de suas cartas que citamos, por exemplo, esse gesto de
escrever tem ligação com as fumaças de literatura: “um quarto com duas cadeiras
e uma mesa, um bocado de livros, uma bilha d’água, papel, penas e tinta, enfim
o necessário a um indivíduo que tem fumaças de literatura.” (Ca, p. 19).
Paulo Honório começa a escrever ao ouvir o pio que logo se transforma
em grito, sendo o grito, para o narrador, algo insuportável, angustiante. É
preciso escrever, ainda que sem saber por onde começar, é preciso ressoar esse
grito, fazê-lo audível. Porém, Paulo Honório logo percebe o peso da escrita
“esta pena é um objeto pesado” (SB, p. 12), é a frase que ele usa para justificar
sua dificuldade. Como se trata de um assassino, tal como mais adiante ficamos
sabendo, supõe-se que essa pena possa ter o sentido de confissão e posterior
castigo, punição. se entende a escrita como capaz de livrar o personagem de
154
sua culpa (ou de qualquer coisa que ele atualiza, ressignifica como tal). Assim,
ao escrever, ele pagaria a pena, eliminaria a dívida, tudo se resolveria. Mas não
é bem isso o que acontece: a pena da escrita não livra Paulo Honório de seus
fantasmas. Além do mais, a própria pena em si é “um objeto pesado”. Com o
peso da pena, as dificuldades do começo são terríveis, assim como foi o seu
começo de vida:
O meu fito na vida foi apossar-me de S. Bernardo, construir esta casa,
plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o descaroçador,
introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura, adquirir um
rebanho bovino regular. Tudo isso é fácil quando está terminado e embira-
se em duas linhas, mas para o sujeito que vai começar, olha os quatro
cantos e não tem em que se pegue, as dificuldades são terríveis. (SB, p. 13).
Apesar do peso da pena, está, “embirada” em cinco linhas, a trajetória
da fazenda S. Bernardo. No entanto, não é somente essa fazenda o que justifica
o livro. Numa espécie de diálogo consigo mesmo, Paulo Honório se questiona:
“– Então para que escreve? / – Sei lá! / O pior é que já estraguei diversas folhas e
ainda não principiei. (SB, p. 13). Abandonado o intuito de autopromoção, o
livro não faz sentido, pelo menos no nível prático e racional, o único, até então,
capaz de atrair Paulo Honório.
Contudo, mesmo sem motivo aparente, a escrita do livro se realiza. A
resposta à questão colocada por Paulo Honório para que (serve) a escrita?
aparecerá no capítulo XIX, quando Madalena reaparece como enigma a ser
decifrado: “E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me
155
escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para
nada, mas sou forçado a escrever.” (SB, p. 117).
Acontece que um homem segura um lápis, mesmo que queira fortemente
soltá-lo, sua o, entretanto, o o solta, ela fecha-se mais, longe de se
abrir. A outra mão intervém com mais êxito, mas vê-se então a mão a que
se pode chamar doente esboçar um leve movimento e tentar retomar o
objeto que se distancia. O que é estranho é a lentidão desse movimento. A
mão move-se num tempo pouco humano, que não é o da ação viável, nem
o da esperança mas, antes, a sombra do tempo, ela própria sombra de uma
mão deslizando irrealmente para um objeto convertido em sua sombra.
Essa mão experimenta, em certos momentos, uma enorme necessidade de
agarrar: ela deve agarrar o lápis, tem de fazê-lo, é uma ordem, uma
exigência imperiosa. Fenômeno conhecido sob o nome de “preensão
pesecutória”. (Blanchot, 1987, p. 15).
Paulo Honório está sob o domínio da mão que escreve. Não se reconhece
naquilo que faz, em sua nova tarefa, tão diferente das que se acostumara a
executar. Logo percebe que, diante dessa “exigência imperiosa”, não outra
saída senão escrever, assumir o tempo que se perde, pois, na lógica do capital, a
escrita não serve, não está a serviço de um poder, uma ideologia. Já na lógica do
desejo, a escrita não é completa, não decifra completamente o enigma posto por
Madalena. Poderíamos, então, devolver a pergunta para Paulo Honório: por
que escrever, à força e para nada?
Então, o pio da coruja perde de vez seu referente (“Terá realmente piado a
coruja? Será a mesma que piava dois anos? [...] Quanto às corujas, Marciano
subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau.”) para tornar-se puro som, voz
que ecoa em Paulo Honório, vinda do exterior: “Repito que tudo isso continua a
azucrinar-me” (SB, p. 120). Essa voz é o que força Paulo Honório a escrever,
156
como se a letra pudesse conter o excesso que perturba a sua mente. A escrita, no
caso, estaria do lado, se não de uma cura, de uma distração. No entanto, pela
cena final do romance, percebemos que, nesse sentido, ela falha: Paulo Honório
continua insone, ouvindo vozes.
Assim, ao lhe escapar o “retrato moral” de Madalena, escapa-lhe também
a função da escrita, ou melhor, diante da impossibilidade de entender (o que,
no contexto, seria o mesmo que dominar, subjugar) a mulher, ou, antes, o
feminino, ou mesmo de fazer silêncio ao redor desse não-entendimento, o que
lhe espera é uma escrita para nada, o tempo marcado por um relógio parado:
“O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Quando me
sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria
conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.” (SB, p. 120).
Diante dessa situação, o único ganho possível para Paulo Honório será a
aceitação de que, por mais que ele se queira mostrar inteiro, dono de todo o
poder e de toda a verdade, em algum momento de esbarrar no não-saber.
Essa aceitação não se faz sem dúvidas, dores, paralisias. Seu corpo é o um ninho
de sintomas. Nesse sentido, a escrita, ainda que para nada, figura também como
jorro, fonte por onde escorrem as cargas, o peso da vida. Ou da morte, pois é a
partir do suicídio de Madalena que se instala, em Paulo Honório, toda uma
sorte de medos, assombros, devaneios: “Emoções indefiníveis me agitam
inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com
Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é
157
desespero, raiva, um peso enorme no coração.” (SB, p. 118). O peso no coração
transporta-se para a pena, e a escrita sustenta o horror. A morte é o significante
que insiste, o real que não deixa de não se escrever.
O fato de a relação de Paulo Honório com Madalena se dar em termos de
um “amor seco” não diminui o peso da morte, do suicídio da esposa, pois essa
morte deflagra o processo de “desarrazoamento” do narrador que, por sua vez,
desencadeia um processo de escrita. Ainda que o suicídio coincida com uma
série de acontecimentos desafortunados, com a decadência da fazenda e do
fazendeiro, mesmo assim sua força é de outra ordem. S. Bernardo poderia ser
reconstruída, caso valesse a pena. Mas o que Paulo Honório insiste em
(re)construir – por escrito – é o sentido da morte de Madalena.
Insone, no silêncio da casa deserta, Paulo Honório escreve. Sua escrita,
porém, não compensa a falta da mulher, a falta de sentido para a sua morte, a
falta de sentido de uma vida perdida. Sozinho, tomado de melancolia, ele busca
se ocupar de algo que lhe é estranho, mas que surge como uma promessa, um
modo de recomeçar a vida, de sair do vazio. Uma tomada de consciência, uma
forma de percepção do erro de toda uma vida entregue ao capital, à reificação
que ele promove, dizem os críticos. Porém, esse novo caminho escolhido é,
também ele, sem garantias. “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que
hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns
minutos.” (SB, p. 221).
158
C A P Í T U L O 5
A N G Ú S T I A , O C O R T E
159
T
O D A S A S L E T R A S D A A N G Ú S T I A
O terceiro romance de Graciliano Ramos apresenta-se como um corte,
uma ruptura em sua obra. Angústia terá sido a sua última ficção narrada em
primeira pessoa; o último romance em que o herói se encontra às voltas com o
desejo de escrever. Um herói com nome Luís da Silva –, assim como João
Valério, de Caetés, e Paulo Honório, de S. Bernardo. Após os três romances, vêm
as memórias do menino de Infância; anos mais tarde, as do Graciliano Ramos
preso político, as Memórias do cárcere; vem Vidas secas, novela ou romance
“desmontável”, com narração em terceira pessoa; vêm os contos de Insônia; as
Histórias de Alexandre; “A terra dos meninos pelados”; as crônicas; o livro
Viagem; enfim, muitos outros livros, porém nunca outro romance em primeira
pessoa.
62
Esse corte, na verdade, mais se assemelha a um limite onde a ficção
62
Sabe-se, no entanto, como se imbricam ficção e autobiografia na obra de Graciliano Ramos, de
modo que não se separam rigidamente as narrativas em primeira pessoa, representadas pelos
três primeiros romances do autor, de
Infância
e
Memórias do rcere
, por exemplo, pois aqueles
romances guardam elementos biográficos da mesma maneira que estas memórias se sustentam
na ficção. A separação aqui proposta serve apenas para marcarmos essa idéia do livro como
meio da obra, como travessia para outro livro.
Além do que, em
Angústia
, há uma mudança na técnica narrativa, tal como observado por
Antonio Candido: “Como em Caetés e S. Bernardo, a narrativa é na primeira pessoa; mas aqui
podemos falar propriamente em monólogo interior, em palavras que não visam interlocutor e
decorrem de necessidade própria. Nos dois primeiros, temos nítida separação entre a realidade
narrada e a do narrador, mesmo quando (em
S. Bernardo
) este se impõe à narrativa; em ambos,
os figurantes são respeitados como tais e as cenas apresentadas como unidades autônomas. Em
Angústia, o narrador tudo invade e incorpora tudo à substância, que transborda sobre o mundo.
Daí uma apresentação diferente da matéria. O diálogo, por exemplo, que antes era o principal
instrumento na arquitetura das cenas (chegando a parecer excessivo em
Caetés
e pelo menos
abundante em S. Bernardo), se reduz a pouco. A narrativa rompe amarras com o mundo e se
encaminha para o monólogo de tonalidade solipsista. O devaneio assume valor onírico, e o livro
parece ao leitor “as horas de um longo pesadelo...’ ” Cf. Candido, 1971, p. 32.
160
alcança seu “ponto extremo”, segundo Antonio Candido:
Assim, parece que Angústia contém muito de Graciliano Ramos, tanto no
plano consciente (pormenores biográficos) quanto no inconsciente
(tendências profundas, frustrações), representando a sua projeção pessoal
até mais completa no plano da arte. Ele não é Luís da Silva, está claro;
mas Luís da Silva é um pouco o resultado do que, nele, foi pisado e
reprimido. E representa na sua obra o ponto extremo da ficção; o máximo que
obteve na conciliação do desejo de desvendar-se com a tendência de
reprimir-se, que deixará brevemente de lado a fim de se lançar na confissão
pura e simples. (Candido, 1971, p. 35. Grifo).
Angústia pode, portanto, ser tomado como um ponto de passagem. A
travessia da angústia de escrever, na qual o corte supõe, mais do que com o
encerramento, a mudança de um ciclo, uma fase, um modo, um saber lidar com
a angústia da escrita, para outro, ainda mais centrado em certa vontade de
verdade. “Nós procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-
lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de
violência que nos leva a essa busca.” (Deleuze, 2003, p. 14). No âmbito da ficção,
Angústia denuncia os riscos de um Estado autoritário, de um governo afeito ao
fascismo e (o que talvez seja o mais interessante) antecipa, pela idéia contida no
livro que se escreveria na prisão, a violência sofrida pelo romancista no período
em que terminava de escrever este que logo viria a ser o seu terceiro livro
publicado.
Essa vontade de verdade, presente em Angústia, contudo, não se deve
confundir como uma verdade do autor, pois, desenhando sua escrita sobre uma
superfície em torção, sem lados portanto, ele se esquiva de um centro. Perder-se
161
no outro sem se perder é a experiência e o paradoxo do escritor, “porque, se se
perder, a obra também se perde, mas se permanece muito cautelosamente ele
mesmo, a obra é sua obra, exprime-o, seus dons, mas não a exigência extrema
da obra, a arte como origem”. (Blanchot, 1987, p. 28).
Esse ponto de origem da obra, para Blanchot, é sempre indeterminado,
inatingível, sendo, contudo, o único ponto “que vale a pena atingir” pela
experiência da escrita, que existe a partir do momento em que o escritor
se lança, com todas as suas forças, em sua solio:
Esse ponto é a exigência soberana, do qual não se pode aproximar a o
ser pela realização da obra mas do qual, também, é sua abordagem que
faz a obra. Quem se preocupa tão-somente com brilhantes êxitos está, no
entanto, em busca desse ponto onde nada pode ser coroado de êxito. E
quem escreve com a preocupação exclusiva da verdade ingressou na
zona de atração desse ponto donde o verdadeiro é excluído. (Blanchot,
1987, p. 49).
sempre uma verdade em jogo, ainda que dissimulada, desviada. A
verdade do sujeito, verdade do inconsciente, “verdade estruturada como
fião”.
63
Assim, a busca pelo exterior da linguagem submete o escritor a uma
passagem pelo que nele há de mais íntimo, mais verdadeiro, ainda que
desconhecido, ou estranhamente familiar. A impessoalidade, na literatura,
estaria, eno, ligada ao duplo movimento que faz com que o escritor, ao fazer
63
“Esta bela frase de Lacan joga justamente com essa história de caráter fictício, literalizado ao
máximo, estória estilizada ou história de um estilo: “O inconsciente é esse capítulo da minha
história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado.
Mas a verdade pode ser reencontrada; o mais das vezes ela está escrita em algum lugar.”
[Lacan, Escritos, p. 124.] A verdade estruturada como ficção se faz mesmo na sua verbalização
o que, de certa maneira é a leitura do escrito do inconsciente —, tornando-se intimamente
afim com a história enquanto epos.” Cf. Wajnberg, 1995, p.158.
162
de sua experiência uma procura, desapara no vazio, no silêncio, na morte.
Existir sem que a morte exista, poder atravessar noites e dias infinitos, essa é a
grandeza da literatura, que, paradoxalmente, existe a partir de um estar a
morrer que conduz o escritor aos meandros da obra.
No âmbito da narrativa, Angústia é a própria violência de uma escrita que
se após um assassinato que, por sua vez, é o ato mais radical surgido das
perturbações que invadem o protagonista. Por tudo isso, no contexto da obra de
Graciliano Ramos, Angústia é o livro que abre uma (nova) diferença em relação
aos livros anteriores ao valer-se de experimentalismos, ao compor-se em
páginas menos contidas, menos econômicas, em certo sentido e também em
relação aos posteriores, que, como se sabe, encerra um ciclo, esgota uma
experiência literária para que desse esgotamento, desse ponto que não é
exatamente o fim, mas o meio (lugar onde se bifurcam os caminhos, o mesmo
meio do caminho do poeta), outras narrativas possam ser construídas.
A violência direta do governo getulista contra Graciliano Ramos ainda
estava por se dar, mas o mundo a sua volta lhe parecia de tal forma violento,
que Angústia não se poderia construir de outra maneira. “Romance excessivo de
certo modo, contrasta com a discrição e o despojamento dos demais; por isso
mesmo, talvez, é mais apreciado e admirado. Em compensação, nele partes
gordurosas e corruptíveis, ausentes de S. Bernardo ou Vidas secas, que o tornam
mais facilmente transitório.” (Candido, 1971, p. 26). Essa observação, retirada
do citado ensaio de Antonio Candido, “Ficção e confissão”, trabalha
163
justamente com a diferença desse romance, em termos de economia de
linguagem. Um adjetivo escolhido para caracterizar as partes interpretadas
como ruins, dispensáveis, na estrutura do romance, pertence a um campo
semântico explorado no livro em questão (e da obra em geral de Graciliano):
partes “gordurosas” são, em Angústia, sempre inúteis, corruptas, prontas a
serem eliminadas.
Acontece, então, de se esperar outro livro, aquele que teria sido publicado
após novas revisões, diminuições, caso a ocasião e a história do autor não
tivessem alterado esse procedimento, colocando, forçadamente, um ponto final
na escrita do livro, tornando-o público, ainda que, se fôssemos pensar nas
várias revisões do autor, inacabado.
No entanto, a curiosidade em relação ao livro que poderia ter sido
publicado de maneira diferente, mas que não foi, por causa da prisão de
Graciliano Ramos, em março de 1936, extingue-se no momento em que se
percebe que o excesso, ali, na trama, dadas as condições do narrador-
protagonista, se faz valer. “É um livro fuliginoso e opaco”, ressalta Antonio
Candido, ao falar da força dramática e ao mesmo tempo destrutiva de Luís da
Silva. A fuligem surge diante da depravação, da corrupção que paira ao redor
da personagem. A opacidade é um sinal da angústia, liga-se ao escotoma, à
cegueira, à visão turva, enfim, ao olhar a mais que se escreve na obra de
Graciliano Ramos.
164
O excesso, nessa obra, está relacionado também a um mau uso da língua.
O antagonista Julião Tavares é falante, discursa numa língua fabricada para o
engano, a falsificação. Cabe então traçar, nos livros, linhas de fuga para o
excesso, atravessando-o com uma outra economia de linguagem. Trata-se, pois,
de um atravessamento dos códigos:
[...] o problema, como efeito, para alguém que considera a linguagem
excessiva (envenenada de socialidade, de sentidos fabricados) e que no
entanto quer falar (recusando o inefável), é parar antes que este excesso de
linguagem se forme: tomar rapidamente a linguagem adquirida, substituí-
la por uma linguagem inata, anterior a qualquer consciência e dotada
entretanto de uma gramaticalidade irrepreensível [...]. (Barthes, 1982,
p. 30).
O excesso, em Angústia, está tanto no enunciado (os sinais da angústia
serão da ordem do excessivo), quanto na enunciação: a névoa em que se
encontra o herói ajusta-se às sobras de linguagem, de modo a passar pela
fuligem, pela opacidade. Afinal, não outra saída para Luís da Silva, salvo
esta do novelo, da corda que aperta, da ponta da linha (da língua) que se perde
no tumulto da experiência, no real da morte.
Apesar do inacabamento e do excesso, Angústia constrói-se, obviamente,
ao estilo de Graciliano Ramos, caracterizado como econômico, preciso. Além
disso, nesse livro encontram-se traços, marcas, insistências já representados nos
livros anteriores. No estilo de Graciliano, muito do que está em um livro
estende-se a outros, sobretudo certos hábitos, manias e vícios dos protagonistas:
sempre o cigarro, a aguardente, o conhaque; certas partes do corpo humano:
165
mãos, pés, pescoço; a geografia nordestina (a mesma do interior, vinda com as
reminiscências da infância, acrescidas do espaço urbano marginal, no caso
Maceió, capital de Alagoas); a ocupação do escritor e muitas outras
características próprias a esse estilo ou a esse modo de contar histórias próprio
de Graciliano Ramos.
Angústia é o momento de explosão das componentes de desvario,
recalcadas não só na vida, mas nos outros livros. Ao crítico, preocupado em
discernir os mecanismos da criação, parece que o autor quis primeiro forjar
o estilo, para depois abrir as comportas do subconsciente e da revolta,
deixando fluir as suas ondas irregulares e obscuras nesse arcabouço tido
e seco. Daí a impressão, em todo leitor, de caos organizado, de delírio
submetido à análise minudente e implacável que o torna inteligível.
(Candido, 1971, p. 49).
Além da manifestação de um inconsciente via ficção, ou seja, permeada,
conduzida (em partes, nunca toda) pelo trabalho do escritor com a língua,
64
Angústia, ou, no geral, a angústia literária, a literatura, enfim, pode ser vista
como um modo de o escritor se desocupar, se ausentar, tornar-se outro, dar voz
ao outro da coletividade, dos pobres, dos literatos, dos loucos. Nesse espaço,
nesse exterior, cabe ao escritor lançar-se na aventura de uma linguagem onde
ninguém fala, onde o que fala é a voz de ninguém. Nesse lugar de “gotejamento
contínuo da linguagem”, “todo sujeito não representa mais do que um vínculo
gramatical”. (Foucault, 1990, p. 70).
64
“[...] a fantasia inconsciente e a ficção ou fantasia literária são de ordens diversas, que a
escrita literária é uma elaboração secundária, um trabalho consciente com a palavra apesar de
o escritor não dominar totalmente o que escreve, dizer mais do que se propõe, pois a rede
significante não recobre tudo e o real está sempre ali, na tessitura da linguagem, que é nosso
mapa imperfeito do mundo.” Cf. Brandão, 2006a, p. 17.
166
No conjunto da obra de Graciliano Ramos, Angústia serve como um
prenúncio, uma antecipação às memórias que mais tarde seriam publicadas em
dois outros livros, memórias estas que, do ponto de vista do enredo de
Angústia, pertencem ao passado (a infância) e ao futuro (o cárcere). Sendo
assim, a escrita passa tanto pela rememoração do passado quanto pela evocação
de um tempo (um livro) por vir. Entre esses dois tempos, no futuro do
pretérito,
65
um livro teria sido escrito, caso o seu suposto autor, Luís da Silva,
tivesse sido preso.
“Um livro escrito a lápis, nas margens de jornais velhos.” (A, p. 268). No
lugar desse livro que espera as condições necessárias (ainda que
paradoxalmente adversas) para a sua realização, ou seja, a prisão de Luís da
Silva (que, noutro sentido, aponta para a irrealização do livro), o projeto
literário que é levado adiante é o de uma escrita que livra o autor do passado,
do delírio, do cárcere. A escrita cumpriria, assim, uma função puramente
evasiva, não fosse sua própria capacidade de prender o escritor em um
emaranhado de letras, em um novelo confuso.
66
A projeção de um livro a ser escrito na cadeia serve, assim, como ponto de
partida para a análise comparativa de Angústia com os escritos propriamente
65
Sobre o uso do futuro do pretérito na obra de Graciliano Ramos, Silviano Santiago, após citar
Celso Cunha e Lindley Cintra (que, a partir de um exemplo retirado de S. Bernardo, assim
definem o emprego desse tempo verbal: “nas afirmações condicionadas, quando se referem a
fatos que não se realizaram e que, provavelmente, não se realizarão”), conclui: “O futuro do
pretérito é o mais evidente sinal da frustração e da insularidade do ser humano miserável no
universo de Graciliano Ramos.” Cf. Santiago, 1983, p. 298.
66
Remetemos novamente ao estudo de Lúcia Helena Carvalho, A ponta do novelo: uma
interpretação de Angústia, de Graciliano Ramos.
167
memorialísticos de Graciliano Ramos. De fato, em Memórias do cárcere
encontramos boa parte dos comentários do autor acerca do livro (Angústia)
publicado enquanto ele permanecia preso. Comentários redigidos uma década
depois e lançados postumamente, em um livro inacabado e, talvez por isso,
extenso, maior do que teria sido, segundo alguns, em sua versão final
(novamente a idéia do enxugamento).
Em Memórias do cárcere encontramos também a confirmação de que o
tempo sombrio no qual se passa o enredo de Angústia se sustenta cada vez mais,
naquele contexto, por meio da força e da brutalidade próprias de um governo
ditatorial. Se, por um lado, no romance, a idéia (o vulto, o temor) da prisão (e
do livro que nela se escreveria) surge mediante uma situação específica vivida
por Luís da Silva, qual seja, um crime aparentemente passional, por outro lado,
o contexto político retratado e a condição da personagem diante desse contexto
(Luís da Silva é um jornalista, um intelectual a um tempo decadente e
revolucionário) fazem lembrar o “papel de Graciliano Ramos como escritor
vigilante e consciente da sua responsabilidade perante acontecimentos
insólitos”. (Cristóvão, 1977, p. 188).
Nada, porém, mais insólito do que uma prisão sem acusação formal, sem
um interrogatório sequer, sem um processo. Assim Graciliano Ramos fora
preso, logo após ter sido demitido do cargo que ocupava na Instrução Pública
de Alagoas, sendo, na ocasião, avisado do perigo iminente. Graciliano pouca
168
importância dera aos avisos e às ameaças, e não resistira à prisão. Nessa época,
escrevia Angústia.
No começo de 1936, funcionário da Instrução Pública de Alagoas, tive a
notícia de que misteriosos telefonemas, com ameaças veladas, me
procuravam o endereço. [...] Algum tempo depois um amigo me procurou
com a delicada tarefa de anunciar-me, gastando elogios e panos mornos,
que a minha permanência na administração se tornara impossível. [...]
Lembro-me perfeitamente da cena. O gabinete pequeno se transformara
numa espécie de loja: montes de fazenda e cadernos, que oferecíamos às
crianças pobres. Findo o expediente, sucedia retardar-me ali, a escrever,
esquecia-me do tempo, e às vezes, meia-noite, o guarda vinha dizer-me que
iam fechar o portão do Palácio. Parte do meu último livro fora composto no
bureau largo, diante das petições, de números do Literatura Internacional.
Naquela noite, acanhado, olhando pelas janelas os canteiros do jardim, as
árvores da Praça dos Martírios, Rubem me explicava que Osman Loureiro,
o governador, se achava em dificuldade: não queria demitir-me sem
motivo, era necessário o meu afastamento voluntário. (MC, I, p. 38).
O último livro a que se refere o autor é Angústia, que logo adiante aparece
como um possível motivo para a demissão, caso fossem levantar algum: andava
o autor escrevendo “livros perigosos”, além de se gastar “em palestras
inconvenientes nos cafés”. (MC, I, p. 39). No entanto, não foram esses os
motivos para a sua demissão ou para a sua prisão; ambas continuariam
injustificadas, baseadas apenas em boatos, rumores, e no aperfeiçoamento dos
aparatos de repressão do Estado. Acerca do assunto, Silviano Santiago, em
entrevista sobre seu livro Em liberdade (no qual a saída de Graciliano Ramos da
prisão é ficcionalizada, numa espécie de capítulo final das memórias do cárcere,
atravessando, contudo, outros momentos da história) tece o seguinte
comentário:
169
[...] queria que a tensão dramática do livro girasse em torno da questão do
intelectual e o poder. Queria, ainda, que o problema o fosse visto da
perspectiva linear da História. A situação de Graciliano em 37 seria o ponto
de intersecção de uma linha que vinha do passado (o “suicídio” de Cláudio
Manoel da Costa); e outra que vinha do futuro (o caso Herzog). No ponto
se concensa [sic] a reflexão sobre a atuação do intelectual brasileiro em
períodos de regime autoritário e conservador. (Miranda, 1992, p. 88-89).
A “questão do intelectual e o poder” está colocada tanto em Memórias do
cárcere quanto em Angústia. “Até certo ponto podia considerar-me uma espécie
de revolucionário, teórico e chinfrim”, diz o autor das memórias. No romance,
O exemplo mais lembrado, nesse sentido, é o da frase escrita em português
“bárbaro”, distante daquele do revolucionário funcionário público e literato,
encontrada no muro de um bairro pobre da cidade:
“Proletários, uni-vos”. Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche. Que
importavam a vírgula e o traço? O conselho estava dado sem eles, claro,
numa letra que aumentava e diminuía. [...]
Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso
as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem
traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim. Mas
então?
Um homem sapeca as pestanas, conhece literatura, colabora nos jornais, e
isto não vale nada? Pois sim. É pegar um carvão, sujar a parede. Pois
sim. Moisés que se arranje.
Senti despeito. Afastar-me-iam da repartição e do jornal, outros me
substituiriam. Eu seria um anacronismo, uma inutilidade, e me queixaria
dos tempos novos, bradaria contra os bárbaros que escrevem sem vírgulas
e sem traços. (A, p. 204).
Vírgulas e traços importam também ao intelectual que relata sua
experiência como preso político. As palavras de ordem, os discursos
inflamados, os panfletos revolucionários são vistos com muita cautela, segundo
uma “clarividência intelectual e moral refratária aos limites estreitos do
170
partidarismo”. (Cristóvão, 1977, p. 189). Outros temas, outros enredos são
coincidentes nesses dois livros que, em termos de estrutura, também estão
próximos, ao menos se pensarmos no encadeamento de micronarrativas dentro
da narrativa maior, formando um novelo de histórias que remete à construção
em abismo que Lúcia Helena Carvalho estudou em Angústia.
Sem adentrar o psicologismo que prevaleceu, durante algum tempo, na
crítica de Graciliano Ramos, que lidou com as memórias como “material de
prova” para que se estabelecessem relações causais entre a vida e a obra,
67
ocupamo-nos dessas comparações a fim de evidenciar o caráter dúbio
(deslizante e fixo) das passagens, dos significantes que transitam, além dos
limites do livro, nos domínios da obra.
“Cadeia” é uma dessas passagens, um campo de significação que desliza
por entre os livros, participa da trajetória das personagens, é experiência vivida,
é relato dessa experiência e, principalmente, liga-se quase sempre à escrita.
Paulo Honório aprende a ler (e a escrever, deduz-se) na cadeia; Luís da Silva
escreveria um livro na prisão; as Memórias do cárcere relatam, entre outras coisas,
as tentativas de se escrever na prisão, e às vezes em que os textos escritos
67
“O texto memorialista como ‘chave’ do universo romanesco de Graciliano parece predominar
na crítica, a exemplo da leitura de Lamberto Puccinelli que realiza o percurso da obra ficcional à
autobiográfica e vice-versa, o que poderia ser enriquecedor. O paralelismo efetuado pelo crítico
entre a vivência dos personagens e a vida do romancista leva-o a aproximar João Valério, Paulo
Honório e Luís da Silva de modo tal que são abolidas as diferenças entre eles, devido à intenção
de fazê-los coincidir com o “modelo” Graciliano. Como é inevitável nesse tipo de leitura,
Infância é o molde ao qual se devem encaixar Angústia, de modo direto, e Caetés, de modo
indireto, sendo que
Angústia
, por conter traços autobiográficos mais evidentes, é considerado
‘livro de memórias quase quanto Infância’. Se se parte do nexo causal entre a vida e a obra, as
Memórias do cárcere, como indica o capítulo a elas dedicado, não passam de simples ‘material de
prova’ e como tal são lidas.” Cf. Miranda, 1992, p. 54.
171
tiveram que ser abandonados ou jogados fora; Cadeia é um capítulo de Vidas
secas. Com exceção do último, todos os outros episódios reportam à relação da
escrita com o cárcere. Além disso, Graciliano, como se sabe, conhecia o lado
fascista da língua: a rigidez da sintaxe, a obediência às normas, o obrigar a dizer.
Assim, sem buscar verdades da vida do autor em seus escritos,
interessam-nos as passagens, os “pontos de estofo” que vão de um livro a outro,
da vida à obra e da obra à vida, num movimento que, na maioria das vezes, se
liga à escrita. As letras, nesse sentido, deixam seu estado de fixidez e migram
para outros livros, outras zonas de escrita, levadas, por exemplo, pelas
memórias do cárcere, pelo livro que se escreveria na prisão. Ou, em outro
movimento, pelo cigarro.
Na obra de Graciliano Ramos, o cigarro, o cachimbo, a fumaça aparecem
constantemente, muitas vezes relacionados ao ato de escrever. Nas fotografias
que conhecemos do escritor, eso cigarro, na boca ou, na maioria delas, na
mão. Em Angústia, a presença e importância do cigarro são elevadas a ponto de
se relacionarem diretamente com a cena do assassinato de Julião Tavares por
Luís da Silva (“Agora a falta de cigarros me afligia.”) (A, p. 230). Com efeito,
outros exemplos poderiam surgir, bastando-nos, contudo, a constatação de que
esses deslizamentos, essa constante ressignificação dos mesmos elementos,
compõem a escrita de Graciliano Ramos e a sua imagem de escritor.
Essa poderia ser, então, uma chave para o entendimento de como certos
elementos presentes em Angústia se disseminam por Memórias do cárcere e
172
Infância: pela permanência do traço que, tornado escrita, passa pela mobilidade
(pelo deslocamento) da metonímia, até atingir novo ponto de ancoragem, e
assim sucessivamente, como se a cada livro houvesse um recomeço, uma volta,
não ao mesmo simplesmente, mas ao mesmo tornado outro. Nesse sentido, o
começo de um livro pode ser o recomeço daquilo que outro apenas apontara,
o fim de um livro pode ser o começo de outro.
Na casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas
páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável
recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas. Alguns capítulos não me
pareciam muito ruins, e isto fazia que os defeitos medonhos avultassem. O
meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da
infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em
vinte e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente, dava-
me a impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrim.
O delírio final se atamancara numa noite, e fervilhava de redundâncias.
Enfim não era impossível canalizar esses derramamentos. O diabo era que
no livro abundavam desconexões, talvez irremediáveis. Necessário ainda
suar muito para minorar as falhas evidentes. Mas onde achar sossego?
(MC, I, p. 42).
A falta de tempo, o esforço dispensado, a exigência da obra, o
desassossego, tudo isso ressurge em Memórias do cárcere, como restos da
experiência, sobras da angústia. A intenção de “recopiar tudo, suprimir as
repetições excessivas” não será levada adiante, as desconexões presentes no
livro eram irremediáveis. Nesse momento, a publicação vai-se tornando cada
vez mais indispensável, necessário viver da profissão de escritor. “O essencial
era retirar-me de Alagoas e nunca mais voltar, esquecer tudo, coisas, fatos e
pessoas. Alagoas não me fizera mal nenhum, mas, responsabilizando-a pelos
meus desastres, devo ter-me involuntariamente considerado autor de qualquer
173
obra de vulto, não reconhecida.” (MC, I, p. 41). O cárcere, no primeiro capítulo
das memórias, transforma-se na viagem que dará início ao exílio
simultaneamente forçado e voluntário, como se, para levar adiante a obra, esse
fosse o preço a pagar, a mudança para o Sul, lugar onde se vive de literatura
com menos apertos financeiros e incompreensões do que em Alagoas.
Porém, a escrita da memória passa por construções imaginárias. Nos
capítulos iniciais de Memórias do cárcere, a prisão é tomada como uma forma de
libertação da rotina do trabalho (“o regulamento, o horário, o despacho, o
decreto, a portaria, a iniqüidade, o pistolão, sobretudo a certeza de sermos uns
desgraçados trambolhos, de quase nada podermos fazer na sensaboria da
rotina”) (MC, I, p. 40) e dos desentendimentos domésticos (“minha mulher
vivia a atenazar-me com uma ciumeira incrível, absolutamente desarrazoada”)
(MC, I, p. 42), para a dedicação à literatura. Nessa hora, a leitura do romance
que acabara de escrever surge como refúgio, promessa de uma vida nova:
Tinha agora uns projetos literários, indecisos. Certamente não se
realizariam, mas anulavam desavenças conjugais intempestivas, que se
vinham amiudando e intensificando sem causa. A lembrança dessas
querelas, somada aos telefonemas e à demissão, azedou-me a viagem a
Pajuçara. Indispensável refugiar-me no romance concluído, imaginá-lo na
livraria, despertando algum interesse, possibilitando ainda uma vez
mudança de profissão. (MC, I, p. 40).
Essa narrativa, o autor a escreve de seu “exílio” no Rio de Janeiro. As
palavras escritas, ele as cumpriria, não mais voltando a Alagoas. Quanto ao
cárcere, ele não será somente essa viagem oportuna, como se verá ao longo do
174
relato. A morte ronda o porão do navio, ocupa a cela ao lado, vigia toda a ilha.
Serão sobreviventes de uma história obscura, os que de lá saírem vivos.
Quanto ao livro a ser revisto, ele fica para trás, nas mãos da datilógrafa,
com o autor nutrindo alguma esperança de poder lê-lo ainda inédito. “A cadeia
era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranqüilidade necessária
para corrigir o livro. O meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um
romance além das grades úmidas e pretas.” (MC, I, p. 45). Aqui, o autor faz
referência ao narrador de Angústia, Luís da Silva, que, depois de cometer um
assassinato, de matar Julião Tavares, projeta sua prisão (sempre no futuro do
pretérito, que, em determinado sentido, marca a irrealização do projeto, tal
como o verbo usado pelo autor na frase acima, pois a cadeia não proporcionaria
a revisão do livro) e um livro que lá, “além das grades úmidas e pretas”, ele
escreveria, realizando, assim, simultaneamente, a confissão e a fuga.
É interessante notarmos que, no trecho citado, ao autor e narrador de
Memórias do cárcere, o livro de Luís da Silva apareça como uma obsessão.
Embaraçado, seguro nos liames da letra, Luís se prende a esse objeto o livro –
para nele projetar uma saída para o seu desespero. Na condição de assassino,
seria descoberto e mandado para a cadeia. “A vida na prisão não seria pior que
a que eu tinha.” (A, p. 192). Nessa nova vida, porém, algo o incomoda: a sujeira
das grades, a umidade do cárcere. “Preciso muita água e muito sabão.” (A, p.
192). A cadeia teria, então, esse inconveniente: seria úmida e suja. Não que sua
vida fosse melhor, mas pelo menos lhe restava a possibilidade de lavar as mãos,
175
ocasionando, assim, uma ocupação (um sintoma) para este seu gesto que talvez
também possa entrar no rol das obsessões.
A vida na prisão não seria pior que a que eu tinha. Realmente as portas ali
são pretas e sujas, os móveis são pretos e sujos. É o que me amedronta.
Aquele bolor, aquele cheiro e aquela cor horríveis, aquela sombra que
transforma as pessoas em sombras, os movimentos vagarosos de almas do
outro mundo, apavoravam-me. Não posso encostar-me às grades pretas e
nojentas. Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as canetas
antes de escrever, tenho horror às apresentações, aos cumprimentos, em
que é necessário apertar a mão que meteu os dedos no nariz ou mexeu nas
coxas de qualquer Marina. (A, p. 192).
O novelo, como diz a crítica de Angústia, é confuso. Histórias dentro de
histórias, livro, prisão, mãos, Marina: palavras escritas, palavras presas,
palavras que prendem o sujeito, até que ele resolva despedaçá-las, retirando
delas todas as letras possíveis. Surge daí o enredo de Angústia, do emaranhado
de palavras pungentes acumuladas no punho de Luís. As mãos têm, pois, sua
importância: uma segura a corda, outra, a pena. A corda, colocada no bolso,
servirá ao ímpeto de matar Julião Tavares; a pena, o lápis, a tinta, o papel,
servirão para uma espécie de cumprimento do ofício acrescido da vontade de
livrar-se das palavras que pesam, prendem, retesam a mão. Lavar as mãos e as
palavras, deixá-las sempre limpas, imunes das impurezas do mundo. “Deve-se
escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu
ofício.”
68
Torcer e retorcer as palavras, dar nós na corda, eis do que se ocupa
Luís da Silva nesse momento de exigência da letra.
68
Texto da quarta capa das mais recentes edições dos livros de Graciliano Ramos, no novo
projeto gráfico da editora Record.
176
As mãos de Luís são sujas porque o mundo que o cerca é um mundo sujo,
baixo, vil. É o mesmo velho mundo dos vadios, dos bêbados, das prostitutas,
dos ladrões. Luís da Silva quer limpar o mundo com a mão que segura a corda,
quer se livrar do mundo pela mão que escreve. A memória que gera sua
narrativa curva-se, a curva da escrita sustenta um tempo ausente de tempo
(Blanchot, 1987, p. 18). “Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que
ainda não me restabeleci completamente.(A, p. 7). A partir daí, Luís da Silva
começa sua história. Nela, encontram-se passado, presente e futuro (o tempo
tríplice de que fala Antonio Candido), fantasmas e vozes adensam a escrita. Por
um lado, escrever é a salvação para tanto desassossego; por outro, é o próprio
desassossego.
Ao longo da narrativa, Luís da Silva se refere a um livro de sonetos que
escreveu e depois vendeu aos poucos, para falsos poetas, a fim de levantar
dinheiro. Os sonetos acabam assim, trocados por ninharia. O que restou dele
fora roído pelos ratos. o livro que ele escreveria na prisão aponta para um
projeto imaginário condicionado a não se realizar. Outro livro, também fruto da
fantasia, um romance “notável” (A, p. 163), envolto nas fumaças da vaidade,
logo será abortado. Os artigos publicados nos jornais servem, no máximo,
enquanto distração. O livro da angústia, no entanto, é de outra ordem, é o livro
do perder-se, escrito com as letras que se movem no ar, os vultos que habitam
as paredes do quarto, as vozes vindas não se sabe de onde. Ao escrever esse
livro, Luís antecipa o tempo da prisão, do livro que escreveria lá. Escrever a
177
paixão, o ódio, o assassinato, o delírio, tem, para Luís da Silva, por um lado, o
caráter de cárcere: não há como se livrar do destino das letras; tem, por outro
lado, o caráter de saída: da condenação (mesmo podendo ser o relato
interpretado como uma prova do assassinato que cometera); da doença, do
delírio, ainda que não haja, na escrita, qualquer garantia prévia de que esses
efeitos serão alcançados.
Em Angústia reaparece, então, a idéia do phármakon, da escrita como
remédio e veneno. A escrita estraga o corpo, deixa-o curvado, fraco, os olhos
ficam debilitados (“Pensam que vou ficar assim curvado, nesta posição que
adquiri na carteira suja de mestre Antônio Justino, no banco do jardim, no
tamborete da revisão, na mesa da redação?”) (A, p. 146); o escritor é socialmente
marginal (um rato, diria Luís da Silva, em meio a outros tantos ratos) ou é um
vendido, um débil a serviço dos jornais. No entanto, em um outro registro, a
escrita torna-se útil ao sujeito, dando-lhe sustentação, fazendo com que ele não
se perca (pelo menos totalmente) em meio ao excesso das palavras que o
perseguem.
Nesse sentido, são vários os caminhos percorridos por Luís da Silva no
campo da literatura. Profissional que se firmou como um sonhador de livros e
escrevinhador de artigos para jornais, este tipo de texto, para ele, tem
importância financeira (o dinheiro, aliás, será um dos “laços” que compõem a
trama). O mesmo se com seu livro de sonetos inédito, vendido aos pedaços
para pessoas dispostas a pagar por ele depois entregue aos ratos famintos.
178
Outros livros que ele escreveria e publicaria com sucesso não passam de rápidos
devaneios diurnos. Quanto ao livro da prisão, permanece no tempo condicional.
A experiência da escrita que toca a sua subjetividade, portanto, é a da
narrativa que se constrói após o ato de matar e o conseqüente abatimento em
função desse ato. Enfim, quando está a ponto de se perder, a escrita lhe chega
como uma curvatura, um desvio por onde escorrem as letras da angústia.
As paredes cobriam-se de letreiros incendiários, de lágrimas pretas de
piche. As letras moviam-se, deixavam espaços que eram preenchidos.
Estava ali um tipógrafo emendando composição. E o piche corria,
derramava-se no tijolo. Ameaças de greves, pedaços de Internacional. Um,
dois... Impossível contar as legendas subversivas. Havia umas enormes,
que iam de um lado ao outro do quarto; umas pequeninas, que se torciam
como cobras, arregalavam os olhinhos de cobras, mostravam a língua e
chocalhavam a cauda. As letras tinham cara de gente e arregaçavam os
beiços com ferocidade. (A, p. 282-283).
A materialidade da letra perpassa o delírio de Luís da Silva. As letras dos
revolucionários, pintadas em muros. As letras da tipografia, compostas em
chumbo, que são como cobras, traiçoeiras, sufocantes e mortais. Antes desse
derio final (que, na enunciação, situa-se como uma espécie de “gatilho que
dispara a escrita do livro), as letras ganhavam movimento no ambiente onde o
protagonista vê o inimigo, Julião Tavares, através de um espelho coberto de letras.
Julião Tavares entrava no café. Ia sentar-me longe dele, voltava-lhe as
costas, mas examinava o espelho coberto de letras brancas. Afetava
desprezo, aparentemente ignorava a existência do homem. Via, porém, a
roupa molhada nos sovacos, os olhos que saltavam das órbitas, o cabelo
escorrido, a papada balofa, as bochechas enormes, tudo riscado de traços
brancos que anunciavam bebidas. [...]
Ali sentado a um canto, voltado para a parede, sentia-me distante do
mundo. via as letras brancas que se estampavam na cara vermelha de
179
Julião Tavares. Lembrava-me dos desenhos medonhos que os selvagens
fazem no rosto e do costume que os cangaceiros têm de marcar os inimigos
com ferro quente. Dos letreiros brancos saíam às vezes nomes que se
aplicavam bem a Julião Tavares. Se eu fosse um cangaceiro sertanejo e
encontrasse Julião Tavares numa estrada, meter-me-ia com ele na capueira
e imprimir-lhe-ia no focinho, com ferro, algumas das letras brancas que lhe
apareciam na pele e na roupa. (A, p. 189-190).
As letras se imprimem na pele de Julião Tavares, nela escrevem o seu
destino, a sua morte: “Era evidente que Julião Tavares devia morrer.” (A, p.
173). Essa cena se repete: as letras, no café, saltam do vidro e, na visão de Luís
da Silva, na mistura de tempo que sua narrativa promove, passam de brancas
letras de um anúncio de bebidas para letras de selvagem e cangaceiro,
marcadas a ferro quente no corpo do outro. “Julião Tavares devia morrer.” (A,
p. 173). A frase também se repete, numa espécie de julgamento do personagem,
de catarse (aos moldes trágicos) do narrador-escritor. “Necessário que ele
morresse. Julião Tavares cortado aos pedaços, como o moleque da história que
seu Ramalho contava.” (A, p. 173).
A história de seu Ramalho se insere no livro como uma micronarrativa
que, junto a tantas outras, compõem o enredo de Angústia (Carvalho, 1983).
Luís da Silva, depois de terminado o noivado, habitua-se a conversar à noite, na
calçada, com seu vizinho, pai de Marina. Numa dessas noites, seu Ramalho
contou-lhe o seguinte:
180
Um moleque de bagaceira tinha arrancado os tampos da filha do senhor de
engenho. Sabendo a patifaria, o senhor de engenho mandara amarrar o
cabra e à boca da noite começara a furá-lo devagar, com ponta de faca. De
madrugada o paciente ainda bulia, mas todo picado. cortaram-lhe os
testículos e meteram-lhos pela garganta, a punhal. Em seguida tiraram-lhe
os beiços. E afinal abriram-lhe a veia do pescoço, porque vinha
amanhecendo e era impossível continuar a tortura. (A, p. 133).
Esse episódio é analisado por Lúcia Helena Carvalho (1983) associado ao
conceito psicanalítico de castração. A narrativa de Seu Ramalho é oferecida a
Luís da Silva justo no momento em que ele – preterido por Marina, que o deixa,
passa a namorar Julião Tavares e, logo em seguida, fica grávida busca cobrar
sua honra segundo o código herdado de seus antepassados. Na rede de
significação do relato, encontra-se a violação sexual atrelada à violação da
hierarquia social. “Não resta vida de que a infração maior, que provoca tão
cruel punição, consiste na violação da ordem hierárquica: o moleque se torna
criminoso porque transgride os limites sociais que o separam do senhor de
engenho [...].” (Carvalho, 1983, p. 32).
Percebe-se, então, que a estrutura social que pune o moleque por ele ter
“arrancado os tampos da filha do senhor de engenho” que, tal como o avô do
personagem, violentava as negras de sua fazenda e nada lhe acontecia, essa
mesma estrutura se repete, se atualiza em Julião Tavares, filho do dono da
Tavares & Cia, frente a Marina, moça pobre, filha de operário, corrompida pelo
conquistador burguês (uma a mais, na contagem dele). Assim, safa-se Julião
Tavares de qualquer punição diante do fato de ter engravidado a namorada.
Isso “desperta em Luís da Silva, entre múltiplos sentimentos, o desejo de
181
justiça:bem aventurados os que têm sede de justiça’ – repetirá ele muitas vezes
ao ver Marina ultrajada.” (Carvalho, 1983, p. 32).
Merecem ainda ser notados o gesto cultural de amarrar o infrator,
revelando-nos a presença implícita da corda, e a satisfação que o sujeito
obtém na contemplação imaginária da tortura lenta. Cena de castração, que
nos permite ir um tanto mais longe na compreensão dos afetos que
provocam a atração exercida por esse relato sobre o sujeito. O prazer que
este obtém diante dos requintes de crueldade com que é narrada a
castração do infrator, deslocado para a figura do moleque da bagaceira,
consiste, na verdade, numa deformação e mascaramento de seu medo
latente de ser castrado; mesmo porque [...] Julião Tavares não passa de uma
projeção deformante do seu próprio eu. Castrar o infrator consiste, com
efeito, em vingar-se da ameaça de mutilação que a sua presença lhe
comunica, pois, castrando-o, poderá assumir o seu lugar. (Carvalho, 1983,
p. 32).
Lúcia Helena investiga a trama de Angústia a partir da idéia de que o
relato de Luís da Silva constrói-se como manifestação de desejos inconscientes.
A angústia é a da castração, a corda é o significante que atualiza essa angústia,
pois, por deslizamento, associa-se à ameaça da figura paterna. Em uma das
cenas da infância rememoradas no relato de Luís da Silva, o pai levava o
menino ao poço da Pedra, onde cobras nadavam, atirando-o ao fundo, para
depois puxá-lo, para que pudesse respirar um pouco, e então repetir a
“tortura”.
69
Assim, o afogamento remete à corda (ao enforcamento), pela falta
de ar, desviando o discurso de Luís da Silva, do sangue do moleque, para a
69
“O poço da Pedra era uma piscina enorme. Antes de entrar nela, o Ipanema tinha dois metros
de largura e arrastava-se debaixo dos garranchos de algumas quixabeiras sem folhas.
Quando eu ainda não sabia nadar, meu pai me levava para ali, segurava-me um braço e atirava-
me num lugar fundo. Puxava-me para cima e deixava-me respirar um instante. Em seguida
repetia a tortura. Com o correr do tempo aprendi natação com os bichos e livrei-me disso.” (A,
p. 18).
182
corda. O sangue tem algo de insuportável,
70
que remete inconscientemente o
narrador a outra cena da infância, ao registro daquilo que deve ser reprimido: a
cena da morte paterna, por ter sido ela, a morte do pai, “intimamente desejada”.
No livro, em uma daquelas que cia Helena chama de micronarrativas, um
lençol branco manchado de vermelho cobre o corpo de Camilo Pereira da Silva,
pai do narrador: “Voltei à sala, nas pontas dos pés. Ninguém me viu. Camilo
Pereira da Silva continuava escondido debaixo do pano branco, que apresentava
no lugar da cara uma nódoa vermelha coberta de moscas.” (A, p. 21).
Além dessas, outras cenas e personagens José Baía, Cirilo da Engrácia,
Chico Cobra, seu Evaristo, os jagunços e os cangaceiros compõem uma teia
(uma corda) ligada à morte, ao assassinato de Julião Tavares. A corda doada a
Luís da Silva por seu Ivo (um “vagabundo” que freqüenta a sua casa) faz com
que o desejo de morte, até então restrito a representações calcadas em
reminiscências da infância que deslizam da “corda” à “cobra”, ganhe uma
materialidade que faz com que o assassinato se torne irremediável.
Assim, após inscrever seu desejo de matar o inimigo em um campo
semântico que vai desde a crueldade do senhor de engenho até o heroísmo dos
70
Na seqüência do relato de seu Ramalho, que é repetido por duas noites seguidas, Luís da
Silva passa a enxergar o menino estirado na rua, ou seja, aquela história, por um momento,
passa a ter caráter de realidade, as palavras de seu Ramalho ganham o estatuto de coisa,
presentificam o sangue do menino: “Enquanto ele [seu Ramalho] batia na testa, avançava e
recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua.
[...]. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos paralelepípedos e empoçava na
sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho.”
(A, p. 135-136). Daí, o sangue passa para o corpo de seu Ramalho: “Quando ele desceu da
calçada, estremeci: pareceu-me que tinha sujado os sapatos no sangue.” (A, p. 136).
183
jagunços, Luís da Silva cerca seu ato de valores exteriores que, de certa forma, lhe
trazem certo apaziguamento. Nesse sentido, a figura de José Baía é exemplar.
José Baía vinha contar-me histórias no copiar, cantava mostrando os dentes
tortos muito brancos. Era bom e ria sempre. Dava-me explicações a respeito
de visagens, mencionava as orações mais fortes. Não me ensinou as
orações, para não quebrar as virtudes delas, mas ofereceu-me conselhos,
que esqueci. Tão bom José Baía! O clavinote dele tinha vários riscos na
coronha. Ninguém falava alto a José Baía, ninguém lhe mostrava cara feia.
[...] Não me seria possível imaginar José Baía atacado de uma crise de ódio
como a que me fazia pregar as unhas nas palmas. (A, p. 234).
José Baía armava emboscadas, matava a mando, mas não se magoava. “No
dia seguinte faria com a faca de ponta novo risco na coronha do clavinote e
contaria no alpendre histórias de onças.(A, p. 235). Sua lembrança traz a Luís
da Silva um traço de heroísmo, assim como a dos cangaceiros que matam, mas
respeitam seu avô. Nesse passado longínquo e perdido de fazendeiros e
jagunços, Luís da Silva, um simples funcionário suburbano dado ao ofício de
escritor, em seu relato sobre o crime que cometera, busca uma ancoragem, um
sentido para seu ato. “Laçando Julião Tavares [...], Luís da Silva se eleva,
perante seus próprios olhos, à condição grandiosa de homem, reinscrevendo-se,
por outro lado, na galeria dos mitos sertanejos, que alimentam ‘a nostalgia que
o brasileiro urbano sente desse distante sertão desconhecido’”. (Carvalho, 1983,
p. 38). No entanto, essa elevação é logo seguida da queda. Luís da Silva
continua a alimentar a sua angústia, seu medo de ser descoberto o faz ver a
“cara balofa” de Julião Tavares por todos os lados.
184
Com isso, os laços de Luís não se reatam, seu presente ainda é o da palma
da mão ferida pela corda, seu homicídio passa por um suicídio, representado
pela lembrança de seu Evaristo, que se matara com uma corda no pescoço,
“enforcado num galho de carrapateira”. “Rosenda me disse que no momento
em que um cristão bota o laço no pescoço o diabo monta nos ombros dele. Seu
Evaristo balançava. Às vezes apareciam as costas curvadas. Outras vezes
surgiam a barba branca, a língua de fora da boca, os olhos abotoados, a careca, e
era como se ele fosse dar um salto. Esta idéia bulia comigo. Aquele defunto
levantado, com os pés no chão, ameaçando-me com um salto que poderia trazê-
lo para junto de mim, apavorava-me.” (A, p. 188). Volta, então, a categoria do
duplo, trazida acima na citação de Lúcia Helena Carvalho, estando presente
também em outros estudos acerca de Angústia.
De imediato, esse tema remete o leitor de Graciliano Ramos aos contos
“Insônia”, “O relógio do hospital” e “Paulo”, publicados em Insônia. Aliás,
muitos dos significantes que perpassam a narrativa de Luís da Silva se
encontram nessas outras três histórias: a repetição sem sentido, algo como “sim,
não” ou “um, dois”; as pancadas do relógio; o corpo partido. Os dois últimos
contos citados foram escritos quando Graciliano Ramos ainda se encontrava
preso, ou seja, logo após Angústia. Ao contrário dos manuscritos das Memórias,
esses contos não se perderam, foram logo publicados numa revista argentina,
por intermédio de um jornalista seu conhecido e admirador, Benjamín de
Garay, recebendo o autor, pela publicação, uma bem-vinda quantia de dinheiro.
185
A lembrança do hospital se agravava quando me abatia preguiçoso no
colchão, de barriga para cima, a olhar os casebres do monte, os indivíduos
que subiam e desciam a ladeira vermelha. E o desejo me chegou de narrar
sonhos, doidice, rumor de ferros na autoclave, os gritos horríveis de uma
criança, um rosto sem olhos percebido na enfermaria dos indigentes e as
ronceiras pancadas de um relógio invisível. me surgira a idéia de
escrever isto. Voltava agora com insistência. Naquele tempo, no delírio,
julgava-me dois. A parte direita não tinha nada comigo e se chamava
Paulo. Estava podre. [...] Enfim a necessidade urgente de escrever dois
contos: pegar de qualquer jeito o relógio do hospital e Paulo. Seriam
contos? Não sei fazer contos: precisava livrar-me daquilo, afastar o hospital
e dormir. (MC, II, p. 207).
Os contos são escritos e enviados ao editor argentino, o que nos faz supor
que Graciliano Ramos tenha conseguido se livrar das imagens de horror que
eles trazem. No entanto, anos depois, são publicados, por esse mesmo autor que
quer “afastar o hospital e dormir”, num livro intitulado Insônia, como se os
contos fossem insuficientes, incapazes de silenciar as palavras noturnas. De
qualquer forma, é preciso escrever, livrar-se da angústia do hospital, do
estranhamento do duplo, ainda que com pena de essa escrita remeter a outra e
assim ao infinito.
Sabemos da relação desses contos com o livro que, em termos de
produção, lhes antecede (Angústia), ou com outro, por vir (Infância); sabemos
que os mesmos sinais que afetam a visão, a audição, enfim, o corpo das
personagens, estão presentes em todos eles: tinir de ferros, gritos, pancadas,
escuridão, nuvens de algodão, “manchas amarelas, um nariz purulento, o
buraco negro de uma boca, buracos negros de órbitas vazias” (I, p. 34), o horror,
o medo, a angústia.
186
Como no romance e na biografia, nesses contos a infância é rememorada
por fragmentos que reforçam o medo, a vertigem. “Ouço trovões imensos.
Volto a ser criança, pergunto a mim mesmo que seres misteriosos fazem
semelhante barulho.” (I, p. 38). Voltar a ser criança é o mesmo que se diluir no
tempo, confundir o horror do presente com o medo do passado e, a partir daí,
construir uma história que dê conta de sustentar a cegueira, a escuridão, a
morte, ainda que com o risco de essa história poder ser, ela própria, nesse
sentido, insustentável. “Vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira
luminosa das réstias, perder-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas,
nas pancadas medonhas do relógio velho.(I, p. 43). Assim termina “O relógio
do hospital”, com este velho objeto a soar suas pancadas intermináveis.
Em “Paulo”, um protagonista dividido, perplexo diante da estranha e
ameaçadora metade. Hospitalizado, com uma ferida aberta na barriga, o
narrador tem que dar conta de safar-se da criatura que o persegue. “Realmente
Paulo é inexplicável: falta-lhe o rosto, e o seu corpo é esta carne que se imobiliza
e apodrece, colada à cama do hospital. Entretanto sorri. Um sorriso medonho,
sem dentes, sorriso amarelo que escorre pelas paredes, sorriso nauseabundo
que se derrama no chão lavado a petróleo.” (I, p. 49).
Em “Insônia”, o duplo advém da vida que perpassa o conto: “Sim ou
não?”, é a pergunta que acorda o narrador, inicia a história, instaura a insônia.
“Sim ou não? Para bem dizer não era pergunta, voz interior ou fantasmagoria
de sonho: era uma espécie de mão poderosa que me agarrava os cabelos e me
187
levantava do colchão, brutalmente, me sentava na cama, arrepiado e aturdido.”
(I, p. 9). Seguem-se a essa “mão poderosa” as “pancadas de um pêndulo
inexistente. Um dois, um, dois”. (I, p. 10). O mesmo pêndulo, a mesma
marcação aparece em Angústia, quando Luís da Silva persegue Julião Tavares,
na linha do trem. O conto prossegue em seu ambiente sombrio, a noite insone
consumida por vozes, risos, gritos, visões, até um final aberto à indecisão:
Desejaria conversar, voltar a ser homem, sustentar uma opinião qualquer,
defender-me de inimigos invisíveis. As idéias amorteceram como a brasa
do cigarro. O frio sacode-me os ossos. E os ossos chocalham a pergunta
invariável: – Sim ou não? Sim ou não? Sim ou não?” (I, p. 16).
O duplo é uma imagem a ser golpeada. Um estranho a ser banido, a
metade podre, a cara gorda e sufocada. O duplo é uma órbita vazia. É o pus, a
ferida aberta. É a sujeira nas mãos. Conhaque e aguardente. Cigarro, sempre o
cigarro. Nesse sentido se diz de Julião Tavares como duplo de Luís da Silva,
passando pelo estranhamento, pela vontade de eliminar, de matar o outro, a
outra face do outro, que sou eu.
O capítulo do assassinato é um dos mais longos e tensos do livro,
comparando-se ao do aborto de Marina.
71
Nesse sentido, ambos podem ser lidos
como deflagradores da febre, da doença, do delírio final, que, por sua vez, dão
início ao livro. Os dois coincidem também no fato de haver a situação de
perseguição. Luís da Silva é o perseguidor, Marina e Julião Tavares são os
71
Os capítulos, em Angústia, não são numerados. Trata-se do trigésimo oitavo e do trigésimo
quinto, respectivamente, se os formos contar. No total, são quarenta capítulos.
188
perseguidos. O ambiente é suspeito, afastado. No caso da perseguição seguida
do assassinato, o espaço é uma linha de bonde em um ponto afastado, perto do
fim da cidade. Um ponto extremo, sem volta. Ali se encontra Luís da Silva,
perturbado por uma “vontade estranha”, como se estivesse sendo guiado por
um “sargento invisível” que marca seus passos: “um, dois, um dois”,
desesperado por causa da falta de cigarros, cansado, conduzido, por entre a
névoa da noite, pela corda que ao mesmo tempo o deixa furioso e amedrontado,
dada a certeza que tem, desde que a pusera no bolso, de que ela serviria para
matar Julião Tavares.
Eu não poderia dormir. O caminho encurtava-se. Mas então? Para que
seguir o homem odioso que tinha tudo, mulheres, cigarros? [...] Contraí as
mãos frias e molhadas de suor, meti-as nos bolsos para aquecê-las. Para
aquecê-las ou levado pelo hábito. A aspereza da corda aumentou-me a
frieza das mãos e fez-me parar na estrada, mas a necessidade de fumar
deu-me raiva e atirou-me para a frente. Entrei a caminhar depressa,
receando que Julião Tavares me escapasse. (A, p. 233).
Julião Tavares não escapa do ódio de Luís da Silva. A falta desesperadora
dos cigarros, as reminiscências da infância (cangaceiros, jagunços), a corda,
tudo isso junto fará com que o homicídio se precipite. Em poucas linhas, acaba
enforcado Julião Tavares. “A obsessão ia desaparecer. Tive um
deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta
convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me.”
(A, p. 239). Acontece que a obsessão não desaparece, pelo contrário, depois do
assassinato, Luís da Silva, com “os braços doídos e as mãos cortadas”, passa, de
189
perseguidor, a perseguido: saltam-lhe aos olhos corpos enforcados, voltam-lhe
à mente as figuras de Cirilo da Engrácia, “terrível, amarrado a um tronco, os
cabelos compridos ensombrando o rosto, os pés suspensos, mortos” (A, p. 241),
e do suicida Evaristo, “curvado sob a carrapateira, com se preparasse um salto”
(A, p. 241). Por fim, o horror de tocar o cadáver de Julião Tavares, o perigo da
prisão, a fuga, o encontro com um vagabundo, o futuro (do pretérito) como
preso, a volta à infância, a chegada a casa, a mão cortada, a embriaguez, a
névoa, o relógio na parede, a insônia, o burburinho vindo de fora da casa,
batidas na porta, enfim, uma cadeia de acontecimentos e devaneios que leva
Luís da Silva para a cama, como um doente ou, se formos seguir o relato, “como
um morto”.
Escrever esses acontecimentos passa a ter, assim, uma relação com um
certo restabelecimento. Luís da Silva quer se livrar da cara gorda, do corpo
branco, da repugnância que lhe causa Julião Tavares. Quer se livrar,
principalmente, do fantasma em que ele se transformara, fragmentando a vida
de Luís, fazendo com que ele fique a ponto de se perder: “tudo se move na
minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela,
gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito
aumentada. (A, p. 9-10). Por isso, antes de ser uma confissão, Angústia é o
próprio crime. Luís da Silva quer matar Julião Tavares com sua escrita.
190
O livro se inaugura então como investimento econômico de energia, pois,
ao mesmo tempo que se propõe a relatar a experiência vivida segundo um
princípio organizador, que o elevaria à condição de obra notável, satisfaz
simultaneamente a uma força instintual inata a serviço da integridade
ameaçada do sujeito. (Carvalho, 1983, p. 97).
* * *
Letra de morte para Julião Tavares, letra erótica para Marina, pois nesse
corpo feminino está o amor de Luís da Silva. “O amor para mim sempre fora
uma coisa dolorosa, complicada e incompleta.” (A, p. 125). Essa “coisa
dolorosa”, em Angústia, é tão avassaladora que o amor de Luís por Marina é
atravessado pela excitação sexual, pela luxúria e, num outro campo, por um
ódio intenso, por uma morte sempre iminente.
O crime, que encerra a ação do romance, parte de um domingo de janeiro
do ano anterior. Naquele dia Luís tinha visto pela primeira vez Marina e
por ela se apaixonado. O relacionamento amoroso não se encaminhou para
o final feliz. Conduziu o apaixonado ao ciúme da amada e ao ódio do rival.
(Santiago, 2003, p. 287).
A figura de Marina é fragmentada, sendo sempre lembrada a maneira
como o narrador retira, das letras do nome da amada, combinações que, a
depender da leitura que delas se faça, funcionam como um roteiro de sua
narrativa, da história de amor que vai da rima à ira, por exemplo. Por sinal, são
muitos os comentários da seguinte passagem de Angústia:
191
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras
deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte
nomes. [...] O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que
tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais,
a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo
estúpido. (A, p. 9).
Lúcia Helena Carvalho relembra alguns desses comentários acerca dessa
“série enigmática”, mais especificamente os de Rubem Braga, Rui Mourão,
Fernando Cristóvão, para depois proceder a sua própria interpretação das letras
que caem do nome de Marina, formando outros nomes. Assim, cada um dos
nomes formados ganha sua leitura, passando a significar algo que, por
associações, no contexto geral da narrativa, tem a ver com um “desejo
primordial”. (Carvalho, 1983, p. 110-112). Com isso, a relação de Luís da Silva e
Marina remete aquele a sua condição de Édipo, estando esta no lugar de objeto
substitutivo. Com isso, Marina apresenta-se simultaneamente a ele como um
corpo erótico e proibido.
Seja como for, as letras do nome de Marina funcionam dentro de um
sistema instável, seu corpo é uma fenda na superfície do texto. As letras que se
movem inscrevem o corpo como sedutor e enigmático. Um corpo partido,
corpo-fetiche. Enfim, um corpo feminino investido de erotismo, desejo, prazer e
gozo. Um livro escrito no corpo da letra: “Afinal tudo desaparece. E,
inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os
desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns
borrões compridos, umas tarjas muito pretas.” (A, p. 10).
192
Quando tudo desaparece, no espaço vazio, surge a escrita dos restos, dos
borrões e das tarjas que encobrem uma escrita a ser, não apagada, não esquecida,
mas rasurada, tornada outra, num processo constante de rememoração,
elaboração, reescrita.
Jacques Lacan, em uma de suas leituras do texto de James Joyce, passa da
literatura para a lituraterra, demarcando o lugar da litura, do lixo da escrita,
do resto que faz borda com o real. A essa escrita praticada por Joyce, segundo
seu próprio jogo de palavras a letter, a litter, a essa letra-lixo Lacan chama de
lituraterra. Nas terras desse conceito, não fronteiras, há um litoral: onde
termina a terra, onde começa o mar, não se sabe muito bem. No litoral da
escrita, o simbólico avança sobre as terras do real, este é o seu ponto máximo e
impossível: escrever o que não cessa de não se escrever. (Lacan, 1986).
Nesse mesmo texto (“Lituraterra”), Lacan indaga “se a literatura seria
acomodação dos restos. Seria o caso de se fazer uma lista de credores no escrito?
Do que, primeiramente, primitivamente, seria canto, mito falado, procissão
dramática? (Lacan, 1986, p. 19. Destaque meu)
.
Podemos entender o
questionamento de Lacan levando em considerão seu desejo de forjar um
conceito de escrita que privilegia os restos a escrita enquanto objeto que se
destaca do sujeito, sendo-lhe extensiva e, simultaneamente, habitando-o,
denotando uma economia de linguagem que se reduz ao traço e ao
apagamento do traço que o designa (o sujeito). Assim é que Lacan, ao avistar
de um avião a planície siberiana e os litorais que ela sugere com seus sulcos,
193
vai dar à letra o estatuto de litura (que assume tanto o sentido de cobertura
quanto o de rasura), como Joyce o faz, ao deslizar de a letter para a litter, de
uma letra para um lixo.
Como entender um litoral cuja terra” é, antes de mais nada, composta de
rasuras, lituras” (Litura-terra)? A idéia de rasura implica uma sucessão
de traços que se recobrem, cada um deles buscando, em seu gesto, como
tentativa de aproximação, a palavra apropriada para designar aquilo que
se quer dizer. A rasura poderia, assim, ver-se incluída num projeto de
“bem-dizer”. Mas, ao indicar que a letra é rasura “de nenhum traço que
lhe antecede”, Lacan conjuga a tentativa de encontrar a palavra que mais
se aproxime daquilo que busca se expressar a palavra mais próxima da
“coisa” com a ausência de um traço fundador, primeiro, atras do qual
o sujeito sentir-se-ia plenamente identificado ou designado. O exercício de
aproximação implicado na rasura leva, inevitavelmente, aos limites da
linguagem, e, porque não dizer, do próprio simbólico.
Podemos inferir que cada gesto de rasura implica numa modificação de
sentido, numa correção de rumo, gerando, ao nível da escrita, um novo
querer-dizer. Trata-se, também, de uma busca de satisfação, pois cada
rasura é acionada por um estado de insatisfação gerado a partir do traço
que lhe precede, ainda que, no extremo, se questione a própria essência
desse “traço anterior”. É nesse momento que a letra alcançaria o seu
“ponto de rasura”, debruçada sobre o abismo de uma presença que ela
inscreve como impossibilidade.
(Mandil, 1998, p.57-58).
Por tudo isso é que cabe à literatura, mais precisamente aos manuais de
literatura “existem manuais de literatura, pois sim!” (Lacan, 1986, p. 18), a
acomodação dos restos: tornar cômodo o que incomoda, o que o se
acomoda, o que o é da ordem do apaziguamento, eis a tarefa da literatura,
que se distingue, então, da lituraterra, que nada mais quer do que elevar o
escrito à dimeno de gozo, de uma experiência inesgotável e imposvel de
ser totalmente apreendida pela linguagem.
194
Por isso, em Angústia, cenas curtas que voltam uma, duas, várias vezes ao
longo do livro, cenas que se escrevem como rasura da história, tempo que
retorna no registro do estranho, daquele que é o mesmo (o tempo que passou,
familiar), mas também o outro (o tempo pertencente ao fora, ao
estranhamento da memória, que traz consigo o vazio, o medo, a angústia).
O aparecimento de Marina se dá, para Luís, num espaço de leitura. No
quintal, eles começam o namoro. “Marina é uma ratuína” (A, p. 11), logo nos
avisa o narrador. Em seguida, Marina aparece como alguém que lhe custou
muito dinheiro, todo o dinheiro que possuía e ainda mais algum, tomado de
empréstimo ao judeu, tio da personagem Moisés, intelectual revolucionário
amigo de Luís. Por fim, a figura de Marina se confunde com a de outras
mulheres que surgem no decorrer da narrativa, muitas delas com essa mesma
característica de usurpação do dinheiro alheio, seja explicitamente, como é o
caso das prostitutas, seja sorrateiramente, como a neta de d. Aurora.
Para diabo. Aqui me preocupando com aquela burra! Unhas pintadas,
beiços pintados, biblioteca das moças, preguiça, admiração a d. Mercedes
total: rua da Lama. Acaba na rua da Lama, sangrando na pedra-lipes.
Vamos deixar de besteira, seu Luís. Um homem é um homem. (A, p. 51).
Marina vai rapidamente do quintal à rua da Lama. Luís logo se acende,
pois a mulher é fogo. Associa o fogo, a pintura, a cor vermelha de Marina às
experiências luxuriosas que tivera com outras mulheres que conhecera. Pobre,
Luís da Silva, um dia, gastara muito dinheiro com a neta (menina “viciada”,
uma “piranha”) de d. Aurora. Ainda pobre, conhecera Berta, prostituta. Na
195
infância do Cavalo-Morto havia “uma rapariga desbragadíssima”. (A, p. 43). As
cenas com essas mulheres, principalmente com Berta, são recorrentes no texto.
Em resumo: “As ruas estavam cheias de mulheres. E o rato roía-me por dentro.”
(A, p. 42).
“A mocinha, no lado de da cerca, não me dava atenção. Perua. Cabelos
de milho, unhas pintadas, beiços vermelhos e o pernão aparecendo.(A, p. 42).
O namoro no quintal evolui, Luís, tomado por visões obscenas e desejos
lúbricos, constrói o corpo erótico de Marina, ora comparando-a a Berta
(“Marina despida, curvada para a frente, mostrando um traseiro enorme”), ora
dividindo-a: “Veio-me o pensamento maluco de que tinham dividido Marina.
Serrada viva, como se fazia antigamente. Esta idéia absurda e sangüinária deu-
me grande satisfação. Nádegas e pernas para um lado, cabeça e tronco para
outro.” (A, p. 73). Daí, de suas visões, Luís passa para o contato físico com
Marina. Numa investida súbita, derruba a cerca e agarra-se à vizinha que por lá
andava a lhe oferecer o corpo (esta era a sua percepção). Ao fim da investida,
um pedido de casamento, aceito sem entusiasmo, com reticências, e assim
considerado na reflexão de Luís: “– É uma dos diabos. Eu queria dar a ela
alguma independência. Acabou-se. Gosto da pequena, amarro uma pedra no
pescoço e mergulho.” (A, p. 77).
O casamento fracassa. Marina se envolve com Julião Tavares, fica grávida,
tornando-se mais uma “vítima” do rico sedutor. Apavorada diante de tal
situação, resta-lhe somente a opção do aborto. No percurso que a leva da casa
196
até o lugar onde realizaria o aborto com uma “parteira diplomada”, é seguida
por Luís. A cena de perseguição, na ida, a espera (a parteira atende em um
bairro de subúrbio, Luís fica em um botequim em frente, enquanto Marina
entra no local suspeito) e, sobretudo, a volta, que é quando ele a aborda, tudo
isso constitui um capítulo longo e denso, próximo àquele da perseguição e do
assassinato de Julião Tavares. Este será o encontro final de Luís com Marina.
– Puta!
Os beiços de Marina estavam como os de uma defunta, os olhos
procuravam socorro, e eu cravava as unhas nas palmas das mãos, mordia a
língua por haver deixado escapar mais uma vez a injúria que nada
significava. Deu-me uma tontura, cambaleei.
O insulto se repete várias vezes. Marina não é a moça que, meses antes,
ficara nua diante dele (“a carne arrepiada se cobrira de carocinhos”) (A, p. 219),
ela agora é uma mulher com as “pálpebras roxas ocultando olhos aguados, o
beiço trêmulo, a barriga encolhida, a cara mal pintada, a testa amarela coberta
de rugas” (A, p. 217). Seu corpo apodrece como o feto que arrancara da barriga,
como o lixo do quintal, como o alimento dos ratos que povoam o pensamento
de Luís. Marina nega o aborto e, ao negá-lo, deixa margem para pensarmos num
possível delírio de Luís. O letreiro de d. Albertina, que tanto lhe impressionara
(“Albertina de tal, parteira diplomada”), talvez não dissesse nada.
Mas aquelas letras dependuradas, se não trazem àquele que as lê, do
botequim em frente, nenhum juízo moral, conduzem-no a associações,
lembranças de prostitutas e de assassinos, e com essas lembranças vêm o ódio, a
197
corda, a vontade de matar. Por isso, para ele (e para nós, leitores), as letras de d.
Albertina cifram um aborto consumado. Movido pela violência, Luís da Silva
derrama insultos nos ouvidos de Marina, no trajeto que os dois fazem de volta
ao centro da cidade. Mas as palavras de ofensa a ela dirigidas não aplacam o
seu desgoverno, ainda falta o assassinato. E assim, atordoado por mais essa
morte, por mais esse crime, Luís da Silva se despede de Marina. “Entramos na
cidade e separamo-nos. Mas logo me veio a idéia de que ela se ia juntar com o
amante.” (A, p. 221).
Daí o que se escreve é o assassinato de Julião Tavares. A idéia que se
apoderara de Luís da Silva desde o início do romance, o ódio em relação a este
eleito seu inimigo, torna-se ato, concretiza-se após o aborto, a visão (ou melhor,
a visão a mais) da criança morta, de Marina morta.
Depois de matar Julião Tavares, Luís da Silva adoece, até que o vem retirar
desse lugar um outro desejo, também ele imperativo, incontrolável: o de relatar
a experiência do assassinato. O relato surge, então, fragmentado, como
contenção ou continuidade de um delírio, como espera de uma vida melhor, de
uma sorte grande tirada na loteria, de um amor tranqüilo com Marina, enfim,
de uma vida que não é a sua, e que não será, mesmo que se escreva o livro da
angústia.
198
C O N C L U S Ã O
A P E N A S U M C I S C O N O O L H O
199
O centro do livro O espaço literário, de Maurice Blanchot, é um centro que
se desloca, “sem deixar de ser o mesmo e tornando-se sempre mais central,
mais esquivo, mais incerto, e mais imperioso”. (Blanchot, 1987, p. 7). Esse ponto
para o qual o livro se dirige, no espaço literário, é “O olhar de Orfeu”, são as
páginas centradas no mito grego, mais precisamente na busca de Orfeu por
Eurídice, a descida, o resgate, a volta, o olhar. Sobretudo o olhar, a causa de
Orfeu ter perdido Eurídice, mas também a condição de Orfeu a ter nesse
instante em que ela habita a outra noite, em que ela é a obra, a arte.
Quando Orfeu desce em busca de Eurídice, a arte é a potência pela qual a
noite se abre. A noite, pela força da arte, acolhe-o, torna-se a intimidade
acolhedora, o entendimento e o acordo da primeira noite. Mas é para
Eurídice que Orfeu desce: Eurídice é, para ele, o extremo que a arte pode
atingir, ela é, sob um nome que a dissimula e sob um véu que a cobre, o
ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte, o desejo,
a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se aproxima
como a outra noite. (Blanchot, 1987, p. 171).
No primeiro capítulo desta tese, abordamos o livro Infância a partir de seu
centro de seu ponto obscuro: “A cegueira”. O olhar, então, cobriu-se de
sombras, névoas, fumaças, em sua tradução do afeto da angústia no corpo do
texto. Esse “olhar a mais”, na expressão psicanalítica, direciona-se para o ponto
cego, o escotoma, o invisível que se faz ver “o invisível é então o que não se
pode deixar de ver, o incessante que se faz ver”. (Blanchot, 1987, p. 163). Em
Infância, na obra de Graciliano Ramos de uma maneira geral, o ponto cego surge
como sintoma no próprio corpo acometido pela angústia (a cegueira, a neblina
200
nos olhos) ou no corpo do outro, como sinal do horror (o olho de vidro do
padre, as órbitas vazias da caveira), do real.
Diante da riqueza do olhar, por assim dizer, tanto na psicanálise, filosofia,
mitologia etc., quanto na literatura, na obra de Graciliano Ramos, tomamos
ainda “O olho torto de Alexandre” como uma referência, uma imagem para a
passagem do interior ao exterior, e vice-versa, que Graciliano Ramos alcança em
sua escrita. Uma terceira via, terceiro olho a ver o dentro e o fora em um
movimento de torção, de nó borromeano.
Porém, ainda havia um segundo tópico a ser trabalhado. Com isso, ainda
no primeiro capítulo centramo-nos no “olho da letra”. Aproximando-nos das
artes gráficas, encontramos o olho da letra, na tipografia, na arte do desenho
das letras, dos alfabetos em madeira ou metal, como sendo a parte que
transporta a tinta para o papel e imprime o desenho, o traço, a marca. Interessa-
nos, pois, esse lugar de passagem, de transporte para o que está aquém da
palavra, aquém da significação, esse olho oblíquo da letra, repleto de rasgos
grossos e finos, retos e curvos, rasos e fundos, olho marcado pela mancha, olho
que mira o resto, o objeto que cai. Olho que grava a memória do escritor
enquanto letra, ou, recorrendo ao termo cunhado por Roland Barthes, enquanto
biografema, ou: a vida tornada letra.
201
Porque, se é necessário que, por uma retórica arrevesada, haja no Texto,
destruidor de todo sujeito, um sujeito para se amar, tal sujeito é disperso,
um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte (ao tema da
urna e da estela, objetos fortes, fechados, instituidores de destino, opor-se-
iam os cavacos de lembrança, a erosão que só deixa da vida passada alguns
vincos): se eu fosse escritor, morto, como gostaria que a minha vida se
reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns
pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”
[...]. (Barthes, 1990, p. 12).
Grafema é um símbolo gráfico uno, “constituído por traços gráficos
distintivos que permitem o entendimento visual das palavras na língua escrita”;
proveniente da lingüística norte-americana, o termo constitui, segundo o
dicionário Aurélio, “designação mais rigorosa e mais ampla que letra, pois
abarca também os diacríticos, ideogramas e sinais de pontuação”. Biografema é
tudo aquilo que, da vida ao texto, faz-se em termos de insistência, diferença,
traço que distingue, que permite o entendimento do que não faz sentido senão
pelo gráfico, pela gravação em cima da gravação, pela rasura.
Tal processo, descrito dessa maneira, evoca a memória e suas musas, o
palimpsesto, o bloco mágico e suas ranhuras. Porém, numa inversão do foco,
buscamos investigar a memória da escrita. Trata-se, seguindo a via de Barthes, de
fazer, do nome do autor, grafema, GRamos, grama, letra. Trabalhar o que diz
respeito à memória gráfica: os instrumentos da escrita (a pena, o lápis) e seus
suportes (a folha, o papel, o livro, a tinta). Pensar a escrita como anterior ao
sujeito (ela, a escrita, está ), portanto, portadora de uma memória, que, no
texto impresso, se vale do olho da letra para se transferir do corpo do escritor ao
corpo do texto, e vice-versa.
202
No manuscrito, a mão que escreve, que sofre a “preensão persecutória”,
conforme Maurice Blanchot (“ela deve agarrar o lápis, tem de fazê-lo, é uma
ordem, uma exigência imperiosa”), e também a mão que não escreve, aquela
“capaz de intervir no momento adequado, de apoderar-se do lápis e de o
afastar”
(1987, p. 15), assumem diretamente, até o fim, a função gravar,
desenhar, copiar, de tornar viva a memória da escrita.
As técnicas antigas do livro manuscrito, que passam pelo ditado, pela
figura do dictator, “que dita e compõe ao mesmo tempo” (Arns, 1993, p. 46), traz
seus inconvenientes, pois “a linguagem pode ser embelezada se a polirmos
com nossa mão”. (Arns, 1993, p. 54). Jerônimo, escritor, tradutor e editor da
Bíblia no final do século quarto e começo do quinto da era cristã, vale-se do
método do ditado por duas razões: primeiro, por “temperamento, em
consideração a convites amigos, ao sabor das circunstâncias”, o eclesiástico se
via sempre assoberbado de trabalho, o que fazia com que a presença dos
taquígrafos
72
se tornasse indispensável, pois ele chegaria a compor “até mil
linhas por dia”; segundo, porque adoece: “justamente em Constantinopla (379 –
382), Jerônimo escom a vista cansada, e pede a Vicente um taquígrafo que
72
O taquígrafo é o técnico “experto em representar todas as palavras com sinais rápidos e em
acompanhar com muita prontidão qualquer discurso, graças a pontos muito leves”. Na cadeia
do manuscrito, ele se localiza logo no início: “Entre o ditado feito pelo autor e o texto que nos é
transmitido, uma dupla etapa a ser percorrida: primeiro, a passagem do ouvido à mão dos
taquígrafos, que se substituem alternadamente, em horas fixas, junto ao autor; depois, a
segunda etapa, do olho à mão dos escribas, que reconstituem a taquigrafia em escrita comum;
enfim, a passagem do olho ou do ouvido à mão dos calígrafos, que transcrevem definitivamente
a cópia...” Os taquígrafos usavam estiletes para gravar em tabuletas de cera. Cf. Arns, 1993, p.
58-59.
203
possa escrever seu ditado. [...] Ele parece dizer que não escreve com a própria o
porque os olhos já não lhe permitem.(Arns, 1993, p. 49). Na velhice, chega-lhe
a cegueira.
O Doutor de Belém ainda aproxima do fogo o volume hebreu, a fim de
tentar ler. No entanto, nem mesmo o sol seria capaz de dar-lhe bastante luz
para ele distinguir os pontinhos. Enquanto pela voz de seus irmãos ele
repassa os comentários gregos, aproveita a calma da noite para ditar
sente-se forçado a fazê-lo – como as idéias lhe vêm, como pode, e não como
gostaria. (Arns, 1993, p. 51).
A cegueira surge, assim, como impedimento à escrita, que passa pelo
corpo, pelos olhos, pelas mãos de escritores, taquígrafos, copistas. O material
empregado (as tabuletas, o papiro, o pergaminho),
73
os instrumentos (o estilete,
a pena) e o próprio formato que se ao resultado desse processo (o rolo, o
codex, livro, as edições)
74
traduzem o universo do manuscrito nos séculos IV e
V, época em que São Jerônimo assistia atônito à decadência de Roma, enquanto
compunha suas cartas, suas traduções, cada vez mais isolado, mais arredio,
mais doente. No entanto, ele jamais abandonaria a sua tarefa: “Estou velho e
não longe da morte... talvez minha morte esteja sendo adiada para eu completar
meu trabalho sobre os profetas.” (Arns, 1993, p. 50).
73
“O amor do livro sagrado e sobretudo a posição oficial da Igreja precipitaram a evolução da
técnica do livro em pergaminho. [...] Felicitemo-nos desta vitória do pergaminho sobre o papiro
na época de São Jerônimo, século dos grandes escritores eclesiásticos: foi ela que permitiu a
sobrevivência dos mais preciosos tesouros das antigas literaturas.” (Arns, 1993, p. 35).
74
“Nem sempre uma obra de fôlego era editada de uma vez; publicavam-na à medida que as
partes iam sendo terminadas. Sua divisão em livros obedecia, às vezes, apenas ao ritmo de
trabalho do autor. Constituía um livro o que estava pronto na hora da partida do correio. Uma
das funções do prefácio é justamente assegurar a ordem dos livros e das partes tratadas. [...]
Como o editor do livro era apenas o primeiro elo de uma corrente que se alongava com cada
cópia, esta reprodução individual e sem controle se prestava, forçosamente, a fraudes.” (Arns,
1993, p. 89).
204
Graciliano Ramos, apesar de, a princípio, ligado a uma tradição oral (o
Nordeste brasileiro, suas narrativas, sua língua), é um homem do impresso, seu
ambiente é o das redações dos jornais, dos bancos das livrarias, das gavetas das
tipografias, do chumbo da linotipia. Contudo, sua técnica de escrita é ainda a
manual, seus originais surgem em folhas avulsas, preenchidas por letras
pequenas, com poucos espos para margens. Depois de datilografados, esses
originais sofriam corrões, emendas, cortes. Publicado o livro, lá estava ele, o
escritor, a perseguir os erros gráficos, os absurdos cometidos pelos revisores
das editoras, pelos chapistas, pelos linotipistas. As letras erram, e o erro
incomoda o autor.
Essa técnica, assim como o ambiente de redação de jornais (numa época
em que o jornal se aproximava muito mais do livro, no que diz respeito ao
formato, e da literatura, no que diz respeito aos gêneros textuais nele
publicados, à presença de escritores nas redações) estão encenadas nas
narrativas de Graciliano Ramos, num recurso que os críticos chamam de
metalingüístico.
Escrever sobre o escrever. A partir de algo semelhante a essa técnica, a
esse recurso narrativo, presente na obra de Graciliano Ramos, buscamos
demonstrar que, para além da metalinguagem, vê-se nessa obra aquilo que
chamamos de memória da escrita. Escrever sobre: por cima, após, no rasto,
usando como assunto, matéria, o escrever, a escrita. Caetés, S. Bernardo e
Angústia foram os livros escolhidos, apesar de toda a obra do autor conter sinais
205
da memória da escrita. Trata-se de resgatar as referências aos materiais,
instrumentos, suportes e destinos da escrita como algo anterior, algo que opera
no registro dessa profissão que se exerce sob o fascínio da letra, a do escritor.
Sendo assim, ao escritor lidar com essa memória que, apesar de não ser
sua, toma a sua mão, curva a coluna, emperra os músculos, enfraquece a vista.
De um modo geral, na obra de Graciliano Ramos são essas as descrições da
figura do escritor: curvo, magro, fraco, pálido, míope. Ao sujeito habituado “a
ler papel impresso, a ouvir o rumor de linotipos” (A, p. 195), acontece algo que
o torna diferente, estranho, como se em seu corpo permanecesse o resíduo de
uma droga, um pharmakon.
As mãos devem estar sempre ocupadas. A que segura o lápis (ou o livro,
ou o cigarro, que este aparece em praticamente todas as fotografias
publicadas de Graciliano Ramos), a que escreve, e a outra, a que suspende o
lápis, que põe fim à escrita. As mãos devem trabalhar; com a ajuda dos olhos,
devem se esforçar por passar para o papel o desenho das letras. Assim, a escrita
ganha importância devido não exatamente ao que ela pode produzir em termos
de sentidos, ou de produtos, mas devido ao gesto que ela implica, que é um
gesto muito antigo, e que se liga a uma força que silencia a morte, que põe em
suspensão o tempo, pois “não se trata de consagrar o tempo ao trabalho, de
passar o tempo escrevendo, mas de passar para um outro tempo onde o tempo
está perdido, onde se ingressa no fascínio e na solidão da ausência de tempo”.
(Blanchot, 1987, p. 54).
206
Para Blanchot, entrar nesse tempo sem tempo significa alcançar o exterior,
passar do “Eu” ao “Ele”. Poderíamos, então, pensar que a memória da escrita
está nesse exterior, nesse ponto em que a linguagem atinge o inatingível, posto
que ela, a linguagem, é sem exterior. No entanto, seria este um caminho para a
literatura:
Quando escrever é descobrir o interminável, o escritor que entra nessa
região não se supera na direção do universal. Não caminha para um
mundo mais seguro, mais belo, mais justificado, onde tudo se tornaria
segundo a claridade de um dia justo. Não descobre a bela linguagem que
fala honrosamente para todos. O que fala nele é uma decorrência do fato de
que de uma maneira ou de outra, não é ele mesmo, não é ninguém. O
“Ele” que toma o lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor por
intermédio da obra. “Ele não designa o desinteresse objetivo, o
desprendimento criador. “Ele” não glorifica a consciência em um outro que
não eu, o impulso de uma vida humana que, no espaço imaginário da obra
de arte, conservaria a liberdade de dizer “Eu”. “Ele” sou eu convertido em
ninguém, outrem que se torna o outro, é que, no lugar onde estou, não
possa mais dirigir-se a mim e que aquele que se me dirige não diga “Eu”,
não seja ele mesmo. (Blanchot, 1987, p. 18-19).
Assim, encontrar o exterior é entregar-se a essa ausência, mas é também
entrar no registro da obra. um fascínio em meio a tudo isso, vinculado ao
uma presença neutra, impessoal. A criança está sob o fascínio do olhar materno,
prende-se a ele. O escritor está preso ao fascínio da letra, a essa memória que
lhe chega como traço a ser construído pelas mãos e pelos olhos. “Escrever é
entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça.” (Blanchot, 1987, p. 24).
Ao pensarmos essa entrada na obra, conduzimo-nos pela percepção de que,
nesse espaço literário, a memória que sobrevém é da escrita, do papel, das
penas e da tinta, e que, para um escritor como Graciliano Ramos, a escrita passa
207
pelo registro de tudo o que possa lembrar essa relação com seus meios de
trabalho. Não a escrita, mas também a vida, como quer Ruth Silviano
Brandão:
Aprendi com alguns escritores como a matéria da vida está ligada a suas
letras, seus traços, na construção desse espaço envelopado, emoldurado da
folha, da tela, da pedra ou da madeira, como nos primórdios do ato de
escrever e se inscrever no mundo. (Brandão, 2006a, p. 25).
Nesse sentido, a linguagem, antes de comunicar, constitui o sujeito,
inscrevendo-o em sua relação com o mundo. Além disso, a palavra em si “é
matéria dúctil para o fazer literário, ela mesma é coisa, objeto”. (Brandão, 2006a,
p. 22). Objeto de desejo do escritor, a palavra escrita se sustenta no pulso, na
mão que escreve. Escrever o escrever, para Graciliano Ramos, é sustentar essa
palavra-objeto (pedra, barro, papiro, pergaminho, papel) nos meandros do
corpo, mostrando que, como escritor, haveria de se entregar aos efeitos da
escrita.
A escrita se faz com o corpo, e daí sua pulsação, seu ritmo pulsional, sua
respiração singular, sua rebeldia, às vezes domada pela força da armadura
da língua, pela sintaxe, freios e ordenamentos. Assim, nunca são idéias
abstratas que se escrevem e por isso, quando se lida com a escrita alheia do
escritor ou do escrevente comum, como leitor ou crítico, toca-se em textos,
com as mãos, com os olhos, com a pele. Tal gesto pode irritar
profundamente aquele que escreveu, como se seu corpo sofresse uma
agressão ou uma invasão indevida, da qual ele tem que se defender sob o
risco de se ver ferido por um olhar ou uma mão estranha. (Brandão, 2006a,
p. 34).
Graciliano Ramos reconhece as armaduras e armadilhas da língua, o
cárcere da linguagem humana. Mas ele sabe fazer, do cárcere, uma saída, da
208
cegueira da infância, um cisco no olho, da ferida na mão, do vazio, da angústia
literatura. Sem medo do mundo, sem se defender do olhar alheio, publicou
seus livros, defendeu a causa literária. Contudo, isso não quer dizer que a
literatura tenha sido um remédio totalmente eficaz para a sua vida. Pelo
contrário, muitas vezes ela aparece no campo do veneno, como se o escritor
estivesse intoxicado pelo excesso de “fumaças de literatura”. Seja como for, o
fato é que, para Graciliano Ramos, o que importa é escrever, é deixar impressa
a sua memória, a memória de seu povo e a memória da escrita. Pois, como
quer Deleuze:
o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si
próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja
doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como
um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha
forçosamente uma saúde de ferro (haveria aqui a mesma
ambigüidade que no atletismo), mas ele goza de uma frágil saúde
irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas
demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja
passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde
dominante tornaria impossíveis. (Deleuze, 1997, p. 13-14).
209
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