Download PDF
ads:
Matheus Silva Martins
A VIDA EM CONSTRUÇÃO: O MOTIVO DA ESPERANÇA NA POESIA DE
FERREIRA GULLAR
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Matheus Silva Martins
A VIDA EM CONSTRUÇÃO: O MOTIVO DA ESPERANÇA NA POESIA DE FERREIRA
GULLAR
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Letras Literatura Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Murilo Marcondes de Moura.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2006
ads:
Dissertação intitulada A VIDA EM CONSTRUÇÃO: O MOTIVO DA ESPERANÇA NA
POESIA DE FERREIRA GULLAR, de autoria do Mestrando MATHEUS SILVA MARTINS,
aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
___________________________________________________________
Prof. Dr. Murilo Marcondes de Moura FFLCH/USP - Orientador
___________________________________________________________
Prof. Dr. Alcides Celso Oliveira Villaça FFLCH/USP
___________________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Alves Peixoto - FALE/UFMG
Profa. Dra. ELIANA LOURENÇO DE LIMA REIS
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG
Belo Horizonte, 10 de março de 2006.
À memória de Arésio Eleutério Amaral Júnior,
amigo de jornada e poeta preferido.
AGRADECIMENTOS
Ao amigo e professor Murilo Marcondes de Moura, cuja orientação ultrapassa, em larga
medida, os limites desta dissertação e da academia;
A Sérgio Peixoto, Marcus Vinícius de Freitas, José Américo Barros e, particularmente, Maria
Cecília Boechat (pela amizade, paciência e disponibilidade), professores que, com Murilo,
compunham o grupo do PAD em que esta pesquisa se iniciou;
Aos colegas e amigos mais diretamente relacionados à trajetória desta dissertação: Kaio
Carmona, Marcos Teixeira, Flávia Lins, Fernando Baião Viotti, Anselmo Campos, Joelma
Xavier, Luciana Mariz, Ludmila Coimbra, Maria Aparecida Araújo, Leonardo Lyrio, Lisa
Vasconcelos, Bernardo Amorim, profa. Silvana Pessoa, Luiz “Salsa” Romero, Fabíola
Trefzger, Solange Rebuzzi, Dirlenvalder Loyolla, Rosana Simões, Guilherme Lucas, Miriam
Ribeiro e, especialmente, Suzana Ruela, sem cuja parceria a leitura que aqui vai talvez jamais
chegasse a qualquer definição;
A Mário Alex Rosa, por disponibilizar importante parte do material bibliográfico sobre
Ferreira Gullar, e à amiga Mariana Ianelli, pelas esclarecedoras conversas sobre poesia e pelos
toques filosóficos sobre o tema da esperança;
Enfim, ao apoio de Antônio Lúcio, Ângela e Thiago, minha família; a Margarida e ao carinho
dos demais familiares e amigos; sobretudo, a Bruna, pelo companheirismo e pelo permanente
e indispensável amparo afetivo.
Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da CAPES.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
João Cabral de Melo Neto,
Morte e vida severina
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................08
ESPERANÇA E LUTA COMUM EM DENTRO DA NOITE VELOZ................................29
A maturidade poética de Dentro da noite veloz: interiorização e sincronia..............29
Os movimentos da esperança na maturidade de Dentro da noite veloz....................38
O engajamento ainda apaixonado..............................................................................41
O ponto de transição em “Homem comum”.............................................................52
A chegada da desilusão e a permanência do desejo de afirmação............................64
A responsabilidade do poeta em “A poesia”.............................................................82
SOLIDÃO E ESPERANÇA EM NA VERTIGEM DO DIA.................................................96
O salto de Dentro da noite veloz para Na vertigem do dia.......................................96
O materialismo e a aquisição de uma consciência ontológica da solidão.................99
A necessidade da esperança a partir de uma consciência da solidão......................116
A expectativa e o trabalho do poeta no desejo de afirmação da vida......................129
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................136
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................143
RESUMO
Este trabalho pretende observar, a partir da leitura de dois livros de Ferreira Gullar, a saber,
Dentro da noite veloz e Na vertigem do dia, as diferentes maneiras que o autor encontra para
responder poeticamente a determinados problemas de sua experiência concreta e como essas
respostas, apesar de variadas, se sustentam sobre uma constante visão de mundo muito ligada
à materialidade do corpo e trazem consigo uma grande disponibilidade para a vida, amparada
por uma permanente perspectiva de futuro, expressas aqui pelo motivo da esperança.
ABSTRACT
This work intends to observe, starting from the reading of Dentro da noite veloz and Na
vertigem do dia, two poetic books of Ferreira Gullar, the different ways the author finds to
answer poetically to certain problems of his concrete experience and how those answers, in
spite of their differences, are sustained on a constant world vision very linked to the
materiality of the body and bring with itself a high availability for the life, aided by a
permanent perspective of future, expressed here for the motiv of hope.
8
INTRODUÇÃO
Em linhas gerais, este trabalho se pretende um estudo das manifestações de esperança
em duas obras específicas de Ferreira Gullar, a saber: Dentro da noite veloz (1975) e Na
vertigem do dia (1980). Digo em linhas gerais por estar ciente do desgaste que repousa sobre
este conceito/tema escolhido como ponto de observação das obras referidas e da necessidade
de melhor explicá-lo. Seu uso neste trabalho exigirá alguns cuidados, a fim de que não se
confunda um dos princípios formadores dessa poética questionadora e cética de Gullar com
uma fé cega na promessa de dias melhores ou uma expectativa cuja realização se desvincularia
do trabalho humano, sendo transferida à sorte, ao destino ou a entidades místicas. Será preciso,
pois, recusar algumas dessas conotações que porventura estejam associadas, pelo senso
comum, à esperança e considerá-la como uma constante “disponibilidade para a vida”
percebida na poesia de Ferreira Gullar, disponibilidade que advém de uma visão de mundo
muito ligada à materialidade do corpo, de uma abordagem não transcendental da realidade, e
que, mesmo nascendo da constatação mais crua e agnóstica de um homem situado em tempos
e espaços específicos, consegue proferir um canto de afirmação. Pretendo, posteriormente,
ainda nesta parte introdutória, desenvolver e discutir com mais detalhes as razões que me
levaram a tal hipótese de leitura. Antes, porém, para justificar a escolha dessa proposta de
trabalho, creio ser melhor dividi-la nos elementos que a compõem, a fim de explicar mais
precisamente, e numa ordem de abrangência (o poeta, as obras específicas e o tema), os
motivos de tais opções.
Comecemos pelo poeta. Considerado pela crítica em geral como um dos maiores
nomes da nossa literatura contemporânea, chegando a ser aclamado por Vinicius de Moraes,
9
nos anos 70, como “o último grande poeta brasileiro”, Ferreira Gullar, em cinqüenta anos de
atividade, conseguiu consolidar uma poética muito particular, esteticamente bem resolvida,
após passar por diversos momentos de experimentalismo: transitando por várias correntes
estéticas, Gullar sempre as experimentou até o limite, esgotando-as, para então se enveredar
por novos caminhos. O percurso de sua poesia, desta maneira, é uma espécie de processo de
maturação, cujo apuro, ao longo do tempo, orienta-se pela procura daquilo que é realmente
necessário, como ele mesmo costuma dizer em suas entrevistas. Ao contrário do que acontece
a muitos outros autores, e apesar de se tratar de uma obra ainda aberta, Gullar parece ter
achado seu tom e consegue manter sua qualidade com o passar dos anos, abandonando alguns
radicalismos da juventude, tanto em relação à pesquisa formal quanto à direção ideológica
(representada em sua poesia, sobretudo, pelo engajamento político), para encontrar na
linguagem de todo dia a sua própria linguagem. É preciso considerar que isso a
aproximação da literatura da práxis, seja pela aventura nas questões sociais, seja pela
incorporação de uma linguagem menos empolada e mais “pedestre” , que na poesia de
Gullar representa um amadurecimento, diz respeito a questões mais amplas, próprias dos
caminhos trilhados, de uma maneira geral, pela poesia do século XX a partir do modernismo,
mas cumpre assinalar também nesse poeta maranhense a dimensão singularíssima que esses
problemas ganharão. Voltarei a essa discussão adiante, no comentário sobre o recorte deste
trabalho; por ora, continuemos no poeta um pouco mais.
Além de crítico, ensaísta e intelectual atuante, Ferreira Gullar é um poeta que tira do
cotidiano, da sua biografia, a matéria de seus poemas. Sua poesia é “flor com haste”,
1
está
1
Inverto aqui a imagem da “flor sem haste” do poema de Dentro da noite veloz intitulado “A poesia” ,
usada ironicamente na fala de um poeta que depõe em um inquérito policial para se safar de uma condenação por
transgredir a portaria que proíbe a mistura do “poema com Ipanema”, isto é, da poesia com a vida cotidiana: meu
10
atrelada à vida: sua medida é dada pelo próprio corpo, situado em tempo e espaço
determinados, e sua matéria são as “coisas da terra”, “perecíveis, feitas de carne e mortalmente
inseridas no tempo”.
2
Presa ao chão, numa linhagem muito bandeiriana, que em grande
medida marca boa parte da literatura modernista brasileira (mas que aqui guarda algumas
importantes diferenças em relação ao poeta pernambucano), a poesia de Gullar se esforça na
direção de perceber no cotidiano um espanto, uma arrebatadora surpresa nascida da realidade
comum, retirada da prosa da vida, como uma espécie de “relâmpago na cara”
3
, para usar suas
palavras em uma entrevista de 1985. Ao se limitar ao corpo, Gullar busca os infinitos e
múltiplos desdobramentos, mistérios e revelações contidos na matéria e na complexidade da
experiência de existir.
Sobre isso, para ilustrar esse procedimento de maneira breve, é curioso notar a
insistência de referências espaciotemporais em um grande número de seus poemas, citando
datas (ou mesmo datando os textos), horários (manhãs e tardes, com maior recorrência) e
cenários (Rio de Janeiro, Buenos Aires, São Luís etc), quase como uma necessidade de agarrar
a vida que impulsiona a obra e que se deseja manter viva nela. Essa idéia, da capacidade do
poema de guardar a vida que o motiva, será uma preocupação explícita em vários momentos
de toda obra, como uma espécie de fio condutor e definidor da poética de Gullar: preocupação
central de A luta corporal, ela reaparece como tema de vários poemas de cunho
metalingüístico, sobretudo em suas obras mais maduras. Assim, do mesmo modo como ocorre
em Manuel Bandeira, a biografia de Gullar será então de grande valia para a análise de seus
poema é puro, flor/ sem haste, juro!/ Não tem passado nem futuro. (...) Creia,/ meu poema está infenso à vida”.
(GULLAR, 2000. p. 223). A ironia é clara e se assemelha aqui a outra imagem do mesmo livro, em “Não há
vagas”, quando o poeta, ao dizer que o poema “não fede/ nem cheira”, está na verdade, também ironicamente,
clamando por uma participação, desejando sim que ele fedesse e cheirasse.
2
GULLAR, 2000. p. 174. As três imagens pertencem ao poema “Coisas da terra”, também de Dentro da noite
veloz, do qual tratarei com mais cuidado adiante, no primeiro capítulo.
3
Leia. Fevereiro de 1985.
11
textos e irei a ela recorrer quando necessário. E devido justamente a essa estreita relação entre
vida e obra, a essa permanente preocupação com o “tempo presente”, para usar uma expressão
de Carlos Drummond de Andrade
4
, acredito que um estudo da poesia de Gullar, além de ter
seu valor pelas suas qualidades literárias, já aclamadas por tantos críticos de peso, é também,
em certa medida, um olhar sobre a produção poética brasileira da segunda metade do século
XX e uma discussão sobre os processos políticos e sociais vividos no Brasil desta mesma
época.
Embora sua obra tenha sido objeto de excelentes estudos, como os ensaios “Traduzir-
se”, de João Luiz Lafetá
5
, A poesia de Ferreira Gullar, de Alcides Villaça
6
, e o “Roteiro do
poeta Ferreira Gullar”
7
, de Alfredo Bosi, além de vários bons artigos em jornais e revistas, sua
fortuna crítica não é tão vasta, sobretudo se pensarmos em seus livros mais recentes
8
:
Barulhos (1987) e Muitas vozes (1999). O recorte que proponho, porém, não se justifica pelo
olhar sobre estas duas obras menos estudadas, já que também, aqui, elas serão brevemente
comentadas nas considerações finais; na verdade, creio que a análise desses dois livros,
Dentro da noite veloz e Na vertigem do dia, separadamente, mas atrelada a uma proposta de
leitura do conjunto, ajuda a compreender e delinear o movimento de uma trajetória poética
marcada essencialmente pela postura inquieta de um sujeito que se questiona, na tentativa
permanente de entender a si e aos problemas que o cercam em suas diversas atividades, sejam
elas políticas, estéticas, existenciais ou afetivas; trajetória esta que, a meu ver, mesmo
4
ANDRADE, 1999. p. 161. A expressão se encontra ao final do poema “Mãos dadas”, de Sentimento do mundo.
5
In: ZILIO, Carlos, LAFETÁ, João Luiz, LEITE, Lygia Chiapinni Moraes. O nacional e o popular na cultura
brasileira Artes plásticas e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 55-127.
6
A poesia de Ferreira Gullar. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1984. (Tese de doutoramento)
7
In: BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2003. pp. 171-85.
8
Como se pode observar nas notas acima, as análises citadas de Lafetá e Villaça, estudos de maior fôlego sobre a
obra de Gullar, datam respectivamente de 1982 e 1984, não abrangendo, portanto, os dois últimos livros do poeta.
12
sustentando sua inquietude, ganha alguma estabilidade a partir de Na vertigem do dia,
permitindo, assim espero, que a presente análise sugira um caminho interpretativo para as duas
obras seguintes (Barulhos e Muitas vozes), não obstante a menor ênfase que, por ora, a elas
darei.
Gullar é um poeta muito auto-referente, retomando versos, títulos, imagens, reabrindo
questões e problematizando reflexões anteriores. Essa auto-referencialidade, além de nos
permitir identificar algumas unidades de sua poesia, é capaz também de nos mostrar as
mudanças pelas quais passa durante sua trajetória. A proposta deste trabalho reside justamente
nisso: analisar as diferentes respostas poéticas de Ferreira Gullar às questões mais diversas,
como “a natureza da poesia, o fluir do tempo, a deterioração do corpo, a memória de fatos e
pessoas, a morte, a fragilidade das coisas, as relações sociais, as atitudes humanas etc”
9
, e
como essas variadas reflexões, que se alteram no decorrer da trajetória, têm como pano de
fundo um recorrente repertório imagético, compondo certa visão de mundo que atravessa toda
a obra. Como diz Alfredo Bosi, um primeiro olhar sobre sua poesia permite discernir-lhe
temas e imagens que se repetem obsessivamente e apontam para a existência de “uma
personalidade poética bastante coesa no interior da obra”
10
. Segundo o crítico, o
aprofundamento desse olhar, após algumas releituras, avança para a identificação de um
“universo bem determinado”, de modo que o leitor fica tentado a “desenhar-lhe o mapa”
11
.
Partindo disso, minha idéia inicial é a de que o núcleo deste mapa, isto é, seus temas,
reflexões, imagens e posturas em face do real, já está, de alguma maneira, anunciado no
9
LAFETÁ, 1982. p. 64.
10
BOSI, 2003. p. 171.
11
Ibidem.
13
primeiro livro reconhecido de Gullar
12
, A luta corporal, mesmo que ainda muito cifrado por
seu experimentalismo. Nesta obra de 1954, numa espécie de cosmogonia pessoal, Gullar traça,
além de um constante repertório imagético (sobretudo nas recorrentes imagens de luz e
sombra, como bem assinala Alcides Villaça
13
), uma postura firme diante da realidade (até
mesmo surpreendente pela pouca idade do poeta), que permanece nas obras posteriores quase
como um projeto de vida, não obstante os duros percalços de sua biografia e a variedade
formal experimentada ao longo da carreira. É claro que há mudanças significativas entre A
luta corporal e os livros seguintes, assim como já existem diferenças no próprio corpo desse
livro (que pode ser entendido, no que tange à pesquisa formal operada na obra, como um
percurso acumulado de tentativas que fracassam na busca da expressão que representasse
legitimamente a experiência da vida
14
), mas elementos de base de toda uma poesia já estão lá,
compondo um pano de fundo ideológico que entendo como aquele olhar materialista,
corporal, em relação ao mundo e, a partir dele, revelando uma convicta atitude em face da
complexidade da existência, a qual me refiro pelo conceito de esperança.
Tentemos ilustrar essa idéia através de momentos desse livro de estréia. A questão da
materialidade da vida, topos dominante de toda a poesia de Gullar, aparece como a recorrência
mais geral de A luta corporal, nas inúmeras imagens de destruição e nas reflexões sobre o
perecimento das coisas. Sem aprofundar muito a análise do livro, já que não é este o objetivo
12
Gullar publicou seu primeiro livro, Um pouco acima do chão, em 1949, ainda em São Luís, mas não o inclui
em suas obras completas por considerá-lo muito imaturo.
13
Tanto na análise já citada quanto em seu ensaio para os Cadernos de literatura brasileira.
14
Não obstante o impasse final a que chega A luta corporal, na explosão da linguagem em seus últimos poemas,
é interessante pensar como a obra realiza, de algum modo, esse projeto de formalizar poeticamente a experiência
da vida: da clássica e rigorosa estruturação dos “Sete poemas portugueses”, que introduzem o livro, à destruição
caótica de “Roçzeiral”, que fecha a obra, Gullar acaba representando, no experimentalismo formal desse trajeto,
aquilo que entende, naquele momento, como o próprio processo de elaboração da vida, como um variado mas
inevitável caminho para a destruição.
14
dessa introdução
15
, poemas como “As pêras” e “Programa de homicídio”, citando apenas dois
exemplos entre tantos, são interessantes para se entender a questão. Peguemos algumas
passagens significativas do primeiro:
As pêras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos a pêndula. De-
teríamos, assim, a
morte das frutas?
Oh as pêras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura! As pêras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
(...)
Tudo é o cansaço
de si. As pêras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
(...)
O dia das pêras
é o seu apodrecimento.
16
O dia das pêras é consumir-se, apodrecer, e é este apodrecimento, na verdade, sua
finalidade e esplendor: sendo assim, existir parece não fazer sentido, uma vez que gastar-se é
concluir-se “para nada”, tradução de um processo que leva necessariamente à morte. Mas este
mesmo trabalho, que é de destruição, se realiza num “doirado sossego” e, ao mesmo tempo em
que destrói, também fulgura e arde. Gullar, em A luta corporal, permanece ainda muito
assombrado pelo resultado final desse trabalho de degradação, mas passagens como essa já
15
Cumpre notar que, para uma análise mais cuidadosa dessa obra de estréia, os já referidos ensaios de Lafetá e de
Villaça são indispensáveis, sobretudo este último, que dedica um longo primeiro capítulo à sua leitura.
16
GULLAR, 2000. pp. 18-9.
15
apontam para a visão de mundo dominante nas suas obras mais maduras; o processo de
elaboração da vida, de fato, leva inevitavelmente à morte, mas o poeta aprenderá o que
interessa nesse trabalho não é necessariamente o seu fim, e sim o seu durante: é nele que a
vida queima e esplende em toda sua beleza, ou, tautologicamente falando, é nele que se vive a
própria vida. Da mesma forma, em “Programa de homicíd io”, a negação das cintilações do
eterno, caracterizado como vil e banal, contrastam com o brilho do corpo, que por sua vez
nada tem a ver com a estagnação da eternidade, mas que surge como trabalho da matéria,
como explosão e combustão. Apesar do peso conferido ao resultado desse processo, a medida
do viver é dada em ambos por este trabalho de putrefação. Isto é, por um lado, mesmo que seja
predominante em A luta corporal o olhar fatalista sobre o tempo, entendido metafisicamente
como um algoz exterior e indiferente ao homem, como aquilo que passa, destrói e permanece
para além da vida (como bem assinala Alcides Villaça no primeiro capítulo de sua análise
referenciada), por outro, já está presente aqui a idéia de que cada coisa tem seu tempo,
somente mensurado pela coisa em si e que dá justamente a medida da vida (olhar
predominante a partir de Dentro da noite veloz), como podemos observar no início do
primeiro poema citado, “As pêras”. Nele, o eu lírico questiona se o relógio, objeto que parece
materializar o decorrer desse tempo que prossegue para além do homem, mediria também o
desgaste interno daquelas frutas: se o relógio é capaz de representar o passar do tempo e, por
isso, o inevitável caminho em direção à morte, não é capaz, porém, de medir o fulgor e a
beleza desse desgaste, já que as pêras prosseguem no seu trabalho interno de amadurecimento
e as flores continuam a arder em cores no seu “canteiro diário”.
Pode parecer estranho, a primeira vista, atribuir noções de afirmação a uma obra como
A luta corporal, cujo topos central é a destruição. Lafetá observa nela, inclusive, um certo
16
exagero de negatividade, como se o poeta perdesse as rédeas de um canto furioso, que, pela
incapacidade de “conter sua força destrutiva”
17
, chega a um impasse expressivo, culminando
na explosão da linguagem operada ao final da obra, no poema “Roçzeiral”. De fato, a vida está
sempre associada em A luta corporal a imagens de destruição, de apodrecimento, mas esse
“consumir-se” não parece se ligar apenas à constatação de que o ho mem vive para morrer.
Ainda sobre os exemplos acima, em verdade, o homem aqui já vive morrendo: vida e morte
não chegam nem a ser dois lados da mesma moeda; estão juntas num lado só, uma vez que o
próprio desgaste é entendido como a elaboração da vida, e por isso o negativo pode trazer
consigo uma certa positividade.
Dirá o poeta ainda em sua “Carta do morto pobre”, de “Um programa de homicídio”:
“Mar oh mastigar-se!, fruto enraivecido! nunca atual, eu sou a matéria de meu duro
trabalho”, para continuar, reforçando aquela imagem da combustão: “Queimo no meu corpo o
dia”
18
. Assim, se o “gastar-se” interno é uma certeza sobre as coisas vivas e sufoca pelo
resultado de seu processo, convém pontuar, mais uma vez, que em A luta corporal, ele já
aparece também como fruto do trabalho executado pela matéria, somado à ação do tempo
sobre as coisas.
Enfim, essa visão não-transcendente do mundo parece resultar numa postura ativa do
homem diante da vida, transferindo para suas próprias mãos a função de realizá-la, uma vez
que, para isso, ele não dispõe de mais nada além do corpo: ainda que em A luta corporal essa
postura talvez se expresse mais pelo próprio procedimento de composição da obra em seus
vários movimentos aquela referida busca determinada, não obstante suicida, pela expressão
mais fiel à experiência de existir do que pelo próprio tratamento temático, apesar dos
17
LAFETÁ, 1982. p. 87.
18
GULLAR, 2000. p. 23.
17
exemplos acima, a vida, na poesia de Ferreira Gullar, pode ser definida como uma construção
humana, e é essa visão que, nas obras posteriores (sobretudo a partir de Dentro da noite veloz),
move o poeta adiante, até mesmo nos momentos de maior desilusão e amargura, sem o
pessimismo entreguista que uma reflexão desmistificada do ser e do mundo talvez pudesse
gerar. Portanto, essa noção de vida como construção parece estar na base da poesia de Gullar,
tanto no que diz respeito ao apuro da forma e dos meios (na tentativa de fazer com que o
poema guarde a vida que o motiva) quanto ao materialismo que compõe seu pano de fundo
ideológico, apontando sempre para uma permanente “perspectiva de futuro”
19
, que traduzirei
aqui no conceito de esperança e, em alguns momentos, de otimismo.
Como vimos até agora, justificar a seleção das duas obras a serem analisadas já é
também justificar o tema do trabalho; mas tentemos aqui fazê-lo separadamente. Além da
afinidade temática, entendida como o motivo da esperança (a qual nos falta ainda um
comentário introdutório mais cuidadoso), e da observação do movimento deste tema de um
livro ao outro, o recorte aqui proposto se sustenta também por uma afinidade formal entre as
duas obras selecionadas. Alexandre Pilati
20
, ao observar a poesia de Ferreira Gullar sob um
prisma formalista, divide-a em três fases: a primeira compreenderia A luta corporal, O vil
metal e os Poemas concretos e neoconcretos; a segunda corresponderia aos Romances de
cordel; e na terceira entraria o resto da obra, incluindo os dois livros que proponho analisar,
acrescidos de Poema sujo, Barulhos e Muitas vozes. Apesar do esquematismo exagerado desse
tipo de divisão, que acaba agrupando livros muito diferentes entre si (a exemplo do que ocorre
no primeiro grupo), Pilati parece perceber que Gullar, depois de passar por projetos estéticos
19
LAFETÁ, 1982. p. 63.
20
PILATI, Alexandre. “A representação da condição do autor periférico na poesia de Ferreira Gullar”. Belo
Horizonte: ABRALIC, 2002. (manuscrito)
18
heterogêneos, e esgotá-los em muita medida, encontra uma certa estabilidade em sua pesquisa
formal a partir de Dentro da noite veloz: após a explosão da linguagem no final de A luta
corporal (e que se mantém, embora menos acentuada, em O vil metal); depois de se enveredar
pelo construtivismo concreto, romper com os poetas paulistas, lançar o neoconcretismo e
romper novamente com o vanguardismo de uma maneira geral; após se lançar na luta política,
no quase panfletarismo dos Romances de cordel; em suma, depois de uma longa pesquisa que
se exaure a cada experiência, Gullar encontra na linguagem chã, cotidiana, a sua própria
linguagem, inserindo definitivamente seu questionamento “em uma perspectiva histórica”
21
.
Seus poemas parecem então ganhar uma certa constância estrutural: textos na sua maioria
curtos, de tom prosaico, que utilizam largamente o espaço em branco da página vide, por
exemplo, os característicos “recuos”, da margem esquerda em direção ao centro, que o poeta
imprime a vários versos de um mesmo poema, dando-lhes obviamente um certo acento e que
viraram marca de Gullar. Este formato, já realizado em alguns poemas de A luta corporal
(como “Galo galo” e “As pêras”) e de O vil metal, volta e se torna uma constante nas obras
posteriores aos Romances de cordel, excetuando-se (porém, não inteiramente) o Poema sujo
(1976), cuja dimensão e singularidade fazem dele um momento de exceção na poesia de
Gullar.
Mas nesta seqüência que se inicia em Dentro da noite veloz, Poema sujo é de fato uma
obra à parte não apenas pela questão formal que mantém, excetuando-se a extensão,
características comuns às outras quatro obras a partir (e incluindo) de Dentro da noite veloz. É
excepcional também porque condensa uma série de imagens e reflexões de sua poesia até
21
PILATI, 2002. p. 3.
19
então, resumindo-a, de alguma maneira, como diz Alfredo Bosi
22
, de modo que uma leitura
cuidadosa e isolada desse longo poema talvez resolvesse metonimicamente os problemas
daquele que se aventure à compreensão geral do conjunto que compõe essa poética. O
reconhecimento da complexidade e multiplicidade da vida, nas suas várias faces que o eu
observa e que se interpenetram por terem nele um eixo, começa em Dentro da noite veloz, é
detidamente trabalhado em Poema sujo, prolonga-se nas obras seguintes e orienta inclusive os
títulos das duas últimas, Barulhos e Muitas vozes.
Voltando à obra, Poema sujo é uma resposta afetiva e intimista a uma situação limite
existencial, social e política: Gullar, exilado em uma Buenos Aires recém tomada pelo golpe
militar, com o passaporte cancelado pelo Itamarati, pressente que pouco lhe sobra a fazer e,
como última saída possível, orquestra um canto de resistência, cujo material a memória
é retirado de seu único bem restante: o próprio corpo. Se a noção de otimismo talvez soe um
tanto exagerada para este caso específico, o conceito de esperança, tal como o entendemos,
parece estar bem ligado, mesmo que de maneira mais velada que nas outras obras, ao resgate
que o poeta faz de sua infância em São Luís do Maranhão, como balanço final de uma vida
que supostamente está prestes a acabar, na tentativa de se agarrar ao pouco que lhe resta e que
tenha algum poder de afirmação. Nesse sentido, Poema sujo poderia ser anexado ao conjunto
deste trabalho, mas, apesar de sua indiscutível importância para a compreensão da poesia de
Gullar, a particularidade desse livro em relação ao resto da obra me parece exigir uma
correspondente análise à parte, que ultrapassaria os limites (e o fôlego) do presente estudo,
explicando assim, por motivos práticos, sua exclusão da proposta central deste trabalho.
Cumpre dizer, porém, que excluir Poema sujo do conjunto central de obras analisadas não
22
BOSI, 2003. p. 175.
20
significa ignorá-lo completamente. O livro certamente será referenciado, assim como os outros
que também estão de fora, importando em larga escala ao entendimento do conjunto e, no
detalhe, às relações entre os capítulos 1 e 2.
Aproveitando o ensejo das justificativas para o que aqui não vai, vale ressaltar que
importantes poemas tanto de Dentro da noite veloz como de Na vertigem do dia não
aparecerão no grupo de leituras principais dos capítulos seguintes. Acredito que se com isso o
trabalho perde em expansão e generalização, talvez ganhe em concentração no que diz respeito
ao recorte proposto: a observação de um motivo recorrente nas duas obras e do movimento
dessa recorrência de um livro ao outro.
A propósito do tema, agora também tentando vê-lo separadamente, sempre me chamou
a atenção na poesia de Gullar uma permanente maneira de se entender o mundo, visão que
acaba se tornando explicitamente a discussão central de vários poemas e que sustenta o motivo
que pretendo observar neste trabalho. Mas antes que comecemos uma explicação mais
específica sobre a esperança em Ferreira Gullar, creio ser necessário elucidar o que entendo
como motivo de uma obra: sobre ele, estou de acordo com Massaud Moisés, que, na esteira da
Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser, entende o motivo, quando
aplicado à poesia lírica, tanto como uma recorrência lingüística e/ou pictórica que atravessa a
obra de um artista, quanto como uma insistência temática, avizinhando-se (e confundindo-se)
assim com os conceitos de leitmotiv e topos.
23
Curiosamente, a palavra motivo, relacionada à
esperança (da maneira como a observo na obra de Gullar), apresenta uma adequação inclusive
etimológica, quando pensada como o impulso para se realizar uma ação: se, para Gullar, a vida
se define como uma permanente construção humana, a esperança, o otimismo ou mesmo a
23
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Cultrix. 2002. pp. 350-51.
21
utopia, definem-se como princípios motivadores da ação do próprio homem sobre sua
realidade.
A respeito deste tipo de entendimento, encontrei amparo filosófico em dois grandes
pensadores do século XX: Ernst Bloch e Herbert Marcuse; sobretudo o primeiro, que tem
como uma de suas mais importantes obras O princípio esperança, na qual reflete sobre esse
conceito como um princípio condutor do presente em direção ao futuro; princípio que faz com
que o homem reconheça a carência do agora, mas que também perceba, embrenhadas nele, a
complexidade e a multiplicidade de possibilidades do porvir. A esperança, portanto, de acordo
com o filósofo, compõe uma espécie de utopia concreta, pela radicalidade, e gera, por fim,
uma necessidade de engajamento (não necessariamente político, embora possa levar a isso), ao
passar de simples virtude a um tipo de otimismo militante, que conduz o sujeito a agir, uma
vez que o reconhecimento da precariedade do presente seria uma revolta contra essa mesma
condição precária. Nas palavras de Suzana Albornoz, uma de suas intérpretes, o homem, por
sua capacidade de pensar o que o determina, faz com que a realidade surja,
para a consciência, como algo que existe sob a forma do ainda-não. (...) Quando o homem
reinterpreta o seu modo de ser condicionado, se percebe como existente sob a forma do que
ainda-não-é. Por sua consciência antecipadora [a esperança], sabe-se a si mesmo como ainda-
não-sendo o que pode vir-a-ser, que ao alcançar esse novo modo de ser conterá uma margem de
irrealização, e terá dentro de si, novamente, um algo não-ainda atual, não-ainda existente, mas
virtual, possível. Portanto, o homem tem neste ainda-não-sendo do seu ser o fundamento para
esperar.
24
Diferentemente do que ocorre aos niilistas, que partem da mesma consciência da
imperfeição e carência humanas e de cuja negação se conclui a existência do nada, a esperança
blochiana se dá como “um não a uma situação inaceitável que estamos negando porque
24
ALBORNOZ, 1985. pp. 28-9.
22
pela consciência antecipadora temos certeza de poder mudar a situação”
25
e se define como
um ato afetivo e cognitivo, como forma de “conhecimento das possibilidades para o futuro;
conhecimento não meramente contemplativo mas ativo, pois se transforma em ação
transformadora do presente que ainda-não é segundo todas as possibilidades”
26
. Em suma, o
conceito é visto por Bloch como um princípio que orienta a ação do homem, na medida em
que se baseia em uma visão materialista do mundo e da experiência humana.
Comentamos no início dessa introdução que o conceito de esperança, em sua pureza e
para o senso comum, talvez carregue uma certa imaterialidade, que se distancia, de fato, da
poesia de Gullar, porque, nela, essa expectativa, para não ser vã, precisa estar necessariamente
atrelada ao trabalho humano; e, por isso, acabei aproximando a palavra da maneira como
Bloch a entende. A meu ver, a perspectiva de futuro constante nos poemas de Gullar surge
justamente da consciência de que cabe ao homem construir sua própria história: entendendo a
realidade como uma multiplicidade de possibilidades oferecidas pela matéria, a esperança
gullariana parece se tornar, também, um princípio de ação derivado de uma necessidade
presente de movimentação da própria vida, donde o título dessa dissertação.
Naturalmente, conheci a biografia de Gullar após um considerável contato com a sua
poesia, que já havia me chamado a atenção a essa disponibilidade para a experiência da vida
em toda sua complexidade como uma de suas recorrências mais fortes. Considerando a estreita
ligação que há nesse poeta entre obra e vida, sempre imaginei que esse motivo, parte de uma
ideologia maior sustentadora de sua poética, devesse ser também algo determinante em sua
biografia. Pensando nisso, através de inúmeras entrevistas, da autobiografia de seus tempos de
exílio, intitulada Rabo de foguete, da autobiografia poética escrita em 1978 (Uma luz do
25
ALBORNOZ, 1985. p. 29.
26
Ibidem. p. 68.
23
chão), e de suas duas biografias mais extensas, de George Moura e Carlos Eduardo Novaes,
intituladas, respectivamente, Entre o espanto e o poema e Ferreira Gullar, tomei
conhecimento que José de Ribamar Ferreira é protagonista de uma vida atribulada: nascido em
1930 numa família humilde e pouco religiosa de uma São Luís do Maranhão ainda muito
provinciana (a propósito, para efeito de ilustração, o poeta costuma contar que só chega a
conhecer um sinal de trânsito no Rio de Janeiro), Gullar se muda então aos 21 anos de idade
para o Rio, sufocado que estava pelos limites de uma cidade que já não comportava o desejo
de expansão de um sujeito desde então inquieto. Chegando ao Rio, passando por algumas
dificuldades financeiras, arrumando “bicos” aqui e ali, Gullar é acometido por uma
tuberculose que o obriga a se internar num sanatório. Curado, algum tempo depois se casa,
tem filhos, envolve-se com intelectuais e artistas de esquerda, até que estoura a ditadura
militar e se vê na obrigação de entrar para o PCB, já que sempre simpatizou “com quem está
levando cacete”, como diz em entrevista ao programa Roda viva, da Rede Cultura, em
setembro de 2001. Em função das evidentes circunstâncias, assim como vários outros artistas,
exila-se voluntariamente para fugir da repressão e, numa trajetória que inclui lugares como
Moscou, Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires, sofre graves contratempos afetivos: a
esquizofrenia dos dois filhos e o sumiço, por meses, de um deles; a distância da família; a
morte e o desaparecimento de vários amigos, tudo isto somado às permanentes dificuldades
financeiras. Volta ao Brasil após sete anos, é ainda vítima da repressão militar, sobrevive à
morte de mais alguns grandes amigos e, já na década de 90, num espaço de apenas dois anos,
perde o filho mais novo, Marcos, e a esposa, companheira de um período de quase 40 anos,
Thereza Aragão. Já com 70 anos de idade, quando perguntado, ainda no programa Roda viva,
de 2001, se nutria algum otimismo em face dos últimos acontecimentos de setembro daquele
24
ano, Gullar responde que sim, que era preciso ser otimista, já que o homem tem uma tendência
natural ao pessimismo, uma vez que irá “ficar velho, broxa e morrer”, e por isso não pode se
entregar, já que o pessimismo “só desarma o cara, não conduz a nada”.
Enfim, esta brevíssima notícia biográfica, que ressalta propositalmente os percalços
mais graves de uma vida, presta-se a assinalar algo que sempre achei curioso na figura de
Ferreira Gullar: a vontade de viver e a disposição para encarar, de frente, e de um modo muito
cru, as maiores adversidades da realidade. Sendo assim, por se tratar de um poeta tão ligado à
materialidade do real, não é de se estranhar que a disponibilidade para a experiência da vida
apareça não apenas como um dos grandes motivos de sua obra, mas que também se aplique a
uma definição muito particular do que seja a própria arte poética: uma reinvenção da
realidade, que nasce da linguagem e da vida prosaicas, transcendendo esta última, mas que
volta sempre a ela, a fim de modificá-la em qualquer uma de suas esferas, sejam elas de ordem
íntima ou coletiva, como o poeta mesmo afirma em depoimento ao documentário de Zelito
Viana, intitulado O canto e a fúria, ou, em texto impresso, de maneira similar, na citada
autobiografia poética, Uma luz do chão: “O poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa,
nem que seja o próprio poeta. Se o poeta, depois de fazer o poema, resta o mesmo que antes, o
poema não tem sentido”
27
. E diz mais, ainda neste depoimento, em trecho que viria depois a
ser a epígrafe de sua obra completa: “Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao
sofrimento e desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não
desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens”
28
.
Essa confiança na capacidade da obra de arte de modificar o homem e o mundo acaba
apontando para uma característica importante da poesia de Gullar: a idéia de um amplo
27
GULLAR, 1978.
28
Ibidem.
25
engajamento, que varia ao longo do tempo, ganhando fortes contornos estéticos, em alguns
momentos, políticos, em outros, mas sempre ligado, naturalmente, a uma demanda muito
íntima, engajado à vida e à necessidade de reinventar a si e ao mundo, na tentativa de
compreender as questões que rodeiam um homem que se vê como um eixo reflexivo
atravessado e composto por múltiplas dimensões: pessoais, estéticas, históricas e filosóficas.
Dessa forma, em um sujeito que se considera sobretudo poeta, a poesia acaba sendo sua
principal ferramenta para construir, resistir e/ou mudar um estado de coisas, primeiramente em
um plano individual e mais imediato, e, a longo prazo, em uma dimensão coletiva, de maneira
semelhante à “função social” que T. S. Eliot vê na poesia
29
, assim como ao entendimento que
Bloch e Marcuse fazem do papel da arte em relação ao mundo, como analisada por José
Jimenez em seu La estética como utopía antropológica. Sobre a arte na obra desses dois
pensadores dirá o autor:
Trata-se de determinar um rosto possível para o homem do futuro, capaz de atuar sobre a ação
emancipadora do presente. (...) Em Bloch, a arte aparece como uma das manifestações
fundamentais da consciência antecipadora. Em Marcuse, como um anúncio do domínio
antropológico de Eros, da positividade da vida. O importante, no intento de representação do
futuro, é a potência da experiência estética, sua capacidade para desenhar, ao menos em parte,
as linhas do rosto do “homem novo”
30
.
Porém, essa crença na força da arte sofrerá também variações ao longo da obra de
Gullar. Citando alguns exemplos mais significativos: se em A luta corporal ela pode ser vista
como uma tentativa de fazer ombros à indiferença do tempo que conduz tudo
necessariamente à morte através da obstinada busca pelo poema que representasse
29
Referência ao ensaio “A função social da poesia”. In: ELIOT, T. S. De poesia e poetas
.
São Paulo: Brasiliense, 1991. pp. 25-37. Eliot, nesse ensaio, define bem o que percebo em Gullar como essa
confiança na capacidade da arte de ter desdobramentos sociais importantes, mesmo que a longo prazo, quando
afirma que “no decurso do tempo, ela [a poesia] produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas vidas de
todos os integrantes de uma sociedade, de todos os membros de uma comunidade, de todo o povo,
independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, na verdade, de que saibam ou não os
nomes de seus maiores poetas”. (pp. 33-4)
30
JIMENEZ, 1983. pp. 17-8. (Tradução minha; original em espanhol)
26
legitimamente, sem artifícios, a experiência da vida em toda sua intensidade, alçando-a à
categoria do que dura (a arte, a morte); se nos Romances de cordel ela atinge o panfletarismo
político ao fazer do poema um mero instrumento de conscientização social; a partir de Dentro
da noite veloz o poeta passa a equilibrar de maneira muito interessante a força da arte (e a sua
necessidade) entre uma dimensão muito lírica, da confissão amorosa inclusive, e uma
dimensão mais engajada, política e filosoficamente preocupada com o tempo e espaço em que
se insere seu canto poético.
Enfim, e resumindo: é objetivo deste trabalho, observar, a partir da leitura de dois
livros de Ferreira Gullar, as diferentes maneiras que o autor encontra para responder
poeticamente a determinados problemas de sua experiência concreta (lembrando aqui a
famosa equação elaborada em “Traduzir-se”
31
) e como essas respostas, apesar de várias, como
pretendo observar no salto operado de Dentro da noite veloz para Na vertigem do dia,
sustentam-se sobre uma constante visão de mundo muito ligada à materialidade do corpo e
trazem consigo uma grande disponibilidade para a vida, amparada por uma permanente
perspectiva de futuro (expressas aqui no conceito de esperança).
A realização desse trabalho dependeu de uma longa pesquisa bibliográfica tanto da
poesia de Ferreira Gullar e sua produção memorialista e ensaística, quanto de sua fortuna
crítica, além de textos sobre história literária e política da segunda metade do séc. XX no
Brasil, e filosóficos, que abordam temas como o materialismo e o existencialismo. Cumpre
dizer, retomando o que está dito anteriormente, que este estudo não se quer aplicação ou
verificação de uma determinada conceituação (filosófica) sobre o texto literário. A chegada a
tal conceito (esperança) é posterior à leitura da obra e advém de um certo convívio com o
31
Sobre o poema, é indispensável a aguda leitura que dele faz Alcides Villaça no último capítulo de sua análise
citada, a respeito de Na vertigem do dia.
27
poeta, que permite identificar-lhe algumas unidades, sendo possível traçar-lhe uma espécie de
“mapa”, retornando à expressão de Alfredo Bosi. O que se pretende com essa dissertação é,
pois, aprofundar este convívio, a fim de entender os peculiaridades e contrastes observados
nas recorrências deste mapa, de maneira a confirmar e compor, no detalhe, as hipóteses
esboçadas a partir dos contatos iniciais com a obra.
O presente trabalho se concentra então na leitura da poesia de Ferreira Gullar e na
tentativa de compreensão de suas unidades e diferenças. Está claro, no entanto, que a visada
crítica sobre um poeta implica a consideração de uma série de outros fatores além daqueles
extraídos de uma leitura inicial e imanente da obra: sua biografia, sua psicologia, o contexto
literário, histórico, político e filosófico que lhe compõem o perfil, de modo a não se considerar
o texto nem como algo independente de seu meio, nem como simples documento do real.
Farei uso desses fatores extra-literários no momento em que eles se fizerem úteis ou mesmo
necessários, e não como pretextos à abordagem. O método deste trabalho (a abordagem dos
poemas) dependerá então de uma necessidade de cada texto a ser analisado. Na verdade, creio
que tanto em Ferreira Gullar como em qualquer obra de arte, a consideração desses elementos
deve nascer sempre de uma exigência da obra, e especificamente neste trabalho, que trata de
um poeta muito ativo tanto nas discussões estéticas quanto sociopolíticas de seu tempo, será
recorrente a utilização de tais fatores, como elementos auxiliadores na construção de sentido
dos textos.
Assim, uma posição dialética e equilibrada entre o estético e o ideológico divisão na
verdade aparente de algo uno e que contém sempre as duas coisas , tão bem formulada por
Antonio Candido nos “Pressupostos” da introdução de sua Formação da literatura brasileira,
e ironizada (mas almejada e tantas vezes alcançada) por Roberto Schwarz em seus “19
28
princípios para a crítica literária”
32
, é a proposta e a intenção metodológica do presente estudo,
que se ampara criticamente nas obras de grandes leitores como o próprio Antonio Candido,
Álvaro Lins, Augusto Meyer, Sérgio Buarque de Hollanda, Alfredo Bosi, Alcides Villaça,
João Luiz Lafetá, Davi Arrigucci Jr., entre tantos outros. O método deste último, sobretudo em
seu Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira, interessa-me em particular,
uma vez que a dimensão do corpus de meu trabalho certamente não permite a análise de todos
os poemas das duas obras selecionadas. O método a que me refiro triagem dos poemas
afins a um mesmo topos; seleção daqueles que melhor o representem; e, destes, uma análise
mais detida, dando conta do geral no particular, da maneira como faz Davi em sua obra citada
além de funcionar muito bem lá, parece servir adequadamente aqui à sistematização do
trabalho que proponho.
Por fim, convém lembrar que as reflexões dispostas nesta introdução são ainda
hipóteses que se pretende aprofundar, verificar e resolver com a análise que ora se inicia.
32
In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. pp. 93-4. Cito
aqui o primeiro princípio: “Acusar os críticos de mais de 40 anos de impressionismo, os de esquerda de
sociologismo, os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio”.
29
ESPERANÇA E LUTA COMUM EM DENTRO DA NOITE VELOZ
A maturidade poética de Dentro da noite veloz: interiorização e sincronia
Dentro da noite veloz compreende os poemas escritos entre 1962 e 1975 e é o primeiro
livro que Ferreira Gullar publica após os Romances de cordel, embora a realização de vários
de seus poemas seja simultânea à feitura dos Romances, que datam de 1962-67. Por isso, a
obra guarda ainda muito do desejo de engajamento político destes últimos textos, sobretudo
em seu início: “A bomba suja”, “Não há vagas”, “No mundo há muitas armadilhas”, entre
outros, são poemas que pertencem à época do envolvimento de Gullar nos Centros Populares
de Cultura (CPCs) da UNE, o mesmo período da maioria dos referidos cordéis, e à fase em
que participa do famoso grupo de teatro Opinião. É este também o momento em que o escritor
divulga o importante ensaio Cultura posta em questão (1965)
33
, no qual reflete sobre o papel
social do artista, teorizando, assim, aquilo que realiza (ou pretendia realizar) na sua poesia de
então.
No ensaio, a literatura participante é entendida e conceituada por Gullar como um
compromisso inevitável do poeta com a sua realidade: para ele, as circunstâncias exigem dos
autores uma resposta aos seus problemas, e sua atividade passa a ter uma função social “na
medida em que [o artista] tenha consciência de sua responsabilidade e compreenda que a arte é
um meio de comunicação coletiva”
34
, o que, para Gullar, contrasta com a arte vanguardista
deixada pelos concretos da década de 1950, movimento do qual, inclusive, participou e com o
33
A primeira edição da obra data de 1963, com publicação pela União Nacional dos Estudantes, mas a maior
parte de seus exemplares foi queimada com o incêndio provocado no prédio que abrigava a UNE, em 1° de abril
de 1964.
34
GULLAR, 2003. p. 46.
30
qual rompeu, e cuja pesquisa formal, ainda de acordo com o poeta, se sustenta sobre uma
noção de “arte pura”, desligada das contingências em que é produzida. Gullar, entusiasmado
pela descoberta do marxismo e cada vez mais envolvido com grupos de esquerda, examina
essa noção de vanguarda e conclui que, apesar do que dizem seus teóricos e artistas, não há
expressão desligada de ideologia, e o posicionamento que se esconde por trás dessa postura
pretensamente apolítica é o de que a arte é privilégio de poucos, produzida e consumida por
uma restrita elite intelectual.
Assim, a proposta que elabora no ensaio vai, incisivamente, na contramão daquilo que
compreendia por vanguarda: para ele, as soluções formais deveriam, na verdade, resultar das
propostas ideológicas que o poema quer lançar. Tudo somado, entende-se que o desejo e a
obrigação do poeta, na ótica daquele Gullar, é ainda despertar emoção, mas uma emoção que
fale às massas, comunique, entretenha e incite a reflexão de todos, e não de uma minoria
privilegiada. Dentro desta perspectiva, a cultura popular, mesmo que feita por uma elite
intelectual, deveria se voltar à recepção, essa sim, popular da obra, trazendo à tona questões
ideológicas a partir de uma preocupação com os meios mais adequados para que a
problemática levantada atinja o povo interessado, o que seria uma tradução para o uso
panfletário da linguagem artística, mesmo que o teórico, durante o ensaio, faça constantemente
restrições a este tipo de atitude.
Porém, se excetuarmos o didatismo exacerbado de alguns momentos desta proposta
reconhecido inclusive por Gullar, hoje, como exagero , além do reducionismo tanto estético
quanto ideológico em que a análise por vezes incorre, o ensaio não deixa de ser uma tentativa
interessante de lidar com os problemas de uma já conturbada fase pré-64. Dando sua cara a
tapa, Gullar se esforça por entender a vanguarda com que rompe, explicar a poesia engajada
31
da década de 60 e dar respaldo teórico a sua própria produção da época. Está claro, no entanto,
que a boa intenção não necessariamente resulta em boa análise e, em sua proposta ampla de
engajamento a uma cultura nacional popular, Gullar acaba limitando demais o raio de trabalho
sobre o qual um artista “deveria” transitar, como bem avalia João Luiz Lafetá, no trecho de
seu ensaio “Traduzir-se” que se presta ao comentário de Cultura posta em questão: “Ferreira
Gullar cobra dos artistas, a cada instante, a consciência do subdesenvolvimento, do
imperialismo e da luta de classes como condição concreta para a representação estética válida
da sociedade brasileira
35
. Cumpre notar os grifos que o crítico faz às expressões “condição
concreta” e “sociedade brasileira”: para ele, esses, que são os “cavalos-de-batalha” do
engajamento cepecista, aparecem no ensaio de Gullar como premissas inescapáveis à
realização artística.
Posteriormente, em 1969, Gullar, em um livro intitulado Vanguarda e
subdesenvolvimento, revê algumas das idéias levantadas no ensaio anterior, reconhecendo a
“autonomia relativa da expressão estética”
36
, não obstante sustente a crítica à vanguarda, ao
defini-la como impasse à realização de uma arte efetivamente brasileira, dado o seu
afastamento programado do mundo real. Arrefecem um pouco a paixão do engajamento e a
rigidez da necessidade participativa do artista, mas a idéia de uma cultura nacional popular
permanece, agora cifrada em outros termos, de forma mais interessante e elaborada, na esteira
da dialética lukacsiana do particular e do universal. O problema é que, na tentativa de
reconhecer o que seria especificamente uma particularidade da nação dentro da universalidade
internacional, o teórico Gullar traz à tona, novamente, alguns equívocos de Cultura posta em
questão e acaba incorrendo no mesmo reducionismo do ensaio anterior, ao concluir (e retomo
35
LAFETÁ, 1982. p. 101.
36
GULLAR, 2003. p. 10.
32
a análise de Lafetá) que o particular, no nosso caso, teria a ver somente com “aquilo que se
refira diretamente à realidade do subdesenvolvimento”, sendo que “qualquer reflexão sobre a
natureza da arte e da linguagem [pertenceria] à esfera do universal”
37
.
Pois bem, sem aprofundarmos muito a análise dos dois ensaios, mas considerando o
movimento que há neles em relação à reflexão sobre a participação social do artista, é possível
dizer que essa mudança de tom parece se insinuar também entre os poemas de Dentro da noite
veloz escritos antes e depois do golpe de 64: da euforia inicial, os textos vão se tornando mais
reflexivos, menos “apaixonados” no que diz respeito à luta coletiva (pedra de toque dos
Romances de cordel), embora continuem a afirmar a necessidade artística de se pensar sua
realidade sociopolítica. Porém, é importante notar: mesmo que seja correspondente, em grande
parte, ao período em que os dois ensaios são escritos e publicados e que tenha como tom geral
a vontade de participação social, a linguagem poética em Dentro da noite veloz não é mais
usada como mero instrumento de panfletagem política, da maneira como acontecia nos
cordéis: Gullar dá um passo nas soluções estéticas de sua poesia, não obstante permaneça
quase intacto seu projeto ideológico. Digo quase porque a noção de obra engajada ganha outra
realização, mais complexa, em Dentro da noite veloz, que ultrapassa, inclusive, o que se vê
proposto nos dois ensaios. O curioso é que o engajamento sugerido pelo teórico de Cultura
posta em questão e Vanguarda e subdesenvolvimento parece estar justamente no meio de duas
realizações poéticas simultâneas mas distintas, sem se verificar inteiramente em nenhuma
delas: de um lado, os ensaios representariam os Romances no que neles há de intransigência
ideológica e didatismo, por não admitir, considerando o contexto brasileiro de então, uma
poesia que não se ocupe necessariamente das circunstâncias sociopolíticas ou que não diga
37
LAFETÁ, 1982. p. 104.
33
respeito explicitamente à realidade brasileira; de outro, eles se aproximariam de Dentro da
noite veloz nas ressalvas que Gullar faz, nos dois ensaios (sobretudo em Vanguarda e
subdesenvolvimento), ao uso da linguagem poética como mero panfleto ideológico, tratando,
de uma maneira um pouco mais elaborada, aquela idéia de engajamento artístico (mesmo que
o poeta ainda lance mão deste recurso nos cordéis).
Como compreender, então, a diferença significativa entre poemas escritos
simultaneamente, perpassados por uma ideologia comum (expressa nos ensaios), ainda mais se
considerarmos que tal ideologia não se adequa integralmente nem a uma nem a outra obra? A
resposta parece estar na maneira como Gullar articula, tanto nos Romances de cordel quanto
em Dentro da noite veloz, a tríade relacional básica composta pelo eu lírico, o mundo (o outro)
e a poesia.
Vejamos. Aos Romances Gullar reserva (mesmo que esta escolha não tenha se dado
muito conscientemente para o poeta da época) a vontade de participação mais programática,
apriorística, em que o eu se anula para lançar o olhar inteiramente sobre o outro, buscando
força poética, de um modo quase exclusivo, no drama alheio, exemplar de uma dor coletiva e
referente a uma mazela social datada. Se este drama é por si comovente como realidade
empírica, não chega a ser, por outro lado, suficiente para legitimar a criação poética, que perde
em lirismo tanto por um esquematismo temático quanto formal: reduzido a mera denúncia em
versos, os Romances acabam por diminuir o drama do qual falam, demasiado exemplar e
categórico, e o gênero que lhes dá suporte, o poema de cordel. Alcides Villaça, no quarto
capítulo de seu longo ensaio sobre a poesia de Gullar, discute bem o problema:
Os Romances de cordel são peças de um projeto político-cultural que define valores (artísticos,
inclusive) antes de sua experimentação criativa. Que terá a arte para conhecer e revelar se a
análise e a expressão do real têm seus fundamentos estabelecidos antes dela? Qual a
contribuição da poesia (que não a de sua pura técnica) nessa tarefa de achar o achado? Nos
34
Romances de cordel Gullar se serve de uma forma tradicional para a veiculação de conteúdos
revolucionários (...)
38
É justamente em relação a esse esquematismo exagerado que Dentro da noite veloz
um passo à frente na trajetória poética de Gullar: se aos Romances ele confere, mesmo que não
a realize totalmente, a aplicação quase estrita de um projeto ideológico, na obra seguinte insere
esta mesma ideologia em uma perspectiva mais intimista, emocionada, e, por isso, mais
complexa. O “toque íntimo” do qual fala Sérgio Buarque de Hollanda, na apresentação de
Toda poesia
39
, aparece agora aliando “voz pública” e privada. Eis o que em seu importante
ensaio “Dois pobres, duas medidas” João Luiz Lafetá chama de a “segunda medida”, isto é,
“uma busca da forma literária capaz de compatibilizar os procedimentos estéticos refinados e
o conteúdo político”
40
, escapando dos reducionismos anteriores. O olhar lírico, antes projetado
para fora, volta-se cada vez mais para dentro do sujeito, interiorizando as questões que ainda
lhe servem de suporte ideológico, porém, pertencentes agora a um sistema de múltiplas
variáveis, que tem, como eixo interpretativo, o eu que as observa emocionadamente. De novo,
nas palavras esclarecedoras de Alcides Villaça:
Nos Romances, a consciência do eu lírico se pretendia anônima (na medida em que desejava
identificar-se com a generalidade dos trabalhadores espoliados), mas acabava por se formalizar
como uma consciência desprovida de qualquer interioridade (...). Em Dentro da noite veloz, os
poemas mais significativos não abdicam da intimidade problemática do eu, registrada em seu
esforço para o devir.
41
Quer dizer, há agora um filtro tenso de subjetividade assumido, que, ao invés de
conformar o mundo dentro de uma análise que antecede talvez sua observação bem cuidada,
antes o problematiza a partir da experiência do sujeito que nele se coloca de maneira viva.
38
VILLAÇA, 1984. p. 100.
39
GULLAR, 2000. p. XIII.
40
LAFETÁ, 2004. p. 231.
41
VILLAÇA, 1984. p. 115.
35
Assim, dois conceitos, ou dois processos, traduziriam esse passo que entendo como o ingresso
de Gullar em sua maturidade poética: a interiorização e, a partir dela, a “sincronização”
42
.
Ambos foram largamente tratados pelos intérpretes mais importantes do poeta aqui já
assinalados: Alfredo Bosi, João Luiz Lafetá e, sobretudo, Alcides Villaça. À luz deles,
vejamos o que significam.
Até chegar em Dentro da noite veloz, a partir do qual ganha uma certa constância, a
poesia de Gullar passa por etapas bem distintas, embora sustente o mesmo repertório
imagético e a mesma consciência materialista: o experimentalismo de cada uma dessas obras
anteriores, levado sempre às últimas conseqüências, parece representar então o movimento de
uma consciência lírica que pesquisa incansavelmente sua relação com o mundo e que traz, aos
poucos e em gradação, este para dentro daquela. Assim, em A luta corporal e O vil metal,
temos um sujeito preocupado com o tempo metafísico indiferente aos seres que consome, e
estes, por sua vez, indiferentes uns aos outros, aproximados apenas pela degradação comum.
Embora fale daquilo que é próprio da vida e do homem, na tentativa de definir uma persona
lírica que se busca a cada poema
43
, e apesar da surpreendente qualidade dessas obras iniciais,
o olhar, nelas, ainda é muito generalizante e se projeta menos para o eu do que para a condição
humana e o drama da existência, buscando uma linguagem que consiga ma nter, sem prejuízo,
a “matéria vertente” da vida (para usar uma expressão de Guimarães Rosa). Já nos Poemas
concretos e neoconcretos, mesmo que não se perca inteiramente a dimensão do eu, a reflexão
se lança para fora do sujeito (exemplar, antes, do drama da condição humana) e mesmo
“para fora do poema”, direcionando-se à “teoria que o explica e o justifica em outro tempo
44
42
O conceito é usado por Alcides Villaça, como veremos.
43
LAFETÁ, 1982. p. 77.
44
VILLAÇA, 1984. p. 83.
36
, mas desce ao plano do objeto, das unidades componentes da realidade cotidiana,
reintroduzindo, na poesia de Gullar, “a dimensão social, que ela estava para perder”
45
, após o
impasse expressivo de A luta corporal. Nos Romances de cordel, por sua vez, embora ocorra
explicitamente uma espécie de engajamento, a perspectiva permanece para fora do sujeito,
como comentamos, na medida em que se volta ao homem a quem se pretende conferir uma
exemplaridade, só que agora de um drama social bem localizado. Finalmente, em Dentro da
noite veloz, apesar de preservar algo da ideologia cepecista, o sujeito filtra intimamente a
percepção destas mesmas questões, isto é, não reduz mais a si e ao outro a determinações
ideológicas ou partidárias. Não as perde, está claro, mas as problematiza como esferas de um
eixo (o eu) atravessado e composto por várias outras esferas (os outros, o mundo).
Em suma e com o perdão do esquema talvez um tanto excessivo, que peca pela
superficialidade, mas que nos permite uma visada panorâmica sobre a trajetória da obra ,
teríamos, no que tange a preocupações determinantes do eu lírico em cada livro, e à sua
relação com elas: o tempo metafísico e o ser humano, em A luta corporal e O vil metal; o
mundo físico e seus objetos, nos Poemas concretos e neoconcretos; a sociedade e a política,
nos Romances de cordel; até chegar a um eu complexo, em Dentro da noite veloz, que, a partir
de “uma necessidade crescente de particularizar temas e motivos”
46
, recolhe todas as questões
anteriores e as coloca sob a perspectiva de um sujeito inquieto e espantado, que se vê como
parte de um sistema multifacetado e se entende como um processo situado em um tempo e
espaço específicos entre vários outros tempos e espaços determinados.
Alcides Villaça, na esteira da dialética do exterior e do interior, de Gaston Bachelard,
nomeia como “sincronização” esse procedimento que se torna obsessivo em Dentro da noite
45
LAFETÁ, 1982. p. 92.
46
LAFETÁ, 2004. p. 233.
37
veloz e que prossegue nas obras seguintes definindo uma poética. Mais uma vez, tomando as
palavras do crítico (que, inclusive, reforçam a idéia da trajetória interiorizadora):
A sincronização, ou necessidade dela, parece nascer como efeito de uma recusa, que recai,
desde os primeiros poemas, sobre a mobilidade fragmentária do mundo. Nos livros iniciais, essa
fragmentação era identificada com o próprio processo temporal cósmico, absoluto,
indiferente, atomizador , e o poeta não tinha alternativa além de flagrar a marcha de uma
permanente degenerescência universal. Mas o engajamento político e a vocação para um
profundo rigor consigo mesmo fizeram de Gullar não um poeta “reducionista”, como querem
alguns, mas onívoro, do ponto de vista da expressão. Cria, com isso, um parâmetro
exigentíssimo para a avaliação da própria poesia, fornece ele mesmo as medidas largas com que
quer se determinar. (...) A sincronização é o recurso que busca triunfar sobre o empirismo: seu
horizonte está no reconhecimento de um grande Sistema geral, do qual cada coisa se destaca e
para o qual todas as coisas convergem.
47
É preciso perceber (ou reforçar) que o reconhecimento dessa multiplicidade não se dá
no nível da simples contemplação, mas, justamente, por uma interiorização cada vez maior do
tempo das coisas no tempo do sujeito que as contempla, tornando-as elementos componentes
da experiência de vida revelada pelo canto poético. Assim, apesar do reconhecimento da
variedade, o poeta, voz individual situada em um tempo e espaço, permanece como eixo dessa
multiplicidade, o que resguarda compondo uma identidade
Para que se entenda melhor a observação, note-se o seguinte: somada a essa obsessão
sincrônica, a perspectiva materialista, já verificada pelo leitor que acompanha a trajetória do
poeta, e da qual se fez um breve comentário na introdução deste trabalho a respeito de A luta
corporal, continua a orientar a visão de mundo dessa consciência que agora se volta a questões
mais próximas de uma realidade em que o eu se coloca, com o outro, dentro de um drama
comum. Mesmo que permaneça a idéia de um isolamento ontológico desde os tempos de A
luta corporal, que possibilita, inclusive, o referido processo de interiorização, o desejo, em
Dentro da noite veloz, parece ser o de justamente diminuir aquela distância entre o eu e o
outro, a fim de que esta aproximação resulte em um esforço coletivo modificador da
47
VILLAÇA, 1984. p. 135.
38
realidade
48
. Nas palavras de João Luiz Lafetá, em seu “Dois pobres, duas medidas”, os vários
tempos de cada coisa “vêm se amalgamar no sujeito que os acolhe e tenta dar-lhes forma
poética, unidade que preserva a diferença”
49
. Com isso, não se anula a dimensão do eu, nem se
ignora a dimensão do outro. Para concluir, ainda à luz de Lafetá, mas agora sobre seu outro
ensaio, o já referenciado “Traduzir-se”, é flagrante que o poeta, em Dentro da noite veloz,
tenta
abandonar aquilo que é a diferença entre os indivíduos (e que constitui a temática de A luta
corporal) e reencontrar a semelhança que os una. O dia de todos deve ser a proximidade entre
os homens, ultrapassando ‘a distância entre as coisas’. A ‘voz pública’ e a ‘voz íntima’ devem
ser a mesma.
50
Proposta esta que traduz, em partes, a diferença filosófica de Dentro da noite veloz em relação,
ao primeiro livro, A luta corporal, e também, pensando agora na realização poética, distancia
essa obra de 1975 da que lhe é anterior, porém de feitura simultânea, os Romances de cordel.
Os movimentos da esperança na maturidade de Dentro da noite veloz
Pois bem, feita a revisão da fortuna crítica mais importante de Ferreira Gullar a
respeito desses procedimentos de particularização, como se configura o motivo da esperança
dentro deste quadro de amadurecimento poético? Para responder, é preciso considerar tanto o
que Dentro da noite veloz conserva ainda dos Romances de cordel, num plano ideológico,
48
Na vertigem do dia, outra obra escolhida para análise neste trabalho, marcaria então uma espécie de retorno
àquela consciência da solidão do primeiro livro, mas com uma diferença: se em A luta corporal essa consciência
aparece como constatação desestabilizadora da relação eu/mundo, em Na vertigem do dia ela se configura como
ganho reflexivo que, ao contrário do livro de estréia de Gullar, demonstra ao eu a necessidade existencial da
esperança como mola propulsora à ação presente. Voltaremos ao problema no segundo capítulo desta dissertação.
49
LAFETÁ, 2004. p. 237. O comentário é feito acerca de Poema sujo, mas se aplica bem ao que já se vê em
Dentro da noite veloz.
50
LAFETÁ, 1982. p. 120.
39
quanto o que, em um plano estético, representa como início da poesia madura de Gullar, tendo
em vista justamente aqueles procedimentos de interiorização e sincronização.
Dentro da noite veloz é, entre suas obras todas, certamente a que referencia a esperança
de maneira mais aberta (um número enorme de seus poemas cita pelo menos uma vez a
palavra). O próprio título já sugere positividade, adjetivando como “veloz” a “noite” na qual
se encontra o sujeito: reconhecendo-se “dentro” dela, assumindo-se como parte de um tempo
problemático, o poeta não deixa de lançar sua perspectiva adiante; o agora obscuro aponta
para a expectativa de uma virada dos tempos (noite e dia), sugerindo a iluminação de um
momento que parece não tardar. Assim, seria até possível dizer que o motivo da esperança já
se insinua de alguma maneira no título da obra, sem, no entanto, conter completamente a
maneira como ele se processa dentro dela. Pelo contrário, se o leitor considerar a parcela mais
literal da imagem que o título carrega, a interpretação pode seguir um caminho inverso ao que
se verifica no livro. Explico-me: como é natural que o dia venha após a noite, ao aplicar
simbolicamente esta certeza àquela idéia da expectativa, a leitura talvez dê a esta última uma
carga de naturalidade com a qual o poeta não coaduna, como se a saída de um agora obscuro
viesse invariável e naturalmente e independesse do esforço humano.
Ao contrário, como comenta Alcides Villaça, se “o tempo é vertiginoso, portanto
dinâmico”, o que importa agora “são os movimentos do passageiro desse tempo, igualmente
ativo no seu interior”
51
. Nesse sentido, o título traz consigo uma idéia de historicidade que é
inclusive muito cara a Gullar: a matéria de sua poesia diz respeito ao seu tempo presente,
sobretudo, nesse momento, às circunstâncias sociais daquele período. Assim, retomando o
comentário de Villaça, no que tange à atividade do sujeito dentro de seu contexto, poderíamos
51
VILLAÇA, 1984. p. 105.
40
dizer, genericamente, que esse livro de 1975 associa o motivo da esperança à confiança em
uma “luta comum”, isto é, a uma necessidade de se organizar socialmente para, a partir de um
esforço coletivo, construir uma realidade menos dura, uma vez que não resta outra alternativa
de mudança de um atual e desagradável estado de coisas a um homem que pensa o mundo de
uma perspectiva materialista e que, por isso, não espera uma intervenção divina nem crê que
um destino, cruel ou bom, já esteja traçado anteriormente à experiência da vida. A
possibilidade de mudança depende então de uma ação presente, e o sujeito que se assume
“dentro da noite veloz” precisa agir (e confia nesta ação, como veremos na leitura dos poemas)
para que o momento de escuridão passe realmente em tal velocidade.
Vale lembrar, porém, que Dentro da noite veloz tem como intervalo de criação um
longo período de treze anos (isto, é, a noite não foi tão veloz assim...), o que nos leva a
imaginar, talvez antes mesmo de sua leitura (em função de Gullar ser um poeta tão ligado às
questões que a vida lhe impõe a cada circunstância), uma oscilação de tratamento que um
mesmo tema possa ganhar no decorrer da obra, o que se verifica nos poemas. A euforia mais
apaixonada divide espaço com um doloroso desencanto, o que não deixa de confirmar aquela
polaridade observada no título: há o reconhecimento de um presente problemático, seja ele em
uma esfera íntima ou social (considerando-se ainda o desejo de aproximação dessas duas
esferas), mas há também a contrapartida ativa que se esforça por escapar deste mesmo estado.
Assim, antes que entremos na leitura dos poemas, é preciso reconhecer que o motivo
da esperança passa por alterações em Dentro da noite veloz apesar de uma certa maturidade
poética alcançada, apesar do constante pano de fundo materialista e apesar ainda da insistência
temática , indo de um olhar muito apaixonado pela luta política, nos primeiros textos,
atravessando momentos de desilusão e reflexões sobre a identidade e a memória, ao longo de
41
toda a obra, até chegar à associação entre uma vontade muito íntima de mudança atrelada à
necessidade de uma empreitada coletiva nessa direção, mesmo que a prática desta iniciativa se
dê em esferas diferentes de ação: no caso de um poeta, a ação que lhe cabe se realiza na
poesia, entendida como sua ferramenta no exercício de alteração da realidade. Vejamos, então,
por partes, como essa oscilação se processa.
O engajamento ainda apaixonado
Temos nos primeiros poemas, como está dito antes, uma aproximação ainda muito
forte do modus operandi dos Romances de cordel: nos seis primeiros textos, à exceção de
“Meu povo, meu poema”, que inaugura curiosamente o livro, o sujeito ainda se mistura pouco
às questões que coloca, e uma dimensão de denúncia social salta aos olhos imediatamente.
Porém, se por um lado é nítida a proximidade dos cordéis, a exemplo de “Bomba suja”,
“Poema brasileiro” e “No mundo há muitas armadilhas”, por outro, espanta ver como “Meu
povo, meu poema” introduz a obra trazendo uma concepção de poesia tão diferente da
realização observada nos Romances. Transcrevo-o:
Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil
42
Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta
52
O leitor que acaba de sair dos Romances de cordel reconhecerá nesta introdução de
Dentro da noite veloz vários elementos da poesia anterior de Gullar: estão lá aproximados
poema e povo, está lá a referência ao trabalho rural, do plantio e da colheita, está lá, somando
tudo, uma idéia de engajamento artístico. No entanto, a combinação desses mesmos elementos
possui agora, visivelmente, um resultado muito diverso daquele alcançado antes. O que
explicaria este fenômeno, ainda mais se considerarmos que a redação de “Meu povo, meu
poema” possivelmente se deu em 1962 já que a disposição dos poemas em Toda poesia,
edição que vimos acompanhando, organiza os textos de Dentro da noite veloz e Na vertigem
do dia a partir de sua cronologia de composição e esta é a mesma data de redação de “João
Boa Morte”, primeiro dos Romances? Na verdade, de um modo genérico, já respondemos a
esta pergunta, quando do comentário sobre a maturidade alcançada pelo poeta a partir de
Dentro da noite veloz. O que podemos perceber agora, realizado no texto, é a maneira como se
dá aquele processo de sincronização tão bem analisado por Alcides Villaça.
Glosando o crítico, neste poema introdutório, e que claramente pretende expor uma
poética, “povo” e “poema” mundo e obra estão indissociavelmente amarrados, numa
relação mais intensa do que uma simples proximidade: a idéia que se passa é antes de uma
filiação, de continência, de origem, da árvore e seu fruto, e é sobre esta referência que o texto
se constrói. Cada estrofe, ao mesmo tempo em que, gradativamente, mescla “poema” e
“povo”, corresponde analogicamente a um estágio do desenvolvimento vegetal, orientado pela
ação do homem, que “planta”. Assim, os dois termos do título se contêm mutuamente,
52
GULLAR, 2000. p. 155.
43
“enganchados” pelo pronome “meu”, que os particulariza, isto é, que os contêm, mas que
também está contido neles.
Villaça conclui, após analisar cuidadosamente o desenrolar de cada estrofe, que o
trabalho aparece como “ação central” desses dois processos, contínuos e análogos, que se dão
em um tempo presente (vide a marcação temporal de todos os verbos) e que resume, neste
esforço, a convicção
de que o canto e a natureza podem ser símiles para o encontro do indivíduo com o social,
convicção de que o futuro é um presente enquanto processo. Convicção de que o dinamismo do
eu e do povo não se excluem, mas se animam reciprocamente.
53
A visão do crítico é aguda e precisa ser pensada com cuidado. É possível entrever nela
uma larga definição de poesia que, situada em um texto que inicia o livro, confirma sobre ele
aquela dimensão, que se tem em sua primeira leitura, de projeto poético para a obra toda que
inaugura. A fim de melhor compreendê-los, tanto o comentário quanto essa dimensão,
podemos dividi-las em três níveis. Em um primeiro, observa-se aquela idéia da sincronização,
sobre a qual já falamos, que está na conclusão a que chega Villaça (eu, “povo” e “poema” se
atravessando e se construindo mutuamente) e que marca o início da maturidade estética de
Gullar, a meu ver.
Num segundo, deriva dessa sincronização um desejo de engajar-se, isto é, de revelar no
canto íntimo aquilo que, pela particularização e sincronia, diz respeito também ao outro. Nesta
idéia de engajamento, Gullar se aproxima do que diz T. S. Eliot, em seu ensaio “Função social
da poesia”
54
, sobre a relação de uma língua e sua literatura, mais especificamente a poesia
e seu povo. Para Eliot, a língua materna de uma determinada nação é na verdade a
53
VILLAÇA, 1984. p. 109.
54
In De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991. O ensaio, porém, tem origem em uma palestra apresentada
por Eliot em 1943, no Instituto Britânico-Norueguês.
44
expressão de um sentir coletivo, e a poesia, entendida como sua expressão primeira e
particular, tem a função de preservar e desenvolver a cultura de um país, fazendo a
manutenção de sua “saúde”. A semelhança entre a reflexão de Eliot e o poema de Gullar não
parece gratuita: nosso poeta está convicto neste momento de que a arte precisa atender às
exigências de seu tempo, tendo, por isso, sua origem no povo e em seus problemas, crescendo
com ele, espelhando-se nele, para, por fim, ser entregue a quem mais carece da expressão
poética: o povo mesmo. Volta-se então àquela discussão levantada antes, ao citarmos o ensaio
Cultura posta em questão: Gullar entende, nesse momento, assim como Eliot, que o artista
tem uma função, com a diferença de que, para Gullar, a obra de arte, uma vez considerada
veículo de comunicação coletiva, tem um destinatário almejado, bem identificado (o povo, a
classe operária, o trabalhador rural, enfim, aquele que sofre, é oprimido e que precisa de
alguém que fale por ele, com ele), o que conferiria ao artista a vasta obrigação de, além de
emocionar mas com a emoção , informar, denunciar, combater e incitar a reflexão. Esse
segundo nível, já observado nos Romances de cordel, no entanto, quando acrescido da
dimensão sincrônica do primeiro, ganha em elaboração e marca o referido passo à frente que
Dentro da noite veloz faz em relação à obra anterior.
Em um terceiro nível, ampara essa poética aquela base materialista que dá ao homem a
responsabilidade de construir a própria vida e, com isso, se coloca como necessidade do
presente a perspectiva de um futuro positivo, que trata o devir como uma possibilidade
embrenhada no agora, exigindo do sujeito uma atitude orientada em sua direção. Assim como
a promessa de iluminação está prestes a eclodir na “garganta do futuro”, o poema amadurece
no povo e com ele se coloca como o instrumento do poeta no esforço comum para se escapar
de um estado de “noite”. Logo no primeiro poema de Dentro da noite veloz, surge cifrado
45
então, também de um modo mais maduro, o motivo da esperança, e a expectativa expressa no
canto poético, ainda que ligada à luta coletiva, como nos cordéis, pode ser vista aqui de duas
maneiras, que atestam seu amadurecimento: mais complexa do que o mero panfletarismo dos
textos anteriores, ao nascer simultaneamente de duas entranhas (eu e povo) e não mais apenas
de um rígido sistema ideológico que o primeiro projeta sobre o segundo; e menos abstrata do
que a interpretação que faz dela o senso comum, isto é, não mais como a mera expectativa de
dias melhores e sim mais próxima daquilo que Ernst Bloch entende como o princípio do sonho
acordado: a possibilidade dentro da matéria atual, guardando no presente o que ainda-não-é
a promessa do vir-a-ser.
Resumindo, estão, no primeiro poema de Dentro da noite veloz, indissociavelmente
dependentes uns dos outros, os três níveis que marcam os momentos altos da obra de Gullar. O
curioso é que nos poemas imediatamente posteriores ao primeiro texto predomina a dicção
daquele segundo nível, mais próximo do que se observa nos cordéis. Como está dito antes, são
cinco os poemas que se seguem, todos eles marcados por um aspecto forte de denúncia,
voltados sempre para o drama de um outro, apesar de transitarem por esferas diferentes de
uma realidade observada ainda como uma espécie de objeto, sendo possível perceber mesmo
uma leve oscilação dentro da constância desse primeiro grupo, sobre a qual falaremos agora.
Em “Poema brasileiro” e “Não há vagas”, a marca da denúncia se dá no âmbito da
constatação que paralisa o espectador perplexo. No primeiro, a mazela denunciada é de tal
força que quase embota a realização do poema, construído inteiramente a partir de uma mesma
oração, disposta de maneiras diferentes em cada estrofe: “No Piauí, de cada 100 crianças que
nascem/ 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”
55
. A alteração da mesma frase, ao
55
GULLAR, 2000. p. 159.
4
6
longo do poema, parece denotar o esforço do sujeito para transformar essa assombrosa notícia
estatística em arte, como se o simples trabalho com a plasticidade da sentença fosse capaz de
operar a tradução. Interessante que o poema, pronto, é praticamente a representação de seu
fracasso, sobrando apenas a perplexidade que o motivaria, reforçada na repetição, quatro
vezes, do mesmo verso, na última estrofe: “antes de completar 8 anos de idade”. Impotente, o
poeta consegue apenas constatar e denunciar o problema, sem, no entanto, interferir nele, e é
justamente esse desejo de intervenção que implicitamente aparece no desabafo da denúncia de
“Não há vagas”
56
.
Na sua primeira estrofe, uma série de elementos que não cabem no poema mas que
deveriam caber, como veremos são arrolados: “o preço do feijão”, “o preço do arroz”, “o
gás/ a luz o telefone”, além da “sonegação/ do leite/ da carne / do açúcar/ do pão”. Na segunda,
são trabalhadores aqueles que ficam de fora: “o funcionário público” e “seu salário de fome”,
e o operário na escuridão de sua oficina. Como uma crítica ao texto “fechado”, ensimesmado
e vale sempre lembrar que é neste momento que Gullar, em Cultura posta em questão, faz
um juízo negativo à autotelia da vanguarda , o poeta, ironicamente, reclama do poema que
“não fede/ nem cheira”, no qual só cabe o que não carrega uma densidade concreta, como “o
homem sem estômago/ a mulher de nuvens/ a fruta sem preço”, e que está fechado àquilo que
diz respeito à matéria da vida; isto é, a denúncia se revela aqui, através da ironia que perpassa
todo o texto, como uma recusa à arte que não se pretenda participativa e como um alerta a
respeito de uma temática que deveria ser considerada pelo artista: as condições sociopolíticas
de seu contexto.
56
GULLAR, 2000. p. 162.
47
Curiosamente, em outro poema deste primeiro grupo, “Voltas para casa”, a temática já
aponta para a realidade cotidiana do funcionário público, tratando de problemas próprios do
homem do centro urbano, como a fadiga advinda do trabalho (“Depois de um dia inteiro de
trabalho/ voltas para casa, cansado”), o isolamento que este mesmo trabalho implica
(“Consumiste o dia numa sala fechada,/ lidando com papéis e números”) e a desilusão e apatia
íntima, apesar do tumulto externo (“De fato nada te acontece, exceto/ talvez o estranho que te
pisa o pé no elevador/ e se desculpa”). No entanto, o homem, ou o “povo”, considerando que o
drama deste homem ainda carrega uma dimensão de exemplaridade, permanece como um tipo
de “personagem” de alguém que “narra”, um tanto distanciadamente, o périplo de seu
cotidiano. Isto é: mesmo considerando o recurso da dramatização da voz poética (o eu lírico se
referindo a uma segunda pessoa), muito freqüente, por exemplo, na poesia de Carlos
Drummond de Andrade (vide o clássico “Poema das sete faces”: “Vai, Carlos! ser gauche na
vida”
57
), para citar apenas uma das influências mais diretas de Gullar, é preciso perceber que
se a realidade retratada é comum, no sentido de corriqueira, típica do homem que vive na
cidade, a postura do sujeito que fala no poema ainda não o aproxima do sujeito de quem fala;
ou seja, a voz poética desnuda a “noite” em que se encontra o homem urbano, serve ao canto
deste motivo, mas parece não compartilhar de sua prostração. A segunda pessoa, aqui,
diferentemente do que ocorre em Drummond, deixa de representar uma dramatização do eu
lírico e se torna de fato um sujeito a quem aquele se dirige, não obstante se identifiquem em
alguma medida. Assim, aproximam-se um pouco as realidades de ambos, mas ainda não se
“fundem”, não se atravessam mutuamente, uma vez que há entre eles uma diferença de
iniciativas. O primeiro chega, inclusive, a chamar a atenção do segundo, ao final do poema:
57
ANDRADE, 1999. p. 11.
48
“Terá o mundo de ser para elas [as crianças]/ este logro? Não será/ teu dever mudá-lo?”. Já
cabe então, em “Voltas para casa”, a concreção que o poeta reclama em “Não há vagas”; falta-
lhe, porém, a perspectiva que pretenda alterar o rumo desta mesma realidade: a denúncia
daquele estado de “noite” não prostra mais o poeta, mas agora o sujeito sobre e a quem ele
fala, e a iniciativa de mudança não se configura ainda como a luta comum que veremos nos
textos seguintes. Cumpre anunciar também que outros poemas desiludidos aparecerão; no
entanto, neles, a abordagem desse desengano diferirá bastante da observada aqui. Contudo,
notaremos com mais detalhes adiante, a desilusão tanto deste quanto dos outros textos será
imprescindível à formação do tom geral esperançoso de Dentro da noite veloz.
Pois bem, ainda dentro desse primeiro grupo de poemas, em “A bomba suja” e “No
mundo há muitas armadilhas”, a constatação de uma realidade problemática, ao invés de
paralisar, conduz o poeta a incitar um esforço conjunto. O primeiro deles, segundo poema da
obra, lida então com a questão do engajamento de maneira muito explícita. “A bomba suja”
58
trata, metaforicamente, do problema da fome no país: a diarréia que mata centenas de
brasileiros carentes de uma alimentação mínima é, na verdade, a bomba referida no título,
acionada pela miséria e instalada nessas pessoas por aquele que “faz café virar dólar/ e faz
arroz virar fome”, que rouba o que eles plantam antes que eles comam. A dicção próxima dos
cordéis é evidente não só pela temática mas também pela construção do poema: simétrico, o
texto é todo dividido em quadras (à exceção da última estrofe), os versos são redondilhas e
ainda há um esquema rímico, regular, nos segundo e quarto versos de cada estrofe. Além
disso, voltando à temática, parece clara, considerando a data do poema e seu contexto, a
referência a uma questão já muito em pauta na década de 60, forte também nos cordéis: o
58
GULLAR, 2000. p. 156-8.
49
problema da reforma agrária. Mais do que isso, é nítida também a tomada de partido do poeta,
clamando por uma revisão da estrutura agrária latifundiária, a grande responsável podemos
entrever de acordo com o texto pela má distribuição de renda no país e pela paradoxal
morte de fome justamente daqueles que plantam a comida que não vêem.
Nos últimos versos, numa espécie de peroração (parte final do discurso retórico em que
o orador apela à compreensão de seus interlocutores), o poeta nos convoca a deter quem
“sabota” nossos trabalhadores rurais, ajudando-os a desarmar essa bomba suja, trocando a
“arma da fome”, que há em cada um, pela “arma da esperança”, e eis que aparece na obra, pela
primeira vez e abertamente, a palavra esperança (considerando que, no primeiro poema, sua
idéia está implícita). Notamos que ela, já aqui, aparece atrelada a um desejo de luta coletiva,
mas seu desenvolvimento se dá de uma maneira ainda muito semelhante a dos Romances: para
o poeta, esta nova arma precisa ser instalada por todos convocação atestada pelo discurso
que passa, nas três últimas estrofes do poema, para a primeira pessoa do plural a fim de que
se transforme o estado de coisas desse outro sobre quem, distanciadamente, se fala
Agora, se compararmos esse segundo poema de Dentro da noite veloz com “No mundo
há muitas armadilhas”
59
, penúltimo texto deste primeiro bloco que demarcamos na obra,
apesar da afinidade acerca do engajamento, veremos uma diferença significativa de tratamento
em relação ao que neles há de semelhante: a vontade de participação. Permanece em alguns
momentos desse penúltimo poema um ranço muito forte dos cordéis (ranço este presente de
forma mais acentuada no texto anterior, “A bomba suja”), no reducionismo e no lugar-comum
de versos como “O certo é que nesta jaula há os que têm/ e os que não têm/ há os que têm,
tanto que sozinhos poderiam/ alimentar a cidade/ e os que não têm nem para o almoço de
59
GULLAR, 2000. 163-4.
50
hoje”
60
, mas há também momentos mais apurados de uma reflexão existencialista,
acrescentando à vontade de participação social uma dimensão de necessidade íntima.
Apesar dessa diferença, vale ressaltar, porém, que o poeta ainda utiliza, da mesma
maneira como em “Voltas para casa”, o recurso da referência a uma segunda pessoa,
colocando a voz poética em um plano diferente ao daquele a quem se dirige. É como se o
sujeito que fala estivesse quase a advertir e a explicar a esse outro a natureza do problema que
ele (a segunda pessoa) enfrenta e a razão de sua resistência, a despeito das adversidades. O
mundo possui muitas armadilhas, a realidade falseia, é ambígua, enganosa, explicará o eu
lírico a seu “interlocutor”, e a ausência de sentido para a vida poderia levá-lo a cogitar,
inclusive, a utilização da bomba atômica para “acabar com tudo”. No entanto, se “a vida é
pouca/ a vida é louca”, não há, na ótica materialista deste poeta, nada para além dela, o que
explicaria a resistência quase instintiva daquela segunda pessoa que não se mata, não vai se
matar e agüentará até o fim de acordo com o eu lírico uma vez que está presa “à vida
como numa jaula”. Neste momento, o poeta naturalmente se coloca na mesma posição da
segunda pessoa e leva o discurso para a primeira do plural, quando diz “Estamos todos presos/
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver/ de fora e nos dizer: é azul”. Estar inevitavelmente
preso à vida seria, então, a razão para resistir e quebrar as armadilhas do mundo; isto é, se o
homem “não foge da vida”, se “não adianta fugir”, nem “adianta endoidar” para pegarmos
alguns trechos de “Vestibular”, outro poema de Dentro da noite veloz , resta-lhe agir na
elaboração de uma realidade melhor para si e para o outro.
Assim, insinua-se discretamente aqui, em “No mundo há muitas armadilhas”, a
maneira como entendo o motivo da esperança na obra toda (relembrando: a necessidade da
60
GULLAR, 2000. p. 164.
51
expectativa de futuro a partir da constatação crua e materialista da natureza da vida, exigindo
do homem uma ação que oriente seu esforço resistente e modificador da realidade). Ocorre,
porém, que neste poema a reflexão ainda está excessivamente direta, pouco internalizada, e o
poeta, quando não se dirige àquela segunda pessoa, dá ao discurso um nível de indeterminação
que afasta o problema, geral, de seu universo íntimo. Por outro lado, há um detalhe na
conclusão do poema, que problematiza esse afastamento: mesmo guardando muito ainda dessa
distância advinda da generalização, ela (a conclusão) resgata o que há de rico na discussão
anterior e a resume em uma tautologia interessante, que reforça aquela natureza instintiva e
comum da resistência: “O homem está preso à vida e precisa viver/ o homem tem fome/ e
precisa comer/ o homem tem filhos/ e precisa criá-los”. A densidade concreta desses
problemas e a urgência de resolução que eles exigem, derivada de um desejo de manutenção
natural da vida, culminam na necessidade de “quebrar” as armadilhas colocadas pelo mundo e
acabam por aproximar, mesmo que sutilmente, o eu que fala daquele a quem se dirige, mesmo
que em outros momentos do poema essa mesma generalização se preste ao distanciamento
desses sujeitos.
Fechando esse primeiro bloco de poemas mais entusiasmados, observamos que em “O
açúcar”
61
, texto seguinte ao que agora comentamos, algo já começa a mudar, e aquele
processo de interiorização observado em “Meu povo, meu poema” se realiza mais
efetivamente; a noite geral, vivida pela sociedade e referenciada nos primeiros poemas, ganha
aqui contornos mais íntimos. O sujeito finalmente se coloca no discurso e, a partir do açúcar
que adoça seu café em uma manhã, em Ipanema, reflete sobre o drama daqueles que o
produzem. Mesmo que seja previsível a polaridade final entre a doçura do açúcar e a “vida
61
GULLAR, 2000. pp. 165-6.
52
amarga” de quem trabalha em sua elaboração, a maneira como o poeta constrói aos poucos a
tensão enriquece essa mesma polaridade, na medida em que delineia gradativamente a
distância que separa o produto final e seu consumo da sua base de produção. Assim, nas duas
primeiras estrofes temos a apreciação da doçura do açúcar por parte do eu lírico, que também
principia a questionar a origem do produto. Nas terceira e quarta estrofes, o sujeito faz
mentalmente o percurso inverso do açúcar até sua casa e, com isso, descreve, também ao
contrário, seu processo de elaboração, esquematizado da seguinte forma: o homem em sua
casa mercearia do Oliveira usina em Pernambuco ou no Rio canaviais extensos. A
reflexão chega finalmente aos “lugares distantes, onde não há hospital/ nem escola” e aos
“homens que não sabem ler e morrem/ aos vinte e sete anos”, responsáveis primeiros pelo que,
após todo o percurso, adoçará o café do poeta, culminando na contradição entre a “vida
amarga/ e dura” destes homens e o “açúcar/ branco e puro”. Desta maneira, a distância que
separa as duas extremidades do processo referenciado no “miolo” do poema aumenta com a
sua descrição, e o contraponto entre quem faz e quem consome, do qual o açúcar é eixo,
posiciona o poeta corajosamente no lado dos que aproveitam; isto é, ele faz a denúncia e de
algum modo se denuncia: dentro do problema, assume-se como parte dos privilegiados, sem se
pôr ao lado destes, e participa assim, através da consciência, com os plantadores de cana,
mesmo que em pólos diferentes, de uma mesma realidade problemática.
O ponto de transição em “Homem comum”
Não obstante já encontremos em “O açúcar” uma aproximação mais sensível entre as
realidades da “voz íntima” e de uma “voz pública”, é só no poema seguinte a esses seis que
53
iniciam Dentro da noite veloz que vemos tanto o poeta quanto o homem sobre quem e a quem
ele pretende falar efetivamente se atravessarem: em “Homem comum” temos um bom
exemplo da maneira como Gullar, a partir de agora, tratará a relação entre, primeiro, o
reconhecimento materialista e individual da precariedade de um atual e generalizado estado de
noite, e, segundo, a luta coletiva, relação através da qual vejo se manifestar mais
explicitamente o motivo da esperança nesta obra de 1975. Ganhará, nos poemas seguintes, um
contorno ainda mais refinado “Homem comum” está longe de ser o melhor de Gullar ,
mas já está aqui a base que propicia, inclusive, a melhor elaboração posterior. Embora esteja
ainda ligado ao entusiasmo cepecista (o que se pode notar em alguns de seus momentos), é
também neste poema e considerando sua data de redação: “Brasília, 1963” que talvez se
verifique mais claramente aquele curioso salto estético que Gullar dá em Dentro da noite veloz
se comparado às obras publicadas antes, os Romances de cordel (mas escritas quase
simultaneamente). Porém, caminhemos com calma; vejamos primeiro o texto:
Homem comum
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons,
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bocas bafos bacias
54
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem,
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas.
62
O poema se inicia e segue até a sua metade com uma autodescrição do eu lírico. De
imediato, nota-se que há nesta um desejo de aproximação muito claro entre dois sujeitos, que
pode ser entendido em dois níveis: numa primeira instância, o poeta, ao se dizer um “homem
62
GULLAR, 2000. pp. 167-8.
55
comum”, retira de si qualquer aura distintiva e “desce” ao mundo de todos. Não que se visse
antes, está claro, como sujeito tocado pelo dedo divino ou coisa que o valha, mas, como
pudemos perceber nos poemas anteriores, algo ainda o distanciava do homem a quem pretende
falar nesse momento mais apaixonado politicamente. O que, porém, significa essa “descida”,
quais são os termos que definem esses homens aproximados? Apresentam-se, já na primeira
estrofe, as duas dimensões que basicamente compõem essa identidade e que continuarão a ser
trabalhadas ao longo de todo o poema: esse homem é feito tanto da matéria sensível que deduz
sua presença e a de qualquer um na experiência do presente (a “carne”, o “osso”, o
andar “a pé, de ônibus, de táxi, de avião”) quanto dos vários tempos passados, cuja matéria
registra-se ou é esquecida pela memória, assim como também acontece a qualquer sujeito.
Somado a isso, ou somando tudo, faz dele um homem comum o intenso sopro de vida que o
anima internamente como a “chama de um maçarico” e a permanente disponibilidade à morte,
isto é, a possibilidade dessa chama “subitamente/ cessar”.
À segunda estrofe pouco se acrescenta: o poeta, na verdade, apenas desdobra a
dimensão da memória em vários pequenos registros que, misturados, compõem seu universo
íntimo e lhe fazem “caminhar”: diferentes tempos, espaços, pessoas e objetos dão corpo à
identidade de quem, por ser feito do que é, ou seja, por ser um eixo de múltiplas realidades
cruzadas no presente e no passado, se encaixa no perfil de qualquer um, como o “você” ao
qual se dirige. Disso tudo, dois detalhes merecem destaque. O primeiro tem a ver com a
mudança do pronome de tratamento utilizado pelo eu lírico em relação à segunda pessoa com
quem fala. A alteração do “tu”, dos poemas anteriores, para o “você”, de agora, pode ser lida
como um símbolo sutil mas significativo daquela aproximação entre a “voz íntima” do poeta e
a “voz pública” da qual faz parte: menos cerimonioso, não apenas os elementos mas também o
56
discurso achega a identidade poética de uma realidade mais chã. O segundo detalhe diz
respeito a relação eu e mundo que se estabelece a partir dessa aproximação: a realidade deixa
de ser apenas um espaço sobre o qual transita e fala o poeta; mais do que isso, mas sem deixar
de ser este cenário e este objeto de reflexão, ela se torna componente de seu universo íntimo,
delineando assim a identidade poética seu estar embrenhado no mundo e animando sua
ação. Inclusive, essa idéia da interpenetração de sujeito e espaço não é senão um
desdobramento daquele processo de interiorização e se tornará uma das grandes obsessões do
momento mais alto da poesia de Gullar, em Poema sujo, explicitada na primeira estrofe de sua
última parte: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no
homem/ que está em outra cidade”
63
. Não se chega ainda a este nível de alquimia em “Homem
comum”, mas, já aqui, o universo exterior, registrado pela memória, internaliza-se e passa a
compor a dimensão íntima do sujeito que o atravessou e é atravessado por ele.
Voltemos a leitura do poema. Em sua terceira estrofe, é aquela dimensão da realidade
presente que ganha seu desenvolvimento: quase como a descrição de um currículo, o poeta se
diz “brasileiro, maior, casado, reservista”. O que se segue a essa definição escapa, porém, de
um estrito senso comum, apesar de tocá-lo. Isto é: o poeta, nos versos seguintes, diz não ver na
vida “nenhum sentido, senão/ lutarmos juntos por um mundo melhor”. A sentença se avizinha
de um clichê otimista da luta coletiva para o bem da humanidade, mas o leitor precisa perceber
que essa conclusão, aqui, deriva de um agnosticismo e de um materialismo agudos, que,
desconhecendo um sentido para a vida, desacreditando em uma metafísica para além daquilo
que a matéria oferece e o homem é capaz de sentir e entender, compreende a experiência da
vida como um esforço humano que precisa se orientar pela melhora de sua mesma condição. A
63
GULLAR, 2000. p. 290.
57
aparência ingênua da afirmativa nasce assim de uma postura muito pouco autocomplacente, do
posicionamento nada passivo de um homem e seu estar no mundo cruamente identificado.
Comentei antes que a aproximação de dois sujeitos notada numa primeira instância diz
respeito a uma identidade resumida na voz pública da qual todos fazem parte e que, no
entanto, resguarda as particularidades de cada experiência. Numa segunda instância dessa
proximidade tem-se então a semelhança entre as responsabilidades dos sujeitos componentes
daquela coletividade. Ao se dizer um homem comum, o poeta dá ao seu trabalho, por
conseqüência, a mesma natureza, podendo, por isso, ser assimilado por qualquer um, pelo
leitor também “comum”, contrariando assim o hermetismo e a especialização da arte de
vanguarda combatida por Gullar, mas também saindo da posição paternalista e salvadora dos
cordéis posição de quem, de fora, sem lhe pertencer, esclarece ao outro sobre a realidade
que este vive.
Menos didático, o poema aqui, ao mesmo passo que ganha em elaboração, aproxima-se
de uma forma mais concreta da realidade sobre a qual quer falar e alertar. Feito por um eu
situado em tempo e espaço determinados (como já assinalamos, o poema é, inclusive, datado:
“Brasília, 1963”), o poeta pretende ainda comunicar, como nos cordéis, mas agora fala de
dentro do problema, criando então, para si, uma nova linha de engajamento: após se inserir em
uma realidade comum e após inserir essa mesma realidade em sua esfera íntima, o sujeito, a
partir de uma observação cética da vida, que não crê em nenhuma transcendência que a
justifique, busca sentido naquilo que está ao alcance de sua ação sua fé está no homem,
considerando que é ele o responsável pela construção da própria vida. O motivo da esperança
atinge também aqui uma certa maturidade que parece acompanhar o amadurecimento da
poesia de Dentro da noite veloz: como o que está para além do corpo é posto em xeque e lhe
58
escapa à compreensão, seu raio de ação está em sua matéria, e o rumo dos acontecimentos
depende exclusivamente do trabalho humano. “A vida é pouca/ a vida é louca/ mas não há
senão ela”, disse o poeta em “No mundo há tantas armadilhas” e dirá ainda algo semelhante
em “Perde e Ganha” (“Vida tenho uma só/ que se gasta com a sola de meu sapato/ a cada
passo pelas ruas/ e não dá meia-sola”
64
); de fato, se na ótica de Gullar a vida é uma atividade
permanente da construção humana, só fará sentido o trabalho que contribua para a criação de
uma realidade melhor.
Pois bem, não obstante tenha uma origem materialista e uma raiz reflexiva muito
consciente, a conclusão a que chega nesses versos aponta também para uma perspectiva talvez
um tanto utópica, mas é preciso lembrar sempre que Gullar é um poeta da dúvida,
questionando-se a todo o momento, atento ao fato de que entre o desejo e sua realização pode
haver uma distância grande, como se nota nos versos que se seguem aos da reflexão anterior:
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Ciente de que a poesia “não muda (logo) o mundo” (verso de “Boato”
65
, também de
Dentro da noite veloz), o poeta parece crer que se o poema não atinge o “pau-de-arara”, ele é
capaz de comover o seu leitor, e por isso, após a ressalva, não desiste da proposta de se
aproximar do outro, o que vinha fazendo até agora, acrescentando a essa aproximação a
diferença que o distingue, mas como particularidade útil no chamado a um esforço conjunto. O
poeta se dirige ao outro para oferecer apoio e se apoiar, que o tempo é de urgências e “o
latifúndio está aí, matando”. Mesmo que afirme que a poesia não altera a realidade
64
GULLAR, 2000. p. 172.
65
Ibidem. p. 190.
59
imediatamente, é através dela que faz sua parte na luta comum “por um mundo melhor”; ela é
sua ferramenta, a especificidade que tem a oferecer na empreitada que pretende ser coletiva.
Nesse ponto do poema, mesmo que um pouco mais complexa, a dimensão de denúncia
dos textos anteriores volta, acompanhada de uma equivalente dicção apaixonada. O poeta,
além de comunicar ao outro um dos aspectos do estado de noite no qual se encontram,
convoca e propõe a seu “interlocutor” a possibilidade de resistir ao inimigo agora bem
identificado: as multinacionais como “o Chase Bank,/ a IT & T, a Bond and Share,/ a Wilson,
a Hanna”, todas elas ramificações de um mesmo “vilão”, a que chama de “polvo a nos sugar a
vida/ e a bolsa”, que não é senão o próprio latifúndio, referente aqui menos à questão agrária
do que à “sombra do imperialismo” alusão clara à relação político-econômica brasileira
com os Estados Unidos.
A linguagem ganha então um forte acento esquerdista, no uso de expressões como o
próprio “imperialismo” e o já referido “latifúndio”, e o poema atinge o seu momento mais
fraco: o discurso oscila e resvala o reducionismo dos cordéis. É preciso notar, porém, que algo
no texto ainda não o permite se deixar levar pelas fórmulas prontas de um simples ataque anti-
estadunidense. Mesmo que o verso “cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo” não
tenha a força e o poder de concreção poética de um Drummond em “A flor e a náusea”, como
bem aponta Alcides Villaça
66
, as imagens seguintes a essa revitalizam a aproximação poeta/
homem comum, inseridos em um mesmo drama, feita ao longo de quase todo poema e que
estava quase a se perder: a opressão do latifúndio, conceito generalizante, tradução de um
66
VILLAÇA, 1984. p. 126. Villaça faz uma interessante leitura do verso, demonstrando inclusive como ele tenta
aproximar, no mesmo movimento, “o momento singular do pessoal (‘cruzo a Avenida’) e a analise genérica (‘a
pressão do imperialismo’)”, apesar de o resultado final lhe soar estranho e não fazer sentir “nem o caminhar
concreto, nem o esmagamento invocado”. A partir disso, a título de comparação, é que o crítico toma os versos
de “A flor e a náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, para ilustrar o que talvez falte ao poema de Gullar. Os
versos são: “Preso à minha classe e a algumas roupas/ vou de branco pela rua cinzenta”.
60
lugar-comum dos discursos de esquerda da época, se faz sentir, porém, nas realidades desses
homens aproximados, alterando tanto a percepção presente de um mesmo espaço no qual se
encontram (“mancha a paisagem/ turva as águas do mar”) quanto as particularidades do tempo
passado registrado na memória e que agora vem à tona (“e a infância nos volta/ à boca,
amarga,/ suja de lama e de fome”), justamente as duas dimensões trabalhadas na primeira
metade do poema, dimensões cuja composição aproximam as identidades do poeta e do
homem comum a quem ele se dirige. Não só por elas (as dimensões), mas também pela
angústia do presente (mesmo que traduzida fracamente pelo clichê esquerdista), a luta em
função de um mundo melhor, a qual o poeta já se referira, surge nos dois últimos versos pela
imagem de uma muralha humana que resiste porque sonha. Voltaremos a essa conclusão;
antes, é preciso fazer um comentário sobre a montagem do raciocínio desenvolvido pelo poeta.
Considerando a proposta de chamado a uma luta coletiva que o poema parece
representar, é possível perceber que o sujeito constrói seu argumento de maneira muito lógica,
mesmo que a aparência do discurso seja apaixonada. Transitando sempre entre a definição de
uma particularidade e a semelhança desta, em função de alguns de seus elementos, com a
identidade de um outro, o poeta começa seu discurso a partir de uma definição específica, mas
que insinua já uma aproximação: ele se afirma como um homem comum, na medida em que é
feito daquilo que outros homens comuns também são, e por isso pertence, assim, a essa mesma
categoria do “você” a quem fala, semelhança atestada pelas características descritas na
segunda estrofe. Dessa forma, um certo silogismo parece se formar: a despeito das
particularidades, se são ambos homens comuns, seus anseios talvez também o sejam: é como
se o poeta, que não vê sentido para a vida além de lutar para torná-la melhor, procurasse no
outro a mesma consciência, já que a lógica da aproximação que faz entre suas naturezas
61
aparentemente o leva a essa conclusão, considerando ainda que a elas falta acrescentar um
outro elemento, também comum, só na segunda metade do poema explicitamente
referenciado: o contexto social. É como se ambos, que são feitos de corpo e memória,
cruzassem a mesma “Avenida sob a pressão do imperialismo”; com isso, a definição dessas
identidades avizinhadas ganha uma especificidade, que já fora anunciada na terceira estrofe,
mas que só ao final parece ter maior peso: a idéia desse “homem comum” não pode ser
aplicada então a qualquer sujeito, mas sim àqueles que compartilham de um mesmo estado de
noite: esse homem é “brasileiro, maior, casado, reservista”, como está dito na terceira estrofe;
para o poeta, é brasileiro esse que, com outros “muitos milhões de homens comuns”, compõe
o grupo dos que devem formar juntos uma muralha de resistência.
Note o leitor que aquela discussão da cultura nacional popular trabalhada em Cultura
posta em questão e Vanguarda e subdesenvolvimento está também aqui fazendo pano de
fundo ideológico ao poema; porém, é preciso perceber a diferença de realização entre este e os
Romances de cordel, mesmo que se amparem sobre o mesmo posicionamento e tenham vários
pontos de contato (reveladores dos momentos mais fracos de uma e de outra obra). Em
“Homem comum”, Gullar insere a própria voz dentro do problema, sem conformá-la à teoria
que o explica e pretende resolvê-lo. Nem mesmo a proposta da luta comum tem aqui
contornos muito bem definidos: ela se processa mais como amparo mútuo a partir de uma
necessidade íntima que parece, no entanto, ser comum (porque nasce de homens comuns), do
que em pressupostos analíticos do problema, não obstante os contenha.
Essa idéia da esperança como uma necessidade íntima que não se compreende mas que
serve como mola propulsora para a manutenção natural da vida ganhará um trabalho mais
apurado em Na vertigem do dia, obra sobre a qual falaremos no capítulo a seguir. Nela, o
62
motivo aparece como necessidade existencial entendida a partir da aquisição de uma
consciência da solidão. Mesmo que já haja em Dentro da noite veloz tal entendimento, aqui,
essa resistência pessoal precisa se somar a cada outra pequena resistência para “formar uma
muralha/ com nossos corpos de sonhos e margaridas”, como quer o final do poema que ora
analisamos.
Pois bem, a propósito de sua conclusão, cabe ainda um comentário: que a frente de
resistência se construa através dos sonhos de quem a compõe compreende-se até com uma
certa facilidade; o outro elemento formador desta muralha é que talvez crie um problema para
o leitor, cifrado na pergunta: “por que margaridas?”. O intérprete obcecado pelos significados
obscuros de algumas palavras poderá se amparar no dicionário Houaiss, por exemplo, e
encontrar a acepção de margarida como uma “peça circular usada em máquina de escrever ou
impressora eletrônica” e, a partir daí, construir uma leitura que entenda o vocábulo como uma
representação metonímica da parte que cabe ao poeta, como escritor, na luta geral que, apesar
de compartilhar dos mesmos sonhos, se faz com as ferramentas das quais cada um dispõe,
sustentando assim a dialética do geral e do particular que o poema opera durante todo o seu
corpo.
A leitura, no entanto, apesar de possível, parece um pouco forçada e a mitologia
pessoal de Gullar oferece uma outra alternativa. Sendo um poeta tão sensorial e obcecado
sobretudo por barulhos e cheiros, a escolha da margarida talvez se aproxime mais da imagem
das “flores vermelhas”, do poema “Passeio em Lima”, também de Dentro da noite veloz, e seu
“clarão vegetal” que embriaga o poeta repentinamente e que lhe faz concluir serem
equivalentes tanto a “matéria da flor,/ da palavra/ e da alegria no coração do homem”
67
. Ou
67
GULLAR, 2000. p. 227.
63
seja, são todos elementos que, não obstante as diferenças, atravessam a concretude da
realidade humana, seja sensorial, artificial ou mesmo intimamente. Internalizadas, ou já
nascidas internas, são esferas que dizem respeito às “coisas da terra” sobre as quais fala e que
dão forma a seu universo. Além disso, a natureza ao rés-do-chão da flor faz um interessante
contrabalanço com o outro elemento componente da muralha, mais abstrato, alimentando
simbolicamente o equilíbrio entre aspiração e realidade sobre o qual se sustenta a perspectiva
de futuro na poesia de Gullar.
Apesar de seus bons momentos e da importância que tem para a observação do
movimento de um tema na obra, “Homem comum” é um poema muito irregular: se há ali um
refinamento no que diz respeito ao tratamento da esperança e à maneira como se processa a
relação eu/mundo, em comparação com as obras anteriores, esse mérito divide espaço com
trechos que pouco se diferenciam do esquematismo dos Romances de cordel. Somando tudo, o
resultado é um poema, por um lado, interessante, em que se verificam pontos importantes para
a discussão do conjunto de Dentro da noite veloz e da temática da esperança especificamente,
mas, por outro, pouco revelador da força poética que Gullar é capaz de adquirir e a qual
chegará em poemas posteriores dentro dessa mesma obra. Por isso, vejo “Homem comum”
como um ponto de transição não só pelo desenvolvimento do motivo da esperança em Dentro
da noite veloz, mas também, mesmo que ainda seja um texto um tanto fraco, pelo
amadurecimento da própria poesia de Gullar, maturidade a que chega, oscilando entre altos e
baixos, nesse livro de 1975.
64
A chegada da desilusão e a permanência do desejo de afirmação
“Homem comum” é o último poema de Dentro da noite veloz escrito antes do golpe
militar de 31 de março de 1964 e também o último anterior à publicação da primeira edição de
Cultura posta em questão, de 1963, queimada junto com o prédio da UNE, no dia do golpe.
Os poemas imediatamente posteriores são considerando a forte historicidade de toda a obra
de Gullar inevitavelmente marcados por este episódio político, recebendo datas de mês e
ano como títulos: “Maio 1964” e “Agosto 1964”. Gullar vê amigos desaparecerem, serem
presos, mortos, e o que se observa nos dois poemas é a tentativa de uma resposta à situação de
crise: no primeiro, ela vem marcada ainda por uma certa positividade, num canto que afirma a
vida como um “direito de todos/ que nenhum ato/ institucional ou constitucional/ pode cassar
ou legar”
68
; o segundo, mais melancólico, é uma espécie de adeus a tudo aquilo que não está
ligado ao pragmatismo exigido por aquelas circunstâncias (“Adeus, Rimbaud,/ relógio de
lilases, concretismo,/ neoconcretismo, ficções da juventude, adeus”
69
). Sem, no entanto, ser
entreguista, o poeta se despede de qualquer ilusão, mas não da vida, seu único bem restante,
seu direito inviolável, como exalta o poema anterior. Apesar da diferença de tom, ambos
terminam de maneira afirmativa, e a promessa de dias melhores é mais uma vez (e, de um jeito
muito explícito, talvez pela última vez na obra) depositada num esforço coletivo. Em “Maio
1964”, o poeta, inclusive, ao seu final, se refere a essa iniciativa:
Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.
68
GULLAR, 2000. p. 169.
69
Ibidem. p. 170.
65
Reforçada por um contexto grave, aquela necessidade do esforço conjunto vista em
“Homem comum” reaparece aqui como alternativa urgente de resposta às circunstâncias,
ressonando de forma proporcionalmente violenta no ânimo da voz poética. A falta de sentido
para tudo, que nasce da constatação óbvia de que se morre, desencadeia uma resposta que
reanima a lembrança da luta comum. Mas atenção para dois detalhes: se por um lado a luta
ressur ge de forma intensa no “peito” do eu lírico, dando ao poema um final entusiasmado que
nos remete à euforia engajada dos textos anteriores; por um outro, não se pode negar que ela
ganha aqui um símile que a afasta (e também àquele entusiasmo) do tempo presente e crítico
no qual o poeta se assume. Isto é, ela vem como o “coice de uma lembrança”, como algo que
pertence ao passado e cujo reaparecimento pode apontar para direções distintas: uma primeira
que resgataria a iniciativa do engajamento, através do desejo, motivado pelo golpe, de se
voltar àquela proposta; e uma segunda que traria a imagem da luta comum como a dolorosa
lembrança, representada pela imagem de um “coice”, de algo que está distante daquilo que os
últimos acontecimentos parecem permitir. Talvez a primeira leitura esteja mais de acordo com
a dicção do poema como um todo, mas o simples fato de o seu final sugerir uma segunda via
(que também recebe amparo na oscilação que há entre a primeira estrofe, mais positiva, e a
segunda, melancólica, em que o sujeito reflete sobre a perda de entes queridos) já aponta para
uma maior complexidade no tratamento da realidade, elevando, se comparado aos textos
anteriores, os ganhos tanto do poema quanto da maneira como o motivo da esperança é aqui
trabalhado.
Já em “Agosto 1964”, a referência à luta comum é bem menos clara e a expressão
sequer reaparece. Neste texto, o poeta, após dizer adeus a toda ilusão e constatar que só lhe
66
resta a vida, pega os únicos elementos dos quais dispõe e esses elementos são o que na
verdade formam aquele estado de noite para construir um artefato de resistência:
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira
70
O poema, como sua arma, afirma o lugar de onde resiste, tal qual a bandeira que
demarca um território (e o seu front específico será a poesia) ou que acompanha a frente
daqueles e de novo o discurso vai para a primeira pessoa do plural dispostos a
transformar a realidade a partir do que ela mesma oferece: neste caso, a injustiça. Perceberá o
leitor, no capítulo seguinte, que esta, como solo de onde brota o desejo de bem-estar
reaparecerá explicitamente trabalhada no primeiro poema de Na vertigem do dia, “A alegria”,
com a diferença de que lá a dor e o sofrimento corresponderão a uma reflexão mais
universalizante, enquanto que aqui elas ainda dizem muito respeito a um determinado contexto
sociopolítico. Mas, agora, é preciso que o leitor perceba como a internalização já insinuada em
“O açúcar” e melhor elaborada em “Homem comum” chega aqui a um ponto mais
interessante, já que perde a generalização deste último poema e volta a tratar de um drama
bem localizado no tempo e no espaço, sem no entanto retornar ao didatismo da época dos
cordéis (que também falavam diretamente de questões específicas de um contexto). O
problema em jogo pertence a uma esfera maior da realidade do sujeito que enuncia, mas o
atinge também frontalmente: é quase como se ele, que antes se esforçava por inserir um drama
em seu universo íntimo, fosse compulsoriamente colocado dentro da crise sobre a qual falará
70
GULLAR, 2000. p. 170.
67
de um modo, mais do que nunca, emocionado. A partir de agora, até os poemas que tratarão
explicitamente de episódios políticos distantes como a guerra do Vietnã, em “Por você por
mim”, ou a morte de Ernesto Che Guevara, em “Dentro da noite veloz”, ganharão uma
dimensão apaixonada, mas não mais na acepção do engajamento anterior, e sim como a
projeção de um “toque íntimo” realmente comovido sobre o drama histórico, amalgamados no
resultado do poema.
Após o golpe de 64, o entusiasmo em relação à luta comum arrefece de alguma
maneira, sem que, no entanto, desapareça por completo. Na verdade, a perspectiva otimista
permanece, mas configurada cada vez mais como aquela resistência instintiva já vista em
poemas anteriores, entendida como necessidade íntima e, ainda mais fortemente, como única
alternativa contra a violência de um período. Sobre a exigência desse “otimismo militante
(para usar uma expressão de Ernst Bloch em seu O princípio esperança) que a natureza da
vida e, somada a ela, o estado de noite daquele contexto parecem impor ao homem,
culminando, obedientes a lógica materialista de Gullar, num esforço coletivo nos últimos
poemas que comentamos, outros exemplos surgem com muita nitidez, como o já citado “Perde
e ganha”, ou como em “Dois e dois: quatro”, “Verão” e sobretudo em “A vida bate”.
Fiquemos apenas com esses três últimos, mais ilustrativos. No primeiro, a equação do
título sustenta a obviedade da lógica que serve de analogia à certeza do poeta de que “a vida
vale a pena”, não obstante as intempéries da situação experimentada então (“embora o pão
seja caro/ e a liberdade pequena”). Quase como uma continuação das reflexões materialistas às
quais chega nas duas últimas citações tanto de “Perde e ganha” quanto de “Homem comum”,
ou ainda naquela idéia da preservação instintiva vista em “No mundo há muitas armadilhas”, a
vida valer a pena surge para o poeta como algo tão lógico quanto a mais banal das equações
68
matemáticas ou quanto as mais óbvias observações descritas nos dísticos que servem de miolo
a uma mesma moldura (presente em seu quarteto inicial e repetida, levemente alterada, nos
dísticos finais: “Como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena/ embora o pão seja
caro/ e a liberdade pequena”), miolo que contêm, porém, em sua disposição, uma gradação:
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
71
Partindo das simples constatações dos dois primeiros dísticos (olhos claros, pele
morena, oceano azul e lagoa serena), o poeta contamina os outros dois com a mesma lógica,
mesmo que a rigor as comparações entre eles não sejam imediatas. É, sim, para a perspectiva
do sujeito que enxerga a vida da forma como vimos nos outros poemas até agora, e os terceiro
e quarto dísticos são praticamente uma variação da imagem que o próprio título Dentro da
noite veloz carrega: a de uma iluminação futura que se insinua dentro de um estado de
escuridão (a alegria acenando por trás do terror; a noite carregando o dia). Cumpre observar
ainda como a estrutura do poema parece incorporar a matemática da equação que o nomeia:
além de ser todo silabicamente simétrico (todos os versos são heptassílabos), temos no
primeiro quarteto a apresentação do problema; depois, nos quatro dísticos seguintes, variações
da matemática inicial por meio de elementos concretos e simples aproximados de um
entendimento de mundo com o qual se relacionam dentro da lógica apresentada no começo,
como a demonstrá-la tanto se vistos em conjunto (os dísticos) quanto se comparados dois a
71
GULLAR, 2000. p. 171.
69
dois (os dois primeiros justificando os dois outros); até chegarmos a um resultado que é a
repetição do problema tal qual ele é desenvolvido, com pequenas alterações: “ sei que dois e
dois são quatro/ sei que a vida vale a pena// mesmo que o pão seja caro/ e a liberdade,
pequena”, presente nos dísticos finais.
Já em “Verão”
72
, tem-se a “luta de resistência” desta estação do ano contra sua “morte
certa/ com prevista duração”. As imagens desta batalha são todas solares, assim como a
estação e o mês de fevereiro, que a representam em sua agonia: o fulgor com que este mês
resiste por sobre o Rio de Janeiro, suas praias, seus edifícios, sua Avenida Vieira Souto, por
sobre o Arpoador, talvez até nos remeta à madureza das pêras de A luta corporal, mas agora
com um sinal invertido: mesmo que em ambas imagens o esplendor seja a antecipação da
morte e do desgaste final que se aproxima daquilo que esplende, aqui, com mais intensidade, a
iluminação deste momento surge como esforço desesperado, mesmo se sabendo vão, contra a
chegada da noite, do escuro e do outono; fevereiro resiste com toda luz possível, arrastando-se
pela “tarde azul” como uma “fera ferida”. Convém então perguntar: qual o sentido desta
resistência, o que a motiva? Ao explicá-la, o poeta acaba desnudando também a dimensão
alegórica desta luta contra o tempo: assim como “tudo que vive/ não desiste de viver,/
fevereiro não desiste:/ vai morrer, não quer morrer”, e a este esforço nomeia de “esperança
doida/ que é o próprio nome da vida”. A adjetivação é curiosa; por que doida? A resposta
parece vir em duas direções: doida porque não faz sentido, considerando que a batalha contra a
morte começa com a inevitabilidade de seu fracasso, “tem o sabor suicida/ de coisa que está
vivendo/ vivendo mas já perdida”, mas doida também porque desesperada, porque a despeito
72
GULLAR, 2000. p. 175-6.
70
das circunstâncias e da “certeza invencível”
73
que é a morte, não se permite desistir, na medida
em que a desistência se traduz em abdicar do único bem restante, o que explica, na relação dos
dois versos, o símile que se segue à adjetivação da esperança, vista como “o próprio nome da
vida”. Assim como fevereiro, o homem e aquilo que vive “se apega a tudo que existe:/
na areia, no mar, na relva”, no coração do poeta e, contra a morte, “resiste mordendo o chão”.
É interessante notar que o amparo dessa resistência se dá sempre através de elementos que
pertencem a uma dimensão concreta, todos eles ao rés-do-chão: areia, mar, relva e o coração
do homem, que funde a luta alegórica dessa estação do ano a sua própria luta.
A propósito, antes que comentemos “A vida bate”, talvez seja aqui necessário um
parêntese, a fim de compor melhor a maneira como essa obsessão materialista se processa em
Dentro da noite veloz na medida em que vários poemas tratam explicitamente desta questão
e como sua base cética contém o impulso do esforço singular no presente para uma
proposta de alteração coletiva do devir. Entre todos, o mais significativo parece ser “Coisas da
terra”
74
, texto, inclusive, anterior a “Verão”. Vamos a ele.
Dividido em quatro estrofes, o poema, à exceção de sua última, é todo uma definição
daquilo que, para Gullar, serve de temática à sua poesia ou é propriamente sua matéria: as
“coisas” de que fala estão “na cidade/ entre o céu e a terra”, como anuncia de cara nos dois
primeiros versos, apenas a confirmar aquilo que, de alguma maneira, já se espera a partir da
leitura do título. O leitor vai descobrindo, porém, à medida que avança no texto, que a matéria
da qual fala o poeta é menos literalmente da “terra” mas sem deixar de sê-lo do que, na
verdade, do homem. Nota-se, inclusive, nas três estrofes, funcionando como um
desdobramento dos dois primeiros versos, que nenhuma imagem se desvincula da matéria
73
GULLAR, 2000. p. 472. A imagem pertence ao poema “Tato”, de Muitas vozes, último livro de Gullar.
74
Ibidem. p. 174.
71
humana; pelo contrário, tudo aquilo que diz respeito a essas “coisas da terra” corresponde
proporcional e intimamente à dimensão do homem, contendo até mesmo sua natureza
complexa, sujeita à permanente ação do tempo; são todas elas próprias da vida, componentes
ou produtos dela.
Temos então, na primeira estrofe, “teu riso/ a palavra solidária/ minha mão aberta/ ou
este esquecido cheiro de cabelo”, elementos “perecíveis” porque pertencentes ao homem que
os recebe ou os manifesta, igualmente efêmero, mas também todos eles “eternos”, porque,
internalizados pelo homem ou realizados por ele, permanecem perenes na memória que, no
entanto, oscila entre a lembrança e o esquecimento desse sujeito que sobre eles agora
reflete e poetiza.
Na segunda estrofe, o poeta obedece ao mesmo esquema: joga inicialmente uma
imagem mais próxima daquilo que o título parece oferecer para depois aproximá-la de
elementos menos óbvios, mas equivalentemente relacionados às “coisas da terra” por terem o
homem como seu eixo intermediador: a matéria da qual fala é feita de “carne”, como está dito
no primeiro verso, para no segundo receber símiles mais surpreendentes, “como o verão e o
salário”. Interessante a maneira pela qual já parece se anunciar aqui a alegoria que dá base ao
poema seguinte, sobre o qual nos referimos antes (“Verão”). Seja como alegoria ou como
intervalo temporal nomeado pelo homem, a estação, assim como o salário, dizem respeito ao
sujeito que os percebe ou ao homem que os inventa, e, além de pertencerem ao mesmo
movimento de degradação imposto pelo tempo (e nunca custa lembrar as reflexões de A luta
corporal), estão dispersos pelos espaços sobre os quais o sujeito transita, lugares, inclusive,
fabricados pelo homem mesmo (“no mercado, nas oficinas,/ nas ruas, nos hotéis de viagem”).
72
A terceira estrofe segue a mesma chave de composição das anteriores: “cotidianas”, as
coisas são feitas de “bocas/ e mãos”, mas também de “sonhos, greves,/ denúncias”, assim
como de “acidentes do trabalho e do amor”. O trânsito evidente entre uma dimensão mais
particular, dos dois primeiros elementos, para uma mais genérica, nos três seguintes, traduz
um movimento operado dentro de cada uma das estrofes antecessoras, mas também existente
quando as comparamos, sendo a inicial, em função da memória, mais correspondente a uma
singularidade, e a segunda, mais próxima de uma universalidade, relativa à subordinação
comum à ação do tempo. Na terceira estrofe, este movimento é praticamente resumido no
último verso citado, que brinca com a expressão “acidentes de trabalho”, respectivo talvez
àquela esfera mais geral, como produto da atividade do homem, para prossegui-la na
particularidade da circunstância amorosa, que, sem deixar de ser genérica, aponta mais para
uma esfera íntima: a do sujeito que ama. As “coisas da terra”, ou coisas do homem, reafirmam
então a dialética que conforma a compreensão gullariana de um estar no mundo, traduzida
naqueles processos de interiorização e sincronização. A matéria de sua poesia diz respeito
então ao que especificamente tem a ver com a experiência de um sujeito, mas também com
aquilo que pertence à dimensão humana em um sentido geral, entendida, seja numa esfera
particular ou universal, como o que está ligado à concretude da vida, ao corpo, às “coisas da
terra”, todas elas “ao rés-do-chão”
75
, realidades que se atravessam mutuamente.
O último desdobramento do título do poema fecha então sua terceira estrofe com um
curioso elemento: as coisas de que trata sua poesia são também as “de que falam os jornais/ às
vezes tão rudes/ às vezes tão escuras”, difíceis de se “iluminar” até pelo poema. Se a matéria é
75
“Ao rés-do-chão” é também título de um importante poema de Na vertigem do dia, que trabalhará de maneira
interessante a questão materialista vista aqui em “Coisas da terra”. Sobre ele, falarei mais cuidadosamente no
segundo capítulo desta dissertação.
73
tudo aquilo relativo à realidade humana, singular ou universal, faz parte do seu campo
temático também o contexto do tempo histórico em que se encontra, das circunstâncias
presentes. Assim, a adjetivação dada a essas últimas coisas não deixa de ser significativa:
considerando que o poema, provavelmente, foi escrito em 1965, é inevitável pensar no
contexto da ditadura recém instaurada, cuja rudeza e escuridão compõem o “estado de noite”
em que se encontram o sujeito e o homem a quem aquele quer falar (lembremos do chamado
do poema “Homem comum”), e a partir do qual somado a todos os outros elementos de que
são feitas as “coisas da terra” o poeta vê pulsar o “mundo novo”, referenciado na quarta
estrofe, possibilidade que lateja no presente, mesmo que “ainda em estado de soluços e
esperança”, como realidade a ser construída.
Pois bem, entremos então em “A vida bate”, talvez o mais interessantes destes três
poemas, porque parece concentrar as questões levantadas não só por eles, mas por vários
outros vistos até agora:
A vida bate
Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
O sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
74
outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
76
76
GULLAR, 2000. pp. 180-1.
75
Se em “Coisas da terra” a metalinguagem serve para explicitar a aproximação entre
vida e poesia que o poema todo pretende fazer e reafirmar, em “A vida bate” ela apenas
introduz o texto para logo ser negada em favor de um dos elementos dessa relação: agora,
“não se trata mais do poema”, dirá o sujeito, “e sim do homem/ e sua vida”. É como se
dissesse que a poesia importa quando e porque fala do homem, negando muito sutilmente uma
arte que se pretendesse autotélica (vale lembrar que estamos ainda na década de 60 o
poema data de fevereiro de 1966 e que Gullar ainda está aborrecido nesse momento com a
noção de arte pura professada pela vanguarda). Sabemos que, na verdade, essa busca por uma
expressão que pudesse preservar a vivacidade da experiência é uma obsessão de Gullar desde
os tempos de A luta corporal (sendo, inclusive, sua pedra de toque), e ela reaparece como
motivo central deste importante poema de Dentro da noite veloz; importante porque se em
“Coisas da terra” o poeta pretende definir sua poesia através da vida, aqui a proposta se inverte
e é através dele (de um poema) que o sujeito procura compreender a vida mesma e o porque de
sua ação já expressa no título. Com isso, ressurge todo processo que vimos observando,
daquela dimensão materialista, que aparece sob o signo dos procedimentos de interiorização e
sincronização, e que culmina não apenas no ânimo íntimo que faz a manutenção da resistência
do sujeito, mas que também aponta para uma perspectiva de futuro a partir da avaliação crua
do presente, maneira como entendemos a idéia da esperança.
Longo, o poema faz um interessante movimento de particularização, sem, no entanto,
desprezar a dialética do geral e do singular em cada um de seus momentos, que podemos
enumerar como quatro, a partir da divisão de cada estrofe (procedimento comum na poesia de
Gullar mais madura: as estrofes correspondendo a etapas bem delineadas do movimento do
poema). Grosseiramente, é possível dizer que, para cada uma das suas quatro estrofes, temos a
76
seguinte correspondência: na primeira, o poeta reflete sobre a vida em um sentido mais amplo,
tentando defini-la; na segunda, é o espaço (a cidade), onde a vida acontece, o problema
central; na terceira, as pessoas da cidade e a questão de suas identidades; e na quarta, por fim,
o coração, onde “a vida bate”, fechando o movimento que, ao também encerrar o poema, o
leva de volta ao seu início. Vejamos, então, do que é feita cada parte para que compreendamos
melhor o conjunto.
Na primeira, como está dito anteriormente, a afirmação de uma temática nega o
ensimesmamento metalingüístico para se concentrar em uma reflexão sobre a vida, conceito
genérico que define uma busca igualmente geral. Assim, o esforço realizado pelo poeta nessa
abertura, na tentativa de definir a natureza daquilo que pulsa em qualquer lugar do mundo,
revela também uma busca comum: independentemente do lugar em que se encontram, estejam
alguns em Nova York, Santiago do Chile ou na Rua da Alfândega, todos os homens buscam
esse “facho” de natureza ambígua, “escuro e claro”, que, por ser mais que “a água na grama”,
“o banho no mar”, “o beijo na boca” e “a paixão na cama”, alimenta justamente uma procura
permanente, traduzida na “fome de vida” que parece não ser outra coisa senão a vida mesma,
em sua elaboração complexa (a vida “mentida, a ferida, a consentida/ vida já ganha e já
perdida e ganha/ outra vez”). Assim, o poeta deixa solta, nesse primeiro momento, uma ponta
que será amarrada ao final do poema, na medida em que essa “fome” ressonará na
“clandestina esperança” da quarta parte.
O “sôfrego pulsar” individual se dá entre “engulhos” e, entretanto, dentro também de
um universo maior, geral (representado pelas “constelações”), universo composto por outras
particularidades (na alusão que pode ser feita aos “embrulhos” que sucedem a referência
anterior), igualmente complexas, outros tempos de cada uma das outras esferas que operam,
77
sincronicamente, a mesma procura, feita, assim, de encontros e desencontros e expressa por
um oscilante jogo que alterna os verbos “buscar”, “achar”, “perder” e “reconhecer”, jogo cujo
resultado, a despeito de sua configuração, encerra sempre uma incompletude: alguns acham e
perdem, outros acham e não reconhecem, e outros se perdem por encontrar esse “facho de
vida”. Nesse movimento obscuro em direção a uma iluminação que elucide a procura,
“desatino”, “verdade” e novamente a “fome de vida” são clamados pelo eu lírico que os
mistura, trazendo a este último elemento, já referenciado como o motivo da busca, uma nova
polaridade, que parece ser também um desdobramento da adjetivação “escuro e claro”:
loucura (ou “desatino”), e certeza (ou “verdade”), compõe a definição problemática da
experiência dinâmica de todo sujeito em qualquer “ponto da cidade”. Fecha então essa
primeira parte a referência ao amor, que, por ser produto do homem, igualmente ambíguo, não
escapa dos encontros e desencontros do esforço perquiridor até agora desenvolvido: apesar de
“difícil”, a possibilidade do amor “luzir” em qualquer lugar não deixa de ser também real: o
encontro é difícil, mas pode acontecer, considerando que “estamos todos na cidade/ sob as
nuvens e entre as águas azuis”, versos que são quase uma releitura daqueles que introduzem
“Coisas da terra”. Apesar da distância entre as coisas, participam todas de um espaço comum,
e o amor, também parte delas, sendo produto de uma individualidade, pode, assim, encontrar
correspondência em outra particularidade, já que possui em ambas a mesma natureza e já que
ambas podem se atravessar no mesmo espaço.
O final da primeira parte introduz o topos da segunda: nela, é a definição da cidade a
preocupação sobre a qual o poeta se debruça (definição que se aproxima bem do procedimento
observado em outro poema de Dentro da noite veloz, o “Fotografia aérea”): dividida em dois
momentos, a observação da cidade, primeiro, se dá panoramicamente, do alto, e assim ela é
78
vista, em conjunto, como um sistema de “bairros e ruas e avenidas” que comporta o homem, é
seu “refúgio” e tem uma aparência serena, organizada. Depois, a perspectiva desce e, de baixo,
a cidade se revela em seu turbilhão caótico, na desorganização das particularidades que a
compõem, na multiplicidade de elementos que se atravessam simultaneamente dentro de seus
limites. Alcides Villaça faz uma interessante analise dessa visão dupla sobre o espaço urbano,
percebendo nela, inclusive, a representação de uma estratégia poética de Ferreira Gullar, a
qual chama de sincronização e que vimos comentando como sinal de sua maturidade. Nas
palavras do crítico:
A estratégia poética (e política) de Gullar quer garantir-se a consciência do conjunto e a
sensação do particular; para tal, adota um ponto de vista da velocidade, revela um e outro, que
sobe e desce, que se cola ao imanente para, em seguida, buscar transcendê-lo. Está visto que
não é um ponto de vista confortável: vive, precisamente, da inquietude de quem não se fixa nem
fora do objeto (para poder formalizá-lo de uma distância serena), nem dentro dele (para poder
se confundir com seu conteúdo imediato).
77
Assim, a perspectiva “aérea” permite a avaliação distanciada, sem, no entanto, perder
de vista a dimensão sensível da unidade que o olhar ao rés-do-chão tem a oferecer: de longe, a
cidade contém o homem, sendo seu “refúgio”, de perto, ela é seu produto, feita do movimento
de ir e vir das pessoas “que entram e saem,/ que passam/ sem rir, sem falar, entre apitos e
gases”, compondo assim sua “carnadura de pânico”. Cumpre notar que a dialética
sujeito/espaço faz com que tanto o homem quanto a cidade projetem um sobre o outro
características suas: a cidade recebe uma “carne”; dentro dela corre um “escuro/ sangue
urbano/ movido a juros”, matéria feita das pessoas em um frenético movimento que, por sua
vez, está misturado aos “apitos e gases” da cidade.
Assim, como na virada da primeira para a segunda parte, esta sinaliza, ao seu final, o
topos da terceira. Nela, é sobre as pessoas que o poeta se detém e sobre a reflexão acerca dessa
77
VILLAÇA, 1984. p. 143.
79
identidade problematizada pela existência na cidade, que parece anular a particularidade,
como se pode ver na seqüência de perguntas sobre o nome deste “tu”: Antônio, Francisco ou
Maria, quem é esse homem que anda sobre o espaço urbano; de que é feito? As perguntas,
pela falta de uma resposta, são já reveladoras de uma crise; expressa entre aquilo que se
perdeu e aquilo que se preserva: o comportamento mecanizado e silencioso do anônimo na
massa que “passa sem falar” esconde uma intimidade degrada (em “ruínas”) e, no entanto,
múltipla (“cheia de vozes”). Quer dizer, o sujeito, se no meio da multidão se anula de alguma
forma, resguarda, porém, uma identidade composta pelo atravessamento de várias outras
(como explica aquele princípio da sincronia). Dessa maneira, se a vida e se o eu permanecem,
apesar do turbilhão que aparenta invalidar sua perspectiva única, onde eles estariam? Ou
ainda: no meio desse “escuro sangue urbano”, onde se escondem o detalhe luminoso, solar, o
“clarão dos dias” e do olhar que “se apaga mal se acende”, sinônimos para o fulgor e a
elaboração da vida desde os tempos de A luta corporal? Ainda sem responder, o poeta conclui
mais uma vez se colocando no problema: “E passamos/ carregados de flores sufocadas”. Se
resgatarmos a leitura da flor nos poemas “Passeio em Lima” e das margaridas de “Homem
comum”, a imagem aqui pode ganhar uma força interessante, introduzindo, inclusive, como
acontece em todas as partes anteriores, o topos da seguinte: símbolo da vivacidade, a matéria
da flor, que é a mesma “da palavra/ e da alegria no coração do homem”
78
, se se encontra
sufocada, resiste ainda por sob aquilo que a sufoca e que tem a ver, de acordo com a terceira
parte do poema, com algo que é externo ao homem, mas a que ele também pertence (o tumulto
da cidade).
78
GULLAR, 2000. p. 227. A citação é do já referido “Passeio em Lima”.
80
Na última estrofe, teríamos então, explicitamente, a resposta ao grande questionamento
que é a terceira: começando com uma adversativa, que já marca um contraponto com o que
vinha sendo desenvolvido nas duas estrofes anteriores, o poeta, finalizando a descida
interiorizadora operada desde o início, acaba também por resgatar as reflexões que abrem o
poema. A vida, apesar de tudo, bate, “dentro, no coração”. Mais uma vez (como ao final de
“No mundo há muitas armadilhas”), a resposta seria óbvia demais, praticamente tautológica,
não estivesse ela ligada a um interessante jogo reflexivo construído ao longo do texto e a um
esquema maior de pensamento, àquela visão de mundo materialista e cética que dá base à
ideologia de Gullar. Se as circunstâncias (o poema é datado de 3/2/1966), a cidade, o
movimento frenético e anônimo das pessoas fazem com que se anule de alguma forma a
identidade do sujeito, algo, no fundo, “subterraneamente”, ainda preserva a ação que resiste à
anulação. A vida “pulsa” em qualquer lugar do mundo novos nomes de lugares, inclusive,
assim como na primeira estrofe, aparecem: “Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi” e
independentemente das “penas da lei”. O simples fato de ainda pulsar faz com que essa ação,
por mais encalacrada que esteja, guarde na sua singeleza um leque infinito de possibilidades,
uma potencialidade de mudar o rumo dos acontecimentos: como ainda há vida, e como a vida,
para Gullar, é uma invenção permanente do homem, ainda é possível que se preserve, a
despeito de tudo, alguma expectativa de futuro. Por possuir uma natureza dinâmica e por esse
dinamismo só se interromper quando não há mais nada, a conclusão de que, simplesmente, “a
vida bate” parece ser o suficiente não apenas para sustentar a esperança, mas também para
fazer desta uma sinonímia da própria ação que lhe dá origem. “Clandestina”, porque escondida
e aparentemente contrária ao contexto que compõe o seu entorno, a esperança “misturada ao
sal do mar” note que Gullar, de novo, aproxima o conceito, de natureza imaterial, daquilo
81
que está ao rés-do-chão, dando-lhe concreção compõe aquela resistência natural, quase
instintiva, já referenciada em poemas anteriores, deste sujeito “debruçado à janela” de um
quarto “em Ipanema/ na América Latina”. Interessante como esse canto de afirmação da vida,
que culmina num princípio de esperança, acaba por tornar a relação destes dois elementos uma
via de mão dupla: a constatação de que a “vida bate” motiva a expectativa de futuro, que, por
sua vez, é seu princípio de afirmação, isto é, a vida motiva a esperança e a esperança afirma a
vida. Assim, o otimismo, através do jogo com esses dois elementos, se constrói quase como
uma espécie de obrigação inescapável daquele que vive; se se vive, é impossível não ter
esperança, subentende-se dessa relação.
Nem todos os poemas, porém, possuem esse mesmo tom. Divide espaço com a
afirmação de “A vida bate” um bom número de textos mais obscuros, em que o poeta se volta
a questões como a natureza da poesia e a memória. Alguns deles terão uma dicção inclusive
desesperançada, como em “Pela rua” (“Sem qualquer esperança/ detenho-me diante de uma
vitrina de bolsas”
79
), ou ainda em “Exílio” (“Numa casa em Ipanema rodeada de árvores e
pombos/ (...)/ eles vivem a vida deles/ eles vivem a minha vida”
80
), mas de um modo geral
terminam sempre de maneira afirmativa, como é o caso de quase todos os poemas que já
vimos até agora e também de outros, como “O prisioneiro”, que apesar do contexto
semelhante ao de “Exílio”, possui uma perspectiva muito diversa (“Ouço as árvores/ lá fora/
sob as nuvens// Ouço vozes/ risos/ (...)/ como há vinte anos em São Luís/ como há vinte dias
em Ipanema// Como amanhã/ um homem livre em sua casa”
81
). Pensando no conjunto de
Dentro da noite veloz, esses poemas, em um número bem menor se comparados aos textos
79
GULLAR, 2000. p. 177.
80
Ibidem. p. 221.
81
Ibidem. p. 194.
82
mais otimistas, mesmo que aparentem o contrário, ajudam a compor um painel geral de crise,
a definir justamente a “noite” na qual se encontra o sujeito e da qual, como vimos na grande
maioria dos outros momentos da obra, pretende sair.
Antes que encerremos, um último detalhe precisa ser levado em conta. Sobre a
memória, é curioso que em Dentro da noite veloz o resgate poético do passado, diferentemente
do que ocorrerá em Poema sujo, não funcione como uma frente de resistência às agruras do
presente: a carência atual não é capaz, ainda, de ver ou dar àquele tempo uma dimensão de
porto seguro. O poema, aqui, parece fracassar como resgate, mas é necessário pela negação
da possibilidade de tornar vivo novamente o que se foi: “o que passou passou/ e não há força/
capaz de mudar isso”
82
como afirmação do agora e como mola propulsora para uma
expectativa de futuro: “A poesia é o presente” concluirá o poeta no último verso de “No
corpo”
83
, o que marca a diferença desta obra de 1975 para a que a sucederá, o longo poema
de1976.
A responsabilidade do poeta em “A poesia”
A leitura deste capítulo poderia acabar aqui, dispensando a presença desse último
tópico, não fosse ainda um instigante poema que praticamente fecha Dentro da noite veloz: “A
poesia” é um texto que impressiona pelo nível de alquimia com que vários elementos de toda a
obra de Gullar são trabalhados, anunciando, de alguma maneira, o que acontecerá em Poema
sujo. Vejamos o texto:
82
GULLAR, 2000. p. 182. Os versos pertencem ao poema “Praia do Caju”.
83
Ibidem. p. 216.
83
A poesia
Onde está
a poesia? indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.
Cientistas esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
meu poema é puro, flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.
Não é como a açucena
que efêmera
passa.
E não está sujeito a traça
pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
o meu poema está infenso à vida.
Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:
“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem
o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família,
afirmou descaradamente: “Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.”
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou
Era pouco? era muito?
Era uma fome azul e navalha
uma vertigem de cabelos dentes
cheiros que traspassam o metal
e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco,
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo
onde eu morria
Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca
E agora
recostada no divã da sala
84
depois de tudo
a poesia ri de mim
Ih, é preciso arrumar a casa
que Andrey vai chegar
E preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça
O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?)
passa
A infância
passa
a ambulância
passa
Só não passa, Ingrácia,
a tua grácia!
E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera.
E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas
e dos perfumes
que dentro de mim gravitam
feito pó
(e um dia, claro,
ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso
entre meus dedos. E só).
Poesia deter a vida com palavras?
Não libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo
como bala em cada não
como arma em cada mão
E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-
saro? o pás-
?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?
Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas
85
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas
e foge!
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução
84
Como o próprio título já sinaliza e a sua primeira estrofe confirma, o poema pretende
se voltar para uma discussão sobre a natureza da poesia, sobretudo em relação a sua matéria.
Reduzi-lo, porém, apenas à sua dimensão metalingüística seria ignorar uma boa quantidade de
elementos que vem compor essa reflexão mas que não necessariamente, num sentido
teórico estrito, tem a ver com ela e que, de alguma maneira, resgata pontos importantes da
poesia de Gullar, a maioria deles, inclusive, já assinalados no decorrer desta dissertação.
O texto é longo e talvez, numa primeira leitura, não faça muito sentido dividi-lo em
partes, na medida em que tudo parece estar, nele, muito misturado, e o poeta é capaz de
transitar entre as discussões mais diversas sem que, no entanto, se estranhe o andamento do
poema. Não obstante essa mistura (e em função de seu próprio andamento), é possível
reconhecer-lhe alguns momentos: para tentar ser mais preciso, podemos demarcá-los como
três, sendo que a semelhança entre o primeiro e o terceiro funcionam como uma espécie de
moldura para o miolo do segundo. Esta divisão sugere, inclusive, uma interessante articulação
entre os dois elementos centrais deste poema. Vejamos quais são eles e o que é cada parte para
que a idéia fique mais clara.
O primeiro momento ocuparia, então, as quatro primeiras estrofes do texto. Apesar das
diferenças entre cada uma, pode-se perceber um sentido geral para elas, que possuem também
alguma unidade formal: são mais lineares, têm uma pontuação regular e uma clareza diferente
84
GULLAR, 2000. pp. 223-5.
86
da que ocorrerá nos versos seguintes. Mas voltando ao que as une tematicamente, parece que
nesse início Gullar quer, mais uma vez, mesmo que não pareça, aproximar poesia e vida (não
em um sentido estritamente autobiográfico, mas em uma acepção mais genérica), e estes já são
os dois elementos centrais a que me referi acima. Sabemos que a relação entre eles é uma das
grandes obsessões da obra de Gullar desde A luta corporal, aparecendo em praticamente todos
os poemas de ordem metalingüística que escreverá ao longo de sua trajetória, preocupação que
pode ser expressa da seguinte forma: como fazer a poesia guardar a vida que a motiva e que
deseja representar, sem que o artifício da linguagem amortize ou mesmo anule seu calor, seu
dinamismo, enfim, e com o perdão da redundância, sua vivacidade.
Assim, essa preocupação é retomada em “A poesia” e se realiza, neste primeiro
momento, com uma aparência contrária à referida aproximação e de um jeito curiosamente
mais direto do que no resto, na medida em que se dá, em todas as quatro estrofes iniciais (mas
sobretudo nas três primeiras), justamente pela figura da inversão de sentidos, a ironia.
Acontece, porém, que esta só funcio na quando a inversão é reconhecida, e aqui, considerando
as obsessões de Gullar, ela é facilmente flagrada pelo leitor. Isto é, depreende-se desse
momento inicial (mais enfaticamente na terceira estrofe), em um sentido literal e ingênuo, que
vida e poesia estão distantes: o paradeiro desta escapa ao sujeito que o indaga; sua exegese é
risível; e sua natureza é pura e imaterial. Algo destoa do Gullar que conhecemos e só o leitor
muito desavisado não perceberá que o tom é, por si, estranho, algumas vezes beirando o
deboche. Sem que se precise chegar ao final da leitura, que tornará clara a ironia, esta já pode
ser reconhecida de imediato se se leva em conta a mitologia pessoal de Gullar, e a figura, não
obstante esteja presente nas três estrofes, parece corresponder a elementos diferentes dessa
poética em cada uma delas.
87
Na primeira, alguém pergunta: “Onde está/ a poesia?”, e a resposta, que parece faltar
ao sujeito que questiona, surpreende pela estranheza numa primeira instância, mas aponta para
algo já antigo no que diz respeito à poética de Gullar: o fato de a poesia ir “a esquina comprar
jornal”, ao mesmo tempo que a aproxima de uma realidade muito chã, também a relaciona às
circunstâncias de um tempo. O hábito de comprar jornal é típico daquele “homem comum” e
guarda um interesse pela realidade presente, sobretudo a referente a um contexto sociopolítico
(e o poema é mais uma vez datado ao seu final: “Santiago, 12/7/73”). O sujeito que pergunta
parece estar procurando no lugar errado, seu olhar talvez esteja muito alto e, por isso, ignore a
proximidade daquilo de onde se extrai (ou se deveria extrair) a matéria do poema.
Na segunda estrofe, o equívoco se repete, só que feito agora pelo leitor especializado:
“cientistas” e “exegetas” esmiúçam “a máquina da linguagem”, operando a mesma busca do
questionador anterior, mas aqui numa possível alusão à crítica estruturalista muito em voga na
década de 70. Sabemos da antiga antipatia de Gullar pela abordagem formalista e autotélica da
linguagem artística; o poeta parece retomá-la nesse quase deboche representado pela reação da
poesia àquela prática de leitura: “A poesia ri”. Faltaria, assim, sensibilidade tanto ao sujeito
que pergunta na primeira estrofe, quanto ao leitor que “esquarteja” e “desmonta” o poema, na
segunda, para perceber que a substância poética está relacionada a algo que eles parecem
ignorar: a realidade e a experiência de vida do homem.
Pois bem, é justamente nessa chave do quase deboche que a terceira estrofe se constrói:
nela, cria-se uma situação de interrogatório, e agora o poeta é quem é colocado em pauta. A
partir de uma portaria que proíbe misturar “poema” e “Ipanema”, ele se vê obrigado a depor
em um inquérito sobre a natureza de sua poesia. O trecho é muito interessante: através de uma
ironia muito bem-humorada, Gullar toca em questões sérias de um jeito leve e consegue
88
transitar entre imagens bem bonitas e outras quase anedóticas. O discurso possui uma cadência
mais ou menos regular e é todo pontuado por rimas, em um texto em que elas são raras. É
como se o depoimento deste poeta fosse, pela própria estrutura, a representação do poema que
ele diz fazer: bem comportado, limpo, afastado da “sujeira da vida”. Quer dizer, o depoimento,
então, pretende afastar inteiramente aqueles dois elementos que antes chamamos de centrais:
desligado da terra, “puro”, como uma “flor sem haste”, esse poema também se distancia das
circunstâncias, “não tem passado nem futuro”, não possui a efemeridade da açucena e não está
sujeito à degradação da traça, em função da cômica “proteção do inseticida”. Além disso, é
também carente de qualquer sensibilidade, “não sabe a fel nem a mel” (belo verso que, de
alguma forma, renova a velha rima “amor” e “dor”), é só um objeto cuja substância não vai
além da folha que lhe serve de suporte. Enfim, seu poema estaria então “infenso à vida”, como
conclui, resumindo tudo. É interessante perceber como que, num trecho simples como esse, e
através da ironia, Gullar resgata e concentra pontos importantes de sua trajetória poética: a
questão da materialidade da vida que se deseja buscar e representar na arte (na imagem da flor
sem haste); a degradação que o tempo impõe às coisas mas que, ao mesmo tempo, é a marca
da elaboração da experiência (nas imagens da açucena e da traça); e a preocupação com a
historicidade da expressão artística, que precisa lidar com o contexto em que é produzida (na
alusão à ditadura feita pela imagem de uma portaria proibitória e absurda).
Em relação a esta última preocupação, vimos anteriormente uma ironia que se
aproxima muito desta e da exigência que lhe está implícita, nos versos de “Não há vagas”: “O
poema, senhores,/ não fede/ nem cheira”; mas há ainda um outro texto de Dentro da noite
veloz, sobre o qual já fizemos uma breve referência, que praticamente desnuda a figura da
inversão realizada praticamente nas três estrofes de “A poesia”. Em “Boato”, o poeta diz:
89
Espalharam por aí que o poema
é uma maquina
ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.
Mas como, gente,
se estamos em janeiro de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos já me surgem no pentelho?
(...)
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no país
e eu estou infeliz?
85
Quer dizer, as circunstâncias políticas, e não apenas elas, mas a própria vida impedem
que o poeta produza uma arte que não diga respeito a elas: chega a ser espantoso para o eu
lírico que se pense em um “poema neutro”, como uma máquina, se no próprio corpo se
percebe a vida em sua degradação/elaboração e se o contexto sociopolítico de uma tarde de
“janeiro de 1967” lhe faz infeliz. Em outras palavras, a questão que o sujeito se coloca seria:
“como, em meu ofício, não me engajar à vida e às esferas que a compõem se a arte que
pretendo fazer nasce justamente disso; se a matéria de minha poesia surge do espanto
oferecido pela experiência da vida e pela realidade mesma?” É então esse assombro que
aparece cifrado pela ironia nas três estrofes iniciais de “A poesia” e que prossegue de um jeito
muito curioso na quarta, fechando aquele primeiro momento do poema. Nela, o poeta (não
mais aquele que depunha; o eu lírico original retoma as rédeas do discurso) responde o final
do depoimento concordando ironicamente com a sua conclusão que distancia poesia e vida,
85
GULLAR, 2000. p. 190.
90
como se o fato desta ser “suja”, “dura” e “insegura” justificasse o próprio distanciamento;
como se a intromissão de um elemento no outro maculasse aquele que pretende preservar sua
“pureza”. Uma série de citações se segue, assemelhando-se a manchetes de jornais que viriam
a confirmar os adjetivos conferidos à vida e que deveriam afastá-la do poema: a prisão pela
suspeita de “atividades subversivas” de um poeta romântico (o que, se não é irônico, é no
mínimo curioso; talvez por ser um poeta cuja obra sabe muito “a mel” e “a fel”); o
desemprego de uma “centena de operários” pela falência de uma fábrica; o relato e a
confirmação tragicômica de um adultério diante de um juiz; enfim, pequenos registros ou
notas de uma realidade (ficcional ou não) muito pedestre, muito própria até mesmo de um
jornal de notícias populares (como é o caso desta última), que não estão no poema do sujeito
que depõe, mas que são muito mais próximas da poesia que “vai à esquina comprar jornal”,
ignorada por leitores e poetas, como vimos antes.
Assim, a quarta estrofe fecha o primeiro momento, que pretende falar de poesia, ao
mesmo tempo em que abre o segundo, cuja matéria parece ser a vida e a representação
sincrônica de sua multiplicidade. O que chamei antes de miolo do texto é então um trecho
longo e confuso, constituído de um acúmulo de imagens desordenadas refletindo sobre o
amor, a memória e a efemeridade da experiência. Iniciada pela citação de uma cantiga popular
cujo tema é, justamente, a desilusão amorosa, a temática do amor já aparece aliada à da
memória, numa estrofe que dá uma seqüência erotizada à cantiga (“Era pouco? Era louco,/ um
mergulho/ no fundo de tua seda aberta em flor embaixo/ onde eu morria”), como se tentasse,
pelo discurso, resgatar a experiência amorosa do passado, que “se acabou”, mas que de
alguma forma ressurge na sensualidade da linguagem, na “vertigem” das imagens que se
atravessam na lembrança, misturadas no trecho imediatamente seguinte à cantiga (“Era uma
91
fome azul e navalha/ uma vertigem de cabelos dentes/ e cheiros que traspassam o metal/ e me
impedem de viver ainda”).
Outras imagens ainda mais desordenadas aparecem nos versos que se sucedem a esses,
e Gullar, muito afeito à percepção sensorial das coisas, parece voltar às formulações da fase
neoconcreta, no trecho que alterna as cores “branca e verde”, para então dizer, novamente, que
a poesia ri, “recostada no divã da sala/ depois de tudo” (seria possível dizer que também ele se
coloca, ao fazer um balanço do passado, na mesma situação do poeta que depõe no inquérito).
Algumas cenas de um cotidiano banalíssimo antecedem a reflexão sobre a efemeridade do
amor, que, assim como a infância e a ambulância, passa, mas ao contrário na retomada
anedótica de outro dito popular da “grácia” de Ingrácia. O trânsito entre o cômico e o grave
de imagens como essa se justifica e parece contribuir para a construção da multiplicidade de
facetas da experiência do sujeito que as retoma na desordem da memória.
Fecha então a segunda parte do poema, dando prosseguimento a essa idéia da
efemeridade, uma bela reflexão sobre a impossibilidade de vivenciar novamente o episódio
amoroso passado que, no entanto, permanece latente na lembrança e compõe o universo
íntimo do eu lírico, da mesma forma como já assinalamos em “Praia do Caju”: a recorrente
imagem do tempo perdido volta aqui atualizando a idéia de que o homem é um depósito de
experiências e pessoas com os quais tem ou teve um contato e que podem vir à tona a qualquer
momento, como um relâmpago, uma combustão interna, mesmo que não se concretizem
empiricamente. A memória da mulher amada se mistura aos outros elementos que “gravitam”
dentro do poeta, podendo retornar ao acaso, de um jeito singelo, porém intenso, durante o
simples acender de um cigarro. Essa imagem da lembrança que ressurge em combustão íntima
será o leitmotiv de Poema sujo, mas já aparece também como topos do último poema de
92
Dentro da noite veloz, “Ao nível do fogo”: o poeta, movido pelo incêndio externo das coisas e
da situação, somado à chama íntima que trabalha como uma fênix, cantará à beira da morte
neste poema que antecipa muito do que virá no longo texto de 1976.
Finalmente, no que entendo como a terceira parte, o poeta volta a falar de poesia e
retoma a clareza discursiva da primeira. Após passar por uma certa representação da vertigem
da vida resgatada pela memória (e transformada em poema), Gullar teoriza, agora sem ironia,
sobre o que deve ser a natureza deste: a tentativa de fazer com que a vida seja justamente a
matéria do poema, sem que o processo de formalizá-la em texto a detenha ou aniquile o
“fogo” que dá origem à expressão artística. O procedimento de concentrar a vida em texto
deve, então, ao contrário do que se imagina, “libertá-la”, transformá-la em uma voz viva
(textual) dentro da “nossa voz” (real). Assim, menos do que tentar fazer a memória da
experiência retornar empiricamente ou representar a realidade num sentido objetivo, o esforço
e a proposta de Gullar vão na direção de fazer o poema ganhar vida, ter seu calor próprio a
partir do fulgor que o motiva. As imagens que se seguem pretendem, então, atribuir uma
concreção ao poema, dar “carne” a “cada sílaba”, fazer com que a linguagem perca sua
dimensão de artificialidade e se torne algo tão vivo quanto a própria realidade que reinventa.
Finalizando o texto, cria-se uma situação que parece ilustrar justamente o processo de
realização do poema, da maneira como o poeta pretendeu entendê-lo antes: o espanto diante de
uma cena mais que cotidiana o aparecimento repentino de um pombo transporta o
sujeito para um estado de excitação capaz de romper o tecido conceitual que, normalmente,
lidaria com a situação de uma forma tranqüila. O objeto que gera o espanto e que dá o gatilho
para a expressão artística recebe a abordagem de um olhar que já não o vê com naturalidade;
pelo contrário, o pombo transmuda-se em uma realidade nova, que precisa ser experimentada
93
e entendida através de novos termos, não oferecidos pela perspectiva comum. Os recursos para
compreendê-lo em uma nova linguagem a poética pertencem então às esferas da
sensibilidade e da plasticidade da palavra, e é interessante perceber que a maneira como Gullar
constrói o trecho já representa, de algum modo, a pesquisa sobre a qual fala. O poeta,
responsável por essa outra nomeação do mundo, se interroga: como definir aquele espanto?
Porque a realidade a ser refletida no poema não diz respeito somente ao objeto em si, mas à
situação maior, sensível, da qual ele faz parte. A palavra “pássaro” se desmembra e “pombo”,
apenas, não parece mais dar conta do recado; o sujeito passa, assim, a experimentar novos
nomes, sonoramente semelhantes: “Bomba? Prombo?”, que também ainda não bastam. A
pesquisa prossegue na busca por reconstruir com palavras aquela explosão sensorial, gerada
pelo pássaro que “bicava o chão há pouco” e agora é uma mistura de “ajas brulhos zules bulha
zalas”, até chegar, finalmente, à chave de ouro do poema:
como chamá-lo? Pombo? Não:
poesia
paixão
revolução
Além de impactante e de fechar sinteticamente a vertigem com que se vinha
construindo o discurso, a tríade composta pelos últimos versos aponta para significações que
ultrapassam a conclusão das idéias específicas deste poema e aponta para definições mais
largas da poesia de Gullar, definições que o poema, como um todo, pretende também lançar. A
interessante junção destes três termos para nomear o fenômeno da criação poética que a última
parte representa faz com que eles se tornem sinônimos uns dos outros, o que resume a
discussão maior, para além do episódio do pássaro. A poesia precisa ser, ao mesmo tempo,
paixão e revolução; precisa estar relacionada à vida, conter algo que anima os dois elementos
94
reciprocamente. A paixão que move o homem deve também ser a mesma matéria do poema,
que deseja preservá-la e reinventá-la, desfazendo totalmente a idéia anterior do texto puro. Se
é assim, a arte que alcance essa proposta e atenda a uma demanda apaixonada da experiência
carregará, por si, uma dimensão revolucionária, em qualquer que seja o sentido desta
revolução. Ela precisa, pois, nascer de um estado de consciência que revolucione a matéria
que lhe dá origem, precisa movimentar o sujeito que realiza essa revolução e, ainda,
transformar, a partir de uma nova leitura da realidade, o estado de coisas em que este sujeito se
encontra. Mesmo que não mude “(logo) o mundo”, para retomar um verso já citado de
“Boato”, a poesia tem a capacidade e surge de uma necessidade de reinventá-lo,
alterando assim, de alguma forma, o status quo do qual retira sua matéria. Embora o termo
“esperança” não apareça explicitamente em nenhum momento do texto e nem mesmo sua
idéia seja mais claramente tangenciada, a maneira como Gullar entende aqui a natureza do
poema confere a este a dimensão de ferramenta indispensável no exercício de alteração da
realidade, o que não deixa de representar a confiança numa ação atual com vistas a
transformar o tempo presente.
Note o leitor, então, que a maneira como o poema se organiza, a partir da estrutura
tripartida sugerida acima, acaba por representar justamente aquilo sobre o que ele fala: tanto a
primeira quanto a terceira partes têm como topos a natureza da poesia, e nas duas (mesmo que
ironicamente na primeira) a reflexão gira em torno da aproximação entre a arte e o fulgor da
vida. O miolo desta moldura, isto é, a segunda parte do poema, não trata de outra coisa senão
da vida mesma, em sua mistura desordenada de sensações e acontecimentos, presentes ou
passados, que atravessam e permanecem sincronicamente no sujeito que os experimenta. Quer
dizer, temática e estrutura se representam mutuamente aqui: a organização do poema faz com
95
que a temática relacionada à vida esteja contida em uma parte margeada por outras duas cujo
motivo é a poesia, que, por sua vez, almeja conter a vida.
Enfim, o resultado a que se chega aqui, se por um lado, parece estar bem distante de
alguns momentos anteriores de Dentro da noite veloz, indiscutivelmente mais fracos, por
outro, já se aproxima bem daquilo que Gullar realizará em sua obra prima, o Poema sujo, livro
que intermedeia o passo dado para Na vertigem do dia, coleção de poemas sobre a qual
falaremos a seguir.
96
SOLIDÃO E ESPERANÇA EM NA VERTIGEM DO DIA
O salto de Dentro da noite veloz para Na vertigem do dia
Lançado em 1980, Na vertigem do dia coleciona poemas escritos desde 1975. A
localização do livro na poesia de Gullar desperta questões importantes para o leitor que
acompanha o roteiro do poeta, criando naturais expectativas sobre a obra, uma vez que ela
sucede o Poema sujo (1976). Dessa maneira, Na vertigem do dia estaria para o longo poema
de 1976 assim como O vil metal está para A luta corporal, e essa equação funciona sobretudo
quando observamos, nas duas obras sucessoras, um certo amaneiramento da densidade e
alquimia dos respectivos livros anteriores. É sintomático disso que os dois mais importantes
estudos sobre Gullar, de Alcides Villaça e João Luiz Lafetá, aos quais venho fazendo
constante referência, se dediquem muito pouco a uma leitura sistemática de Na vertigem do
dia para além do famoso poema “Traduzir-se”. Sintomático, embora compreensível, já que a
proposta de ambos reside na verificação da trajetória de uma poética, da qual o referido poema
é realmente exemplar.
De fato, como mostra Villaça, é notável em Na vertigem do dia e esperado, dada a
envergadura de Poema sujo um certo “arrefecimento” de alguns dilemas que acompanham
desde sempre a poesia de Gullar e que ganham expressão profunda em seu longo poema. Não
obstante o “discretíssimo poder de atualização”
86
de Na vertigem do dia, acho importante, em
função de minha preocupação voltar-se menos para a trajetória mais ampla de uma poética do
86
VILLAÇA, 1984. p. 169. A expressão se refere, na verdade, à atualização que o poema “Bananas podres” faz
do efeito sincronizador, ao qual nos referimos, percebido mais detidamente por Villaça em Poema sujo.
97
que para o movimento de um motivo, observar, através da leitura de outros poemas não
analisados pelos críticos, como o livro parece avançar na reflexão sobre a esperança,
sustentando uma mitologia pessoal e aprofundando, embora discretamente, questões anteriores
mesmo a Poema sujo, já presentes em A luta corporal, mas que ganham um olhar diferente a
partir de Dentro da noite veloz, como vimos e venho tentando demonstrar.
Para muito além da intermediação cronológica, Poema sujo marca uma transição do
Gullar que delega à militância política a possibilidade de mudança do presente, em Dentro da
noite veloz, para o Gullar mais reflexivo e voltado às questões da identidade, em Na vertigem
do dia. Considerado por alguns críticos como o ponto mais alto de sua poesia, a obra de 1976
abandona de vez as simplificações da época cepecista, remanescentes em alguns poemas de
Dentro da noite veloz, para descer fundo na complexidade da própria experiência,
reconhecendo a multiplicidade da vida nas várias faces e tempos que o eu lírico observa e que
se interpenetram por terem nele um eixo. Esse olhar sincronizador já aparece em Dentro da
noite veloz, mas é a partir de Poema sujo que ele se torna realmente um procedimento
obsessivo da poética gullariana.
Uma primeira leitura de Na vertigem do dia é capaz de nos dar uma medida desse
salto, sendo que o próprio título, se comparado ao do livro anterior, pensando as imagens de
noite e dia, já traz uma significativa noção de movimento. Mesmo que vários dos primeiros
poemas de Na vertigem do dia sejam escritos ainda durante as agruras do tempo de exílio,
Gullar fecha a obra, e talvez dê seu título, já no Brasil, passado aquele duro período que, como
assinalamos no primeiro capítulo, pode ser representado pela imersão nas trevas (Dentro da
noite) de uma situação social e política marcada pela incerteza, pela insegurança, mas que
guarda a expectativa de escape, na definição da brevidade de sua duração (veloz).
98
Curiosamente, porém, a idéia de que tempos melhores foram alcançados em Na
vertigem do dia, em função do movimento observado de um título ao outro, não parece
proceder quando olhamos para a obra com mais cuidado, uma vez que a dicção geral
entusiasmada de Dentro da noite veloz, fazendo frente à obscuridade daquele momento, cede
espaço a um canto que, se não é totalmente desiludido, é no mínimo menos eufórico,
estranhamente menos solar, no que tange à reflexão sobre a esperança e certamente mais
amargo em relação às convicções sobre aquela luta comum a ela relacionada. Na verdade, se
contássemos, veríamos que Dentro da noite veloz possui um maior número de momentos
amargurados do que Na vertigem do dia; porém, se verificássemos também a quantidade de
imagens eufóricas direcionadas ao engajamento político, veríamos que ela é igualmente maior
na primeira obra. Assim, o que movimento dos títulos poderia significar, se ele parece não
marcar um encontro do sujeito com um estado de espírito e de coisas mais luminoso, após um
período de sofrimentos motivados, em muita medida, por uma circunstância sociopolítica? O
que há, em verdade, é uma mudança de perspectiva: além da alteração de tom sensível de um
livro para o outro, a diferença significativa entre as duas obras, antes de residir na freqüência e
na intensidade de momentos de alegria e desilusão, está na maneira como o poeta se percebe
no mundo e no modo como entende esse princípio de mudança do futuro embrenhado no
presente, a que venho chamando de esperança.
Explico-me: a aparente desilusão de Na vertigem do dia, numa leitura mais atenta,
parece revelar não a expressão de uma desistência em relação às posições políticas anteriores,
mas sim a aquisição de uma consciência da solidão, que, à sua maneira, orienta agora o olhar
do poeta sobre as perspectivas de futuro observadas nas possibilidades do presente, de modo
que a esperança deixa de se apoiar em um projeto coletivo para se transformar em necessidade
99
básica à manutenção da vida. Nesse sentido, Na vertigem do dia, apesar de abandonar, de um
modo geral, o entusiasmo da luta comum para aprofundar as questões da identidade (e
justamente em função deste aprofundamento), consegue ser um livro mais “coletivo” do que
Dentro da noite veloz, já que o reconhecimento da solidão retira do motivo da esperança o seu
viés quase exclusivamente político para ser trabalhado numa acepção mais essencialista; a
esperança perde, em grande parte, a referência direta a uma iniciativa bem localizada em
espaço e tempo específicos e ganha uma dimensão mais universal. Retornarei a essa questão
ainda neste capítulo, a propósito da leitura de “A alegria”.
O materialismo e a aquisição de uma consciência ontológica da solidão
É preciso que caminhemos com calma; primeiramente, vejamos o segundo poema da
obra, intitulado “Ao rés-do-chão”, exemplar para a reflexão sobre essa consciência solitária,
que parece ser o tônus geral de Na vertigem do dia.
Ao rés-do-chão
Sobre a cômoda em Buenos Aires
o espelho reflete o vidro de colônia Avant la Fête
(antes,
muito antes da festa!)
Reflete o vidro de Supradyn, um tubo
de esparadrapo,
a parede em frente, uma parte do teto.
Não me reflete a mim
deitado fora de ângulo como um objeto que respira.
Os barulhos da rua
não penetram este universo de coisas silenciosas.
Nos quartos vazios
na sala vazia na cozinha
vazia
os objetos (que não se amam):
uns de costas para os outros.
87
87
GULLAR, 2000. p. 296.
O título do poema chama a atenção de imediato para a necessidade de Gullar
percebida em Dentro da noite veloz, assim como em toda sua poesia de se localizar a todo
o momento, tanto espacial quanto temporalmente. A localização operada nesse título, porém,
mesmo que acabe tendo a mesma função que as referências espaciotemporais (a aproximação
da poesia do concreto da vida), difere desta por definir antes um ponto de vista do que um
local específico do qual se fala. Sabemos que, logo no primeiro verso, o poeta se situará
espacialmente em Buenos Aires, da mesma maneira como no livro anterior faz referência ao
Rio, ao Chile e a Lima, mas o título traz aqui, especificamente, a manutenção daquela
perspectiva não-transcendente, corporal, que dá à poesia de Gullar seu pano de fundo
filosófico materialista. O observador se situa ao rés-do-chão e é a partir dessa perspectiva que
pode pensar a realidade objetiva e afetivamente: com os pés fincados na matéria, o poeta, aqui,
a partir do reconhecimento cuidadoso do espaço em que está (Buenos Aires, apartamento,
cenário) e de seu tempo (“antes da festa”, data do poema: 30/1/75) localizações que
ocupam a maior parte do poema , passa a reconhecer o estado psicológico e afetivo de
solidão em que se encontra.
Outros poemas da obra, porém, sustentam de modo mais contundente essa perspectiva
materialista. Como um desdobramento do que já vimos em “Coisas da terra”, de Dentro da
noite veloz, o poema “Minha medida”
88
faz um esforço justamente nessa direção. Assim como
em “Ao rés-do-chão”, a localização aqui também se refere a um ponto de vista e o poema se
movimenta para a construção desse olhar materialista, aproximando espaço, tempo e sujeito.
Na primeira estrofe, o poeta diz: “Meu espaço é o dia/ de braços abertos/ tocando a
fímbria de uma e outra noite/ o dia/ que gira/ colado ao planeta”. O lugar é então definido por
88
GULLAR, 2000. p. 334.
uma dimensão temporal: seu espaço é medido pelo dia, por aquilo que se dá no momento em
que a vida acontece, e não fora dele. A definição já aponta para a discussão central do poema,
mas parece ainda insuficiente e induz a uma hipotética segunda pergunta: o que definiria,
então, o dia? A resposta vem na segunda estrofe, reforçando a imagem da primeira (“Meu
espaço, cara,/ é o dia terrestre”), mas avançando no empenho definidor: o dia, que determina o
espaço, é na verdade medido não pelo trabalho progressivo do relógio, e sim pela elaboração
da própria vida, “mais pelo meu pulso/ do que/ pelo meu relógio de pulso”. Espaço, tempo e
sujeito já funcionam agora como elementos que se explicam mutuamente, mas, obedecendo a
uma trajetória questionadora, caberia uma última grande pergunta: o que seria então a vida? o
que, ao poeta, dá a sensação de sua medida? quem é o responsável por essa elaboração? A
resposta já está dada nas estrofes anteriores, como se o poeta se dissesse: “a medida de minha
vida é dada por mim, pelo espaço e tempo nos quais ela acontece”, mas a reflexão prossegue,
na terceira estrofe, em um sentido mais abrangente: “Meu espaço desmedido / é o
pessoal aí, é nossa/ gente”. Isto é, a localização do sujeito em um determinado espaço/tempo
trará consigo, como elemento componente dessa medida, as relações sociais que essa inserção
necessariamente implica.
Resumindo: em uma tautologia esclarecedora, a medida da vida é dada por quem vive;
pelo homem, como invenção de si mesmo, que é o responsável por sua elaboração e que
“numa das mãos sustenta a festa/ e na outra/ uma bomba de tempo”
89
. Dessa maneira, a
definição chega a um termo, mas não por descobrir o que a vida é precisamente uma vez
89
A imagem da vida como uma mistura complexa de contradições impede o reducionismo que talvez se lhe
atribuíssem (considerando que seu limite, para Gullar, pertence à dimensão do corpo): o materialismo do poeta
reconhecerá sempre uma complexa multiplicidade de possibilidades inerentes a própria matéria. Para esta
imagem específica, da festa e da bomba de tempo, teremos um correspondente muito próximo, em Na vertigem
do dia mesmo, no poema “Digo sim”: “A vida nós a amassamos em sangue/ e samba”. Retornarei a esse poema
(e a essa questão) com mais cuidado ainda neste capítulo.
que isso vai depender da maneira específica como um sujeito, inserido em um determinado
recorte (espaço, tempo e círculo social; um elemento para cada estrofe do poema, compondo o
todo anunciado pelo título), vai elaborá-la , e sim por saber que ela acontece aqui, no plano
dos homens. Mais: depende exclusivamente deles, de sua construção cotidiana, apesar do
permanente reconhecimento da complexidade e multiplicidade dessa experiência.
Cabe lembrar que a reflexão sobre o tempo, tão forte neste poema, é uma constante em
toda a poesia de Gullar; mas convém considerar também que ela sofre alterações ao longo de
sua obra: o tempo metafísico de A luta corporal, indiferente a tudo e que a tudo consome,
passa por um processo gradativo de internalização, iniciado, pode-se dizer, em Dentro da noite
veloz e trabalhado com afinco no Poema sujo. Gullar, a partir deste livro de 1976, passa a
entender o tempo não como algo externo e indiferente, mas como substância inerente a cada
coisa, e o sujeito se torna então a elaboração de seu próprio tempo, que é complexo e múltiplo,
uma vez que é atravessado por sua própria história de vida e pelos tempos específicos das
coisas e dos homens com os quais trava um contato. Sem ser reducionista, Gullar continua sua
reflexão ontológica a partir de uma pesquisa sobre o corpo e eis em “Minha medida” uma
atualização discreta daquele processo de sincronização na esteira da dialética do interior e
do exterior de Bachelard visto no primeiro capítulo e percebido por Villaça já em Dentro
da noite veloz, mas sobretudo no Poema sujo.
Outro exemplo de Na vertigem do dia que atesta essa dimensão materialista da vida,
remetendo-se a um ponto de vista ao rés-do-chão, estaria em “Homem sentado”
90
. Nele, o
poeta se define: “estou aqui/ apoiado apenas em mim mesmo/ neste meu corpo magro mistura/
de nervos e ossos/ vivendo/ à temperatura de 36 graus e meio/ lembrando plantas verdes/ que
90
GULLAR, 2000. p. 302.
já morreram”. A dimensão é biológica (“intestinos dobrados”, “pernas sob o corpo”, nervos,
ossos, temperatura), sem ser, no entanto, limitadora. O sujeito, que se define pela matéria, é
capaz de abstrair e figurar aquilo que não se dá a ver no imediato. O pensamento (nesse caso
representado pela memória) consegue transcender a mera constatação material apesar dessa
reflexão nascer da matéria quando o poeta se mostra capaz de refletir sobre a morte, ao se
lembrar daquilo que já não existe concretamente.
Atualizada a perspectiva corporal em Na vertigem do dia, concentremo-nos em “Ao
rés-do-chão”. Na sua primeira estrofe, altamente descritiva, o poeta vai definindo o espaço em
que se encontra como se pintasse uma “natureza-morta” (tipo de pintura, vale lembrar, muito
caro ao Gullar artista plástico). Tudo aqui é cenário e o lugar se compõe aos poucos, numa
descida afuniladora, através do recorte de um recorte: o poeta, em Buenos Aires, dentro de seu
quarto, observa objetos que se refletem no espelho sobre a cômoda, e se coloca também como
um objeto, porém, à margem desse recorte. Assim, paralelamente à composição desse espaço
morto e impessoal (e em uma equivalente proporção), ele vai nos dando conhecimento do
nível de isolamento em que se encontra: seus “companheiros de quarto” se resumem a um
vidro de colônia, outro de Supradyn e um tubo de esparadrapo, que se acham dentro de um
“espaço” (o reflexo do espelho, que, ao refletir também “a parede em frente, uma parte do
teto”, potencializa a limitação desse recorte), no qual o sujeito não se enquadra. Além,
obviamente, do não enquadramento físico no reflexo do espelho e a descrição de seu
isolamento, ao ser separada no longo último verso da primeira estrofe, ajuda a compor a
imagem do deslocamento desse homem que não se reflete no espelho, inicialmente, porque
está deitado e abaixo, de acordo com sua perspectiva, do ponto do quarto que vê ser
representado , o que o distancia daquele elenco de objetos, e que talvez justifique sua
ausência do recorte é apenas o ato de respirar; mas, apesar dessa significativa diferença,
sujeito e objeto continuam a guardar correspondências, sendo aquele uma mera coisa entre
outras, mesmo que não se represente no detalhe com elas.
A imagem do espelho, tão recorrente em Na vertigem do dia, parece guardar uma
mesma carga interpretativa central nos diversos poemas em que aparece. Tanto em “O espelho
do guarda-roupa”, quanto em “A ventania” ou em “Ovni”, Gullar trabalhará com a
ambigüidade da palavra que marca a principal propriedade desse objeto: a reflexão. O espelho
é capaz de refletir apenas o que se passa em sua frente, sem, no entanto, preservar a imagem
do que passa. Além disso, esse objeto não consegue figurar aquilo que não é imagem, “não
nos devolve mais do que a paisagem”
91
: o som, o barulho, o vento, elementos que na poesia de
Gullar funcionam muitas vezes como representações do dinamismo da vida, “barulhos/ sem os
quais/ não haveria tardes nem manhãs”
92
, passam à margem daquilo que esse recorte estático e
precário é capaz de refletir.
O homem, por sua vez, também espelha aquilo que o rodeia, porém o registra, pensa e
guarda, pela memória. Exemplo disso temos em “Ovni”, quando o poeta atribui a si a mesma
reflexão operada pelo objeto (“O espelho me reflete/ Eu (meus/ olhos)/ reflito o espelho”),
para depois conferir a essa propriedade, quando realizada pelo homem, uma outra conotação,
relacionada ao pensamento (“Eu guardo o espelho/ o espelho não me guarda”), lembrando o
poema “Maio 1964”, de Dentro da noite veloz, em que diz que este objeto, o espelho, “não
guardará a marca deste rosto” caso o sujeito morra ou saia de sua frente (“se me afasto um
passo/ o espelho me esquece”
93
). Em suma: o homem é capaz de pensar sobre aquilo que
91
GULLAR, 2000. p. 321. A citação é do poema “O espelho do guarda-roupa”.
92
Ibidem. p. 322. Ainda sobre “O espelho do guarda-roupa”.
93
Ibidem. p. 169.
reflete e por isso reage ao seu objeto de reflexão, enquanto o espelho apenas representa aquilo
que se põe em sua frente no imediato. Mesmo que essa comparação não seja novidade e talvez
até soe a alguns leitores como lugar-comum, ela ganha força em “Ao rés-do-chão”, na medida
em que o poeta se vê neste momento, dado seu isolamento generalizado, como um objeto entre
outros que compõem a natureza morta daquele espaço, porém, capaz de guardar uma mínima
distinção dessa estaticidade.
Voltemos ao poema. Vimos que a primeira estrofe, ao compor o cenário em que se
encontra o poeta, nos dá uma medida do seu isolamento espacial: um brasileiro, sozinho em
Buenos Aires, observando os poucos objetos estáticos, não é demais reforçar de um
quarto, a partir do reflexo de um espelho que não o enquadra. Já a segunda estrofe parece
avançar na composição dessa solidão espacial, atingindo uma dimensão afetiva desse
isolamento. Compreendemos, a partir do breve comentário sobre a simbologia do espelho, o
motivo de base (novamente, para além do não enquadramento físico) que excluiria o sujeito do
detalhe por ele abarcado, considerando as naturezas desses dois elementos centrais, mas essa
distinção, na segunda estrofe, em vez de colocar o poeta na categoria das coisas dinâmicas,
que participam do movimento, da festa da vida, potencializa a sensação de isolamento de sua
atual condição: ultrapassando a solidão espacial, mas em função dela, o detalhe em que se
encontra, e no qual parece estar preso, como veremos, impede e é avesso a qualquer
correspondência, seja ela comunicativa, afetiva ou amorosa. O sujeito está só, limitado a um
recorte praticamente vazio, preso a um “universo de coisas silenciosas” e imóveis, universo
este incapaz de incorporar “os barulhos da rua” e o dinamismo da vida. Gullar, na
representação do vazio desse cenário, lança mão de um recurso seme lhante ao utilizado por
Carlos Drummond de Andrade, no final de seu poema “A mesa”, de Claro enigma, ao isolar a
10
6
palavra “vazia” em um único verso. No poema de Gullar, temos: “Nos quartos vazios/ na sala
vazia na cozinha/ vazia”; no de Drummond: “Estais acima de nós,/ acima deste jantar/ para o
qual vos convocamos/ por muito enfim vos querermos/ e, amando, nos iludirmos/ junto
da mesa/ vazia”
94
. Além de isolar a palavra em um único (e último) verso, Drummond ainda a
desalinha da margem esquerda, deslocando-a para o centro da página, o que aumenta o efeito
já sugerido pelo isolamento. O curioso disso é que justamente este procedimento de desalinho
da margem esquerda para o centro da página é raro na poesia de Drummond e freqüente na de
Gullar. Interessante detalhe, ainda sobre esse momento de “Ao rés-do-chão”, está no fato de
que o “vazio” permeia os três versos da segunda estrofe que descrevem o espaço do
apartamento, situando-se em lugares diferentes a cada verso fim, meio e começo (ou verso
inteiro) , como se a “preencher” com o nada todos os cantos do apartamento e do poema,
nas partes específicas que finalmente o descrevem. Enfim, seus “companheiros” neste espaço,
mesmo que guardem alguma capacidade de ajuda (como é o caso do vidro de Supradyn,
famoso complexo vitamínico, e do tubo de esparadrapo) são coisas, objetos, estão “uns de
costas para os outros”, ou seja, são naturalmente insuficientes para aplacar qualquer carência
humana, incapazes de amar, podendo até mesmo ampliar a dor da solidão, como na perversa
ironia carregada pelo nome da colônia Avant la Fête, traduzida emotivamente logo em seguida
(“antes/ muito antes da festa!”). Vale ressaltar a maneira como uma espécie de prosopopéia às
avessas personifica primeiro os objetos para, na verdade, desumanizá-los: eles estão “de
costas”, “não se amam”, como se pudessem, ao contrário, escapar de sua condição de coisa
sem vida e corresponder a uma carência do sujeito que os observa.
94
ANDRADE, 1995. p. 118
Dessa maneira, o isolamento físico desse sujeito, observado a partir daquela descida
afuniladora que o localiza espacialmente em um lugar estranho (um quarto, num apartamento
vazio de Buenos Aires), à medida que o exclui desse mesmo espaço (o reflexo de um espelho),
acaba por representar alegoricamente sua solidão afetiva e existencial e deve também ser
pensada em sua dimensão política, como um aspecto do exílio, certamente a origem histórica
desse isolamento maior. Não podemos desconsiderar que Gullar, na primeira edição de Na
vertigem do dia, marca ao final do poema o local e a data de sua composição: “B. Aires,
30/1/75”. O poeta, por esta época, via-se sozinho na capital argentina, em uma situação crítica
tanto familiar quanto política: seu filho Paulo estava sumido há algum tempo e sua família
voltara ao Rio, deixando Gullar novamente só em Buenos Aires, com o passaporte cancelado
pelo Itamarati, na iminência de um golpe militar naquele país. Confinado em seu quarto, longe
de sua terra (e de sua vida comum), o poeta está, na verdade, preso a uma condição, a de
exilado. Assim, incorporando à leitura do poema essa notícia biográfica, podemos dizer que o
sujeito, por não se representar no reflexo do espelho, ainda guarda as diferenças mínimas que
mantém em relação às coisas “mortas” daquele quarto e se mostra mais afim ao movimento da
rua e dos barulhos da cidade, mas, apesar disso, permanece cativo daquele espaço, mesmo que
não comungue de sua absoluta paralisação, conferindo à dor desse isolamento afetivo e
familiar, quando pensado historicamente, a dimensão de uma clausura também política.
Voltando então à imagem da festa, cria-se, a partir do nome da colônia e de sua tradução,
incorporada ao discurso como uma espécie de lamento, um curioso contraponto temporal, que
nos permite dar ao nome nova significação: o estado de isolamento atual do sujeito se
contrapõe à comunhão de uma hipotética festa futura. Considerando o contexto e o poeta,
podemos dizer que, se o presente desse sujeito se define pela solidão que o exílio lhe impõe, o
seu futuro ainda guarda a expectativa de uma celebração do encontro, de um agrupamento
festivo que, após a clausura, comemore coletivamente; ou seja, a imagem da festa parece se
aproximar do que seria a realização concreta de uma utopia, podendo representar, inclusive,
uma espécie de paroxismo do ideal comunista, do qual se alimentava ainda fortemente o poeta
quando da realização do poema.
A propósito, sobre o exílio, em entrevista aos Cadernos de literatura brasileira, Gullar
nos dá um interessante depoimento a respeito de sua relação sempre crispada com os vários
lugares pelos quais passou. Transcrevo um trecho dessa entrevista, significativo para a
ilustração do estranhamento sujeito/lugar representado no poema:
Eu procurava sobreviver, mas aquilo [o exílio] para mim era um castigo permanente. Eu só
pensava em voltar. Minha obsessão era tão grande que eu alugava apartamento nas cidades por
onde passava, mas não montava uma casa, como se diz. Eu improvisava. O apartamento era
uma tenda, um acampamento para mim. Eu não aceitava a idéia de me instalar. Confesso para
vocês que eu não agüentava viver longe da minha família, dos amigos, da minha cidade. Uma
coisa que eu aprendi no exílio (eu sei que é uma coisa minha) foi o seguinte: em todas as
cidades por onde passava, poste era poste, casa era casa, parede era parede e na minha terra,
não. O poste é o poste da rua tal, por onde eu passei uma noite, conversando com um amigo; a
casa é a casa de um conhecido etc. O exílio, na minha opinião, é um mundo hostil, um mundo
que não é nada, um mundo que é matéria só.
95
O depoimento se aproxima bem de duas questões que vimos observando até agora: a
primeira, mais especificamente sobre o poema “Ao rés-do-chão”, ilustra aquela falta de
correspondência entre o poeta e os elementos do cenário em que se encontra, apesar da
coisificação promovida pela clausura do exílio; isto é, naquele momento, o cenário é
justamente só cenário, sobre o qual o homem não projeta nem reconhece o menor laço afetivo.
Na verdade, apesar de ser o seu quarto de então, o espaço é estranho ao sujeito e beira a
hostilidade, simbolizada pela posição (“uns de costas para os outros”) dos objetos que ali
estão. O poeta não se reconhece nesse lugar e, por isso, embora esteja preso a ele, se
95
Cadernos, 1998. p. 43.
representa relativamente fora do recorte usado para a observação do quarto, o já referido
reflexo do espelho. Teríamos aqui mais uma diferença significativa entre o Gullar de Dentro
da noite veloz e de Na vertigem do dia. Se na primeira obra a identificação do poeta com as
miudezas do cotidiano aproxima sujeito e mundo, inserindo inclusive suas preocupações
políticas numa perspectiva pessoal, como assinalado em “Homem comum” e que marca a
principal mudança do poeta dos Romances de cordel para o de Dentro da noite veloz em um
sentido politizado, e de A luta corporal, num viés essencialista , em Na vertigem do dia essa
mesma aproximação parece ser a expressão de um estranhamento: mesmo que mantenha o
olhar ao rés-do-chão e continue com os pés fincados na dura realidade, o poeta está separado
do mundo que reconhece como seu, e a distância que “separa” o sujeito das coisas que o
circundam, apesar da inescapável proximidade física, pode ser também a marca da distância
que o separa agora de algumas fortes convicções ideológicas anteriores, pensadas na idéia da
luta comum.
A segunda questão que o depoimento acaba tocando, embora não seja tratada
diretamente neste poema, tem a ver com o motivo que escolhi para a leitura da poesia de
Gullar: como vimos na resposta, o poeta, àquela época, mesmo nos momentos mais fechados à
possibilidade de restabelecer sua vida, esforçava-se sempre por acreditar que aquela
desagradável circunstância fosse transitória, fazendo o que podia (evitando qualquer projeção
afetiva sobre o lugar em que estava) para não se resignar à condição de exilado. Teríamos
então neste detalhe a relação sujeito/exílio a representação daquela disponibilidade para
a vida de Ferreira Gullar, que, cifrada poeticamente, entendo como a manifestação do motivo
da esperança em sua obra: a permanente tensão entre o reconhecimento mais cru da dura
realidade presente e a perspectiva de mudança, contida nele, desse atual estado de coisas,
através de uma iniciativa que só pode partir do esforço do próprio sujeito inserido naquele
contexto.
Grande parte dos poemas de Na vertigem do dia datam dessa época em que o exílio
retirava as últimas forças de um Gullar já algo desiludido em relação aos ideais políticos que o
animavam até então. É certo que essa relativa desilusão acerca da euforia participante da
década de 60, período dos Romances de cordel e da participação de Gullar nos CPCs, antecede
o próprio Na vertigem do dia, aparecendo já em grande parte de Dentro da noite veloz como
podemos ver em um trecho de Rabo de foguete, na parte do livro referente a um período
próximo de 1975, pouco antes de o poeta ir para Buenos Aires e enquanto observava de perto
o drama do socialismo chileno:
Já antes, diante das dificuldades enfrentadas por Allende para fazer avançar o processo
socialista, me perguntara se nós, comunistas brasileiros, devíamos continuar a pagar preço tão
alto para chegar ao poder, uma vez que chegar a ele não significava resolver logo os problemas
do país e sim agravá-los; não significava dar melhores condições de vida ao povo e sim, em vez
disso, a curto prazo pelo menos, empurrar a sociedade para uma luta fratricida de resultado
imprevisível. Agora, eu conhecia o resultado: a derrota. Se é certo que tais constatações não
mudavam minha opinião com respeito ao capitalismo, abalavam minha confiança no caminho
que seguia e reduzia o ânimo de que necessitava para fazer frente à adversidade.
96
Esse resfriamento das convicções anteriores em relação ao engajamento político
perpassa vários poemas de Dentro da noite veloz, como vimos no capítulo anterior, através de
um deslocamento daquele olhar poético presente nos Romances, que praticamente se apaga em
função de seu direcionamento ao drama social brasileiro, usando-o como motivo e garantia de
valor do poema, para um olhar que tratará ainda desse drama, mas agora filtrado pela
perspectiva íntima do sujeito que o observa. Porém, a diferença deste resfriamento para o
percebido em Na vertigem do dia reside no fato de que, nesta obra de 80, Gullar soma à
desilusão relacionada ao engajamento mais direto da fase dos Romances um desengano sobre
96
GULLAR, 1998. p. 199.
a maneira como essa participação política se expressa também em Dentro da noite veloz, ou
seja, através da luta comum. A esperança depositada na possibilidade comunista parece
enfraquecer na proporção inversa em que se agrava o massacre psicológico do exílio sobre um
sujeito já calejado por problemas em todas as esferas de sua vida. Donde a origem de uma
consciência da solidão, observada na análise de “Ao rés-do-chão”, que se reflete no poeta de
Na vertigem do dia e que pode ganhar contornos, em alguns momentos, surpreendentes pela
amargura, como no caso de “Primeiros anos”:
Para uma vida de merda
nasci em 1930
na Rua dos Prazeres
Nas tábuas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror
Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)
E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul
E as tardes sonoras
rolavam claras sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
E do meu quarto
eu ouvia o século XX
farfalhando nas árvores da quinta.
Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.
97
97
GULLAR, 2000. p. 298.
O poema, de tom memorialístico, parece se construir em dois momentos, sendo o
primeiro subdividido em duas partes: a inicial, que ocupa as três primeiras estrofes, funciona
como a construção de uma visão nada idealizada da infância, tendo como introdução o sinal da
amargura de um sujeito quase que ressentido com a desgraça de sua própria história, expressa
na agressiva ironia de ter nascido na “Rua dos Prazeres” para viver uma “vida de merda”. A
perspectiva ao rés-do-chão volta, mas aqui para aproximá-lo não apenas das coisas da terra e
sim dos seres (“baratas formigas carregando espadas/ caranguejeiras”) que, como ele e com
ele em sua infância, rastejavam pelas tábuas do assoalho. O ato de arrastar-se achega então
sujeito e inseto, numa comparação que ultrapassa a semelhança do movimento praticado por
ambos, movimento que por si já seria um forte símbolo para a precariedade da experiência da
vida: para além disso, o aprendizado adquirido dessa convivência parece e veremos que só
parece dar ao poeta a noção, logo no início, do terror e desamparo que o esperam adiante.
Curioso notar a ausência de vírgulas na enumeração dos insetos que o acompanham,
procedimento que confere uma sensação de simultaneidade
98
àquilo que, no texto,
naturalmente, vem em sucessões, e que neste caso específico de Gullar amplia o choque
daquele espanto primeiro, ao formar, descrevendo seus elementos um a um, uma tropa do
horror que “se limita” (aproveitando livremente aqui uma expressão de João Cabral em seu
famoso “Catar feijão”) com o sujeito, se limita porque está próxima, mas também porque está
enclausurada com ele.
Assim, não obstante sua indireta e relativa função pedagógica para o futuro, a
experiência daquele agora é feita de medo, terror e solidão, sensações que o acompanharão até
a fase adulta, expressa na última estrofe e correspondente ao segundo momento a que me
98
De maneira semelhante à realizada por Mário de Andrade tanto em vários de seus poemas, como
ostensivamente em Macunaíma.
referi anteriormente. Voltaremos a essa aproximação entre sujeito e inseto na seqüência desta
análise, a respeito do poema “A alegria”, quando ela adquire uma interessante nuance.
Além dos insetos, o espaço é também significativo na caracterização dessa lição
inicial: as “tábuas velhas do assoalho” que escondem um mundo escuro onde habitam seres
cujo movimento se assemelha ao do sujeito de então e o muro negro do quintal compõem o
cenário de uma casa que serve simultaneamente de abrigo gestatório e prisão: como casca que
ainda o protege do tumulto da vida, o detalhe desse espaço, que preservaria o menino do
turbilhão exterior, ensina-o que o terror existe, encenado então por horrores equivalentes à sua
proporção; porém, paralelamente a isso, o contorno dessa casa é aquilo que também o asfixia,
na medida em que o separa justamente daquele tumulto externo, que poderia ser um perigo
para a criança, mas que marca o movimento da vida, tão perto (fora da casa) e tão distante de
suas possibilidades.
O limite dessa clausura inicial e a promessa do movimento exterior parecem definir a
tensão desse período de descobertas e relativo aprendizado. A segunda parte, ainda sobre o
momento da infância, surge como o contraponto imagético da primeira, potencializando a
sensação de clausura dessa experiência inaugural, ao descrever, na quarta e quinta estrofes, as
cores e os barulhos da vida que acontece fora da casa e aos quais o menino espia sem ter
acesso. A ilustração dessa tensão estaria no movimento da terceira para a quarta estrofe (que,
na minha divisão, marcaria a mudança da primeira para a segunda parte desse primeiro
momento), quando o poeta, diante do asfixiante muro negro do quintal, diz estar “longe longe
do mar/ (longe do amor)”
99
para depois afirmar que o próprio mar, no entanto, “jazia perto/
99
Apesar da abertura superior (o quintal fechado por muros mas sem teto) e da presença das galinhas e dos
girassóis, o eco promovido pela repetição do “longe” cria um interessante efeito de vazio espacial, semelhante
àquele produzido, por exemplo, em uma sala fechada e sem móveis, que no poema aumenta a sensação de
detrás de mirantes e palmeiras/ embrulhado em seu barulho azul”. Assim, apesar da
proximidade concreta do mar, do vento, do movimento da tarde que rola por cima dos
telhados, o ingresso no dinamismo dessa experiência é ainda distante daquele que apenas ouve
“o século XX/ farfalhando nas árvores da quinta”.
Muito afeito a uma percepção sonora da vida, é interessante notar como Ferreira Gullar
constrói muito musicalmente o espaço exterior à casa, definindo-o, de um modo geral, a partir
dos sons que produz, fazendo do discurso quase uma onomatopéia para o que descreve: o
movimento grave e sereno do mar “embrulhado em seu barulho azul”, expresso pela
alternância das assonâncias em /a/ e /u/, ora como sílabas fortes, ora como fracas, presentes
nas principais palavras do verso, além da bela sensação de ensimesmamento desse movimento
repetitivo das ondas promovida pela semelhança gráfica e sonora entre as palavras
“embrulhado” e “barulho”, que parece estar de fato contido no embrulho musical da palavra
anterior. Também as tardes parecem ter a sua luminosidade representada a partir de uma
constância de vogais abertas, sobretudo nas sílabas acentuadas”, nas principais palavras que a
definem: “tardes sonoras”, “claras”, “rolavam”, “telhados”. Tardes que se misturam ao vento,
ao século XX, e balançam, “farfalham” (numa outra palavra que parece ter uma dimensão
quase onomatopaica), as árvores daquele espaço.
Pois bem, a última estrofe, correspondente ao segundo momento, trata então da saída
desse reduzido berço inicial para o ingresso, poderíamos dizer, na vida adulta. Numa sucessão
de acidentes sobre os quais o poeta não tem nenhum controle (“(...) me suspenderam pela gola/
me esfregaram na lama/ me chutaram os colhões/ e me soltaram zonzo/ em plena capital do
clausura, de limite, representada pelo “muro negro”, e que se estende à definição de um vazio também
sentimental (“longe do amor”), advindo da ausência de uma ressonância íntima do sujeito nas outras coisas que
compõem o espaço do quintal, o que justificaria assim o efeito do eco, não obstante sua improbabilidade física.
país”) e aqui a ausência de vírgulas, ao invés de representar uma simultaneidade, parece
conferir uma certa intensidade gradativa a essa sucessão, na medida em que dá uma cadência
vertiginosa à leitura do trecho , este momento parece mostrar que a experiência da infância
e sua lição de horror se remetem unicamente à tentativa de entendimento daquele tempo
específico: a vida que acontece fora da casa, e na qual o poeta será lançado de maneira bruta, é
igualmente espantosa e agressiva, mas a lição do desamparo anterior não surte o menor efeito
na experiência do terror atual de um sujeito que se vê desarmado, ou despreparado, para reagir
àquelas agressões. Ou seja, o abandono passado só se tornará lição quando pensado
retrospectivamente por aquele que já viveu também o desamparo da vida adulta, e não como
antecipação pedagógica reconhecida naquele remoto presente de um terror que viria depois.
No fim, a lição que aparenta ficar desses “primeiros anos”, para esse sujeito que agora olha
para trás, seria a constatação de um desamparo inerente a própria existência, em qualquer uma
de suas etapas.
Apesar de nesse poema a solidão se configurar como o reconhecimento amargurado de
um permanente abandono ontológico, a aquisição dessa consciência que na verdade nem é
nova, na medida em que aparece já em A luta corporal, mas lá relacionada à indiferença do
Tempo metafísico que a tudo consome impiedosamente, a exemplo da “distância entre as
coisas”, do poema “As pêras”, como vimos anteriormente levará o poeta a reflexões menos
sombrias, mas igualmente graves. A parte que se segue trata justamente disso.
A necessidade da esperança a partir de uma consciência da solidão
O poema “A alegria” nos dá uma boa idéia de como a solidão, pensada como uma
propriedade da condição humana, pode transcender o horror desse desamparo existencial sem
ignorá-lo, modificando inclusive a perspectiva de futuro depositada na luta comum de Dentro
da noite veloz, ao entendê-la agora como uma necessidade básica à manutenção da própria
vida. Transcrevo o poema:
A alegria
O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).
Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta.
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.
100
Formalmente simples, o poema se subdivide em três momentos, obedecendo à
organização de suas estrofes: cada uma delas corresponderá a uma etapa específica de um
100
GULLAR, 2000. p. 295.
raciocínio silogístico sobre o sofrimento, ao contrário do que o título parece anunciar. Seria até
possível dizer, com o perdão da simplificação, que Gullar apresenta gravemente o problema na
primeira estrofe, desenvolve sua severa sentença inicial na segunda, para chegar, na terceira, a
uma espécie de conclusão que justifica o desenvolvimento anterior e aponta para uma resposta
ao problema central. No entanto, é importante perceber que o poema, por mais que pareça
corresponder a essa estruturação tão básica do pensamento científico, sustenta a tensão entre o
poeta reflexivo, conceituador, que analisa a partir de uma organização um tanto rigorosa de
raciocínio, e o poeta mais propriamente lírico, que trata do drama em questão sob um viés
emocionado, intimamente próximo do objeto sobre o qual fala, às vezes, irmanado dele. Essa
“coexistência de dois sujeitos poéticos”
101
é vista por Alcides Villaça como o princípio
estruturador de Poema sujo, mas é preciso reconhecer que a “visão dupla”, nele, possui um
potencial sinérgico muito maior do que em “A alegria”; aqui, o pendor ao olhar analítico se
faz mais evidente, apesar de guardar, talvez na aspereza do próprio discurso, a dor que o
objeto de análise o sofrimento traz consigo e que motiva a reflexão.
Em função dessa tendência, categorizando um pouco, apesar do risco de acabar
atribuindo um olhar demasiado cientificista ao poema, poderíamos até nomear bem
sinteticamente cada uma de suas etapas, a fim de visualizarmos melhor o desenvolvimento
desse raciocínio e encaminharmos a discussão mais detalhada de cada parte, considerando a
divisão estrófica: na primeira, teríamos uma negação total do sofrimento; na segunda, a
reflexão e um desdobramento explicativo da negação anterior; e, na terceira, uma resposta ao
problema inicial; todas elas, porém, orientadas por um mesmo fio condutor, o de que a dor não
diferencia os seres, antes os universaliza. Essa direção da análise que o poeta opera ganha
101
VILLAÇA, 1984. p. 155.
também clarezas diferentes em cada momento, obedecendo a uma gradação de intensidade na
iluminação do problema central, sendo mais velado no início, para depois ser discutido e, por
fim, respondido.
Vejamos agora cada etapa isoladamente. Referindo-se o tempo todo a uma segunda
pessoa, o poema se constrói sob aquele conhecido recurso da dramatização da própria voz
poética. Assim, a primeira parte funciona como um tipo de “tapa na cara” do que seria um
interlocutor talvez autocomplacente da própria dor, seja ele o poeta, o leitor ou qualquer outro
ser que reflita sobre ela, na medida em que este é, justamente, um assunto de ordem universal.
O poeta, de imediato, ataca incisivamente um lugar-comum relacionado ao sofrimento até
mesmo muito recorrente na história de nossa poesia lírica, desde antes, inclusive, de sua
exacerbação romântica na sentença que ocupa seus dois primeiros versos. É como se
dissesse: sofrer não é bom, não se justifica e tampouco é sinal de distinção prestigiosa; não
confere nenhuma aura, “não acende um halo” sobre a cabeça do penitente resignado, o que
talvez nos leve agora a uma dimensão mística daquela negação principal, se pensarmos na
coroa luminosa carregada pelos santos que, invariavelmente, alcançam essa distinção
transcendental após uma história de humilíssima penação. Para o poeta, o sofrimento é incapaz
da menor luminosidade e não chega nem perto do lampejo que a ma nifestação mais sutil ou
até mesmo ilusória “de uma alegria” pudesse gerar. É importante perceber a maneira como
Gullar continua trabalhando com o mesmo repertório imagético desde os tempos de A luta
corporal, na polarização das figuras de luz e sombra, mas que aqui ganha um efeito diferente
das obras anteriores. Se, no geral, essa polarização aparece como a representação de um
projeto poético que, em uma definição rasteira, esforça-se por iluminar aquilo que está oculto
na “prosa” da vida, em “A alegria” esse jogo parece ganhar uma outra nuance, acrescentando
às mesmas imagens uma nova esfera: a sombra continua atribuída ao mistério que a matéria da
vida é capaz de guardar, na figura da “carne escura”, e da qual a poesia retira sua luz; mas essa
iluminação, aqui, restringe ao plano da dor um poder que, se existe, funciona apenas como
motivo poético, sem ter jamais qualquer alcance pragmático. Mais: a força iluminadora da dor
no campo do poema se justificaria somente se o seu reconhecimento motivasse também a sua
própria negação, que será o resultado atingido pela terceira parte, a que chegaremos daqui a
pouco.
Caminhemos com calma. Apresentado o problema (uma ampla negação do sofrimento)
na primeira estrofe, o poeta avança para o seu desenvolvimento, esclarecendo, na segunda, o
desdobramento da incisiva sentença anterior: a dor, ao invés de sinalizar prestigiosamente
aquele que sofre, é na verdade um elemento unificador de tudo que vive. O sofrimento iguala a
todos e nivela qualquer experiência a um mesmo patamar: a dor é incomparável e por isso
equivalente; cada ser só conhece e pode medir a que lhe diz respeito, o que fecha sempre a
compreensão ao drama alheio. Nesse sentido, pelo poder de ensimesmar aquilo que sofre e por
ser próprio da experiência da vida, o sofrimento isola ao mesmo tempo em que iguala os seres,
sejam eles, na ilustração do poema, o homem, um cachorro ferido, um inseto envenenado ou
ainda um gato e vale aqui ressaltar a violência brutal da imagem que, “sem ao menos
poder morrer”, arrasta-se pela sarjeta após ter a espinha quebrada a pauladas.
É interessante perceber como o poeta, nessa segunda estrofe, movimenta o
desdobramento do problema central. Primeiro, como acabamos de ver, ele generaliza a
experiência do sofrimento a todos os seres: homem, cachorro, inseto, todos sofrem; logo, a dor
é comum. Ainda assim, ela poderia ter alguma força diferenciadora, supondo uma escala
valorativa que medisse e comparasse sua intensidade em cada ser que a experimenta. A essa
suposta alternativa de entendimento, o poeta lança uma grande pergunta que parece
desautorizá-la: o sofrimento pode ser comparado? Existe algum critério que separe e
qualifique como maior ou menor a dor do sujeito daquela vivida, por exemplo, pelo já referido
gato em sua miserável agonia? Note-se que não há referência à qualidade da dor nessa
pergunta comparativa; não há porque ela não importa, como se o poeta implicitamente já
respondesse essa pergunta, mesmo que a resposta de fato só venha na terceira estrofe, que
começa com uma afirmação tão categórica quanto a da sentença inicial: “A justiça é moral, a
injustiça/ não.” Repetindo o que está dito acima: a dor é incomparável e, por isso, equivalente,
donde essa última afirmação: a justiça avalia, põe a experiência na balança, condena uns e
absolve outros; já a injustiça, como um sinônimo de sofrimento, ou daquilo que o provoca,
generaliza, nivela por baixo, igualando o sujeito a “ratos e baratas”. No entanto, se até agora
somente a dor foi vista como uma espécie de paradigma universal, o poema apresenta, em seu
final, um outro elemento comum àquilo que vive, mas que funciona como resposta ao primeiro
padrão: se o sofrimento é geral, pois inerente à própria experiência, a vontade de superá-lo
também o é e possui sua mesma força, até para aqueles que vivem sob as condições mais
adversas. Reconhecer a dor de existir é também se revoltar permanentemente contra essa
mesma condição; isto é, a experiência da miséria presente trará consigo uma necessária
perspectiva futura de sua superação: o desejo de estar contente.
Temos então no primeiro poema escrito após os coletados para a publicação de Dentro
da noite veloz, mesmo que de um jeito simples e genérico, a maneira como vejo o motivo da
esperança se manifestar não apenas em Na vertigem do dia, mas nos quatro livros
(considerando ainda Barulhos e Muitas vozes) que compõem a fase madura da poesia de
Gullar, e que se parece muito com o entendimento que Ernst Bloch faz desse princípio em sua
obra maior, à qual já fizemos referência na introdução deste trabalho: reconhecendo a
precariedade da vida no momento atual, o homem nega essa mesma condição precária e lança
seu olhar para um futuro que guardaria qualquer melhora, mas que depende de um desejo e de
uma elaboração no agora.
Assim, apesar da relativa simplicidade analítica de sua formulação, “A alegria” traz
aquela perspectiva sincronizadora de duas consciências que caracteriza a poesia madura de
Gullar, já observada em Dentro da noite veloz (e que ganha seu ponto alto em Poema sujo): a
partir do reconhecimento da complexidade da existência e da dura realidade humana
rasteiramente cifradas no poema pela questão do sofrimento nasce uma equivalente
afirmação da própria vida, que em Na vertigem do dia alcança a dimensão de necessidade
ontológica. Vimos no poema que assim como sofrer é inerente à experiência vital, a
expectativa de superar a sua dor também o é; mas se em “A alegria” essa afirmação nascida de
um olhar cru sobre a realidade ainda se realiza de uma maneira um tanto vaga, não obstante a
sua força, o poema “Digo sim” desdobra essa discussão mais detidamente. Vamos a ele:
Digo sim
Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos do meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperanças entre pulmões
e nuvens
Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.
A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
em meio à violência e a solidão dizendo
sim
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
digo sim
102
Afirmativo por excelência, o título pode enganar o leitor que a partir dele espere um
poema demasiado otimista. Pelo contrário, “Digo sim” é construído, na verdade, em cima de
um olhar pouco idealizado da vida, através da consideração reflexiva de seus contrastes, da
qual sairá justamente seu esforço de afirmação. Aquela perspectiva materialista, ao rés-do-
chão, continua, como sempre, a orientar o olhar do poeta sobre o mundo, e agora para além
da constatação de uma solidão existencial, mas ainda a considerando define, de um jeito
muito claro, a já anteriormente referida disponibilidade do sujeito para a experiência de existir
em toda a sua complexidade.
Vejamos como isso se dá no texto. De maneira estruturalmente menos rigorosa do que
em “A alegria”, “Digo sim” também pode ser analiticamente dividido em momentos distintos,
embora aqui em apenas dois, que não obedecem inicialmente à divisão de suas estrofes, de
modo que a parte inicial ocuparia as duas primeiras sem que a separação entre elas tenha
102
GULLAR, 2000. p. 299.
alguma importância mais significativa para o conjunto. Pois bem, o poema começa então por
uma espécie de relativização até mesmo um tanto irônica da afirmação mais ingênua que o
título talvez trouxesse, rompendo inclusive, seria possível dizer, assim como faz em “A
alegria”, com alguns estereótipos já muito arraigados em um imaginário do senso comum, mas
agora relacionados a olhares afirmativos sobre a vida (note-se que o verbo no futuro do
pretérito, iniciando as duas estrofes, sinaliza para atitudes que o poeta “poderia” tomar em
relação ao mundo, mas que, mesmo que a negação de fato só venha ao final, não toma). Em
suma, Gullar vai lançando uma série de alternativas, gerais e localizadas, de compreensão da
vida presente, todas elas de um otimismo exagerado e cego, já que apenas consideram seus
pontos positivos, para, no fim da segunda estrofe, negá-las e caminhar em direção a um outro
tipo de juízo, que virá no que vejo como o segundo momento do poema.
Dessa forma, a primeira alternativa (“A vida é bela, e muito”) traduz uma possibilidade
mais generalizante de entendimento e parece se associar bem tipicamente ao senso comum,
assim como alguns clichês tão fáceis de se ouvir no cotidiano, tais como “a vida é boa”, “está
tudo bom”, “não há do que reclamar”, “a vida é uma festa”. A segunda direciona-se à questão
política mais localizada e remonta, inclusive poeticamente, a preocupações anteriores de
Gullar, através da sugestão de um olhar apaixonado, benevo lente e até mesmo delicado sobre
o andamento da revolução tanto no que diz respeito à questão rural (talvez da reforma agrária),
na imagem dos “pés de flor”, quanto à referente ao centro urbano (quase certamente em
relação à luta contra a ditadura dentro das cidades), nos “pés de borracha”, como se estivesse a
fazer uma revisão do próprio exagero reducionista estético e ideológico de alguns
momentos das suas duas últimas obras (e seria o caso de dizer até respectivamente, se as
relacionarmos à disposição das imagens acima), nos Romances de cordel e em trechos de
Dentro da noite veloz, considerando que Poema sujo (1976) não tinha sido ainda publicado
quando da redação de “Digo sim”, que data de 1975. Já a terceira alternativa diz respeito a um
entusiasmo pessoal, também hiperbólico, ao aproximar o coração do sujeito de um sol
irradiador de esperanças, situado “entre pulmões e nuvens”. Embora essa imagem sustente,
como as outras, a possibilidade simplista de uma visão da vida, ela em si mesma não é tão
simples. A analogia de base é imediatamente compreendida: coração e sol são similares pelo
poder irradiador, sendo que o primeiro se localiza entre pulmões e o segundo, entre nuvens.
Até aí tudo bem; o problema é que a imagem não se configura de maneira tão simétrica no
poema. Metaforicamente, tudo se mistura em uma coisa só e a dupla localização acaba
adquirindo nova significação: traduzindo sol por coração, é este que se situa nesse espaço ao
mesmo tempo material e etéreo, uma vez que é a esperança o objeto de sua irradiação, objeto
este pegado intimamente à matéria, pulsando com ela, mas que ultrapassando-a se
projeta para lugares outros, para adiante dela. Desse jeito, teríamos no detalhe dessa imagem
uma representação de como o motivo da esperança aparece de um modo geral na obra: uma
perspectiva de futuro colada às possibilidades do presente, sempre de acordo com um olhar
materialista. Mas se é assim, estaria o poeta rompendo esta idéia, já que sabemos de antemão
que ao final dessa primeira parte do poema ele irá negar todas as alternativas de entendimento
da vida nela levantadas? Na verdade, a respeito dessa terceira alternativa, o que ele parece
negar não chega nem a ser a maneira como entende ou entendemos a esperança em si,
mas sim o caráter hiperbólico de sua imagem: a aproximação do coração ao sol exagera a
relação do sujeito com seu olhar projecional, quase como se o colocasse tão-somente no
imaterial espaço do sonho acordado (para dialogarmos com um conceito de Ernst Bloch),
simplificando assim tanto a vida quanto aquela idéia de esperança em si mesma. Voltaremos a
essa questão logo abaixo, quando do comentário sobre a negação e relativização geral que o
poeta fará dessas hipóteses iniciais demasiado positivas.
É digno de nota o modo como na primeira estrofe esses três olhares afirmativos que o
sujeito lança se organizam sobre um certo movimento: partindo da alternativa reflexiva mais
genérica sobre a vida, o sujeito afunila a perspectiva hipotética para o drama social, para,
finalmente, descer ao campo da intimidade. Cumpre lembrar que esse deslocamento de
perspectivas ou mesmo a sua interpenetração, do geral para o local, do alto para o baixo, do
coletivo para o individual, do clichê para a intimidade, do cosmos para o corpo, molda a
poética mais madura de Gullar em suas várias esferas, tanto no que diz respeito à freqüente
localização espaciotemporal operada em vários poemas (e pudemos observá-la aqui em “Ao
rés-do-chão”), quanto no tratamento que o poeta passa a dar às questões de ordem
sociopolítica a partir de Dentro da noite veloz, em relação àquele olhar sincronizador
percebido por Alcides Villaça.
Uma coisa está na outra, diríamos na esteira do crítico, e a sucessão descendente das
três alternativas iniciais acaba se desfazendo na segunda estrofe, ao levantar uma última
hipótese que parece concentrá-las em uma só imagem, se considerarmos que “meu povo”, ao
trazer sua natural idéia de coletividade, inclui também o “eu” com quem se identifica pelo
pronome possessivo e cuja experiência, composta de singularidades, é definida como uma
festa, muito próxima então daquela outra expressão comum mais genérica apresentada na
alternativa introdutória, a da beleza da vida. Tão ingênua e geral quanto esta, a imagem da
festa continua a considerar somente os aspectos positivos da experiência de existir, fazendo
pouca diferença das outras hipóteses até agora lançadas, não obstante as concentre.
Diferentemente da leitura feita dessa imagem em “Ao rés-do-chão”, a festa aqui, menos que
um paroxismo de viés político, parece carregar somente a idéia de uma comemoração popular,
o carnaval, que ocupa o imaginário do senso comum temporariamente, mas com muita
intensidade, como se os seus quatro dias de duração se reservassem apenas à celebração da
felicidade.
Finalmente, fechando o que seria o primeiro momento desse seu canto de afirmação, o
poeta desloca seu último verso para o centro da página, conferindo-lhe certa ênfase, e introduz
a negação que relativiza todas essas alternativas reflexivas: “Mas não. O poeta mente”. Mente
porque se considerasse qualquer uma dessas hipóteses isoladas ou mesmo em conjunto,
uma vez que todas têm por base a mesma linha de positividade estaria simplificando a
experiência da vida por ignorar a parcela de dor e sofrimento que, sendo-lhe intrínseca, vide
“A alegria”, necessariamente a acompanha. Nesse sentido, o poeta não nega propriamente suas
hipóteses anteriores de leitura, mas sim o seu viés reducionista, que fecha a reflexão à
complexidade da vida, ao considerar apenas uma de suas várias faces. A idéia de esperança
vista na terceira alternativa não chega então a ser recusada, já que permanece na segunda parte
do poema e em vários outros momentos de Na vertigem do dia, mas sim o seu exagero
simplificador, que acaba lhe conferindo a cara de um otimismo cego e alienante.
Chegamos, enfim, ao segundo momento, em sua longa terceira estrofe. Recusadas as
simplificações anteriores, o sujeito passa a tratar daquilo que entende como propriamente a
vida: uma complexa mistura de contrastes que se elabora a partir do esforço humano e que,
por isso, depende exclusivamente dele. Seus quatro versos iniciais são capazes de resumir, em
uma bela imagem, todo o resto que se segue: “A vida nós a amassamos em sangue/ e samba/
enquanto gira inteira a no ite/ sobre a pátria desigual”. Reconhecemos duas operações paralelas
e simultâneas: uma referente ao homem, outra, ao mundo; uma íntima, outra externa, mas que
se marcam mutuamente. Resgatando um verso de A luta corporal, o homem, fruto que é de
seu “duro trabalho”
103
, admite o contraste próprio dessa construção pessoal, que se dá num
tempo e espaço igualmente desiguais e complexos: mistura de alegria e tristeza, a vida “nós a
fazemos nossa” e por isso afirmá-la se torna uma necessidade, na medida em que se furtar a
essa afirmação seria negar não apenas os seus contrastes, mas sim a própria experiência. O
samba retoma a imagem da festa (neste caso, o carnaval), só que agora acompanhada de um
elemento, o sangue, que, não obstante dê uma dimensão orgânica e humana para a celebração,
relativiza aquela idéia de comemoração pura da alegria, uma vez que pode representar também
a parcela de dor ignorada anteriormente. Pronunciará o poeta em seus últimos versos “não
digo que a vida é bela/ tampouco me nego a ela:/ digo sim”. Afirmar então se aproxima de
resistir a uma postura entreguista e até absurda dentro do entendimento que o poema constrói:
se a vida é feita pelo homem, negá-la é o mesmo que desistir, já que não parece haver nada
que interceda por ele.
Se buscarmos o que há de metafísico na visão de mundo de Gullar, voltaremos à
concepção do tempo em A luta corporal como algo que está fora dos seres e que marca a sua
destruição; sendo assim, mesmo que a ótica sobre esse elemento mude ao longo de sua poesia,
como já pontuamos algumas vezes, poderíamos pensar que a recusa a um esforço
transformador por parte do homem inverteria o erro do exagero positivo da primeira parte de
“Digo sim”, já que desconsideraria a parcela de beleza existente na elaboração daquela
trajetória do desgaste que então, em sua obra de estréia, definia predominantemente a vida,
abandonando-a apenas ao seu inerente trabalho de degradação.
103
GULLAR, 2000. p. 23.
Voltando ao poema, o que está entre a citação de seus últimos versos e as descritas
inicialmente no parágrafo anterior são imagens negativas e positivas que ilustram aquela
complexidade e transitam pelas variadas esferas que a compõem, todas elas permeadas pela
repetição da afirmação (“dizendo sim”): fome, violência e solidão, num plano mais amplo e
negativo; “filho perdido/ neste vasto continente”, “Vianinha ferido”, e “nosso irmão caído”,
numa esfera ainda negativa, mas agora pessoal, já que se referem a elementos da biografia do
poeta. Aludimos antes, neste capítulo, que por esta época, Paulo, filho mais velho de Gullar,
começando a manifestar mais gravemente os sintomas de sua esquizofrenia, foge de casa e
fica desaparecido por alguns meses; já Vianinha é Oduvaldo Vianna Filho, importante ator e
dramaturgo da década de 60, amigo íntimo de Gullar, que se mata enquanto o poeta estava
ainda exilado; “nosso irmão caído” parece dizer respeito à dor da experiência de ver parentes,
conhecidos e amigos desaparecerem ou serem assassinados pela ditadura militar, sofrida na
pele pelo próprio Gullar, que escreve o poema ainda no exílio. Por outro lado, pela
positividade, o canto também existe e se justifica pelo “espanto da beleza”, correspondente
àquela esfera mais genérica, sendo possível inclusive associar a imagem ao que Gullar entende
como a gênese do poema (o belo estético que nasce do espanto em relação ao mundo); e, num
nível íntimo, “pela flama de Tereza”, se considerarmos que este é o nome da esposa de Gullar,
morta em 1993 apesar de também poder se referir à mulher num sentido geral, como se vê,
por exemplo, em várias letras de samba, para pegarmos uma manifestação já citada no poema,
uma vez que a Tereza de Gullar se grafava com “Th” (Thereza Aragão).
Por fim, o poeta lança duas últimas imagens que por si, e cada uma isoladamente,
representam os contrastes de onde sai sua celebração: o amor e o futuro. Pelo que o primeiro
“dá” e pelo que “nega” e “cega”, ou seja, pela multiplicidade de experiências contidas nessa
ação; e pelo que o segundo, o porvir, é capaz de concentrar abstratamente: a variedade de
possibilidades dependentes de um trabalho atual; o sujeito termina o seu canto com a mesma
expressão que lhe dá título, mas que agora já não possui o otimismo entusiasmado e cego que
talvez lhe fosse atribuído inicialmente. Vendo a vida como essa mistura complexa de
desigualdades em permanente construção pelo próprio homem, compete ao poeta reconhecer o
seu papel, isto é, a parte que lhe cabe no esforço de modificação da própria realidade, dentro
desse constante processo de elaboração.
A expectativa e o trabalho do poeta no desejo de afirmação da vida
Praticamente fechando Na vertigem do dia, seu penúltimo texto, “Poema obsceno”
104
,
parece ir justamente nessa direção, como se continuasse a reflexão realizada em “Digo sim”.
Se a vida é aquela mistura de sangue e samba e se alguns já se encarregam da necessária
celebração festiva (“Façam a festa/ cantem e dancem/ (...) Bethânia Martinho/ Clementina/
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro/ gente de Vila Isabel e Madureira/ todos/ façam/ a
nossa festa”), o poeta, apesar de fazer parte dessa festa, vide o possessivo “nossa”, se imbui da
responsabilidade, igualmente necessária, de cantar o outro lado. As imagens são agressivas:
seu canto é “duro/ (...)/ sujo/ como a miséria brasileira// (...) Obsceno/ como o salário de um
trabalhador aposentado”. Confiante na força de seu ofício, o sujeito, como quem soca um
pilão, constrói o “poema-murro” que não obstante o pouco alcance popular e especializado
(já que “não toca no rádio” nem “entrará nas antologias oficiais”, respectivamente), se
comparado à festa anterior nasce do povo e representa não apenas a sua parcela de dor
104
GULLAR, 2000. p. 338.
que aquela festa talvez esconda ou, pelo menos, não incorpore mas também a expectativa
de superá-la. Assim como os insetos que “de dentro dos esgotos/ espiam o sol” e desejam
“estar contentes”
105
, o poeta e seu canto afirmativo em sua aspereza representam aqueles que
“habitam o lado escuro do país/ e espreitam”. Como se confirmasse o sentido geral de
“Digo sim”, a afirmação retirada de “Poema obsceno” funciona como uma resistência ao
estado de coisas que o canto poético representará com aspirações a modificá-lo, o que atesta a
crença generalizada de Gullar, apesar das intensidades diferentes que essa consciência ganhará
em vários momentos de sua obra, na capacidade modificadora da arte (e, no seu caso
específico, da poesia) como veículo de intervenção na realidade.
Antes de avançarmos, a propósito ainda dos dois últimos versos de “Poema obsceno”,
o verbo espreitar, de acordo com o Dicionário Houaiss de língua portuguesa, não obstante
seus significados mais imediatos (espiar, observar), que inclusive nos serviram à leitura do
poema, pode também ser entendido como aguardar ou mesmo esperar, abrindo a possibilidade
de uma outra interpretação que, na verdade, colabora com o sentido anterior: além de observar
a partir de um ponto específico o que acontece fora dele (como no caso dos insetos), num
interessante e recorrente, vale ressaltar jogo de luz e sombra (a sombra do lado de onde
se observa, e a luz do lado observado), o poema, sujeito dessa ação, juntamente com os que
“habitam o lado escuro do país”, parece ficar na expectativa de participar daquele espaço de
luz enquanto o vê distante, o que acaba por reforçar e compor a primeira acepção do verbo
espiar, isto é, a de ver sem ser visto, mas aguardando o momento de se dar a ver. Assim, a
idéia da espreita, como aparece nesses dois últimos versos, se estende para o poema seguinte,
105
GULLAR, 2000. p. 295. Imagens retiradas, como já vimos, do final de “A alegria”.
intitulado justamente “A espera”, e fecha Na vertigem do dia de maneira significativa para a
compreensão do motivo que vimos comentando. Vejamos:
A espera
Um grave acontecimento está sendo esperado por todos
Os banqueiros os capitães de indústria os fazendeiros
ricos dormem mal. O ministro
da Guerra janta sobressaltado,
a pistola em cima da mesa.
Ninguém sabe de que forma desta vez a necessidade
se manifestará:
se como
um furacão ou um maremoto
se descerá dos morros ou subirá dos vales
se manará dos subúrbios com a fúria dos rios poluídos
Ninguém sabe.
Mas qualquer sopro num ramo
o anuncia
Um grave acontecimento
está sendo esperado
e nem Deus e nem a polícia
poderiam evitá-lo.
106
Sinônimo de espreita e de esperança, a espera do título, para o leitor que acompanha o
trajeto até agora percorrido, parece anunciar aquela expectativa de um futuro que depende da
ação presente. Porém, curiosamente, este último poema de Na vertigem do dia, em uma
primeira leitura, talvez dê uma sensação inversa àquele sentido de esperança já tantas vezes
assinalado, indo na contramão do que vínhamos comentando: o “grave acontecimento
esperado por todos”, ao qual o poema se refere repetidamente, não aparenta ser motivado por
ninguém. De um jeito misterioso e um tanto apocalíptico, o poeta nos mostra que algo está
para acontecer, algo que subverterá o estado atual de coisas, mas sem indicar seu responsável.
O tom é de profecia e o poema, como se deslocasse seu discurso para um plano da inteira
106
GULLAR, 2000. p. 339.
abstração, levando ao limite sua perspectiva de futuro, pode estranhar ao leitor mais
acostumado ao universo “ao rés-do-chão” de Gullar. No entanto, em uma leitura mais
cuidadosa, a consideração de alguns detalhes pode matizar essa impressão inicial. Atentemos,
pois, para dois deles, mais fortes: primeiro, é preciso relativizar esses “todos” que esperam.
Segundo, é preciso observar que este acontecimento, apesar de não se atribuir a ninguém
especificamente, nasce de uma “necessidade”.
Para entendê-los melhor, convém avançarmos com calma, pensando sobre a estrutura
do poema. Dividido em cinco partes, o texto começa e termina da mesma forma: o título se
desdobra na sentencial informação, que ocupa todo o primeiro verso (e que será reiterada, com
acréscimos, ao final), de que algo importante está para acontecer, algo que sustenta uma
curiosa tensão, já que é de conhecimento geral (pelo fato de ser esperado por todos), sem que
se saiba, porém, quando, como ou mesmo o que é que está por vir; somente suas qualidades
são conhecidas: é “grave” e inevitável, pois “nem Deus e nem a polícia” seriam capazes de
detê--lo”. Várias outras tensões aparecerão ao longo do poema e uma delas nascerá justamente
dessa tensão anterior: apesar de ser emoldurado por um aviso de força brutal mas indefinido,
que transpassaria qualquer espécie de barreira, seja ela física ou metafísica, o poema tem como
miolo detalhes curiosos que talvez desmistifiquem esse anúncio de proporções iniciais um
tanto proféticas (e, por isso, distantes do materialismo que sustenta a visão de mundo de
Gullar), aproximando-o do concreto da vida ao insinuar algumas definições para o mistério
que o sobrepaira.
Para começar, reforçando a tensão entre as extremidades e o meio do poema, há uma
ambigüidade na expressão “esperado por todos”, que parece introduzir o primeiro detalhe: ao
mesmo tempo em que a expressão pode simplesmente significar que algo de conhecimento
público está sendo aguardado, sem juízo de valor por parte de quem espera, ela pode significar
também que alguns desses que esperam o fazem porque desejam, anseiam o grave
acontecimento, enquanto que outros o temem, também por saberem que é certa a sua chegada.
Assim, o primeiro desses detalhes estaria contido na segunda estrofe e relativizaria a
generalização que o “todos” confere ao aguardo: de fato, a expectativa para esse obscuro
porvir é geral; porém, a um grupo específico de poucas pessoas, a espera em questão causa
algum mal-estar: banqueiros, capitães de indústria e fazendeiros ricos perdem o sono,
enquanto o ministro da Guerra janta num estado de alerta permanente, com a arma ao alcance
das mãos. Sobre isso, alguns elementos da estrutura dessa estrofe chamam a atenção: primeiro,
a falta de vírgulas para arrolar a série inicial de possíveis melindrados, reunindo em um
subgrupo os componentes do que seria uma dominância econômica (banqueiros, industriais e
fazendeiros), e, por isso, isolados parcialmente do “ministro da Guerra”, uma vez que a
dominância que lhe cabe seria de ordem política (vale lembrar que o poema data de 1980, ou
seja, escrito ainda sob a égide da ditadura militar). Mas o isolamento é apenas parcial, diz
respeito a setores de uma mesma situação estabelecida, e aqui outro elemento estrutural
colabora com a interpretação: inteiramente margeada à esquerda, como tradicionalmente são
margeados os poemas, a segunda estrofe traria então o grande grupo daqueles que representam
a ordem que se sente ameaçada pela gravidade do que virá e o seu caos decorrente. Todos
esperam, mas alguns poucos, nessa espera, se apavoram, o que nos faz supor o outro lado da
moeda, o daqueles que habitam o “lado escuro do país”, para dialogar com o poema anterior,
sofrem a ação do grupo dominante e, por isso, desejam o grave acontecimento e o espreitam.
Dessa forma, se a segunda estrofe insinua como e quem espera entre o “todos”
generalizante, a terceira participa ainda da tensão entre miolo e extremidades, pois acaba
conferindo alguma cara ao próprio acontecimento (mesmo que sustente o mistério de sua
indefinição, pelo fato de ninguém ser capaz de prever sua manifestação), além de criar
também uma nova tensão, agora interna ao próprio miolo: ao alternar-se entre versos longos e
curtos, alinhados à esquerda e recuados ao centro, a terceira estrofe, que não mais fala de
quem espera e sim do que se espera, parece representar justamente a desarticulação da
estrutura anterior, além de trazer à baila a idéia da “necessidade”, que, na verdade, ganha a
condição de sinônimo para o acontecimento, ao ser introduzida sem maiores apresentações ou
demonstrações de relação, como se já fosse natural associá-los. Aquilo que subverterá a ordem
estabelecida nascerá de uma necessidade de mudança dessa mesma ordem, num estado limite
de saturação o que justificaria a força com que se manifestará a mudança.
O que vem depois, ainda na terceira estrofe, ilustra justamente a dúvida sobre a
aparição do que se espera, num interessante novo jogo de alternâncias, que acabam por defini-
lo de algum modo: entre o exagero de imagens como a do furacão ou do maremoto e a
realidade de imagens como a dos morros, dos vales, dos subúrbios e dos rios poluídos, o poeta
vai dando um corpo tenso para o acontecimento, que guarda ainda a dimensão um tanto mítica
que talvez emane de uma primeira leitura e daquele tom profético, mas que também pega o
acontecimento e o cola ao chão, inserindo a interpretação, inclusive, em uma perspectiva
histórica. Corre-se o risco, agora, de associar o objeto de espera diretamente à revolução, se
considerarmos a data do poema (1980) e o contexto da época: o cansaço generalizado da
ditadura militar e o início da abertura política (o que talvez corresponda à inevitabilidade
conferida ao acontecimento). É preciso, porém, tomar cuidado, a fim de que não se retire do
poema essa outra importante tensão entre uma dimensão utópica, exagerada e talvez absurda, e
outra real, de uma necessidade empírica e imediata, fundamental para a composição do clima
de tensão de todo o poema, clima que pode ser entendido, por sua vez, como a mais precisa
definição sobre esse misterioso acontecimento, que ninguém sabe como se manifestará, mas
que se pode pressentir nas coisas mais singelas (como no sopro de vento que balança o ramo,
da quinta estrofe), dada a sua gravidade. De qualquer forma, tanto num plano geral (da
condição humana), quanto num plano específico bem evidente (da situação sócio-política
brasileira no final da década de 1970), alguma mudança de assombrosas proporções, originada
de uma igualmente grave necessidade, está para acontecer e a espera parece não tardar muito,
tornando mais próxima a abstração depositada sobre um porvir melhor de um presente real.
Antes que fechemos este capítulo (e praticamente a dissertação), cabe comentar que Na
vertigem do dia é o livro que marca a consolidação daquele amadurecimento poético atingido
por Gullar em Poema sujo e que se sustenta nas outras duas obras sucessoras, sobre as quais
comentaremos brevemente a seguir. Se Dentro da noite veloz guarda ainda em vários
momentos um ranço de algumas simplificações tanto estéticas quanto ideológicas dos
Romances de cordel, e se Poema sujo é justamente aquele salto excepcional que modifica o
rumo de sua poesia, deslocando-se do resto da obra ao mesmo tempo em que a concentra, Na
vertigem do dia sabe manter os ganhos poéticos adquiridos no longo poema anterior ao voltar
às formulações mais comuns, textualmente menores, de Dentro da noite veloz, sedimentando,
de alguma maneira uma obra marcada por uma permanente inquietação. Outros problemas
aparecerão, outras descobertas, e a ambos, novas respostas, mas algo já latente desde A luta
corporal ganha, a partir de agora, uma consolidação mais aparente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta inicial deste trabalho consistia em verificar o movimento do motivo da
esperança em toda aquela que considero a fase madura da poesia de Ferreira Gullar: os livros
Dentro da noite veloz, Na vertigem do dia, Barulhos e Muitas vozes. Excetuava-se do grupo
Poema sujo, não porque este não pertença à referida maturidade, mas sim, como já
comentamos na introdução desta dissertação, por ser justamente um momento de exceção
dentro dela, capaz, inclusive, de resumi-la em vários níveis, sendo, de acordo com a maioria
dos críticos da obra de Gullar, o seu momento mais alto.
Por razões de variada ordem, sobre as quais não convém aqui discorrer, optei por me
concentrar apenas nos dois primeiros livros dessa fase madura, cujo movimento (cumpre
notar, intermediado por Poema sujo) é revelador não apenas da maneira como o motivo que
escolhi (a esperança) é trabalhado de uma obra a outra, mas também por representar um
trânsito maior, tanto estético quanto ideológico, que se opera na poesia de Gullar como um
todo, sobretudo em relação a essa fase de amadurecimento, como pretendi demonstrar ao
longo da dissertação.
A pesquisa poderia então prosseguir e se enveredar pela leitura de Barulhos e Muitas
vozes. Acredito que uma linha interpretativa, um caminho de análise, já fora, de algum modo,
dado, na medida em que, mesmo que enviesadamente, voltado especificamente para a
observação de um tema mas também por isso , acabei fazendo uma revisão da fortuna
crítica mais importante de Gullar e, com e a partir dela, o reconhecimento de uma base sobre a
qual o poeta se apóia desde sempre (aquela perspectiva materialista) e daqueles procedimentos
que se tornam obsessivos em sua poesia a partir de Dentro da noite veloz, comentados tanto no
capítulo que se refere à análise desta obra quanto no que diz respeito a Na vertigem do dia.
Quero dizer, tanto os caminhos de leitura mais gerais, quanto aqueles respectivos ao tema da
esperança já apontados na análise das duas obras da década de 70, me parece que serviriam
também a uma pesquisa que pretendesse dar prosseguimento à observação, nas obras
posteriores, do motivo em questão.
Pois bem, dando uma breve pincelada nesses livros que ficaram de fora, em Barulhos,
pouco se acrescenta, dentro do recorte de leitura que propus, ao que já encontramos nas obras
comentadas, não obstante seja um livro com belíssimos poemas, talvez alguns dos mais
interessantes de toda a poesia de Gullar, tais como “Quem sou eu?”, “O cheiro da tangerina” e
“Nasce o poema”, para ficarmos com apenas alguns exemplos. Mas a verdade é que Barulhos,
quando lido e situado cronologicamente na trajetória dessa poesia, parece ser justamente uma
obra de transição, que, além de manter os mesmos procedimentos estilísticos dos dois livros
anteriores e a sua mesma consciência materialista de sempre, resgata deles vários motivos e
temas, como a pesquisa sobre o corpo, a natureza do homem e das coisas, a memória e até
mesmo assuntos que pareciam ter ficado para trás, como o engajamento mais apaixonado.
Ressurgindo em poemas como “Sessenta anos do PCB”, “Nós, latino-americanos” e “Uma
nordestina”, o olhar, naturalmente, não retorna aos reducionismos anteriores; pelo contrário,
os vê de forma explicitamente crítica em vários textos, como em “Omissão” (“Não é estranho/
que um poeta político/ dê as costas a tudo e se fixe/ em três ou quatro frutas que apodrecem/
num prato/ em cima da geladeira/ numa cozinha da rua Duvivier?”
107
), ou ainda em “Manhã
de sol”, quando o poeta se questiona, ironicamente, ao passar na frente do cemitério e pensar
nos amigos mortos, ali enterrados: “ E pode um marxista admitir/ conversa entre defuntos?/
107
GULLAR, 2000. p. 363.
Não é a morte o fim de tudo?/ É claro, digo a mim mesmo, é claro / e sigo em frente”
108
.
Sem falar nos vários outros poemas que retomam abertamente versos e expressões tanto de
Dentro da noite veloz quanto de Na vertigem do dia, como se a corroborá-los, em alguns
casos, e a revisá-los, em outros, mas mantendo sempre o desenho daquele “mapa”, para
retomar uma expressão de Alfredo Bosi, que dá, desde sempre, os contornos mais gerais da
poesia de Gullar.
Agora, se por um lado esse resgate é patente, por outro, o poeta, em Barulhos, se volta
muito para um velho topos da poesia universal, o do ubi sunt, também já trabalhado
largamente pelo próprio Gullar nos livros anteriores, mas que parece, aqui, anunciar aquilo
que será a temática principal de Muitas vozes (seu último livro até agora): a morte. Publicado
às vésperas do aniversário de 70 anos de Gullar, Muitas vozes foi considerado uma das
melhores coleções de poemas da última década, vide resenha de Daniel Piza para a Gazeta
Mercantil, de julho de 1999. Como também comenta Davi Arrigucci Jr., “há muito não se
juntavam, na poesia brasileira, tantas coisas belas numa safra só”.
109
Lançado então doze anos após Barulhos, de 1987, Muitas vozes parece ser uma obra
conclusiva quanto a certas inquietações que sempre acompanharam a poesia de Ferreira
Gullar: nela, o poeta abandona quase por completo os poemas de apelo social, cedendo o lugar
do discurso público a questões de ordem privada e a consciência da proximidade da morte é
a mais forte delas. Citando novamente Arrigucci Jr., “a complexidade da síntese poética que se
acha neste livro em que os temas da identidade, do tempo e da linguagem se defrontam com o
silêncio e a morte é o resultado formal de uma longa e densa experiência”.
110
Preocupação
108
GULLAR, 2000. p. 396.
109
ARRIGUCCI JR., Davi. “O silêncio e muitas vozes”, Folha de S. Paulo, 12/06/1999.
110
Idem.
bastante recorrente em toda a sua poesia, a morte é tratada com tal freqüência em Muitas vozes
que se torna impossível um estudo da obra que não aborde a questão. Com uma intensidade e
tonalidade não observada nos livros anteriores, ela é então pensada nas diversas maneiras
pelas quais o homem a percebe, seja anônima, próxima, ou intimamente.
Assim, a morte será pensada pelo poeta como algo que acontece a todos e, ao mesmo
tempo, a ninguém especificamente, tornando-se um objeto de análise filosófica, distanciada,
em poemas como “Nova concepção da morte”
111
, longo texto em que Gullar faz uma
“trajetória” do morrer, numa espécie de tratado filosófico: inicialmente ele fala sobre os
primeiros sinais, na carne, de que a morte se elabora, num tipo de “armistício corporal”
112
(“um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora,/ mas do fundo do corpo, onde a morte mora”);
conseqüentemente, associa sua construção à construção da própria vida (“(...) onde ela circula/
(...) na medula// dos ossos e em cada enzima, que veicula,/ no processo da vida, esse contrário:
a morte)”; para, enfim, refletir sobre a sua chegada, como uma espécie de elemento alterador
das relações espaço-temporais, modificando e invertendo “o curso natural da vida” numa
vertigem que engole toda a história do ser que morre, semelhante a um buraco negro criado
por uma estrela ao se consumir. È interessante observar, mesmo que rasteiramente, como a
posição de Gullar aqui concilia, de alguma maneira, as posições de dois importantes filósofos
existencialistas, a saber, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre, em relação à morte: endógena,
interior, como possibilidade pessoal e intransferível, pertencente à própria estrutura da vida,
enfim, o ser-para-a-morte heideggeriano; e exógena, exterior, como interrupção violenta de
toda possibilidade e revelação do absurdo de existir, pensado por Sartre.
111
GULLAR, 2000. p. 464-6.
112
ARIÈS, 1977. p. 19.
Além dessa abordagem, Gullar volta fortemente a tratar da perda daqueles que lhe são
muito próximos, e, nesse livro, sua célula familiar mais próxima ganha um grande peso: os
poemas abordarão a morte de seu pai (em “Meu pai”), sua esposa (em “Thereza” e “Fim”) e
mais tragicamente seu filho Marcos, morto em 1991, aos 37 anos (“Filhos” e “Visita”).
“Traduzida” poeticamente, a perda de entes queridos influencia a ótica do poeta sobre a morte
em geral e sobre a sua própria, induzindo o pensamento a se debruçar sobre a possibilidade do
próprio fim, uma vez que a morte do próximo, além do abatimento emocional, traz também a
solidão, a sensação daquele “que ficou”.
Dessa forma, quase como uma conseqüência do percurso reflexivo que brevemente
vimos observando, Gullar, em Muitas vozes, ainda pensa sobre sua própria morte e é a respeito
desse tipo de reflexão que podemos verificar como o motivo da esperança permanece como
topos forte, na medida em que o poeta, nesses textos, acaba afirmando a vida diante de uma
situação que normalmente suscitaria reação contrária. “Em primeira pessoa”, a morte será
tratada, aqui, de maneira branda, conformada, sem desespero.
O poema “Aprendizado”
113
é emblemático neste sentido. Fazendo referência a um
verso feito no passado (aludindo ao poema “O anjo” de A luta corporal, cujo verso é “começo
a esperar a morte”), o poeta compara suas duas posturas em face deste impalpável objeto que,
se na juventude era percebido como algo heróico, um “facho/ a arder vertiginoso”, um
“consumir-se/ através de/ esquinas e vaginas”, agora, após uma vida de experiências, é visto
com serenidade, com a sabedoria de quem há tempos desde então convive com esta
reflexão e sabe que sua proximidade é real. Sóbrio, sem desespero, o poeta então constata: “sei
que/ apenas/ morro/ sem ênfase”. O poema nos chama indiretamente a atenção para dois
113
GULLAR, 2000. p. 445.
elementos que precisam ser levados em conta, um antigo e outro novo: a memória e a velhice,
respectivamente, se tornam questões importantes para a construção dessa ótica relativamente
conformada; relativamente porque o poeta compreende e sente a proximidade dessa “certeza
invencível”,
114
mesmo sem aceitá-la. Gullar não quer morrer, mas sabe que vai e não se ilude.
A constatação dessa certeza não implica um desejo de morte, mas sim o contrário: ao invés de
um entreguismo pessimista ou de uma resginação melancólica, Gullar continua a afirmar a
vida, e se a consciência de uma proximidade da morte se faz presente através da carne uma
vez que para o poeta a transcendência está no corpo a afirmação da vida não se faz de
forma diferente, como podemos ver no poema “Tato”, em que a certeza de existir se confirma
pela ponta dos dedos: o toque do poeta em seu próprio corpo (“mas o tato me dá/ a consciente
realidade/ de minha presença no mundo”). Amparando-se na mesma perspectiva materialista e
nas mesmas obsessões, Ferreira Gullar mostra em Muitas vozes sua capacidade de se renovar a
cada momento, fazendo da própria vida, na prática poética, a permanente construção através
da qual as define (tanto a vida quanto a poesia) filosoficamente.
Terminada a dissertação, permaneço ciente de que a escolha de um tema como a
esperança para a leitura de uma importante obra poética da segunda metade do século XX
pode soar demasiadamente anacrônica, na medida em que, “em face dos últimos
acontecimentos”, para usar uma expressão de Carlos Drummond de Andrade, o conceito
parece estar deslocado do discurso intelectual de nossos dias, totalmente descrente de
determinados valores, sendo acolhido apenas pela má positividade de um número cada vez
maior de correntes religiosas e de livros de auto-ajuda. Por um outro lado, sempre me tocou
ver como aquele que hoje é considerado o maior poeta brasileiro vivo lida tão recorrentemente
114
GULLAR, 2000. p. 472.
com essa questão, sendo ela um de seus maiores topoi. O otimismo de Ferreira Gullar,
considerando o período da história brasileira que sua biografia atravessa, considerando os
terríveis percalços experimentados por esta, e considerando ainda a perspectiva nada redentora
de sua consciência, não deixa de ser uma lição tanto para a filosofia quanto para a literatura de
grande parte do século XX lição nada clichê, diga-se de passagem; pelo contrário, muito
controversa ao que se espera de um intelectual de nosso tempo. No final das contas, a imagem
que comumente se faz de Gullar como um poeta engajado está correta; talvez só a natureza
que se dê a este engajamento é que esteja equivocada. Sua verdadeira participação social
parece residir então naquela permanente perspectiva de futuro como mola propulsora de um
esforço presente; seu engajamento, explicitamente político em alguns momentos, é, antes de
tudo, um engajamento à vida.
BIBLIOGRAFIA
ABRÃO, Daniel. Ferreira Gullar: a razão poética em Muitas vozes. São José do Rio Preto:
UNESP, 2001. (Dissertação de mestrado)
ALBORNOZ, Suzana. Ética e utopia ensaio sobre Ernst Bloch. Porto Alegre: Movimento,
1985.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.
________. Sentimento do mundo. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. trad.
Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
________.“O silêncio e muitas vozes”, Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 12.06.99.
________. “Tudo é exílio”. Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 14.11.98.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
BARBOSA, Alaor. “Toda a poesia de Ferreira Gullar”. Minas Gerais Suplemento Literário.
Belo Horizonte, 25.02.83.
BLOCH, Ernst. L’esprit de l’utopie. trad. de l’allemand par Anne Marie Lang et Catherine
Piron-Audard. Paris: Gallimard, 1977.
________. O princípio esperança. trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ:
Contraponto, 2005.
BOSI, Alfredo. “Roteiro do poeta Ferreira Gullar”. In:________. Céu, inferno: ensaios de
crítica literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
________. História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. pp. 525-
6.
________. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
BRAIT, Beth. Ferreira Gullar. São Paulo: Abril Educação, 1981. (Literatura Comentada)
CAMUS, Albert. O homem revoltado. trad. Valerie Rumjanek. 4. ed. Rio de Janeiro: Record,
1999.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo
Horizonte: Itatiaia, 2000.
________. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo: Ed.
Nacional, 1985.
CÍCERO. Da velhice e da amizade. São Paulo: Cultrix, 1964.
COSTA, Cristiane. “Longa licença poética chega ao fim”. Jornal do Brasil, 29.05.99.
DIAS, Maurício Santana. “O conhecimento da morte”. Folha de S. Paulo, 30.05.99.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2002.
FERRAZ, Heitor. “Ferreira Gullar: poesia necessária”. Cult. São Paulo: outubro de 1997.
FONSECA, Orlando. Na vertigem da alegoria: militância poética de Ferreira Gullar. Santa
Maria: UFSM, 1997.
FURTER, Pierre. Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
GULLAR, Ferreira. Crime na flora ou Ordem e progresso. Rio de Janeiro. Ed. José Olympio,
1986; 2. ed., 1986.
________. Cultura posta em questão/Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2. e 4. ed., 2002.
________. Rabo de foguete Os anos de exílio. Rio de Janeiro: Revan, 1998.
________. Toda poesia. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
_________. Uma luz do chão. Rio de Janeiro: Avenir, 1978.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. trad. Márcia de Sá Cavalcanti. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1988.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. La mort. Paris: Flammarion, 1977.
JIMENEZ, José. La estética como utopía antropológica: Bloch e Marcuse. Madrid: Tecnos,
1983.
LAFETÁ, João Luiz. “Traduzir-se”. In: ZILIO, Carlos, LAFETÁ, João Luiz, LEITE, Lygia
Chiapinni Moraes. O nacional e o popular na cultura brasileira Artes plásticas e literatura.
São Paulo: Brasiliense, 1982, pp. 55-127.
LEBRET, L. J. O drama do século XX: miséria, subdesenvolvimento, inconsciência,
esperança. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1963.
MARTINS, Wilson. “Um poeta político”. Jornal do Brasil, 17.01.81.
MARX, Karl, ENGELS, Friederich. Sobre literatura e outras artes. São Paulo: Global
Editora, 1979.
MEDINA, Cremilda. “Caminho limpo, explode o poema sujo de Ferreira Gullar”. Minas
Gerais Suplemento Literário. Belo Horizonte, 09.03.85.
MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios. trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília; HUCITEC, 1987. 3 v.
MORAES, Vinicius de. “Poema sujo de vida”. Revista Manchete. Rio de Janeiro, 1976.
MOUNIER, Emmanuel. A esperança dos desesperados Malraux, Camus, Sartre, Bernanos.
trad. Naumi Vasconcelos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
MOURA, George. Ferreira Gullar: entre o espanto e o poema. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Prefeitura, 2001. (Perfis do Rio; v. 33)
NETTO, José Paulo. O que é marxismo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
NUNES, Benedito. A filosofia contemporânea. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1967. (Coleção Buriti, 18)
PILATI, Alexandre. “A representação da condição do autor periférico na poesia de Ferreira
Gullar”. Belo Horizonte: ABRALIC, 2002. (manuscrito)
PIZA, Daniel. “O melhor livro de poesia da década”. Gazeta Mercantil Fim de Semana, São
Paulo, 04.06.99.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. trad. Paulo
Perdigão. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
SECCHIN, Antônio Carlos. “A luta corporal”. In:________. Poesia e desordem. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1996. pp. 125-27.
VILLAÇA, Alcides Celso Oliveira. A poesia de Ferreira Gullar. (tese de doutoramento). São
Paulo: Universidade de São Paulo, 1984.
________ et alii. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 6,
setembro de 1998.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo