Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
LEONARDO
FRANCISCO SOARES
LEITURAS DA OUTRA EUROPA
GUERRAS E MEMÓRIAS
NA LITERATURA E NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Leonardo Francisco Soares
LEITURAS DA OUTRA EUROPA
GUERRAS E MEMÓRIAS
NA LITERATURA E NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,
como parte dos requisitos para obtenção do grau de
Doutor em Letras: Estudos Literários.
Área de concentração: Literatura Comparada
Orientadora: Profª Drª Graciela Ravetti
Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2006
ads:
Tese intitulada Leituras da Outra Europa: guerras e memórias na literatura e
no cinema da Europa Centro-Oriental, aprovada pela banca examinadora constituída
pelos seguintes professores:
Profª Drª Graciela Ravetti
Faculdade de Letras/UFMG - Orientadora
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários FALE/UFMG
Belo Horizonte, 31 de outubro de 2006
Este trabalho foi realizado com o auxílio de bolsa de
estudos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado
de Minas Gerais (FAPEMIG).
Ao José:
so faraway, and so
close
MEUS AGRADECIMENTOS
À professora Graciela Ravetti, meu agradecimento especial, pela orientação
sempre instigante e pela paciência e confiança dispensadas,
o que certamente me incentivou a terminar esta tese.
Aos professores Luis Alberto Brandão Santos e Cássio EduardoViana Hissa, membros
do exame de qualificação, pelas leituras atentas. Seus comentários críticos e sugestões
ampliaram o meu horizonte de indagações sobre o tema e permitiram
circunscrever melhor as etapas da tese.
À professora Maria Esther Maciel, pelas “memórias” de Borges e pelas sugestões
bibliográficas contidas no incentivante parecer do projeto definitivo de tese.
Ao professor Aleksandar Jovanovic, pela gentileza com que se dispôs a me enviar
material bibliográfico, fazer sugestões e ler o projeto desta tese.
Aos professores Teodoro Rennó Assunção, Murilo Marcondes de Moura e
Élcio Loureiro Cornelsen, pelo apoio bibliográfico e sugestões
para lidar com a noção de guerra.
À professora Leda Maria Martins, pelo diálogo iniciado no mestrado. Nossas
incessantes conversas e seu exemplo de seriedade e coerência no trabalho intelectual
contribuíram de forma decisiva no germe deste trabalho.
Aos meus familiares, colegas, alunos e amigos que,
de diferentes maneiras (solidariedade, partilhas, envios, indicações, traduções,
incentivo, amizade, rumor, silêncio), contribuíram para que este trabalho se realizasse,
em especial e ne... que: Leandra Batista Antunes, (as)Íris,
Luiz Fernando Lima Braga Júnior, Andréa Sirihal Werkema, Ilca Soares,
Arthur Parreiras Gomes, Oséias Silas Ferraz, Jaider F. Reis, Simone Aparecida da Silva,
Eduardo Roberto Batista, Cíntia Moraes Mota, Márcio Lanna, Rosa Teodoro,
Lidiany Silva Barbosa, Ana Aparecida Soares de Aguiar,
Rudson Carlos Vieira, Érica Rapunzel e Glauber.
À Letícia Magalhães Munaier Teixeira
(e a todos os funcionários do Colegiado de Pós-Graduação em Estudos Literários),
por continuarem trazendo leveza às questões “burocráticas”.
À Vívien Gonzaga, por MUITO.
Toda essa literatura é um ataque contra as fronteiras...
Franz Kafka, Diários
(...) encontraram-se aqui as letras de metade do mundo e por
algum milagre, sobreviveram lado a lado aos piores tempos.
Stefan Chwin, A breve história de uma piada
(cenas da Europa Centro-Oriental)
Tudo cabe no globo. (...)
O mundo do rio não é o mundo da ponte.
João Guimarães Rosa, Orientação
(...) toda origem é forjada
no caminho cujo destino é o meio.
Antonio Cicero, Amazônia
RESUMO
Este estudo examina os processos específicos de construção
de identidades, em narrativas advindas do cinema e da
literatura da Europa Centro-Oriental. A partir do trabalho
com um corpus composto de obras produzidas nas últimas
décadas do século XX – textos literários de Ismail Kadaré,
Danilo Kiš e István Örkény; e os filmes Antes da chuva, de
Milcho Manchevski, Um olhar a cada dia, de Theo
Angelopoulos e Underground – mentiras da guerra, de Emir
Kusturica –, investiga-se o problema das diferentes
configurações da guerra nesses textos. Articula-se, ainda, o
tema da guerra com as concepções de nação, história,
memória e representação.
RESUMEN
Este estudio examina los procesos específicos de
construcción de identidades en narrativas venidas del cine y
de la literatura de Europa Centro-Oriental. A partir del
trabajo con un corpus compuesto de obras producidas durante
las últimas décadas del siglo XX – textos literarios de Ismail
Kadaré, Danilo Kiš e István Örkény; y los filmes Antes de la
lluvia, de Milcho Manchevski, La mirada de Ulises, de Theo
Angelopoulos y Underground, de Emir Kusturica –, se
investiga el problema de las diferentes configuraciones de la
guerra en esos textos. Se articula, también, el tema de la
guerra con las concepciones de nación, historia, memoria y
representación.
RESUME
Cette étude examine les processus spécifiques de construction
des identités dans les narrations tant cinématographiques que
littéraires en Europe de l'Est. On recherche les différents
modes de représentations de la guerre à travers l'analyse d'un
corpus constitué d'oeuvres des dernières décennies du
XXème siècle – les textes des écrivains Ismail Kadaré,
Danilo Kiš et István Örkény et les films Pred dozhdot (Before
the rain), de Milcho Manchevski, Le regard d’Ulysse, de
Theo Angelopoulos et Underground – il était une fois un
pays, d’Emir Kusturica. On articule également le thème de la
guerre avec les conceptions respectives de la nation, de
l’histoire, de la mémoire et de la représentation.
LISTA DE FIGURAS
1. Underground – mentiras da guerra (imagem da “terra-jangada de ninguém”) ........ 49
2. Europe as queen (reprodução da cosmografia de Sebastian Münster)..................... 69
3. Um olhar a cada dia (imagem da passagem do Navio Azul)................................. 129
4. Um olhar a cada dia (imagem do encontro de guarda-chuvas e tochas) ............... 131
5. Um olhar a cada dia (imagem da Cabeça de Lenin).............................................. 136
6. Underground (imagens de ficção e documentário em confluência)....................... 221
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO Estimativas e cálculos preliminares ....................................................... 13
PARTE I – EUROPA: PAISAGEM NA NEBLINA
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia........................ 30
1.1 Da epígrafe ou Se oriente rapaz... ...................................................................... 30
1.2 Antes da Europa: o mito ..................................................................................... 51
1.3 Um continente sem bordas.................................................................................. 62
1.4 Dentro e fora da Europa...................................................................................... 75
PARTE II – GUERRA: MEMÓRIAS EM FÁ MAIOR
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra ............................................................................... 90
2.1 Mas a guerra disse: sou!..................................................................................... 90
2.2 Textos em guerra............................................................................................... 100
2.3. O ponto cego de uma experiência..................................................................... 143
CAPÍTULO 3 – A invenção da memória ......................................................................... 161
3.1 Quem reivindica a verdade histórica?............................................................... 161
3.2 Arquivo dos mortos........................................................................................... 186
3.3 Mentiras em 35 mm .......................................................................................... 211
CONCLUSÃO POST-SCRIPTUM ...................................................................................... 230
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 234
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
13
INTRODUÇÃO
ESTIMATIVAS E CÁLCULOS PRELIMINARES
1
No verão de 1958 o autor visitava tranqüilamente o
Museu Histórico e Geográfico da Filadélfia quando, ao
voltar-se um pouco para a direita, avistou de repente um
púcaro búlgaro. (...) Como toda gente, também ele
sempre ouvira falar, desde a mais tenra infância, sobre
púcaros e sobre búlgaros – mas sempre achando que se
tratava apenas de um jogo de palavras ou, na melhor das
hipóteses, de personagens de conto de fadas, tão reais
quanto as aventuras do barão de Münchhausen. Nunca
lhe passara pela cabeça que, numa esquina qualquer do
mundo, de repente lhe pudesse aparecer pela frente um
búlgaro segurando um púcaro, ou então um púcaro com
um búlgaro dentro, ou ainda e muito menos um púcaro
simplesmente búlgaro...
Campos de Carvalho, O púcaro búlgaro
Um púcaro búlgaro com data (século XIII a.C.), etiqueta (dinastia
Lovtschajiik) e tudo (sala 304-B, ala direita), sob a guarda da bandeira norte-
americana!
2
Eis o acidente geonomástico que leva o narrador-personagem do livro de
Campos de Carvalho a propor uma expedição à Bulgária para conferir com os próprios
olhos se o “amorável” país de fato existe. O acontecimento insólito – um púcaro búlgaro
em um museu da Filadélfia – leva-o a publicar um anúncio no jornal: “Expedição à
Bulgária. Procuram-se voluntários”. Nessa narrativa desconcertante de Campos de
Carvalho, na qual o nonsense impera, tudo termina, sim, em uma partida... de pôquer.
1
TZU. A arte da guerra, p. 13.
2
CARVALHO. O púcaro búlgaro, p. 311-312.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
14
Tomo a premissa do romance de Campos de Carvalho como termo de
comparação para minha relação inicial com a Outra Europa, a Europa Centro-Oriental,
se é que ela existe.
3
Ao longo dos anos, vários foram os meus encontros com púcaros
búlgaros, que nos espreitam nas encruzilhadas de diferentes economias significantes –
muitas vezes travestidos de Meninos da rua Paulo, de Ferenc Molnár, A metamorfose,
de Franz Kafka, Mephisto, de István Szabó, Montenegro – pérolas e porcos, de Duzan
Makvejev, A cavalaria vermelha, de Isaac Babel, “À espera dos bárbaros”, de
Konstantinos Kaváfis, entre outros disfarces cheios de consoantes. Porém, nesses
encontros, apesar de certo estranhamento, talvez devido ao “espanto geonomástico”,
nunca fui assaltado pela nebulosa questão geográfica a respeito da existência das bordas
de lá, do Velho Continente.
Na última década do século XX, vi aumentar o número de noticiários,
publicações, traduções, narrativas fílmicas e literárias, enfim, a circulação de imagens e
referências à Europa Centro-Oriental. Na verdade, poucas áreas foram alvo de tanto
interesse e cobertura jornalística quanto a península balcânica.
4
Tanto no Brasil quanto
em outros países do dito Ocidente, esse recrudescimento do interesse por aquela parte
do mundo, a sua alta visibilidade, ao longo da década de 90 do século passado, estavam
relacionados a um fator negativo: os conflitos bélicos que, nesse período, se
desencadearam na região – mais especificamente, na ex-Iugoslávia.
Segundo Dina Iordanova, ao longo de um dos seus estudos sobre a cultura da
Europa Centro-Oriental,
5
representações dessa região da Europa tornaram-se um
componente integral do escopo da mídia ocidental, devido a uma atração desse “olhar
3
“Se a Bulgária existe, então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir. Este o único ponto no qual
parecem assentir os que negam e os que defendem intransigentemente a existência daquele amorável
país, desde os tempos antidiluvianos até os dias pré-diluvianos de hoje”. (CARVALHO. O púcaro
búlgaro, p. 309).
4
Procura-se aqui, na medida do possível, não confundir as noções de Europa Centro-Oriental e de
Bálcãs e outras correlatas. Entretanto, como tentarei demonstrar na primeira parte deste trabalho, as
questões “geonomásticas” entre o Danúbio e o estreito de Dardanelos são bastante tensas. Trata-se de
uma “cartografia imaginada”, que projeta, nas linhas de mapas desejantes em cobrir “pontualmente” o
espaço físico, obscuros antagonismos ideológicos.
5
IORDANOVA. Cinema of flames: Balkan Film, Culture and the Media. Nesse livro, a autora
concentra-se especificamente nas imagens jornalísticas e de documentários sobre os conflitos na
região veiculadas na Europa Ocidental. Por outro lado, o filme Underground – mentiras da guerra, de
Emir Kusturica, ganhará destaque na reflexão, em especial, devido à polêmica provocada quando do
seu lançamento, como se confirmará na última parte desta tese.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
15
ocidental” para as questões da guerra, da violência, da pobreza, ou seja, o “nosso”
interesse na região sustentava-se, sobretudo, na fascinação pelo espetacular e pelo
catastrófico em terras estrangeiras. Apesar de certo truísmo que permeia a afirmação,
esta mostra contornos mais interessantes quando se constata que, com a mesma rapidez
com que ganhou os meios de comunicação, a Europa Centro-Oriental caiu na
“marginalidade” do dia-a-dia dos média, sendo suplantada, respectivamente, pelo
Afeganistão, em seguida, pelo Iraque, e, para chegar aos dias em que termino de
escrever este trabalho, pelo Líbano. Outra coisa que tornava premente o interesse pelos
acontecimentos na região do Bálcãs, na última década do século passado, era, como
salienta José Augusto Lindgren Alves, o fato de a península se encontrar “no continente
europeu, por definição branco e civilizado, abrigando, ainda por cima, as ruínas e
monumentos (não apenas no território da atual República Helênica) a recordarem que
ali o Ocidente nasceu”.
6
As implicações da circulação e re-circulação das imagens da Europa Centro-
Oriental no “extremo Ocidente” – uma expressão bastante utilizada a respeito do Leste
Europeu, ao longo dos anos 90, era “Extremo Leste”, título inclusive de uma série de
documentários do Channel 4, de Londres – configuram-se como uma das questões que
atravessam esta tese e, certamente, indicam os riscos e os efetivos perigos envolvidos
neste trabalho. Afinal, o meu interesse pela literatura e pelo cinema advindos desses
territórios intensifica-se exatamente em meio à voragem de imagens, desejos,
repressões, investimentos e projeções de um “olhar ocidental”, incontestavelmente
conduzidos – como o periscópio com o qual Marko, personagem central do filme
Underground, de Emir Kusturica, controla o porão – pelo epicentro cultural-americano-
ocidental, que, desde a Segunda Guerra Mundial, assumiu a posição hegemônica antes
ocupada por uma cultura européia soberana.
Assim como a personagem do romance de Campos de Carvalho, que, diante do
desafio atirado acintosamente pela “poderosa máquina de propaganda ianque”,
7
lança-se
ao grande propósito de verificar se a Bulgária existe, talvez tenha sido esse encontro
6
ALVES. Nacionalismo e etnias em conflito nos Bálcãs, p. 5. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64452004000300002&script=sci_arttext>.
7
CARVALHO. O púrcaro búlgaro, p. 312.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
16
com uma Outra Europa – “com data, etiqueta e tudo”, e também sob a proteção da
bandeira dos Estados Unidos –, que viria detonar, em mim, dúvida semelhante a
respeito da Europa Centro-Oriental.
Ao longo do investimento brutal dos meios de comunicação na questão dos
conflitos nos Bálcãs, alguns antigos clichês voltaram à tona e ganharam força,
moldando uma espécie de representação média da Europa Centro-Oriental, mesmo dos
países não envolvidos diretamente em combates. Esses clichês, conforme salientado por
Slavoj Zizek, em artigo de 1996,
8
poderiam ser divididos em dois grupos. Em primeiro
lugar, no que tange ao conflito específico na Bósnia, o que se assistiu foi uma
demonização dos sérvios, a partir de uma pública condenação da República Sérvia em
contraposição a uma compaixão pela Bósnia. Esse mesmo mecanismo de
“demonização”, a insistência em se culpar uns e inocentar outros, é denominado por
Dina Iordanova de “endocrinização midiática”.
9
Nesse sentido, os sérvios eram
percebidos como invisíveis guerreiros e vencedores, enquanto os bósnios eram
confinados ao papel de vítimas sofridas, uma tipificação também comum às tradicionais
narrativas de guerra, como tentarei demonstrar no segundo capítulo desta tese. Nas
palavras de Slavoj Zizek:
o principal empenho do Ocidente é manter imperturbável esse
enquadramento fantasmático sublinhado. (...) A verdade sobre a tal
“demonização dos sérvios” reside na fascinação com suas vítimas,
percebida claramente através das posturas do Ocidente para com
imagens horrendas de cadáveres mutilados, de crianças feridas e
chorando, etc. (tradução minha)
10
Devido às guerras na ex-Iugoslávia, no final do século XX, uma verdadeira
“expedição” de repórteres partiu para cobrir os acontecimentos. Para explicar o que
estava acontecendo na região, tornou-se lugar comum recuperar pelo menos quinhentos
8
ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means. Disponível em:
<http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/ic018/intercity/zizek_E.html>.
9
IORDANOVA. Cinema of flames, p. 168-169.
10
“the main endeavor of the West is to keep undisturbed this underlying phantasmatic frame. (...) The
truth of so-called ‘demonization of the Serbs’ resided in the fascination with their victims, wich was
clearly perceptible in the Western attitude towards horrifying pictures of mutilated corpses, of
wounded and crying children, etc.” (ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of
poetry by other means. Disponível em: <http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/ic018/intercity/
zizek_E.html>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
17
anos de história dos Bálcãs, com sua mescla de guerras, religiões e conflitos étnicos. Em
conseqüência, um outro clichê jornalístico ganhou predominância: aquele de que os
povos dos Bálcãs, cooptados pelo redemunho de mitos históricos – perigosamente lidos
ao pé da letra
11
–, seriam deterministicamente fadados à violência, à atrocidade e ao
horror das guerras. Armados com “testemunhos tópicos e algumas noções históricas
decoradas no caminho”,
12
correspondentes de uma infinidade de veículos de
comunicação produziram obras de análise dos acontecimentos que desenhavam a região
como um mítico cenário de paixões primordiais e eternas, um espaço de horrores
étnicos e de intolerância, sobre os quais nada se poderia fazer. Esse “vórtice de paixão
étnica” – uma usual representação dos Bálcãs – seria herança, como muitas vezes as
vozes deixavam entrever, de um patrimônio despótico, bárbaro, oriental, ortodoxo,
muçulmano e comunista.
13
Tinha-se configurado, portanto, nesse estado de coisas, como denominado por
Slavoj Zizek, um exemplar caso de “Balcanismo”.
14
A expressão é utilizada por Zizek
como uma referência direta ao conceito de “Orientalismo” desenvolvido por Edward
Said. Em sua reflexão, Said parte do pressuposto de que o Oriente não é um fato inerte
da natureza, mas encontra a sua significação, no e para o Ocidente, a partir do
pensamento, da imagística e do vocabulário que são legados por essa mesma “entidade
11
“Os mitos fundadores são, por definição, transistóricos: não apenas estão fora da história, mas
fundamentalmente aistóricos (...) Mas dentro da história [sucessiva e linear], seu significado é
freqüentemente transformado.” (HALL. Da diáspora, p. 29).
12
ALVES. Nacionalismo e etnias em conflito nos Bálcãs, p. 8. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64452004000300002&script=sci_arttext>.
13
Cf. ZIZEK. ‘You may!’. Disponível em: <http://www.lrb.co.uk/v21/n06/zize01_.html>; ALVES.
Nacionalismo e etnias em conflito nos Bálcãs, p. 8. Disponível em:
<http://www.scielo.
br/scielo.php?pid=S0102-64452004000300002&script=sci_arttext>. Um exemplo desse tipo de
reflexão condenada por Slavoj Zizek e José Augusto Lindgren Alves seria o livro Guerras contra a
Europa, de Alexandre del Valle. Como o título já prenuncia, o autor, um adepto da teoria dos
“choques civilizacionais” de Samuel Huntington, desenvolve uma análise dos enfrentamentos nos
Bálcãs, no Afeganistão e no Cáucaso, a partir da oposição entre o “retrocesso” islâmico e panturco e
os valores verdadeiros das nações européias. Ver especialmente o capítulo “Islamismo e
panturquismo, duas ameaças comuns às nações européias, da Irlanda à Rússia” (Cf. VALLE. Guerras
contra a Europa, p. 53-103). Também John Keegan, em Uma história da guerra, faz a seguinte
afirmação: “Os horrores da guerra na Iugoslávia, tão incompreensíveis quanto revoltantes para a
mente civilizada, desafiam uma explicação em termos militares convencionais”. (KEEGAN. Uma
história da guerra, p. 9).
14
ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means. Disponível em:
<http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/ic018/intercity/zizek_E.html>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
18
geográfica ocidental”. Além disso, “a cultura européia ganhou em força e identidade
comparando-se com o Oriente como uma espécie de identidade substituta e até mesmo
subterrânea, clandestina”.
15
De certa maneira, a região da Outra Europa ocuparia
também esse locus, de que fala Edward Said, como um eterno espaço sobre o qual a
Europa Ocidental projeta seus fantasmáticos conteúdos. Com humor e ironia, Slavoj
Zizek desenha a situação do seguinte modo:
Se se pergunta: onde começa a região dos Bálcãs? Sempre se diz que a
região começa lá embaixo, para o sudeste. Para os sérvios, a região
dos Bálcãs origina-se no Kosovo ou na Bósnia, onde a Sérvia está
tratando de defender a civilização da Europa cristã frente ao avanço
do Outro. No que se refere aos croatas, os Bálcãs começam na
bizantina Sérvia, terra ortodoxa e despótica, contra a qual a Croácia
preserva os valores democráticos do Ocidente. Muitos italianos e
austríacos crêem que os Bálcãs originam-se na Eslovênia, posto
avançado do Ocidente, de multidão eslava. Muitos alemães vêem a
Áustria como contaminada com a corrupção e ineficiência balcânica,
para muitos do norte da Alemanha, a católica Bavária não está livre da
contaminação balcânica. Muitos franceses arrogantes associam a
Alemanha com a brutalidade dos balcânicos do Leste, falta-lhes a
finesse francesa. Finalmente, para alguns britânicos opositores da
União Européia, o continente europeu é uma nova versão do Império
Turco, com Bruxelas como a nova Istambul – um despotismo voraz a
ameaçar a liberdade e a autonomia britânicas.
16
Os Bálcãs configuram-se, nesse caso, como um “significante vazio”
17
através do qual
tem-se mesurada a “diferença” em relação à “norma”.
18
15
SAID. Orientalismo, p. 15.
16
“If you ask, ‘Where do the Balkans begin?’ you will always be told that they begin down there,
towards the south-east. For Serbs, they begin in Kosovo or in Bosnia where Serbia is trying to defend
civilised Christian Europe against the encroachments of this Other. For the Croats, the Balkans begin
in Orthodox, despotic and Byzantine Serbia, against which Croatia safeguards Western democratic
values. For many Italians and Austrians, they begin in Slovenia, the Western outpost of the Slavic
hordes. For many Germans, Austria is tainted with Balkan corruption and inefficiency; for many
Northern Germans, Catholic Bavaria is not free of Balkan contamination. Many arrogant Frenchmen
associate Germany with Eastern Balkan brutality - it lacks French finesse. Finally, to some British
opponents of the European Union, Continental Europe is a new version of the Turkish Empire with
Brussels as the new Istanbul - a voracious despotism threatening British freedom and sovereignty.”
(ZIZEK. ‘You may!’. Disponível em:
<http://www.lrb.co.uk/v21/n06/zize01_.html>).
17
O conceito de significante vazio, cunhado por Ernesto Laclau, seria, no sentido estrito do termo, um
significante (Se) sem significado (So), que continua sendo, apesar da ausência do conceito, parte
integrante de um sistema de significação. (Cf. LACLAU. Emancipación y diferencia, p. 69-86).
18
Cf. HALL. Da diáspora, p. 65.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
19
Sem a garantia de sucesso, uma outra tentativa de compreensão dos
acontecimentos da última década do século XX, na região dos Bálcãs, é possível. A
conformação da Europa Centro-Oriental, ao contrário do “Estado-nação moderno”,
19
que se afirmara a partir do pressuposto da homogeneidade cultural organizada em torno
de valores ditos universais, seculares e individualistas liberais, é culturalmente
heterogênea. Objeto da conquista, dominação e influência de três diferentes impérios –
Otomano, Austro-húngaro e soviético, para ficar nos últimos quinhentos anos –, a
região sempre foi, de formas distintas, multiétnica e multicultural. Como adverte Stuart
Hall:
Os sistemas coloniais de monocultura do mundo ocidental, os sistemas
de trabalho semi-escravo do Sudeste da Ásia, da Índia colonial, assim
como os vários Estados-nação conscientemente fabricados a partir de
um quadro étnico mais fluido – na África, pelos poderes
colonizadores; no Oriente Médio, nos Bálcãs e na Europa Central,
pelas grandes potências – todos se ajustam mais ou menos à descrição
multicultural.
20
Com o fim do velho sistema imperial europeu, vários Estados-nação,
multiétnicos e multiculturais, foram criados sem a modificação de condições anteriores
de convivência e de existência sob o domínio dos antigos impérios. Fronteiras
inventadas, comunidades imaginadas: uma variedade de tradições étnicas, culturais e
religiosas tendo que “imaginar”
21
uma mesma relação com a terra de origem, que
elaborar a mesma natureza de seu “pertencimento”, que “inventar tradições”
22
que
fornecessem bases para uma identidade nacional, “una”, “primordial” e “indivisível”.
Com o fim da Guerra Fria, efeitos semelhantes aos do desmantelamento dos velhos
sistemas imperiais seriam causados. Como salienta Stuart Hall, a ruptura, pós-1989, da
União Soviética como formação transétnica e transnacional foi seguida pela tentativa,
liderada pelos Estados Unidos da América, de construir uma nova ordem mundial:
“Uma característica desse impulso foi a pressão contínua do Ocidente, destinada a
arrastar, contra sua vontade e da noite para o dia, aquelas sociedades tão distintas e
19
Sobre a questão do Estado-nação, ver os escritos de Eric Hobsbawm, em especial: HOBSBAWM.
Nações e nacionalismo desde 1780, p. 9-61.
20
HALL. Da diáspora, p. 53.
21
Cf. ANDERSON. Comunidades imaginadas.
22
Cf. HOBSBAWM; RANGER. A invenção das tradições.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
20
relativamente subdesenvolvidas do Leste Europeu para o que se chamou de ‘o
mercado’”.
23
Em conseqüência dessa projeção da lógica – envolvimento cultural,
político e social – do mercado para o interior de culturas e constituições políticas
antigas, problemas pendentes e emergentes relacionados ao desenvolvimento social
somaram-se ao ressurgimento de traços antigos de nacionalismos étnicos e religiosos
não-resolvidos, levando ao conflito sob a forma multicultural. Segundo Stuart Hall, ao
analisar os acontecimentos na Europa Centro-Oriental, na última década do século XX:
É importante frisar que esse não é um simples ressurgimento de etnias
arcaicas, embora tais elementos possam persistir. Traços antigos se
combinam com novas e emergentes formas de “etnicidade”, que
freqüentemente resultam da globalização desigual ou da modernização
falha. Essa mistura explosiva revaloriza seletivamente os discursos
mais antigos, condensando numa combinação letal aquilo que
Hobsbawm e Ranger (1993) denominaram “a invenção da tradição” e
o que Michael Ignatieff (1994) chamou (depois de Freud) de
“narcisismo das pequenas diferenças”.
24
Apesar da digressão feita, o objetivo desta pesquisa não é – como também não
o era o do “Hilário” narrador-personagem do livro de Campos de Carvalho
25
– firmar
nenhuma verdade definitiva sobre uma identidade plena, pura e íntegra da Europa
Centro-Oriental, isenta da “projeção” ocidental. A proposta é pensar, tendo como pano
de fundo o mal-estar causado por essa forma de marginalização da Outra Europa, na
última década do século passado, processos específicos de construção de identidades, a
partir dos dispositivos que a literatura e o cinema são capazes de oferecer. Para tanto,
através de um corpus composto por narrativas advindas do cinema e da literatura da
Europa Centro-Oriental e produzidas nas últimas décadas do século XX, enfatiza-se
aqui a questão das diferentes configurações da guerra, articulando-a com as concepções
de nação, identidade, representação, história e memória.. A convicção central é a de
que, mesmo diante dos debates mais clamorosos, a literatura e o cinema podem
formular respostas próprias, e não apenas reagir de maneira circunstancial e secundária
à experiência humana.
23
HALL. Da diáspora, p. 55.
24
HALL. Da diáspora, p. 55.
25
CARVALHO. O púcaro búlgaro, p. 309.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
21
Nos livros Três cantos fúnebres para o Kosovo, de Ismail Kadaré (Albânia,
1998/1999),
26
Um túmulo para Boris Davidovitch: sete capítulos de uma mesma
história, de Danilo Kiš (Iugoslávia, 1976/1987), e A exposição das rosas: duas novelas,
de István Örkény (Hungria, 1977, 1967/1993); e nos filmes Antes da chuva, de Milcho
Manchevski (Macedônia, 1994), Underground – mentiras da guerra, de Emir Kusturica
(Iugoslávia, 1995), e Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos (Grécia, 1995),
27
a
guerra surge como um ponto de apoio comum aos povos heterogêneos da Europa
Centro-Oriental, funcionando, ao mesmo tempo, como formadora e desintegradora de
identidades. Além disso, nessas narrativas, a linguagem, assim como os espaços,
configura-se em luta, em emergência, em guerra. Como ficará mais explícito através das
análises de Um túmulo para Boris Davidovitch, de Danilo Kiš, e de Underground, de
Emir Kusturica, essas narrativas estabelecem, ainda, diálogos difíceis e “atravessados”
com os circuitos de informação e de comunicação.
A seleção desse corpus guarda uma dimensão arbitrária e igualmente
necessária.
28
Se, por um lado, outras narrativas poderiam fazer parte deste trabalho, por
outro, o recorte apresenta uma série de orientações – temporal, espacial, temática e de
leitura – que tornou possível a sua configuração. Como já aludido, o critério inicial foi o
fato de serem textos produzidos na Europa Centro-Oriental e, principalmente, de terem
sido veiculados no “extremo Ocidente”, nas últimas décadas do século XX, além, é
claro, de tratarem da questão da guerra. A título de localização: os três filmes
selecionados foram exibidos comercialmente no Brasil; além disso, Underground
recebeu a Palma de Ouro em Cannes – 1995, sendo que, no mesmo ano e no mesmo
festival, Um olhar a cada dia ficou com o Grande Prêmio do Júri; Antes da chuva, por
sua vez, foi vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza – 1994, sendo, também,
indicado ao Oscar de Melhor filme estrangeiro. Esse reconhecimento nos principais
26
A primeira data refere-se ao ano de publicação dos livros e lançamento dos filmes no seu país de
origem; a segunda data, ao lançamento no Brasil. No caso de A exposição das rosas, as duas primeiras
datas são referentes às duas novelas – A exposição das rosas e A família Tóth, respectivamente; a
última, à data de publicação no Brasil.
27
Ao longo da elaboração desta tese, estive em contato constante com outros livros de Ismail Kadaré,
Danilo Kiš e István Örkény, sendo assim, em alguns momentos deste trabalho, reporto-me a outras
obras desses autores. No caso dos filmes, procurou-se dar ênfase às três produções acima citadas.
28
Cf. SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 81-84; BENVENISTE. Problemas de lingüística geral,
p. 53-59.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
22
festivais de cinema do Ocidente, aliado à constatação de que os três filmes são co-
produções,
29
influi sobremaneira no fato de eles terem chegado ao circuito comercial
ocidental e na própria construção dos olhares de Angelopoulos, Manchevski e
Kusturica, em diálogo, não isento de tensão, com o mercado, com o Ocidente. Quanto
aos textos literários, na segunda metade da década de 1980, a Companhia das Letras
lançou no Brasil dois livros de Danilo Kiš, Jardim, cinzas e Um túmulo para Boris
Davidovitch, na esteira do sucesso de A insustentável leveza do ser, do tcheco Milan
Kundera.
30
Por sua vez, Ismail Kadaré experimentou uma certa notoriedade, aqui no
Brasil, depois que seu romance Abril despedaçado foi adaptado para o cinema pelo
diretor Walter Salles, em 2001. Antes, boa parte de sua obra já se encontrava traduzida
para o português. Talvez o menos conhecido dos seis seja István Örkény; não obstante,
seu livro A exposição das rosas iniciou, em 1993, a coleção LESTE (Editora 34), sob a
direção de Nelson Ascher, dedicada a divulgar, no Brasil, os livros de escritores dessa
Outra Europa. Por fim, o caráter mais necessário da escolha: o critério de seleção deste
corpus esteve intimamente relacionado com a forma como essas narrativas lidam com
as questões propostas por este trabalho, ou seja, tratou-se de selecionar narrativas
literárias e fílmicas que trouxessem a temática da guerra vinculada aos processos
identitários dos povos da Europa Centro-Oriental, à representação da guerra na literatura
e no cinema, à história e à memória, de modo a permitir a problematização e a
indagação a respeito dessas questões, não se configurando, portanto, em manifestações
meramente consolidadas na tradição.
Tomo narrativas fílmicas e literárias sem o propósito, entretanto, de
desenvolver questões referentes à especificidade desses dois sistemas artísticos e
discursivos ou de aprofundar a análise das relações entre eles, o que não significa que
tais especificidades tenham sido de todo descartadas. Estas estão consideradas nesta
proposição de diálogo entre literatura e cinema, tomando como suporte teórico a
29
Underground – mentiras da guerra (França/Iugoslávia/Alemanha/Hungria); Um olhar a cada dia
(Grécia/França/Itália); Antes da chuva (Macedônia/França/Reino Unido).
30
Cf. Folhetim, p. 1-28. Fascículo dedicado a Danilo Kiš, publicado no jornal Folha de S. Paulo, de 28
de novembro de 1986, ano da publicação da primeira tradução de um livro de Kiš no Brasil: Jardim,
cinzas.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
23
semiologia, através de autores como Roland Barthes e Christian Metz, e também
privilegiando as reflexões de Gilles Deleuze e o trabalho de César Guimarães.
Neste trabalho, a literatura e o cinema encontram-se associados, apresentando
traços discursivos e narrativos comuns. Tomando as palavras de César Guimarães:
“Para além da comparação entre a imagem literária e a imagem técnica, o que está em
questão é a maneira como a linguagem tal como a concebemos em nosso tempo
dispõe as relações entre o visível e o legível, entre o que se vê e o que se lê”,
31
seja nas
narrativas produzidas pelo signo lingüístico ou pela técnica cinematográfica.
Nesse sentido, ao longo deste trabalho, utilizo de modo específico as noções de
narrativa ficcional e de texto: ressalto que narrativa, sumariamente, conforme utilizada
aqui, consiste no estabelecimento de uma organização temporal que afeta e ordena, no
momento mesmo de sua produção, o diverso, o acidental e o singular. Tal ordenamento
não é anterior ao ato de construção da narrativa, mas coincidente com ele, afinal este ato
constitui o seu objeto.
32
Quanto à segunda noção, conforme salienta Luiz Costa Lima:
A ficção (...) não é uma especificidade da linguagem (verbal ou não
verbal), confiada à literatura e às artes. Há uma ficção cotidiana, como
há uma ficção literária, as quais não se definem por si próprias, mas
em função de um reconhecimento que lhes prestam ou deixam de
prestar períodos e culturas.
33
Além disso, o termo filme, quando utilizado nesta tese, remete à definição proposta por
Christian Metz, ou seja, a de um “discurso significante localizável”, possibilitando
encarar o material fílmico como um texto passível de múltiplas leituras: “(...)
batizaremos de ‘filme’, salvo precisão especial, o filme enquanto discurso significante
(texto), ou ainda enquanto objeto de linguagem”.
34
Da mesma maneira, o conceito de
texto, aqui, o identifica com os produtos da interação social, na contingência mesma do
processo social. Assim, tomo o texto como suporte no qual se realiza a dinâmica da
31
GUIMARÃES. Imagens da memória, p. 66.
32
Sobre as implicações dessa noção de narrativa, ver: LIMA. A aguarrás do tempo, p. 15-121.
33
LIMA. O controle do imaginário, p. 8.
34
METZ. A significação do cinema, p. 11-12.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
24
produção de sentidos, rede na qual se produz sentido e que é produzida no tempo e no
espaço.
35
Quanto à análise dessas narrativas ficcionais, desses textos, ela é feita de modo
individual e independente, e não de modo genérico. Por outro lado, a recorrência de
algumas problematizações, a repetição de algumas estruturas, a semelhança de alguns
enfoques temáticos apontam para uma articulação entre essas diferentes configurações
da guerra, uma recursividade que me levou a caracterizá-las como textos em guerra. Ao
utilizar essa noção, não pretendo criar, “fundar” um gênero ou uma etiqueta a ser
aplicada a filmes e livros. O fato é que a noção de “romance de guerra”, “poesia de
guerra” e “filme de guerra” configura-se como um autêntico gênero na primeira metade
do século XX. Como o seu próprio nome expõe, esse gênero “de guerra” apresenta o
estigma do referencial imediatamente dado, sendo caracterizado em oposição às
vanguardas, à arte experimental. “A idéia é a de que aquela war poetry esteve mais ou
menos fatalizada para a expressão convencional”.
36
E assim considerando, as narrativas
com as quais trabalho desnaturalizam essa visão, construindo um vínculo outro entre
arte e guerra; daí a proposta de tratá-las a partir de uma noção diversa.
No que diz respeito ao referencial teórico, como é possível confirmar nas
“Referências”, ao final deste trabalho, a própria natureza da pesquisa obrigou-me a
dialogar com uma série abundante de discursos advindos de variados espaços
epistemológicos, tais como a teoria literária, a geografia, a história, a filosofia, a
sociologia, a ciência política, a semiologia. Como será dito em outro momento desta
tese, a realidade, como objeto de conhecimento, de linguagem, não se deixa apreender
enquanto porção indivisível, mas se pluraliza e escapa a qualquer tentativa de captura.
Assim, rastreando várias “línguas” e disciplinas, com passagens inevitáveis por Jacques
Derrida, Italo Calvino, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Walter Benjamin; interrogo,
também, autores como Eric Hobsbawm, Edward Said, Benedit Anderson, Norberto
Elias, Hayden White, Linda Hutcheon, Susan Sontag e Hommi Bhabha; busco, ainda,
uma importante interação com o pensamento crítico de Luiz Costa Lima, François
35
Nas palavras de Roland Barthes: texto é “toda unidade ou síntese significativa quer seja verbal ou
visual.” BARTHES. Mitologias, p. 201.
36
MOURA. Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial, p. 181.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
25
Hartog e Ricardo Piglia; na mesma medida, procuro dialogar com as reflexões
realizadas no próprio âmbito da UFMG, entre as quais destaco, por sua importância para
esta pesquisa, as produções de Luis Alberto Brandão Santos, Cássio Eduardo Viana
Hissa e César Guimarães. Tal encontro de vozes e saberes, conscientemente polifônico,
aponta, portanto, para uma visão de estudos literários para a qual fui sensibilizado desde
o curso de graduação, nessa mesma universidade. Em outras palavras, é uma tentativa
de não atrelar a produção de conhecimento a modos absolutistas e reducionistas de
controle dos saberes. Ao transgredir e ultrapassar fronteiras, a proposta é produzir uma
reflexão que se aproxime do “saber paradoxal” produzido pela literatura: “O saber
produzido pela literatura baseia-se na geração de imagens simultaneamente inusitadas e
familiares, na busca de um efeito de identificação do real que é tão mais intenso quanto
maior o estranhamento produzido”.
37
Não é atoa que, ao longo da tese, chamo também
vozes e imagens, advindas tanto do cinema quanto da literatura, para contribuir na
condução do trabalho teórico e analítico: as cartografias de Jorge Luis Borges e de
Lewis Carroll; a jangada de pedra de José Saramago; a cidade invisível de Italo Calvino;
os diários de Franz Kafka; a terceira margem de João Guimarães Rosa, as Europas de
Hesíodo, Ésquilo, Moschos e Ovídio; as imagens de guerra em emergência de Samuel
Fuller, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola e Robert Altman; as guerras de cinema
de David Wark Griffith, Victor Fleming e Steven Spielberg; as galáxias de Haroldo de
Campos; o olhar de Wim Wenders; a nau de Federico Fellini; o obscuro objeto de Luis
Buñel; a Irlanda, porca que devora sua ninhada, de James Joyce; as odisséias de
Homero; as metamorfoses de Woody Allen; os livros, “objetos transcendentes” de Peter
Greenaway e de Caetano Veloso; os ossos de Vasko Popa; as mensagens de Fernando
Pessoa...
No que tange à análise de textos das mais variadas culturas que compõem a
Europa Centro-Oriental, apoio-me, principalmente, nos trabalhos de Aleksandar
Jovanovic, Nelson Ascher e Henryk Siewierski sobre aspectos diversos da língua, da
literatura e da história dos diversos países da região. Na questão da familiaridade com
os idiomas que permeiam as obras em análise e da qualidade das respectivas traduções,
busquei auxílio nos trabalhos e conselhos do já citado pesquisador Aleksandar
37
SANTOS. Nação: Ficção, p. 187-188.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
26
Jovanovic e dos estudos publicados no periódico Slavic and East European Journal,
publicado pela American Association of Teachers of Slavic and East European
Languages of the U.S. No tocante à identidade da Outra Europa, procurei enfatizar, na
exposição e análise de três reflexões específicas, as dos escritores Czeslaw Milosz,
Gjörgy Konrád e Milan Kundera. Quanto à fortuna crítica das narrativas trabalhadas na
tese, destaco os trabalhos de Andrew Horton, de Françoise Létoublon e Caroline Eades,
de Anne Rutherford e de Celina Figueiredo Lage sobre Theo Angelopoulos; a pesquisa
de Andréa França sobre os filmes Antes da chuva e Underground; as leituras da obra de
Emir Kusturica realizadas por Dina Iordanova e por Goran Gocic; as análises de Leyla
Perrone-Moisés, de Alexandre Prztojevic, de Katharina Melic e de Massimo Rizzante
sobre a obra de Danilo Kiš; as leituras de Jerusa Pires Ferreira, de Éric Faye e de Gilles
Banderier da obra de Ismail Kadaré; as incursões de Nelson Ascher e de Arthur
Nestrovski sobre os textos de István Örkény.
Por fim, uma explicação é também necessária a propósito da forma e do plano
deste estudo. A tese divide-se em duas partes. Na primeira, Europa: Paisagem na
neblina, composta de um capítulo, “A invenção da Europa: reflexões em torno de uma
idéia”, dividido, por sua vez, em quatro seções – “Da epígrafe ou Se oriente rapaz...”;
“Antes da Europa: o mito”; “Um continente sem bordas”; “Dentro e fora da Europa” –,
busco rastrear as noções de Europa (ocidental) e Europa Centro-Oriental, salientando o
caráter inventado, poroso e adaptável das mesmas. Três imagens me acompanham nessa
primeira parte da pesquisa: a “terra-jangada de ninguém”, que se arranca do continente
no final do filme Underground – mentiras da guerra; o estertor babélico de Hannah
Krzyzewska, em Um túmulo para Boris Davidovitch: sete capítulos de uma mesma
história; e o mapa da Europa como “mula teimosa” diante do paxá turco Murat, em Três
cantos fúnebres para Kosovo.
A imagem invisível que se produz do contato do feixe de luz do projetor e a
tela branca da cinemateca de Sarajevo, no filme Um olhar a cada dia, aludida ao final
do primeiro capítulo, irá anunciar a segunda parte da tese, Guerra: memórias em fá
maior, composta de dois capítulos, nos quais me detenho na reflexão sobre os textos
escolhidos para análise. O capítulo 2, “Representar a guerra”, é dividido em três seções:
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
27
Mas a guerra disse: sou!”, “Textos em guerra”, e “O ponto cego de uma experiência”.
Na primeira seção, tomo como ponto de partida a correspondência trocada por Albert
Einstein e Sigmund Freud, em 1932, e, em diálogo ainda com as leituras de Giorgio
Agamben, Erich Hobsbawn e Umberto Eco, entre outros, busco salientar que, ao longo
do século XX, o estado de exceção irrompe de seus confins espaço-temporais,
esparrama-se para fora deles, borrando a distinção precisa entre períodos de guerra e
períodos de paz: a exceção da guerra converte-se em norma, como afirma a personagem
Aleksander Kirkov, do filme Antes da chuva. Em seguida, tomo os filmes Antes da
chuva e Um olhar a cada dia, respectivamente, para desenvolver a noção de textos em
guerra. A respeito da relação intrínseca entre a essência da guerra e a essência do
dispositivo cinematográfico, lanço mão, nesse momento da tese, das pesquisas de Paul
Virilio, que exploram a questão em profundidade, além das reflexões de Ismail Xavier e
de Amir Labaki sobre o relacionamento entre guerra e cinema ao longo do século
passado. Na terceira seção – a partir de perguntas como: de que maneira se pode transmitir
o ponto cego de uma experiência? Como manifestar o valor da experiência? –, procedo a
análise de Exposição das rosas: duas novelas, examinando as noções/experiências de
guerra e de morte e a problematização de sua representação. A investigação em torno da
tarefa paradoxal de transmissão e reconhecimento da “irrepresentabilidade” da
experiência da catástrofe apoia-se nas reflexões teóricas de Walter Benjamin, Márcio
Selligman-Silva, Jeanne Marie Gagnebin, Shoshana Felman e Idelber Avelar.
No terceiro capítulo, “A invenção da memória”, dividido em três seções –
“Quem reivindica a verdade histórica”, “Arquivo dos mortos”, e “Mentiras em 35mm” –,
valho-me, entre outros, das noções e conceitos de arquivo, a partir de Jacques Derrida e
Fausto Colombo; de ideal enciclopédico, através das análises de Leyla Perrone-Moisés,
Maria Esther Maciel e Massimo Rizzante; de documento/monumento, partindo
principalmente de Jacques Le Goff; e de ficcional, a partir das problematizações de
Wolfgang Iser e Juan José Saer, para pensar os “lugares” da memória na literatura de
Ismail Kadaré e de Danilo Kiš e no filme Underground – mentiras da guerra. A partir
do questionamento a respeito dos níveis de construção da experiência da memória
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
INTRODUÇÃO – Estimativas e cálculos preliminares
28
nesses campos minados, analiso, respectivamente, o encontro entre mito e história, os
cruzamentos entre diferentes construções da “verdade histórica” na “épica impossível”
de Ismail Kadaré; a tensão entre memória e imaginário, ficção e verdade, no “arquivo
dos mortos” de Danilo Kiš; e, por fim, sou forçado a encarar o “espelho deformante”
para o qual Emir Kusturica nos obriga a todos a olhar, desvelando e desconstruindo os
suportes – documentos e monumentos – e os marcos referenciais da memória coletiva.
PARTE I
EUROPA:
PAISAGEM NA NEBLINA
... a Europa, a Ásia... Essas entidades só
existiram no espírito dos bárbaros ou em suas
representações gráficas. Espécie de quimeras,
meio mulher, meio não sei o quê.
Ismail Kadaré, Três cantos fúnebres para Kosovo
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
30
CAPÍTULO 1
A INVENÇÃO DA EUROPA:
REFLEXÕES EM TORNO DE UMA IDÉIA
En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal
Perfección que el mapa de una sola Provincia ocupaba
toda una Ciudad, y el mapa del imperio, toda una
Provincia. Con el tiempo, esos Mapas Desmesurados no
satisfacieron y los Colegios de Cartógrafos levantaron un
Mapa del Imperio, que tenía el tamaño del Imperio y
coincidía puntualmente con él. Menos Adictas al Estudio
de la Cartografía, las Generaciones siguientes
entendieron que ese dilatado Mapa era Inútil y no sin
Impiedad lo entregaron a las Inclemencias del Sol y de
los Inviernos. En los desiertos del Oeste perduran
despedazadas Ruinas del Mapa, habitadas por Animales y
por Mendigos; en todo el País no hay otra reliquia de las
Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda: Viajes de varones prudentes,
Libro cuarto, cap. XLV, Lérida, 1658
Jorge Luis Borges, Del rigor en la ciencia
1.1. Da epígrafe ou Se oriente rapaz ...
38
Fronteiras, limites, marcos, raias, beiras, balizas, linhas, limiares, contornos,
bandas, divisas, extremidades, estremaduras, marcas, separações, termos, franjas,
fímbrias, orlas, comarcas, cercaduras, arraias, abas, perímetros, confinanças, estremas,
extremos, barras, debruns, fins, confins, bordas, bordadas, margens...
39
Memória. Ainda
me são caras – meados dos anos 80 do século XX – as lembranças das aulas de
geografia e de história do colégio: mapas desenhando territórios; datas e nomes
demarcando fatos no tempo; causas e conseqüências. Era a classificação, a taxonomia,
38
GIL. Oriente, p. 6.
39
Cf. FRONTEIRA; LIMITE. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.
1394; 1759.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
31
enfim, a ordem do caos, das coisas, dos seres, que me inquietavam. O porto seguro
representado por aqueles desenhos, números e nomes acalmavam-me, mas também me
domavam.
Na minha ânsia adolescente por apreender aquela profusão de superfícies e
planos, passei a decorar os contornos e nomes dos países – Repúblicas (democráticas,
federais, populares), Estados, Nações – e suas capitais: Zaire – Kinshasa; URSS –
Moscou; Tchecoslováquia – Praga; Iugoslávia – Belgrado; Alemanha Ocidental – Bonn;
Alemanha Oriental – Berlim Oriental... O lápis sobre o Atlas, sob a superfície tênue do
papel de seda, percorria os contornos com um cuidado semelhante ao dos primeiros
geográphos,
40
embora eu fosse apenas um copista. O périplo do grafite tinha de ser
perfeito, afinal, naquela tarefa, não havia lugar para o heteróclito. Era a ordem do
mundo, a minha certeza.
Certeza? Mas, afinal, quem me dera tal garantia? A Guerra, ou melhor, duas
guerras, grandes, mundiais. Aquela ordem, a estabilidade das (minhas) fronteiras, fora-
me legada como conseqüência das duas Grandes Guerras do século XX. Um mundo
dividido em dois – sustentados por outra guerra; esta, fria. Pelo menos, era o que eu
pude apreender daquelas aulas – resquícios de um condicionalismo histórico ingênuo,
prestígio das visões finalistas e de um modelo de ciência e de cientificidade preso aos
padrões de objetividade do século XIX. Além disso, o fato “histórico” de o mapa
político do mundo – mais precisamente, o da Europa, a Velha e Grande Dama
41
manter-se praticamente “intacto”, de 1945 ao final dos anos 80 – então, o meu
“presente” –, confirmava-me a impressão de que as fronteiras e os nomes eram algo
natural e imóvel.
42
40
O termo geográphos, ao que parece, foi introduzido por Eratóstenes, no século III a.C., e designava
aquele que desenha ou descreve a terra, o autor de um tratado de geografia ou cartógrafo. Antes de sua
introdução, falava-se em periegetés, o autor de um percurso ou uma volta ao mundo habitado. (Cf.
HARTOG. Memória de Ulisses, p. 103).
41
A imagem da Europa metonimicamente representada pela figura de uma velha dama aparece no livro
Três cantos fúnebres para Kossovo, de Ismail Kadaré. Referência semelhante já aparecera no primeiro
romance de Ismail Kadaré, O general do exército morto, p. 14; p. 230; p. 239.
42
Obviamente, essa imobilidade era apenas aparente. Sob a máscara da “serenidade”, a segunda metade
do breve século XX era abalada por mudanças drásticas. Estas não eram mais localizadas ou
regionais, mas globais. (Cf. HOBSBAWM. A crise atual das ideologias, p. 213-226; HOBSBAWM. A
era dos extremos, p. 223-536).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
32
09 de novembro de 1989. A contingência histórica abalava as minhas certezas.
A derrubada do Muro de Berlim era o início da crise das (minhas) ideologias.
Conseqüentemente, veio o fim da divisão do mundo em dois blocos; a união das duas
Alemanhas; o desaparecimento da URSS; a semidesintegração da Tchecoslováquia; o
esfacelamento da Iugoslávia. Em pouco tempo, meus mapas e catálogos de capitais se
desatualizaram, não mais coincidiam “puntualmente”,
43
ponto por ponto. A queda de
um outro muro se insinuava: o da ilusão de uma concreta e precisa noção de fronteira e
de seus desdobramentos. Para alguns – mais especificamente, mas não somente, Francis
Fukuyama
44
–, era o fim da história – o triunfo global e definitivo da democracia sobre
o modelo totalitário –; para mim, o começo: outra história, menos utópica e mais
heterotópica.
45
Em outras palavras, não mais o acercamento completo e objetivo da
Verdade absoluta dos fatos, mas a sombra inevitável do trópico
46
– espaço da escolha;
elemento de incerteza.
As portas para essa outra história já me haviam sido abertas bem antes dos
acontecimentos aludidos acima, não na sala de aula do colégio, mas noutro lugar: a
biblioteca. A literatura, prática discursiva entre outras, me abria espaço para formas
singulares de interlocução, ultrapassando limites e mobilizando fronteiras. Era o campo
das probabilidades e das possibilidades diversas de construção de conhecimento sobre a
realidade que se descortinava. O encontro com o texto literário era, para mim, o
encontro com o discurso (Discursus)
47
– percurso transcurso – como ação de correr para
43
BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225.
44
Cf. FUKUYAMA. O fim da história e o último homem.
45
Sobre a oposição utopia/heterotopia, ver: FOUCAULT. De outros espaços. Disponível em:
<http://www. virose.pt/vector/periferia/foucault_pt2.html>. Nessa conferência proferida por Michel
Foucault, no Cercle d'Etudes Architecturales, em 1967, o autor desenvolve com vagar a noção de
heterotopia. Esta designaria os “contra-lugares”, espécies de utopias realizadas nas quais todos os
outros lugares reais de uma dada cultura podem ser encontrados. Por outro lado, se, apesar de irreais,
as utopias consolam, as heterotopias inquietam, solapando a linguagem ao impedir de nomear isto e
aquilo, ao fracionar ou emaranhar os nomes comuns, ao arruinar a sintaxe. Também no prefácio de As
palavras e as coisas, escrito um ano antes (1966), Foucault faz uma breve alusão às noções de utopia
e de heterotopia, ver: FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 7-8.
46
“trópico é o processo pelo qual todo discurso constitui os objetos que ele apenas pretende descrever
realisticamente e analisar objetivamente”. (WHITE. Trópicos do discurso, p. 14).
47
DISCURSO. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1054.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
33
diversas partes, de tomar várias direções, sem temer o “perigo” da contingência ou o
risco dos itinerários inusitados.
Se, por um lado, o meu breve relato autobiográfico atribuiu, de certa forma, às
aulas de geografia e história a responsabilidade – ou pelo menos parte dela – por minha
leitura ordenada e finalista do mundo, foi também a leitura de um livro de geografia
48
que me sugeriu a escolha de “Del Rigor en la Ciencia”, de Jorge Luis Borges, como
epígrafe deste capítulo. O que poderia parecer, em um primeiro momento, irônico,
inusitado – a cartografia borgiana em um livro de geografia –, tinha, para mim, um
outro sabor, o de o saber
49
produzido pelo texto literário ao dialogar com outras formas
de construção discursiva sobre a realidade. Estava, agora, no âmbito de uma outra
geografia, de uma outra história. Além disso, outro desvio no meu caminho era o fato de
não encontrar o texto de Jorge Luis Borges – que, diga-se de passagem, é dado pelo
próprio Borges como de autoria de Suárez Miranda: Viagens de varões prudentes, Livro
quarto, cap. XIV, 1658
50
–, citado por Cássio Eduardo Viana Hissa,
51
a partir da
História universal da infâmia.
52
Um enigma borgiano me era proposto pela mobilidade
das fronteiras entre os saberes.
Esse encontro inesperado só veio confirmar uma certeza, a de que configurar a
possibilidade de produção de sentido sobre a realidade a partir de um modelo único de
ciência, como única forma possível de saber, significa, hoje, atrelar as disciplinas,
científicas ou não, a uma forma estreita, absolutista e reducionista de produção de
conhecimento. Até porque a realidade, como objeto de conhecimento, de linguagem,
não se deixa apreender enquanto porção absoluta, indivisível, mas se pluraliza e escapa
48
HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 26-33.
49
Sobre a proximidade entre a ordem do saber e o ingrediente do sabor, ver: BARTHES. Aula, p. 21-22.
50
BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225.
51
HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 26.
52
Minha edição do mesmo livro do escritor argentino: 2ª edição, revista, editora Globo, 2001. Note-se
que a edição de História universal da infâmia citada por Cássio Eduardo Viana Hissa é a 5ª edição,
Editora Globo, 1989. Pude consultar a 4ª edição, Editora Globo, 1988; nela consta Do rigor da ciência
e um outro texto também ausente de minha edição, O inimigo generoso. (Cf. BORGES. O inimigo
generoso, p. 70; BORGES. Do rigor da ciência, p. 71). A edição espanhola das obras completas de
Borges, María Kodama y Emecé Editores, 1989 (Cf. BORGES. Obras completas, V. I), também não
traz esses dois textos dentro de História universal da infâmia. Eles aparecem dentro do livro El
Hacedor, na parte intitulada Museo (Cf. BORGES. Obras completas, V. II, p. 225; 229).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
34
a qualquer tentativa de captura. Sendo assim, nas palavras de Cássio Eduardo Viana
Hissa:
a geografia, tal como todas as outras disciplinas, entendidas como
científicas ou não, tem a sua existência e o seu significado
condicionados pela fuga de seus territórios, edificados ao longo da
história da modernidade. Não há geografia sem a transgressão de suas
próprias fronteiras, assim como não há qualquer outra disciplina na
ausência da contígua ultrapassagem de seus próprios territórios, tão
sonhados como rigidamente demarcados.
53
Tal afirmação aponta para a existência dos limites, afinal, as disciplinas não existem
sem o estabelecimento destes, ao mesmo tempo em que alude para a necessidade
premente de se questioná-los. Além disso, ao transgredirem e ultrapassarem as suas
fronteiras, as disciplinas experimentam o exercício de produzir um “saber paradoxal”,
da ordem daquele provocado pelo texto literário, “um saber”, nas palavras de Luis
Alberto Ferreira Brandão Santos, “que é tão mais penetrante e abrangente quanto mais
aberto e especulativo”.
54
Entre as acepções do termo limite está “o que não pode ou que não deve ser
ultrapassado”,
55
ou seja, tal noção aponta para idéia de obstáculo para o trânsito, para o
transcurso,
56
o limite como cerceamento da liberdade, aquele “que se põe a vigiar o
território e o domínio proibidos, como se nele houvesse uma vida autônoma e a vocação
da guarda”.
57
Conseqüentemente, anuncia-se a noção de propriedade atrelada à de
identidade que territorializa o outro e confirma, reivindica o eu. O inventário dos
mundos concomitante à invenção do bárbaro, do outro.
58
53
HISSA. A mobilidade das fronteiras. p. 14.
54
SANTOS. Nação: Ficção, p. 6.
55
LIMITE. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1759.
56
Sobre a noção de transcurso, tal como é utilizada aqui, “sempre contingente, e sempre interrogador
dessa contingência”, ver: SANTOS. Nação: Ficção, p. 9.
57
HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 19.
58
Cf. HARTOG. Memória de Ulisses, p. 93-122.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
35
Por outro lado, o limite, a fronteira,
59
o mapa são formas e conceitos
inventados para dar sentido às coisas, para facilitar a compreensão daquilo que é diverso
e heteróclito. Elementos intrusos e idealizados que, muitas vezes, são tomados por
reproduções exatas, “ponto por ponto”, de uma realidade supostamente ordenada; é
disso que fala Jorge Luis Borges, de um rigor na ciência, que se quer reprodução exata e
não se reconhece como representação. O maior intento dos “cartógrafos de Borges” – a
busca desmedida pelo rigor: “um Mapa do Império que possuía o Tamanho do Império
e coincidia ponto por ponto com ele.” (tradução minha)
60
– revela-se inútil, pois, nesse
intento, falta a necessária interpretação/leitura da realidade. Outra imagem do mapa
como representação exata do território aparece na Conclusão de Sílvia e Bruno, de
Lewis Carroll, mais especificamente, no diálogo entre o narrador e Mein Herr – na
verdade, o professor –, que reproduzo aqui:
Mapas de bolso... como são úteis!
Essa é outra dívida que temos para com a sua nação: mapas. Foi
com vocês que aprendemos a arte da Cartografia. Todavia, acabamos
desenvolvendo-a muito além de seus conhecimentos. Qual a escala
que vocês consideram ser a mais útil de todas?
No meu modo de ver, é a escala de um para dez mil.
O mapa fica muito menor que o terreno! – protestou Mein
Herr. – Logo de início, adotamos uma bem mais detalhada: um para
trezentos. Com o tempo, acabamos usando uma ainda mais detalhada:
um para dois! Por fim, acabamos elaborando o mapa do país na
escala de um por um!
É esse o mapa que vocês usam?
Ainda não, porque não conseguimos estendê-lo no chão. Os
fazendeiros protestaram, alegando que esse mapa acabaria tapando
toda a luz do sol. O remédio foi usar como mapa o próprio terreno do
país, e asseguro que está dando muito certo! (grifos meus)
61
Como os exemplos retirados de Jorge Luis Borges e Lewis Carroll permitem
entrever, “quando o melhor modelo de um fenômeno é o fenômeno mesmo, o científico
59
Apesar da equivalência, os conceitos de limite e de fronteira estabelecem distâncias e deslocamentos.
A fronteira constitui um espaço abstrato por onde passa o limite. Este é reconhecido como linha
abstrata e não pode, portanto, ser habitado, ao contrário da fronteira que, ocupando um faixa (areal),
mostra-se espaço de transição e intercâmbios variáveis. (Cf. HISSA. A mobilidade das fronteiras, p.
34-45).
60
“un Mapa del Imperio que tenía el tamaño del Imperio y coincidía puntualmente con él” (BORGES.
Del rigor en la ciencia, p. 225.).
61
CARROLL. Obras escolhidas, 722-723.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
36
revela sua impotência e sua intervenção resulta supérflua” (tradução minha).
62
Em
outras palavras, aqui tomadas de Paul Virilio, que, por sua vez, lê “A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin, o excesso de exatidão redunda
em delírio de interpretação.
63
Significativo é o exemplo dado por Virilio, o do sistema
INS, no Japão, um coletor central de informações do tamanho de uma cidade e que,
segundo o governo japonês, seria estendido às cinqüenta maiores cidades do país. Seria
a “ubiqüidade ótico-eletrônica” incidindo sobre a configuração do território com a
mesma ilusão de inteireza dos cartógrafos aos quais Jorge Luis Borges e Lewis Carroll
fazem alusão.
Essa ambição de fazer da geografia uma “ciência exata”, ironizada por Borges
e Carroll, já era cara aos primeiros geográphos. Eratóstenes, o mesmo que introduziu o
termo geográphos, no século III a.C., é também aquele que, “tendo a ambição de fazer
da geografia uma ciência verdadeiramente geométrica, visava a construir uma
representação exata do espaço terrestre: o mapa devendo operar como ‘um dispositivo
geométrico’” (grifos meus).
64
Tal intento aparece também nos mapas matematicamente
rigorosos do Iluminismo. O projeto iluminista, com sua concepção da ordenação
racional do espaço e do tempo, concebia o mapa como artefato – e também visão –
totalizante do mundo.
65
A cartografia moderna, última relíquia das “Disciplinas Geográficas”,
66
na
busca pela objetividade, alicerçou-se nesses fundamentos iluministas de racionalização
e controle do espaço. O avanço da tecnologia tornou ainda mais problemática a relação
entre os sistemas de representação cartográficos e a percepção da realidade. Como
afirma Luis Alberto Ferreira Brandão Santos:
62
“Cuando el mejor modelo de un fenómeno es el fenómeno mismo, el científico ha revelado su
impotencia y su intervención resulta superflua.” (BENSEÑOR. Borges, los espacios geográficos y los
espacios literarios. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-145.htm>). Ver também: HISSA.
A mobilidade das fronteiras, p. 27: “O avanço da ansiedade pleo rigor transforma a já precária
representação em reprodução.”
63
VIRILIO. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real, p. 60.
64
HARTOG. Memória de Ulisses, p. 121.
65
Cf. HARVEY. O tempo e o espaço do projeto do Iluminismo, p. 219-235.
66
BORGES. Del rigor en la ciencia, p. 225.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
37
Com o desenvolvimento vertiginoso das novas tecnologias
informatizadas, tende-se a supor que, na atualidade, as possibilidades
de representação do espaço tornem-se cada vez mais poderosas e
exatas. No entanto, tais tecnologias possuem uma dimensão ambígua:
na busca da alta definição, da precisão rigorosa das formas de
representação, criam-se linguagens codificadas que, por serem
progressivamente mais complexas e mediatizadoras, geram o risco de
um delírio de interpretação.
67
Cabe aqui uma analogia entre os mapas e o sistema de signos lingüísticos
68
para compreender melhor a relação arbitrária entre os sistemas de representação
cartográficos e a realidade. Um mapa pretende ser a representação ou o conjunto de
informações a respeito de um espaço determinado. Essa representação se dá a partir de
símbolos. Espera-se, assim, que as pessoas possam se deslocar nos territórios, viajar a
lugares em que nunca estiveram antes, usando mapas, que devem ser lidos atentando-se
para o sistema de símbolos utilizado. Segundo Oswald Dreyer-Eimbcke:
Um mapa só é inteligível para quem conhece essa linguagem visual,
de modo que seja capaz de interpretar os códigos do original
geográfico. Esses símbolos precisam ser apreendidos como se fossem
vocábulos, processo esse que é facilitado pelo uso de imagens de
associação abstrata.
69
Todo mapa é uma representação feita por alguém com determinados objetivos,
de acordo com certos princípios e pressupostos estabelecidos por convenções. Tais
convenções irão variar de acordo com as épocas. Assim, por exemplo, os mapas
medievais acentuarão as qualidades sensuais, e não, como no Iluminismo, as racionais e
objetivas, da ordem do espaço.
70
Desconhecer o fato de que o mapa não é o espaço absoluto em si, mas um
conjunto de informações organizadas por um sistema de símbolos, é tomar a
representação, arbitrária e necessária, pela reprodução, tanto mais fiel quanto mais
67
SANTOS. Nação: Ficção, p. 93.
68
Sobre a questão da “natureza do signo lingüístico”, ver: SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p.
79-93; BENVENISTE. Problemas de lingüística geral, p. 53-59. Noutro viés, saliento a
desconstrução, proposta por Jacques Derrida, da noção de signo nos dois primeiros capítulos (O fim
do livro e o começo da escritura; Lingüística e Gramatologia) da primeira parte (O fim do livro e o
começo da escritura), do livro Gramatologia, p. 7-90.
69
DREYER-EIMBCKE. O descobrimento da terra, p. 16.
70
HARVEY. O tempo e o espaço do projeto do Iluminismo, p. 219-235.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
38
inútil. É desconhecer o jogo intercambiável entre as palavras e as coisas, tão bem
descrito, por exemplo, por Marco Polo a Kublai Khan, na geografia fantástica
desenhada por Italo Calvino, em As cidades invisíveis:
Os olhos não vêem coisas mas figuras de coisas que significam outras
coisas: o torquês indica a casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as
alabardas, o corpo de guarda; a balança, a quitanda. Estátuas e escudos
reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas: símbolo de que
alguma coisa – sabe-se lá o quê – tem como símbolo um leão ou
delfim ou torre ou estrela.
71
Ao se esquecerem de que as palavras não são as coisas, de que os mapas não
são os espaços geográficos, as pessoas tomam os sistemas de representação do mundo
como algo natural e acabado, e não como representações de unidades culturais, que têm
valor relativo dentro de certo contexto histórico-social; também este construído,
inventado: “a suposta concretude e acessibilidade dos meios históricos, estes contextos
dos textos examinados por estudiosos da literatura, são elas próprias produtos da
capacidade fictícia dos historiadores que estudaram estes contextos” (grifos meus).
72
É dessa ordem a exatidão atingida pela “Arte Cartográfica” do Império aludido
por Jorge Luis Borges e do “mundo” de Mein Herr. Não há mais distanciamento ou
diferenciação entre o signo e a coisa representada. Nessa pretensa “perfeição”, não há
espaço para a leitura, para a interpretação; apenas, para a reprodução. Não deixa de ser
sintomático o fato de os fragmentos do “Mapa do Império” encontrarem-se espalhados
pelos “Desertos do Oeste”. O Oeste é a direção, na esfera celeste, onde se põem os
astros, à esquerda de quem olha para o norte; ocaso; poente; ocidente.
73
Nas palavras de
Cassio Eduardo Viana Hissa, além de ser “o lugar onde o sol se põe”, o Oeste ao qual se
refere Jorge Luis Borges é o produto da racionalidade, do rigor e da meticulosidade
cartesianos da ciência e da modernidade: “O ocidente da modernidade que se propaga,
que expande todos os valores relacionados ao progresso, que se globaliza na suposta
última revolução técnico-científica fundamentada na razão e no rigor digitalizado”.
74
71
CALVINO. As cidades invisíveis, p. 17.
72
WHITE. Trópicos do discurso, p. 106.
73
OESTE. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 2051.
74
HISSA. A mobilidade das fronteiras, p. 29.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
39
Com a inicial maiúscula, Ocidente designa, para os europeus, a região do
mundo que compõe a parte oeste do Velho Continente. Todavia, os americanos do
norte, situados a mais de 5.000 quilômetros do oeste de lá, por exemplo, não tiveram
problemas com o rótulo “Ocidente” (The West), e mesmo, a partir de meados do século
XX, com seu “domínio”. Quanto ao povo árabe, ele emprega o termo Poente (Maghreb)
por oposição ao Levante (Machreq), para designar a parte ocidental do conjunto
geopolítico do mundo árabe-islâmico, sendo o termo “Marrocos”, por exemplo, a
tradução de Maghreb.
75
Novamente, a ordem das representações, subjetivas, humanas,
demasiado humanas.
O Ocidente... a Europa... a Cristandade... a Grécia... os nós. Fragmentos de um
Mapa, pedaços de um Muro: ruínas. 09 de novembro de 1989. Os ventos do deserto são
tomados como ventos de liberdade, o triunfo da democracia e o fim da história.
76
Sob a
poeira dos escombros, no entanto, outra paisagem – Paisagem na neblina
77
desenhava-se para mim. Depois de 1989, o mapa da Europa e do mundo se
metamorfoseava e, ao contrário dos pós-guerras (1919, 1945), não havia vencedores
para determinar, supervisionar ou, pelo menos, ratificar fronteiras contestadas.
78
“A Europa”, cujas formas e contornos; limites e fronteiras, nações e capitais,
eu guardara de cor, “jaz, posta nos cotovelos”.
79
Ao fitá-la, a imagem devolvida
revelava-se – para além da Grande Dama dos “olhos gregos”, dos “cotovelos italianos e
ingleses”, do “rosto português”
80
– uma Quimera,
81
um corpo impossível; “uma vez
75
Cf. VALLE. Guerras contra a Europa, p. 319. Sobre as noções cambiantes do termo Ocidente, ver as
páginas 319 a 328 da mesma obra.
76
Cito aqui, a título de ilustração, textos, escritos no “calor da queda”, que atestam essa leitura otimista
da derrubada do Muro de Berlim: DARNTON. Escrito no muro, p. 12-17; TOURAINE. O duro
caminho da democracia, p. 18-25; PAZ. Ironia e compaixão, p. 26-29; BRODSKY. O mundo visto de
um carrossel, p. 30-36. Por outro lado, saliento que nem sempre a leitura otimista do fato era
acompanhada da assertiva do “fim da história.” Conforme atesta Octavio Paz, em “A outra voz”,
escrito em 01 de dezembro de 1989: “Não assistimos ao fim da história, como disse um professor
americano, e sim a um recomeço. Ressurreição de realidades enterradas, reaparição do esquecido e do
reprimido que, como outras vezes na história, pode desembocar em uma regeneração”. (PAZ. A outra
voz, p. 134).
77
PAISAGEM na neblina. Direção: Theo Angelopoulos... (1988).
78
Cf. HOBSBAWM. A era dos extremos, p. 537-538.
79
PESSOA. Mensagem, p. 21 (poema Os castellos)
80
PESSOA. Mensagem, p. 21 (poema Os castellos)
81
A Quimera, animal fabuloso – parte posterior de serpente e cabeça de leão implantada num corpo de
cabra –, é o produto da união do monstro Tífon e da víbora Equidna. (Cf. QUIMERA. In: GRIMAL.
Dicionário da mitologia grega e romana, p. 402).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
40
fragmentado, só lhe foi possível recuperar a unidade do corpo através de formas
híbridas e monstruosas”.
82
Os acontecimentos posteriores a novembro de 1989, em
específico, os conflitos nos Bálcãs, tornaram visíveis e legíveis, para mim, uma região
peculiar, um caleidoscópio de povos, religiões, culturas e, obviamente, de línguas.
Sérvios, bósnios, croatas, albaneses; católicos, cristãos ortodoxos, muçulmanos, judeus;
eslovacos, tchecos, ucranianos; húngaros... Babel. Como bem mostra Jacques Derrida:
A Torre de Babel não configura apenas uma multiplicidade irredutível
das línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de
completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria
da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da
arquitetônica.
83
A Velha Europa de tradições ditas imemoriais
84
mostrava-se, assim, muito mais afeita
às metamorfoses do que eu supusera, quase “uma imundície de contrastes”, como nós
(nós?): apesar de dependentes, ocidentais.
85
A visibilidade e a legibilidade desse universo outro, feito de fronteiras ariscas e
mutáveis, que a cada guerra se deslocam e mudam de nome, reúnem-se e se separam,
desaparecem..., fez-se, para mim através das imagens e narrativas do cinema e da
literatura da chamada Europa Centro-Oriental que chegaram aqui pelas vias da
tradução.
86
Com o recrudescimento dos conflitos nos Bálcãs, o número de filmes e
livros oriundos dessa região e traduzidos no Brasil aumentou no decorrer dos anos 90
do século XX. Nomes um tanto difíceis de pronunciar, uma multiplicidade de línguas
“estranhas” – “carentes de vogais”! Por outro lado, olhares singulares sobre a
identidade, sobre a guerra, sobre o ato de narrar.
82
MORAES. O corpo impossível, p. 89.
83
DERRIDA. Torres de Babel, p. 11-12.
84
Sobre o tema das tradições inventadas, ver: HOBSBAWM. Introdução: a invenção das tradições, p. 9-
23; SAID. Cultura e imperialismo, p. 46-50.
85
Aqui faço referências a Mário de Andrade – “a nossa formação nacional não é natural, não é
espontânea, não é, por assim dizer, lógica. Daí a imundície de contrastes que somos. Não é tempo
ainda de compreender a alma-brasil por síntese.” (ANDRADE. Aspectos da literatura brasileira, p. 8)
– e a Silviano Santiago (SANTIAGO. Apesar de dependente, universal, p. 13-24).
86
É comum a utilização dos termos “lançado” ou “não lançado” para se referir aos filmes que chegaram
ou não chegaram, respectivamente, a ser exibidos no Brasil. Todavia, optei, considerando-a mais
adequada, por utilizar a idéia de tradução também me referindo ao discurso fílmico.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
41
É tácito o fato de que, nos países localizados na Europa Centro-Oriental, a
experiência da guerra que consome e desintegra o espaço, os lugares, os nomes – é
vivida de forma intensa e intrínseca. Os livros Três cantos fúnebres para o Kosovo, do
albanês Ismail Kadaré, Um túmulo para Boris Davidovitch: sete capítulos de uma
mesma história, do iugoslavo Danilo Kiš, e A exposição das rosas: duas novelas, do
húngaro István Örkény; e os filmes Antes da chuva, do macedônio Milcho Manchevski,
Underground – mentiras da guerra, do iugoslavo
87
Emir Kusturica, e Um olhar a cada
dia, do grego Theo Angelopoulos textos em guerra e não de guerra
88
, buscam
exatamente um resgate da imagem, do olhar, do narrar, em meio à destruição, em meio
à implosão das fronteiras, dos territórios, dos sujeitos. Nesse sentido, uma característica
marcante dessas narrativas vai ser a “consciência da História”,
89
o que pode ser
evidenciado pela forma como tais textos lidam com a modulação/construção temporal.
É um tempo, nas palavras do escritor polonês Czeslaw Milosz, a respeito das narrativas
da Europa Centro-Oriental,
modulado de maneira diferente do que é o tempo de seus equivalentes
ocidentais.(...) o tempo é intenso, convulsionado, cheio de surpresas, é
praticamente um ativo participante da história. Isto, porque o tempo é
associado com um perigo ameaçando a existência de uma comunidade
nacional a que pertence o escritor.
90
Em anotações de seus Diários, datadas de 25 de dezembro de 1912, Franz
Kafka – figura emblemática dessa região – salienta de modo significativo essa forma de
experiência e de vivência da história à qual os artistas dessa Outra Europa estariam
fadados:
O que nas grandes literaturas acontece no plano mais baixo, e constitui
um sótão de nenhum modo indispensável ao edifício, aqui acontece
em plena luz; o que lá provoca o momentâneo interêsse (sic) de umas
87
Mantenho o adjetivo pátrio iugoslavo ao me referir a Danilo Kiš, porque o escritor faleceu em 15 de
outubro de 1989, ou seja, antes do esfacelamento do país. Quanto a Emir Kusturica, inicialmente
também utilizo a nacionalidade iugoslava, já que, mesmo depois da desintegração do país, o cineasta
ainda se “denominava” iugoslavo. Falarei sobre essa questão nas próximas páginas.
88
Essa dicotomia textos de guerra e em guerra será desenvolvida no Capítulo 2 desta tese.
89
Expressão cunhada pelo poeta polonês Czeslaw Milosz. (Cf. MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 4).
90
MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 4.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
42
poucas pessoas, aqui absorve a atenção universal, como um assunto de
vida e de morte.
91
Alinho às reflexões de Czeslaw Milosz e Franz Kafka o que Homi K. Bhabha afirma a
respeito do espaço, do povo-nação e do escrever a nação modernos: “Precisamos de um
outro tempo de escrita que seja capaz de inscrever as interseções ambivalentes e
quiasmáticas de tempo e lugar que constituem a problemática experiência ‘moderna’ da
nação ocidental” (grifo do autor).
92
As problemáticas fronteiras e limites da Europa
Centro-Oriental encontram-se encenadas nos textos com os quais trabalho nesta tese,
através dessas temporalidades ambivalentes do espaço-nação.
A própria apresentação desses livros e filmes e de seus autores coloca uma
fissura, um abismo: a construção das identidades, dos lugares, das nacionalidades e o
escrever essas nacionalidades, lugares e identidades. Essa fissura, esse abismo é um
obstáculo que, ao mesmo tempo em que embaraça, proporciona uma posição
privilegiada para se refletir sobre o complexo problema das identidades, porque deixa à
mostra a fragilidade dos discursos sobre o assunto. Como se referir, por exemplo, após a
decomposição da Iugoslávia, ao escritor Danilo Kiš e ao cineasta Emir Kusturica? Não
quero dizer aqui que a questão da identidade no que se refere aos outros autores seja
bem resolvida – afinal, a questão das identidades e “o problema das nacionalidades
perpassa todas as letras da Europa Centro-Oriental”
93
–, mas é que a desintegração do
país – a partir de 1991 – torna as coisas ainda mais complexas, a fratura mais exposta.
Danilo Kiš, de nome eslavo e sobrenome húngaro, que uma vez afirmara,
sintomaticamente, em uma entrevista: “Eu sou um bastardo, vindo de nenhuma parte”
(tradução minha),
94
era filho de mãe sérvia, cristã ortodoxa, natural da região de
Montenegro,
95
e de pai húngaro, judeu; nasceu em 22 de fevereiro de 1935, em
91
KAFKA. Diários, p. 162. Este trecho dos Diários é retomado por Gilles Deleuze e Félix Guattari para
confirmar uma das características das “literaturas menores”: “nelas tudo é político.” (Cf. DELEUZE;
GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor, p. 25).
92
BHABHA. O local da cultura, p. 201.
93
JOVANOVIC. Iugoslávia, uma constelação cultural, p. 57.
94
“Je suis un bâtard venu de nulle part” (KIŠ, Danilo. Le résidu amer de l'existence, p. 295).
95
Montenegro é uma das seis repúblicas – ao lado da Sérvia, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Bósnia –
que compunham a ex-Iugoslávia, além das duas regiões autônomas, Kosovo e Voivódina, sob
influência Sérvia.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
43
Subotica, na então Iugoslávia.
96
Perto da fronteira com a Hungria, Subotica ficava na
Voivódina e pertencera, até o final da Primeira Guerra Mundial, exatamente aos
húngaros, ou melhor, ao império austro-húngaro; ou seja, “ex-Iugoslávia, ex-Voivódina,
ex-Hungria, ex-império austro-húngaro, todos esses ‘ex’ foram acumulados pela mesma
região em menos de um século” (tradução minha).
97
Em 1941, o exército húngaro
invade a Voivódina e, após o massacre de judeus e de sérvios, pelos fascistas húngaros,
a família de Danilo Kiš é obrigada a deixar a região, sendo acolhida por parentes em
Kerkabarabas, na Hungria. No decorrer da guerra, o pai de Kiš é deportado para
Auschwitz, de onde não retornará.
98
No período em que vive na Hungria – entre 1941 e
1947 –, Danilo Kiš experimenta o uso de duas línguas: o servo-croata e o húngaro; a
vivência desses dois idiomas terá grande importância na trajetória ficcional do
escritor.
99
Anos depois, como professor de literatura em universidades da França, onde
se instala definitivamente a partir de 1979 até a sua morte, adiciona ao seu universo
lingüístico o francês: a língua do exílio, a língua das traduções.
100
E as
confusões/convulsões sobre suas origens e identidade não param por aí, pois Danilo Kiš
96
Os dados biográficos de Danilo Kiš foram colhidos nas seguintes fontes: ASCHER. Pomos da
discórdia; KIŠ. Le résidu amer de l'existence; KIŠ. An interview with Danilo Kiš by Brendan Lemon.
Disponível em: <http://www.centerforbookculture.org/interviews/interview_kis.html>; DOSSIER
Danilo Kiš. Disponível em: <http://www.vox-poetica.org/ecrivains/KIS/kis.htm>; PROGUIDIS. Le
residu amer de l'homme. Disponível em: <http://www.inconvenient.ca/textes/ lakis_residu.htm
>;
LORCA. Danilo Kiš, ou l'ironie contre l'horreur.
Disponível em: <http://www.lire.fr/critique.
asp/idc=31094/idR=217/idTC=3/ idG =4
>; SONTAG. Questão de ênfase, p. 125-131.
97
“ex-Yougoslavie, ex-Voïvodine, ex-Hongrie, ex-Empire austro-hongrois, tous ces «ex» ayant été
accumulés par la même région en moins d’un siècle.” (PROGUIDIS. Le residu amer de l'homme.
Disponível em: <http://www.inconvenient.ca/textes/ lakis_residu.htm>).
98
No romance Jardim, cinzas, de Danilo Kiš, misto de memória e ficção, a personagem Eduard Scham,
pai do narrador da história, Andi Scham, também desaparecerá em Auschwitz. Eduard é uma espécie
de profeta louco que trabalha durante anos sobre um guia chamado Guia das vias de comunicação
terrestres, marítimas, ferroviárias e aéreas, que nasce da ambição inicial de responder à pergunta
(enigma): “como ir à Nicarágua?”, e termina transformando-se em um borgiano compêndio
cosmológico, para cuja documentação ele consulta “uma enorme bibliografia sobre os assuntos mais
variados, em quase todas as línguas da Europa”. Danilo Kiš chega a listar cerca de duzentas
disciplinas que Eduard teria consultado. (Cf. KIŠ. Jardim, cinzas, p. 43-51).
99
KIŠ. Le résidu amer de l'existence, p. 295. É importante salientar que o autor se definiu sempre como
“Iugoslavo” e dizia que se sentia “em casa em Zagreb como em Belgrado” (Cf. PRSTOJEVIC. Un
certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš. Disponível em:
<http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php>; SONTAG.Questão de ênfase, p. 126).
100
Danilo Kiš traduziu para o servo-croata alguns dos mais importantes escritores franceses:
Lautréamont, Raymond Queneau, Pierre Corneille, Jacques Prévert e Charles Baudelaire. Também
traduziu textos de escritores contemporâneos, do russo, do húngaro e do inglês, embora seu trabalho
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
44
morreu em 15 de outubro de 1989, antes da queda do Muro de Berlim; antes do
esfacelamento da Iugoslávia. Esse esboço biográfico do escritor permite exemplificar o
palimpsesto em que se configura o mundo socioespacial dessa Outra Europa, além de
confirmar o caráter arisco e difuso das fronteiras.
Essa experiência de “desconcerto babilônico”
101
do escritor iugoslavo é
encenada no primeiro capítulo do livro Um túmulo para Boris Davidovitch: sete
capítulos de uma mesma história, intitulado “A faca com cabo de pau-rosa”, quando o
narrador revela o desejo de forjar uma “língua universal do horror” (tradução minha),
102
que contenha a mistura de todas a línguas. Tarefa esta que ele não consegue concluir:
Esta história, nascida na dúvida e na incerteza, só tem o mal (que
alguns chamam de sorte) de ser verdadeira: foi registrada por mãos
honestas, segundo testemunhos confiáveis. Mas, para que se chegasse
à verdade com que sonha o autor, teria que ser contada em romeno,
húngaro, ucraniano ou iídiche; ou antes numa mistura de todas as
línguas. (...) Se o narrador, portanto, pudesse atingir esse momento de
desconcerto babilônico, inacessível e apavorante, ouvir-se-iam até as
humildes preces de Hana Krzyzewska e suas súplicas horríveis,
pronunciadas em romeno, em polonês, depois em ucraniano (como se
a questão de sua morte não fosse mais que resultado de um engano
trágico), e depois, no momento do espasmo derradeiro e do sossego,
seria possível ouvir seu delírio transformar-se em oração pelos mortos,
em hebreu, língua dos inícios e da morte.
103
O canal para que se torne possível, legível, a “verdade” sonhada pelo narrador
seria a “língua-verdade”,
104
reconstrução da Torre como apagamento de seu nome,
Babel.
105
Porém, se, de início, a construção desse monumento linguageiro feito por
Danilo Kiš aponta para a unidade ideal entre todas as línguas, metonimicamente
de tradução mais profícuo fosse o do francês. (Cf. DOSSIER Danilo Kiš. Disponível em:
<http://www.voxpoetica.org/ ecrivains/KIS/kis.htm>; SONTAG. Questão de ênfase, p. 129-130).
101
A respeito da etimologia do topônimo bíblico Babel: do hebreu babhel, latinizado Babel, equivalente
a Babilonia, do assírio bab-ilu “porta de deus”, grego Babulon, Babulonía. (Cf. BABEL
1
; BABEL
2
;
BABILÔNIA. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 369).
102
“une langue universelle de l'horreur” (MELIC, Katarina. La fiction de l'Histoire dans Un tombeau
pour Boris Davidovitch de Danilo Kiš. Disponível em: <http://www.fabula.
org/effet/interventions/18.php>). A autora utiliza a expressão para marcar o diálogo (contraponto)
com Jorge Luis Borges.
103
KIŠ, Danilo. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 7.
104
SANTOS. Nação: Ficção, p. 35.
105
BÍBLIA de Jerusalém. A. T. Gênesis. Cap. 11, p. 45.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
45
representada pelo hebreu,
106
no fim da gradação – “língua universal”, passível de se
transmitir, de se traduzir uma “verdade”
107
–, tal projeto revela-se impossível,
“inacessível e apavorante”, porquanto uma Babel que contém em si o desejo da unidade
– da língua universal, ideal, “dos inícios e da morte” –, e carrega, ao mesmo tempo, no
nome e na origem – “... nascida na...” – o germe da diversidade, a quebra e a dispersão;
a dúvida e a incerteza. A “língua pura”,
108
reconciliação, encontro de todas as línguas,
redunda em desconcerto.
Tal “performance babélica”
109
é apenas tocada, não na escrita mesma do
narrador – talvez por sua intradutibilidade, afinal: “Como traduzir um texto escrito em
diversas línguas ao mesmo tempo? Como ‘devolver’ o efeito de pluralidade? E se se
traduz para diversas línguas ao mesmo tempo, chamar-se-á a isso traduzir?”
110
–, mas na
descrição do assassinato da personagem Hana Krzyzewska, a jovem judia, fugida da
Polônia, que chegara a Antonovka (Tchecoslováquia), região onde se passa a primeira
história, e era obrigada a dar aulas particulares de alemão, “um alemão muito
semelhante ao iídiche”:
111
A jovem estava deitada no lodo à beira da água, entre os troncos
nodosos dos chorões. Respirando com dificuldade, tentava inutilmente
levantar-se e fugir. Enquanto lhe enfiava em pleno peito a lâmina
curta de sua faca de Bucovina com cabo de pau rosa, Mikcha, suarento
e ofegante, não entendia mais que uma ou outra coisa da avalanche de
palavras soltas, trêmulas, queixosas, que emergiam da lama, do
sangue e dos gemidos. Golpeava depressa, animado por uma espécie
de ódio, que agora se justificava e que acelerava o movimento de sua
mão. Em meio ao estrondo das rodas do trem e ao ronco surdo das
vigas metálicas da ponte, a jovem começou a falar, depois a
estertorar, em romeno, em polonês, em iídiche, no fim em ucraniamo,
como se a questão de sua morte não fosse mais que o resultado de
106
“porque é nessa língua que Deus se dirigiu aos que o escutavam. O hebreu carrega, pois, como
resquícios, as marcas da nomeação primeira” (FOUCAULT. As palavras e as coisas, p. 52).
107
As noções de “língua universal”, “língua da verdade” e “língua pura”, presentes no mito da torre de
Babel, aparecem no importante artigo de Walter Benjamin, A tarefa do tradutor (BENJAMIN. A
tarefa do tradutor, p. i-xxii). Utilizo-as aqui, levando em conta, também, os seguintes comentadores do
artigo de Benjamin: DERRIDA. Torres de Babel, p. 11-72; CAMPOS. Para além do princípio da
saudade, p. 6-8; SANTOS. Nação: Ficção, p. 37-41.
108
BENJAMIN. A tarefa do tradutor, p. xviii-xxii.
109
DERRIDA. Torres de Babel, p. 26.
110
DERRIDA. Torres de Babel, p. 20.
111
KIŠ, Danilo. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 15.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
46
algum engano trágico que tivesse suas remotas raízes na confusão
babilônica das línguas. (grifos meus)
112
No momento da morte da personagem – também irrepetível e intradutível –,
irrompe a unidade das línguas, não mais em um sentido ideal – não há mais espaço para
o hebreu, o “momento do espaço derradeiro e do sossego” –, mas na alteridade radical
do corpo a estertorar, revelando que “é possível destruir um corpo, atentar contra a sua
integridade, contra a sua ação, mas jamais fazer com que ele deixe de ser outro, jamais
rasurar sua fronteira”.
113
Em uma região na qual a(s) língua(s) detém tanto poder – cada
grupo étnico ou nacional define-se ali primordialmente em termos lingüísticos –, o
engano trágico do qual resulta a morte de Hana Krzyzewksa só poderia mesmo advir de
uma origem comum: a Torre de Babel. Como afirma ironicamente Nelson Ascher: “a
diversidade idiomática da Europa Centro-Oriental justificaria a hipótese de que as
ruínas do malfadado monumento bíblico talvez ainda possam ser localizadas em algum
lugar na bacia do Danúbio”.
114
Quanto a Emir Kusturica e a questão da origem: primeiramente, ele nasceu em
24 de novembro de 1954, em Sarajevo, capital da atual Bósnia-Herzegovina, então
república federal da (ex)Iugoslávia.
115
Embora educado em um lar bósnio-muçulmano,
sua família tinha origens eslavo-ortodoxas: seus ancestrais foram forçados, depois da
invasão Otomana – a partir do século XIV –, a converterem-se ao Islamismo. Nos anos
90, quando da eclosão dos conflitos nos Bálcãs, Emir Kusturica, apesar de a “História”
considerá-lo, a partir daquele momento, bósnio, declarava-se iugoslavo e contrário à
divisão do país. Em várias ocasiões, o cineasta criticou os “nacionalistas croatas e
eslovenos” e deixou entrever a responsabilidade das potências estrangeiras na
fragmentação de seu país.
116
Tal posicionamento do cineasta (iugoslavo? bósnio?) iria
desencadear querelas, como aquela travada com o escritor francês Alain Finkielkraut
112
KIŠ, Danilo. Um túmulo para Boris Davidovitchi, p. 15-16.
113
SANTOS. Nação: Ficção, p. 59.
114
ASCHER. Europa, pois é, Europa, p. 13.
115
Tomamos como referência para os dados biográficos de Emir Kusturica, IORDANOVA. Emir
Kusturica.
116
KUSTURICA. Europe, ma ville flambe! Disponível em: <http://dhennin.com/kusturica/v2/
politique_fr.html>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
47
nas páginas dos jornais Le Monde e Libération,
117
em 1995, depois do Festival de
Cinema de Cannes, que renderia a Kusturica sua segunda Palma de Ouro – a primeira
foi em 1985, com Quando papai saiu em viagem de negócio. O que ficou dessa
polêmica foi o fato de Finkielkraut – que, defensor e porta-voz, na França, dos
separatistas croatas, acusava Kusturica de ser um propagandista nacionalista pan-sérvio
e o filme Underground, uma falsificação ofensiva e estúpida – declarar não ter assistido
ao filme antes de escrever a sua crítica,L'imposture Kusturica”, publicada no Le
monde.
118
Em sua resposta, “Mon imposture”, publicada no mesmo jornal, Emir
Kusturica, como fica explícito no título, parodiava os excessos de Alain Finkielkraut.
119
É emblemático, no que tange à questão da identidade e do posicionamento de
Emir Kusturica, o subtítulo original do filme Underground (1995): “Era uma vez um
país...”. Essas mesmas palavras, “epigraficamente”, na forma de intertítulos/cartelas,
abrem o filme: “Era uma vez um país... e naquele país sua capital Belgrado, 6 de abril
de 1941”. A data, 6 de abril de 1941, marca o início da invasão nazista durante a
Segunda Guerra Mundial, uma entre tantas datas marcantes para a região e às quais se
fará alusão ao longo do filme, que abarca 51 anos – de 1941 a 1992 – de história da
(ex)Iugoslávia. Por outro lado, essa data histórica aparece acompanhada do saber
proveniente da fábula, a forma arquetípica, “Era uma vez...”, que desafia o caráter
intermitente do tempo e funciona como “ponto de fuga do determinismo da
realidade”.
120
A singularidade do “Era uma vez...” – cuja principal característica é “a
capacidade de prestar-se a um número infinito de multiplicações, variações e
117
Cf. FINKIELKRAUT. L'imposture Kusturica, p. 17; KUSTURICA. Mon imposture, p. 13.;
FINKIELKRAUT. La propaganda onirique d'Emir Kusturica, p. 7. Disponíveis em:
<http://www.dhennin.com/kusturica/v2/ polemique_en.html>
.
118
FINKIELKRAUT. L'imposture Kusturica, p. 17. Disponível em: <http://www.dhennin.com/kusturica/
v2/ polemique_en.html>
.
119
KUSTURICA. Mon imposture, p. 13. Disponível em: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/
polemique_en.html>. Finkielkraut ainda escreveria um outro artigo, para o Libération, “La
propaganda onirique d'Emir Kusturica”, em que começava com um estranho argumento de que não
era necessário assistir O triunfo da vontade para saber que não se tratava de uma obra antinazista. (Cf.
FINKIELKRAUT. La propaganda onirique d'Emir Kusturica, p. 7. Disponível em:
<http://www.dhennin.com/kusturica/v2/ polemique_en.html
>.) Tal polêmica será retomada, com mais
vagar, no terceiro capítulo desta tese.
120
MIRANDA. Notas sobre literatura na pós-modernidade, p. 109.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
48
surpresas”
121
– pluraliza-se e volta, ao final do filme, junto à imagem, também
emblemática, da “terra-jangada-de-ninguém”
122
que se descola do “continente”, sendo
levada pelas águas, de maneira aparentemente errante (ver Figura 1), semelhante ao que
acontece no romance A jangada de pedra, de José Saramago, publicado em 1986:
e a massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques,
fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus
animais, começou a mover-se, barca que se afasta do porto e aponta ao
mar outra vez desconhecido.
123
Se a posição privilegiada da Península Ibérica – isso eu também aprendi nas
aulas do colégio – permitiu a José Saramago a “eficiência” da imagem metafórica – a
Península se destacava da Europa, na linha dos Pirineus, e se punha a navegar sozinha –
a experiência coletiva (Erfahrung)
124
da fragmentação da Iugoslávia e o imaginário
levam Emir Kusturica a construir outra cisão possível.
Figura 1: Seqüência final do filme Underground
Fonte: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/polemique_en.html
>
121
MIRANDA. Notas sobre literatura na pós-modernidade, p. 109.
122
Referência “cruzada” do filme TERRA de ninguém. Direção: Danis Tanovic... 2001 e o romance A
jangada de pedra, de José Saramago.
123
SARAMAGO. A jangada de pedra, p. 43.
124
O conceito de experiência (Erfahrung) – experiência coletiva – é tomado aqui na acepção proposta e
desenvolvida por Walter Benjamin, em oposição à noção de experiência (Erlebnis) – experiência
particular e privada. Ver os textos: “Experiência e pobreza”, “O narrador”, “Sobre o conceito de
história” (Cf. BENJAMIN. Magia e técnica, arte e política, p. 114-119; 197-221; 222-232) e “Sobre
alguns temas em Baudelaire” (Cf. BENJAMIN. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo,
p. 103-149).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
49
Não é sem razão que o olhar da câmera, nas cenas finais, em que o espectador
assiste à ruptura do pedaço de terra, dê ênfase às rachaduras, às fendas, às fissuras, aos
sulcos da terra. As fronteiras movediças, sempre em deslocamento, e as identidades
fluidas, sempre rarefeitas, são expostas em toda a sua força.
Vale também ressaltar que, nessa seqüência do filme, o ator Slavko Stimac,
que interpreta a personagem Ivan – funcionário do zoológico e irmão do inescrupuloso
Marko – aparece sem os caracteres da personagem – o mais visível deles, a gagueira – e
diz as seguintes palavras, olhando diretamente para a câmera, para o espectador:
Aqui, ergueremos novas casas de telhados vermelhos com chaminés
onde cegonhas farão ninho. Suas portas se abrirão para nossos amados
hóspedes. Seremos gratos ao solo que nos alimenta, ao sol que nos
aquece, aos prados que nos lembrarão de nossa terra natal. Será com
dor, sofrimento e alegria que lembraremos de nosso país, ao
contarmos aos nossos filhos as histórias que começam assim: Era uma
vez um país
Essas palavras explicitam o fato de que, para os escritores e cineastas da Europa Centro-
Oriental, não há, ampliando uma afirmação de Susan Sontag
125
a respeito de Danilo Kiš,
como afastar-se de um sentido exacerbado do lugar do artista e de sua responsabilidade
que, literalmente, vem com o território.
“Metáfora definitiva da Iugoslávia”
126
e de seus “fragmentos”:
127
Bósnia,
Croácia, Eslovênia, Kosovo, Macedônia, Montenegro, Sérvia, Voivódina; também
metáfora de Portugal e da Espanha – A jangada de pedra, de José Saramago, é o
“rosto”, ou melhor, a “cabeça” da Europa que se arranca, corpo decapitado – e por que
não da Albânia, da Hungria, da Bulgária, da Romênia... enfim, metáfora de todas as
regiões, em algum momento, periféricas – “do lado de aquém”
128
–, dentro do
125
SONTAG. Questão de ênfase, p. 126.
126
IORDANOVA. Cinema of flames, p. 114.
127
Vale lembrar aqui a própria palavra “balcanização”: derivada de Bálcãs, retém a conotação negativa
de “fragmentar (uma região, país ou império) em Estados menores tornando-os (ou não) antagônicos
(...)” (BALCANIZAR. In: HOUAISS, VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 385.).
Ver ainda, HOBSBAWM. Nações e nacionalismo desde 1780, p. 43. Em um dado trecho do romance
Três cantos fúnebres para Kosovo, Ismail Kadaré fala de como chegou, vindo do outro, o otomano, a
palavra Bálcãs: “No entanto, mais do que a tropa, o que obcecava as pessoas eram as palavras
‘Bálcãs’ e ‘balcânicos’. Antes mesmo de aí pisarem, os turcos haviam batizado a península e seus
habitantes. A palavra acabou por lhes colar à pele como escamas novas num velho réptil”. (KADARÉ.
Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 26).
128
SARAMAGO. A jangada de pedra, p. 18.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
50
continente europeu; a cena da ruptura do terreno, no filme de Kusturica, traduz a
marginalidade a que seriam relegados esses países pelos outros europeus, mas também
revela mais uma “característica” alternativa dos povos não hegemônicos: a possibilidade
do espaço ambivalente e liminar da margem
129
como locus de enunciação.
O espetacular “acidente geográfico” encenado no filme de Emir Kusturica, “a
confusão babilônica das línguas”, trazida no texto de Danilo Kiš, acenam para o fato de
que, para além das fronteiras físicas dos territórios, a identidade é construída,
principalmente pelos povos das margens, como um processo, uma travessia, “de meio a
meio
130
– espaço intervalar entre duas águas em permanente movimento de
deslocamento. Tal movimento é sempre marcado por sucessivos processos de
reterritorialização e desterritorialização,
131
que explicitam o fato de que, nas palavras
de Luis Alberto Ferreira Brandão Santos,
qualquer espaço de unidade – territorial, lingüístico, nacional – já está
recortado pela diversidade interna. Que a identidade é sempre uma
constelação de alteridades que se agrupam e assumem, para si e para
os outros, uma margem visível. E que, por se tratar de uma assunção,
tal visibilidade é sempre cambiante.
132
Ao bordejar o arquétipo, o impulso que dá origem às imagens, pela via da
narrativa javista da Torre de Babel, pela via do “Era uma vez...”, pela fábula que se quer
às avessas e que “nunca termina”,
133
Danilo Kiš e Emir Kusturica me conduzem à esfera
do mito, o “tempo fabuloso do ‘princípio’”.
134
A “jangada de pedra”, que navega,
reorientando-se e desorientando-se, me faz lembrar de outra imagem, aquela de um
touro branco, cercado pelas águas do oceano, que carrega em seu dorso, agarrada aos
seus cornos em forma de crescente, uma princesa chamada Europa...
129
Tomo a noção de margem como um lugar discursivo alternativo, que não se fecha em si mesmo –
como um marco de segurança –, mas é capaz de dialogar, questionar, ampliar outros loci enunciativos
– em constante descontinuidade.
130
ROSA. A terceira margem do rio, p. 33.
131
DELEUZE; GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor, p. 15-24.
132
SANTOS. Nação: Ficção, p. 40-41.
133
Nos últimos fotogramas de Underground, pouco antes dos letreiros finais, com a figura da
“península” já completamente descolada do “continente”, surge o intertítulo/cartela: “Esta história não
tem fim”. Esse caráter da ordem do inacabado não será marca apenas do filme de Kusturica; também
nas outras narrativas com as quais trabalho nesta tese a “história nunca termina”.
134
ELIADE. Mito e realidade, p. 11.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
51
1.2. Antes da Europa: o mito
Europa, Europas. Europa: a filha de Tício, que teve de Posídon um filho
chamado Eufemo. Este, um dos argonautas, recebe do deus Tritão um torrão de terra
mágica. Em sonho, Eufemo vê o torrão transformar-se em uma donzela, filha de Tritão
e Líbia. No dia seguinte, o argonauta joga o torrão ao mar e eis que, ante os olhos dos
nautas, brota a ilha de Tera...
135
Europa: uma das Oceânides, filha de Oceano e Tétis, e
irmã de Ásia.
136
Europa: a mãe de Níobe, que é a primeira mulher mortal – a “mãe
primordial” –, e mulher de Foroneu, o primeiro homem, filho dos deus-rio Ínaco e da
ninfa Mélia.
137
Europa: a filha de Nilo, uma das mulheres de Dânaos, com quem este
teve quatro de suas cinqüenta filhas, as Danaides, que desposariam os cinqüenta filhos
de Egito, irmão de Dânaos...
138
Variações ao infinito, heroínas diversas sob o mesmo nome, traçando um
complexo e difuso mosaico de Europas. Entretanto, a mais célebre de todas é a filha de
Agenor e Telefaassa, que foi raptada por Zeus travestido sob a forma de um touro.
139
Assim é resumido o mito: Zeus viu Europa a brincar com suas companheiras na praia de
Sídon ou de Tiro, reino de seu pai, na Fenícia.
140
Apaixonado pela beleza da jovem, o
135
Cf. GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 156; p. 161; p. 456; SCHWAB. As mais
belas histórias da Antigüidade, p. 38-43.
136
Cf.HESÍODO. Teogonia, 337-370, p. 125.
137
Cf.GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 161; 331; VERNANT. Mito e pensamento
entre os gregos, p. 42.
138
Cf.GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 110; p. 111; p. 161.
139
A proeminência do mito de Europa, filha de Agenor e Telefaassa, pode ser confirmada pelas inúmeras
ocorrências do mesmo nos autores e obras antigas: Homero. Ilíada; Apolodoro. Biblioteca; Conon.
Narrações; Bacchylides. Bacchylidis Carmina Fragmentis; Heródoto. Histórias; Moschos. ,Europa;
Platão. Timeu; Apolônio de Rodes. Argonáuticas; Diodoro da Sicília. Biblioteca Histórica; Ovídio.
Metamorfoses e Fastos; Higino. Fabulae e Astronomia Poética; Teofrasto. Caracteres; Plínio, o
velho. História natural; Horácio. Odes; Apuleio. Metamorfoses; Hesíodo. Fragmenta Hesiodea;
Stephanus Byzantinus. Étnica; João Tzetzes. Antehomérica e Historiarum uariarum chiliades;
Eratóstenes. Catasteismoi; Luciano. Diálogos marinhos. (Cf. GRIMAL. Dicionário de mitologia
grega romana, p. XXIII-XXVI; LI-LII; 161; VELASCO. Les mythes d' Eurôpè: reflexions sur
l'eurocentrisme, p. 123-132). Salientamos também o fato de o “rapto de Europa” ser um tema popular
nas artes visuais do período clássico. (Cf. EUROPA I-II. In: LEXICON ICONOGRAPHICUM
MYTHOLOGIAE CLASSICAE, IV, V.1, p. 76-92; v.2, p. 32-48).
140
Em todas as versões do mito, Europa é “oriental” (fenícia), embora sua genealogia varie de autor a
autor. Homero e Moschos, por exemplo, trazem Fênix como seu pai; Heródoto e Ovídio, por sua vez,
indicam Agenor como o pai da heroína.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
52
filho de Crono transformou-se em um touro branco, com cornos semelhantes a duas luas
em fase de quarto crescente e encaminhou-se para a praia onde brincava a princesa.
Tendo de tal modo enganado a jovem, Zeus, metamorfoseado em touro, tomou-a sobre
o seu dorso, atravessou o mar – “enfim, nadando, / Leva a presa gentil, por entre as
ondas”
141
– até Creta, onde, após assumir a forma humana, uniu-se a ela. Por
conseguinte, Europa teve três filhos de Zeus: Minos, Sarpédon e Radamante. Em troca,
do deus, Europa recebeu três presentes: Talo, o homem de bronze, que, a partir daí, terá
a tarefa de guardar Creta, impedindo o desembarque de estrangeiros e as fugas
clandestinas, transformando a ilha em uma espécie de fortaleza isolada do resto do
mundo; Zeus entregou-lhe ainda um cão que nunca deixou escapar presa alguma e
também uma lança que jamais falhava o alvo. Depois, Europa casou-se com Astérion,
rei de Creta. Após sua morte, ela recebeu honras divinas, e o touro em que Zeus se
metamorfoseara transformou-se em uma constelação, sendo colocado entre os signos do
zodíaco.
142
Haveria alguma conexão entre o rapto da princesa fenícia e o nome do
continente? Carregariam os presentes dados por Zeus, conforme afirmam alguns
comentadores,
143
características identitárias da Europa e do Ocidente? Talo, o homem
de bronze, representaria a técnica, o segredo da laboração dos metais; a lança infalível
apontaria para o antagonismo com o Oriente;
144
o cão capaz de agarrar qualquer presa, a
capacidade grega de agarrar e transfigurar outras culturas. Outros associariam a posição
geograficamente ambígua do continente europeu – “a Europa é uma península asiática.
A sua grande oportunidade geográfica consistiu em estar ligada à Ásia Ocidental pela
comodíssima via de transmissão que foi o Mediterrâneo, de oeste a leste” (grifos
141
OVÍDIO. Metamorfoses, p. 68.
142
Cf. GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 161; OVÍDIO. Metamorfoses, p. 67-68; p.
163-164; MOSCHOS. Europé, p. 144-151.
143
Sobre algumas interpretações do mito relacionadas ao continente, ver: GRANATI. Sul mito sul nome
di Europa, Disponível em: <http://vulgo.net/index.php?option=com_content&task=view &id=160&Ite
mid= 0>.
144
Na tragédia Os persas, de Ésquilo, a lança é usada metonimicamente para designar os gregos,
enquanto o arco representaria os persas (Cf. ÉSQUILO, Os persas, p. 62; 159-163, p. 26; 28-29). A
partir daí, será comum a tematização da oposição entre a “lança” e o “arco”, designando os gregos e
os persas. (Cf. HARTOG. O espelho de Heródoto, p. 82).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
53
meus)
145
– à trajetória de Europa e, depois, ao percurso em vão percorrido pelos irmãos
da jovem – Cadmo, Cílix, Fênix e Taso – em busca da irmã. Com o fracasso da busca,
cada um dos irmãos fixou-se em lugares diversos, fundando cidades.
146
Na verdade, a origem do nome do continente é velada em mistério. O termo
grego Európe não possui etimologia segura, apesar de várias conjecturas. Alguns
traduzirão a palavra como “a de rosto largo” – o rosto de lua da princesa fenícia –,
pressupondo que o nome se origina de um composto: eurýs, “largo, amplo”, e ops
[acusativo singular opa], “rosto, face, aspecto”. Outros atribuirão ao termo,
independente da heroína mítica, o epíteto do continente, o qual proviria do adjetivo
europós, “largo, espaçoso, vasto”.
147
Estudiosos que acreditam na relação entre o mito
do rapto de Europa e o nome do continente cogitam que o nome grego Európe derivaria
do fenício, mais especificamente um radical semítico, ereb, com o qual se indicava a
“terra do pôr do sol”, a “terra do anoitecer”, donde o grego érebos.
148
Tal explicação
conformaria a noção de Europa à noção de Ocidente, opondo-a ao Oriente, afinal, para
dizer com Jorge Luis Borges, “o Oriente é o lugar em que sai o sol. Há uma bonita
palavra alemã que quero lembrar: Morgenland – para o Oriente – ‘terra da manhã’. Para
o Ocidente, Abendland, ‘terra da tarde’” (tradução minha).
149
Entretanto, nenhuma
explicação parece satisfatória e a origem do nome permanece obscura.
Já no século V a.C., Heródoto observava que ele desconhecia a razão de a terra
ser dividida em três partes – Ásia, Líbia [África] e Europa – e o porquê dessas três
partes receberem nomes femininos:
145
GOUROU. História e geografia, p. 19.
146
Cílix deteve-se na Cilícia, região de confim com a Fenícia, à qual deu o seu nome; Fênix ergueria a
cidade de Sídon, na Fenícia; Taso deteve-se na ilha que leva o seu nome; quanto a Cadmo, um dos
grandes heróis fundadores e civilizadores, estará relacionado às regiões da Trácia, Tebas e Ilíria. (Cf.
GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 15; 66-68; 168; 430; 432).
147
Cf. BRANDÃO. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, p. 415-417; PEREIRA.
Dicionário grego-português e português-grego, p. 244-245.
148
Cf. BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 15; GRANATI. Sul mito e sul nome de Europa,
p. 3.
149
“El Oriente es el lugar en que sale el sol. Hay una hermosa palabra alemana que quiero recordar:
Morgenland – para el Oriente–, ‘tierra de la mañana’. Para el Occidente, Abendland, ‘tierra de la
tarde’”. (BORGES. Siete noches, p. 235).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
54
IV, 45. Ninguém sabe claramente se, seja a leste, seja a norte, a
Europa é cercada por água; mas sabe-se que ela se estende, em sentido
longitudinal, ao longo das duas outras partes [Ásia e Líbia]. Eu não
posso tampouco conjeturar em que ocasião a terra, sendo uma,
recebeu três denominações distintas, tiradas de nomes de mulheres,
nem por que o Nilo, no Egito, e o Fásis, na Cólquida, fixaram os seus
limites (ao Fásis, alguns substituem o Tanais, rio da Meótida, e o
estreito Cimério). Não posso saber o nome daqueles que traçaram tais
limites nem de onde tiraram essas denominações.
(tradução minha)
150
Apesar de afirmar a sua impossibilidade de saber e de conjeturar, Heródoto
aponta algumas hipóteses. A região da Líbia carregaria o nome de uma mulher da região
de mesmo nome, enquanto a Ásia tomaria seu nome da esposa
151
de Prometeu.
Contudo, ainda nas palavras de Heródoto, os lídios reclamam este último nome: “a Ásia
[eles dizem] é assim chamada, não por causa da Ásia, mulher de Prometeu, mas de
Asius, filho de Cotys, filho de Manès” (tradução minha).
152
Quanto à Europa, Heródoto
reafirma a impossibilidade de se saber de onde veio e quem deu esse nome ao
continente, e continua:
a menos que admitamos que a região recebeu o nome da Tirense
Europa (...). Mas está claro que esta jovem era originária da Ásia e
jamais chegou à região que os Gregos hoje chamam de Europa; suas
viagens se limitaram a passar da Fenícia a Creta e de Creta a Lícia.
(tradução minha)
153
Não obstante a objeção de Heródoto a respeito da origem, vinda da Ásia, e do
percurso, do Oriente ao Ocidente, da fenícia Europa, o nome geográfico será
150
“IV45. Quant à l' Europe, personne ne sait clairement si, vers le Levant et le Nord, elle est entourée
par de l' eau; mais on sait que, dans le sens de la longueur, elle s' étend tout le long des deux autres
parties. Je ne puis pas non plus m' expliquer à quelle occasion la terra, étant une, a reçu trois
dénominations distinctes, tirées de noms de femmes, et ont éte fixés entre ses parties comme lignes de
démarcation le Nil, fleuve d' Égypte, et le Phase de Colchide (d' autres disent le Tanaïs, fleuve du pays
de Maiotes, et les détroits Cimmériens); pas davantage, savoir les noms de ceux qui tracèrent ces
démarcations, ni d' oú ils ont tiré les dénominations des parties.” (HÉRODOTE. Histoires, IV, 45, p.
74-75).
151
Embora seja considerada por Heródoto esposa de Prometeu, Ásia é muitas vezes apontada como sua
mãe. (Cf. GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 50; p. 452).
152
“ce n' est pas d' après l' Asie de Prométhée que l' Asie est ainsi appelée Asie, mais d' après Asiès fils
de Cotys fils de Manès (...)”. (HÉRODOTE. Histoires, IV, 45, p. 75).
153
“à moins de dire que le pays reçut ce nom de la Tyrienne Europé (...). Mais il est certain que cette
Europé était originaire d’Asie, et qu’elle n’est vint jamais dans ce pays que les Grecs appellent
présentement Europe; elle vint seulement de Phénicie en Crète, et de Crète alla en Lycie ses voyages
se sont bornés à passer de Phénicie en Crète et de Crète en Lycie. (...)”. (HÉRODOTE. Histoires, IV,
45, p. 75).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
55
constantemente relacionado com a princesa, filha de Agenor, raptada em Tiro. O
próprio Heródoto, no início de suas Histórias, retoma a figura de Europa, só que nas
palavras dos “persas que falam ‘grego’”,
154
para tratar do antagonismo entre os helenos
e os bárbaros, isto é, para começar a construir uma identidade grega – ocidental e
européia –, a partir da constituição de um Outro; afinal: “as identidades se definem não
apenas pelo que você defende e com quem você está, mas principalmente por quem ou o
que você é contra, ou que você acha que é contra você”.
155
Logo na famosa abertura das
Histórias, encontra-se esse binômio gregos e bárbaros, gregos e não gregos, “os quais
não se definem senão enquanto se opõem”.
156
Aos poucos, a figura anônima do bárbaro
territorializa-se, na Ásia, e ganha um rosto, o persa.
157
Em seguida, Heródoto
158
“cede”
a palavra aos sábios persas que falam grego. Estes retomam um repertório famoso de
mitos gregos, todos girando em torno de figuras femininas – Io, Europa, Medéia e
Helena –, desmistificando-os, quiçá racionalizando-os, com o intuito de tecer uma
ordem contínua das hostilidades entre bárbaros e gregos:
I, 1.Dentre os persas, os sábios afirmam que foram os fenícios a causa
do diferendo. Eles dizem que depois de vir do mar chamado Vermelho
para este mar e passando a habitar a região que ainda hoje habitam,
logo dedicaram-se a grandes navegações e, transportando cargas
egípcias e assírias, abordaram em diversas regiões, entre outras Argos.
(...) No quinto ou sexto dia após sua chegada, depois de quase tudo já
tendo sido vendido, um grupo de numerosas mulheres foi à beira do
mar – entre elas a filha do rei. O seu nome era, conforme o que dizem
também os gregos, Io, filha de Ínaco. Chegando junto à proa do navio,
elas compravam da carga, o que mais desejavam; então os fenícios,
encorajando-se mutuamente, precipitaram-se sobre elas. A maior parte
das mulheres escapou, mas Io, com outras, foi raptada. Os fenícios,
embarcando no navio, foram embora, navegando para o Egito.
2. Assim, dizem os persas, não como afirmam os gregos, Io chegou ao
Egito – e este foi o primeiro incidente que dá início à série de
injustiças. Depois disso, dizem eles, alguns gregos (pois não sabem
precisar seus nomes), atracando na Fenícia, em Tiro, raptaram a filha
154
HARTOG. O espelho de Heródoto, p. 20.
155
ASH. Um projeto chamado Europa, p. 8.
156
HARTOG. Memória de Ulisses, p. 93.
157
Cf. HARTOG. A história de Homero a Santo Agostinho, p. 53; HARTOG. Memória de Ulisses, p.
93-102.
158
Cf. HÉRODOTE. Histoires, I, 1-5, p. 13-15.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
56
do rei, Europa. Poderiam ser cretenses. A partir desse momento, ficou
tudo igual. (tradução minha)
159
O relato continua com o rapto, em Ea, na Cólquida, de Medéia, filha do rei,
para terminar com o rapto de Helena por Alexandre, filho de Príamo, fechando a série
de raptos mútuos e dando início à oposição e diferenciação entre gregos e persas: “a
partir de então, [os persas] também pensavam que o que é grego é seu inimigo. Os
persas, com efeito, consideravam como seus a Ásia e os povos bárbaros que a habitam;
e eles tomam a Europa e o que é grego como algo distinto” (tradução minha).
160
Nessas “versões dos persas”, Io deixa de ser a filha formosa do deus-rio Ínaco,
amada por Zeus, que, para protegê-la da vingança da ciumenta Hera, transformou-a em
uma novilha;
161
Europa não mais é raptada por Zeus sob a forma de um touro; Medéia é
a filha do rei da Cólquida mas em absoluto o protótipo da feiticeira. Isso ocorre porque,
segundo François Hartog,
nesta versão “persa” – racionalizante, evemerista avant la lettre, senão
irônica – as grandes narrativas transformam-se em pequenas histórias.
Contadas assim, inscrevem-se numa cronologia (a sucessão dos
raptos) e numa geografia (a Ásia em face da Europa), vindo a
constituir, para dizer tudo, uma série que tem valor justamente
enquanto etiologia das Guerras Médicas, as quais aparecem mais
159
“I, 1. Chez les Perses, les doctes prétendent que les Phéniciens furent cause du différend. Ils disent qu'
aprés être venus de la qu' on appelle Érythrée sur les bord de celle-ci et avoir établi leur demeure dans
le teritoire qu' ils habitent encore aujourd' hui, les Phéniciens entreprirent aussitôt de longues
navigations et, transportant des marchandises d' Egypte et d' Assyrie, se rendiretn en diverses contrées,
entre autres Argos (...) le cinquième ou sixième jour à compter de leur arrivée, alors qu' ils avaiente
presque tout vendu, une troupe nombreuse de femmes vint au bord de la mer, parmi elles la fille du
roi; qu' elle avait nom, comme disent aussi les Grecs, Io fille d' Inachos; que, tandis que ces femmes se
tenaient prés de la poupe du navire et faisaient emplette des marcahndises dont l' achat leur agréait le
mieux, les Phéniciens, s' etant encouragés les uns les autres, se precipitèrent sur elles; que la plupart
des femmes prirent la fuite; mais qu' Io et d'autres furent ravies; e que les Phéniciens, les ayant
embarquées sur leur vaisseau, partirent en cinglant vers l'Egypte.
2. C'est ainsi, disent les perse, et non pas comme prétendent les Grecs, qu' Io vint en Égypte; e ce fut
là le premier incident qui commença la série des torts. Plus tard, disent-ils, certains Grecs ils ne
peuvent pas préciser leur nom, – abordèrent en Phénicie, à Tyr, et ravirent la fille du roi, Europè; ce
pouvaient être des Crétois. A ce moment, on était à égalité.” (HÉRODOTE. Histoires, I, 1-2, p. 13-
14).
160
“Aussi, depuis lors, ont-ils toujours pensé que ce Qui était grec leur était ennemi. Les Perses, en effet,
considèrent comme à eux l'Asie et les peuples barbares qui l' habitent; et ils itennent l' Europe et le
monde grec pour un apys à part.” (HÉRODOTE. Histoires, I, 4, p. 15)
161
Cf. GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e romana, p. 251; OVÍDIO. Metamorfoses, p. 55-61;
SCHWAB. As mais belas histórias da Antigüidade, p. 38-43.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
57
como um novo episódio de um ciclo principiado há muito tempo, do
que como um desfecho ou um começo.
162
As grandes narrativas míticas são, portanto, transformadas em pequenos
relatos, despidos de seu caráter “fabuloso”, para vestir a ordem e a continuidade do
“discurso histórico” de Heródoto, ao qual, porquanto denota um mirada grega –
“espelho em negativo”
163
– do Outro, deve-se ler, sempre, com bastante cuidado.
O rapto de Europa, na “versão persa”, aparece como a vingança do Ocidente ao
rapto de Io. Ela é fenícia, asiática, mas estabelece-se em Creta, no Ocidente, um lugar
outro, diverso e distante. Como se pode perceber, mesmo transformado, tem-se aqui o
mito de Europa relacionado à questão da identidade, da alteridade, das fronteiras e das
guerras.
Da experiência da guerra e da vitória contra os persas, constrói-se uma
consciência precisa da oposição entre o Nós, marcado pelo nome próprio Helenos, e os
Outros, designados genericamente como bárbaros – aqueles que não podem falar uma
língua “genuína”, mas apenas proferirem ruídos incompreensíveis para o Nós.
164
Começa, também, a delinear-se uma conotação política e ideológica da noção de Europa
em oposição à Ásia. Tal estado de coisas é representado de forma bastante significativa
na tragédia Os persas (472 a.C.), de Ésquilo. Sempre lembrada como a única tragédia
conservada a trazer um acontecimento praticamente contemporâneo à sua
apresentação,
165
Os persasm como tema a desastrosa tentativa de invasão da Grécia,
comandada pelo rei Xerxes, quando as forças navais persas foram aniquiladas pelos
gregos em Salamina.
166
A peça transcorre em Susa, capital do império persa, e todas as
162
HARTOG. O espelho de Heródoto, p. 21.
163
HARTOG. O espelho de Heródoto, p. 37-39.
164
Cf. HOBSBAWM. Nações e nacionalismo desde 1780, p. 68-69.
165
Antes de Os persas, A tomada de Mileto (493 a.C.) e As fenícias (476 a.C.), ambas de Frínico,
tomavam as Guerras Médicas como assunto. Entretanto, dessas duas tragédias restam apenas
fragmentos. (HARTOG. O espelho de Heródoto, p. 337).
166
No que tange à contemporaneidade dessa tragédia, cabe enfatizar que Os Persas, de Ésquilo (525-456
a.C.), foi encenada pela primeira vez em 472 a.C., portanto, oito anos após a batalha de Salamina, que
ocorreu em 480 a.C., na qual seu autor tomou parte. Sobre a “recepção” de Os persas no teatro de
Atenas, por ocasião da representação de 472, e a respeito da estreita e complexa relação entre o gênero
trágico e a cidade grega, ver: LORAUX. A tragédia grega e o humano, p. 17-34.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
58
suas personagens são dessa região, que, assim como as de Heródoto, “falam grego”.
167
Da boca dessas personagens, tem-se desenhada a oposição entre uma Grécia forte – “a
fina ponta férrea da lança” –, afeita à liberdade e à democracia no interior da polis – a
medida –, em contraposição à Pérsia fraca –”o arco tenso” –, afeita ao despotismo – a
hýbris. Tal assimetria é figurada de forma evidente na fala da rainha Atossa, mãe de
Xerxes e esposa de Dario, ao descrever um sonho que teve na noite anterior:
Em pleno sono pareceu-me distinguir
duas mulheres de feições muito agradáveis;
uma delas vestia-se à maneira persa
e a outra usava trajes obviamente dórios;
ambas eram mais altas que as mulheres de hoje,
e diferiam destas tanto pelo porte
como pela beleza sem qualquer defeito.
Eram irmãs do mesmo sangue mas moravam
em pátrias afastadas, uma lá na Grécia,
que lhe coube por sorte, e a outra em terra bárbara.
A mim me pareceu que as duas discutiam;
meu filho, percebendo o fato, quis contê-las,
tentando pôr arreios no pescoço delas.
Uma envaidecia-se desses petrechos
e oferecia a boca docilmente ao freio,
enquanto a outra debatia-se e afinal
despedaçava com ambas as mãos o arreio
com que Xerxes queria atrelá-la ao carro,
tirando-o de si com toda a sua força;
pouco tempo depois ela rompeu a brida,
partindo finalmente o jugo em dois pedaços.
168
A oposição Europa e Ásia é representada pela figuração de duas mulheres,
169
irmãs e inimigas; uma, “fraca e propensa ao jugo”, a outra, “forte e afeita à liberdade”.
Nessa “geografia imaginativa”, a “Europa é poderosa e articulada; a Ásia está derrotada
167
O que se tem tanto em Heródoto quanto em Ésquilo são representações do Oriente através da figura
dos persas. É preciso enfatizar a evidência de tais “representações como representações, e não como
descrições ‘naturais’ do Oriente. Essa evidência pode ser encontrada, com exatamente a mesma
proeminência, no chamado texto verdadeiro (histórias, análises filológicas, tratados políticos) como no
texto abertamente artístico (claramente imaginativo)”. (SAID. Orientalismo, p. 32).
168
ÉSQUILO. Os persas, 212-232, p. 30-31.
169
Apesar do pouco que restou das representações iconográficas e cartográficas dos continentes na
Antigüidade Clássica, é significativo que um relevo em mármore da época do império romano (século
II d.C.) – considerado a mais antiga representação do continente europeu; a única incontestável –
apresente a Europa e a Ásia como figuras femininas postadas em lados opostos de uma espécie de
troféu sobre o qual a Batalha de Arbela (vencida por Alexandre sobre o rei persa Dario III, em
331a.C.) é representada. (Cf. EUROPA I-II. In: LEXICON ICONOGRAPHICUM MYTHOLOGIAE
CLASSICAE, IV, V.1, p. 92; BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 49).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
59
e distante. Ésquilo representa a Ásia, faz com que ela fale na pessoa da idosa rainha
persa, mãe de Xerxes. É a Europa que articula o Oriente” (grifos do autor).
170
Desse
momento em diante, os autores gregos começam a relacionar as noções geográficas
Europa e Ásia com diferenças de linguagem, costumes e, principalmente, com a
distinção entre formas de governar; tal oposição “irá se sobrepor quase que exatamente
ao binômio grego/bárbaro”.
171
Na elaboração do mito de Europa, feita pelo poeta bucólico Moschos, mais ou
menos no século II a.C., tem-se a princesa fenícia definitivamente figurada como
personificação do continente. Para tanto, o poeta lançará mão de artifícios que dialogam
com as “imagens” de Ésquilo e Heródoto, inserindo o seu poema nessa série de
construções germinativas da identidade européia. Na bela descrição de Moschos,
Europa, antes de ser raptada, também tem um sonho premonitório,
172
dessa vez,
inspirado por Afrodite. Nesse sonho, a princesa é disputada por duas partes do mundo,
que lhe aparecem sob o aspecto de duas mulheres, uma com os traços das mulheres da
região, a outra com os traços de estrangeira: “a terra da Ásia e a terra defronte”
(tradução minha).
173
A primeira quer protegê-la e mantê-la como sua, já a segunda quer,
por vontade de Zeus, tomá-la. A estrangeira, no caso a “grega”, graças a sua força,
parece levar a melhor.
Na manhã seguinte, a jovem Europa se junta às companheiras para passear e
colher flores num prado florido, à beira do oceano. Aqui, o que chama a atenção na
construção de Moschos, é um detalhe que, assim como a narração do sonho trazida no
início, funciona como prenúncio do episódio principal. Europa carrega uma corbelha
(cesta) de ouro, admiravelmente trabalhada por Hefesto e dada de presente à Líbia, avó
de Europa, quando do seu casamento com Posídon. Líbia a teria dado à Telefaassa, que
presenteou a filha Europa. É bastante expressiva a descrição da corbelha, na verdade,
170
SAID. Orientalismo, p. 67.
171
HARTOG. Memória de Ulisses, p. 96.
172
A respeito do papel do sonho na cultura grega, é significativo o diálogo entre Odisseu, disfarçado de
Étone, e Penélope, no final do canto XIX, da Odisséia, no qual temos apresentada a diferença entre
duas espécies de sonhos: os falazes, de aparência enganosa, e os verdadeiros, que anunciam coisas
futuras. (Cf. HOMERO. Odisséia, XIX, 535-569, p. 335-336).
173
“la terre d'Asie et la terre d'en face” (MOSCHOS. Europé, p. 144). Chama a atenção o fato de a terra
que se opõe à Ásia não ser nomeada, afinal, seu nome será o mesmo da jovem fenícia.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
60
uma écfrase, comum na literatura clássica, que faz lembrar a descrição das armas de
Áquiles, também talhadas pelo deus Hefesto, no canto XVII da Ilíada.
174
Na
corbelha,
175
descrita em detalhes minuciosos de vigor iconográfico, tem-se esculpida
toda a trajetória de Io, a filha de Ínaco, e sua metamorfose em novilha, que foge da
perseguição de Hera, até recuperar novamente a forma humana:
O objeto era adornado com muitas obras de vivo brilho de ourivesaria.
Ele trazia, em ouro, Io, filha de Ínaco, na época em que ela ainda era
bezerra e não tinha forma humana; (...) o mar era feito de metal
cerúleo. Ao alto, dois homens mantêm-se de pé sobre o escarpamento
da margem, estreitam um contra o outro; eles olham a vaca que
atravessa o mar. Também Zeus, filho de Cronos, aparece, tocando
docemente a mão da bezerra, filha de Ínaco, que, à beira do Nilo, às
sete embocaduras, de vaca cornuda, de novo, é transformada em
mulher; o curso do Nilo é de prata; a vaca, de bronze; quanto a Zeus, é
feito em ouro (...). (tradução minha)
176
Novamente, são as terras figuradas na forma de mulheres em disputa e as séries
de raptos de figuras femininas que aparecem para delinear uma ordem e uma
continuidade na construção da identidade, da fronteira, da alteridade: a cesura entre o eu
e o outro, os gregos e os bárbaros, o Ocidente e o Oriente. Mas sempre foi assim? O
percurso pelos mitos de Europa desenha um mosaico de versões que, com sua herança
de palavras, mentalidades e condutas que “foram inventadas ou carregadas de sentido
para sustentar ideologicamente a preeminência dos gregos sobre os vizinhos” (tradução
minha),
177
provocam uma reflexão a respeito da construção da identidade européia ao
longo dos séculos: a busca do outro como um espelho distorcido do eu. Por outro lado, a
174
HOMERO. Ilíada, XVIII, 483-608, p. 425-429.
175
Na versão do mito, escrita na Alemanha, na primeira metade do século XIX, costurada a partir de
diversas fontes e colorida de tons românticos, Gustav Schwab converte a Corbelha em um vestido
bordado com fios de ouro, também obra do deus do fogo Hefesto; um ornamento nupcial
encomendado a Hefesto por Posídon para presentear Líbia. (Cf. SCHWAB. As mais belas histórias da
Antigüidade, p. 39).
176
“L’objet était orné de beaucoup d’ouvrages d’orfèvrerie brillant d’un vif éclat. Il y avait, en or, Io,
fille d’Inachos, dans le temps qu’elle était encore génisse et qu’elle n’avait pas forme de femme; (...)
la mer était faite de métal azuré. Haut placés, deux hommes se tenaient debout sur l’escarpement du
rivage, serrés l’un contre l’autre ; ils regardaient la vache qui traversait la mer. Il y avait aussi Zeus
fils de Cronos effleurant doucement de la main la génisse fille d’Inachos, qu’auprès du Nil aux sept
bouches, de vache cornue, de nouveau il transforma en femme ; le cours du Nil était d’argent ; la
vache, de bronze ; quant à Zeus, il était fait en or (...)” (MOSCHOS. Europé, 145-146).
177
“(...) furent inventées ou chargées de sens pour soutenir idéologiquement la préeminence des grecs sur
leurs voisins (...)” (VELASCO. Les mythes d'Eurôpè: reflexions sur l'Eurocentrisme, p. 128).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
61
maior parte das Europas míticas – talvez a única exceção seja a mãe de Níobe e mulher
de Foroneu – era oriental, sendo que a principal delas era fenícia, o que apontaria para
uma construção da identidade pela ordem da simbiose e do sincretismo, mas não pelas
vias da diferenciação e da negação:
Seria igualmente lógico considerar toda a civilização mediterrânea da
Antigüidade clássica como sincrética. Afinal, ela importou seu roteiro
e, mais tarde, sua ideologia imperial e religião estatal, do Oriente
Próximo e Médio.
178
As “Europas orientais”, traduzidas pela “linguagem do mito”, transmitiriam
exatamente as memórias de uma época de imbricamento das culturas meridionais e
orientais; uma época em que as identidades moldadas através da interação ainda não
tinham sido engolfadas pelo “Helenocentrismo”.
179
Essa estratégia, baseada na
construção de um Outro claro e presente em sua desigualdade para preservação de um
Eu forte e positivo foi legada aos “europeus”, que, em sua expansão imperialista e
colonialista, miraram-se no espelho dos gregos e de seus sucessores, os romanos, para
extrair um sistema de valores, imagens e representações – diga-se de passagem,
alicerçados e modelados
180
–, que permitiram sustentar sua superioridade em escala
mundial, do Renascimento ao início do Século XX.
178
HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 234.
179
Cf. VELASCO. Les mythes d'Eurôpè: reflexions sur l'Eurocentrisme, p. 128-129. É preciso não
confundir a idéia de “helenocentrismo” com a noção de helenismo. Sobre a especificidade da noção de
helenismo, ver: NAGY. Greek mythology and poetics, p. 1-5.
180
Cf. SAID. Cultura e imperialismo, p. 46-47.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
62
1.3. Um continente sem bordas
O que é a Europa? Há uma dimensão a ser extraída do significante “Europa”?
Há uma história do continente para além do mito, para além do sonho? Antes de arriscar
uma resposta – e sem ilusão em relação à mesma –, saliento que qualquer identidade
européia – seja mirada estrabicamente por mim, daqui, de um lugar levemente marginal,
além e aquém das tradições centrais,
181
seja aquela encarada por um alemão oriental
que, em meados dos anos de 1980, tentava chegar à Alemanha Ocidental através da
fronteira entre a Áustria e a Hungria; seja sob o olhar do artista esloveno que se
apresentava na praça Merrion Square, de Dublin, no dia 01 de maio de 2004, na
comemoração pelo ingresso de dez países, inclusive a Eslovênia, na União Européia;
seja aquela pressuposta pelo cidadão francês que, no dia 29 de maio de 2005, votou
“não” ao projeto de Tratado Constitucional Europeu – não é nunca puro dado, mas
sempre construção e invenção, figuradas pela mobilidade dos olhares, sendo, ao mesmo
tempo, ameaça de desconstrução e possibilidade de reinvenção. Afinal, a identidade,
segundo indica Luis Alberto Ferreira Brandão Santos,
só é possível se leva em conta a alteridade que a atravessa e que, de
certa forma, a constitui: por isso todas as tradições são inventadas,
todas as famílias são excêntricas, todas as nações são comunidades
imaginadas. A fronteira só se erige à medida que se desloca.
182
Assim, não há história de um continente em si, uma vez que os contornos nas
páginas do Atlas escapam, ao longo dos anos, a quem os queira captar, definir, capturar,
seja o geógrafo ou outro especialista das ciências humanas. Também, “desde o início,
ou seja, já na Antigüidade, quando os continentes do Velho Mundo foram pela primeira
vez batizados, estava claro que esses nomes pretendiam mais que um mero significado
geográfico”.
183
Mas o que vela e/ou desvela esse “mais além”?
A esse olhar descentrado, que se constrói a partir da margem, a Europa
revelou-se, muitas vezes, sobretudo quando o mito cultural europeu tinha a sua vigência
181
“un ojo puesto en la inteligencia europea y el outro puesto en las entrañas de la patria” (PIGLIA.
Memoria y tradición, p. 61). Ver também: PIGLIA. Una propuesta para el nuevo milenio, p. 1-3.
182
SANTOS. Nação: Ficção, p. 137.
183
HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 232.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
63
e eficácia quase universais, como um continente sem bordas, um continente de Estados
e povos cuja antigüidade se perderia nas brumas do tempo; ou, para retomar Benedict
Anderson, como uma cultura de tradições ligadas a “um passado imemorial, e que
miram um futuro ilimitado” (tradução minha).
184
Na verdade, um modelo de cultura e
de práticas intelectuais, espaço ideal e idealizado, chamado “Europa”. Uma espécie de
espelho mágico no qual brilhariam “as estrelas fixas do céu cultural europeu”,
185
Homero, Petrônio, Dante, Petrarca, Boccaccio, Rabelais, Shakespeare, Cervantes,
Voltaire, Schiller, Goethe, Sthendal, Hugo, Flaubert, Zola, Dickens, Proust..., para ficar
somente nas referências literárias. O próprio Goethe, ao cunhar o termo Weltliteratur
conceito de grande importância para o desenvolvimento da noção de “literatura
comparada”, no final do século XIX e início do século XX
186
–, que ficava entre a
concepção de uma literatura de “fundo comum”, síntese de todas as literaturas do
mundo e a noção de “grandes livros”, espécie de biblioteca de obras-primas, trazia
subjacente, no sentido prático e ideológico do conceito, a noção de que a “Europa, no
que se referia à literatura e à cultura, liderava e constituía o principal objeto de
interesse”.
187
Os artistas europeus seriam, assim, aqueles autores de universal irradiação
e, conseqüentemente, leitura; símbolos de exemplaridade e universalidade. Tanto que,
durante a Segunda Guerra, para citar outro exemplo, Erich Auerbach os incluiria de
bom grado em sua síntese da cultura ocidental, Mimesis,
188
que se revelaria, na verdade,
uma síntese da literatura européia, confirmando uma noção idealista de um “império
mundial da cultura” comandado pela Europa.
Por outro lado, como esta reflexão vem demonstrando, a noção de Europa nem
sempre foi uma unidade fundamental de existência. Na verdade, um conjunto de
184
“un pasado inmemorial, y miran un futuro ilimitado (...)”. ANDERSON. Comunidades imaginadas,
p. 29.
185
LOURENÇO. Nós e a Europa ou as duas razões, p. 25.
186
Sobre a obra de Goethe e um exemplo “aplicado”, diria eu, do conceito de Weltliteratur, ver:
LAATHS. Historia de la literatura universal, p. V-VIII; 487-498. A respeito do papel do mesmo
conceito dentro do desenvolvimento da Literatura Comparada, ver: WEISSTEIN. Comparative
literature and literary theory, p. 3-28.
187
SAID. Cultura e imperialismo, p. 80.
188
AUERBACH. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Sobre esta obra de
Auerbach, ver os comentários de: LIMA. Mimesis e modernidade, p. 3-8; LIMA. A análise
sociológica da literatura, p. 120121; SAID. Cultura e imperialismo, p. 78-84; SAID. Orientalismo, p.
263-267.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
64
símbolos e sistemas de valores forjou, ao longo dos séculos, em um constante inventar-
se e reinventar-se de tradições, a imagem desse continente “invariável”. É essa ficção
que simbolicamente é visada quando se denomina “Europa”.
Um olhar para a geografia e as fronteiras da Europa ajuda a perceber esse
caráter ficcional. No decurso da história, as fronteiras do continente sempre em
deslocamento – “a Europa terminava nas florestas germânicas, numa época, e nos Urais,
em outra”.
189
Para não falar do fato de que, a partir de 1492 e ao longo dos séculos XVI,
XVII e XVIII, em seguida, nos primeiros anos do século XX, transformados em
potências coloniais, países como Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Bélgica,
Dinamarca, Holanda, França, Grã-Bretanha e Rússia conquistaram para o seu controle a
totalidade do continente americano, da Austrália, da Nova Zelândia e uma parte da
África – uma superfície de 50 milhões de km² –, controlando e administrando, além
desses, impérios coloniais com uma superfície total de 52 milhões de km²: “assim, no
início do século XX, o universo europeu estendia-se por 74% dos 150 milhões de km²
de terras emersas”.
190
Isso terminaria por criar, com a explosão das fronteiras, a ilusão
de uma supremacia sem falhas, relacionada, como quiseram alguns,
191
às condições
físicas e biológicas privilegiadas do Velho Continente.
A denominação “Europa” nada mais é do que um constructo, um estado
mental.
192
Como lembra Eric Hobsbawm, o próprio limite oriental do continente – os
montes Urais, o rio Ural, o mar Cáspio, o Cáucaso –, adotado pelos atlas escolares
tradicionais, baseia-se em uma decisão política. Conscientemente, desejava-se romper
com o estereótipo que atribuía à Ásia o Estado de Moscou e seus herdeiros.
193
O que se chama de Europa é menos um dado da natureza do que uma produção
intelectual do homem, uma “geografia imaginativa”.
194
Isto não significa que ela não
189
DARNTON. Fronteiras imaginárias, p. 4.
190
GOUROU. História e geografia, p. 6.
191
A respeito das “explicações deterministas” da supremacia européia, ver: GOUROU. História e
geografia, p. 7-19; SAID. Cultura e imperialismo, p. 83-86.
192
DARNTON. Fronteiras imaginárias, p. 4; HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 232.
193
HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 233-234.
194
SAID. Orientalismo, p. 60-82; SAID. O orientalismo revisto, p. 252-253.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
65
exista, mas aponta para a mobilidade do conceito, para suas fronteiras porosas e
adaptáveis. Tal caráter de mutabilidade, de elasticidade, relaciona-se mais com a
política e a ideologia – implicadas nos conceitos de paisagem, território e lugar – do que
com uma imagem ilusória de um espaço geográfico uno e imutável, exterior ao homem.
Assim o conceito de Europa deve ser estudado como componente do “mundo social e
não do mundo divino ou natural. E, já que o mundo social inclui a pessoa ou sujeito que
efetua o estudo, bem como o objeto ou o domínio em estudo, é imperativo incluí-los
ambos em qualquer consideração”.
195
Salienta-se, portanto, o caráter dinâmico e
complexo do conceito de espaço geográfico, que não se circunscreve a uma concepção
tradicional de espaço, divorciada do homem – espaço como materialidade –, mas
implica a coexistência de diferentes categorias, como paisagem, território e lugar,
relacionadas, por sua vez, com as dimensões econômicas, culturais e políticas – espaço
vivido/experimentado pelos homens.
196
O primeiro uso político da noção de Europa parece ter origem no século VIII,
quando o termo europeenses é utilizado por um cronista para descrever uma coalizão
armada liderada por Charles Martel em “resposta” ao avanço e a expansão árabe no
Mediterrâneo.
197
É significativo que esse nome coletivo – europeenses – tenha sido
utilizado em relação a uma ameaça externa. Desde esse primeiro “uso”, a identidade
européia se definirá mais pelo que não era do que pelo que era, pela via da oposição que
já se anunciava, séculos antes, no confronto entre gregos e persas; no encontro entre
helenos e bárbaros.
No século IX, poemas referem-se a Carlos Magno como rex, pater Europae, e
ele é louvado como Europae veneranda apex. Com a desintegração do império
carolíngio e a morte do monarca (814), a noção de Europa deixa, por um longo período,
de ser empregada para indicar a esfera do poder. Todavia, no século X, o termo Europa
volta a ser utilizado em uma situação de ameaça externa, quando o primeiro imperador
195
SAID. O orientalismo revisto, p. 253.
196
Sobre o conceito de espaço geográfico e as categorias de lugar, território e paisagem a ele
relacionadas, ver: SANTOS. A natureza do espaço; SANTOS. Testamento intelectual;
SUERTEGARAY. Espaço geográfico uno e múltiplo. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn-
93.htm.>
197
BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 26.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
66
do Sacro Império romano-germânico (962-973), Óton, o Grande, derrota os nômades
magiares na Batalha de Lechveld, sendo chamado de “libertador da Europa”.
198
Apesar das ocorrências anteriores do significante “Europa”, o seu significado
será tomado, em especial ao longo dos séculos XIV ao XVI, como sinônimo da noção
de cristandade. Tem-se novamente a oposição a um Outro, no caso, o cristianismo
“dissidente” do Império Bizantino e o mundo árabe-islâmico. A idéia de Europa sempre
como idéia de oposição, a eterna busca de um Outro para se definir a própria
identidade.
199
Um dos primeiros a tomar e a identificar, como “projeto político”, as noções de
Cristandade e de Europa como sinônimas foi o Papa Pio II (1405-1464), sendo que o
que o animava era a oposição à ameaça turca. Segundo Pim den Boer:
O papa usava os termos “Respublica christiana” e Europa como
sinônimos intercambiáveis, também falava de “nossa Europa, nossa
Europa Cristã”. Ele também foi o primeiro a usar o adjetivo europeus,
derivado do nome latino Europa. Adjetivos equivalentes rapidamente
encontraram seu caminho em várias outras línguas nacionais.
(tradução minha)
200
Com o gradual crescimento da vida urbana, que irá se desenvolver em diversas
regiões da Europa, o espírito renascentista passa a constituir outro elemento importante
na construção da identidade européia. O Humanismo contribuirá para a formação de
uma idéia de solidariedade entre os europeus. As noções de humanitas e studia
humanitatis referiam-se a um “programa educacional” baseado no estudo dos autores
gregos e latinos. Assim, paralelamente à noção de Respublica christiana, com o intuito
de educar um novo tipo de indivíduo, através do estudo dos “clássicos” greco-latinos,
desenvolve-se o conceito de Respublica litteraria. Começa-se a forjar, por meio do
estudo da tradição clássica, uma espécie de “raiz comum”: a “imagem da tradição ou da
198
BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 26-27.
199
ASH. Um projeto chamado Europa, p. 8-9; VERÍSSIMO. Velhos e novos bárbaros, p. 9.
200
“The Pope used the terms ‘Respublica Christiana’ and Europe as interchangeable synonyms, also
speaking of ‘our Europe, our Christian Europe’. He was also one of the first to use the adjective
europeus, derived from the Latin noun Europa. Equivalent adjectives rapidly found their way into the
various national languages”. (BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 35-36).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
67
Antigüidade clássica grega como determinante da identidade nacional”.
201
Crianças,
eruditos e intelectuais liam os mesmos autores no decorrer de sua educação clássica, em
diferentes regiões, acreditando absorver o conhecimento na mesma “fonte”. Pode-se
dizer que, através da Cristandade Romana e do Humanismo, um sentimento de
solidariedade, de comunidade era criado, “imaginado”.
202
Por outro lado, o século XVI assiste ao desaparecimento daquela ilusão de
unidade forjada pelo Humanismo aliado ao Cristianismo. Era o resultado não só da
Reforma Protestante, mas a conseqüência da eclosão de outros grupos e minorias
religiosas.
203
Nesse período, irreconciliáveis oposições religiosas foram criadas,
alargando ainda mais a cisão cultural, teológica e política que já separava, desde o
século XI, as duas cristandades, a ocidental e a oriental – o Grande Cisma. Foi essa
divisão e fragmentação que começou a tornar a identificação entre a Europa e a
Cristandade difícil de se sustentar.
O que tais divisões demonstram é que, mesmo quando as ideologias preferiam
enquadrar o continente em uma moldura mais religiosa que territorial, nunca houve uma
Europa única, e a diferença esteve presente na história do continente de modo constante:
Por certo a Europa foi o continente específico da cristandade, pelo
menos entre a ascensão do Islã e a conquista do Novo Mundo.
Entretanto, mal haviam sido convertidos os últimos pagãos quando se
evidenciou que pelo menos duas variedades de cristianismo nada
fraternas se enfrentavam no território europeu, e a Reforma do século
XVI adicionava diversas outras.
204
Além disso, uma outra figuração da Europa começa a se desenvolver devido à
expansão e conquista do planeta. O continente volta-se do Mediterrâneo para o
Atlântico. O comércio dá um impulso na economia, determinando o progresso da
expansão européia. Assim, aliados às vitórias militares no Oriente, o Cristianismo, o
comércio e a colonização seriam os elementos que formariam a base para o sentimento
201
SAID. Cultura e imperialismo, p. 47.
202
ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 22-25.
203
Não é objetivo desta pesquisa aprofundar na análise do Renascimento, do Humanismo e da Reforma,
em suas especificidades nas diferentes regiões da Europa. Para uma leitura detalhada do tema, ver:
CANTIMORI. Humnismo y religiones en el Renacimiento, p. 150-154.
204
HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 237.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
68
de superioridade dos europeus. Tal sentimento pode ser atestado pelas representações
iconográficas do continente, a partir do século XVI, quando se tornam comuns alegorias
das diferentes partes do mundo – quatro naquele tempo –, trazendo atributos e símbolos
que viriam a se tornar comuns. Nessas representações, a Europa aparece como uma
figura feminina, portando uma coroa, a única a trazer tal atributo – além desta, um cetro
e um globo de prata em cada uma das mãos também são recorrentes. Ao final do século,
este tema se tornará recorrente na pintura: “a Europa coroada”.
205
Quando os continentes são retratados juntos, as posturas indicam claramente
uma subordinação à Europa. Se os continentes são retratados separadamente, a
superioridade européia é evidenciada por meio de comparações. Tal superioridade, ao
longo dos anos, passa a ser representada de maneira cada vez mais direta nas artes
plásticas e também na cartografia.
206
É importante lembrar que, por volta do século
XIV, escritos geográficos do astrônomo, matemático e filósofo Cláudio Ptolomeu,
datados do século II d.C., foram redescobertos, o que permitiu a reconstrução dos
mapas-múndi da antigüidade,
207
revelando uma Europa muito menor em extensão em
relação às outras partes conhecidas do mundo. Esse fato talvez justifique o surgimento
de mapas-múndi incomuns, nos quais a Europa é representada na forma de rainha,
trazendo a coroa, o cetro e o globo de prata. Os adereços “compensariam” a menor
extensão do continente.
A cosmografia de Sebastian Münster, datada de 1588, é paradigmática nesse
sentido (ver Figura 2).
205
BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 48-51.
206
Para ver algumas dessas figurações da Europa, o livro The history of the idea of Europe é rico em
reproduções. (Cf. WILSON; DUSSEN (ed.). The history of the idea of Europe, p. 51-57).
207
Os mais antigos mapas-múndi foram encontrados nos manuscritos medievais. Nenhum mapa
produzido na Antigüidade sobreviveu. Por outro lado, a partir de descobertas de textos antigos, como
os de Cláudio Ptolomeu, tornou-se possível a reconstrução dessa cartografia clássica. (Cf. BOER.
Europe to 1914: the making of an idea, p. 22-26).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
69
Figura 2: Europe as queen, de Sebastien Münster (Cosmographia Universalis, 1588)
Fonte: WILSON; DUSSEN (ed.). The history of the idea of Europe, p. 52.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
70
Nessa mistura de rainha e mapa, o corpo da “Grande Dama” é (de)composto de
acordo com os desejos de expansão da dinastia dos Habsburgos, na época. Assim, a
Espanha aparece como a cabeça coroada; já a Boêmia é o coração; a Itália, por sua vez,
forma um dos braços cuja mão segura um globo de prata, exatamente a Sicília; noutro
braço, o cetro atravessa a Escócia e a Inglaterra, só para citar alguns exemplos.
Com o Iluminismo, o modelo cultural europeu identifica-se com a idéia de
“universalidade”
208
e a figura da Europa coroada será talhada até transformar-se em
sinônimo de Civilização. O movimento rumo a uma “civilização dos costumes” ocorre
lentamente, afetando diretamente o modo como o indivíduo comporta-se e sente. A
estrutura do comportamento civilizado estará intimamente interligada com a
organização das sociedades ocidentais, sob a forma de Estados.
209
Assim, a noção de
civilização emerge como mais um conceito inventado para dar conta do fenômeno de
uma hegemonia político-cultural: “ser europeu” era enxergar-se civilizado, e, para tanto,
tornava-se necessária a organização de um código social comum: a hospitalidade das
“pessoas de classe” em diferentes partes da Europa – Londres, Paris, Roma...; a língua
francesa – “língua da Europa”; a cortesia; o “bom gosto”; a arte da conversação; a
linguagem corporal – sentar-se, andar a cavalo, caminhar por um jardim, espadachinar,
entrar em um salão, tomar um lugar à mesa, erguer uma taça, tomar chá...
210
É a época
da “República das Letras”, de Voltaire, e o cosmopolitismo também fará parte desse
código social. O olhar pluralista do europeu cosmopolita abrangia “toda a Europa” em
sua visão de mundo. Esse cosmopolitismo será também lingüístico, com o francês sendo
eleito a “língua veicular mundial”,
211
a língua franca da diplomacia, enquanto o latim
deixava de ser o idioma da alta inteligência pan-européia: “o francês espalha-se das
cortes para a camada superior da burguesia. Todas as honnêtes gens (gente de bem),
todas as pessoas de ‘conseqüência’ o falam. Falar francês é o símbolo de status de toda
208
LOURENÇO. Nós e a Europa ou as duas razões, p. 61.
209
ELIAS. O processo civilizador, v.1, p. 14-16.
210
Sobre o desenvolvimento dos modos de conduta, forjando o comportamento “típico” do homem
civilizado ocidental (europeu), ver: ELIAS. O processo civilizador, v.1; DARNTON. Fronteiras
imaginadas.
211
DELEUZE. Kafka: por uma literatura menor, p. 37-38.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
71
a classe superior”.
212
Cumprindo a função antes desempenhada pelo latim, o francês
passa a traduzir a unidade da Europa, o que significava que livros e jornais eram
publicados em língua francesa, em gráficas situadas em diferentes cidades do continente
e, assim como no caso do professar a religião católica e dos estudos dos clássicos, os
cidadãos europeus sentiam-se pertencentes a uma mesma comunidade ao ler esses
textos. Tal sentimento estaria associado àquilo que Benedict Anderson chama de
“capitalismo impresso”, que “criou campos unificados de troca”, possibilitando às
pessoas o direito de enxergar a história da comunidade como um todo coerente e
integral.
213
Fazer parte desse universo resultava, então, em constituir-se uma
“comunidade imaginada”, embora, nesse caso – para marcar o deslocamento do uso da
noção de Anderson –, tal comunidade fosse muito mais européia – “continental” – do
que nacionalista – no sentido da equação nação = Estado = povo.
214
Por outro lado, a
experiência do cosmopolitismo, aliada à era das revoluções francesas, sistematiza e
consolida o modelo do Estado-nação, que “era definido como um território (de
preferência, contínuo e inteiro) dominando a totalidade de seus habitantes; e estava
separado de outros territórios semelhantes por fronteiras e limites claramente
definidos”.
215
Sob a influência dos ideais democráticos, ao longo do século XIX, uma
importante mudança acontece no âmbito da perspectiva histórica da idéia de Europa.
Até então, a origem da civilização européia era inevitavelmente atrelada ao
estabelecimento do Cristianismo. A queda do império romano e o nascimento do
Cristianismo eram tomados – não apenas pelos conservadores, mas também pelos
liberais – como marco, ponto de partida da civilização européia. Entretanto, talvez sob a
influência da mobilidade do “centro cultural” do continente, desde o século XVII, de
Roma para Paris, um novo olhar para a história grega
216
levou a uma revolução
212
ELIAS. O processo civilizador, v.1, p. 30. Ver ainda, sobre a mesma questão: ANDERSON.
Comunidades imaginadas, p. 38.
213
Cf. ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 38-39; 62-63; 70-71; 107-108; 115-116.
214
Cf. HOBSBAWM. Nações e nacionalismo desde 1780, p. 32.
215
HOBSBAWM. Nações e nacionalismo desde 1780, p. 101.
216
Apesar da forte influência da filosofia, das ciências, da literatura e das artes gregas, a herança política
foi, por muito tempo, largamente ignorada. (Cf. BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 74).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
72
fundamental: a Europa redescobre a democracia ateniense. Assim, o estabelecimento do
Cristianismo deixa de ocupar o lugar de fonte e de berço da civilização européia,
cedendo-o à democracia grega arcaica. Enfatiza-se a condição de liberdade dos homens
gregos, sem se atentar, no entanto, para o fato de que essa condição de homens livres
não abarcaria a toda população, excluindo-se os estrangeiros, os escravos e as mulheres,
privados de direitos políticos. Um trecho de uma crônica de Paulo Leminski, datada de
1985, época em que a palavra democracia também era “redescoberta” por aqui, ilustra
essa situação:
Das palavras políticas gregas, uma das mais em voga atualmente é
“democracia”.
Na Atenas clássica, era uma coisa exata: o poder dos “demos”, as
zonas eleitorais da cidade, em tempos quando o povo estava forte. Só
que é preciso esclarecer que “povo”, aqui, queria dizer machos adultos
e livres. No auge da democracia, Atenas tinha vinte mil cidadãos para
mais de oitenta mil escravos (isso sem falar nas mulheres que os
sábios da Antigüidade, como Waldik Soriano, hesitavam em incluir no
número de “seres humanos”). A idéia de democracia é aristocrática, o
povão é fascista até em casa.
No século 19, a burguesia vitoriosa começou a usar a palavra para
designar uma ordem política favorável ao bom andamento dos seus
negócios.
E assim a palavra chegou até nós mais esfarrapada que bandeira de
navio pirata.
217
Se mulheres e escravos eram excluídos do sistema democrático ateniense, tal
fato em nada afetava o apelo revolucionário da concepção de história da civilização
européia, com sua fonte em Atenas e não em Roma.
218
De certa maneira, fecha-se um
ciclo, pois Europa, inicialmente, foi uma noção geográfica identificada com a liberdade
e a democracia no contexto da guerra com os persas.
Civilização, Cultura e Progresso serão os termos associados ao continente, em
uma espécie de secularização da noção de Cristandade. A Europa erige-se como um
modelo de educação, cultura e ideologia, convicta de sua vocação para encarnar o mais
alto grau – não se pode esquecer da coroa – da “aventura humana enquanto aventura do
conhecimento puro – e da vontade de poderio que a acompanha, tamm”.
219
217
LEMINSKI. Políticos e idiotas, p. 8.
218
BOER. Europe to 1914: the making of an idea, p. 74.
219
LOURENÇO. Nós e a Europa ou as duas razões, p. 58.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
73
Como bem afirma Eric Hobsbawm, referindo-se especificamente à Europa do
período entreguerras, e refletindo sobre as limitações e o potencial de nacionalismo dos
Estados-nações:
a maioria dos novos Estados que se reergueu das ruínas dos antigos
impérios era inteiramente tão multinacional quanto as velhas “prisões
de nações” que substituíram. (...) A principal mudança: os Estados
agora estavam em média um pouco menores e os “povos oprimidos”
dentro deles eram agora chamados de “minorias oprimidas”. A
implicação lógica de tentar criar um continente corretamente dividido
em Estados territoriais coerentes, cada um habitado por uma
população homogênea, separada étnica e lingüisticamente, era a
expulsão maciça ou a exterminação das minorias.
220
Para sustentar esse sentimento de superioridade civilizacional européia, será
necessário redesenhar incessantemente as fronteiras mentais do continente. Assim,
partes do continente geográfico serão excluídas de algumas noções políticas e
ideológicas de “Europa”. Durante a Guerra Fria, por exemplo, as fronteiras da Europa –
ou o que era considerado civilização ocidental – paravam nos limites da região
controlada pela URSS. Seus contornos eram definidos pelo não-comunismo dos
governos, uma visão ideológica, econômica e política que contribuiria para forjar a
representação contemporânea de Ocidente.
Na verdade, procurar por uma Europa única, uma pan-Europa – como o
fizeram Napoleão Bonaparte e Adolf Hitler, entre outros – resulta sempre em fracasso.
Até onde vão os limites do continente? Isso depende da posição adotada pelo
observador. Durante um tempo, para a mentalidade européia – fundada na idéia de alta
cultura –, “o Oriente começava no lado de lá do Danúbio, onde havia sempre algum tipo
de flagelo de deus acampado”.
221
Como demonstra Eric Hobsbawm, no final do século
XIX, em um jornal de Viena, por exemplo, apareceram artigos voltados contra os
húngaros, denominando-os de “bárbaros-asiáticos”. Na mesma época, para os habitantes
de Budapeste, os limites da Europa legítima passavam claramente entre a Hungria e a
Croácia.
222
Para eslovenos e croatas, a fronteira passa, obviamente, entre eles e os
sérvios. E o declive não caminha só para o leste; o que dizer de Portugal e Espanha,
220
HOBSBAWM. Nações e nacionalismo desde 1780, p. 161.
221
VERÍSSIMO. Velhos e novos bárbaros, p. 9.
222
Cf. HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 237.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
74
separados da “autêntica” Europa pela simbólica cordilheira dos Pireneus, ou mesmo o
sul da Itália para os habitantes do norte...
A verdadeira distinção, dessa forma, não é de ordem geográfica; mas
tampouco é necessariamente ideológica. Ela separa a superioridade
sentida da inferioridade imputada conforme definida por aqueles que
se consideram “melhores”, ou seja, pertencendo normalmente a uma
classe intelectual, cultural ou mesmo biológica mais elevada que a de
seus vizinhos. A distinção não é necessariamente étnica. Na Europa,
como em outros lugares, a fronteira universalmente mais reconhecida
entre civilização e barbárie passa entre os ricos e os pobres, em outras
palavras, entre os que têm acesso aos luxos, educação e o mundo
exterior, e o resto.
223
Para além de sua conotação “cartográfica” – e essa não é tranqüila –, fica
difícil encontrar uma definição para “Europa”. As idéias que podem ser feitas são
variadas e dependem, como já foi dito, do locus construído pelo observador. Seja de
uma ex-colônia européia, de um país periférico dentro do próprio continente, ou de um
país “central”, o que se percebe é a criação de graus de “europeísmo”.
Contemporaneamente, assistimos ao delineamento de um “racismo econômico”
no interior da Comunidade Européia. Em uma atitude de “condescendência ocidental”:
“os países pós-comunistas do Leste Europeu são uma espécie de primos pobres
retardados, que serão admitidos à família se se comportarem adequadamente”.
224
Esse
cenário denota um egoísmo econômico sem legitimação, seja de ordem “natural ou
cultural”, da “superioridade e o desenvolvimento do Ocidente”, tão brutal quanto a
noção de superioridade cultural. Assim, tem-se uma Europa mais européia que as outras
partes do continente. O termômetro – quente ou frio; próximo ou distante desse “núcleo
duro europeu”
225
– pode ser percebido pela ordem de entrada dos países na União
Européia. As certezas de uns, as hesitações de outros em entrar na CEE – as posições da
Turquia, da Rússia e dos países da Europa Centro-Oriental, por exemplo, e a posição
dos outros países em relação a esses – desenham os contornos desse mapa imaginado e
desejado.
223
HOBSBAWM. A curiosa história da Europa, p. 237.
224
ZIZEK. O espelho distorcido. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/
fs0905200405.Htm>.
225
LOURENÇO. Nós e a Europa ou as duas razões, p. 40.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
75
1.4. Dentro e fora da Europa
Em Três cantos fúnebres para Kosovo, Ismail Kadaré ocupa-se de um tema
caro aos povos da Europa Centro-Oriental, a batalha de Kosovo Polje (“O campo dos
Melros”, em servo-croata). Fator determinante para a identidade nacional dos povos
dessa região, marcando as manifestações culturais de forma incisiva e também as
manifestações ideológicas de intolerância, essa batalha travou-se em 28 de junho de
1389. Nela, enfrentaram-se o exército otomano, comandado pelo sultão Murat (ou
Murad I)
226
e as tropas européias – espécie de coalizão bálcano-cristã –, compostas por
sérvios, bósnios, albaneses, búlgaros, húngaros, poloneses e valáquios (romenos). Ao
final desse 28 de junho, as tropas européias foram massacradas pelo exército
otomano.
227
Na primeira história ou primeiro canto fúnebre do livro de Ismail Kadaré,
intitulada “A velha Guerra”, há uma cena bastante significativa que representa o sultão
Murat, que se prepara para a batalha do Kosovo, em seu imenso salão, diante de um
mapa da Europa, a ouvir as explicações de um almirante. Diz o segundo:
A Europa, meu paxá, é semelhante a uma mula teimosa. As três
penínsulas que estão penduradas debaixo dela são como três
chocalhos. Depois de ter emudecido o primeiro, a terra dos Bálcãs,
nós nos atiraremos sobre o segundo, a Itália, onde inicialmente foi
erguida a cruz dos infiéis. Em seguida, atacaremos o terceiro, a
Espanha, sobre a qual reinou outrora o Islã, antes de ter sido
expulso...
228
Em primeiro lugar, chama a atenção o anacronismo da situação, seja através do
uso – dir-se-ia estratégico – feito do mapa e do conceito de Europa, pouco comum ao
século XIV, ou da linguagem utilizada. O emprego do artifício do anacronismo é
recorrente e consciente nos livros de Ismail Kadaré, em que a presença do passado
ocupa um espaço importante na fabulação.
229
Todavia, ao contrário da utilização do
226
As grafias de nomes próprios estrangeiros em português variam bastante, assim, optamos por utilizar
como referência o Pequeno dicionário e enciclopédia Koogan-Larouse. Por outro lado, nos títulos de
obras e nas citações diretas, manteremos a grafia escolhida pelos autores dos mesmos.
227
Cf. JOVANOVIC. Iugoslávia, uma constelação cultural, p. 59-64; JOVANOVIC. À sombra do quarto
crescente, p. 176-191.
228
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 24-25.
229
Podemos citar aqui os romances Abril despedaçado; Concerto no fim do inverno; Dossiê H; Palácio
dos sonhos; A pirâmide; A ponte dos três arcos; O sucessor e Os tambores da chuva (O castelo).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
76
mesmo artifício pelo romance histórico do século XIX – como um recurso discursivo
entre outros, escondido sob as malhas da narrativa tradicionalmente realista –, em Ismail
Kadaré, o que também é uma característica das narrativas contemporâneas, em especial
daquelas às quais se convencionou chamar de metaficcionais,
230
o anacronismo
apresenta-se como um dos veículos da narrativa, um recurso retórico que demostra o
quanto a re-visitação do passado é dependente do contexto em que o presente lhe
inscreve.
231
Tal uso do anacronismo permite a Ismail Kadaré, no caso específico de
Três cantos fúnebres para Kosovo, justapor duas dimensões temporais – final do
século XIV/final do século XX – , ambas sob o signo da “guerra do Kosovo”. Assim, ao
suprimirem-se as fronteiras entre o ocorrido e o repercutido, as personagens e as vozes
narrativas deslocam-se no tempo, penduradas no vácuo, entre duas épocas.
232
Quanto
ao leitor, este é obrigado a reconhecer o caráter textual do conhecimento sobre o
passado e o elemento de incerteza, limitação e escolha que atravessa a forma discursiva
desse conhecimento.
233
Em segundo lugar, e decorrente do que foi observado anteriormente, o mapa da
Europa sobre o qual se debruçam o sultão Murat e o seu almirante é e não é, ao mesmo
tempo, o mapa da Europa do século XIV; a batalha do Kosovo para qual as duas
230
A noção de “metaficção historiográfica” foi cunhada pela teórica canadense Linda Hutcheon, no livro
Poética do pós-modernismo. O objetivo era dar conta das características de um tipo de ficção
contemporânea que se constrói a partir de dois pontos: a reflexão sobre o discurso, ou seja, o uso da
metalinguagem como forma de se referir à situação discursiva; e a visão crítica da história,
questionando-se a verdade que estaria inerente a esse tipo de discurso. (Cf. HUTCHEON. Poética do
pós-modernismo). Sobre a noção de “metaficção histoirográfica” relacionada à literatura da Europa
Centro-Oriental, ver: KRYSINSKI. Metaficcional structures in slavic literatures: towards na
archeology of metafiction, p. 63-82.
231
Sobre o papel do anacronismo nas narrativas contemporâneas, ver: KAUFMAN. A metaficção
historiográfica de José Saramago, p. 124-136.
232
Faço referência no trecho em itálico à fala de uma personagem do romance Concerto no fim do
inverno, também de Ismail Kadaré: o “infeliz” Viktor Hila que, ao pisar no pé de um chinês,
desencadeia um incidente internacional envolvendo a Albânia e a China. Refletindo sobre o
acontecimento insólito, Viktor afirma: “Virei um personagem absurdo – continuou ele – Compreende?
Uma pessoa que ficou à margem do tempo. Meu gesto teria sido punido tempos atrás, e talvez seja
enaltecido no futuro, mas precisamente agora, na situação que se criou entre os dois países, não é nem
uma coisa nem outra. E isso, é o pior de tudo. Sou um sujeito pendurado no vácuo, entre duas épocas.
E estar entre duas épocas é não estar em época alguma, não é?” (KADARÉ. Concerto no fim do
inverno, p. 63; grifos meus).
233
Sobre este assunto, ver: WHITE. Trópicos do discurso, especialmente o capítulo 3: O texto histórico
como artefato literário, p. 97-116; HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, mais especificamente o
capítulo 8: A intertextualidade, a paródia e os discursos da história, p. 163-182.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
77
personagens se preparam é e não é, simultaneamente, a batalha de 1389, porque se
constituem através dos discursos que tentaram decifrar esses complexos e nebulosos
enigmas ao longo do tempo e, é claro, pelas inquirições de Ismail Kadaré a esses
“vestígios textualizados”.
234
Em conseqüência, os olhares das duas personagens de Três
cantos fúnebres para Kosovo desenham um mapa, para além dos século XIV, só
margens, contornos, limites. Uma Europa constituída de bordas, de partes que parecem
suspensas, em equilíbrio instável, ameaçador e iminente, entre a fixidez/pertencimento e
a propulsão/separação, entre ocidente e outros orientes.
Tem-se, novamente, a rota dos movimentos intervalares de reterritorialização
e desterritorialização. Além disso, mais do que ser ou não ser Europa, o que essas
bordas revelam é um ser à parte. Um sentimento que ultrapassa a questão dos contornos
do continente e aponta para existência de dois modos de ser e estar Europa: um, pelas
vias do Espírito hegeliano –Europa-Europa –; outro, pelo viés do Mal-Estar freudiano –
Outra Europa. É o que Eduardo Lourenço chama de “duas razões” – luz e fantasmagoria
– contidas no interior da noção de Europa.
A querela cultural, na medida em que existe, não é essencial nem
necessariamente entre “a Europa” e o Outro, ela compreende, integra,
ou antes, diz respeito ao outro da Europa, àquilo que ela é e a define
fora da realidade mítica de espaço historicamente privilegiado da
criação científica e da organização da sociedade intencionalmente,
conforme as exigências de uma racionalidade análoga à que supõe a
prática científica. (grifos do autor)
235
A Europa Centro-Oriental, com sua delimitação ambígua e polêmica, para a
qual também é difícil chegar a um acordo acerca de seu nome, é paradigmática desse
sentimento de ser e estar na Europa e sob o olhar da Europa pelas vias do “mal estar”.
236
Na encruzilhada entre leste e oeste, essa Outra Europa possibilita a articulação entre as
culturas do Oriente e do Ocidente ao mesmo tempo em que, de modo constante,
reivindica a sua autonomia cultural. Por outro lado, mais tortuosa que a encruzilhada, é,
como já esboçamos anteriormente, a linha/fronteira que separa e ao mesmo tempo
inventa as noções de Ocidente, Oriente, Europa e seus outros nós...
234
HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p. 167.
235
LOURENÇO. Nós e a Europa ou as duas razões, p. 58.
236
Cf. LOURENÇO. Nós e a Europa ou as duas razões, p. 53.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
78
Em sua elaboração teórica a respeito do conceito de Orientalismo,
237
Edward
Said desenvolve a noção de que o Oriente é uma invenção européia e não um fato inerte
da natureza. Os lugares, regiões e setores geográficos conhecidos como “Oriente” e
“Ocidente” seriam construções discursivas, entidades históricas forjadas pelo homem:
“(...) o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento,
imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente”.
238
Dessa maneira, os dois espaços apoiar-se-iam, um refletiria o outro, ou melhor, a
Europa definir-se-ia através do Oriente, como sua imagem, idéia e experiência ao revés.
Teria assim configurada, no interior dessa mirada – Ocidente/Oriente –, uma relação de
poder:
É a hegemonia, ou resultado da hegemonia em ação (...) “nós”
europeus em contraste com todos “aqueles” não-europeus, e de fato
pode ser argumentado que o principal componente na cultura européia
é precisamente o que torna essa cultura hegemônica tanto na Europa
quanto fora dela: a idéia da identidade européia como sendo superior
em comparação com todos os povos e culturas não-europeus.
239
Quanto à expressão “Outra Europa”, que utilizo inclusive no título desta tese,
ela teria sido criada pelo romancista americano Phillip Roth, quando este dirigia uma
pioneira coleção, da Penguin Books, de traduções de obras literárias da Europa Centro-
Oriental para o inglês: Writers from the Other Europe [Escritores da Outra Europa].
240
Tal expressão buscava marcar a peculiaridade e “alteridade” da região em relação à
“Velha Europa” como “uma próspera ilha de tranqüilidade, isolada dos horrores do
resto do mundo”.
241
Além disso, essa noção de Outra Europa permite levantar uma
interessante questão: como grupos separados e em constante conflito como o são os
povos da Europa Centro-Oriental, da Outra Europa, emparedados entre o Ocidente e o
Oriente
242
encaixar-se-iam nessa ordem hegemônica de Europa/Ocidente? Para
237
Cf. SAID. Orientalismo; SAID. O orientalismo revisto, p. 251-273.
238
SAID. Orientalismo, p. 17.
239
SAID. Orientalismo, p. 19.
240
ASCHER. Pomos da discórdia, p. 14.
241
ASCHER. Pomos da discórdia, p. 58.
242
Essa visão da Europa Centro-Oriental como ponto de colisão entre as culturas do Ocidente e do
Oriente é apresentada pelo escritor húngaro György Konrád: “É aqui, na Europa de Centro-Leste que
as culturas do Oriente e do Ocidente colidem; é aqui que elas se misturam. Aqui vemos lado a lado a
bagagem física e psíquica das civilizações industrial e pré-industrial. As nossas cabeças como velhos
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
79
Ernesto Laclau,
243
na relação hegemônica, lógicas como as da diferença e da
equivalência estariam desvinculadas de qualquer conteúdo diferencial particular, a
ordem hegemônica seria a imposição de um princípio organizacional preexistente e não
algo que brotaria da interação política entre os grupos. Assim, em meio a fraturas,
fissuras e abismos, constroem-se os sistemas hegemônicos saturantes. E, se, como
afirma Edward W. Said, o orientalismo encontra-se fora do Oriente, distante deste,
também o conceito de Europa “européia” – “nós-europeus” – revela-se um logro, um
artifício, quiçá, um significante vazio.
Sob o viés desse imaginário “olhar do mundo” de uma antiga Europa
hegemônica, a Europa Centro-Oriental constitui, sem dúvida, como já afirmado
anteriormente, uma região peculiar, um caleidoscópio de povos, culturas e línguas. Pode
parecer enfadonho repeti-la mais uma vez, contudo, a forma do caleidoscópio, com seu
jogo e combinação de imagens coloridas em constante mutação, figura de modo
exemplar o espaço vertiginoso e cambiante dessa Outra Europa. Também a Babel de
que fala Jacques Derrida, à qual já se aludiu antes, é significante desse universo, não
apenas na multiplicidade irredutível das línguas, mas na experiência do não-
acabamento, na impossibilidade da coerência do constructum.
244
Se delimitar tal espaço – onde começa, onde termina? – é difícil, o que diria
nomeá-lo. Um nome próprio, “a referência de um significante puro a um real
singular”,
245
portanto intradutível; qual? Muitas são as imagens acústicas que tentam,
ilusoriamente, cobrir significado tão cambiante: Bálcãs, Leste Europeu, Europa Central,
Europa Centro-Oriental, Ásia Ocidental, Outra Europa... Significantes distintos;
significados adversos, conquanto, por “confusão”, aqui, faço confluir, para demonstrar a
generalidade de sentidos que atravessam tal espaço. Por outro lado, “trocados os
rótulos”, como lembra Aleksandar Jovanovic, “os referenciais não são exatamente os
rádios, assobiam e zumbem com as proclamações do socialismo do Estado de estilo soviético e do
liberalismo atlântico; tentamos sintonizar, mas apanhamos sempre os mesmos parasitas, uma e outra
vez (...)”. (KONRÁD. Letter from Budapest. Cross Current, 1982. Apud. SIEWIERSKI. O mito da
“Europa Central”, p. 3).
243
Cf. LACLAU. Emancipación y diferencia, p. 69-86.
244
Cf. DERRIDA. Torres de Babel, p. 11-12.
245
DERRIDA. Torres de Babel, p. 13.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
80
mesmos, porque remetem a perspectivas distintas, por vezes conflitantes. Confronto de
paradigmas, choque de visões de mundo”.
246
O próprio sintagma
247
Europa Centro-
Oriental – marcado por conjunções e deslocamentos; relações e diferenças que se
apoiam na extensão – é alvo de inúmeras discussões, pois, nessas regiões, mais do que
em qualquer outro lugar, termos como Central, Ocidental, Asiático, Europeu, entre
outros, não são politicamente neutros. Como adverte Nelson Ascher:
Muitos de seus habitantes argumentam, às vezes irritados, que são do
“centro”, mas não orientais, “continentais” e não “balcânicos”,
“ocidentais” e não “bizantinos”. Uma surpresa modesta reservada aos
observadores de fora, porém, é uma constatação de que termos como
“Ocidente”, aparentemente inofensivos e inequívocos, podem em
Zagreb, Liubliana ou Budapeste, ter um sentido não somente distinto
do que se esperaria, como também implicações políticas
impensáveis.
248
Em meio a essa confusão de nomes, faz-se interessante perscrutar, por
exemplo, a utilização ou reinvenção do conceito de Europa Central durante o século
XX, que pode ser lida como sinônimo do pluralismo de enfoques, das dificuldades em
se discutir “nações e nacionalismos” e de se definir identidade cultural nesses espaços
em que “o círculo não é redondo”
249
e a “história nunca termina”.
250
Depois de percorrer caminhos diversos ao longo do século XIX,
251
a expressão
Europa Central foi usada, no início do século XX, por Thomas Masaryk, o primeiro
presidente da Tchecoslováquia independente (1918), com a intenção de opor-se ao
conceito de Mitteleuropa,
252
este último utilizado como expressão dos projetos de
246
JOVANOVIC. Europa Central: um reino do espírito (ou a múltipla navegação através da cartografia
cultural), f.5.
247
“Colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que o
segue, ou a ambos” (SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 142).
248
ASCHER. Europa, pois é, Europa, p. 9.
249
ANTES da chuva. Direção: Milcho Manchevski... 1994.
250
UNDERGROUND – mentiras da guerra. Direção: Emir Kusturica... 1995; UM OLHAR a cada dia.
Direção Theo Angelopoulos... 1995.
251
Para um percurso histórico através da noção de Europa Central, inclusive pelos caminhos diversos que
tal noção percorreu no século XIX, ver: JOVANOVIC. Europa Central: um reino do espírito (ou a
múltipla navegação através da cartografia cultural), f.1-10.
252
Conceito do imperialismo alemão bastante ambíguo, Mitteleuropa era considerado, no século XIX,
como o território no centro do continente europeu cujo destino era tornar-se domínio da Alemanha.
No século XX, entre outras conotações, o conceito foi associado à política imperialista do III Reich.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
81
expansão imperial alemã. Fundador da República Tcheca, Thomas Masaryk lutou contra
a formação de mitos nacionais em seu país, provando, inclusive, que manuscritos
medievais sobre os quais se apoiava grande parte do mito nacional da região eram
falsos.
253
Para Thomas Masaryk, a Europa Central caracterizaria a zona das nações
pequenas do Cabo do Norte ao Cabo Matapan, abrangendo em uma espécie de breve
sonho de unidade política: laponeses, suecos, noruegueses, dinamarqueses, finlandeses,
estonianos, letões, lituanos, poloneses, lusitianos, tchecos, eslovacos, húngaros, sérvios,
croatas, eslovenos, romenos, búlgaros, albaneses, turcos e gregos.
254
A partir de 1945, a região, despojo do conflito Leste-Oeste, passou a ser
caracterizada mais pela orientação e prática políticas de seus governantes do que
propriamente pela localização do espaço geográfico. Até 1989, antes do fim da ordem
bipolar de superpotências, o Leste da Europa, para alguns autores, era caracterizado
pelos países do bloco soviético. Assim, ter-se-iam, sob esse viés político, República
Democrática Alemã, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia
e Albânia, constituindo esse “Outro Leste”.
255
Em meados dos anos 80 do século XX, o conceito de Europa Central ganhou
proeminência a partir do apelo de escritores como o polonês Czeslaw Milosz,
256
o
húngaro György Konrád
257
e o tcheco Milan Kundera,
258
para salvar a cultura dessa
região da Europa.
259
Os três escritores, em maior ou menor grau, defendiam a opinião
(Cf. SIWIERSKI. O mito da “Europa Central”, p. 2; JOVANOVIC. Europa Central: um reino do
espírito (ou a múltipla navegação através da cartografia cultural), f.2).
253
HOBSBAWM. Dentro e fora da história, p. 21. Irônica ou tragicamente, nos anos de 1990, o governo
de Praga, na atual República Tcheca, nem queria ser chamado de centro-europeu, “por recear ser
contaminado pelo contato com o Leste” (Cf. HOBSBAWM. Dentro e fora da história, p. 15).
254
Cf. SIEWIERSKI. O mito da “Europa Central”, p. 3.
255
Cf. OLIC. A desintegração do Leste, p. 30.
256
MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 3-10.
257
KONRÁD. O sonho da Europa Central ainda está vivo?, p. 11-20.
258
KUNDERA. The tragedy of Central Europe, p. 33-38.
259
Uma pesquisa interessante a respeito dessa eclosão do conceito de Europa Central, ao longo dos anos
80, tomando como ponto de partida artigos sobre o tema – inclusive os de Milosz e Konrad, acima
citados – publicados no periódico Cross current
a yearbook of central european culture, é o trabalho
de Jessie Labov, da Universidade de Nova Iorque. (Cf. LABOV. Balkan Revisions to the Myth of
Central Europe. Disponível em: <http://www.ksg.harvard.edu/kokkalis/GSW1/GSW1/02%20
Labov.pdf
>). Para outra perspectiva crítica dessa “visão consoladora de um sonho europeu”, nos anos
80, ver ainda: BAIER. El centro esta vacio: microeuropa, paneuropa, barbaropa, p. 44-51.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
82
de que a Europa Central estava ameaçada pelo então domínio soviético. Esse forte
posicionamento anti-URSS, influenciado pela versão austríaca “neutra” do conceito nos
anos 70,
260
refletia a situação política anterior a 1989.
Em um ensaio carregado de amargura, “A tragédia da Europa Central” –
publicado em 1984, no periódico The New York Review of Books
261
–, Milan Kundera
afirma que tal região se distingue pela “maior variedade em um menor espaço”, e que,
com o domínio soviético, cujo ideal era “a menor variedade no maior espaço” (tradução
minha),
262
ela teria sido mastigada e acepilhada.
Seqüestrada do Ocidente, a Europa
Central estaria localizada “geograficamente no centro, culturalmente no Ocidente e
politicamente no Oriente” (tradução minha).
263
Por outro lado, Milan Kundera não
especifica as fronteiras geográficas dessa Europa. Para o escritor tcheco: “não faria
sentido tentar desenhar suas fronteiras exatas. A Europa Central não é um estado: é uma
cultura ou um destino [fado]. Suas fronteiras são imaginárias e podem ser desenhadas e
redesenhadas a cada nova situação histórica” (tradução minha).
264
Através do ponto de
vista de Kundera, compartilhado por outros intelectuais, o que forneceria à Europa
Central a sua “centralidade” seria a resistência ao “aplainamento” soviético e a
identificação e pertença ao Ocidente.
265
Como o próprio nome de seu artigo denuncia, “Atitudes centro-européias” –
publicado pela primeira vez em 1986, no periódico Cross Currents –, Czeslaw Milosz
defende uma “atitude” que caracterizaria essa região. Em concordância com o que
afirma Milan Kundera, Czeslaw Milosz nega a exatidão de uma idéia “cartográfica” de
260
PERRAULT. Regional lumping: a “Kidnapped Central Europe”. Disponível em: <http://www.ce-
review.org/99/23/perrault23.html>.
261
O artigo foi primeiro publicado em francês sob o título de “Un Occident kidnappe ou la tragedie de
l'Europe centrale” (Um ocidente seqüestrado ou a tragédia da Europa Central), Le Debat, n.27, nov.
1983.
262
“The greatest variety within the smallest space (...) the smallest variety in the greatest space”
(KUNDERA. The tragedy of Central Europe, p. 33).
263
“geographically in the centre, culturally in the West and politically in the East” (KUNDERA. The
tragedy of Central Europe, p. 33).
264
“It would be senseless to try to draw its borders exactly. Central Europe is not a state: it is a culture or
a fate. Its borders are imaginary and must be drawn and redrawn with each new historical situation”
(KUNDERA. The tragedy of Central Europe, p. 35).
265
Cf. TODOROVA. Imagining the Balkans, p. 146-147.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
83
Europa Central: “é difícil traçar seus limites nos mapas mesmo quando, ao caminhar
pelas ruas de suas cidades, não se duvide da sua sobrevivência (...)”.
266
Tal crença
estaria fundada nos limites mentais – maneiras de sentir e de pensar – e não nas
fronteiras de estado, ou seja, na imaginação humanista em detrimento da imaginação
política. Assim, segundo Milosz, “a Europa Central é um ato de fé, um projeto,
digamos, ou mesmo uma utopia”.
267
O autor evoca a noção de “passado comum”
evidenciado pela arquitetura de suas cidades, pelas tradições de suas universidades e
pelo trabalho de seus poetas.
268
Teríamos, aqui, uma das principais práticas daquilo que
Eric Hobsbawm chama de “tradição inventada”, a tentativa de se estabelecer
continuidade com um passado histórico determinado e adequado.
269
Em dois momentos
do texto, o escritor polonês estabelece uma continuidade histórica entre húngaros,
tchecos e poloneses: “qualquer um que tenha conhecimento da história dos tchecos, dos
húngaros e dos poloneses, sabe que determinados códigos de comportamento
imperativos para a intelligentsia vêm de séculos atrás”.
270
Mais à frente, datas mais
recentes serão trazidas com o mesmo intuito – “os acontecimentos de 1956 na Hungria,
os de 1968 na Tchecoslováquia e os de 1980 na Polônia”
271
–, forjando a imagem de
uma Europa Central de valores e comportamentos específicos – matriz da utopia e da
esperança iluministas – em oposição à “sovietização” de Moscou, o que tamm
aparece no artigo de Milan Kundera. Em dado momento do seu texto, o escritor tcheco
afirma:
de fato, a civilização totalitária russa é a radical negação do moderno
Ocidente, o Ocidente criado quatro séculos atrás no alvorecer da era
moderna: a era fundada sobre a autoridade do pensamento
questionador e sobre a expressão artística, que expressaria as suas
singularidades. (tradução minha)
272
266
MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 3.
267
MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 9.
268
Cf. MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 3.
269
HOBSBAWM. Introdução: a invenção das tradições, p. 9-10.
270
MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 7.
271
MILOSZ. Atitudes centro-européias, p. 9.
272
“in fact, totalitarian Russian civilization is the radical negation of the modern West, the West created
four centuries ago at the dawn of the modern era: the era founded on the authority of the thinking,
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
84
“O sonho da Europa Central ainda está vivo?”, essa indagação dá título ao
artigo de György Konrád – também publicado pela primeira vez em 1986, no periódico
Cross Currents. A resposta vem logo nas primeiras linhas: ele existe e é um fenômeno
romântico e subversivo.
273
Na mesma trilha dos outros dois intelectuais, Konrád lança
mão de expressões como “sentimento de vizinhança”, “camadas de tempo”,
“cordialidade e personalidade tradicionais”; “antropologia cultural análoga”.
Novamente, a idéia de um passado compartilhado – “os que têm um passado são mais
sentimentais”
274
–, o triunfo de valores e comportamentos – aristocráticos, militares e
patrióticos. Por outro lado, o escritor húngaro elege a diversidade e a multiplicidade
como dados identitários da Europa Central, em oposição ao nacionalismo e à tensão
étnica:
Talvez seja impossível adaptar o mapa político ao mapa étnico em
nosso canto do mundo. Este pensamento sugere que, aceitando-se a
estrutura do Estado como dada, devemos elevar a realidade étnica a
uma realidade cultural, justificada no contexto da história de toda a
região da Europa Central. (...) Fórmulas homogêneas não podem ser
aplicadas à nossa realidade. Não falamos as mesmas línguas, existem
lado a lado muitas mentalidades e muitos sistemas de valor.
275
O que definiria a Europa Central, segundo György Konrád, seria o fato de ela
estar nas bordas orientais do Ocidente e nas bordas ocidentais do Oriente. Se as noções
de Europa Ocidental e Europa Oriental são realidades políticas, a Europa Central seria,
para ele, uma “contra-hipótese cultural”
276
que não existiria em um sentido político e
militar, mas como uma “comunidade de destino”, que transcende os limites de um bloco
político:
Durante mil anos a Europa Central não abandonou a sua soberania –
por que iria fazê-lo agora? Ser um centro-europeu hoje é um desafio
doubting individual, and on an artistic creation that expressed his uniqueness” (KUNDERA. The
tragedy of Central Europe, p. 37).
273
KONRÁD. “O sonho da Europa Central ainda está vivo?”, p. 11. As mesmas idéias presentes nesse
artigo, de 1986, aparecem também na “Declaração de independência dos escritores europeus”,
redigida por György Konrád, em 1988, para um congresso em Berlim, que celebrava “o sonho da
Europa Central” (Cf. BAIER. El centro esta vacio: microeuropa, paneuropa, barbaropa, p. 45-47).
274
KONRÁD. “O sonho da Europa Central ainda está vivo?”, p. 11.
275
KONRÁD. “O sonho da Europa Central ainda está vivo?”, p. 12.
276
KONRÁD. “O sonho da Europa Central ainda está vivo?”, p. 16.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
85
aos sistemas de clichês dominantes. A nossa é uma comunidade de
interesses que transcende os blocos – pode-se mesmo dizer que é uma
comunidade de destino. Para nós é simplesmente impossível que
ignoremos uns aos outros, quando a própria água que bebemos ou
está poluída ou é mantida pura por outros de nós. Como podemos
deixar de ser interdependentes quando temos o poder de nos
envenenarmos entre nós?
(grifos meus)
277
Acompanhar a maneira como György Konrád, Milan Kundera e Czeslaw
Milosz lêem e formulam os seus discursos sobre a noção de Europa Central permite
confirmar a complexidade e incerteza da situão da (e de se estar na) Europa Centro-
Oriental. Incerteza e complexidade que não são monopólio desse espaço, mas que, em
suas paisagens, ganham contornos ainda mais nebulosos. Além disso, tal estado de
coisas é preponderante para definir o papel do intelectual e do artista dessa região, que,
como certa vertente do pensamento contemporâneo vem problematizar,
278
abandona a
posição de outside em relação a tudo que é coletivo e busca posicionar-se politicamente
dentro das discussões públicas, tais como as de raça, classe e nacionalidade, forjando
“os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade”,
279
como observava
Danilo Kiš em uma entrevista, citada por Aleksandar Jovanovic:
A Europa sempre espera de nós, escritores da outra Europa, que nos
ocupemos de política e escrevamos sobre política (...) O tempo todo
hesita-se entre dois sentimentos: se escrevo algo que não é questão
política, tenho a impressão de estar perdendo tempo com problemas
genéricos; quando escrevo aquilo que conheço a respeito dos
problemas políticos, creio ter traído alguns bocados importantes da
vida que estão situados fora da política.
280
E a Velha Europa, a Grande Dama? Apesar do arroubo após a queda de um
muro e o descerramento de uma cortina; a despeito das comemorações a cada ampliação
da União Européia – datas marcadas pelo anúncio de enterro do Leste, de eliminação da
277
KONRÁD. “O sonho da Europa Central ainda está vivo?”, p. 20.
278
Sobre a questão do papel do intelectual na contemporaneidade, ver: SAID. The Representation of the
Intellectual, p. 9-11.
279
DELEUZE; GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor, p. 27.
280
JOVANOVIC. Seis povos eslavos em busca de tradução, p. 16-17.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
86
linha divisória entre Leste e Oeste –, a Europa não é mais a mesma. Já não é mais, há
algum tempo, desde a Segunda Guerra Mundial, o centro cultural do mundo. Por outro
lado, a transferência do antigo estatuto de epicentro de um imenso oceano cultural para
o que se convencionou chamar “cultura americano-ocidental” não alterou
substancialmente as relações da Europa com suas margens. Nesse sentido, é
significativo o fato de intelectuais dessas regiões às bordas do mito – “a Leste do Éden”
– ainda se sentirem obrigados a justificar a sua “qualidade” e “idoneidade” de habitantes
da Europa, tendo como critério para se julgarem a comparação com o “fantasma” de um
pensamento e de uma alta cultura europeus – aquele “civilizar dos costumes” de que nos
fala Norberto Elias:
este conceito [civilização] expressa a consciência que o Ocidente tem
de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele
resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três
séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades
contemporâneas “mais primitivas”. Com essa palavra, a sociedade
ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e
aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas
maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do
mundo, e muito mais.
281
Decorre daí uma característica – ou seria um sintoma? – de alguns discursos sobre a
Outra Europa: imensas listas – datas da Europa Centro-Oriental que seriam importantes
e memoráveis para a Europa Ocidental; revoltas e resistências ao comunismo; grandes
figuras do cenário das artes da região que seriam cobertas de um “valor universal”...
282
que confirmariam o seu lugar na superfície do espelho mágico, espelho invertido,
distorcido e reformado; característico de um discurso subalterno. Tal característica
apontaria para a tentativa de se alcançar o mundo mais avançado por meio de sua
imitação, estratégia da mímica dos discursos pós-coloniais de que fala Homi Bhabha: “a
mímica repete, mais do que re-apresenta, e nessa perspectiva redutora emerge a visão
européia deslocada” (grifos do autor).
283
281
ELIAS. O processo civilizador, v.1, p. 23.
282
Exemplar dessa perspectiva é o próprio artigo de Milan Kundera, The tragedy of Central Europe. (Cf.
KUNDERA. The tragedy of Central Europe, p. 35-37).
283
BHABHA. O local da cultura, p. 132-133.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
87
O filósofo esloveno Slavoj Zizek, em artigo intitulado exatamente “O espelho
distorcido”, faz uma afirmação a respeito da Eslovênia que, como ele próprio salienta,
pode ser ampliada para outras regiões da Europa Centro-Oriental:
A cultura eslovena é obcecada pela idéia de que, apesar de sermos um
país pequeno, somos uma superpotência cultural: possuímos um certo
“agalma”, um tesouro íntimo e oculto de obras-primas culturais que
aguardam o reconhecimento do mundo maior. (...) Esse narcisismo
não é uma especialidade eslovena; há versões dele por toda a Europa
Oriental.
284
Imagem semelhante, de gigantescos tesouros escondidos em armazéns e sótãos,
à espera de serem expostos “no museu ao ar livre chamado Europa”, também aparece no
artigo “El centro esta vacio: microeuropa, paneuropa, barbaropa”, de Lothar Baier.
285
Frágeis demais, esses tesouros talvez não sobrevivessem ao contato com a luz do olhar
internacional, o que me leva a lembrar dos três rolos de filme jamais revelados, desde o
início do século, cuja autoria suposta seria dos irmãos Manakis, precursores do cinema
nos Bálcãs, atrás dos quais viaja, em sua odisséia, o protagonista do filme Um olhar a
cada dia, de Theo Angelopoulos. Ao final do filme, quando os rolos são finalmente
revelados, o que surge é a tela branca e luminosa, é o limite do visível, como se, ao
revelar/decifrar – tirar da escuridão – as imagens dos irmãos Manakis, elas
desaparecessem ao contato da tela da cinemateca com o feixe luminoso do projetor. O
desaparecimento é tornado imagem nos últimos fotogramas do filme de Theo
Angelopoulos.
Textos em guerra, tecidos em emergência, as narrativas com as quais trabalho
nesta tese, ao mesmo tempo em que rejeitam a fixação pelo “tesouro nacional oculto”,
são também instrumentos de fixação de uma imagem “central” de Europa,
complexificando a tensão dialética, marcada pela separação e imbricamento, pelos
processos sucessivos de reterritorialização e desterritorialização da Europa com a
Outra Europa. Além disso, essas narrativas elaboram novos modos de narrar a guerra e
suas reverberações – seja através do périplo do protagonista de Um olhar a cada dia;
284
ZIZEK. O espelho distorcido. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs09052
00405.htm>. Acesso em: 09 mai. 2004.
285
BAIER. El centro esta vacio: microeuropa, paneuropa, barbaropa, p. 47.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 1 – A invenção da Europa: reflexões em torno de uma idéia
88
das línguas estranhas que se entranham em Um túmulo para Boris Davidovitchi; da
construção temporal “ex-cêntrica” em Antes da chuva; dos rizomas da guerra em
Underground e em “A família Tóth” (uma das novelas de István Örkény); da
representação da morte em “A exposição das rosas”; ou da re-apresentação do canto
desconhecido dos rapsodos em Três cantos fúnebres para Kosovo.
PARTE II
GUERRA:
MEMÓRIAS EM FÁ MAIOR
2 de agosto [1914]
A Alemanha declarou guerra à Russia. À tarde,
na Escola de natação.
Franz Kafka, Diários
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
90
CAPÍTULO 2
REPRESENTAR A GUERRA
Com certeza o senhor conhece a história do soldado
japonês que permaneceu na selva durante trinta anos
resistindo ao exército americano sem se render. Estava
convencido de que a guerra era eterna e de que ele devia
evitar as emboscadas e mover-se sem cessar pela ilha, até
contatar as forças amigas. Enquanto perambulava,
envelhecia, vivia de lagartixas e de folhas, dormia numa
choupana de galhos, na época dos tufões subia nas
árvores e se amarrava nos galhos. A verdade é que a
guerra é isso mesmo e ele não fazia mais que cumprir
com seu dever; exceto por um lado quase microscópico (a
assinatura da paz num papel), todo seu universo era real.
Quando o encontraram já não sabia falar, só repetia o
juramento do exército imperial que o obrigava lutar até o
fim. Agora é um velho de noventa anos e está em
exibição no Museu da Segunda Guerra Mundial em
Hiroshima, com seu poído (sic) uniforme de oficial do
imperador, empunhando um fuzil com baioneta e em
postura de combate.
Ricardo Piglia, A cidade ausente
2.1. Mas a guerra disse: Sou!
286
Em 30 de julho de 1932, a partir de uma proposta da Liga das Nações e do
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, que consistia em convidar uma pessoa
para um intercâmbio sobre algum problema a ser escolhido, Albert Einstein envia uma
carta a Sigmund Freud em que lança a questão, considerada por ele o mais urgente de
todos os problemas enfrentados pela civilização naquele momento: há algum modo de
286
SEIFERT. Poema sobre a guerra, p. 72.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
91
libertar o homem da fatalidade da guerra? “da maneira como as coisas estão (...) Existe
alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”.
287
Em sua resposta,
288
dialogando com as colocações de Einstein, que afirmara
preparar-lhe o terreno, Freud desenvolve a relação entre direito e poder, mais
especificamente, entre direito e violência, palavra esta que ele considera mais “nua e
crua” que o termo poder, utilizado por Einstein. Se é comum o fato de as duas noções
serem tomadas como antíteses, Freud mostra a sua interdependência, o fato de uma se
desenvolver a partir da outra. Para isso, como é habitual em seu pensamento, remonta às
origens primitivas do fenômeno, desenhando uma situação inicial: a dominação pela
violência bruta ou pela violência apoiada no intelecto – o uso das armas – daquele que
detém um poder maior. Com a sucessão ininterrupta de conflitos, os indivíduos mais
fracos podem se unir. Com essa união, a violência do mais forte poderia ser derrotada,
sendo que o poder daqueles que se uniram representaria, a partir de então, a lei, em
contraposição à violência do indivíduo só. A lei configura-se, dessa maneira, como
força de uma comunidade, ou seja: “a violência suplantada pela transferência do poder a
uma comunidade maior, que se mantém unida por laços emocionais entre seus
membros”.
289
Entretanto, a justiça da comunidade irá sempre exprimir graus desiguais
de poder nela vigentes, o que não solucionaria os conflitos de interesses dentro da
comunidade. Assim, a violência estará sempre preparada para se voltar contra qualquer
indivíduo que se lhe oponha.
Em seguida, ao dirigir-se para uma questão crucial colocada por Einstein:
como é possível “dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com
uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos?”,
290
Freud adentra o universo
287
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931).
In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI. O
volume citado contém também o texto da carta de Einstein.
288
As duas cartas trocadas por Albert Einstein e Sigmund Freud foram publicadas pela primeira vez em
1933, curiosamente, sob o título de “Por que a guerra?”, apesar de não ser essa a questão colocada por
Einstein nem tampouco a resposta de Freud refletir tal pergunta. Em relação aos textos de Freud
consagrados ao tema da guerra, consultar os comentários de MOSCOVICI. Tuer, p. 11-17.
289
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931).
In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI.
290
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931).
In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
92
da psicanálise e apresenta a teoria dos instintos. De acordo com sua hipótese, os
instintos humanos são de apenas dois tipos:
aqueles que tendem a preservar e a unir – que denominamos
“eróticos”, exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra
“Eros” em seu Symposium, ou “sexuais”, com uma deliberada
ampliação da concepção popular de “sexualidade” –; e aqueles que
tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo
ou destrutivo.
291
Entre os dois instintos, não haveria juízos éticos da ordem do bem ou do mal.
Nenhum deles seria menos essencial do que o outro, pois, da ação confluente ou
mutuamente contrária de ambos, dependeriam os fenômenos da vida, inclusive aqueles
relacionados à guerra. Esta última, como qualquer outra ação do homem, é uma mistura
desordenada de Eros e Tanatos. De nada valeria, portanto, intentar uma eliminação das
inclinações agressivas dos homens. Ao final de sua carta, Freud não deixa ilusões a
respeito da possibilidade de o saber da psicanálise legar à humanidade a capacidade de
colocar fim à ameaça da guerra. Desculpando-se do resultado “não muito frutífero” de
sua reflexão sobre “um problema prático urgente”, Freud ainda insiste em um ponto:
por que tantas pessoas – incluindo ele próprio e Einstein – opõem-se tão violentamente
contra a guerra, se a mesma parece ser coisa muito natural, tendo uma base biológica e
sendo dificilmente evitável na prática? Entre outras possibilidades de resposta
apresentadas, recorto os trechos:
reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à
sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de
esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações
humilhantes, porque os compele, contra sua vontade, a matar outros
homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo
trabalho da humanidade. (...) Penso que a principal razão por que nos
rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa.
Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos
orgânicos, básicos. E sendo assim, temos dificuldades em encontrar
argumentos que justifiquem nossa atitude.
292
291
FREUD, Sigmund. - O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-
1931). In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI.
292
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931).
In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
93
A troca de correspondência entre Einstein e Freud, sob a sombra de um perigo
eminente, exemplifica de forma emblemática a pregnância do tema da guerra no século
XX. Seja pelo viés da arte – como Modris Eksteins, em seu livro Sagração da
primavera, que mostra como a arte de vanguarda e a guerra moderna estiveram
atreladas
293
–, seja pelo viés da análise histórica – como Mark Mazower, em Continente
sombrio,
294
que examina a história da Europa desde a Primeira Guerra Mundial, de 1914
até os conflitos nos Bálcãs, no final dos anos 90 –, diferentes autores irão enfatizar o
vínculo íntimo entre o século XX e a experiência da guerra. Nunca se falou tanto e com
tal empenho sobre esse problema, transformando de modo significativo a maneira como
o mundo vê a questão. Como salienta Umberto Eco: “o mundo de hoje olha a guerra
com olhos diversos daqueles com os quais podia olhá-la no início do século [XX], e se
alguém falasse hoje da beleza da guerra como única higiene do mundo, não entraria
para a história da literatura, mas para a da psiquiatria”.
295
A experiência da guerra se
impôs ao século XX – “século heraclitiano”
296
– como o horizonte fatal do pensamento.
Para Eric Hobsbawm, por exemplo, que em A era dos extremos arrisca um panorama
geral do século XX,
o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas
da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. Não há como
compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela
guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando
os canhões se calavam e as bombas não explodiam.
297
Se a temática da guerra esteve presente de forma constante em campos de
reflexões diversos – tais como a filosofia, a história, o direito, as artes, as ciências
sociais –, as definições e o tratamento do tema variaram de acordo com a abordagem
escolhida. Dentre as aproximações possíveis, aquela que se firmou como a mais
tradicional foi a baseada em modelos jurídico-institucionais, envolvendo a ciência social
293
Modris Eksteins argumenta que a guerra introduziu uma nova era, uma era que exigia novas imagens
e novas sensibilidades. (Cf. EKSTEINS. A sagração da primavera, p. 12).
294
De forma provocadora, Mark Mazower utiliza a expressão “Continente sombrio”, correntemente
aplicada à África, para se referir à Europa do século XX (Cf. MAZOWER. Continente sombrio).
295
ECO. Cinco escritos morais, p. 16.
296
“S'il est vrai que, selon Héraclite, le combat est le père de toute chose, le XX.e. siècle a été
fondamentalement héraclitéen car la guerre s'est imposée comme horizon fatal de la pensée” (DOLLÉ.
Un siécle héraclitéen, p. 20).
297
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991, p. 30.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
94
e a política, e marcada pelas seguintes questões: o que é a guerra?; quais os tipos
(classificações possíveis) de guerra?; por que (causas) se faz a guerra? Questões que
serão atravessadas por outras problematizações: a definição de soberania – o que
legitima o poder – e a teoria do Estado – o que define o Estado.
298
Esses
“atravessamentos” é que singularizam tal abordagem.
Parte-se, então, nesse tipo de recorte inspirado no Direito, de duas distinções,
aparentemente claras: em primeiro lugar, a separação entre o estado de guerra e o estado
de paz, com o intuito de aplicar as normas de “direito bélico”, definindo quais são os
momentos formais do “fenômeno da guerra”; em segundo lugar, a certeza na existência
de guerras justas e injustas, a partir de argumentos fundados no direito internacional –
ou, como preferem, contemporaneamente, alguns, no “direito cosmopolita”.
299
Obviamente, este não é o percurso que tomo neste trabalho. Até porque os limites entre
guerra e paz – em especial no contexto das narrativas aqui privilegiadas – são cada vez
mais vagos e o que se percebe é a subtração desta última para a insurreição da primeira.
Assiste-se a uma espécie de indiferenciação em que o “estado de exceção” borra a
distinção precisa entre períodos de guerra e períodos de paz; e qualquer possibilidade de
se cogitar a justiça ou a injustiça de uma guerra torna-se nula. Conforme afirma, diante
de uma espécie de guia de viagem, a personagem Aleksandar Kirkhov, do filme Antes
da chuva, de Milcho Manchevski: “Romênia, El Salvador, Azerbaijão, Belfast, Angola,
Bósnia... Merdas. Paz é exceção, não é regra”.
300
Além de apontar para o
obscurecimento das “distinções claras” entre guerra e paz, a fala da personagem de
Kirkhov deixa entrever outra impossibilidade da experiência contemporânea das
298
Tais questões encontram-se explícita ou implicitamente em vários “Manuais” sobre o tema da guerra,
a começar pelo mais famoso deles, o livro (1832) do oficial prussiano Carl Von Clausewitz (Cf.
CLAUSEWITZ. Da guerra), passando pelas reflexões (1976) de seu mais importante comentador,
Raymond Aron (Cf. ARON. Pensar a guerra, Clausewitz), a teóricos “da guerra” contemporâneos,
como o professor de história militar John Keegan (Cf. KEEGAN. Um história da guerra) e o cientista
político Luigi Bonanate (BONANATE. A guerra). Para uma leitura concentrada dessa abordagem
tradicional do tema da guerra, ver: GUERRA. In: BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário
de política, p. 571-577.
299
Em 1991, após iniciada a Operação Tempestade no deserto (guerra do Iraque), autores como Norberto
Bobbio, Michael Walzer, Jürgen Habermas, entre outros, declararam ser essa uma guerra justa.
Habermas declarava ainda que era preciso saudar “a virada cosmopolita que se estava
testemunhando”. Argumentos semelhantes se repetiram, em 1999, com o ataque da Otan à Sérvia. (Cf.
ARANTES. Notícias de uma guerra cosmopolita, p. B28-B41).
300
ANTES da chuva. Direção de Milcho Manchevski... 1994.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
95
guerras: a compartimentação desses conflitos em tipos apartados, como, por exemplo,
guerras do terceiro mundo, guerras imperialistas, guerras de imperialistas contra
periféricos. Para aqueles que tomam consciência do problema da guerra, o que de certa
maneira já estava presente no “diálogo” entre Einstein e Freud, compartimentá-la seria o
caminho para justificar, no sentido de fazer justo, absorver, certos conflitos bélicos, na
linha do provérbio francês: tout comprendre c'est tout pardonner – sinteticamente:
compreender é perdoar –, que apontaria para uma espécie de superioridade e virtude
moral de um suposto saber daqueles que julgam as causas das mazelas humanas.
Outras vozes ainda ecoam na breve fala de Aleksandar Kirkhov. Para Carl
Schmitt, citado por Giorgio Agamben,
301
a soberania assinala o limite – tanto como
início quanto como fim – do ordenamento jurídico; o soberano é aquele no qual o
ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o “estado de exceção” e de
suspender, conseqüentemente, a validade do ordenamento. Trata-se não somente de
caracterizar a distinção entre “o que está dentro e o que está fora, situação normal e o
caos”,
302
pois a reflexão de Schmitt sobre a localização (ortung) permite traçar e
orientar os limites entre o interno e o externo, o normatizável pela lei e o caos. Esse
traçamento de bordas, essa “zona de fronteira”, entre o dentro e o fora é o estado de
exceção. Na esteira de Walter Benjamin, Giorgio Agamben
303
complexifica ainda mais
a reflexão de Carl Schmitt ao constatar que: “o próprio estado de exceção, como
estrutura política fundamental, em nosso tempo, emerge sempre mais ao primeiro plano
e tende, por fim, a tornar-se a regra”. Nesse sentido, tomar o campo de concentração
como emblemático ou como unidade de sentido de nossa época seria, no século XX,
uma tentativa de dar uma localização visível e permanente para a figura atópica e
ilocalizável do estado de exceção:
Não é o cárcere, mas o campo, na realidade, o espaço que corresponde
a esta estrutura originária do nómos. Isto mostra-se, ademais, no fato
de que enquanto o direito carcerário não está fora do ordenamento
301
AGAMBEN. Homo sacer, p. 23-27.
302
AGAMBEN. Homo sacer, p. 26.
303
AGAMBEN. Homo sacer, p. 27. Na tese de número 8, Walter Benjamin afirma: “A tradição dos
oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.
Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN. Sobre o
conceito de história, p. 226).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
96
normal, mas constitui apenas um âmbito particular do direito penal, a
constelação jurídica que orienta o campo é, como veremos, a lei
marcial ou o estado de sítio.(...) O campo, como espaço absoluto de
exceção, é topologicamente distinto de um simples espaço de
reclusão. E é este espaço de exceção, no qual o nexo entre localização
e ordenamento é definitivamente rompido, que determinou a crise do
velho “nómos da terra”.
304
Independente dos recortes e abordagens, é bastante evidente o fato de a guerra
ocupar lugar central no mundo contemporâneo, a Guerra com G maiúsculo, conforme é
tratada por Umberto Eco,
305
como guerra “quente” e guerreada com o consenso
explícito das nações. Basta se olhar para a história da Europa no século XX, por
exemplo, para perceber o quanto a periodização dessa história é “inventada” pela noção
de guerra – tempo de guerra, pós-guerra, entreguerras, pré-guerra. Como afirma Roney
Cytrynowicz:
Os períodos de guerra não apenas marcam uma certa cronologia,
dividindo tempos e tentando compreender fases dentro deles, mas
tornaram-se chaves da periodização deste século [século XX] e
definem categorias de pensamento, conceitos que definem uma forma
de pensar a história e a cultura. A partir desta periodização, definem-
se campos particulares, como a arte no entreguerras, a cultura no pós-
guerra, a estética, a filosofia, a ideologia. O pré, o entre e o pós, o fria
significam uma reacomodação permanente, que estão sempre entre,
referenciados à eclosão e ao término militar da guerra.
306
Como já afirmei no capítulo anterior, a experiência da guerra foi vivida de
modo intenso e intrínseco pelos povos da Europa Centro-Oriental.
307
Como é sabido, as
304
AGAMBEN. Homo sacer, p. 27.
305
ECO. Cinco escritos morais, p. 11.
306
CYTRYNOWICZ. Guerra sem guerra, p. 14.
307
Faço uma breve periodização, somente a título de ilustração, de conflitos ocorridos na região da ex-
Iugoslávia, no século XX: 1903 – Levantamento contra os turcos na Macedônia; 1912 – Primeira
Guerra Balcânica; 1913 – Segunda Guerra Balcânica; 1914 – Assassinato do arquiduque Francisco
Ferdinando, herdeiro dos Habsburgo, em Sarajevo; 1914-1918 – Primeira Guerra Mundial; 1928
Radic, líder do Partido Camponês da Croácia, é assassinado em plena sessão do parlamento; 1934
Assassinato do rei Alexandre em Marselha por ativistas Macedônios; 1939-1945 – Segunda Guerra
Mundial; 1948 – Agitação em Kosovo, manifestações estudantis em Liubliana, Zagreb e Belgrado;
1968 – Motins anti-sérvios em Kosovo; 1971 –”Primavera Croata” e agitação liberal na Sérvia; 1981
–Tumultos em Kosovo; Estado de sítio é imposto na província; 1982 – Novos incidentes em Kosovo;
1983 – Detenção de nacionalistas muçulmanos na Bósnia; 1986 – Forte êxodo de sérvios do Kosovo;
1988 – Protestos na Eslovênia contra o Exército Federal; Manifestações em Liubliana contra a política
de Milosevic em Kosovo; 1989 – Choque em Kosovo entre albaneses e sérvios; Guerra econômica
entre Sérvia e Eslovênia; 1990 – A Eslovênia e a Croácia declaram suas soberanias; 1991 –A
Eslovênia e a Croácia proclamam a independência; Início dos conflitos armados na Eslovênia e na
Croácia; 1992 – Começa a guerra da Bósnia; 1996 – Fim da ocupação sérvia em Sarajevo; 1998
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
97
duas Grandes Guerras européias do século XX germinaram na região da Outra Europa:
a Primeira começou em Sarajevo; a Segunda, em Gdansk. O primeiro conflito
principiou nos Bálcãs com o assassinato, em 28 de junho de 1914, do sucessor da
Monarquia austro-húngara, o arquiduque Francisco Ferdinando; sua causa imediata, a
incorporação da Bósnia-Herzegovina à Monarquia, incorporação contestada tanto pela
Sérvia vizinha quanto pelos habitantes sérvios da província. Chama a atenção a data do
assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando porque 28 de junho é exatamente a
data da Batalha do Kosovo, de 1389. Provavelmente um artifício político, como aquele
do presidente francês François Mitterrand, que, em 1992, quando Sarajevo já era
cenário de uma outra guerra balcânica, escolheu justamente o dia 28 de junho para
visitar a cidade. Seu objetivo era chamar a atenção da opinião pública mundial para a
gravidade da crise na ex-Iugoslávia.
308
Artificiosas ou não, essas coincidências, que
serão retomadas no terceiro capítulo desta tese, terminam por alimentar a lenda,
entretecendo realidade e mito.
Já o estopim da guerra seguinte foi o “corredor polonês”. Nas palavras de
Nelson Ascher:
Durante a Segunda Guerra, a conflagração total em grande escala,
com milhões de mortos, destruição generalizada de cidades etc.,
ocorreu de fato na região [Europa Centro-Oriental] e não na Europa
Ocidental, que, a rigor, foi poupada dessa experiência. Foi lá também
que teve lugar o extermínio em massa dos judeus europeus, o
Holocausto. Auschwitz (Óswiecin) fica na Polônia; Teresienstadt , nas
terras tchecas.
309
Além disso, na última década do século XX, os nomes Sarajevo e Kosovo
ressoaram como sinônimo de guerra civil ou de guerra étnica. Segundo Aleksandar
Violentos enfrentamentos no Kosovo; 1999 – Guerra do Kosovo; Ataque da Otan à Sérvia; Primeiro
mês de guerra, mais 700 mil refugiados da província do Kosovo; 2001 –Início de conflitos armados na
Macedônia. (Cf. REED. A guerra nos Bálcãs; FERON. Iugoslávia: a guerra do fim do século;
RAMONET. Guerras do século XXI; 123-152; JACOMINI. Guerra da Bósnia; THOMAZ; BASCH.
Histórias e traições – antropologia e conflitos no Sul de Moçambique e na Hungria; THOMAZ. A
vitória política do medo, p. 3-18; BÉRENGER. O império austro-húngaro e a geopolítica balcânica:
do protetorado bósnio à I Guerra Mundial, p. 19-38; IVEKOVIC. O drama iugoslavo, p. 39-61;
BLACKBURN. O esfacelamento da Iugoslávia e o destino da Bósnia, p. 62-83; BRENER. Leste
europeu: a revolução democrática; MAZOWER. Continente sombrio, p. 354-395; HOBSBAWM. A
era dos extremos; KEEGAN. Uma história da guerra, p. 70-74; VALLE. Guerras contra a Europa).
308
Sobre a visita de François Mitterrand a Sarajevo, em 1992, ver: HOBSBAWM, Eric J. A era dos
extremos, p. 12; TERRA de ninguém. Direção: Danis Tanovic... 2001.
309
ASCHER. Europa, pois é, Europa, p. 11.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
98
Jovanovic, essa ânsia dos povos do Leste em direção ao monolitismo etnolingüístico e
cultural seria cômica, se não tivesse sido inscrita à custa de tanto sangue, perseguição e
injustiça: “seria cômica (e não deixa de sê-lo, no fundo), porque é a negação de tudo
aquilo que possa caracterizar a outra Europa, um grande mosaico de povos, línguas e
culturas, um rico mosaico”.
310
Se, no século XX, a guerra adentrou o cotidiano das experiências humanas, o
estado de exceção inscreveu-se na vida natural; assistiu-se, também, à intensificação da
aproximação entre arte e guerra, cultura e guerra, o que se confirma de modo
significativo na literatura e no cinema da Europa Centro-Oriental. Não é difícil extrair,
no universo ficcional de István Örkény, Danilo Kiš, Theo Angelopoulos, Ismail Kadaré,
Emir Kusturica e Milcho Manchevski e de muitos outros escritores e cineastas da
região, respostas a esse estado de coisas.
311
Respostas tão diferentes e tão fortes que só
vêm confirmar a riqueza do mosaico em que se constitui a Outra Europa. Em suas
narrativas, a guerra insurge como um “referencial entranhado”,
312
de cuja virulência é
impossível desviar. A reação desses artistas à experiência da guerra é sempre um
posicionamento que os absorve, para dizer novamente com Franz Kafka, como uma
escolha de vida e de morte.
313
Por outro lado, ao contrário do que se convencionou chamar, na primeira
metade do século XX, de “poesia de guerra”,
314
“romance de guerra”
315
e “filme de
310
JOVANOVIC. Seis povos eslavos em busca de tradução, p. 17.
311
Nesse sentido, é relevante citar o artigo de Mihailo Pantic, publicado no Le Courrier des Balkans,
“Serbie: nouvelle prose de guerre”, no qual o autor analisa o liame entre o estado de guerra e a
literatura da região da Europa Centro-Oriental, dando ênfase à literatura sérvia (Cf. PANTIC. Serbie:
nouvelle prose de guerre. Disponível em: <http://balkans.courriers.info/article2520.html>.
312
MOURA. Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial (Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles e Murilo Mendes), p. 178.
313
KAFKA. Diários, p. 162.
314
MOURA. Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial (Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles e Murilo Mendes), p. 180-185. Além de uma extensa análise da obra poética dos três
poetas brasileiros relacionada à Segunda Guerra Mundial, Murilo Marcondes Moura, ao final de sua
tese, faz alguns apontamentos gerais a respeito do “gênero” “poesia de guerra”, salientado o caráter
referencial e convencional da maior parte da produção poética tomada sob esse rótulo.
315
EKSTEINS. A sagração da primavera, p. 350-379. Nas páginas destacadas, Modris Eksteins faz uma
ampla análise do romance Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque, publicado em 1929. O
livro de Remarque se consagraria como o mais importante romance sobre a guerra na primeira metade
do século XX, e Eksteins vasculha os interstícios do livro e de seu entorno, construindo um retrato
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
99
guerra”
316
– rótulos que se opunham à noção de arte de vanguarda –, os livros e filmes
com os quais trabalho nesta tese não tomam a guerra como algo puramente referencial,
apenas uma efeméride, tampouco almejam alcançar “a verdade sobre a guerra”, ou
ainda representar a guerra em sua dimensão de espetáculo. Ao contrário, eles aparecem
como suplemento ao tema da guerra e às noções que ela implica – a morte, a tortura, o
exílio –, construindo formas alternativas de relato, registro, perspectiva. Daí eu propor a
noção de textos em guerra para diferenciá-los do que se estabeleceu por consenso como
“narrativa de guerra”, tanto no cinema quanto na literatura.
significativo do que se convencionou chamar “Literatura de guerra”, em especial a crença de que essa
literatura apresentaria uma “verdade sobre a guerra”.
316
BECKER. Ecrire la Grande Guerre, p. 49-50. “la littérature sur la guerre qui envahit l'oeuvre d'un
grand nombre d'ecrivains français, qu'ils aient combattu ou pas. C'est d'ailleurs surtout dans le années
trente que le plus d'oeuvres paraissent, dans un mouvement littéraire Qui est international, comme le
prouvent A l'Quest rien de nouveau (Remarque), L'Adieu aux armes (Hemingway) ou Un na sur le
haut plateau ou les hommes (Lussu). Au même moment, le cinéma de guerre devient aussi plus
réaliste, comme si pour écrire ou filmer la mort en face il avait fallu laisser passer une dizaine
d'années. (BECKER. Ecrire la Grande Guerre, p. 49). Sobre a noção de filme de guerra, ver também:
LABAKI. O cinema vai à guerra, p. 10; MATTOS. Hollywood vai à guerra, 22-29; 34-40.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
100
2.2. Textos em Guerra
O contato com Três cantos fúnebres para o Kosovo, de Ismail Kadaré, Um
túmulo para Boris Davidovitch: sete capítulos de uma mesma história, de Danilo Kiš, A
exposição das rosas: duas novelas, de István Örkény, Antes da chuva, de Milcho
Manchevski, Underground: mentiras da guerra, de Emir Kusturica e Um olhar a cada
dia, de Theo Angelopoulos, torna evidente um efeito comum a essas narrativas: a
problematização e a desarticulação de certas divisões binárias que ainda são fortes no
sistema de pensamento ocidental, como natureza/cultura, interior/exterior,
presente/passado, bem/mal, verdadeiro/falso. Além disso, esses livros e filmes também
apontam para a ambigüidade e a dissolução das fronteiras entre os gêneros do discurso
literário e fílmico. Assim como as fronteiras ordinárias são borradas na geografia,
também os limites do gênero esfumam-se e a própria teoria ideal dos gêneros é colocada
em questão.
317
Conformam-se, no interior dessas narrativas, “gêneros impuros”, ao
coadunarem-se: os “cantos” da epopéia, o relato de guerra, as memórias, em Três cantos
fúnebres para Kosovo; as narrativas (romance, conto, novela), o testemunho, os
relatórios e os interrogatórios “oficiais”, em Um túmulo para Boris Davidovitch: sete
capítulos de uma mesma história; a novela, o conto, o texto dramático, o roteiro
cinematográfico, o making of, em Exposição das rosas: duas novelas. Quanto aos filmes
Underground: mentiras da guerra, Antes da chuva e Um olhar a cada dia, classificados,
“etiquetados”, respectivamente, como guerra, romance e arte,
318
eles colocam em xeque
o artifício caro à crítica cinematográfica, à impressa, aos estúdios e às distribuidoras, de
classificar os filmes em modalidades dramáticas denominadas gêneros.
319
É
317
Sobre o tema da ruptura dos gêneros, ver: RESENDE. Os gêneros e o trânsito textual, p. 25-35. O
autor realiza um percurso pelo assunto, partindo de Tzvetan Todorov, passando pelas “teorias do pós-
moderno” (Andreas Huyssen; Fredric Jameson; François Lyotard) e chegando em Haroldo de
Campos.
318
Tomo aqui as “etiquetas” coladas pelas distribuidoras de vídeo – Mundial Filmes (Um olhar a cada
dia e Underground) e Lumiere (Antes da chuva) –, quando do lançamento dos filmes em vídeo.
319
Temos, na história do cinema, uma compartimentação dos filmes emséries” que, pretensamente,
obedecem a algumas modalidades dramáticas, tais como drama, romance, policial, guerra, aventura,
comédia, ficção científica, etc. Assim, ao contrário do que acontece com outras artes, como a
literatura, por exemplo, falar em uma teoria dos gêneros propriamente dita no que tange ao cinema,
seria algo precipitado, pois “o cinema parece trilhar mais pelo caminho das intertextualidades entre
gêneros, uma impureza marcada pela necessidade de sua própria estrutura de sobrevivência.”
(CAPUZO, Heitor. O cinema industrial e os gêneros, p. 23). Uma tentativa de se pensar a questão dos
gêneros no cinema, para além das classificações tradicionais, relacionando-a ao estudo de Mikhail
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
101
significativo que, à época do lançamento desses filmes nos cinemas brasileiros
(1995/1996), as sinopses e críticas demonstrassem dificuldade em classificá-los,
terminando por enfatizar a temática da guerra e os conflitos, então recentes, nos
Bálcãs.
320
Tal movimento de superação da divisão tradicional e ideal dos gêneros acena
para/ou impõe um desejo, uma possibilidade terceira: transmitir o “ponto cego de uma
experiência”
321
a guerra, a morte que está além da simples informação e da rígida
compartimentação.
Como salientou um soldado brasileiro que lutou na Itália, durante a Segunda
Guerra Mundial, como membro da Força Expedicionária Brasileira (FEB): “Falar da
guerra é difícil. Muito difícil. Pelo menos no sentido de comunicar, de fazer o outro não
apenas ouvir mas compreender o que foi aquilo” (grifos meus).
322
O que a fala do
soldado Roberto de Mello e Souza reivindica é o direito de intercambiar experiências,
323
além de apontar para a impossibilidade de transmitir e simbolizar o traumático. Não foi
por acaso que, ao falar do empobrecimento da experiência no mundo capitalista
moderno, Walter Benjamin trouxe, entre outras imagens, a dos combatentes da Primeira
Guerra Mundial, que voltavam silenciosos do campo de batalha: “Mais pobres em
experiências comunicáveis, e não mais ricos”.
324
Walter Benjamin reflete sobre a
necessidade de se reconstruir a experiência no mundo da técnica – inclusive das guerras
tecnológicas
325
–, para que seja possível uma memória e uma palavra comuns. Mas
Bakhtin (A questão dos gêneros do discurso), encontra-se em: STAM, Robert. Bakhtin: da teoria
literária à cultura de massa.
320
Ver, a título de exemplo, REZENDE. Angelopoulos faz viagem pelo fim do século, p. 7;
MESQUITA. “Olhar de Ulysses” revira o passado impossível, p. 5; SCALZO. Intolerância altera o
destino, p. 8; OLIVEIRA. Humor e horror em tempo de guerra, p. 8. (Há outras críticas e resenhas dos
filmes analisados apresentadas nas Referências).
321
Tal expressão é utilizada por Ricardo Piglia para referir-se a experiências-limite como as da repressão
militar durante as ditaduras na América Latina, dos campos de concentração, do genocídio, da morte
etc. (Cf. PIGLIA. “Una propuesta para el próximo milênio”, p. 1-3.).
322
MELLO E SOUZA, Roberto de. O soldado, p. B129.
323
A noção de experiência é tomada aqui a partir de BENJAMIN. Experiência e pobreza, p. 114-119;
BENJAMIN. O narrador, p. 197-221; BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 222-232;
BENJAMIN. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 103-149.
324
BENJAMIN. Experiência e pobreza, p. 115.
325
Parafraseando um de seus mais famosos ensaios, pode-se dizer, contemporaneamente, da “guerra na
era de sua reprodutibilidade técnica”. O ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica” (1935/1936) trata das novas formas de produção e de fruição trazidas pela
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
102
como manifestar o valor da experiência? De que maneira transmitir a experiência do
horror da guerra e não só informar sobre ela? Como narrar a dor e a morte?
Tais questões revelam uma tarefa paradoxal: a necessidade irredutível de narrar
aquilo que não pode ser esquecido, ao mesmo tempo em que se tem a consciência
angustiante de que a linguagem não consegue expressar completamente tal
experiência.
326
Desenha-se um confim: o limite da representação. Certos
acontecimentos – como os campos de concentração, o genocídio, a repressão ditatorial –
são muito difíceis, quase impossíveis de se representar, por isso, supõem uma relação
outra com a produção da linguagem dos/nos limites. Como adverte Ricardo Piglia, “há
um ponto, um lugar – digamos – ao qual parece impossível aproximar-se através da
linguagem. Como se a linguagem fosse um território com uma fronteira, depois da qual
está o silêncio” (tradução minha).
327
Ao examinar o filme Shoah (1985), de Claude Lanzmann, Shoshana Felman
expõe o seguinte questionamento a respeito do testemunho do Holocausto: é possível
ser testemunho do interior ou, ao contrário, estaríamos condenados a permanecer no
exterior?
328
É a mesma problemática que se configura nas narrativas com as quais
trabalho: é possível escrever ou filmar “de dentro” da experiência do horror e da
memória dessa experiência ou se estaria condenado a ficar no exterior e a “não ser
testemunhos senão de fora?”
329
O que, de certa maneira, ultrapassa o problema da
contemporaneidade, em especial o cinema. Uma das contribuições do ensaio está em ajudar a
compreender a evolução na atitude do leitor/espectador diante dessas novas formas de produção
artística: a mudança de visada no processo de recepção da obra de arte, da “aura”, recolhimento e
contemplação, ao “choque”, recepção descontínua. (Cf. BENJAMIN. A obra de arte na era de sua
reprodutibiliade técnica, p. 165-196).
326
A não solução do conflito entre a necessidade e a impossibilidade de representação da experiência da
catástrofe é tratada em várias reflexões teóricas, citamos aqui: SELIGMAN-SILVA. História como
trauma, p. 73-98; GAGNEBIN. A (im)possibilidade da poesia., p. 48-51; AVELAR. A escrita do luto
e a promessa de restituição, p. 235-259; FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar,
p. 13-71, às quais esta reflexão é devedora.
327
“hay un punto extremo, un lugar digamos al que parece imposible acercarse con el lenguaje.
Como si el lenguaje tuviera un borde, como si el lenguaje fuera un territorio con una frontera, después
del cual está el silencio” (PIGLIA. Una propuesta para el nuevo milenio., p. 1-3).
328
FELMAN. À l'âge du temoignage, p. 82-89. Citada por LIMA. Mímesis: desafio do conhecimento,
p. 263-264.
329
FELMAN. À l'âge du temoignage, p. 82-89. Citada por LIMA. Mímesis: desafio do conhecimento,
p. 264.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
103
representação “irrepresentável” pelo caráter incomensurável da atrocidade, e aponta
para a tensão entre necessidade e impossibilidade de se narrar a experiência extrema.
Depois de negar as duas possibilidades de testemunhar, de dentro e de fora, Shoshana
Felman conclui que a postura (im)possível seria precisamente não ser nem
simplesmente no interior, nem simplesmente no exterior, mas, paradoxalmente, no
interior e no exterior.
330
O mesmo raciocínio é oportuno a propósito do corpus desta
tese: o caminho que se abre nessas narrativas é justamente o de se estabelecer uma
ponte entre o dentro e o fora, colocando-os em diálogo no espaço hibridizado – “nem
uma coisa nem outra”
331
– do limite, da fronteira. Tal experiência “de dentro e de fora”,
tanto do fato quanto da memória, confirma a necessidade premente de se representar a
partir da constituição de uma “outra verossimilhança”,
332
que exceda os modelos
tradicionais de representação da guerra, trazendo o que de singular se impõe por força
da própria experiência, que volta, repete-se através de tempos que se sobrepõem, de
guerras que se acumulam e se guardam como caixas chinesas.
As perguntas que se apresentam, ao se pretender uma relação singular com a
linguagem, a memória, o tempo e os sentidos, são: como atravessar ou pelo menos
aproximar-se dessa fronteira da linguagem de que nos fala Ricardo Piglia? Como
ultrapassar a barreira do silêncio? Como acessar a via entre o interior e o exterior
indicada por Shoshana Felman? Um caminho possível – quiçá inevitável – seria
exatamente questionar a própria topologia das narrativas de guerra, a gramática da
representação dita realista, indo além do “referente sem significado”,
333
ao buscar a
insurreição de linguagens e sintaxes capazes de verter, em palavras e imagens,
significantes e significados, formas e conceitos, o sentido da experiência a níveis de
legibilidade reveladores dos nós da violência, que antes figurava sem rosto nem
330
FELMAN. À l'âge du temoignage, p. 89. Citada por LIMA. Mímesis: desafio do conehcimento, p.
264.
331
BHABHA. O local da cultura, p. 62
332
LIMA. Mímesis: desafio do conhecimento, p. 18. Ver ainda, mais especificamente, o primeiro
capítulo: “Mímesis e verossimilhança”, p. 29-70.
333
Como nos adverte Roland Barthes, os discursos de pretensão “realista” acreditam conhecer apenas um
esquema semântico de dois termos: o referente e o significante, enquanto o significado é rechaçado,
confundido com o referente (Cf. BARTHES. O discurso da história, p. 163-180; BARTHES. O efeito
de real, p. 181-190).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
104
expressão.
334
Dito de outra maneira, o compromisso dos artistas residiria nessa luta para
trazer à tona formas, estilos, modos de expressão, especiais e específicos, que são postos
em segundo plano no mercado social dos discursos.
335
Ou, como salienta Walter
Benjamin, tal intercâmbio de experiências só seria possível a partir de uma nova forma
de narratividade e na construção de um outro conceito de tempo, “um tempo saturado de
‘agoras’”.
336
Tal investimento não se confundiria com a noção dominante de
representação, na qual o sujeito unitário comanda as representações, sendo que estas não
passariam de “emanações desse sujeito”; tampouco com a filiação a uma arte
comprometida, engajada.
337
Poder-se-ia falar aqui, trazendo Luiz Costa Lima, em um
segundo sentido de representação, isto é, a “representação-efeito”, aquela que se
engendra no sujeito, à maneira da resposta afetiva aos fenômenos ou acontecimentos ou,
melhor dizendo, à expressão da cena em alguém. Apesar de engendrada no sujeito, a
representação-efeito perturba a concepção de um sujeito unitário, não pretendendo uma
homologia com uma cena anterior, uma reduplicação associada ao princípio de
recuperação de algo a ela anterior: “o mundo da realidade”.
338
Ao contrário, para que a
representação-efeito ultrapasse a concepção dominante de representação, é preciso que
ela atraia e ative uma atividade crítica; é preciso que ela seja “um efeito crítico”.
339
Daí eu propor que as narrativas escolhidas para análise sejam tratadas como
textos em guerra, em contraposição à noção de textos de guerra. No entanto, aqui, o
objetivo não é simplesmente etiquetar as narrativas em uma categoria e colocá-las em
uma estante devidamente rotulada, mas diferenciar duas formas de pensar a “linguagem
da representação da guerra” no século XX.
334
Cf. RICHARD. Citar a violência: a rotina oficial e as convulsões do sentido, p. 87.
335
SANTOS. Nação: Ficção, p. 173.
336
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 229.
337
“El hombre comprometido se expresa y yo intenté expresar este compromiso; pero no en una literatura
comprometida, sino en una literatura a secas, esta diferencia es muy importante. Se pude expresar un
compromiso mediante un estilo, mediante una fuerza de expresión. Se puede expresar en la literatura,
pero hay que tener cuidado porque en la literatura comprometida, casi siempre, el compromiso se
como a la literatura, la absorbe y la destruye” (MATVEJEVITCH, Predrag Matvejevitch: La
disidencia en la otra Europa. Disponível em: <http://www.geocities.com/gregorovivs/predrag.htm
>).
338
LIMA. Mímesis: desafio do conhecimento, p. 24-25; 230-231.
339
LIMA. Mímesis: desafio do conhecimento, p. 261.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
105
O texto de guerra teria, como característica primordia, o fato de a guerra se
apresentar como o próprio conteúdo representacional da construção narrativa: “a guerra
como ícone”.
340
O regime de signos e imagens volta-se para a representação da guerra,
estando nele impressa a relação de semelhança entre signo e referente,
341
sendo este
último tomado como regulador, controlador do discurso narrativo. Já o texto em guerra
propõe uma espécie de desintegração da guerra como gênero, “o ícone dobra-se ao
símbolo”.
342
A guerra é sinalizada e apresentada
343
pela dimensão indicial e simbólica
dos signos, livres de uma representação colada a algo a ela anterior. Aquém e além da
aderência ao referente, o problema fundamental das construções narrativas de Emir
Kusturica, Danilo Kiš, Ismail Kadaré, Milcho Manchevski, István Örkény e Theo
Angelopoulos é a eleição ou a busca de um discurso narrativo que proporcione a
manifestação do valor da experiência ou a possibilidade de sua interpretação, de sua
compreensão. Assim, nessas narrativas, tecidas em emergência, a guerra está
representada também no processo e no ato de representar, e não apenas no conteúdo
representacional; conseqüentemente, é a própria materialidade desses textos fílmicos e
literários que se faz “resíduo perturbador”, retomando Shoshana Felman, da experiência
da catástrofe.
344
Para desenvolver e demonstrar a possibilidade de tal distinção – textos em
guerra e textos de guerra –, tomarei como fio para reflexão – a partir dos filmes Um
olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos e Antes da chuva, de Milcho Manchevski, em
340
XAVIER. Guerras de cinema – a nação do monumental, p. B109.
341
Faço referência à segunda, das três tricotomias em que Peirce divide os signos, exatamente aquela que
se refere à relação entre o signo e o objeto representado por ele. Nela, ter-se-iam os ícones, índices e
símbolos. Se a relação é de semelhança (similaridade), temos um ícone. Exemplo: um desenho que
tenha a semelhança com o objeto representado, uma fotografia, uma palavra onomatopaica, uma
metáfora, ou mesmo uma fórmula algébrica. Se a relação é de causa e efeito (conexão real), uma
relação que afeta a existência do objeto ou é por ela afetada, temos um signo do tipo índice.
Exemplos: pegadas na areia; a fumaça ou cheiro de queimado; os sinais matemáticos +, , ×, e ÷; a
febre. Se a relação é arbitrária, regida simplesmente por convenção, como uma lei, temos o símbolo:
as palavras de uma língua natural são o melhor exemplo (Cf. PEIRCE. Semiótica, p. 45-76; PINTO. 1,
2, 3 da semiótica, p. 24-25; 28; 54-55).
342
GUIMARÃES. Imagens da memória, p. 34.
343
A distinção entre dois modos de representação das imagens – no caso, da memória –, tanto no cinema
quanto na literatura, sendo um da ordem da representação e outro da apresentação, encontra-se em:
GUIMARÃES. Imagens da memória, p. 30-59.
344
FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino, p. 47.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
106
oposição a O nascimento de uma nação, de David Wark Griffith, e O resgate do
soldado Ryan, de Steven Spielberg – o binômio cinema/guerra. Afinal, tal possibilidade
de diferenciação me veio exatamente a partir da leitura das reflexões de Paul Virilio a
respeito das relações entre guerra e cinema.
345
Para Virilio, “o verdadeiro filme de
guerra não deve necessariamente mostrar cenas de guerra em si ou de batalhas, uma vez
que o cinema entra na categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar
a surpresa técnica ou psicológica”.
346
Em outro momento, Virilio, junto com Sylvere
Lotringer, salienta, reescrevendo de forma inspirada a famosa máxima de Carl Von
Clausewitz:
347
“o cinema é a guerra continuada por outros meios”. Referindo-se à
relação entre o dispositivo cinematográfico e a guerra, Paulo Virilio lembra ainda que:
a câmara cinematográfica foi precedida pelo fuzil cronofotográfico de
Marey e a metralhadora de Gatling que, por sua vez, foi inspirada no
revólver Colt. Todas essas coisas estão na origem da guerra (...)
através dos audiovisuais, da imprensa, dos meios de comunicação – a
guerra se perpetua em “poder-comover”?
348
Conforme atesta Virilio, antes mesmo da reflexão a respeito do conteúdo das imagens e
dos procedimentos de configuração destas, a mútua implicação entre cinema e guerra já
era dada pela natureza mesma do processo técnico. Tal imbricação entre guerra e
cinema, em inglês, por exemplo, atinge a questão da nomenclatura. A palavra shot está
na “origem” de ambos, servindo tanto para nomear o tiro do revólver, rifle ou canhão
quanto para designar a tomada de cena em uma filmagem. Nas palavras de Amir
Labaki: “Essa coincidência é o mais acabado símbolo de um casamento sem o qual este
século teria sido muito diferente”.
349
Mas o que, no universo da “indústria do cinema”, se convencionou chamar de
“filme de guerra”? Que regras fundamentais, padrões e reiterações permitiram
classificar o que nós, espectadores, tomamos por essa acepção? Segundo o crítico inglês
345
Paul Virilio desenvolve a tese de que, desde o início, o cinema esteve ligado à guerra (Cf. VIRILIO.
Guerra e cinema; VIRILIO; LOTRINGER. Guerra pura).
346
VIRILIO. Guerra e cinema, p. 27.
347
“A Guerra é uma simples continuação da política por outros meios” (CLAUSEWITZ. Da guerra, p.
87). A respeito do caráter problemático da reflexão de Clausewitz, na contemporaneidade, ver:
ARANTES. Notícias de uma guerra cosmopolita, p. B31; ECO. Pensar a guerra, p. 23-25.
348
VIRILIO; LOTRINGER. Guerra pura, p. 82.
349
LABAKI. O cinema vai à guerra, p. 10.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
107
Colin McArthur,
350
o vocabulário básico de um filme de guerra é composto de três
situações principais. A primeira é a encenação de momentos de combate. A segunda é a
ênfase em um “pelotão” tomado como típico, acompanhando-se, assim, o cotidiano de
certo número de soldados e oficiais que apresentam marcada diferenciação tipológica. A
terceira é a concentração narrativa sobre um alvo militar. A regra fundamental na
dramatização dessas situações é o reconhecimento e a identificação do(s)
protagonista(s) – “herói(s)” individualizado(s) –, enquanto o inimigo (“vilão”,
geralmente um coletivo) é cassado de sua identidade, restando apenas uma face amorfa,
indiferenciada, cuja função dramática é simplesmente a de opor-se ao esforço do(s)
protagonista(s). A combinação desses elementos desenharia o “tipo ideal do filme de
guerra”.
Essa estrutura clássica, no entanto, demorou um pouco para se estabelecer.
Ainda no início da história do cinema, quando o espetáculo narrativo-dramático ainda
não se firmara, imagens de guerra já eram absorvidas pelo “mercado”. Um exemplo
inusitado é o filme Tearing down the spanish flag, de J. Stuart Blackton – um dos
pioneiros do gênero, rodado em 1898 –, que, inspirado no conflito entre americanos e
espanhóis na área do Caribe, ocorrido no mesmo ano, trazia “falsas” imagens de
batalha, rodadas em um estúdio em Nova York, sustentadas pelo diretor como tendo
sido rodadas em pleno front.
351
Desde o início, uma tensão entre a verdade e a
representação se instalava no âmbito da representação da guerra.
No início dos anos 10 do século XX, quando, ao se explorar as possibilidades
narrativas do meio, inicia-se um projeto de conquista de públicos mais sofisticados e de
construção de uma “gramática da representação fílmica”, o que, posteriormente,
convencionou-se chamar de “linguagem clássica”,
352
o filme de guerra começa a ganhar
espaço e, o que é significativo, feições monumentais.
353
Como bem observa Ismail
350
Citado por LABAKI. O cinema vai à guerra, p. 10.
351
A respeito do imbróglio de J. Stuart Blackton, ver: XAVIER. Guerras de cinema – a nação do
monumental, p. B113-114; LABAKI. O cinema vai à guerra, p. 11.
352
CAPUZO. Considerações sobre a linguagem clássica, p. 21-25.
353
Tal investimento no tema da guerra na forma de “megaespetáculos” cinematográficos começa na
Itália, com os monumentais Il granatiere Roland, de Luigi Maggi; Il Cid, de Mario Caserini e La
caduta di Troia, de Giovanni Pastrone e Romano Borgnetto, todos de 1910. (Cf. LABAKI. O cinema
vai à guerra, p. 11). Mas o grande filme de guerra – no sentido de inaugurar um novo tratamento do
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
108
Xavier, no cerne desse investimento encontravam-se os países que estavam diretamente
implicados na conjuntura mais ampla dos conflitos nacionais que acabaram
engendrando as duas guerras mundiais:
entre 1910 e 1940, os cinemas nacionais tiveram um papel muito
significativo no contexto de hostilidades, no período que os
historiadores marcam como aquele em que a questão nacional e a
concorrência capitalista avançada caminharam juntas. Toda a questão
do progresso estava marcada pelos conflitos gerados por interesses
expressos em termos nacionais, e claro que tal competição teve sua
incidência no plano das imagens.
354
Um filme angular para o delineamento da “gramática” da representação da
guerra no cinema e um exemplo evidente desse imbricamento entre imagens
monumentais da guerra e as acepções modernas do conceito de nação é O nascimento
de uma nação (1914/1915), de David W. Griffith, filmado no momento mesmo em que
estourava a Primeira Guerra Mundial. No enredo do filme, a Guerra Civil Americana é
o pano de fundo para um elogio grandiloqüente da Ku Klux Klan. Logo no título do
filme é clara a proposta do diretor, considerado, de forma bastante “apropriada”, o
patriarca do cinema americano clássico,
355
de construir uma narrativa na qual são
representadas e também fincadas as bases fundadoras da nação. Os dois primeiros
intertítulos,
356
por sua vez, denunciam o conceito de nação que será erigido ao longo do
filme e a sua proposta de representação da guerra: “Se conseguirmos transportar os
espaço, sinalizando um aspecto central na relação cinema/monumento – produzido na década de 10
foi Cabíria (1914), de Giovanne Pastrone. (Cf. VIRILIO. Guerra e cinema, p. 41-43; XAVIER.
Guerras de cinema – a nação do monumental, p. B113-B114).
354
XAVIER. Guerras de cinema – a nação do monumental, p. B109.
355
A respeito do papel de David W. Griffith no desenvolvimento da linguagem cinematográfica, ver:
BAZIN. A evolução da linguagem cinematográfica, p. 66-81; DELEUZE. Cinema I: a imagem-
movimento, p. 45-47; 116-119; 186-188; EISENSTEIN. Dickens, Griffith e nós, p. 176-224;
GUIMARÃES. Imagens da memória, p. 120-130; OLIVEIRA. A montagem no cinema e na literatura,
p. 5-11. Resumidamente, os recursos da montagem explorados de forma pioneira por Griffith visavam
a reforçar a clareza e o poder narrativo do discurso fílmico, como processo de enriquecimento, o
contrário do que acontece com a utilização da montagem pela Escola Soviética, cujos mais
importantes representantes foram Serguei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin. Sobre a Escola Soviética,
em especial o pensamento de Einsestein, ver os mesmos textos anteriormente citados e também:
EISENSTEIN. O sentido do filme; EISENSTEIN. A forma do filme; DELEUZE. Cinema II: a
imagem-tempo, p. 189-197; DELEUZE. Cinema I: a imagem-movimento, p. 48-55; GUIMARÃES.
Imagens da memória, p. 130-138.
356
Os intertítulos eram cartelas usadas no cinema mudo. Nelas, os diálogos e comentários sobre a ação
do filme eram intercaladas entre as cenas. (Cf. CRUZ. Vocabulário de cinema, p. 2).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
109
horrores da guerra para suas mentes, este trabalho não terá sido em vão” / “A chegada
dos africanos à América trouxe a primeira semente da discórdia” (grifos meus).
357
A
idéia de nação veiculada pelo filme de Griffith, como se pode perceber, é étnica e
racial,
358
explicitamente racista; e a noção de representação, de pretensão realista. Os
únicos e verdadeiros membros da nação americana seriam os herdeiros,
“consangüíneos”, de uma tradição européia, enquanto os africanos representariam o
contrário desse projeto de nação – os estranhos, aqueles outros que devem ser excluídos.
No que tange à representação, manifesta-se o desejo de destacar o referente do discurso,
transferindo-o diretamente para a mente do espectador. Um dos últimos intertítulos do
filme, após o desfile vitorioso dos “cavaleiros da Ku Klux Klan”, que colocam os
negros em seu “devido lugar”, apresenta os seguintes dizeres: “Ousaremos sonhar com
um dia dourado, quando a horrenda guerra não reinar mais./ Ó gentil príncipe, deve
reinar o amor fraterno, em uma cidade de paz”. As imagens que surgem na tela,
seguidas do gráfico – primeiro, o inferno; em seguida, o céu que se sobrepõe àquele,
ambos representados conforme a iconografia religiosa “ocidental” –, são significativas
da inserção do projeto de nação e de representação erigido por David W. Griffith dentro
de uma teleologia judaico-cristã, representada pela dicotomia entre bem e mal, que será
desenvolvida com mais vagar em seu filme seguinte, Intolerância (1916).
Quanto às formas de configuração do conflito bélico, O nascimento de uma
nação apresenta alguns elementos que servirão de balizas para o gênero denominado
filme de guerra. Estão lá: os princípios de polarização excludentes, bem e mal – brancos
e negros –; a imagem dos conflitos bélicos associada à idéia de construção do
“monumento nacional”;
359
– a presença da bandeira nacional e da ordem política, por
exemplo; a orquestração de dramas familiares e dramas nacionais – as relações entre os
conflitos individuais das famílias Stoneman e Cameron e os acontecimentos históricos;
a movimentação e o choque dos corpos nas cenas de batalha;
360
a espetacularização das
imagens de destruição de corpos e de espaços – a cena do incêndio de Atlanta irá
357
O NASCIMENTO de uma nação. Direção David W. Griffith... 1914/1915.
358
Sobre as noções de raça e etnia, ver: HALL. Da diáspora, p. 65-69; HEUSCH. O inimigo “étnico”, p.
A36-A42.
359
XAVIER. Guerras de cinema – a nação do monumental, p. B112.
360
Sobre a filmagem das cenas de batalha no filme de Griffith, ver VIRILIO. Guerra e cinema, p. 34-36.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
110
influenciar nitidamente o clássico E o vento levou (1939); enfim, o espetáculo da guerra
como imagem de morte e de heroísmo – o encontro dos primogênitos dos Stoneman e
dos Cameron no campo de batalha.
Para que se confirme o caráter paradigmático do cinema de David W. Griffith,
basta tomar um filme de guerra americano de estrondoso sucesso, realizado no final do
milênio passado, O resgate do Soldado Ryan (1998), de Steven Spielberg. A primeira e
a última imagem desse filme
361
é um plano inteiro – full shot
362
– da bandeira norte-
americana, índice de que o viés através do qual se recorta a guerra é o nacionalista.
Ironicamente, como lembra Ismail Xavier, o cinema americano, como nenhum outro,
conseguiu criar uma tal condição de “soberania” interna e externa, que boa parte do
público que o consome reage como se existisse uma espécie de universal
hollywoodiano, de um lado, e os cinemas nacionais, de outro. Todavia, pode-se dizer
que “o cinema produzido pelos EUA é talvez um dos mais nacionalistas, uma vez que
está pautado por um senso comum nacional em relação aos valores, aos problemas que
interessam e ao lugar central da experiência local dentro de um contexto mais
amplo”.
363
Através da pirotecnia e dos efeitos visuais, temos, em O resgate do soldado
Ryan, a dramatização do espaço da guerra – no caso específico, a Segunda Guerra
Mundial – com um grau excepcional de “realismo” ou a “ilusão de uma fidelidade
objetiva e absoluta à realidade”.
364
O desembarque dos soldados americanos nas praias
da Normandia – episódio conhecido como o “dia D” – é representado com uma nitidez
visual tão grande, provocando no espectador a sensação – ilusionismo – de que tudo é
identificável, de que a encenação reproduz, em toda sua completude, o acontecimento
de 06 de junho de 1944.
365
361
O RESGATE do soldado Ryan. Direção de Steven Spielberg... 1998.
362
O full shot é um plano em que o objeto ou a pessoa filmada ocupa toda a tela. (Cf. CRUZ.
Vocabulário de cinema, p. 51).
363
XAVIER. Guerras de cinema – a nação do monumental e espetacular, p. B110.
364
JAKOBSON. Do realismo artístico, p. 121.
365
Vale ressaltar que a outorgada garantia de autenticidade das imagens recriadas no filme de Steven
Spielberg advinha do fato de elas terem sido baseadas, entre outras fontes, em fotos tiradas pelo
importante fotógrafo de guerra Robert Capa, durante o desembarque (Cf. SONTAG. Diante da dor
dos outros, p. 67; CAPA. Capa: fotografias, p. 100-115). Tal fato coloca uma questão já trabalhada
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
111
Contrariando a afirmação irônica do cineasta Samuel Fuller, em entrevista à
revista Cahiers du cinéma (n. 311, 1980),
366
quando do lançamento do filme Agonia e
glória,
367
de que seria impossível filmar o desembarque da Normandia, já que não se
pode filmar “decentemente metros de intestinos espalhados em uma praia”, o
desembarque dos soldados americanos, em O resgate do soldado Ryan, é encenado, ou
melhor, re-presentado ao longo de vinte e quatro minutos. Enquanto as balas atingem a
areia, crânios são espatifados, corpos e membros arrancados voam pelo espaço; o
sangue, literalmente, escorre na tela.
368
Ao mesmo tempo em que um soldado procura,
em uma pilha de cadáveres, seu braço decepado, outros agonizam de maneira aterradora
– “metros de intestinos espalhados” – sob o fogo cerrado dos “invisíveis” alemães. A
seqüência termina com uma espécie de travelling
369
aéreo pela praia repleta de corpos e
o mar tingido de vermelho pelo sangue das vítimas.
A câmera percorre o espaço do écram de forma incessante, os movimentos são
mirabolantes, a maquiagem, a iluminação e os efeitos visuais e sonoros surpreendem
pela riqueza de detalhes, pelo caráter realista. Pode-se afirmar, a respeito de O resgate
em minha dissertação de mestrado: “o cinema e a fotografia surgem como provas, documentos da
realidade, ao mesmo tempo em que suas imagens podem ser construídas e manipuladas, criando essa
realidade” (SOARES. Rotas abissais, p. 113).
366
Citada por VIRILIO. Guerra e cinema, p. 110.
367
AGONIA e glória. Direção de Samuel Fuller... 1980. Baseado nas memórias de guerra do diretor, o
filme trata da Segunda Guerra Mundial, inclusive do desembarque aliado na Normandia. Além disso,
o filme de Samuel Fuller é a prova, ao lado de outros como Apocalipse now (1979), de Francis Ford
Coppola, Nascido para matar (1987), de Stanley Kubrick, Exército inútil (1983), de Robert Altman,
de que nem só de filmes de guerra pautados na gramática tradicional vive o cinema americano. (As
referências dos filmes citados aparecem no final desta tese).
368
Há um artifício utilizado no filme, através do qual, durante as cenas de confronto, a tela é salpicada de
sangue. Quanto à diferença de posicionamento dos dois cineastas – Samuel Fuller e Steven Spielberg
– em relação ao tratamento da encenação do desembarque dos soldados na Normandia, além de uma
incompatibilidade de posturas estéticas, poderíamos relacioná-la a uma gradação ascendente da
violência e do sadismo aceitáveis na cultura de massa, levando-se em conta o distanciamento temporal
entre os dois filmes (18 anos).
369
Tanto o travelling quanto a grua pressupõem o deslocamento do eixo da câmera. No primeiro caso,
tais movimentos ocorrem da esquerda para direita; no segundo, de cima para baixo ou de baixo para
cima. Na cena em questão, tem-se, ao que parece, uma combinação dos dois movimentos. Para um
espectador atento, um outro fato chama a atenção para essa seqüência, é o diálogo que ela estabelece
com uma seqüência de outro clássico filme de guerra americano: E o vento levou (1939), de Victor
Fleming, quando Scarlett O'Hara caminha entre os corpos após a batalha de Gettysburg. A câmara
acompanha a personagem em um impressionante travelling aéreo. A presença dos corpos e o
sofisticado movimento de câmera aproximam as duas cenas, além de confirmar a filiação de O resgate
do soldado Ryan. (Cf. E O VENTO levou. Direção de Victor Fleming... 1939).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
112
do soldado Ryan, o mesmo que Ismail Xavier percebe nos filmes monumentais das
primeiras décadas do século XX: “acentuam-se os mecanismos espetaculares de criação
de imagens de destruição que envolvem a visualização dos impactos não só nas
estruturas materiais que objetivam a idéia de civilização, mas também no corpo
humano”.
370
O filme constrói-se como monumento, não só pela temática, mas pela
estrutura mesma da representação, pela escala de empreendimento e pela ostentação dos
valores de produção na própria imagem. Entretanto, o triunfo da alta tecnologia serve
apenas para intensificar as categorias de linguagem de uma tradição cinematográfica – o
que se pode aproximar do que Gilles Deleuze define como imagem-movimento
371
– e as
regras fundamentais dos filmes de guerra com sua tríade: guerra, nacionalismo e
cinema. O resgate do Soldado Ryan é o “tipo ideal” do filme de guerra, aquele em que
os “heróis” rostos identificáveis e sentimentos à flor da pele matam os “bandidos”
anônimos e obscuros sob os aplausos da platéia. Percebe-se, ainda, confirmada na
trama do filme – que gira em torno de um pequeno pelotão em busca de um soldado
cujos irmãos haviam sido todos mortos; o comando das forças americanas, querendo
mostrar algum grau de humanização, deseja poupar a mãe dos soldados mortos e
resgatar o único filho ainda vivo –, uma outra característica dos filmes de guerra
tradicionais: o recurso ao terreno das paixões privadas e o desenvolvimento
melodramático das mesmas como elemento central da trama, na qual o herói cumpre a
função de salvar a inocência desprotegida.
372
Tomando de empréstimo a tipificação de regimes de signos e imagens no
campo da narrativa literária proposta por César Geraldo Guimarães e transferindo-a para
o espaço da narrativa fílmica, pode-se dizer que, em O Resgate do Soldado Ryan:
as imagens sofrem um “enquadramento” que as coloca no campo da
representação, isto é, no domínio de uma mimese que faz da ficção um
“mundo possível”, sem que a narrativa sofra grandes transformações
370
XAVIER, Ismail. Guerras de cinema – a nação do monumental e espetacular, p. B113.
371
DELEUZE. Cinema I: a imagem-movimento, p. 37 e seq; DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p.
40-57.
372
Cf. XAVIER, Ismail. Guerras de cinema – a nação do monumental e espetacular, p. B112.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
113
em sua estrutura, de modo que categorias como narrador, personagem,
espaço e tempo seguem praticamente sua função tradicional.
373
Ao contrário da “catarse culinária”
374
do típico filme de guerra, Um olhar a
cada dia e Antes da chuva buscam um caminho diferencial em relação à linguagem
cinematográfica tradicional, não se restringem à produção de signos que representam o
fluxo contínuo das imagens-movimento e trabalham o estético com a mesma
desenvoltura com que tratam a temática da guerra. Afinal, conforme salienta Gilles
Deleuze:
Quando a violência não é da imagem e de suas vibrações, mas a do
representado, cai-se num arbitrário sangrento, quando a grandeza já
não é a da composição, mas um mero inchaço do representado, não há
mais excitação cerebral ou nascimento do pensamento. É antes uma
deficiência generalizada no diretor e nos espectadores.
375
Se, nos filmes de guerra tradicionais, o choque
376
confunde-se com a violência
figurativa do representado; nesses dois filmes, a guerra nos Bálcãs é tocada por um
ângulo enviesado e brumoso; o choque não se dá apenas no campo temático, ele atinge
“essa outra violência de uma imagem-movimento desenvolvendo suas vibrações numa
seqüência móvel que se aprofunda em nós”.
377
Está nos planos, ângulos e seqüências, na
maneira como são tratados o espaço e especialmente o tempo.
Um olhar a cada dia chega a “encontrar” Sarajevo destruída pelos conflitos,
mas não almeja uma maquete da guerra. Já Antes da chuva não vai à guerra
propriamente dita. O filme de Milcho Manchevski toma os conflitos entre muçulmanos
albaneses e macedônios ortodoxos em uma região onde, até então (1994), não houvera
373
GUIMARÃES. As imagens da memória, p. 31-32.
374
A expressão é utilizada por Luiz Costa Lima para se referir a filmes como A lista de Schindler (1992) ,
de Steven Spielberg, em oposição a Shoah, de Claude Lanzmann. (Cf. LIMA. Mímesis: desafio ao
pensamento, p. 266).
375
DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 198.
376
A essência artística das imagens se efetua ao “produzir um choque no pensamento, comunicar
vibrações ao córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral” (DELEUZE. Cinema II: a
imagem-tempo, p. 189; grifos do autor); “o choque é a forma mesma da comunicação do movimento
das imagens”. (DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 191).
377
DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 190.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
114
luta, a Macedônia.
378
Ambos os filmes, assim como as outras narrativas que fazem parte
do corpus desta tese, tomam a guerra como uma referência alegórica, lêem os seus
símbolos “monumentais” como totalidades quebradas, ruínas, destroços.
379
Curiosamente, o fato de os dois filmes buscarem um viés virtual, da ordem do que
existe como faculdade, possibilidade, foi alvo de censuras advindas de certos setores da
crítica cinematográfica que cobravam das imagens um compromisso com a
“verdade”.
380
É interessante, por exemplo, citarmos o que afirma o crítico de cinema
Inácio Araújo a respeito de uma cena de Antes da chuva:
quanto de verdade existe na Macedônia endomingada que Antes da
Chuva nos revela. Um momento, um só, basta para que o espectador
desconfiado da inocência das imagens se dê conta de que a verdade é
mínima: quando aparece na tela um céu visivelmente produzido pela
tecnologia cinematográfica. É olhar esse céu e pôr um pé atrás. (...) Se
a imagem não revela sua própria verdade no ato de se fazer – se ela é
uma trucagem que produz seu objeto – o que nos embala será sempre
a crença num ideal, não o filme. (grifos meus)
381
Diante dessa afirmação, pergunto-me: em se tratando de cinema, e também da
fotografia, o que seria uma imagem não produzida pela técnica? Qual a medida do “grau
de verdade” no que se refere à arte? Essa “própria verdade” da imagem não seria
pautada pelo “próprio realismo” construído – produzido tecnicamente – pelo cinema? A
impressão que se tem é que uma parcela da crítica cinematográfica – talvez influenciada
378
Abril de 2001 marca o início de conflitos armados na região.
379
Sobre a noção de alegoria utilizada aqui, ver: AVELAR. Alegorias da derrota, p. 13-33. Assim como
Idelber Avelar percebe nos textos pós-ditatoriais, através do trabalho de luto e a reflexão sobre a
memória, uma consciência da derrota como determinação irredutível da escrita literária, também tomo
os textos escolhidos para análise – pré-entre-pós-guerras – como estratégias que incorporam essa
consciência.
380
Por seu turno, Underground e Emir Kusturica, além de serem acusados de “pró-Sérvia” e “pró-
Milosevic”, em especial, durante o festival de Cannes de 1995 (ver nota 73, capítulo 1 desta tese),
tiveram o seu “efeito de real” colocado em xeque. Dentre as críticas mais contundentes a Kusturica
está a do ensaísta croata Drazen Katunaric. Entre outras coisas, Katunaric afirma: “O traço é pesado, o
conjunto se torna artificial, repintado (sobretudo as cenas extraídas de arquivos com imagens do tipo
“Zelig-Forrest Gump” banalizadas), algumas cenas são historicamente inexatas, não se apoiando sobre
fatos, mas sobre imagens” (KATUNARIC. “Underground de Kusturica ou la nostalgie de l'âme
slave”, p. 124).
381
ARAÚJO. Antes da chuva esconde Bálcãs, p. 6. Críticas semelhantes a esta, mas tendo como alvo o
filme de Theo Angelopoulos, Le Regard d’Ulysses, podem ser encontradas em: OSTRIA. Le voyager
sans bagages, p. 52-53.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
115
pela “impressão de realidade das imagens em movimento”
382
– encontra-se presa a uma
noção de representação entendida como uma construção humana equivalente a algo
anterior a ela, constituindo, “ponto por ponto”, uma reprodução, duplicação.
383
Em Antes da chuva e Um olhar a cada dia, ao contrário, o discurso fílmico
rompe com as leis dessa concepção dominante de representação. Conforme afirma
César Guimarães a respeito da linguagem das narrativas que tangenciam a
apresentação: “distanciada de si mesma, a linguagem expõe o seu próprio ser (...) Sob
essa forma, mais do que representar, trata-se de apresentar uma ou várias memórias”.
384
No caso dos filmes de Milcho Manchevski e de Theo Angelopoulos, é o próprio texto
fílmico que se encontra em guerra, a obra de arte que se realiza, aos olhos do
leitor/espectador, como evento em embate com a sua própria linguagem. Nessas
imagens em conflito, não há espaço para que a percepção se prolongue em ação, daí o
movimento ceder lugar ao tempo, e a ação, ao pensamento.
385
Através de planos-seqüências, planos fixos e silêncios, os dois filmes tomam os
elementos básicos da imagem cinematográfica, o movimento e o tempo,
386
para
examinar um “mundo” essencialmente imóvel. Esses dois elementos serão
problematizados a partir de um tema recorrente na narrativa ocidental: a metáfora da
viagem, do percurso. Metáfora essa também retomada nos livros Três cantos fúnebres
para o Kosovo e Um túmulo para Boris Davidovitch: sete capítulos de uma mesma
história.
Nesses percursos de ressonâncias mitológicas, o mais importante não é o
conteúdo da viagem, mas a linguagem desta. “A viagem torna-se do relato. Viagem no
382
METZ. A significação do cinema, p. 15-28.
383
Sobre essa concepção dominante de representação, ver LIMA. Mímesis; desafio ao pensamento,
p. 23-27.
384
GUIMARÃES. Imagens da memória, p. 32.
385
Para Gilles Deleuze, em se tratando do cinema, no “antigo realismo” a percepção se prolongava em
ação através das situações sensório-motoras; já no neo-realismo assistimos, para além do movimento,
a uma ascensão das situações puramente óticas e sonoras, quando a percepção deixa de se relacionar
com a ação, para assim relacionar-se com o pensamento. (Cf. DELEUZE. Cinema II: a imagem-
tempo, p. 9-23.).
386
Com efeito, se há algo que define a especificidade do cinema é o fato de ele executar um
automovimento e uma autotemporalização da imagem” (GUIMARÃES. As imagens da memória,
p. 27).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
116
escrever, na composição de uma linguagem, que, portanto, não recapitula mas
começa”,
387
diz Luiz Costa Lima a respeito de Galáxias, de Haroldo de Campos.
Também se pode dizer que, em Antes da chuva e, principalmente, em Um olhar a cada
dia, é a viagem que se faz no relato: “e começo aqui e meço aqui este começo e
recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da
viagem o que importa não é a viagem mas o começo da”.
388
Em Antes da chuva, o começo da viagem/texto se dá pelo (sem)fim.
Desdobrando-se em três histórias – “Palavras”, “Rostos”, “Imagens” – de tratamento
trágico e mitológico, o filme de Milcho Manchevski extrapola a idéia de um tempo
cronológico, “vazio e homogêneo”.
389
Aqui, ao contrário, o tempo é circular – mas não
cíclico, afinal, como veremos mais à frente, “o círculo não é redondo” –, assim como a
estrutura narrativa, que se constrói como uma Fita de Moebius
390
superfície
bidimensional que só tem um lado , na qual a possibilidade de discernir o início do fim
é nula, porque, nas palavras de Gilles Deleuze, “sua superfície exterior está em
continuidade com sua superfície interna: ela envolve o mundo inteiro e faz com que o
que está dentro esteja fora e o que está fora fique dentro”;
391
resta ao “observador” a
possibilidade de refazer o percurso por diversos meandros.
As três linhas narrativas presentes no filme de Milcho Manchevski são
marcadas pelo privilégio do silêncio e da contemplação. “Com um grito, os pássaros
fugiram pelo céu escuro, as pessoas calaram, meu sangue dói pela espera”, estas
387
LIMA. A aguarrás do tempo, p. 338.
388
CAMPOS. Galáxias. Citado por: LIMA. A aguarrás do tempo, p. 338.
389
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 229.
390
Em 1858, a Fita de Moebius foi descoberta pelo matemático e astrônomo alemão Auguste Ferdinand
Möbius (1790-1868) – aqui no Brasil, Moebius – ao pesquisar o desenvolvimento de uma Teoria dos
Poliedros, dando continuidade aos trabalhos de Euler (1707-1783). Em termos matemáticos, a Fita de
Moebius é definida como uma superfície não-orientável, o que significa dizer que uma linha
perpendicular (normal) ao plano não tem a mesma direção em todos os pontos da superfície. É
possível começar de um ponto A na superfície da fita, e traçar um caminho pela mesma, passando por
um ponto que aparentemente está no outro lado do ponto de partida... Tal figura e a série de trabalhos
de M. C. Escher denominada Band van moëbius, inspirada nos trabalhos de Möbius, é tomada aqui
como uma representação plástica da estrutura temporal “desenhada” nos textos escolhidos para análise
(Cf. PETRESIN; ROBERT. The double Möbius strip studies. Disponível em <http://
www.nexusjournal.com/PetRob.html>; ESCHER. The graphic work of M. C. Escher, p. 40-41).
391
DELEUZE. A lógica do sentido, p. 11-12.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
117
palavras do escritor bósnio Mesa Selimovic
392
aparecem no início do filme como uma
espécie de epígrafe e apontam para o caráter indicial e simbólico
393
das narrativas
presentes no interior de Antes da chuva. Os encontros entre as personagens são
marcados pelo silêncio e pelo sangue. Em meio à intolerância étnica e religiosa –
muçulmanos albaneses, de um lado, macedônios ortodoxos, de outro –, que mais se
assemelha à ira vingativa das Erínias,
394
os diálogos confundem-se sob a pressão das
paisagens e a contundência dos olhares e gestos. Na primeira história, por exemplo, em
um vilarejo da Macedônia, Kiril, um jovem monge que vive em uma mudez imposta por
um voto de silêncio, conhece Zamira, uma menina muçulmana albanesa jurada de
morte, e acaba sendo expulso do monastério após a tentativa frustrada de tentar salvá-la.
No primeiro encontro dos dois ela indaga: “Você não fala albanês?” Diante do silêncio
do outro, ela completa: “Eu não falo macedônio”. Como nos adverte Nelson Ascher,
“mais do que em qualquer outra parte do mundo, os idiomas da Europa Centro-Oriental
são, dependendo de quem os usa de como os usa , armas de destruição ou
instrumentos de compreensão e conciliação”.
395
As diferenças existem; estrangeiras, as
palavras não permitem a comunicação e para Kiril e Zamira restam o olhar, o silêncio, a
contemplação. Um abraço e um beijo, ao final da primeira história, selam o único
momento em que a comunicação entre os dois rompe o silêncio e a contemplação,
momento em que os corpos quebram as distâncias e diferenças. Ao mesmo tempo, “o
grito dos pássaros” prenuncia o fim trágico do entrecho. A primeira história termina
com Kiril sentado ao lado do corpo de Zamira, assassinada pelo próprio irmão. Kiril é
sobrinho de Aleksander Kirkov, um fotógrafo de guerra, que, na segunda história,
retorna a Londres depois de ver a guerra da Bósnia de perto. Aleksander tenta
392
Mesa Selimovic é mais um exemplo do caráter complexo da construção das identidades, dos lugares e
das nacionalidades na Europa Centro-Oriental. Nasceu na região de Tuzla, ao norte da Bósnia-
Herzegovina, em 1910, quando esta estava anexada ao império austro-húngaro, e faleceu em 1982,
quando a mesma região fazia parte da Iugolsávia. A respeito da obra de Selimovic, ver: LLARÁS.
Puentes y fortalezas de la tradición Bósnia. Disponível em: <http://www.babab.com/no24
/bosnia.php
>.
393
Cf. PEIRCE. Semiótica, p. 45-76; PINTO. 1, ,2, 3 da semiótica, p. 24-25; 28; 54-55.
394
As Erínias são as violentas deusas que os romanos identificaram com as Fúrias. Nascidas das gotas de
sangue de Urano, que impregnaram a terra, quando o deus foi mutilado por seu filho Crono, o papel
das Erínias é vingar e castigar os crimes sangrentos cometidos contra familiares (Cf. GRIMAL.
Dicionário de mitologia grega e romana, p. 146-147).
395
ASCHER. Europa, pois é, Europa, p. 14.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
118
convencer Anne, editora da agência de fotografias para a qual ele trabalha, a ir com ele
para a Macedônia – seu lugar de origem: “Você cuidará de mim e eu te ensinarei
macedônio”. Novamente, o encontro aponta para o impossível. Aleksander terá que
voltar sozinho, enquanto, em Londres, numa cena de “atentado terrorista” em um
restaurante, Anne presencia a morte de seu marido. Na terceira parte, o espectador
acompanha a volta de Aleksander à Macedônia,
396
completando um ciclo de sangue,
morte e nascimento. De volta à terra natal, Aleksander ignora as demarcações que,
agora, delimitam a sua aldeia e tenta resgatar os laços com a família de Hanna Halili, a
mãe de Zamira. Ao final, ao tentar salvar Zamira, Aleksander morre assassinado pelo
próprio primo. Na última seqüência – que aparentemente seria uma repetição da
primeira cena, apenas de um ângulo diferente –, Zamira corre em direção ao mosteiro,
enquanto Kiril colhe tomates.
Caso sejam tomadas pelo caráter aparentemente independente do seu
desenvolvimento, as três histórias – “Palavras”, “Rostos” e “Imagens” – parecem
elementares – é nítido o “namoro” com a estrutura do melodrama. Por outro lado, elas
se organizam como um “mosaico de episódios diferenciados”,
397
misturam-se e
complexificam a temporalidade do filme. Estrutura semelhante é a do livro Um túmulo
para Boris Davidovitch: sete capítulos de uma mesma história, de Danilo Kiš,
constituído de diversas narrativas autônomas e independentes, mas que trazem a mesma
complexificação de Antes da chuva, sendo ligadas a um mesmo tema, a um mesmo fio:
a perseguição e a execução de militantes comunistas europeus durante a década de 30
do século XX. Tanto no filme de Manchevski quanto no livro de Kiš, as situações se
repetem, as personagens experimentam encontros insólitos e o trabalho de se percorrer
linearmente a narrativa é impossível. Aqui, tomo as palavras de Gilles Deleuze para
tentar definir essa outra lógica temporal, feita de estranhas simultaneidades:
É a possibilidade de tratar o mundo, a vida, ou simplesmente uma
vida, um episódio, como um único e mesmo acontecimento, que funda
396
Assim como Aleksander, Milcho Manchevski, ao filmar Antes de chuva, voltou a sua terra natal
depois de muito tempo fora – mais de quinze anos, o mesmo período que a personagem de
Aleksander –, morando em Nova York e trabalhando com publicidade e videoclipe. (Cf.
MANCHEVSKI. Macedônio faz filme de guerra renascentista (entrevista), p. 8; MANCHEVSKI.
Manchevski constrói metáfora da guerra (entrevista), p. 4).
397
FRANÇA. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo, p. 79.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
119
a implicação dos presentes. Um acidente vai acontecer, acontece,
aconteceu; mas também é ao mesmo tempo que ele vai ocorrer, já
ocorreu, está ocorrendo; de modo que, devendo ocorrer, ele não
ocorreu, e, ocorrendo, não ocorrerá... etc.
398
Uma breve seqüência, que aparece na primeira história de Antes da chuva,
aparentemente absurda e anacrônica para o espectador que busca construir uma
narrativa linear, resume essa complexificação: Anne – que só será “apresentada” ao
espectador na segunda história –, em pé no alto de uma vila da Macedônia, assiste ao
funeral de Bojan, que teria sido morto por Zamira – o que também só será revelado ao
espectador na terceira história; perto dali, um menino tira fotos de Anne com a máquina
de Aleksander – que, como se irá saber depois, está morto –, enquanto ao fundo, Kiril
corre em direção ao mosteiro, atrasado para a celebração, depois de encontrar Zamira
em sua cela na noite anterior. Também na segunda parte do filme, há a seqüência em
que Anne examina fotos de guerra. Dentre as fotos está a de Zamira morta e seu corpo
estendido ao lado de Kiril; nesse momento da narrativa, Aleksander acaba de partir para
Macedônia, ou seja, não houve tempo para ele salvar Zamira da vingança de seus
parentes e de ela se refugiar no mosteiro onde se encontra Kiril. Esses e outros
momentos do filme abrem para uma outra possibilidade de configuração do tempo, para
além de uma seqüência linear e cronológica, instaurando uma espécie de curto-circuito
temporal. Como observa Andréa França:
A fotografia de Zamira morta racha a imagem naturalizada, própria às
narrativas consensuais, defensoras de um encadeamento “coerente”
nas ações e reações, defensoras de um modelo de verdade, de sentido;
a fotografia vista por Anne, coloca em xeque o princípio narrativo
unificador e questiona a subjetividade implícita na imagem; a
fotografia sinaliza para uma modulação narrativa cujo círculo é
rachado, desfiado, em perpétua degradação.
399
Constrói-se um tempo interior ao acontecimento, que é feito, retomando a
fórmula de Santo Agostinho,
400
da simultaneidade de três presentes implicados: um
presente do futuro, um presente do presente, um presente do passado. Opera-se uma
ruptura da rigidez temporal da concepção do “tempo histórico” – medida pelo relógio e
398
DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 124.
399
FRANÇA. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo, p. 170.
400
SANTO AGOSTINHO. Confissões XI, p. 328.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
120
pelo calendário –, transformando-se e redimensionando-se a idéia de uma sucessão
cronológica, através de “uma temporalidade difusa, sem fronteiras ou balizas”.
401
Não é
sem razão que algumas imagens do filme dão ênfase aos relevos e afrescos da capela de
um mosteiro medieval, em consonância com as imagens dos monges que participam do
ritual cristão ortodoxo, dentro do templo. Além da transferência que se estabelece entre
as imagens de Jesus Cristo, Maria, Pedro e Judas com o rosto do jovem monge Kiril,
tais representações apontam, conforme lembra Benedict Anderson, para um modo
fundamental de apreender o mundo:
Estamos diante de um mundo em que a representação da realidade
imaginada era predominantemente visual e auditiva. O cristianismo
assumiu sua forma universal mediante uma infinidade de
especificidades e particularidades: este relevo, aquele vitral, este
sermão, aquela fábula, aquela peça moral, aquela relíquia. (...) Esta
justaposição do universal-cósmico e do particular-mundano
significava que por maior que pudesse ser a cristandade, e por vasta
que se cria, ela se manifestava de maneira diversa a comunidades
particulares, suábias ou andaluzas, como réplicas delas mesmas.
402
Dessa maneira, era algo inimaginável para o pensamento cristão medieval representar as
imagens das figuras religiosas com traços “semíticos” ou vestimentas do “primeiro
século”, porque tal pensamento não tinha uma concepção de história como uma cadeia
interminável de causa e efeito ou de separações radicais entre passado e presente.
Benedict Anderson salienta muito bem que o que veio tomar o lugar da concepção
medieval de simultaneidade longitudinal ao tempo foi – retomando as palavras de
Walter Benjamin –, uma idéia de “tempo homogêneo e vazio”, na qual a simultaneidade
é transversa, marcada pela coincidência temporal.
403
“O tempo nunca morre. O círculo não é redondo”; essas palavras, recorrentes
no filme – na primeira parte (“Palavras”), são ditas a Kiril por um velho monge na
Macedônia; na segunda parte (“Rostos”), surgem pichadas, em inglês, em um muro no
centro de Londres; por fim, na terceira parte (“Imagens”), temos uma reedição da
primeira cena, não como uma repetição na forma de uma relação de identidade, mas
401
SANTOS; OLIVEIRA. Narrar o tempo, p. 58.
402
ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 44.
403
ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 46.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
121
como suplemento;
404
o velho monge rediz: “E o tempo não espera, porque o círculo não
é redondo” –, funcionam como uma espécie de “guia metalingüístico” para o
espectador, servindo para simbolizar a visão da história e o paradoxo temporal que
Milcho Manchevski instaura em Antes da chuva – a estrutura circular da narrativa,
propositadamente imperfeita: um círculo excêntrico. A mesma estrutura se repete na
música do filme – composta pelo grupo macedônio Anastasia.
405
Toda a composição
musical parece se construir sobre o motivo “O tempo não morre, porque o círculo não é
redondo”, funcionando como uma matriz primordial do filme, intimamente ligada à
composição narrativa.
406
Dessa maneira, as “palavras”, “rostos” e “imagens” que
recorrem à tela não o fazem como um eterno retorno do mesmo na moldura ideal do
círculo, mas acrescentam-se e substituem-se como um suplemento na estrutura
ambivalente da Fita de Moebius.
Essa estrutura circular da narrativa ganha contornos ainda mais complexos ao
se relacionar com duas questões prementes abordadas pelo filme: a representação da
guerra e o ato de, diante da guerra e/ou de sua representação, “tomar partido”. Tais
questões são desenvolvidas de forma mais explícita através da personagem Aleksander,
o fotógrafo de guerra, ganhador do prêmio Pulitzer. Em um dado momento do filme, na
segunda parte, “Rostos”, em um tenso diálogo dentro de um táxi que circula com as ruas
de Londres refletidas em seus vidros, diante das perguntas de Anne – “O que aconteceu
na Bósnia? Por que você voltou?” – Aleksander declara que pediu demissão. Ela
percebe nessa atitude – deixar de fotografar a guerra – uma forma de “tirar o corpo
fora”, salientando que “é importante tomar partido. (...) Tomar partido contra a guerra,
burro”. Aleksander responde: “Como se importasse... [pega um guia de viagens e diz,
404
“O suplemento acrescenta-se, é um excesso, uma plenitude enriquecendo uma outra plenitude, a
culminação da presença. Ele cumula e acumula a presença (...) Mas o suplemento supre. Ele não se
acrescenta senão para substituir. Intervém ou se insinua em-lugar-de; se ele colma, é como se cumula
um vazio” (DERRIDA. Gramatologia, p. 177-178). Poder-se-ía retomar também o conceito de
repetição proposto por Gilles Deleuze, para quem a repetição implica não a identidade ou a igualdade,
mas o máximo de diferença. (Cf. DELEUZE. Différence et répetition, p. xxii).
405
O grupo Anastasia, que em 1994 era composto por Zoran Spasovski, Zlatko Origjanski e Goran
Trajkoski, tem suas raízes fundadas na tradição folclórica da Macedônia, sua rede de temas
relacionam-se com o tratamento mitológico e pagão do filme (Cf. ANASTASIA. Before the rain.
London: Polygram, 1994. 1 CD. Acompanha encarte).
406
A música exerce a mesma função estruturante em Underground – mentiras da guerra e em Um olhar a
cada dia, construindo um paralelismo entre composição musical e composição narrativa.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
122
conforme já citamos na primeira seção secundária deste capítulo] Romênia, El Salvador,
Azerbaijão, Belfast, Angola, Bósnia... Merdas. Paz é exceção, não é regra”. Entre os
vários questionamentos que essa cena suscita está o seguinte: o ato de fotografar a
guerra em si já significaria uma tomada de posição contrária à mesma? Além disso, o
que se encontra por trás da relação entre a fotografia e a guerra?
Susan Sontag, em dois livros escritos em um hiato de vinte e seis anos – Sobre
fotografia (1977) e Diante da dor dos outros (2003) – trata dessas questões e ilumina a
minha leitura de Antes da chuva. Um dos temas que atravessa o livro Diante da dor dos
outros é o do risco de se utilizar um “nós” universal ao falar da dor, em especial da dor
vivenciada pelos outros.
407
Qual “nós” constitui o alvo das fotos de guerra, se, por
exemplo, a imagem de um cadáver estendido no campo de batalha pode ser lida tanto
como a o herói morto em combate quanto como a o inimigo abatido? Por serem uma
modalidade de retórica, as fotos de guerra reiteram, simplificam, movimentam e criam a
ilusão de consenso, ao mesmo tempo em que podem revelar-se “significantes vazios” à
espera de legendas que expliquem ou deturpem o seu significado.
408
A seqüência que mostra Anne e Aleksander no táxi, citada no parágrafo
anterior, é entrecortada por duas outras seqüências que mostram Anne trabalhando na
agência de fotografia. Na primeira delas, seleciona fotos de guerra: um sobrevivente de
um campo de concentração; crianças; milicianos armados; pessoas carregando cruzes;
um jovem neonazista... A forma de inserção das fotos no filme é bastante significativa:
no momento em que Anne olha as fotos, toda a tela é tomada pelas fotografias, que
aparecem, uma a uma; a cor e o fluxo do texto fílmico cedem lugar para as imagens em
preto e branco e congeladas das guerras. Se, num primeiro momento, a forma como
cada fotografia é trazida à cena – o full shot – aponta para a confirmação de um
imediatismo e de uma autoridade maiores adquiridos pela fotografia para transmitir os
horrores da guerra; o lugar onde as fotografias se inserem, por outro lado, assombradas
pelo brilho e a cor de uma foto de Madonna, chama a atenção para o fato de que uma
foto muda de acordo com o contexto em que é vista, seu efeito não é algo “líqüido e
407
Cf. SONTAG. Diante da dor dos outros, p. 12.
408
Durante a luta entre sérvios e croatas no início dos anos de 1990, as mesmas fotos de crianças mortas
no bombardeio de um povoado foram distribuídas pelos serviços de propaganda dos sérvios e também
dos croatas com as legendas trocadas (Cf. SONTAG. Diante da dor dos outros, p. 14).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
123
certo”, “seu peso moral e emocional depende do lugar em que se insere”.
409
Na outra
seqüência, para a qual já chamei a atenção, Anne também seleciona fotografias de
guerra, só que, dessa vez, são da guerra dentro do filme: fotos de Kiril diante do cadáver
de Zamira, abatida pelo próprio irmão. Além de colaborar para o paradoxo temporal em
que se converte o filme, a impressão que tal seqüência provoca no espectador é de certo
desconforto, afinal, as primeiras fotos são reconhecidas como “verídicas”, ao mesmo
tempo em que aquelas pessoas que aparecem nelas aparentam estar despersonalizadas,
parecem “mais estrangeiras”,
410
e, portanto, têm menos possibilidades de serem
reconhecidas; o que as identifica como indivíduos e mesmo como seres humanos parece
ter sido deslocado das fotografias. No caso das fotos de Kiril e Zamira, inseridas no
mesmo eixo das fotos anteriores, o efeito é justamente o contrário, a primeira impressão
e a primeira intenção é justamente o reconhecimento dos indivíduos, dos seres humanos
Zamira e Kiril. Esse reconhecimento termina por levar o espectador para demasiado
perto do cenário da guerra, conquanto esteja diante de uma “dor fingida”. Além disso, o
fato de a construção temporal do filme não permitir que se olhe para as fotos de Kiril e
Zamira como algo que aconteceu e sempre acontecerá daquela maneira, torna a
inevitabilidade dos fatos menos segura para o espectador.
Quanto ao entrelaçamento, o flerte, a mediação entre a fotografia e a guerra –
de maneira semelhante à que Paul Virilio desenvolve a relação intrínseca entre a
essência da guerra e a essência do cinema –, Susan Sontag afirma que “existe uma
agressão implícita em qualquer emprego da câmera”.
411
Tal impressão é confirmada por
expressões como “carregar” e “mirar” a câmera, “disparar” a foto:
existe algo predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é
violá-las, ao vê-las como elas nunca se vêem, ao ter delas um
conhecimento que elas nunca podem ter; transforma as pessoas em
objetos que podem ser simbolicamente possuídos. Assim como a
câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um
assassinato sublimado – um assassinato brando, adequado a uma
época triste e assustada.
412
409
SONTAG. Sobre fotografia, p. 122.
410
SONTAG. Diante da dor dos outros, p. 54.
411
SONTAG. Sobre fotografia, p. 17.
412
SONTAG. Sobre fotografia, p. 25.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
124
A identificação entre a câmera e a arma, entre o ato de “disparar” a máquina
fotográfica apontada para um tema e disparar a arma apontada para um “alvo”, ganha
em Antes da chuva contornos mais concretos que o de uma metáfora extremada. Na
última parte do diálogo que se estabelece dentro do táxi, Aleksander afirma: “Eu
aprendi, envelheci (...) eu matei. Matei”. Na última parte do filme, intitulada exatamente
“Imagens”, Aleksander escreve para Anne:
Querida Anne, o tempo está bom. Vai chover. Queria tê-la aqui. E seu
marido? Espero que esteja feliz com ele. Esse lugar não mudou. Mas
meus olhos mudaram, como um filtro novo na lente. Eu tinha lhe dito
que matara. Fiquei amigo de um miliciano e me queixei que não
estava conseguindo fotos chocantes. “Não tem problema”, disse ele.
Tirou um preso da fila e o fuzilou. “Fotografou?” Perguntou.
Fotografei. Tomei partido. Minha câmera matou um homem. Nunca
mostrei essas fotos a ninguém. Agora, são suas. Com amor.
Aleksander.
Enquanto Aleksander escreve, a sua voz em off lê o conteúdo da carta, ao mesmo
tempo, as “fotos do crime” aparecem na tela; dessa vez, os planos não são congelados, o
“olhar” da câmera percorre as fotos – a própria ordem em que estas aparecem aponta
para a idéia de movimento – em busca de um rastro, um indício, um vestígio de
indignidade, porém o conteúdo dessas fotos parece tão “verdadeiro” quanto o de outras,
nenhuma suspeita – a olho nu – abala sua autencidade.
Como salienta Susan Sontag, muitas fotografias de guerra, bastante lembradas,
em especial da Segunda Guerra Mundial, foram encenadas, todavia, o que causa
estranhamento não é o fato de elas terem sido encenadas,
413
mas a surpresa e a
frustração causadas no observador que toma conhecimento do artifício. Em Antes da
chuva, por exemplo, o fato de a foto ter sido uma encenação contribui muito mais no
propósito de compreender a guerra do que o poder de choque de uma possível
veracidade da imagem. De certa forma, Aleksander desconstrói a ilusão de que seu
papel como fotógrafo consista em mostrar a “verdadeira” face da guerra ou de que o
simples ato de fotografar o horror da guerra redunda em uma intervenção, uma “tomada
de partido” contra a guerra. Tem-se aqui a consciência de que “se tornou aceitável, em
situações em que o fotógrafo tem de escolher entre uma foto e uma vida, [ele] opta pela
413
Cf. SONTAG. Diante da dor dos outros, p. 14-15; 42; 47-48; 52-53; 55-56.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
125
foto. A pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode
interferir”.
414
Ao interferir – no momento em que “salva” Zamira –, Aleksander
abandona a câmera. Se incompatível com a intervenção, fotografar seria uma forma de
participação, uma maneira, implícita ou explícita, de estimular o que estiver
acontecendo a continuar a acontecer, pelo menos enquanto rende boas fotos.
“Esse lugar não mudou. Mas meus olhos mudaram, como um filtro novo na
lente”, escreve Aleksander ao retornar à Macedônia, seu lugar de origem, depois da
longa ausência. É semelhante à sensação experimentada por A.,
415
o protagonista do
filme Um olhar a cada dia, um cineasta grego que esteve em exílio, nos Estados
Unidos, por 35 anos. Sua viagem de retorno começa na cidade grega de Florina, um
lugar que guarda “pedaços” do seu passado. “Eu sonhava que este seria o fim da
viagem. Mas não é estranho? Não é sempre assim? No fim está o meu início”, diz A.
Para construir essa viagem, Theo Angelopoulos toma como uma de suas referências –
“mais por contraste que por imitação”
416
– a Odisséia, de Homero, transportando a
trajetória de Ulisses para a região dos Bálcãs, em conflito, na primeira metade dos anos
90 do século XX. Assim como na Odisséia, em Um olhar a cada dia, a viagem
principia em um porto familiar ao viajante.
417
Da mesma forma que para Odisseu, para
A., o máximo de périplo significa a possibilidade de retomada do ponto de partida – a
serpente devora o próprio rabo: no meu fim está o meu começo, ressoam o versos de T.
S. Eliot.
418
414
SONTAG. Sobre fotografia, p. 22.
415
O protagonista do filme Um olhar a cada dia chama-se simplesmente A. Uma abreviatura de
Angelopoulos? Para evitar ambigüidades ao longo da análise vamos grafar o nome/símbolo em
negrito e acompanhado de ponto final.
416
“more for contrast than for imitation”(Cf. ANGELOPOULOS. “What do our souls seek?”: an
interview with Theo Angelopoulos, p. 99). Como o próprio Theo Angelopoulos deixa claro na
entrevista a Andrew Horton, a Odisséia, mais que um modelo direto, funciona como um “ponto de
referência” entre outros para seu filme. Ao longo de Um olhar a cada dia, outras camadas podem ser
desfolhadas, como a “teoria” do olhar, de Platão, o mito de Orfeu, os fragmentos de Romeu e Julieta,
de William Shakespeare, os versos de T, S. Eliot, Rainer Maria Rilke e de Konstantinos Kaváfis, o
cinema dos pioneiros, representados pelos irmãos Manakis, as formas e cores de René Magritte, ecos
de Federico Fellini e, principalmente, o próprio cinema de Angelopoulos.
417
Como salienta Tzvetan Todorov a respeito da Odisséia: “tôda (sic) narrativa de Ulisses é determinada
por seu fim, por seu ponto de chegada (...) cada passo adiante é um passo no desconhecido, a direção a
seguir é posta em questão a cada novo movimento” (TODOROV. A narrativa primordial. p. 114-115).
418
Cf. LAGE. Para ver a Odisséia, p. 129.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
126
O movimento é também interior, o percurso é para dentro: “a viagem como
operador discursivo e esquema narrativo: a viagem como olhar e como resolução de um
problema – ou resposta a uma questão”.
419
A questão que atravessa o filme de Theo
Angelopoulos, que soa piegas e anacrônica a ouvidos contemporâneos, é a seguinte:
seria possível o reencontro de um olhar primeiro e transcendente, de um olhar que
ultrapassasse a pirotecnia e a imagerie contemporâneas e que permitiria um mais além,
de um olhar que recuperasse a nossa capacidade de enxergar o invisível?
420
As palavras
de Platão que abrem o filme colocam em relevo essa questão: “Se a alma quer se
reconhecer deve se olhar dentro da alma”.
421
Tudo se reduz à capacidade de ver através
dos planos-seqüências,
422
dos fotogramas nebulosos: o imponderável – a tela vazia,
branca e luminosa – o “olhar dentro da alma”. Assim, Marilena Chauí traduz o
fragmento do Alcibíades, no qual se encontram as palavras de Platão citadas na abertura
do filme de Angelopoulos:
Sócrates: Que coisa haveremos de olhar para que nos vejamos a nós
mesmos?
Alcibíades: Certamente um espelho.
Sócrates: Dizes bem. Mas nos olhos com que vemos não há algo
semelhante?
Alcibíades: Sem dúvida.
Sócrates: Não notaste que, quando olhamos o olho de alguém que está
diante de nós, nosso rosto se torna visível nele, como num espelho,
naquilo que é a melhor parte do olho e a que chamamos pupila,
refletindo, assim, a imagem de quem olha?
Alcibíades: Exatamente.
Sócrates: Desse modo, o olho, ao considerar e olhar outro olho, na sua
melhor parte, assim como a vê também vê a si mesmo.
Alcibíades: Assim parece.
Sócrates: [...] portanto, se o olho quiser ver-se a si mesmo terá que se
dirigir o olhar para um outro olho e precisamente para aquela parte
do olho onde se encontra a faculdade perceptiva. (grifos meus)
423
419
HARTOG. Memória de Ulisses, p. 18.
420
Esbocei essas primeiras impressões sobre o filme de Theo Angelopoulocs em minha dissertação de
mestrado (Cf. SOARES. Rotas abissais, p. 103-104).
421
PLATÃO, Alcibíades, 133b. Citado em UM OLHAR a cada dia. Direção de Theo Angelopoulos...
1995.
422
Em 175 minutos de duração do filme, são apenas 76 longos planos, que dilatam o tempo,
possibilitando a unidade da imagem no tempo e no espaço.
423
PLATÃO. Alcibíades, 133
a-b. Citado por CHAUI. Janela da alma, espelho do mundo, p. 49.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
127
O olhar-viagem constitui esse operador discursivo, processo de conhecimento e
de autoconhecimento, que é espelhado: eu me torno visível a mim mesmo através do
olhar que o outro desfere sobre mim. E a cada olhar, Um olhar a cada dia, o outro
também se reconhece: “visível e visto, mas também vidente que se vê a si mesmo
vendo”,
424
abrindo-se a possibilidade para o conhecimento do “eu no outro e do outro
em mim”.
425
A versão do título do filme em português, Um olhar a cada dia, salienta
algumas nuanças da narrativa, ao mesmo tempo em que obscurece outras prementes do
título original To Vlemma tou Odyssea (O olhar de Odisseu) em que se tem explicitado,
em primeiro lugar, o diálogo com o texto de Homero. Não é sem motivo, portanto, o
fato de a tradução literal francesa, Le regard d' Ulisses, também ser bastante conhecida
por aqui. Além disso, como adverte o cineasta alemão Wim Wenders,
426
refletindo
sobre fotografia e memória, a palavra francesa regard (re-garder)
427
é carregada de
sugestões, pois olhar é resguardar, conservar com o olhar, retornar ao visto. Parece ser
essa a tentativa do protagonista do filme e do próprio Theo Angelopoulos, tornar a ver,
guardar, ver de novo.
O caminho desse olhar é o da Viagem, da Odisséia, da Nekya,
428
mas, ao
deparar-se com a impossibilidade de recuperar o passado, a mulher amada, o primeiro
olhar, as primeiras imagens, o primeiro filme, A. transfigura-se em um Odisseu/Orfeu
contemporâneo, fracassado e perdido por não poder olhar – regard –, resguardar, olhar
424
CHAUI. Janela da alma, espelho do mundo, p. 59.
425
MERLEAU-PONTY. O olho e o espírito, p. 92.
426
WENDERS. O ângulo da memória (entrevista de Wim Wenders a Alain Bergala). Citado por
VIEGAS. Cinema comentado, p. 30.
427
Garder: v.t. guardar; conservar; ficar com; deter; reter junto de si; vigiar; etc.; Regard: s.m. Olhar;
olhadela; atenção. Regarder: v.t. olhar; contemplar, competir a; respeitar a. (Cf. AUGÉ. Nouveau petit
Larousse illustré, p. 440; 868); Re: pref. Movimento para trás, repetição; intensidade; reciprocidade,
etc. (Cf. FERREIRA. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1190).
428
Descida do herói vivo ao Reino dos Mortos, ao Hades, “uma viagem iniciática à fronteira dos tempos
e da vida” (GAGNEBIN. Resistir às sereias, p. 51). Tal viagem foi empreendida, em situações
diferentes, pelos heróis Orfeu, Odisseu e Eneias (Cf. GRIMAL. Dicionário de mitologia grega e
romana, p. 135-136; 340-341; 458-464).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
128
de novo a sua Ítaca/Eurídice desejada.
429
Por outro lado, se não há a possibilidade desse
reencontro, desse resguardar, há o impulso incontrolável de contar essa busca – a
viagem de volta ao texto – e, principalmente, através desse re-contar, o desejo de
construir novas formas narrativas.
As primeiras imagens. Um dos primeiros filmes feitos na Grécia e nos Bálcãs
surge na tela. A primeira seqüência traz a câmera fixa e as imagens monocromáticas de
uma das primeiras películas conservadas dos irmãos Miltos e Yannakis Manakis:
Tecelãs em Avdella, uma aldeia grega, em 1905. As imagens aceleradas, em preto e
branco e envelhecidas, embaladas pela nota grave de um ruído de fundo, produzido pelo
projetor, atestam a existência dos três rolos; ao mesmo tempo, uma voz em off lança a
questão: “Mas é verdade? É o primeiro olhar? O primeiro filme?”.
Busca errática, desejo impossível de se recuperar o passado em um presente
que se erige a partir de variações orquestradas em meras repetições. As imagens do
“filme antigo” vão se desgastando até desaparecer. A busca de três rolos de filme jamais
revelados, desde o início do século, cuja autoria suposta é dos irmãos Miltos e Yannakis
Manakis, precursores do cinema nos Bálcãs, é o “pretexto” que conduz A. em sua
viagem existencial ao próprio passado, em meio à tensão de um presente em constante
frenesi. O caráter cíclico de seu périplo é assinalado desde o início: “no meu fim está
meu começo”, o movimento não se traduz transitivamente, a partir de um passado
percorrido, em um tempo contínuo, mas como um movimento outro, semelhante ao que
acontece em Antes da chuva, reflexo e recíproco, em que buscar é buscar-se, muitas
vezes, à revelia do verbo, intransitivamente. Como afirma o próprio Theo
Angelopoulos:
Não acho que exista passado. Tudo é presente. Tudo volta e volta e
volta, queiramos ou não. Falo muito do retorno do pai e sei por quê:
meu pai participou da guerra civil, foi preso, acreditamos que ele
tivesse morrido e acabou voltando. E, para mim, continua voltando e
voltando.
430
429
Para uma leitura de Um olhar a cada dia pelo viés do mito de Orfeu, ver: LÉTOUBLON; EADES. Le
regard d'Orphée chez Theo Angelopoulos. Disponível em: <http://orfeo.grenoble.free.fr/Annexes/
angelo.htm>.
430
ANGELOPOULOS. Angelopoulos filma para “adocicar o tempo”, p. 7.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
129
Imagem-cristal,
431
cristal do tempo, o mar aparece, coadunando passado e
presente. O ruído do projetor é substituído pela voz de um homem que fora assistente de
Yanakis Manakis e conta como, num dia em Salonica – inverno/1954 –, Manakis
esperava um navio azul zarpar para poder fotografá-lo no momento da partida. As
imagens ainda são em preto e branco, nós vemos os dois homens na tela; o curioso é
que o assistente não é interpretado como um homem jovem, como ele deveria ser na
época, mas como o homem mais velho que ele é agora, no momento em que reconta a
história. Um jogo espaço-temporal se estabelece: em um primeiro plano, tem-se o ano
de 1954, quando esse homem era assistente de Yanakis; num segundo plano, a textura
das imagens remete à juventude dos irmãos Manakis, quando eles filmavam e
fotografavam imagens silenciosas, em preto e branco; os dois planos são orquestrados
por um presente que ainda não se atualizou na tela e, por enquanto, aparece marcado
virtualmente pela narração em off. O homem continua sua narração: uma manhã, o
navio zarpa e, simultaneamente, enquanto tenta fotografar a partida, Yanakis morre (ver
Figura 3).
Figura 3: Seqüência do filme Um olhar a cada dia
Fonte: <http://www.clproductions.gr/en/feature-ulysses_gaze-photos.htm>
431
DELEUZE. Cinema II: imagem-tempo, p. 87-120.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
130
Aos poucos, as imagens ganham cor e a câmera se movimenta,
432
percebe-se
que o homem, no mesmo cenário, conta a história para A. Ficamos sabendo dos
negativos, a câmera acompanha o navio azul até que este preencha toda a tela; A. parte
em sua busca. Circuitos e temas constituintes da imagem-cristal deleuziana se fazem
presentes nessa cena: o mar, o navio, a câmera de Yanakis; o plano-seqüência, a
profundidade de campo, o ruído do mar, o papel do ator que vive o assistente, a cena em
germe, em formação. Assim, a imagem fende-se em duas, atual e virtual, presente e
passada, ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo.
433
A imagem
virtual, o cinema dos pioneiros irmãos Manakis, o passado, atualiza-se, tornando-se
límpida e visível; ao mesmo tempo, a imagem atual, o encontro de A. com o assistente,
o presente – por um momento atualizada, pela irrupção da cor, do movimento, da figura
de A. –, é assombrada pelo passado, figurado pela imagem fantasmática do navio azul –
quase transparente, cristal –, que toma toda a superfície da tela ao final da seqüência,
para em seguida esvanecer. Como em Antes da chuva, no filme de Theo Angelopoulos,
a experiência do tempo é fundamental para a construção da narrativa. Conforme aponta
Celina Figueiredo Lage:
Ao lidar com o legado mítico, com a história da Grécia, com sua
história pessoal, com toda uma herança cultural – passando pelo
cinema, pela literatura, pela filosofia, pelas tradições populares – o
cineasta produz entrecruzamentos temporais, que estão presentes de
forma muito expressiva na composição das seqüências. (...) Ao negar
uma distinção entre presente e passsado, [Angelopoulos] faz com que
os dois tempos coexistam, imprimindo uma interação de caráter ativo
entre história, memória e o tempo da narrativa.
434
A. voltara a Florina para a exibição de seu novo filme, que é exibido no
mercado, pois fanáticos religiosos – índice dos conflitos que então assombram a região
432
A cena pode ser lida como uma referência à primeira seqüência de E la Nave Va de Federico Fellini –
um dos cineastas mais “citados” por Angelopoulos –, na qual o cineasta italiano faz uma espécie de
homenagem ao próprio cinema, começando como um documentário antigo que, aos poucos, vai
ganhando fluência, movimento e cor. Assim como Federico Fellini, Theo Angelopoulos chama a
técnica cinematográfica não para criar um efeito elevado de realismo, mas para tornar possível o
encontro do cinema com suas primeiras imagens (fantasmas), com os pioneiros da arte
cinematográfica (Cf. E LA NAVE VA. Direção de Federico Fellini... 1983; SOARES. Rotas abissais,
p. 49-51).
433
DELEUZE. Cinema II: imagem-tempo, p. 99.
434
LAGE. Para ver a Odisséia, p. 131.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
131
– impedem sua exibição no cinema. O filme dentro do filme não aparece como imagens,
não as vemos, apenas ouvimos a “fita sonora”:
Cruzei seu caminho de novo? Estou de volta. Rijo, congelado. Com
estas roupas o dia todo. Aqui onde os ventos vêm de todos os lados.
(...). Nossa casa é sua casa! Você cruzou a fronteira e continua aqui.
Quantas fronteiras precisam ser cruzadas para chegar em casa? (...)
Na verdade é uma citação de um filme anterior de Theo Angelopoulos, To
meteoro vima tou pelargou (O passo suspenso da cegonha), de 1991, o que explicita a
identificação entre A. e Angelopoulos.
435
Ao mesmo tempo em que “ouvimos” o filme
de A./Angelopoulos, ele caminha pelas ruas de Florina. O passado vem à tona, a cidade
traz lembranças: uma praça, um acampamento militar, uma casa. É o início da viagem.
As imagens ganham uma atmosfera onírica e pictórica: o “encontro fortuito”
436
de uma
procissão de tochas – os fanáticos religiosos que se opõem à exibição do filme de A.– e
outra de guarda-chuvas – os espectadores do mesmo filme, que tentavam assisti-lo no
mercado (ver Figura 4).
Figura 4: Seqüência do filme Um olhar a cada dia
Fonte: <http://www.wpcmath.com/films/ulyssesgaze/ulyssesgaze1.html>
435
“Há dois filmes que são autobiográficos: “Viagem a Citara” e este [Um olhar a cada dia]. O meu
cinema é memória, de certa forma. É a minha leitura daquele período, não a atual, mas a primeira, a
fresca, a daquele tempo” (ANGELOPOULOS. Angelopoulos filma para “adocicar o tempo”
(entrevista), p. 7).
436
No espírito surrealista da cena, ecoam as palavras de Le chants de Maldoror, de Lautrèamont: “Belo
como... o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
132
Enredado pelas duas multidões, entre tochas e guarda-chuvas, A. começa a
“navegar em águas escuras”, uma mulher – “Bela como...”, diriam os surrealistas –
atravessa a tela. Eurídice às avessas, ela não se volta para trás, perdendo-se no meio da
multidão. A. tenta tocá-la – “poderia tocá-la se esticasse as mãos e o tempo ficaria
intacto de novo” –, mas alguma coisa o impede, a viagem não acabou. Essa figura
feminina é apenas a primeira das muitas que o acompanharão em sua odisséia – todas
elas interpretadas pela atriz romena Maïa Morgenstern. A escolha da mesma atriz para
viver essas diferentes mulheres
437
intensifica a presença do sonho e da lógica do sonho
– o trabalho de construção das imagens por fusão/condensação/superposição – na vigília
de A., contribuindo para a fluidez na construção do tempo e do espaço. Maïa
Morgenstern é, num primeiro momento, a arquivista da cinemateca de Monastir; depois,
a viúva sérvia traumatizada que acolhe A.; por fim, a jovem judia em meio ao horror de
Sarajevo, durante a guerra. “Todas três serão abandonadas no seu respectivo inferno – a
Romênia desmantelada; a Iugoslávia em ruínas; Sarajevo bombardeada – por A./Orfeu
pelo olhar turvado pela câmera fotográfica, pela noite, depois pela neblina” (tradução
minha).
438
Pode-se ler ainda, nesse artifício, uma visada “centralista” e “iluminista” – ou
mesmo uma opção pelo “nacionalismo correto”
439
– por parte de Theo Angelopoulos, ao
propor uma imagem universalista da história dos Bálcãs, figurando a região, sua
“unidade partida”, através da atriz Maïa Morgenstern, dos projetos dos irmãos Manakis,
da busca de A.
Em um périplo que contorna as bordas da Outra Europa – começa pela Grécia,
passa pela Macedônia, Bulgária, Romênia, pela ex-Iugoslávia, culminando na cidade de
Sarajevo –, a primeira fronteira é com a Albânia. Nesse limite, A. trava contato com
dissecação”, tão decisivas para os escritores daquela geração (Cf. MORAES. O corpo impossível, p.
39-54).
437
Artifício contrário, mas de efeitos semelhantes, é o de Luis Buñuel em Esse obscuro objeto do desejo,
ao escolher duas atrizes para viver o mesmo papel (Cf. ESSE obscuro objeto do desejo. Direção de
Luis Buñuel... 1977).
438
Toutes trois seront abandonées dans leur enfer respectif, la Roumanie démantelée, la Yougoslayie en
ruines, Sarajevo bombardé, par A./Orphée au regard obscurci par appareil photo, la nuit, puis le
brouillard” (LETOUBLON; EADES. Le regard d'Orphée chez Theo Angelopoulos. Disponível em:
<http://orfeo.grenoble.free.fr/Annexes/angelo.htm>).
439
Tal crítica ao filme de Theo Angelopoulos, de optar por um “nacionalismo correto”, aparece em
PESMAZOGLOU. Los intelectuales griegos y el repliegue helenocéntrico, p. 58.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
133
uma velha senhora que lhe pede ajuda para chegar à casa da irmã, em Korytsa. Há
quarenta e sete anos, elas não se vêem, desde a guerra civil. No percurso, contra a
paisagem gelada, através de travellings pelas margens da estrada, figuras humanas,
mudas, quase imóveis, esperam e observam: “albaneses ilegais, refugiados”, diz o
taxista; quanto às figuras, elas serão redobradas em um outro momento do filme,
quando imagens de um documentário do início do século apresentam a figura de
“outros” refugiados na Monastir, de 1914. Outra dobra, suplemento, neste plano-
seqüência que adentra a Albânia, são as quatro notas de uma melodia já escutada e que
aparecerá ao longo de todo o filme: “o motivo do exílio”, composta por Eleni
Karaïndrou, para Taxidi sta Kithira (Viagem a Citara), filme de Angelopoulos de
1984.
440
Quando chegam ao centro de Korytsa, a velha senhora pergunta: “Que lugar é
esse?” O táxi que conduz A. deixa-a no meio da praça. Ela fica perdida em um vasto
espaço, cinza e branco, que já não é seu, entre imagens que já não são suas. É a
impossibilidade de reencontro com um primeiro olhar, a impossibilidade de se preservar
o passado. E, como afirma Gilles Deleuze, a respeito da “imagem-lembrança”: “O
passado não se confunde com a existência mental das imagens-lembrança que o
atualizam em nós. É no tempo que ele se conserva: é o elemento virtual em que
penetramos para procurar a ‘lembrança pura’ que vai se atualizar em uma imagem-
lembrança”.
441
Em um outro momento do filme, um belo plano-seqüência recria uma fase da
infância de A. Ele reencontra a figura da mãe, já falecida, que o conduz, como um
menino, a uma viagem – Nekya – ao passado, à dimensão dos mortos: a antiga casa da
família, os parentes, o pós-guerra (1945... 1948... 1950), o reencontro com o pai, a
fotografia. A passagem dos anos, a modificação da temporalidade nas diversas épocas é
dada apenas pela entrada e saída de personagens do único cenário em que se desenrola a
cena: a sala de estar da casa dos familiares de A. O movimento das personagens na
cena, como camadas que se superpõem umas sobre as outras, produz uma acumulação
de tempos. O que torna a seqüência ainda mais carregada de significações é o artifício –
440
Desde 1984, sucedendo a Lukianos Kilaïdonis, é Eleni Karaïndrou quem trabalha o universo musical
dos filmes de Theo Angelopoulos. (Cf. LETOUBLON; EADES. Le regard d'Orphée chez Theo
Angelopoulos. Disponível em: <http://orfeo.grenoble.free.fr/Annexes/angelo.htm>).
441
DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 121.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
134
o mesmo da cena do navio azul, no início do filme – de, mesmo nessas cenas em que
revive momentos da infância, a personagem A. ser interpretada pelo mesmo ator, o
americano Harvey Keitel, criando uma espécie de curto-circuito temporal, como em
Antes da chuva. Apenas no momento em que posa para foto, no final da seqüência, é
que a personagem aparece na figura de um menino. Tal artifício também aponta para a
impossibilidade de se debruçar sobre o passado com o mesmo olhar inocente da infância
– este último permanece apenas congelado na existência fluida de uma fotografia. Como
mostra Walter Benjamin: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
“como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo”.
442
O presente incide sobre o passado na
construção da memória, o sujeito que busca o passado caminha, inevitavelmente, por
uma instância lacunar, na qual as imagens da memória revelam-se “enquanto lacuna,
enquanto decomposição, rasura da imagem”, pois, nas palavras de Lúcia Castelo
Branco:
o passado não se conserva inteiro, como um tesouro, nos receptáculos
da memória, mas (...) se constrói a partir de faltas, de ausências, (...) o
gesto de se debruçar sobre o que já se foi implica um gesto de edificar
o que ainda não é, o que virá a ser.
443
Assim, as imagens das tecelãs (Penélopes ou Meras?),
444
– o filme antigo, o primeiro
olhar sobre os Bálcãs – razão da viagem, “pretexto”, irão recortar todo o filme,
lembrando ao espectador que, para aquele que rememora, o importante não é o que ele
viveu, mas o tecido de sua rememoração, “o trabalho de Penélope da reminiscência”.
445
Quanto aos três rolos não revelados, talvez o primeiro filme, o primeiro olhar, eles
representam a possibilidade de se fitar um olhar inexistente. Um olhar perdido. “Uma
inocência perdida”. Esse olhar “tornou-se uma obsessão como se fosse o meu próprio
trabalho. Meu primeiro olhar perdido há muito tempo”, afirma A.. Sua obsessão pelos
442
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 224.
443
CASTELO BRANCO. A traição de Penélope, p. 26.
444
As Meras (ou Moiras) são personificação do destino de cada ser humano, do quinhão que lhe cabe
neste mundo. São três irmãs, Atropo, Cloto e Láquesis, que, para cada um dos mortais, regulavam a
duração da vida, desde o nascimento até a morte, com a ajuda de um fio que a primeira fiava, a
segunda enrolava e a terceira cortava, quando a vida correspondente acabava (Cf. GRIMAL
Dicionário de mitologia grega e romana, p. 306).
445
BENJAMIN. A imagem de Proust, p. 37.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
135
irmãos Manakis é engenhosamente revelada no filme através de uma seqüência em que
o próprio A., no momento de atravessar a fronteira búlgara, converte-se em
duplo/fantasma de Miltos Manakis. A. revive passagens da vida de Miltos – a prisão e a
quase execução – quando este era refugiado grego no mesmo lugar em 1920. Assim
como nas outras seqüências de salto temporal, aqui se estabelece um jogo teatral e
onírico, nesse caso, a imagem permanece no presente enquanto a teia sonora é aquela do
passado.
A gênese de toda a busca encontra-se no relato de um dia de filmagem, no qual
A. presencia a queda de uma velha oliveira que revela um busto de Apolo escondido ali
há séculos. Ele tenta fotografar o momento, entretanto o resultado é nulo, as fotografias
tiradas não conseguem registrar nada, apenas quadrados vazios, fotos em branco do
mundo, como se os seus olhos não funcionassem, como se os olhos tivessem, por assim
dizer com Walter Benjamin, em suas leituras de Charles Baudelaire, “perdido a
capacidade de olhar”.
446
A partir desse acontecimento, o encontro e a revelação dos três
rolos de filme dos irmãos Manakis passam a ser a possibilidade de desvendamento dos
seus olhos, a restituição de sua capacidade de olhar. Além disso, Miltos e Yanakis
Manakis eram valáquios, um povo errante que se distribuiu por toda a região balcânica,
por exemplo, na Romênia, na Grécia, na Albânia, na ex-Iugoslávia: “Eles representam
um símbolo da multietnia balcânica, e da necessidade de união entre todos os povos
(...)”.
447
Para A. os três rolos contém “um mundo”, revelá-los é revelar um olhar anterior
à guerra, à fragmentação, ao esfacelamento; como ele insiste em repetir:
Os dois irmãos andaram por aí fotografando e filmando coisas.
Estavam tentando registrar uma nova era, um novo século. Por 60
anos ou mais, registraram rostos, acontecimentos... no tumulto dos
Bálcãs. Não estavam preocupados com política nem questões raciais.
Nem com amigos ou inimigos. Estavam interessados em pessoas.
Estavam sempre em movimento pelo decadente Império Otomano.
Registrando tudo.
448
446
BENJAMIN. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 141.
447
ANGELOPOULOS. Angelopoulos filma para “adocicar o tempo”, p. 7.
448
Esse conteúdo ideológico do objeto da viagem de A. – “o ecumenismo balcânico de antanho” – é
tomado por alguns críticos como uma leitura deslocada e simplista do quadro histórico-político da
região (Cf. OSTRIA. Le voyager sans bagages, p. 52-53).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
136
Fronteiras terrestres, estações ferroviárias, barcos, navios, marcam a busca de
A. Em um desses momentos/movimentos, vemos uma enorme cabeça de uma estátua de
Lênin, suspensa por um guindaste, sendo embarcada num navio (ver Figura 5).
Figura 5: Imagem da Cabeça de Lenin em Um olhar a cada dia
Fonte: <http://www.wpcmath.com/films/ulyssesgaze/ulyssesgaze2.html>
Citação de citação, essa seqüência dialoga com outro filme de Theo
Angelopoulos, Paisagem na Neblina, no qual se tem uma seqüência em que uma
enorme mão é retirada do mar por um helicóptero. Por sua vez, essa imagem já era uma
citação de A doce vida, de Federico Fellini.
449
A respeito da referência a filmes, seus e
de outros cineastas, recorrente em sua obra, Theo Angelopoulos afirma que a referência
ao universo fílmico reafirma a sua crença na imagem cinematográfica,
450
“a paisagem
fílmica é uma esperança”:
Eu quero acreditar que o mundo será salvo pelo cinema. Para mim, o
cinema é o mundo e é minha viagem. Eu tento encontrar algumas
449
PAISAGEM na neblina. Direção de Theo Angelopoulos...1988; A DOCE vida. Direção de Federico
Fellini...1959/1960.
450
“É preciso que o cinema filme não o mundo, mas a crença neste mundo, nosso único vínculo.
Repetidas vezes já se perguntou qual a natureza da ilusão cinematográfica. Restituir-nos a crença no
mundo: é este o poder do cinema moderno (quando deixa de ser ruim). Cristãos ou ateus, em nossa
universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo” (DELEUZE. Cinema II:
imagem-tempo, p. 207; grifos do autor).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
137
pequenas utopias que possam maravilhar-me, eu tento acreditar nessa
viagem com o cinema.
(tradução minha)
451
É com essa mesma aposta na viagem com o cinema que A. embarca junto aos
despojos da monumental estátua de Lênin. Ambos são conduzidos ao longo do rio em
um longo plano-seqüência. Ao fundo, a voz em off de A. ratifica a fé no cinema ao
metamorfosear-se, mais uma vez, fantasmaticamente na figura de Miltos Manakis:
Nos primeiros meses de 1905, em Bucareste, Romênia, disseram-nos
que na Inglaterra e na França você podia comprar máquinas de fazer
filmes. Mal podíamos acreditar. Ficamos estupefatos. Mas tínhamos
que acreditar porque vimos um desses filmes com nossos próprios
olhos. (...) meu irmão Yannakis não ia sossegar enquanto não
colocássemos a mão nessa máquina mágica e levá-la de volta a
Monastir.
Se, no ano de 1936, Georges Bataille e André Massson propõem a imagem de
um homem decapitado como síntese de uma época,
452
em 1995, a imagem da enorme
cabeça de Lenin separada do corpo era tão simbólica para os povos da Europa Centro-
Oriental quanto “o peso da cabeça cortada” para os surrealistas. Alçada por um sistema
de guindastes “ultra-modernos” – provavelmente importados do “Ocidente”–, a cabeça
de Lenin parece flutuar sobre o porto até finalmente “encaixar-se” no barco em meio ao
despojos do corpo fragmentado. Como a “jangada de pedra” de Underground –
mentiras da guerra, de Emir Kusturica, essa imagem funciona como um objeto
simbólico que expressa as perplexidades, os absurdos e a tragédia de uma época: o
desmantelamento dos corpos, dos espaços, das idéias. A estátua em pedaços segue para
Alemanha – ecos de 1989 –, enquanto A. fica na Iugoslávia em frangalhos – estilhaços
de um “bloco”. Quando chegam à fronteira da Iugoslávia, surge uma pergunta de um
alto-falante: “Tem alguém a bordo?” e a única resposta possível é, independente do
diálogo com a Odisséia,
453
Ninguém.
451
“Je veux croire que le monde sera sauvé par le cinéma. Pour moi le cinéma c’est le monde et c’est
mon voyage. J’essaie de trouver quelques petites utopies qui peuvent m’emerveiller, j’essaie de croire
en ce voyage avec le cinéma” (ANGELOPOULOS. A propos de Paysage dans le Brouillard, p. 20).
452
MORAES. O corpo impossível, p. 39.
453
A referência explícita é o episódio presente no canto IX da Odisséia, no qual Odisseu penetra na
caverna do Ciclope Polifemo e quando este lhe pergunta o nome, ele responde: “Ninguém” (Cf.
HOMERO. Odisséia, p. 160-169[versos 216-542]).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
138
“A primeira criação de Deus foi a viagem. Aí veio a dúvida e a nostalgia”. A.
chega a Belgrado e descobre que os três rolos de filme estão em Sarajevo. O diálogo
com o amigo, correspondente de guerra, remete ao imbricamento entre guerra e
representação da mesma pelo fotojornalismo, já abordado em Antes da chuva. Ao ser
perguntado como eles, jornalistas, chegam à zona de guerra, o correspondente responde:
“a maioria dos correspondentes que querem uma história sobre os fatos mais recentes
visitam as unidades do exército da periferia de Belgrado e fabricam uma foto de guerra
por uns dólares”.
Há incerteza diante das imagens. Apesar de o olhar – a busca de um – ser o
detonador da narrativa, em vários momentos de Um olhar a cada dia, a visão, o olhar é
superposto pelo som. A visão entra definitivamente em colapso com a chegada de A. a
Sarajevo destruída pela guerra. O seu primeiro olhar sobre a cidade, por exemplo,
aparece primeiro em forma de relato, para só depois ganhar as formas da imagem
fílmica. Sarajevo é onde estão os três rolos não revelados de filme. “Vir de tão longe em
busca de algo que se acredita estar perdido? Você deve ter muita fé ou é desespero”. Diz
Ivo Levi, o diretor da cinemateca da cidade, que luta para salvá-la em meio à destruição
causada pelos combates. Para Ivo Levi, “um colecionador de olhares desaparecidos”,
salvar a cinemateca é salvar a memória do seu povo. Para A, revelar o três rolos de
filme dos irmãos Manakis é trazer à tona o seu próprio olhar desaparecido, “um olhar
cativo como a chama dos primeiros dias do século”.
454
Confinado no porão da cinemateca em ruínas, A. assiste à tentativa de Ivo Levi
em revelar/decifrar – tirar da escuridão – as imagens – sombras – dos irmãos Manakis.
Em um dado momento do filme, na solidão do “laboratório”, Ivo Levi fixa, em um
gravador cassete, os versos do poeta Rainer Maria Rilke: “Vivo minha vida em círculos
cada vez maiores girando bem acima das coisas. Talvez este último círculo eu jamais
chegue a terminar. Contudo, eu quero tentar”. Noutro momento, na ausência de Ivo
Levi, A. escuta, sorrateiramente, os mesmos versos na voz do amigo fixada no
gravador. Essas dobras sonoras e visuais recorrentes ao longo do filme desenham uma
454
Essa postura conservativa que perpassa o filme de Theo Angelopoulos será retomada no terceiro
capítulo desta tese, quando da análise de Underground – mentiras da guerra, de Emir Kusturica.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
139
melodia específica na qual som e imagem confluem para produzir sentido e construir a
narrativa.
455
É também um canto que se configura durante a tentativa de se revelar os três
rolos de filme. Em busca da velha fórmula química, Ivo Levi tenta várias combinações,
vários fluidos. Na solidão do laboratório, o som dos “fluidos borbulhantes”, para ele,
revela uma canção: “Fiquei sentado num pequeno laboratório, infindáveis noites,
ouvindo os borbulhantes fluidos. Há momentos em que esses fluidos parecem uma
canção. Parecem uma canção, sabe? Eles parecem uma canção...parecem uma canção”.
O velho colecionador de olhares é seduzido pelo “canto e encanto da película”. Segundo
a professora de cinema Anne Rutherford, no gelo congelando, na chuva e na neve, na
névoa suspensa, na corrente do rio ou cantando no pequeno laboratório, os “fluidos”
marcam o polo afetivo do filme de Theo Angelopoulos e contribuem para a
compreensão da elaboração do seu cinema.
456
Quando o trabalho parece ter chegado ao fim, em um dia de neblina – único
momento em que “a cidade volta a ser como antes” – A. sai da “caverna” e passeia, ao
lado da família de Ivo Levi, por uma Sarajevo coberta pela névoa espessa. Nesses
momentos – seja através da orquestra itinerante composta por sérvios, croatas e
muçulmanos, que remete ao sonho dos irmãos Manakis – e também de Angelopoulos –
de filmar os Bálcãs independente de questões políticas, religiosas ou raciais; seja através
de uma inusitada representação de Romeu e Julieta realizada por jovens em meio aos
destroços da guerra – o protagonista, apesar da opacidade das imagens “como um cristal
que mal foi retirado da terra”,
457
parece reencontrar o seu liame com o mundo e acaba
caindo em um dancing improvisado às margens de um rio coberto de bruma: “Jamais
455
“Le rôle narratif du son musical et du son analogique consiste donc non seulement à soutenir la
structure du film, mais aussi à produire un sens et à construire l'histoire avant l'invention de l'imagem
et du dialogue” (LETOUBLON; EADES. Le regard d'Orphée chez Theo Angelopoulos. Disponível
em: <http://orfeo.grenoble.free.fr/Annexes/angelo.htm>).
456
“It is also an economy of fluids that defines Angelopoulos' shooting style: frozen moments, fluid
mobile camera, and the porousness of sensation as sound bleeds across image and image melts away
into the fog” (RUTHEFORD. Precarious boundaries: afect, mise en scène and the sense in
Angelopoulos' balkans Epic. Disponível em: <http://www.sensesofcinema.com/contents/04/31/
angelopoulos_balkan_epic.html#b3>).
457
DELEUZE. Cinema II: imagem-tempo, p. 90.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
140
teria sonhado dançar em Sarajevo”. Essas imagens, à primeira vista “irreais”,
458
são
confirmadas por Omar Ribeiro Thomaz em seu estudo sobre os conflitos na Bósnia-
Herzegovina:
Os bondes já não circulavam – por causa dos franco-atiradores – e a
calma podia ser interrompida a qualquer momento por um ataque
fulminante da artilharia sérvia, que ocupava os subúrbios da cidade.
Escolas, teatros, cinemas e bibliotecas estavam fechados ou haviam
sido destruídos; ainda assim, saltimbancos ou orquestras atuavam
quando possível, sobretudo quando havia a espessa neblina que
obstruía a mira dos sitiadores; e sabemos da determinação de seus
habitantes, que se obstinavam em manter vivos festivais de teatro e
música, e para isso, convidavam intelectuais do mundo inteiro (Susan
Sontag e Juan Goytisolo, entre outros, compareceram).
459
Também os escritos de Susan Sontag, a respeito de sua experiência ao montar a peça
Esperando Godot, de Samuel Beckett, em Sarajevo, deixam clara a “tenacidade dos
sobreviventes” em tempos difíceis, de guerra, e o papel da arte nesses momentos em que
o “impossível dilema” é manter-se vivo.
460
Além disso, continuar promovendo
“festivais” (música, cinema, teatro), exposições, significava preservar, através da
cultura, uma imagem da Bósnia-Herzegovina, “cidade-idéia”,
461
como a capital de todos
os povos da região, fossem eles muçulmanos, croatas, sérvios ou judeus; ou seja,
preservar e inventar uma Bósnia-Herzegovina possível.
Entretanto, nas últimas seqüências do filme de Theo Angelopoulos, a vida é
silenciada, o liame é brutalmente cortado. Toda a família de Ivo Levi, inclusive ele
próprio, é executada às margens do rio. Nessa seqüência, o espectador e o próprio A.
vêem-se diante da tela branca, sob efeito da neblina, apenas se ouve o barulho dos tiros
e o desespero das vítimas, como se todo o filme – não só o “olhar” de A., mas também o
de Angelopoulos e o dos espectadores – tivesse sido atingido pelo colapso da visão,
458
“The emptiness of Sarajevo, as cars burn in the street and later vanish in fog, causing the snipers to
pause and musicians to take back the streets, may have no basis in reality, but transmits the truth of
the tenacity of survivors in an impossible dilemma”
(GOETZ A Balkan Odyssey of Epic Proportions.
Disponível em: <http://www.washingtonfreepress.org/27/Reel.html>; grifos meus).
459
THOMAZ. Bósnia-Herzegovina: a vitória da política do medo, p. 4. O que surpreende é que o autor
usa as imagens de Um olhar a cada dia como referência para confirmar o “fato”.
460
SONTAG. Questão de ênfase, p. 381-420.
461
THOMAZ. Bósnia-Herzegovina: a vitória da política do medo, p. 5. A expressão “cidade-idéia” foi
utilizada pelo arquiteto e antigo prefeito de Belgrado, Bogdan Bogdanovic.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
141
perdido a capacidade do “olhar”, o “poder-comover”.
462
É o privilégio do “não visto”, o
horror provém do que não é mostrado.
463
Enquanto alguns filmes tentam mostrar a realidade da guerra pelo viés da
técnica – efeitos especiais –, o investimento na visibilidade total, produzindo imagens
vertiginosas, repletas de sangue e membros espalhados pela tela, e provocando no
espectador a retração, o encolher-se na poltrona, enfim, a experiência do choque diante
da precisão do “tiro-câmera”,
464
o que a imagem do massacre sob a espessa névoa
provoca é a antítese dessa experiência:
Enquanto a visão é apagada, é obstruída pela névoa, o espectador
esforça-se para compreender mais da tomada, sendo ativamente
transportado para dentro da cena, explorando a tela branca em busca
de seus indícios (vestígios) com todos os sentidos despertados.
(tradução minha)
465
O conhecimento que chega ao espectador através do som – o canto interrompido das
crianças; o silenciar de cada personagem que adentra a espessa névoa; as notas cada vez
mais graves do ruído do rio; o barulho do automóvel que se aproxima; o diálogo
desesperado; os tiros; o automóvel que se afasta – provoca um alçamento dos sentidos
em busca de significação. Além disso, apesar da invisibilidade causada pela neblina, a
câmera continua se movimentando, lenta e incessantemente. Esses movimentos incitam
ainda mais no espectador o desejo de ver-compreender o invisível. A imagem ofuscada
pela névoa parece devolver ao espectador aquele “outro olho” de que fala Platão, na
“epígrafe” do filme, “a melhor parte do olho”, que permite o conhecimento do eu e do
outro, o apossar-se da própria experiência. Tem-se corporificada, retomando os
conceitos de Walter Benjamin, a experiência como memória involuntária, no momento
462
VIRILIO; LOTRINGER. Guerra Pura, p. 82.
463
Efeito semelhante era buscado nas tragédias gregas, nestas as “cenas terríveis”, o suicídio de Jocasta e
o ato de furar os olhos de Edipo, o sacrifício de Polixena, por exemplo, não são representados aos
olhos dos espectadores (Cf. SÓFOCLES. Édipo Rei, p. 84-87, versos 1446-1536; EURÍPEDES. As
troianas, p. 200-201, versos 792-794).
464
VIRILIO. Guerra e cinema, p. 84.
465
“While vision is snuffed out, occluded by the fog, the spectator strains to grasp more of the shot, is
actively transported into the shot, scanning the white screen for clues with all the senses awakened”
(RUTHEFORD. Precarious boundaries: afect, mise en scène and the sense in Angelopoulos' balkans
Epic. Disponível em: <http://www.sensesofcinema.com/contents/04/31/angelopoulos_balkan_epic.
html#b3
>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
142
em que a tela é investida do poder de revidar o olhar do espectador.
466
A imagem
converte-se em efeito-crítico, “o olho se torna uma modalidade de tato”.
467
De volta à cinemateca, A. assiste aos três rolos de filme – a vida latente. O que
é mais perceptível é um som, um ruído, a nota grave do rumor do projetor. A imagem
que vemos é a da tela branca e luminosa, é o limite do visível, o fim da busca utópica de
um olhar desaparecido: “Foi uma longa viagem... esse tempo todo esperando por aquele
olhar”. Diante do imponderável – o resgate do primeiro olhar revelou-se vão,
definitivamente perdido, o vínculo com o mundo rompeu-se –; resta a A. o
deslocamento e o ancoramento nas palavras, no narrar:
Quando eu voltar, será nas vestes de um outro homem. Com o nome
de um outro homem. Minha vinda será inesperada. Se você olhar para
mim incrédula e dizer: “você não é ele”. Eu lhe darei indícios e você
acreditará em mim. Eu lhe falarei sobre o limoeiro em seu jardim, a
janela que deixa entrar o luar e, então, sinais do corpo, sinais de amor.
E, enquanto subimos, trêmulos, ao velho quarto, entre um abraço e
outro, entre juras de amor, eu lhe falarei sobre a viagem a noite toda e
todas as noites seguintes entre um abraço e outro, entre palavras de
amor, toda a aventura humana, a história que nunca termina.
466
BENJAMIN. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 103-149; BENJAMIN. A imagem de Proust, p. 36-49.
467
LIMA. Mímesis: desafio ao pensamento, p. 24.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
143
2.3. O ponto cego da experiência
Nas suas Lições americanas,
468
a partir da crença de que “há coisas que só a
literatura com seus meios específicos nos pode dar”,
469
Italo Calvino refletia a respeito
de alguns valores, qualidades e especificidades do texto literário que deveriam
permanecer e persistir no novo milênio, cujo prenúncio se revelava, naquele momento
(1984-1985), através das indagações freqüentes a respeito do destino da literatura e do
livro na era da “tecnologia pós-industrial”. Tais valores ou qualidades desenhavam um
projeto de resistência à “peste da linguagem”:
Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a
humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no
uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa perda da
força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que
tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas,
abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a
extinguir toda a centelha que crepite no encontro das palavras com
novas circunstâncias.
470
Esse embotamento dos pontos expressivos não seria, segundo Calvino, um “flagelo”
específico da literatura; também as “imagens”, nas palavras do autor, foram, em grande
parte, destituídas de sua força cognoscitiva, de sua riqueza de significados possíveis:
“grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os sonhos que
não deixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e
mal-estar”.
471
Assim, para que se fizesse possível uma melhor percepção da realidade e
uma melhor experiência com a linguagem, experiência essa que escapasse da
inconsistência, da homogeneização e da uniformidade na linguagem e nas imagens,
Calvino propunha seis valores: a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a
multiplicidade e a consistência, que deveriam vir à superfície em contraposição aos
modos de significação pré-estabelecidos. Devido à morte súbita do autor, as
conferências nunca foram proferidas e apenas as cinco primeiras foram concluídas; a
468
Um ciclo de palestras escritas para serem apresentadas na Universidade de Harvard, em Cambridge,
como as “seis” Charles Eliot Norton Poetry Lectures (Cf. CALVINO. Seis propostas para o próximo
milênio, p. 5).
469
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 11.
470
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 72.
471
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 73.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
144
consistência jamais seria escrita, e as Seis propostas para o próximo milênio ficaram
reduzidas a cinco.
Em 2001, o escritor argentino Ricardo Piglia se propôs o exercício, o desafio
de escrever a sexta proposta que faltava no projeto de Italo Calvino. Ao contrário do que
possa parecer à primeira vista, o intento de Piglia não foi escrever a sexta proposta “à
maneira de Calvino”, ou seja, desenvolver a noção de consistência – fosse pela via da
paráfrase, da imitação ou mesmo da mímica – “assumindo” o estilo do escritor italiano.
O suplemento construído pelo autor argentino é de outra ordem. “Versão utópica de
Pierre Menard, autor del Quijote”, como afirma o próprio Ricardo Piglia, o seu projeto
não é construir uma outra proposta mas a proposta. Assim, ele se coloca a seguinte
questão: qual seria essa sexta proposta, que não chegou a ser desenvolvida, escrita a
partir da margem – Buenos Aires – do mundo? Como veríamos nós, latino-americanos,
o futuro da literatura ou a literatura do futuro e sua função? A sua hipótese é que não o
veríamos como o vêem aqueles que se encontram em um país central, com uma grande
tradição cultural:
Colocamo-nos então esse problema a partir da margem, a partir da
borda das tradições centrais, mirando de viés. E este mirar de viés nos
daria uma percepção, talvez, diferente, específica. Há certa vantagem,
às vezes, em não estar no centro. Olhar para as coisas a partir de um
lugar levemente marginal. (tradução minha)
472
Escrever da margem é escrever no limite; assim, a questão que se coloca é
também uma questão sobre os limites da literatura, os limites da experiência. No caso
da Argentina, a experiência do horror puro da repressão define a relação que se
estabelece com o uso da linguagem, com a memória, o futuro e os sentidos. Desse
modo, a grande questão que permeia o texto de Ricardo Piglia é: “como se pode chegar
a contar esse ponto cego da experiência, que quase não se pode transmitir”.
473
A partir
472
“Nos planteamos entonces ese problema desde el margem, desde el borde de las tradiciones centrales,
mirando al sesgo Y este mirar al sesgo nos daría una percepción , quizá, diferente, específica. Hay
cierta ventaja, a veces, en no estar en el centro. Mirar las cosas desde un lugar levemente marginal”
(PIGLIA. Una propuesta para el nuevo milenio, p. 1).
473
“cómo se puede llegar a contar ese punto ciego de la experiencia, que casi no se puede transmitir”
(PIGLIA. Una propuesta para el nuevo milenio, p. 2).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
145
da leitura de alguns trechos de Rodolfo Walsh, Piglia recorta um gesto, um
deslocamento:
Um deslocamento em direção ao outro, um movimento ficcional, diria
eu, em direção a uma cena que condensa e cristaliza uma rede
múltipla de sentido. Assim se transmite a experiência, algo que está
muito mais além da simples informação. (tradução minha)
474
Movimento interno ao relato, uma tomada de distância, quase uma elipse, que
desloca a “verdade” do eu em direção ao outro, a proposta que Ricardo Piglia agregaria
àquelas de Italo Calvino seria exatamente essa noção de deslocamento e distância. “Sair
do centro, deixar que a linguagem fale também na borda, no que se ouve, no que chega
do outro”.
475
Ao final do texto, o escritor argentino constrói uma “versão utópica” do
futuro, na qual imagina que, no ano de 2100, quando os nomes de todos escritores
estarão perdidos e a literatura será atemporal e anônima, a sua proposta sobre o
deslocamento e a distância será um apêndice de um web.site chamado As seis
propostas. Estas serão lidas “como se fossem instruções em um antigo manual de
estratégia utilizado para sobreviver em tempos difíceis” (tradução minha).
476
Os textos em guerra com os quais trabalho nesta tese parecem contornar esse
mesmo propósito de Italo Calvino e de Ricardo Piglia: a construção de possibilidades de
sobrevivência das palavras e das imagens em tempos difíceis. A experiência do horror
puro da guerra supõe uma relação nova com a linguagem dos limites e uma organização
de um projeto de resistência que escape às armadilhas da “estilização estética”. Assim,
valores, qualidades e especificidades trazidos por Calvino e Piglia, em suas propostas,
se fazem presentes nesses textos em guerra: a busca de outro nível de percepção, de
uma mudança de ponto de observação, para que se possa considerar o mundo sob uma
outra ótica, outra lógica; o tratamento não convencional do tempo narrativo, enfatizando
a sua incomensurabilidade com relação ao “tempo real”; a recusa da visão direta, mas
474
“Un desplazamiento hacia el outro, un movimiento ficcional, diría yo, hacia una escena que condensa
y cristaliza una red múltiple de sentido. Así se transmite la experiencia, algo que está mucho más allá
de la simple información” (PIGLIA. Una propuesta para el nuevo milenio, p. 3).
475
“Salir del centro, dejar que el lenguaje hable también en el borde, en lo que se oye, en lo que llega de
outro” (PIGLIA. Una propuesta para el nuevo milenio, p. 3).
476
“como si fueran consignas en un antiguo manual de estrategia usado para sobrevivir en tiempos
difíciles” (PIGLIA.Una propuesta para el nuevo milenio, p. 3).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
146
que não significa recusa da realidade que cada um carrega consigo, como um fardo
pessoal; a economia de expressão em busca do essencial – máximo de eficácia narrativa
e de sugestão poética; a interrupção no momento exato, a escolha do momento em que
se deve recuar... Valores que, mais de cem anos após o surgimento de Ulysses, de James
Joyce, soam démodés e estereotipados, mas que, por outro lado, no mercado social dos
discursos, na sociedade da “catarse industrializada”,
477
são colocados de lado e
relegados ao segundo plano. Daí a necessidade de a arte, no desejo de subverter os
modos de significação pré-estabelecidos, trazê-los à tona, fazê-los subir à superfície,
abrindo “uma brecha nos discursos sociais cristalizados”.
478
Tais valores são muito nítidos na literatura produzida pelo húngaro István
Örkény, cujo livro A exposição das rosas: duas novelas eu passo a analisar neste
momento da tese. Para começar, parto de uma colocação enigmática do autor, que serve
de epígrafe para a novela “A família Tóth”:
Se uma cobra (coisa rara) devora a si própria, será que em seu lugar
fica um vácuo do tamanho de uma cobra?
Existe, por outro lado, uma força tão poderosa a ponto de fazer um
homem devorar a sua natureza humana? Existe? Inexiste? Existe? Isto
é uma charada!
479
Saliento que, ao escolher um enigma como porta de entrada ao universo
ficcional de Örkény, não almejo o deciframento, a solução, a interpretação definitiva do
problema. Ao contrário, quero marcar a contradição, o paradoxo, a aporia como
caminhos possíveis para percorrer sua obra – “a insistência diante do enigma”,
480
para
retomar um mote adorniano.
477
LIMA. Mímesis: desafio ao pensamento, p. 262;266.
478
SANTOS. Nação: ficção, p. 173.
479
ORKÉNY, István. A exposição das rosas: duas novelas, p. 85. A partir deste momento, as citações do
livro A exposição das rosas, de István Örkény, serão feitas no próprio corpo da tese, conforme a
padronização que se segue: entre parênteses, em primeiro lugar, irá aparecer o título abreviado da
novela referida (ER – “A exposição das rosas”; FT – “A família Tóth”), seguido do número da página
onde se encontra o trecho escolhido; por exemplo: (ER, p. 85).
480
LAGES. O enigma compartilhado, p. 58. Esse mote exemplar do estilo de Adorno é explicitado no
ensaio “Anotações sobre Kafka”: “Ela [a prosa de Kafka] não se exprime pela expressão, mas pelo
repúdio à expressão, pelo rompimento. É uma arte de parábolas para as quais a chave foi perdida, e
mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda a chave teria induzido ao erro. Na medida em que
confundiria a tese abstrata da obra de Kafka, a obscuridade da existência, com o seu teor. Cada frase
diz: ‘interprete-me’; e nenhuma frase tolera interpretação. Cada frase provoca a reação ‘é assim’, e
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
147
Na charada acima citada, István Örkény pergunta a respeito da força capaz de
levar o homem a devorar a sua própria natureza; uma força capaz de fazer com que a
violência coadune em direito e o direito em violência.
481
Manifestação do real que
invade o homem e o reduz à condição de coisa, essa força é o tema das duas novelas às
quais darei ênfase neste momento da tese. Em “A família Tóth”, pelas vias do absurdo
com que a guerra – e tudo aquilo que com ela se relaciona – é tratada, constrói-se uma
lúcida advertência a respeito da ação da força sobre os seres humanos; já em “A
exposição das rosas”, o tema da força se traduz através da experiência da morte e da
questão de sua representação.
Também é dessa força que submete os homens que fala a filósofa francesa
Simone Weil, no texto “A Ilíada ou o poema da força”, escrito em 1939-1940, depois
da queda da França frente à investida do Eixo. A partir do poema homérico, a filósofa
demonstra como a força esteve sempre no centro da história humana:
A força é o que transforma todo aquele que se vê sujeito a ela em uma
coisa. Exercida até o limite, ela converte o ser humano em uma coisa
no sentido mais literal da palavra: transforma-o em um cadáver. (...)
Do poder de transformar um homem em coisa, matando-o, surge outro
poder, mais prodigioso ainda: o de transformar em coisa um homem
que ainda vive. (tradução minha)
482
Esse seria o verdadeiro tema da Ilíada e, nesse sentido, ainda nas palavras de Simone
Weil, para aqueles que sonhavam que a força, graças ao progresso, fosse coisa do
passado, puderam ver nesse poema um documento; já os que sabem discernir a força,
então a pergunta: de onde eu conheço isso? O déjà vu é declarado em permanência” (ADORNO.
Anotações sobre Kafka. p. 24).
481
Ao analisar um fragmento de Hesíodo e outro de Píndaro, Giorgio Agamben reflete sobre a soberania
da lei. Se para Hesíodo, o nómos é o poder que divide violência e direito, para Píndaro, “o nómos
soberano é o princípio que, conjugando direito e violência, arrisca-os na indistinção” (grifos do
autor). Vale a pena citar os dois fragmentos para que se perceba a analogia com a “charada” de István
Örkény: Em Hesíodo: “Ó Perses, tem em mente estas coisas e, dando ouvidos à justiça (Díke),
esquece a violência (Bía). Aos homens, em verdade, Zeus destinou este nómos: é próprio dos peixes,
das feras e dos alados pássaros devorarem-se uns aos outros, pois não existe Díke entre eles; mas aos
homens ele deu a Díke, que é de longe a melhor”. Em Píndaro: “O nómos de todo Soberano/ dos
mortais e dos imortais/ conduz com mão mais forte/ justificando o mais violento./ Julgo-o das obras
de Héracle...” (AGAMBEN. Homo sacer, p. 37-38).
482
“La force, c'est ce qui fait de quiconque lui est soumis une chose. Quand elle s'exerce jusqu'au bout,
elle fait de l'homme une chose au sens le plus littéral, car elle en fait un cadavre. (...)Du pouvoir de
tranformer un homme en chose en la faisant mourir procède un autre pouvoir, et bien autrement
prodigieux, celui de fair une chose d'un homme qui reste vivant” (WEIL. L' “Iliade” ou le poème de la
force, p. 11;13).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
148
em qualquer época, no centro de toda a história humana, encontram no poema de
Homero “o mais belo, o mais puro dos espelhos” (tradução minha).
483
Pode-se ler, tanto o texto de Simone Weil quanto as novelas de István Örkény,
como reflexões indiretas, oblíquas, dos trágicos eventos que marcaram o século XX.
484
Assiste-se, nesse século, a uma mudança de visada no processo de percepção da
experiência da catástrofe, de um evento preciso, exato, pontual a uma visão da própria
realidade como catástrofe. A aniquilação dos corpos, a violação da dignidade humana
em seu aspecto primordial de pertencente ao vivo – ou a consciência como
(in)compreensão/(in)experiência desses eventos – chegou a extremos, aparentemente,
impensáveis. Tal intensidade levou diferentes autores – como, por exemplo, Walter
Benjamin, Maurice Blanchot e Eric Hobsbawm
485
– em diferentes contextos, a sentirem
a necessidade de compreender e, conseqüentemente, caracterizar esse século como a
“era das catástrofes”. Nas palavras de Márcio Seligmann-Silva,
não se pode afirmar que a catástrofe constitua um objeto
absolutamente novo no campo da reflexão filosófica. O que mudou –
de modo radical – foi a sua definição. Com efeito, em vez de
representar apenas um evento raro, único, inesperado, que seria
responsável por um corte na história no século XX, mais e mais
483
“le plus beau, le plus pur des miroirs” (WEIL. L' “Iliade” ou le poème de la force, p. 11).
484
A leitura da Ilíada empreendida por Simone Weil, à luz dos eventos que naquele momento sacudiam a
Europa – a eclosão da guerra, a violência nazista –, é objeto da análise crítica de Seth L. Schein, que
questiona o “viés cristão” através do qual Weil lê a epopéia de Homero; ver: SCHEIN. The mortal
hero, p. 82-83. Por outro lado, Nicole Loraux, em seu texto “L'Iliade moins les héros” (1994), mostra-
se devedora da reflexão de Simone Weil para a construção de sua leitura da Ilíada através da
“subtração” do heroísmo; ver: LORAUX. L'Iliade moins les héros, p. 45-47.
485
Em Walter Benjamin, a percepção do presente como catástrofe encontra-se mais efetiva nos ensaios
em que ele desenvolve o conceito de choque (Cf. BENJAMIN. A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, p. 165-196; BENJAMIN. Sobre alguns temas em Baudelaire, p. 118-125;
137-141) e nas teses sobre a história, em especial, a tese 9, na qual o “anjo da história” volta-se para o
passado e “vê uma catástrofe única, que acumula ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”
(BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 226). Já para Maurice Blanchot, toda literatura seria
uma experiência da catástrofe; em La escritura del desastre, ele toma a catástrofe, o desastre como
uma metáfora de tempos caracterizados pela contradição, violência, confusão, enfim, “a soberania do
acidental” (Cf. BLANCHOT. La escritura del desastre, p. 50-68). Quanto a Eric Hobsbawm, em A
era dos extremos, ele divide o “breve século XX” em três “eras”. A primeira, “da catástrofe”, é
marcada pelas duas grandes guerras; a segunda, “era de ouro”, concentra-se nos anos 50 e 60; a
terceira, “o desmoronamento”, espécie de prenúncio de novas catástrofes, situa-se entre 1970 a 1991.
(Cf. HOBSBAWM. A era dos extremos, p. 15-16).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
149
passou-se a ver no próprio real, vale dizer: no cotidiano, a
materialização mesma da catástrofe.
486
István Örkény vivenciou de forma premente essa experiência do cotidiano
materializar-se como catástrofe. Nascido em 1912 – às vésperas da Primeira Guerra
Mundial e do esfacelamento do Império Austro-húngaro – e falecido em 1979 – dez
anos antes da queda do Muro de Berlim –, o autor testemunhou não menos que quatro
diferentes regimes políticos (o sistema dualista; a breve república; o reino sem rei sob
um regente fascista; o comunismo), duas guerras mundiais e uma malfadada tentativa de
revolução (1956).
487
Em 1942, um ano depois de publicar o seu primeiro volume de
contos, Örkény, sendo judeu, foi enviado à frente russa, não como combatente, mas em
um batalhão de trabalhos forçados. Logo, seria tomado prisioneiro de guerra pelos
soviéticos e conheceria a fundo a vida nos campos de concentração russos, o que
marcaria profundamente o seu trabalho como escritor – já em 1946, publicaria o
romance Lágerek Népe (O povo dos campos de concentração), no qual refletiria o
drama do extermínio sistemático.
488
De volta à Hungria, no final de 1946, ele
experimentaria, ainda, do variado cardápio de atrocidades oferecido pelo “breve
século”, o silêncio forçado, depois da fracassada a revolução de 1956, quando ficou seis
anos proibido de publicar suas obras.
489
Apesar de – e contra – tudo isso, István Örkény escreveu uma longa seqüência
de textos, exercitando os mais diversos gêneros. Em sua bibliografia incluem-se
romances, novelas, contos, peças de teatro, entre outros. As questões pelas quais sua
escritura é atravessada são semelhantes àquelas de outros escritores do século XX: onde
inscrever a lembrança, a memória do passado tão presente? Como representar a
486
SELIGMANN-SILVA. A história como trauma, p. 73.
487
As informações a respeito da biografia de István Örkény foram colhidas nas seguintes fontes:
ASCHER. Prefácio, p. 7-9; NESTROVSKI, Arthur. O ferrão da ironia, p. 86-89; ISTVÁN Örkény:
the man behind the story. Disponível em: <http://www.mocw.org/previous/tlcp/orkeny.html
>;
ÖRKÉNY, István. Estórias instantâneas (trechos). Trad. Nelson Ascher. Disponível em:
<http://www.hungria. org.br/novela_orkeny.htm
>.
488
JOVANOVIC. Cicatrizes do totalitarismo, p. 99.
489
István Örkény participou de movimentos de oposição dos escritores, sendo que, em setembro de 1956,
seria eleito presidente da Associação dos Escritores. Após a revolução deflagrada em 1956, uma frase
sua condenando o papel do rádio tornou-se um refrão: “Mentimos de noite, mentimos de dia,
mentimos em todos os comprimentos de onda” (Cf. ÖRKÉNY, István. Estórias instantâneas (trechos).
Trad. Nelson Ascher. Disponível em: <http://www.hungria.org.br/novela_orkeny.htm
>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
150
catástrofe inserida em um universo impregnado dessa mesma catástrofe? Enfim,
retomando aqui um questionamento que Nelly Richard percebe na produção artística
chilena, no período “pós-transição democrática”:
como manifestar o valor da experiência (ou seja, a matéria vivida do
singular e do contingente, do testemunhável), se as linhas de força do
consenso e do mercado padronizaram as subjetividades e
tecnologizaram as falas, tornando sua expressão monocórdica, para
que custe cada vez mais, ao irredutivelmente singular do
acontecimento pessoal, deslocar a uniformização passiva da série?
490
Novamente uma situação ambígua é colocada: a angústia de uma tarefa que
carrega com igual intensidade tanto a impossibilidade de trasladar a vivência em
linguagem como a necessidade irredutível de fazê-lo. A saída se encontra não na
simples comunicação, informação da lembrança, mas na reinscrição e na reinvenção
sensível da memória através da difusão de modos de significação que escapem à
indolência da comunicação ordinária, recuperando a capacidade de se manifestar o valor
da experiência e não apenas a sua pobreza,
491
pois, mais uma vez retomando as palavras
de Nelly Richard,
somente uma cena de produção de linguagens permite tanto quebrar o
silêncio traumático de uma não-palavra, cúmplice do esquecimento,
como se salvar da repetição maníaco-obsessiva da lembrança,
dotando-a dos instrumentos reflexivos do deciframento e da
interpretação, para modificar a textura vivencial e a consistência
psíquica do drama.
492
Nessa busca de construir técnicas de reinvenção da memória através da
insurreição de outras linguagens e sintaxes, em meio a uma história de violações e
violentações, István Örkény, durante o seu período de “descanso forçado”, compõe um
gênero literário específico pelo qual se tornaria conhecido dentro e fora da Hungria: um
tipo de narrativa curta que ele chamou de Egyperces novellák (Contos de um minuto ou
Histórias de um minuto). Na sua “Instrução para uso”, que prefacia essas “narrativas
instantâneas”, István Örkény explica o “funcionamento” desses textos:
490
RICHARD. Citar a violência: a rotina oficial e as convulsões do sentido, p. 86.
491
BENJAMIN. Experiência e pobreza, p. 114-119.
492
RICHARD. Citar a violência: a rotina oficial e as convulsões do sentido, p. 87.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
151
Os contos anexados, apesar de curtos, são textos com valor. Têm a
vantagem de nos poupar tempo, pois não exigem uma atenção
prolongada durante semanas ou meses. Enquanto esperamos que o ovo
esteja cozido ou que o número de telefone que marcámos (sic) fique
desimpedido, podemos ler um conto de um minuto. Não levantam
obstáculos à má disposição ou ao nervosismo. Podemos -los
sentados, de pé, ao vento ou à chuva, ou quando vamos num
autocarro sobrelotado. Quase todos podem, até, ser lidos com prazer
durante um passeio. Atenção! Se alguém não compreender alguma
coisa, volte a ler o texto. Se continuar a não o entender, então o
defeito está no conto. Não há gente estúpida, só há contos de um
minuto mal escritos.
493
O tom irônico já denuncia o jogo proposto pelo autor, isto é, a própria proposta de
leitura em um minuto, que caracterizaria o “gênero”, revela-se uma provocação, um
embuste, pois o tamanho e a forma dos textos cobertos pela alcunha de Histórias de um
minuto variam significativamente e, conseqüentemente, o tempo de leitura e o grau de
compreensão também.
494
Como afirma Renzo Ruffini, em resenha para a edição
italiana: “cronógrafo à mão, muitos dos contos (55 divididos em 10 capítulos) não são
perfeitamente sincronizados sob a duração de um minuto. Um, tomado como exemplo,
só 12 segundos; outro – porquanto se possa ler rapidamente – ainda 2 minutos e 56
segundos” (tradução minha).
495
Além disso, apesar de um tanto curtas, essas narrativas
não são tão fáceis para entender como afirma o autor em suas “Instruções”, porque,
diante delas, o leitor é convocado a produzir uma multiplicidade de sentidos
concentrados em um número reduzido de linhas. Na verdade, ao criar “um gênero
493
ÖRKÉNY. Histórias de 1 minuto, p. 7.
494
Há histórias que ocupam apenas algumas poucas linhas – por exemplo, “Clímax” que ocupa seis
linhas – e outras que cobrem mais de uma página – como “Vamos aprender línguas estrangeiras”.
Apesar de inéditas, na forma de livro, no Brasil, encontram-se na internet traduções de Nelson Ascher
de algumas dessas “estórias instantâneas”, acompanhadas do original em húngaro (Cf. ÖRKÉNY,
István. Estórias instantâneas (trechos). Trad. Nelson Ascher. Disponível em:
<http://www.hungria.org.br/novela_orkeny.htm
>). Também é possível acessar as estórias vertidas
para o inglês por Judith Sollosy (Cf. ÖRKÉNY. One minute stories. Selected and translated Judith
Sollosy. Disponível em:
<http://www.hungarianquarterly.com/no170/5.html>). Em Portugal, as
histórias de István Örkény foram traduzidas duas vezes; primeiro em 1983, em uma edição bem
reduzida, intitulada Contos de um minuto; depois, em 2004, em uma edição mais completa,
organizada por Piroska Felkai, intitulada Histórias de 1 minuto.
495
“cronografo alla mano, molte delle novelle (55 divise in 10 capitoli) non sono perfettamente
sincronizzate sulla durata di un minuto. Alcune richiedono ad esempio, soltanto 12 secndi, altre – per
quanto si possa leggere velocemente – anche 2 minuti e 56 secondi.” ORKÉNY. Novelle da un
minuto...resenha de: Renzo Ruffini. Disponível em: <http://www.orologi.it/articoli/oro96/
rece93.htm
.>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
152
específico” – inclusive com “Instruções para uso” – e, ao mesmo tempo, questionar e
esvaecer os seus limites e fronteiras na própria estrutura das produções criadas, István
Örkény coloca em dúvida a própria topologia dos gêneros. Tal postura denuncia uma
das conseqüências da experiência do cotidiano como catástrofe: o questionamento de
um discurso autônomo, único e independente sobre a realidade.
Marcadas pela leveza, que permite um outro nível de percepção e um
despojamento da linguagem, pela rapidez, através da economia de expressão, e pelo
deslocamento, que possibilita a mudança e o recuo do ponto de observação e de
enunciação, essas Histórias de um minuto borram os limites entre a prosa e a poesia,
entre o cômico e o trágico, entre a ficção e o fato (o “discurso dito sério”). A título de
exemplo dessa produção de Örkény, “traduzo”,
496
a seguir, uma das histórias:
Em memória do Dr. K.H.G.
Hölderlin ist ihnen unbekannt?
497
– perguntou o Dr. K. H. G.
enquanto abria a cova para a carcaça de um cavalo.
Quem é esse? – perguntou o guarda alemão.
O autor de Hyperion – disse Dr. K. H. G., que gostava muito de
explicar as coisas – A figura mais significativa do Romantismo
Alemão. E que tal Heine?
Quem são eles? o guarda perguntou.
São poetas – disse o Dr. K. H. G. – Mas de Schiller, certamente,
você ouviu falar?
Esse eu conheço – disse o guarda alemão.
E Rilke?
Esse, também – disse o guarda alemão e, ficando vermelho como
páprica,
498
atirou na nuca do Dr. K. H. G.
496
Tomei como referência a tradução para o português de “In memoriam Dr. K.G.H.”, direta do húngaro,
feita por Piroska Felkai. (Cf. ÖRKÉNY, István. Histórias de 1 minuto, p. 37), porém, com algumas
modificações minhas, a partir da comparação com outras duas traduções para o inglês, também diretas
do húngaro, uma de Judith Sollosy (Cf. ÖRKÉNY. One minute stories. Disponível em:
<
http://www.hungarianquarterly.com/no170/5.html>; a outra, de Margit Köves (Cf. KÖVES.
Translation as a cooperative process. Disponível em: <http://www.megh dutam. com/crittemp.
php?name=crit14.htm&&printer=0>). Também consultei o original em húngaro (Cf. ÖRKÉNY, István. In
Memoriam Dr. K. H. G. Disponível em: <http://www.sulinet.hu/tananyag/97105/on/konfliktus/13l.html
>).
497
Em alemão no original, “Você não é familiarizado com Hölderlin?”.
498
O termo páprica, do húngaro paprika, refere-se ao condimento em pó, vermelho, feito de pimentões
maduros e secos (Cf. PÁPRICA. In: HOUAISS; VILLAR. Dicionário Houaiss da língua portuguesa,
p. 2124). Para aproximar do tom coloquial do texto de Örkény, a melhor tradução seria o “vermelho
feito pimentão”, por outro lado, obscureceria a referência ao termo húngaro paprika como
caracterizador da figura do soldado alemão.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
153
O momento histórico é a Segunda Guerra Mundial, o trágico, o absurdo e o
grotesco desse período é resumido em um breve diálogo. O tom é seco e preciso, não há
ênfase ou sinal aparente de emoção. A catástrofe – a morte de um sujeito como
metonímia de uma ruína maior – manifesta-se de modo contido e concentrado. A
estrutura da narrativa é reduzida a um mínimo: não há cenário preciso – onde estão os
dois interlocutores? Apenas a “cova” e a “carcaça” são citadas, o que, por seu turno,
leva o leitor a conceber um desnível nas posições das duas personagens: o guarda, no
alto, olhando; o Dr. K. H. G., em baixo, cavando –; a quase ausência do narrador –
quase porque, apesar de o texto apresentar uma notação que se aproxima daquela do
texto teatral, o uso da língua alemã na primeira frase ou a referência aos poetas, em
especial Heinrich Heine, escritor alemão cuja ascendência judaica é tão marcante em
sua obra, por exemplo, denunciam o seu olhar –; a escassez de adjetivos e descrições
pormenorizadas – apenas as falas breves, o vermelho da páprica e o tiro, abrupto –;
enfim, o todo da representação permanece enigmático e carregado de ambigüidades.
499
O distanciamento provocado pela economia na estrutura do texto joga a ação para uma
espécie de limbo, um ponto cego – semelhante à seqüência do massacre da família de
Ivo Levi, sob a névoa, em Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos. Devido à
indefinição/inexpressão, obriga-se ao leitor o exercício da interpretação, da reflexão
crítica em vez da identificação emocional. Além disso, ao rejeitar a descrição detalhada,
no sentido da representação clássica, István Örkény questiona a própria validade desse
tipo de representação e aponta o “olhar indireto” para o horror como alternativa para
não se cegar. Como salienta Italo Calvino a respeito da relação entre Perseu e a Medusa:
É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas
não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais
estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume
como um fardo pessoal.
500
499
É inevitável a aproximação dessa análise do texto de István Örkény em oposição à representação
clássica com a leitura que Erich Auerbach faz, em Mimesis, do relato bíblico do sacrifício de Abraão
em contraponto ao estilo homérico. De modo semelhante, mas em um contexto diferente, Auerbach
irá contrapor a “luminosidade”, o “primeiro plano” do texto homérico com a “contraluz”, o “segundo
plano” do texto eloísta: (Cf. AUERBACH. Mimesis, p. 1-20).
500
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 17.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
154
É também em torno desse questionamento que se constroem as novelas “A
família Tóth” e “A exposição das rosas”. Escrita em 1964, “A família Tóth” – que
também possui uma versão teatral do próprio Örkény
501
– narra a chegada de um major
do exército húngaro, aliado da Alemanha, ao pequeno vilarejo de Matraszentanna,
durante a Segunda Guerra Mundial. Na esperança de render benefícios ao filho mais
velho, que se encontra na frente de batalha, sob as ordens do enlouquecido major, a
família Tóth
502
o hospeda com muito sacrifício. Durante a sua estada no pequeno
vilarejo, o major irá submeter os Tóth às mais absurdas exigências.
Nessa narrativa, a guerra é tratada como um fato “ligado menos ao mundo dos
homens que ao reino da natureza”,
503
não há questionamento ou reflexão das
personagens a seu respeito. Por outro lado, tudo é narrado de forma irônica, hilariante e
perversa. O absurdo e o grotesco são utilizados como elementos de demolição e
desconstrução. A história já começa com um inusitado diálogo entre Lajos Tóth, o chefe
da família, e um doutor em direito, mas que “ganha duas vezes mais com a limpeza das
privadas” (FT, p. 86); a conversa gira em torno do cheiro da privada dos Tóth:
Diante da casa da família Tóth, na rodovia, havia um enorme barril
sobre rodas, de odor desagradável, de onde saía um cano estriado, da
grossura de um braço, que atravessava a cerca, passava pelos canteiros
de dálias, seguia rente à parede lateral da casa e ia direto para a
privada aninhada nas sombras das moitas de goivo.
Bem, devemos bombear ou não? – perguntava o dono do barril a
Lajos Tóth.
Isso depende: se estiver fedendo, sim. Mas eu já me acostumei
tanto com o cheiro que essa decisão deve ser tomada pelo senhor
doutor – dizia Tóth.
O dono do barril respirou fundo, algumas vezes, enquanto mantinha os
olhos cerrados. Finalmente, pronunciou-se assim:
Serei franco: o cheiro de sua privada, senhor Tóth, no momento, é
um tanto perceptível, mas não chega a ser desagradável.
501
A versão teatral, encenada pela primeira vez em 1967, obteve grande êxito e se tornou um dos textos
representativos do Teatro do Absurdo da Europa Centro-Oriental, influenciando a dramaturgia
húngara posterior (Cf. KÖVES. Translation as a cooperative process. Disponível em:
<http://www.megh dutam. com/crittemp. php?name=crit14.htm&&printer=0>; GYÖRGYEY. Lost
dreams, missed oportunities, Disponível em: <http://www.megh dutam. com/crittemp. php?
name=crit14.htm&&printer=0
>.
502
Segundo Arthur Nestrovski, o nome Tóth é tão comum em húngaro quanto o Silva em português. Cf.
NESTROVSKI, Arthur. O ferrão da ironia, p. 86-89.
503
ASCHER. Prefácio, p. 8.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
155
Mas, se tem cheiro, então o senhor deve bombear – observava
Tóth. – Afinal, é a vida do nosso querido Gyula que está em jogo, meu
caro doutor. (FT, p. 86)
A preocupação de Lajos Tóth explica-se pelo fato de o major encontrar-se com
os nervos abalados, estando sensível a alguns odores. Ao longo da narrativa, a doença
do major, causada pelos desdobramentos da guerra, vai ganhando contornos cada vez
mais sombrios, chegando – e também levando a família Tóth, em especial, Lajos – à
completa insanidade; tal gradação também é acompanhada pelo tom da narrativa que do
burlesco encaminha-se para o tragicômico. Esse movimento que se percebe no
desenvolvimento do tema da loucura denota a forma como István Örkèny trabalha o
grotesco
504
nessa novela. Se, de início, a loucura – um motivo característico do
grotesco, uma vez que permite um olhar diferente para o mundo –, é tratada de forma
cômica – o cômico grotesco, baseado no princípio do riso –, em um “tom de bobagem
alegre”,
505
ao final da narrativa, ela adquire tons sombrios e trágicos, quando é colocada
em primeiro plano a força que converte o ser humano em cadáver, no momento em que
a guilhotina que servia para cortar as caixas de papel transforma-se em máquina de
matar – nos termos de Mikhail Bakhtin, lendo Wofgang Kayser e sua teoria do grotesco
romântico e modernista, “o habitual e o próximo torna-se subitamente hostil e exterior.
É o nosso mundo que se converte de repente em mundo dos outros” (grifos do autor).
506
Graças ao modo como István Örkény trabalha o grotesco – do riso
ambivalente, alegre e burlador, para o humor negro, irônico e sarcástico –, o mundo é
tomado como algo extrínseco, terrível e injustificado. Os contornos absurdos ganham
nitidez logo nas primeiras páginas da novela, quando somos informados de que Gyula
Tóth, o primogênito da família, que supostamente estaria sob as ordens do major na
frente russa, o que justificaria a presença deste na casa dos Tóth, já morreu no campo de
batalha. Os únicos a saberem desse fato somos nós, leitores, e Tio Gyuri, uma
personagem paradigmática do universo de István Örkény. Com o estouro da guerra, o
carteiro do pequeno vilarejo foi convocado e quem o substituiu foi esse “sujeito
504
Tomo a noção de grotesco e as suas nuanças a partir do importante estudo de Mikhail Bakhtin sobre a
obra de François Rabelais (Cf. BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p.
1-51).
505
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 34.
506
BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p. 42.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
156
corcunda, meio apalermado e meio gago” (FT, p. 91) a quem todos chamam de Tio
Gyuri. O único problema dessa personagem – e que segundo o narrador “não chegava a
ser grave” (FT, p. 91) – é um total senso de simetria. Ele enxerga todas as coisas a partir
de uma harmonia ilusória e detesta tudo o que possa vir a perturbá-la. Tal senso de
simetria desempenhará um importante papel na entrega das correspondências. Para as
pessoas consideradas representantes da simetria humana, ele só entrega as notícias boas
da frente de batalha; enquanto os “assimétricos” só recebem as más notícias ou não
recebem notícia nenhuma. Assim, Lajos Tóth, considerado por Tio Gyuri o “superlativo
da simetria humana” (FT, p. 91), não receberá o telegrama comunicando a “morte
heróica” (FT, p. 90) do filho.
Como se pode perceber, o “ferrão da ironia” (FT, p. 108) ocupa lugar
privilegiado em “A família Tóth”. O sentido de demolição que ele inocula, carregado de
subentendidos, adquire, ao longo da leitura, uma coloração menos simples de se
interpretar. Assim, como adverte Arthur Nestrovski:
Basta chegar ao fim da primeira linha para experimentar o que ele
[István Örkény] mesmo chama de “ferrão da ironia” queimando. Mas
também basta a leitura dessa mesma linha para se perceber que o
humor, aqui, é uma última arma, uma última chance, ou a última face
apresentável do desespero. A corrosão se espalha por todos os lados,
incluindo o próprio escritor, e seu maior esforço, então, é afirmar a
presença de algum objetivo além da mera desmistificação.
507
Nesse sentido, faz-se interessante demonstrar como a questão dos judeus do
pequeno vilarejo é trazida na novela.
508
Os conhecimentos dos fatos referentes aos
judeus da Europa Centro-Oriental durante a Segunda Guerra levam a crer que eles
foram deportados e, quiçá, exterminados. Não há, entretanto, nenhuma referência direta
a esses acontecimentos no texto. István Örkény conta essa experiência extrema,
vivenciada por ele mesmo, e transmite esse acontecimento impossível por via do
deslocamento e do distanciamento; a informação se dá pela ausência/fratura da mesma.
507
NESTROVSKI. O ferrão da ironia, p. 88.
508
Assim como na literatura de Danilo Kiš, como se confirmará na segunda seção do próximo capítulo
desta tese, a produção ficcional de István Örkény que se refere à experiência dos judeus durante a
Segunda Guerra Mundial não se enquadra no que se convencionou chamar de “literatura do
holocausto”. Os textos dos dois autores que fazem alusão àquela experiência histórica são desprovidos
do pathos e da militância que o tema costuma suscitar. Ao contrário do tom altissonante, os dois
autores optam pela contenção estilística e enunciativa e servem-se da ironia para atingir os seus
objetivos de exprimir a experiência do horror.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
157
Os judeus não estão mais lá, tem-se apenas alusões a eles na fala das personagens ou do
próprio narrador. Assim, em vários momentos do texto, alguém se refere a um
estabelecimento – um cinema (FT, p. 87-88; 131), um restaurante (FT, p. 93;95;
121;129;150) – que pertencia a uma família tal, mencionando um sobrenome judeu;
como no momento em que a senhora Tóth visita o Cine Apolo e trava um diálogo
aparentemente prosaico com o “senhor Aszódi, o novo proprietário” (FT, p. 87). Ao
longo do curto diálogo, repetem-se exaustivamente as expressões: “ainda no tempo do
Senhor Berger”; “Trabalhei doze anos para a família do senhor Berger”; “Antigamente,
no tempo da família Berger”; “No tempo da família Berger”; “O vaporizador estava lá,
pendurado sobre o mesmo prego dos tempos da família Berger” (FT, p. 87-88); tais
afirmações são intercaladas por uma espécie de estribilho: “novo proprietário”, que se
repete sete vezes. Como na história “Em memória do Dr. K. H. G.”, aqui, István Örkény
também não comenta nem explica nada, simplesmente constrói a informação pelo
método dramático. A repetição excessiva da “ausência” dos Berger e da “presença” do
novo proprietário tem a tarefa de, para dizermos com Gilles Deleuze,
509
apontar o
retorno de algo que não pode ser substituído, ao mesmo tempo em que o distanciamento
e a imparcialidade irônica da voz narrativa tornam ainda mais corrosivo o efeito dessa
repetição.
Ao optar pelo deslocamento e pelo distanciamento, ancorado pela
ambivalência difusa do grotesco, István Örkény decide-se tamm por uma ética
específica que consiste em implicar o leitor na construção do sentido do texto. Assim,
como nas Histórias de um minuto, em vez de apenas se identificar emocionalmente – ou
se intoxicar (por meio da “catarse culinária”) – com o narrado, esse leitor é provocado a
se envolver de forma crítica e continuar, pelas vias do pensamento, o duro trabalho
dessa escrita.
Todavia, provocar a identificação emocional do espectador, assumir a
expressão do pathos é o objetivo do jovem e inexperiente diretor-assistente Iron Korom,
protagonista da novela “A exposição das rosas” (1977). Realizar um documentário
sobre as horas finais de três pacientes desenganados, com o intuito de ajudar seus
contemporâneos a compreender que a morte faz parte também da vida, é o seu grande
509
Cf. DELEUZE. Différence et repetition, p. 1-2.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
158
projeto. A ambivalência aqui já começa na estrutura da narrativa. A novela, que foi o
último trabalho de Örkény, constrói-se como uma espécie de making of do
documentário de Iron Korom. É preciso esclarecer que esse making of não é um “diário
de filmagem” tradicional, pois, ao longo da leitura, podemos perceber um embate sutil
entre a voz narrativa e a ética que perpassa a filmagem do documentário de Iron Korom.
Tal embate é evidenciado logo nas duas epígrafes da novela. Na primeira,
retirada dos escritos de Wittgenstein, “A morte não é uma das experiências da vida; a
morte não pode ser vivida”, o sentido do vivido é colocado à prova diante da morte, e
vice-versa. István Örkény parece perguntar: se a experiência da morte está além do
vivido, ela pode ser representada? A segunda epígrafe, do escritor húngaro Dezsö
Kosztolanyi, por sua vez, complexifica ainda mais essa questão: “A morte é a única
musa”. Filhas de Zeus e de Mnemosýne, as Musas são potência de evocação. Elas
podem dizer tudo: “sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos e sabemos, se
queremos, dar a ouvir revelações”.
510
Sob sua inspiração, o aedo vê o que nunca viu e se
lembra do que nunca conheceu. Assim, a partir das duas epígrafes, a experiência da
morte adquire um caráter ambíguo: potência de evocação ou experiência para além da
vivência? Estabelece-se, assim, uma tensão dialética entre a memória e o esquecimento,
a necessidade e a impossibilidade da representação de situações limite.
Por seu turno, a personagem Iron Korom não vê problemas ou tensões em seu
projeto de filmar o/no limite da morte. Afinal, para ele, a câmera é um instrumento
privilegiado para retratar esse tema:
Estou convencido da importância de meu filme. A televisão é o
primeiro veículo da História das Artes que nos oferece a possibilidade
de apresentar, aos espectadores, pacientes que sofrem de doenças
incuráveis, de tal modo que a filmagem de seus momentos mais
dramáticos pode tornar-se um bem público para milhões de pessoas.
Gostaria de levar minha tarefa a cabo com tato suficiente para evitar
todos e quaisquer efeitos chocantes, sem ofender a sensibilidade ou o
bom gosto dos espectadores. (ER, p. 14)
O jovem diretor demonstra uma crença ingênua – ecos do chamado “realismo
socialista” – no poder da imagem-movimento em provocar uma “impressão de
realidade”, “um sopro de autenticidade”, sem se ocupar, entretanto, em pensar se tal
representação “imediata” é desejável. Além disso, dentro do recorte proposto pela
510
HESÍODO. Teogonia, p. 107, versos 27-28.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
159
personagem, não há lugar para a representação da dor extrema, para além de sua
contenção estóica: “J. Nagy morreu na tarde do dia seguinte, exatamente como
desejava: foi uma morte cinematográfica, atraente, sem qualquer intervenção médica ou
qualquer fato assustador” (ER, p. 71). Esses e outros impasses do projeto de Iron Korom
serão colocados em questão pela voz narrativa. Se o diretor procura, o tempo todo,
marcar a objetividade documental de sua realização, o narrador, muitas vezes nas
entrelinhas, desvela a falácia de tal empreendimento, denunciando a construção e
manipulação das cenas e corroendo os alicerces do projeto de Iron Korom. Filma-se,
corta-se, monta-se como numa ficção: “Iron acalmou o médico: ele deveria prosseguir,
recitando o poema, tranqüilo. O que for necessário, ele irá cortar mesmo durante a
edição” (ER, p. 26). Há o recurso da repetição, para a câmera, de muitas passagens; a
morte transmuta-se em pose: “Ele deu os parabéns ao médico e a Mariska, porque,
afinal de contas, haviam representado os seus difíceis papéis com tanta fidelidade. Nem
se podia perceber que se tratava de uma encenação” (ER, p. 28). Enfim, o poder de
objetividade documental da imagem-movimento revela-se mais um logro que um
ganho.
Talvez seja por isso que a novela de István Örkény assuma a forma de um
making of, um documentário do documentário: o filme, a narrativa em processo e em
julgamento (construção), e não o formato de algo concluso, como a constatação de um
veredicto (conclusão).
511
Assim, a própria conformação da narrativa, ao colocar a
representação hiper-realista em xeque, alude a uma possibilidade outra de representação
da experiência da morte, uma representação em que se estabeleça “o jogo mutuamente
fecundante entre a imaginação e a reflexão”,
512
e não o desejo puro e simples de
reprodução e identificação. É preciso ressaltar ainda que, além de revelar outras dobras
do texto na entrelinha da narrativa, István Orkény demarca uma outra temporalidade,
uma outra voz narrativa – contemporânea à exibição do documentário na televisão –
através de notas de rodapé e de uma resenha do documentário, que aparece como anexo
ao final do texto. Tais notações, além de ficcionalmente atestarem a realização e a
finalização do documentário, permitem ao leitor “entrever” o resultado do projeto de
Iron Koron.
511
Cf. FELMAN. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino, p. 17-47.
512
SELIGMANN-SILVA. A história como trauma, p. 95.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 2 – Representar a Guerra
160
Tomado como marca registrada das narrativas de Örkény, o humor também se
encontra presente em “A exposição das rosas”. Mas, se em “A família Tóth” é o humor
irônico e corrosivo que predomina, em “A exposição das rosas”, ao contrário, uma
relação peculiar se estabelece entre humor e melancolia. Assim, diria Italo Calvino, “a
melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso
corpóreo (...) e põe em dúvida o eu e o mundo, como toda a rede de relações que os
constituem”.
513
Na verdade, mais do que o encontro entre humor e melancolia, o que se
percebe na leitura dos textos de István Örkény é a afirmação da alegria e da melancolia
como duas forças, dois sentidos que se afirmam na feitura e na textura da narrativa; o
que nos leva a retomar a noção de “alegria melancólica”, desenvolvida por Idelber
Avelar:
Pois é a alegria na melancolia – a alegria que deriva de que ainda nos
melancolizemos ante a barbárie política – que prova que ainda não
fomos narcotizados pela pilha de catástrofes a ponto de tomá-las como
naturais; pela mesma razão, é a melancolia na alegria, o
reconhecimento de um limite, uma impotência fundamental da
afirmação gaia o que evita que a alegria caia na felicidade
complacente própria dos que são cegos à catástrofe.
514
Longe da felicidade complacente dos cegos e dos crentes em finais redentores,
István Örkény arrisca-se a responder às questões colocadas ao longo deste capítulo:
como narrar o horror? Como transmitir o ponto cego de uma experiência para além da
simples informação? O que significa acertar as contas com o passado? Através do
humor, ora cômico, ora melancólico, do distanciamento e da invenção, a sua literatura é
um exercício lúcido de reinvenção da memória como restituição, tarefa impossível, mas
necessária.
513
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 32.
514
AVELAR. Alegorias da derrota, p. 188.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
161
CAPÍTULO 3
A INVENÇÃO DA MEMÓRIA
Assim como os testemunhos citados acima despertam
dúvidas e desconfiança, um relato de Tcheliustnikov,
referente a Herriot, merece ser citado, mesmo se, à
primeira vista, parece não ser mais que um produto de
sua imaginação. Repito-o aqui pois é difícil duvidar de
sua veracidade. Enfim, tudo leva a crer que certos relatos
de Tcheliustnikov, por mais estranhos que pareçam,
apóiam-se sobre fatos reais. A prova disso é que o relato
que se segue foi confirmado pelo próprio Herriot, aquela
intelligence rayonnante, nas palavras de Daladier. De
modo que farei o possível para contar aquele encontro
remoto entre Tcheliustnikov e Herriot, fugindo por um
momento do horrível pesadelo dos documentos que
atravancam os relatos, despachando o leitor desconfiado
e cético para a bibliografia já mencionada, onde ele
encontrará todas as provas necessárias. (Talvez tivesse
sido mais sensato optar por outra forma literária, um
ensaio ou um estudo, para poder utilizar todos os
documentos como se deve, mas duas coisas impediram-
me de fazê-lo: por um lado, não seria correto citar, como
fontes, os testemunhos diretos de pessoas vivas e
confiáveis; por outro lado, o prazer irresistível de contar,
esse prazer que dá ao escritor a noção quimérica de que
cria o mundo e que, portanto, o transforma, como se
costuma dizer).
Danilo Kiš, Um túmulo para Boris Davidovitch
3.1. Quem reivindica a verdade histórica?
Em sua reflexão a respeito da “invenção das tradições”, Eric Hobsbawm aponta
para o caráter consciente e deliberado do processo de construção da nação e de suas
tradições. Tal projeto caracteriza-se, entre outras coisas, pela criação de uma
continuidade com um passado histórico, que é “bastante artificial”.
515
Longe de
515
HOBSBAWM. Introdução: a invenção das tradições, p. 9-10; HOBSBAWM. A produção em massa
de tradições: Europa 1879 a 1914, p. 271-272.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
162
configurar-se como um produto natural/originário da história, ou de fazer parte da
essência imutável de uma coletividade específica, o projeto de invenção de
nacionalidades é produto de um processo histórico exato: a constituição do “Estado-
nação”; e, como confirma o mesmo Eric Hobsbawn, “não faz sentido discutir nação e
nacionalidade fora desta relação”.
516
A identidade nacional estaria, portanto, relacionada
ao Estado-nação, sendo atravessada por interesses políticos, ideológicos, culturais e
econômicos daqueles que decidem quem é incluído e quem é excluído dos contornos
territoriais e sociais. Isso significa que, nas palavras de Ivan Nekovic: “a ‘identidade
nacional’ pode ser construída sobre uma variedade de bases sobrepostas deixadas por
memórias históricas e experiências coletivas passadas e retransmitidas, porém
transformadas mediante o processo de socialização”.
517
São essas mesmas bases
sobrepostas que constituem categorias como as identidades étnicas e religiosas, o que
confirma o caráter brumoso das mesmas.
Muitas vezes sujeito a manipulações políticas e falsificações históricas, o
projeto de nação será continuamente construído e reconstruído, recorrendo-se, para
tanto, a árvores genealógicas arquitetadas, mitos de origem modelados,
518
línguas
reformadas; enfim, tradições inventadas. Nesse contexto, torna-se evidente o caráter
estritamente cultural e construído/inventado da forma como são percebidas as noções de
tempo, espaço e memória, que, ao contrário de serem dimensões estanques percebidas
de modo idêntico pelas diferentes culturas, estão implicadas por categorias sociais e
culturais, sendo reescritas, re-inventadas, re-imaginadas.
519
516
HOBSBAWM. Nações e nacionalismo desde 1780, p. 19.
517
NEKOVIC. O drama iugoslavo, p. 42.
518
Pode-se citar o eterno debate a respeito de quem chegou primeiro à planície do Kosovo. Tal querela
aparece no filme Um olhar a cada dia, de Theo Angelopoulos, em uma cena na qual é representada
uma discussão entre albaneses e sérvios em um restaurante de Belgrado (Cf. UM OLHAR a cada dia.
Direção Theo Angelopoulos... 1995). A mesma contenda aparece de forma significativa nos livros
Três cantos fúnebres para Kosovo e Dossiê H., de Ismail Kadaré (KADARÉ. Três cantos fúnebres
para Kosovo, p. 69; KADARÉ. Dossiê H., p. 79). O autor albanês volta à questão no “texto-
manifesto”, de 1999, El infierno lleva por nombre Kosovo. Disponível em: <http://www.
redegalega.org/synapsis/178c/ syn178-c:htm>. Sobre as fontes históricas bizantinas a respeito da
região, ver: JOVANOVIC. Iugoslávia, uma constelação cultural, p. 62-64.
519
Remeto novamente à questão do Kosovo, agora à polêmica travada em torno do livro A short
history of Kosovo, de Noel Malcolm, lançado em 1998. Para o autor, o conflito entre sérvios e
albaneses a respeito do Kosovo não está enraizado na Idade Média, como é sugerido, por exemplo,
por Ismail Kadaré, em Três cantos fúnebres para Kosovo, mas na colonização da maioria albanesa
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
163
Têm-se dois exemplos claros, para ficar apenas nesse número, na Europa
Centro-Oriental, do vínculo entre memória e tradição no processo contínuo de escrita da
história nacional e suas implicações com o espaço e com o tempo: a Eslovênia e a
Grécia. No caso da Eslovênia, Adriana Pagano afirmava, em tese defendida em 1996,
que, a partir da dissolução da Iugoslávia, no início dos anos 90 do século XX, e da
consolidação da Eslovênia como estado nacional independente, produziu-se um
movimento de revisão histórica das origens do estado então emergente, movimento este
que intentava traçar uma ascendência etrusca para o povo esloveno, em substituição à
interpretação até então relacionada a uma linhagem sérvia, “espectro de uma nação
outra, rejeitada e temida (...)”.
520
Quanto à autodenominada “três vezes milenar” Grécia, a questão da tradição
nacional, que irá se firmar no século XIX, configura-se, conforme reflexão de
Stephanos Pesmazoglou,
521
remontando a um passado o mais distante possível, o
presumido “passado imemorial” de que fala Benedict Anderson,
522
e silenciando a
respeito das influências exteriores, orientais e ocidentais, que apontam para
descontinuidades e rupturas. Tem-se, assim, forjado um poderoso tríptico composto pela
Antigüidade – em especial a época micênica –, Bizâncio e pelos tempos modernos que
assestaria para as noções de raça e de pureza, escondendo, na medida do possível, a
mescla. Dessa poderosa corrente, encontra-se excluído, apagado, o período de domínio
otomano. Nas palavras de Stephanos Pesmazoglou: “Pôr em relevo uma suposta
pelos sérvios, no século XIX. Tal polêmica foi travada nas páginas da revista americana Foreign
Affair no final de 1998 e início de 1999. Primeiramente, uma resenha de Aleksa Djilas questionava
os argumentos de Noel Malcolm, defendendo, entre outras coisas, a origem dos conflitos no Kosovo
na Idade Média (Cf. DJILAS. Imagining Kosovo: a biased new account fans western confusion. Disponível
em: <http://www.foreignaffairs.org/19980901fareviewessay1422/aleksa-djilas/imagining-kosovo-a-biased-
new-account-fans-western-confusion.html.>; em seguida, aparece a resposta de Noel Malcolm e de
outros autores, junto à réplica de Djilas (Cf. MALCOLM; DJILAS et al. Is Kosovo real? The battle
over history continues. Disponível em: <http://www. foreignaffairs.org/19990101faresponse957/ noel-
malcolm-aleksa-djilas/is-kosovo-real-the-battle-over-history-continues.html>). É relevante ainda, para
entender a polêmica em torno do livro de Noel Malcolm, entrar em contato com diversos artigos de
estudiosos do Instituto de História, da Academia Sérvia de Ciências e Artes (Cf. TERZIC (ed.).
Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Disponível em: <http://www.kosovo.net/
nmalk.html>). Foi ao tomar conhecimento dessa querela que me veio a provocação que dá título a esta
seção secundária deste capítulo: “Quem reivindica a verdade histórica?”.
520
PAGANO. Percursos críticos e tradutórios da nação, p. 41-42.
521
PESMAZOGLOU. Los intelectuales griegos y el repliegue helenocéntrico, p. 58.
522
ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 29.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
164
homogeneidade pressupõe outra circunstância prévia: minimizar até o silêncio, por
decisiva que possa ter sido, a contribuição criativa de outros grupos étnicos ou
religiosos” (tradução minha).
523
No caso dos quatrocentos anos de domínio otomano,
estes só interessariam à “historiografia helenocêntrica”, como sinônimo de resistência e
sublevação.
524
O lugar da memória, suas (im)possibilidades e impasses, afigura-se, portanto,
como elemento fundamental no exercício de invenção e imaginação da nação. Assim,
entre outros artifícios, datas serão celebradas como marcos ritualísticos da conformação
de uma identidade nacional,
525
mais especificamente, de um discurso nacional,
compreendido como
conjunto de produtos, com graus variados de formalização –
incluindo-se aí, sem dúvida, a própria literatura –, no qual se
concretiza um quadro de referências simbólicas, um conjunto de
valores de natureza cultural a que genericamente se denomina
imaginário nacional.
526
No caso da Europa Centro-Oriental, o dia 28 de junho de 1389, data da
primeira Batalha de Kosovo Polje,
527
em que a “coalizão bálcano-cristã” foi massacrada
pelo exército otomano, cumpre esse papel de “continente” para a acomodação de
“arcabouços identitários”. As lembranças de tal batalha ressoam como fatores
determinantes para a construção da identidade nacional de alguns povos dessa região,
em especial, os sérvios e os albaneses, exercendo papel decisivo nas suas literaturas.
Também os esquecimentos sobre o mesmo evento cumprem papel relevante, colocando
em evidência, deixando à mostra as lacunas, os hiatos, os vazios. Nesse movimento
oscilatório do lembrar e do esquecer, elabora-se uma espécie de “reciclagem da derrota”
523
“Poner de relieve una supuesta homogeneidade necesita outra condición previa: minimizar hasta el
silencio, por decisiva que pueda haber sido, la contribución creativa de otros grupos étnicos o
religiosos (...)” (PESMAZOGLOU. Los intelectuales griegos y el repliegue helenocéntrico, p. 58).
524
Cf. PESMAZOGLOU. Los intelectuales griegos y el repliegue helenocéntrico, p. 59.
525
Sobre o processo de ritualização e formalização de datas, ver o comentário de Eric Hobsbawm a
respeito da transformação do dia 1º de maio em “feriado geral trabalhista na comunidade européia”:
HOBSBAWM. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914, p. 291-295.
526
BRANDÃO. Grafias da identidade, p. 11-12.
527
Outra batalha seria travada, na mesma planície, menos de um século depois, em 1448, tendo como
protagonista histórico o húngaro János [João] Hunyadi (Cf. JOVANOVIC. Iugoslávia, uma
constelação cultural, p. 60; JOVANOVIC. À sombra do quarto crescente, p. 183).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
165
– para retomar a expressão utilizada pela personagem do chefe da intendência, no
romance Tambores da chuva, de Ismail Kadaré
528
– ao criar-se uma guerra segunda,
uma sombra inexpugnável para quem quer que seja, em tempo algum. É como se esses
povos se relançassem, intermitentemente, na batalha de Kosovo Polje como espelho
distorcido, miragem de si mesma, imagem de sua perda: “E pode-se vencer uma perda,
uma miragem? É como tentar escavar o que já é um buraco. Ele já é o vazio, nada sofre,
ao passo que você pode se arruinar na escavação...”, indaga-se a personagem do chefe
da intendência, no mesmo romance.
529
Assim, a constituição de identidades coletivas a
partir de Kosovo Polje implica, necessariamente, na essencialização da pertença
(inclusão), degenerando na recusa (exclusão), supostamente tão essencial e imutável
quanto a primeira, do outro da relação identitária, e tudo que se relacione com ele. É o
que constatam Max Roth e Willy Norton, personagens do romance Dossiê H, de Ismail
Kadaré. Os dois estudiosos irlandeses, na primeira metade do século XX, chegam a uma
pequena cidade da Albânia em busca da “chave” para decifrar o enigma de Homero.
530
Diante de um mapa da península balcãnica, Willy Norton reflete:
Durante mais de mil anos, albaneses e eslavos haviam se entrematado
interminavelmente naquelas terras [Albânia do Norte, Terras Altas,
Kosovo, Antiga Sérvia]. Batiam-se por qualquer coisa: terras,
fronteiras, pastagens, água; não seria de espantar se combatessem
pelas estrelas do céu. E como se isso não bastasse, disputavam
também a antiga epopéia, que, para completar a tragédia, florescia nas
duas línguas, albanês e servo-croata. Cada povo teimava em se
proclamar o criador da epopéia, reduzindo o outro à condição de
ladrão, ou, na melhor das hipóteses, imitador.
531
A Kosovo foi conferido o papel de berço, “pátria original”
532
do povo sérvio,
ao mesmo tempo em que Kosovo Polje adquiriu ares mitológicos, inserindo-se de forma
premente, já no século XV, na literatura produzida na região. Como afirma Aleksandar
Jovanovic:
528
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 163
529
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 163.
530
Pode-se ler aqui uma alusão aos estudos de Milman Parry, que se dedicou à comparação da poesia
homérica com o canto de rapsodos da antiga Iugoslávia (Cf. PEREIRA. Estudos de História da
cultura clássica, v.1, p. 51-52.).
531
KADARÉ. Dossiê H, p. 78.
532
THOMAZ. Bósnia-Herzegovina: a vitória da política do medo, p. 10.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
166
A saga de Kóssovo já tem seis séculos e conseguiu penetrar não
somente em todos os poros da História dessa pequena nação eslava da
Península Balcânica, mas também resultou na criação de uma poesia
épica oral, em versos decassílabos, transmitida de geração em geração,
ao longo do tempo.
533
Uma característica importante dessa literatura épica oral é a sobreposição de tempos, no
caso as batalhas de 1389 e 1448, e a convivência de personagens ditas históricas – como
Marko Kraljevic, que emerge nos cantos épicos, em servo-croata, como justiceiro,
defensor dos pobres e dos oprimidos
534
– com criaturas fantásticas e heróis mitológicos
– como a fada Ravijojla –, em uma confluência entre história e mito. Como no projeto
de Fernando Pessoa, em Mensagem, “a lenda se escorre a entrar na realidade”.
535
Aleksandar Jovanovic chega a falar em “sebastianismo” dos eslavos meridionais e,
particularmente, dos sérvios: “a saudade por aquilo que foi e não é mais, ou por aquilo
que poderia ter sido, e jamais foi”.
536
Assim como as datas que serão retomadas como marcos ritualísticos, ganha
relevo o papel do discurso literário na construção de uma história nacional, porque a
linguagem deste oferece à nação modelos de produção retórica relevantes para a
construção do tecido nacional. Nesse sentido, o papel da literatura épica – e remeto aqui
às produções da épica oral dos povos dos Bálcãs e toda a literatura posterior da região
que irá dialogar com essa forma – é de suma importância, pois, nas palavras de Adriana
Pagano:
O poema épico fornece à nação um modelo discursivo de celebração
ritualística da fundação, das origens, dos ancestrais. Por estar
associado com as antigas culturas, sobretudo com a greco-latina, esse
modelo – que perpetua essas civilizações por meio da exploração do
533
JOVANOVIC. À sombra do quarto crescente, p. 176.
534
Filho do nobre sérvio Vukasin Mrnjavcevic, Marko Kraljevic (1331-1395) será a figura mais
conhecida das tradições épicas registradas em servo-croata. Aleksandar Jovanovic cita duas
bugárchtitze – poemas épicos populares, de 12 a 20 sílabas, com cesura na sétima e oitava sílabas –,
registradas pelo escritor da Dalmácia, Petar Khérktorovitch, em 1555, nas quais a figura de Marko
Kraljevic aparece (Cf. JOVANOVIC. À sombra do quarto crescente, p. 184-185).
535
PESSOA. Mensagem, p. 23 (poema Ulysses). Cito todo o poema: “O mytho é o nada que é tudo./ O
mesmo sol que abre os céus/ É um mytho brilhante e mudo –/ O corpo morto de Deus,/ Vivo e
desnudo.// Este, que aqui aportou,/ Foi por não ser existindo./ Sem existir nos bastou./ Por não ter
vindo foi vindo/ E nos creou.// Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade./ E a fecundal-a
decorre./ Em baixo, a vida, metade/ De nada, morre”.
536
JOVANOVIC. À sombra do quarto crescente, p. 194.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
167
canto épico, da rapsódia e do relato oral, que permitem construir uma
memória – revela a leitura de um passado idealizado.
537
Em círculos nacionalistas, as idiossincrasias do discurso épico servirão para
legitimar uma história nacional mítica, formada por mártires, heróis e vilões. No caso
das narrativas históricas e do discurso literário sobre Kosovo Polje, é importante
ressaltar que tais idiossincrasias se encontram na interseção entre diferentes línguas
balcânicas, e em cada uma dessas línguas, especialmente ao se tratar do servo-croata e
do albanês; a persona de “herói e/ou vilão” – que querem dizer muito mais do que
simplesmente o antagonista e o protagonista, porquanto apontem para as noções de bem
e mal; igual e diferente; vencedor e derrotado; “humano” e “desumano”; Eu e Outro... –
é, exatamente, o avesso da outra. Como escreve Willy Norton nas páginas de seu diário,
em Dossiê H:
Quando comparamos a poesia épica de uma língua com a da outra, é
como se virássemos de cabeça para baixo, ou olhássemos num espelho
mágico em que os heróis de uma variante são vilões da outra; o branco
é o negro; a alegria, tristeza; a vitória, derrota, e assim por diante, tudo
ao revés.
538
Em Três cantos fúnebres para Kosovo, esse estado de coisas é apresentado de
forma bastante nítida, quando a figura de Marko Kraljevic – o grande herói das
tradições épicas em servo-croata – aparece como o comandante do exército sérvio que
traiu os Bálcãs, combatendo ao lado dos turcos: “Tudo aconteceu como tinha de
acontecer: repetiram-se as fórmulas, os gestos, os encantamentos de outrora. As
trombetas soaram, cantaram-se hinos ao Cristo e à Virgem, em seguida louvores ao
príncipe Lazar e imprecações contra o traidor Kraljevic”.
539
A mesma ambivalência
“escorre” para as narrativas históricas, em que identidades nacionais são mobilizadas,
na dinâmica da (des)(re)construção, para servir em alguns eventos e lugares, mas não
em outros.
Para as nações emergentes do século XIX e início do século XX, como é o caso
daquelas da Europa Centro-Oriental, a celebração e a posse de um passado “remoto,
537
PAGANO. Percursos críticos e tradutórios da nação, p. 48.
538
KADARÉ. Dossiê H, p. 104.
539
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 39. Ver também as páginas 21 e 30.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
168
perdido nas brumas do tempo”,
540
através de uma epopéia nacional, representa a
possibilidade de imaginar e significar a nação, de vincular memória, território e origem,
“como parte de um projeto que demarca uma trajetória a ser percorrida”.
541
Ao rastrear o ciclo de produções a respeito de Kosovo Polje, Aleksandar
Jovanovic
542
percorre a literatura sérvia do século XV, quando começam a aparecer o
ciclo de escritos épicos, vinculados à poesia oral, sobre a batalha, até o século XX, com
a série de poemas intitulada “O Campo dos Melros”, de Vasko Popa (1922-1991). O
caso de Popa é significativo para se pensar o diálogo que a literatura produzida nos
Bálcãs, na segunda metade do século XX, estabelece com o legado épico. Publicados
em 1972, no livro Terra ereta, os poemas de Vasko Popa retrabalham sobre uma outra
forma – apesar do núcleo histórico comum como base, a estrutura é fragmentária, não
possuindo o caráter totalizante e contínuo do texto épico – e a partir de um viés outro –
não há o tom glorificador sentido em seus “precursores” – toda a longa tradição da
literatura sérvia. Estabelece-se, portanto, uma via dupla de influência, pensando o termo
“influência” a partir do que disse Borges em “Kafka y sus precursores”,
543
na qual não
só os antigos escritos épicos influenciam Vasko Popa, como também este tem grande
influência na leitura dos primeiros. Esse trânsito de leituras não sé dá de forma
puramente harmônica, mas é atravessado pela “natureza agonística” da criação literária,
“colocando em contínuo choque as forças da influência e da individualidade”.
544
Popa,
com seu “olhar intersemiótico”, faz, em “O Campo dos Melros” – “Kosovo Polje” em
servo-croata –, um balanço dos anseios e angústias identitárias dos sérvios,
rearticulando e problematizando, via signo poético, os mitos de sua nação.
545
A título de
exemplo, cito o poema “Batalha no Campo dos Melros”:
540
HOBSBAWM. Introdução: a invenção das tradições, p. 10.
541
PAGANO. Percursos críticos e tradutórios da nação, p. 49.
542
JOVANOVIC. Iugoslávia, uma constelação cultural, p. 49-64; JOVANOVIC. À sombra do quarto
crescente, p. 176-191.
543
BORGES. Kafka y sus precursores, p. 107-109. Sobre a noção de influência no ensaio de Jorge Luis
Borges, ver: WERKEMA. Entretextos: Borges e Machado de Assis, p. 167-177.
544
WERKEMA. Entretextos: Borges e Machado de Assis, p. 171.
545
Sobre o caráter intesemiótico da poesia de Vasko Popa, ver: JOVANOVIC. A poesia intersemiótica de
Vasko Popa, p. 15-24; JOVANOVIC. À sombra do quarto crescente, p. 192-210.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
169
Cavalgamos cantando pelo campo
Ao encontro de dragões em armaduras
Nosso belo pastor de lobos
O cajado florescente nas mãos
Voa para o céu num cavalo branco
A sedenta arma enfurecida
Morde-se a si própria em meio ao campo
Do ferro mortalmente ferido
Escorre o rio de nosso sangue
Corre para cima e sol adentro
O campo se ergue debaixo de nós
Alcançamos o cavaleiro celeste
E suas estrelas-esposas
E voam juntos pelo firmamento
Lá de baixo nos acompanha
A canção de despedida do melro
546
De modo semelhante, Ismail Kadaré irá se inscrever na “genealogia”, quiçá
imaginada, dos escritores que se ocuparam de modo constante com os episódios de
Kosovo Polje; eventos que se tornaram também emblemáticos da identidade e projeção
do povo albanês, habitante do Kosovo, e de sua relação com o Império Otomano e com
os sérvios. A problematização do vínculo entre memória, identidade e tradição
547
na
elaboração do discurso da nação sob as notas do canto épico aparece de forma
privilegiada em sua literatura. Através dos rapsodos de guerra, que cumprem o papel de
cantar as glórias dos exércitos no dia seguinte à batalha, em Três cantos fúnebres para
Kosovo, e da gesta, o epos que permite a continuidade de uma tradição, em O palácio
dos sonhos e A ponte dos três arcos, por exemplo, tal problematização é recorrente.
Neste último romance, as lendas serão reescritas, a partir dos interesses dos “chefes das
pontes e estradas” ou dos donos das “balsas e jangadas”, e repetidas pelos cantos dos
rapsodos, inserindo-se em uma tradição presumidamente relacionada a um passado
longínquo: “Em seu duelo feroz, os dois adversários usaram a lenda antiga. Os
primeiros [balsas e jangadas], através dela, haviam fomentado a destruição da ponte. Os
segundos [os chefes das pontes e estradas], pelo mesmo meio, haviam preparado o
546
POPA. Osso a osso, p. 147.
547
Segundo Ricardo Piglia, “La ficción narra, metaforicamente, las relaciones mas profundas con la
identidad cultural, la memoria y las tradiciónes” (PIGLIA. Memoria y tradición, p. 66).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
170
assassinato”.
548
As manipulações e falsificações perpetradas através da recuperação e do
rearranjo de antigas lendas colocam em evidência uma nuança essencial do conceito de
invenção: o seu caráter político. Nas palavras de Luís AlbertoFerreira Brandão Santos,
O gesto de inventar (...) possui um caráter fundamentalmente político
na medida em que propõe uma efetiva intervenção nos modos de
gestão e vivência dos espaços sociais, ou seja, nas formas de
elaboração de uma realidade coletiva. Inventar não é propor uma
ordem falsa, incompatível com a ordem do real, mas, ao contrário, é
afetar o real, explorar o que o real tem de maleável, ampliando as
margens de sua mutabilidade.
549
Por sua vez, em um dado momento do romance O palácio dos sonhos, a
personagem Mark-Alem – funcionário do Tabir Sarrail, uma repartição estatal que se
ocupa do sono e dos sonhos dos súditos do sultão, às vésperas da queda do Império
Otomano – recorda um diálogo que tivera, na infância, com a mãe, a respeito da inveja
que o sultão sentia da gesta dedicada a sua família:
“Mas por que não havemos de oferecer a nossa gesta ao Sultão para
escapar de uma vez para sempre a todas estas desgraças?” sugerira um
dia o pequeno Mark-Alem depois de ter ouvido suspirar os adultos.
“Cala-te!” respondera-lhe a mãe. “A gesta não é uma coisa de que se
possa fazer presente, compreendes? É como as alianças ou jóias de
família, algo que não se pode dar, mesmo que se queira”. (grifos
meus)
550
Ao comparar a gesta às “jóias de família”, que não podem ser descartadas, a mãe de
Mark-Alem aponta para o papel privilegiado do epos na transmissão de valores, na
constituição e manutenção das tradições, como “alianças” que não podem ser rompidas,
sequer questionadas; tão antigas que “cada geração recolhia piedosamente da anterior
para a transmitir por seu turno à geração seguinte”.
551
548
KADARÉ. A ponte dos três arcos, p. 109. Nesse romance, assim como em A pirâmide (1992), o tema
da construção de pedra remete à noção de uma edificação restauradora de uma tradição relacionada à
nação. Em ambos, tal construção envolve a idéia do sacrifício. Além disso, nos romances Três cantos
fúnebres para Kosovo e Os tambores da chuva, a guerra assume a forma de uma edificação (Cf.
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 89), de um muro (Cf. KADARÉ. Três cantos
fúnebres para Kosovo, p. 43).
549
SANTOS. Nação: Ficção, p. 108.
550
KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 58.
551
KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 57.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
171
No caso de Três cantos fúnebres para Kosovo, o fato de os rapsodos – Gjorg, o
albanês, e Vladan, o sérvio – conseguirem cantar apenas os antigos cantos de guerra
também remete para a idéia de continuidade e “imutabilidade” das tradições. Na batalha
de 1389, eles encontram-se no mesmo lado do campo de batalha, porém, cantam cada
qual em sua própria língua, utilizando instrumentos diferentes – os albaneses, a lahouta;
os sérvios, a gousla – e entoam os antigos cantos de guerra, como de hábito, sem
nenhuma alteração: “os velhos sérvios cantavam: ‘Ah, como os albaneses armam-se
contra nós!’. Enquanto isso, os aedos da Albânia avisavam: ‘Levantem-se, albaneses, os
eslavos vêm contra nós!’”.
552
A repetição das fórmulas e dos gestos antigos surge como
fator intrínseco para a constituição da identidade dos dois rapsodos: “Eram ambos
prisioneiros do passado, mas não podiam, nem desejavam, libertar-se de suas
cadeias”.
553
Questionados a respeito da contradição de seus cantos, que repetem o ódio
entre sérvios e albaneses, eles respondem:
“Tá, tá, a gente sabe muito bem disso”, explicavam os rapsodos. “Mas
foi sempre essa a forma dos modelos de nossos cantos e assim
continuaremos a cantar. Não são moldes como os das armas, que
mudam a cada dez anos. Nossos modelos precisam de, pelo menos,
um século para se modificarem...”
554
Na fala dos rapsodos, a permanência da tradição é assombrada pela possibilidade,
necessariamente “remota”, de modificação. Um indivíduo não é capaz de modificar em
qualquer ponto uma tradição estratificada, pois esta lhe é dada como um produto
herdado de gerações anteriores. Em outro momento da narrativa, quando se apresentam
em um castelo no “centro da Europa” e novamente são indagados a respeito da
contradição de seus cantos, os rapsodos reafirmam o vínculo das tradições com “a noite
dos tempos”, com os “os tempos imemoriais”:
555
“Não tinham os modelos necessários...
552
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 25.
553
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 71.
554
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 26.
555
KADARÉ. A ponte dos três arcos, p. 25;29; 41; 109. É significativa a repetição das expressões
“tempos imemoriais” e “a noite dos tempos” no romance A ponte dos três arcos, um romance que se
constrói como uma crônica histórica, cujo narrador, o monge Gjon, corresponde, por analogia, à figura
real do clérigo Gjon Buzuk, que teria escrito, em 1555, o primeiro livro em língua albanesa.
Estabelece-se, então, toda uma idéia de fundação da identidade albanesa através do primeiro
documento redigido na “língua da nação”. Vale ressaltar, ainda, a afirmação de Benedict Anderson:
“Si se concede generalmente que los estados nacionales son ‘nuevos’ e ‘históricos’, las naciones a las
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
172
Além do mais, deviam consultar os anciãos... Interrogar também os mortos... Esperar
que eles lhes aparecessem em sonhos para consultá-los... Não, eles não podiam,
definitivamente, não podiam... Não!” Estabelece-se, assim, uma relação de
solidariedade com o passado, colocando em xeque a liberdade de escolha. Quanto ao
poder de alteração da tradição, este é outorgado ao tempo: “pelo menos, um século
(...)”.
556
Muitas vezes, essa ação do tempo pode sofrer a influência de “exercícios de
engenharia social”, especialmente no que tange aos fenômenos associados à nação,
como os símbolos nacionais e as interpretações históricas.
557
Uma das características mais marcantes do universo romanesco de Ismail
Kadaré é o fato de este ser composto de um certo número de elementos recorrentes, tais
como: a figura dos rapsodos – albaneses, eslavos, gregos; a estrutura da vendeta com
seu Kanun e a bessa;
558
as construções de pedra – pontes, pirâmides, palácios, muros; a
Hospedaria dos Dois Roberts – alusão a dois chefes de Cruzada que atravessaram a
Albânia; a idéia do sacrifício associada à tragédia grega; a voz da gesta; a sombra de
Homero; os contornos dos Montes Malditos.
559
Tal artifício não se manifesta, na obra de
Ismail Kadaré, na forma de uma simples repetição temática, mas na figura da
que dan una expresión política presumen siempre de un pasado inmemorial, y miran un futuro
ilimitado, lo que es aún más importante. La magia del nacionalismo es la conversión del azar en
destino”. (ANDERSON. Comunidades imaginadas, p. 29).
556
É nítida aqui a analogia que faço entre o posicionamento dos rapsodos em relação aos cantos antigos e
a questão da mutablidade e imutabilidade do signo lingüístico, descrita por Ferdinand de Saussure.
Como se pode apreender das reflexões de Saussure, a língua seria intangível, mas não inalterável (Cf.
SAUSSURE. Curso de lingüística geral, p. 85-93). Vale ressaltar, ainda, que Benedict Anderson
associa o surgimento da narrativa da nação “moderna” com a insurreição da noção de caráter
arbitrário do signo e a conseqüente “queda” das “línguas sagradas” (Cf. ANDERSON. Comunidades
imaginadas, p. 33-39; BHABHA. O local da cultura, p. 222-223).
557
Cf. HOBSBAWM. Introdução: A invenção das tradições, p. 22.
558
O Kanun seria um código de direito e de conduta consuetudinário, em vigor em muitas províncias do
norte e do leste da Albânia. Tal código, que, grosso modo, exige que as famílias vinguem os seus
mortos assassinando um membro da família do matador, regula a vida dos montanheses desde seu
nascimento até a morte. Quanto à bessa, noção fundamental do Kanun, esta é uma espécie de trégua,
que pode (ou não) ser concedida pela família do morto, antes da retomada da vendeta (Cf. FAYE.
Nota de apresentação, p. 5; KADARÉ. Abril despedaçado, p. 15). No romance A ponte dos três arcos,
a palavra bessa aparece relacionada ao juramento, à promessa, à palavra empenhada entre irmãos (Cf.
KADARÉ. A ponte dos três arcos, p. 78; p. 81).
559
Como adverte Bernardo Joffily, um dos tradutores dos romances de Ismail Kadaré para o português, a
tradução do topônimo Bieshkët e Nëmuna (Montes Malditos) justifica-se em razão de seu papel nas
narrativas de Ismail Kadaré (Cf. nota de rodapé in: KADARÉ. Dossiê H, p. 73).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
173
autotextualidade,
560
que, no universo ficcional do escritor albanês, conforma-se em uma
espécie de mise-en-abyme em que o autor assume a absorção e a reelaboração de seus
próprios textos.
Entre esses elementos recorrentes é que se incluem, obviamente, os vestígios
da Batalha de Kosovo Polje. O caráter emblemático de Kosovo na literatura de Ismail
Kadaré, portanto, pode ser medido pela recorrência da temática da batalha de 1389 em
sua obra, mais especificamente, nos livros Tambores da chuva: (O castelo); O palácio
dos sonhos e Três cantos fúnebres para Kosovo. É neste último, escrito, entre os anos
de 1997 e 1998, no período da guerra ocorrida nesse território, no final da década de 90
do século passado, que o tema de Kosovo Polje e seus ecos em outras épocas ganha
proeminência ainda maior. Além disso, é evidente o diálogo das narrativas de Três
cantos fúnebres para Kosovo com os outros livros do autor, anteriormente citados,
em
especial no que se refere às possíveis versões do confronto de 1389,
561
que aparecem na
primeira narrativa, intitulada “Velha guerra”, em um entretecer de teias possíveis.
No romance de ambições épicas Os tambores da chuva: (O castelo),
562
por
exemplo, Ismail Kadaré já traz o germe de Três cantos fúnebres para Kosovo, inclusive
a estrutura da narrativa dividida em “cantos fúnebres”.
563
Considerado pelo autor “um
560
O termo autotextualidade, cunhado por Gerard Genette, é tomado aqui a partir das reflexões de
Lucien Dällenbach, no ensaio “Intertexto e autotexto”. Neste, o autor retoma a distinção apresentada
por Claude Simon entre a intertextualidade geral – compreendida como as relações intertextuais entre
textos de autores diferentes – e a intertextualidade restrita – tomada como as relações intertextuais
existentes entre textos do mesmo autor. Em seguida, Dällenbach relaciona a distinção apresentada
com outra, de Jean Ricardou, a qual opõe uma intertextualidade externa – a relação de um texto com
outro texto – a uma intertextualidade interna – a relação de um texto consigo mesmo. Do
atravessamento dessas diversas categorias, nasce a proposta de uma intertextualidade autárquica,
coincidente com a noção de autotextualidade (Cf. DÄLLENBACH. Intertexto e autotexto, p. 51-76).
561
Cf. KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 40-45; KADARÉ. Os tambores da chuva, (O
castelo), p. 156-158; 246-247; KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 128-129.
562
O romance Os tambores da chuva, (O castelo) foi publicado pela primeira vez, na Albânia, em 1970,
sob o título de O castelo. Um ano mais tarde o livro é publicado na França sob o título de Os tambores
da chuva. Entre 1993 e 1994, na época da publicação do segundo volume de suas obras completas,
Ismail Kadaré fez sensíveis modificações no romance, que acabou ficando com o “duplo título” (Cf.
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 5-8).
563
Em livros como Eschyle ou le grand perdant (1985) e Dialogue avec Alain Bosquet (1995), Ismail
Kadaré defende que a tragédia antiga tem sua origem nos cantos fúnebres das rezadeiras: “As
rezadeiras profissionais são as primeiras atrizes do mundo. A cena em torno do morto é a primeira do
teatro, e o morto é o primeiro ator-personagem” (KADARÉ; SALLES. Salles e Kadaré constroem a
vingança de ‘Abril despedaçado’ (entrevista), p. 3).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
174
romance de guerra clássico, duro e frio”,
564
Os tambores da chuva: (O castelo) está
centrado no cerco do exército otomano a uma cidadela albanesa na segunda metade do
século XV. O diálogo com a Ilíada, de Homero, é evidente. Assim, como no poema
homérico, no romance de Ismail Kadar temos a eqüidade – o fato de o aedo, no caso da
Ilíada, cantar a grandeza dos feitos de gregos e troianos sem se ater ao elogio de seu
próprio povo ou assumir a vitória como critério de focalização
565
– enfatizada por
Simone Weil: “É com dificuldade que se sente que o poeta é grego e não troiano”
(tradução minha).
566
O autor albanês escolhe uma estrutura dobrada, que aponta para a
duplicidade de pontos de vista e de sentidos: os quinze capítulos do romance – que,
narrados na terceira pessoa, retratam a movimentação do exército otomano, suas
técnicas de combate, as tentativas de assalto do “castelo” – são intercalados por trechos
em itálico em que se muda a perspectiva e a voz narrativa – as expectativas do povo
sitiado, a espera do herói lendário George Kastriota-Skanderbeu, as leituras, da
movimentação de fora, feitas do lado de dentro... são narradas por uma primeira pessoa
do plural.
Dentre as personagens do romance, está a do cronista/historiador Mevla
Tcheleb, encarregado de escrever o “imortal relato”, de descrever as peripécias da
guerra “com toda a exatidão”.
567
Ao longo da narrativa, contudo, o que Mevla Tcheleb
faz é debater-se com a tarefa de se escrever a/sobre a guerra, como no seguinte trecho:
Na tenda reinava o mormaço. O cronista a custo deitou mais umas
linhas no papel e passou a mão pela fronte. O trabalho não rendia. O
trovejar dos canhões dispersava-lhe as idéias como revoadas de
gralhas. Leu pela décima vez a frase inacabada: “Os crocodilos do mar
da peleja por muitas vezes arremeteram contra os muros, mas o
destino...”. O mar da peleja. Pensando bem, ali estava uma bela
expressão, um achado, mas tinha suas dúvidas quanto aos crocodilos.
É sabido que crocodilos não habitam os mares, mas sim os rios, de
maneira que a frase para ser exata precisava falar dos “crocodilos do
rio da peleja.” Acontecia que o “rio da peleja” não tinha nem de longe
a força de “mar da peleja”, o qual evocava de um só golpe o rugido, as
564
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 5.
565
No século II d.C., Luciano irá relacionar essa espécie de “olhar de Zeus” ao papel do historiador (Cf.
HARTOG. A história de Homero a Santo Agostinho, p. 34).
566
“C'est à peine si l'on sent que le poète est Grec et non Troyen” (WEIL. L'Iliade” ou le poème de la
force, p. 38).
567
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 31;110.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
175
ondas sem fim e a ferocidade da guerra. Mais valia sacrificar
“crocodilos” que o “mar da peleja”.
568
Nesses momentos de metanarratividade, a personagem do cronista parece
refletir sobre o caráter ficcional da narrativa histórica, questionando sua objetividade e
verdade assentadas nos relatos e documentos escritos, ao perceber que o processo de
narrar a história carrega semelhanças com a construção do texto literário, e desafia a
estabilidade e a irreversibilidade de uma “certa” noção de história vista como ciência.
569
Em um dado momento do romance,
570
a personagem de Mevla Tcheleb é confrontada,
pelo chefe da intendência, com uma outra versão, divergente da “oficial”,
571
de um
mesmo acontecimento: a morte do sultão Murat I, no entardecer do dia 28 de junho de
1389, na Batalha de Kosovo Polje. Se a história oficial, isto é, “tudo que fora escrito
sobre aquele dia”,
572
menciona o entardecer, logo após a vitória, quando o sultão Murat
I, montado em seu corcel e cercado por sua guarda, avançava em meio aos mortos e,
subitamente, ali, foi surpreendido por um balcânico, que, armado com um punhal, salta
sobre o monarca e, de um só golpe, atinge o coração; a “contra-versão”
573
do chefe da
intendência afirma que o sultão foi assassinado não pelos balcânicos, mas por uma
intriga do conselho de seus próprios vizires, encabeçada pelo filho mais novo de Murat
I, Bajazé I. É significativo que a personagem do chefe da intendência, momentos antes
de revelar a “outra” versão dos fatos, questione o estatuto de verdade das crônicas
históricas:
568
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 295.
569
Sobre o caráter literário de toda narrativa histórica, ver: WHITE. Trópicos do discurso, p. 97-116;
KAUFMAN. A metaficção historiográfica de José Saramago, p. 124-136.
570
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 156-158.
571
Como salienta Aleksandar Jovanovic, remetendo ao historiador austríaco Josef Von Hammer-
Purgstall, há versões conflitantes das historiografias sérvia e turca a respeito da batalha de Kosovo
Polje (Cf. JOVANOVIC. Iugoslávia, uma constelação cultural, p. 49-64; JOVANOVIC. À sombra do
quarto crescente, p. 176-191). Malgrado isso, o “oficial”, aqui, refere-se a uma possível “versão
historiográfica turca” dentro da construção ficcional de Ismail Kadaré.
572
Essas palavras, que atravessam o pensamento de Mevla Tcheleb (Cf. KADARÉ. Os tambores da
chuva, (O castelo), p. 157), manifestam as opiniões de determinados historiadores contemporâneos de
que o passado “só pode ser conhecido a partir de seus textos, de seus vestígios – sejam literários ou
históricos” (Cf. HUTCHEON. Poética do pós-modernismo, p. 164).
573
O que chamo de “contra-versão”, aqui, remete à noção de “contra-narrativas da nação”, proposta por
Homi K. Bhabha, e na qual encontra eco. As contra-narrativas seriam aquelas que, entre outras coisas,
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
176
...E como foram as coisas por lá, nas montanhas? – indagou o chefe
da intendência.
Antes de responder, o cronista ergueu os olhos fatigados e sustentou
por algum tempo o olhar tranqüilo do amigo.
A mim você pode contar a verdade – disse o chefe da intendência.
As crônicas são para as gerações futuras ou para as matronas de
Edirna. – Fez uma curta pausa; depois, sem fitar seu convidado,
indagou: – como foi? (grifos meus)
574
Assombrado pelas “versões” dos mesmos acontecimentos, encontrando dados
inexatos e reconhecendo a subjetividade de suas próprias palavras, Mevla Tcheleb
concebe uma outra crônica, uma outra versão da Batalha de Kosovo Polje. Tal versão
começa a se construir nos pesadelos do cronista, por meio de condensações,
superposições e deslocamentos, o que me leva a retomar Ricardo Piglia, quando este
afirma, dialogando com Walter Benjamin, que a outra versão da história “deve ser lida à
contraluz da história ‘verdadeira’ e como seu pesadelo”.
575
É exatamente em um espaço da ordem do pesadelo, os arquivos do Tabir
Sarrail, que a personagem Mark-Alem, do romance O palácio dos sonhos, irá encontrar
os episódios de Kosovo Polje. Ao descer aos arquivos do Tabir,
576
Mark-Alem depara-
se no centro deste com a planície do Kosovo desdobrada na imaginação, na visão
onírica e confusa de “várias centenas de cérebros adormecidos”.
577
Dessas visões
brumosas e, aparentemente, vazias de sentido, Mark-Alem, no seu papel de intérprete,
tenta reconhecer a “versão oficial” dos fatos e sua “esquisita unidade”.
578
No entanto,
após consultar os sonhos sobre Kosovo Polje, resta a questão:
Qual era afinal a verdade, podia-se mesmo descobri-la quando os seus
fundamentos se enraizavam assim no sonho? Tanto mais que nenhuma
fronteira bem definida separava o sonho da realidade, e que tudo o que
perturbam as manobras ideológicas através das quais “comunidades imaginadas” recebem identidades
essencialistas (Cf. BHABHA. O local da cultura, p. 211).
574
KADARÉ. Os tambores da chuva: (O castelo), p. 146.
575
PIGLIA. La Argentina en pedazos, p. 8. Citado por SANTOS. Nação: Ficção, p. 152.
576
Em uma análise comparativa do romance de Ismail Kadaré com A divina comédia, de Dante, Gilles
Banderier compara os Arquivos do Tabir Sarrail ao Inferno (Cf. BANDERIER. Kadaré et Dante, p.
167-176). Vale ressaltar ainda que os arquivos representam um elemento igualmente constante na
literatura de Ismail Kadaré.
577
KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 128.
578
KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 128.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
177
se relacionava com esta planície – topografia, intempéries,
acontecimentos, testemunhos – se encontrava como que enredado.
579
Também escondido em um subterrâneo, “enterrado” em um buraco: “um não-
lugar, uma terra-de-ninguém, fora da lei, alheia ao mundo e ao Estado”,
580
temendo o
ataque dos albaneses, na interseção de sono e vigília, morte e vida, Mevla Tcheleb
concebe “a história a contrapelo”
581
na forma de cantos fúnebres.
582
Cada canto é
acompanhado de seu contracanto fúnebre, como no exemplo:
“Socorrei-me, musas, é o Terceiro Canto”, implorou.
Terceiro Canto Fúnebre: do outro lado do campo de batalha, o
príncipe herdeiro, Jakub Tcheleb, recebe uma ordenança: “O Glorioso
o procura.” A caminho, ouve gritos: “Mataram o sultão!”. Mas a
ordenança o tranqüiliza: “Foi o duplo que mataram, meu senhor.”
Entretanto, um presságio funesto teima em acompanhar o príncipe.
Terceiro Contracanto Fúnebre: desde que a expedição partira para o
Kosovo, já se sabia que qualquer que fosse a sorte da campanha,
vitória ou derrota, o monarca seria morto. Morto para que subisse ao
trono não o primogênito, conforme a lei, mas o mais novo, Bajazit. E
assim foi.
583
A presença e o saber das Musas são convocados no início de cada um dos
cantos e seus respectivos contracantos fúnebres, tanto para inspirar o cronista, misto de
historiador e poeta, a lembrar a versão oficial – a “verdade histórica” – quanto a contra-
versão, ou seja, as “verdades possíveis” a respeito da Batalha de Kosovo Polje. Isso
acontece porque, segundo François Hartog, lendo Hesíodo:
Oniscientes, as Musas podem dizer tudo: não apenas o que é, mas
também, se o querem, o que não é – tanto contar ‘mentiras (pseúdea)
semelhantes a fatos (etýmoisin)’, quanto ‘verdades (alethéa)
579
KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 128-129.
580
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 245.
581
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 225. (Tese 7).
582
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 245-248.
583
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 246-247. Estrutura semelhante tem outro romance
de Ismail Kadaré, As frias flores de Abril (2000). Neste, cada capítulo, com exceção do último
(capítulo VII) é acompanhado de seu contracapítulo. Em um primeiro momento, os contracapítulos
marcam o tempo e o espaço míticos; ao final do romance, no último contracapítulo (VI), o mítico
coaduna com o social, em uma Albânia contemporânea, “à margem” do século XXI (Cf. KADARÉ.
As frias flores de abril, p. 145-146). Para uma análise de As frias flores de abril, ver: FERREIRA. De
poética, política e memória, p. 57-67.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
178
proclamar’. Abre-se já aí a possibilidade de partilha entre o real e a
ficção, que se apresenta sob a forma do como e da imitação.
584
Ao amanhecer, depois de “fazer surgir a dimensão sombria e terrível da história que
costuma se esconder na luminosidade enganosa dos relatos oficiais”,
585
Mevla Tcheleb
deixa o subterrâneo, e a sensação é a de que ele abandonava a própria sepultura, onde
enterrara, “para os séculos dos séculos, sua única crônica de desafio ao Estado. Encheu
os pulmões, feliz de ter escapado daquela”.
586
A ação de enterrar a contra-versão dos relatos oficiais pode ser lida como a
elaboração daquilo que Homi K. Bhabha
587
, retomando o ensaio pioneiro de Ernest
Renan, “O que é uma nação?”, chama de sintaxe do esquecer ou do ser obrigado a
esquecer. Para Ernest Renan,
588
o desejo de nacionalidade é o elemento fundamental
para a constituição da nação, enquanto a forma de esquecer é o lugar no qual esse desejo
da nação ganha contornos.
589
O esquecimento funcionaria como um “mecanismo da
memória”, que, como define Jerusa Pires Ferreira, seria explorado por instituições
hegemônicas, com vistas a excluir da tradição os elementos indesejáveis da memória
coletiva.
590
Não se trata mais de ver a nação como um todo uniforme, uma fortificação
na qual são guardadas as identidades essenciais sob o viés étnico, lingüístico e/ou
religioso, mas como “coesão de desejos, enlaçados pelos sutis fios da memória”.
591
A idéia de nação tomada como objeto de desejo pelos seus integrantes é aquela
construída a partir de uma narrativa histórica, de vestígios textualizados da memória.
Trata-se de uma memória edificada através da crônica histórica e que, ao longo do
tempo, absorve e integra o presente, moldando uma tradição. Nessa tarefa de memorizar
584
HARTOG. A história de Homero a Santo Agostinho, p. 34.
585
SANTOS. Nação: Ficção, p. 152.
586
KADARÉ. Os tambores da chuva, (O castelo), p. 248.
587
BHABHA. O local da cultura, p. 225.
588
RENAN. What is nation?, p. 8-22.
589
“Yet the essence of a nation is that all individuals have many things in common, and also that they
have forgotten many things” (RENAN. What is a nation?, p. 11).
590
Cf. FERREIRA. Cultura é memória, p. 76-77. A autora desenvolve essa reflexão a partir dos escritos
do pensador e semioticista russo Iúri Lotman.
591
PAGANO. Percursos críticos e tradutórios da nação, p. 42.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
179
o passado nacional sob os fios do desejo, entra em cena uma operação de revisão desse
passado e seleção da matéria a ser incorporada ao corpo escrito da nação. É nesse
movimento que se instaura o “estranho”, nas palavras de Homi K. Bhabha,
esquecimento da história do passado: “a violência envolvida no estabelecimento dos
escritos da nação”.
592
Tal “mecanismo do esquecimento”,
593
como aquele dos aedos e
rapsodos dos romances de Ismail Kadaré, não é um esquecimento qualquer, mas uma
tarefa bem mais complexa, que envolve um olvido involuntário, mas também consciente
– na verdade, essas duas instâncias, a do proposital e a do involuntário, confluem –, a
legitimar uma interpretação, projeção de nação. Como afirmam os dois pesquisadores
irlandeses do romance Dossié H:
Uma coisa ficou clara para nós. A pergunta que antes nos parecia
fundamental no deciframento do enigma homérico: quantos versos um
rapsodo consegue saber de cor (alguns falam em seis mil, outros em
oito mil e até doze mil versos)?, precisa ser completada por outra:
quantos ele deseja esquecer? Ou melhor: pode-se conceber um
rapsodo sem esquecimento? (grifos meus)
594
Ampliando-se o questionamento dos pesquisadores do romance de Ismail
Kadaré, é possível indagar: pode-se conceber um cidadão sem esquecimento?
595
Assim
como no caso dos rapsodos, o esquecimento na construção da narrativa da nação não diz
respeito às limitações da memória humana, é parte integrante do laboratório, da oficina
da nação: “é o momento em que a vontade nacional se articula”.
596
Nesse constante
reescrever da história nacional, consagra-se, inventa-se, imagina-se uma série de
lembranças, de referências a um passado e origem comuns. Como salienta Luís Alberto
Ferrreira Brandão Santos:
Fazemos parte de uma mesma tradição – a mesma família, o mesmo
grupo, a mesma nação – se o compartilhamento de nossas recordações
revela a semelhança do perfil de nossas vivências pretéritas. A
592
BHABHA. O local da cultura, p. 225.
593
KADARÉ. Dossiê H, p. 47.
594
KADARÉ. Dossiê H, p. 48.
595
“No French citizen knows whether he is a Burgundian, na Alan, a Taifale, or a Visigoth, yet every
French citizen has to have forgotten the massacre of Saint Bartholomew, or the massacres that took
place in the midi in the thirteenth century” (RENAN. What is a nation?, p. 11).
596
BHABHA. O local da cutura, p. 226.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
180
memória é, assim, o elemento que molda a tradição, que a mantém
viva e que reforça seu poder de atuação.
597
Esse trabalho de “embalsamamento”
598
das vivências pretéritas sob a forma
mumificada de uma tradição é realizado a partir da concatenação de referências que
operam uma continuidade. Para tanto, é preciso que se apaguem certos nódulos –
aqueles que, para continuar com a metáfora do embalsamamento, ameaçam a
continuidade discursiva do corpo nacional com a decomposição –; e que se inflamem
outros – exatamente os que reafirmam o sentido de continuidade da tradição, que a
isentam da decomposição, da ruptura.
É justamente por afetar a continuidade de uma história nacional homogênea,
representada pelos “santos princípios inalteráveis da igreja”,
599
que o turco Ibrahim,
personagem de Três cantos fúnebres para Kosovo, termina queimado vivo no átrio da
catedral.
600
A personagem do turco insurge na narrativa, na segunda parte do livro,
intitulada “Uma grande dama”, no momento em que, depois de muito peregrinarem em
uma caminhada sem “norte”, mas que parece levá-los a Oeste, os dois rapsodos Gjorg e
Vladan e outros “refugos da guerra” chegam a uma região “hospitaleira” – patrimônio
herdado dos gregos
601
–, na qual as pessoas, mesmo sem a compreensão das línguas,
davam-lhes alimento e os escutavam com simpatia; além disso, à noite lhes era
permitido dormir nas igrejas. Referências à figura do papa, às cruzadas, e à língua latina
597
SANTOS. Nação: Ficção, p. 122.
598
A idéia do embalsamamento da matéria vivida, na forma de uma tradição, como tarefa suprema da
memória, seja pela vias das epopéias ou pela construção da pirâmide do faraó, me foi sugerida pela
leitura dos romances A pirâmide e Dossiê H, de Ismail Kadaré. Ver, especificamente: KADARÉ. A
pirâmide, p. 16; KADARÉ. Dossiê H, p. 50.
599
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 84.
600
Movimento semelhante é o que realizam o monge e o eremita Frok, representantes e defensores da
tradição, em Dossiê H., ao invadirem o alojamento dos pesquisadores irlandeses e destruir todos os
equipamentos e fitas gravadas (Cf. KADARÉ. Dossiê H., p. 154-158).
601
“las virtudes son siempre patrimonio del griego (como el heroísmo, o la hospitalidad), y los defectos,
de sus vecinos fronterizos, sobre todo del turco, a quien se atribuyen comoevidencias todas las taras
supuestas (servilismo), y en quien convergen todos los prejuicios de connotaciones más negativas”
(PESMAZOGLOU. Los intelectuales griegos y el repliegue helenocéntrico, p. 56-57).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
181
identificam essa próspera região com a “Cristandade;” comunidade imaginada e
alinhavada pelos fios da imaginação religiosa:
602
Tinham ouvido falar vagamente do perigo otomano. Há algum tempo
já se falava também da preparação de uma nova cruzada que reuniria
todos os Estados da cristandade e que deveria ser conduzida pelo papa
em pessoa. (...) Graças aos Céus a cristandade ainda era poderosa e
firme em todos os seus reinos. É verdade que os balcânicos haviam
sido derrotados na entrada do continente mas aqui, no centro, a coisa
era diferente. As portas das cidades, as torres ladeando as muralhas, as
armas, os títulos e os emblemas principescos, da mesma forma que as
expressões latinas sobre o bronze ou sobre o mármore das igrejas,
tudo era absolutamente tranqüilizante.
603
Nesse espaço de “absoluta homogeneidade”, no qual a própria estranheza das
línguas é suplantada pela idéia de língua sagrada,
604
tem-se a prisão e a condenação do
turco Ibrahim à fogueira. Personagem atravessada pela diferença irredutível e
diversidade insuportável à ordem do “mesmo”, Ibrahim, suboficial turco na Batalha de
Kosovo Polje, teria sido o único que, ao longo do combate, havia passado para o lado
dos cristãos. De forma semelhante aos rapsodos, “prisioneiros do passado”, apesar de
demonstrar o desejo de se converter ao cristianismo, Ibrahim “continua rezando como
um muçulmano”,
605
habitado pelas duas religiões, o que comprova a sua identificação
ambivalente. Durante o julgamento e sob tortura da Inquisição, Ibrahim confessa que
ainda escutou as palavras do judeu Heilm, também um dos refugiados, o que sela o seu
destino. O olhar ameaçador do inquisidor, ao declarar a sentença, para o pequeno grupo
de balcânicos que assistiam ao julgamento, encolhidos uns contra os outros, e a
advertência que ele lança “a todos aqueles que tentassem converter a Europa a
dissolutas práticas pagãs”,
606
aponta para impossibilidade de inserção, conversão do
outro, na ordem do mesmo. Converter a Europa às práticas pagãs é renunciar à
602
Benedict Anderson salienta a forte afinidade entre imaginação nacionalista e as imaginações
religiosas. Segundo ele, o pensamento religioso transforma a fatalidade em continuidade, e, desta
maneira, aproxima-se do pensamento nacionalista (Cf. ANDERSON. Comunidades imaginadas, p.
26-39).
603
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 81.
604
“Todas las grandes comunidades clásicas se concebían a sí mismas como cósmicamente centrales, por
medio de una lengua sagrada ligada a un orden de poder ultraterrenal” (ANDERSON. Comunidades
imaginadas, p. 31).
605
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 76.
606
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 84.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
182
comunidade imaginada como compartilhamento, convergência, consenso, em prol da
divergência, da alteridade, da diferença.
Quanto a Ibrahim, no momento em que as chamas começam a envolvê-lo,
gritos seus brotaram do interior das chamas e da fumaça. Palavras incompreensíveis,
pronunciadas talvez em turco – a língua em sua estranheza, “estrangeiridade”.
607
A
multidão que assistia ao suplício esforçava-se para reconhecer em meio aos sons
estranhos a palavra Alá, a única que conheciam. O inquisidor, por sua vez, pensou ouvir
abracadabra. Quanto a um refugiado bósnio, este lamenta e completa: “está chamando
pela mãe. Você se lembra de que ele nos disse que na sua língua mamãe é abla?”.
608
Assim como no momento da morte da personagem Hana Krzyzewska, de Um túmulo
para Boris Davidovitch, de Danilo Kiš, o estertor do turco Ibrahim envolve a
“confusão” das línguas:
Os gritos do turco se transformaram num simples estertor abafado e
logo em seguida, bruscamente, soltou em latim um NON! assustador.
Foi um grito único, sem nada a ver com os gritos e gemidos, ou pelo
menos pareceu assim por ter sido a única palavra em latim que
pronunciou.
609
Ao contrário do hebreu, que no livro de Danilo Kiš carrega o germe da
nomeação primeira e aponta, portanto, para a unidade ideal entre todas as línguas, aqui,
a palavra NON, primeira e única palavra (mal) dita por Ibrahim, no idioma cristão, é a
recusa absoluta de qualquer possibilidade de unidade, a certeza de que esta é sempre
quimérica,
610
que a conversão é sempre ilusória. Talvez resida aí, na crença em uma
unidade e conversão, o “engano trágico” dos rapsodos Vladan e Gjorg: “Nós queremos
ser como vocês. Nós somos como vocês. Não nos expulsem!”.
611
607
BHABHA. O local da cultura, p. 231.
608
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 85.
609
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 84.
610
A mesma ilusão de unidade e conversão se desfaz no momento da narrativa em que Vladan, que, com
o desdobramento da guerra, havia jogado a sua gousla, pede emprestada a lahouta de Gjorg. Entre a
calamidade e a reparação, um som deprimente eleva-se: “Sérvios, levantem-se! Os albaneses nos
tomam o Kosovo!” (Cf. KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 69-70).
611
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 99.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
183
A tradição se constrói no exercício de seleção – à maneira do trabalho de
seleção, organização e interpretação do Tabir Sarrail, O palácio dos sonhos
612
– que
expulsa o indesejável, na tensão dialética da memória e do esquecimento, no “balanço
inseparável do lembrar e do esquecer”.
613
Essa tensão aparece também desenhada na
última parte de Três cantos fúnebres para Kosovo, intitulada “Prece Real”. Depois da
batalha de Kosovo Polje, o exército otomano põe-se em marcha, levando o cadáver do
sultão Murat I, deixando, entretanto, o sangue do soberano recolhido em uma urna de
chumbo. Escrita no sangue, a memória de Murat I converte-se em “memória
suspensa”,
614
não sujeita aos desgastes do tempo homogêneo e vazio, da visão
horizontal da nação como “comunidade imaginada”. Tal experiência da memória
inscrita no sangue e nas vísceras, separados do corpo e depositados em uma terra
estrangeira, aproxima-se da noção de ex-tradição cunhada por Ricardo Piglia, que supõe
uma relação forçada com um país estrangeiro e a obrigação de ser levado à fronteira.
615
É sob o efeito dessa “memória alheia”
616
que o sultão recita sua “prece real”, na qual se
vê passar batalhas, morticínios, “países e vizires: OTAN, R. Cook, Madeleine Allbright;
um massacre de crianças na Srebrenica, Miloevic, Mein Kampf”.
617
Desprovida da
continuidade, ordem e coesão da narrativa histórica tradicional, que é assentada em uma
“memória consensual”, “memória cristalizada”,
618
a prece de Murat I permite a
insurreição do heteróclito, do descontínuo, do desordenado – história “aos pedaços”,
619
feita de fragmentos, retalhos e sobras –, em uma nova duração de tempo/espaço. Pode-
se falar aqui, retomando a noção trabalhada por Jerusa Pires Ferreira, a partir do
612
O Tabir Sarrail é uma instituição inteiramente voltada para a interpretação dos sonhos. Tal
interpretação não se confunde com a banal “chave dos sonhos”, mas consiste em um trabalho de
seleção/separação/organização daqueles sonhos interessantes ao Estado, e, em seguida, na
“interpretação” da combinação dos símbolos (Cf. KADARÉ. O palácio dos sonhos, p. 20-21;26-27;
39-44; 67-68).
613
FERREIRA. Caronte ou o cronotopo da evocação, p. 18.
614
FERREIRA. Rumor do tempo e Viagem à Armênia. A descoberta do Eu e do Outro, p. 40.
615
PIGLIA. Memoria y tradición, p. 61-62.
616
PIGLIA. Memoria y tradición, p. 64-65.
617
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 116.
618
SANTOS. Nação: ficção, p. 124.
619
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 112; p.114.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
184
pensamento de Mikhail Bakhtin, em “cronotopo da evocação”,
620
pois estabelece-se um
modo de evocação que implica na interação de sentidos em tempos e espaços
superpostos. Ao longo dos séculos, a memória alheia do sultão Murat I converte-se em
“memória do mundo”,
621
uma espécie de memória plena, que impede o mecanismo do
esquecimento e permite vir à tona, em sua algaravia, os passados silenciados, as
encruzilhadas que atravessam a narrativa da nação. Assombrado por essa lembrança
desprovida de “políticas do esquecimento”, o soberano clama, ao final de sua prece,
pelo “esquecimento total”.
É no espaço dos subterrâneos, sejam os arquivos do Tabir Sarrail, em O
palácio dos sonhos, o buraco/sepultura onde se esconde Mevla Tcheleb, em Os
tambores da chuva, ou o espaço do não-ser em que se encontra Murat I, e na
justaposição de temporalidades, que se torna possível a tensão entre as duas formas de
construção narrativa da nação apontadas por Homi K. Bhabha: uma concepção
cumulativa da nação, em que se opera por uma seleção dos fatos cronológicos que são
condensados homogeneamente – o pedagógico do “muitos como um”,
622
– e um outro
viés de concepção da nação como estratégia suplementar, na qual é questionado o
caráter totalizador da narrativa pedagógica, e a tessitura nacional constitui-se da
heterogeneidade dos “retalhos” descartados da construção textual histórica – o
perfomático e sua “temporalidade metonímica, iterativa”.
623
Essa duplicidade de
“texturas” do discurso nacional gera as “contra-versões” da nação, que cumprem o
papel de questionar as estratégias ideológicas totalizadoras e essencialistas. A escrita de
Ismail Kadaré, com a justaposição e superposição de tempos e espaços, parece desejar a
articulação agonística dessas duas formas de construção narrativa da nação, que
pressupõem a emergência de “um outro tempo de escrita (...) capaz de inscrever as
interseções ambivalentes e quiasmáticas de tempo e lugar que constituem a
problemática experiência ‘moderna’ da nação ocidental”.
624
620
FERREIRA. Caronte ou o cronotopo da evocação, p. 17-18.
621
KADARÉ. Três cantos fúnebres para Kosovo, p. 116.
622
BHABHA. O local da cultura, p. 219.
623
BHABHA. O local da cultura, p. 219.
624
BHABHA. O local da cultura, p. 201.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
185
O que procurei realizar aqui foi uma análise do universo romanesco de Ismail
Kadaré, partindo da Batalha de Kosovo Pólie e de seu papel para a construção da
identidade nacional de alguns povos da Europa Centro-Oriental, e enfatizando as
estratégias de identificação cultural e de interpretação discursiva da narrativa nacional e
suas relações com a memória, a identidade e a tradição. Na próxima seção, continuo
esse percurso pela questão da memória, agora, a partir da trajetória ficcional de Danilo
Kiš, dando ênfase às noções de inventário e arquivo, implicadas no registro da memória.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
186
3.2. Arquivo dos mortos
A trajetória ficcional de Danilo Kiš assume a forma de um arquivo. Essa
premissa aparece como hipótese primeira de leitura de diversos comentadores de sua
obra.
625
Em uma entrevista concedida em fins de 1973, um ano após a publicação de
Sablier,
626
Danilo Kiš deixa evidente esse “gosto” pelo inventário e pelo arquivo, que é,
na verdade, o seu projeto como escritor:
Meu ideal era, e ainda é, um livro que se poderia ler, além de como se
lê pela primeira vez um livro, igualmente como uma enciclopédia
(leitura favorita de Baudelaire e não somente dele), a saber: em uma
alternância brutal e vertiginosa de conceitos, submetidos às leis do
acaso e da ordem alfabética (ou outra), na qual se sucedem os nomes
de pessoas célebres e suas vidas reduzidas ao mínimo exato, vida de
poetas, de pesquisadores, de políticos, de revolucionários, de médicos,
de astrônomos, etc., divinamente misturadas aos nomes de plantas e
sua nomenclatura latina, nomes de desertos e saibreiras, nomes de
deuses antigos, nomes de regiões, nomes de cidades, à prosa do
mundo. Estabelecer entre eles uma analogia, encontrar as leis da
coincidência. (tradução minha)
627
625
Cf. PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 152-158; PRSTOJEVIC. Un certain goût de
l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš). Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/
interventions/13.php
>; RIZZANTE. De l'idéal encyclopédique. Disponível em: <http://www.vox-
poetica.com/ecrivains/KIS/rizzante01.htm>; PROGUIDIS. Danilo Kiš, portrait de famille. Disponível
em:<http://www.vox-poetica.com/ecrivains/KIS/proguidis 01.htm
>.
626
Sablier (Pescanik) [Ampulheta] (1972) fecha o chamado Circo da família, composto por Chagrins
précoces (Rani jadi) [Primeiros sofrimentos] (1969) e Jardim, cinzas (Basta, pepeo) (1965), textos de
forte teor autobiográfico. As três narrativas compreendem o que Danilo Kiš chama de “literatura de
aprendizado” e apresentam três pontos de vista – o olhar da criança, em Chagrins précoces; o olhar do
escritor que, trinta anos depois, se confunde com a criança que ele foi, em Jardim, cinzas; o
desaparecimento da perspectiva da criança e a ênfase na figura do pai, em Sablier – a respeito do
desaparecimento de judeus húngaros na Iugoslávia ocupada pelos fascistas durante a Segunda Guerra
Mundial. Em 1989, ano da morte de Danilo Kiš, os três livros seriam publicados, na França, em um
mesmo volume intitulado Le cirque de famille (Chagrins précoces, Jardin, cendre, Sablier), edição
revista e modificada pelo próprio autor. Há uma edição compilada em servo-croata, que saiu em
Belgrado em 1993 [Porodicni cirkus (Rani jadi, Basta, pepo, Pescanik)].
627
“Mon idéal était, et il reste aujourd'hui encore, un livre qui pourrait se lire, outre comme on lit un livre
la première fois, également comme une encyclopédie (lecture favorite de Baudelaire et pas seulement
de lui), à savoir en une alternance brutale et vertigineuse de concepts, obéissant aux lis du hasard et de
l'ordre alphabétique (ou autre), dans laquelle se succèdent les noms de gens célèbres et leurs vies
réduites au strict minimum, vie de poètes, de chercheurs, de politiciens, de révolutionnaires, de
médecins, d'astronomes, etc. divinement mélangés à des noms de plantes et à leur nomenclature latine,
à des noms de déserts et de sablières, des noms de dieux antiques, des noms de régions, des noms de
villes, à la prose du monde. Etablir entre eux une analogie, trouver les lois de la coïncidence.” (KIŠ.
Citado por RIZZANTE. De l'idéal encyclopédique. Disponível em: <http://www.vox-poetica.
com/ecrivains/KIS/rizzante01.htm
>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
187
A matéria de que tratam as suas narrativas, os seus textos-enciclopédia –
marcados pela taxonomia e pelas formas repertoriantes
628
– pode ser definida, para dizer
com Jacques Derrida, como os “arquivos do mal”,
629
os desastres que marcaram o
século XX: a experiência dos judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial e a
emergência do fenômeno totalitário a partir das estruturas e dos mecanismos do
stalinismo. A obsessão documental condiciona a construção de sua obra e dá sentido aos
múltiplos nós das malhas da memória das catástrofes que o preocupam. Danilo Kiš
concebe, portanto, a atividade literária como um imenso arquivo organizado a partir de
uma polifonia de registros e estilos, que visa “registrar em frágeis palavras a totalidade
da experiência humana”.
630
O livro de Danilo Kiš no qual o seu “ideal enciclopédico” se manifesta de
forma mais explícita é, como o próprio título denuncia, Encyclopédie des morts
(Enciklopedija mrtvih, 1983), composto de nove contos e um post-scriptum que tratam
da temática da morte, em diferentes períodos, da época da morte de Cristo ao início dos
aos 80 do século XX. O tema da morte funciona como um nódulo organizador do livro,
enquanto as diferentes temporalidades se atravessam a partir dessa proposição e da
reentrância de motivos e detalhes comuns ao longo das narrativas.
631
O conto que
empresta o título ao livro – “A enciclopédia dos mortos (toda uma vida)”
632
– é a
representação explícita da obsessão inventarista de Danilo Kiš. Nele, a narradora é uma
pesquisadora que visita a Suécia, a convite do Instituto de Pesquisa Teatral, e encontra,
na Biblioteca Real, um arquivo no qual estão registradas as biografias completas de
628
Um exemplo significativo, talvez o mais emblemático, dessas formas repertoriantes, já aludido na nota
98 do capítulo 1 desta tese, é o compêndio cosmológico, Guia das vias de comunicação terrestres,
marítimas, ferroviárias e aéreas, composto pelo profeta louco Eduard Scham, no romance Jardim,
cinzas. Ao listar os documentos consultados por Eduard Scham, em obras como Meyerlexickion, o
Judische Lexikon e a “borgiana” Encyclopaedia Britannica, o narrador – Andi Scham, filho de Eduard
– .lista cerca de duzentas questões, disciplinas e assuntos (Cf. KIŠ. Jardim, cinzas, p. 43-51).
629
DERRIDA. Mal de arquivo, p. 7.
630
PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 157.
631
Procedimento semelhante, como veremos mais à frente, já fora utilizado pelo autor em Um túmulo
para Boris Davidovitch (1976). Autores como Massimo Rizzante e Guy Scarpetta irão denominar esse
procedimento de “lógica das coincidências”, que seria acionada a partir do princípio da contigüidade.
(Cf. RIZZANTE. De l'ideal encyclopédique. Disponível em: <http://www.vox-poetica.com/
ecrivains/KIS/rizzante01.htm>; SCARPETTA. Introduction à Danilo Kiš, p. 42-47).
632
“L'Encyclopédie des morts (toute une vie)” (Cf. KIŠ. Encyclopédie des morts, p. 43-68).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
188
pessoas comuns que já morreram, a célebre “Enciclopédia dos mortos”.
633
A única
condição para entrar nesse “inventário alfabético da morte”,
634
como a pesquisadora
logo perceberá, era que a pessoa não figurasse em nenhuma outra enciclopédia.
635
Segundo o “programa” e o “projeto” da Enciclopédia dos mortos, caracterizado pela
narradora como “democrático”, todos merecem um lugar igual na “eternidade” das
páginas da enciclopédia, além disso, não há em uma vida detalhes insignificantes nem
hierarquia de eventos.
636
Na letra “M” – cada sala desse “palácio de sonhos” é destinada
a uma letra do alfabeto –, a pesquisadora encontrará o relato detalhado da vida inteira de
seu pai, morto recentemente. A partir desse momento, o conto passa a ser a transcrição
abreviada que a pesquisadora vai fazendo desse verbete. Lendo lentamente as páginas,
abundantes de detalhes, ela perde a noção do tempo e mergulha em todas as
circunstâncias – centenas de documentos cuidadosamente reunidos por misteriosos
autores –, que envolveram a vida de seu pai. Nas palavras da pesquisadora, o que
tornava a Enciclopédia singular em seu gênero, além do fato de tratar-se de um único
exemplar, era a maneira como eram descritas as relações humanas, os encontros, as
paisagens; “essa multidão de detalhes que compõem uma vida humana” (tradução
minha).
637
E tão espantoso quanto a maneira discreta com que a casta de responsáveis
pela Enciclopédia dos mortos iam pesquisando e “dissecando” necrológios e biografias,
era o estilo desses enciclopedistas, caracterizado pela narradora como um
incrível amálgama de concisão enciclopédica e de eloqüência bíblica.
(...) Parágrafo após parágrafo, cada episódio é narrado em uma espécie
de quintessência e de metáfora líricas, nem sempre cronologicamente,
633
Duas peças são citadas no início do conto, Esperando Godot, de Samuel Beckett, encenada na prisão
central de Estocolmo, para um público composto de prisioneiros, e A sonata dos espectros, de
Auguste Strindberg, a peça que a pesquisadora assiste na noite em que “adentra” a Enciclopédia dos
mortos. O tom onírico da peça de Strindberg está presente no conto e a entrada da pesquisadora na
Biblioteca Real é comparada à sua entrada na prisão central para assistir Godot. Além disso, a
pesquisadora nomeia o porteiro que abre as portas da biblioteca de Cérbero: “Monsieur Cerbère (c'est
ainsi que je l'avais baptisé)” (Cf. KIŠ. Encyclopéide des morts, p. 43;45).
634
A ÚLTIMA tempestade. Direção: Peter Greenaway... (1991). Um dos 24 livros da personagem
Próspero é justamente Um inventário Alfabético da Morte. Infinito e monstruoso, esse inventário traz
os nomes de todos os mortos que viveram na terra, além de uma coleção de modelos de tumbas e
columbários, lápides, sepulturas e sarcófago, entre outros elementos fantásticos. (Cf. MACIEL.
Irrealidades virtuais (Peter Greenaway à luz de J. L. Borges), p. 65-66).
635
KIŠ. Encyclopédie des morts, p. 47
636
KIŠ. Encyclopédie des morts, p. 47; p. 59.
637
“cette multitude de détails qui font une vie humaine.”(KIŠ. Encyclopédie des morts, p. 46).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
189
mas em uma estranha simbiose de tempos, passado, presente e futuro.
(tradução minha)
638
Danilo Kiš, no Post-scriptum do livro, no qual desvela e também dissimula
uma série de referências e explicações sobre a gênese do seu livro e sobre suas fontes
históricas e bibliográficas, revela-se também espantado com a “diabólica lógica das
coincidências”, porque, seis meses após a publicação do conto,
639
ele tomara
conhecimento, através de um artigo intitulado “Archives”, da existência de um
“monstruoso monumento” semelhante ao seu “arquivo dos mortos”, levado a cabo pelos
mórmons e localizado em uma montanha em Salt Lake City, capital do estado de Utah.
Nesse “subterrâneo”, a “Sociedade Genealógica da Igreja dos Santos do Dia do
Julgamento” conservava, na época da publicação do artigo [1981], os nomes de 18
bilhões de pessoas, vivas e mortas, cuidadosamente repertoriados através de um milhão
e duzentos e cinqüenta mil microfilmes. A respeito dessa descoberta de um real tão
fantástico quanto a obra literária, Leyla Perrone-Moisés afirma que mais interessante do
que essa coincidência entre realidade e ficção é a coincidência do projeto de Danilo Kiš
com o de outros “enciclopedistas apocalípticos” no universo da literatura.
640
A essa
observação, eu completaria ainda que um outro fator digno de “espanto” para o leitor de
“A enciclopédia dos mortos (toda uma vida)” é o lugar contíguo que esse conto ocupa
dentro da obra de Danilo Kiš, uma espécie de campo gravitacional da mesma, “um
corpo negro”, apontando para a expansão do universo ficcional do autor.
641
No conto
estão presentes, como pretendo evidenciar aqui, os elementos fundamentais para a
conformação de seu projeto como escritor.
638
“(...) incroyable amalgame de concision encyclopédique et d'éloquence biblique. (...) Paragraphe après
paragraphe, chaque épisode est retracé en une sorte de quintessence et de métaphore lyriques, pas
toujours cronologiquement, mais en une étrange symbiose des temps, passé, présent et futur.” (KIŠ.
Encyclopédie des morts, p. 48-49).
639
Segundo Danilo Kiš, o conto “A Enciclopédia dos mortos” apareceu pela primeira vez em Belgrado
em Književnost (Literatura), na edição de maio e junho de 1981, e um ano depois foi traduzido para o
inglês e publicado no New Yorker, em 12 de julho de 1982. (Cf. KIŠ. Encyclopédie des morts, p. 182-
183).
640
PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 155.
641
“Mas os livros que em nossa vida entraram/ São como a radiação de um corpo negro/Apontando pra a
expansão do Universo/ Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso/ (E, sem dúvida, sobretudo o
verso)/ É o que pode lançar mundos no mundo.” (VELOSO. Livros. [encarte, p. 2]).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
190
Resulta desse “ideal enciclopédico” uma marca recorrente de sua escritura
vária e heteróclita, a alternância temática e formal de um livro a outro e principalmente
em um mesmo livro. Em Encyclopédie des morts, por exemplo, cada conto exercita um
código particular: a lenda, a carta, as memórias, a pesquisa filológica, o ensaio critico,
entre outros. Também em Um túmulo para Boris Davidovitch, apesar do subtítulo “sete
capítulos de uma mesma história”, que poderia sugerir certa homogeneidade entre as
partes, a construção é marcada pela polifonia de estilos e registros. Como bem observa
Leyla Perrone-Moisés: “de um romance a outro, de um a outro conto, Danilo Kiš muda
de assunto, de técnica, de estilo, passando da narrativa mais tradicional a um requintado
experimentalismo, do registro histórico ao fantástico, da transparência ‘realista’ à
opacidade do texto poético”.
642
Como já foi anunciado, o “projeto louco”, a “pulsão de inventarista” de Danilo
Kiš é coincidente com o de outros “colecionadores” do universo das artes.
643
O próprio
autor, em suas diversas entrevistas e reflexões críticas, deixa entrever os seus possíveis
precursores, a sua família literária.
644
O autor que, cronologicamente, primeiro aparece
nesse “filão enciclopédico” forjado por Kiš é François Rabelais: “tudo estava em
Rabelais: a língua, o jogo, a ironia, o erotismo e mesmo o famoso comprometimento...
Depois, tudo se espalhou. Aqui, o jogo; lá, o comprometimento; aqui, a escritura; lá, o
642
PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 152.
643
Em seu texto sobre Danilo Kiš, Leyla Perrone-Moisés cita Victor Hugo, Honoré de Balzac, Mallarmé
e Jorge Luis Borges, autores que, apesar dos diferentes projetos, construíram a sua literatura fundada
na “crença” em um livro total. (Cf. PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 152-158).
Maria Esther Maciel, nos primeiros ensaios de Memória das coisas, apresenta uma série de artistas do
século XX que compartilham dessa obsessão colecionadora. Ela cita entre outros, Jorge Luis Borges,
Georges Perec, Italo Calvino, Milorad Pávitch, Arthur Bispo do Rosário e Peter Greenaway. (Cf.
MACIEL. Memória das coisas, 13-47).
644
Em 1986, por exemplo, em entrevista de Danilo Kiš a Leda Tenório da Motta, aparecem citados entre
outros escritores: Dante Alighieri; Ivo Andric; Isaac Babel; Roland Barthes; Charles Baudelaire; Jorge
Luis Borges; Louis Ferdinand Céline; Miguel de Cervantes; Fiodor Dostoievski; Marguerite Duras;
Gustav Flaubert; Rubem Fonseca; Einrich Heine; Homero; Guilhermo Cabrera Infante; Max Jacob;
James Joyce; Attila Jozsef; Arthur Koestler; Conde de Lautréamont; Stéphane Mallarmé; Karl Marx;
Vladimir Nabokov; Raduan Nassar; Ovídio; Edgar Allan Poe; Jacques Prévert; Marcel Proust;
Raymond Quenneau; François Rabelais; Sainte-Beuve; Claude Simon; Jean-Paul Sartre; Alexander
Soljenitzin; Karlo Stayner; Leon Tolstoi; Miguel de Unamuno; Paul Verlaine; Marguerite Yourcenar.
(Cf. KIŠ. A consciência de uma Europa oculta, p. 2-5.) Grande parte das entrevistas e reflexões
críticas de Danilo Kiš estão publicadas em La leçon d’anatomie (Cas anatomije, 1978); Homo
poeticus (1983) e Le résidu amer de l'expérience (Gorki talog iskustva, 1990). Sobre essa parte da
produção do autor, ver: SONTAG.Questão de ênfase, p. 125-131. Vale ressaltar que a escritora, que
foi amiga de Kiš, organizou a edição americana de Homo poeticus, publicada em 1995.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
191
erotismo. O vaso se quebrou em mil pedaços” (tradução minha).
645
Danilo Kiš
reconhece e compartilha com Rabelais a aspiração permanente de tomar em uma única
forma a totalidade do mundo a partir de uma pluralidade “vertiginosa” de pontos de
vista. Ao mesmo tempo, preserva a consciência crítica – “o vaso se quebrou em mil
pedaços” – da dimensão patética e grotescamente vã de se reencontrar o universal na
obra romanesca, de se consignar todos os saberes humanos na forma concreta do Livro
Total. Em Danilo Kiš, como em outros escritores do século XX, “o projeto
enciclopédico do ‘Grande Livro’” insurge, como bem o observa Maria Esther Maciel,
“sob a perspectiva das idéias de descentramento e dispersão (...) como uma
multiplicidade aberta e conjectural”.
646
Afinal, como construir uma visão total do
mundo e do homem – à maneira dos projetos de Honoré de Balzac e Victor Hugo, por
exemplo – quando se está condenado à fragmentação, à sensação das lacunas e perdas, à
consciência de que não é possível selecionar nem registrar tudo; e quando a ilusão do
olhar onisciente – o ângulo de Deus – e do imperativo psicológico se esfacela?
É a partir do século XX que vai se intensificando a certeza de que não é
possível obter um espelho de um mundo movediço através da catalogação de uma
massa de saberes, da crença nos métodos e procedimentos retóricos. Por outro lado, tal
questionamento de uma totalidade cerrada e o desejo de ultrapassagem das convenções
literárias: “as piores e mais tenazes”, nas palavras do próprio Danilo Kiš, sob a forma do
narrador onisciente e da estética e retrato psicológico das personagens, já é percebido
em um romancista do século XIX,
647
Gustav Flaubert, sobretudo nos livros A tentação
de Santo Antão e Bouvard et Pécuchet. Apesar de não poder romper de modo radical
com a tradição da corrente realista no século XIX, Flaubert aparece nos comentários de
Danilo Kiš como mais um perseguidor do “Livro Total”, um perfeito precursor de Jorge
Luis Borges:
645
“Tout était dans Rablais: la langue, le jeu, l'ironie, l'érotisme et même le fameux engagement... Aprés,
tout s'est éparpillé. Ici le jeu, là engagement, ici l'ecriture, là l'érotisme. Le vase s'est brisé en mille
morceaux.” (KIŠ. Citado por RIZZANTE. De l'idéal encyclopédique. Disponível em:
<http://www.vox-poetica.com/ecrivains/KIS/rizzante01.htm
>).
646
MACIEL. Irrealidades virtuais (Peter Greenaway à luz de J. L. Borges), p. 63.
647
Obviamente que, no âmbito da poesia do século XIX, é Stéphane Mallarmé com seu projeto do Livro
absoluto – “O livro, expansão total da letra” – que vai alimentar a imaginação de alguns escritores e
determinar o curso de suas produções ao longo do século XX.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
192
Se Flaubert tivesse reduzido a gigantesca arquitetura de seu romance
exótico a um conto [uma nota crítica] expondo o conteúdo de um livro
fictício chamado A tentação de Santo Antão, se ele tivesse condensado
a matéria de Bouvard e Pécuchet em um conto contendo, de maneira
explícita, uma parte desta matéria (o que é fácil imaginar, porque
Flaubert já possui a idéia borgiana de fazer falsas indicações
bibliográficas passarem por reais), a literatura não teria esperado uma
centena de anos para ver surgir as Ficções de Borges. (tradução
minha)
648
Essa prefiguração do projeto borgiano na obra de Flaubert já aponta para o
topos especial que Jorge Luis Borges ocupa no universo visionário da “Biblioteca
Total”, do “Livro Único”, da “Enciclopédia das Enciclopédias”,
649
perseguido por
Danilo Kiš. Este gostava de simplificar a sua complexa genealogia literária com a
declaração emblemática de que era filho do escritor polonês Bruno Schulz com o
argentino Jorge Luis Borges.
650
Através das referências à obra de Jorge Luis Borges e
também à de Bruno Schulz,
651
torna-se mais fácil compreender a origem de alguns
procedimentos formais que Danilo Kiš lança mão em sua obra e entrever, como aludem
648
“Si Flaubert avait réduit la gigantesque architecture de son roman exotique à une nouvelle exposan le
contenu d'un livre fictif intitulé La tentation de Saint Antoine, s'il avait condensé la matière de
Bouvard et Pécuchet en une nouvelle renfermant, de façon explicite, une partie de cette matière (ce
qui est facile à imaginer, puisque Flaubert avait déjà l'idée borgésienne de faire passer de fausses
indications bibliographiques pour réelles), la littérature n'aurait pas dû attendre une centaine d'années
pour voir apparaître les Fictions de Borges.” (KIŠ. Citado por RIZZANTE. De l'idéal encyclopédique.
Disponível em: <http://www.vox-poetica.com/ecrivains/KIS/rizzante01.htm
>).
649
MACIEL. Irrealidades virtuais (Peter Greenaway à luz de J. L. Borges), p. 63; PERRONE-MOISÉS.
O inventário de Danilo Kiš, p. 156-157.
650
Frases do tipo: “a história do conto pode ser dividida em duas épocas: antes de Borges e depois de
Borges” ou “Bruno Schulz é meu Deus” são recorrentes nas entrevistas e reflexões críticas de Danilo
Kiš. (Cf. SONTAG. Questão de ênfase, p. 129; KIŠ. La leçon d'anatomie. Citado por CIRKOVIC.
Borges: Influence and References – Danilo Kiš. Disponível em: <http://www.themodernword.
com/borges/borges_infl_kis.html>; HEMON. Reading Danilo Kiš. Disponível em: <http://www.
centerforbookculture.org/context/no9/hemon.html>)
651
As semelhanças entre a literatura de Danilo Kiš e a obra de Bruno Schulz (1892-1942) são mais
nítidas no chamado Circo da família: a influência da “impressão freudiana” e do Surrealismo, a busca
do detalhe através de cuidadosas descrições, a representação da figura do pai como um
“prestidigitador metafísico”, as semelhanças entre narrador e autor, a dimensão mitológica, o ponto de
vista da criança, o amadurecimento do narrador (“literatura de aprendizado”), etc. Ver, do escritor
polonês, que publicou apenas quatro livros em vida (ele morreu com um tiro na cabeça em um gueto
durante a Segunda Guerra), em especial Lojas de canela e Tratado dos manequins ou o segundo
gênesis. Sobre a sua obra, ver: SIEWIERSKI. História da literatura polonesa, p. 157-160; 163-171)
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
193
alguns comentadores de sua obra,
652
o desenho de um programa estético. Tal programa
pode se resumir em duas palavras: reduzir e condensar.
Reduzir a arquitetura do texto – “a gigantesca arquitetura” do romance do
século XIX – e condensar a matéria da escritura romanesca. Através desses dois
princípios, marcados por um cuidadoso trabalho de composição, Danilo Kiš manifesta o
desejo de concentrar, em um reduzido número de páginas, o maior número de
informação possível, de congregar toda uma “multidão de detalhes que compõem uma
vida humana” em um verbete de enciclopédia, estabelecendo entre imagens heteróclitas,
elementos dispersos do mundo, relações de analogia e de coincidência no espaço e no
tempo; princípio este que se intensificará nos livros Um túmulo para Boris Davidovitch
(1976) e Encyclopédie des morts (Enciklopedija mrtvih, 1983).
Assim, todo detalhe será essencial para a compreensão do conjunto dos fatos.
Objetos, imagens, sensações ganham o primeiro plano, subverte-se a hierarquia entre
objetos e sujeitos em favor de uma outra cena, armada a partir de um trabalho cuidadoso
de descrição, através do qual as personagens ganham vida. Essa busca do detalhe, do
“quase imperceptível” como elemento essencial para a compreensão da totalidade pode
ser confirmada a cada página da obra de Danilo Kiš, sendo que o exemplo mais
emblemático desse trabalho cuidadoso encontra-se no parágrafo que abre o livro
Jardim, cinzas, do qual eu transcrevo o trecho:
No verão, com a manhã já alta, minha mãe entrava no quarto sem
fazer barulho, bandeja na mão. Era uma bandeja niquelada, mas o
metal já estava quase todo gasto. Sobre as bordas, quando a superfície
plana se eleva e se inclina, ainda se viam lâminas de níquel
semelhantes a papel-alumínio alisado com a unha, últimas
testemunhas da glória passada. A estreita beirada plana acabava em
uma espécie de goteira oval inclinada para baixo, que, com o uso,
ficara amassada e deformada. Ao longo da parte superior da borda
havia pequenas saliências decorativas gravadas em relevo, um colar
de minúsculos bagos de metal. A pessoa que segurava a bandeja (em
geral minha mãe) devia sentir sob a gema dos polegares pelo menos
três ou quatro protuberâncias hemisféricas, parecidas com letras em
braile. Ali, ao redor dessas saliências, haviam-se acumulado círculos
quase imperceptíveis de gordura, que davam a impressão de ser as
652
PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 156-157; SONTAG. Questão de ênfase, p. 125;
RIZZANTE. De l'idéal encyclopédique. Disponível em: <http://www.vox-poetica.com/ecrivains/
KIŠ/rizzante01.htm>; PRSTOJEVIC. Entre histoire et Histoire. Disponível em: <http://www.vox-
poetica.com/ecrivains/KIS/prstojevic01.htm>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
194
sombras das pequenas cúpulas. Esses anéis, cor de sujeira de debaixo
das unhas, eram compostos de borra de café, óleo de fígado de
bacalhau, mel e calda. Sobre a superfície lisa e brilhante da bandeja
viam-se finas meias-luas: as marcas dos copos recém-removidos. E eu
sabia, sem abrir os olhos, pelo tilintar cristalino das colherinhas nos
copos, que minha mãe largara a bandeja por um instante e que estava
caminhando decidida em direção à janela para abrir a pesada cortina.
Nesse momento o quarto se inundava com a luz brilhante da manhã e
eu fechava os olhos com força, até a luz ficar amarela, azul, depois
vermelha. Minha mãe trazia em sua bandeja, em um pote de mel, em
um frasco de óleo de fígado de bacalhau, as cores ambarinas dos dias
de sol, substâncias concentradas, com aromas inebriantes. Aqueles
potinhos não passavam de amostras, espécimens dos países
desconhecidos onde aportava, pela manhã, a louca barca de nossos
dias. (grifos meus)
653
Danilo Kiš mergulha, ultrapassando a superfície, em busca de “pequenas
saliências”, mínimos detalhes, tão “minúsculos” quanto podem ser, “quase
imperceptíveis”, e dá ao leitor uma descrição quase microscópica da bandeja. Na
verdade, temos mais uma vez – como nas últimas seqüências do filme Um olhar a cada
dia, Theo Angelopoulos – um exemplo de representação-efeito, provocada não pelo
caráter referencial da cena, mas pela expressão
654
da mesma no leitor. Através dessa
expressão, o olho converte-se em uma modalidade do tato. O intuito é percorrer, em
meio às “sombras”, “letras em braile” que possam revelar outros mundos, “países
desconhecidos”: a leitura como arte da microscopia, da aproximação, da perspectiva, do
espaço.
655
É importante lembrar que Jardim, cinzas trata do extermínio de judeus
húngaros durante a Segunda Guerra Mundial sem, no entanto, se encaixar no que ficou
convencionado como “literatura do holocausto”, seja pela ausência da grandiloqüência,
seja pela recusa da militância que o tema, às vezes, costuma suscitar.
656
Mais uma vez,
653
KIŠ. Jardim, cinzas, p. 7-8. Em “Reading Danilo Kiš”, Aleksandar Hemon analisa a abertura de
Jardim, cinzas em contraponto à abertura das chamados “grandes romances” – ele cita Tolstoi ,
Dickens e o Herzorg, de Saul Bellow –, salientando o talento de Kiš ao ir de um pequeno detalhe a
outro menor ainda, recusando o “ângulo de Deus”, que predomina nas “grandes narrativas”, que se
querem totaliantes. (Cf. HEMON. Reading Danilo Kiš. Disponível em:
<http://www.centerforbookculture.org/context/no9/hemon.html>)
654
LIMA. Mímesis: desafio do pensamento, p. 24.
655
Cf. PIGLIA. O último leitor, p. 20.
656
Cf. PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 153; SCARPETTA. Introduction à Danilo
Kiš, p. 42-47. Danilo Kiš recusava a ideia de associar a literatura a qualificativos, ponto de vista que
sempre afirmou com veemência nos ensaios e nas entrevistas (Cf. KIŠ. Le Résidu Amer de
l’Expérience).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
195
como nas outras narrativas com as quais trabalho nesta tese, a expressão do horror
acontece pelo viés de um “olhar indireto”. Ao adentrar o “espaço” do extermínio com a
“bandeja na mão” – um objeto que em suas bordas carrega filigranas de “uma glória
passada” – e guiado pela voz do menino Andi Scham – que perscruta, até o mínimo
exato, a radiação das coisas –, o leitor não terá um espelho da guerra, mas encontrará
uma possibilidade de experimentá-la sob a forma do “prisma”.
657
Experiência esta
reduzida ao “quase imperceptível”, embora mais significativa, porquanto exija, a partir
das partículas mínimas, dos detalhes que compõem o universo da narrativa, uma
“competência interativa” dos sentidos convocados a “ler e compreender”; “escutar e
corresponder”.
658
Como afirma Leyla Perrone-Moisés a respeito da tarefa do leitor
diante da contenção estilística e enunciativa dos textos de Danilo Kiš:
o leitor vai paulatinamente desvendando situações, amarrando pontas
de uma intriga, o menor vai se encaixando em conjuntos maiores até
ganhar sentido. Os pormenores revelam-se como pontos de
concentração e de irradiação narrativa.
659
Por outro lado, toda essa preocupação que Danilo Kiš manifesta pelas questões
técnicas e estilísticas não se reverte em mero virtuosismo ou puro exercício de estilo,
como o foi para outros escritores do século XX, mas revela-se também uma resposta
ética.
660
Kiš posiciona-se como “um inventariante implicado na história dos homens”.
661
Através de suas técnicas e artifícios, que se erigem dos eventos terríveis do século XX
657
Sobre a habilidade de Danilo Kiš em condensar o mundo e concentrar a experiência, Aleksandar
Hemon afirma: “Whereby the language is not a mirror, but a magnifying glass, or indeed a prism.”
HEMON. Reading Danilo Kiš. Disponível em: <http://www.centerforbookculture.org/context/no9/
hemon.html>
658
RAVETTI. Notas sobre a construção de um imaginário pós-ditatorial no Brasil, Argentina e Chile, p.
331-339.
659
PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 152.
660
Cf. KIŠ. Homo poeticus, p. 11. É sintomático o título de duas coletâneas de ensaios e entrevistas de
Danilo Kiš publicadas em 1972 e 1974, respectivamente, Po-etika e Po-etika II. A respeito dessa
questão, Kiš afirma, em entrevista a Brendan Lemon (1984): “I always come up against the problem
of ethics and aesthetics. There are many things that are aesthetically pleasing but not morally so, and
maybe the inverse is also true. Reconciling the two is one of the questions that obsesses me. Writing is
aesthetics. As soon as you start writing you start looking for aesthetic effect, and at the same time you
want to keep things somewhat moral. I'm not a moralist, but when you write, you sense the ideal: the
good and the beautiful are mixed.” (KIŠ. An interview with Danilo Kiš by Brendan Lemon.
Disponível em: <http://www.centerforbookculture.org/interviews/interview_kis.html>).
661
PERRONE-MOISÉS. O inventário de Danilo Kiš, p. 157.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
196
(as guerras, os campos, o extermínio sistemático), ele assume a tarefa de reduzir e
condensar a complexidade do mundo, revelando toda a potência, a capacidade extrema
dessa “nova modalidade de mal” de transformar o homem em coisa.
662
Como o próprio Danilo Kiš afirmara em 1973, ao refletir sobre o seu modo de
conceber a atividade literária, o seu desejo, encerrado o Circo da família, era escrever
um livro-enciclopédia cuja organização seria estabelecida através de uma polifonia de
vozes, registros e formas e pela condensação e redução – “vidas reduzidas ao mínimo
exato”. Por outro lado, entre essa pletora de elementos dispersos do mundo haveria um
liame estabelecido pelo princípio analógico. Em 1976, seu primeiro livro de ficção,
depois da publicação de Sablier (1972), é Um túmulo para Boris Davidovitch: sete
capítulos de uma mesma história, que será, assim como o seu livro de ficção seguinte,
exatamente Encyclopédie des morts, uma tentativa sistemática de construir esse “livro
total”. Tomando como ponto de partida a reconstrução de uma época de horror sob o
signo do stalinismo, o narrador desses “sete capítulos”
663
busca os rastros materiais
daqueles que foram aniquilados, tiveram seus nomes apagados, suas memórias
colocadas no plano da não-existência; como é evidenciado na abertura do capítulo que
dá título ao livro:
A história registrou sua memória sob o nome de Novski, que é apenas
um pseudônimo (ou antes um de seus pseudônimos). Mas uma coisa
suscita imediatamente a dúvida: a história realmente registrou sua
memória? Na Enciclopédia Granat e em seu suplemento, entre
duzentas e quarenta biografias e autobiografias autorizadas de grandes
homens e de atores da revolução, seu nome não é mencionado. (...)
Assim, da maneira mais surpreendente e inexplicável, esse homem,
que imbuiu seus princípios políticos de um rigoroso sentido moral,
esse internacionalista ardente, aparece nas crônicas da revolução como
um personagem sem rosto nem voz. (grifos do autor)
664
662
Em especial, no pensamento de Hannah Arendt desenvolve-se a percepção de que a experiência
política do século XX foi marcada pelo surgimento de uma nova modalidade de mal, “o mal radical”,
até então desconhecida, cuja meta não era o domínio despótico do homem, mas sim um sistema
baseado na superficialidade do homem. (Cf. ARENDT. Origens do totalitarismo; SOUKI. Hannah
Arendt e a banalidade do mal)
663
Danilo Kiš, em entrevistas, classifica o livro de “coleção de histórias unidas tematicamente”, por mais
que os editores prefiram denominá-lo de romance. (Cf. KIŠ. An interview with Danilo Kiš by
Brendan Lemon. Disponível em: <http://www.centerforbookculture.org/interviews/interview_
kis.html>).
664
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 83.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
197
Essa “mini-enciclopédia” das calamidades stalinistas será construída a partir da
consulta de testemunhos e depoimentos de sobreviventes dos gulags. A forte base
documental surge, aparentemente, como uma maneira de garantir a autenticidade dos
relatos, uma forma de, como é típico no discurso histórico, de “legitimação científica”.
Um túmulo para Boris Davidovitch apresentará uma vasta rede de signos que cumprem
o papel de documentos, provas, “marcas de historicidade”: textos escritos, testemunhos,
cartas, fotografias, monumentos, referências, notas de rodapé, citações e,
principalmente, a posição distanciada e “imparcial” do narrador. Em alguns momentos,
o peso dos documentos, o excesso das fontes, parece querer dobrar as camadas do
discurso ficcional, corroer de seu interior a sua natureza imaginária.
665
Por outro lado,
na sua elaboração ficcional, Danilo Kiš, à maneira de Jorge Luis Borges, cuja História
universal da infâmia é tomada por ele como uma espécie de “contra-modelo”,
666
misturará essas fontes de informação “exatas” com outras referências forjadas; textos
“não-ficcionais” com textos ficcionais; citações de autores existentes; outras, de “nomes
falsos”.
667
Os primeiros cinco “capítulos” dos sete de Um túmulo de Boris Davidovitch
recolhem o seu tema do livro 7000 jours en Sibérie, de Karlo Stajner, publicado dez
anos antes, na Iugoslávia.
668
O iugoslavo Karlo Stajner passou quase vinte anos preso
nos campos soviéticos, sendo liberado em meados dos anos cinqüenta. Em 7000 jours
en Sibérie, Stajner dá o seu depoimento sobre o período em que esteve preso e recupera
665
Cf. PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš).
Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php
>.
666
Danilo Kiš constrói a arquitetura de Um túmulo para Boris Davidovitch tomando o livro de Jorge Luis
Borges como modelo declarado, mas o preenche com um outro conteúdo: as aporias da história da
Outra Europa. Procedimento que Katarina Melic denominará de “contra-livro”, em relação àquele de
Borges, enquanto Nelson Ascher chamará de “Infâmia universal da história” (Cf. MELIC. La fiction
de l'Historie dans Un tombeau pour Boris Davidovitch, de Danilo Kiš. Disponível em:
<http://www.fabula.org/effet/interventions/18.php
>; ASCHER. A infâmia universal da história, p. 8.).
667
Tal empreendimento literário parece confluir com aquele do narrador do conto “Tlön, Uqbar, Orbis
Tertius”: “(...) Bioy Casares jantara comigo naquela noite e demorou-nos uma vasta polêmica sobre a
elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e
incorresse em diversas contradições, que permitissem ao leitor – a muito poucos leitores – a
adivinhação de uma realidade atroz ou banal.” (BORGES. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, p. 1).
668
Anos depois, Danilo Kiš se empenharia para tornar possível a publicação da tradução francesa do livro
de Karlo Stajner, escrevendo inclusive o prefácio da mesma, que sai finalmente em 1983. (Cf.
PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš). Disponível
em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
198
particularidades curiosas colhidas do testemunho de outros presos. Em nenhum
momento de seu livro, Danilo Kiš explicita a sua “dívida” para com Stajner. Entretanto,
o terceiro capítulo do livro, “O círculo mágico das cartas”, traz uma lacônica
dedicatória: “Para Karl Steiner”.
669
O título do capítulo e a “falsificação” do nome do
autor apontam para uma obsessão de Danilo Kiš, o jogo:
Eu acredito no documento, na confissão, no jogo de espírito. Um não
segue sem o outro, é uma espécie de santíssima trindade. A confissão
ou o jogo de espirito ou ainda o documento, em si mesmos, logo fora
dessa trindade, não são mais que um material bruto: de Memórias, um
novo romance ou um estudo histórico. No final das contas, eis aqui a
receita: misturar bem tudo, como se mistura as cartas, mas depois de
ter assim mexido e cortado as cartas de forma mágica, não serão
somente elas que estarão misturadas, mas também as cores e as
figuras, um meio-rei/meio-rainha, um meio-coração/meio-espadas,
como nas mãos de um prestidigitador. Na falta de outra coisa, esta
manipulação mágica do jogo de cartas diverte você e diverte, talvez,
também o público. A expressão mesma do “jogo de cartas”, spil
karata, compreende um elemento essencial da arte – o jogo. (tradução
minha)
670
Sempre afeito às “misturas estranhas”, filho de um argentino cosmopolita
[Borges] com um emparedado judeu polonês de cidade pequena [Schulz],
671
Danilo Kiš
opera a lógica de seus métodos literários “mistos” sobre o texto de Karlo Stajner, que se
oferece às suas mãos de prestidigitador. Aos breves episódios que aparecem em 7000
jours en Sibériei, Danilo Kiš introduz acréscimos, detalhes, intercala histórias, constrói
outras versões, “embaralha” as fontes, trabalhando o documento como se estivesse se
debruçando sobre um pergaminho “em busca de traços que não são visíveis a olho
669
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 61.
670
“(...) Je crois au document, à la confession , au jeu de l'esprit. L'un ne va pas sans l'autre, c'est une
sorte de sainte trinité. La confession ou le jeu de l'esprit, ou encore le document, en eux-mêmes, donc
en dehors de cette trinité, ne sont qu'un matériau brut: des Mémoires, un nouveau roman ou une étude
historique. En fin de compte, voici la recette: bien mélanger le tout, comme on mélange les cartes,
mais après avoir ainsi brassé et coupé les cartes de façon magique, il n'y a pas qu'elles que se sont
mélangées, mais aussi les couleurs et les figures, un demi-roi/une demi-reine, un demi-coeur/un demi-
pique, comme dans mains d'un prestidigitateur. A défaut d'autre chose, cette manipulation magique du
jeu de cartes vous amusera, et amusera peut-être aussi le public. L'expression même de jeu de cartes,
spil karata, comprend un élement essentiel de l'art – le jeu.” (KIŠ. Le résidu amer de l'expérience, p.
54-55).
671
Cf. SONTAG. Questão de ênfase, p. 129.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
199
nu”.
672
Em um exercício de leitura dos testemunhos que busca suas fendas e trincas, Kiš
propõem-se a preencher os silêncios e as lacunas, traduzir os não-ditos e ,
principalmente, ficcionalizar as faltas,
673
construindo o seu palimpsesto da memória
impossível.
Ao longo de Um túmulo para Boris Davidovitch, outros textos são retomados
por Danilo Kiš e são submetidos à mesma lógica de criação literária, ao jogo com as
fontes e com o leitor, suprimindo a confortável cisão entre realidade e ficção. Tem-se,
por exemplo, o livro de história da arte L'art russe, de Louis Réau, que aparece na
descrição da igreja de Santa Sofia, em Kiev, no capítulo “Os leões mecânicos”;
674
trechos de James Joyce par lui-même, de Jean Paris, aparecem em itálico e entre aspas
no início de “A porca que devora sua ninhada”
675
– cujo título é também uma referência
a James Joyce e o seu Retrato do artista quando jovem
676
–, descrevendo a Irlanda,
“terra de tristeza, fome, desespero e violência”, da personagem Gould Verschoyle; um
fragmento de “La doctrina de los ciclos”, de Jorge Luis Borges, aparece na última parte
de “Cães e livros”,
677
que, por sua vez, é uma espécie de “transcriação” do julgamento,
em 1320, de Baruch, um notável rabino, no tribunal de Jacques Fourmier, bispo de
Pamiers, o futuro papa Benedict XII,
678
entre outros.
Todas as referências, como manda a “receita” de Danilo Kiš, encontram-se
bem misturadas, os testemunhos, as memórias, a reconstrução imaginária, os nomes e
referências apócrifos; o que torna difícil, quase impossível, distinguir ou classificar em
672
PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš). Disponível
em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php>.
673
Cf.RAVETTI. Notas sobre a construção de um imaginário pós-ditatorial no Brasil, Argentina e Chile,
p. 331-339.
674
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 43-45.
675
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 21-21
676
Em um dado momento do romance de Joyce, a personagem Stephen Dedalus afirma: “Queres saber o
que que a Irlanda é? – perguntou Stephen com violência fria. – A Irlanda é uma porca que come a sua
ninhada.” (JOYCE. Retrato do artista quando jovem, p. 229). No livro de Danilo Kiš, Verschoyle, o
protagonista da história escreve: “um espelho rachado de empregada Doméstica, uma porca que
devora sua ninhada.” (KIŠ Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 23).
677
'KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 139.
678
O julgamento de Baruch encontra-se no Le registre d'inquisition de Jacques Fourmier (1318-1325),
organizado e comentado por Jean Duvernoy, o autor é citado mais de uma vez por Danilo Kiš em
“Cães e livros” (Cf. KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 130;138).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
200
qualquer hierarquia o que seria o documento dito autêntico e o que seria a reconstrução
imaginária. Nesse sentido, a ficção e a história entram em um regime de indistinção
tendenciosa, como as “cartas do baralho”. O exemplo mais nítido dentro do livro são os
capítulos cinco e seis, respectivamente, “Um túmulo para Boris Davidovitch” e “Cães e
livros”, quando Danilo Kiš projeta uma história localizada no século XIV, em meio à
Inquisição, que aponta para a experiência do totalitarismo no século XX. As duas
narrativas tratam de julgamentos, a primeira acompanha os bastidores do processo
montado contra Boris Davidovitch Novski – aquele que como os outros “heróis
positivos”
679
do livro não figura na “oficial” Encyclopédie Granat, não faz parte da
“história oficial celebrativa”;
680
a segunda, o processo diante do tribunal da Inquisição
em 1330 (sic) contra o Baruch David Neumann. Tanto Boris Davidovitch quanto
Baruch David intentam soprar, sussurrar para o futuro, nas entrelinhas de seus
depoimentos, o princípio de que “todo o edifício de suas confissões repousa sobre uma
mentira, extraída, sem sombra de dúvida, sob tortura”. Ao final de “Cães e livros”, em
uma seção intitulada “Nota do autor”,
681
o narrador assume que o conto sobre Baruch é,
na realidade, o trabalho de “tradução” do documento Confessio Baruc olim iudei modo
baptizati et postmodum reversi ad iudaismum. Como “bom historiador”, ele indica o
lugar, o arquivo, e o número do documento, aponta outras traduções, descreve o
manuscrito. Logo em seguida, passa a estabelecer analogias entre esse texto e “Um
túmulo para Boris Davidovitch”, apontando a coincidência de motivos, datas e palavras:
A persistência das convicções morais, o sangue derramado das
vítimas, a semelhança dos nomes (Boris Davidovitch Novski e Baruch
David Neumann), a coincidência das datas de prisão de Novski e
Neumann (o mesmo dia do fatal mês de dezembro, a seis séculos de
distância 1330... 1930), tudo isso surgiu em minha consciência como
uma metáfora ampliada da doutrina clássica sobre a evolução cíclica
dos tempos (...).
682
O narrador apropria-se dos modos de construção do discurso histórico. Como
em La invencion de Morel, de Bioy Casares, ele “tenta dar sentido aos dados
679
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 8.
680
CHAUI. Os trabalhos da memória, p. XVIII-XIX.
681
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 138-140.
682
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 139.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
201
proporcionados pelos documentos, ou seja, tenta utilizar os textos em uma paródia do
trabalho historiográfico”.
683
Tal artifício apresenta um caráter duplo – efeito de verdade/
efeito de ficção –, porque, ao mesmo tempo em que retoma e literaliza o documento
histórico, dando feições de “documento” ao texto ficcional; por outro lado, lança
dúvidas sobre a autenticidade do documento histórico. O texto cita-se e repete-se,
apresentando uma mobilidade que não se “permite” em uma concepção tradicional das
fontes históricas como sinônimo de “evidências neutras”. Ao leitor, deixa-se a tarefa de
comparar os textos e descobrir “cartas” de naipes ambivalentes, metade verdade/metade
falsificação, em um grande jogo de azar e terror. Nesses capítulos sobre a fabricação de
ficções políticas, Danilo Kiš lança mão de mentiras, mistificações, simulacros,
reescritas, denunciando e criticando o uso desses mesmos procedimentos pelos
mecanismos de poder, das inquisições aos poderes totalitários – procedimento
semelhante pode ser verificado em Underground – mentiras da guerra, de Emir
Kusturica, como se confirmará na próxima seção deste capítulo.
Nessa confluência entre o arquivo histórico e o imaginário literário, o autor
rearranja de modo inventivo os dados documentados já existentes, evidenciando o
caráter discursivo dos mesmos, a materialidade de um suposto real convertida em traço
escrito. O aparelho argumentativo típico do discurso histórico e a lógica do arquivo são
colocados ao serviço da simulação, próprio do discurso ficcional. O arquivo como lugar
onde se impõe uma norma, onde se impera a autoria e a autoridade é deformado, traído.
Segundo Jacques Derrida,
684
ao poder arcôntico do arquivo, atravessado pelos
princípios topológico (lugar) e nomológico (lei), que concentram as funções de
unificação, identificação, classificação, casa-se o poder de consignação, que tende a
coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia, na qual todos os
elementos articulam a unidade de uma configuração ideal. Os “arquivos imperfeitos”
685
de Danilo Kiš fazem com que essa lógica do abrigo, da reunião, da homogeneidade
conviva com a dissociação, com a heterogeneidade, com o segredo, ameaçando a
autoridade, a genealogia, a lei, a possibilidade de consignação.
683
RAVETTI. Bioy Casares: o pós-colonial no museu, p. 205.
684
Cf. DERRIDA. Mal de arquivo, p. 7-16.
685
Cf. COLOMBO. Os arquivos imperfeitos.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
202
É ainda Jacques Derrida quem salienta que o “mal radical” arruína, desvia ou
destrói o próprio princípio do arquivo. Ao evocar os arquivos do mal que marcaram o
fim do último milênio, Danilo Kiš, em Um túmulo para Boris Davidovitch, desestabiliza
o caráter conservador do arquivo e, simultaneamente, intenta uma espécie de escavação
arqueológica daquilo que sobrou da existência de pessoas à véspera do fim. Nessa tarefa
restauradora, “levanta-se então infinita, fora de proporção, sempre em curso, ‘em mal de
arquivo’, a espera sem horizonte acessível, a impaciência absoluta de um desejo de
memória”.
686
Com Um túmulo para Boris Davidovitch, Danilo Kiš atraiu definitivamente a
atenção internacional para a sua literatura, ao mesmo tempo em que, em sua terra, atraiu
também uma campanha de sete meses de atenção negativa, uma verdadeira perseguição
que o impeliria a deixar definitivamente o seu país.
687
Como bem o define Alexandre
Prstojevic, essa querela com a crítica iugoslava dos anos setenta do século XX foi o
maior “combate” literário que a ex-Iugoslávia conheceu.
688
Logo que o livro foi publicado, alguns críticos manifestaram restrições e sérias
dúvidas a respeito da originalidade do texto. Aos poucos a “notícia” foi se propagando,
chegando às principais fontes literárias do país. Danilo Kiš é acusado de se inspirar nos
testemunhos sobre os gulags publicados alguns anos antes – mais especificamente os
7000 jours en Sibérie, de Karlo Stajner – e de copiar, de forma “mais ou menos fiel”,
parágrafos inteiros de obras de historiadores franceses e russos, por fim, acusaram o
autor de tomar um documento histórico de 1330 – na verdade, o documento é de 1320,
como atesta o trabalho de Jean Duvernoy
689
– por fruto de sua imaginação.
690
Conforme
sintetiza Susan Sontag, o livro de Kiš foi tomado como “uma teia de plágios de uma
686
DERRIDA. Mal de arquivo, p. 9.
687
Cf. SONTAG. Questão de ênfase, p. 127-128; PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur
l'obsession documentaire de Danilo Kiš). Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/
13.php>.
688
Cf. PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš).
Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php
>.
689
Cf. BIDDICK. Aesthetics, ethnicity, and the history of art. Disponível em: <http://www.findarticles.
com/p/articles/mi_m0422/is_n4_v78/ai_19178129
>
690
Para uma análise detalhada de Um túmulo de Boris Davidovitch, tomando como ponto de partida o
teor das acusações ao autor, ver: PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession
documentaire de Danilo Kiš). Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php
>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
203
biografia obscura”,
691
em uma campanha que carregava um ranço de anti-semitismo e
uma nostalgia do período de “realismo socialista”.
692
Obscurece-se a proposta, o projeto do autor, sua pauta estética, temática e
ideológica, sua po-etika, para se colocar em ênfase a questão da relação entre o original
e a cópia, dos conceitos de verdade e ficção, enfim, do “controle do imaginário”. À
campanha, Danilo Kiš respondeu com La leçon d'anatomie (Cas anatomije, 1978):
Em defesa de Um túmulo para Boris Davidovitch contra tais
invectivas indecorosas, Kiš montou uma exposição em escala natural
da sua genealogia literária (ou seja, de seus gostos literários), uma
poética pós-modernista, ou protomodernista, do romance e um retrato
do que poderia ser a honra de um escritor.
693
Para os leitores de Danilo Kiš, acostumados com sua “herança” literária e sua
pulsão inventarista, explicitada em todos os seus escritos, a “lição de anatomia” soa
desnecessária e até mesmo estreita. Danilo Kiš nunca hesitou em chamar a atenção dos
leitores para os escritores com os quais estabeleceu diálogo. Já em seu primeiro livro,
composto de dois romances curtos, Mansarda/ Psalam 44 (O sótão/ Salmo 44, 1962)
lançava mão de um tratamento formal que implicava na utilização de fragmentos de
outras obras inseridas no corpo do seu texto do qual passavam a fazer parte. Como o
autor esclarece, em entrevista, em Mansarda, ao introduzir, por exemplo, um fragmento
de A montanha mágica sem identificá-lo como sendo de autoria de Thomas Mann, o
intuito não é o de “tomar emprestado”, mas de dialogar com a obra de Mann e convocar
o leitor para este diálogo.
694
O que dizer então, para não repetir os outros escritores já
citados anteriormente, do papel de James Joyce, para a arquitetura de sua ficção – os
interrogatórios com interlocutores desconhecidos em Sablier remetem o leitor a páginas
691
SONTAG. Questão de ênfase, p. 128.
692
Na Iugoslávia dos anos 70, como em outros países socialistas, os princípios que fundamentavam o
realismo socialista ainda ressoavam em alguns discursos críticos a respeito das artes e em algumas
manifestações artísticas. Os motivos predominantes do período de “realismo socialista” são, como
salienta Iovan Péitchitch, “o trabalho, as suas formas de expressão literária, e a auto-afirmação estética
vem através da retórica padronizada de formulação direta, o discurso mobilizador da conscientização
das massas trabalhadoras e renovador do elã dessas massas.” (PÉITCHITCH. A poesia contemporânea
da sérvia – suas raízes e seus significados, p. 15).
693
SONTAG. Questão de ênfase, p. 128.
694
KIŠ. An interview with Danilo Kiš by Brendan Lemon. Disponível em: <http://www.
centerforbookculture.org/interviews/interview_kis.html>. Vale ressaltar que o protagonista do
romance de Kiš é um estudante apaixonado e devorador de livros.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
204
de Ulisses
695
– ou os “ecos” de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, nos
momentos em que o garoto Andi Scham encontra-se entre o sono e a vigília, em Jardim,
cinzas.
Seriam, afinal, os procedimentos adotados em Um túmulo para Boris
Davidovitch de outra ordem? O fato de Danilo Kiš trazer à tona os textos e testemunhos
ameaçados pelas “teias” e poeira dos arquivos e bibliotecas, escutar através de rastros,
pegadas e traços concretos e verificáveis – no sentido de que essas tramas são passíveis
de prospecção, de especulação – a palavra do outro, colocaria uma questão teórica e
ética diferente? É atrás dessa indagação, que é colocada afirmativamente por Alexandre
Prstojevic, que parto agora.
Inevitavelmente, ao colocar a questão acima, caio na problemática do conceito
de ficção, que, de certa maneira, atravessa as páginas de Um túmulo para Boris
Davidovitch. Para os críticos que acusavam Danilo Kiš de empréstimos literários
ilícitos, há uma concepção muito nítida de literatura e de discurso ficcional. A respeito
de tal concepção, Alexandre Prstojevic tece os seguintes comentários: “o escritor não
teria o direito, sob qualquer pretexto, de se referir a obras já publicadas, fossem elas de
caráter ficcional ou não”, ao contrário dos praticantes do que se convencionou chamar
de não-ficção, “toda semelhança com o que já se tenha lido é suspeita” (tradução
minha).
696
É significativo, no entanto, o fato de as “apropriações” de material literário,
ficcional – por exemplo a organização consagrada por Jorge Luis Borges em História
universal da infâmia –, também presentes no livro de Danilo Kiš, não ganharem a
mesma relevância nas acusações de plágio. Como Prstojevic deixa claro em seu estudo,
a acusação contra Um túmulo para Boris Davidovitch se pautará na apropriação de
discursos do gênero não-ficcional – testemunhos, pesquisa histórica e crítica. Na
verdade, as invectivas contra Danilo Kiš parecem ancorar-se em uma noção de literatura
e de texto ficcional na qual este seria um produto de um exercício inventivo por
695
JOYCE. Ulisses, p. 461-517
696
“L'ecrivain n' a le droit, sous aucun prétexte, de se reférer aux ouvrages déjà publiés, qu'ils soient de
caractère fictionnel ou non. (...) toute ressemblance avec ce que l'on a déjà pu lire est suspecte.”
(PRSTOJEVIC. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš). Disponível
em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php
>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
205
excelência, uma construção ex nihilo; aquela, uma espécie de universo paralelo
completamente apartado da “realidade”.
Tal ponto de vista traz como pressuposto a certeza de que os conceitos de
verdade e ficção podem ser circunscritos a partir da compreensão direta e intuitiva de
uma integridade plena dos mesmos. A base dessa “certeza irrefletida” é a crença de que
a realidade é o contrário da ficção, sendo que uma seria caracterizada pela subtração das
propriedades da outra – a clássica oposição binária entre ficção e realidade. Porém,
como advertem, em contextos e a partir de recortes diferentes, autores como Wolfgang
Iser ou Juan José Saer,
697
tais conceitos são incertos e suas definições integram
elementos díspares e mesmo contraditórios, assim, a eliminação, o corte de todo rastro
ficcional de um texto não é um critério de verdade, não é por si só garantia de
veracidade; enquanto a ficção, por sua vez, não seria o domínio imperativo do falso, não
se definiria pela exclusão dos atributos de realidade.
Segundo Wolfgang Iser, a caça ao discurso ficcional é guiada por um propósito
de que ele não se converta no objeto da “realidade” que representa. No entanto,
o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da
realidade, que, através da seleção, são retirados tanto do contexto
sócio-cultural, quanto da literatura prévia ao texto. Assim, retorna ao
texto ficcional uma realidade de todo reconhecível, posta, entretanto
agora sob o signo do fingimento.
698
Com seu caráter ambivalente, o que a ficção faz é mesclar, de um modo
inevitável, o empírico e o imaginário.
699
O que a “caça a Danilo Kiš” pela intelligentsia iugoslava dos anos 70 do século
XX manifesta e reafirma – para além do ranço ideológico da mesma – é uma
polarização, que, como realça Luis Alberto Brandão, ainda hoje, no início do século
XXI, se verifica nas correntes de abordagem crítica do objeto literário. O quadro de
697
Cf. ISER. Atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 384-416; SAER. El concepto de
ficción, p. 10-15.
698
ISER. Atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p. 400.
699
“La masa fangosa de lo empírico y de lo imaginario, que otros tienen la ilusión de fraccionar a piacere
en rebanadas de verdad y falsedad, no le deja, al autor de ficciones, más que una posibilidad:
sumergise en ella.” (SAER. El concepto de ficción, p. 12).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
206
polarização teórica legado pelo século XX caracteriza-se pelo embate entre a
perspectiva formalista e imanentista e a perspectiva sociológica ou culturalista:
Pode-se mesmo reconhecer, nessa tensão, a luta entre o legado
romântico-idealista, que advoga a autonomia da obra de arte, cuja
negatividade se manifesta especialmente no universo das formas, e o
legado realista-positivista, que concebe a obra como reflexo do
mundo, sobretudo, por meio dos conteúdos sociais que é capaz de
veicular.
700
Conceber a literatura a partir de uma perspectiva antropológica ampla, como
produto do humano e ao mesmo tempo definidor do humano, seria, ainda nas palavras
de Luis Alberto Brandão, uma forma de escapar a esse quadro de polarização teórica.
Perspectiva essa que não se resumiria a adotar o viés da antropologia como saber
instituído, mas que buscaria conceber uma “antropologia literária”.
701
Também, para
Juan José Saer, uma maneira talvez possível de neutralizar tantos reducionismos que
insistem em assediar o campo das reflexões críticas do texto literário, seria conceber a
ficção como uma antropologia especulativa.
702
É por esse viés que importa voltar para a atitude adotada por Danilo Kiš na
conformação de Um túmulo para Boris Davidovitch. O autor escapa à relação opositiva
entre o falso e o verdadeiro, não os reivindicando como opostos que se excluem, mas
tomando-os como conceitos problemáticos que compõem a própria essência de sua
ficção, o espaço tensionado de sua narrativa.
Nesse sentido, é relevante repetir as palavras que abrem o primeiro dos sete
capítulos dessa mesma história: “Essa história, nascida na dúvida e na incerteza, só tem
o mal (que alguns chamam de sorte) de ser verdadeira: foi registrada por mãos honestas,
segundo testemunhos confiáveis”.
703
É nítido o cruzamento tensionado entre verdade e
ficção, o conflito tomado como matéria romanesca. Admite-se a lacuna dos testemunhos
e documentos, pois, se as mãos do narrador são honestas, sua intenção é sincera e os
testemunhos confiáveis, resta ainda o obstáculo, a dúvida e a incerteza a respeito da
700
BRANDÃO. Grafias da identidade, p. 10.
701
BRANDÃO. Grafias da identidade, p. 11.
702
SAER. El concepto de ficción, p. 15.
703
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 7.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
207
autenticidade das fontes, dos critérios de interpretação e da confusão de sentidos – “para
se chegar à verdade com que sonha o autor, teria que ser contada em romeno, húngaro,
ucraniano ou iídiche; ou antes numa mistura de todas essas línguas”
704
– comuns a toda
construção verbal.
705
Essa forma de intervenção do narrador, que puxa a atenção do
leitor para a questão problemática da verdade, salientando a sua intenção, pouco fiável,
de se prender às suas fontes, aos “documentos autênticos”, e, ao mesmo tempo, coloca
em xeque a questão da autenticidade e da completa reprodução dos eventos, é comum,
ocorrendo sistematicamente ao longo do livro de Danilo Kiš. Por outro lado, a intenção
não é confundir o leitor ou construir uma negação veemente e irracional da realidade
objetiva ou da existência da história em prol de uma “falsificação eufórica”,
706
mas
colocar em evidência o caráter complexo da questão da verdade, demonstrar que, muitas
vezes, o “mundo paralelo” adentra a realidade, e vice-versa. Recuperando as palavras de
Juan José Saer, pode-se afirmar que a opção de Danilo Kiš não é, ao contrário dos
“eufóricos do falso” e dos “profetas do verdadeiro”, uma fraqueza ante tal ou qual ética
da verdade, mas a busca de uma verdade menos rudimentar.
707
A sombra da falsificação, das mentiras e da manipulação da realidade
contigente pelos mecanismos de poder paira sobre os capítulos de Um túmulo para
Boris Davidovitch. Segundo Luiz Carlos de Brito Rezende,
708
o desafio ético que
Danilo Kiš estabelece em sua obra de ficção está nos interstícios quase invisíveis da
mentira no poder. Em “Os leões mecânicos”, por exemplo, o autor reconstitui a maneira
como o poder soviético procedeu para persuadir o político e escritor francês Édouard
Herriot de que a liberdade de culto religioso era respeitada na União Soviética.
Visitando a URSS nos anos 30 do século XX, ele assistirá a um simulacro de Missa
encenado especialmente para ele. Nesse “circo na casa de Deus”,
709
a igreja de Santa
704
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 7.
705
Cf. SAER. El concepto de ficción, p. 10.
706
Uma reflexão fundamental a esse respeito está no capítulo IV de Mímesis: desafio ao pensamento, de
Luiz Costa Lima, na seção intitulada “O revisionismo histórico: uma conseqüência imprevista”. Cf.
LIMA. Mímesis: desafio ao pensamento, p. 238-247.
707
SAER. El concepto de ficción, p. 12.
708
REZENDE. O escritor se faz de dor, p. 11.
709
KIŠ. Um túmulo para Boris Davidovitch, p. 45.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
208
Sofia de Kiev terá que ser reaberta e sofrer uma “restauração” – que é mais a construção
do cenário para o espetáculo – depois de um longo tempo transformada em cervejaria;
assim como um integrante do partido, Tcheliustnikov, que já fora ator, interpretará o
papel de pope na cerimônia religiosa encenada para o político francês, que é ludibriado
e retorna à França persuadido de que na União Soviética persiste a liberdade de culto
religioso. Toda a narrativa se constrói em torno da preparação da encenação. Interessa
revelar para o leitor os bastidores, mostrar como a história revela-se um grande teatro no
qual o difícil é saber onde termina o bastidor, onde coma a encenação. Desvela-se,
mais uma vez, importantes dimensões que atravessam todo poder autoritário e todo
discurso que se quer da ordem da Verdade – a arte da mentira, o exercício da encenação,
o mecanismo da censura. Como salienta Katarina Melic, Um túmulo para Boris
Davidovitch vira do avesso algumas convicções dos leitores e desconstrói limites
considerados intransponíveis: “opera-se uma reviravolta paradoxal: é a História que
depende do simulacro, e a escritura da verdade. Mas a dúvida termina por se estender ao
estatuto mesmo dos elementos do puzzle que é a História que o leitor lê/monta”
(tradução minha).
710
Ao final da leitura, o leitor concluirá que a combinação das peças
não forma um todo; a unidade e a ordem não estão mais garantidas.
Nesse sentido, Um túmulo para Boris Davidovitch é muito mais do que uma
história bem contada sobre as prisões, os campos de trabalhos forçados, as torturas;
sobre a manipulação do homem, do sistema político e social, que se resumiria em uma
exposição “romanceada” de uma ideologia. Propósito este que colocaria o texto de
Danilo Kiš na esteira dos mesmos ditames da estética “realista socialista”,
mudando
apenas no que tange à sua concepção da “verdade”. Contrariamente, encontra-se na obra
de Kiš o próprio questionamento do topos e do nomos dos “documentos escritos”, antes
definidos como traços inequívocos de confiança na apreensão dos acontecimentos do
passado, na captação da verdade. Dá-se ênfase, para tanto, ao caráter subjetivo e afeito
desses mesmos documentos às manipulações efetuadas pelos sistemas de poder.
711
710
“Il s'opére un retournement paradoxal: c'est l'Histoire qui reève du simulacre, et l'écriture de la vérité.
Mais le doute finit par s'étendre au statut même des divers éléments du puzzle qu'est l'Histoire que
lecteu lit/lie.” (MELIC. La fiction de l'Historie dans Un tombeau pour Boris Davidovitch, de Danilo
Kiš. Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/18.php
>).
711
Sobre as relações entre verdade e poder, ver: FOUCAULT. Microfísica do poder, p. 1-14; Sobre a
questão dos documentos, ver: LE GOFF. História e memória, p. 535-553.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
209
Danilo Kiš alia-se, assim, aos princípios e formulações empreendidas pelos
historiadores, a partir da segunda metade do século XX, no que se refere à lida com os
documentos; o que Jacques Le Goff chama de “revolução documental”.
712
Essa
revolução traria em seu bojo a crítica ao documento como algo objetivo, inócuo,
primário, colocando fim à ilusão de que o documento é um “canal” para se atingir
plenamente a experiência e a memória. Ao mesmo tempo, perdura no inventário
imaginado por Danilo Kiš o desejo de que a narrativa ficcional possa contribuir para
restituir a experiência humana no tempo simultaneamente real e ilusório da leitura.
Nas palavras de Alexandre Prstojevic, concluindo a sua reflexão a respeito da
querela em torno de Um túmulo para Boris Davidovitch:
a poética de Kiš é uma poética da metamorfose, da diferença e do
deslocamento. Ela repousa tanto sobre o ideal enciclopédico do saber
total quanto sobre aquele do fantástico da biblioteca. Seu propósito é o
de desvelar os pontos fracos de um testemunho escrito, de demonstrar
sua falibilidade, de encontrar nos seus interstícios de silêncio os
segredos que se tentou esconder. (tradução minha)
713
Nesse registro dos interstícios do silêncio, na esperança irrisória de fazer escutar o
outro, reside, para Danilo Kiš, a possibilidade de existência da literatura. Em uma longa
carta, a última notação diarística da personagem do demiurgo Edouard Scham, com a
qual o autor encerra Sablier,
714
tem-se uma espécie de epítome dessa idéia. Suas últimas
palavras são:
Na falta de outra coisa, talvez reste o meu herbário material ou meus
cadernos de notas, ou minhas cartas, e não será mais que esta idéia
condensada que se materializou: uma vida materializada, uma pobre e
vã vitória humana sobre o nada infinito, eterno, divino. Ou talvez reste
– apesar de toda aquela sombra no dilúvio último –, reste minha
712
Cf. LE GOOFF. História e memória, p. 540-546.
713
“(...) la poétique de Kiš est une poétique de la métamorphose, de la différence e du décalage. Elle
repose autant sur l'idéal encyclopédique du savoir total que sur celui du fantastique de la bibliothèque.
Son but est de devoiler les points faibles d'un témoignage écrit, de démontrer sa faillibilité, de trouver
dans ses interstices de silence les secrets qu'on a essayé d'y cacher.” (PRSTOJEVIC. Un certain goût
de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo Kiš). Disponível em: <http://www.fabula.org/
effet/interventions/13.php>).
714
Essa carta é, na verdade, como declara o autor em entrevista a Brendan Lemon, a transcrição de uma
carta deixada por seu pai antes de ser levado para Auschwitz, onde morreria em 1944. (Cf. KIŠ. An
interview with Danilo Kiš by Brendan Lemon. Disponível em: <http://www.centerforbookculture.
org/interviews/interview_kis.html
>).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
210
loucura e meu sonho, aurora boreal e eco longínquo. Talvez alguém
note esse luar, entenda esse eco longínquo, sombra de um rumor de
antanho, e compreenda o sentido desse luar, dessa cintilação. Talvez o
meu filho, que divulgará meus cadernos de notas e meu herbário com
suas plantas panonianas (incompleto, inacabado, como tudo que é
humano). E tudo o que sobrevive à morte é uma vã e pequena vitória
sobre a eternidade do nada – a prova da grandeza do homem e da
indulgência de Iavé. Non omnis moriar. (tradução minha)
715
715
“À défaut d’autre chose, peut-être restera-t-il mon herbarium matériel ou mes carnets, ou mes lettres,
et n’est-ce rien d'autre que cette idée condensée qui s’est matérialisée: une vie matérialisée, une
pauvre et vaine victoire humaine sur le néant infini, éternel, divin. Ou peut-être restera-t-il – si même
tout cela sombre dans le déluge ultime –, restera-t-il ma folie et mon rêve, aurore boréale et lointain
écho. Peut-être quelqu’un apercevra-t-il cette lueur, entendra-t-il ce lointain écho, ombre d’un bruit
d’antan, et comprendra-t-il le sens de cette lueur, de ce scintillement. Peut-être est-ce mon fils qui
publiera mes carnets et mon herbarium avec ses plantes pannoniennes (ceci incomplet, inachevé,
comme tout ce qui est humain). Et tout ce qui survit à la mort est une vaine et petite victoire sur
l’éternité du néant – la preuve de la grandeur de l’homme et de l’indulgence de Jahvé. Non omnis
moriar.” (KIŠ. Sablier, p. 249).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
211
3.3. Mentiras em 35 mm
Se Danilo Kiš, com o seu Um túmulo para Boris Davidovitch, protagonizou, à
sua revelia, a maior querela literária da “breve” história da Iugoslávia, Emir Kusturica e
o seu Underground – mentiras da guerra acionaram uma viva polêmica, sendo tema de
todos os debates e alvo de um processo exprobratório que marcou o “longo” período de
desmembramento do país durante a última década do século XX. No caso de Kusturica,
a ameaça à “fogueira” não partiu exclusivamente de uma intelligentsia iugoslava, ou ex-
iugoslava, mas, principalmente, de um tipo de “formadores de opinião”, muito em voga
em fins do século XX e ainda atuantes neste início de milênio nas “redes midiáticas
ocidentais”, os chamados “propagandistas do ‘choque de civilizações’”.
716
Entre estes,
os mais incisivos foram os franceses Alain Finkielkraut, como já aludido no primeiro
capítulo desta tese, e Bernard-Henri Lévy.
717
Para entender mais essa querela, é preciso salientar que, apesar de se
intensificar com a estréia do filme Underground e de se “sustentar” através dele, ela
começa antes, sendo atravessada por posições e paixões outras. Com o início da divisão
da Iugoslávia, Alain Finkielkraut e Bernard-Henri Lévy assumiram posturas políticas
opostas à de Emir Kusturica. O primeiro tomou partido dos nacionalistas croatas, sendo
a principal voz dos separatistas na França, já o segundo defendeu a independência da
Bósnia-Herzegovina, convertendo-se em porta-voz do então presidente muçulmano-
bósnio Alija Izetbegovic.
718
Quanto a Emir Kusturica, como também salientado na
716
Sobre a tese do “choque de civilizações” apresentada por Samuel Huntington no início dos anos 90 e a
sua “intensificação” após os ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001, ver: SAID.
O choque de ignorâncias, p. 16.
717
Figuras pitorescas, estes contam com importantes espaços de difusão midiáticos para divulgar de
modo amplo suas opiniões, tanto na esfera das artes como na política, promovendo, para ficarmos em
um exemplo atual, as políticas governamentais de Israel e dos Estados Unidos. (Cf.HOUSEZ. La
traición de los intelectuales. Disponível em: <http://www.voltairenet.org/article125276.html
>). O
subtítulo do ensaio de Cedric Housez – especialista francês em comunicação política – é justamente:
“Alain Finkielkraut y Bernard-Henri Lévy, dos propagandistas del “choque de civilizaciones.”
718
A política de Izetbegovic, obviamente, era tomada por Bernard-Henri Lévy como um “modelo de Islã
moderado.” Os artigos de Lévy publicados no Le Point estão disponíveis na internet, ver:
<http://www.lepoint.fr/sommaire.html
>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
212
primeira parte desta pesquisa, este tinha um ponto de vista diferente do problema.
Nascido em Sarajevo, ele sempre se considerou iugoslavo, não hesitando em denunciar
os nacionalistas croatas e eslovenos como descendentes ideológicos dos colaboradores
nazistas e também em apontar a responsabilidade das potências estrangeiras na
fragmentação de seu país. Em abril de 1992, período em que se intensificam os conflitos
na Bósnia-Herzegovina, o cineasta publica, no Le Monde, o artigo “Europe, ma ville
flambe”, em que se dirige de modo direto a uma inacessível “Europa”, confirmando o
seu posicionamento. Ele termina o texto da seguinte maneira:
Europa, o enfrentamento de muçulmanos da Bósnia e de sérvios da
Bósnia não é autêntico, ele tem sido fabricado, ele surgiu dos
escombros dos impérios desabados que deixaram atrás deles suas
cinzas. Ele tem sido alimentado pelos movimentos nacionalistas
desprovidos de qualquer razão, és TEU incêndio, és TU que deve
apagá-lo.
Estes são os momentos de exame de tua consciência, Europa, se
todavia tu existes! (tradução minha)
719
O posicionamento de Emir Kusturica não agradaria aos dois intelectuais
franceses e a polêmica se instalaria definitivamente após o Festival de Cannes de 1995,
quando o cineasta receberia a sua segunda Palma de Ouro com Underground. Logo,
Alain Finkielkraut, em artigo para o Le Monde, acusaria o juri do festival de premiar um
“propagandista nacionalista pan-sérvio” e o seu “grande afresco sobre cinqüenta anos de
história iugoslava”:
o que Kustruica traduz em música e em imagens, é o próprio discurso
que empunham os assassinos para se convencer que eles agem em
legítima defesa por ter que enfrentar um inimigo todo poderoso. Este
cineasta, de quem se diz que não tem medida, explorou asssim os
sofrimentos de Sarajevo enquanto retoma integralmente os
argumentos esteriotipados dos sitiadores e dos que trazem a fome para
esse território. (...) Recompensando Underground, o juri de Cannes
acreditava reconhecer o mérito de um criador de imaginação
abundante. De fato, honrou a um ilustrador servil e berrante que
719
“Europe, l'affrontement des Musulmans de Bosnie et des Serbes de Bosnie n'est pas authentique, il a
été fabriqué, il est apparu sur les décombres des empires déchus laissant derrière eux les cendres. Il est
entretenu par les mouvements nationalistes dépourvus de toute raison, c'est TON incendie, c'est à TOI
de l'éteindre.// Ce sont les moments de l'examen de ta conscience, Europe, si toutefois tu existes!”
(KUSTURICA. Europe, ma ville flambe!. Disponível em: <http://dhennin.com/kusturica/v2/
politique_fr.html>.)
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
213
emprega clichés criminais. (...) Nem mesmo o diabo poderia conceber
uma ofensa tão cruel à Bósnia, nem um epílogo tão grotesco à
frivolidade e à incompetência ocidentais. (tradução minha)
720
O que surpreende, como já aludido no primeiro capítulo desta tese, não são as
palavras categóricas de Alain Finkielkraut, mas o fato de, depois de condenação tão
virulenta, ele admitir, em outro artigo, que não viu Underground, ao qual, teoricamente,
dirigem-se suas críticas, antes de publicar “A impostura de Kusturica”. Em suas
palavras, justificando-se em um outro momento: “esta mistificação ofensiva e estúpida
tinha de ser denunciada sem demora. Isso foi o que fiz”.
721
Também de início, em seus
“Bloc-notes” no periódico Le Point, Bernard-Henri Lévy acusará Kusturica, entre outras
coisas, de “autor fascista”, sem mesmo assistir ao filme. Depois de vê-lo, comparará o
cineasta ao escritor Louis-Ferdinand Céline, o “gênio racista”, que tomara partido pelo
nazismo.
722
O que essa polêmica, que ainda se arrastaria por alguns anos,
723
revela é o fato
de o filme Underground ser tomado pelos seus detratores como um puro e simples
720
“ (...) ce que Kusturica a mis en musique et en images, c'est le discours même que tiennent les
assassins pour convaincre et pour se convaincre qu'ils sont en état de légitime défense car ils ont
affaire à un ennemi tout-puissant. Ce cinéaste dit de la démesure a donc capitalisé la souffrance de
Sarajevo alors qu'il reprend intégralement à son compte l'argumentaire stéréotypé de ses affameurs et
de ses assiégeants. (...) En récompensant Undergroud, le jury de Cannes a cru distinguer un créateur à
l'imagination foisonnante. En fait, il a honoré un illustrateur servile et tape-à-l'oeil de clichés
criminels. (...) Le diable lui-même n'aurait pu concevoir un aussi cruel outrage à la Bosnie ni un
épilogue aussi grotesque à la frivolité et à l'incompétence occidentales.” (FINKIELKRAUT.
L'imposture Kusturica, p. 17. Disponível em: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/ polemique_en.
html
>).
721
FINKIELKRAUT. La propaganda onirique d'Emir Kusturica, p. 7. Disponível em: <http://www.
dhennin.com/kusturica/v2/ polemique_en.html
>. Essa situação “pitoresca” serviu como ponto de
partida para a realização de um filme, a comédia Rien sur Robert, dirigida por Pascal Bonitzer. (Cf.
HOUSEZ. La traición de los intelectuales. Disponível em: <http://www.voltairenet.org/
article125276.html>).
722
LEVY. Bloc-notes Disponível em: <http://www.lepoint.fr/edito/document.html?did=38414>;
<http://www.lepoint.fr/edito/document.html?did=40386>. Vale ressaltar que essas manifestações a
respeito de Underground sem ao menos ver o filme (“avant de l'écran”) foram fundadas em
entrevistas e reportagens sobre o filme que apareceram na Cahiers du cinema, em junho de 1994
(n.481)e junho de 1995 (n.492). Ver: OSTRIA. Monsieur K. à Prague, p. 73-81; GRÜNBERG.
Comment Kusturica déplaça les montagnes, p. 67-68. KUSTURICA. Propos de Kusturica, p. 69-71.
723
Cito ainda dois ensaios posteriores, o do croata Drazen Katunaric, “Underground de Kusturica ou la
nostalgie de l'âme slave”, publicado na revista Esprit, em 1997, e o do esloveno Slavoj Zizek,
“Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means”, publicado na
InterCommunication, em 1996. (Cf. KATUNARIC. Underground de Kusturica ou la nostalgie de
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
214
instrumento de propaganda ideológica. A força emocional ainda potente liberada pelos
conflitos na região dos Bálcãs trouxe à tona a dimensão afetiva e as arestas políticas do
filme de Emir Kusturica e de seus interpretadores.
O posicionamento político do cineasta – exposto em artigos e entrevistas
724
parece tornar impraticável o arrefecimento das “paixões políticas”, impossibilitando
qualquer análise estética equilibrada. Como salienta Slavoj Zizek: “Ao olhar para as
reações passionais às quais Underground deu origem, especialmente na França, parece
que seu papel como uma aposta no debate político a respeito do significado da guerra na
ex-Iugoslávia eclipsou totalmente suas inerentes qualidades estéticas” (tradução
minha).
725
Também é inegável que, quando assistido, o filme libera, através de suas
“arestas irônicas”,
726
uma forte carga afetiva, provocando uma gama de respostas
emocionais do espectador, da raiva ao deleite, e vários graus de motivação e
proximidade, do distanciamento desinteressado ao engajamento apaixonado – como
adverte Linda Hutcheon: “a ironia decididamente tem os nervos à flor da pele”.
727
Por outro lado, a cada revisão do filme de Emir Kusturica, a sensação que se
tem é que o cineasta não poupa nada nem é condescendente com ninguém, inclusive
com ele mesmo – que, além de fazer uma participação cameo, interpretando um
l'âme slave, p. 119-139; ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by
other means. Disponível em: <http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/ic018/intercity/zizek_E.html>
).
Como salienta Dina Iordanova, somente depois que as críticas vindas de “vozes do Ocidente” contra o
filme apareceram, as opiniões de autores da região passaram a ganhar espaço na mídia internacional.
(Cf. IORDANOVA. Cinema of flames, p. 116-117).
724
Por exemplo, o fato de ele escolher Belgrado como cenário para o filme, quando a guerra era travada
na Bósnia, o financiamento conseguido – US$ 12 milhões – graças ao empenho da Radio Televizije
Srbije (RTS), televisão oficial de Belgrado, e o suporte recebido nessa parte da ex-Iugoslávia. (Cf.
IORDANOVA. Cinema of flames, p. 116-124).
725
“With regard to the passionate reactions to which Underground gave rise, especially in France, it
seems that its role as the enjeu in the political struggle over the meaning of the post-Yugoslav war
totally eclipsed its inherent aesthetic qualities.” (ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a
continuation of poetry by other means. Disponível em: <http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/
ic018/intercity/zizek_E.html>)
726
Segundo Linda Hutcheon, “a ironia possui uma aresta avaliadora e consegue provocar respostas
emocionais dos que a ‘pegam’ e dos que a não pegam, assim como dos seus alvos e daqueles que
algumas pessoas chamam de suas ‘vítimas.’” HUTCHEON. Teoria e política da ironia, p. 16.
727
HUTCHEON. Teoria e política da ironia, p. 63.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
215
“mafioso” comprador de armas, na última parte do filme, aparece parodiado na figura
do cineasta colaborador. Underground não peca pela “correção” histórica – ou o
“politicamente correto” – nem pelo desejo de consenso. A “intenção”,
728
levando-se em
conta o realizador e o espectador do filme, não é criar um panfleto ou um filme histórico
tradicional, como o filme dentro do filme: A primavera chega num cavalo branco. Se há
um afresco da história iugoslava de 1941 a 1992, este é construído não como uma
síntese, uma totalidade não-fissurada, mas a partir de “um exército de resíduos que
aponta para o passado e exige restituição”.
729
Nesse sentido, não há lugar, em Underground, para a nostalgia do “cidadão
iugoslavo” Emir Kusturica, pois, entre ruínas e destroços, a alegoria se faz luto; o filme;
necrológio de um país e de sua capital. Não há espaço para heróis (os valentes sérvios)
ou vilões (os invasores nazistas, os coniventes croatas e eslovenos), ou seja, uma
retórica maniqueísta que convide à solidariedade, como viram, ou não, alguns detratores
do filme, que, muitas vezes leram as alusões históricas presentes na narrativa – tomadas
isoladamente do contexto fluido e não-fixo do texto fílmico – procurando uma chave
precisa e única para os fatos. Conforme afirma Andréa França, “o filme complexifica e
transforma em falsa qualquer espécie de determinação histórica, religiosa, étnica ou
geográfica, mostrando a ilusão que seria acreditar na existência de formas de consenso
coletivo”.
730
Sob o viés de um olhar crítico e desnaturalizador, todas as personagens e
situações carregam ambivalência, a memória das guerras bordeja a falsificação, a
síntese histórica traz o risco do logro.
Penso que cabe aqui uma sinopse do filme: na madrugada de 06 de abril de
1941, Marko e Crni, embriagados, comemoram a entrada do segundo no Partido
728
Tomo a noção de intenção em um sentido estendido, inseridos o produtor (realizador) e o receptor
(interpretador) na construção do significado do texto fílmico. Assim, ao falar de uma intenção de Emir
Kusturica, tenho consciência da minha interpretação como um ato intencional, não concebendo o
filme como a manifestação sublime das intenções de um sujeito. Sobre esse alargamento da noção de
intenção, ver: HUTCHEON. Teoria e política da ironia, p. 169-180.
729
AVELAR. Alegorias da derrota, p. 14.
730
FRANÇA. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo, p. 90.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
216
Comunista iugoslavo e o roubo de um carregamento de armas do governo,
acompanhados de uma ruidosa e ubíqua orquestra cigana. Na manhã do mesmo dia,
Belgrado é bombardeada. Os alemães invadem o país. Os oportunistas Marko e Crni
tomam parte na resistência comunista chefiada por Tito. Face à incerteza da guerra e às
possíveis prisões dos insurgentes, Marko resolve esconder em um porão da casa de seu
avô, os familiares dos aliados, inclusive o seu irmão Ivan (zelador do zoológico de
Belgrado, que leva consigo o macaco Soni) e a esposa de Crni, Vera. No porão, Vera dá
a luz a Jovan e logo em seguida morre. A amante de Crni, a atriz Natalija, adere aos
invasores, mais especificamente ao oficial nazista Franz, e torna-se “primeira dama” do
teatro de Belgrado. Três anos depois, Crni comemora o aniversário do filho Jovan, que
vive no sótão, ao mesmo tempo em que planeja seqüestrar Natalija. Em uma
apresentação ultra afetada, em alemão, obviamente, de O pai, de Auguste Strindberg,
Crni adentra o palco e rouba Natalija. Depois de uma tentativa frustrada de se casar com
a atriz, Crni é preso e interrogado pelos alemães. Marko consegue resgatar o amigo,
mata Franz e leva Natalija. Um acidente estúpido com uma granada deixa Crni ferido e
este é levado para o porão. Apaixonado por Natalija, Marko mantém as pessoas no
porão durante 20 anos. Casa-se com Natalija, torna-se membro importante do governo
de Tito, agora na República Federativa Popular da Iugoslávia, e transforma Crni, que é
dado como morto, em mártir da libertação do país. Alheios ao mundo exterior, os
habitantes do porão, dependentes das informações de Marko, único elo deles com o
exterior, seguem acreditando que a Segunda Guerra Mundial não acabou e fabricam
armas para ajudar a resistência. Com o contrabando dessas armas, Marko e Natalija
enriquecem e fabricam histórias da guerra forjada. Na cerimônia de casamento de
Jovan, Crni e o filho conseguem sair do porão. Também Soni e Ivan saem. Porém, a
superfície que se revela é um complexo emaranhando de corredores estreitos, túneis,
canais que ligam a Iugoslávia a uma outra Europa, representada metonimicamente pelas
placas que indicam um túnel que liga Berlim a Atenas. Depois de uma elipse de mais de
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
217
30 anos, as personagens reencontram-se em pleno conflito que detonou a dissolução do
país nos anos 90 do século XX.
Partindo de uma peça teatral de Dusan Kovacevic,
731
com quem assina o
roteiro do filme, o cineasta racha o espelho mágico – espelho invertido, distorcido e
reformado; característico de um discurso subalterno – e o aplica à Europa Centro-
Oriental de modo a que todos são obrigados a mirar-se nas águas sujas de um
poço/espelho – o elemento fantástico que se encontra em um pátio no meio do porão no
qual estão confinadas as personagens. Imagem-síntese que várias vezes volta,
pontuando passagens decisivas na história, o poço parece oferecer a quem dele se
aproxima seu produto aparentemente inesgotável, o fluxo de energia e força que não
cessa de recorrer ao longo do filme. Como bem observa Slavoj Zizek, ao contrário de
“lançar fora a água suja [o fanatismo ‘excessivo’ nacionalista] sem também perder a
criança [o nacionalismo ‘saudável’]”, o que reproduziria exatamente a lógica
nacionalista de livrar-se dos excessos impuros, um dos méritos de Underground é tornar
visível, é fazer com que o espectador confronte-se com a “água suja”, no caso, o
fantasmático suporte que estrutura o gozo na fobia nacional.
732
Se uma postura tradicional pressupõe o “olhar o espelho” como tentativa de se
alcançar pelo viés da “mímica” o outro mais avançado sobre o qual se investe o olhar e
a fantasia – postura tão bem figurada na seqüência da representação da peça de Auguste
Strindberg, em que o afetamento teatral com que os atores recitam o texto e gesticulam
é levado ao cume, assim como o cenário, a maquiagem e o figurino
733
–, o “deformar o
731
A peça de Kovacevic localiza-se apenas nos anos 40 do século XX, nela um homem mantém
escondido no porão um grupo de pessoas a quem engana, dizendo que a guerra não acabou, e obriga a
tecer pulôveres. (Cf. KUSTURICA. Souvenirs de bord, p. 42-43; OSTRIA. Monsieur K. à Prague, p.
77-79).
732
Cf. ZIZEK. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means. Disponível
em: <http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/ic018/intercity/zizek_E.html.>
733
Esta seqüência, em que a representação teatral é interrompida, dialoga de modo explícito com a
comédia Ser ou não ser, de Ernst Lubitch. Também as cenas de Natalija e Franz lembram Carole
Lombard e o oficial nazista no filme de Lubitch. (Cf. SER ou não ser. Direçaõ de: Ernst
Lubitch...(1942)
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
218
espelho” significa uma postura mais crítica em que se desmascara a homogeneidade do
outro, em que se descortina a ruína por trás do monumento. Propõe-se, assim, uma
lógica perturbadora para o aparelho conceitual “cosmopolita” ocidental, na qual nós e os
outros, aliados e inimigos, gregos e bárbaros, fundem-se em um espaço intercambiável,
uma terceira margem, feita de filamentos subterrâneos que parecem levar a lugar
nenhum.
Dividido em três partes: Guerra, Guerra Fria e Guerra, o filme de Emir
Kusturica nutre-se dos campos de força e da dinâmica das guerras e, ao mesmo tempo,
“purifica-os” do dogmatismo, do caráter unilateral, da esclerose, do fanatismo e do
espírito categórico, que permeiam a “lógica bélica”. Para tanto, alguns elementos são
convocados para trazer e suplementar a pulsão rítmica dos conflitos bélicos sob um viés
deliberadamente não-oficial, irônico e ao mesmo tempo regenerador.
734
O ritmo
incessante, os fluidos elétricos, a euforia histérica, o espírito frenético, o tom de
comemoração às avessas são trazidos pela música cigana –conduzida por uma orquestra,
que estranhamente não pára de tocar
735
–, pelas festas de aniversário e de casamento –
algumas abortadas, outras não –, pela dança, pelo canto, pelo efeito da bebida, pelo riso
e pelas lágrimas. Os músicos ciganos, sempre presentes, ocupam o lugar dos antigos
rapsodos, não só “comentam” as cenas, mas ditam o ritmo vertiginoso das mesmas. Nas
palavras de Antoine de Baecque:
A cada vez que essas figuras irrompem – não de súbito pois que se as
espera – parece que o filme se faz pleno de energia para reparti-la cada
vez mais, como se esses reabastecimentos oferecessem a
Underground a possibilidade de ser generoso ao longo de seu
734
Inevitavelmente, ao falar do caráter regenerador do filme de Emir Kusturica, remeto à leitura de
Mikhail Bakhtin da literatura de François Rabelais, e também à leitura que Gilles Deleuze faz do
cinema de Federico Fellini. (Cf. BAKHTIN. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, p 1-
114; DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 9-23; 29; 93-94; 110-120;).
735
A trilha sonora dos filmes de Emir Kusturica, desde Vida Cigana (1989), fica a cargo de Goran
Bregovic, também integrante, ao lado de Kusturica, do grupo No Smoking Orchestra.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
219
desenvolvimento, conferindo ao discurso e às imagens sua potência de
arrebatamento. (tradução minha)
736
Além disso, é esse caráter incessante da música cigana que permite a confluência dos
fluidos regeneradores e transformadores que atravessam a tela. Como salienta o próprio
Emir Kusturica: “eu utilizei uma música que exprime os sentimentos das pessoas, isso
me deu muito do potencial para dinamizar o filme e os atores, e encontrar o ritmo da
guerra” (tradução minha).
737
O “Era uma vez um país...”, título inicial depois tornado subtítulo original de
Underground, lido por muitos como prova do “adeus nostálgico” de Emir Kusturica à
Iugoslávia, aparece duas vezes no filme e de formas distintas. Em um primeiro
momento, na forma de intertítulos que abrem a narrativa. Como nos cinema mudo, esses
intertítulos são interpostos entre as cenas do filme, formando verdadeiros blocos.
738
No
caso de Underground, a função aparente desse recurso é localizar as datas, organizar,
separar e classificar os fatos. Por outro lado, o tom objetivo, formal e regulador dos
textos inscritos nessas cartelas entra em contradição com a caráter onírico, fantástico e
farsesco das imagens do filme às quais servem de “legenda”. Cria-se, portanto, um
contraponto irônico: o modelo progressivo do historicismo emoldurando imagens que
aludem à farsa, ao logro e à mentira.
739
Inserido nesse contexto, o primeiro “Era uma
vez...” aponta para o tratamento gradualista, finalista e progressivo das grandes
narrativas sobre o passado, fundadas no historicismo, convertendo-se, para dizer com
Walter Benjmain, na “meretriz ‘era uma vez’” com a qual aqueles que escrevem a
história –como Marko, que forja uma imagem “eterna” do passado – querem se esgotar
736
“A chaque fois, lorsque ces figures surviennent – non pas à l'improviste puisqu' on les attend – il
semble que le film fasse le plein d' energie pour repartier de plus belle, comme si ces ravitaillements
offraient à Underground la possibilité d'etrê généreux pendant l'intégralité de son déroulement,
conféraient au récit et aux images leur puissance d'emportement.” (BAECQUE. Dans les entrailles du
communisme, p. 39.).
737
“j'ai utilisé une musique qui exprime les sentiments des gens, ça m' a donné beaucoup de potentiel
pour dynamiser le film et les acteurs, et trouver le rythme de la guerre.” (KUSTURICA. Propos de
Emir Kusturica, p. 69.
738
Sobre o papel dos intertítulos no cinema mudo, ver: DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 267-
269.
739
Infelizmente, a tradução dos intertítulos nas legendas do filme em português não leva em conta esse
contraponto irônico, muitas vezes “desinformalizando” o conteúdo das mesmas.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
220
no “bordel do historicismo”.
740
Ao final do filme, o “Era uma vez...” retorna – esse
retorno não é palindrômico –, agora nas palavras ditas pelo ator Slavko Stimac, que
interpreta a personagem Ivan – o narrador gago e claudicante do início do filme (ver
capítulo 1) –, com um sentido outro, não mais como a chave de entrada para uma
narrativa grandiosa e progressiva. Como nas fábulas, as regras de verossimilhança dos
relatos tradicionais são postas em suspensão a priori, para que uma outra lógica se
precipite, para tanto, o personagem converte-se em ator; o final, em começo de uma
história que não tem fim.
A falsificação, as mentiras e a manipulação da realidade contigente pelos
mecanismos de poder também é tema privilegiado em Underground. Se o filme
documentário e o filme de testemunho
741
pretendem cancelar a dimensão narrativa em
favor de um diligente testemunho do mundo, ou seja, registrar os fatos com a máxima
neutralidade possível, sem aplicar modificações subjetivas, Underground distorce a
fidelidade do documentário ao real, utilizando-o como gênero inserido dentro da
narrativa, mas questionando sua fidelidade ao mundo, em um incessante jogo entre
verdade e mentira.
Os arquivos comparecem na forma de cenas de documentários antigos que são
utilizados de modo intermitente ao longo do filme, na maioria das vezes depois dos
intertítulos. Assim como Danilo Kiš, Emir Kusturica reorganiza de modo inventivo os
dados documentados já existentes, no caso específico, as imagens de arquivo,
evidenciando o caráter “construível” das mesmas; a materialidade de um suposto real
registrada em celulóide. Tais imagens são integradas à narrativa através de um processo
de colorização que torna quase imperceptível a identificação das mesmas como
“fragmentos” estranhos ao resto filme; além disso, em muitos momentos, graças à
utilização de efeitos técnicos e um impecável trabalho de iluminação e fotografia, os
atores contracenam e interagem com as imagens de documentário (ver Figura 6)
740
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 230-231.
741
Sobre a questão do filme documentário e de testemunho e a lógica arquivística, o seu papel de
“catálogo móvel”, ver: COLOMBO. Os arquivos imperfeitos, p. 50-58.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
221
Figura 6: Seqüência do filme Underground
Fonte: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/polemique_en.html>
Por outro lado, o objetivo não é criar um efeito de realidade ou criar uma ilusão
referencial, mas corromper a pretensão mesma dessas imagens de se firmarem como
prova, documento da realidade.
742
Daí, a indiferenciação entre as imagens de arquivo
que trazem Belgrado destruída pelo bombardeio alemão e, três anos depois, pelo
aliados, que “destroem tudo que os nazistas pouparam em 1941”. Essas imagens, parece
afirmar Emir Kusturica, não têm nenhum sentido preciso, podem servir a todas as
propagandas.
743
Redutores de uma história complexa, esses fotogramas constituem-se
em imagens-emblema, que servem para atiçar ódios, provocar comiseração, guardar,
para o bem e para o mal, a “memória coletiva”.
O momento mais inventivo dessa forma de desvelamento acontece no final da
segunda parte do filme, na seqüência de imagens que mostram o funerais de Tito.
744
Nesse caso, não há nenhuma incrustração aparente, as imagens, provavelmente de
cinejornais da época, vão surgindo, seqüencialmente: Liubliana, Zagreb, Belgrado;
742
Procedimento semelhante foi utilizado por Woody Allen, em 1983, no filme Zelig, no qual também se
deforma e se traí o princípio do arquivo, problematizando os cânones e instrumentos do filme
documentário e do filme de testemunho. Neste filme, o cineasta fabrica um documentário sobre
Leonard Zelig, o “homem-camaleão”, capaz de mudar suas feições de acordo com o ambiente em que
está. Ao longo do filme, depoimentos falsos e verdadeiros, cinejornais da época, fotografias e cenas
filmadas incorporam-se à narrativa, de modo refinado. (Cf. ZELIG. Direção de Woody Allen...
(1983)).
743
“Para o militante, a identidade é tudo. E todas as fotos esperam sua vez de serem explicadas ou
deturpadas por suas legendas.” (SONTAG. Diante da dor dos outros, p. 14).
744
Imagens também utilizadas no “documentário” Memórias em super 8, que acompanha a turnê da
banda da qual Emir Kusturica faz parte, No Smoking Orchestra, em 1999. (Cf. MEMÓRIAS em super
8. Direção de Emir Kusturica... (2001).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
222
pessoas nas ruas choram, estadistas comparecem à solenidade, bandeiras, exército,
lápide...; se as imagens não denunciam a manipulação, o áudio – a canção “Lilli
Marleen”, a mesma que, na primeira parte, acompanhava as imagens da invasão alemã e
que, na segunda parte, era utilizada, por Marko, ao lado dos sons de bombardeios, de
sirenes, na guerra que ele forjara para os habitantes do porão –, na forma de um
palimpsesto, faz o contraste irônico. Também os intertítulos que antecedem as imagens
do funeral põem em movimento as oscilações do significado irônico: “Com o misterioso
desaparecimento [do revolucionário e poeta] Marko Dren, foi como se a fórmula da
Iugoslávia de Tito desaparecesse. Tito também não resistiu à perda do amigo. Ficou
doente, sofreu, sofreu e, finalmente, vinte anos depois, morreu”. Através dessas “arestas
irônicas”, que permitem perceber algo mais ao mesmo tempo, Emir Kusturica põe em
questão o estatuto mesmo das imagens, recusando-lhes toda legitimidade de
representação fiel da realidade, já que a manipulação das mesmas pelos mecanismos de
poder tem sido um dos instrumentos mais eficazes de propaganda. Quem muito bem
percebeu esse estado de coisas foi Walter Benjamin na última parte do seu ensaio “A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, quando advertia sobre o objetivo
último do futurismo italiano e dos filmes documentários:
Deve-se observar aqui, especialmente se pensarmos nas atualidades
cinematográficas, cuja significação propagandística não pode ser
superestimada, que a reprodução em massa corresponde de perto à
reprodução das massas. Nos grandes desfiles, nos comícios
gigantescos, nos espetáculos esportivos e guerreiros, todos captados
pelos aparelhos de filmagem e gravação, a massa vê o seu próprio
rosto. Esse processo, cujo alcance é inútil enfatizar, está estreitamente
ligado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução e registro.
(grifos do autor)
745
745
BENJAMIN. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 194-195. Muito se fala do
papel que as imagens tiveram, antes e durante a Segunda Guerra Mundial, para a consolidação do
nazismo, dando-se especial enfoque aos filmes de Leni Riefenstahll. Vale lembrar também que em
Hollywood, em 1940, formou-se o Motion Picture Commitee cooperating for National Defense, com a
finalidade de cuidar da distribuição e exibição gratuita dos filmes de propaganda, produzidos por
agências governamentais. Após o ataque japonês de 07 de dezembro de 1941, esse grupo tornou-se o
War Activities Committee, sendo que suas atividades se intensificaram com a produção de filmes que
procuravam atrair voluntários para as forças armadas e para a indústria de guerra. Entre os
documentários mais significativos dessa época está a série Why we fight, dirigida por Frank Capra.
(Cf. MATTOS. Hollywood na guerra, p. 22-28; PRELÚDIO de uma guerra. Direção: Frank
Capra...(1942))
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
223
Nesse sentido, Underground, de Emir Kusturica, opõe-se a Um olhar a cada
dia, de Theo Angelopoulos, neste, o cineasta A. parece apostar na instância conservativa
do cinema, ao empreender a sua “odisséia” em busca dos três rolos de filme dos irmãos
Miltos e Yannakis Manakis cujo significado para ele é revestido de um poder de
imagem do mundo, no caso, os Bálcãs antes da guerra, antes da fragmentação, antes do
esfacelamento; como ele insiste em repetir: memórias que não podem cair no
esquecimento. Por outro lado, como adverte Fausto Colombo, nos casos em que o filme
é tomado como objeto de conservação, o que conta: “não é tanto que ele fale deste ou
daquele fato, mas sim que o próprio filme exista e continue a existir, no tempo e no
espaço, que se torne, em suma, memória de si mesmo, e vença o possível
esquecimento”.
746
Um olhar a cada dia está impregnado dessa instância conservativa,
emblematizada pelas seqüências dentro da cinemateca em Sarajevo, quando Ivo Levi
tenta recuperar as imagens dos irmãos Manakis, em meio a cartazes de “clássicos” do
cinema e montes de latas de filmes; “memórias de um texto que não deve cair no
esquecimento”.
747
Nesse caso, a revelação, o deciframento dos rolos de filme deixa de
ser vital, o que importa é saber que a “recordação” está depositada em algum lugar e sua
recuperação é, teoricamente, possível. A., Ivo Levi e Angelopoulos ocupam, portanto,
para recuperar o “mal de arquivo” de Jacques Derrida, o lugar de arcontes – os
primeiros guardiões cujas casas guardavam em “segurança” os documentos–, que
tinham o direito e a competência hermenêuticos – podia-se dizer a crença tranqüila – de
interpretar os arquivos.
748
Em Underground, a lógica arquivística, o poder de conservação das imagens
do mundo na “era de sua reprodutibilidade técnica”, adquire outros contornos. Ao
contrário de Theo Angelopoulos, Emir Kusturica manifesta em seu filme uma
substancial desconfiança acerca da capacidade de conservação e recuperação do passado
por parte dos meios de “reprodutibilidade técnica”. Afinal, o que as imagens dos filmes
de atualidade, o filme épico-socialista, os monumentos históricos insistem em celebrar é
746
COLOMBO. Os arquivos imperfeitos, p. 54.
747
COLOMBO. Os arquivos imperfeitos, p. 55.
748
Cf. DERRIDA. Mal de arquivo, p. 12-13.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
224
a história oficial, o triunfalismo dos vencedores, relegando para o subsolo a lembrança
dos vencidos.
749
É através da conservação e manipulação de “documentos” da guerra – seja a
reprodução dos sons (bombardeios, sirenes, “Lilli Marleen”,
750
canções guerreiras),
imagens (cenas em preto e branco de bombardeios) ou a preservação de objetos (o
relógio com a efígie de Tito) e discursos –, que o falsário
751
Marko fabrica a farsa, o
logro, as mentiras da guerra que nunca termina, confinando no porão todo uma
comunidade que crê (imagina) em uma ocupação alemã, que parece durar para sempre,
e trabalha na fabricação de armas para resistência, na esperança de uma liberação que
nunca chega. Igualmente, dentro do imaginário nacional farsesco cosntruído no porão, o
tempo não pode ser o mesmo da superfície, Marko controla-o através de um grande
relógio que é atrasado, pelo avô da personagem, em seis horas por dia. As horas devem
passar lentamente para que a jornada de trabalho se amplie, mas principalmente a
realidade debaixo deve afastar-se cada vez mais daquela da superfície. Vale lembrar
ainda que é através de um periscópio, que permite “ver” em todas as direções, que a
personagem do falsário controla e manipula as pessoas no porão, sendo seu principal
instrumento de poder. Equipamento óptico utilizado especialmente em submarinos, o
periscópio entra em relação com outro dispositivo óptico, a câmera cinematográfica,
assim como o falsário se relaciona com uma cadeia de falsários na qual ele se
metamorfoseia: o intelectual “engajado”, o poeta glorificador do Estado, o líder da
resistência, o cineasta colaborador por trás da “câmera”. Nas palavras de Gilles
Deleuze, “a narração falsificante (...) quebra o sistema do julgamento, pois a potência do
falso (não o erro ou a dúvida) afeta tanto o investigador e a testemunha quanto o
presumido culpado”.
752
749
CHAUI. Os trabalhos da memória, p. XVIII-XIX.
750
Também ao ler as partes da Enciclopédia dos mortos que reconstroem o período da vida de sua
família na época da Segunda Guerra Mundial, a narradora evoca os sons da canção “Lilli Marleen”
como fundo sonoro, ouvidos difusamente através de um rádio da vizinhança. (Cf.KIŠ. Enciclopédie
des morts, p. 58.)
751
Sobre a personagem do falsário no cinema, ver DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 162-167.
752
DELEUZE. Cinema II: a imagem-tempo, p. 162-167
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
225
Falsário ilocalizável e crônico, Marko é a figura ilimitada que impregna todo o
filme. Ele é o homem que fabrica imagens, dentro e fora do porão, como a do amigo
Crni, que, do lado de fora, dado como morto, se converte, a partir da manigância, do
amigo em herói da resistência iugoslava, sendo utilizado como instrumento de
propaganda do governo de Tito. Sua imagem se reduplica em estátua no parque, nos
discursos efusivos de Marko, no filme de propaganda. Ao discursar diante da efígie do
amigo, Marko “testemunha” a trajetória de um herói exemplar, sendo o depositário das
memórias/mentiras da guerra. É significativa ainda a seqüência em que Marko e
Natalija visitam as filmagens de A primavera chega num cavalo branco. A cena que
está sendo filmada é exatamente aquela da cerimônia de casamento de Crni e Natalija
no barco, abortada pela chegada de Franz e o exercito nazista. Trata-se da versão
“oficial” dos fatos. Pode-se comparar as duas versões, a “realmente” ocorrida e a
representada pelo filme propagandístico – provavelmente aquela que é ensinada nas
escolas –, para se comprovar que as duas divergem, imensamente, uma da outra. Além
disso, a presença de Marko e Natalija no cenário das filmagens estabelece um regime de
indiscernibilidade entre os dois e os atores que os interpretam no filme dentro do filme,
não só pela semelhança física – os mesmos atores interpretam os dois papéis –, mas
porque ali todos encenam: Marko e Natalija, heróis da resistência; os atores, operários
da arte empenhada. Ao encontrar o ator que o interpreta, Marko declara emocionado:
“Você é eu?!” e este responde: “Marko, sim, eu sou você;” nesse momento é o próprio
falsário que parece perder-se nas tramas e nos jogos de ilusionismo criados por ele
mesmo. Em outro momento do filme, no final da primeira parte, tem-se o seguinte
diálogo entre Marko e Natalija, logo após a “descida” de Crni para o porão:
Eu não sei, querida, se isto é sonho... nem em que ano ou que dia
estamos. E eu não sei, querida, se sou eu ou se você é que é meu
sonho.
Para quem escreveu esses versos? Confesse!
Para você.
Está mentindo... Está mentindo
Eu nunca minto.
Nunca!
Nunca?
Marko, você diz mentiras tão lindas!
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
226
Durante o casamento de Jovan no porão, as mesmas palavras retornam, quando Natalija
afirma: “Meu Deus, você diz mentiras tão lindas” e Marko responde: “Eu nunca minto”.
Para o falsário, as diferenças entre o que é verdadeiro e o que é falso tornam-se
inexplicáveis e com isso a potência do falso impõe-se como adequada à experiência –
das guerras, das memórias, do tempo – em oposição a qualquer forma de “verdadeiro”.
Nesse sentido, Emir Kusturica também revela-se um falsário, pois, na teia construída
por ele em Underground, não há qualquer possibilidade de uma verdade filmada, de
uma origem, como o há em Theo Angelopoulos, por exemplo.
A farsa, o duplo, a ambivalência contaminam todas as peças do calidoscópio
que compõem Underground: as cenas em que Marko, Natalija e Crni aparecem
cantando e suas cabeças se encontram no meio da tela e os seus movimentos em círculo
vão formando imagens vertiginosas é signifcativa dessa figura. Na seqüência do
casamento no barco, por exemplo, em dado momento a orquestra toca uma canção
militar dos tchetniks – os resistentes monárquicos à ocupação alemã durante a Segunda
Guerra Mundial –, de repente chega um soldado integrante dos partisans titistas,
imediatamente a orquestra passa a entoar o hino comunista. A própria saída da
“caverna/porão” irá revelar uma extensão ainda mais monstruosa: as inúmeras galerias e
filamentos subterrâneos que parecem percorrer, como os trilhos de um trem fantasma ou
uma teia de aranha continental, toda a Europa. Como observa Andréa França:
Em Underground – Mentiras da guerra, a Iugoslávia está a uma
distância mínima da Europa e, ainda assim, esta proximidade é
alucinatória e perversa, feita de ramificações escuras, úmidas e
desconexas. São corredores em hastes constituindo as comunicações
internas e externas, promovendo espaços desconectados, lisos, por
onde circulam pessoas, animais e veículos. Quase todos os percursos
são feitos a pé, por baixo da terra, e são os buracos no chão que
garantem a ligação entre a parte de baixo, o subterrâneo, e a parte de
cima, a superfície.
753
O porão forjado por Marko está interligado a outros porões, formando uma verdadeira
economia subterrânea, pela qual circulam armas, carros blindados, capacetes azuis que
levam refugiados em troca de suborno, e aqueles que caminham a pé ou sobre animais e
buscam a saída, a superfície. Encontra-se aqui a própria problemática do ser Europa, o
753
FRANÇA. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo, p. 88-89.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
227
quão complexa é sua idéia. Tem-se configurados, portanto, dois mundos interligados
pelas galerias subterrâneas: uma Europa invisível, espectral, que sonha com a ligação, a
comunicação com a “visível” Europa. Se na superfície, a visível Europa protege-se do
influxo de imigrantes através da força policial de fronteira e dos muros, nos seus
interstícios, Emir Kusturica imagina um emaranhado de veias pelas quais atravessam a
inundação de imigrantes de “outras” Europas, a ameaçar a próspera “União”.
Por outro lado, algumas seqüências do filme parecem guardar vestígios de
espontaneidade e “emoção”
754
não contaminados ou devorados pelos movimentos do
calidoscópio comandado por Marko. Por exemplo, a seqüência do bombardeio ao
Zoológico de Belgrado, que muitos vão salientar como verídica,
755
mas que ganha um
sentido mais profundo, não pelo “certificado de autenticidade”, porque o ataque alemão
a Belgrado é apresentado sob a perspectiva dos animais presos nas jaulas e viveiros.
Enquanto Ivan, com seus passos mancos e sua voz entrecortada, que repete o estribilho
“tique-taque”, alimenta os animais, estes se inquietam, pássaros se chocam no viveiro,
ursos e tigres dão urros, o filhote de macaco, Soni, choraminga..., a tensão vai
aumentando, os amimais do zoológico se agitam cada vez mais.
756
Ivan não percebe o
que está para acontecer, até que se escuta os sons de aviões, estrondos de bombardeio.
Ivan tenta ignorar os índices e continuar o seu trabalho. Porém, um avião atravessa a
tela. Logo, as bombas começam a cair e a destruir o Zoo. Em seguida, os animais
aparecerão à deriva, em meio aos escombros da cidade. Também a imagem da noiva de
Jovan que adentra a tela voando como em uma pintura de Marc Chagall preenche a tela
de um tom fantástico surpreendente. Ao final do seu vôo, a noiva, Jelena, joga o buque,
que cai no poço no meio do porão. Em outro momento do filme, no final da seqüência
do casamento, será ela própria que se jogará no poço em busca do noivo, em uma
754
“C'est un miracle, mais pas une roulette, on ne joue qu'avec des eléments dont on est sûr qu'ils
produiront, associés à d'autres, une émotion forte. (...) L'émotion est une sorte de montée d'adrénaline
que génère l'inconscient. Les émotions n'ont plus droit de cité en Occident; c'est pourquoi, comme le
fait Marko dans le film, on veut nous voler notre Histoire, l'annuler!” (KUSTURICA. Souvenirs de
bord, p. 43-44).
755
O zoológico de Belgrado realmente teria sido alvo de bombardeios em 1941, e um certo número de
animais saíram, ficando à solta pela cidade. (Cf. OSTRIA. Monsieur K. à Prague, p. 74; Cf.
<www.kustu.com
>. La simbolique d'Underground. Clés pour Underground Disponível em:
<http://www.dhennin.com/kusturica/v2/_cles_pour_underground_fr.html>).
756
Sobre a importância dos animais no cinema de Emir Kusturica, ver: GOCIC. The cinema of Emir
Kusturica, p. 72 et seq.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
228
homenagem a L'Atalante, de Jean Vigo. O noivo, Jovan, é o filho de Crni, nascido e
criado no porão, sem nunca ver a superfície. Quando ele sai do porão e vê pela primeira
vez o mundo, as imagens ganham significação poética e onírica: o cervo à beira do rio,
que ele confunde com os cavalos desenhados pelo pai, a lua, que ele pensa ser o sol, a
ave que o assusta... em um dado momento, ele “pensa” ver a noiva, Jelena, no fundo do
rio. Em meio a tanta “iluminação”, ele chega a afirmar: “Eu queria voltar para o porão”,
porém, diante do nascer do sol, exclama: “Como este mundo é lindo, de tirar o chapéu”.
Ao final da terceira parte do filme, as imagens em que Ivan, depois de descobrir a
traição do irmão, retorna a Belgrado, em 1992, caminha entre mortos de uma outra
guerra, reencontra a mesma igreja, que ele reconstruíra dentro do porão com palitos,
agora em ruínas, também apontam para outra lógica, alheia à farsa, à mentira e ao logro.
Depois de matar Marko – “nenhuma guerra é guerra sem que um irmão mate o outro” –
diante de uma imagem de Jesus Cristo de cabeça para baixo, será nas cordas do sino da
igreja que Ivan encontrará, finalmente, a morte, seqüência evocada no porão, quando os
noivos Jovan e Jelena tocam o sininho da maquete da igreja construída pelo próprio
Ivan. Essas e outras cenas reproduzem de forma contundente o espetáculo das paixões
humanas, demasiado humanas: a fantasia e a poesia com as quais essas mesmas paixões
tocam, em breves momentos, o olhar humano ou a objetiva da câmera.
Como epílogo do filme, a última seqüência também funciona como uma
espécie de “paisagem incongruente”. Mais além da morte, em um espaço no qual o
tempo parece ter sido abolido, todas as personagens, depois de mergulharem nas “águas
medicinais” do poço, reencontram-se para festejar as bodas de Jovan e Jelena. Todos os
conflitos são, senão esquecidos, pelo menos, perdoados, conforme Crni fala para
Marko: “Eu perdôo, mas não esqueço”, em uma inversão e negação do provérbio
francês Tout comprendre c'est tout pardonner. Enquanto todos comemoram, ao som da
orquestra cigana, o ator Slavko Stimac converte-se em narrador “benjaminiano”.
Cronista das últimas cenas de Underground, ele parece confirmar que:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os
grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que
um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem
dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se
totalmente do seu passado. Isso que dizer: somente para a humanidade
redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CAPÍTULO 3 – A invenção da Memória
229
momento vivido tranforma-se numa citation à l'ordre du jour – e esse
dia é justamente o do juízo final.
757
É nesse momento que o solo se fende, o território separa-se do continente e segue à
deriva. A terra dispersa rompe(-se) com a doxa e conhece a possibilidade do contra-
lugar, do contra-discurso, do habitáculo sem governo: “qualquer coisa que é ao mesmo
tempo revolucionári[a] e associal e que não pode ser fixada por nenhuma coletividade,
nenhuma mentalidade, nenhum idioleto”.
758
Como um navio, nas palavras de Michel Foucault, heterotopia por
excelência,
759
a península converte-se em um pedaço flutuante de espaço, la nave va,
espécie de barca dos mortos, um lugar sem lugar, dado à infinitude e à força das águas.
Contra a ficção do consenso e a fixação de uma identidade nacional totalizante,
Underground apresenta a heterotopia em movimento, o percurso rumo a um lugar que
está fora de todos os lugares, ao mesmo tempo em que os representa, contesta e inverte.
Nessa perspectiva, Emir Kusturica revela a impossibilidade de se configurar o
transcurso em uma única rota e opta pela saída via imaginação, afinal, “em civilizações
sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os
Piratas, pelas polícias”.
760
757
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 223.
758
BARTHES. O prazer do texto, p. 33.
759
FOUCAULT. De outros espaços. Disponível em: <http://www.virose.pt/vector/periferia/
foucault_pt2.html>.
760
FOUCAULT. De outros espaços. Disponível em: <http://www.virose.pt/vector/periferia/
foucault_pt2.html>.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
230
CONCLUSÃO
POST-SCRIPTUM
Então, ela começa a compreender que o objetivo não era a
escola em si, mas estava em alguma parte do caminho para a
escola, por mais que a busca parecesse inútil. No seu
espírito, esta busca tornou-se, de repente, cada vez mais
bela, e, depois de tudo, muitas das belezas da viagem
tornaram-se visíveis a seus olhos e ela concluiu que o fato
decisivo aconteceu não no final de sua rota, mas muito antes,
durante o próprio trajeto, e ela jamais teria pensado no risco
se a viagem não tivesse se revelado inútil.
Milorad Pávitch, O Dicionário Kazar
As conclusões costumam ser perigosas pelo que elas podem conter de
unilateralidade. Daí eu me precaver, sem muito sucesso, como o Ulisses de Franz
Kafka, através de “meios insuficientes – infantis mesmo”,
761
tomando, como “cera e
correntes”, um outro nome para a empreitada – post-scriptum, na esteira de Danilo Kiš –
e uma epígrafe que aponta para a inutilidade do remate. Contudo, o post-scriptum é
ainda apresentar “resultado”, o final da rota, se não é decisivo, é inevitável.
É justamente em Kafka, dessa vez nos Diários,
762
que encontro a afirmação
que pode servir de síntese, perigosa, sim, mas sugestiva, pelo que possa contribuir para
acentuar elementos recorrentes, das narrativa fílmicas e literárias com as quais trabalhei
nesta tese. Arrisco afirmar, portanto, que toda essa literatura e esse cinema em guerra da
Outra Europa intentam e/ou promovem – levando-se em conta as estratégias e efeitos de
leitura – um assalto da noção de fronteira como garantia de unidade e coesão. O tema da
guerra insurge nesses textos como elemento recorrente, funcionando como formador e
761
KAFKA. O silêncio das sereias, p. 104.
762
KAFKA. Diários, p. 455.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CONCLUSÃO – Post Scriptum
231
desintegrador de identidades, ao mesmo tempo. Além disso, como Ricardo Piglia
percebe em Kafka, “a guerra é a metáfora ou a ilusão de um modo de vida que seria a
condição para uma linguagem nova, para um novo uso da linguagem”.
763
Tais usos
requerem rearranjos, recriações de tempos, histórias, memórias e identidades
Assim, ao apontarem para a mobilidade, a desestabilização da noção de
fronteira, e promoverem o questionamento dos modos tradicionais de representação da
guerra, essas narrativas problematizam também os processos de construção de
identidades, dando corpo à indeterminabilidade dos imaginários identitários.
764
A
identidade é obrigada a mirar(-se) no espelho deformante a (como) alteridade. Perseu
contempla Medusa. No instante da mirada, o risco é negar o caráter mágico e
heterotópico do espelho, que “transforma este lugar, o que ocupo no momento em que
me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o
espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebemos desse
espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá”.
765
Não
atravessar esse “ponto cego”, é recusar a diferença em que eu significo para o outro e
buscar, no espelhamento, a identidade como pura semelhança. É para esse perigo que
aponta o diálogo entre Sócrates e Alcibíades, cujo fragmento abre o filme Um olhar a
cada dia, ou seja, ver na “melhor parte do outro” somente a si próprio, esquecendo-se
de que esse autoconhecimento reside obrigatoriamente no exercício da alteridade –
torno-me visível a mim através do olhar que o outro desfere sobre mim. Ao final do
diálogo platônico, Alcibíades propõe o seguinte exercício: “é preciso que troquemos os
nossos papéis, Sócrates. Eu tomarei o teu, e tu tomarás o meu. Porque a partir de hoje
serei eu que te observarei e tu serás o meu observado”.
766
Tal exercício, a troca de
763
PIGLIA. O último leitor, p. 42-43.
764
BRANDÃO. Grafias da identidade, p. 153.
765
FOUCAULT. De outros espaços. Disponível em:
<http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt2.html>.
766
PLATÃO. Alcibíades, 135d. Apud. LAGE. Para ver a Oidsséia, p. 128.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CONCLUSÃO – Post Scriptum
232
papéis, salienta a contra-ação operada pela troca de olhares, a reversibilidade que
acompanha os processos de construção de identidades, o atravessamento da fronteira do
espaço nacional e o reconhecimento da estranheza desse espaço.
Ironicamente, é justamente em Um olhar a cada dia que esse processo de
construção de identidades surge de modo mais problemático. Ao mesmo tempo em que
coloca em relevo o tema da desestabilização das fronteiras, o filme de Theo
Angelopoulos transpira, na busca arcôntica de seu protagonista, um desejo de
continuidade linear e “três vezes milenar” de um tradição nacional ou “a melhor parte
desta” – a constância do mesmo–, o que não deixa de apontar também para uma
angústia identitária. Na outra ponta, Underground – mentiras da guerra, à revelia das ou
justamente pelas ambigüidades de posicionamento de seu realizador, coloca em xeque
uma suposta homogeneidade e essencialidade do conceito de identidade, mirando
através das águas turvas do poço as diferenças, os excessos, os rumores e humores que
compõem o processo – e não a identidade como substância – de identificação. Solicito
mais uma vez neste trabalho as palavras de Luis Alberto Ferreira Brandão Santos:
O processo de identificação é um processo de reconhecimento, no
qual reconhecer é compreendido literalmente como a ação de
conhecer de novo, ação indicativa de que os acordos que definem a
esfera do conhecimento, da familiaridade, são acordos provisórios – o
que se sabe nunca é imune de esquecimento, a diferença obliterada
sempre retorna.
767
O “conhece-te a ti mesmo” traduz-se em conhecer de novo, reconhecer-se nas dobras e
nos cruzamentos de olhares e leituras. Essa não deixa de ser a aposta dessas narrativas
em guerra que assumem, não sem tensão, o caráter paradoxal, discordante e
intempestivo da ficção.
No início do caminho, falei de riscos e perigos que envolviam esta pesquisa.
Ao falar das respostas que o ficcional como expressão da experiência humana é capaz
767
SANTOS. Nação: Ficção, p. 187.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
CONCLUSÃO – Post Scriptum
233
de formular, procurei falar também das respostas produzidas por quem lê essas
narrativas literárias e fílmicas. Afinal, como adverte Ricardo Píglia,
768
o universo
ficcional não depende só de quem o constrói, mas também de quem o lê: a posição do
interpretador. Acreditar no poder da ficção, no seu caráter de “saber reversível”,
769
é,
portanto, apostar na ficção como uma espécie de teoria da leitura. O risco no caso é
querer ler, à maneira de Emma Bovary, o ficcional como mais real do que o real. Por
outro lado, como se falou em vários momentos desta tese, o que essas narrativas
promovem, a partir de um jogo agonístico, é a articulação do ficcional, do imaginário e
do real, desarticulando a clássica dicotomia entre ilusão e realidade. Resulta, assim, o
movimento concreto e fundamental de se ler o real transformado, perturbado e
contaminado pela ficção.
768
Cf. PIGLIA. O último leitor, p. 27-29.
769
Cf. SANTOS. Nação: ficção, p. 184-194.
REFERÊNCIAS
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
235
ABRIL DESPEDAÇADO. Direção: Walter Salles. São Paulo: Imagem Filmes, 2001. 1 fita de
vídeo (105 min.), VHS, son., color., legendado.
ADORNO, Theodor W. Anotações sobre Kafka. Prismas: crítica cultural e sociedade. São
Paulo: Editora Ática, 1998. p. 239-270.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2002.
AGONIA e glória. Direção de Samuel Fuller. São Paulo: Warner, 1980. 1 fita de vídeo (113
min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: The big red one.
ALVES, José Augusto Lindgren. Nacionalismo e etnias em conflito nos Bálcãs. Lua Nova, São
Paulo, n.63, p. 5-37, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
64452004000300002&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 set. 2006.
ANASTASIA. Before the rain. London: Polygram, 1994. 1 CD. Acompanha encarte.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del
nacionalismo. Trad. Eduardo L. Suárez. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.
ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, [s.d.].
ANGELOPOULOS, Theo. Angelopoulos filma para “adocicar o tempo”. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 30 maio 1995. Ilustrada, p. 7.
ANGELOPOULOS, Theo. A propos de Paysage dans le Brouillard. Cahiers du cinéma. Paris,
p. 18-20, n.413, nov. 1988.
ANGELOPOULOS. “What do our souls seek?”: an interview with Theo Angelopoulos. In:
HORTON, Andrew (ed.). The last modernist: the films of Theo Angelopoulos, Trowbridge:
Flicks Books, 1997. p. 96-106.
ANTES da chuva. Direção de Milcho Manchevski. São Paulo: Lumiere, 1994. 1 fita de vídeo
(115 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: Pred dozhdot.
APOCALIPSE now. Direção de Francis Ford Coppola. São Paulo: Condor, 1979. 2 fitas de
vídeo (159 min.), VHS, son., color., legendado.
ARANTES, Paulo Eduardo. Notícias de uma guerra cosmopolita. Revista Sexta feira, São
Paulo, n.7, p. B26-B42, mar. 2003.
ARAÚJO, Inácio. Antes da chuva esconde Bálcãs. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 fev. 1996.
Ilustrada, p. 6.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
236
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
ARON, Raymond. Pensar a guerra, Clausewitz. Trad. Elisabeth Maria Speller Trajano.
Brasília: EDUNB, 1986. 2v.
ASCHER, Nelson. A infâmia universal da história. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1986.
Folhetim, p 8.
ASCHER, Nelson. Europa, pois é, Europa. In: JOVANOVIC, Aleksandar. À sombra do quarto
crescente: notas sobre História e Cultura da Europa Centro-Oriental. São Paulo: Hucitec, 1995.
p. 9-16.
ASCHER, Nelson. Pomos da discórdia: política, religião, literatura, etc. São Paulo: Editora 34,
1996.
ASCHER, Nelson. Prefácio. In: ORKÉNY, István. A exposição das rosas: duas novelas. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2003, p. 7-9. (Coleção LESTE).
L'ATALANTE. Direção: Jean Vigo. São Paulo: Magnus Opus, 1934. 1 videodisco (85 min.),
son., p&b. (Coleção Tour de France Vol. II, 4 videodiscos).
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 2.ed. Trad.
[s.n.]. São Paulo: Perspectiva, 1987. (Coleção Estudos).
AUGÉ, Claude; AUGÉ, Paul. Nouveau petit Larousse illustré: dictionnaire encyclopédique.
Paris: Librairié Larousse, 1955.
AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto na América
Latina. Trad. Saulo Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
AVELAR, Idelber. A escrita do luto e a promessa de restituição. In: AVELAR, Idelber.
Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Trad. Saulo
Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 235-259.
BABEL, Isaac. A cavalaria vermelha. Trad. Roniwalter Jatobá. São Paulo; Belo Horizonte:
Horizonte Editora; Oficina dos livros, 1989.
BAECQUE, Antoine. Dans le entrailles du communisme. Cahiers du cinema, Paris, n.496, p.
38-41, nov. 1995.
BAIER, Lothar. El centro esta vacio: microeuropa, paneuropa, barbaropa. El urogallo: Revista
literaria y cultural. Madrid, n.120, p. 44-51, mayo 1996.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Trad. Yara Frateschi. 2.ed. São Paulo; Brasília: HUCITEC; EDUNB, 1993.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
237
BANDERIER, Gilles. Kadaré et Dante. Revue de littérature comparée. Paris, v.274, n.2, p. 167-
176, avr.-juin 1995.
BARTHES, Roland. Aula. 8.ed. Trad. e posfácio Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,
2000.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer.
Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.
BARTHES, Roland. O discurso da história. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mário
Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 163-180.
BARTHES, Roland. O efeito de real. In: ______. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira.
São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 181-190.
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4.ed. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1996.
(Elos, 2).
BAZIN, André. A evolução da linguagem cinematográfica. In: ______. Cinema: ensaios. São
Paulo: Brasiliense, 1991. p. 66-81.
BECKER, Annette. Ecrire la Grande Guerre. Magazine Litteraire, Paris, n.378, p. 48-50, Juil.-
août 1999.
BENJAMIN, Walter. A imagem em Proust. In: ______. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 36-49. (Obras escolhidas, v.1).
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165-196. (Obras escolhidas, v.1).
BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Trad. Karlheinz Barck et al. Cadernos do Mestrado –
UERJ, Rio de Janeiro, n.1, p. I-XXII, 1992.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ______. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 114-119. (Obras escolhidas, v.1).
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221. (Obras escolhidas, v.1).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
238
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ______.Charles Baudelaire: um
lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista.
3.ed. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 103-149. (Obras escolhidas, v. 3).
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ______. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 222-232. (Obras escolhidas, v.1).
BENJAMIN, Walter. Teoria do fascismo alemão. Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros,
editada por Ernst Jünger. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 61-72.
(Obras escolhidas, v.1).
BENSEÑOR, José R. Dadon. Borges, los espacios geográficos y los espacios literarios. Scripta
Nova: Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona, n.145, v.7, jul. 2003.
Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-145.htm>. Acesso em: 28 fev. 2005.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. Trad. Maria da Glória Novak e Luiza
Neri. Rev. do Prof. Isaac Salum. São Paulo: Editora Nacional; Editora da USP, 1976. p. 53-59.
BÉRENGER, Jean. O império austro-húngaro e a geopolítica balcânica: do protetorado bósnio à
I Guerra Mundial. Trad. Pedro Puntoni. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.47, p. 19-38,
mar. 1997.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Trad. Euclides Martins Balancin et al. São Paulo: Paulus;
Sociedade Bíblica Católica Internaciona, 1995.
BIDDICK, Kathleen. Aesthetics, ethnicity, and the history of art. The Art Bulletin, 12 jan. 1996.
Disponível em: <http://www.findarticles.com/p/articles/mi_m0422/is_n4_v78/ai_19178129
>.
Acesso em: 12 maio 2006.
BJELAJAC, Mile. Pro et contra: some western echoes of Noel Malcolm's book Kosovo. A short
history. In: TERZIC, Slavenko (ed.).Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history.
Belgrado: Institute of History of the Serbian Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999.
Disponível em: <http://www.kosovo.net/nmalk6.html
>. Acesso em: 01 maio 2006.
BLACKBURN, Robin. Esfacelamento da Iugoslávia e o destino da Bósnia. Trad. Otacílio
Nunes. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.47, p. 62-83, mar. 1997.
BLANCHOT, Maurice. La escritura del desastre. Trad. Pierre de Place. Caracas: Monte Ávila
Editores, 1990.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
239
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política.
Trad. Carmem C. Varriale et al. Coordenação de tradução: João Ferreira. Revisão geral João
Ferreira e Luíz Guerreiro Pinto Cascais. 5.ed. Brasília/São Paulo: Edunb/ Imprensa Oficial do
Estado, 2000.
BOER, Pim den. Europe to 1914: the making of an idea. In: WILSON, Kevin; DUSSEN, Jan
Van der. The history of the idea of Europe. Heerlen; London: Open Universiteit; Routledge,
1996.
BOJANIC, Ema Miljkovic. Malcolm'as apology of the “Pax Ottomana”. In: TERZIC, Slavenko
(ed.). Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Belgrado: Institute of History
of the Serbian Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999. Disponível em:
<http://www.kosovo.net/nmalk4.html>. Acesso em: 01 maio 2006.
BONANATE, Luigi. A guerra. Trad. Maria Tereza Buonafina e Afonso Teixeira Filho. São
Paulo: Estação Liberdade, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Del rigor en la ciencia. In: _____. Obras completas. Barcelona: María
Kodama y Emecê Editores, 1989. v.2, p. 225.
BORGES, Jorge Luis. Do rigor da ciência. In: _____. História universal da infâmia. 4.ed. Trad.
Flávio José Cardozo. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1988. p. 71.
BORGES, Jorge Luis. História universal da infâmia. Trad. Alexandre Eulálio. 2.ed. São Paulo:
Ed. Globo, 2001.
BORGES, Jorge Luis. Kafka y sus precursores. In: _____. Obras completas. Barcelona: María
Kodama y Emecê Editores, 1989. v.2, p. 107-109.
BORGES, Jorge Luis. O inimigo generoso. In: _____. História universal da infâmia. 4.ed. Trad.
Flávio José Cardozo. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1988. p. 70.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Barcelona: María Kodama y Emecê Editores, 1989. 3v.
BORGES, Jorge Luis. Siete noches. In: _____. Obras completas. Barcelona: María Kodama y
Emecê Editores, 1989. v.2, p. 206-286.
BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, Orbis tertius. In: ______. Ficções. Trad. Carlos Nejar. Porto
Alegre: Globo, 1970.p. 1-19.
BOROZAN, Djordje. Malcolm's view of Kosovo in the twentieth century. In: TERZIC,
Slavenko (ed.).Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Belgrado: Institute of
History of the Serbian Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999. Disponível em:
<http://www.kosovo.net/nmalk7.html
>. Acesso em: 01 maio 2006.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
240
BRANDÃO, Luis Alberto. Grafias da identidade: literatura contemporânea e imaginário
nacional. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Lamparina Editora; Fale (UFMG), 2005.
BRENER, Jayme. Leste europeu: a revolução democrática. 2.ed. São Paulo: Atual, 1990. (Série
História viva).
BRODSKY. O mundo visto de um carrossel. Trad. Francisco José P. N. Vieira. Correio da
UNESCO, Brasil, n.8, p. 30-36, ago.1990.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
CAMPOS, Haroldo. Para além do princípio da saudade. Folha de S. Paulo, São Paulo, 09 dez.
1984. Folhetim, p. 6-8.
CANDIDO, Antonio. Quatro esperas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.26, p. 49-76, mar.
1990.
CANTIMORI, Delio. Humanismo y religiones en el Renacimiento. Barcelona: Ediciones
Peninsula, 1984.
CAPUZO, Heitor. O cinema industrial e os gêneros. In: _____. Cinema além da imaginação.
Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1990. p. 23-27.
CAPUZO, Heitor. Considerações sobre a linguagem clássica. In: _____. Alfred Hitchcock: o
cinema em construção. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1993. p. 21-25.
CARROLL, Lewis. Obras escolhidas. Trad. Eugênio Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia,
1999. 2 v. il. (Grandes obras da cultura universal).
CARVALHO, Campos de. O púcaro búlgaro. In: ______. Obra reunida. 3.ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2002. p. 307-382.
CASTELO BRANCO, Lúcia. A traição de Penélope. São Paulo: Annablume, 1994.
CHAUI, Marilena de Souza. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto (Org.).
O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 31-64.
CHAUI, Marilena de Souza. Os trabalhos da memória. In: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade:
lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, [s.d.].
CICERO, Antonio. Amazônia. Revista de Cultura Margens/Márgenes. Belo Horizonte, Bueno
Aires, Mar del Plata, Salvador, n.5, p. 60-61, jul.2002.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
241
CIRKOVIC, Milan M. Borges: influence and references – Danilo Kiš. The Modern Word. New
York, Disponível em: <http://www.themodernword.com/borges/borges_infl_kis.html>
. Acesso
em: 06 jun.2004.
CLAUSEWITZ, Carl Von. Da guerra. Trad. Teresa Barros Pinto Barroso. São Paulo: Martins
Fontes, 1979.
COELHO, Marcelo. “Underground” é obra-prima feita de rancor. Folha de S. Paulo, São Paulo,
30 jul. 1996. Ilustrada, p. 7.
COLOMBO, Fausto. Os arquivos imperfeitos: memória social e cultura eletrônica. Trad. Beatriz
Borges. São Paulo: Perspectiva, 1991. (Debates).
COUTO, José Geraldo. Emir Kusturica expõe guerra ao ridículo. Folha de S. Paulo, São Paulo,
17 jul. 1996. Ilustrada, p. 4.
CRUZ, Denise. Vocabulário de cinema. Revista Cinemim, Rio de Janeiro: EBAL, n.13, p. 19-
21, mar. 1985; n.14, p. 2-51, maio 1985; n.15, p. 2, jun. 1985; n.16, p. 51, jul. 1985.
CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano de São Paulo
durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editora; Editora da Universidade de
São Paulo, 2000.
DÄLLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: _____ et al. Intertextualidades. Trad. Clara
Crabbé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979. p. 51-76.
DARNTON, Robert. Fronteiras imaginárias. Trad. Clara Allain. Folha de S. Paulo, São Paulo,
21 jun. 2002. Mais!, p. 4-9.
DARTON, Robert. Escrito no muro. Trad. Francisco José P. N. Vieira. Correio da UNESCO,
Brasil, n.8, p. 12-17, ago.1990.
DELEUZE, Gilles. Cinema I: a imagem-movimento. Trad. Stella Senra. São Paulo: Brasiliense,
1985.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a imagem-tempo: Trad. Eloísa e Araujo Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles. Différence et repetition. Paris: PUF, 1962.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka, por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2.ed. Trad. Miriam Chaiderman e Renato Janine Ribeiro.
São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
242
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Júnia Barreto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia de Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DICIONÁRIO E ENCICLOPÉDIA KOOGAN-LAROUSSE. Rio de Janeiro: Editora Larousse
do Brasil, 1977. 2.v.
DJILAS, Aleksa
. Imagining Kosovo: a biased new account fans western confusion. Foreign
Affairs, Buffalo N.Y., v.77, n.5, sept./oct. 1998. Disponível em:
<http://www.foreignaffairs.org/
19980901fareviewessay1422/aleksa-djilas/imagining-kosovo-a-biased-new-account-fans-western-
confusion.html.>. Acesso em: 01 maio 2006.
DIMIC, Ljubodrag. Facts and interpretations of education and everyday terror. In: TERZIC,
Slavenko (ed.).Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Belgrado: Institute of
History of the Serbian Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999. Disponível em:
<http://www.kosovo.net/nmalk8.html
>. Acesso em: 01 maio 2006.
A DOCE VIDA. Direção de Federico Fellini. 1 fita de vídeo (178 min.), VHS, son., p&b,
legendado. Tradução de: La dolce vita. (Itália, 1959/1960).
DOLLÉ, Jean-Paul. Un siècle heraclitéen. Magazine Litteraire, Paris, n.378, p. 20-22, Juil.-août
1999.
DOSSIER Danilo Kiš. Vox poetica: lettres& science humaines, Paris,
Alexandre Prstojevic
editor,
Disponível em:<http://www.vox-poetica.org/ecrivains/KIS/kis.htm>. Acesso em: 19 fev.
2002.
DOSSIER Ecrire la guerre. Magazine Littéraire, n.378, p. 18-109, juil.-août 1999.
DREYER-EIMBCKE, Oswald. O descobrimento da terra: História e histórias da aventura
cartográfica. Trad. Alfred Josef Keller. São Paulo: Ed. USP; Melhoramentos, 1992.
EBERHARTER, Markus. Rethinking Central Europe – a perspective for comparative literature?
In: GRADUATE CONFERENCE IN CENTRAL EUROPEAN STUDIES: the contours of
legitimacy in Central Europe: new approaches in graduate studies, 2002, Oxford, St. Antony's
College, 24-26 May. Disponível em: <users.ox.ac.uk/~oaces/conference/papers/
Markus_Eberharter.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2005.
ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Trad. Eliana Aguiar. 5.ed. Rio de Janeiro, 2001.
EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2002.
EISENSTEIN, Serguei. Dickens, Griffith e nós. In: _____. A forma do filme. Trad. Teresa
Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.p. 176-224.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
243
EISENSTEIN, Serguei. O sentido do filme. Trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2002.
EKMECIC, Milorad. Historiography by the garb only. In: TERZIC, Slavenko (ed.).Response to
Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Belgrado: Institute of History of the Serbian
Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999. Disponível em: <http://www.kosovo.net/
nmalk2.html>. Acesso em: 01 maio 2006.
EKSTEINS, Modris. A sagração da primavera: a grande guerra e o nascimento da era moderna.
Trad. Rosaura Eichenberg. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
E LA NAVE VA. Direção de Federico Fellini. São Paulo: Grupo Paris Filmes, 1983. 1 fita de
vídeo (128 min.), VHS, son, color./p&b, legendado.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6.ed. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
(Coleção Debates).
ELIAS, Norberto. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad. Ruy Jungmann. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. v.1.
ELIAS, Norberto. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Trad. Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. v.2.
E O VENTO levou. Direção de Victor Fleming. São Paulo: MGM, 1939. 2 fitas de vídeo (220
min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: Gone with the wind.
ESCHER, M. C. The graphic work of M. C. Escher. Ballantine Books: New York, 1977.
ÉSQUILO. Os persas. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES. Os persas; Electra; Hécuba.
5.ed. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. (A tragédia grega, v.4).
p. 25-73.
ESSE obscuro objeto do desejo. Direção de Luis Buñel. São Paulo: Sagres, 1977. 1 fita de vídeo
(103 min.), VHS, color., son., legendado. Tradução de: Cet obscur objet du désir.
A ETERNIDADE e um dia. Direção: Theo Angelopoulos. São Paulo: Versátil Home Vídeo,
1998. 1 fita de vídeo (132 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: Mia Aioniotita Ke
Mia Mera
.
EURÍPEDES. Medéia, Hipólito, As troianas. Trad. Mário da Gama Kury. 6.ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2002.
EUROPA. In: BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega.
2.ed. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes, 1993. V.1, p. 415-417.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
244
EUROPA. In: LEXICON ICONOGRAPHICUM MYTHOLOGIAE CLASSICAE. Zurich und
Münchem: Artemis Verlag, 1988, Volo IV, V.1, p. 76-92; v.2, p. 32-48.
EXÉRCITO inútil. Direção de Robert Altman. Rio de Janeiro: VTI/Network, 1983. 1 fita de
vídeo (118 min.), VHS, color., son., legendado. Tradução de: Streamers.
FAYE, Éric. Nota de apresentação. In: KADARÉ, Ismail. Abril despedaçado. Trad. Bernardo
Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 5-7.
FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI,
Arthur; SELIGMAN-SILVA, Márcio (Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Editora
Escuta, 2000, p. 13-71.
FERON, Bernard. Iugoslávia: a guerra do final do milênio. Trad. Moacyr Gomes Junior. Porto
Alegre: L&PM, 1999.
FERREIRA, Jerusa Pires. Caronte ou o cronotopo da evocação. In: ______. Armadilhas da
memória e outros ensaios. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p. 17-37.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura é memória. In: ______. Armadilhas da memória e outros
ensaios. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p. 69-87.
FERREIRA, Jerusa Pires. De poética, política e memória. In: ______. Armadilhas da memória
e outros ensaios. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p. 57-67.
FERREIRA, Jerusa Pires. Rumor do tempo e Viagem à Armênia. A descoberta do Eu e do
Outro. In: ______. Armadilhas da memória e outros ensaios. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p.
39-56.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.] (1ª. Edição).
FINKIELKRAUT, Alain. La propaganda onirique d'Emir Kusturica. Liberation, Paris, Oct. 30
1995, p. 7. Disponível em: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/polemique_en.html>
. Acesso
em: 26 jan. 2005.
FINKIELKRAUT, Alain. L'imposture Kusturica. Le Monde, Paris, Juin 2 1995, p. 16.
Disponível em: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/polemique_en.html>
. Acesso em: 26
jan. 2005
.
FOLHETIM. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1986.n.512, p. 1, 28.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.
Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (Col. Ensino Superior).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
245
FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Trad. Pedro Moura. Vector, Porto, fev. 2005.
Disponível em: <http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt2.html
>. Acesso em: 10 jan.
2006.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1979.
FRANÇA, Andréa. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2003.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-
1931). In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
v.XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último homem. Trad. Aulyde Soares Rodrigues.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. A (im)possibilidade da poesia. Cult, São Paulo, n.23, p. 48-51, jun.
1999.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Resistir às sereias. Cult, São Paulo, n.72, p. 51-55, ago. 2003.
ASH, Timothy Garton. Um projeto chamado Europa. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 jan. 2002. Caderno Mais!, p. 8-9.
GIL, Gilberto. Oriente. In: REGINA, Elis. Elis [1973]. São Paulo: Polygram/Philips, 1998. 1
CD. Acompanha encarte, p. 1.
GOCIC, Goran. The cinema of Emir Kusturica: notes from the underground. London:
Wallflower Press, 2001.
GOETZ, Paul D. A balkan odyssey of epic proportions. Washington Free Press, Seattle.
May/June 1997. Disponível em: <http://www.washingtonfreepress.org/27/Reel.html
>. Acesso
em: 15 out. 2005.
GOUROU, Pierre. História e geografia. In: BRAUDEL, Fernand (dir.) A Europa. Trad. Ana
Paula Faria. Lisboa: Terramar, 1996, p. 5-24. (Coleção da Europa).
GRANATI, Maria Teresa. Sul mito sul nome di Europa. Vulgo.net. Multilingual europe(a)n
revue, Napoli, p. 1-5. Disponível em:<http://vulgo.net/index.php?option=com_content&
task=view &id=160&Ite mid= 0>. Acesso em: 08 fev. 2005.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 3.ed. Trad. Victor Jabouille. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
246
GRÜNBERG, Serge. Comment Kusturica déplaça les montagnes. Cahiers du cinema, Paris,
n.492, p. 66-68, juin. 1995.
GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horiznte: Pós-
graduação em Letras/Estudos Literários – Fale/UFMG; Ed. UFMG, 1997.
GYÖRGYEY, Clara. Lost dreams, missed opportunities. The Hungarian Quarterly, v. XXXIX,
n.152, winter 2003. Disponível em: <http://www.hungarianquarterly.com/no152/153.html>.
Acesso em: 15 abr. 2004.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 1. reimp. revista. Org. Liv
Sovik. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2006.
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Trad.
Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. (Coleção Humanitas).
HARTOG, François. Memória de Ulisses: narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Trad.
Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004 (Coleção Humanitas).
HARTOG, François (Org.). A história de Homero a Santo Agostinho: prefácios de historiadores
e textos sobre história reunidos e comentados por François Hartog. Trad. Jacyntho Lins
Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. (Coleção Humanitas).
HARVEY, David. O tempo e o espaço do projeto do Iluminismo. In: _____. A condição pós-
moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e
Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 219-235.
HEMON, Aleksandar. Reading Danilo Kiš. Center for book culture. Context: a forum for
literart arts and culture, n.9, online edition, Dalkey Archive Press. Disponível em:
<http://www.centerforbookculture.org/context/no9/hemon.html>; Acessso em: 13 ago. 2006.
HÉRODOTE. Histoires Livre I (Clio). 3.ed. Texte établi et traduit: Ph. E. Legrand. Paris: Les
Belles Lettres, 1956. (Collection des Universités de France).
HÉRODOTE. Histoires Livre IV (Melpomène). Texte établi et traduit: Ph. E. Legrand. Paris:
Les Belles Lettres, 1949. (Collection des Universités de France).
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Editora Iluminuras,
2001.
HEUSCH, Luc de. O inimigo étnico. Revista Sexta feira, São Paulo, n.7, p. A35-A42, mar.
2003.
HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da
modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. (Coleção Humanitas).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
247
HOBSBAWM, Eric J. A crise atual das ideologias. In: SADER, Emir (Org.). O mundo depois
da queda. Trad. Jamary França. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 213-226.
HOBSBAWM, Eric J. A curiosa história da Europa. In: ______. Sobre história: ensaios. Trad.
Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 232-242.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos
Santarrita. Rev. Tec. Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios: 1875-1914. 7.ed. Trad. Sieni Maria Campos e
Yolanda Steidel de Toledo. Rev. Tec. Maria Célia Paoli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
HOBSBAWM, Eric J. A produção em massa de tradições: Europa 1879 a 1914. In:
HOBSBAWM, Eric J; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim
Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. (Pensamento crítico, v.55), p. 271-316.
HOBSBAWM, Eric J. Dentro e fora da História. In: ______. Sobre história: ensaios. Trad. Cid
Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 13-21.
HOBSBAWM, Eric J. Introdução: A invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric J;
RANGER, Terence. A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984. (Pensamento crítico, v.55), p. 9-23.
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Trad.
Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. 3.ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
HOBSBAWM, Eric J; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim
Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. (Pensamento crítico, v.55), p. 9-23.
HOMERO, Ilíada (em versos). Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
HOMERO. Odisséia (em versos). Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001.
HOUSEZ, Cedric. La traición de los intelectuales: Alain Fienkielkraut y Bernard-Henri Lévy,
dos propagandistas del “choque de civilizaciones”. Red Voltaire.net, Madrid, mayo 2005.
Disponível <em: http://www.voltairenet.org/article125276.html>. Acesso em: 11 julho 2005.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2000. (Humanitas).
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
248
IORDANOVA, Dina. Cinema of flames: Balkan Film, Culture and the Media. London: BFI
Publishing, 2001.
IORDANOVA, Dina. Emir Kusturica. London: BFI Publishing, 2002.
ISER, Wolfgang. Atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa
(Org.). Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Franscisco Alves, 1983. v.2. p. 384-
416.
ISTVÁN Örkény: the man behind the story. The Last Cherry Pit at the Ministry of Cultural
Warfare. Disponível em: http://www.mocw.org/previous/tlcp/orkeny.html
. Acesso em: 23 maio
2004.
IVEKOVIC, Ivan. Iugoslávia: manipulações políticas e falsificações históricas. Trad. Clarice
Cohn. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.47, p. 39-61, mar. 1997.
JAKOBSON, Roman. Do realismo artístico. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria
da literatura: formalistas russos. 4.ed. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski et al. Porto Alegre:
Ed. Globo, 1978. p. 119-127.
JACOMINI, Márcia Aparecida. Guerra na Bósnia: a restauração capitalista num mundo
globalizado. São Paulo: Moderna, 1998. (Coleção Polêmica).
JANKOVIC, Djordje. Middle Ages in Noel Malcolm's Kosovo. A short history and real facts.
In: TERZIC, Slavenko (ed.). Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history.
Belgrado: Institute of History of the Serbian Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999.
Disponível em: <http://www.kosovo.net/nmalk3.html
>. Acesso em: 01 maio 2006.
JOUSSE, Thierry. Cannes 95: Kusturica sur terre. Cahiers du cinema, Paris, n.493, p. 28-29,
juil. 1995.
JOVANOVIC, Aleksandar (Org.). Poesia Iugoslava contemporânea: Sérvia. Trad. e notas de
Aleksandar Jovanovic. São Paulo: Editora Meca, 1987.
JOVANOVIC, Aleksandar. A invenção de uma língua. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 mar.
1988. Folhetim, p. 5-8.
JOVANOVIC, Aleksandar. A poesia intersemiótica de Vasko Popa. In: POPA, Vasko. Osso a
osso. Trad. e org. Aleksandar Jovanovic. São Paulo: Perspectiva/Editora da Universidade de
São Paulo, 1989. (Signos, 11). p. 15-24.
JOVANOVIC, Aleksandar. À sombra do quarto crescente: notas sobre História e Cultura da
Europa Centro-Oriental. São Paulo: Hucitec, 1995.
JOVANOVIC, Aleksandar. Cicatrizes do totalitarismo. Bravo, São Paulo, n.73, p. 96-101, out.
2003.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
249
JOVANOVIC, Aleksandar. Confissões de um tradutor de Milorad Pavic (contribuição para um
debate dos problemas da operação tradutora do servo-croata para o português) Aproximações
Europa do Leste. Brasília, Lisboa, Cracóvia, Suplemento 4, 1990. p. 63-75.
JOVANOVIC, Aleksandar. Europa Central: um reino do espírito (ou a múltipla navegação
através da cartografia cultural). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2001, 10f.
Mimeografado.
JOVANOVIC, Aleksandar. Iugoslávia, uma constelação cultural. Revista USP, São Paulo, n.6,
p. 49-64, jun./jul./ago. 1990.
JOVANOVIC, Aleksandar. Seis povos eslavos em busca de tradução. In: ______. (Org.) Céu
vazio: 63 poetas eslavos. São Paulo: Hucitec, 1996.
JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. 4.ed. Trad. José Geraldo Vieira. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
JOYCE, James. Ulisses. Trad. Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Record, [s.d.].
KADARÉ, Ismail. A pirâmide. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KADARÉ, Ismail. A ponte dos três arcos. Trad. Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro:
Objetiva, 1999.
KADARÉ, Ismail. Abril despedaçado. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
KADARÉ, Ismail. A filha de Agamenom & O sucessor. Trad. Bernardo Jofflily. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
KADARÉ, Ismail. As frias flores de abril. Trad. Ana Luzia Dantas Borges. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
KADARÉ, Ismail. Concerto no fim de inverno. Trad. Bernardo Joffly. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.
KADARÉ, Ismail. Dossiê H. Trad. Bernardo Joffly São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KADARÉ, Ismail. O general do exército morto. Trad. Rejane Janovwitzer. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004.
KADARÉ, Ismail. O palácio dos sonhos. Trad. Gemeniano Cascais Franco. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1992.
KADARÉ, Ismail. Os tambores da chuva (O castelo). Trad. Bernardo Joffily. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
250
KADARÉ, Ismail. Três cantos fúnebres para o Kosovo. Histórias traduzidas do albanês por
Jusuf Vrioni; Trad. Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
KADARÉ, Ismail. Vida, jogo e morte de Lul Mazrek. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
KADARÉ, Ismail. El infierno lleva por nombre Kosovo. Synapsis E-zine's, Galícia, n.178,
mayo 1999. Disponível em:<http://www.redegalega.org/synapsis/178c/ syn178-c:htm
>. Acesso
em: 21 abr. 2004.
KADARÉ, Ismail; SALLES, Walter. Salles e Kadaré constroem a vingança de ‘Abril
despedaçado’. Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 set. 2001, Ilustrada, p. 1-3.
KAFKA, Franz. Diários. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Livraria Exposição do Livro,
[s.d.].
KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
KAFKA, Franz. O silêncio das sereias. In: ______. Narrativas do espólio. Trad. Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 104-106.
KATUNARIC, Drazen. Underground de Kusturica ou la nostalgie de l'âme slave. Espirit, Paris,
p. 119-139, jan. 1997.
KAUFMAN, Helena. A metaficção historiográfica de José Saramago. Colóquio Letras, Lisboa,
n.120, p. 124-136, abr./jun. 1991.
KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. 4.ed. Seleção, estudo crítico e tradução por José Paulo Paes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.].
KEEGAN, John. Uma história da guerra. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
KIŠ, Danilo. Encyclopédie des morts: nouvelles. Trad. Pascale Delpech.Paris: Gallimard, 1985.
KIŠ, Danilo. Jardim, cinzas. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
KIŠ, Danilo. Le Résidu amer de l’expérience. Paris: Fayard, 1995.
KIŠ, Danilo. Sablier. Trad. Pacale DelpechParis: Gallimard, 1982. (Du monde entier).
KIŠ, Danilo. Um túmulo para Bóris Davidovitch. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
KIŠ, Danilo. An interview with Danilo Kiš by Brendan Lemon. The Review of Contemporary
Fiction, Dalkey, v.14, n.1, spring 1994. Entrevista concedida a Brendan Lemon. Disponível em:
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
251
<http://www.centerforbookculture.org/interviews/interview_kis.html>. Acesso em: 06 jun.
2004.
KIŠ, Danilo. A consciência da Europa oculta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1986.
Folhetim, p. 2-5. Entrevista concedida a Leda Tenóiro da Motta.
KONRÁD, György. O sonho da Europa Central ainda está vivo? Revista USP, São Paulo, n.6,
p. 11-20, jun./jul./ago. 1990.
KÖVES, Margit. Translation as a coorperative process. Meghdutam: finest literature on the net.
Disponível em:<http://www.megh dutam. com/crittemp.php?name=crit14.htm&&printer=0
>.
Acesso em: 16 de abril de 2004.
KRYSINSKI, Wladimir. Metaficcional structures in slavic literatures: towards an archeology of
metafiction. In: D'HAEN, Theo; BERTENS, Hans (ed.). Postmodern: postmodern fiction in
Europe and the Americas. Armsterdam: Rodopi; Antwerpen: Restant, 1988. (Postmodern
studies, 1). p. 63-82.
KUNDERA, Milan. The tragedy of Central Europe. New York Review of Books, New York,
v.31, n.7, p. 33-38, apr. 1984.
KUSTURICA, Emir. Mon imposture. Le Monde, Paris, oct. 26 1995, p. 13. Disponível em:
<http://www.dhennin.com/kusturica/v2/polemique_en.html>
. Acesso em: 26 jan. 2005.
KUSTURICA, Emir. Europe, ma ville flambe! Le Monde, Paris, avr. 24 1992. Disponível em:
<http://dhennin.com/kusturica/v2/politique_fr.html>. Acesso em: 14 ago. 2005.
KUSTURICA, Emir. Propos de Emir Kusturia. Cahiers du cinema, Paris, n.492, p. 69-71, juin
1995.
KUSTURICA, Emir. Souvenirs de bord. Cahiers du cinema, Paris, n.496, p. 42-45, nov. 1995.
LAATHS, Erwin. Historia de la literatura universal. Barcelona: Editorail Labor, S.A., 1967.
LABAKI, Amir. O cinema vai à guerra: todas as batalhas da tela. Revista Set: edição especial
GUERRA, São Paulo, -8-15, out. 1989.
LABOV, Jessie. Balkan Revisions to the Myth of Central Europe. In:
THE 1ST ANNUAL
KOKKALIS GRADUATE STUDENT WORKSHOP, 1999, Cambridge, Harvard University,
12 february.
Disponível em: <http://www.ksg.harvard.edu/kokkalis/GSW1/GSW1/02%
20Labov.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2005.
LACLAU, Ernesto. Emancipación y deferencia. Buenos Aires: Ariel, 1996.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
252
LAGE, Celina Figueiredo. Para ver a Odisséia: entre a literatura, as artes plásticas e o cinema.
2004. 194f. Tese (Doutorado em Letras-Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.
LAGES, Susana Kampff. O enigma compartilhado. Cult, São Paulo, n.72 p. 56-59, ago. 2003.
LAPOUGE, Gilles. Kusturica analisa a Iugoslávia. Hoje em dia, Belo Horizonte, 27 out. 1995.
Cultura, p. 3.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira
Borges. Campinas: Editora UNICAMP, 1992.
LEMINSKI, Paulo. Políticos e idiotas. Folha de S. Paulo. Sábado, 8 de junho de 1985.
LÉTOUBLON, Françoise; EADES, Caroline. Le regard d'Orphée chez Theo Angelopoulos.
Revue de Littérature Comparée, Didier Eurdition, avril 1999. Disponível em
<http://orfeo.grenoble.free.fr/Annexes/angelo.htm
>. Acesso em: 17 out. 2005.
LÉVY, Bernard-Henri. Le bloc notes. Le Point, Paris, 10 jun. 1995, n.1186, p. 16. Disponível
em: <http://www.lepoint.fr/edito/document.html?did=38414>. Acesso em: 02 set. 2006.
LÉVY, Bernard-Henri. Le bloc notes. Le Point, Paris, 04 nov. 1995, n.1207, p. 16. Disponível
em: <http://www.lepoint.fr/edito/document.html?did=40386>. Acesso em: 02 set. 2006.
LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco,
1993.
LIMA, Luiz Costa. A análise sociológica da literatura. In:______.(Org.). Teoria da literatura
em sua fontes. 2.ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 105-133.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e Modernidade: as formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal,
1980.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e imaginário no Ocidente. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
LLARÁS, Eva. Puentes y fortalezas de la tradición Bosnia. Babab, n.24, mayo 2004.
Disponível em: <http://www.babab.com/no24/bosnia.php
>. Acesso em: 24 jan. 2006.
LORAUX, Nicole. A tragédia grega e o humano. Trad. Maria Lúcia Machado. In: NOVAES,
Adauto. Ética. São Paulo: Companhia de Letras, 1992. p. 17-34.
LORAUX, Nicole. L'Iliade moins les héros. L'Inatuel, Paris, n.1, p. 11-117, printemps 1994.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
253
LORCA, Alexie. Danilo Kiš, ou l'ironie contre l'horreur. Lire: le magazine littéraire, Paris, juil.-
août 1995. Disponível em: http://www.lire.fr/critique.asp/idc=31094/idR=217/idTC=3/idG=4
Acesso em: 08 jun. 2004.
LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. 4.ed. Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1994. (Temas portugueses).
MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas.
Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004.
MACIEL, Maria Esther. Irrealidades virtuais (Peter Greenaway à luz de J. L. Borges).
VASCONSELOS, Maurício Salles; COELHO, Haydée Ribeiro (Org.). 1000 rastros rápidos:
cultura e milênio. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 1999. p. 61-70.
MALCOLM, Noel. Kosovo: a short history. New York: New York University Press, 1998.
MALCOLM, Noel; DJILAS, Aleksa, et. al. Is Kosovo real? The battle over history continues.
Foreign Affairs, Buffalo N.Y., v.79, n.1, jan../feb. 1999. Disponível em:
<http://www.foreignaffairs.org/19990101faresponse957/noel-malcolm-aleksa-djilas/is-
kosovo-real-the-battle-over-history-continues.html>. Acesso em: 01 maio de 2006.
MANCHEVSKI, Milcho. Macedônio faz filme de guerra renascentista. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 24 mar. 1995, Ilustrada, p. 8
.
MANCHEVSKI, Milcho. Manchevski constrói metáfora da guerra. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 01 nov. 1994, Ilustrada, p. 4.
MANCHEVSKI volta a sua terra natal. O Tempo, Belo Horizonte, 10 abr. 1998. Magazine, p. 7.
MASSI, Augusto. A Europa em revista. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 1986. Folhetim,
p. 10-11.
MATTOS, A. C. Gomes. Hollywood na guerra. Revista Cinemim, Rio de Janeiro: EBAL, n.28,
p. 22-29, out. 1986; n.29, p. 34-40, nov. 1986.
MATVEJEVITCH, Predrag. Predrag Matvejevitch: La disidencia en la otra Europa. La Jornada
Semanal. Transcripción: J. Francisco A. Elizalde. n. 286, 04 dez. 1994, p. 18-22. Disponível
em: <http://www.geocities.com/gregorovivs/predrag.htm
>. Acesso em: 21 de agosto 2005.
MAZOWER, Mark. Continente sombrio: a Europa no século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
MELIC, Katarina. La fiction de l'Histoire dans Un tombeau pour Boris Davidovitch de Danilo
Kiš. Fabula: la recherche en litterature. Colloque en ligne L'effet de fiction, Paris; Quebec.
Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/18.php
> Acesso em 14 jun. 2005.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
254
MELLO E SOUZA, Roberto. O soldado. Revista Sexta feira, São Paulo, n.7, p. B128-B130,
mar. 2003.
MEMÓRIAS em super 8. Direção de Emir Kusturica. São Paulo: Warner Home Vídeo-Brasil,
2001. 1 fita de vídeo (88 min.), VHS, son., color/p&b., legendado. Tradução de: Super 8 stories.
MEPHISTO. Direção de István Szabo. São Paulo: Polevídeo, 1981. 1 fita de vídeo (166 min.),
VHS, son., color., legendado.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos escolhidos. Seleção de textos de Marilena de Souza
Chaui. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).
MESQUITA, Cláudia. “Olhar de Ulysses” revira o passado impossível. Hoje em dia, Belo
Horizonte, 20 nov. 1995. Cultura, p. 5.
METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MILOSZ, Czeslaw. Atitudes centro-européias. Revista USP, São Paulo, n.6, p. 3-10,
jun./jul./ago. 1990.
MIRANDA, Wander. Notas sobre literatura na pós-modernidade. Boletim do Centro de Estudos
Portugueses da Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, v.14, n.17, p. 106-111, jan./jul.
1994.
MOLNÁR, Ferenc. Os meninos da Rua Paulo. 2.ed. Trad. Paulo Rponai. São Paulo: Ediouro,
2002. (Coleção Elefante).
MONTENEGRO – pérolas e porcos. Direção de Dusan Makavejev. São Paulo: Polevídeo,
1981. 1 fita de vídeo (96 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: Montenegro.
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana de
Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras;Fapesp, 2002.
MOREL, Jean-Pierre. Le cercle des assassins disparus: a propos de: Borges, “Théme du traître
et du héros”; Nabokov, Feu pâle; Danilo Kiš, “le livre des rois et des sots”. Vox poetica: lettres
& science humaines, Paris,
Alexandre Prstojevic editor. Disponível em: <http://www.voix-
poetica.org/ecrivains/KIS/morel.htm>. Acesso em: 22 fev. 2002.
MOSCHOS. Europé. In: PSEUDO-THÉOCRITE. MOSCHOS. BION. DIVERS. Bucoliques
grecs. Tome II, Texte établi et traduit: Ph. E. Legrand. Paris: Les Belles Lettres, 1953.
(Collection des Universités de France). p. 144-151.
MOSCOVICI, Marie. Tuer. L'Inatuel, Paris, n.1, p. 11-17, printemps 1994.
MOURA, Murilo Marcondes. Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial (Carlos
Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes). 1998. 194f. Tese (Doutorado em
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
255
Teoria da Literatura e Literatura Comparada) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
Universidade de São Paulo, São Paulo.
NAGY, Gregory. Greek mythology and poetics. New York: Cornell University, 1996.
NASCIDO para matar. Direção de Stanley Kubrick. São Paulo: Warner Home Vídeo-Brasil,
1987. 1 fita de vídeo (117 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução: de Full metal jacket.
O NASCIMENTO de uma nação. Direção de David Wark Griffith. São Paulo: Continental,
1914/1915. 1 fita de vídeo (164 min.), VHS, mud., p&b, legendado. Tradução de: The birth of a
nation.
NEKOVIC, Ivan. Iugoslávia: manipulações políticas e falsificações históricas. Novos Estudos
CEBRAP, São Paulo, n.47, p. 39-61, mar. 1997.
NESTROVSKI, Arthur. O ferrão da ironia. In: NESTROVSKI, Arthur. Ironias da
modernidade, São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 86-89.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. e
notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
UM OLHAR a cada dia. Direção: Theo Angelopoulos. São Paulo: Mundial Filmes, 1995. 1 fita
de vídeo (175 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: To vlemma tou Odyssea.
OLIC, Nelson Bacic. A desintegração do Leste: URSS, Iugoslávia, Europa Oriental. São Paulo:
Moderna, 1993. (Coleção Polêmica).
OLIVEIRA, Maria de Lourdes Abreu de. A montagem no cinema e na literatura. Revista de
Cultura Vozes. Petrópolis, v.78, n.8, p. 5-11, out. 1984.
OLIVEIRA, Maria Vilma. Humor e horror em tempo de guerra. Estado de Minas, Belo
Horizonte, 10 maio 1996. Espetáculo, p. 8.
ÖRKÉNY, István. A exposição das rosas: duas novelas. Trad. Aleksandar Jovanovic. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1993. (Coleção LESTE).
ÖRKÉNY, István. Contos de um minuto. Lisboa: Bico d'Obra, 1983.
ÖRKÉNY, István. Estórias instantâneas (trechos). Trad. Nelson Ascher. Disponível em:
<http://www.hungria.org.br/novela_orkeny.htm
.>Acesso em: 05 maio 2004.
ÖRKÉNY, István. Histórias de 1 minuto. Trad. sel. e int. Piroska Felkai. Lisboa: Cavalo de
Ferro, 2004.
ÖRKÉNY, István IN MEMORIAM DR. K. H. G. Disponível em: http://www.sulinet.
hu/tananyag/97105/on/konfliktus/13l.html. Acesso em: 15 abril 2004.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
256
ÖRKÉNY, István. Novelle da un minuto. Roma: Edizioni e/o, 1996. Resenha de: Renzo Ruffini.
Orologi: le misure del tempo, Roma, n.93, p. 40, ago.1996. Disponível em:
<http://www.orologi.it/articoli/oro96/rece93.htm
.>. Acesso em: 30 maio 2004.
ÖRKÉNY, István. One minutes stories. Selected and translated by Judith Sollosy. The
Hungarian Quarterly, v. XLIV, n. 170, Summer 2003. Disponível em:
<http://www.hungarianquarterly. com/no170/5.html
>. Acesso em: 23 mar. 2004.
OSTRIA, Vincent. Le voyager sans bagages. Cahiers du cinema, Paris, n.494, p. 52-53, juil.
1995.
OSTRIA, Vincent. Monsieur K. à Prague. Cahiers du cinema, Paris, n.481, p. 72-81, juin 1994.
OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Bocage. São Paulo: Hedra, 2000.
PAGANO, Adriana Silvina. Percursos críticos e tradutórios da nação: Argentina e Brasil.
1996. 355f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
PAISAGEM na neblina. Direção: Theo Angelopoulos. São Paulo: Look Filmes, 1988. 1 fita de
vídeo (126 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: Topio stin omichli.
PANTIC, Mihailo. Serbie: nouvelle prose de guerre. Trad. Persa Aligrudic. Le Courrier des
Balkans, Paris, 13 nov. 1999. Disponível em: <http://balkans.courriers.info/article2520.html>.
Acesso em: 21 set. 2004.
PÁVITCH, Milorad. O dicionário Kazar; romance-enciclopédia em 100.000 palavras. Trad.
Herbert Daniel (edições francesa e americana); Aleksandar Jovanovic (servo-croata); Maria
Luíza Jovanovic (hebraico e latim). São Paulo: Marco Zero, 1989. (edição masculina)
PAZ, Octavio. A outra voz. In: ______ A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano,
1993, p. 133-148.
PAZ, Octavio. Ironia e compaixão. Trad. Clóvis Alberto Mendes de Moraes. Correio da
UNESCO, Brasil, n.8, p. 26-29, ago.1990.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 1977.
PÉITCHTCH, Iovan. A poesia contemporânea da Sérvia – suas raízes e seus significados. In:
JOVANOVIC, Aleksandar (Org.). Poesia Iugoslava contemporânea. Trad. Aleksandar
Jovanovic. São Paulo: Meca, 1987. p. 13-19.
PEREIRA, Isidro. Dicionário grego-português e português-grego. Braga: Livraria A. I. Braga,
1998.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
257
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de história da cultura clássica. 7.ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. 2v.
PERRAULT, Magali. Regional lumping: a “Kidnapped Central Europe”. Central Europe
Review, UK, v.1, n.23, nov. 1999. Disponível em: <http://www.ce-review.org/99/
23/perrault23.html>. Acesso em: 17 nov. 2004.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. O inventário de Danilo Kiš. In:______. Flores da escrivaninha.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 152-158.
PESMAZOGLOU, Stephanos. Los intelectuales griegos y el repliegue helenocéntrico. El
Urogallo: revsita literária y cultural, Madrid, n.120, p. 56-60, mayo 1996.
PESSOA, Fernando. Mensagem. In: _____. Mensagem; À memória do presidente-rei Sidónio
Pais; Quitno Império; Cancioneiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
PETRESIN, Vesna; ROBERT, Laurent-Paul. The Double Möbius Strip Studies. Nexus Network
Journal, vol. 4, nº. 4, Autumn 2002. Disponível em: <http://www.nexusjournal.
com/PetRob.html>. Acesso em: 16 abr. 2005.
PIGLIA, Ricardo. A cidade ausente. 2.ed. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 1997.
PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradicion. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC, 2,
1990, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, v. 1, 1990, p. 60-66.
PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PIGLIA, Ricardo. Una propuesta para el nuevo milenio. Margens: Caderno de cultura, Belo
Horizonte, n.2, p. 1-3 out.2001.
PINTO, Júlio. 1, 2, 3 da semiótica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.
PIMENTA, Olímpio. A invenção da verdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
POPA, Vasko. Osso a osso. Trad. e org. Aleksandar Jovanovic. São Paulo: Perspectiva/ Editora
da Universidade de São Paulo, 1989. (Signos, 11).
PRELÚDIO de uma guerra. Direção: Frank Capra. São Paulo; Rio de Janeiro: Opção cine vídeo
tv, 1942. 1 fita de vídeo (54 min.)VHS, son.,p&b, legendado. Tradução de: Prelude to war.
PROGUIDIS, Lakis. Le residu amer de l'homme. L'inconvenient: Revue littéraire d'essai et de
création, Montreal/Quebec, n.7, oct. 2001. Disponível em: <http://ww
w.inconvenient.ca/textes/
lakis_residu.htm>. Acesso em: 15 jun. 2005.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
258
PROGUIDIS, Lakis. Danilo Kiš, portrait de famille. Vox poetica: lettres& science humaines,
Paris,
Alexandre Prstojevic editor, Disponível em: <http://www.vox-poetica.com/ecrivains/ KIŠ
/proguidis01.htm>. Acesso em: 19 fev. 2002.
PRSTOJEVIC, Alexandre. Un certain goût de l'archive (Sur l'obsession documentaire de Danilo
Kiš. Fabula: la recherche en litterature. Colloque en ligne L'effet de fiction, Paris; Quebec.
Disponível em: <http://www.fabula.org/effet/interventions/13.php>. Acesso em 15 jun. 2005.
PRSTOJEVIC, Alexandre. Entre histoire et Histoire. Vox poetica: lettres& science humaines,
Paris,
Alexandre Prstojevic editor, Disponível em: <http://www.vox-poetica.com/ecrivains/KIS/
prstojevic01.htm>.Acesso em: 19 fev. 2002.
RAMONET, Ignacio. Guerras do século XXI: novos temores e novas ameaças. Petrópolis:
Editora Vozes, 2003.
RAVETTI, Graciela. Bioy Casares: o pós-colonial no museu. In: PEREIRA, Maria Antonieta;
REIS, Eliana Lourenço de L. (orgs.). Literatura e estudos culturais. Belo Horizonte: Faculdade
de Letras da UFMG, 2000. p. 201-212.
RAVETTI, Graciela. Notas sobre a construção de um imaginário pós-ditatorial no Brasil,
Argentina e Chile. In: MENDES, Eliana Amarante de Mendonça; OLIVEIRA, Paulo Motta;
BENN-IBLER, Veronika. (Org.). O novo milênio: interfaces lingüísticas e literárias. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2001. p. 331-339.
REED, John. Guerra nos Bálcãs. Trad. Ludimila Hashimoto Barros. São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2002.
REIGOTA, Marcos. Iugoslávia: registros de uma barbárie anunciada. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2001.
REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. Porto Alegre: L&PM, 2004.
RENAN, Ernest. What is a nation? In: BHABHA, Homi K. (ed.). Nation and narration.
London; New York: Routledge, 1990. p. 8-22.
RESENDE, Fernando. Os gêneros e o trânsito textual. In: _____. Textuações: ficção e fato no
novo jornalismo de Tom Wolfe. Sâo Paulo: Amnablume: Fapesp, 2002. p. 25-35.
O RESGATE do soldado Ryan. Direção de Steven Spielberg. São Paulo: CIC, 1998. 1 fita de
vídeo (168 min.) VHS, son., color, legendado. Tradução de: Saving private Ryan.
REZENDE, Luiz Carlos de Brito. O escritor se faz de dor. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28
nov. 1986. Folhetim, p. 11.
REZENDE, Marcelo. Angelopoulos faz viagem pelo fim do século. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 2 nov. 1995. Ilustrada, p. 7.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
259
RICHARD, Nelly. Citar a violência: a rotina oficial e as convulsões do sentido. In: _____.
Intervenções críticas: arte, cultura e política. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. p. 75-92.
RIZZANTE, Massimo. De l'idéal encyclopédique. Vox poetica: lettres& science humaines,
Paris,
Alexandre Prstojevic editor, Disponível em: <http://www.vox-poetica.com/ecrivains/
KIŠ/rizzante01.htm>. Acesso em: 19 fev. 2002.
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: _____. Primeiras estórias. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, [s.d.].
ROSA, João Guimarães. Orientação. In: ______. Tutaméia. 9.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995. p. 123-125.
RUTHERFORD, Anne. Precarious boundaries: affect, mise en scène and the senses in
Angelopoulos' balkans epic. In: SMITH, Richard Candida (ed.). Art and the performance of
memory: sounds and gestures of recollection. New York: Routledge, 2002. (Memory and
Narrative). Disponível em: <http://www.sensesofcinema.com/contents/04/31/angelopoulos
balkanepic.html#b3>. Acesso em: 16 out. 2005.
SAER, Juan José. El concepto de ficción. Buenos Aires: Ariel, 1997.
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
SAID, Edward W. O choque de ignorâncias. Trad. Clara Allain. Folha de S. Paulo, São Paulo,
07 out. 2001, Caderno Mundo, p. 16.
SAID, Edward W. O orientalismo revisto. Trad. Heloisa Barbosa. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de. (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa
Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SAID, Edward W. The representation of the intellectual. New York: Random House, 1996.
SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: _____. Vale quanto pesa: ensaios
sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 13-24.
SANTO AGOSTINHO. Confissões XI. In: ______. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos. São
Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 309-340.
SANTOS. Luis Alberto Ferreira Brandão. Nação: Ficção; comunidades imaginadas na
literatura contemporânea. 1996. 208f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade
de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
260
SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Narrar o tempo. In: _____.
Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à Teoria da Literatura. São Paulo Martins fontes,
2001. p. 43-65.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec,
l996.
SANTOS, Milton. Testamento intelectual: Milton Santos, entrevistado por Jesus de Paula Assis;
colaboração de Maria Encarnação Sposito. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
SARAMAGO, José. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad. Antonio Chellini, José Paulo Paes
e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 79-93.
SCALZO, Fernanda. Intolerância altera destino. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 mar. 1995.
Ilustrada, p. 8.
SCARPETTA, Guy. Introduction à Danilo Kiš. Art Press, Paris, n.124, p. 42-47, avr. 1988.
SCHEIN, Seth L. The mortal hero: an introduction to Homer's Iliad. Berkeley; Los Angeles;
London: University of California Press, [s.d.].
SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da Antigüidade Clássica: os mitos da Grécia e de
Roma. 2.reimp. Trad. Luís Krausz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. v.1.
SEIFERT, Jaroslav. Poema sobre a guerra. In: JOVANOVIC, Aleksandar (Org.). Ceu vazio: 63
poetas eslavos. São Paulo: HUCITEC, 1996. p. 72.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur;
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p.
73-98.
SER ou não ser. Direção: Ernst Lubitch. São Paulo: Filmax/Altaya Editora, 1942. 1 fita de vídeo
(100 min.), VHS, p&b., legendado. Tradução de: To be or not to be.
SIEWIERSKI, Henryk. O mito da “Europa Central”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 mar.
1988. Folhetim, p. 2-4.
SIEWIERSKI, Henryk. História da literatura polonesa. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2000.
SLAVIC AND EAST EUROPEAN JOURNAL.Tucson: American Association of Teachers of
Slavic (AATSEEL of the U.S.), v. 34, n.2;4, summer; winter, 1990.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
261
SLAVIC AND EAST EUROPEAN JOURNAL.Tucson: American Association of Teachers of
Slavic (AATSEEL of the U.S.), v. 35, n.1-3, spring; summer; fall, 1991.
SLAVIC AND EAST EUROPEAN JOURNAL.Tucson: American Association of Teachers of
Slavic (AATSEEL of the U.S.), v. 36, n.1-4, spring; summer; fall; winter 1992.
SLAVIC AND EAST EUROPEAN JOURNAL.Tucson: American Association of Teachers of
Slavic (AATSEEL of the U.S.), v. 37, n.1, spring, 1993.
SOARES, Leonardo F. Rotas abissais: mimese e representação em A força do destino, de
Nélida Piñon e E la nave va, de Federico Fellini. 2000. 141f. Dissertação (Mestrado em Letras-
Estudos Literários) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
SÓFOCLES. A trilogia tebana. Trad. Mário da Gama Kury. 10.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2002.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
SONTAG, Susan Questão de ênfase: ensaios. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.
SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
(Humanitas).
SPIVAK, Gayatri. Quem reivindica alteridade? In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (Org.).
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.
187-205.
STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes. Espaço geográfico uno e múltiplo. Scripta Nova:
revista electrónica de geografia y ciencias sociales, Barcelona, n.93, jul.2001. Disponível em:
<http://www.ub.es/geocrit/sn-93.htm>; Acesso em: 16 jan. 2006.
TERRA de ninguém. Direção: Danis Tanovic São Paulo: Imagens Filmes, 2001. 1 fita de vídeo
(98 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: No man's land.
TERZIC, Slavenko (ed.). Response to Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Belgrado:
Institute of History of the Serbian Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999. Disponível em:
<http://www.kosovo.net/nmalk.html
>. Acesso em: 01 maio 2006.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
262
TERZIC, Slavenko. About this scientific discussion. In: TERZIC, Slavenko (ed.). Response to
Noel Malcolm's Book Kosovo: a short history. Belgrado: Institute of History of the Serbian
Academy of Sciences and Art, 8 oct. 1999. Disponível em: <http://www.kosovo.net/
nmalk1.html>. Acesso em: 01 maio 2006.
TERZIC, Slavenko. Old serbia in the eyes of the “Merciful Angel”: the phenomenon of the
historian as a destructionist. In: TERZIC, Slavenko (ed.). Response to Noel Malcolm's Book
Kosovo: a short history. Belgrado: Institute of History of the Serbian Academy of Sciences and
Art, 8 oct. 1999. Disponível em: <http://www.kosovo.net/nmalk5.html
>. Acesso em: 01 maio
2006.
THOMAZ, Omar Ribeiro. A vitória da política do medo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo,
n.47, p. 03-18, mar. 1997.
THOMAZ, Omar Ribeiro; BASCH, Gábor. Histórias e traições – antropologia e conflitos no sul
de Moçambique e na Hungria. Revista Sexta feira, São Paulo, n.7, p. B96-B106, mar. 2003.
TODOROV, Tzvetan. A narrativa primordial. In:______. As estruturas narrativas. 2.ed. Trad.
Moysés Baumstein. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 105-117 (Debates).
TODOROVA, Maria. Imagining the Balkans. New York; Oxford: Oxford University Press,
1997.
TOURAINE, Alain. O duro caminho da democracia. Trad. Clóvis Alberto Mendes de Moraes.
Correio da UNESCO, Brasil, n.8, p. 18-25, ago.1990.
TZU, Sun. A arte da guerra. 8 ed. Trad. Gilson César Cardoso de Souza, Klaus Brandini
Gerhart. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
A ÚLTIMA tempestade. Direção de Peter Greenaway. São Paulo: Art Films, 1991. 1 fita de
vídeo (155 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de: Prospero’s book.
UNDERGROUND – mentiras da guerra. Direção de Emir Kusturica. São Paulo: Mundial
Filmes, 1995. 1 fita de vídeo (169 min.), VHS, son., color., legendado. Tradução de:
Underground – Bila jednom jedna zemlja.
UNDERGROUND chega a lembrar Nelson Rodrigues. Estado de Minas, Belo Horizonte, 06
jun. 1996. Espetáculos, p. 2.
UNDERGROUD ganha em Cannes. Hoje em dia, Belo Horizonte, 30 maio 1995. Cultura, p. 8.
VALLE, Alexandre Del. Guerras contra a Europa. Trad. José Augusto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Bom Texto, 2003.
VELASCO, Francisco Diez de. Les mythes d'Eurôpè: reflexions sur l'Eurocentrisme.
Metis,
Paris XI, p. 123-132, 1996.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
263
VELOSO, Caetano. Livros. In: ______. Livro. São Paulo: Polygram, 1997. 1 CD. Acompanha
encarte.
VERÍSSIMO, Luiz Fernando. Velhos e novos bárbaros. O Globo, Rio de Janeiro, 09 maio.
2004. Segundo Caderno, p. 9
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica.
2.ed. Trad. Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
VIDA cigana. Direção: Emir Kusturica. São Paulo: LK-TEL, 1989. 1 fita de vídeo (142 min.),
VHS, son., color., legendado. Tradução de: Dom za vesanje.
VIEGAS, Sônia. Cinema comentado. Belo Horizonte: Núcleo de Filosofia Sônia Viegas, 1990.
VIRILIO, Paul. Guerra e cinema: logística da percepção. Trad. Paulo Roberto Pires. São Paulo:
Boitempo, 2005. (Estado de sítio).
VIRILIO, Paul. O espaço crítico; e as perspectivas do tempo real. Edição revista e aumentada.
Trad. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Ed.34, 2005.
VIRILIO, Paul. LOTRINGER, Sylvere. Guerra pura: a militarização do cotidiano. Trad. Paulo
Roberto Pires. São Paulo: Brasiliense, 1984.
WEIL, Simone. L'Ilíade ou le poème de la force. In: ______. La source grecque. 5.ed. Paris:
Gallimard, 1953. p. 11-42. (Collection Espoir).
WEISSTEIN, Ulrich. Comparative literature and literary theory: survey and introduction.
Translated by William Riggan. Bloomington; London: Indiana University Press, 1973.
WERKEMA, Andréa Sirihal. Entretextos: Borges e Machado de Assis. O eixo e a roda: Revista
de literatura brasileira, Belo Horizonte, v.9/10, p. 167-177, 2003/2004.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia
de Franca Neto. São Paulo: Ed. USP, 1994.
WILSON, Kevin; DUSSEN, Jan Van der. The history of the idea of Europe. Heerlen; London:
Open Universiteit; Routledge, 1996.
WWW.KUSTU.COM. Disponível em: <http://www.dhennin.com/kusturica/v2/cles pour-
underground-fr.html>). Acesso em: 02 set. 2006.
XAVIER, Ismail. Guerras de cinema – a nação do monumental e espetacular. Revista Sexta
feira, São Paulo, n.7, p. B108-B116, mar. 2003.
ZELIG. Direção: Woody Allen. São Paulo: Fox Filmes, 1983. 1 videodisco (79 min.), son.,
p&b, color., legendado.
LEITURAS DA OUTRA EUROPA: GUERRAS E MEMÓRIAS NA LITERATURA E
NO CINEMA DA EUROPA CENTRO-ORIENTAL
Leonardo Francisco Soares
264
ZIZEK, Slavoj. Espelho distorcido. Trad. Luis Roberto Mendes Gonçalves. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 09 maio 2004. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/
fsp/mais/fs0905200405.htm
>. Acesso em: 09 maio 2004.
ZIZEK, Slavoj. Underground or ethnnic cleansing as a continuation of poetry by other means.
Intercomunication: a journal exporing the frontiers of art and technology, Tóquio, n.18,
Autumun 1996. Disponível em: <http://www.ntticc.or.jp/pub/ic_mag/ic018/intercity/
zizek_E.html>. Acesso em: 01 ago. 2006.
ZIZEK, Slavoj. ‘You may!’. London review of books, London, n.6, v.21, 18 marc. 1999.
Disponível em: <http://www.lrb.co.uk/v21/n06/zize01_.html>. Acesso em: 03 set. 2006.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo