Download PDF
ads:
Jair Rodrigues de Aguiar Júnior
“COMEU O ETERNO E DEIXOU O MINUTO:
O TEMPO DA ESCRITA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS
CUBAS, DE MACHADO DE ASSIS
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Jair Rodrigues de Aguiar Júnior
“COMEU O ETERNO E DEIXOU O MINUTO”:
O TEMPO DA ESCRITA EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS,
DE MACHADO DE ASSIS
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais, com vista à
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Literatura Brasileira
Orientadora: Profª. Drª. Ruth Silviano Brandão
Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanálise
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2006
2
ads:
3
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Maria de Lourdes e Jair (in memorian), pelo apoio em todos os momentos;
A Renata, meu amor;
A Ruth Silviano Brandão, por abrir-me as portas para a literatura;
Aos professores Lucia Castello Branco, Ana Maria Clark, Tereza Virgínia e Maria Inês,
pelo valioso convívio;
Aos meus amigos Nívea, Bite, Nisinha, Patrícia, Tila, Luciana, Grécia, Eustáquio e Jane,
Rivaldo e Lêda, por terem me acolhido em Belo Horizonte;
A Cristina Vidigal, pela escuta;
Ao Sérgio, pelo companheirismo;
A Imaculada, pela atenção;
A Silvana, Maria Teresa, Cláudia, Marcelo e Ana Paula, pela experiência na Clínica
Urgentemente;
A Fernanda, Jovânia e Vanessa, pela experiência na Enfermig;
À FAPEMIG, pela concessão da bolsa de estudos.
4
(...) mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar
tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um
túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de
invisível é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro.
Machado de Assis, Esaú e Jacó.
A biologia não conseguiu ainda responder se a morte é o
destino inevitável de todo ser vivo ou se é apenas um evento
regular, mas ainda assim talvez evitável, da vida. É verdade
que a afirmação Todos os homens são mortais” é mostrada
nos manuais de lógica como exemplo de uma proposição
geral; mas nenhum ser humano realmente a compreende, e o
nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre
teve, para a idéia da sua própria mortalidade.
Freud, “O ‘Estranho’”.
5
RESUMO
A proposta deste trabalho é o estudo do tempo e de suas relações com a escrita em
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, bem como em alguns contos do
autor. Procuramos depreender, a partir das modalidades temporais que os textos
machadianos colocam em cena, e de sua articulação com a psicanálise, a noção de tempo da
escrita. Para tanto, investigamos o tratamento do tempo em alguns textos de Machado de
Assis, passando pela relação do escritor com a tradição e pela questão do poder corrosivo
do tempo em Memórias póstumas. Abordamos ainda a morte de Brás Cubas como uma
ruptura a partir da qual se a gênese do narrador e como condição do ato narrativo. Por
fim, investigamos a questão do tempo articulada à escrita das memórias de Brás Cubas.
Palavras-chave: Tempo; escrita; memória; letra; inconsciente; Machado de Assis;
Memórias póstumas de Brás Cubas.
6
ABSTRACT
This work aims at studying time and its relationships with writing in Machado de
Assis’s Memórias póstumas de Brás Cubas, and in some other narratives of the author.
Departing from the time modalities brought into scene by the author’s texts, and their
articulation with psychoanalysis, we have tried to elaborate the notion of time of writing. In
order to do so we have investigated the way Machado de Assis deals with time in some of
his texts, considering he author’s relationship with tradition and the theme of the corrosive
power of time in Memórias póstumas. We have also approached the death of the character
Brás Cubas as a rupture which gives way to the narrator’s genesis, and as the condition of
the narrative act itself. Finally, we investigate the question of time in its articulation with
the writing of Brás Cubas’s memoirs.
Keywords: time; writing; memoir; letter; (the) unconscious; Machado de Assis; Memórias
póstumas de Brás Cubas.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:
Uma lógica do tempo 9
1 – Breve cronologia da escrita 17
1.1 – A escrita no tempo: uma viagem pela tradição 34
1.2 – O tempo da escrita: corrosão e depuração 49
2 – Morte e Gênese do escritor Brás Cubas 62
2.1 – Uma invenção ambígua: o emplastro da escritura 63
2.1.1 – O espelho fraturado de Brás 67
2.1.2 – O lugar vazio da criação 75
2.2 – Escrita oblíqua: deslocamentos do fluxo do tempo 86
3 – O tempo da escrita das memórias 103
3.1 – Reinventar as velhas folhas da história 123
3.2 – Nas águas de Lethe 127
CONCLUSÃO 134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 141
8
INTRODUÇÃO:
UMA LÓGICA DO TEMPO
E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana
Scheherazade o dos seus contos.
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas.
O objetivo principal deste trabalho é o estudo do tempo e de suas relações com a
escrita em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Investigando a sua
visão ou lógica do tempo, em suas várias acepções, em alguns textos do autor,
especialmente no livro Memórias póstumas de Brás Cubas, e relacionando-a com
concepções de tempo elaboradas em outros campos do saber, como a psicanálise e a
filosofia, procuraremos desenvolver uma topologia do tempo machadiano.
Buscaremos ainda analisar como os termos memória, lembrança, lacuna, furo,
corrosão, decomposição, eterno e minuto encontram-se articulados ao tempo da escrita
machadiana (sendo recorrentes quando o autor o “teoriza”), procurando relacionar esses
termos com os conceitos psicanalíticos de inconsciente, recalque, memória e letra, entre
outros.
Em nosso percurso, portanto, além do livro Memórias póstumas, abordaremos a
questão do tempo na ficção machadiana a partir da análise de alguns contos do autor, como
“Papéis velhos”, “Uma visita de Alcebíades”, “Uma senhora”, “Um homem célebre” e
“Cantiga de esponsais”, e procuraremos estabelecer articulações com outros autores ou
obras que abordam a temática do tempo, tanto na literatura quanto em áreas como a
psicanálise e a filosofia. Interessa-nos, particularmente, investigar, a partir das várias
9
modalidades temporais que os textos machadianos colocam em cena, a temporalidade da
própria escrita.
Na década de 50 do século passado, foram realizados pelo menos dois importantes
estudos sobre o tema do tempo em Machado de Assis. Wilton Cardoso, em Tempo e
memória em Machado de Assis, desenvolveu um trabalho de propósito biográfico,
respondendo, de certa forma, à seguinte afirmação do ensaísta e professor Moisés Velhino:
“Há, de certo modo, um vínculo substancial entre a ficção machadiana e a natureza psíquica
de seu criador”.
1
Considerando a experiência vivida de Machado, Cardoso procurará dar uma visão
mais humana e exata do autor; sendo assim, buscará articular tal experiência ao que de mais
íntimo Machado escreveu em suas obras: “Eis o que perfeitamente se adapta à experiência
de Machado de Assis, no que toca ao que de mais pessoal imprimiu às suas obras, a saber –
a vivência do fluxo contínuo do tempo e a insuficiência da memória para restabelecer as
sensações passadas”.
2
Tempo e memória são, portanto, temas primordiais escolhidos por
Cardoso, numa abordagem que pretende enlaçar vida e obra.
Dividido em três partes, o estudo de Wilton Cardoso faz uma leitura linear da obra
machadiana. Na primeira parte (“Ascensão sobre o futuro”), Cardoso estuda o tempo na
poesia de Machado de Assis (Crisálidas, Falenas e Ocidentais) e, no capítulo seguinte, nos
quatro romances considerados, por ele, como a “primeira fase” do autor (Ressurreição, A
mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia); na segunda parte (“Queda sobre o passado”), o autor
aborda a questão nos romances considerados da “segunda fase” (Memórias póstumas de
Brás Cubas, Quincas Borba, D. Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires) e, no
1
VELHINO apud CARDOSO. Tempo e memória em Machado de Assis, p. 14.
2
CARDOSO. Tempo e memória em Machado de Assis, p. 217.
10
apêndice (“Visão de caleidoscópio”), examina alguns contos machadianos (“D. Paula”,
“Mariana”, “Troca de datas”, entre outros).
O segundo estudo, intitulado O tempo no romance machadiano, de autoria da
professora Dirce Côrtes Riedel, foi realizado com o objetivo de obtenção do título de livre-
docente de Literatura Brasileira. A autora deteve-se, fundamentalmente, na análise da
estrutura de três romances machadianos para estudo do tempo na narrativa. Os romances
por ela escolhidos foram: Memórias póstumas de Brás Cubas, D. Casmurro e Memorial de
Aires. A partir do conceito bergsoniano de “durée” a autora se refere, da seguinte forma, ao
narrador machadiano:
o narrador machadiano, quando reconstitui o passado, não o faz numa
narrativa linear, correspondente à continuidade do tempo exterior, mas
sim na medida da “durée”, da descontinuidade do tempo subjetivo.
Machado narra o “eterno presente”, durando no interior da personagem,
pois neste fusão dos tempos, uma vez que o passado não se apresenta
distinto do presente, mas incluso neste. Respeita-se a seqüência temporal,
mas a associação de idéias é que encadeia os episódios, cuja medida
verdadeira é a duração psicológica, a distância interior, que os retarda ou
acelera.
3
Côrtes Riedel reporta-se a um tempo exterior e a um tempo interior do personagem,
salientando que o exterior é linear e contínuo, enquanto o interior privilegiado pelo
narrador machadiano na constituição do passado é subjetivo e descontínuo. Segundo a
autora, Machado narra a temporalidade que dura no interior do personagem, lugar onde
uma fusão dos tempos, e não uma separação entre passado e presente, uma vez que o
passado está incluso no presente. O trabalho de reconstituição do passado é feito por meio
da associação de idéias, e a duração do tempo é, pois, psicológica ou, se preferirmos,
subjetiva, e não uma duração cronológica externa aos personagens.
3
CÔRTES RIEDEL. O tempo no romance machadiano, p. 70.
11
Afrânio Coutinho, no seu “Estudo crítico: Machado de Assis na literatura
brasileira”, faz uma síntese das diversas concepções de tempo presentes na obra do autor de
Memórias póstumas de Brás Cubas, e tece o seguinte comentário:
Estreitamente ligada a esse grupo [da temática sobre o sentimento trágico
da existência] é a temática do tempo, outro ciclo de grande importância na
obra machadiana: a irreversibilidade do tempo, o fluir contínuo e ilógico,
a lei da mutabilidade eterna, a transitoriedade de tudo, o aspecto
destruidor e corruptor do tempo, conduzindo à decadência física e à
morte, a inanidade de qualquer esforço pois o fim é o mesmo, o
escoamento implacável, a perecibilidade do ser humano contrastando com
o ideal da vida perpétua, a descontinuidade humana, o nada como fim de
todas as coisas e seres, a fluência constante produzindo a dissolução da
personalidade, o contraste entre o tempo subjetivo e o tempo histórico, o
mito da infância e sua despreocupação com a angústia do tempo e a
morte, a passagem constante das idades e gerações na corrida atrás de
quimeras, a necessidade de esquecer o passado e sua presença obsedante e
inarredável pela recordação e pela memória, que só a loucura evita.
4
É possível pensar esse ciclo do tempo” machadiano por meio da imagem de uma
espiral que circunda um ponto vazio ou neutro (ponto enigmático que remete ao real
lacaniano); vazio este a partir do qual Machado desenvolve suas indagações e sua lógica do
tempo. Pois, se o tempo surge como um enigma para o autor, é a partir de seu trabalho com
a escrita que ele corpo a esse enigma, teorizando-o” em sua obra, e, assim, enlaçando
os três registros introduzidos, no campo da psicanálise, por Lacan: o real, o simbólico e o
imaginário.
Em um outro estudo, o texto Esquema de Machado de Assis”, do crítico Antonio
Candido, ressaltam-se algumas maneiras de interpretar, ou de ler Machado, que
contribuíram para compor uma visão moderna do autor. Segundo Candido, a partir das
leituras de Augusto Meyer e Lúcia Miguel Pereira, chamou-se “a atenção para os
fenômenos de ambigüidade que pululam na sua ficção, obrigando a uma leitura mais
4
COUTINHO. Estudo crítico: Machado de Assis na literatura brasileira, p. 53.
12
exigente graças à qual a normalidade e o senso das conveniências constituem apenas o
disfarce de um universo mais complicado e por vezes turvo”.
5
Nessa visão moderna que começou a se compor sobre Machado de Assis,
privilegiou-se, no autor, o “ser múltiplo, impalpável”,
6
assim como a sua capacidade de
criar um mundo de paradoxos, de fazer experiências com a linguagem e ser um “desolado
cronista do absurdo”.
7
Encontramos, portanto, nessas argumentações, alguns traços característicos do
escritor Machado de Assis, que vão incidir sobre a maneira como ele constrói as suas
concepções de temporalidade. Dentre tais concepções, podemos extrair de Memórias
póstumas, entre outras, uma temporalidade marcada por saltos e digressões da narrativa,
deixando o leitor perplexo com as idas e vindas do narrador Brás Cubas.
O autor, no Prólogo, adverte ao leitor sobre a inconstância e ambigüidade do
narrador: “De Brás Cubas se pode talvez dizer que viajou à roda da vida”.
8
Note-se o
“talvez”, que indica possibilidade ou dúvida. Mas, por precaução, melhor seria ficarmos
com a segunda hipótese, e não crermos cegamente nas histórias do narrador machadiano.
No entanto, fica-nos, principalmente, a impressão de que Machado de Assis, nessa “obra
difusa” escrita com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”
9
, viaja não apenas à roda da
vida, mas à roda do tempo, pois o autor, efetuando uma espécie de corte na temporalidade,
inventa um tempo fora do tempo – a eternidade – de onde Brás narrará suas memórias.
uma certa multiplicidade de tempos que se inscrevem no texto machadiano, que
ora remete à memória, às ruínas, à corrosão e à depuração (questões presentes no livro
5
CANDIDO. Esquema de Machado de Assis, p. 24.
6
CANDIDO. Esquema de Machado de Assis, p. 24.
7
CANDIDO. Esquema de Machado de Assis, p. 24.
8
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
9
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
13
Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, e que trabalharemos nos capítulos
seguintes); ora às rupturas com a linearidade temporal, apontando para certas modalidades
de tempo em que, em alguns momentos, presente, passado e futuro se entrecruzam como
fios que remetem ao atemporal e à “inconsciência”, como na seguinte passagem do conto
“O cônego ou a metafísica do estilo”, que narra o “idílio psíquico” do cônego Matias, no
ato de compor um sermão:
Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a
inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as
reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os
germens, e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso
do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e
suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e
escorreguemos também.
10
Machado de Assis, por intermédio de alguns de seus personagens, interroga o tempo a
partir de dois pontos, aparentemente antagônicos: a eternidade ou o eterno e o minuto.
Buscaremos, em nossa leitura do tempo da escrita machadiana, operar com os termos
eterno e minuto, que perpassarão os três capítulos desta dissertação. Os questionamentos do
autor a esse respeito aparecem em Memórias póstumas, assim como nos contos “Papéis
velhos” (que comentaremos no capítulo I desta dissertação) e “Viver!”, entre outros.
Em “Viver!”, por exemplo, Ahasverus, condenado a caminhar continuamente, até o
fim dos tempos, por ter empurrado Jesus Cristo, quando iam crucificá-lo, e bradado para
que ele não descansasse, senta-se em uma rocha e sonha. Nesse sonho, Ahasverus, na
cláusula dos tempos, limiar da eternidade, encontra-se com o personagem tico Prometeu
(“o que prevê”) que fora condenado por Júpiter a padecer, por séculos e séculos,
10
MACHADO DE ASSIS. O cônego ou metafísica do estilo, p. 572.
14
acorrentado a um rochedo, enquanto um abutre, diariamente, devorava-lhe o fígado
11
e se
estabelece um diálogo entre os dois. Em certo ponto do texto, Ahasverus relata ao titã sua
viagem, sua peregrinação nos tempos:
Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda a parte,
qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos
bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem,
respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse
refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede, está a
última. Ide, que não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não
trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia,
um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça
soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações
legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu
nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os
heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia
caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e
remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo?
Felizes os que só leram a vida em um capítulo. Os que se foram, à
nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que
expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da
recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas cousas, sem parar, a
mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade,
eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre
ocasos?
12
Há, no texto machadiano, portanto, várias modalidades de tempo, que por vezes
perpassam sem um ordenamento cronológico linear, que implique início, meio e fim. Em
outras circunstâncias, como na citação acima, o autor remete o leitor à imagem de
temporalidades várias, presentes nos diversos capítulos da história e da vida, morrendo e
renascendo dentro da eternidade.
A psicanálise também tem importantes contribuições a dar a respeito do tempo. A
partir das descobertas de Freud sobre o inconsciente que romperam com a tradição do
pensamento filosófico ocidental (com o platonismo e as filosofias de tradição platônica,
11
Cf. ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado, p.111-137.
12
MACHADO DE ASSIS. Viver!, p. 566.
15
fundadas nos conceitos de consciência e de eu), ao inaugurar e privilegiar esse novo campo
de investigação sobre os processos psíquicos –, surge um novo modo de pensar não
somente o psiquismo humano, mas as relações deste com o tempo.
São também de interesse para o nosso estudo as formulações de Freud sobre a
temporalidade e o inconsciente, a maneira como o autor desenvolve o conceito de memória
e as relações entre esta e o tempo, bem como algumas formulações, desenvolvidas por
Lacan, a respeito da concepção de linguagem, do conceito letra e dos registros real,
simbólico e imaginário.
A contribuição vinda do campo filosófico se dará por meio de uma articulação do
tempo machadiano com os conceitos Aion e Cronos, desenvolvidos por Gilles Deleuze no
livro Lógica do sentido; e Phármakon, discutido por Derrida no livro A farmácia de Platão.
Assim, para darmos prosseguimento aos fios de nossa aventura, em alguns
momentos de nosso trabalho, recorreremos a uma articulação de alguns textos de Machado
de Assis com a psicanálise, a filosofia e a crítica literária, procurando, com isso, investigar
a lógica do tempo da escrita de Memórias póstumas de Brás Cubas.
No decorrer de nossa investigação, procuraremos articular tempo e linguagem e,
dessa articulação, extrair uma topologia do tempo, a partir do estudo de Memórias
póstumas de Brás Cubas e de alguns contos do autor, levando em consideração o vazio
estrutural da linguagem, assim como o vazio do tempo, o atemporal, como o que faz girar
as várias modalidades temporais em Machado de Assis.
CAPÍTULO I
BREVE CRONOLOGIA DA ESCRITA
16
Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na água.
Vês este livro? É D. Quixote. Se eu destruir o meu exemplar,
não elimino a obra que continua eterna nos exemplares
subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela,
belamente eterna, como este mundo divino e supradivino.
Machado de Assis, Quincas Borba.
A razão é que, ao contrário de uma velha fórmula absurda,
não é a letra que mata; a letra vida; o espírito é que é
objeto de controvérsia, de dúvida, de interpretação, e
conseguintemente de luta e de morte.
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas.
Recorrendo à história veremos que os gregos já se preocupavam em definir o tempo,
em conceituá-lo. Para ficarmos apenas em um exemplo, Platão, em sua obra Timeu, refere-
se ao Tempo como sendo “uma certa imitação móvel da eternidade (...), imagem eterna que
progride segundo a lei dos números”,
13
ou seja, o tempo, sendo uma imagem que se move, é
reflexo e imitação da eternidade, e não uma realidade imutável. O passado e o presente
nascem e progridem no tempo, são transformações do tempo; a eternidade, enquanto
ausência de tempo, é imutável e inalterável. O tempo, para Platão, pertence, pois, à ordem
sensível, e não à substância eterna.
No decorrer da história da filosofia, outros filósofos dedicaram-se a essa questão.
Em cada nova época, a cada nova descoberta em campos do saber como a física, a
astrofísica e a matemática, por exemplo, foram desenvolvidos conceitos tais como
movimento, espaço, etc. que possibilitaram aos filósofos novas reflexões sobre a relação
entre estes e o conceito de tempo e o estabelecimento de distintas concepções de tempo.
No início do período medieval, o filósofo Santo Agostinho indagava, perplexo: O
que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a
quem me fizer a pergunta, o sei”.
14
Agostinho dedicou parte de sua obra Confissões à
13
PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida, p. 92.
14
AGOSTINHO. Confissões, p. 322.
17
análise do tempo, e encontramos, no livro citado, algumas das mais belas e pontuais
indagações que foram escritas a esse respeito. O autor irá situar a existência temporal no
espírito ou na alma humana e enfatizar o papel da memória nesse processo. De acordo com
Agostinho, a alma é o lugar do tempo e este se constitui na alma, uma vez que é nela que
está a memória das coisas passadas; sendo assim, o tempo é subjetivo, pois passa no
interior do homem, e não fora dele.
Efetuando um salto temporal, vamos encontrar no livro Lógica do sentido, do
filósofo contemporâneo Gilles Deleuze, retomando o pensamento estóico, o comentário
sobre duas leituras do tempo que se opõem, excluindo-se reciprocamente. Uma leitura é a
de Cronos, em que, de acordo com o autor, “só o presente existe no tempo. Passado,
presente e futuro não são três dimensões do tempo; o presente preenche o tempo, o
passado e o futuro são duas dimensões relativas ao presente no tempo”.
15
Nessa concepção,
existe um presente vasto, de maior extensão e duração, que, ao absorver ou contrair em
si o passado e o futuro, preenche todo o tempo, ganhando “os limites do universo inteiro
para se tornar um presente vivo cósmico”.
16
O presente é, assim, um tempo limitado, mas
infinito, uma vez que é cíclico, animando um eterno retorno do Mesmo.
A segunda leitura é a de Aion, na qual somente o passado e o futuro subsistem no
tempo. Deleuze usa a imagem de uma linha vazia para se referir ao Aion e diz que, nessa
linha, o passado e o futuro subdividem ao infinito cada presente, alongando-o. Cada
presente, portanto, divide-se, decompondo-se, infinitamente, em passado e em futuro.
Esse é o tempo dos acontecimentos, em que
15
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 167.
16
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 64.
18
cada acontecimento é o menor tempo, menor que o mínimo de tempo
contínuo pensável, porque ele se divide em passado próximo e futuro
iminente. Mas é também o tempo mais longo, mais longo que o máximo
de tempo contínuo pensável, porque ele não cessa de ser subdividido pelo
Aion que o torna igual à sua linha ilimitada.
17
Tempo ilimitado, pois, nessa linha reta, as extremidades de passado e futuro se
distanciam cada vez mais; tempo dos opostos e da descontinuidade, como se o presente,
que aparece como um raio, um fulgor, estivesse sempre escapando, ao ser subdividido pelo
instante ou pelo acontecimento em passado e em futuro.
Talvez essas duas leituras excludentes do tempo possam ser feitas, tomando-se
como exemplo o capítulo VII, “O delírio”, de Memórias póstumas de Brás Cubas. Nesse
capítulo, Brás Cubas relata o seu próprio delírio, em que é arrebatado por um hipopótamo,
que o leva a uma viagem à origem dos séculos.
A leitura de Aion torna-se possível no momento em que, em sua viagem, Brás
encontra-se com Pandora, a Natureza, e no diálogo que se estabelece entre os dois, ela lhe
diz: “Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem
é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas
o tempo subsiste”.
18
Poderíamos pensar esse “minuto que passa” como o presente vazio do
Aion, que praticamente no mesmo instante de fulgor em que aparece desaparece,
subdividindo-se em passado e em futuro, infinitamente. E, ainda, como afirma Pandora, o
tempo (passado e futuro) é o que, de fato, subsiste, eternamente, alongando-se na linha reta
do Aion.
17
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 68.
18
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 522.
19
A outra leitura do tempo, de Cronos, talvez se torne possível retomando o momento
em que, do dorso do hipopótamo, Brás Cubas assiste ao espetáculo de todos os séculos
passando com a velocidade de um relâmpago:
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as
raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites
e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o
espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra
tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação
nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga,
enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos.
Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago.
19
Embora a viagem de Brás Cubas fosse para a origem dos tempos, percebe-se que ele
nunca chega a essa origem, assim como não chegaria a um fim, pois é como se o passado e
o futuro, em um movimento de pulsação, fossem contraídos dentro desse “presente
cósmico”, de Cronos. E apesar de sua viagem ser para a origem dos séculos, “para trás”, a
própria noção de início e fim não se perde? O “para trás” não poderia ser tanto o passado
quanto o futuro?
Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e
atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um
pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os
primeiros, e assim passou, e assim passaram os outros, com a mesma
rapidez e igual monotonia. Redobrei a atenção; fitei a vista; ia ver o
último, o último!; mas então a rapidez da marcha era tal, que
escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século.
20
A velocidade torna-se tão extraordinária que Brás Cubas não é mais capaz de
acompanhar o movimento dos séculos e, assim, a sua ilusão de decifrar o real (“– Bem, os
séculos o passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me da a
19
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 522-523.
20
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 524.
20
decifração da eternidade”.
21
), o grande enigma da origem, da eternidade, revela-se
impossível, pois, se Cronos é um tempo cósmico, na verdade não há origem nem fim, o que
há é a grande eternidade do presente. O mistério permanece.
Benedito Nunes afirma que, “quando falamos do tempo, as coisas se embaralham
porque não podemos enfaixá-lo num conceito único. A idéia de tempo é conceitualmente
multíplice; o tempo é plural em vez de singular”.
22
De acordo com essa perspectiva, o
tempo é uma construção humana e, a partir das variadas formas de concebê-lo, uma
multiplicidade de tempos possíveis. Esse fato não escapa ao campo literário, que pode nos
oferecer variadas leituras do tempo, a partir da construção ou da invenção de cada autor. O
conceito de tempo é tematizado, nos seus mais variados aspectos, em grande parte da
literatura Ocidental e, em certos textos, estrutura-se como eixo ou um dos eixos da
narrativa, como em Memórias póstumas, por exemplo.
A psicanálise também oferece contribuições sobre como conceber a temporalidade.
Na passagem do século XIX para o século XX, com o surgimento da teoria psicanalítica,
vamos ter referências à intemporalidade do inconsciente em textos como “O Inconsciente”
(1915), de Freud, assim como em outros escritos nos quais o autor tece comentários sobre
esse sistema.
Machado de Assis, contemporâneo de Freud, faz referências aos processos
inconscientes muito próximas das descrições freudianas. A esse respeito, podemos citar, a
título de exemplo, o conto “O cônego ou metafísica do estilo” (1896) anterior a “O
Inconsciente”, de Freud, que, segundo nota do tradutor, foi publicado pela primeira vez em
1915 –, em que o autor usa o termo “inconsciência” e descreve de forma primorosa a
atemporalidade desse sistema.
21
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 523.
22
NUNES. O tempo na narrativa, p. 23.
21
Segundo o fundador da psicanálise, “os processos do sistema Ics. são intemporais;
isto é, o são ordenados temporalmente, o se alteram com a passagem do tempo; não
têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais
uma vez, ao trabalho do sistema Cs”.
23
Freud, portanto, refere-se a dois sistemas distintos: o
sistema consciente, ao qual a referência ao tempo vincula-se, e o sistema inconsciente, no
qual os processos mentais não sofrem nenhuma alteração com a passagem temporal.
As descobertas freudianas sobre o inconsciente não somente revolucionaram o
tratamento das “patologias” mentais, como também tiveram influência em variados
segmentos da cultura. Em diversas ocasiões, o próprio Freud chegou a salientar que a
literatura e a arte, de um modo geral, tratavam de questões pertinentes à psicanálise,
muito antes do surgimento desta, e haviam intuído questões que ele trouxe para o campo
psicanalítico e contextualizou de acordo com a especificidade da ciência que estava
construindo (foi a partir de Sófocles, por exemplo, que Freud desenvolveu o conceito de
Complexo de Édipo). Por outro lado, uma parcela da literatura Ocidental, a partir do início
século. XX, é tributária de determinadas descobertas freudianas. O conceito freudiano de
inconsciente, por exemplo, abriu novos veios nos quais certos escritores como os
Surrealistas – se inspiraram para desenvolver novas formas de trabalhar a “coisa” literária.
O psicanalista Jacques Lacan avançou na articulação da psicanálise com a literatura,
a filosofia e certas teorias da linguagem. Para Lacan, “é toda a estrutura da linguagem que a
experiência psicanalítica descobre no inconsciente”,
24
e, de acordo com a psicanálise de
orientação lacaniana, a linguagem é concebível como uma rede, uma teia sobre o
23
FREUD. O inconsciente, p. 214.
24
LACAN. A instância da letra no inconsciente, p. 498.
22
conjunto das coisas, sobre a totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro
plano a que chamamos aqui o plano do simbólico”.
25
Segundo Lacan, o registro do simbólico está articulado a outros dois registros, o real
e o imaginário. Há um enlaçamento desses três registros da linguagem chamado por ele
de nó borromeu –, de modo que, se um deles se soltar, os outros dois também se soltarão. A
metáfora da linguagem como uma rede ou uma teia leva-nos a pensar que nem tudo se
inscreve no simbólico, “porque as palavras, os símbolos, introduzem um oco, um buraco”
26
.
O oco ou os furos dessa teia remetem ao registro do real, ao que está fora da inscrição
simbólica, ponto vazio e enigmático. Mas podemos pensar que também um vazio no
cerne dessa própria estrutura, que põe em movimento, fazendo girar, os três registros, vazio
este que é estruturante da linguagem.
Sendo assim, os registros real, simbólico e imaginário encontram-se presentes, e de
alguma forma articulados, no texto literário, mesmo que haja, em certos textos, a
prevalência de um ou outro registro: o imaginário enquanto lugar privilegiado da fantasia,
do devaneio, do lúdico e da invenção; o simbólico como o trabalho com a linguagem falada
e escrita; e o real como lugar vazio e enigmático, buraco ou oco da linguagem, que causa
estranhamento no leitor, pois o toca onde as suas próprias palavras falham.
E é justamente pelo fato de as palavras falharem e não dizerem tudo que a
linguagem não é algo compacto e engessado, embora faça parte de um sistema de códigos
não completamente aberto, pois cada escritor e cada ser falante traz consigo um certo
número ou uma certa variação desse código particular, no qual se prende a sua “visão” ou a
sua leitura do mundo e da vida.
25
LACAN. O seminário. Livro I, p. 298-299.
26
LACAN. O seminário. Livro I, p. 308.
23
É possível perceber, a partir de certos escritores, e em especial de Machado de
Assis, como a linguagem é muitas vezes insuficiente para dar conta da totalidade das
coisas, e como , na própria linguagem, um ponto de furo, de enigma e, até mesmo, de
ambivalência entre o que é dito e a verdade do que de fato se quer dizer. E é o furo do
tempo, assim como o furo da linguagem, que vai fazer girarem as várias concepções de
tempo em Machado de Assis.
O modo como Machado concebe a temporalidade está articulado com a forma como
ele concebe e trabalha a linguagem em sua escrita. A temática do tempo, que para ele se
coloca como um enigma (ele se questiona sobre o que é eterno, sobre o início e o fim, por
exemplo), é trabalhada em muitos de seus textos, partindo desse vazio, buscando “teorizá-
lo”, pensá-lo ou apreendê-lo racionalmente, por meio de uma amarração pela via do
simbólico. E falamos justamente em tentativa, porque o simbólico é sempre insuficiente
para abarcar a totalidade do real.
Há, portanto, em Machado, o levantamento de questões sobre a temporalidade que
interrogam o infinito e o finito, o eterno e o minuto, remetendo a um “tecido lacunar e
descontínuo do tempo”,
27
como também é o tecido do simbólico. Encontramos no texto
machadiano rias modalidades de tempo: tempo de um presente eterno dentro do qual
encontram-se o passado e o futuro (Cronos) e tempo no qual o instante ou o acontecimento
entrecorta o presente, subdividindo-o em passado e futuro, que se estendem numa linha
infinita (Aion), como vimos anteriormente; mas, também, tempo espiralado, de entradas e
saídas, de fechamentos e aberturas, atravessado pelo trivial e pelo acaso, pelas inscrições de
memória e pelo esquecimento, tempo este que, em alguns momentos, paradoxalmente,
remete ao inconsciente freudiano.
27
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 8.
24
No inconsciente freudiano não tempo; ou melhor, esse sistema obedece a uma
lógica própria em que fragmentos do vivido e lembranças remotas e/ou recentes
condensam-se e deslocam-se, paradoxalmente, sem nenhuma ordenação temporal
cronológica, sem uma seqüência que implique um antes e um depois. No inconsciente, o
que seria passado e presente coexistem, apesar da passagem do tempo cronológico, situado-
se nesse registro marcado pelo intemporal. Sendo assim, não se pode falar, em psicanálise,
de um tempo tal como a filosofia de tradição platônica o entende.
Machado de Assis se aproxima da lógica do inconsciente a que se refere a
psicanálise, ao apontar para a condensação e o deslocamento de diferentes ordens temporais
coexistindo quase que num mesmo instante, como no parágrafo abaixo:
Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da
câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas
etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas lidas; tão pálidas que não
parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança.
Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se.
28
E, também, quando aponta para certos furos temporais, para os vazios da memória em que
algo se perde: “Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora
de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a
idéia esvaía-se”.
29
No conto referido acima, Um homem célebre”, o compositor Pestana, homem
célebre e admirado por suas polcas, tocadas e dançadas por toda a cidade, vive
modestamente em uma casa velha com um preto velho, seu criado. Pestana, “famoso autor
de tantas polcas amadas”,
30
tem o ideal de ser um compositor clássico, de fazer uma grande
28
MACHADO DE ASSIS. O cônego ou metafísica do estilo, p. 572.
29
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 499.
30
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 498.
25
obra que coloque o seu nome junto ao de Ciramosa, Mozart, Beethoven, Bach, dentre
outros autores de obras imortais.
Mas as idéias que brotam de seu inconsciente não lhe trazem a obra clássica, uma só
que fosse. Suas fantasias e sua imaginação não a transmitem aos seus dedos, e o que sua
memória traz à tona são somente trechos, ecos de composições que ele acha que são de sua
autoria, mas depois conclui, decepcionado, que não o são:
Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma
peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então,
irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar
carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart,
a imitá-lo ao piano.
31
No entanto, as polcas lhe vinham prontas, aos montes, sem esforço, sem
exasperação, sem tédio:
Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no
teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e
pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios.
Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as
notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava
a um tempo
32
Pestana tinha o ideal de ser um compositor clássico, mas sua inspiração era a de um
músico popular, um compositor de polcas. Perdeu noites de estudo e esforço em vão, teve
ódio e náuseas de si mesmo, mandou as polcas “para o inferno fazer dançar o diabo”;
33
no
entanto, as polcas não quiseram ir tão fundo”.
34
Casou-se na esperança de que assim
31
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 499.
32
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 499.
33
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 500.
34
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 500.
26
conseguiria compor “obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas”,
35
mas sua memória
o traía e, quando ele achou que tinha composto um noturno de sua própria autoria, sua
esposa o fez ver que a peça já havia sido escrita por Chopin.
A vocação de Pestana não era, definitivamente, para os clássicos. Todas as suas
tentativas nesse sentido resultaram vãs, causando-lhe decepção, tristeza e raiva. As polcas
brotavam da flor da pele de seu inconsciente,
36
mas Pestana insistia em ser o que não era,
um compositor de canções eternas. Insistiu durante toda a sua vida em produzir algo que
trouxesse o selo da imortalidade; até que, por fim, sem consegui-lo, ele próprio veio a
expirar, numa madrugada, “bem com os homens e mal consigo mesmo”.
37
Pestana morre
sem desfrutar de seu sucesso efêmero, de seus minutos de sucesso, e idealizando uma única
composição que o levasse à imortalidade.
toda uma questão com o tempo que permeia esse conto, que passa pelo ideal de
Pestana de ser um compositor de obras imortais, por sua recusa a reconhecer o valor das
coisas efêmeras e aquele que as pessoas do seu tempo, de sua época histórica, atribuíam-
lhe.
Mas há, também, o tempo do inconsciente, que aponta para a divisão do sujeito,
desse sujeito que o tem o total controle sobre os seus atos nem sobre as suas criações,
pois as obras por ele produzidas emanam, em rápidos instantes, como se estivessem
prontas em algum lugar, e são trabalhadas, pelo compositor, à sua própria revelia. As polcas
parecem vir prontas de algum lugar, surgindo como se fossem fruto de pura inspiração, e
não de um trabalho do inconsciente. É como se o inconsciente de Pestana fosse uma fábrica
35
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 502.
36
Pensamos o inconsciente não no sentido ontológico, como o Ser ou a manifestação de uma “substância”
profunda do sujeito, mas, conforme a indicação de Lacan, como um discurso estruturado como uma
linguagem. É nesse sentido que as polcas, “produtos do inconsciente”, brotam ou emergem, da flor da pele de
sua estrutura, no discurso consciente.
37
MACHADO DE ASSIS. Um homem célebre, p. 504.
27
de produção de polcas e, enquanto a sua memória trai a sua consciência, enviando-lhe
falsas lembranças, seu inconsciente trabalha na produção das músicas.
Se pudermos falar de um “tempo” do inconsciente, esse “tempo” não seria
cronológico, nem se submeteria às determinações do eu do sujeito, mas seguiria a lógica
própria do inconsciente, suas regras e suas leis. E é um pouco o que vemos com Pestana,
um compositor que não tem hora para compor, pois as polcas irrompem já trabalhadas,
prontas, sem hora marcada. Há, portanto, um trabalho do inconsciente na criação das
músicas, trabalho este que obedece às leis da linguagem, do significante, pois “a linguagem
é condição do inconsciente (...) O inconsciente é a implicação lógica da linguagem: com
efeito, não há inconsciente sem linguagem”.
38
Essa questão da linguagem pode ser pensada a partir do nome próprio do
compositor, que remete à música, pois o significante Pestana pode sugerir dentre
muitíssimas outras coisas a posição em que se prendem com as mãos as cordas de alguns
instrumentos, como o violão e o violino, por exemplo. E não como não considerar que o
compositor traz a música no próprio nome. Além disso, a letra P de Pestana é a mesma
inicial da palavra polca. Não poderíamos pensar, em uma certa medida, em um
deslocamento metonímico do nome próprio Pestana para a palavra polca, sabendo que o
músico não consegue parar de compor essas canções?
As associações apresentadas acima foram feitas apenas com o intuito de
exemplificar como o trabalho do inconsciente é um trabalho com a linguagem; neste caso,
com o significante, com a letra, com o processo metonímico, enfim, com algo da ordem da
escrita, que se escreve e faz inscrição, como a composição das músicas. A composição das
polcas traz, também, a marca da repetição do inconsciente, mostrando como este é
38
LACAN apud DOR. Introdução à leitura de Lacan: O inconsciente estruturado como linguagem, p. 103.
28
determinado por certas inscrições da linguagem. Sendo assim, o nome próprio do
compositor, se tomado como um significante, assim como a inicial deste mesmo nome, a
letra P, para a psicanálise podem ser indicadores de como o inconsciente se estrutura como
uma linguagem.
Podemos notar, nesse conto, também, um movimento de fechamento e de abertura
do inconsciente, como uma pulsação do instante, desta breve partícula ou minuto, que ao
surgir corta o tempo, subdividindo-o. No caso do compositor, são suas próprias músicas
que, ao surgirem no instante de pulsação do inconsciente, fazem o corte temporal. E é
provável que Pestana fosse mesmo um amante das polcas, embora tenha morrido sem
conseguir reconhecer esse fato nem dar o devido valor ao seu precioso trabalho, por
pertencer às coisas efêmeras.
Mas para a psicanálise há, também, um tempo ligado à questão do objeto. A esse
respeito, o psicanalista Jacques-Alain Miller, no livro A erótica do tempo, faz a seguinte
consideração:
O objeto a é o fator que desregula o desenrolar do tempo (...) é um
produto, um resto e, como tal, manifesta, encarna a inércia do gozo. É ao
objeto a que podemos atribuir os fenômenos de desaceleração do tempo e,
correlativamente, a inversão desses fenômenos em aceleração.
39
Se, por um lado, o objeto a encarna a inércia do gozo, desregulando o tempo, por
outro lado, a música será, para Miller, a arte do tempo, depurando-o, manobrando-o e
substituindo “o tempo imprevisto do objeto a por um tempo regulado, ordenado, um tempo
manipulado e ritmado”.
40
Esse também é um ponto de possível articulação entre Machado
de Assis e a psicanálise, pois a música é tema de alguns contos do autor, tais como o citado
39
MILLER. A erótica do tempo, p. 67.
40
MILLER. A erótica do tempo, p. 68.
29
“Um homem célebre” e “Cantiga de esponsais”, e está presente, ainda, em romances como
Memórias póstumas.
Em “Cantiga de esponsais”, conto que tem uma certa nota proustiana, mestre
Romão, nos remotos anos de 1813, é o regente da orquestra da igreja do Carmo. Homem
público, de ar circunspecto, triste e melancólico, mestre Romão transforma-se em outra
pessoa à frente da orquestra. Nesses momentos, e somente nesses, um clarão intenso o
invade, seu rosto se ilumina, a vida derrama-se em seu corpo e em seus gestos.
O sonho de mestre Romão era poder compor, ou, ao menos, ver terminado um canto
esponsalício, que havia começado em 1779, três dias depois de ter-se casado. Nesse dia, ele
sentiu em si alguma cousa parecida com inspiração. Ideou então o canto
esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. (...)
Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de
papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes
durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas
primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido
fixar no papel a sensação de felicidade extinta.
41
Embora desejasse compor algo original, mestre Romão o encontrava o meio de
exprimir aos homens o seu impulso interior. Ele “tinha a vocação íntima da música; trazia
dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não
alcançava exprimir e pôr no papel”,
42
e esta, segundo o texto, era a verdadeira causa de sua
melancolia, pois apesar de o músico ter-se tornado uma pessoa pública, é como se algo
da ordem do recalque operasse nele, barrando a sua vocação de compositor de harmonias
próprias e originais, impedindo-o de traduzir o que sentia.
41
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais, p. 387-388.
42
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais, p. 387.
30
Em um certo momento, mestre Romão adoece e, com isso, decide rematar a obra que
estava esquecida na gaveta desde quando a iniciou, pois, fosse como fosse, ele queria
deixar “um pouco de alma na terra”.
43
Queria que, depois de sua partida, dele se
lembrassem como compositor e, no cravo, começou a reproduzir aquelas notas escritas
tempos. Enquanto trabalhava, observava, na janela de outra casa, um casal enamorado.
No entanto, mestre Romão não conseguia passar adiante de um certo lá, nenhuma
inspiração lhe vinha, muito embora ele não exigisse “uma peça profundamente original,
mas enfim alguma cousa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado.
Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver o retalho da sensação extinta”
44
, e
nada. Por fim, o regente se desespera, deixa o cravo e rasga o papel escrito.
Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a
cantarolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem
sabida, na qual cousa um certo trazia após si uma linda frase musical,
justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca.
O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.
45
dois pontos desse texto, que se articulam, que gostaríamos de explorar. O
primeiro refere-se ao fato de mestre Romão trazer dentro de si um mundo de harmonias que
ele não conseguia exprimir, o que aponta para um trabalho inconsciente que não consegue
romper a barreira do recalque, por alguma razão, e/ou para um estancamento em um ponto
de gozo, que oblitera a falta, impossibilitando o ato criador. O segundo, ao fato de o regente
buscar reaver uma sensação de felicidade extinta, querer fixá-la no papel, mas nada trazê-la
de volta, pois se trata de uma sensação que se queimou no tempo, perdeu-se. E o que ele
guarda dessa sensação? Uma página de uma composição inacabada. Mestre Romão passa a
43
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais, p. 388.
44
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais, p. 389.
45
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais, p. 389-90.
31
vida girando em torno do objeto perdido, tentando reencontrá-lo, fixá-lo no papel, como os
melancólicos que não fazem o luto do objeto. E, embora a gina inacabada instaure uma
falta, ele não consegue compor a partir dessa falta, pois está preso a algo anterior, a uma
sensação que se extinguiu e que ele se “recusa” a perder.
A composição que se iniciou três dias após o seu casamento, um casamento que
durou apenas dois anos, chegando ao fim com a morte de sua esposa amada –, portanto, não
se concretiza, pois é como se algo dessa sensação extinta no tempo permanecesse em algum
lugar, estancando o regente nesse pedaço rasgado de seu passado, prendendo-o num tempo
sem duração e estagnado do gozo, tempo da repetição.
O melancólico mestre Romão não consegue, portanto, fixar no papel as notas
conjugais de um breve instante de felicidade que um dia teve, notas que começaram a surgir
como uma inspiração e logo desapareceram. E quando, sabendo que estava para morrer,
retorna às poucas notas que haviam ficado, o regente decepciona-se, pois a inspiração, nem
mesmo no momento derradeiro, não lhe vem. Ele não consegue compor o canto, e nem
sequer passar adiante de um . E por mais que retornasse ao cravo “as notas seguintes não
soavam.
.........”
46
Parece que esse interrompido, que só faz se repetir sem uma ligação harmônica, tanto
marca a repetição do pensamento inconsciente de mestre Romão, que não estabelece uma
ligação com a consciência, quanto aponta para um mais além, que pode ser vinculado ao
gozo (além do princípio do prazer) em que ele se encontra estancado e, preso no tempo
estagnado do gozo, impossibilitado de criar. Mas o indica, ainda, a própria saída desse
46
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais, p.389.
32
lugar de gozo, ao apontar para um outro lugar, para fora, para além do sofrimento
melancólico do regente, um de um tempo aberto, fendido, que se abre para o futuro.
Sendo assim, a nota perdida, a frase musical procurada durante anos por mestre Romão,
é reencontrada ao surgir de fora, sem nenhum esforço, sem nenhuma exigência, saindo,
inconscientemente, da voz dessa moça que se casara há poucos dias. E é nesse para além de
uma dimensão futura, e não no além do gozo, que mestre Romão depara com a frase que
tanto procurou.
Ironicamente, o passado perdido e buscado por mestre Romão o aguardava, vindo
de fora, do futuro, quando enfim ele depara, na sua janela de frente, com essa moça que
cantarola a frase musical tão procurada por ele. O futuro estava no casal de amantes que
reatualiza o tempo perdido de mestre Romão, mostrando, através do vidro da janela, o
espelho de seu passado apagado.
A música cantarolada, ligando as notas, liga, no instante, os tempos passado e
futuro, desenrolando o tempo preso e fixado no objeto ao qual se atinha o regente. É como
se o seu inconsciente surgisse de fora, numa experiência vinda da voz do Outro. No
entanto, parece que ele morre sem se dar conta disso, e sem conseguir exprimir as
harmonias que guardava consigo mesmo.
Podemos constatar, assim, como a temática do tempo transparece nos textos de
Machado de Assis muitas vezes de forma indireta e oblíqua, vinculada a questões como a
da música, por exemplo, e como esse tema, em suas várias facetas, surge em seus textos
num movimento espiralado, girando em torno de certos pontos vazios que fazem enigma
para o autor, tais como a perenidade e a transitoriedade das coisas (o eterno e o minuto), a
perda, a criação e a morte.
33
A escrita machadiana vai fazendo, na espiral do tempo, uma viagem que leva o
autor a visitar novas e velhas palavras e escritores de tempos, lugares e linhagens distintas,
explorando articulações com o seu pensamento e os questionamentos que ele faz a si
mesmo e ao leitor.
1.1 – A ESCRITA NO TEMPO: UMA VIAGEM PELA TRADIÇÃO
A passagem de um escritor pela tradição e o trato deste com a mesma é também
uma forma de lidar com o tempo, na medida em que o autor retoma outros escritores, de
diferentes épocas, estabelecendo com os mesmos um certo diálogo. Machado de Assis é um
autor que percorre rios tempos da tradição literária, assim como de outras tradições,
como, por exemplo, a mítica, a religiosa e a filosófica,
47
passando por autores de diversas
línguas e matizes e fazendo uma verdadeira viagem pela história literária do Ocidente.
A respeito da tradição, o escritor argentino Jorge Luis Borges assinala, no texto
“Kafka y sus precursores”, que, por freqüentar o texto do autor de A metamorfose, pode
reconhecer sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas literaturas e de diversas épocas
(“creí reconocer su voz, o sus hábitos, en textos de diversas literaturas y de diversas
épocas”
48
). Esse fato nos permite pensar que certos escritores, ao voltarem suas leituras para
o passado, não somente fazem com que a literatura avance em direção ao futuro, mas
também modificam a própria tradição. Nesse sentido, a tradição não deve ser pensada como
um museu congelado, como um fóssil endurecido no tempo, pois as obras, assim como os
47
A respeito das obras que Machado de Assis possuía em sua biblioteca e dos diferentes domínios por elas
abordados, cf. JOBIM. A biblioteca de Machado de Assis.
48
BORGES. Kafka y sus precursores, p. 88.
34
autores, estão vivas e em movimento no tempo, e podem ser modificadas a partir da ação e
das descobertas de outros escritores.
O tempo (ou os tempos) das diversas tradições, embora seja situado historicamente,
não é, no entanto, fechado, mas fendido e aberto à intervenção dos leitores. E se, por um
lado, podemos ler na obra de Machado de Assis alguns traços ou pegadas de seu
precursores como a ironia socrática, por exemplo –, por outro, ao visitarmos textos por
ele lidos, podemos também reconhecer, em certas passagens, sua voz e as marcas de sua
leitura.
Temos, portanto, uma via de mão dupla, na qual tanto a tradição quanto aquele que
por ela passa sofrem os efeitos desse atrito. Passando por textos muitas vezes heterogêneos,
o autor “modifica” a visão que se tem desses próprios textos, a partir de sua leitura e de sua
obra, fazendo com que a arte não se sedimente no tempo o que seria a sua morte. E é,
também, a partir desse atrito que a literatura se renova, abrindo as páginas de um processo
de criação que não surge do nada, pois traz consigo os efeitos de um trabalho que nem
sempre ocorre de forma totalmente calculada ou planejada, mas que passa pelo
esquecimento e pela reelaboração inconsciente da tradição.
A volta ou a viagem pela tradição, assim como o diálogo e o trabalho que com ela
se estabelece, pode, portanto, renová-la e enriquecê-la, modificando o passado e o futuro da
literatura. Sendo assim, como salienta Borges, cada escritor cria os seus precursores seu
trabalho modifica nossa concepção do passado, como de modificar o futuro (“cada
escritor crea a sus precursores. Su labor modifica nuestra concepción del passado, como ha
de modificar el futuro”
49
). Machado de Assis, assim como Kafka, é um escritor que, ao
fazer sua escrita viajar no tempo e visitar outros tempos escritos, retomando certas
49
BORGES. Kafka y sus precursores, p. 90.
35
tradições, como a de La Mancha descrita por Carlos Fuentes no texto “O milagre de
Machado de Assis”, que comentaremos um pouco mais adiante, neste mesmo capítulo
revitaliza-as, trazendo-as para um outro contexto histórico, e, ao mesmo tempo, inventa sua
própria literatura, que também será retomada por outros escritores.
A literatura, portanto, tem sua tradição situada em períodos e épocas históricas
datadas, mas também pode ser alterada a partir de novas leituras que surgem em outras
épocas, viajando nos tempos, como ocorre com Machado de Assis.
A respeito de uma linha da tradição que tem suas raízes no folclore carnavalesco, e
da idéia de carnavalização da literatura, de Bakhtin, Dirce Côrtes Riedel, no livro
Metáfora; O espelho de Machado de Assis, salientando sua decisão de ler o texto
machadiano nas metáforas, dedicará o capítulo intitulado “Razão contra sandice” a um
exame de alguns personagens machadianos. Segundo a autora,
Certos personagens de Machado, examinados na sua consciência de si e
do mundo, têm sensibilidade carnavalesca. São um produto da
carnavalização da literatura. O carnaval elaborou toda uma linguagem de
formas simbólicas concretas, acessíveis aos sentidos, a qual admite uma
certa transposição em uma linguagem que lhe é próxima pelo caráter
concretamente sensível na linguagem da literatura. A esta transposição
do carnaval na linguagem da literatura é que Bakhtine chama a sua
carnavalização.
50
Nesse capítulo, que traz como título a questão da razão e da loucura, a autora
escolheu para sua análise os personagens Rubião, do romance Quincas Borba, e Quincas
Borba e Brás Cubas, de Memórias póstumas. Segundo Riedel, Rubião,
Herdeiro do Humanitismo de Quincas Borba, tende para um estranho
universalismo filosófico e para uma reflexão sobre o mundo, que inverte a
lógica das categorias fixas de bem/mal, virtude/vício (...), numa linha de
50
CÔRTES RIEDEL. Razão contra sandice, p. 1.
36
experimentação estranha à epopéia e à tragédia antigas linha de
Rabelais, Cervantes, Swift, Voltaire, sob a influência da sátira menipéia,
cujas raízes mergulham diretamente no folclore carnavalesco.
51
É possível, através dessas indicações iniciais da autora, identificar alguns dos
escritores com os quais Machado de Assis dialogou Rabelais, Cervantes, Swift e Voltaire
–, e ainda a influência da sátira menipéia.
Na sátira menipéia aparecem novas categorias literárias, tais como o escandaloso e o
excêntrico, que são marcas que a diferem de outras linhas de experimentação. A autora
procura situar suas raízes no tom cômico-sério do folclore carnavalesco, quando este surge
no fim da Antigüidade Clássica e da época helenística.
Segundo Riedel, a redação das Memórias póstumas de Brás Cubas e a ênfase
panfletária do filósofo Quincas Borba (personagem de Memórias póstumas), vão trazer algo
desse tom cômico-sério, o que nos permite identificar um grau de parentesco dessa obra
com a sátira menipéia. Gostaríamos de assinalar, também, que um dos mais importantes
representantes do gênero é Luciano de Samósata, autor que viveu no segundo século de
nossa era e cuja obra tem relações com o fim da Antigüidade Clássica.
52
Um outro elemento da sátira menipéia que será articulado por Riedel ao “sistema
filosófico” de Quincas Borba, assim como ao conjunto da narrativa de Memórias póstumas,
é a paródia: “Na antigüidade, a paródia estava indissoluvelmente ligada à sensibilidade
carnavalesca. Parodiar é criar um duplo descoroamento, e o próprio mundo às avessas. Por
51
CÔRTES RIEDEL. Razão contra sandice, p. 1-2.
52
Tendo imigrado da Ásia Menor para a Grécia, Luciano de Samósata, que era advogado por profissão,
abandonou a retórica pela filosofia, desenvolvendo seu pensamento, enquanto escrita literária, como sátira ao
pensamento filosófico. Ele foi um releitor de toda a tradição clássica grega e procurou manipulá-la
criticamente. Alguns estudiosos dessa tradição aproximam seu estilo dos diálogos socráticos e de Diógenes, o
cínico. Luciano foi estrangeiro e grego ao mesmo tempo, pois conseguiu olhar a cultura grega de fora da
perspectiva do estrangeiro e manipulá-la como um escritor que pertencia a essa mesma cultura. Para um
estudo detalhado sobre o autor, cf. BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro: Literatura,
sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Machado de Assis foi leitor de Luciano de Samósata
e possuía as obras completas do autor em sua biblioteca. Cf. JOBIM. A biblioteca de Machado de Assis.
37
isso, a paródia é ambivalente”.
53
uma orientação dupla da palavra na paródia, tanto com
relação ao objetivo da narrativa, quanto com relação a uma outra palavra e, para a autora, é
preciso conhecer o segundo contexto, constituído pelo falar do outro na paródia, para não
julgar a obra como de má qualidade.
A ambigüidade, o jogo com os sentidos, é patente no texto de Machado. O narrador
é “sempre ambíguo, parodia ao mesmo tempo que negaceia o conflito de duas vozes. Fica,
ambivalentemente, entre a paródia e a estilização, sem se pronunciar nem por uma nem por
outra”.
54
Muitas vezes é o leitor que se vê envolvido e preso nesse jogo com a linguagem e,
sem saber que direção tomar em suas interpretações, embaralha os fios do funcionamento
do texto, tornando-se vítima do escárnio do autor.
A ironia é outro procedimento textual muito utilizado pelo autor de Memórias
póstumas e, em seu texto “A Grécia de Machado de Assis”, Jacyntho Lins Brandão,
recorrendo a autores com os quais Machado dialogava em seu escritos, buscará fazer uma
genealogia dessa ironia, procurando “perseguir (...) como essa Grécia lida e relida esteve
num dos pontos mais centrais da formação não do nosso escritor, mas igualmente do
nosso pensador – e sobretudo do pensador da cultura brasileira”.
55
Marcada por um estilo de linguagem oblíqua, enviesada e dissimulada, a retórica
machadiana tem o poder de confundir o leitor e enganá-lo, levando-o a questionar o que o
autor ou o narrador quer, e ao mesmo tempo escondendo suas verdadeiras intenções. O
recurso estilístico utilizado por Machado de Assis requer, evidentemente, muito
conhecimento da língua e uma visão fina da alma humana que remonta aos gregos, como
exemplifica Jacyntho Lins Brandão:
53
CÔRTES RIEDEL. Razão contra sandice, p. 5.
54
CÔRTES RIEDEL. Razão contra sandice, p. 5.
55
BRANDÃO. A Grécia de Machado de Assis, p. 354.
38
É assim que escreve, em crônica de 1892: “Ah! Meus caros amigos! Ando
com uma vista (isto é grego; em português diz-se um olho) muito
inflamada, a ponto de não poder ler nem escrever”. Isso quer dizer que ele
sabe que uma língua não é fonética, morfologia, sintaxe, mas
principalmente visão de mundo – o ver que é saber das Musas de Homero,
a acuidade de visão que busca o Sócrates de Platão, a vista inflamada de
Luciano que provoca sua conversão à filosofia.
56
São muitas as referências aos gregos dispersas na obra machadiana e, sem
querermos nos estender muito, em textos como “Lágrimas de Xerxes”,
57
“Uma visita de
Alcebíades”,
58
Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba,
59
acompanhamos a
tinta de sua escrita passeando pela Grécia e/ou tocando em certos filósofos ou
personalidades daquela época, como na seguinte passagem da “carta do desembargador
x...ao chefe de polícia da corte”, do conto “Uma visita de Alcebíades”:
Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino,
estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu
companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta
devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V.Ex.ª lhe
dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri
o tomo, e sucedeu o que sempre se comigo quando leio alguma cousa
antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação e da obra. Depois de
jantar é excelente. Dentro em pouco acha-se a gente numa via romana, ao
de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os
tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a
Rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga,
e de graça. Uma verdadeira digestão literária.
60
Pode-se perceber como a sua “devoção ao grego” leva o desembargador x a fazer
uma verdadeira viagem no tempo, deixando como que em suspenso “os tempos modernos”
56
BRANDÃO. A Grécia de Machado de Assis, p. 370.
57
Cf. MACHADO DE ASSIS. Lágrimas de Xerxes. In: Páginas recolhidas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 615-619. (Obra completa, v.2).
58
Cf. MACHADO DE ASSIS. Uma visita de Alcebíades. In: Papéis avulsos. Org. Afrânio Coutinho. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 352-357. (Obra completa, v.2).
59
Cf. MACHADO DE ASSIS. Quincas Borba. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
p. 641-806. (Obra completa, v.1).
60
MACHADO DE ASSIS. Uma visita de Alcebíades, p. 352.
39
para ir saborear a vida antiga. E se Machado narra os fatos literários de forma ficcional, não
os submetendo à técnica da citação ao da letra, nem a uma reconstrução realista, parece-
nos que, em sua escrita, o autor se refere a outros autores, assim como a passagens e
personagens literários, muitas vezes, através de suas próprias reminiscências, pois o que foi
por ele absorvido da tradição, passando pelo esquecimento e sendo reelaborado de forma
inconsciente, volta de outro modo, marcado pelos traços de sua subjetividade. Sobre essa
questão, Jacyntho Lins Brandão afirma:
Acredito que as reminiscências de Machado não o figuras gregas
quaisquer justamente porque não são fruto de simples erudição, citações
planejadas, com aspas e referências bibliográficas, mas habitam a
“inconsciência”. (...) o que parece regular o uso de referências gregas por
Machado é esse deslizamento que a elas um efeito radicalmente
distinto do que teriam num autor arcádico, romântico ou parnasiano. (...)
Num certo sentido, poderíamos dizer que os arcádicos, românticos e
parnasianos (e os helenistas, historiadores e filósofos) guardam
lembranças da antiga Grécia, intencionalmente cultivadas; Machado
conhece reminiscências que, ainda que gregas (ou clássicas), o antes de
tudo machadianas.
61
O trabalho da citação via reminiscências, traço inerente à escrita machadiana,
permite-nos pontuar que Machado não foi um mero repetidor da tradição, mas um escritor
arguto que soube reelaborar o que absorveu dos antigos, fazendo um uso peculiar da
tradição; e, também, que Machado não se prendeu a uma determinada linha de pensamento
ou dogma e soube desenlaçar sua literatura das amarras temporais.
Com Machado podemos perceber que mesmo as obras consideradas eternas podem
ser modificadas ou alteradas pelo trabalho de outros escritores, que são, acima de tudo,
leitores, e que, paradoxalmente, para que estas obras continuem sendo eternas, elas
61
BRANDÃO. A Grécia de Machado de Assis, p. 362-363.
40
precisam ser renovadas, pois, caso contrário, se congelariam no tempo, perdendo o seu
valor e atualidade ao ficarem esquecidas em um passado morto.
Zombando, parodiando, ironizando e brincando com os autores que cita e com o
leitor, Machado retorce e inverte a lógica da narrativa, tentando pegar o leitor pela tangente.
Sua Grécia tem várias dobras, e os lugares e autores que percorre são pontos móveis que ele
maneja de acordo com as intenções de seu jogo textual, o que o aproxima de uma
determinada forma dialógica dos gregos, uma vez que,
de fato, os gregos, justamente porque não admitiram, mas cultivaram a
diversidade, exibem essa extraordinária capacidade de entabular
diferentes diálogos com diversos tempos, lugares, pessoas, não repetindo
o mesmo, mas adaptando-se ao entendimento de cada um. Essa mesma
definição pode-se aplicar, com enorme exatidão, ao uso das
reminiscências clássicas por Machado, que ocupam fisicamente o espaço
da digressão, destinada a divertir o leitor, desviando-o dos caminhos
batidos e decorados. Ou seja, a Grécia possibilita a Machado pôr em
prática o que ele assim expressa em crônica de 1878: “um falar e dois
entenderes”.
62
No seu “Estudo crítico; Machado de Assis na literatura brasileira”, Afrânio Coutinho
salienta que há todo um cuidado em Machado com a estrutura e a construção de suas obras,
com a concepção artesanal dos personagens e da narrativa, com a manipulação do tempo,
etc. E, se ele “procurava aprender com os grandes mestres da narrativa”,
63
isso o levou a
descobrir, sobretudo, como não ficar apenas na repetição, pois a tradição pode e deve ser
mexida, modificada, transfigurada. Os gregos disso sabiam, e foram ávidos em aprender
com outros povos, em fundir conceitos e estilos, em dar vazão ao novo. Neste sentido, o
brasileiro do século XIX, leitor de Homero e Sócrates, de um certo modo, também foi
grego.
64
62
BRANDÃO. A Grécia de Machado de Assis, p. 368.
63
COUTINHO. Estudo crítico; Machado de Assis na literatura brasileira, p. 24.
64
Cf. BRANDÃO, Jacyntho Lins. A Grécia de Machado de Assis, p. 351-372.
41
Poderíamos marcar, ainda, na narrativa machadiana, o que chamaríamos de função
do duplo ou do espelho, já que a sua fala se desdobra a ponto de o autor não apenas brincar
ou ironizar o leitor, mas fazer isso até consigo mesmo, pois ele ri do próprio riso e ironiza a
própria ironia. Em um pequeno trecho do conto “Teoria do medalhão” Machado dá, através
de um de seus personagens um pai que aconselha o filho, nas vésperas de seus vinte e
dois anos de idade, a tornar-se um medalhão –, e pela negativa, com absoluta precisão, a
genealogia de sua ironia, mapeando a linha de tradição autoral na qual esta se inscreve.
Referimo-nos ao seguinte trecho, no qual o pai orienta o seu filho Janjão: “Somente o
deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado
por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire,
feição própria dos céticos e desabusados”.
65
O autor, ao utilizar-se do termo “contrair” para referir-se à forma pela qual a ironia
foi transmitida de “algum grego da decadência” a Luciano e deste a Swift e Voltaire, passa
a impressão de que é como uma doença ou um vírus que esta se transmite. Mas quem seria
esse grego que a inventou? Antes de abordarmos esse assunto faremos uma pequena
digressão, apresentando o modo como a tradição de La Mancha foi recuperada por
Machado de Assis.
Em seu texto “O milagre de Machado de Assis” o escritor mexicano Carlos Fuentes
afirma que a obra de Machado é permeada por uma convicção: não existe criação sem
tradição que a nutra, assim como não existe tradição sem criação que a renove”.
66
Fuentes
afirma que, no século XIX, momento em que ser moderno para muitos significava abolir o
passado, negando a tradição, Machado recupera a de La Mancha, enquanto os autores
hispano-americanos a esqueceram.
65
MACHADO DE ASSIS. Teoria do medalhão, p. 294.
66
FUENTES. O milagre de Machado de Assis, p. 6.
42
Segundo Fuentes,
Historicamente, a tradição de La Mancha é inaugurada por Cervantes
como um contratempo da modernidade triunfante, um romance excêntrico
da Espanha contra-reformista, obrigado a fundar outra realidade por meio
da imaginação e da linguagem, da ironia e da mescla de gêneros. Essa
tradição é continuada por Laurence Sterne (1713-1768) com seu “Tristan
Shandy”, em que o acento recai sobre o jogo temporal e a poética da
digressão, e por “Jacques o Fatalista”, de Denis Diderot (1713-1784), em
que a aventura lúdica e poética consiste em oferecer, quase que em cada
linha, um repertório de possibilidades, um menu de alternativas para a
narração.
67
Essa “desprezada Herança de Cervantes” vai parar, no século XIX, no Rio de Janeiro,
renascendo na pena de Machado de Assis. De acordo com Fuentes, a tradição de La
Mancha, revalidada por Machado, de modo geral, é lúdica, descende de outros livros e
celebra-se como ficção; contrapõe-se à tradição dominante em sua época, de Waterloo, que,
também de modo geral, afirma-se como realidade e surge do contexto social.
Machado recupera a tradição de La Mancha em seu livro Memórias póstumas de
Brás Cubas, escrito em 1881. Nele, o personagem Brás Cubas “traslada seu próprio
passado vivo e seu próprio presente morto ao leitor, com muito humor de Cervantes, Sterne
e Diderot”,
68
mas com o travo da melancolia anunciado na primeira página do livro:
“Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil
antever o que poderá sair desse conúbio”.
69
Também no “prólogo da terceira edição”, o
autor marca a diferença entre o seu livro e os que o antecederam:
O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama
“rabugens de pessimismo”. na alma deste livro, por mais risonho que
pareça, um sentimento amargo e áspero, que es longe de vir dos seu
67
FUENTES. O milagre de Machado de Assis, p. 6.
68
FUENTES. O milagre de Machado de Assis, p. 8.
69
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
43
modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro
vinho.
70
Jacyntho Lins Brandão, também se referindo à tradição de La Mancha na literatura,
recorrerá a Bakhtin para demonstrar como tal tradição, fluindo do diálogo socrático
(provavelmente o grego da decadência a que se refere Machado), é contraída por Luciano
de Samósata (principal representante da sátira menipéia). De acordo com o autor,
Bakhtin, que era profundo conhecedor da literatura clássica, demonstrara
como essa tradição “La Mancha” é mais antiga que Cervantes,
enraizando-se na menipéia, cujo espírito provém do carnaval, cuja
inspiração flui do diálogo socrático e cujo principal representante seria
Luciano de Samósata. (...) Não há como negar que, de Machado, passando
pelos modernos, se chega a Luciano e que, pelo viés luciânico, se
remonta a Homero.
71
Seria Luciano de Samósata, então, uma espécie de ponte entre Machado de Assis e a
Grécia? A marca do autor de Diálogo dos mortos sobre os vivos é a ironia, esse riso ao
canto da boca a que se refere Machado, euma certa sombra de Luciano de Samósata em
textos como Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo. Tanto o riso luciânico
quanto o machadiano escondem, por detrás do cômico, uma certa crítica filosófica que toca
o leitor, incomodando-o, provocando-o e fazendo-o pensar. Para Jacyntho Lins Brandão, a
própria visão patológica da tradição como algo que se pega por contágio, como uma
doença ou um vírus – é luciânica:
há um certo modo grego, que Luciano transmite a certos autores ingleses e
franceses, e que Machado também contrai. Mais que isso, contudo, a
própria perspectiva patológica, que aborda a ironia como um mal grego
que se contrai e se transmite, é também luciânica (...) que não é mera
70
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
71
BRANDÃO. A Grécia de Machado de Assis, p. 354-355.
44
preservação do passado, mas transmissão de um vírus que se mantém
novo porque se adapta a novos hospedeiros.
72
O diálogo de Machado de Assis com os gregos passou, portanto, por outros autores
que recorreram também a essa mesma tradição e talvez o principal deles seja, de fato, o
sírio que trocou sua terra natal pela Grécia, Luciano de Samósata. Mesmo nas apropriações
que o autor brasileiro fez de textos de outros escritores como no caso de Sterne, que
veremos a seguir –, ele soube preservar sempre um certo distanciamento das obras de que
foi leitor e, tomando o devido cuidado para o se constituir em um mero imitador do
passado, não deixou morrer o vírus da crítica irônica, revigorando a escrita literária
brasileira, reascendendo, em seu tempo e para além deste, a chama da criação e da
invenção.
É possível afirmar, ainda, que a tradição pode ser pensada também como esse vírus
que está latente no tempo, que está sempre voltando, como uma peste, e contaminando
aqueles que por ela passam, sendo contraída e transmitida de um escritor a outro, como
uma doença que se propaga no tempo. Mas, sobretudo, podemos pensá-la como um vírus
mutante, que, para se manter vivo, muda não somente de hospedeiro, mas muda a si próprio
a partir do contato com novos hospedeiros. Sendo assim, o tempo da tradição não é o
passado preservado e congelado, mas um passado vivo e mutante que pode ser modificado
e modifica-se a partir do contato (ou do contágio) de um escritor com outros escritores e de
uma obra com outras obras.
A escrita, viajando no tempo da tradição, mostra como esta é modificada a partir do
momento em que novos leitores, tendo-a como referência, reescrevem-na ou deixam os
72
BRANDÃO. A Grécia de Machado de Assis, p. 355-356.
45
seus rastros em suas produções, tomando como ponto de partida o antigo de onde se pode
produzir o novo.
O tempo em Machado de Assis passa, assim, por essa viagem da escrita no tempo da
tradição, tempo este que não é estanque e congelado, mas que aponta para um passado e
para um futuro que mudam e podem ser mudados, e, sobretudo, que podem ser alterados
pela ão de novos escritores. É um tempo que tem uma cronologia própria e que traz no
presente as marcas ou as pegadas que foram abertas no passado, projetando-se em um
futuro em que as obras serão objeto de novas leituras e possíveis alterações.
O modo como Machado incorporou a tradição também será tematizado pela
escritora Marta de Senna no seu livro O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de
Machado de Assis. No prólogo de Memórias póstumas, o narrador faz o seguinte
comentário sobre sua obra: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás
Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne...”
73
É possível, portanto, estabelecer alguma
aproximação entre Machado e Sterne, e a esse respeito Senna afirma que
De fato, se Brás Cubas adota a “forma livre de um Sterne”, se seu livro
tem o andar dos ébrios”, se insere em sua narrativa travessões e
asteriscos, parece-me que o que aproxima Machado mais
significativamente do autor britânico é a maneira enviesada com que
exerce sua consciência crítica em relação ao tempo e às idéias do tempo; é
a dolorosa (embora em ambos os casos disfarçada em riso) constatação de
que as relações humanas são presididas por uma quase total
incomunicabilidade, de que cada ser humano, dominado por sua ruling
passion, é praticamente impermeável a seu semelhante.
74
certas semelhanças entre a técnica narrativa de Sterne e a do autor de Memórias
póstuma de Brás Cubas, como, por exemplo, a maneira evasiva de tratar as questões do
73
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 9.
74
SENNA. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis, p. 18.
46
tempo e a não-linearidade da narrativa (esse “andar dos ébrios” a que o autor se refere);
mas, Senna apontará também relações temáticas importantes entre os dois autores, tais
como a subversão temporal, a incomunicabilidade que preside as relações humanas, o
questionamento da razão, a crítica histórico-social e a crítica filosófica ao positivismo
tudo isso feito por Machado pelo viés da paródia, da ironia e de uma veia humorística que
utiliza-se do cinismo para zombar das “fragilidades” humanas.
Referindo-se a uma interpretação enganosa que se pode fazer do livro Viagem
sentimental, de Sterne, ressaltando o modo como o autor questiona nossa capacidade de
apreender o real, Senna salienta que, “com efeito, se a viagem é sentimental, precisamos ter
cuidado com o adjetivo, para não nos deixarmos enganar pela aparência de ‘emocional’ ou
‘lacrimoso’. A Viagem sentimental de Sterne promove na verdade um questionamento da
razão enquanto capaz de apreender o real”.
75
Portanto, se a Viagem realiza um questionamento da razão em suas pretensões
filosóficas universalizantes, Machado de Assis, com sua escrita oblíqua, utilizando-se da
paródia e do humor, também não deixará de dirigir a acidez corrosiva de sua crítica à
filosofia e, principalmente, às teorias positivistas que estavam sendo difundidas e aceitas
com grande entusiasmo por parte da intelectualidade de sua época. Segundo Senna,
“Machado tampouco poupa o positivismo que assolou o Brasil de seu tempo. O
humanitismo de Quincas Borba, presente em Memórias póstumas e em Quincas Borba,
corrói, de uma vez, o próprio positivismo, o determinismo cientificista e a lei
spenciariana da sobrevivência do mais apto”.
76
Ainda nas palavras de Senna,
75
SENNA. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis, p. 18.
76
SENNA. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis, p. 54.
47
a genialidade de Machado de Assis ao incorporar a tradição consiste em
construir seu texto com uma infinidade de subtextos que se enriquecem
exatamente pela inserção nessa tradição. A complexidade não está no seu
texto apenas, mas naqueles com que dialoga e aos quais utiliza para
iluminar-se iluminando-os.
77
À medida que Machado recorre aos textos de autores de tempos anteriores ao seu,
rastreando e revigorando a tradição, ela própria também se enriquece e beneficia-se com a
operação textual empreendida pelo autor, ganhando uma nova dinâmica a partir do seu
olhar criador, desse olhar para trás que a lança para frente, deslocando-a no tempo e no
espaço, desprendendo-a dos rótulos e das interpretações sedimentadas e abrindo fendas por
onde ganhará novos ares, passando por um processo de revitalização e revigoramento.
Foi recortando a tradição e dialogando com ela, passando pelas línguas espanhola
(Cervantes), grega ( Homero, Sócrates e Luciano), inglesa (Skakespeare, Dickens, Sterne),
alemã (Heine, Schiller, Schopenhauer) e francesa ( Pascal, Racine, Voltaire), entre outras,
que Machado atravessou o tempo e conviveu com autores das mais diversas épocas. Foi
assim, também, que ele pôde criar a sua própria obra, que dele em algum momento se
desprendeu e arrastou consigo o seu nome em direção a novas gerações de leitores.
Nesse diálogo estabelecido por Machado com a tradição, portanto, também se revela
a maneira como o autor aborda o tempo em sua obra. Nesse sentido, podemos dizer que
Machado faz da intertextualidade uma viagem no campo/corpo literário. Como leitor que
realiza um rastreamento da tradição e estabelece um diálogo com ela, Machado modifica e
reelabora o passado, construindo, no presente, as raízes de uma literatura que se alastrará
em direção ao futuro.
Machado, tocando em questões de sua época, lançou-se por outras épocas. A escrita
machadiana produz um furo no tempo, pois, falando nas entrelinhas sobre temas universais
77
SENNA. O olhar oblíquo do bruxo: ensaios em torno de Machado de Assis, p. 60-61.
48
e dialogando com escritores de diferentes tradições, o autor (re)visita, de seu presente
histórico, o passado e o futuro, viajando no tempo e, nesse mesmo movimento, a partir do
vazio temporal, construindo as temporalidades de sua escrita.
1.2 – O TEMPO DA ESCRITA: CORROSÃO E DEPURAÇÃO
O manejo do tempo se encontra presente no próprio ato de escrever e, como
pudemos ver anteriormente, a viagem da escrita em Machado acontece de forma não-linear
o autor passeia por vários tempos históricos, fazendo como que uma espiral do tempo, na
qual os autores e textos por ele (re)visitados circulam em seus escritos em volta de um
ponto vazio, de onde emanam suas indagações.
É evidente que dentre as indagações que aparecem com mais freqüência na obra do
autor encontram-se aquelas que dizem respeito ao tempo. No capítulo XXVII, “Virgília”,
de Memórias póstumas de Brás Cubas, há uma passagem em que Machado toca nesse tema
por meio de uma referência ao filósofo Pascal. Neste trecho do livro, o narrador Brás Cubas
faz a seguinte glosa de uma citação do filósofo:
Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar
o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade
dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço
pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é
uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, a a
edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes
78
.
Referindo-se metaforicamente ao homem como uma “errata pensante”, Machado faz
uma ligeira torção da metáfora pascaliana do homem como um caniço pensante”. A
78
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 549.
49
imagem do homem, nessa concepção machadiana, remete ao erro o passado é
constantemente corrigido pelas estações da vida, somente chegando a uma edição
definitiva, e mesmo assim incompleta, na morte. Tal alusão marca o caráter efêmero e
inacabado da vida; mas, também, o poder corrosivo do tempo, na figura dos vermes que
devoram a edição da vida, corroendo-a até a decomposição.
Machado, nesse trecho, elimina também qualquer especulação metafísica ou religiosa
com relação às idéias de homem e de vida, trazendo a sua reflexão, de forma crua e seca,
para o plano terreno, desvinculando-a de crenças ou valores transcendentais. A vida aqui
não tem nenhum outro fim senão o fim em si mesmo, e este talvez seja um dos toques de
“rabugem de pessimismo” ou de “tinta da melancolia” a que Brás Cubas alude no prólogo
de Memórias póstumas.
Os vermes que corroem as edições dos livros, corrompendo-as, são os mesmos que
devoram tudo o que um dia foi vida, aguardando, sucessivamente, as novas edições que se
tornarão velhas e definitivas. Mas, então, pergunta Machado: O que é eterno? É provável
que a vida dos homens, assim como a dos textos, seja mesmo eterna enquanto dure,
enquanto resiste ao poder de um tempo inelutável, que traz a morte ao fim de cada estação
ou de cada ciclo da vida; no entanto, a vida parece não ter fim, pois ela depende da morte,
do poder corrosivo do tempo, para continuar existindo numa espiral que não cessa de trazer
nascimento e morte.
A respeito do poder corrosivo do tempo, pode-se observar, no conto “Uma
senhora”,
79
como, apesar de lutarmos contra o tempo ele vai lentamente deixando as suas
marcas, sejam exteriores a filha do personagem D. Camila cresce e torna-se moça –,
sejam no próprio corpo. Por mais belo que o seu corpo possa ser, o tempo vai enviando
79
MACHADO DE ASSIS. Uma senhora, p. 423-429.
50
sutilmente telegramas a D. Camila, marcando a sua passagem através dos cabelos brancos
que começam a surgir ou do nascimento de seu neto.
Esse conto marca o ciclo do tempo passando por três gerações, começando pela
jovem mãe que amadurece com o crescimento da filha, e que, posteriormente, passa a trazer
certos traços de envelhecimento após o nascimento do neto. Mesmo que ela não queira se
defrontar com o envelhecimento e tente a todo custo ludibriar o tempo, não como evitar
totalmente o seu caráter devastador.
O processo de corrosão temporal é um dos questionamentos fundamentais da
condição humana presente em Machado de Assis. Mas o autor também aponta para o fato
de que, embora nossa vida, assim como o que nos rodeia, sofra um processo de corrosão
com o efeito do tempo talvez a morte seja a finalidade última da vida –, algo também se
depura com essa passagem. O próprio processo de criação nasce da destruição; e mesmo a
morte é também condição para que o novo surja e seja criado. O ciclo de nascimento e
morte é como o movimento de ida e vinda das águas do mar – se uma onda morre na praia é
para que nasça de sua força e de seu movimento, que passam, uma outra, e assim
infinitamente.
O tema da corrosão do tempo é também tratado em Memórias póstumas, em que se
revela como as “estações da vida” são cruéis com certos personagens. Mas esse mesmo
tema pode ser compreendido, também, como uma forma de Machado de Assis, através do
feminino, chegar ao real do tempo, ao seu vazio estrutural. Vejamos, como exemplo,
algumas possíveis relações entre o tempo e a ruína das mulheres que fazem parte da trama
da narrativa. Começando pela “linda Marcela”.
80
80
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 533.
51
(...) mas a doença e uma velhice precoce destruíram-lhe a flor das graças.
As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam
saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de uma
lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e
aliás tinham uma expressão singular e repugnante...
81
(...) cheguei ao
hospital (...) onde a vi expirar meia hora depois, feia, magra, decrépita...
82
Fica-nos a impressão de que Marcela entregou-se ao tempo. A decepção amorosa
com Brás Cubas, os dissabores da vida, os desastres anteciparam-lhe a velhice. E é,
também, no corpo que Marcela padece, é no corpo que o tempo sulcou sua passagem,
imprimindo-lhe uma “velhice precoce”. Ainda segundo Brás, o tempo “ajudou a moléstia,
adiantando-lhe a decadência”
83
e expondo as bexigas, os sinais e as saliências em seu rosto,
ou seja, expondo todas as marcas da corrosão, oferecidas ao olhar assombrado do outro.
Parece que todo um tempo de resistência e espera de Marcela para que, enfim,
Brás Cubas entre e seja tomado por essa imagem de ruína. O seu olhar vê a cara da morte, o
vazio do real encarnado no rosto da amante. Por isso o horror que em seguida silencia o
narrador.
Outro personagem, Eugênia (a “flor da moita”), com uma vida marcada pelo desastre,
foi, não se sabe como, arrastada para a miséria; e Brás Cubas a encontra num cortiço
pedindo esmolas: “...achei a flor da moita, Eugênia, a filha de D. Eusébia e do Vilaça, o
coxa como a deixara, e ainda mais triste”.
84
Outra mulher em ruínas, outra vida devastada
pelo tempo.
Nhã-loló, moça graciosa com quem Brás poderia ter-se casado, não teve melhor
destino. Vítima de uma febre amarela que a levou ainda jovem, padeceu terríveis
sofrimentos, antes de sucumbir à doença: “O epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhes
81
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 557.
82
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 638.
83
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 557.
84
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 638.
52
narrasse a moléstia de Nhã-loló, a morte, o desespero da família, o enterro”.
85
Nhã-loló foi
consumida pela doença e levada pela morte “antes do tempo”.
Um quarto personagem, D.Plácida, retirada da miséria por Brás Cubas, ganhou casa e
dinheiro em troca dos seus “favores”. O destino, desde a mais tenra infância, nunca lhe fora
favorável, e depois de passar alguns anos levando a vida com um certo conforto, ela acabou
retornando à sua origem miserável. Após perder o que ganhara, D. Plácida foi encontrada
doente, morando no Beco das Escadinhas. Atendendo a um pedido de Virgília, Brás vai vê-
la: “fui à casa de D. Plácida; achei um mollho de ossos, envolto em molambos, estendido
sobre um catre velho e nauseabundo (...) amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal
qual entrara”.
86
Somente os seus ossos resistiram à corrosão do tempo.
Por fim chegamos a Virgília. Foram muitos os adjetivos atribuídos por Brás à amante,
dentre outros, a fresca, a juvenil, a florida. Talvez, dentre os personagens femininos que
anteriormente citamos, Virgília seja a única que não se deixou abater e que, à sua maneira,
assumiu suas escolhas, mesmo que não condizentes com os padrões de conduta moral da
época. Grande amor de Brás Cubas, paixão que queimou durante anos até se dissipar (ou
quase?), Virgília sobreviveu a todos os percalços. Foi ela quem bateu à porta da alcova
quando Brás definhava, num momento em que não tinha o mesmo frescor de tempos
passados e era, aos 54 anos de idade, segundo o narrador, “uma ruína, uma imponente
ruína”.
87
Como uma estátua grega, o tempo não lhe corroeu a altivez e, se ela de fato
envelheceu, ainda assim foi capaz de manter intacto um certo encantamento; afinal, é o
próprio narrador que afirma a seu respeito: “Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar
85
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 621.
86
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 630-631.
87
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 518.
53
austero e maternal”.
88
À diferença dos outros personagens que mencionamos, nenhuma
tragédia, de fato, se abateu sobre Virgília, e a beleza do personagem não se corrompeu pelo
tempo, pelo contrário, parece que foi depurada.
A corrosão do tempo pode, portanto, levar a efeitos antagônicos: à devastação ou à
depuração. uma corrosão, como a dos vermes, que leva à decomposição, à dilaceração
ou à devastação que culmina com a morte, o fim; mas há, também, uma corrosão que pode
levar a uma certa depuração, a uma limpeza dos excessos, acentuando certos traços e
características essenciais de uma pessoa, como no caso de Vírgilia. Se deslocarmos a
questão para o campo da escrita, podemos ver que esta também pode-se depurar, como
veremos abaixo.
Parece-nos que não apenas os personagens de Memórias póstumas, mas a própria
escrita machadiana vai passando por um certo processo de corrosão. Sendo assim, talvez
pudéssemos afirmar que o texto de Machado, ou a sua própria escrita, passa por um
processo semelhante àquele por que passam alguns de seus personagens, mas que no fim
(se é que fim!), como acontece com Virgília, ou até mesmo com os ossos de D. Plácida,
nem tudo é corrompido, pois um osso da escrita que sobrevive como que depurado pelo
tempo.
Para ilustrarmos essa questão, recorreremos a uma paráfrase e posterior comentário
do conto “Papéis velhos”, de Machado de Assis.
“Papéis velhos” inicia-se com o deputado Brotero chegando agitado e sombrio, à
noite, à sua casa. Apesar do silêncio profundo, ele não consegue dormir, e os relógios da
vizinhança começam a bater, fora do ritmo, o tempo que passa. São três horas, e Brotero
levanta-se para escrever uma carta para o presidente do conselho de ministros, informando-
88
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p.519.
54
lhe sua decisão de renunciar à cadeira de deputado. O motivo exposto na carta é um fato
pessoal: tanto Brotero quanto a opinião pública acreditavam que na primeira ocasião ele
seria nomeado ministro, pela posição que havia adquirido na Câmara; no entanto, o
presidente do conselho organizou o ministério e, para sua surpresa e decepção, Brotero foi
excluído.
No entanto, o narrador adverte de que outro fato envolvido nessa questão, pois a
decepção política foi apenas um dos golpes sofridos por Brotero. À perda do ministério
“um certo C...” foi colocado na pasta de estrangeiros, almejada por Brotero somava-se o
fato de que “o fim secreto da diligência era dar um lugar na galeria do Estado à viúva
Pedroso”,
89
senhora gentil e abastada que dias antes casara-se com o recente ministro. E,
como já podemos intuir, Brotero almejava não apenas a pasta, mas também a viúva, vindo a
perder as duas fortunas de uma só vez.
A crise política e pessoal causa-lhe dor e sofrimento e, após ter escrito a carta
demissionária, Brotero segue na noite em claro:
Reclinou-se na cadeira e fechou o rosto na mão. Tinha os olhos vermelhos
quando se levantou; e levantou-se, porque ouviu bater quatro horas, e
recomeçar a procissão dos relógios, a cruel e implicante monotonia das
pêndulas. Uma, duas, três, quatro...
Não tinha sono; não tentou sequer meter-se na cama. Entrou a andar
de um lado para o outro, passeando, planeando, relembrando. De memória
em memória, reconstruiu as ilusões de outro tempo, comparou-as com as
sensações de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dor, mirou
afincadamente essas ilusões perdidas, como uma velha contempla as suas
fotografias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que lhe dizia que, em
todas as dificuldades da vida, olhasse para o futuro. Que futuro? Ele não
via nada. E foi-se achegando da secretária, onde tinha guardadas as cartas
dos amigos, dos amores, dos correligionários políticos, todas as cartas.
agora o podia conciliar o sono; ia reler esses papéis velhos. Não se
relêem livros antigos?
90
89
MACHADO DE ASSIS. Papéis velhos, p. 620.
90
MACHADO DE ASSIS. Papéis velhos, p. 621.
55
O deputado começou a ler aquelas cartas encardidas pelo tempo, aquele “mar morto
de recordações”,
91
até deparar com uma de seu amigo Vasconcelos, que lhe dava notícias a
respeito de L...a. A partir dessa carta, e das lembranças que ela lhe suscitou, ele passa a ler
todas as que lhe foram enviadas por Vasconcelos. Tratava-se, naquele curto capítulo de sua
vida, de notícias a respeito de uma antiga paixão amorosa, que tão logo ele a teve, ele a
perdeu, devido a seguidas brigas motivadas pelo ciúme que a amante lhe despertava.
Brotero lembrou-se de seu padecimento, de suas imprudências e desvarios por aquela
mulher, e de que nada adiantou fazer para reavê-la.
Quis, em seguida, ver as cartas que escreveu a Vasconcelos no período em que havia
se separado de L...a. A última delas falava de suicídio... As horas continuavam a bater, ele
leu as cartas e, enquanto as dobrava e guardava na gaveta, “e ainda alguns minutos depois,
deu-se a um esforço interessante: reaver a sensação perdida”.
92
Havia recomposto
mentalmente o episódio em que pensou em suicídio, mas queria julgá-lo por meio da
sensação; porém, a sensação extinta não mais voltava.
Com isso, “não podendo obter a sensação extinta, [Brotero] cogitou se não
aconteceria o mesmo à sensação presente, isto é, se a crise política e pessoal, tão dura de
roer agora, não teria algum dia tanto valor como os velhos diários, em que se houvesse
dado a notícia do novo gabinete e do casamento da viúva”.
93
Concluindo que sim, pegou a
carta demissionária, que escrevera naquela noite, e juntou-a a outros papéis velhos.
várias temporalidades que permeiam esse texto: um tempo cronológico
marcado pelo ritmo dos relógios, mas que segue de forma irregular, pois os relógios das
casas vizinhas não estão acertados exatamente no mesmo horário, e isso marca não somente
91
MACHADO DE ASSIS. Papéis velhos, p. 622.
92
MACHADO DE ASSIS. Papéis velhos, p. 623.
93
MACHADO DE ASSIS. Papéis velhos, p. 623.
56
o descompasso do tempo do relógio, mas também o descompasso do tempo subjetivo do
próprio narrador, que está sofrendo; há o tempo subjetivo da memória, que tenta reconstruir
as ilusões perdidas; e, há, também, o tempo vazio, apagado ou perdido das sensações que
não voltam mais.
No entanto, para o interesse de nossa discussão, vamos nos ater em um ponto do
texto, o belo parágrafo em que aparece um pedaço de uma frase contendo as palavras
minuto e eterno, numa das cartas lidas por Brotero. A palavra eterno, escrita na carta,
decompôs-se ao ser devorada pela ação das traças, restando, no papel, as letras et e a
palavra minuto:
Nada faltava a essas cartas; estava o infinito, o abismo, o eterno. Um
dos eternos, escrito na dobra do papel, não se chegava a ler, mas supunha-
se. A frase era esta: “Um minuto do teu amor, e estou pronto para
padecer de um suplício et ...” Uma traça bifara o resto da palavra; comeu
o eterno e deixou o minuto. Não se pode saber a que atribuir essa
preferência, se à voracidade, se à filosofia das traças.
94
A traça, comendo o eterno, roeu, no tecido do texto, o tecido do tempo; ficou o
minuto, essa mínima lacuna, breve partícula do tempo que, paradoxalmente, está contido na
eternidade, assim como pode concentrar em si toda a eternidade. A ironia machadiana,
reduzindo o eterno ao minuto, a esse mínimo instante, deixa entrever, portanto, que um
único minuto pode ter a dimensão de uma eternidade e que a eternidade não contém tudo o
que se passa no tempo, pois o que é eterno pode também ser corroído, consumido, sendo,
dessa forma, marcado pela perda, pela falta. Mesmo a eternidade contém as suas lacunas e
vazios temporais – os seus buracos negros.
94
MACHADO DE ASSIS. Papéis velhos, p. 623.
57
Por outro lado, da palavra bifada sobraram as duas letras iniciais, e nem tudo se
perdeu ou se consumiu. Corroendo as cartas – esses papéis velhos traçados a tinta –, a traça
depura a palavra até a sua materialidade, o osso, a letra, reduzindo o significante a apenas
estas duas inscrições: et. Segundo Lacan,designamos por letra este suporte material que o
discurso concreto toma emprestado da linguagem”.
95
A letra, para a psicanálise de
orientação lacaniana, é ainda mais elementar que o significante e reporta-se ao que de
mais fundamental no escrito, reduzindo-o à pura inscrição na superfície/corpo do texto,
como é mostrado nessa inscrição que resta sulcada no corpo da carta.
Na superfície do papel restaram, da palavra eterno, portanto, apenas estas duas
inscrições gravadas: et. As inscrições et e a palavra minuto dizem de um amor que passou
pela ternura, tornou-se idealizado e se quis eterno para, no fim, reduzir-se a um instante de
leitura, condensado no corpo da letra, que resistiu até mesmo à voracidade da traça. De uma
suposta eternidade que chegou ao fim, ficaram apenas essas lembranças escritas, e
desvinculadas das sensações de antes, no papel amarelado e gasto pelo tempo.
Mas podemos ver também como as letras pululam nesse texto de Machado de Assis,
pois, além das que foram corroídas pela traça, temos ainda os nomes próprios, que são
apenas indicados pela letra inicial (“Um certo B...”, “Um certo C...”, “em casa do Z” etc.),
ou pela letra inicial e a final, como no caso da amante de Brotero, “L...a”. O que pode
indicar o intuito de não expor as pessoas ao conhecimento público; mas, pode também,
apontar, através do tempo, das traças e das cartas, para a própria depuração da escrita, para
a redução do significante ao seu suporte material, à letra.
95
LACAN. A instância da letra no inconsciente, p. 498.
58
O osso da escrita resiste não somente à ação da traça, mas também à ação do tempo, e
o que de fundamental no escrito, a letra, é esse puro traço (ou inscrição) depurado pela
linguagem e/ou pelo tempo, sobre o qual se escreve e se inscreve um sujeito.
Esse tempo corrosivo pode ser tido, portanto, como um tempo que leva à morte, ao
fim; mas, também, como o tempo de uma escrita que se depura, no sentido de sair dos
excessos do imaginário e do narcisismo, contribuindo para um certo esvaziamento dos
excessos que contaminam o próprio sujeito, mortificando-o, e para a restituição de sua
inscrição na linguagem, no simbólico.
Podemos pensar, ainda, com relação a Memórias póstumas, nos ossos que restaram da
decomposição do cadáver de Brás Cubas, e assim articulá-los como a letra do defunto.
Sabemos que os ossos, que compõem o esqueleto, são o suporte do corpo; e mesmo que
esse corpo ou esse cadáver, como no caso de Brás, se decomponha, os vermes do tempo
não conseguem roê-los, assim como as traças não corroem todas as letras das cartas.
O corpo do defunto ou o cadáver, entrando em decomposição, torna-se um objeto de
repulsa ao olhar do outro. Esse processo no qual o corpo se putrefaz, virando alimento de
vermes, escancara o real insuportável da morte, e é por isso, também, juntamente com a
importância do ritual simbólico, que os corpos devem ser enterrados. Ágata Cristina Kaiser
Dumont, em sua dissertação de mestrado intitulada A flecha de dois gumes: o tempo
redimensionado em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, afirma que
A demarcação temporal e espacial da morte do narrador-protagonista
direciona o caráter de sua narrativa, que se expõe a partir do corpo morto
e de todos os seus ritos funerários. A imagem oferecida ao leitor, no
entanto, não se limita na primeira imagem do homem recém morto, ainda
parecido com o vivo ao dormir. A primeira recordação que Brás apresenta
é a do corpo morto como alimento dos vermes, reiterada pela
dedicatória que abre suas memórias, ainda antes da narração de sua morte.
59
Não é só o corpo, no entanto, que aparece em decomposição, mas também
as relações humanas apresentadas na obra, repletas de hipocrisia,
egoísmo, pessimismo, putrefazendo a benevolência, a compaixão, a
solidariedade, e todas as virtudes que se propõem à humanidade, e que
fazem do homem um ser distinto na natureza.
96
A ameaça dos vermes que se alimentam do cadáver de Brás é, portanto, metonímia do
escritor e do tempo corrosivo da escrita. A escrita do defunto prestes a se decompor
contamina toda a obra e, com isso, a podridão de seu corpo se espalha pelas páginas do
texto, apontando, também, para a hipocrisia das relações humanas. No entanto, do defunto
em processo de decomposição, do real da morte, restam os ossos, o esqueleto do cadáver,
que, se deslocados para o campo da linguagem escrita, apontam para a letra. A imagem do
defunto, portanto, virou uma letra. E defunto é a letra do autor, letra esta que condensa o
eterno e o minuto que atravessam a temporalidade de sua escrita.
Caminhamos, neste capítulo, e prosseguiremos nos capítulos seguintes, na espiral de
uma lógica do tempo da escrita em Machado de Assis, de um tempo vazio e/ou lacunar, em
que giram certas modalidades temporais de Memórias póstumas e de alguns de seus contos.
Percorremos, também, em Machado, os tempos da tradição, cronológico, não-linear,
subjetivo, corrosivo e depurador, entre outros; assim como o eterno e o minuto. Mas, em
Memórias póstumas, outras facetas do tempo, e procuraremos levar adiante o propósito
de nosso trabalho, desenvolvendo no capítulo seguinte o processo de morte e gênese do
escritor Brás Cubas.
96
DUMONT. A flecha de dois gumes: O tempo redimensionado em Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, p. 35.
60
CAPÍTULO II
MORTE E GÊNESE DO ESCRITOR BRÁS CUBAS
O mar batia com força. Moderei o passo, e pus-me a olhar
para as ondas que vinham ali bater e morrer. dentro,
ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao
cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele,
não me contaram os seus particulares, vinham vindo,
morriam, vinham vindo, morriam.
Machado de Assis, “Eterno!”.
61
O livro Memórias póstumas de Brás Cubas inicia-se com um endereçamento do
narrador ao leitor. Utilizando-se desse procedimento metalingüístico, Machado de Assis
embaralha ficção e realidade, ao fazer confundir a voz do narrador com a voz autoral. O
narrador Brás Cubas, antes de começar propriamente o relato de suas memórias, dirige-se
ao leitor para afirmar que o seu livro poderá não ter “os cem leitores de Stendhal, nem
cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco”.
97
Ainda assim o suposto
autor não se exime da preocupação com o olhar do leitor e, no parágrafo seguinte, explicita
o propósito de “angariar as simpatias da opinião”, sendo que, para isso, “o primeiro
remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos
cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado”.
98
De fato, é de forma obscura, senão enigmática, que Brás Cubas diz:
“Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição
destas Memórias, trabalhadas no outro mundo”, justificando que “seria curioso, mas
nimiamente extenso, e, aliás, desnecessário ao entendimento da obra”.
99
Se, por um lado, o
narrador afirma que seria excessivo contar o processo de composição das Memórias, por
outro, desperta a curiosidade do leitor, ao dizer que tal processo foi extraordinário. Desde o
início, portanto, já se estabelece um movimento de sedução e captura do leitor, por meio de
uma linguagem que não se mostra por completo, que parece estar sempre encobrindo algo
de si mesma.
Comentando a doença que o levou à morte, Brás Cubas salienta que esta iniciou-se
no momento em que ele tomou uma corrente de ar, o que deu origem ao mal que otrouxe
à eternidade”.
100
A ruptura que ocorre nesse momento irá determinar, portanto, o lugar em
97
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
98
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
99
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
100
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 518.
62
que o “defunto-autor” se encontra: a eternidade. A eternidade, lugar do vazio ou da
ausência de tempo, está para o narrador, de fato, como um não-lugar, um ponto deslocado
para fora do tempo, de onde ele relê o passado e o futuro, no instante de sua presença.
É a morte do personagem, portanto, que permite o desdobrar de suas memórias,
sendo, conseqüentemente, a gênese do narrador e a condição do ato narrativo; pois é a
partir da morte que nasce o escritor Brás Cubas. Mas a morte do narrador representa
também uma certa cisão do Eu, uma fenda que se abre nessa instância imaginária e
narcísica, passagem de um Eu a um Ele que provoca o apagamento daquele que escreve e o
surgimento do ato criativo.
2.1 – UMA INVENÇÃO AMBÍGUA: O EMPLASTRO DA ESCRITURA
Brás Cubas localiza-se na eternidade, no lugar da ausência de tempo, e não se refere
ao “outro lado da vida”, nem explicações sobre a questão. Em um outro livro de
Machado, Memorial de Aires, encontramos uma passagem em que o narrador Aires faz
uma referência à questão da morte muito próxima do contexto de Memórias póstumas e das
indagações de Machado sobre o eterno e a eternidade. É a seguinte: “– Ah! minha amiga
(ou meu amigo), se eu fosse indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria na
eternidade”.
101
Ou seja, vagaria no atemporal, onde se encontram os mortos, pois a
eternidade é o lugar dos mortos, assim como infinita e eterna é a morte. E é por isso que o
minuto, ou o instante, também pode ser eterno, porque ele traz, em sua brevidade, a morte.
A eternidade, lugar (ou não-lugar) estratégico de onde o narrador pode falar, sem
receios da opinião, com franqueza sobre as suas memórias, é também um ponto de
101
MACHADO DE ASSIS. Memorial de Aires, p. 1.190.
63
deslocamento para fora do tempo, de onde Brás narrará os fragmentos de sua vida, as
aventuras por ele vividas.
Brás Cubas não se manifesta com relação ao “outro lado da vida”, mas narra as
circunstâncias de sua morte. Segundo o narrador, estando ele tomado pela idéia fixa da
“invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a
aliviar a nossa melancólica humanidade”
102
e, conseqüentemente, pela idéia de imortalidade
que tal descoberta lhe traria, foi pego por uma corrente de ar, adoeceu, não se cuidou
adequadamente e morreu, partindo para a eternidade antes de divulgada a invenção.
Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha
invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei.
Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doudos e dos
fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu,
como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um
homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me
enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem
persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem
que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a
minha invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não
menos triunfantes.
103
A humanidade ficou, irremediavelmente, sem a oportunidade de se salvar da
melancolia; mas, podemos notar que contra esta Machado de Assis opõe, no texto, não uma
fórmula mágica ou científica e, sim, o riso. Há uma sensação de ambivalência, mas também
de divisão subjetiva do narrador, que encontramos em Memórias póstumas: um livro que
contém em sua alma “um sentimento amargo e áspero”,
104
e que oferece o riso como
contraponto a esse sentimento, ou como forma de aliviá-lo. No entanto, o emplastro Brás
Cubas, em vez de aliviar a humanidade, ironicamente, produzirá a enfermidade do
102
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 515.
103
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 518.
104
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
64
personagem e o leva à morte, condição esta sem a qual, provavelmente, não haveria a
escrita de suas memórias.
O emplastro teria então esse duplo papel, de algo que pode curar e matar, estando,
também, vinculado à questão da escrita, aproximando-se, assim, de uma antiga discussão
filosófica sobre o phármakon. A este respeito, o filósofo Jacques Derrida, em seu livro A
farmácia de Platão, tomando como ponto de partida o diálogo Fedro, de Platão, no qual a
escritura é tida como um phármakon, mostra como, no texto platônico, a palavra
phármakon é ambígua, portando um duplo sentido introduzido no corpo do discurso, que
ela pode significar, dentre outras acepções possíveis, tanto remédio quanto veneno,
podendo ser, alternada ou simultaneamente, algo benéfico e maléfico.
105
Derrida afirma que
A escritura não é melhor, segundo Platão, como remédio do que como
veneno. (...) É preciso, com efeito, saber que Platão suspeita do
phármakon em geral, mesmo quando se trata de drogas utilizadas com
fins exclusivamente terapêuticos, mesmo se elas são manejadas com boas
intenções, e mesmo se elas são eficazes como tais. Não remédio
inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente benéfico.
106
Não poderíamos, então, pensar o emplastro Brás Cubas como um phármakon? na
medida em que, sendo um remédio inventado para curar, conduz, paradoxalmente, seu
próprio inventor à morte? Eis a ambigüidade desse remédio/veneno que arrasta o narrador
para a morte antes mesmo que este o tenha usado e na verdade isso não seria mesmo
necessário, uma vez que, como salienta o narrador, o emplastro estava em seu cérebro e,
por essa razão, ele não titubeará em nomeá-lo como a invenção que o matou.
105
Cf. DERRIDA. A farmácia de Platão, p. 14.
106
DERRIDA. A farmácia de Platão, p. 46.
65
No entanto, essa invenção que contamina o cérebro do narrador é menos o efeito de
uma droga que se ingere e mais de uma química da linguagem que toma conta do seu
pensamento, a ponto de ele se “desligar” das coisas que o cercam, não dar atenção para os
riscos da doença e morrer. A ambigüidade desse remédio, afirmada por Brás Cubas, resvala
para a ironia, pois aquele que pensa em salvar a humanidade esquece de salvar a si mesmo.
Saúde/doença, vida/morte, memória/esquecimento, remédio/veneno são dualidades
intrínsecas a esse conceito que remete à farmácia e à medicina e, também, para Platão, à
escritura. E é por esse motivo que o filósofo se questiona se a escritura, sob o pretexto de
suprir a memória, não faria esquecer ainda mais; e, fundamentalmente, se não haveria uma
boa e uma má escritura.
O fato é que morre o Brás Cubas inventor do emplastro e nasce o Brás Cubas
escritor/inventor de suas memórias. O phármakon, no entanto, permanece, antes como
droga farmacêutica, depois como potência positiva e negativa da escritura: o morto escreve
(lembra) para esquecer? Seria essa a função da escrita em Memórias Póstumas? Deixemos
essas questões para mais adiante, mas algo que gostaríamos de precisar: os poderes do
phármakon estão presentes na escritura de Memórias Póstumas.
2.1.1 – O ESPELHO FRATURADO DE BRÁS
Como já foi salientado, nas palavras de Brás Cubas, o que o mata não é o “golpe de ar”,
nem a doença em si, mas sua invenção a mesma na qual ele depositava o desejo de
imortalidade e que vai alterar tal ordem, matando-o. Porém, sua invenção não o condena ao
anonimato, já que, como afirma Juracy Assmann Saraiva, “ao situar-se no reino dos mortos,
ele adere ao fictício, ao mundo ilusório de um jogo de aparências, que lhe permite instituir-
66
se como sujeito e auto-enunciar-se”.
107
Sendo assim, de acordo com a autora, a morte se
afigurará a Brás Cubas como um novo nascimento, sendo, portanto, a gênese do narrador e
condição do ato narrativo.
A morte marcaria uma distinção entre narrador e protagonista, permitindo ao primeiro
um distanciamento dos eventos narrados e da historicidade e possibilitando-lhe, assim, o
desvendamento de sua vida, mostrando suas ambivalências e o que ela foi, efetivamente.
Uma vez que a morte o separou de sua história, Brás Cubas nasce novamente (a campa foi
seu outro berço) e, longe do peso do olhar da opinião de sua época, poderá escrever a sua
vida, desnudando-a e revelando-a de forma mais crua.
Agora, porém, que estou do outro lado da vida, posso confessar tudo: o
que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais,
mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas
três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão
do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me
argúam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os
hábeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma
virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de
outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.
108
O projeto malogrado de aliviar a melancolia da humanidade, que resultou na morte de
Brás Cubas, carrega em si o riso irônico de Machado de Assis, revelando como, por detrás
de atos cristãos (“Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo
para esse resultado, verdadeiramente cristão”
109
) e filantrópicos, escondem-se autênticos
interesses pessoais. A morte do personagem, sendo a condição pela qual ele nasce como
narrador, institui a verdade que será construída ficcionalmente. A este respeito Saraiva
afirma que
107
SARAIVA. O circuito das memórias em Machado de Assis, p. 46.
108
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 515.
109
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 515.
67
“Contar é igual a viver [...] A narrativa é igual à vida; a ausência de
narrativa, à morte”. Aceito esse princípio do relato primitivo, Brás Cubas
não posterga a morte, mas, transpondo-a, faz dessa passagem o princípio
orientador do narrar. Tanto Scherazade quanto Brás Cubas são narradores
que vivem na medida em que narram, mas somente Brás Cubas encontra,
na superação da vida, a possibilidade de interpretá-la. Pela morte,
consolida-se, pois, a vida do narrador, e se define seu estatuto enquanto
enunciador e protagonista do relato; ao mesmo tempo, sobre a morte
funda-se a convenção tácita, firmada entre narrador e leitor, que repousa
na adesão deste universo ficcional instaurando aquele.
110
Com a morte do personagem e, portanto, o nascimento do narrador, opera-se uma
transformação no próprio indivíduo, que se constitui em enunciador e protagonista do relato
e, respectivamente, em sujeito e objeto do discurso narrativo. Tal acontecimento provoca,
pois, uma cisão do eu de Brás Cubas, sendo que entre o eu passado, que será revisto, e o eu
presente, a lacuna dessa cisão lacuna onde se inscreve a circunstância da morte como
fundamento da alteridade do narrador.
Ocorre, portanto, uma “divisão do eu em outro”, garantindo uma experiência de
alteridade, na qual Brás Cubas poderá tomar a si mesmo como objeto de investigação,
diferentemente do que se dá com os narradores memorialistas (os escritores de
autobiografias, por exemplo), uma vez que o narrador memorialista normalmente encontra-
se preso à sua subjetividade, a um eu que não tem o distanciamento necessário para se olhar
de fora, do exterior, constituindo-se em uma barreira que se defende e resiste à própria
análise, compreensão e julgamento, de modo que o sujeito, para evitar o sofrimento,
“escolhe” por desconhecer-se.
A questão do eu também será analisada – mas desta vez com um enfoque maior sobre
os protagonistas dos relatos por Kátia Muricy, no livro A razão cética, Machado de Assis
110
SARAIVA. O circuito das memórias em Machado de Assis, p. 47.
68
e as questões de seu tempo. Segundo Muricy, “a experiência da fragmentação da identidade
e da o-linearidade do tempo, vividas pelos personagens machadianos, em especial por
esses narradores [Brás Cubas, Dom Casmurro e Conselheiro Aires], relaciona-se à vivência
na cidade grande do Rio de Janeiro no alvorecer de sua modernidade”.
111
A autora, ao
referir-se ao narrador Brás Cubas e também ao personagem Bentinho, de Dom Casmurro,
usa o termo “fragmentação do eu” para assinalar que
Também é em Memórias póstumas de Brás Cubas que o herói tem uma
sensação física dessa fragmentação de seu eu ao narrador, no capítulo “As
pernas”, quando, com o pensamento na amante, as pernas o levam, sem
que ele se conta, a jantar no hotel Pharoux, dividindo sua consciência
entre a dama e as conveniências do estômago e das alegrias mundanas. As
pernas também conduziram Bentinho, contra sua vontade, a Capitu: “Que
as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços e valem de si
mesmas, quando as cabeças não as rege por meio de idéias”. O corpo
fragmenta-se também para dar à “sensação esquisita” de o se contar
com a unidade de sentimentos, de idéias ou do comportamento enfim,
de uma unidade da consciência – em que se reconheça o mesmo sujeito. E
é com uma certa volúpia da perda da consciência, essa ilusão de uma
unidade, que o defunto autor inicia suas memórias.
112
Podemos apreender, das afirmações da autora, que a fragmentação do eu do narrador
implica uma divisão de sua consciência apontando para um sujeito-narrador dividido –,
mas, também, que essa experiência se relaciona com uma fragmentação da própria imagem
corporal do narrador, rompendo com a “ilusão de uma unidade”.
A fragmentação da identidade pode, ainda, implicar uma divisão temporal do sujeito;
pois, para a psicanálise, o sujeito é dividido entre a consciência, lugar de um tempo linear e,
portanto, cronológico, e o inconsciente (sujeito do inconsciente), lugar intemporal, no qual
a experiência temporal subjetiva é de uma outra ordem, não-linear e não-cronológica.
111
MURICY. A razão cética; Machado de Assis e as questões de seu tempo, p. 118.
112
MURICY. A razão cética; Machado de Assis e as questões de seu tempo, p. 117.
69
O inconsciente freudiano é, pois, intemporal como afirma Freud.
113
Se a referência
cronológica vincula-se ao sistema consciente, os processos inconscientes, por seu turno,
não vão passar por tal ordenação temporal, e os seus diferentes elementos, apresentando-se
sem uma ordem cronológica, não levam em consideração a distinção entre passado,
presente e futuro. No entanto, para Freud, o desejo, sendo indestrutível, é o que vai, pelo
viés da fantasia, entrelaçar o passado, o presente e o futuro.
114
Nascendo “da defasagem entre a necessidade e a demanda”
115
e mantendo no seu
fundamento relação com a fantasia, e não com um objeto real (o objeto do desejo está desde
sempre perdido), o desejo inconsciente, “ligado a signos infantis indestrutíveis”,
116
não
sofre a ação da passagem do tempo. A própria indestrutibilidade do desejo inconsciente,
juntamente com o fato de ele enlaçar, através fantasia, os três registros temporais, revela
que, na experiência temporal subjetiva, ele é eterno.
Voltando à questão da fragmentação do narrador de Memórias póstumas, podemos
perceber como esta incide na o-linearidade do tempo de sua escrita e,
concomitantemente, de seu texto. O movimento sinuoso, digressivo e oblíquo da escrita de
Brás Cubas, assim como a construção do texto fragmentado de suas memórias, de alguma
forma, tem relação com a própria divisão do narrador, que se manifesta em sua fala e em
seu modo de narrar.
A divisão do sujeito-narrador, expondo as “aparições do duplo em que se manifestam
realidades psíquicas de outro modo heterogêneas”,
117
encontra-se em várias passagens de
113
Cf. FREUD, Sigmund. O inconsciente, p. 183-245.
114
Cf. FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio, p. 145-158.
115
LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário da psicanálise, p. 114.
116
LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário da psicanálise, p. 114.
117
LACAN. O estádio do espelho como formador da função do eu, p. 98.
70
Memórias Póstumas, e pode ser assinalada pela posição ambivalente de Brás Cubas com
relação às mulheres:
Que, em verdade, dous meios de granjear a vontade das mulheres: o
violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e
a chuva de ouro de Dânae, três inventos do padre Zeus, que, por estarem
fora da moda, aí ficam trocados no cavalo e no asno.
118
Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me
desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras,
desposá-la. Uma mulher coxa!
119
Ou, quando ele se refere à divisão de sua consciência ou de seu pensamento, como no
referido capítulo “As pernas”:
Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando, ruas
abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do Hotel Pharoux.
De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum
merecimento da ação me cabe, e sim às pernas, que a fizeram. (...)
Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós
deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e dissestes à
outra: – Ele precisa comer, são horas de jantar, vamos levá-lo ao Pharoux;
dividamos a consciência dele, uma parte fique com a dama, tomemos
nós a outra, para que ele direito, não abalroe as gentes e as carroças,
tire o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel.
120
Em Memórias póstumas, podemos observar, ainda, como a discordância do eu com a
realidade é visível em relação ao personagem Brás Cubas, e também como, em
determinados momentos, a fragmentação aparece quando se poderia esperar uma unidade
do eu, rompendo com uma suposta unidade que não se sustenta o tempo todo. Podemos
observar, na seguinte citação, certos fenômenos de despedaçamento ou desintegração do
118
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 534.
119
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 555.
120
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 580.
71
corpo vivenciados por Brás Cubas momentos antes de morrer e relatados pelo defunto-
autor:
Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamente, ouvindo o soluço
das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas
de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um
amolador está afiando fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa
orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo
ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito,
com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à
imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e
cousa nenhuma.
121
A vida lhe fora emitindo os últimos sinais através dos sons que lhe iam entrando
corpo adentro; a morte se aproximou, cortando-lhe, como uma navalha, os últimos fios da
vida; seu peito sacudia como a força de uma grande onda marinha; e o corpo de Brás Cubas
começou a se desintegrar em direção ao nada.
Convenhamos que a experiência narrada é radical, pois ela acontece com o impacto
da aproximação da morte; no entanto, se é a imagem do outro, vinda de um exterior, que
organiza o eu, algo que, em outro momento da existência do sujeito, vindo de fora, o
invade, pode também abalar sua unidade imaginária, desorganizando-a. No relato do
narrador, os sons que em tese o tranqüilizariam vão gradativamente infiltrando em seus
ouvidos, e são esses sons (essa “orquestra da morte”) do choro, da chuva e, sobretudo, de
uma navalha sendo amolada, que o invadem com uma força desintegradora, instaurando o
processo da morte como algo desagregador, tanto da consciência quanto do corpo.
E é a partir dessa experiência de desagregação que a morte se coloca a Brás Cubas. O
inventor do emplastro que salvaria a humanidade da melancolia, tornando-se, com sua
invenção, imortal, morre para renascer como um outro, como o narrador atemporal de suas
121
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 514.
72
memórias. Instauram-se, assim, as condições de possibilidade da narrativa, no momento em
que o personagem pode, de um lugar onde o tempo é abolido, percorrer, com um certo
distanciamento, o tempo de suas memórias.
O momento do acontecimento da morte de Brás Cubas pode ser pensado, assim,
como o momento de abolição do tempo. Trata-se de um paradoxo, no qual a eternidade é
pensada como algo infinito, onde o tempo é abolido; mas, também, como um breve minuto
do tempo, um lugar vazio, em que toda a realidade do tempo é percorrida, no instante de
um raio.
A respeito da abolição do tempo, Sylvie Le Poulichet, no livro O tempo na
psicanálise, faz o seguinte comentário:
Esse momento de abolição do tempo é também, por isso mesmo, um
momento privilegiado de afirmação do tempo, pois essa “rasgadura” na
trama do tempo justamente presença ao acontecimento. E o
anacronismo permite aqui uma forma de identificação, [pois como afirma
Blanchot]: “Viver a abolição do tempo, viver esse movimento, rápido
como um ‘raio’, (...) é percorrer toda a realidade do tempo; percorrendo-a,
experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, isto é, livre dos
acontecimentos que sempre, habitualmente, o preenchem”.
122
A morte se instaura para Brás Cubas, portanto, como um acontecimento que rasga o
tempo em dois: em um tempo atemporal (lugar do sujeito da enunciação) e em um tempo
das lembranças narradas (lugar do sujeito da enunciado). Podemos, ainda, fazer uma
correlação entre o lugar atemporal de onde fala Brás Cubas e o lugar do sujeito do
inconsciente (Je, segundo Lacan); e entre o lugar do sujeito do enunciado e o lugar do eu
consciente (Moi, segundo Lacan). Mostra-se, também, desta forma, como a divisão
subjetiva do personagem incide na temporalidade da narrativa.
122
LE POULICHET. O tempo na psicanálise, p. 15-16.
73
Na eternidade, uma ausência (ou um vazio) do tempo, e o narrador, relatando
acontecimentos e lembranças, situa-se fora ou deslocado destes. Há, nesse processo, uma
ironia e um paradoxo, pois parece que o lugar de imortalidade procurado por Brás Cubas
durante sua vida, com sua invenção, vai ser encontrado (ou forjado) com o
acontecimento de sua morte, com essa ruptura, esse dilaceramento ou essa rasgadura
temporal que o torna um morto-vivo, um defunto-autor que narra suas memórias em um
“tempo da ausência de tempo”.
123
Esse “tempo da ausência de tempo”, a que se refere Blanchot, é congruente com o
tempo da escrita do inconscientecorporificada, em Memórias póstumas, no defunto-autor
–, uma escrita que põe o tempo cronológico em suspenso e que diz respeito a um trabalho
que escapa às determinações do eu ou da consciência daquele que escreve, produzindo um
certo apagamento do mesmo.
Mas, seguindo nessa articulação entre tempo e escrita, talvez pudéssemos fazer um
desdobramento da questão que viemos trabalhando, operando um desvio da morte do
narrador-personagem e autor ficcional Brás Cubas para a do autor Machado de Assis, na
medida em que seria este, de fato, que se apagaria no próprio ato de escrever. A esse
respeito, sublinhemos, portanto, a seguinte questão: a morte de Brás Cubas não poderia ser
tomada como uma metáfora do desaparecimento (ou da morte) do escritor ou do autor
Machado de Assis, em função da escrita ou da obra?
2.1.2 – O LUGAR VAZIO DA CRIAÇÃO
123
BLANCHOT. O espaço literário, p.20.
74
Ao situar Brás Cubas como um defunto-autor, Machado de Assis, de forma oblíqua,
faz com que ele próprio, enquanto autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, desloque-
se para um lugar de desaparecimento. É como se o ato da escrita, que o conduziu à
invenção do personagem-narrador de Memórias póstumas, levasse Machado a se apagar na
sombra do narrador, fazendo com que a voz autoral fique encoberta (mas não
completamente oculta) no texto. Dessa forma, no lugar onde este apagamento do
“verdadeiro” autor, que se coloca de modo mais impessoal, surge a obra como elaboração
de seu trabalho solitário com a linguagem, com o vazio de toda linguagem e com o nada;
mas, daí, também, a sua afirmação na obra.
Blanchot, no texto “A literatura e o direito à morte”, assim como em outros textos de
sua autoria, comenta sobre essa experiência com a escrita que leva a um certo apagamento
do eu autoral, a uma ausência de ser. Segundo Blanchot, o trabalho com o texto se na
medida em que “o escritor que escreve uma obra se suprime nessa obra e se afirma nela”.
124
O autor acrescenta ainda que “a obra exige do escritor que ele perca toda a ‘natureza', todo
o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que
o faz ‘eu’, converta-se no lugar vazio onde se enuncia a afirmação impessoal”.
125
Esse lugar vazio é também assinalado por Gilles Deleuze, no capítulo “Sobre a
Colocação em Séries” de seu livro Lógica do Sentido. A casa vazia, para Deleuze, é uma
instância paradoxal, que circula entre duas séries, que podem ser representadas, por
exemplo, em termos de linguagem, como as séries do significante e do significado. De
acordo com o filósofo, “da instância paradoxal é preciso dizer que não está nunca onde a
procuramos e, inversamente, que nunca a encontramos onde está. Ela falta em seu lugar,
124
BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 326.
125
BLANCHOT. O espaço literário, p. 50.
75
diz Lacan”.
126
A própria estrutura da linguagem pode, portanto, funcionar como uma casa
vazia, pois numa estrutura é necessário que haja falta, lugar e espaço vazio para que esta
tenha mobilidade, tenha jogo.
Essa instância com “duas faces, das quais uma sempre falta à outra”,
127
operando
tanto do lado da série significante quanto do lado da série do significado, mobilidade e
faz funcionar a cadeia significante “como em um jogo, [no qual] assiste-se à combinação da
casa vazia e do deslocamento perpétuo de uma peça”.
128
A casa vazia é, portanto, lugar da
ausência e instância necessária para que se movam as peças do jogo metonímico da
linguagem.
A morte de Brás Cubas, em Memórias póstumas, pode ser tomada como uma
metáfora desse lugar vazio e impessoal do autor (ou do escritor), lugar do desaparecimento,
que faz ressoar a seguinte questão enunciada pelo personagem: “Que entre a vida e a
morte? Uma curta ponte”.
129
É nessa curta ponte que liga e une a vida à morte, num espaço
fugidio de tempo, que se uma infinidade de acontecimentos. E talvez a sabedoria que
no trabalho do escritor esteja em saber como transitar nesse espaço aberto, nas
proximidades da morte, sem se deixar morrer completamente, buscando, desse diálogo com
o nada, alcançar o outro lado da ponte, o lado da criação e da vida.
Podemos pensar, portanto, uma série paradoxal, em Memórias Póstumas, relacionada
com a dupla face autor-obra, pois o que pode ser estranho com relação a essarie é o fato
de que essas duas figuras ímpares, essas metades desiguais, faltem sempre uma à outra,
sendo, no entanto, uma condição da outra. Não obra sem autor, mas a condição para que
haja obra é o desaparecimento do autor. Dizer que o desaparecimento do autor é condição
126
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 43.
127
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 44
128
DELEUZE. Lógica do sentido, p. 44.
129
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 620.
76
da obra significa afirmar que a existência e a criação desta estão vinculadas ao apagamento
daquele. Assim, podemos falar em função autoral a partir deste ponto vazio da
linguagem que produz o apagamento daquele que escreve.
O trabalho com a escrita diz respeito a uma experiência com a linguagem, experiência
esta que a leva a um limite, a uma tensão entre a palavra e a impossibilidade de tudo dizer,
entre a representação e o que es fora de toda representação, entre a obra e o silêncio que
esta enuncia. Há, na linguagem, um osso duro que resiste à representação e ao sentido, ou
então, “um grão de sandice”, como o do doido Romualdo citado por Brás Cubas: “ – Eu sou
o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto
tártaro, tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtude de
fazer Tártaros”.
130
Essa experiência com a linguagem pode trazer, em certos autores ou em certas obras
por eles escritas, o vazio de uma impessoalidade ou de uma ausência de ser:
Está claro que em mim o poder de falar está ligado também à minha
ausência de ser. Eu me nomeio, é como se eu pronunciasse meu canto
fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença
nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu
nome, que me ultrapassa e cuja mobilidade petrificada faz para mim
exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio.
131
A citação acima nos remete a Brás Cubas, ao defunto-autor dividido, sustentando sua
presença apenas com o seu nome; mas, em última instância, ela nos faz pensar no escritor
que morre em função da obra. Se a função autoral está vinculada, como foi dito, a um
certo desaparecimento, a um certo apagamento ou neutralidade do escritor, a lápide de Brás
Cubas pode ser tomada como metáfora tanto da morte quanto do nascimento do autor, que
130
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 582.
131
BLANCHOT. A literatura e o direito à morte, p. 312.
77
se dá, paradoxalmente, a partir e pelo apagamento de seu ser. A morte é tomada aqui,
evidentemente, não no sentido de fim, mas no de desaparecimento para que algo possa ser
criado, possa surgir em seu lugar, e, também, no sentido de ruptura e de quebra de vínculos.
A morte do escritor é a morte do eu imaginário (moi), do ego muito embora a
instância do imaginário, estando amarrada às outras duas instâncias psíquicas que são o real
e o simbólico, continue articulada à cadeia da linguagem, tendo relevância no processo de
escrita. O defunto-autor não fica totalmente livre do imaginário, mas empreende uma
tentativa para sair dele e é pela morte que Brás Cubas pretende chegar, através de sua
escrita, ao eu inconsciente (je). A escrita tem a sua própria autonomia e ultrapassa a
intenção do escritor, que se deixa atravessar por ela, e, escapando ao poder de sua
consciência, ela pode levá-lo a lugares desconhecidos, nos quais se abrem novos horizontes
e perspectivas.
A criação surge, pois, como uma ruptura, uma quebra de barreiras tanto da realidade
do mundo quanto da realidade do escritor (quebrando as defesas do seu eu) e, trazendo a
marca da impessoalidade, faz com que o sujeito saia do lugar egóico por ele habitado.
Nessa perspectiva, Machado de Assis, através do personagem Brás Cubas, cria um universo
ficcional no qual não uma nítida separação entre ficção e realidade, autor e personagem,
verdade e mentira. Embaralhando as cartas, o Bruxo de Cosme Velho não oferece
facilidades para o leitor e, confundindo-o, seduzindo-o, envolve-o na teia de sua escrita, ao
mesmo tempo que o leitor começa também a entrar e a fazer parte da construção da
narrativa, participando do processo criativo.
Referindo-se à criação artística, Blanchot sublinha que
78
A arte, como se vê em Mallarmé, depois, sob outra luz, em Valéry, parece
avalizar a palavra de Hegel: O homem é o que ele faz. Se se deve julgar
qualquer de suas obras, é o artista. É o criador, diz-se. Criador de uma
realidade nova, que abre no mundo um horizonte mais vasto, uma
possibilidade de modo nenhum fechada mas tal que, pelo contrário, a
realidade, sob todas as suas formas, encontra-se ampliada. Criador
também de si mesmo no que cria.
132
O processo de criação, como possibilidade da escrita e da obra, aponta, portanto, no
mesmo ato, para a morte e o nascimento do escritor, para o seu desaparecimento e o seu
reaparecimento; pois é condição do ato criativo matar e/ou morrer, para que algo nasça. A
morte de Brás Cubas metaforiza bem esse processo, pois, se o personagem por nós
associado ao eu (moi), sujeito da razão cartesiana morre, nasce, desta passagem
construída a partir de uma outra realidade, da qual se chega ao eu do inconsciente (je) –, um
outro personagem, escritor e narrador de suas memórias. Esse processo também pode ser
pensado como sendo uma virada, uma mudança subjetiva, na qual se constrói um nome: o
nome de Brás Cubas, narrador e autor.
De acordo com Silviano Brandão,
Como defunto-autor, Brás viveu a morte que leva à vida, saindo do lugar
melancólico de uma vida inconclusa, incompleta. No entanto, fez escrita
de um lugar que deu sentido ao vivido e um passo a mais em direção a um
certo saber de si mesmo, deslocando-se das vicissitudes de suas paixões,
da melancolia de suas perdas.
133
A escrita permite a Brás Cubas fazer o luto de suas perdas e renascer com um novo
olhar sobre a vida, um olhar cético e irônico; mas também marcado pelo humor e pelo riso,
contrapondo-se à melancolia. Dessa morte nasce, portanto, um outro Brás, com um olhar
agudo e verdadeiro sobre si mesmo e com a leveza de quem fez uma passagem, uma dobra
132
BLANCHOT. O espaço literário, p. 212.
133
SILVIANO BRANDÃO. A travessia da escrita em Machado de Assis, p. 58.
79
da vida, e, que, por meio da escrita, construiu um nome próprio, suporte do seu ser e
garantia de sua indiferença perante o “olhar da opinião”.
Blanchot, pronunciando-se a respeito do processo de escrita como quebra de vínculo
entre a palavra e o eu, mostra, na seguinte passagem, como escrever implica uma retirada
da “palavra do curso do mundo”.
Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu, quebrar a relação
que, fazendo-me falar para “ti”, dá-me a palavra no entendimento que essa
palavra recebe de ti, porquanto ela te interpela, é a interpelação que
começa em mim porque termina em ti. Escrever é romper esse elo. É,
além disso, retirar a palavra do curso do mundo, desinvestí-la do que faz
dela um poder pelo qual, se eu falo, é o mundo que se fala, é o dia que se
identifica pelo trabalho, a ação e o tempo.
134
Escrever implica, como dissemos, uma certa ruptura do eu (moi). uma quebra
dessa instância onipotente e narcísica, algo que a separa de uma palavra que não se coloca a
serviço de nenhuma forma de ideal ou de poder. Sendo assim, retirar-se do mundo,
distanciar-se das coisas da vida, colocar-se de fora, por uma palavra desinvestida do que
faz dela um poder”, seria condição do que chamamos escrita e criação.
Esse processo de ruptura e desinvestimento produz um deslocamento do escritor com
relação à temporalidade, colocando-a como que em suspenso, como o que ocorre a partir da
morte de Brás Cubas. A suspensão do tempo é o que vai, portanto, fazer aparecer o sujeito
do inconsciente (je).
Essa suspensão do tempo pode também ser observada em Memórias póstumas, no
capítulo XXVI, “O autor hesita”, no qual Brás Cubas, jogando com a escrita e deixando em
suspenso a razão, traça riscos no papel, armando e desarmando palavras num movimento de
associação livre (deixando-se ir pelo som e não pela busca do sentido das palavras) em que
134
BLANCHOT. O espaço literário, p. 16-17.
80
as sílabas, obedecendo a uma lógica própria, vão-se desmembrando e se juntando a outras
sílabas num processo contínuo.
Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num
pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma frase,
um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem,
ao acaso, assim:
arma virumque cano
A
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque
arma virumque cano
virumque
Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa
dedução, por exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do
próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a escrever virumque, e
sai-me Virgílio, então continuei:
Vir Virgílio
Virgílio Virgílio
Virgílio
Virgílio
Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a
mim, lançou os olhos ao papel...
Virgílio! Exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente
Virgília.
135
Por meio de uma linguagem o dialética, irônica e digressiva, e de um trabalho
minucioso com a letra, Machado de Assis rompe com o tempo cronológico e gramatical,
desprendendo a linguagem de sua armadura sintática. O autor constrói uma narrativa que
internamente desconstrói a si mesma, pois a sua escrita, em certas passagens, vai minando
sua própria estrutura, destecendo-se. Pode-se observar, portanto, duas formas de
temporalidade: uma, através da associação livre do personagem, na qual o tempo é
colocado em suspenso (entre parênteses) enquanto sua mão vai escrevendo o que lhe vem à
cabeça; e outra, fragmentada, vinculada ao trabalho com a letra, na qual se observa uma
135
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 549.
81
fragmentação ou um desmembramento de uma escrita que se sustenta na sílaba vir, até
chegar ao nome próprio Virgília.
Mas se o ato de escrever põe o tempo em suspenso, ele também toca na “essência da
solidão”. Ato este que é o de confrontar-se com um espelho vazio, no qual sua imagem não
é mais reproduzida, onde não nenhum ponto de identificação possível, e o outro no qual
nos espelhamos e reconhecemos nossa face esvaiu-se, restando em seu lugar apenas um
ponto neutro. É, pois, da solidão, de uma “ausência de tempo” que se trata, como na
seguinte afirmação de Brás Cubas: “Vim... Mas não; não alonguemos este capítulo. Às
vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel”...
136
A esse respeito Blanchot afirma que
Neste ponto, estamos abordando, sem dúvida, a essência da solidão. A
ausência de tempo não é um modo puramente negativo. É o tempo em que
nada começa, em que a iniciativa não é possível, em que, antes da
afirmação, existe o retorno da afirmação. Longe de ser um modo
puramente negativo é, pelo contrário, um tempo sem negação, sem
decisão, quando aqui é igualmente lugar nenhum, cada coisa retira-se em
sua imagem e o ‘Eu’ que somos reconhece-se ao soçobrar na neutralidade
de um ‘Ele’ sem rosto.
137
O eu (moi) não se sustenta mais em sua imagem, tornando-se inconsistente, neutro
(je). A quebra dessa consistência produz efeitos na própria relação do escritor com a
temporalidade, pois se “escrever é entregar-se ao fascínio da ausência de tempo”,
138
essa
entrega se faz possível com uma certa diluição ou neutralidade do eu. Nesse percurso,
em que aquele que escreve é tocado pela solidão da obra, o que conta não é “escrever bem”,
136
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 544.
137
BLANCHOT. O espaço literário, p. 20.
138
BLANCHOT. O espaço literário, p. 20.
82
mas o apagamento ou a dissolução do que chamamos subjetividade ou eu, que o impulsiona
a uma travessia solitária que se faz na língua.
Quando escrever é descobrir o interminável, o escritor que entra nessa
região não se supera na direção do universal. Não caminha para um
mundo mais seguro, mais belo, mais justificado, onde tudo se ordenaria
segundo a claridade de um dia justo. Não descobre a bela linguagem que
fala honrosamente para todos. O que fala nele é uma decorrência do fato
de que de uma maneira ou outra, já não é ele mesmo, não é ninguém. O
“Ele” que toma o lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor
por intermédio da obra.
139
A solidão da escrita, por intermédio da obra, “exige” do escritor um certo abandono à
impessoalidade, deixando-se levar pela indeterminação de um eu que estabeleça limites e
referências, de caminhos seguros, assim como, de amarras temporais.
Essa escrita, que é a do inconsciente, gira em torno de um círculo vazio num
movimento infinito. algo em seu ato que faz com que o escritor jamais tenha uma obra
como concluída, jamais a tenha como sua. No lugar do eu, resta um ele lugar vazio que
novamente impulsiona aquele que escreve a mover a dura matéria. A obra, cujo ser é
inapreensível, é condição da escrita.
Brás Cubas encontra-se na ausência de tempo, em um lugar descentralizado. O
narrador, convertido em uma voz zombeteira e melancólica, encarna, metaforicamente, o
“Ele sem rosto”, que se desloca no texto e no tempo, nessa passagem na qual a obra advém,
pois “a obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não
agradar, pago-te com um piparote, e adeus”.
140
O Ele do lugar vazio é o Je que escava o
real, distanciando o narrador da verossimilhança e do senso-comum.
139
BLANCHOT. O espaço literário, p. 18.
140
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
83
E é dessa região atemporal e inapreensível que fala Machado de Assis através de Brás
Cubas – lugar da eternidade, possibilitado pela morte do narrador. Este, por sua vez, toca de
várias formas na questão da morte, mas não a define, deixando-a em aberto: “Eu, que
meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo”.
141
É a partir
desse enigma indecifrável, real sem representação no simbólico, que Machado constrói o
texto em que Brás Cubas narra suas memórias; e é de um vazio estrutural da linguagem, no
qual a morte não tem inscrição, que uma infinidade de lembranças emerge.
uma passagem de Memórias póstumas na qual Brás Cubas, após ter saído do
enterro de D. Plácida e ter-se encontrado na sala mortuária com Virgília, desloca-se dos
grupos (das pessoas) para os epitáfios que ele finge ler. No entanto, mesmo não os lendo,
faz uma reflexão que nos leva a pensar sobre como o outro é uma extensão do eu e como
criamos mecanismos para lidar com a perda do objeto amado objeto este que se encontra
incorporado ao eu. A fala do personagem também nos faz pensar o quão inconsolável é o
anonimato (a impessoalidade), pois, mesmo na morte, não desejamos ver anônimas as
pessoas que nos deixaram, uma vez que é como se fosse arrancado um pedaço do nosso eu
e nos tornássemos anônimos junto com aquele que se foi. Nesta passagem, o narrador diz
que:
Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás, gosto
dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio
e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao
menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos
que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão
anônima os alcança a eles mesmos.
142
141
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 540.
142
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 535.
84
Portanto, se, como afirmamos anteriormente, uma escrita que está relacionada à
ausência de tempo, tanto quanto à impessoalidade ou à passagem do eu a um ele anônimo e
neutro, podemos pensar também que esse trabalho com a escrita é algo que toca e abala
mecanismos muito consistentes do sujeito, pois relaciona-se com uma perda ou uma fratura
em seu próprio narcisismo, fraturando a linguagem e fazendo aparecer o real, aproximando-
o, inevitavelmente, da morte.
O processo de escrita é, portanto, um trabalho duro com a linguagem e seus silêncios,
pois, como afirma Foucault, “sabia-se desde Mallarmé que a palavra é a inexistência
manifesta daquele que designa; agora se sabe que o ser da linguagem é a visível
desaparição daquele que fala”.
143
Se o autor Machado de Assis se apaga, nomeando um
autor ficcional para narrar suas memórias, talvez seja para que de seu “desaparecimento”,
desse lugar vazio e atemporal, a obra possa advir.
Esse esvaziamento do eu tem, pois, relação com a temporalidade – com um tempo em
suspenso, ou com um tempo da ausência de tempo, como foi indicado –, e pode também
produzir efeitos na linguagem, sendo, talvez, uma forma de aquele que escreve se colocar
um pouco à margem dos poderes da palavra.
2.2 – ESCRITA OBLÍQUA: DESLOCAMENTOS DO FLUXO DO TEMPO
Em Memórias póstumas de Brás Cubas inúmeras referências ao tempo; no
entanto, como foi afirmado anteriormente, ao escrever o livro, Machado de Assis
construiu um personagem que se localiza na eternidade e, por isso mesmo, pode escrever
143
FOUCAULT. O pensamento do exterior, p. 70.
85
com a “pachorra”, ou seja, a paciência de quem contempla a própria vida, e a de seus
contemporâneos, com astúcia e sem pressa.
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com a pachorra, com a
pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra
supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo
brincalhona, cousa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e
é todavia mais que passatempo e menos que apostolado.
144
Brás Cubas narra com inventividade os acontecimentos e constrói a sua ordem
própria, produzindo deslocamentos na linguagem e no tempo: o narrador inverte citações,
altera frases, trabalha com o irrecuperável da memória, expondo ruínas e restos, enfim,
brinca, sem pressa, com a escrita, que o tempo não o afronta mais. A obra, “supinamente
filosófica”, é feita de um riso cético sobre as doutrinas que se apresentam como a salvação
do homem, assim como sobre si mesma; mas, também, não é passatempo, e daí talvez o seu
lugar um pouco à margem do poder ou das ideologias veiculadas pela linguagem, uma vez
que não tem como proposta a difusão de idéias ou doutrinas.
Uma análise dos mecanismos do poder e de sua inscrição na linguagem é feita por
Roland Barthes, em Aula.
145
O escritor afirma que: “Esse objeto em que se inscreve o
poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem ou, para ser mais preciso, sua
expressão obrigatória: a língua”.
146
Nesse momento de sua obra, para Barthes, “a linguagem
humana é sem exterior: é um lugar fechado”
147
do qual é possível sair pela singularidade
mística e
144
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p.516.
145
Conferência pronunciada no Colégio de França em 1977, por ocasião de sua aula inaugural da cadeira de
Semiologia Literária.
146
BARTHES, Aula, p. 12.
147
BARTHES, Aula, p. 16.
86
a nós, que não somos nem cavalheiros da nem super-homens, resta,
por assim dizer, trapacear com a língua (...). Essa trapaça salutar, essa
esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no
esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo,
quanto a mim: literatura.
148
A literatura, tida por Barthes como “o grafo complexo das pegadas de uma prática: a
prática de escrever”,
149
pode liberar a língua do poder. Segundo o autor: “As forças de
liberdade que [nela] residem (...) não dependem da pessoa civil, do engajamento político do
escritor que, afinal, é apenas um ‘senhor’ entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal
de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua”.
150
É possível apontar em Memórias póstumas todo um trabalho de deslocamento e de
inversão da linguagem que talvez se aproxime da observação de Barthes a respeito da
literatura: a esquiva, a trapaça, o modo enviesado e oblíquo são operantes na retórica
machadiana e na concepção de narrativa digressiva do livro. Como afirma Ruth Silviano
Brandão, a respeito de Machado de Assis, “o trajeto de sua escrita nem sempre é linear,
mas, ao contrário, constrói-se e desconstrói-se de forma oblíqua, como uma armadilha que
captura seus leitores e críticos, deixando-os abandonados de suas convicções e certezas
quanto à matéria mesma de sua leitura”.
151
Machado de Assis, dissimulado, por meio do movimento metonímico de sua escrita,
do deslizamento da cadeia significante, que se desloca e não se deixa apreender por
certezas absolutas e interpretações unívocas do sentido, libera a língua do poder pela
obliqüidade. E é pela obliqüidade que se chega à verdade, em Machado de Assis não à
verdade da hermenêutica que se busca, em contraposição à falsidade, através da explicação
148
BARTHES, Aula, p. 16.
149
BARTHES, Aula, p. 17.
150
BARTHES, Aula, p. 17.
151
SILVIANO BRANDÃO. A travessia da escrita em Machado de Assis, p. 56.
87
e, sobretudo, da interpretação do sentido (de um pensamento),
152
mas a uma verdade que se
anuncia e se dissimula nos deslocamentos do sentido, nas falhas e lacunas das palavras,
podendo, até mesmo, anunciar-se no não-sentido, no falso e no erro verdade que é,
portanto, semi-dita, e que, ao não se dizer toda, “nos fornece sua pista, onde ela nos
despista”.
153
Se tal verdade não se anuncia por completo é por ser tributária de uma linguagem na
qual a primazia do significante sobre o significado vai implicar um constante recuo da
significação e sua própria equivocidade estrutural.
154
Podemos pensar que a verdade, em
Machado, é tributária dessa linguagem, que é justamente com os seus equívocos que
Machado vai jogar, fazendo com que, por meio do humor, da ironia, das negativas e
deslocamentos, a verdade se deixe transparecer, revelando-se e ocultando-se.
A esse respeito, o defunto-autor, no último capítulo do livro, “Das Negativas”, expõe,
pelo viés da negativa, suas faltas. Faltas estas que denunciam a intransitividade de um
desejo sempre inconcluso, sempre inatingível, e a verdade deste que se oculta e se revela na
negação.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do
emplastro, não fui ministro, não fui califa, o conheci o casamento.
Verdade é que, ao lado destas faltas, coube-me a boa fortuna de não
comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D.
Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e
outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e
conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao
chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo,
que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: Não tive filhos,
não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
155
152
Cf. FERRATER MORA. Dicionário de filosofia, p. 331-333.
153
QUINET. A descoberta do inconsciente, p. 127.
154
Cf. QUINET. A descoberta do inconsciente, p. 127-128.
155
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 639.
88
Podemos perceber como a cadeia metonímica do desejo se desloca nesse capítulo,
marcando, assim, a (não)inscrição do desejo nessa cadeia como falta, furo, lacuna, até
chegar nesse pequeno saldo”, nessa derradeira negativa”, que é não ter filhos. A
Negativa” é também título de um texto capital de Freud sobre o assunto, no qual o autor
esclarece que
(...) o conteúdo de uma imagem ou idéia reprimida pode abrir caminho até
a consciência, com a condição de que seja negado. A negativa constitui
um modo de tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito, é
uma suspensão da repressão, embora não, naturalmente, uma aceitação do
que está reprimido. Podemos ver como, aqui, a função intelectual está
separada do processo afetivo.
156
Para o psicanalista, o inconsciente desconhece o não, e o modo pelo qual o material
recalcado ganha acesso à consciência, ou pelo qual o eu reconhece o inconsciente, seria por
meio de uma inversão do que é afirmado (desejado) inconscientemente, aparecendo como
negado na consciência.
Quanto à negativa machadiana, é difícil precisar, nesse momento derradeiro do texto,
se a voz que aí fala é a de Brás Cubas, a de Machado de Assis ou, talvez, a de ambos ao
mesmo tempo, pois autor e personagem se confundem, e a verdade de um se mistura com a
do outro. O fato é que, sabemos, Machado o teve filhos, e este é um tema que o
acompanha no decorrer de alguns de seus livros, como Memórias Póstumas e Memorial de
Aires. A busca de celebridade e, sobretudo, de imortalidade, é também um tema que
aparece com freqüência em sua obra, tanto na narrativa de certos romances, como
Memórias Póstumas, como em alguns de seus contos, como Um homem célebre”, para
ficarmos apenas nesses dois exemplos.
156
FREUD. A negativa, p. 295-296.
89
Metonímica, portanto, a verdade enlaçada ao desejo aparece e desaparece, sempre
incompleta, sempre semidita, no percurso das obras do autor, levando-nos, em certas
passagens, a confundir a voz autoral com as outras vozes por ela criadas. E é o desejo, para
a psicanálise, que produz uma certa amarração temporal, articulando, como foi dito, os
três tempos entre si, pois, segundo Freud, “o passado, o presente e o futuro são entrelaçados
pelo fio do desejo que os une”.
157
Segundo Lacan, o efeito de verdade, que se desvela no inconsciente e no sintoma,
exige do saber uma disciplina inflexível para seguir seu contorno, pois esse contorno vai no
sentido inverso ao de intuições muito cômodas para sua segurança”.
158
A verdade a que
estamos nos referindo é paradoxal, pois, ao se fazer dizer através das formações do
inconsciente, pode se camuflar e se anunciar amesmo no falso, na “mentira”, pois, como
afirma Machado de Assis, “já lá dizia o poeta que a verdade pode ser às vezes
inverossímil”.
159
Na trilha desse pensamento, e das referências que acima fizemos à psicanálise, talvez
possamos dizer que a verdade machadiana se aproxima da concepção da verdade
psicanalítica, pois esta se traduz mais por sua relação com o desejo, assim como com os
efeitos do simbólico, do que por definições universalizantes, mais por sua relação com o
inconsciente, que se estrutura como uma linguagem, do que com o senso comum, com o
conhecimento intuitivo, perceptivo e imaginário, pertencente ao campo da consciência.
As concepções de tempo em Machado de Assis inserem-se nesse modo esquivo e
oblíquo com o qual ele trabalha a escrita. O seu método desloca o fluxo temporal e a
linguagem, tornando o texto metonímico, como certos textos contemporâneos. O seu
157
FREUD. Escritores criativos e devaneio, p. 153.
158
LACAN. De um desígnio, p. 367.
159
MACHADO DE ASSIS. Memorial de Aires, p. 1126.
90
manejo com a linguagem é, portanto, indissociável da forma como o autor lida com o
tempo. Podemos perceber, desde o capítulo primeiro, “Óbito do autor”, como o escritor
começa a inverter a idéia de tempo, ao fazer com que Brás Cubas inicie a narrativa do livro
pela data de sua morte, e não pela de seu nascimento, contrariando, com essa inversão do
método, o uso comum.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha
morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas
considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu
não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem
a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais
galante e novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no
intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentauteuco.
160
A morte do protagonista, que se inscreve como o nascimento deste enquanto
narrador, está relacionada, portanto, à função da inversão do tempo em Memórias
póstumas. Essa a opção de Machado de Assis “pela morte, como ponto de partida”
161
do
livro é assinalada por Cardoso da seguinte forma:
Comedido como era Machado, não se deixaria seduzir por meros jogos de
palavras, e, pois, não será de presumir que o texto assim lhe tivesse saído
por simples amor à dança dos vocábulos. Há que interpretá-lo na sua exata
significação. Sabido que o adjetivo meramente descritivo se pospõe, em
princípio, ao substantivo, e que, ao contrário, se antepõe, quando tem por
fim realçar qualidades morais, de modo que o grupo nominal adquira
sentido menos concreto, logo se percebe que o autor defunto é autor que
morreu, ao passo que defunto autor não é apenas isso: é principalmente
autor que tem qualidades de defunto, que dele tira suas virtudes, que
participa da sua natureza e experiência, e a tal respeito não deixa dúvida o
que se segue – para quem a campa foi outro berço.
162
160
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
161
CARDOSO. Tempo e memória em Machado de Assis, p. 141.
162
CARDOSO. Tempo e memória em Machado de Assis, p. 141.
91
no que diz respeito à referência ao livro bíblico, feita pelo narrador, diríamos que
esta estabelece ironicamente um diferencial entre a escrita de Memórias póstumas e a do
Velho Testamento. Se a palavra religiosa é, para os crentes, a manifestação da verdade
divina, a escrita machadiana, cética e irônica, não propõe nenhuma verdade universal e, ao
contrário disso, talvez seja um desmascaramento de supostas verdades filosóficas e
religiosas. Por outro lado, a opção por um escrito “galante e novo”, sustentada pelo
defunto-autor, em oposição a “velhos modelos”, deixa implícito o caráter inovador da obra.
Cardoso assinala que Memórias póstumas provocou um certo embaraço na crítica de sua
época, que não conseguia definir com exatidão essa obra difusa.
Alguma razão tinha Capistrano de Abreu para perguntar se as Memórias
póstumas de Brás Cubas eram, na realidade, um romance. Com efeito, à
parte o tom insólito para o meio e para a época, releva notar que a intriga
romanesca é a tal ponto reduzida, os sucessos de tal modo carecem de
relevo e as peripécias da ão se mostram de tal forma pobres, que é
insignificante o choque de situações ou o encontro dos caracteres. Aliás,
nem outra poderia ser a aventura de uma narrativa que colhe, no tecido
ralo, figuras destituídas de mais denso conteúdo humano.
163
O próprio Machado de Assis, no “Prólogo da terceira edição”, responderá à
indagação de Capistrano de Abreu dizendo “que sim e que não, que era romance para uns e
não o era para outros”,
164
e a Macedo Soares, “que [lhe] recordava amigavelmente as
Viagens na Minha Terra”,
165
afirmará, nas palavras do narrador, que “trata-se de uma obra
difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de
Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo”.
166
Em seguida, o narrador
concluirá, marcando a diferença entre Memórias póstumas e os seus possíveis modelos:
163
CARDOSO. Tempo e memória em Machado de Assis, p. 139.
164
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
165
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
166
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
92
“Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que
está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva
outro vinho”.
167
O estilo “ébrio” do autor, que desloca a linearidade temporal, quebrando-a ou
diluindo-a, é também tratado no capítulo LXXIII, “O luncheon”, no qual o narrador usará
como metáfora suas refeições com Virgília, para fazer referência ao seu “método”:
O despropósito fez-me perder outro capítulo. Que melhoro era dizer as
cousas lisamente, sem todos esses solavancos! comparei o meu estilo
ao andar dos ébrios. Se a idéia vos parece indecorosa, direi que ele é o que
eram as minhas refeições com Virgília, na casinha da Gamboa, onde às
vezes fazíamos a nossa patuscada, o nosso luncheon. Vinho, fruta,
compotas. Comíamos, é verdade, mas era um comer virgulado de
palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses
apartes do coração, aliás o verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Às
vezes vinha o arrufo temperar o nímio adocicado da situação. Ela deixava-
me, refugiava-se num canto do canapé, ou ia para o interior ouvir
denguices de Dona Plácida. Cinco ou dez minutos depois, reatávamos a
palestra, como eu reato a narração, para desatá-la outra vez. Note-se que,
longe de termos horror ao método, era nosso costume convidá-lo, na
pessoa de D. Plácida, a sentar-se conosco à mesa; mas D. Plácida não
aceitava nunca.
168
Portanto, por um lado, externamente, o livro traz certos traços que impossibilitam o
seu enquadramento nos padrões estéticos de seu tempo (fundamentalmente nos padrões da
estética romântica), assim como nos dos seus modelos; por outro lado, internamente, a
própria idéia de tempo também passa por inversões, a começar, como indicamos, pelo
início do livro, ou seja, pelo momento no qual Brás Cubas começa sua fala situando-se a
partir da morte (da qual ele nasce como um defunto-autor), lugar onde ele pode desfrutar
das virtudes de sua condição.
167
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 512.
168
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 584-585.
93
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a
minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um
defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das
cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e
os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à
consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os
outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o
vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício
hediondo. Mas, na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade!
Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas,
despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o
que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem
inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não platéia. O olhar da
opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o
território da morte; não digo que ele não se estenda para cá, e nos o
examine e julgue; mas a nós é que o se nos do exame nem do
julgamento. Senhores vivos, não nada tão incomensurável como o
desdém dos finados.
169
A opinião alheia é o senso-comum (a doxa), e ficar livre do senso-comum é se
libertar das identificações imaginárias. Brás Cubas se situa contra o senso-comum e,
portanto, livre do olhar judicativo do outro, o que lhe dá, inclusive, maior liberdade tanto
para narrar com franqueza suas memórias, colocando-se com desdém com relação à
consciência alheia, quanto para trabalhar a forma da narrativa. É desse modo que se
estabelece, em Memórias Póstumas, a opção do autor por um livro “que fica assim com
todas as vantagens do método, sem a rigidez do método”,
170
produzindo, assim, um
afrouxamento das amarras da narrativa, o que possibilita ao autor imprimir-lhe uma
temporalidade flexível e romper com o arbitrário e o convencional.
Tal opção vincula-se diretamente à figura inconstante do narrador, que se deixa guiar
pela sugestão de suas lembranças, pela associação livre de idéias e palavras e pelas
possíveis reações do interlocutor, dando espontaneidade ao ato de escrita ao aproximá-lo do
dinamismo da oralidade. Desse modo, as rupturas, os deslocamentos e as digressões, a
169
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 545-546.
170
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 525.
94
dissolução do fluxo temporal e as intrusões do narrador apontam para um livro caótico e
sem rigor, quando não deixam transparecer que é justamente aí, nessa forma arbitrária, que,
contraditoriamente, estruturação formal. É, portanto, através do modo de enunciação do
narrador que se realiza a estruturação formal do livro e, paradoxalmente, a harmonia deste
está, justamente, na forma arbitrária com que é narrado e, portanto, escrito.
Por detrás do aspecto fragmentado e aparentemente caótico do livro uma
estruturação formal que se estabelece a partir da relação entre o narrador (sujeito da
enunciação) e seu enunciado. As rupturas e deslocamentos temporais provocados pelo
suposto autor imprimem, na superfície, uma dispersão entre certos capítulos, encobrindo
sua ordem interna; mas é o próprio ziguezague da “escrita ébria” de Brás Cubas que costura
o livro, dando-lhe forma. No entanto, uma das características dessa escrita é que ela
provoca uma certa perturbação ou deformação nos acontecimentos, assim como na
cronologia e na forma como o narrador machadiano dimensiona o passado.
A esse respeito Saraiva argumenta que,
Submetido ao imperativo que condiciona sua atualização, o tempo
passado revela fragilidade não apenas pela finitude que o distingue, mas
pela perturbação que o narrador empresta à cronologia e à dimensão dos
acontecimentos. Antecipações, retornos, elipses e iterações de fatos se
conjugam para instituir a deformação temporal, enquanto a retomada do
passado aponta para a impossibilidade de dimensioná-lo como um tempo
fechado; nele se incluem projeções futuras do protagonista (algumas ao
nível da realização: a posse de Virgília, a cadeira dos deputados; outras,
ao nível do sonho e desejo: o diálogo com o embrião, o cargo de
Ministro), assim como o efluir de lembranças, constituindo o fardo da
memória em relação a determinados episódios, como no reencontro de
Brás Cubas com Marcela. Paralelamente, o defunto–autor recusa-se a
acatar a diferença entre as duas ordens de temporalidade [o tempo da
história e o tempo do discurso] e, impondo seu “direito de cidadania”
sobre ambas, circula de uma para outra com a mesma volubilidade com
que traça a progressão dos episódios...
171
171
SARAIVA. O circuito das memórias em Machado de Assis, p. 49.
95
O método de uma “escrita bêbada”, introduzido por Brás Cubas, subverte o tempo da
narrativa realista muito embora a sua escrita não seja o tempo todo ruptura, ficando
também no tempo cronológico. O defunto-autor, circulando por entre ordens distintas de
temporalidade, produz uma “perturbação” na ordem do texto, rompendo assim com o
tempo cronológico (linear, das continuidades) e gramatical, soltando-o da armadura
sintática. Da eternidade, em um instante que faz o tempo apontar para o passado de suas
memórias e para um futuro por vir, o narrador machadiano, quebrando o fluxo do tempo,
perturba a temporalidade.
Tal perturbação pode ser observada na forma como o narrador faz deslocamentos na
temporalidade, como quando inicia a descrição de suas memórias partindo do óbito do
autor e não do seu nascimento e, na seqüência, no desenvolvimento do texto até o capítulo
IX, Transição”, momento em que, para soltar-lhe as amarras, anuncia-se uma nova
inversão da narrativa:
E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição
deste livro. Vejam: o meu delíro começou em presença de Virgília;
Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não juventude sem
meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chegamos nós,
sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram?
Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor:
nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método,
sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método,
sendo, como é, uma cousa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem
gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem
não se lhe da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como
a eloqüência, que uma genuína e vibrante, de uma arte natural e
feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20 de
outubro.
172
172
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 525.
96
A forma debochada por meio da qual o suposto autor reflete sobre a questão do
método revela, por um lado, “desprezo pelas convenções narrativas”,
173
e, por outro, a
tentativa de dar maior naturalidade à sua escrita, evitando elaborá-la com esforço e rigidez.
Aponta-se, desse modo, para uma prática lúdica com a linguagem.
A partir do capítulo X, “Naquele dia”, pode-se notar outra inversão da narrativa, pois
o texto, que começara com a morte do narrador, muda subitamente, passando a ser narrado
a partir do nascimento de Brás Cubas (“Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma
graciosa flor. Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota que se
gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de fidalgos”.
174
), embora
mantenha a sua característica fragmentária.
Tais “perturbações” na narrativa podem ser observadas em vários trechos das
Memórias, como na seguinte passagem, na qual o narrador faz uma digressão, afastando-se
do assunto que vinha desenvolvendo para recorrer à genealogia de sua família: “Mas, já que
falei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico”.
175
Ou nesta
outra, em que ele se recorda do momento de uma visita de Virgília, desloca-se desta
evocação para o presente e, em seguida, acrescenta um comentário sobre uma “teoria” que
será retomada no capítulo XXVII, “Virgília”: “Não durou muito a evocação; a realidade
dominou logo; o presente expeliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto
deste livro, a minha teoria das edições humanas”.
176
O leitor acaba se envolvendo na escrita machadiana, no seu traço que dissolve e
quebra o fluxo do tempo. Essa escrita, porém, foi criticada por autores como Sílvio
Romero, que observou, com precisão, o ritmo gago de Machado de Assis, mas que não foi
173
SARAIVA. O circuito das memórias em Machado de Assis, p. 90.
174
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 525.
175
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 515.
176
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 519.
97
capaz de reconhecer o pendor moderno da estética machadiana, observando no estilo do
escritor falta de originalidade e atribuindo-o a uma perturbação nos órgãos da palavra.
Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce, tanto
suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão
dum perpétuo tartamudear. Esse vezo, esse sestro, para muito
espírito subserviente tomado por uma coisa conscienciosamente
praticada, elevado a uma manifestação de graça e humor, é apenas,
repito, o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da
palavra.
177
Na contramão desse pensamento, o filósofo Gilles Deleuze, no texto “Gaguejou...”,
afirma que “a gagueira criadora é o que faz a língua crescer pelo meio, como a grama, o
que faz da língua um rizoma em vez de uma árvore, o que coloca a língua em perpétuo
desequilíbrio...”
178
. Há, portanto, escritores que conduzem a língua a uma certa tensão, ou a
um certo limite, e ao escavar o real dangua fazem de sua gagueira “a potência poética ou
lingüística por excelência”;
179
escritores que, como Machado de Assis, ao fazê-la gaguejar,
inventam
(...) um uso menor da língua maior na qual se expressam inteiramente;
eles minoram essa língua, como em música, onde o modo menor designa
combinações dinâmicas em perpétuo desequilíbrio. São grandes à força de
minorar: eles fazem a língua fugir, fazem-na deslizar numa linha de
feitiçaria e não param de desequilibrá-la, de fazê-la bifurcar e variar em
cada um de seus termos, segundo uma incessante modulação. Isso excede
as possibilidades da fala e atinge o poder da língua e mesmo da
linguagem. Equivale a dizer que um grande escritor sempre se encontra
como um estrangeiro na língua em que se exprime, mesmo quando é sua
língua natal.
180
177
ROMERO. O prosador e seu estilo, p. 122.
178
DELEUZE. Gaguejou..., p. 126.
179
DELEUZE. Gaguejou..., p. 126.
180
DELEUZE. Gaguejou..., p. 124.
98
Retornando à questão das digressões, pode-se observar que essas modulações e
bifurcações presentes no livro de Machado desequilibram não somente a linguagem, mas
também o fluxo temporal. Podemos citar, a título de exemplo, dentre outras, as passagens
comentadas a seguir: O capítulo IV é todo entrecortado pelo vai-e-vem do narrador, que
dialoga com o leitor. Inicialmente, Brás Cubas fala sobre sua “idéia fixa” (“A minha idéia,
depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa”
181
), em seguida, passa a discorrer sobre
a história e novamente retorna ao assunto inicial (“viva pois a história, a volúvel história
que para tudo; e, tornando à idéia fixa...
182
). No último parágrafo, fazendo um apelo ao
leitor, volta-se a um assunto de capítulos anteriores: o emplastro (“Vamos lá; retifique o seu
nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a história com seus caprichos de dama
elegante”
183
)
No capítulo LXX, “D. Plácida”, Brás Cubas, a partir de uma associação de idéias,
rompe com o desenvolvimento da narrativa do capítulo anterior (“Um grão de sandice”) e
volta a um ponto comentado anteriormente (à casinha da gamboa), com o seguinte chamado
ao leitor: “Voltemos à casinha. Não serias capaz de entrar hoje, curioso leitor;
envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por
outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito
para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas”.
184
o capítulo XXI, “O almocreve”, nosa impressão de ser um conto solto no livro,
pois provoca uma ruptura (“Vai então, empacou o jumento em que eu vinha montado...”
185
)
em relação ao capítulo anterior, “Bacharelo-me”, no qual falava sobre sua vida em Lisboa,
181
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 516.
182
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 516.
183
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 516.
184
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 582-583.
185
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 542.
99
assim como em relação ao posterior (“Volta ao Rio”): “Jumento de uma figa, cortaste-me o
fio às reflexões. Já agora não digo o que pensei dali até Lisboa, nem o que fiz em Lisboa,
na península e em outros lugares da Europa, da velha Europa, que nesse tempo parecia
remoçar”.
186
Em outra parte do texto, no capítulo VI, “Chimène, Qui l’eüt dit? Rodrigue, Qui l’eüt
cru?”, pode-se notar como Machado de Assis “perturba” a temporalidade nesta narrativa da
troca de olhares entre Brás e Virgília. Inicialmente, Brás Cubas, enfermo, Virgília surgir
na porta da alcova e se deter, durante um minuto, antes de entrar:
Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe
dizer nada ou de fazer nenhum gesto. Havia dous anos que nos não
víamos, e eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos
ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias
juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que
a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que
é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples
saudade.
187
O relato do narrador se desdobra por sobre a evocação que a imagem da mulher lhe
havia propiciado, momento em que a juventude de ambos veio à tona, rompendo com a
linearidade do tempo e tornando a lembrança, durante um breve instante, mais viva do que
a própria realidade.
um jogo, ou uma “trapaça”, com as possibilidades temporais da linguagem, que é
feito de forma magistral por Machado de Assis. Por esse viés, o escritor faz a língua
gaguejar e perturba a temporalidade com suas digressões, situando-a em um ponto de
deslocamento e cortes na medida em que esta não se fixa em um único instante e
186
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 543.
187
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 518.
100
fazendo com que o tempo abra, nas margens da palavra, outras margens, atando e
desatando em suas dobras o inapreensível: a literatura.
Brás Cubas, o narrador cuja nese encontra-se na morte, localiza-se na dobra de
duas vidas, mediadas pela morte, como nos dois lados de uma moeda, mostrando ora a face
do personagem ora a face do narrador e ocultando, em sua sombra, a voz que apenas em
certos instantes de fulgor, nas fendas da narrativa, enuncia-se: a do autor, Machado de
Assis.
CAPÍTULO III
O TEMPO DA ESCRITA DAS MEMÓRIAS
Há, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que
se perdem, outros que a imaginação inventa para suprir os
perdidos, e nem por isso a história morre.
101
Machado de Assis, Esaú e Jacó.
(...) atrás das águas outras águas.
Machado de Assis,“Uma Senhora”.
Memórias póstumas é um livro em que a questão da temporalidade es ligada à da
escrita das memórias. Assim, é possível afirmar que há, nesse texto, além de modalidades
distintas de tempo, como foi trabalhado no capítulo anterior, certas formas de articulação
entre tempo e memória.
Machado de Assis, em Memórias póstumas, produz um texto espiralado, cujos
contornos compõem-se e decompõem-se, de forma fragmentada, aos olhos do leitor, como
a própria teia da memória, que se faz e se desfaz, articula-se e desarticula-se, levada pela
trama das palavras. No entanto, não é preciso ir ao além-mundo para saber sobre o
funcionamento dessas Memórias; é preciso viajar na dura matéria do texto, no seu corpo, na
sua organização interna e externa, na disposição dos capítulos, na organização das frases e
palavras, no manejo do tempo da narrativa o trabalho com o eterno e o minuto –, pois,
afinal, como diz o autor, “a obra em si mesma é tudo”.
188
E essa obra tem como alicerce as
recordações do defunto-autor, dentre outras, as de suas aventuras e desventuras amorosas.
Retornando, portanto, à questão do eterno e do minuto, levantada nos capítulos
anteriores, perguntamo-nos a respeito de Brás Cubas e Virgília: o que sobrou dessas duas
vidas, para além de dois corações murchos? Não seriam apenas lembranças que restaram do
romance de Brás e Virgília? Eternas lembranças que não foram consumidas pelo vazio
labirinto da memória ou breves minutos cristalizados no tempo, que ganharam vida ao
serem narrados pelo personagem?
188
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 513.
102
Parece que Brás se mantém, de alguma forma, agarrado, preso a essas lembranças que
ele tenta recompor. É significativo que o narrador de Memórias póstumas se recuse a deixar
o mundo, tentando persuadir-se de que não estaria deixando nada; pois se assim ele age, a
ponto de ter de se escarnecer do mundo para diminuir-lhe o valor, é porque algo da vida ele
não queria perder. Suas memórias não seriam, portanto, uma tentativa de resgatar, mesmo
que do outro lado da vida, o perdido, de tentar recuperar o irrecuperável? É, pois, da
questão da perda que Machado de Assis também trata no livro; e da tentativa dissimulada,
de um personagem que gira em torno de um ponto vazio, de resgatar e refazer, via
memória, o sentido que não houve de sua existência.
Em tom cético e melancólico, Brás Cubas afirma que tanto a felicidade presente
quanto a recordação são ilusões; no entanto, esta última não recupera, para ele, a dor
sofrida, ou, pelo menos, a amortece: “Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie
da felicidade presente, nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o
espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas
duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer”.
189
A vida proporciona felicidade e dor, ao
passo que a recordação se insere num contexto de distanciamento do vivido, impedindo que
se recuperem, tais quais foram, as sensações passadas. Se tudo é ilusão, e se a felicidade
traz em si mesma a possibilidade da dor, melhor seria a ilusão das lembranças, por serem
menos dolorosas ou proporcionarem prazer. É, portanto, por meio de suas lembranças que o
narrador busca resgatar o passado e, talvez, reconstruir, na memória, o tempo que se foi.
Mas é provável que Brás Cubas também se coloque como um narrador dividido entre
as memórias, que são a possível via de acesso aos fragmentos perdidos de seu passado, e a
ilusão de que se pode conservar, eternamente, o passado “por inteiro”, levando-o consigo
189
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 518.
103
para o além-túmulo. Isso faz com que o narrador, pelo menos a princípio, não se conta
de que uma certa relação entre lembrança e esquecimento, pois o esquecimento é
condição da lembrança e esta daquele e, por isso mesmo, em todo processo de memória há,
sempre, alguma perda.
A Memória é descrita por Hesíodo, na Teogonia,
190
como a quinta esposa de Zeus,
deusa titã irmã de Crono e Okeanós. Segundo estudo de Jaa Torrano,
No catálogo das esposas de Zeus, Memória está entre Deméter e Leto.
Como Deméter, Memória assegura a circulação das forças entre o
domínio do Invisível e o do Visível, que Memória é que, em cada
mo(vi)mento de cada ente, decide entre o ocultamento do Oblívio e a luz
da Presença. Como Leto, mãe dos mais belos descendentes do Céu (v.
919), tem nos seus filhos a mais perfeita forma explicitadora da
luminosidade e sobranceria do Céu ancestral, a uranida Memória tem na
mais forte e reveladora luminosidade o domínio próprio de sua função.
191
A função da Memória, de acordo com Hesíodo, consiste tanto em tornar presente o
passado quanto em promover o Esquecimento ao decidir entre o “Oblívio e a luz da
Presença”–, revelando-nos, assim, sua natureza aparentemente paradoxal, pois a deusa
Memória também é Esquecimento. E é a partir do estabelecimento de tal relação, “em torno
desse par de opostos memória-esquecimento (Mnemosyne-Lethe) que se estrutura a palavra
poética. Pela palavra do poeta eterniza-se o feito guerreiro, pela ausência da palavra
sobrevêm o silêncio e o esquecimento”.
192
É pelo esquecimento do tempo atual que o aedo
(poeta-profeta da Grécia Arcaica) ganha passagem ao tempo Aion dos deuses.
Memória preside, portanto, a função poética, e suas filhas, as Musas, dão ao aedo o
poder da vidência e a função daquele que interpreta Mnemosyne. “Memória é a grande
190
Cf. HESÍODO. Teogonia, a origem dos Deuses.
191
TORRANO. O Mundo como função de Musas, p. 69-70.
192
GARCIA-ROZA. Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise, p. 31-32.
104
percepção que se deleita com a voz uníssona das Musas a dizerem os seres presentes,
futuros e pretéritos”,
193
e, ao manifestar-se pelo dom das Musas, na palavra cantada do
aedo, possui o saber sobre “tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será”.
194
Sendo assim,
para a percepção mítica, é pela voz do poeta que passado e futuro, enquanto ausência,
tornam-se presença ao serem recolhidos do Esquecimento pela Memória, fazendo-se
presentes pelas vozes das Musas, saindo da Ocultação e mostrando-se à luz como re-
velação.
O aedo, por meio da proteção de Mnemosyne e por intermédio das Musas, possui o
dom da poesia, evidenciando, dessa forma, a partir da genealogia da deusa, a relação entre
Memória e linguagem. A linguagem (Musas) é filha da Memória e força de nomear que tem
o Poder de trazer à Presença o não-presente, as coisas passadas ou futuras: “É na linguagem
que se o ser-aparição e também o simulacro, as mentiras (v.27). É na linguagem que
impera a aparição (alethéa) – e também o esquecimento (lesmosyne v.55)”.
195
Mynemosyne, para a mitologia, não é, portanto, Memória apenas do passado, mas
também do futuro, pois o seu olhar se lança, do presente, para trás, permitindo ver o que
passou, e se projeta para frente, possibilitando ver e interpretar, através da figura do poeta
arcaico, o futuro. No entanto, segundo Garcia-Roza,
Com o surgimento da poesia laica e da filosofia, a memória perde seu
caráter sagrado. A memória do aedo da Grécia arcaica e a memória do
filósofo não são as mesmas, tanto pelas suas características como pela sua
função. A primeira é uma memória marcada pela religiosidade e pelo
procedimento ritual, não é desvinculável de uma organização institucional
e mental que caracterizava o grego dos tempos arcaicos. Sua função é a
constituição de uma ordem do real e, ao mesmo tempo, de purificação e
de salvação. A memória do filósofo está ligada ao conhecimento, visa
193
TORRANO. O Mundo como função de Musas, p. 70.
194
VERNANT. Mito e pensamento entre os Gregos, p. 73.
195
TORRANO. O Mundo como função de Musas, p. 29.
105
tanto a conservação de um passado histórico como a apreensão de
essências inteligíveis.
196
Na passagem do pensamento mítico para o pensamento filosófico a palavra é
dessacralizada, ao ser reconhecido o seu caráter artificial. Surge uma mnemotécnica laica,
ligada à evocação e à conservação do passado, e uma nova forma de pensar e conceber o
tempo, entendido como cronológico, linear e quantificável. Esse novo modo de
entendimento do real vai estar na base de novas concepções sobre a memória e o tempo. No
entanto, a respeito do processo da memória, Castello Branco salienta, em seu livro A
traição de Penélope, que este
(...) não deve ser entendido apenas como preenchimento de lacunas,
recomposição de uma imagem passada, como querem as tradicionais
concepções acerca da memória e da linearidade do tempo, mas também
enquanto a própria lacuna, enquanto decomposição, rasura da imagem.
Considerar isso é admitir que o passado não se conserva inteiro, como um
tesouro, nos receptáculos da memória, mas que se constrói a partir de
faltas, de ausências; é admitir, portanto, que o gesto de se debruçar sobre
o que já se foi implica um gesto de edificar o que ainda não é, o que virá a
ser.
197
De acordo com a autora , pois, dois gestos que são fundamentais para que se
compreenda a memória: o de se debruçar sobre o passado e de trazer o presente (que
caminha “em direção ao que não é); e aquele próprio da representação verbal ou da
linguagem, que faz com que as imagens se ofereçam ao pensamento que as recorda, e
caminha em direção ao futuro, “ao que ainda não é.
Esses dois gestos ou movimentos seriam condição para compreender o processo da
memória sem cair na ilusão ingênua da possibilidade de uma captura do real de forma
completa, como se o passado do sujeito fosse conservado integralmente e pudesse ser
196
GARCIA-ROZA. Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise, p. 34.
197
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 26.
106
rememorado como um fóssil vivo que ressurge, no presente, tal qual fora antes. Acreditar
nessa possibilidade é desconhecer que o tempo não tem exatamente a linearidade que lhe é
atribuída, uma vez que se constrói de forma descontínua, por meio de saltos, rupturas e
deslocamentos. E é em meio às fendas e brechas desses deslocamentos temporais que se
constrói o processo da memória, como que por entre as malhas de um tecido. Do que se
perde, se consome ou se apaga com a passagem do tempo, ficam restos, minutos como
fragmentos da memória.
O gesto de se voltar para o passado em busca do que “já não é” está presente no
texto machadiano, por exemplo, quando o narrador olha para trás e reencontra as imagens
de seu tempo de estudante, e, especificamente, quando ele recorda do mestre que, à força da
palmatória, lhe “incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele
sabia...”,
198
como está descrito na citação seguinte:
Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco,
capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar,
grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E
fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido
numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a sua
mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e
ninguém te chorou, salvo um preto velho, – ninguém, nem eu, que te devo
os rudimentos da escrita.
199
Mas o processo da memória, visto sob um outro ângulo, pode não somente ser
entendido como um retorno ao passado, mas também como algo que se constrói em direção
ao futuro. E podemos assim depreender como, em Memórias póstumas, um trabalho de
restauração do passado pela memória, apontando sempre para o futuro, se faz presente.
Vejamos a seguinte passagem:
198
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 532.
199
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 532.
107
Mas é isso mesmo que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar
o passado, para poder tocar a instabilidade das nossas impressões e a
vaidade dos nossos afetos. Deixa dizer Pascal que o homem é um
caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da
vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até
a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
200
Nessa passagem, o narrador se refere ao passado como algo possível de ser tocado e
restaurado e, dessa forma, corrigido e modificado. O passado é, portanto, restaurado,
modificado e projetado adiante; sendo assim, sucessivamente, relançado ao futuro num
processo constante, se esgotando definitivamente com o fim da vida. Mas, no trecho
citado, o autor ainda insiste numa concepção de tempo linear, em que cada etapa (cada
estação) da vida vai-se sucedendo à outra. De qualquer forma, ele avança na idéia de um
passado que não é mais estanque e fechado, uma vez que se modifica com o tempo, pois
o ato de restauração nunca vai restituir ao original sua autenticidade anterior – algo se perde
e também se acrescenta nesse processo.
A ação do narrador sobre a temporalidade de suas memórias com seu movimento
“ébrio” que guina de um canto a outro, numa forma de oscilação que ora omite fatos, ora
deixa-os subentendidos, ora repete-os aponta para um passado que não é estático e
mostra-nos que é possível tocá-lo, modificá-lo. No passado conjugam-se outras
temporalidades, e se este não é fechado é porque o narrador nele produz fendas e aberturas,
dando-lhe dinâmica e injetando-lhe vida, por onde um recorte de lembranças, sensações e
percepções podem entrar e desaparecer, para, posteriormente, serem ou não retomadas em
outro momento do texto. São produzidos, assim, furos na narrativa, que não permitem que o
texto se feche em conclusões definitivas.
200
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 549.
108
No entanto, em Memórias póstumas, Machado de Assis aproxima-se também da idéia
de memória como uma volta ao passado, lugar onde se encontram conservadas,
originalmente, as lembranças. Podemos assinalar esse fato na seguinte passagem, em que
Brás Cubas, ao retornar de seu longo período na Europa ao Rio de Janeiro, descreve as
seguintes imagens de sua infância:
Vim. Não nego que, ao avistar a cidade natal, tive uma sensação nova.
Não era efeito da minha pátria política; era-o do lugar da infância, a rua, a
torre, o chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as
cousas e cenas da meninice, buriladas na memória. Nada menos que uma
renascença. O espírito, como um pássaro, não se lhe deu da corrente dos
anos, arrepiou vôo na direção da fonte original, e foi beber água fresca e
pura, ainda não mesclada do enxurro da vida.
201
No final da citação, o narrador afirma que seu espírito voou em direção a uma fonte
original, lugar em que estaria seu passado preservado e, portanto, não misturado ao
“enxurro da vida”. Essa idéia nos faz pensar em um pretérito remoto, não mesclado a um
passado mais recente e que se conservou, dessa forma, intacto. No início da frase, o
narrador diz que, ao avistar sua cidade natal, teve “uma sensação nova”. As cenas que lhe
remeteram à infância (“...a rua, a torre, o chafariz da esquina”, etc.), como ele mesmo
afirma, acentuaram a distância entre a cidade inscrita em sua memória e aquela a que ele
agora retornava; as lembranças antigas lhe trouxeram a sensação do novo, de que algo
(re)nasceu, tendo, portanto, se transformado com o tempo.
Gostaríamos de pontuar, também, o fato de o narrador escolher o termo burilar
202
quando se refere à memória, termo este que nos remete a algo que fica inscrito e gravado.
201
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 544.
202
No Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, encontramos, dentre outras, as seguintes acepções para
o termo “buril. [Do it. ant. burino, atr. do arc. burim.] S. m. 1. Instrumento de gravador, usado na execução de
gravuras em metal e em madeira de topo, constituído de barra de aço especialmente temperado, de seção
quadrada, triangular ou romboidal, com uma extremidade biselada, losângica, e a outra metida em cabo
achatado. 2. Instrumento semelhante para lavrar pedra”. E para “burilar. V. t.d. 1. Gravar, lavrar ou abrir com
buril. 2. Apurar, retocar, esmerar; aprimorar, aperfeiçoar: burilar um poema; burilar a linguagem”. (p.294)
109
Daí ele se referir a uma memória “pura”, não mesclada ao enxurro da vida, gravada como
em uma pedra e, portanto, resistente à ação do tempo. No entanto, essa concepção de
memória segundo a qual o vivido pode ser conservado, burilado, sem nenhuma
modificação, é um ideal que não corresponde ao que se passa de fato com o processo da
memória.
A memória, por um lado, é seletiva, e o conserva por inteiro os fatos passados; por
outro, ela se aproxima mais de uma escrita que pode ser rasurada, apagada e, enfim,
reescrita. No tempo de reescritura, ou de construção pela memória, o signo vai-se fundar a
partir de um vazio, de uma lacuna ou de uma falta. sempre, portanto, uma defasagem
entre o que foi vivido e o que foi construído pela memória. A esse respeito, Castello Branco
afirma que:
Não há como fazer coincidir o chamado tempo do vivido com o tempo do
revivido, com o tempo construído pela memória e, portanto, pela
linguagem: qualquer gesto de rememoração se efetua sempre a partir de
um fosso temporal intransponível. É precisamente na linguagem que
pretende descrever, criar a continuidade almejada, que essa continuidade
se rompe: o signo se erige sempre a partir do que já não é.
203
uma lacuna entre o tempo vivido e o tempo revivido da memória, pois a
linguagem não recupera os fatos passados (vividos) tais quais foram uma
descontinuidade temporal intransponível entre o acontecimento que se passou e o signo
lingüístico, utilizado para descrevê-lo. Sendo assim, e na medida em que algo se perde nas
rupturas temporais, a memória não pode ser algo estanque, que conserva tudo tal qual foi,
pois ela realiza um trabalho de construção do tempo, que pode ser feito levando-se em
consideração a linguagem.
203
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 29.
110
A questão da perda está, pois, implícita no processo da memória: se recorda o
que foi esquecido ou perdido e é, de alguma forma, “reencontrado”. Mas, sendo a memória
também lugar do esquecimento, muito do que se passou se perde para sempre. E, como
veremos, o que passa pelo crivo da memória sofre alterações, sendo, portanto, muitas vezes,
impossível recuperar ao da letra o que se perdeu, uma vez que um trabalho que faz
com que o material que havia sido esquecido sofra modificações ao ser recordado.
Pode-se notar, dessa forma, como mesmo a memória é marcada pela sombra, pelo
esquecimento, ou como esta se constitui ou se edifica a partir do esquecimento, mesmo
sabendo que, como afirma Freud, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica
possa realmente ser vítima de destruição total”.
204
A questão da articulação da memória
com a linguagem e de sua relação com o esquecimento também será desenvolvida pela
teoria psicanalítica, uma vez que, para a psicanálise, o tecido da memória é constituído de
forma lacunar por lapsos, atos falhos e lacunas de esquecimento.
No artigo “O mecanismo psíquico do esquecimento” (1898), Freud estabelece a
relação entre o recalcamento e “o fracasso de uma recordação” ou a “perda da memória” e
comenta “a função da memória”. Cito-o:
Portanto, entre os vários fatores que contribuem para o fracasso de uma
recordação ou para uma perda de memória, não se deve menosprezar o
papel desempenhado pelo recalcamento, e isso pode ser demonstrado o
nos neuróticos, mas também (de modo qualitativamente idêntico) nas
pessoas normais. Pode-se afirmar, muito genericamente, que a facilidade
(e em última instância, também a fidelidade) com que dada impressão é
despertada na memória depende não da constituição psíquica do
indivíduo, da força da impressão quando recente, do interesse voltado
para ela na ocasião, da constelação psíquica no momento atual, do
interesse agora voltado para sua emergência, das ligações para as quais a
impressão foi arrastada, etc. não de coisas como essas, mas também
da atitude favorável ou desfavorável de um dado fator psíquico que se
204
FREUD. Construções em análise, p. 294.
111
recusa a reproduzir qualquer coisa que possa liberar desprazer. Assim, a
função da memória, que gostamos de encarar como um arquivo aberto a
qualquer um que sinta curiosidade, fica deste modo sujeita a restrições por
uma tendência da vontade, exatamente como qualquer parte de nossa
atividade dirigida para o mundo externo.
205
Há um conjunto de fatores que podem contribuir ou não para que dada lembrança (ou
impressão) possa ter acesso à consciência; no entanto, a questão do prazer/desprazer é de
grande relevância nesse processo, pois as lembranças que causam desprazer, estando
submetidas ao processo de recalcamento, muitas vezes ou não m acesso à memória ou,
para ganharem esse acesso, passam por um processo de “distorção”, que foi descrito por
Freud como condensação e/ou deslocamento, e assim conseguem romper a barreira do
recalque e chegar à consciência.
Os mecanismos de condensação e deslocamento estariam, para a psicanálise,
vinculados aos processos inconscientes que se manifestam, por exemplo, nos sonhos e nos
sintomas neuróticos e psicóticos. O psicanalista Jacques Lacan apontou como Freud,
utilizando-se da ciência de sua época, estava descrevendo e assimilando os mecanismos
de funcionamento dos processos inconscientes ao funcionamento de certos aspectos da
linguagem. Lacan, dialogando com a lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure e de
Roman Jakobson, mostra, a partir da experiência analítica, como o que Freud chama de
condensação e de deslocamento corresponde, respectivamente, à metáfora e à metonímia.
206
Se Brás Cubas havia afirmado que as lembranças são menos dolorosas do que a
realidade do presente, isso se deve não ao fato de que não haja lembranças de
acontecimentos marcados por experiências dolorosas, mas sim ao fato de que o acesso
dessas à consciência geralmente se faz de modo indireto e distorcido, ao passar pelos
205
FREUD. O mecanismo psíquico do esquecimento, p. 264.
206
Cf. LACAN, Jacques. O Seminário – livro 3: As psicoses.
112
processos descritos acima. A memória tem, portanto, suas restrições; não é um “arquivo
aberto”, como se pode pretender achar, mas, sim, um arquivo incompleto, lacunar e com
faltas.
O que é rememorado do passado muitas vezes não corresponde ao que na realidade
aconteceu, pois um trabalho psíquico, inconsciente, realizado pelo sujeito, que faz com
que parte desse material seja esquecida, enquanto outra parte passa por modificações ao ser
“recordada”. A esse respeito, mas tratando especificamente das lembranças infantis, Freud
escreveu em texto de 1899:
(...) na maioria das cenas infantis importantes e, em outros aspectos,
incontestáveis, o sujeito se vê na recordação como criança, sabedor de que
essa criança é ele mesmo; no entanto, essa criança tal como a veria um
observador externo à cena. (...) Ora, é evidente que tal quadro não pode
ser uma repetição exata da impressão originalmente recebida, pois, na
época, o sujeito estava em meio à situação e não prestava atenção a si
mesmo, mas sim ao mundo externo.
207
O olhar da memória às vezes é enganador, pois as cenas ou imagens que se perderam
no esquecimento podem ser recompostas pelo seu trabalho, dando a impressão de que são
reais, quando são, na verdade, uma montagem, ou uma ficção, que o corresponde
exatamente ao que se passou na época. No entanto, tais cenas passam a fazer parte da
realidade psíquica da pessoa que se em uma determinada circunstância e acredita na
lembrança (ficcional) como algo que ocorreu na realidade.
No mesmo artigo citado anteriormente Freud afirma que
Dentre várias das lembranças infantis de experiências importantes, todas
com nitidez e clareza similares, algumas que, quando verificadas (por
exemplo, pelas recordações dos adultos), revelam ter sido falsificadas.
207
FREUD. Lembranças encobridoras, p. 286.
113
Não que sejam completas invenções; são falsas no sentido de terem
transposto um acontecimento para um lugar onde ele não ocorreu (...), ou
de terem fundido duas pessoas numa só, ou substituído pela outra, ou
então as cenas como um todo dão sinal de serem combinações de duas
experiências separadas. A simples imprecisão da recordação não
desempenha aqui um papel considerável, em vista do alto grau de
intensidade sensorial de que as imagens são dotadas e da eficiência da
memória nos jovens; a investigação detalhada mostra, antes, que esses
falseamentos das lembranças são tendenciosos isto é, que servem aos
objetivos do recalque e deslocamento de impressões abjetáveis ou
desagradáveis.
208
O termo falsificar, segundo o dicionário Houaiss, significa “dar aparência enganadora
com o fim de fraudar, de contrafazer alterando o valor, de fazer passar por verdadeiro o que
não é”,
209
ou seja, o sujeito, inconscientemente, engana a si mesmo, adulterando certas
lembranças e evitando, dessa forma, encontrar-se com algo que produza repulsa ou
desprazer. Mas Freud vai mais além com relação às lembranças infantis ao afirmar que:
Com efeito, pode-se questionar se temos mesmo alguma lembrança
proveniente de nossa infância: as lembranças relativas à infância talvez
sejam tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram
nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como aparecem nos
períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses
períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram, como as
pessoas costumam dizer; elas foram formadas nessa época.
210
Embora, nesse momento, Freud esteja se referindo às lembranças infantis, pensamos
que esse trabalho pode ocorrer também no caso de épocas menos remotas de nossas vidas,
ou seja, certas cenas são (re)construídas, pelo sujeito, no lugar de um acontecimento que
produz desprazer, ao passo que o acontecimento “original” se perde nos labirintos da
memória, na noite do esquecimento.
208
FREUD. Lembranças encobridoras, p. 286.
209
HOUAISS et alli. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1304.
210
FREUD. Lembranças encobridoras, p. 286-287.
114
Não são muitas as passagens de Memórias póstumas nas quais o narrador se refere à
sua infância. cerca de quatro capítulos em que esse tema é tratado com maior destaque,
começando pelo capítulo X, “Naquele dia”, no qual o protagonista narra o dia de seu
nascimento; passando pelo capítulo XI, “O menino é pai do homem”, em que relata suas
diabruras de menino; pelo capítulo XII, “Um episódio de 1814”, no qual começa
comentando uma notícia sobre a primeira queda de Napoleão e, em seguida, fala sobre um
aperto no qual colocara o Dr. Vilaça; e, por fim, chegando ao capítulo XIII, “Um salto”, no
qual Brás Cubas relata sua época de escola e o convívio com o mestre Ludgero Barata e o
colega Quincas Borba.
O certo é que Brás Cubas escreve suas memórias e as recria, como ele próprio afirma
no capítulo X, quando comenta a respeito de seu nascimento: “Digo essas coisas por alto,
segundo as ouvi falar anos depois; ignoro a mor parte dos pormenores daquele famoso
dia”,
211
revelando, assim, que parte do que ele narra não diz respeito propriamente às suas
recordações, mas ao que ele ouviu de outras pessoas e contou à sua maneira. Ou seja, nesse
ponto, ele salienta que algo do passado que lhe é impossível resgatar; e, também, que
parte de suas lembrançaspodem ser (re)construídas a partir do que ouviu da memória do
outro, o que nos faz pensar que não se pode exigir, desse processo, exatidão.
As lembranças contadas por Brás Cubas a respeito de sua infância referem-se
sobretudo a diabruras praticadas pelo “menino diabo”. Ele parece estar sempre, de algum
modo, obtendo prazer com o sofrimento do outro:
Desde os cinco anos merecia eu a alcunha de “menino diabo”; e
verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia
quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce
211
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 525.
115
de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um
punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à
minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha
apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de
todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à
guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,
fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, algumas
vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um
– “ai nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!”(...)
212
O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Euzébia! Bradei eu correndo pela
chácara.
Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a
todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos,
segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno.
Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado deveras com a
indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso, sacudiu-
me o nariz a rir: Ah! Brejeiro! Ah! Brejeiro!
213
Quando Brás Cubas passa a narrar as recordações da escola, tempo de amarguras, dá-
se um salto temporal (“Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a
enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer
diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos”
214
), mas,
mesmo assim, o narrador não salta por cima da palmatória do mestre Ludgero Barata, que
lhe possibilitou o acesso às letras:
Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições
árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada
a palmatória, e ainda assim ... Ó palmatória, terror dos meus dias
pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre,
ossudo e calvo, me incutiu no rebro o alfabeto, a prosódia, a
sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos
modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha
alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele
espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias
tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e
compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que
212
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 526-527.
213
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 531.
214
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 531.
116
é das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo,
nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala...
215
Se esse era um tempo de amarguras e palmatória, dele também Brás Cubas não se
esquece totalmente, e mostra que tirou algum proveito das lições dessa época, pois escolhe
não simplesmente narrar suas memórias, mas escrevê-las e recriá-las, mostrando, com isso,
não ter abandonado as lições de criança nem mesmo após a morte.
A questão da relação memória/esquecimento será tema, também, de um outro artigo
de Freud: Construções em análise” (1937). Nesse texto, o autor situa o trabalho de análise
como tendo em vista
induzir o paciente a abandonar as repressões (...) próprias a seu primitivo
desenvolvimento e a substituí-las por reações de um tipo que corresponda
a uma condição psiquicamente madura. Com esse intuito em vista, ele
deve ser levado a recordar certas experiências e os impulsos afetivos por
elas invocados, os quais, presentemente, ele esqueceu.
216
De acordo com o autor, o material esquecido pelo paciente surgirá, de forma
fragmentada, em seus sintomas e sonhos, assim como na relação transferencial com o
analista; no entanto, parte desse material jamais se recuperado, cabendo ao analista
“completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais
corretamente, construí-lo”.
217
O trabalho analítico de construção ou reconstrução das lembranças perdidas será
comparado por Freud ao do arqueólogo, pois
assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces
que permanecem de pé, determina o número e a posição das colunas pelas
215
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 531-532.
216
FREUD. Construções em análise, p. 291-292.
217
FREUD. Construções em análise, p. 293.
117
depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir
dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede
quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das
associações e do comportamento do sujeito da análise.
218
Dessa forma, nesse momento da teoria freudiana, o processo analítico operaria, por
meio das associações do paciente e a partir dos seus traços de memória, na reconstrução dos
fragmentos de suas lembranças perdidas. Ainda de acordo com essa concepção, a memória
se inscreve como uma marca, um traço e, também, como uma lacuna, um vazio onde algo
da experiência se perde.
Esse tema é também objeto de estudo do livro A traição de Penélope, de Lucia
Castello Branco, no qual a autora percorre os labirintos da memória ou da desmemória
feminina (que não implica necessariamente o gênero feminino; mas, uma determinada
posição do sujeito que escreve com relação à linguagem), procurando assinalar, dentre
outros fatores, a dimensão temporal da memória.
No capítulo I, “Um certo olhar”, Castello Branco enfoca a dimensão do olhar e da
memória, que, segundo ela, “caminham lado a lado: afinal, o que é o gesto de memória
senão um olhar que se volta para o passado, na tentativa de resgatá-lo? O que resta do
sujeito da memória senão imagens, trapos do passado que o olho olha e passar em
direção ao que há de vir?”.
219
Em seguida, a autora assinala a relação entre o olhar, a morte e a memória:
Diz-se também que o olhar e a morte mantêm estreitas relações. Mortífero
e petrificador é o olhar da Medusa, mortífero e desvanecedor é o olhar de
Orfeu que, em seu desespero, olha para trás. Mortíferos, certamente, são
os riscos do olhar da memória: petrificar o passado e, portanto, possuir
218
FREUD. Construções em análise, p .293.
219
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 15.
118
dele uma imagem deformada, paralisada, ou perder para sempre, no gesto
de olhar para trás.
220
Voltando a Machado de Assis, podemos perceber como, em Memórias póstumas, é,
sobretudo, pelo olhar que a perda se transmite. No momento em que o narrador presencia
os instantes finais do Viegas, pode-se acompanhar como olhar, morte e memória se
articulam, deixando um fino rastro de uma vida consumida pelo tempo, em que nada mais
se pode recuperar:
Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem
migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos
lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o
lençol desenhava-se a estrutura óssea do corpo, pontiagudo em dous
lugares, nos joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia
apenas a caveira de um rosto sem expressão: uma carapuça de algodão
branco cobria-lhe o crânio rapado pelo tempo.
221
O olhar do Viegas conjuga a presença tanto da morte quanto da memória. A
“lamparina da madrugada”, tomada como um emblema da memória, coloca, em um
tempo, a presença da morte do escuro, do obscuro e da chama da luminosidade da
memória. É como se os olhos irradiassem sua derradeira luz, como se fosse o seu canto do
cisne, antes de se apagarem por completo. Apagam-se os olhos e, com eles, a lamparina da
memória, faz-se noite no branco algodão dos cabelos, nada se pode contra o tempo
cronológico, que conduz ao fim, à morte.
Em várias outras passagens do livro pode-se também notar que a questão do olhar põe
em cena algo da memória, como no momento em que o narrador se refere ao professor
Ludgero Barata: “Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco,
220
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 15.
221
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 598.
119
capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver
uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição”.
222
Ou quando Brás Cubas o olhar de
Marcela, que o faz lembrar de uma cena das Mil e Uma Noites:
E aí, como um escárnio, vi o olhar de Marcela, aquele olhar que pouco
antes me dera uma sombra de desconfiança, o qual chispava de cima de
um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e o meu. Pobre
namorado das Mil e Uma Noites! Vi-te ali mesmo correr atrás da mulher
do vizir, ao longo da galeria, ela a acenar-te com a posse, e tu a correr, a
correr, a a alameda comprida, donde saíste à rua, onde todos os
correeiros te apuparam e desancaram.
223
Ou, dentre várias outras passagens, quando da evocação de Brás da ex-amante Virgília, que
fica de à porta da alcova, e os seus olhares se fitam. Brás Cubas tece o seguinte
comentário, a respeito do ocorrido:
Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a
olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dous
grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte
anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e
saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados.
224
Nessa passagem, num primeiro momento, os olhares do casal se fundem, e as
palavras diluem-se perdidas no instante; em seguida, Brás Cubas reflete sobre um tempo
implacável e paradoxal, que devasta e sacia, e sobre o seu efeito nas suas vidas, tornando a
experiência destituída de significado e apagando o desejo de ambos. De acordo com
Cardoso, o que significação ao romance de Brás e Virgília é “o mesmo tempo que o
222
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 532.
223
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 538-539.
224
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 519.
120
tornou oportuno [e que] se encarregou de dissolver o vínculo que ele próprio havia atado,
ligando transitoriamente as duas criaturas”.
225
O olhar de Virgília denota a Brás que algo havia se perdido, pois estava e não mais
estava ali a mesma pessoa com a qual ele vivera um amor ilegítimo e secreto; sua voz,
outrora de amante, transmutara-se em de amiga; e se não falaram um do outro foi,
provavelmente, porque a chama da paixão já havia entre eles se apagado.
Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce.
Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro; podíamos
falar um do outro, sem perigo. Virgília deu-me longas notícias de fora,
narrando-as com graça, com um certo travo delíngua, que era o sal da
palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em mofar
dele, em persuadir-me que não deixava nada”.
226
algo em comum entre as passagens citadas anteriormente, algo que aponta para a
questão que viemos trabalhando, ou seja, a relação entre memória e esquecimento. Se a
memória é muitas vezes situada por Brás Cubas através do olhar, é esse mesmo olhar que
transmite algo da ordem do esquecimento ou da perda; isso porque há certas cenas, imagens
e palavras que sempre escapam às lembranças, uma vez que estas são fragmentos
incompletos do passado, ou até mesmo, construções inacabadas da memória.
Recordar-se de uma cena ou de um acontecimento não implica ser exato quanto ao
que se passou, como no exemplo de Brás Cubas com relação ao professor, às amantes ou a
si mesmo, pois, por um lado, nem tudo pode ser descrito, de uma só vez, pela linguagem; e,
por outro, da linguagem fazem parte mecanismos como a condensação e o deslocamento
(metáfora e metonímia) que servem para driblar a barreira do recalque, fazendo com que o
que é recordado não seja fiel ao esquecido. Como vimos, com relação à memória, algo da
225
CARDOSO. Tempo e memória em Machado de Assis, p. 154.
226
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 519.
121
ordem do esquecimento vai estar também operando e, com isso, torna-se impossível
conservar ou resgatar o passado por inteiro, pois o tempo que se perdeu em seus labirintos,
se volta, nunca volta exatamente tal qual fora.
3.1 – REINVENTAR AS VELHAS FOLHAS DA HISTÓRIA
Seguindo o raciocínio anteriormente descrito, podemos afirmar que o que
irremediavelmente se perde será, entretanto, condição para que algo se construa em seu
lugar. O “trabalho da memória” pode ser entendido, assim, “como uma operação
transformadora, tradutora, criadora, portanto, em que o original, reduzido a apenas um
traço no momento de sua inscrição, será menos resgatado que reinventado, menos ponto de
chegada que ponto de partida para a construção de uma outra estória”.
227
Mesmo que Brás Cubas busque exprimir todo o seu passado, o tempo dos
acontecimentos, por mais que ele queira, nunca se conserva tal qual fora, pois existe uma
dessimetria entre o que se diz e o que de fato se passou – há algo que se torna irrecuperável
pela memória e, em seu lugar, constrói-se uma outra coisa. Por mais que o narrador procure
relatar todas as suas lembranças, tocá-las por inteiro, uma lacuna da memória que não é
preenchida, muito embora o fio do traço original possa ser, em um outro momento,
traduzido.
Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, – tu
que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de
hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero
então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele
tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?
228
227
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 39.
228
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 549.
122
O próprio narrador, em outro momento da obra, utilizar-se-á do termo recompor o
pretérito”, ao referir-se às cartas antigas. O passado escrito nas cartas, recordado ao passar
por uma releitura de quem se encontra no presente, pode ser recomposto e traduzido de uma
forma nova:
Outras vezes agitava-me. Ia às gavetas, entornava as cartas antigas, dos
amigos, dos parentes, das namoradas, (até as de Marcela), e abria-as
todas, lia-as uma a uma, e recompunha o pretérito... Leitor ignaro, se não
guardas as cartas da juventude, o conhecerás um dia a filosofia das
folhas velhas, não gostarás o prazer de ver-te, ao longe, na penumbra, com
um chapéu de três bicos, botas de sete léguas e longas barbas assírias, a
bailar ao som de uma gaita anacreôntica. Guarda as tuas cartas da
juventude!
Ou, se te não apraz o chapéu de três bicos, empregarei a locução
de um velho marujo, familiar da casa de Cotrim; direi que, se guardares as
cartas da juventude, acharás ocasião de “cantar uma saudade”. Parece que
os nossos marujos dão este nome às cantigas de terra, entoadas no alto
mar. Como expressão poética, é o que se pode exigir mais triste.
229
Muito embora o conselho que o narrador ao leitor seja o de guardar as cartas para
conhecer a “filosofia das folhas velhas”, ou para “cantar uma saudade”, o que também se
pode depreender, nas entrelinhas desse texto, é que, se o pretérito é recomposto pelo ato de
leitura, isso significa que o seu lugar pode não ser apenas o da nostalgia, uma vez que este é
transformado por tal ato, podendo, com isso, se abrir para o futuro, como uma filosofia das
folhas novas, como um momento de criação ou de reinvenção da própria história como a
criação de uma memória do futuro.
havíamos nos referido também, no capítulo I de nossa dissertação, às traças que
corroem a folhas das cartas, no conto “Papéis velhos”, devorando parte da palavra eterno,
de modo que restaram escritas as letras et e a palavra minuto. Assim como as traças
229
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 614.
123
corroem as folhas e as letras escritas no papel, o verme do tempo também corrói a memória,
e sobram dessa corrosão alguns resíduos, restos que resistem aos efeitos do tempo. É a
partir desses restos ou fragmentos de memória que se constrói ou reconstrói, cria-se ou
inventa-se a história de um sujeito e, quem sabe, a história humana. E são esses restos,
pensados como inscrições de linguagem, ou letras, que não são corrompidos pela ação dos
vermes do tempo, juntamente com as fendas abertas pelo esquecimento, que constituem o
tecido da memória. A ameaça das traças e dos vermes é, também, metonímica do trabalho
do escritor, que é indissociável de um trabalho com o tempo e com a memória.
Outro aspecto da memória é desenvolvido por Lucia Castello Branco no seu citado
livro, A traição de Penélope. A autora aponta como a questão do trabalho da memória,
como uma operação tradutora, é desenvolvida por Freud, quando, por exemplo, o autor
indica que a tarefa do analista não é análoga somente à do arqueólogo; mas, também, à do
tradutor. Ainda segundo a autora,
o conceito de tradução é também utilizado por Freud inúmeras vezes, para
referir-se ao processo analítico, e sua analogia com a memória pode ser
depreendida da leitura do capítulo VII de A Interpretação dos Sonhos,
através da noção de “trabalho do sonho”, desenvolvida pelo autor. (...) O
trabalho do sonho nada mais é, portanto, que uma operação tradutora que,
a partir de um mecanismo de deslocamentos e condensações, termina por
dar ao sonho uma outra forma, uma outra linguagem, análoga à dos
pensamentos oníricos, mas sempre elaborada, sempre segunda.
230
Essa “outra linguagem”, realizada pelo trabalho da memória, como operação
tradutora, pode ser aproximada do que Brás Cubas diz a respeito do movimento das marés:
“Com efeito, quando a onda investe a praia, alaga-a muitos palmos a dentro; mas essa
230
CASTELLO BRANCO. A traição de Penélope, p. 39.
124
mesma água torna ao mar, com variável força, e vai engrossar a onda que de vir, e que
terá de tornar como a primeira”.
231
Cada vez que a onda investe a praia e volta ao mar, para novamente retornar à praia,
ela não é mais a mesma e, no entanto, traz os resíduos da onda que fora; assim também
acontece com a memória, pois quando uma lembrança rompe a barreira do recalque e ganha
acesso à consciência, algo do seu material primitivo se incorporou a outros materiais e
passou por algum tipo de transformação. É como se uma lembrança se incorporasse ao
fragmento de outras lembranças ou, até mesmo, de fantasias do sujeito e, quando vem à
tona, surge modificada, transformada, embora traga consigo os resíduos ou traços do
original.
O poeta João Cabral de Melo Neto, citando Eliot, também se refere, metaforicamente,
à memória como ondas do mar, fazendo alusão ao movimento das marés: “Como disse
Eliot em The wast land: ‘These fragments I have shored against my ruins’. Assim, a
memória são fragmentos trazidos à praia contra minhas ruínas. Como você gosta de ouvir,
falo de meu pai, de minha mãe, de meus avós, até do quarto onde nasci. Mas são sempre
fragmentos, só fragmentos”.
232
No entanto, são esses mesmos fragmentos de palavra, que constituem a memória, que
serão trabalhados em uma tradução e, muitas vezes, ganharão uma nova linguagem ao
passarem por outras leituras e outros olhares. Assim, se a memória é pensada como um
texto corroído ou como os restos ou ruínas de um texto, podemos afirmar que são esses
fragmentos de texto que poderão ser utilizados pelo sujeito na recomposição ou, se
preferirmos, na reinvenção de sua própria história.
231
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 605.
232
MELO NETO. Entrevista: considerações do poeta em vigília, p. 31.
125
3.2 – NAS ÁGUAS DE LETHE
No entanto, eis um paradoxo, tudo indica que, para além das questões a respeito do
tema memória/esquecimento, trabalhadas anteriormente, o que parece predominar no caso
de Brás Cubas é a dificuldade de esquecer, que ele insiste em narrar os acontecimentos
nos mínimos detalhes, em falar de minúcias e em buscar, de forma idealizada, a sensação
do que se passou:
Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos, acrescentei:
“Já se vai sentindo que o meu estilo o é tão lesto como nos primeiros
dias”. Talvez aches esta frase incompreensível, sabendo-se o meu atual
estado; mas eu chamo a tua atenção para a subtileza daquele pensamento.
O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando
comecei o livro. A morte não envelhece. Quero dizer, sim, que em cada
fase da narração da minha vida experimento a sensação correspondente.
Valha-me Deus! É preciso explicar tudo.
233
O personagem morre, mas se “recusa” a abandonar seu passado, a deixá-lo cair nas
“águas do esquecimento”; é como se algo da ordem do recalcamento não operasse com ele.
Essa constatação nos leva à seguinte pergunta: qual a função da escrita para Brás Cubas? E
à seguinte hipótese: a escrita seria, para Brás Cubas, uma tentativa de recalcamento. A
escrita representa, para o narrador, o lugar vazio que suas memórias o conseguem
preencher; mas, também, o lugar possível de se fazer o recalcamento.
Em uma passagem de Memórias póstumas, Brás Cubas, comentando o livro, afirma
que escrevê-lo teria como tarefa distraí-lo “um pouco da eternidade”, dando a entender que
o objetivo da escrita seria preencher o enorme vazio da ausência de tempo em que o
narrador se encontra: “Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não
233
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 627.
126
tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para este mundo sempre é
tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz
certa contração cadavérica...
234
. Brás Cubas mais parece um morto-vivo cuja memória-viva
não o deixa morrer completamente, e é preciso que algo da ordem do esquecimento
advenha para que o narrador possa, enfim, morrer de fato.
No entanto, à medida que o suposto-autor vai “comendo papel”, como as traças ou os
vermes, tem-se impressão oposta à sua afirmação, pois parece que sua escrita não preenche
nada e segue num ziguezague contínuo em busca de um ponto de ancoragem na linguagem,
sem, no entanto, encontrá-lo, ou sem fazer sua completa inscrição. E, ao não preencher
nada, essa escrita reescreve o movimento metonímico, pois o significante não remete ao
significado, mas a outro significante, fazendo deslizar a cadeia de palavras.
O movimento não-linear da escrita de Memórias póstumas parece apontar, ainda, para
o conceito de real lacaniano (para a impossibilidade de representação no simbólico, o
imponderável, a morte), na medida em que o que está em jogo nesse processo, para além da
face simbólica da linguagem, é sua face não simbólica: o silêncio, o vazio e a
impossibilidade de tudo dizer. Assim, Brás Cubas vai burilando a escrita, escavando-a em
direção ao real, ao vazio, da linguagem. E é a partir da própria impossibilidade estrutural da
linguagem que o narrador busca, obstinadamente, escrever todo o seu passado.
A respeito da função da escrita e de sua articulação com a memória, Michel
Schneider, em seu livro Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o
pensamento, levanta as seguintes questões:
Escreve-se para lembrar e, particularmente, de si mesmo? Para fazer
reviver seus memoráveis, se se crê um destino, ou, mais simplesmente,
234
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 583.
127
para se contar uma vez mais? Penso antes que se escreve para esquecer,
esquecer aquele que se foi; para pôr fora de si essa memória demente,
obscena e insoniosa, para repousar-se enfim na leitura que os outros farão
de seu passado, e para encontrar, nos dorminhocos, que o os leitores
mais vigilantes, o sono prometido ao término da escritura.
235
A afirmação feita na citação acima inverte o senso comum que diz que se escreve
para lembrar ou reviver sentimentos, afirmando o oposto, ou seja, “que se escreve para
esquecer”. Talvez a razão pela qual Brás Cubas não estivesse conseguindo descansar em
paz na morte se devesse ao fato de o personagem ter levado consigo suas memórias, e
precisar, antes, delas se desfazer. E é por isso, portanto, que “a própria morte é dita,
lembrada, mediante o trabalho da linguagem, para que o morto caia no esquecimento”.
236
Tal posicionamento nos leva a pensar se o fato de Brás Cubas procurar escrever o seu
passado não seria, paradoxalmente, a forma por ele encontrada para ir deste se destituindo.
Todo um espaço condensado das memórias de Brás Cubas vai, gradativamente,
sendo removido através da palavra e, à medida que o narrador as torna matéria de texto, ele
pode ir delas se desapossando uma vez que elas vão deixando de ser as suas memórias e
passando a ser as do leitor. O leitor entra como um terceiro elemento entre o autor e o
personagem/narrador e, dessa forma, passa também a fazer parte do processo da escrita;
mas, também, é preciso notar que “o sono prometido ao término da escritura” pode ser o
sono eterno do próprio escritor, e talvez seja este o caminho que o narrador de Memórias
póstumas esteja percorrendo.
Quando Brás Cubas especifica que quer tratar da “substância da vida” (“Não, não
direi que assisti às alvoradas do romantismo, que também eu fui fazer poesia no regaço da
Itália; não direi cousa nenhuma. Teria de escrever um diário de viagem e não umas
235
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 17-18.
236
SCHNEIDER. Ladrões de palavras, p. 461.
128
memórias, como estas são, nas quais entra a substância da vida”
237
), ele mostra que de
uma forma ou de outra é possível inserir o que ele pensa ser o essencial de sua vida na
escritura e, à medida que essas substâncias fazem sua inscrição, transformando-se em
texto para que alguém as leia, o suposto-autor delas se destitui, dando lugar ao
esquecimento.
Com relação ao processo memória/esquecimento, um personagem de Borges,
Funes, do conto “Funes, o memorioso”, que em alguma medida remete a Brás Cubas,
embora haja significativas diferenças entre os dois. Nesse conto, ao sofrer uma queda que o
leva à paralisia, o personagem é tomado por uma capacidade espantosa que lhe permite
tudo recordar, o que o leva a optar por viver num mundo de sombras e de escuridão. O
narrador se refere ao episódio relatado a ele, por Funes, da seguinte forma:
Disse-me que antes daquela tarde em que o azulego o derrubou, fora o que
são todos os cristãos: um cego, um surdo, um abobado, um
desmemoriado. (Tratei de lembrar-lhe sua percepção exata do tempo, sua
memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia
vivido como quem sonha: Olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se
de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o
recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e
também as lembranças mais antigas e mais triviais. Pouco depois
constatou que estava aleijado. O fato apenas o afetou. Discutiu (sentiu)
que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua percepção e sua
memória eram infalíveis.
238
O personagem de memória e percepção infalíveis, capaz de proezas como a de
“enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis
história...”,
239
carrega em seu nome a ambigüidade, pois, nesse conto,
237
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 543-544.
238
BORGES. Funes, o memorioso, p. 94.
239
BORGES. Funes, o memorioso, p. 93.
129
Funes, do radical latino que tem como genitivo funeris (significando
“enterro, assassínio, flagelo, cadáver, destruição”) e como nominativo
funus (indicando cadáver em chamas”), é o sobrenome de Irineu, “o
pacífico”, aquele que, por sua memória infalível, pretende tudo arquivar,
tudo classificar, tudo transformar em linguagem. Funes é capaz de
recordar e nomear à exaustão, constitui-se num ser da morte, num
“solitário expectador de um mundo multiforme”. E é exatamente por meio
desse processo de absoluta rememoração e intensa nomeação do universo,
que a personagem desemboca na desconstrução da linguagem, na mais
completa afasia. Ao abraçar Mnemosyne com toda sua paixão, Funes
termina por mergulhar definitivamente no esquecimento, na
incomunicabilidade, nas águas da morte.
240
Ao que parece, Brás Cubas, assim como Funes, está atado a um processo de absoluta
rememoração embora o personagem machadiano não tenha a memória tão infalível
quanto a do personagem borgiano –; no entanto, ambos caminham, cada qual a seu modo,
numa mesma direção: rumo ao esquecimento. Pois, se Mnemosyne abre suas portas
oferecendo-se sedutoramente àquele que recorda, é preciso também saber que sua outra
face é morte e esquecimento.
No caso de Funes, essa “memória infalível” que tudo recorda; quanto a Brás
Cubas, nota-se que há, de alguma forma, uma certa “recusa” em esquecer; no entanto,
paradoxalmente, com relação ao percurso de sua escrita, esta talvez siga uma lógica
própria, caminhando numa outra direção, em direção ao esquecimento:
E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o
livro e não as restantes. Para ela extingui-se o interesse da minha vida,
que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda a invalidez, mas não é a
frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um inglês dizia,
entenderei que “cousa é o achar já quem se lembre de meus pais, e de
que modo me há de encarar o próprio ESQUECIMENTO”.
241
240
CASTELLO BRANCO. Discretas infidelidades, p. 137-138.
241
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 625.
130
Acompanhando, em Memórias póstumas, o percurso o-linear de Brás Cubas,
ousaríamos afirmar que o narrador trabalhou na composição da trama de suas memórias,
num processo intenso de rememoração, até chegar num ponto em que pôde, enfim, delas se
desfazer, oferecendo-as, definitivamente, ao trabalho do verme.
Ao verme
que
primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas
MEMÓRIAS PÓSTUMAS
242
Ao mesmo verme que roeu as “frias carnes” do seu cadáver, e a quem ele dedica o
livro, caberá, por fim, a corrosão de todo o resto de suas memórias, ficando apenas o seu
nome, Brás Cubas. As lembranças do narrador, caindo nas águas do esquecimento de
Mnemosyne, não mais lhe pertencem. Sua voz pode, portanto, calar-se no infinito vazio
da morte. No entanto, essa voz poderá se fazer ouvir alhures, no futuro, em todos os leitores
que se interessarem por essa narrativa; pois o destino final de seu trabalho será sempre o
outro, o mundo, o leitor: o verme a quem o narrador dedica suas Memórias, em forma de
epitáfio.
Em um certo sentido, Brás Cubas encena, com a construção e a corrosão do livro, a
própria relação do escritor com o tempo da escrita, ou seja, o modo pelo qual, por meio do
manejo do tempo da escrita, toca-se na questão da perda e da morte. O ato de escrever
produz um apagamento do escritor, e o seu ofício aponta, assim, para um lugar de
242
MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 511.
131
esvaziamento ou de suspensão da própria temporalidade e, também, de destituição subjetiva
daquele que escreve.
A invenção, matando algo do eu, instaura o recalque, condição de todo esquecimento;
mas, se a criação mata, ela também faz nascer e, do seu ato, algo fica e resiste: o texto ou a
obra.
Em todo o percurso de Brás Cubas um trabalho intenso com as memórias e, no
final (ou no início), se ele as dedica ao verme, é para que elas sejam, assim como o seu
cadáver, roídas; para que, enfim, possam se consumir infinitamente sob o olhar dos
inúmeros leitores que a elas recorrerem, retornando, sempre, ao nada de onde vieram, mas
deixando os seus traços e as suas marcas naqueles que por elas passaram.
CONCLUSÃO
Neste trabalho, procuramos desenvolver um estudo do tempo articulado à escrita em
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, bem como em alguns contos do
autor, investigando a lógica do tempo machadiano, em suas várias acepções.
Para o desenvolvimento de nossa dissertação, recorremos a uma articulação dos
textos de Machado de Assis por nós estudados com certos conceitos extraídos da teoria
psicanalítica e da filosofia e estabelecemos uma interlocução com a crítica literária
132
machadiana e com apontamentos teóricos de críticos como Roland Barthes e Maurice
Blanchot.
Certas referências machadianas ao inconsciente “inconsciência”), como no texto
“O cônego ou metafísica do estilo”, aproximam-se das descrições que Freud faz desse
mesmo sistema, sobretudo no que diz respeito à sua intemporalidade. Os registros
lacanianos real, simbólico e imaginário também foram articulados ao texto de Machado de
Assis. Ao apontar para diferentes ordens temporais, coexistindo num mesmo instante, ou
para certos vazios ou furos temporais, Machado aproxima-se da lógica do inconsciente
descrita pela psicanálise.
Procuramos investigar, com base na psicanálise, tanto o “tempo” do inconsciente
quanto o tempo ligado ao objeto, que desregula o tempo, bem como a temporalidade
vinculada à música, que é, para o psicanalista Jacques-Alan Miller, a arte do tempo, que o
depura, regula e ordena. Articulamos esses desenvolvimentos psicanalíticos ao conto
“Cantiga de esponsais”, de Machado de Assis, e trabalhamos, a partir desse conto, o tempo
perdido no passado, que não volta mais; o tempo estagnado ou estanque do gozo, fixado no
objeto; o tempo aberto e fendido, que aponta para o futuro. Essas temporalidades
circunscrevem a escrita machadiana num movimento espiralado, em torno de um ponto
vazio. Extraímos, assim, da temporalidade machadiana, o modelo topológico da espiral do
tempo: é a partir de um ponto vazio da espiral que giram as modalidades temporais de sua
escrita.
Outro modelo de onde também procuramos extrair uma topologia do tempo foi o
borromeano, que enlaça os três registros da linguagem: o real, o simbólico e o imaginário.
Pensamos que resta, no enlaçamento borromeano dos três registros da linguagem, um vazio
estrutural, vazio este que faz furo na estrutura da linguagem, dando mobilidade à sua
133
cadeia, não permitindo que esta fique fixa ou estanque, e que também vai fazer furo no
tempo da escrita. É a partir de um vazio da estrutura, portanto, que articulamos linguagem e
tempo da escrita em Machado de Assis.
No Capítulo I, “Breve cronologia da escrita”, investigamos a passagem do escritor
Machado de Assis pelo tempo da tradição, assim como a questão do poder corrosivo e
depurador do tempo em Memórias póstumas de Brás Cubas.
A passagem de um escritor pela tradição e o trato deste com a mesma é também
uma forma de lidar com o tempo. O escritor argentino Jorge Luis Borges, em “Kafka y sus
precursores”, salienta que cada escritor cria seus precursores e que o trabalho com a
tradição modifica nossa concepção do passado e do futuro.
O tempo da tradição, como um tempo cronológico, é situado historicamente; mas
pode ser também pensado como um tempo maleável e aberto à intervenção dos leitores.
Nesse sentido, Machado de Assis, ao visitar, através da escrita, a Antigüidade Clássica, a
Sátira Menipéia e escritores como Homero, Luciano de Samósata, Cervantes, Pascal, entre
outros, constrói seus textos a partir de uma infinidade de subtextos, enriquecendo-os
exatamente pela sua inserção nessa tradição.
Jacynto Lins Brandão, no texto “A Grécia de Machado de Assis”, descreve o modo
como Machado reescreve a tradição por meio de suas reminiscências, reelaborando o que
absorveu dos antigos. A tradição recuperada por Machado foi tratada como um vírus vivo e
mutante que pode ser modificado e modificar-se a partir do contato ou do contágio de um
escritor com outros escritores e de uma obra com outras obras.
Na segunda parte do Capítulo I, “O tempo da escrita: corrosão e depuração”, a partir
dos personagens femininos machadianos, e tendo como base o conto “Papéis Velhos” e o
livro Memórias póstumas de Brás Cubas, investigamos dois efeitos antagônicos a que a
134
corrosão do tempo pode conduzir: a devastação ou a depuração. Partindo da figura das
traças e dos vermes, do eterno e do minuto, a questão do tempo foi articulada ao conceito
de letra, de onde extraímos que defunto é a letra do autor, e que a letra condensa o eterno e
o minuto, que atravessam a temporalidade da escrita.
No Capítulo II, “Morte e gênese do escritor Brás Cubas”, analisamos a morte do
protagonista Brás Cubas como uma ruptura a partir da qual se dará a gênese ou o
nascimento do narrador, sendo, portanto, a condição do ato narrativo.
O emplastro Brás Cubas foi associado ao conceito de phármakon, do modo como é
tratado no livro A farmácia de Platão, de Jacques Derrida, pois, assim como o phármakon,
o emplastro tem um duplo papel é algo que pode curar e matar, uma vez que, como o
próprio Brás Cubas afirma, foi a sua invenção, feita para aliviar a melancolia da
humanidade, que o matou. Sendo assim, o emplastro foi vinculado à escrita, como sendo
um remédio/veneno da escrita, uma química da linguagem.
Brás Cubas (re)nasce da morte como um outro, o narrador atemporal de suas
memórias. E é a partir de tal circunstância que o personagem pode, de um lugar onde o
tempo é abolido a eternidade –, percorrer, com um certo distanciamento, o tempo de suas
memórias. A eternidade, um lugar (ou não-lugar) da ausência de tempo, ou de um “tempo
da ausência de tempo”, é, também, um ponto de deslocamento estratégico de onde Brás
pode narrar, sem receios da opinião, as suas memórias.
A morte de Brás Cubas é, assim, instauradora de um acontecimento que rasga o
tempo em dois: um tempo atemporal (lugar do sujeito da enunciação) e o tempo das
lembranças narradas (lugar do sujeito do enunciado). Vimos que o lugar atemporal, no qual
se localiza o defunto-autor, pode ser relacionado ao lugar do sujeito do inconsciente (Je,
segundo Lacan), e o lugar do sujeito do enunciado, ao do eu consciente (Moi, segundo
135
Lacan). Procuramos mostrar, dessa forma, como a divisão subjetiva do personagem incide
na temporalidade da narrativa.
A morte de Brás pode, portanto, ser tomada como uma metáfora do lugar vazio e
impessoal do autor (ou do escritor), lugar de seu desaparecimento em função da obra. Esse
lugar vazio é como a “casa vazia” descrita no livro Lógica do sentido, de Gilles Deleuze: é
o lugar da ausência, instância paradoxal que “falta em seu lugar”, mas, por isso mesmo,
necessária para que se movam as peças do jogo metonímico da linguagem.
O pensamento de Blanchot auxiliou na compreensão desse lugar impessoal do autor,
assim como do processo de criação em Memórias póstumas. Em seu texto “A literatura e o
direito à morte”, Blanchot se refere à morte do autor em função da obra. A morte é por ele
entendida não no sentido de fim, mas de desaparecimento para que algo possa ser criado,
possa surgir em seu lugar, sendo que a criação surge da ruptura ou quebra de vínculos
provocada por essa morte.
Do livro O espaço literário, de Blanchot, retiramos a idéia de “solidão da escrita”,
de um tempo da ausência de tempo”, e a articulamos ao tempo da escrita de Memórias
póstumas. O processo de ruptura que ocorre a partir da morte de Brás Cubas conduz o
defunto-autor à eternidade, produzindo um deslocamento do escritor com relação à
temporalidade, colocando-a como que em suspenso.
Na segunda parte desse mesmo capítulo, “Escrita oblíqua”: deslocamentos no fluxo
do tempo”, investigamos a escrita oblíqua e digressiva de Machado de Assis e o modo
como Brás Cubas narra com inventividade os acontecimentos e constrói a sua ordem
própria, produzindo deslocamentos na linguagem e no fluxo tempo. A fragmentação da
identidade do narrador implicará também uma divisão temporal do sujeito, o que tem
incidência na não-linearidade do tempo de sua escrita.
136
Machado de Assis joga ou trapaceia com as possibilidades temporais da linguagem,
perturbando-a com suas digressões, deslocamentos e cortes; fazendo-a gaguejar. A questão
da gagueira da linguagem foi cotejada com a crítica que Sílvio Romero, contemporâneo de
Machado, fez à escrita do autor de Memórias póstumas, bem como com o texto
“Gaguejou...”, de Gilles Deleuze, que oferece uma outra perspectiva a esse respeito, ao
falar sobre a “gagueira criadora”.
Articulamos Memórias póstumas, também, à análise dos mecanismos do poder e de
sua inscrição na linguagem feita por Roland Barthes, em seu livro Aula. O modo enviesado
e oblíquo da escrita machadiana e o trabalho de deslocamentos e de inversão da linguagem
em Memórias póstumas foram aproximados da observação que Barthes faz a respeito da
literatura como esquiva e trapaça com a língua. A concepção de um tempo não-linear, em
Machado de Assis, vai-se inserir, portanto, nesse modo esquivo e oblíquo com o qual o
autor trabalha a escrita, perturbando e quebrando o fluxo do tempo.
No Capítulo III, “O tempo da escrita das memórias”, trabalhamos o tempo
articulado à escrita das memórias de Brás Cubas. Partimos da afirmação de que por meio de
suas lembranças, o narrador busca resgatar o passado e reconstruir o tempo que se foi.
Iniciamos esse capítulo com um breve comentário sobre a concepção de Memória
(Mnemosyne) na mitologia, em que afirmamos que, para Hesíodo, a função da Memória
consiste tanto em tornar presente o passado quanto em promover o Esquecimento (Lethe).
A natureza da memória para a mitologia é, portanto, paradoxal, pois Memória também é
Esquecimento.
A questão da memória também foi tratada a partir de alguns textos de Freud. Para a
psicanálise, o tecido da memória se inscreve como uma marca, um traço, e é constituído de
forma lacunar por lapsos, atos falhos e lacunas de esquecimento. De acordo com Freud, o
137
recalcamento contribui para que uma recordação fracasse ou para que haja perda de
memória. O psicanalista também enfatiza, no artigo “Lembranças encobridoras”, que ao
passarem por um mecanismo psíquico inconsciente, de condensação e deslocamento, certas
lembranças infantis “revelam ter sido falsificadas”, sendo uma reconstrução do próprio
trabalho da memória.
Alguns dos desenvolvimentos psicanalíticos sobre a memória, acima descritos,
foram articulados a passagens de Memórias póstumas de Brás Cubas. Trabalhamos o texto
machadiano, portanto, a partir da perspectiva de uma memória descontínua e lacunar,
levando em consideração o esquecimento, em todo o processo de memória, e a questão da
perda, que também está implícita nesse processo. A memória o é um “arquivo aberto”,
mas, sim, um arquivo incompleto, lacunar e com faltas, marcado pelo esquecimento,
constituindo-se ou edificando-se a partir dele.
O trabalho da memória tem uma função transformadora, tradutora e criadora, como
enfatiza Lúcia Castelo Branco, no seu livro A traição de Penélope. O próprio Brás Cubas
fala em “recompor o passado”, referindo-se às cartas antigas, o que nos a idéia de como
o passado, ao ser objeto de uma releitura de quem se encontra no presente, é traduzido, e
pode, assim, ser recomposto ou transformado.
O verme, que corrói o corpo de Brás Cubas, é como o verme do tempo, que corrói
as suas memórias. Sobram dessa corrosão dos vermes alguns resíduos, restos que resistem
aos efeitos do tempo; e é a partir desses restos, traços ou fragmentos da memória que se
constrói ou se inventa a história de um sujeito. Esses restos podem ser pensados também
como inscrições de linguagem, ou letras, que não são corrompidas pelos vermes do tempo.
A ameaça das traças e dos vermes é metonímica do trabalho do escritor, que é indissociável
de um trabalho com o tempo e com a memória.
138
Na segunda parte do Capítulo III, “Nas águas de Lethe”, trabalhamos a questão do
esquecimento em Memórias Póstumas e partimos da afirmação de que o que parece
predominar em Brás Cubas é a dificuldade de esquecer. Levantamos a seguinte hipótese: a
escrita seria, para Brás Cubas, uma tentativa de recalcamento. A escrita representa, para o
narrador, o lugar vazio que suas memórias não conseguem preencher, mas, também, o lugar
possível de se fazer o recalcamento.
A tentativa de escrever o seu passado é, paradoxalmente, a forma pela qual o
narrador pôde ir dele se destituindo. O narrador trabalhou a trama de suas memórias, num
processo intenso de rememoração, até chegar a um ponto em que pôde, enfim, delas se
desfazer, oferecendo-as ao trabalho do verme. Dessa forma, opera-se, através da escrita, um
processo de destituição subjetiva; e as memórias de Brás Cubas, deixando de lhe pertencer,
ficam como texto ou obra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 – DE MACHADO DE ASSIS
MACHADO DE ASSIS. Cantiga de esponsais. In: Histórias sem data. Org. Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 386-390. (Obra completa, v.2).
_________. Esaú e Jacó. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p.
945-1093. (Obra completa, v.1).
_________. Eterno! In: Páginas recolhidas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1997. p. 598-605. (Obra completa, v.2).
139
_________. Lágrimas de Xerxes. In: Páginas recolhidas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 615-619. (Obra completa, v.2).
_________. Memorial de Aires. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1997. p. 1095-1200. (Obra completa, v.1).
_________. Memórias póstumas de Brás Cubas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1997. p. 511-693. (Obra completa, v.1).
_________. O cônego ou metafísica do estilo. In: Várias histórias. Org. Afrânio Coutinho.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 570-573. (Obra completa, v.2).
_________. Papéis velhos. In: Páginas recolhidas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1997. p. 619-624. (Obra completa, v.2).
_________. Quincas Borba. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p.
641-806. (Obra completa, v.1). Teoria do medalhão. In: Papéis avulsos. Org. Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 288-295. (Obra completa, v.2).
MACHADO DE ASSIS. Trio em menor. In: Várias histórias. Org. Afrânio Coutinho.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 519-525. (Obra completa, v.2).
_________. Uma senhora. In: Histórias sem data. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1997. p. 423-429. (Obra completa, v.2).
_________. Uma visita de Alcebíades. In: Papéis avulsos. Org. Afrânio Coutinho. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 352-357. (Obra completa, v.2).
_________. Um homem célebre. In: Várias histórias. Org. Afrânio Coutinho. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 497-504. (Obra completa, v.2).
_________. Viver! In: Várias histórias. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1997. p. 563-569. (Obras completas, v.2).
140
2 – SOBRE MACHADO DE ASSIS
ANDRADE, Mário de. Machado de Assis. In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo:
Martins, s.d. p. 89-108.
BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de
Assis. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003. 271p.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2000. 229p.
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A Grécia de Machado de Assis. In: MENDES, Eliana
Amarante de Mendonça; OLIVEIRA, Paulo Motta; BENN-IBLER, Veronika (Orgs.). O
novo milênio: interfaces lingüísticas e literárias. UFMG FALE: Belo Horizonte, 2001. p.
351-374.
CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Ensaios machadianos. 2.ed. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979. 173p.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos. 3.ed. São Paulo:
Duas Cidades, 1995. p. 17-39.
CARDOSO, Wilton. Tempo e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte:
Estabelecimentos Gráficos Santa Maria, 1958. 290p.
CASA NOVA, Vera. Teoria do medalhão: Uma encruzilhada semiótica. Boletim do Centro
de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v.12, n.14, p. 36-44, jul./dez. 1992. (Dossier
Machado de Assis, Revista da Faculdade de Letras da UFMG).
COUTINHO, Afrânio. Estudo crítico; Machado de Assis na literatura brasileira. In:
MACHADO DE ASSIS. Obra completa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1997. V.1. p. 23-65. (Obra publicada em três volumes).
141
DUMONT, Ágata Cristina Kaiser. A flecha de dois gumes: o tempo redimensionado em
Memórias póstumas de Brás Cubas. 2005. 126p. Dissertação (Mestrado em Teoria da
Literatura) Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte. 126p.
FUENTES, Carlos. O milagre de Machado de Assis. Folha de São Paulo, São Paulo,
out. 2000, Caderno Mais!, p. 4-11.
_________. Machado de La Mancha. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. 30p.
JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks,
2001. 393p.
JUNIOR, Peregrino. Doença e constituição de Machado de Assis. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1938. 162p.
LOPES, José Leme. A psiquiatria de Machado de Assis. 2.ed. aum. Rio de Janeiro: Agir,
1981. 220p.
MALARD, Letícia. Analistas de “O Alienista”. O eixo e a roda revista de literatura
brasileira, Belo Horizonte: FALE/UFMG, v.7, s.n., p. 45-53, maio-2001.
MASSA, Jean-Michel (Org.). Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro — Ministério da Educação e Cultura, 1965. 571p.
MERQUIOR, José Guilherme. Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas,
Colóquio letras, Lisboa, v.8, p. 12-20, julho-1972.
MEYER, Augusto. Machado de Assis; 1935-1958. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958.
238p.
MOISÉS, Massaud. Machado de Assis: ficção e utopia. São Paulo: Cultrix, 2001. 152p.
MURICY, Katia. A razão cética; Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. 140p.
142
NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: No tempo do niilismo e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1993. p. 129-144.
PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos. 2.ed. Belo
Horizonte: Oficina de livros, 1991. 229p.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 6.ed. rev. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. 310p.
REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a
tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
RIEDEL, Dirce Côrtes. O Tempo no Romance Machadiano. Rio de Janeiro: Livraria São
José, 1959. 223p.
_________. Razão contra sandice. In: Metáfora: O espelho de Machado de Assis. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1974. p. 1-27.
ROMERO, Silvio. O prosador e seu estilo. In: Machado de Assis; estudo comparativo da
literatura brasileira. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. p. 121-149.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas; forma literária e processo social nos inícios
do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
_________. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. 147p.
SARAIVA, Juracy Assmann. O circuito das memórias em Machado de Assis. São Paulo:
Edusp, 1993. 221p.
SENNA, Marta de. O olhar oblíquo do bruxo: Ensaios em torno de Machado de Assis. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 147p.
143
SILVIANO BRANDÃO, Ruth. A travessia da escrita em Machado de Assis. O eixo e a
roda revista de literatura brasileira, Belo Horizonte: FALE/UFMG, v.7, p. 55-63, maio-
2001.
_________. Zombaria de viés. Estado de Minas, Belo Horizonte,14 jul.2003. Caderno
Pensar, p.5.
VENANCIO FILHO, Paulo. Primos entre si: Temas em Proust e Machado de Assis. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000.153p.
WERNECK, Maria Helena. O homem encadernado: Machado de Assis na escrita das
biografias. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1996. 280p.
3 – TEÓRICA
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1997. 89p.
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
Trad. Paulo Neves. Martins Fontes: São Paulo, 1999. 292p.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita—1: a palavra plural. Trad. Aurélio Guerra
Neto. São Paulo: Escuta, 2001. 142p.
_________. A literatura e o direito à morte. In: A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 289-330.
_________. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 278p.
_________. O livro por vir. Trad. Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio d’água, 1984.
264p.
BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso. In: Ficções. Trad. Carlos Nejar. 5.ed. São
Paulo: Globo, 1989. p. 89-97.
144
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro: Literatura, sociedade e discurso
ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 369p.
CABAS, Antonio Godino. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan. Trad. Maria Lúcia
Baltazar. São Paulo: Moraes, 1982. 292p.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainard. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002. 150p.
_________. Seis propostas para o próximo milênio: Lições Americanas. Trad. Ivo Barroso
2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 141.
CASTELLO BRANCO, Lucia. A Traição de Penélope. São Paulo: Annablume, 1994.165p.
_________. Discretas infidelidades. In: CASTELLO BRANCO, Lucia e SILVIANO
BRANDÃO, Ruth. Literaterras; as bordas do corpo literário. São Paulo: Annablume, 1995.
p. 131-147.
CASTELLO BRANCO, Lucia. Os absolutamente sós: Llansol A Letra Lacan. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000. 131p.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice
Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
303p.
DELEUZE, Gilles. Gaguejou... In: Crítica e clínica. Trad. Peter Pául Pelbart. São Paulo:
Editora 34, 2004. p. 122-129.
_________. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva,
2000. 342p.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. 2.ed. São Paulo:
Iluminuras, 1997. 126p.
145
DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. 2003p.
ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. Prefácio, introdução e notas de J.B.Mello e Souza. Rio
de Janeiro: Ediouro, s/d. 137p.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova fronteira, 1986.1838p.
FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior. São Paulo: Princípio, 1990. 76p.
FREUD, Sigmund. A dissecação da personalidade psíquica. In: Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1796. p. 75-102.
(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 22).
_________. A negativa. In: O ego e o id; Uma neurose demoníaca do século XVII e outros
trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 295-300.(Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.19).
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. (Parte I). 2.ed. Rio de Janeiro: Imago,
1987. 322p. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, v.4).
_________. A interpretação dos sonhos (parte II). 2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p.
323-566. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,
v.5).
_________. Construções em análise. In: Moisés e o monoteísmo, Esboço de Psicanálise e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 289-304. (Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.23).
146
_________. Escritores criativos e devaneio. In: “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos.
Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 149-158. (Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.9).
_________. Lembranças encobridoras. In: Primeiras publicações psicológicas. 2.ed. Rio de
Janeiro: Imago, 1987. p. 267-87. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, v.3).
_________. O estranho. In: Uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. p. 271-318. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, v.17).
_________. O inconsciente. In: A história do movimento psicanalítico, Artigos sobre
metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 183-267. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.14).
_________. O mecanismo psíquico do esquecimento. In: Primeiras publicações
psicológicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p. 255-66. (Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.3).
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar. In: O caso Schreber, Artigos sobre técnica e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 189-203. (Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.12).
_________. Uma nota sobre o “bloco mágico”. In: O ego e o id; Uma neurose demoníaca
do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 283-90. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.19).
GARCIA-ROZA. Palavra e Verdade: na filosofia e na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
1990.123p.
147
GUIMARÃES, César. Imagens da memória entre o legível e o sensível. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1997. 249p.
HESÍODO. Teogonia: A origem dos Deuses. Estudo e tradução: Jaa Torrano. 5.ed. São
Paulo: Iluminuras, 2003. 166p.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 2922p.
JULIEN, Philippe. O retorno a Freud de Jacques Lacan: a aplicação ao espelho. Trad.
Ângela Jesuino e Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 177p.
LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente. In: Escritos. Versão: Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 496-533.
_________.O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Versão:
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 96-103.
_________. De um desígnio. In: Escritos. Versão: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. p. 365-369.
_________. O seminário livro 3. As psicoses. Versão: Aluísio Meneses. 2.ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 366p.
LACAN, Jacques. O seminário livro 5: As formações do inconsciente.Trad. Vera
Ribeiro, Versão Final: Marcus André Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 533p.
_________. O seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Versão: M.D.Magno. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 269p.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. 552p.
LE POULICHET, Sylvie. O tempo na psicanálise. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996. 150p.
148
MANDIL, Ram. Os efeitos da letra: Lacan leitor de Joyce. Belo Horizonte: Contra Capa,
2003. 283p.
MELO NETO, João Cabral de. Entrevista: considerações do poeta em vigília. In: Cadernos
de literatura brasileira. Número 1, março de 1996, Instituto Moreira Salles. 131p.
MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Recife: McGraw – Hill do Brasil, 1976. 130p.
MILLAN, Marília Pereira Bueno. Tempo e subjetividade no mundo contemporâneo:
ressonâncias na clínica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. 137p.
MILLER, Jacques-Alain. A erótica do tempo. José Marcos de Moura e Elisa Monteiro
(Orgs.). Rio de Janeiro: Latusa, 2000.79p.
MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 733p.
NASIO, Juan-David. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 171p.
_________. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 171p.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1998.
PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado: imagens do tempo em Deleuze. São
Paulo: Perspectiva, 1998. 192p.
PERES, Ana Maria Clark. Revisitando o estilo: por uma travessia na escrita? Belo
Horizonte: FALE-UFMG, 2001. 89p.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005. 213p.
PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida. Tradução, introdução e notas: Norberto de Paula
Lima. São Paulo: Hemus, 1981. 217p.
149
QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2000. 162p.
_________. Um olhar a mais: Ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2002. 312p.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995.
(Obra em 3 volumes).
SANTO AGOSTINHO. Confissões. In: Os pensadores. Trad. J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 309-373.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o
pensamento. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: UNICAMP, 1990. 503p.
SOLER, Colette. A Psicanálise na civilização. Trad. Vera Avellar Ribeiro e Manuel Barros
da Motta. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. 478p.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. São
Paulo: Difel, 1973.
150
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo