Download PDF
ads:
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA
A TRAJETÓRIA DA MÃE DO OURO NA LITERATURA GAÚCHA
SÔNIA NICKEL AND
RIO GRANDE
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA
SÔNIA NICKEL ANDRÉ
A TRAJETÓRIA DA MÃE DO OURO NA LITERATURA GAÚCHA
Dissertação apresentada como requisito parcial
e último para a obtenção do grau de Mestre em
Letras, área de concentração em História da
Literatura, pela Fundação Universidade
Federal do Rio Grande.
Orientadora: Profª Drª Sylvie Dion
Data da defesa: 21 de novembro de 2006
Instituição depositária:
Núcleo de Informação e Documentação
Fundação Universidade Federal do Rio Grande
Rio Grande, novembro de 2006.
ads:
3
AGRADECIMENTOS
A realização desse sonho, um esforço pessoal, não teria sido possível sem a participação
e a colaboração de outras pessoas. Agradeço especialmente:
- à coordenação do Curso de Pós-Graduação em Letras Mestrado em História da
Literatura da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, na pessoa do Profº Drº
Carlos Alexandre Baumgarten, pela excelência do curso;
- à Profª Drª Sylvie Dion, minha orientadora, pelos ensinamentos, pela paciência, pela
amizade e, principalmente, por ter confiado e abraçado comigo essa causa, em um
momento bastante delicado;
- a todos os colegas do Curso de Pós-Graduação em Letras com os quais tive o prazer de
dialogar, trocar idéias, desabafar nos momentos de angústia e rir nos momentos de
alegria; em especial Tatiana Gomes do Espírito Santo e Lílian Gonçalves de Andrade
pelo esforço conjunto nessa caminhada;
- à Profª Drª Néa Maria Setúbal de Castro, com a qual conheci novos horizontes através
das pesquisas de Iniciação Científica, pelo apoio nos estudos, pelos seus ensinamentos,
pela paciência e amizade;
- ao diretor da Casa de Cultura José Néri da Silveira, da cidade de Lavras do Sul, Jorge
Luis Rodrigues da Silva, pela boa-vontade e esclarecimentos prestados;
- ao patrão do CTG Mate Amargo, da cidade do Rio Grande, Jorge Bastos Duarte, pela
gentileza, pelo empréstimo de livros da biblioteca do CTG e da sua coleção pessoal e
por seus esclarecimentos;
- a Fernando Alencastro da produção do programa Galpão Crioulo, da RBS TV, pela
boa-vontade e esclarecimentos prestados por e-mails;
- aos funcionários da Biblioteca Rio-Grandense, da cidade do Rio Grande, pela
paciência e pelo empenho nos serviços prestados;
- ao meu companheiro, Marco, pela compreensão, pelo carinho, pelo apoio, por
conviver com minhas dúvidas e incertezas...
- a minha tia Rosani pelo imenso carinho e pelo apoio nessa caminhada;
- aos meus pais, pela preparação para a vida, pelos ensinamentos para lutar, com
honestidade e humildade, e acreditar nos sonhos.
4
SUMÁRIO
Resumo ..........................................................................................................................05
Résumé .........................................................................................................................06
1 – Introdução ...............................................................................................................07
2 – A literatura oral no veio poético regionalista gaúcho .........................................13
2.1 – A lenda tradicional ...........................................................................................15
2.1.1 – Crença e transmissão oral: requisitos da lenda tradicional .......................17
2.1.2 – A lenda literária e o conto lendário ..........................................................20
2.2 – Formação étnica do Rio Grande do Sul e suas contribuições ..........................21
3 – A Mãe do Ouro .......................................................................................................28
3.1 – Os parentes próximos: ciclos da Salamanca e da Boitatá ................................30
3.2 – As versões da Mãe do Ouro .............................................................................34
4 – A Semiótica e o estudo das lendas .........................................................................39
5 - As versões literárias da Mãe do Ouro....................................................................50
5.1 – Grupo sulino .....................................................................................................50
5.1.1 – Versão de Alberto Coelho da Cunha .........................................................50
5.1.2 – Versão de Nitheroy Ribeiro .......................................................................60
5.2 – Grupo centro-nortista ........................................................................................66
5.2.1 – Versão de Veiga Miranda...........................................................................66
5.2.2 – Versão de Ruth Guimarães.........................................................................71
5.2.3 – Versão de Lucília Garcez ..........................................................................78
5.2.4 – Versão de Souza Carneiro .........................................................................86
5.3 – As semelhanças e as diferenças ........................................................................96
6 – Considerações Finais ............................................................................................107
7 – Referências ............................................................................................................116
8 – Anexos ....................................................................................................................121
8.1 – Anexo 1 ...........................................................................................................121
8.2 – Anexo 2 ...........................................................................................................126
8.3 – Curriculum vitae .............................................................................................139
5
Resumo:
A presente dissertação de mestrado tem como objetivo analisar a construção da
personagem Mãe do Ouro no imaginário coletivo gaúcho e sua importância na
Literatura Rio-grandense. Os grupos étnicos que contribuíram para a formação da
identidade do povo sul-rio-grandense trouxeram consigo seu acervo de bens culturais
que sofreram influências da cultura do povo nativo, transformações e adaptações
ocorreram até se formar uma nova cultura que identifique essa nova comunidade.
Dentre esse acervo de mitos e lendas está A Mãe do Ouro, uma entidade sobrenatural
relacionada às crenças das salamancas encantadas e dos fogos-fátuos. Ela se manifesta
sob formas diversas, geralmente, está representada como uma bola de fogo ou uma
formosa mulher, mas sua função é a mesma: proteger os veios de ouro que debaixo
da terra, dentro das rochas e dos rios, assim como guardar os tesouros escondidos. O
corpus da pesquisa é constituído pelas versões literárias escritas por Alberto Coelho da
Cunha e Nitheroy Ribeiro, que compõem o grupo sulino e de Veiga Miranda, Alceu
Maynard Araújo, Ruth Guimarães, Luis da Câmara Cascudo, Theobaldo Miranda
Santos, Lucília Garcez e de Souza Carneiro, que compõem o grupo centro-nortista. A
análise desses textos está apoiada na Semiótica que dá conta dos aspectos textual,
intertextual e contextual através de uma abordagem detalhada de cada texto, procurando
reconstruir o percurso gerativo de sentido.
6
Résumé:
Ce mémoire de maîtrise a pour objectif d’analyser la construction du personnage de
la Mãe do Ouro” dans l’imaginaire collectif du Rio Grande do Sul et son importance
dans la formation de la littérature du sud du Brésil. Plusieurs groupes ethniques ont
contribué à la formation de l’identité du peuple du sud du Brésil, amenant avec eux une
multitude de biens culturels qui ont subi l’influence de la culture aborigène, se
transformant et s’adaptant jusqu’à former une nouvelle culture identitaire. Dans cet
imaginaire mythique et légendaire nous retrouvons la Mãe do Ouro”, entité
surnaturelle liée à la croyance des cavernes enchantées et des Feux Follets. La “Mãe do
Ouro” se manifeste sous des formes les plus diverses. Généralement elle apparaît sous la
forme d’une boule de feu ou sous les traits d’une belle femme, mais sa fonction
demeure la même: protéger les filons d’or qui existent en dessous de la terre, à
l’intérieur des roches et des rivières et garder les trésors cachés. Le corpus de cette
recherche regroupe les versions littéraires écrites par Alberto Coelho da Cunha e
Nitheroy Ribeiro, auteurs originaires du sud du Brésil et celles de Veiga Miranda, Alceu
Maynard Araújo, Ruth Guimarães, Luis da Câmara Cascudo, Theobaldo Miranda
Santos, Lucília Garcez et Souza Carneiro, auteurs originaires du centre-nord du Brésil.
L’analyse de ces textes littéraires a été réalisée à partir de la théorie sémiotique en
tenant compte des aspects textuels, intertextuels et contextuels à travers d’une approche
détaillée de chaque texte permettant de reconstruire le parcours génératif du sens.
7
1 – Introdução
A literatura oral constitui-se em uma fonte inesgotável para os estudos acadêmicos,
como afirma Câmara Cascudo (1986: p. 15):o conto popular revela informação
histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando
costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos”. Não só os contos, mas também
as lendas, as fábulas, os casos, as adivinhações, os acalantos, as danças, enfim, toda e
qualquer manifestação cultural e folclórica de uma comunidade é capaz de revelar o seu
comportamento.
O ato de contar o envolve apenas o domínio das palavras. conta uma história
quem está disposto a criar um clima para ela, a viver a vibração e a emoção nela
contidas e transmiti-la ao ouvinte. A narrativa é auxiliada pela gesticulação, pelos
movimentos do corpo, pelo andar, pelos olhares, pela mudança de ritmos, pelas
entonações, pela mudança de sonoridade da voz e por outros recursos lançados para
prender a atenção de seu ouvinte. Esse bito de contar histórias continua ainda vivo
nas casas e nas rodas de amigos, em qualquer país do mundo. Apesar da avançada
tecnologia presente no quotidiano, é sobretudo curioso que crianças e adultos ainda
gostem de ouvir ou contar histórias fabulosas, como as lendas, e que essas mesmas
histórias, datadas muitas vezes de séculos, continuam sendo passadas de geração em
geração sem perderem o encanto para quem as escuta e para quem as conta.
Com este trabalho esperamos resgatar a Mãe do Ouro, uma figura do imaginário e da
oralidade rio-grandense apontada pela geração do Partenon Literário como
representante das tradições, das crenças e dos mitos que foram aproveitados na
constituição da literatura erudita, mas que parecem esquecidos pelas gerações
contemporâneas. Também esperamos reconstruir parte do emocionante mundo mágico
gaúcho, bem como abrir novos horizontes e perspectivas para o estudo das lendas
gaúchas não tão divulgadas, como a do Negrinho do Pastoreio, da Salamanca do Jarau
e da Mboitatá, que também possuem uma importância significativa na construção do
imaginário coletivo e na literatura erudita gaúcha.
Estudar esse rico universo de lendas, mitos e contos que pertencem à literatura oral é
fundamental porque significa conhecer e fazer viver as tradições, aprofundar e estreitar
as relações entre o passado e o presente, bem como redimensionar o seu sentido por
meio de novas interpretações. Por meio deste estudo, faremos, nas palavras de Antonio
8
Augusto Fagundes (2003: p. 09) um “aprofundamento na alma popular” que
“ninguém conhecerá um grupo social em profundidade sem intimar o seu folclore”.
Desde os primeiros tempos, cada povo, transmitindo suas experiências de vida,
explicando os fatos e fenômenos da natureza, contando episódios do seu quotidiano,
criou um repertório de lendas, mitos e contos de valor incomensurável. Denominava-se
de lendas, no início da era cristã, as narrativas de atos praticados por heróis, santos e
mártires, relatos maravilhosos modificados e enriquecidos pela fantasia popular. Com
Arnold Van Gennep (1920) a lenda é definida como um relato em que o lugar é
indicado com precisão, as personagens o indivíduos determinados e seus atos, de
qualidade heróica, têm um fundamento histórico. O que caracteriza principalmente a
lenda, assim como o mito, é a sua vinculação com a crença. A partir do momento em
que a lenda perde seus componentes essenciais como a credibilidade e a veracidade,
deixando de ser objeto de crença, seus temas e personagens fantásticos migram e
constituem o núcleo de outras narrativas como o conto ou as narrativas infantis, por
exemplo.
Cada grupo étnico colaborou com costumes, crenças e histórias para a formação da
literatura oral rio-grandense. Os espanhóis, os portugueses, os açorianos e os luso-
brasileiros (paulistas, lagunenses, mineiros, fluminenses, pernambucanos, baianos, entre
outros) trouxeram consigo a cultura de origem ora transplantada, ora adaptada ao novo
meio, sofrendo a influência da cultura do nativo. Tanto o isolamento geográfico e
político da província quanto o cultural, contribuíram para que a tradição cultural se
fizesse a partir de um repertório popular e se fixasse graças à ação imediata do povo.
Apenas na segunda metade do século XIX, com o advento da Sociedade Partenon
Literário que se deu o desenvolvimento da literatura erudita, mas essa foi buscar sua
inspiração nas tradições e nas raízes da literatura oral.
As lendas, tradicionalmente, pertencem à literatura oral, mas vários autores
coletaram-nas e registraram-nas sob a forma escrita. No Rio Grande do Sul, além de
Simões Lopes Neto, que recriou literariamente algumas lendas, um levantamento mais
sério do lendário gaúcho foi realizado por Barbosa Lessa e Antonio Augusto Fagundes.
Também o jornal Zero Hora lançou em 2000 uma coletânea, composta por cinco
volumes, que registra algumas das principais lendas e histórias concebidas a partir do
imaginário dos grupos étnicos que formaram o Rio Grande do Sul. Mas um aspecto
chamou a atenção: se Augusto Meyer, em seu Guia do folclore gaúcho (1975), afirma
que a primeira versão da Mãe do Ouro menos incompleta, recolhida no Brasil, é a de
9
Victor Valpírio, pseudônimo de Alberto Coelho da Cunha, publicada na Revista Mensal
da Sociedade Partenon Literário, em julho de 1873, então, o que envolve o fato dessa
lenda não constar no levantamento realizado por Barbosa Lessa e nem na coletânea
lançada pelo jornal Zero Hora? Em função dessa ausência, escolhemos a lenda A Mãe
do Ouro como objeto deste estudo.
Algumas lendas, como as etiológicas, são pequenos mitos e os mitos geram lendas
locais, daí surge a confusão entre tais gêneros da literatura oral. O mito tem como
características ser universal, atemporal e uma ação em constante movimento que se
disfarça noutros mitos, enquanto a lenda é local, é um ponto imóvel de referência e se
localiza obrigatoriamente no tempo. A lenda explica, mágica ou sobrenaturalmente,
qualquer origem e forma local, indica a razão de um hábito coletivo, de uma superstição
ou de um costume transfigurado em ato religioso pela interdependência divina. Por isso,
ao falarmos do mito da Mãe do Ouro, estamos fazendo referência ao relato de uma
crença generalizada na memória coletiva gaúcha; porém, quando falamos na lenda da
Mãe do Ouro, estamos nos referindo a um relato localizado e datado que delimita uma
certa comunidade.
Além do escritor pelotense Alberto Coelho da Cunha, que aproveitou o motivo para
uma novela de costumes regionais, outros escritores fazem referência à Mãe do Ouro.
João Simões Lopes Neto, em Lendas do Sul (1996), registra esse mito missioneiro,
colhido em Granada e Teschauer, que é a explicação da origem das serras e cerros de
pedra. Segundo o mito, num tempo muito antigo, por um castigo do u, gente foi
transformada em pedra: os ossos estão acimentados em pedra; a carne que os cobria
virou terra negra; os cabelos o os matos; o sangue é a água que aparece sob vertentes
e cascatinhas; os lugares ocados que aparecem são os buracos do corpo a boca, os
olhos, o nariz e os ouvidos; as veias deram em ferro e os nervos, a parte mais delicada,
viraram ouro. Entretanto, o que tudo governa é a Alma que não morreu, essa é a Mãe do
Ouro que defende os veeiros da fortuna. Às vezes, um desses cerros rebenta com um
grande estrondo e a Mãe do Ouro muda-se para outro cerro: se for à noite, a mudança é
percebida através do deslocamento do fogo; se for de dia, ocorre sempre no pino do
meio-dia ou na luz do sol que encandeia os olhos, e apenas sente-se o rumo que ela
toma, mas sem saber o lugar novo em que vai fazer morada. em Mitos e lendas do
Rio Grande do Sul (2003), de Antonio Augusto Fagundes, a Mãe do Ouro vive no Cerro
do Jarau, na forma de uma grande bola de fogo e, às vezes, nas tardes ameaçando chuva,
sob um grande estouro, ela pula de uma elevação à outra.
10
O imaginário coletivo tradicional, conforme estudos de Sylvie Dion (2002), é
povoado por representações religiosas e populares de um conjunto de personagens de
origem espiritual boa ou , segundo o lugar originário. O lugar de onde emergem as
referidas personagens pode ser: o u ocupado por Deus, os santos, os anjos e as almas
salvadoras; o inferno, domínio do diabo, dos espíritos maus e condenados e, entre os
dois, o purgatório, onde transitam por um tempo indeterminado, mas geralmente longo,
almas penadas e pecadoras. Jean Du Berger (1990) propõe uma classificação para essas
figuras estranhas ou familiares que povoam as lendas, valendo-se de alguns critérios:
dotados de corpo ou não, dotados de valores positivos ou negativos, sujeitos ativos que
praticam ações ou sujeitos passivos e afetadas da qualidade voluntário ou não-
voluntário.
A Mãe do Ouro é uma entidade que tem a função de proteger os veios de ouro que há
debaixo da terra, dentro das pedras e dos arroios, além de ser guardiã de tesouros
escondidos. Com base na análise das versões que constituem o corpus desta pesquisa, a
Mãe do Ouro é uma figura sobrenatural ambivalente que realiza ações positivas ou
negativas, pois, em certas ocasiões ela intervém, de forma milagrosa, para oferecer
ajuda e proteção, restabelecendo a ordem de uma comunidade; em outras ocasiões ela é
uma ameaça à ordem de uma comunidade, pois ataca seus membros levando-os à
autodestruição.
O corpus da pesquisa é constituído das interpretações de Alberto Coelho da Cunha e
Nitheroy Ribeiro, que compõem o grupo sulino, e de Veiga Miranda, Alceu Maynard
Araújo, Ruth Guimarães, Luis da Câmara Cascudo, Theobaldo Miranda Santos, Lucília
Garcez e Souza Carneiro, que compõem o grupo centro-nortista. As comparações são
feitas a partir das variantes literárias do grupo sulino em relação às demais, pois o
objetivo é destacar a importância da Mãe do Ouro no imaginário coletivo gaúcho: como
a personagem está construída, a(s) sua(s) provável(is) origem(ns) e sua participação na
formação da literatura do Rio Grande do Sul. Também desejamos verificar quais os
elementos étnicos presentes na lenda e entender as necessidades da comunidade que
resultaram no surgimento ou adaptação da lenda em solo rio-grandense.
Para atingir nossos objetivos, a análise dos textos literários está apoiada na teoria
semiótica de Greimas, que dá conta dos aspectos textual, intertextual e contextual
através de uma análise detalhada do texto. A Semiótica procura descrever e explicar o
que um texto diz e como ele faz para dizer, por isso, é preciso desconstruir o texto para
depois construir o percurso gerativo de sentido. Dessa forma, a teoria em foco pode ser
11
aplicada ao estudo das narrativas populares de estrutura simples cujo conteúdo colocado
no fim da história é um significado moral, pois é a expressão artística dos anseios e dos
medos coletivos, bem como a outros textos.
O modelo de análise de Greimas se divide em três níveis: fundamental, narrativo e
discursivo. No nível fundamental surge a oposição semântica mínima a partir da qual o
sentido do texto é construído, bem como as categorias positivas ou eufóricas e as
negativas ou disfóricas. No nível narrativo, o sujeito passa por transformações e
estabelece relações ora de conjunção ora de disjunção com objetos-valor. O nível
narrativo é o somatório das mudanças de estado realizadas pelo sujeito que age no
mundo, que busca valores e que transforma o mundo no qual está inserido. No nível
discursivo é analisado o conteúdo produzido e comunicado em forma de texto. O texto é
enunciado por uma instância que faz mediação entre as estruturas narrativas e as
discursivas, bem como entre o contexto sócio-histórico e o discurso. Na enunciação são
deixados vestígios que permitem resgatar a instância do sujeito da enunciação que faz
opções, as quais, por sua vez, geram efeitos de sentido.
Greimas também cria o termo actante em substituição ao termo personagem, pois o
actante é considerado sob o ponto de vista de seu papel dentro da narrativa. Ele pode ser
sujeito ou objeto, destinador ou destinatário, ajudante ou oponente. Dependendo do
desenvolvimento da narrativa em que está inserido, o actante pode ter diferentes papéis
em diferentes estágios, sendo, por exemplo, algumas vezes sujeito, outras, objeto, ou
seja, o mesmo actante terá diferentes funções na mesma narrativa, portanto, receberá
uma designação de acordo com seu papel actancial.
No primeiro capítulo desta dissertação, “A literatura oral no veio poético regionalista
gaúcho”, apresentamos a literatura oral como componente do folclore e da tradição de
um povo e como um gênero da literatura oral, a lenda tradicional com sua definição, sua
função e seus principais requisitos. Expomos ainda uma distinção entre a lenda
tradicional, que pertence ao repertório oral e seus desdobramentos, no caso a lenda
literária e o conto lendário, que utilizam os motivos orais, mas os revestem de outras
características. Ainda, neste capítulo, traçamos um breve histórico sobre os grupos
étnicos que formaram o Rio Grande do Sul e suas contribuições culturais para a
formação da literatura oral que, conforme já apontamos, serviu de inspiração para a
formação da literatura erudita.
No segundo capítulo, “A Mãe do Ouro”, tentamos reconstituir a origem do mito da
Mãe do Ouro. Mostramos as variadas formas de representação da Mãe do Ouro, as
12
crenças relacionadas ao mito e sua função, como também as influências e infiltrações de
outros mitos e as contribuições dos diferentes grupos étnicos para seu enriquecimento.
Também revelamos os parentes próximos, os ciclos da Salamanca e da Mboitatá, e suas
relações com a Mãe do Ouro. Por fim, apresentamos uma divisão das versões literárias
da Mãe do Ouro que compõem o corpus desta pesquisa em dois grupos: sulino e centro-
nortista e um resumo das respectivas versões.
No terceiro capítulo, “A Semiótica e o estudo das lendas”, explicamos a Semiótica, a
base teórica que fundamenta este estudo. A semiótica é uma teoria que se preocupa com
o texto e seu objetivo é examinar, descrever e explicar os procedimentos da organização
textual, os procedimentos de como os sentidos são criados e comunicados. Damos
ênfase às obras Teoria semiótica do texto, de Diana Luz Pessoa de Barros (2003), e
Sémiotique du récit, de Nicole Everaert-Desmedt (1988).
No quarto capítulo, “As versões da lenda A Mãe do Ouro, fazemos a análise
propriamente dita das versões da lenda. O primeiro passo é a análise no vel
fundamental, depois no nível narrativo e, por fim, no nível discursivo de cada uma das
versões. Realizamos também um levantamento dos aspectos relevantes entre as versões
da lenda a fim de perceber em que medida o grupo centro-nortista se assemelha ao
grupo sulino ou o subverte, já que o objetivo deste estudo é ressaltar a importância da
construção da personagem Mãe do Ouro no imaginário coletivo gaúcho.
Ao final, transcrevemos as versões da lenda A e do Ouro que compõem o corpus
desta pesquisa.
Esperamos que o caráter mágico das lendas permeie este estudo, a fim de deleitar
quem se dispuser a ler as páginas, que seguem.
13
2 – A literatura oral no veio poético regionalista gaúcho
A literatura oral é uma das formas de manifestação literária que se caracteriza como
não-intelectualizada, anônima e a sua permanência está no fato de representar os ideais
e os sonhos de toda uma comunidade. Ela existe paralelamente à literatura escrita,
erudita, dita oficial, vinculada às convenções literárias e que engloba autores
intelectualizados e escolas clássicas.
A expressão Literatura Oral, de acordo com Luis da Câmara Cascudo (1978), surgiu
em 1881, na obra Littérature Orale de la Haute-Bretagne, do folclorista francês Paul
Sébillot. A literatura oral engloba as narrativas e as cantigas populares, os provérbios, os
acalantos, as adivinhas, as anedotas, as fórmulas, as orações, enfim, um conjunto de
manifestações que caracterizam costumes, crenças e sabedoria popular. Essa literatura é
um dos objetos de estudo do folclore literário. A palavra folk-lore, etimologicamente
folk (= povo) + lore (= sabedoria), criada por William John Thoms, em agosto de 1846,
se refere ao conjunto de manifestações da cultura, do saber tradicional e empírico de um
grupamento humano, como explica Maria de Lourdes Borges Ribeiro, citada por
Américo Pellegrini Filho:
Abrange todos os campos da vida humana, incluindo seus mitos e
lendas, suas estórias, parlendas, adivinhas e provérbios, seus contos e
encantamentos, suas juras, pregões, xingamentos e gestos, e também
suas danças, seus teatros, suas artes, seus instrumentos e cantigas, suas
festas tradicionais, suas crenças e crendices, sua magia, seus tabus e
superstições, sua medicina, seus rezadores e benzedores, suas trovas,
desafios e romances, suas orações, seus brinquedos e seus jogos, suas
técnicas populares, suas rendas, bordados, trançados e cestarias e sua
cozinha (1982: p. 16).
Essas formas de manifestação através da literatura, da arte e da ciência popular se
caracterizam por viverem na tradição e no anonimato, por serem um fenômeno coletivo
de forma empírica e espontânea, por preencherem uma função e serem transmitidas
oralmente entre as gerações.
O que distingue fundamentalmente um fato folclórico é sua aceitação coletiva, pois
ocorre a despersonalização do autor que, uma vez aceito e modificado pela
coletividade, passa a ser uma obra do grupo. O fato folclórico pode ser uma criação de
alguém que foi aceita e tornada de todos ou ser um fato erudito que desceu às camadas
populares. Nesse sentido o anonimato está difundido na aceitação coletiva.
14
O fato folclórico é espontâneo devido ao seu caráter natural e empírico, baseado na
prática, ou seja, faz parte da própria essência das vivências dos grupamentos humanos.
É desprovido de teoria porque seu surgimento, vivência e transmissão se efetuam de
maneira não-formal, sem metodologia científica, apoiando-se na interação, na imitação
ou na transmissão oral, de geração em geração. Mas a oralidade o pode mais ser
considerada na sua unanimidade, pois existem manifestações folclóricas vinculadas à
forma escrita, como as frases de pára-choques de caminhão, as fórmulas de fiado, as
mensagens típicas do “correio do amor”, epitáfios e a literatura de cordel.
O folclore preenche uma função porque tudo que um grupo humano realiza tem um
sentido, satisfaz uma necessidade espiritual ou material que justifique sua existência.
Essa funcionalidade está diluída na memória coletiva e pode ser substituída por outra
motivação se a primeira o suprir mais as necessidades do grupo, pois se as
necessidades que o fato folclórico satisfaz mudam ou desaparecem, deverá naturalmente
mudar ou desaparecer sua função
1
”. O folclore revela o modo de ser e a mentalidade de
uma comunidade exatamente pelas funções que cumpre.
No folclore é um erro empregar tradicional com sentido de coisa do passado, pois
não é necessário que venha do passado; pode ser uma inovação ou uma criação
introduzida pela propagação. Tradicional, nesse sentido, é o que se transmite vivo e
assim se conserva. Também não implica imobilidade, pois as manifestações folclóricas
são dinâmicas, mudam as formas, porém o espírito permanece e essa continuidade no
tempo e no espaço equivale à tradição. É natural que uma produção como o canto, a
dança ou o conto que se difundiu entre uma comunidade “seja folclórica quando se
torne anônima, antiga, resistindo ao esquecimento e sempre citada, num ou noutro
meio
2
”.
A literatura oral, de acordo com a classificação de Antonio Henrique Weitzel (1995),
pertence ao folclore literário, que compreende duas divisões: folclore poético e folclore
narrativo. O primeiro engloba o cancioneiro materno com os acalantos, as cantigas
infantis, com as brincadeiras cantadas, os romances, os abecês, as quadras, os desafios e
a literatura de cordel. Ao folclore narrativo pertencem as lendas, os mitos, os contos, as
fábulas, os casos e o anedotário popular.
1
PELLEGRINI FILHO, Américo (org.). Antologia de folclore brasileiro. o Paulo: EDART, 1982, p.
29.
2
CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL,
1978, p. 23.
15
2.1 – A lenda tradicional
A palavra lenda (do latim legenda, forma gerundiva do verbo gere = ler) significa,
etimologicamente, o que se deve ler”. Esse substantivo passou a denominar as
narrativas de atos praticados por heróis, mártires e santos, modificadas pela fantasia
popular. Era costume nos conventos e mosteiros da Igreja Católica fazer cada dia à hora
das refeições, em comum, a leitura da vida do santo que dava o nome do dia. Devido ao
fato de as leituras serem diárias, como informa Aires da Mata Machado Filho, poderiam
faltar as biografias que foram “sendo compostas ou acrescentadas com as ações que a fé
ardente dos autores atribuía a seus heróis
3
”.
de tempos anteriores à era cristã, os grupos humanos criavam relatos fantásticos
para explicar os fatos e fenômenos da natureza ou para transmitir impressões e
experiências da vida. Apontadas como um gênero da literatura oral, as lendas, segundo
Amadeu Amaral, “são narrações populares que constituem objeto de crença, geralmente
localizadas, individualizadas e ‘datadas’, isto é, com determinações de lugar e de época
e com personagens reais ou assim consideradas
4
”.
Relatos fabulosos e subjetivos, as lendas apresentam um caráter didático, conforme
Sylvie Dion (1999), porque elas servem de pretexto, explorando os valores morais de
uma comunidade, para educar, mostrando os bons e os maus exemplos, os modelos de
indivíduos e os antimodelos, os comportamentos a serem seguidos e os que devem ser
evitados a qualquer custo. Citamos como exemplo a coleção de lendas do jabuti, na qual
todos os episódios foram imaginados com a finalidade de evidenciar a crença num
pensamento geral: a supremacia da inteligência sobre a força física. Como se sabe o
jabuti é, dos animais da fauna brasileira, um dos mais vagarosos; no entanto, à custa de
astúcia, vence o veado na carreira apostada. Assim, a lenda ensina, pelo contraste entre
a vagareza do jabuti e a celeridade do veado, que a astúcia e a manha podem mais do
que outros aspectos para se vencer um adversário. Couto de Magalhães afirma que
“ensinar a um povo bárbaro que não é a força física que predomina, e sim a força
intelectual, equivale a infundir-lhe o desejo de cultivar e aumentar sua inteligência
5
”.
3
Apud MARQUES, Lílian Argentina B. et al. Rio Grande do Sul: aspectos do folclore. Porto Alegre:
Martins Livreiro Editor, 1992, p. 50.
4
AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948, p. 43.
5
In: CASCUDO, Luis da Câmara. Antologia do folclore brasileiro. o Paulo: Livraria Martins Editora,
s/d, p. 209.
16
A lenda preenche uma função social de advertir, prevenir e persuadir. Ela é um
discurso que focaliza alguma transgressão, alguma ação que consiste em infringir um
código de condutas ou ultrapassar os limites normalmente permitidos e tolerados por
uma comunidade. Essa transgressão pode ocorrer sob várias formas, conforme estudos
de Sylvie Dion (1999): pode ser uma transgressão social e religiosa composta por
adultério, blasfêmia, assassinato, não-observância das regras religiosas; uma
transgressão no sentido mais amplo como um desvio da natureza, no caso um tremor de
terra, uma inundação, um cataclismo natural, um monstro marinho ou humano; ou um
desvio por intervenção do sobrenatural como a aparição de um santo, do diabo, de um
morto-vivo, de um fantasma ou uma possessão diabólica.
As lendas estão classificadas em pessoais, locais, episódicas e etiológicas, de acordo
com o critério adotado por Antonio Henrique Weitzel (1995). As lendas pessoais
ligadas a um indivíduo conhecido, herói ou vilão, se subdividem em heróicas, as que
envolvem personagens da História como Carlos Magno e outros vultos históricos;
hagiográficas, que envolvem figuras de santos e mártires, como as lendas de São
Cristóvão (que carregou o menino Jesus nos ombros) e Santa Isabel (que viu
transformados em rosas os es que levava escondidos em um cesto) e anedóticas, que
estão ligadas a pessoas excêntricas, já que todas as comunidades possuem os seus
personagens espirituosos e extravagantes, em torno dos quais se tecem histórias.
As lendas locais, tópicas ou geográficas, estão vinculadas a uma localidade, ao seu
topônimo pitoresco ou em relação a acidentes geográficos como serras, rios, lagos,
cavernas e grutas. Já as lendas etiológicas se referem à origem de um animal ou planta.
Esses dois últimos tipos de lenda mantêm relações profundas com o mito, pois alguns
mitos geram lendas locais e algumas lendas etiológicas são pequenos mitos. A maioria
das lendas etiológicas conhecidas, como por exemplo da origem da mandioca, do
guaraná, do milho, é de procedência indígena.
As lendas episódicas se ligam a um acontecimento particular ou a um evento que
interessa à comunidade. O dilúvio, por exemplo, um episódio que abalou
profundamente a humanidade, está na literatura oral de todos os povos. O Negrinho do
Pastoreio é outra lenda episódica ligada ao período da escravatura.
17
2.1.1 – Crença e transmissão oral: requisitos da lenda tradicional
As crenças e superstições fazem parte da vida dos povos, desde os mais remotos a
os mais desenvolvidos científica e tecnologicamente. O medo é o grande gerador das
crenças: medo do inferno, medo do diabo, medo de pecar, medo de ser perseguido por
espíritos, etc. Essas fobias fazem com que pessoas se tornem crendeiras e supersticiosas
e criam, concomitantemente, um sincretismo de crenças, engendradas para transformar
pecados em virtudes. As crenças e superstições variam de uma pessoa para outra e de
um lugar para outro: algumas adquirem valor entre componentes de determinadas
classes, uma família ou uma comunidade; outras somente em uma única pessoa,
geralmente seu criador, e a maioria se difunde entre os povos, adquirindo valor
universal.
O povo sul-rio-grandense alimenta a crença de que os objetos perdidos aparecem se
forem acesas velas ao Negrinho do Pastoreio. Em relação à Mboitatá, além da crença na
perseguição, havia a crença no meio eficaz de livrar-se dela que “consistia em desatar o
laço dos tentos, deixando somente preso à cincha dos arreios, pela presilha, e de arrasto
no terreno
6
”. Dessa maneira a cobra de fogo, atraída pelo ferro, prendia-se à argola do
laço e assim ia arrastada por todo o trajeto, deixando de incomodar o viajante noturno.
Acreditam na existência, conforme estudos de João Cezimbra Jacques (1979), do Saci-
pererê, espécie de ser fantástico, retratado na figura de um “negrinho”, o qual era
encontrado à noite pelos caçadores ou andantes, sempre aos saltos ligeiros, nos matos e
nas picadas, e que não era raro saltar na garupa do viajante a cavalo ou fazer trejeitos na
frente do animal, interrompendo o trânsito. Também é comum a crença, entre os
camponeses gaúchos, em certas simpatias para curar o gado de diversas espécies quando
enfermo, bem como a crença em um conjunto de entes sobrenaturais como o
lobisomem, o diabo, a bruxa e outros personagens vistos como maus, assim como em
santos, anjos e outros vistos como bons.
Os povos humanos têm necessidade de uma explicação qualquer que seja para os
fatos que testemunham, de forma que, quando se confrontam com fenômenos
incompreensíveis, inventam suas origens, baseadas em explicações não-racionais, e
essas são transmitidas de geração em geração como verdades incontestáveis e sagradas.
Certas crenças desaparecem com a compreensão ou explicação científica dos fenômenos
6
JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: União de Seguros Gerais,
1979, p. 48.
18
que as geravam ou outras as substituem porque “a muda de objeto, mas não morre.
Não poderia morrer, pois a necessidade de crer constitui um elemento psicológico tão
irredutível quanto o prazer ou a dor
7
”.
O que caracteriza principalmente a lenda é a sua vinculação, na mente popular, com
a fé. A lenda vive somente na crença da qual é o significado, pois não quase lendas
inúteis ou desinteressadas, todas contribuem com algum significado. Toda vez que a
lenda é contada, a crença é renovada e reforçada pelo fato do narrador crer naquele fato,
evento ou personagem da comunidade como algo verídico. A partir do momento em que
não corresponde mais às necessidades de um grupo, segundo o etnólogo Jean Du Berger
(apud DION; 1999), a lenda deixa de ser objeto de crença e a narrativa será recuperada
pela sua função lúdica, pois ela é comparada a um organismo vivo que nasce, morre ou
se transforma através das gerações. Assim, as lendas
mostram-nos o homem, em todos os tempos e lugares, às voltas com a
necessidade de crer e afirmar, de forjar uma explicação para tudo, de
conquistar um terreno firme no imenso resvaladouro de incertezas em
que se encontra perdido (AMARAL; 1948: p. 45).
na lenda obrigatoriamente um caráter mágico, uma atmosfera sobrenatural, mas
ela apresenta também as categorias da realidade e da veracidade, em contraposição ao
mundo atemporal do mito e ao fictício do conto. As lendas explicam qualquer origem e
forma local, indicando a razão de um hábito coletivo, de uma superstição ou de um
costume, por isso seu discurso mantém uma forte identificação geográfica de modo que
personaliza, identifica e até delimita determinada comunidade. As lendas sofrem
transformações quando o transplantadas para outro ambiente, perdem-se ou
revigoram-se com os elementos locais do novo contexto, reelaborando, assim, sua
função social e seu
significado.
A transmissão oral de uma lenda é uma ação coletiva que necessita da colaboração
íntima de dois parceiros: um narrador e um auditório que constituem, em suma, o que
Bertrand Bergeron (1988: p. 65) chama de coopérative narrative” na qual o primeiro
demanda da adesão por parte do segundo. Sem a participação de um auditório, a
tentativa de fazer acessar a informação fechada no estado de lenda fracassa e a
cooperativa narrativa se dissolve sem ter exercido seu mandato de transmissão, porque
uma vez terminada a narração, essa se dissolve e seus membros, desempenhando o
7
LE BON, Dr. Gustave. As opiniões e as crenças. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, s/d, p. 12.
19
papel de multiplicadores, fazem nascer outras comunidades narrativas a fim de
perpetuar a transmissão.
Toda a estratégia expressiva do narrador está na sua habilidade de render
credibilidade na informação, de convencer do fundamento da interpretação maravilhosa
que ele fez, de criar uma obrigação de crer a outrem, que se conforma logo nela mesma.
O narrador exige de seu auditório que tenha nele, recrutando a seu uso a faculdade
mais natural do homem, aquela de crer. O narrador compromete a sua própria
credibilidade, tenta convencer por sua própria convicção, fazendo crer e primeiramente
crendo nele próprio.
Crer, de acordo com Bertrand Bergeron (1988), é uma categoria fundamental da
personalidade humana sem a qual não haveria aprendizagem. O discurso lendário
implica duas competências mentais fundamentais para o processo da crença: “crer em” e
“fazer crer”. Entre os dois aspectos existe uma simetria rigorosa porque os protagonistas
dessa atividade mental partilham uma mútua confiança. O contador usa a competência
do “fazer crer” através dos mais variados recursos para despertar no auditório a
competência do “crer em”.
Tais recursos são disponibilizados para conferir autenticidade e veracidade ao relato,
pois são buscados no paradigma para atrair a atenção do auditório e para fazer com que
o ouvinte acredite naquilo que está ouvindo. Além de recursos da entonação, pronúncia,
repetição, duplicação, prolongamento das vogais para dar a impressão de tamanho,
altura, velocidade, exprimir valores de distância e quantidade, a narração é auxiliada
pela gesticulação, movimentos do corpo, andar, indicação precisa do lugar da ferida ou
do golpe aplicado. A voz do narrador ainda materializa as sucessivas fases da narração,
isto é, muda de timbre indicando a pluralidade do elenco e personalizando as
personagens.
Cada relato passa a ser uma interpretação subjetiva acerca de determinado episódio,
pois temos “uma tendência em deformar os fatos que observamos, a submetê-los às
nossas idéias, aos nossos hábitos mentais, à nossa maneira de ver
8
”. A forma como
esses elementos estão arranjados e combinados, adquirindo nova fisionomia, fazem
surgir as variantes, que são os mesmos enredos com diferenciações que podem trazer
8
Id., p. 318-319.
20
as cores locais, algum modismo verbal, um bito, uma frase, denunciando, no espaço,
uma região, e no tempo, uma época
9
”.
2.1.2 – A lenda literária e o conto lendário
A lenda tradicional, como gênero da literatura oral, pertence ao repertório popular de
uma comunidade e sua transmissão é feita sempre diante de um público ouvinte. Os
recursos disponibilizados pelo contador para conferir autenticidade e veracidade ao
relato o partes importantes na percepção e recepção de uma lenda, um mito ou um
conto popular. Devido à competência do contador, esses relatos são sempre
apresentados ao ouvinte de um modo diferente, pois a cada vez que contar o fará de
outra maneira, embora mantendo as informações necessárias. O encanto está,
justamente, no momento do contar, porque é o tipo de relato o qual o ouvinte o se
cansa de escutar e a cada novo contar persiste a sensação de estarmos ouvindo a história
pela primeira vez.
O ato de contar constitui uma atividade social, conforme Bertrand Bergeron (1988),
porque requer a presença de uma comunidade ouvinte para adquirir existência, já que
uma narração não se perpetua sem o dinamismo da interação, no momento da
transmissão. Na enunciação oral, a suspensão do relato causa danos irreparáveis à
construção de sentido e a falta de atenção do ouvinte também é fatal pelo fato de não se
poder recuperar o fio do discurso, devido à concomitância entre o ato da fala e o da
escuta.
Ao contrário, na literatura escrita, a leitura pode ser adiada no curso de sua execução
e retomada fazendo voltas atrás para reintroduzir-se no contexto, pois sua duração se
inscreve no espaço circunscrito do texto impresso. A escrita conserva um texto através
dos tempos, sendo o leitor o responsável em atribuir-lhe sentido, mas ela o supõe a
presença desse leitor no momento da redação, ou seja, o autor escreve na sua solidão
para leitores que o lerão também no isolamento.
As narrativas populares, como o mito, o conto e a lenda, são sistematizadas de
acordo com elementos ou características variáveis e invariáveis em cada narrativa, mas
são apenas para efeito didático, pois diante da imensa maioria dos casos é complicado
de distinguir a qual daquelas categorias um determinado relato pertence exatamente.
9
CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL,
1978, p. 33.
21
Essas narrativas são criações coletivas e brotam da natureza humana, sem autor
conhecido, nas quais a voz de toda uma comunidade aglomera seus anseios e seus
temores, mas com algumas especificidades. O mito é uma explicação do mundo,
contada como realidade e objeto de crença e ritual. A lenda também tem a pretensão de
ser real, ela apresenta precisão de tempo e espaço, personagens supostamente históricas
como reis e santos e pode apresentar elementos sobrenaturais. o conto popular é
sempre uma ficção.
Arnold Van Gennep (1920) faz uma distinção baseada no critério crença: o mito e a
lenda são objetos de crença, enquanto o conto e a fábula o são. Mas existem os casos
intermediários que não podem ser negligenciados, como os contos que são localizados,
individualizados e objetos de crença porque existem em conseqüência de lendas. Assim,
como algumas lendas que explicam a origem das coisas ou justificam padrões de
comportamento, consideradas, na realidade, como pequenos mitos; bem como os relatos
que apresentam personagens animais, mas que são os totens de determinados grupos
humanos.
Quando um escritor aproveita o material preexistente no repertório de um grupo para
a utilização direta ou fazer uma reelaboração estilizada, ocorre a passagem de relatos ou
temas da literatura oral para a literatura escrita culta. Nessa passagem algumas
características são perdidas ou redimensionadas como, por exemplo, a narrativa passar a
ter um autor individual e culto; a lenda perder a sua vinculação com a crença e seu
caráter de veracidade, adquirindo aspectos ficcionais.
As interpretações da lenda tradicional A Mãe do Ouro, que compõem o corpus desta
pesquisa, seguramente aproveitaram os motivos pré-existentes no seio de um grupo
social. Os autores as reelaboraram e as resignificaram, no tempo e no espaço, na forma
de lendas literárias e contos lendários, pois cada interpretação é a imaginação, a
ampliação e a adaptação de uma história tradicional que se transformou até que fosse
capaz de representar a sua cor local.
2.2 – Formação étnica do Rio Grande do Sul e suas contribuições
Do ponto de vista histórico, o Rio Grande do Sul sofreu um retardamento no seu
processo de integração ao restante do território brasileiro de tal forma que, em nenhuma
outra região, como afirma José Clemente Pozenato (1974), a tradição local tenha
adquirido forma o própria. Ao lado da atividade econômica pastoril e agrícola, a
22
atividade militar exerceu grande influência pelo fato da província estar localizada em
zona limítrofe com as possessões espanholas, rendendo constantes lutas pela
estabilização das fronteiras. Além disso, o isolamento, sobretudo cultural, devido à
ausência de escolas, à pouca presença da Igreja e à falta de convivência com o processo
cultural brasileiro, contribuiu para que a tradição cultural rio-grandense se fizesse e se
fixasse a partir da ação imediata do povo, resultando na formação de um conjunto de
habitantes com características bem peculiares, perfeitamente adaptado ao meio e às
circunstâncias da região.
Os grupos étnicos que cooperaram para a formação da identidade do rio-grandense
trouxeram consigo seu acervo de bens culturais de origem, que sofreram influências,
transformações e adaptações, adquirindo algumas propriedades e perdendo outras até se
formar uma cultura que identificasse a nova comunidade. Geralmente os estudos se
reduzem a três correntes formadoras: os portugueses, os indígenas e os africanos. No
entanto, outras correntes deixaram sinais significativos no processo histórico do
desenvolvimento cultural do Rio Grande do Sul, como os espanhóis, os açorianos
10
e os
luso-brasileiros.
Devemos ao elemento português, além da fundação da cidade do Rio Grande, em
1737, ano em que oficialmente se a ocupação e formação do atual estado do Rio
Grande do Sul, o cumprimento do Tratado de Madrid de 1750 na parte relativa à
demarcação dos limites. Os comandantes de expedições e de tropas, os governadores e
outros militares de alta patente que davam o cumprimento das ordens do governo de
Portugal, bem como os grandes chefes das incursões bandeirantes eram portugueses do
continente. Também se instalaram no território do Rio Grande do Sul algumas levas de
portugueses que fugiram da Colônia do Sacramento, em virtude de sua perda definitiva.
Em relação ao elemento indígena, apenas os guaranis, os charruas e os minuanos
deixaram sinais expressivos da sua cultura, pois as demais nações foram exterminadas.
Os guaranis, pertencentes à nação Tape, habitavam o litoral, as margens do Jacuí e as
margens do Uruguai, onde se situavam as Reduções. Eram pequenos agricultores, bons
navegadores e guerreiros, pois enfrentaram muitas lutas com os bandeirantes paulistas,
10
oriano é um povo composto por várias etnias com características próprias, pois o arquipélago das
nove ilhas do Atlântico recebeu um maior número de portugueses do Minho, Algarve e do Alentejo e a
presença de alguns flamengos. O Minho sofreu influência dos germânicos, população que desceu do norte
da Europa e fundou ali os reinos godos, alanos, suevos e visigodos. O Algarve sofreu influência dos
árabes. Esses habitantes não deixaram de ser portugueses, mas irão diferenciar-se do português
continental, devido ao isolamento no Oceano que lhe altera as raízes, preservando os costumes de modo
peculiar. Cf. LAYTANO; 1987: p. 22-23.
23
com as forças coligadas luso-castelhanas e com os rio-grandenses que conquistaram as
Missões. Embora dispersados pelos paulistas, muitos foram incorporados ao povo
gaúcho juntamente com seu amplo e precioso patrimônio cultural: nomes geográficos,
alimentos, lendas, sistemas de trabalho dos campos e amplo vocabulário.
Os charruas e os minuanos, tribos da nação Chaná, eram os habitantes dos pampas.
Antes da introdução do gado, os charruas viviam da caça e da pesca, pois não
cultivavam a terra e moravam em toldos cobertos de couro. Os minuanos, grandes
guerreiros, usavam, além das boleadeiras, arma comuns aos indígenas, o laço, a funda e
a lança. Resistiram aos jesuítas, mas, mais tarde, fizeram amizade com os portugueses,
donde resultou grande mestiçagem. Deles provém o gosto de andar a cavalo, de comer
churrasco, de tomar chimarrão, de mascar fumo e certos aspectos do trajar do gaúcho,
como os ponchos de couro e o xiripá de algodão. Não podemos esquecer que foi a
herança do aborígine, ou melhor, a incorporação dos seus valores morais, “a infra-
estrutura sem a qual não teria surgido o gaúcho dos primeiros tempos, que ao índio
deveu muito daquilo que o caracterizou como tipo americano único das técnicas de
trabalho campeiro ao nomadismo e ao amor da vida livre
11
”.
O negro africano chegou ao Rio Grande do Sul, pela primeira vez, por volta de 1725,
como escravo, integrando os povoadores da “frota” de João de Magalhães, que saiu
de Laguna até o canal da Barra. Também havia africanos entre os participantes da
expedição comandada por Silva Paes, em ocasião da fundação da cidade do Rio Grande.
Até 1780 o houve condições favoráveis à introdução de grande quantidade de
africanos em solo rio-grandense, uma vez que os colonizadores açorianos não tinham
recursos para adquiri-los, cuidando sozinhos da lavoura e do gado. A partir daquele ano
começaram a surgir, em Pelotas, grandes charqueadas, que provocaram a entrada do
negro africano como mão-de-obra escrava. A incorporação efetiva do elemento africano
e sua cultura na sociedade ocorrem após o processo de libertação, ainda assim, de
forma gradativa sem que seja procedida uma modificação radical das estruturas.
O primeiro contingente espanhol fixou-se na província com os aldeamentos fundados
pelos jesuítas espanhóis, a partir de 1626. Os padres jesuítas introduziram os animais
bovino e cavalar nas Reduções, transformando os índios em notáveis montadores de
cavalos. Além de ensinarem os índios a viver nas fazendas onde cuidavam do rebanho
ou nas cidades, ensinaram-lhes também ofícios como os de artesãos, de músicos, de
11
CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre: Globo, 1970, p.
19.
24
tipógrafos, de marceneiros e de construtores. O segundo contingente resultou de muitos
deles, que permaneceram habitando por ocasião das invasões em que os exércitos
coloniais da nação espanhola apoderaram-se do território gaúcho por largo tempo, em
1763, como também quando caíam prisioneiros em poder dos portugueses. Destruídas
as Missões pelos bandeirantes e pelo Tratado de Madrid em 1750, o elemento espanhol
limitou-se às contribuições nas regiões fronteiriças com o Uruguai e Argentina e aos
modismos de língua e linguagem.
O governo português, depois de reconhecer a impossibilidade de manter a Colônia
do Sacramento sob seu domínio, decidiu fixar algumas famílias de colonos no Rio
Grande para tomar posse efetiva da região, trazendo para isso levas e levas dos
habitantes do Arquipélago dos Açores
12
. Os Açorianos contribuíram, segundo Luiz
Marobin (1985), no âmbito cultural, com a introdução de valores relacionados à família,
que era bem constituída e conservada; à religião, sendo católicos sem a presença do
fanatismo, constituíam-se as grandes festas religiosas também em grandes diversões; à
moral, na qual predomina o sentimento da honra; bem como sua influência na
arquitetura, na agricultura, no urbanismo e na língua. Os trajes típicos do gaúcho foram
uma adaptação dos trazidos de Portugal, que, por sua vez, tinham elementos árabes. As
danças, acompanhadas de trovas e sapateados, provêm dos Açores, como também as
cavalhadas, recordação do domínio mouro, que tiveram grande impulso no Rio Grande
do Sul por influência dos índios missioneiros.
A cultura açoriana vai logo sobrepujar as já existentes no Rio Grande do Sul,
lançando raízes sem deixar de sofrer as imposições do novo meio. O ilhéu, todavia,
incorpora à língua portuguesa o linguajar luso-tupi de paulistas e catarinenses; assimila
costumes do indígena e do espanhol platino, tornando-se também campeador,
aprendendo a manejar o laço, as boleadeiras e a adaga, assim como adquire o hábito de
tomar mate e de comer carne assada, no espeto, sobre as brasas.
O luso-brasileiro provém da mestiçagem do português radicado no Brasil com o
índio e com o negro, pois o centro e o norte vinham sendo colonizados desde 1532
com a implantação do sistema de capitanias hereditárias. Os luso-brasileiros, entre eles
os lagunenses, os catarinenses e os paulistas que chegaram com a “frota” de João de
12
O governo português deu preferência aos habitantes do Arquipélago dos Açores que, devido à perda de
quase todas as colheitas em virtude do mau tempo, mantinha um contingente populacional excessivo para
os recursos alimentares disponíveis. Cf. CESAR; 1970, p. 127.
25
Magalhães, por volta de 1725, são os responsáveis pelo povoamento da costa do Rio
Grande de São Pedro, segundo Guilhermino Cesar (1970).
Também em diversas ocasiões desceram os bandeirantes, grupos compostos por
paulistas, fluminenses, mineiros, baianos e pernambucanos, de São Paulo em direção ao
Rio Grande de São Pedro, para trocas comerciais com os espanhóis estabelecidos na
bacia do Prata, para capturar índios e levá-los como escravos e para ampliar a rota de
condução de tropas de gado vacum e muar. Nessas andanças, muitos dos aventureiros se
fixaram no território do Rio Grande do Sul, deixando sinais de sua presença na cultura
e, sobretudo, no sistema de organizar fazendas.
O elemento mestiço, também conhecido como crioulo ou mameluco, é o agente
articulador e propagador das manifestações da literatura oral, dos costumes, das práticas
religiosas e das diversões populares. Incorporando a(s) cultura(s) de origem e fazendo
as devidas adaptações e transformações, através das suas andanças, espalhou-as por
todo o Brasil.
Os usos e costumes de maior expressão do meio social que, apesar da ação
descaracterizadora do tempo, se cristalizaram e se difundiram foram os ligados aos
povoadores do século XVIII e ao regime de vida das estâncias, conhecida como a “era
do couro” (CESAR; 1970: p. 38). Assim temos peculiaridades que nos identificam
como típico gaúcho, nos valores morais, com a valorização da valentia, da liberdade e
da disposição em lutar até as últimas conseqüências em defesa dessa; na dieta, com o
churrasco e o mate; nas diversões, com a carreira em cancha reta e o jogo do osso; nas
técnicas de trabalho, com o rodeio, a doma e a tropeada e no vestuário, com as
bombachas e o poncho. Enquanto as heranças materiais tendem a desaparecer como as
boleadeiras, por exemplo, arma com a qual as reses eram dominadas em campos
abertos, que atualmente é considerada apenas um adereço a relembrar a fase heróica do
pastoreio; os signos representativos da cultura espiritual lendas, entidades míticas e
fábulas da literatura oral são um elenco de criações que continuam alimentando a
literatura, tanto culta quanto popular.
No mundo imaginário da literatura oral tem supremacia o tipo regional representado
pelo campeiro, pelo guerreiro, ao lado dos animais como o cavalo e o cachorro, seus
companheiros inseparáveis. É na figura do campeiro “construído a partir da apologia de
sua destreza nas lidas com o gado, no domínio da natureza e na maestria e coragem nas
26
contendas bélicas
13
que está a origem para a configuração da imagem positiva do
gaúcho com a valorização extrema da liberdade. Assim, como a fonte popular é capaz
de criar mitos duradouros como o centauro dos pampas ou o monarca das coxilhas, é
também capaz de desmitificá-los como nos motivos de fandango
14
do Tatu e da
Chimarrita. O universo representado é a região da campanha com a temática voltada,
principalmente, aos usos, costumes, crenças e linguagem do tipo humano gaúcho dos
primeiros tempos da colonização.
A literatura erudita rio-grandense registra seu desenvolvimento efetivo a partir da
segunda metade do século XIX, com o surgimento do Romantismo, a sua primeira
escola literária. Foi na vigência do movimento romântico que surgiu a Sociedade
Partenon Literário, a qual unificou esforços para o fortalecimento da literatura local com
a incorporação de recursos regionais e expandiu esse ideário, através da Revista Mensal,
às demais cidades da Província. A geração do Partenon é que vai descobrir” o Rio
Grande do Sul para a vida literária e “explorar o rico filão de seus costumes, hábitos e
tradições
15
”. Os agremiados em torno do Partenon Literário conseguiram realizar o que
José de Alencar produziu no âmbito do país, ou seja, a arrumação poética do desejo
nacional de ver-se reproduzido na literatura
16
”, a maior finalidade do Romantismo
brasileiro. Os temas que valorizavam as características locais estabeleceram as
principais linhas de força para a produção poética, pois tanto na prosa como na poesia
“o pampa, a atividade pastoril, as lutas de fronteiras o mais abandonaram a literatura
sul-rio-grandense
17
”.
Embora as influências dos grupos étnicos sejam bem expressivas, um fundo comum
versar sobre assuntos relacionados à valorização da campanha acabaria
amalgamando as canções, as lendas e os contos populares, assinalando,
conseqüentemente, a preeminência do pastoreio na formação da nova sociedade,
constituindo-se, sem dúvida, num dos alicerces da literatura sulina, como defendia
Bernardo Taveira Junior no artigo Reflexões sobre a literatura rio-grandense:
13
BERTUSSI, Lisana. Literatura gauchesca: do cancioneiro popular à modernidade. Caxias do Sul:
EDUCS, 1997, p. 38.
14
Motivos de fandango são composições para serem cantadas e dançadas.
15
CESAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971, p. 171.
16
ZILBERMAN, Regina et al. O Partenon literário: poesia e prosa. Porto Alegre: EST/ICP, 1980, p. 40.
17
MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/ICP,
1982, p. 25.
27
O aspecto de suas serranias elevadas, de seus bosques enflorescidos, de
suas campinas verdejantes, de seus rios e cachoeiras; o cântico de suas
aves multicores, a majestade de suas florestas, a par de um céu
esplêndido, basta para inspirar-vos a verdadeira poesia do belo.
Em nossas lendas, em nossas tradições, em nossos costumes, no valor
de nossos bravos, encontrareis uma fonte inexaurível para o romance,
para o drama, para a história, para a epopéia (1980: p. 145).
Esses temas voltados para a valorização da “cor local” iniciaram com as primeiras
manifestações orais, depois os românticos garantiram sua incorporação, buscando nas
tradições e nas raízes da literatura oral os motivos para consolidar um sistema literário.
E, desde então, poetas e ficcionistas garantiram seu tratamento e permanência nos
sucessivos momentos da literatura gaúcha, até a contemporaneidade.
28
3 – A Mãe do Ouro
A Mãe do Ouro é imaginada sob várias formas, mas aparece, freqüentemente, sob a
forma de uma bola de fogo ou de uma formosa mulher. No Rio Grande do Sul, segundo
Luis da Câmara Cascudo (1972), ae do Ouro se manifesta de maneira informe, é um
clarão seguido de trovões, relâmpagos e ventos, indicando apenas o rumo da mudança
para um lugar mais avantajado. Já Antonio Augusto Fagundes (2003) representa-a como
uma grande bola de fogo que vive no Cerro do Jarau.
A e do Ouro também é recorrente em Santa Catarina, no Paraná, em São Paulo e
em Minas Gerais. No interior de Santa Catarina, baseado em depoimentos recolhidos
por Vilson Francisco de Farias (2000), ela é uma bola em forma de lua que levanta dos
morros e percorre as margens, terrenos baixos com água. No Paraná, a e do Ouro
assume a forma antropomórfica de mulher, mas sem cabeça, que habita debaixo das
serras de Itupava.
No interior de São Paulo, de acordo com pesquisas realizadas por Augusto Meyer
(1975), a Mãe do Ouro assume as formas variadas: passarinho, fio, facho de luz, pedra,
bola de fogo, fogo verde, lagarto e formosa mulher. Na região de Brotas é representada
por um lagarto-de-ouro que aparece saltando de para e nos lugares em que toca
tesouros. Em Jaraguá é representada também por um lagarto, mas este chora lágrimas de
ouro. Em Minas Gerais, na região do São Francisco, a Mãe do Ouro é conhecida como a
zelação, na forma de estrela cadente ou de serpente encantada. Seja como for sua
aparência ou representação, sua função é a mesma: protetora das minas, madrinha dos
veeiros, padroeira dos filões, defendendo pepitas e escondendo jazidas de ouro.
Inicialmente, a Mãe do Ouro era um mito ígneo informe, pois era apenas um clarão
seguido por trovões, no qual os relâmpagos indicavam sua direção e os trovões sua
cólera. A representação sob a forma de fogo pode estar relacionada à crença européia
ubi est ignis est aurum (onde fogo, ouro). Em Minas Gerais, a Mãe do Ouro
passou a pertencer aos fenômenos meteorológicos pois, conforme Manuel Ambrósio, a
zelação é confundida com a estrela cadente, “um aerólito despenhando-se no espaço,
corta o azul do céu, com a faixa coruscante da sua trajetória
18
ou surge na forma de
uma serpente encantada, na cobra de fogo. Em São Paulo, o mito infiltrou-se no ciclo
das Mães d’Águas, pois a Mãe do Ouro reside na gruta de algum rio, rodeada de pedras
18
Apud CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002, p. 312.
29
preciosas e gênios dos rios, embora atravesse os ares num cortejo de luzes vivas. No
depoimento de Cornélio Pires (1924), os homens deixam família e amigos para
acompanhar a Mãe do Ouro que assimila da Mãe d’Água a sedução.
A Mãe do Ouro é uma provável decorrência da influência tupi-guarani, em cuja
teogonia todas as coisas m a ci, uma mãe criadora, a origem de tudo. Essa
possibilidade es amparada na mitologia incaica que atribuía uma personificação
maternal a elementos ou acidentes da natureza: Pacha-mama, Mãe-Terra; Mama-cocha,
Mãe-Mar; Mama-kilya, Mãe-Lua; Sara-mama, Mãe-Milho; Mayuj-mama, Mãe do Rio
ou Mãe d’Água, pois a tradição rio-grandense dos cerros bravos ou encantados pertence
à mesma família, conforme estudos de Augusto Meyer (1975). Os mitos da Mãe do
Ouro provavelmente migraram da região pré-andina para o sul, entrando pelo Rio
Grande do Sul e difundindo-se pela extensa área das reduções jesuíticas, para depois
atingirem todo o leste do Brasil. Como a região das missões está povoada de lendas do
ciclo do ouro como as salamancas, cerros bravos e animais luminosos como nhandus,
gatos, teiuiaguás que correm, voam e desaparecem nas coxilhas num halo faiscante, a
Mãe do Ouro viajou, de cerro em cerro, com um séqüito de tempestade, para as terras
onde os homens extraíam o metal amarelo
19
”.
Os mitos da Mãe do Ouro estão quase sempre relacionados à crença dos cerros
bravos ou encantados, que também é originária do norte argentino, das chamadas
sierras pampeanas, onde existem fabulosas criações da fantasia nas quais a Mãe do
Cerro impede o acesso ou castiga o ambicioso com o mal de puna
20
, pois tem como
missão defender as riquezas minerais, os tesouros enterrados em furnas e salamancas.
As serras, serranias, cerros e outros acidentes semelhantes, na versão de Simões Lopes
Neto (1996), são concebidos como um ser vivo: os ossos viraram as pedras; a carne
transformou-se em terra negra; os cabelos são os matos; as cavidades abertas que
aparecem são os buracos do corpo como a boca, os olhos, o nariz e os ouvidos; as veias
tornaram-se metais menos nobres, como o ferro e os nervos transformaram-se em ouro e
são os veeiros amarelos que penetram por baixo da terra. Mas existe uma alma que tudo
governa, essa é a Mãe do Ouro, por isso, o é de se estranhar que alguns cerros se
enfureçam: relampagueiam, trovoam, tremem, bramam e rugem quando alguém se
aproxima deles ou pretende extrair-lhe os tesouros escondidos em sua profundidade.
19
Id., ibid.
20
Mal-estar que se sente pela rarefação do ar, a grandes alturas da Cordilheira dos Andes. Cf. Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa.
30
Outra crença relacionada à Mãe do Ouro é a de que ela informa onde estão os metais
subterrâneos quando ocorre sua mudança através da explosão dos cerros bravos ou
encantados. Se for de noite, no fogo que se vê sair, vai ela de mudança para outro cerro;
se for de dia, será sempre no forte do meio-dia, nos dias de muito calor, mas apenas
sente-se o rumo que ela toma, porém não se o novo lugar. No Rio Grande do Sul a
mudança ocorre nas tardes que ameaçam chuva, quando dá um grande estouro numa das
cabeças do Cerro do Jarau e ela pula de uma elevação para outra. Em Jaraguá, o lagarto
que chora lágrimas de ouro quando estoura, ao mudar-se de um lugar para outro,
transforma-se em uma menina ou menino de cabelos crespos cor do sol e s bem
pequenos.
A Mãe do ouro é a protetora do ouro escondido sob a terra que não deve ser extraído
sem sua intervenção, por isso, sua manifestação pode ser sinal de existência de ouro nas
proximidades. O ouro parece atrair os homens, assim como a Mãe d’Água atrai seu
enamorado para a morte, já que, uma vez imbuídos dessa busca, todas as outras paixões
se desfazem, pois o desejo ardente seja por riquezas, seja por mulheres, pode cegar o
homem. A Mãe do Ouro é uma entidade guardiã que reparte seus tesouros com
parcimônia e castiga os que são exagerados nos seus pedidos. Mas há também as
entidades guardiãs propiciadoras de riquezas, representadas por animais fabulosos como
lagartos ou lagartixas, em cuja cabeça trazem uma pedra preciosa cor de rubi que cintila
como brasa. Tais entidades são adquiridas em conseqüência de pactos, que cedem tudo
quanto lhes é pedido em troca da manutenção do segredo.
3.1 – Os parentes próximos: ciclos da Salamanca e da Boitatá
A Mãe do Ouro está relacionada ao ciclo das salamancas. O nome salamanca,
designação de profundas e impenetráveis cavernas, escavadas pelas águas e formadas
por acidentes terrestres, encontradas em todo o Rio da Prata e no Rio Grande do Sul,
originou-se da cidade espanhola chamada Salamanca, onde viveram os mouros e onde
existiu, numa furna escura, uma escola de magia. É crença do povo rio-grandense que as
salamancas ou as cavernas encantadas encerram em suas entranhas consideráveis
riquezas de ouro e prata.
A Mãe do Ouro, ao assumir as feições de lagarto, de lagarto-de-ouro ou de lagarto
que chora lágrimas de ouro, associa-se com a teiniaguá missioneira ou com o
carbúnculo da região andina, pois são as denominações diversas do mesmo animal
31
fabuloso e propiciador de riquezas. Esse animal vive entre pedras ou em cavernas e
lugares subterrâneos, por isso identifica-se com a Mãe do Ouro e relaciona-se com os
cerros bravos, pois a terra se enfurece, infundindo terror e espanto em quem ousar
aproximar-se, de modo a impedir que lhe tirem os tesouros escondidos.
Ao assumir as feições de uma formosa mulher, associa-se com as mouras encantadas
de Portugal que trazem, às vezes, caudas de serpente em troca dos membros inferiores e
que estão sempre montando guarda a um tesouro que os infiéis” abandonaram. As
formosas moças são espíritos encantados pela arte da magia que dependem da boa
vontade de um ser humano para o desencantamento. O tema das mouras encantadas
perdura na “princesa moura encantada”, de Simões Lopes Neto, entrosado no dos
tesouros que, por sua vez, aparece em conexão com o das cavernas ou salamancas:
Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre
um mar que os meus nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã
transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam o
carbúnculo e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros
escondidos dentro da casca do mundo... (...) A teiniaguá que sabe dos
tesouros, sou eu, mas sou também princesa moura... (1984: p. 143-144)
O tema das mouras encantadas, de proveniência medieval, devido à influência árabe
na Península Ibérica, atravessa o oceano e vai parar na fronteira do Rio Grande do Sul.
Como a cidade espanhola de Salamanca ficava perto da fronteira portuguesa, tanto os
espanhóis quanto os portugueses podem ser os responsáveis pela dispersão dessa
tradição arábica e sua implantação no imaginário rio-grandense. Apesar de conservar
inalterados alguns caracteres originais como os motivos da renúncia cristã e da redenção
pelo amor, e superstições do mundo antigo, se reveste de novos matizes no meio
americano, como a adaptação da “forma de serpente” na lagartixa mágica missioneira,
introduzindo o elemento originário do novo mundo.
O ciclo das salamancas também faz analogia com os pactos com o Diabo, do homem
que perdeu a sua sombra ou vendeu a alma ao Diabo em troca da riqueza. O fabuloso
animal conhecido como carbúnculo ou teiniaguá é a representação de Anhangá-pitã,
Diabo-vermelho em língua guarani, que mora e guarda os tesouros escondidos nas
profundezas das salamancas. Das cavernas impenetráveis têm saído homens de fortuna,
guerreiros sempre vencedores, políticos eminentes, músicos e poetas sublimes, químicos
e mecânicos maravilhosos, nas anotações do Padre Teschauer, segundo pesquisa de Luis
da Câmara Cascudo (1944). Além de muitas curas milagrosas e pretensões, as mais
triviais, satisfeitas: a este proporcionar o segredo de ganhar nos jogos, àquele o de tocar
32
bem algum instrumento musical, a outrem de não errar tiro. O caso mais famoso
sucedeu-se no período da Revolução Farroupilha, quando o general Bento Manoel
Ribeiro havia entrado na Salamanca do Jarau e saído de com o “corpo fechado”,
que trocou de lado três vezes em dez anos de luta e chegou a ser dono dos campos do
Jarau. Tudo esem ter coragem e enfrentar os inimigos invisíveis da salamanca, pois
conforme a crença, quem se atrever a tanto, sai com algumas virtudes. O Diabo
pactuador ainda tem vigorosa presença no folclore rio-grandense. Na maioria dos casos,
de acordo com estudos realizados por Antonio Augusto Fagundes (2003), é invocado ou
procurado para resolver problemas sempre de ordem financeira; por isso, toda ascensão
social ou enriquecimento rápido e a prosperidade repentina de certos proprietários de
terras são, freqüentemente, atribuídas a um pacto com o Diabo que proporciona riquezas
em troca da alma do pactuante ou dos seus filhos.
Outra relação com o Diabo está no fato de que ele opera a transformação do ouro em
cobras ou cinzas e dos tesouros enterrados em carvão. A crença de que os jesuítas
esconderam muitas riquezas tem povoado o imaginário rio-grandense, formando uma
espécie de tradição do ouro com várias lendas. Essas histórias, atravessando gerações,
são aceitas como verdadeiras, sem os alucinados se desenganarem nem aceitarem
provas do contrário, pois quando um pote ou vasilha não estiver cheio do cobiçado
metal precioso, saindo dele uma cobra ou encontrando-se nele cinzas, então,
responsabilizam o Diabo pela metamorfose.
A Mãe do Ouro também está relacionada ao ciclo da Boitatá. Da língua guarani
mboi, cobra ou o agente, a coisa e tatá, fogo, significa a cobra de fogo ou fogo em
forma de cobra. A mboitatá é para todo o Brasil o fogo-fátuo dos europeus, que são
pequenas chamas ou emanações fosforescentes que aparecem sob a forma de bolas
girando pra e pra lá, visíveis à noite, nos lugares desertos como cemitérios e
pântanos, enfim, por toda a parte vêem-se essas luzes loucas, azuladas e velozes
assombrando.
A mboitatá, muito conhecida e respeitada no Rio Grande do Sul, é uma guardiã de
tesouros, segundo o Padre Teschauer, e pertence à família dos teiuiaguás missioneiros e
do carbúnculo das regiões andinas. Segundo a crença popular, a mboitatá se
converteu em nhandutatá, o avestruz-de-fogo que povoa as regiões vertentes do
Uruguai e que, ao sacudir as asas no cume de uma coxilha ou de um cerro, acusa a
existência de um tesouro escondido ou de uma mina de ouro. Essas transformações ou
33
conversões são possíveis, inclusive Simões Lopes Neto elucida a transformação da
cobra-de-fogo em bola-de-fogo:
A boitatá, toda enroscada, como uma bola tatá, de fogo! empeça a
correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem
aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se
despenca e arrebenta-se, apagando... e quando um menos espera,
aparece, outra vez, do mesmo jeito! (1984: p. 131)
Os fogos-fátuos estão conectados com os tesouros porque as luzes azuladas que se
observam de noite nos banhados e em redor das povoações, que volteiam e
desaparecem, são as representações de almas em penitência ou almas errantes à espera
de um lugar no paraíso. A alma de alguém que morreu sem dar notícia do dinheiro que
tinha escondido ou guardado em tal e tal lugar anda penando, não se salvando enquanto
o tesouro estiver inútil. quando um cristão descobrir o tesouro escondido (também
conhecido como enterro) é que as almas irão cessar de aparecer e de penar. Também é
crença do povo que nas casas alarmadas existem tesouros escondidos e o suplício cede
logo que for descoberto e satisfeito o desejo da alma penada.
A mboitatá também é um gênio que protege os campos contra aqueles que os
incendeiam. Às vezes transforma-se em um grosso madeiro em brasa, denominado
néuan (CASCUDO; 1972: p. 153), que faz morrer por combustão aquele que incendeia
inutilmente os campos. É a transformação da e do Ouro, a cobra de fogo, no fogo
punidor dos destruidores de pradarias.
Os fogos-fátuos estão também em conexão com os cerros bravos ou encantados, pois
os chamados bramidos ou estrondos dos cerros são fenômenos naturais dos quais se
conhecem as causas físicas: são as explosões de vapores d’água ou de gases nas
cavidades das montanhas e em contato com o ar formam-se pequenas línguas de fogo.
Esse clarão é o farol dos Andes, Argentina e Uruguai, que se escapa onde jaz uma
riqueza escondida. As regiões andinas também possuem os guardas dos tesouros,
conhecidos como sentinelas de fogo, representados ora por animais ora por homens.
Com as minas esgotadas e os tesouros descobertos, finda a missão da Mãe do Ouro, ela
migra, naturalmente, para outras formas, ou regressa as suas origens, ao mito ígneo
informe. Por isso, o ciclo da Boitatá pode ser interpretado como o ponto de origem ou
de convergência da Mãe do Ouro.
A associação da Mãe do Ouro e das almas penadas com os guardas de tesouros é
reforçada com a lenda Casa de Mbororé. Mbororé é um índio velho e amigo dos padres
34
das Sete Missões que ronda uma casa branca sem portas nem janelas no alto Uruguai. A
casa é um depósito construído pelos jesuítas, onde estão escondidos todo o ouro e a
prata. O índio Mbororé guarda o tesouro e espera por eles, rondando a casa.
3.2 – As versões da Mãe do Ouro
O corpus desta pesquisa é composto pela lenda A Mãe do Ouro, reconhecida como
integrante do folclore brasileiro, na interpretação de autores como Alberto Coelho da
Cunha, Nitheroy Ribeiro, Veiga Miranda, Alceu Maynard Araújo, Ruth Guimarães,
Luis da Câmara Cascudo, Theobaldo Miranda Santos, Lucília Garcez e Souza Carneiro.
Antes de fazermos uma apresentação das diferentes versões da lenda, por meio de um
resumo, é necessário proceder a uma divisão dessas versões em dois grupos: sulinas,
composto pelos textos de Alberto Coelho da Cunha e Nitheroy Ribeiro, e centro-
nortistas, que engloba os demais autores.
A análise desses textos esapoiada na Semiótica que conta dos aspectos textual,
intertextual e contextual através de uma abordagem detalhada de cada texto. As
comparações partirão das variantes literárias do grupo sulino em relação às demais,
que o objetivo deste estudo é destacar a importância da personagem Mãe do Ouro no
imaginário coletivo gaúcho.
A primeira versão menos incompleta da Mãe do Ouro recolhida no Brasil, conforme
Augusto Meyer (1975), é a de Alberto Coelho da Cunha, com o pseudônimo de Victor
Valpírio, publicada em 1873 na Revista Mensal
21
da Sociedade Partenon Literário, de
Porto Alegre. O escritor pelotense aproveitou o motivo difundido, até então, através das
gerações, pela oralidade, para uma novela de costumes regionais com o mesmo título.
A história é contada pela mãe de Anita, Ângela Nunes, personagens da novela “A
Mãe do Ouro”, após a indagação da menina sobre um fenômeno natural apresentado na
trama. O avô de Anita, um paulista chamado Silvério Nunes, estabeleceu-se no Rio
Grande do Sul. Junto à estância adquirida por Silvério Nunes, havia agregada uma china
com uma porção de filhos que cultivava uma horta. Passado um certo tempo, a china
começou a perceber um grande estrago na sua plantação de hortaliças e verduras.
21
Esta novela foi publicada na Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário, Porto Alegre, n.1, jan.
1873, p. 30-34; n.2, fev. 1873, p. 60-66; n.3, mar. 1873, p. 107-116; n.4, abr. 1873, p. 158-166; n.5, maio
1873, p. 203-211; n.7, jul. 1873, p. 285-294; n.8, ago. 1873, p. 328-331. A atualização de um trecho desta
narrativa encontra-se em: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Narradores do Partenon Literário. Porto
Alegre: IEL, 2002, p. 29-40.
35
Tentou de todas as formas esclarecer o mistério, inclusive, observando à noite, mas nada
viu de suspeito. A filha da mulher também estava empenhada em encontrar uma
solução, quando, numa noite, encontrou uma moça lindíssima, a Mãe do Ouro, sentada
na sanga. Ficou tão assustada e confusa que não atinou como fugir. A moça, notando a
presença da menina, pediu-lhe que não fugisse e convenceu-a, de modo que ela ficou
fascinada. Quando se separaram, a moça pediu à menina para visitá-la na noite seguinte
e lhe trazer um pente de cabelos. A jovem obedeceu e, fascinada com aquela estranha
criatura, fez um pacto e prometeu acompanhá-la. Ao se despedirem, a moça pediu para
esperá-la, no mesmo lugar e horário, dali a cinco dias, recomendou segredo inviolável e
entregou à menina uma concha de marisco parda-furta-cor que continha ouro. Assim
que a Mãe do Ouro desapareceu, a jovem correu depressa para casa, mas no caminho as
conchas entreabriram-se, novamente, e ela não pôde conter-se. Ao revelar o segredo, a
concha partiu-se e o ouro transformou-se em cobras. Uma das cobras ficou presa no seu
braço, escorregou-lhe pela manga e mordeu-a no peito. A mãe encontrou a filha
morta.
A versão do poeta quaraiense Nitheroy Ribeiro
22
é um poema que trata da origem da
figura lendária da Mãe do Ouro no Rio Grande do Sul. Uma moça africana conhecida
por Hylaria, de descendência nobre de alguma tribo de Moçambique, foi arrancada do
seio de sua família, trazida como escrava para o Brasil e vendida, juntamente com um
lote de escravos, para os Senhores do sul. A moça, porém, exercia uma espécie de
liderança sobre os demais negros na senzala, onde era conhecida como Ylá. Numa certa
noite tentou a fuga, mas foi surpreendida pelo seu senhor que voltava da ronda ao lugar
onde guardava seu ouro. Hylaria foi açoitada e morreu. Depois de morta, o espectro de
Hylaria voltou como uma espécie de espírito vingador e roubou o ouro do senhor,
levando-o para o Cerro do Jarau, onde fez sua morada definitiva.
Veiga Miranda
23
e Alceu Maynard Araújo
24
fazem uma interpretação da Mãe do
Ouro no estado de São Paulo. As versões são semelhantes e, em conseqüência disso,
escolhemos a de Veiga Miranda, que está inserida no romance Mau olhado, para ser
analisada (o cotejo entre esses textos está anexado ao final). Nessa história, a Mãe do
Ouro morava numa gruta e saía do esconderijo apenas ao entardecer com um cortejo de
luzes, do qual iam caindo pingos de luz pelo chão. Os pingos, quando tocavam a terra,
22
RIBEIRO, Nitheroy. Chasques e lendas gaúchas. Canoas: Editora La Salle, 1966.
23
MIRANDA, Veiga. Mau olhado. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925, p. 31-33.
24
A versão da Mãe do Ouro de Alceu Maynard Araújo foi encontrada na internet no site:
www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/3contos/mae_ouro.html. Acessado em junho de 2005.
36
transformavam-se em pedras preciosas da cor dessa luz. A mulher que visse a Mãe do
Ouro na sua trajetória pelo céu, poderia fazer-lhe um pedido, enquanto um dos pingos
de luz estivesse caindo. O pedido seria atendido, mas a mulher, em troca, passaria a
pertencer para sempre à e do Ouro. Todas as noites, enquanto dormia, sem que
ninguém percebesse, nem ela mesma, sairia do seu corpo e apareceria no palácio da
Mãe do Ouro para participar de festas maravilhosas. Somente as mulheres mais lindas,
casadas ou donzelas, podiam participar e, no palácio, assumiam formas de sereias,
vendo-se umas às outras, mas sem se poderem falar ou tocar.
O texto de Ruth Guimarães
25
apresenta uma versão mato-grossense da Mãe do Ouro,
uma história ocorrida na cidade do Rosário, às margens do rio Cuiabá, no estado do
Mato Grosso. Nessa cidade morava um rico senhor de escravos que se ocupava da
mineração de ouro. Um dos seus escravos, conhecido como Pai Antônio, estava triste e
com medo de ser castigado porque havia algum tempo que não encontrava ouro. Numa
atitude de desespero, fugiu para o mato, onde chorou e encontrou a Mãe do Ouro, que
resolveu ajudá-lo em troca de umas fitas e um espelho. O escravo obedeceu e encontrou
muito ouro que, contente, foi levar ao patrão. Esse, em vez de ficar satisfeito, queria
saber o lugar em que Pai Antônio tinha encontrado tanto ouro. Pai Antônio não podia
revelar o lugar sem autorização da Mãe do Ouro, por isso, foi amarrado no tronco e
maltratado. Quando foi solto, retornou ao mato, contou à Mãe do Ouro o desejo do
patrão e ela consentiu que revelasse o lugar. O senhor com mais vinte e dois escravos
cavaram muito, mas, em compensação, acharam um grande pedaço de ouro que, por
mais que cavassem, não encontravam a base. Cavaram por dois dias. No terceiro, a Mãe
do Ouro avisou ao escravo para sair do buraco no dia seguinte, antes do meio-dia. Ele
obedeceu e inventou estar doente para poder sair. O senhor, embora possesso, deixou.
Assim que deu meio-dia, um barulho estrondou na floresta, as paredes do buraco
desabaram e o patrão e os demais escravos morreram soterrados.
Os textos de Luis da Câmara Cascudo
26
e de Theobaldo Miranda Santos
27
tratam da
mesma história apresentada por Ruth Guimarães, ou seja, é a mesma versão da lenda A
Mãe do Ouro. Devido ao fato de o texto de Ruth Guimarães apresentar uma estrutura
mais completa, pois, nos outros, a reação do escravo Pai Antônio frente ao desespero de
25
GUIMARÃES, Ruth. Lendas e fábulas do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 47-50.
26
CASCUDO, Luis da mara. Antologia do folclore brasileiro. o Paulo: Livraria Martins Editora,
1944.
27
SANTOS, Theobaldo Miranda. Lendas e mitos do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1955.
37
não encontrar o ouro foi subtraída, escolhemos essa referida versão para ser analisada (o
cotejo entre esses textos está anexado ao final).
Lucília Garcez
28
apresenta uma interpretação da origem da figura lendária da Mãe do
Ouro no estado de Goiás. O escravo Januário, que trabalhava num garimpo no interior
do Brasil, certa noite, fugiu com sua família. Sua intenção era ir para o centro-oeste, de
onde vinham notícias de muito ouro, em busca de um futuro melhor para sua família e
seus amigos. Depois de alguns dias de caminhada, chegaram a um quilombo, onde
Januário deixou a salvo sua mulher e seu filho. Ele prosseguiu a viagem, acompanhado
por Pedro, que tinha informações mais precisas sobre as novas terras. Depois de muitos
dias de caminhada por trilhas difíceis, chegaram à vila dos negros fugidos, perto do rio
Paranã. Januário começou logo a trabalhar numa curva do rio e trabalhou, duramente,
dia após dia, sob o sol ou a chuva. Numa certa manhã, porém, encontrou as maiores e
mais belas pepitas de ouro. Apesar de ter que entregar uma parte do garimpo para o
grupo, Januário conseguiu guardar um pequeno tesouro que libertaria seus amigos e
salvaria sua família. Mas Januário, devido às más condições de trabalho, ficou doente,
com malária. Embora os amigos cuidassem dele, não resistiu e morreu sem conseguir
explicar onde tinha escondido o ouro. Entregou seu segredo a Deus e aos orixás,
pedindo que orientassem a mulher e o filho a encontrarem o tesouro. Desde então, os
garimpeiros que se aproximam daquele ponto do rio o atraídos por um brilho intenso
que vem do fundo das águas ou são surpreendidos por um facho de luz que, num
movimento incandescente, conduzido por uma figura de mulher, sai da água e inunda o
espaço, multiplicado em milhões de estrelas cintilantes.
Souza Carneiro
29
apresenta uma interpretação da origem da figura da Mãe do Ouro,
trazida pelos africanos pertencentes à tribo Haussás, recolhida na Bahia. No texto uma
menina ficou órfã e, seguindo os conselhos dos pais, foi morar com uma velha num
buraco no meio da montanha. Os pais da menina acreditavam que a velha era uma fada.
A velha, conhecida no lugar como Mãe do Mundo, tinha poderes sobrenaturais para
transformar a natureza e para rejuvenescer-se, mas isto não causava espanto na jovem
que, além de tudo, obedecia à velha. Numa noite de lua cheia em que foram tomar
banho na lagoa, as águas amareleceram os cabelos da moça, ela se tornou encantada e
invisível aos olhos de quem encontrar um ou outro fio de seus cabelos. A moça ganhou
28
GARCEZ, Lucília. Mãe do ouro. São Paulo: Scipione, 2005.
29
CARNEIRO, Souza. Mitos africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1937, p.
348-351.
38
a missão de sair pelo mundo a banhar-se nos rios e lagos, deixando a terra engolir os
cachos, as penugens e os pedaços dos seus cabelos. A jovem despertava espanto nos
homens. Um dia, um caçador viu-a nadando em um rio fundo, ele ia atirar-se na água
quando uma velha deteve-o com braço forte. O caçador viu o rio secar e a moça
transformar-se numa serpente e, como castigo pelo seu atrevimento, correu, com medo
dela, mundo afora. A Mãe do Mundo concedeu à Mãe do Ouro o poder de morar acima
das nuvens.
Efetuamos um resumo de cada uma das versões literárias da lenda A Mãe do Ouro, a
fim de obtermos um melhor entendimento das mesmas durante o processo de análise.
39
4 – A Semiótica e o estudo das lendas
Neste capítulo apresentamos a Semiótica, teoria que serve de base para o estudo das
versões literárias da lenda A Mãe do Ouro, destacando as obras Teoria semiótica do
texto, de Diana Luz Pessoa de Barros, e Sémiotique du récit, de Nicole Everaert-
Desmedt.
Qualquer produção humana dotada de sentido é um signo; assim, um texto é um
signo composto por signos que, interpretado, gera outros signos. Um texto é,
concomitantemente, um objeto de significação e um objeto de comunicação, por isso,
para construir o seu sentido, necessita-se examinar tanto os procedimentos e
mecanismos que o estruturam, que o tecem como um todo de sentido, quanto os fatores
contextuais e sócio-históricos que o envolvem e lhe atribuem sentido. Nascida da
Lingüística, a Semiótica é uma teoria que se preocupa com o texto e seu objetivo é
examinar, descrever e explicar os procedimentos da organização textual, os
procedimentos de como os sentidos são criados e comunicados; em outras palavras, o
que o texto diz, como faz para dizer e para que o diz.
Uma narrativa é uma representação de eventos que possibilitam a passagem de um
estado inicial a um estado final. O conjunto de episódios que constitui a transformação
do estado inicial ao final, encontra-se encadeado, de modo que integra a narrativa
global. Algumas vezes, os episódios são sucessivos, isto é, a situação resultante de um
episódio ou transformação constitui-se em uma situação inicial sobre a qual acontece a
transformação seguinte. Outras vezes, os episódios são acontecimentos paralelos que
não se relacionam sob o ponto de vista da estrutura narrativa, embora ilustrem o mesmo
assunto.
Na teoria semiótica, a construção do sentido do texto ocorre através de um percurso,
conhecido como percurso gerativo de sentido, que vai do mais simples e concreto ao
mais complexo e abstrato. Greimas estabelece três etapas que formam esse percurso,
embora cada uma delas possa ser desenvolvida e analisada de forma autônoma, o
sentido do texto depende da relação existente entre os três níveis: o nível fundamental, o
nível narrativo e o nível discursivo.
O nível fundamental ou das estruturas fundamentais é considerado o mais simples e
o mais concreto. Nessa etapa é preciso determinar as oposições semânticas
fundamentais que constituem a estrutura elementar de significação, a partir da qual se
constrói o sentido do texto. Tais categorias são determinadas como positivas ou
40
eufóricas, que estabelecem uma relação de conformidade entre o ser vivo e os conteúdos
representados, e negativas ou disfóricas, pois marcam uma relação de desconformidade
entre o ser vivo e os conteúdos representados.
No nível narrativo ou das estruturas narrativas, os elementos das oposições
semânticas fundamentais são relacionados aos objetos como valores, assumidos por um
sujeito e circulando entre sujeitos devido à ação de sujeitos. Nessa etapa, a narrativa é
vista “como mudanças de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que
age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos
30
”, ou seja, estados
de conjunção ou disjunção em relação ao objeto são transformados pela ação do sujeito,
que se coloca em busca desse objeto-valor. Esses estados e transformações integram os
programas narrativos ou sintagmas elementares da sintaxe narrativa, que podem ser
simples ou complexos, isto é, constituídos por um ou mais programas hierarquizados.
A execução de um programa narrativo de base ou principal de um sujeito pode
necessitar da realização prévia de um ou mais programas narrativos intermediários,
conhecidos como programas narrativos de uso. Se a transformação resultar em
conjunção do sujeito com o objeto, tem-se um programa de aquisição do objeto-valor;
se resultar em disjunção, tem-se um programa de privação. Os sintagmas elementares
sempre implicam outros sintagmas porque, se um sujeito adquire um objeto-valor, outro
sujeito foi dele privado ou dele se privou. Essa transferência de objetos entre sujeitos
pode ocorrer por intermédio de uma prova ou doação: através de uma prova ou de uma
luta, figurada pela força, pela inteligência, um sujeito se apropria do objeto, enquanto o
outro se dele espoliado; já na doação, um sujeito renuncia ao objeto e o atribui a
outro.
Os enunciados de estado e do fazer apresentam, cada um, dois actantes, sujeito e
objeto, que mantêm entre si relações de conjunção ou de disjunção. No enunciado de
estado, sujeito e objeto relacionam-se por junção, a qual determina o estado do sujeito
em relação ao objeto-valor, enquanto no enunciado do fazer, sujeito e objeto
relacionam-se pela função da transformação, operando a passagem de um estado
conjuntivo a um estado disjuntivo e vice-versa. Os programas narrativos são, portanto,
uma seqüência de estados e transformações e, para representá-los, utilizaremos o
seguinte modelo:
30
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2003, p.16.
41
PN = F [S
1
(S
2
Ov)] onde:
F = função
= transformação
S
1
= sujeito do fazer
S
2
= sujeito do estado
= conjunção
= disjunção
Ov = objeto-valor
O formalista russo Vladimir Propp, na obra Morfologia do conto, inventariou 31
funções das personagens, que, mais tarde, A. J. Greimas reduz através do acasalamento,
acoplando em duplas todas as funções que possuem uma interação, que se implicam
mutuamente. Dessa forma, arranja todas as funções em três categorias: funções
contratuais (que dizem respeito ao estabelecimento e à ruptura do “contrato entre o
sujeito e o destinador), performanciais (que compreendem as três provas a que o sujeito
é submetido) e disjuncionais (que dizem respeito à ausência do sujeito, sua sucessiva
volta e reintegração). Por função entende-se a ação de uma personagem, definida do
ponto de vista de seu significado no desenrolar da intriga, ou seja, para ser considerada
uma função, a ação de uma personagem deve estabelecer relações de causa ou de efeito
com outras ações distribuídas no eixo sintagmático da narrativa. Essas funções foram
agrupadas por Propp em “sete esferas de ações das personagens”.
Greimas, baseado nos estudos do formalista russo, elabora seu modelo actancial: um
modelo de “esferas de ação” mais geral que pode ser aplicado a outros universos, além
dos contos populares. No nível narrativo, as personagens são consideradas do ponto de
vista de seus papéis narrativos, ou seja, suas funções e suas esferas de ação, bem como
as relações que mantêm entre si e, por isso, passam a chamar-se actantes, que podem
ser: sujeito, objeto, destinador, destinatário, ajudante e oponente. Um actante não é um
ator. O ator corresponde ao que, em geral, se conhece como personagem e o actante é
uma unidade construída pela gramática narrativa. Um actante pode ser figurado por um
ou vários atores, assim como um ator pode desempenhar, sucessiva e simultaneamente,
vários papéis actanciais. Os actantes sintáticos redefinem-se, no decorrer do percurso, e
tornam-se papéis actanciais que dependem da posição que os actantes ocupam na
narrativa e da natureza dos objetos-valor com que se relacionam.
42
A estrutura actancial repousa sobre a principal relação sintática situada no eixo do
desejo: sujeito e objeto. Tal relação, do ponto de vista semântico, indica o querer, o
desejo que leva à procura: o percurso narrativo do sujeito se realiza sob a forma de uma
busca em relação a um objeto que é a prova de uma falta, de uma necessidade. Essas
relações entre sujeito e objeto são os enunciados narrativos que, de um lado, designam o
estado no qual se encontra um sujeito em relação ao objeto: conjunção (S O) e
disjunção (S O). De outro lado, os enunciados do fazer traduzem uma ação, uma
tentativa do sujeito de passar de um estado a outro (de disjunção à conjunção e vice-
versa), pois como sujeito e objeto mantêm sempre relações, a disjunção implica a
conjunção ou resulta da conjunção perdida. A mudança de estados requer uma
transformação que necessita da intervenção de um sujeito do fazer ou sujeito operador.
Os papéis actanciais de sujeito de estado (S
1
) e sujeito operador (S
2
) podem ser
desempenhados pelo mesmo ator: neste caso, tem-se um fazer reflexivo; e podem
também ser desempenhados por dois atores diferentes, um fazer transitivo.
No eixo sintático-semântico do poder, o sujeito mantém relações com uma dupla
actancial: ajudante x oponente. O sujeito, em sua caminhada para atingir o objeto-valor,
geralmente precisa do auxílio de outro actante. Normalmente, no começo da narrativa, o
sujeito possui apenas o querer ou o dever, faltando-lhe o saber e o poder. Esse último
lhe é fornecido pelo actante ajudante, desempenhado por um ator que tem a
incumbência de auxiliar o sujeito na busca pelo objeto-valor. Como também, por outro
lado, o sujeito pode, na mesma busca, encontrar obstáculos ou enfrentar perigos, a
função do actante oponente, exercida por um vilão ou um ajudante dele.
O objeto, por sua vez, no eixo da comunicação, também dá vida a uma dupla
actancial: destinador x destinatário. O destinador comunica um objeto ao destinatário
que o recebe. O destinador age para que o destinatário seja conjuntivo com o objeto: ou
o destinador comunica ao destinatário o objeto-valor ou lhe transmite modalidades
relativas à aquisição do objeto: o querer, o poder, o saber e o dever que modificam a
relação do sujeito com os valores e os fazeres. O destinador é um sujeito-manipulador
porque faz agir um outro sujeito, ou seja, ele provoca a ação do destinatário, futuro
sujeito-operador. A diferença entre o papel do destinador e do sujeito é que este age de
maneira a transformar um estado; aquele age de maneira a fazer agir um outro, isto é,
sua ação consiste em provocar a ação do sujeito. A comunicação aparece como uma
manipulação realizada por meio da intimidação, da provocação, da tentação ou da
sedução, através das quais o destinador provoca a ação do sujeito.
43
Um relato, geralmente, apresenta as ões de um sujeito para ser conjuntivo ou
disjuntivo com um objeto, que constitui a performance ou o fazer do sujeito. Toda
performance supõe, da parte de quem a executa, da competência. A competência é a
possessão, por parte do sujeito de estado, de qualificações necessárias relativas à
capacitação de ação, conferidas pelas modalidades do querer (vontade de conseguir o
objeto-valor), do dever (consciência da necessidade de adquirir o objeto-valor), do saber
(sabedoria para encontrar e alcançar o objeto-valor) e do poder (meios adequados para
conseguir apossar-se do objeto-valor). As modalidades podem ser consideradas como
objetos com os quais o sujeito deve estar conjuntivo antes de realizar sua performance.
Sendo o percurso narrativo uma seqüência de programas narrativos relacionados por
pressuposição, o encadeamento lógico de um programa de competência com um
programa de performance constitui, por exemplo, o percurso narrativo do sujeito. O
percurso do sujeito representa, sintaticamente, a aquisição da competência necessária à
ação e à execução da performance.
Segundo a teoria de Greimas, a operação transformadora da situação inicial à final é
dividida em três provas: qualificante, principal e glorificante. O sujeito precisa realizar
uma prova qualificativa para adquirir a competência e tornar-se sujeito operador, que
a possessão pressupõe sua aquisição, da qual se distinguem os objetos modais (que
constituem a competência) e o objeto-valor (que é o início da performance). O contrato
estabelecido, com mais freqüência, entre o destinador e o futuro sujeito é o de sedução,
ou seja, o destinador comunica ao futuro sujeito o saber a propósito do objeto: mostra-
lhe a existência e o valor do objeto, sugere-lhe que o objeto vale a pena ser adquirido. O
querer, o poder, o saber e o dever podem ser adquiridos pela ação do sujeito ou podem
pertencer ao sujeito, assim como podem ser transmitidos pelo destinador ou
conservados pelo ajudante como um objeto mágico, por exemplo. Pela execução da
performance, o sujeito adquire o objeto-valor e, conseqüentemente, torna-se um sujeito
realizado.
No percurso de destinador-manipulador, o programa de competência é examinado do
ponto de vista do sujeito doador ou destinador dos valores porque o destinador-
manipulador é o actante funcional que engloba vários papéis actanciais, entre os quais
esse de sujeito doador dos valores modais. Ele é, por assim dizer, a fonte de valores do
sujeito, seu destinatário, pois tanto determina que valores serão visados pelo sujeito
quanto o dota dos valores modais necessários à execução da ação. Na manipulação, o
destinador propõe um contrato e exerce a persuasão para convencer o destinatário a
44
aceitá-lo, isto é, primeiramente, o destinador precisa fazer com que o destinatário-
sujeito creia nos valores por ele determinados para que se deixe manipular. O fazer-
persuasivo ou fazer-crer do destinador tem como contrapartida o fazer-interpretativo ou
crer do destinatário, de que decorre a aceitação ou a recusa do contrato. A manipulação
propriamente dita ocorre quando o destinador doa ao destinatário-sujeito os valores
modais do saber-fazer e do poder-fazer, mas ela será bem-sucedida se o sistema de
valores em que estiver assentada for compartilhado pelo manipulador e pelo
manipulado, ou seja, deve haver uma certa cumplicidade entre eles. Não se deixar
manipular é recusar-se a participar do jogo do destinador pela proposição de um outro
sistema de valores, pois só com valores diferentes o sujeito escapa à manipulação.
Após ter executado a prova principal, a performance propriamente dita, o sujeito
vem prestar contas a seu destinador (aquele que provoca ou permite a ação). Nesse
momento, o destinador assume o papel de julgador, exercendo um julgamento sobre a
performance do sujeito em função do sistema de valores do qual é detentor. A sanção é
a última fase da organização narrativa, necessária para encerrar o percurso do sujeito e
correlata à manipulação, ocorrendo a prova glorificante ou de reconhecimento. Durante
o processo da interpretação, o destinador julga o sujeito pela verificação da
conformidade ou não das ões do sujeito com o sistema de valores que representa e
com os valores do contrato inicial estabelecido com o destinador-manipulador. Essa
operação de reconhecimento do sujeito pela leitura dos seus atos consiste na
interpretação veridictória dos estados resultantes do fazer do sujeito: verdadeiros (que
parecem e o), falsos (que não parecem e não são), mentirosos (que parecem, mas não
são) ou secretos (que não parecem, mas são), sendo que, o destinador neles acredita ou
deles duvida. O sujeito, reconhecido como cumpridor dos compromissos assumidos, é
julgado positivamente e recebe uma retribuição, sob a forma de recompensa. O sujeito
desmascarado por o ter executado sua parte no contrato sofre o julgamento negativo
e, conseqüentemente, uma punição.
O percurso do sujeito, que passa por essas três provas, está em dependência do
percurso do destinador, que apresenta um contrato inicial e uma sanção final. A
performance do sujeito ocorre num plano pragmático, no plano das ões, enquanto no
plano cognitivo se desenvolvem os programas narrativos particulares que visam à
aquisição, não do objeto-valor, mas do saber sobre o objeto e sobre o sujeito. Tal saber
resulta do fazer-interpretativo exercido pelo sujeito sobre o objeto, quer dizer, o
destinador comunica o saber sobre o objeto para que o destinatário, persuadido do valor
45
do referido objeto, se coloque em busca, aceitando o papel de sujeito. O destinatário
reage à comunicação do objeto por um fazer-interpretativo: ele julga o valor do objeto
baseado na informação que o destinador lhe dá. Em conseqüência, aceita ou recusa o
contrato. O destinador, por sua vez, também exerce um fazer-interpretativo sobre a
performance executada pelo sujeito, punindo ou recompensando-o. Porém, o percurso
do destinador se caracteriza pelo fato de desenvolver-se todo no plano cognitivo e, em
diferentes etapas do desenvolvimento narrativo, intervêm os dois tipos de fazer
cognitivo: o persuasivo e o interpretativo.
A Semiótica propõe a narrativa “como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de
contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os
conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos
31
”, ou seja, uma narrativa apresenta, a
partir de certos valores e determinados contratos, o homem agindo e transformando o
mundo à procura dos valores investidos nos objetos. O sujeito, durante a sua busca,
trava conflitos e opõe-se a outros sujeitos interessados nos mesmos valores e
comprometidos com outros destinadores, mas o sujeito, suas ações e os resultados dessa
busca terão sentido quando reconhecidos e interpretados no quadro de um sistema de
valores. O nível narrativo é, então, o somatório das mudanças de estado realizadas pelo
sujeito que age no mundo, que busca valores e que transforma o mundo no qual está
inserido.
No nível do discurso ou das estruturas discursivas, as estruturas narrativas, quando
assumidas pelo sujeito da enunciação, aquele que produz o discurso, convertem-se em
estruturas discursivas. O sujeito da enunciação pode fazer uma série de opções em
relação à pessoa, tempo e espaço para projetar o discurso, tendo em vista os efeitos de
sentido que deseja produzir, por isso o discurso “nada mais é, portanto, que a narrativa
‘enriquecidapor todas essas opções do sujeito da enunciação
32
”. Estudar as projeções
da enunciação é, por conseguinte, verificar quais são os procedimentos utilizados para
constituir o discurso e quais os efeitos de sentido fabricados pelos mecanismos
escolhidos.
Partindo do princípio de que alguns discursos, como o lendário, por exemplo,
procuram persuadir seu destinatário de que são verdadeiros, os mecanismos discursivos
têm por finalidade criar a ilusão de verdade, entre os quais se destacam os de
distanciamento ou proximidade da enunciação e os de realidade ou referente. Existem
31
BARROS, 2003, p.16.
32
Id., p.53.
46
recursos que permitem fabricar a ilusão de distanciamento e fingir certa “objetividade”,
ou seja, de manter a enunciação afastada do discurso como garantia de sua
imparcialidade, mas o sujeito da enunciação, baseado nos seus valores e fins, faz uma
espécie de filtragem de tudo que é dito no discurso. O principal procedimento utilizado
é a terceira pessoa, visto que produzir um discurso nessa pessoa cria a ilusão de
objetividade, finge-se distanciamento da enunciação que, assim, é “neutralizada”, pois
nada mais faz do que apenas comunicar os fatos e o modo de ver de outros. Se o recurso
da terceira pessoa é usado para tornar o discurso objetivo, o emprego da primeira
pessoa, no entanto, produz o efeito contrário: o discurso em primeira pessoa fabrica o
efeito de subjetividade na visão dos fatos vividos e narrados, pois quem os viveu os
passa impregnados de “parcialidade”.
O sujeito da enunciação atribui ao narrador a voz, isto é, o dever e o poder de narrar
o discurso em seu lugar. Uma vez instalado, o narrador pode ceder internamente a
palavra aos interlocutores, desempenhados pelos atores, já que a delegação interna de
voz é outro dos recursos discursivos de produção de efeitos de sentido utilizado para
atribuir ao outro a responsabilidade discursiva. As delegações de voz internas, no
entanto, estão mais relacionadas ao efeito de sentido de realidade ou de referente.
Por efeitos de realidade ou de referente entendem-se as ilusões discursivas de que os
fatos contados são eventos ocorridos, de que seus atores são de “carne e osso”, de que o
discurso copia o real, mas são apenas ilusões criadas, efeitos de sentido produzidos no
discurso. Quando, no interior do texto, o narrador cede a palavra aos interlocutores, em
discurso direto, constrói-se uma cena que serve de referente ao texto, pois se cria a
ilusão de situação real” de diálogo. As palavras, em discurso direto, dão veracidade a
essa fala, que o se trata de dizer que ele disse”, mas de repetir tais quais” as
palavras foram proferidas.
Outro procedimento de obtenção da ilusão de realidade ou de referente é a
ancoragem actancial, temporal e espacial, que trata de atar o discurso a pessoas, espaços
e datas que o receptor reconhece como reais ou existentes. Para concretizar os atores, os
espaços e o tempo do discurso, o enunciador faz valer-se de procedimentos semânticos
que os preencham com traços, de modo que os torne cópias” da realidade ou que, pelo
menos, produzam tal ilusão. Tais elementos ancoram o texto na história e criam a ilusão
de referente e, conseqüentemente, de fato ou evento verídico, pois se as personagens, os
locais ou os momentos em que os fatos ocorrem são reais, torna-se verdadeiro todo o
texto que a eles se refere. A ausência de ancoragem é um efeito de irrealidade ou de
47
ficção, de ilusão de que tudo é imaginação ou mesmo de que não existe o real, a não ser
como criação do discurso, então, a fórmula Era uma vez... prende a história no tempo
imaginário da fantasia.
No estudo das projeções da enunciação, é necessário examinar os efeitos de sentido
do discurso, assim como também os procedimentos utilizados em sua produção, ou seja,
não basta reconhecer, por exemplo, que um discurso foi produzido em primeira pessoa,
mas é preciso, através da análise do texto, explicar as razões da escolha e quais os
efeitos que se obtêm com tal opção. Os efeitos criados são fundamentais na relação
entre enunciador x enunciatário, desdobramentos do sujeito da enunciação que
cumprem os papéis de destinador e de destinatário do discurso. O enunciador define-se
como o destinador-manipulador responsável pelos valores do discurso e capaz de levar,
por meio de argumentos, o enunciatário a crer. Na manipulação, através dos meios
empregados na persuasão e na interpretação, se estabelece um contrato entre enunciador
e enunciatário, que se realiza no e pelo discurso, pelo qual o enunciador determina como
o enunciatário deve interpretar o discurso, pois o enunciador constrói o discurso todo
com marcas espalhadas que devem ser encontradas e interpretadas pelo enunciatário.
Para escolher as pistas a serem oferecidas, o enunciador deve considerar a relatividade
cultural e social da verdade”, sua variação em função do tipo de discurso, além das
crenças do enunciatário que irá interpretá-las. O enunciatário, por sua vez, para entender
o texto, precisa descobrir as pistas, compará-las com seus conhecimentos e convicções
e, finalmente, crer ou não no discurso.
Os valores assumidos pelo sujeito da narrativa o, no nível do discurso,
disseminados sob a forma de percursos temáticos e recebem investimentos figurativos.
A disseminação dos temas e a figurativização deles são tarefas do sujeito da enunciação
que, dessa maneira, vai assegurar a coerência semântica do discurso e criar os efeitos de
sentido e, sobretudo, de realidade. Tematizar um discurso é formular os valores de
modo abstrato e organizá-los em percursos constituídos pela recorrência de traços
semânticos. pelo procedimento de figurativização, figuras do conteúdo recobrem os
percursos temáticos abstratos e atribuem-lhes traços de revestimento sensorial, por
exemplo, uma narrativa de busca do poder-ser e fazer pode tornar-se um discurso
temático sobre a liberdade.
Os efeitos de realidade resultam, portanto, da figurativização e da iconização do
discurso, pois o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciatário a
reconhecer imagens do mundo” e, a partir delas, acreditar na verdade do discurso. O
48
enunciatário, por sua vez, crê ou não no discurso, devido, na maioria das vezes, ao
reconhecimento de figuras do mundo. O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de
veridicção que se estabelece entre o enunciador e enunciatário e que regulamenta, entre
outras coisas, o reconhecimento das figuras.
A teoria semiótica examina a enunciação enquanto instância pressuposta pelo
discurso em que deixa marcas ou pistas que permitem recuperá-la, ou seja, reconstrói-se
a enunciação por meio da análise interna do texto, pois certos procedimentos do mesmo
marcam, nos diferentes patamares do percurso gerativo, a relação entre o discurso e a
enunciação pressuposta. Mas é no nível das estruturas discursivas, sobretudo, que a
enunciação mais se revela nas projeções da sintaxe do discurso, nos procedimentos de
argumentação e na escolha dos temas e figuras sustentadas por formações ideológicas.
A análise interna do texto apreende tais aspectos e mostra que as escolhas feitas e os
efeitos de sentido obtidos não são obra do acaso, mas decorrem da direção imprimida ao
texto pela enunciação. A enunciação, por conseguinte, também é reconstruída por meio
das relações contextuais, porque assume o papel de instância mediadora entre o discurso
e o contexto sócio-histórico, ressaltando o caráter manipulador do discurso, revelando
sua inserção ideológica e afastando qualquer idéia de neutralidade ou de imparcialidade
do texto. A semiótica analisa os textos “para construir-lhes os sentidos e recuperar, no
jogo da intertextualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da história
33
”.
A lenda é uma narrativa folclórica de ideologia marcadamente conservadora, em que
o status quo é considerado justo e feliz, e, por isso, deve permanecer imutável. Como
observa Sylvie Dion (1999), a lenda explora os valores morais de uma comunidade
colocando em evidência ora um exemplo de modelo de indivíduo ora um contra-
exemplo ou um desvio de comportamento que deve ser evitado constantemente. Com
isso, ela tem uma função didática, já que ensina os bons e os maus exemplos de
comportamento, bem como a sanção e o castigo que resultam de uma transgressão. A
lenda se apresenta sob um discurso de prevenção e de advertência porque é sempre a
narrativa de uma transgressão qualquer: de uma ação que consiste em desobedecer, em
violar o código de regras de uma comunidade ou em ultrapassar os limites
habitualmente permitidos e tolerados. Dessa forma, a teoria semiótica pode ser aplicada
ao estudo de narrativas míticas, lendárias e populares de estrutura simples e de ideologia
conservadora, cujo conteúdo colocado no fim da história é um significado moral, pois é
33
BARROS, 2003, p.83.
49
a expressão artística dos anseios coletivos, que sonham com o triunfo do bem sobre o
mal.
As versões literárias da lenda A Mãe do Ouro serão analisadas nos três veis que
compreendem a teoria semiótica, fundamental, narrativo e discursivo, para que seja
compreendido como ocorre a construção do percurso gerativo de sentido de cada texto.
Primeiramente, procederemos à análise do nível fundamental para determinar a(s)
categoria(s) de oposição semânticanima(s) a partir da(s) qual(is) o sentido do texto é
construído. Depois, a análise do nível narrativo, na qual representaremos os programas
narrativos e, a partir deles, traçaremos os percursos narrativos dos actantes. Por fim, no
nível do discurso, analisaremos aquele que produz o discurso, o sujeito da enunciação,
bem como procuraremos identificar as marcas deixadas ao longo da construção do
discurso, que enriquecem a narrativa.
50
5 – As versões literárias da Mãe do Ouro
Neste capítulo apresentamos a análise das versões literárias da lenda em estudo,
escritas por Alberto Coelho da Cunha, Nitheroy Ribeiro, Veiga Miranda, Ruth
Guimarães, Lucília Garcez e Souza Carneiro em seus respectivos grupos.
5.1 – Grupo sulino
O grupo sulino compreende a narrativa do escritor pelotense Alberto Coelho da
Cunha
34
, sob o pseudônimo de Victor Valpírio, e o poema do escritor quaraiense
Nitheroy Ribeiro.
5.1.1 – Versão de Alberto Coelho da Cunha
Análise no nível fundamental
A leitura da lenda no nível fundamental permite determinar a oposição semântica
essencial, a partir da qual se constrói o sentido do texto: liberdade versus dominação. A
liberdade pressupõe o livre-arbítrio, a identidade, a obediência, o ambiente doméstico e
a vida, enquanto a dominação pressupõe a dependência, a alteridade, a desobediência, o
ambiente selvagem e a morte. A menina vivia com sua família na estância de Silvério
Nunes, onde cultivavam uma horta em que toda a hortaliça se encontrava: nada
faltava...” (p. 33). O encontro com a Mãe do Ouro, uma criatura estrangeira,
desconhecida naquele universo familiar, abre a possibilidade da menina pertencer a um
universo misterioso, com uma vida diversa e de riquezas, mas proibido, pois tinha que
manter segredo de tudo.
A lenda apresenta uma mulher designada por “china” com uma porção de filhos e
uma filha quase mocinha que vivia agregada à estância adquirida por Silvério Nunes. A
china era uma mulher trabalhadeira que não podia estar debalde” (p. 33) e cultivava
uma horta no terreno entre os arranchamentos e a sanga. Depois de certo tempo,
começou a notar, de forma inesperada, grande estrago na sua plantação “coisa singular:
nem o feijão era comido, nem a alface tampouco; mas reconheciam-se as vagens
34
Todas as referências à obra A mãe do ouro, de Alberto Coelho da Cunha, foram retiradas de:
MOREIRA, Maria Eunice (org.). Narradores do Partenon Literário. Porto Alegre: IEL, 2002, p. 29-40.
51
chochas, por lhe terem absorvido o suco; via-se que os talos tenros da alface haviam
sido chupados” (p. 33). A mulher buscou inutilmente a explicação para aquele mistério,
pôs-se, inclusive, a observar de noite, mas nunca viu nada de suspeito.
A filha, designada por “chininha”, também tentou buscar a solução daquele mistério,
porém desviou-se do seu foco, em função da curiosidade, quando encontrou, certa noite,
sentada na sanga, uma moça lindíssima. A menina “asfixiada de pasmo não deu um
passo!...” (p. 34), mas a estranha criatura dissuadiu-a de seus temores, de modo que a
menina deslumbrada “falou-lhe com toda a confiança” (p. 34). A mulher desconhecida
marcou novo encontro para a noite seguinte e pediu um pente de cabelos. A menina,
prontamente, compareceu e fascinada com a descrição dos maravilhosos “reinos
desconhecidos, que existem debaixo da terra” (p. 34) fez pacto e prometeu acompanhar
a irresistível criatura, entretanto, teria que manter segredo inviolável, ninguém poderia
saber das conversas entre ambas nem do que tinha visto e nem sobre o novo encontro
marcado dentro de cinco dias, no mesmo local e horário. A menina recebeu uma concha
de marisco parda-furta-cor como prova da confirmação do pacto, mas a concha era
encantada: dentro dela o ouro cascateava em ondas. Assim que a Mãe do Ouro
desapareceu, a chininha correu para casa e no auge da alegria o pôde conter-se” (p.
35), revelando o segredo. A transgressão foi paga com a vida, pois a concha, como por
encanto, partiu-se, transformando-se o ouro em víboras e uma das cobrinhas mordeu a
menina no peito.
A menina, mesmo vivendo com a mãe e os irmãos agregados a uma estância e
dependendo da hospitalidade do estancieiro, era livre. Essa liberdade é considerada
positiva ou eufórica. Quando encontra a Mãe do Ouro que lhe mostra um mundo
diferente e desconhecido, a menina fica tão deslumbrada que promete acompanhá-la,
abandonando sua vida para viver uma outra. A dominação por parte da Mãe do Ouro é
considerada negativa ou disfórica. O texto tem como conteúdo mínimo fundamental a
perda da liberdade em troca da dominação ou da opressão, sentida como negativa.
O sujeito menina passa por um processo de degradação, pois sua trajetória vai de
positiva a negativa, a menina faz de tudo para apoderar-se do objeto-valor “reinos
desconhecidos”, mas sua performance é frustrada devido a sua curiosidade. O relato
conta o fracasso de um sujeito que transgrediu um código familiar de condutas para
aventurar-se em um mundo desconhecido sendo, em função disso, sancionado com a
morte.
52
O percurso da filha da china na lenda é:
Liberdade ---------------- dominação ---------------- morte
(vida doméstica) (sedução pela Mãe do Ouro) (perda da identidade)
A Mãe do Ouro manipula o sujeito filha da china por sedução ao descrever as
“maravilhas de reinos desconhecidos, que existem debaixo da terra” (p. 34), de tal
maneira que a menina “fez pacto com ela e prometeu acompanhá-la” (p. 35). Para obter
o objeto-valor, a menina conta com a ajuda da própria Mãe do Ouro, também
desempenhando o papel actancial de ajudante, que fornece à menina o objeto mágico:
uma concha de marisco parda-furta-cor. Essa concha mantida intacta era a prova de que
o segredo não havia sido violado. Porém, ao lhe entregar a concha de marisco, a Mãe do
Ouro novamente manipula, desta vez por tentação, pois desperta na menina a
curiosidade em saber o que tem dentro da concha. O instinto de curiosidade desempenha
o papel actancial de oponente, pois a jovem deslumbrada e louca de prazer” (p. 35)
viola o segredo, não cumprindo com o contrato pré-estabelecido. A Mãe do Ouro, então,
exerce o papel de destinador-julgador e estabelece a punição por revelar o segredo: o
ouro transforma-se em cobras e uma delas morde a menina no peito.
O percurso da Mãe do Ouro na lenda é:
Destinador-manipulador ------------ ajudante ---------- destinador-julgador
(estabelece o contrato) (entrega o objeto mágico) (estabelece a sanção)
Análise no nível narrativo
PN1: O paulista Silvério Nunes, depois de muito ter tropeado para Sorocaba, queria
estabelecer-se no continente. Trocou seu cavalo zebruno, com um ilhéu, por uma
extensão de terras. O sujeito do fazer é Silvério Nunes, que propôs o negócio da troca
do cavalo pelas terras. O sujeito de estado é o ilhéu que aceitou a proposta. O objeto-
valor é a campanha que se estende desde a Coxilha do Guaraxaim a o Arroio das
Capivaras.
F (estabelecer-se no continente) [S
1
(Silvério Nunes) (S
2
(ilhéu) Ov (estância))]
PN2: Junto à estância, vivia agregada com sua família, uma china que cultivava uma
horta. O sujeito do fazer é a china, pois mantinha uma horta em troca da hospitalidade
53
do estancieiro. O sujeito de estado também é a china, pois tinha um lar para sua família.
O objeto-valor é a horta que representa a garantia de moradia.
F (cultivar uma horta) [S
1
(china) (S
2
(china) Ov (horta))]
PN3: Após algum tempo, a china começou a notar grande estrago na sua plantação:
alfaces destroçadas, feijão machucado e com as vagens chochas. Ela procurou a
explicação do mistério. O sujeito do fazer é a china que ficou de noite à espreita para
solucionar o mistério. O sujeito de estado também é a china, pois teve sua plantação
destruída, sem conseguir descobrir a causa do estrago. O objeto-valor é a solução deste
mistério.
F (descobrir o mistério da horta) [S
1
(china) (S
2
(china) Ov (solução))]
PN4: A filha da mulher agregada à estância, na tentativa de solucionar o mistério na
horta, numa noite, encontrou uma moça sentada na pedra da sanga. A menina cheia de
susto não conseguiu fugir. O sujeito do fazer é a filha, pois praticou as ações. O sujeito
de estado é ela também, pois ficou em estado de choque, tão confusa e assustada, que
não atinava fugir. O objeto-valor é o medo do desconhecido.
F (fugir da moça) [S
1
(filha da china) (S
2
(filha da china) Ov (medo))]
PN5: A moça desconhecida, percebendo a presença da menina, dirigiu-lhe a palavra e
pediu que não fugisse. Com voz convincente fez com que a chininha perdesse seus
medos e lhe falasse com toda a confiança. O sujeito do fazer é a moça, pois convenceu a
chininha a permanecer no local. O sujeito de estado é a filha da china, pois sofreu uma
transformação – do medo que sentia passou ao deslumbre. O objeto-valor é aquisição da
confiança da menina.
F (falar com a menina) [S
1
(moça) (S
2
(filha da china) Ov (confiança))]
PN6: A moça marcou novo encontro na noite seguinte e pediu à menina um pente de
cabelos. O sujeito do fazer é a moça, pois determina o que deve ser feito. O sujeito de
estado é a filha da china, pois obedece às ordens e comparece ao encontro. O objeto-
valor é ainda a aquisição da confiança da menina.
F (marcar novo encontro) [S
1
(moça) (S
2
(filha da china) Ov (confiança))]
54
PN7: A moça contava sobre as maravilhas de reinos desconhecidos que existem debaixo
da terra. A filha da china ouvia extasiada. O sujeito do fazer é a moça, pois usa de todos
os artifícios para deixar a menina encantada. O sujeito de estado é a filha da china, pois
se deixa seduzir. O objeto-valor são os reinos desconhecidos, que representam para a
menina a possibilidade de uma outra vida.
F (contar sobre os reinos) [S
1
(moça) (S
2
(menina) Ov (reinos desconhecidos))]
PN8: A menina fez pacto com a moça e prometeu acompanhá-la aos reinos
desconhecidos. O sujeito do fazer é a chininha, pois mesmo induzida pela moça, ela
realizou a ação. O sujeito de estado é ela também, pois com o pacto sofreu uma
transformação de livre passou ao domínio da Mãe do Ouro. O objeto-valor são ainda
os reinos desconhecidos.
F (aceitar acompanhar a moça) [S
1
(menina) (S
2
(menina) Ov (reinos
desconhecidos))]
PN9: Na despedida, a moça abraçou a filha da china e disse-lhe que a esperasse daí a
cinco dias, no mesmo horário e local. A moça ainda recomendou segredo inviolável
sobre tudo o que acontecera. O sujeito do fazer é a moça, pois determina o que deve ser
feito. O sujeito de estado é a filha da china, pois aceita as ordens. O objeto-valor é o
segredo.
F (marcar novo encontro) [S
1
(moça) (S
2
(filha da china) Ov (segredo))]
PN10: A moça abaixou-se à beira da sanga, pegou uma concha de marisco parda-furta-
cor e depositou nas mãos da menina, dizendo ser um presente da Mãe do Ouro. O
sujeito do fazer é a moça, conhecida como a Mãe do Ouro, pois realiza as ações. O
sujeito de estado é a filha da china, pois aceita o presente. O objeto-valor é a concha de
marisco que representa o pacto.
F (selar o pacto) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(filha da china) Ov (concha))]
PN11: A menina viu dentro da concha de marisco mágica, que se entreabria, o ouro
cascatear em ondas. O sujeito do fazer é a filha da china, pois realizou a ação de ver. O
sujeito de estado também é ela, pois sofre o deslumbramento pelo ouro. O objeto-valor é
o ouro.
55
F (ver o ouro) [S
1
(filha da china) (S
2
(filha da china) Ov (ouro))]
PN12: A menina correu depressa para casa, assim que a Mãe do Ouro desaparecera. No
caminho, a concha entreabriu-se novamente e a menina, no auge da alegria, não pôde
conter-se, revelou quem lhe dera o presente. O sujeito do fazer é a filha da china, pois
realizou a ação de revelar o segredo. O sujeito de estado é também a filha da china, pois
irá sofrer as conseqüências da revelação. O objeto-valor é o segredo que foi violado.
F (voltar para casa) [S
1
(menina) (S
2
(menina) Ov (segredo))]
PN13: Assim que revelou o segredo, o ouro transformou-se em cobras e uma delas
mordeu a menina no peito. O sujeito do fazer é a Mãe do Ouro, que pune a filha da
china pela desobediência. O sujeito de estado é a menina, pois perde a vida como
castigo pela desobediência. A Mãe do Ouro tira da filha da china o objeto-valor vida.
F (punir a desobediência) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(filha da china) Ov (vida))]
O percurso da Mãe do Ouro em relação à filha da china é, inicialmente, de
destinador-manipulador, depois de ajudante e, por fim, de destinador-julgador. A
menina, assim como a mãe, está empenhada na busca da solução do mistério da horta, já
que a mesma é o objeto-valor que garante a sobrevivência da família na estância de
Silvério Nunes. A horta estava localizada no terreno entre os arranchamentos e uma
sanga que corria por detrás deles. A menina, descuidada, ultrapassa o espaço tópico, do
conhecido, a horta, e adentra o espaço atópico, do desconhecido e do mistério, a sanga,
onde encontra, ao frontear as pedras, uma criatura deslumbrante. A curiosidade em
relação a essa moça de extraordinária beleza, a Mãe do Ouro, vai desviar o sujeito filha
da china da busca do objeto-valor solução do mistério da horta. Nesse momento ocorre
a interrupção dessa busca e uma nova se instala.
A e do Ouro, aquela “moça lindíssima”, com uma “pele alvíssima”, “cetinosa”,
que tinha “ondeações brilhantes e reflexos dourados” e uma “nuvem de cabelos de
ouro” (p. 34), atraiu a atenção da filha da china que, confusa e, ao mesmo tempo,
assustada, não atinava fugir. Já a Mãe do Ouro, dessa forma, assume o papel de
destinador-manipulador, manipulando a menina através da sedução: a beleza
extraordinária e a voz de condão irresistível. A Mãe do Ouro propõe a obtenção do
objeto-valor “reinos encantados”, que seduz a menina e desperta nela a vontade de
56
conhecer o universo desconhecido. A Mãe do Ouro induz um pacto e a chininha
promete acompanhá-la, tamanho é o deslumbramento e a ânsia de pertencer a esse
universo mágico. Para atingir o objeto-valor, a menina deve encontrar-se com a Mãe do
Ouro, novamente, em cinco dias, no mesmo horário e local, mas deve também manter
segredo inviolável sobre as conversas que as duas mantêm. Após a aceitação do contrato
de obediência, a Mãe do Ouro, desempenhando o papel actancial de ajudante, entrega-
lhe um objeto mágico: uma concha de marisco parda-furta-cor e com ele os valores
modais do saber-fazer e do poder-fazer, ou seja, a menina precisa, apenas, realizar a
ação de não-revelar o segredo.
A partir desse momento, ae do Ouro inicia o processo de manipulação por
tentação. As conchas entreabrem-se e desperta na menina a curiosidade, o querer-ver, o
querer-saber que dentro da concha. Ela realiza a ação de ver e descobre dentro da
concha o “ouro cascatear em ondas” (p. 35). A Mãe do Ouro, para certificar-se de que o
contrato será ou o respeitado, tenta a filha da china uma outra vez quando ela está
retornando para casa, o espaço tópico: no caminho, as conchas entreabrem-se para que
ela veja o ouro espumar em ondas. A menina caiu na cilada e, no auge da alegria, não
pôde conter-se: chamou pela mãe para que viesse ver o lindo presentinho dado pela Mãe
do Ouro. A concha encantada partiu-se em duas partes e o ouro transformou-se em
cobras assim que a menina revelou o segredo, quebrando o contrato. Cabe à Mãe do
Ouro, ao comprovar que o compromisso assumido o foi cumprido, a aplicação de
uma punição. A morte é a pena estabelecida, não uma morte comum, mas uma morte
fulminante por mordida de cobra. Quando julga as ações da filha da china e estabelece
uma sanção, a Mãe do Ouro já está cumprindo o percurso de destinador-julgador.
O percurso da filha da china é de sujeito. A chininha, num primeiro momento da
narrativa, cumpre o papel actancial de sujeito do querer, pois ela, juntamente com a
mãe, deseja solucionar o mistério da horta. Mas o consegue desempenhar a
performance, pois lhe falta a competência necessária, ela possui apenas o querer e o
dever, uma vez que o cultivo da horta é a garantia da moradia nas terras de Silvério
Nunes, faltando-lhe o saber e o poder, que o mistério não é solucionado. A
curiosidade que desperta uma estranha mulher, encontrada na sanga, numa certa noite
de verão, desvia a atenção da chininha. Dessa maneira, o seu instinto de curiosidade
desempenha o papel actancial de oponente porque se torna um obstáculo, interrompendo
a busca em solucionar o mistério da horta.
57
A interrupção, bem como o encontro, irão desencadear um novo percurso de sujeito,
por parte da filha da china. Ela cumpre, no plano das ações, as três provas. Inicialmente,
a menina fica confusa e assustada quando se depara frente a frente com a incrível
criatura, depois se torna um fantoche nas suas mãos. A Mãe do Ouro, com o poder de
persuasão de sua “voz de condão irresistível”, ao descrever-lhe as “maravilhas de reinos
encantados que existem debaixo da terra”, fez a menina apaixonar-se pelo mundo
desconhecido e acender-lhe, na alma,mil desejos de uma vida diversa” (p. 34).
Despertado o desejo, o querer, passa a obedecer às ordens e a seguir as instruções da
Mãe do Ouro. Mas a curiosidade da menina, instinto que ela o consegue controlar,
fará com que quebre o pacto e viole o segredo.
O instinto de curiosidade da menina novamente se torna um obstáculo,
desempenhando o papel actancial de oponente, pois ela interrompe a busca pelo objeto-
valor “reinos encantados”. A curiosidade faz com que a menina tenha ações mentirosas,
ou seja, ela parece aceitar os valores propostos pela Mãe do Ouro, quando, na verdade,
recusa tais valores, colocando em prática outros diferentes. O sujeito operador menina,
por suas ações, é reconhecido pelo destinador, através do processo de interpretação,
como não-cumpridor dos compromissos assumidos e é desmascarado por não ter
executado sua parte no contrato, sofrendo um julgamento negativo e,
conseqüentemente, uma punição. A sanção final imposta pela Mãe do Ouro, no papel
actancial de destinador-julgador, é a transformação do ouro em cobras e a morte
fulminante da menina por mordida de cobra no peito.
Análise no nível do discurso
A lenda é contada pelo ator da novela, Ângela Nunes, que narra a história da Mãe do
Ouro para sua filha Anita. Embora narrado em terceira pessoa, com uma visão externa
dos acontecimentos, fingindo objetividade, um tom testemunhal no discurso, porque
Ângela Nunes viveu e presenciou o que está narrando ou alguém lhe contou, em tempos
remotos, o que está contando à Anita. Nesse caso, observa-se uma “aparência” de
afastamento, pois o caráter testemunhal cria um efeito de proximidade, de que os
eventos relatados foram presenciados por quem narra, próprio do discurso da lenda.
O recurso da delegação interna da voz é utilizado, pois, em alguns momentos, a
terceira pessoa é substituída pelo discurso direto que aparece em forma de falas isoladas
de um ator. Como a lenda tem a pretensão de fazer-crer, cria-se, assim, uma ilusão
58
discursiva de que os fatos narrados realmente aconteceram, de que envolveram pessoas
reais e de que o próprio discurso é uma cópia da realidade.
A ancoragem actancial, espacial e temporal acontece principalmente pelos dados
referentes aos envolvidos na transação das terras. Silvério Nunes era paulista, tinha
tropeado muito para Sorocaba, montava seu cavalo zebruno coberto de pratarias e
queria estabelecer-se no continente. O ilhéu era “dono de uma porção de datas de campo
que tinha comprado” (p. 32) e tinha tropilhas de cavalos. Esses índices remetem ao
século XVIII, período de povoação e formação do Continente de São Pedro, hoje estado
do Rio Grande do Sul, com a chegada dos primeiros colonos açorianos por volta de
1752-1753, no qual era comum o regime de vida das estâncias, já que a atividade
predominante era a pastoril. O fato do adquirente se chamar Silvério Nunes e trocar seu
cavalo pela “campanha que se estende desde a Coxilha do Guaraxaim até o Arroio das
Capivaras” (p. 33) não ancora definitivamente a lenda, pois tais elementos podem
pertencer tanto à realidade quanto à ficção.
A lenda acentua a riqueza natural do lugar e investe em forte figurativização visual:
“por detrás dos arranchamentos corria uma sanga por cima de pedras entre uns
barrancos cobertos de matinhos de pitangueiras”,à borda da sanga, meio dentro
d’água, havia uma pedra quadrada vestida de macio musgo, e mais à direita, dois
renques de rochas perdiam-se no bosque”, “as trepadeiras enlaçadas, de um lado a outro
estendidas, faziam aí, impenetrável sombra” (p. 33). A descrição detalhada faz com que
o enunciatário possa quase ver e sentir a atmosfera do lugar e que tenha a mesma
sensação de fascínio sentida pela menina em relação à Mãe do Ouro.
A descrição da noite, na qual a chininha encontrou a Mãe do Ouro, com uma
atmosfera sedutora e envolvente propicia no enunciatário um momento de
deslumbramento, de devaneio, de modo a não estranhar nenhum acontecimento
sobrenatural e de torná-lo verossímil na narrativa:
Era numa linda noite de verão. O pau de cachimbo cobria-se de
esplêndidos buquês de flores, e orlava o matinho de alvíssimas ondas
amplas e odoríferas; por sobre o campo arrastava a brisa frouxa, a
essência predileta de marimal. A campina coalhava-se de cintilações;
estrelas sem órbitas a roçarem no plaino, dos vagalumes, como uma
praga, as constelações erravam. No verde-mar infinito dos campos
julgar-se-iam ardentias flutuando nas espumas erradias (p. 34).
A china é caracterizada como vítima da pobreza: uma mulher sem marido, não
referência à figura paterna, com uma “porção de filhos” (p. 33) e responsável por prover
o sustento de sua família. Sem moradia e sem terras, a família era dependente da boa-
59
vontade de Silvério Nunes à estância do qual viviam agregados. A china morava em
ranchos ajuntados próximo à sanga e em troca dessa “hospitalidade” cultivava uma
horta onde nenhum tipo de hortaliça faltava. Além disso, a mulher também é vítima do
preconceito racial, pois é designada por “china”, uma vez que não possui nome próprio,
que remete a uma desqualificação identitária. Esses motivos podem ser os responsáveis
pelo desejo em relação aos “reinos desconhecidos” (p. 34) oferecidos pela Mãe do
Ouro. Diante do contraste entre o ambienteo rico em belezas naturais e a situação de
miséria em que a família da china vivia, é compreensível o fato de a menina ficar tão
deslumbrada com a figura extraordinária da Mãe do Ouro e com a possibilidade de uma
nova vida que ela oferecia.
A caracterização da Mãe do Ouro e do seu poder de sedução remete à construção de
uma imagem de mulher fatal. A visão daquela “moça lindíssima, nuazinha”, sentada
sobre a pedra, com uma pele alvíssima, cetinosa”, com ondeações brilhantes e
reflexos dourados”, com uma nuvem de cabelos d’ouro” que desabava sobre o colo e
os olhos, “esses não tinham cor, porque eram dois centros de fulgores” (p. 34) deixou a
menina tão confusa e assustada que nem atinou fugir dos seus encantos. O poder de
persuasão da sua “voz de condão irresistível” (p. 34) dissipou os temores da filha da
china, que ouvia extasiada a moça descrever-lhe maravilhas de reinos desconhecidos,
que existem debaixo da terra” (p. 34), as quais lhe acendiam “mil desejos de uma vida
diversa” (p. 34) na alma, ou seja, a possibilidade de pertencer a outro universo que não
aquele de pobreza ao qual vivia.
O percurso de sedução da Mãe do Ouro é semelhante à ação de uma cobra que atrai e
envolve uma presa fácil para finalmente dar o bote. O ato de sedução da Mãe do Ouro
ocorre por etapas: inicialmente por sua aparência esplêndida, depois pela voz
convincente com que afasta os medos e pelo poder mágico de persuasão com o qual
consegue da menina um pacto e a promessa de acompanhá-la. A Mãe do Ouro, depois
de fixar a presa, envolve a pobre menina descuidada na rede fatal de sua influência. O
fato de a menina morrer de uma mordida de cobra é um indício de que o bote foi
certeiro e representa que a menina já estava envenenada pelo veneno expelido pela Mãe
do Ouro quando lhe acendeu na alma “mil desejos de uma vida diversa” (p. 34).
A Mãe do Ouro apresenta aspectos demoníacos como os olhos que não tinham cor,
mas eram dois olhos incendidos e fosfóricos, nos quais a fascinação irresistível bailava.
Também o fato de fazer pactos é um indício que remete à figura do Diabo, pois ele tem
60
o costume de realizar pactos em troca da alma do pactuante. Assim, constrói-se a
imagem da Mãe do Ouro como uma criatura maligna que atrai, seduz e mata.
A figurativização do ator filha da china remete à construção de uma imagem de
fragilidade, de inocência e nos mostra como pouco a pouco ela está vivendo o percurso
de vítima. Primeiramente, ela se deixa seduzir pela beleza da Mãe do Ouro, depois vai
se submetendo mais e mais até que cai na armadilha proposta pela Mãe do Ouro: a
concha de marisco parda-furta-cor com ouro cascateando em ondas dentro. A menina
denota inexperiência, que ela se deixa iludir por uma criatura da qual, inicialmente,
tinha se assustado e ameaçava fugir atemorizada.
O discurso trata do tema da curiosidade como uma transgressão de um limite
habitualmente tolerado ou da violação de um código de regras de uma família ou
comunidade, como por exemplo, fugir do desconhecido, do ameaçador à tranqüilidade
de uma certa comunidade. A figura do estrangeiro, do desconhecido é uma ameaça
constante que pode manifestar-se nas mais diversas situações do quotidiano, por isso,
provoca medo e/ou receio porque seduz o indivíduo, o desvirtua do seu caminho e o
conduz à morte.
5.1.2 – Versão de Nitheroy Ribeiro
Análise no nível fundamental
A leitura da lenda no nível fundamental permite determinar a oposição semântica
essencial: liberdade versus servidão. A liberdade pressupõe impulsos instintivos
pessoais a serem seguidos, como o livre-arbítrio, a identidade, o universo familiar e
doméstico, a vida, enquanto a servidão pressupõe a obediência, a alteridade, o universo
patriarcal e selvagem, a morte.
O poema apresenta uma moça africana chamada Hylaria que descendia de uma
família da alta linhagem de Moçambique. A moça é capturada em sua terra natal e
trazida como escrava para o Brasil, onde foi vendida, juntamente com um lote de outros
escravos, para os Senhores do sul. Ela “sofreu mais do que ninguém” (p. 89) porque
cada vez mais distante estavam sua casa materna, sua história e sua identidade.
Entretanto, ela era uma criatura diferente: na senzala, longe dos olhos do senhor, exercia
um estranho poder sobre os demais escravos “à voz de Hylaria-Ylá todo o escravo
obedecia, como se fosse feitiço” (p. 89).
61
Hylaria, não suportando mais viver na alteridade, uma certa noite, desobedece ao
contrato de prestação de serviços e de obediência ao dono, imposto pelo regime da
escravidão, para seguir seus impulsos instintivos de liberdade e tenta a fuga. Porém, a
tentativa é frustrada porque Hylaria possuía apenas o desejo, o querer, faltando a
competência necessária, ou seja, o saber e o poder para preparar a fuga e desempenhar a
performance de libertar-se do regime opressor. O senhor, ao surpreender a escrava na
fuga, quando retornava da inspeção ao esconderijo de seu tesouro, cumpre o papel
actancial de oponente porque se torna um obstáculo na busca do objeto-valor liberdade
desempenhada pelo sujeito Hylaria. No regime da escravidão ocorre o processo de
manipulação através da intimidação: qualquer ato de desobediência por parte do escravo
será castigado. A moça não aceita a escravidão e tenta colocar em prática outros valores,
mas a tentativa fracassa porque ela se mostra um sujeito sem-competência para realizar
a ação. A desobediência da escrava será punida pelo seu senhor, o representante do
regime da escravidão, que passa, então, a desempenhar o papel actancial de destinador-
julgador. Ele atribui a sanção: o castigo do açoite.
Após a morte de Hylaria a relação entre eles se inverte: a moça assume o papel de
destinador-julgador e o senhor, o de destinatário. A moça transforma-se na Mãe do
Ouro, uma entidade pertencente ao universo sobrenatural, e “em alma” retorna, “altas
horas da noite” (p. 90), para punir seu assassino por sua crueldade. A pena estabelecida
é a perda da riqueza, representada pelo ouro que escondia no laranjal: “e na panela
trazia o ouro para o Jarau” (p. 90).
Hylaria era livre, enquanto vivia em sua tribo em terras africanas. Essa liberdade é
considerada positiva ou eufórica. Ao ser capturada, foi condenada a viver no exílio e na
alteridade pelo regime forçado da escravidão. A servidão é considerada negativa ou
disfórica. O texto tem como conteúdo mínimo fundamental a perda da liberdade e da
identidade pela absoluta sujeição forçada a um regime, sentida como negativa.
O sujeito Hylaria passa, primeiramente, por um processo de degradação. Ela era livre
e pertencia a uma família nobre de alguma tribo moçambicana. Foi capturada, trazida
para o Brasil num navio negreiro e vendida como escrava. Quando executa uma
tentativa de fuga, Hylaria é recapturada e punida por sua transgressão. A morte pode ser
vista como um processo de melhoramento do sujeito, pois foi recompensada:
transforma-se na Mãe do Ouro para fazer justiça em relação a sua morte e punir seu
agressor.
62
O percurso de Hylaria é:
Liberdade ------ servidão ------ desobediência ------ morte ------ liberdade
(vivia na África) (escravizada) (fuga) (transformação na (obtenção do
Mãe do Ouro) plano sobrenatural)
Análise no nível narrativo
PN1: Uma moça chamada Hylaria, nobre, descendente de guerreiro africano, foi
arrancada de sua família e trazida como escrava. Não indicação do sujeito do fazer,
mas supõe-se que seja um traficante de escravos que captura a moça e rouba-lhe a
liberdade. O sujeito de estado é a moça Hylaria, que sofre uma transformação – de livre
passa a cativa. O traficante tira o objeto-valor liberdade da moça.
F (capturar escravos) [S
1
(traficante) S
2
(moça) Ov (liberdade))]
PN2: A moça Hylaria foi vendida numa leva de escravos para os Senhores do sul onde
“sofreu mais do que ninguém”. O sujeito do fazer são os Senhores do sul, pois compram
o lote de escravos no qual está Hylaria. O sujeito de estado é Hylaria, pois passa a ter
um dono. A perda do objeto-valor liberdade causa sofrimento à moça.
F (comprar escravos) [S
1
(Senhores do sul) S
2
(moça) Ov (liberdade))]
PN3: Na senzala, Hylaria é figura de destaque entre os outros escravos. Enquanto o
senhor dormia “à voz de Hylaria-Ylá todo escravo obedecia como se fosse feitiço que a
mata longe trazia”. O sujeito do fazer é Hylaria, pois se destaca entre os escravos. O
sujeito de estado é o senhor, pois desconhece os truques de Hylaria. O objeto-valor é o
poder exercido pela moça.
F (desconhecer a moça) [S
1
(Hylaria) S
2
(senhor) Ov (poder))]
PN4: O senhor guardava seu ouro numa panela de tripé, enterrado no laranjal. Tinha
como hábito verificar seu tesouro à noite. O sujeito do fazer é o senhor, pois realiza a
inspeção. O sujeito de estado é ele também, pois não confia essa tarefa a ninguém. O
objeto-valor é o ouro escondido.
F (vigiar o ouro) [S
1
(senhor) S
2
(senhor) Ov (ouro))]
63
PN5: O senhor, certa noite, surpreendeu a escrava numa tentativa de fuga. Ela foi
açoitada e morreu. O sujeito do fazer é o senhor, pois determina o que deve ser feito. O
sujeito de estado é Hylaria, pois sofre o castigo. O objeto-valor que o senhor tirou da
escrava é a vida.
F (punir a escrava) [S
1
(senhor) S
2
(Hylaria) Ov (vida))]
PN6: A moça em alma aparece e leva o ouro do senhor para o Jarau. O sujeito do fazer é
a escrava Hylaria, pois, mesmo depois de morta, realiza a ação de levar o ouro para o
Jarau. O sujeito de estado é o senhor, pois ele perde seu tesouro, sua riqueza. O objeto-
valor perdido é o ouro que representa riqueza e poder.
F (vingar a morte) [S
1
(Hylaria) S
2
(senhor) Ov (ouro))]
A escrava Hylaria assume o percurso narrativo de sujeito. Inicialmente ela é sujeito
do dever-fazer porque está submetida a um regime forçado de prestação de serviços,
mas a inconformidade com seu modo de vida desperta a vontade de mudança. Assume o
papel de sujeito do querer-fazer quando realiza a tentativa de fuga. No entanto, a fuga
foi frustrada porque Hylaria cumpre os papéis de sujeito do não-saber e do não-poder,
pois o soube como articular uma fuga com sucesso para livrar-se da escravidão, ou
seja, faltou-lhe a competência necessária para desempenhar a sua performance. A busca
da escrava pelo objeto-valor liberdade foi interrompida por parte do senhor, que
desempenha o papel actancial de oponente, quando retorna da inspeção rotineira do seu
tesouro escondido e surpreende-a na fuga.
A partir desse momento, o senhor passa a desempenhar o papel actancial de
destinador-julgador. Ao surpreender a escrava na tentativa de fuga, ele verifica que não
o cumprimento dos compromissos e da conduta imposta pelo regime da escravidão,
ou seja, Hylaria, ao assumir o papel actancial do sujeito do querer-fazer, assume
também uma postura exatamente oposta ao que prevê o regime da escravidão. Como
qualquer desobediência ou violação das regras implicará um castigo, caberá ao senhor a
aplicação de uma punição em relação à escrava fujona. A pena estabelecida é o
açoitamento, ao qual Hylaria não resiste e morre. No momento em que julga o ato da
escrava Hylaria e estabelece uma sanção, o senhor está cumprindo o percurso de
destinador-julgador.
Depois de morta, Hylaria desempenha o papel actancial de destinador-julgador em
relação ao seu senhor. Devido a sua morte violenta, seu fantasma retorna para punir o
64
assassino pelos crimes de crueldade. A pena estabelecida é a perda do ouro que ele “na
panela de tripé, no laranjal, escondia enterrando junto ao pé” (p. 90). O fantasma rouba
o ouro que representa a riqueza e o poder do seu ex-senhor e o leva para o Cerro do
Jarau, onde será sua nova e eterna morada. A escrava Hylaria é recompensada com a
transformação em uma entidade sobrenatural que guarda e vigia os tesouros escondidos,
a Mãe do Ouro.
Análise no nível do discurso
O poema apresenta um eu-lírico descritivo: ele descreve a trajetória de vida da
escrava Hylaria, desde sua captura em terras moçambicanas até sua pós-morte. O eu-
lírico não viveu os acontecimentos, portanto, não caráter testemunhal, apenas
observa e relata os mesmos, criando uma perspectiva de distanciamento e de
objetividade.
A ancoragem espacial ocorre graças à nomeação de lugares que possuem existência
fora do universo da ficção: Jarau
35
é um cerro da Coxilha Geral de Santana que fica um
pouco ao norte da cidade de Quaraí, na divisa do Rio Grande do Sul com a República do
Uruguai; Moçambique é um país do continente africano de onde saíram negros trazidos
como escravos para o Brasil durante o período colonial. Com esses dados podemos
fazer a ancoragem temporal: remete aos séculos XVIII e XIX, período da formação e
colonização do estado do Rio Grande do Sul, especificamente pós 1780 em que
prosperam as charqueadas nas quais havia a presença da mão-de-obra escrava negra. Há
ainda, no poema, a expressão Senhores do sul nos versos leva de escravos, vendida
para os Senhores do sul” (p. 89), um indício de que sejam estancieiros já estabelecidos
no Continente de São Pedro, atual estado do Rio Grande do Sul.
O poema possui a característica da figurativização, através da qual temos a
caracterização da escrava Hylaria como nobre, sendo o percurso figurativizado por
expressões como: “veio de Moçambique”, “não era filha de escrava”, seu pai até
descendia de guerreiro que chefiava muitas tribos reunidas”, “castiça de sangue azul”
(p. 89). Em contrapartida, o senhor tem um percurso de riqueza, pois compra leva de
escravos, guarda “o ouro na panela de tripé, no laranjal, escondia enterrando junto ao
35
Referência clara ao ciclo da Salamanca, parente próximo da Mãe do Ouro, do qual a lenda mais
conhecida é a da Salamanca do Jarau.
65
pé” (p. 90) e de crueldade, pois quando surpreende a escrava na fuga deixa “no corpo
marcas do açoite” (p. 90).
Outro exemplo de figurativização é a descrição da condição desumana com que são
tratados os escravos. Hylaria é arrancada de sua família de posição social privilegiada,
na África, e trazida “com outros tantos, no barco escravo atirada(p. 89). Os dias que
passou no navio foram “dias de sofrimento”, “entre gritos e lamentos” (p. 89). Depois,
foi vendida para os Senhores do sul como escrava, passando a ser uma mercadoria, uma
ferramenta de trabalho que não tem berço nem história. No entanto, Hylaria “sofreu
mais do que ninguém” (p. 89) porque em Moçambique ela era um ser humano e não
apenas uma mercadoria ou um objeto de trabalho. A descrição faz com que o
enunciatário possa quase sentir o sofrimento de Hylaria, que precisa esquecer sua
identidade e sua terra natal. Não suportando viver na alteridade, tenta a fuga, que
representa o ato extremo da inconformidade com esse universo de opressão e a vontade
de reassumir sua verdadeira identidade.
O relato remete aos temas da opressão e da escravidão, na figura de um senhor
assassino, uma criatura que compra seres humanos como ferramentas de trabalho, que
desrespeita a vida e a unidade familiar e que compactua com tal regime. O tema da
liberdade pode ser interpretado na figura de Hylaria, pois ela não quer viver como
escrava, ela quer retornar à vida que lembra a casa materna e, por isso, tenta a fuga,
único meio de escapar do martírio. Porém, o consegue realizar a tarefa pelo fato de
ser apanhada. Então, é punida por sua transgressão em relação ao contrato inicial
imposto pelo senhor e para servir de exemplo para reprimir novas fugas.
O discurso tem ainda como tema o fantasma vingador, almas que não conseguem
descansar em paz, pois têm “contas” a acertar na terra e por isso assombram o mundo
dos vivos. As vítimas retornam sob a forma de aparições ou fantasmas misteriosos, às
vezes, para ajudar seus próximos, para cumprir uma promessa, para denunciar, para
punir ou, amesmo, para vingar-se de seu agressor. A justiça divina pode intervir, sob
diversas formas, para punir um contraventor de um sistema de regras e valores de uma
sociedade. Nesse relato, a escrava Hylaria é assassinada de forma violenta pelo seu
senhor e seu espectro retorna para fazer justiça. A escrava, com poderes sobrenaturais,
apodera-se do tesouro escondido do seu senhor, leva-o para o Cerro do Jarau, onde será
sua nova morada e transforma-se na Mãe do Ouro, entidade protetora do ouro,
defendendo desde pequenas pepitas até minas grandiosas, como também os tesouros
66
enterrados ou escondidos. Dessa maneira, trata-se de um discurso de origem da figura
lendária da Mãe do Ouro no imaginário coletivo do Rio Grande do Sul.
5.2 – Grupo centro-nortista
Esse grupo contém a versão literária paulista de Veiga Miranda, a mato-grossense de
Ruth Guimarães, a goiana de Lucília Garcez e a baiana de Souza Carneiro.
5.2.1 – Versão de Veiga Miranda
Análise no nível fundamental
A leitura da lenda no nível fundamental permite determinar a mesma oposição
semântica presente no texto do escritor pelotense. A mulher vivia seu quotidiano no
ambiente seguro do lar e da família, no qual levava uma vida normal, mas de
insatisfação, principalmente sexual. Ao fazer o pedido à Mãe do Ouro, passa a pertencer
a um universo oposto, associado ao prazer, ao proibido e ao silêncio.
A lenda apresenta a Mãe do Ouro que sai, algumas tardes, da gruta do rio onde mora,
atravessando os ares com um longo cortejo de luzes, em busca de alguma alma aflita. O
espetáculo é restrito às mulheres, mas somente a mulher que tiver a sorte de ver uma
dessas luzes desprender-se e fizer um pedido, antes dela apagar-se, será “servida pela
Mãe do Ouro” (p. 31). Em troca do atendimento ao pedido, a mulher passará a pertencer
para sempre à Mãe do Ouro, ou seja, a mulher vende sua alma em troca de favores
prestados pela Mãe do Ouro.
A Mãe do Ouro desempenha o papel actancial de destinador-manipulador em relação
às mulheres. Para fazê-las crerem e realizarem o pedido, ela manipula por sedução e
tentação, acenando com a possibilidade de mudança nas suas vidas. A mulher assume os
papéis actanciais de sujeito do querer-fazer e do poder-fazer, ou seja, ela tem o poder de
decidir em fazer ou não o pacto. Ela opta pelo pacto porque esà espera dos valores
que a Mãe do Ouro, de maneira milagrosa, lhe oferece. A e do Ouro escolhe apenas
“as mulheres mais lindas, casadas e donzelas” (p. 32), mas elas precisam contar com um
ajudante: a sorte de presenciar o espetáculo. Essas mulheres são convocadas pela Mãe
do Ouro para participarem de festas orgíacas em seu palácio, todas as noites, enquanto
dormem.
67
A mulher, enquanto levava uma vida dedicada ao lar e à família, era livre. No
entanto, o conteúdo liberdade representado no texto, que deveria ser considerado
positivo ou eufórico, é, na verdade, uma pseudoliberdade, porque a mulher estava
insatisfeita com sua vida, por isso, considerada negativa ou disfórica. Ao pactuar com a
Mãe do Ouro, a mulher passa a pertencer ao seu domínio, vivendo na alteridade. A
dominação é considerada, num primeiro instante, como positiva ou eufórica porque a
mulher ganha uma vida cheia de prazer. No entanto, devido à perda da identidade, essa
dominação vai tornar-se negativa ou disfórica. O texto tem como conteúdo mínimo a
perda da liberdade, no caso, a perda ou venda da alma em troca de favores, riquezas ou
poder.
O sujeito mulher passa por um processo de degradação, pois sua trajetória vai da
positiva à negativa, ou seja, a mulher faz de tudo para obter favores, soluções, inclusive,
vender sua alma, que representa a perda de sua liberdade de escolhas e de sua
identidade. O relato conta a barganha realizada por um sujeito que em função da
insatisfação com sua vida transgride um código de condutas religiosas e morais para a
obtenção de favores fáceis.
O percurso da mulher na lenda é:
Liberdade ---------- poder de escolha ----------- dominação
(livre-arbítrio) (fazer o pacto) (perda da identidade/
ganho de uma vida prazerosa)
Análise no nível narrativo
PN1: A Mãe do Ouro, às vezes, pelas tardes, saía do seu esconderijo e atravessava os
ares com um longo cortejo de luzes de todas as cores. Da sua cabeleira, estrelas iam
caindo e virando pedras. O sujeito do fazer é a Mãe do Ouro, que sai da sua gruta do rio.
O sujeito de estado é ela também. O objeto-valor é a busca por alguma alma aflita.
F (sair do esconderijo) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Mãe do Ouro) Ov (alma aflita))]
PN2: A mulher que ver desprender-se uma das estrelas da cabeleira da Mãe do Ouro
pode fazer um pedido antes dela apagar-se e virar pedra. O sujeito do fazer é a mulher
que decide fazer o pedido. O sujeito de estado também é a mulher, que tem a
possibilidade de sofrer uma mudança. O objeto-valor é o pedido.
F (fazer um pedido) [S
1
(mulher) (S
2
(mulher) Ov (pedido))]
68
PN3: A Mãe do Ouro atende o pedido da mulher, mas essa passará a pertencer para
sempre àquela. O sujeito do fazer é a Mãe do Ouro, pois determina as regras. O sujeito
de estado é a mulher, pois sofre uma transformação de livre passa ao domínio da Mãe
do Ouro. O objeto-valor é o pacto.
F (atender o pedido) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(mulher) Ov (pacto))]
PN4: A mulher sairá da sua pele todas as noites, enquanto dormir, e aparece no
palácio da Mãe do Ouro para participar de festas maravilhosas. O sujeito do fazer é a
Mãe do Ouro, pois determina o que deve ser feito. O sujeito de estado é a mulher, pois
obedece ao pacto estabelecido com a Mãe do Ouro. O objeto-valor é a participação nas
festas maravilhosas realizadas no palácio da Mãe do Ouro.
F (sair do corpo) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(mulher) Ov (festas))]
O percurso da mulher é de sujeito em busca de solução para suas angústias e
aflições. A mulher conhece a crença de que a e do Ouro atende os pedidos, mas
precisa contar com a ajuda da sorte para ver desprender-se uma estrela de sua vasta
cabeleira. O pedido se atendido se a mulher o fizer antes da luz apagar-se.
Conseguir apreciar o espetáculo da Mãe do Ouro pelo céu é um privilégio apenas das
mulheres e restrito às “mais lindas, casadas e donzelas” (p. 32). O pedido representa a
firmação do pacto entre a mulher e a Mãe do Ouro, sendo que aquela sua alma como
garantia em troca da concessão de favores dessa.
A Mãe do Ouro, em relação à mulher, desempenha o papel de destinador-
manipulador. Ela costuma sair da gruta onde mora no rio Pardo, às vezes, pelas tardes,
para atravessar o u com um longo cortejo de luzes de todas as cores” (p. 31). No
momento da passagem do cortejo, ocorre a manipulação através da sedução e da
tentação, pois a mulher fica atraída pela beleza do espetáculo e o desejo de resolver seus
problemas, de forma milagrosa, desperta nela o querer e, então, faz um pedido. A Mãe
do Ouro propõe um pacto: atende o pedido, mas em troca a mulher perderia sua
liberdade, passando a ser dominada pela Mãe do Ouro.
Sob o domínio da Mãe do Ouro, a mulher, todas as noites enquanto dormia, deixava
seu corpo na cama e saía sem ninguém perceber, sem a própria pessoa ao dia seguinte
lembrar-se” (p. 32) para aparecer no palácio da Mãe do Ouro, onde participava de orgias
sexuais. No palácio, o cenário era de perversão, as horas “marcavam delícias orgíacas”
(p. 32), as águas “formavam coxins, tapeçarias, leitos macios” (p. 32), no qual os
69
desejos mais inconscientes e mais femininos eram saciados. As mulheres eram
transformadas em sereias com as “pernas justapondo-se, confundindo-se, alongando-se,
em forma de caudas de peixe”, com os “cabelos transformados em algas luminosas” e
envoltas em “roupagens riquíssimas e transparentes” (p. 32). Nas festas, as mulheres
seriam amadas pelos gênios encantados do rio e prevalecia a lei do silêncio: elas podiam
apenas ver-se umas às outras, mas sem se falar nem se tocar.
Análise no nível do discurso
A lenda é contada pelo narrador do romance Mau olhado, no qual ela está inserida. É
produzida por um narrador em terceira pessoa, com uma visão externa dos
acontecimentos, tornando o discurso objetivo e criando uma percepção de
distanciamento. Não o aspecto testemunhal, que o narrador o viveu o que es
sendo narrado. O recurso da delegação interna de voz não é utilizado porque a narração
se desenvolve sem a presença de diá
logos ou falas isoladas.
A lenda inicia com a frase em baixo, muito longe, onde as águas varavam por
um subterrâneo, morava a Mãe do Ouro” (p. 31) que equivale à tradicional fórmula do
“Era uma vez...”, transformando a lenda em conto, com um tempo e um espaço que
pertencem ao maravilhoso, ao mundo ficcional. A lenda pode ser mais um delírio de
Maria Isolina, ator do romance Mau olhado, uma mulher infeliz no seu casamento, que
na ânsia de aventuras sexuais tem freqüentes alucinações nas quais imagina toda uma
vida sexual prazerosa, bem diferente da que vivia no seu quotidiano.
A leitura do romance nos oferece um indício de referência real e a ancoragem
espacial acontece devido à presença de dois rios: o rio Pardo e o rio Grande. O rio Pardo
tem seu curso pelas terras da fazenda do marido de Maria Isolina e deságua no rio
Grande. O rio Pardo é um rio do estado de São Paulo que está localizado na região
cafeeira conhecida como Califórnia Paulista” e passa por importantes municípios da
região, como Ribeirão Preto
36
. O rio Pardo desemboca no rio Grande, um rio que nasce
no Estado de Minas Gerais e que faz a divisa natural desse estado com São Paulo.
Porém a lenda continua no universo da ficção.
A lenda acentua a beleza do cenário do palácio da Mãe do Ouro, no qual ocorriam as
festas orgíacas e investe em forte figurativização visual. Os salões eram “grutas
36
Estas informações foram encontradas na internet, no site http://pt.wikipedia.org , acessado em fevereiro
de 2006.
70
imensas, sucessivas, cada qual com a luz de uma cor, esta azulada, aquela verde, aquela
outra rósea ou violeta” (p. 32). As águas do rio que penetram na gruta formavam
“coxins, tapeçarias, leitos macios, condensando-se, colorindo-se, erguendo-se em
dosséis, repregando-se em panejamentos amoráveis e discretos” (p. 32). Os pares, nas
festas, entrelaçavam-se demoradamente e “as horas marcavam delícias orgíacas, valsas
infinitas cantaroladas pelos seixos, pelas areias luminosas, ao coro dos rochedos de uma
e de outra margem, num ritmo dolente e suave” (p. 32).
A narrativa também investe na figurativização quando descreve a viagem da Mãe do
Ouro pelo céu, espetáculo que apenas poderia ser observado por mulheres, as quais
podiam fazer um pedido:
Às vezes saía, pelas tardes, com um longo cortejo de luzes de todas as
cores, atravessando pelo ar, serenamente, como se fosse um desses
papagaios de papel, que as crianças soltam ao vento em agosto. Da sua
cabeleira de estrelas iam caindo todas, uma a uma, apagando-se e
virando pedras (p. 31).
As atitudes da Mãe do Ouro remetem à construção de uma figura demoníaca, pois o
grande realizador de pactos, na geografia sobrenatural lendária, é a figura do Diabo, que
fornece riquezas, por exemplo, em troca da alma do pactuante. A mulher que fizesse um
pedido seria servida pela Mãe do Ouro” (p. 31), mas pertenceria “para sempre” (p. 31)
a essa estranha criatura. A jornada de todas as noites, enquanto dormir, a alma deixar o
corpo na cama e aparecer no palácio da Mãe do Ouro, sem ninguém perceber nem a
pessoa lembrar-se, seria cumprida eternamente. A Mãe do Ouro tinha o poder de
propiciar às mulheres mais lindas, casadas e donzelas, encontros mágicos com os gênios
encantados do rio, pois “pelos recantos os pares se dissimulavam, zumbia a colméia dos
beijos, soluçavam as carícias nupciais, ardentes, de intermináveis desejos” (p. 32).
A caracterização da mulher remete à construção de uma imagem de passividade, de
vítima das angústias e dos medos inconscientes. A mulher não possui a capacidade de
solucionar seus problemas ou de operar transformações na sua vida, necessitando para
isso da intervenção de um ser sobrenatural. A única voz de comando da mulher se
resume na ação de decidir em fazer o pedido porque, depois de fazê-lo, passa a ser
dominada pela Mãe do Ouro como um fantoche.
O discurso trata do tema do pacto, da troca ou barganha. A figura do Diabo
pactuador é comum em relatos de diversas regiões do Brasil. No imaginário das
pessoas, invoca-se o Diabo para resolver problemas de toda ordem, freqüentemente, os
problemas de ordem financeira, por isso todo enriquecimento ou ascensão social rápida
71
ou sorte nos negócios é obra do Diabo, que concedeu tais favores em troca da alma do
pactuante. Devido às dificuldades enfrentadas pelos moradores do interior do Brasil,
pode-se imaginar a dimensão que toma na alma o desejo pelo enriquecimento rápido, de
forma quase milagrosa, talvez o único sonho possível que alentaria aquela vida infeliz.
Assim, não é de se admirar que as pessoas alucinadas acabariam trocando ou vendendo
até sua alma para quem lhes indicar o caminho da fortuna.
5.2.2 – Versão de Ruth Guimarães
Análise no nível fundamental
A leitura da lenda no nível fundamental permite determinar a oposição semântica
essencial, a partir da qual se constrói o sentido do texto: liberdade versus servidão. A
liberdade pressupõe o livre-arbítrio, a desobediência, o ambiente selvagem e a vida,
enquanto a servidão pressupõe a exploração, a obediência às regras sociais impostas
pelo regime da escravidão, o ambiente doméstico e a morte.
A lenda apresenta um “rico senhor de escravos, de modos rudes e coração cruel” (p.
47) que se ocupava da mineração. Os escravos, entre os quais havia um já velho
conhecido como Pai Antônio, tinham de trazer-lhe, diariamente, uma quantidade de
ouro, “sem o que eram levados para o tronco e vergastados” (p. 47). Pai Antônio andava
desesperado porque não lhe saía na bateia uma pepita de ouro” (p. 47) e temia o
castigo. O escravo Pai Antônio é sujeito do não-saber porque não possuía a competência
necessária para desempenhar a performance de encontrar o objeto “ouro” para atingir o
valor de “escapar do castigo”.
O escravo, num gesto de extremo desespero, foge para o mato onde, sentado no
chão, chora. Depois de algum tempo, descobre o rosto e a sua frente “uma formosa
mulher, branca como a neve, e com uma linda cabeleira cor de fogo” (p. 48), que lhe
pergunta o motivo da tristeza. A mulher, que era a Mãe do Ouro, sensibilizou-se com a
história do escravo e resolveu ajudá-lo, em troca de alguns objetos: uma fita azul, uma
fita vermelha, uma fita amarela e um espelho. Pai Antônio prontamente aceitou o pacto
e comprou “as fitas mais bonitas que achou” (p. 48). A Mãe do Ouro, então, indicou-lhe
um lugar no rio que continha uma grande quantidade de ouro.
72
Pai Antônio peneirou o cascalho e, contente, foi levar o ouro encontrado ao patrão,
pensando estar livre do castigo. Mas ocorre um engano: o mineiro
37
, assumindo o papel
actancial de oponente, não ficou satisfeito e queria saber onde o escravo tinha achado
tanto ouro. Como a Mãe do Ouro havia recomendado segredo sobre os acontecimentos,
o escravo Pai Antônio não revelou o lugar, obedecendo a sua fada madrinha, que lhe
forneceu a competência necessária para desempenhar sua performance e livrar-se do
castigo. O mineiro, com a intenção de que Pai Antônio revelasse onde encontrara tanto
ouro, castigou-o no tronco, mas somente com a autorização da Mãe do Ouro, o escravo
revelou o local onde tinha aquela quantidade de ouro.
Assim que Pai Antônio indicou o lugar, o mineiro com mais vinte e dois escravos
foram ao local e cavaram aencontrar um grande pedaço de ouro que se enfiava para
baixo na terra, como um tronco de árvore” (p. 49). Cavaram por dois dias e tinham
aberto um enorme buraco para baixo da terra. No terceiro dia, Pai Antônio voltou ao
mato, pois havia visto o vulto da Mãe do Ouro que o chamava para avisar-lhe “saia de lá
amanhã, antes do meio-dia” (p. 49). Pai Antônio obedeceu à ordem da Mãe do Ouro e
inventou uma doença para poder sair do buraco. Quando deu meio-dia, um barulho
estrondou na mata e as paredes do buraco desabaram soterrando o mineiro e os demais
escravos. O mineiro foi punido pela sua ganância e crueldade, já Pai Antônio foi
recompensado com a vida e a liberdade, pois com a morte do mineiro, deixou de ser
escravo.
A servidão, por ser um regime de exploração, é negativa ou disfórica. A obediência à
Mãe do Ouro, uma entidade sobrenatural, representando a justiça divina, por ser um
instinto de sobrevivência, é positiva ou eufórica. O texto tem como conteúdo mínimo a
desobediência em troca da valorização da sobrevivência, da liberdade e da fé.
O sujeito Pai Antônio passa por um processo de melhoramento, pois desempenhou
uma ação de transformação positiva – da obediência forçada passa à liberdade de
escolhas, recompensado com o direito à vida.
O percurso do escravo Pai Antônio na lenda é:
Obediência ------------------ desobediência ------------------ recompensa
(servidão ao dono) (obediência a Mãe do Ouro) (liberdade para viver)
37
duas acepções para o termo mineiro: relativo ao estado de Minas Gerais, natural ou habitante de
Minas Gerais; relativo a mina, em que minas, aquele que trabalha em minas ou que as possui. Cf.
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. O rico senhor de escravos” da versão de Ruth Guimarães
era dono de minas de ouro.
73
Análise no nível narrativo
PN1: Um dos escravos do senhor morador de Rosário, conhecido como Pai Antônio,
andava triste, cabisbaixo e resmungando porque não encontrava uma só pepita de ouro e
temia sofrer o castigo. O sujeito do fazer é o escravo que trabalha no garimpo. O sujeito
de estado também é o escravo porque sem encontrar o precioso metal, sofreria o castigo.
O objeto-valor é o medo do castigo.
F (encontrar ouro) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Pai Antônio) Ov (medo do castigo))]
PN2: O escravo Pai Antônio, desesperado, em vez de trabalhar, saiu andando à toa pelo
mato e chorava sem saber o que fazer. O sujeito do fazer é Pai Antônio que realiza a
ação de fugir para o mato. Ele é também o sujeito de estado, pois sofre uma
transformação da tranqüilidade passa ao desespero por não encontrar ouro. O objeto-
valor continua sendo o medo do castigo.
F (fugir para o mato) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Pai Antônio) Ov (medo do castigo))]
PN3: O escravo Pai Antônio, depois de muito chorar, descobriu o rosto e viu diante dele
uma formosa mulher que se interessou pelo motivo da tristeza do homem. O sujeito do
fazer é a Mãe do Ouro, que praticou a ação de indagar ao escravo. O sujeito de estado é
Pai Antônio, que sente uma possibilidade de mudança. O objeto-valor é a esperança.
F (indagar o escravo) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Pai Antônio) Ov (esperança))]
PN4: O escravo Pai Antônio, sem se admirar, contou à mulher sua desventura. O sujeito
do fazer é o escravo que conta a sua história. É ele também o sujeito de estado, pois o
ato de contar seu problema traz a possibilidade de solução. O objeto-valor é, novamente,
a esperança.
F (contar seu infortúnio) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Pai Antônio) Ov (esperança))]
PN5: A mulher disse ao escravo “Não chore mais” e pediu para comprar-lhe uma fita
azul, uma fita vermelha, uma fita amarela e um espelho. O sujeito do fazer é a Mãe do
Ouro, pois determina o que o escravo deve fazer. O sujeito de estado é o escravo Pai
Antônio, que obedece. O objeto-valor, as fitas e o espelho, representam a ajuda
fornecida pela Mãe do Ouro.
74
F (pedir os objetos) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Pai Antônio) Ov (fitas e o espelho))]
PN6: O escravo Pai Antônio comprou os objetos e entregou-os à Mãe do Ouro. O
sujeito do fazer é o escravo Pai Antônio. O sujeito de estado é a Mãe do Ouro, pois
recebe os objetos. O objeto-valor é a fita azul, vermelha, amarela e um espelho.
F (cumprir o pedido) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Mãe do Ouro) Ov (fitas e o espelho))]
PN7: A mulher parou num lugar do rio, foi esmaecendo até que sumiu nas águas e ainda
recomendou “não conte a ninguém o que aconteceu”. O sujeito do fazer é a Mãe do
Ouro, pois ela praticou as ações. O sujeito de estado é o escravo Pai Antônio, que
descobre um lugar onde existe ouro. O objeto-valor é o segredo.
F (mostrar o lugar com ouro) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Pai Antônio) Ov (segredo))]
PN8: O escravo Pai Antônio começou a peneirar o cascalho, encontrou ouro e o levou
ao mineiro. O sujeito do fazer é Pai Antônio. Pai Antônio é também o sujeito de estado,
pois encontrando o ouro sabe que estará livre do castigo. O objeto-valor é a liberação do
castigo.
F (encontrar o ouro) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Pai Antônio) Ov (livre do castigo))]
PN9: O mineiro queria saber onde o escravo havia achado o ouro. Pai Antônio não
revelou o lugar e foi amarrado no tronco e castigado. O sujeito do fazer é o mineiro,
pois determina o que deve ser feito. O sujeito de estado é Pai Antônio, que sofre o
castigo. O objeto-valor é a falta de obediência do escravo em relação ao mineiro.
F (saber o segredo) [S
1
(mineiro) (S
2
(Pai Antônio) Ov (desobediência))]
PN10: O escravo, depois de solto, correu para o mato, chamou a Mãe do Ouro e lhe
contou os novos acontecimentos. O sujeito do fazer é o escravo Pai Antônio. O sujeito
de estado também é o escravo, que tem novamente seu infortúnio revelado. O objeto-
valor é a solicitação de uma nova ajuda.
F (procurar a Mãe do Ouro) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Pai Antônio) Ov (ajuda))]
PN11: A Mãe do Ouro permitiu que Pai Antônio revelasse o lugar onde havia
encontrado o ouro. O sujeito do fazer é a Mãe do Ouro, pois determina o que deve ser
75
feito. O escravo é o sujeito de estado, pois obedece às ordens. Mais uma vez, o objeto-
valor é a obediência.
F (permitir a revelação) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Pai Antônio) Ov (obediência))]
PN12: O escravo Pai Antônio indicou o lugar ao mineiro. O sujeito do fazer é o escravo
Pai Antônio. O sujeito de estado é o mineiro, pois descobre o lugar onde havia muito
ouro. O objeto-valor é o segredo.
F (indicar o lugar) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(mineiro) Ov (segredo))]
PN13: O mineiro foi para o local com mais 22 escravos. Cavaram e encontraram tanto
ouro que, por mais que cavassem, o lhe viam o fim. O sujeito do fazer é o mineiro,
pois determina e ordens. Os escravos são o sujeito de estado, pois obedecem às
ordens do patrão. O objeto-valor é, mais uma vez, a obediência.
F (cavar em busca de ouro) [S
1
(mineiro) (S
2
(escravos) Ov (obediência))]
PN14: No terceiro dia, o escravo voltou ao mato porque vira a Mãe do Ouro, que lhe
chamava e ela disse-lhe “saia de amanhã, antes do meio-dia”. A Mãe do Ouro é o
sujeito do fazer, pois determina o que deve ser feito. O escravo Pai Antônio é o sujeito
de estado, pois recebeu a ordem. O objeto-valor é novamente a obediência.
F (avisar o escravo) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Pai Antônio) Ov (obediência))]
PN15: O escravo Pai Antônio, antes do meio-dia, inventou uma “desculpa” para poder
sair do buraco, do qual se afastou depressa. O sujeito do fazer é o escravo Pai Antônio,
pois inventa uma doença para se afastar do buraco. É ele também o sujeito de estado,
pois obedecendo às ordens da Mãe do Ouro, garante sua salvação. O objeto-valor é a
vida.
F (sair do buraco) [S
1
(Pai Antônio) (S
2
(Pai Antônio) Ov (vida))]
PN16: O mineiro e os demais escravos morreram soterrados devido ao desabamento das
paredes do buraco. A Mãe do Ouro decide punir o mineiro cruel, sendo o sujeito do
fazer. O mineiro é o sujeito de estado, pois sofre uma transformação de vivo passa a
morto. A Mãe do Ouro tira o objeto-valor vida do mineiro.
F(castigar o mineiro) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(mineiro) Ov (vida))]
76
O escravo Pai Antônio cumpre o percurso do sujeito com a ajuda da Mãe do Ouro.
Inicialmente ele é sujeito do dever-fazer porque trabalhava forçado no garimpo e tinha a
obrigação de encontrar ouro sem o que eram levados para o tronco e vergastados” (p.
47). O fato de não lhe sair na “bateia uma só pepita de ouro” (p. 47) desperta no escravo
o desejo de querer encontrar o ouro para livrar-se do castigo, mas Pai Antônio não
possui a competência necessária para desempenhar sua performance. Então, entra em
desespero e, certo dia, em vez de ir trabalhar, foge para o mato onde encontra a Mãe do
Ouro, que resolve ajudá-lo a cumprir sua tarefa. A Mãe do Ouro sabe o motivo da
tristeza do escravo, por ser um ente sobrenatural, mas finge o-saber para fazer-crer o
escravo. Ela pede, em troca da ajuda ao escravo, alguns objetos: uma fita azul, uma
vermelha, uma amarela e um espelho. Pai Antônio aceitou o pacto e, então, ela lhe
indicou um lugar no rio, um lugar mágico, que tinha grande quantidade de ouro.
Depois da ajuda da Mãe do Ouro, o escravo assume os papéis actanciais de sujeito
do saber e sujeito do poder, pois tinha o conhecimento sobre o local onde havia ouro e
podia levar ao mineiro o produto do seu trabalho. Mas ao entregar o ouro ao patrão,
torna-se um sujeito não-realizado porque não obtém, com sua performance, o valor
desejado de livrar-se do castigo. O mineiro assume, nesse momento, o papel actancial
de oponente; ele é um obstáculo na obtenção do objeto-valor desejado pelo escravo. O
mineiro quer saber o segredo de Pai Antônio, mas este, seguindo as ordens de sua
ajudante, não revela. Pai Antônio põe em prática valores opostos aos defendidos pelo
patrão: obedecendo à ordem de manter o segredo dada Mãe do Ouro, entregaria
diariamente a quantidade de ouro exigida pelo mineiro e estaria livre do castigo. O
mineiro, querendo saber o segredo a qualquer custo, castiga o escravo no tronco, mas
Pai Antônio revela o lugar onde encontrou o ouro com a autorização da Mãe do
Ouro.
Ela entra em cena para restabelecer a ordem naquela comunidade. O escravo não
revela o segredo sem a autorização da Mãe do Ouro, assim como segue todas as outras
ordens estabelecidas por ela para poder desempenhar sua performance com sucesso.
Dessa forma, Pai Antônio é recompensado com a vida. o mineiro “de modos rudes e
coração cruel” (p. 47), por ser “tão maligno, tão espantoso, que os escravos curvados
sentiam um medo atroz” (p. 50), sofre as conseqüências dos seus atos: é punido com a
morte, sendo soterrado junto ao ouro que tanto desejava.
77
Análise no nível do discurso
A lenda é produzida por um narrador em terceira pessoa, com uma visão externa dos
acontecimentos, construindo uma percepção de distanciamento. O recurso é usado para
criar a ilusão de objetividade. Não um caráter testemunhal no discurso, ou seja, o
narrador não viveu o que está sendo narrado. No entanto, em alguns momentos, a
terceira pessoa é substituída pelo discurso direto, que aparece em forma de diálogo. O
recurso da delegação interna de voz é utilizado para criar uma ilusão discursiva de que
os fatos narrados realmente aconteceram e envolveram pessoas reais.
A ancoragem espacial ocorre pela presença da cidade de Rosário (hoje Rosário
Oeste), cidade a montante do rio Cuiabá, importante rio do estado do Mato Grosso.
Esses dados são reais e verdadeiros. Temporalmente a ancoragem ocorre porque
apresenta a referência ao período reconhecido pela História como o ciclo da mineração
ou o ciclo do ouro, que compreende os séculos XVII e XVIII, no período colonial:
época das descobertas de minas de ouro nos estados de Mato Grosso, Goiás e Minas
Gerais.
A lenda apresenta a característica da figurativização, através da qual temos a
caracterização de Pai Antônio como vítima da servidão, da submissão, sendo o percurso
figurativizado por expressões como: “andava o negro num banzo que dava dó”,
“resmungando”, “não lhe saía na bateia uma só pepita de ouro”, “mais dia menos dia, lá
iria ele para o castigo” (p. 47), “deu-lhe tamanho desespero, que saiu andando à toa pelo
mato”, “chorava e chorava, sem saber o que fazer” (p. 48). Em contrapartida, a
caracterização do mineiro é apresentada por um percurso de poder como “rico senhor de
escravos, de modos rudes e coração cruel”, “ocupava-se na mineração de ouro”, “os
escravos diariamente tinham de lhe trazer alguma quantidade do precioso metal, sem o
que eram levados ao tronco e vergastados” (p. 47). Ele é o representante fiel da
sociedade patriarcal escravocrata vigente no período colonial, pois ter muitos escravos
significava ter maior poder econômico e político. O regime de escravidão garantia ao
escravista plenos direitos de deliberar, agir e mandar em relação à vida dos escravos,
uma vez que eles eram sua propriedade.
Outro exemplo de figurativização é a caracterização da Mãe do Ouro com expressões
como: “branca como a neve”, “com uma cabeleira cor de fogo”, “cabelo reluzente”,
“uma formosa mulher” (p. 48). Ela é dotada de uma beleza fascinante e de poderes
mágicos, pois mostrou ao negro um lugar no rio onde encontraria muito ouro e na hora
78
do meio-dia fez desabar as paredes do buraco, soterrando o mineiro. Primeiramente, ela
aparece para o escravo e oferece sua ajuda sem ser invocada, com a condição de não
revelar o segredo. Depois, é chamada por Pai Antônio para dizer-lhe que o mineiro quer
saber o segredo, que só é revelado com sua autorização.
A figurativização dos actantes remete ao tema de um homem opressor, de coração
cruel, uma criatura que não respeita a vida e que obriga outros seres humanos a
trabalharem para satisfazer suas necessidades. O mineiro aguçado pela ganância, pela
ambição, pela exploração desmedida, desenfreada, diante daquele pedaço de ouro sem
fim parecia tão maligno, tão espantoso, que os escravos curvados sentiam um medo
atroz” (p. 50). A e do Ouro remete ao tema da restauração da ordem. Ela surge na
história para punir a exploração desmedida da natureza e dos seres humanos em busca
de benefícios individuais, como o caso do mineiro, mostrando que esse tipo de
comportamento deve ser evitado. Em compensação, recompensa o negro Pai Antônio
com a vida pelo fato dele acreditar na sua ajuda, de obedecer as suas ordens, de
respeitar e depositar em uma entidade suprema, mostrando que esse comportamento
serve de exemplo.
O discurso trata do tema da crença na interferência ou justiça divina. A lei dos
homens, na maioria dos casos, atende aos anseios dos privilegiados socio-
economicamente, por isso, é falha. Por exemplo, na sociedade patriarcal e escravocrata,
os donos não eram punidos por seus crimes de crueldade em relação aos escravos
porque estes eram propriedade daqueles, o que lhes garantia plenos direitos de deliberar
em relação as suas vidas. A justiça divina nunca falha porque ela reza em favor dos
fracos, dos oprimidos, dos inocentes, punindo os verdadeiros culpados e livrando as
vítimas de seus carrascos, por isso, é preciso ter fé.
5.2.3 – Versão de Lucília Garcez
Análise no nível fundamental
A leitura no nível fundamental permite determinar a mesma oposição semântica
encontrada no texto de Ruth Guimarães.
A lenda apresenta um escravo, conhecido por Januário, com mulher e um filho ainda
bebê. Januário trabalhava no garimpo de ouro, no coração do Brasil, e a mulher Isolina
cuidava da lavagem das roupas do senhor. Esse escravo, por ter bom comportamento,
79
não dormia acorrentado mas, mesmo assim, “vida de escravo não era vida de gente” (p.
09) porque sempre havia a ameaça da palmatória, dos ferros quentes na pele, das
chicotadas, entre outros castigos. Januário havia preparado para uma certa noite a sua
fuga em busca do objeto-valor liberdade e tentar a “sorte no leito dos rios” (p. 14) para
garantir “um futuro melhor para todos” (p. 10). Os companheiros de senzala esperavam
muito dele, confiavam na sua liderança e nas suas palavras, por isso, facilitaram a fuga
escondendo uma canoa sob folhas e galhos na beira do pequeno rio que passava
próximo à senzala.
Januário e a família conseguiram chegar ilesos ao quilombo, graças à ajuda de
Isolina, que acomodou a criança e atravessou a noite remando, juntamente com o
marido, para que mais depressa ficassem longe do alcance do feitor e de seus cães.
Embora exaustos, estavam felizes porque haviam conquistado a liberdade. Depois de
merecido descanso por alguns dias, Januário devia e queria prosseguir porque “seu
plano era avançar mais para o centro-oeste, de onde vinham notícias de muito ouro” (p.
13), mas teria que deixar sua família no quilombo para melhor segurança.
Para chegar às terras ricas em ouro, Januário conta com a ajuda do amigo quilombola
Pedro, que tinha informações mais precisas e estava disposto a acompanhá-lo para
mostrar-lhe o caminho. Depois de muitos dias de caminhada, chegaram à vila dos
negros fugidos, perto do rio Paranã, onde “descansaram e se alimentaram para recompor
as forças despendidas na viagem” (p. 14). Januário, encorajado pelos garimpeiros que já
tinham encontrado ouro, queria logo começar o trabalho e escolheu seu ponto do rio.
Enquanto trabalhava duramente, dia após dia, encharcado no rio, com a bateia nas mãos
peneirando o cascalho, insistentemente, conseguiu construir, com a ajuda dos amigos da
vila, sua casinha de taipa ali onde “as pedras e socavões do rio eram conhecidos e
tinham se tornado seus amigos e cúmplices” (p. 17). Numa manhã “iluminada pelo sol
do planalto central” (p. 18) encontrou as maiores e mais belas pepitas de ouro e
conseguiu acumular uma certa quantidade de ouro para garantir o futuro da família,
apesar de entregar uma parte do produto do garimpo para ajudar na libertação de
escravos. Januário estava rico, mas ficou doente e morreu sem conseguir revelar aos
amigos o segredo da cachoeira, onde guardava o ouro. A doença e, conseqüentemente, a
morte desempenha o papel actancial de oponente, pois interrompe bruscamente o sonho
de Januário: libertar seus amigos e salvar sua família da pobreza e do sofrimento.
A Mãe do Ouro cumpre o papel actancial de ajudante. Januário, na hora da morte,
entregou seu segredo a Deus e aos orixás, pedindo que orientassem a família a
80
encontrarem o tesouro. A Mãe do Ouro é uma entidade sobrenatural enviada,
supostamente por Deus e pelos orixás, para proteger o tesouro e entregá-lo à família,
porque sua manifestação ocorre depois da morte de Januário. Ela ajudará a cumprir o
desejo de Januário para que ele possa tornar-se um sujeito realizado.
A servidão, por ser um regime de exploração, é negativa ou disfórica. A liberdade
que Januário conquista com a fuga é positiva ou eufórica. O texto tem como conteúdo
mínimo fundamental a luta pela liberdade ou por um ideal, a luta para conseguir realizar
um sonho sem desistir da causa, apesar das dificuldades enfrentadas.
O sujeito Januário passa por um processo de melhoramento, pois da opressão forçada
passa à liberdade e luta até a morte pela realização de um sonho. O relato narra a
trajetória de vida de um sujeito que acreditou, que enfrentou as dificuldades, que
transgrediu um código de condutas de uma sociedade escravocrata sem desistir do seu
sonho.
O percurso de Januário no conto lendário é:
Servidão ----------------------- fuga -------------------------- morte
(obediência às regras) (busca da liberdade e (interrupção do sonho)
da riqueza)
Análise no nível narrativo
PN1: Naquela noite, Januário não queria dormir, estava ansioso e atento para conseguir
realizar a fuga. Ele calculou bem a distância dos passos do feitor e esperou que esse
entrasse no paiol para preparar seu fumo. Tocou o braço de Isolina, pois era chegado o
momento. O sujeito do fazer é Januário, pois observa e calcula o momento certo para
realizar a fuga. O sujeito de estado é também Januário, pois sofre uma transformação
de cativo passa a ser livre. O objeto-valor que Januário deseja é a busca da liberdade.
F (fugir com a família) [S
1
(Januário) (S
2
(Januário) Ov (liberdade))]
PN2: Isolina abraçou a criança adormecida, deslizou pelos lados do pátio evitando a luz
e entrou na mata. Acomodou o filho no chão da canoa e ajudou Januário a remar. O
sujeito do fazer é Isolina, pois ajuda a executar as ações que possibilitam uma fuga mais
apressada. O sujeito de estado é Januário, pois consegue a fuga. O objeto-valor desejado
continua sendo a liberdade.
F (acompanhar o marido) [S
1
(Isolina) (S
2
(Januário) Ov (liberdade))]
81
PN3: Ao surgirem as pedras que anunciavam a cachoeira, Januário e a família
abandonaram a canoa e prosseguiram viagem a na direção do pôr do sol, cortando a
mata até encontrar sinais de cerrado. Eles paravam apenas para alimentar a criança ao
peito, tomar água nas fontes ou comer alguma fruta e depois de muitos dias chegaram
ao quilombo. O sujeito do fazer é Januário, pois comanda a fuga e determina o que deve
ser feito. O sujeito de estado é a família, pois segue o marido em busca do objeto-valor
liberdade.
F (chegar ao quilombo) [S
1
(Januário) (S
2
(família) Ov (liberdade))]
PN4: Januário devia prosseguir porque seu plano era avançar mais para o centro-oeste,
de onde vinham notícias de muito ouro. Januário deixou a mulher e o filho no quilombo
e partiu. O sujeito do fazer é Januário, pois determina o que deve ser feito. O sujeito de
estado é também Januário, pois teve que deixar Isolina e o filho, temporariamente, no
quilombo. O objeto-valor é a família que ficou no quilombo.
F (prosseguir nos seus planos) [S
1
(Januário) (S
2
(Januário) Ov (família))]
PN5: O amigo Pedro tinha informações mais precisas e estava pronto para acompanhar
Januário na direção das terras que tinham ouro, às quais chegaram, depois de percorrer
muitos dias. O sujeito do fazer é o amigo Pedro, pois mostra como chegar ao lugar. O
sujeito de estado é Januário, pois chega ao lugar desejado. O objeto-valor que Januário
busca é o ouro.
F (mostrar o caminho) [S
1
(Pedro) (S
2
(Januário) Ov (ouro))]
PN6: Januário logo começou a trabalhar, assim que chegaram à vila dos negros fugidos,
perto do rio Paranã, e escolheu seu ponto numa curva do rio. O sujeito do fazer é
Januário, pois realiza as ações. O sujeito de estado é também Januário, que tem a
oportunidade de concretizar seu objetivo. O objeto-valor que Januário deseja encontrar
é o ouro.
F (começar logo a trabalhar) [S
1
(Januário) (S
2
(Januário) Ov (ouro))]
PN7: Numa manhã, Januário encontrou as maiores e mais belas pepitas de ouro. Depois
de entregar todos os dias uma parte do produto do garimpo para ajudar na libertação de
outros escravos, passou a guardar numa pequena caverna por trás da cachoeira maior, o
82
tesouro que libertaria seus amigos e salvaria sua família da pobreza e do sofrimento. O
sujeito do fazer é Januário, pois ele trabalha duramente, encharcado no rio, para
conseguir seu objetivo. O sujeito de estado é Januário também, pois se tornou um
homem rico. O objeto-valor conquistado por Januário é o ouro.
F (encontrar o ouro) [S
1
(Januário) (S
2
(Januário) Ov (ouro))]
PN8: Januário ficou doente, devido às condições de trabalho e à região ser muito
insalubre, adquiriu malária. Os amigos trouxeram ervas e cuidaram dele. O sujeito do
fazer são os amigos, pois eles fizeram chás para curar a doença de Januário. O sujeito de
estado é Januário, pois foi tomado por uma doença. O objeto-valor pelo qual Januário
luta é a vida.
F (curar Januário) [S
1
(amigos) (S
2
(Januário) Ov (vida))]
PN9: Januário não conseguiu organizar o pensamento para explicar aos amigos onde
guardara o ouro, então, entregou sua vida e seu segredo a Deus e aos orixás, pedindo
que orientassem a família a encontrar o tesouro. O sujeito do fazer é Januário, pois no
momento de angústia convoca a ajuda divina. O sujeito de estado é a família, que teve
sua vida alterada com a morte de Januário. O objeto-valor que Januário mais deseja é
garantir o futuro da família, por isso queria revelar onde acumulava o ouro.
F (entregar a vida e o segredo) [S
1
(Januário) (S
2
(família) Ov (ouro))]
O percurso narrativo de Januário é do sujeito, mas ele possui a ajuda de outros
actantes para cumpri-lo. Os companheiros da senzala que facilitaram a fuga da família
de Januário, escondendo uma canoa na beira do rio; a mulher Isolina que cuidou do
filho e ajudou a remar para mais depressa ficarem longe do alcance do feitor e de seus
cães; o amigo do quilombo, Pedro, que tinha informações mais precisas e estava pronto
para acompanhá-lo e mostrar-lhe o caminho das novas terras; os escravos fugidos da
vila do rio Paranã que ajudaram Januário na construção de sua casinha de taipa e o
cuidaram enquanto esteve doente e a Mãe do Ouro, entidade enviada por Deus e pelos
orixás para orientar a família a encontrar o tesouro escondido.
Januário cumpre os papéis actanciais de sujeito do querer, sujeito do saber, sujeito do
poder e sujeito do fazer. Januário possuía uma certa competência necessária para
realizar sua performance, mas para desempenhá-la com êxito foi imprescindível a
83
participação dos ajudantes. A tentativa de manipulação por intimidação, representada
pela figura do feitor, por parte do seu senhor, não é bem-sucedida, pois o valor que o
senhor propõe a Januário o é aceito. Januário tinha bom comportamento e por isso
não dormia acorrentado como os demais escravos. Ele finge ter obedecido às ordens do
senhor, quando de fato se aproveita desse privilégio para preparar sua fuga, facilitada
pelos outros escravos, que escondem uma canoa sob folhas e galhos na beira do rio que
passa no vale próximo à senzala porque “sabiam que Januário garantiria um futuro
melhor para todos” (p. 10). Ele age como se estivesse aceitando a manipulação, mas, na
verdade, está colocando em prática outros valores.
Viver na alteridade, sob a condição de escravo, desperta em Januário o querer-fazer,
a vontade de encontrar ouro para libertar seus amigos escravos e salvar sua família da
pobreza e do sofrimento. Januário sabe que necessita cumprir as etapas, de forma
cautelosa, para conseguir desempenhar sua performance. Primeiro torna-se um líder
entre os escravos, que confiam em suas palavras e, assim, o ajudam. Depois, para saber
o momento certo da fuga, calcula a distância dos passos do feitor que todas as noites
entra no paiol e fica entretido algum tempo escolhendo a palha e preparando o fumo.
Januário sabe que fugindo pelo rio seria dificilmente encontrado porque “a água não
forma rastros” (p. 10) e, ao aproximarem-se da cachoeira do despenhadeiro, abandonam
a canoa, deixando ela se despedaçar na queda vertiginosa, despistando o feitor.
Januário possui o conhecimento em relação à orientação: guiando-se pelas estrelas,
pelo sol, pela lua, pelos rios, pelas montanhas, cortando a mata e caminhando na direção
do pôr do sol até encontrar sinais de cerrado, dessa forma chegaria ao local desejado.
Também sabe como garantir sua sobrevivência na mata, improvisando armas e
instrumentos de pescaria com bambus e cipós e conhecendo frutas e raízes que servem
de alimento. Assim, Januário obtém o valor desejado liberdade, pois chega ao quilombo,
onde, temporariamente, deixaria a família para buscar o objeto-valor ouro que os
salvaria da pobreza e do sofrimento.
Para realizar a ão de avançar mais para o centro-oeste, de onde vinham notícias
de muito ouro” (p. 13), conta com a colaboração de um morador do quilombo,
conhecido por Pedro, que tem informações mais precisas e o acompanha, mostrando o
caminho para chegar à vila dos negros fugidos, perto do rio Paranã. Os garimpeiros que
se encontravam ali, havia mais tempo, encorajavam Januário, que escolhe seu ponto
numa curva do rio. Ele possuía a competência necessária para desempenhar a
performance de encontrar ouro, uma vez que como escravo trabalhava num garimpo.
84
Enquanto trabalha duramente, Januário também constrói, com a ajuda dos amigos da
vila, uma casinha de taipa, pois queria buscar sua família que deixara no quilombo.
Januário consegue acumular uma quantidade de ouro para garantir o futuro da
família numa pequena caverna por trás da cachoeira maior, apesar de entregar uma parte
do garimpo para ajudar na libertação de outros escravos. Estava rico, mas devido às
condições de trabalho, dia após dia encharcado no rio, sob o sol ou a chuva e a região
ser muito insalubre, Januário fica doente: adquire malária. Os amigos da vila cuidaram
dele, trouxeram ervas e fizeram chás para baixar a febre, mas sem sucesso, e Januário,
devido ao agravamento da doença, morreu sem conseguir revelar seu segredo.
Januário cumpre o papel de sujeito operador porque consegue realizar as ões de
libertar-se da escravidão e encontrar o ouro, mas é um sujeito não-realizado porque,
apesar de desempenhar com certo sucesso sua performance, não consegue fazer com
que sua família usufrua o ouro. Januário o consegue vencer a malária, que cumpre o
papel de actancial de oponente, e morre sem obter com o objeto ouro” os valores de
libertar seus amigos escravos e de salvar a família da pobreza. Sem forças para revelar o
segredo da cachoeira aos amigos, convoca a ajuda divina para orientar o filho e a
mulher a encontrarem o tesouro. A Mãe do Ouro é a entidade enviada, supostamente por
Deus e pelos orixás, para vigiar o ouro garimpado por Januário e fazer com que esse
tesouro seja entregue à mulher e ao filho, tornando Januário um sujeito realizado.
Análise no nível do discurso
A versão da lenda de Lucília Garcez inicia com a frase “Tudo aconteceu muitos
anos, no coração do Brasil” (p. 09), equivalente à fórmula tradicional do Era uma
vez...” que transforma a lenda em conto, criando, com isso, um mundo ficcional e
maravilhoso. A lenda é contada por um narrador em terceira pessoa, com uma visão
externa dos acontecimentos, o que cria uma percepção de distanciamento dos fatos. Não
o aspecto testemunhal, que o narrador o viveu o que está sendo narrado, por
isso, o efeito de distanciamento. Entretanto, há delegação interna de voz que aparece em
forma de falas isoladas dos actantes Januário e Isolina, o que cria uma ilusão discursiva
de que os fatos narrados aconteceram e envolveram pessoas reais.
A ancoragem temporal e espacial acontece por indícios que o texto apresenta: um
escravo que trabalhava no garimpo, no coração do Brasil, foge com sua família em
direção ao centro-oeste, chegando ao rio Paraná, um rio brasileiro que nasce no Planalto
85
Central, em Goiás, próximo ao Distrito Federal, na região suburbana do município de
Formosa
38
. A expressão “planalto central” citada no texto “numa manhã iluminada pelo
sol do planalto central, a terra foi generosa” (p. 18), quando Januário encontrou as
pepitas de ouro, faz referência ao estado de Goiás. Temporalmente, o texto remete ao
período conhecido na história brasileira como o ciclo da mineração ou o ciclo do ouro,
que compreende os séculos XVII e XVIII, época em que foram descobertas minas de
ouro nos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. A expressão “coração do
Brasil” é uma referência à região sudeste, provavelmente a Minas Gerais, que a
expansão se deu no eixo Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Januário fugiu do garimpo
onde trabalhava como escravo, no coração do Brasil (Minas Gerais) em direção ao
centro-oeste (Goiás) “de onde vinham notícias de muito ouro” (p. 13).
A característica da figurativização também está presente, através da qual temos a
caracterização dos escravos como vítimas da opressão, do sofrimento e do
constrangimento, sendo o percurso figurativizado por expressões como: “arrastou-se até
a porta da senzala e alcançou a brisa úmida da montanha”, “o barulho das botas do
feitor nas lajes de pedra cortava a suavidade da noite”, “o ranger das correntes dos
negros presos assombrava a neblina, abafando a música da fonte”, “vida de escravo não
era vida de gente”, “havia sempre a ameaça da palmatória, dos ferros quentes na pele,
das chicotadas, da privação da comida, do suplício” (p. 09). A esses trabalhadores é
imposto um contrato de prestação de serviços e obediência sob o regime da escravidão
e, qualquer tentativa de violação das regras, implica fortes castigos em repressão. o
concordando com esse tipo de vida, Januário prepara sua fuga em busca do sonho de
encontrar ouro para garantir a todos um futuro livre de tal sofrimento.
Outro exemplo de figurativização é a caracterização da Mãe do Ouro como “uma
figura fulgurante de mulher” (p. 21). De vez em quando, ela “sai da água e inunda o
espaço” como “um facho de luz”, num movimento incandescente multiplicado em
milhões de estrelas cintilantes e coloridas” (p. 21). Esse fenômeno surpreende
garimpeiros acampados ao longo das margens do rio Paranã, que ora encantados, ora
assustados, fogem do acampamento, pois “a noite se transforma em dia” e “uma chuva
de agulhas de fogo invade o céu” (p. 21). Naquele ponto do rio, os garimpeiros que se
aproximarem, são atraídos por um brilho intenso que vem das pedras no fundo das
águas. Alguns garimpeiros passam a bateia e, quando sacodem as pedras, resta só
38
Estas informações foram retiradas da internet e estão disponíveis no site http://pt.wikipedia.org ,
acessado em fevereiro de 2006.
86
cascalho sem valor; outros animados pelos reflexos mergulham em busca do ouro, mas
ficam presos nas profundezas. A Mãe do Ouro protege a fortuna de Januário escondida
na pequena caverna por trás da cachoeira maior, sem deixar ninguém se aproximar.
Um fato digno de ser observado no texto em questão é a presença do hábito de contar
histórias. Os garimpeiros, ao anoitecer, depois do serviço, se reuniam em volta da
fogueira para contar suas aventuras e desventuras do quotidiano. Os anseios individuais
compartilhados faziam parte de toda aquela comunidade de negros queconheceram o
tronco e as chicotadas do feitor. Também contavam histórias de assombração sobre o
Saci, o Negro d’água, o Romãozinho, o Caipora e o Lobisomem, que pertencem ao
repertório da literatura oral já difundido no imaginário coletivo brasileiro.
O discurso trata do tema da fé, da crença em entidades divinas ou nos orixás. Na luta
pela sobrevivência, no quotidiano, na busca de um ideal ou de um sonho é necessário
acreditar, uma das faculdades do ser humano. Nos momentos de angústia, desespero e
sofrimento, a ajuda divina é, normalmente, invocada para acalmar e serenar os corações
amargurados porque a em entidades sobrenaturais como anjos e santos protetores ou
a crença em superstições ou amuletos é uma necessidade inerente ao ser humano, tal
qual a fome e a dor. Este é um relato de origem da figura lendária da Mãe do Ouro, uma
entidade sobrenatural enviada por Deus e pelos orixás, que surge para ajudar Januário a
descansar em paz, pois sabe que seu segredo está protegido.
5.2.4 – Versão de Souza Carneiro
Análise no nível fundamental
A leitura da lenda no nível fundamental permite determinar a oposição semântica
essencial, a partir da qual se constrói o sentido do texto: natural versus sobrenatural. A
menina era um ser humano comum e pertencia ao mundo real, pois tinha família. Com a
morte dos pais, ela procura pela Velha na montanha, a deusa responsável pela criação
do mundo, onde se torna aprendiz de deusa e passa, ao ser transformada na Mãe do
Ouro, a pertencer ao universo sobrenatural.
O sujeito moça vivia no universo familiar em conjunção com os objetos-valor lar,
comida e proteção, mas os perde com a morte dos pais. Por não ser um sujeito auto-
suficiente, a moça depende da ajuda do outro e, lembrando-se dos conselhos dos pais,
87
vai ao encontro da Velha da montanha e passa a pertencer àquele universo matriarcal e
mágico.
O conto lendário apresenta uma velha, que morava sozinha num buraco no meio da
montanha. A velha era tão velha que “até parecia haver a morte se esquecido dela” (p.
348), que quase não enxergava, quase não conseguia falar e nem andar, pois tremia ao
menor movimento. Todos do lugar chamavam-na de Mãe do Mundo porque aquela
mulher “vira nascer o primeiro deus e se tornara a mais feia e velha do mundo” (p.348).
A velha tinha poderes mágicos, pois sempre à noite descia a montanha e ia até a beira de
uma lagoa que o povo do lugar dizia ser assombrada. Então, suspirava três vezes e o
cenário transformava-se: as águas sorriam, as flores tornavam-se rapazes e donzelas que
dançavam ao som da música das ondas e ao ntico das folhas das plantas. Quando se
fartava daquele prazer, a velha suspirava para dentro” (p. 348) e tudo voltava ao que
era antes.
A velha acolhe em seu pouso a filha de um casal do lugarejo, a quem sempre diziam
“a Velha que ninguém sabe quem é de ser uma fada” (p. 348). Quando os pais
morreram, a moça viu-se desamparada e sem comida. O estado de orfandade desperta
nela o querer e, então, lembrando-se do conselho dos pais, vai ao encontro da Mãe do
Mundo. A menina, no momento da decisão, assume o papel actancial de sujeito do
fazer, pois vai buscar a reestruturação da família que perdeu. O povo do lugar
desempenha o papel actancial de oponente porque achavam graça ver “tanta beleza e
tanta mocidade sepultadas com aquela mulher” (p. 348). A moça, porém, estava feliz e
não se importava em fazer companhia àquela mulher, nem de morar num buraco no
meio da montanha, onde reinavam a abundância e a paz, pois acreditava que aquela
Velha era uma fada.
A Mãe do Mundo cumpre na primeira parte do texto o papel actancial de ajudante,
pois acolhe a menina órfã e lhe oferece os objetos-valor perdidos com a morte dos pais.
A moça aceita o contrato de amparo mútuo proposto pela mulher: tem os objeto-valor
casa, comida e proteção em troca de fazer companhia e cuidar dela. A Mãe do Mundo,
então, passa a cumprir o papel actancial de destinador-manipulador. A primeira
manipulação se por provocação, quando convida a moça para tomarem banho na
lagoa assim que chegasse a lua cheia. A segunda manipulação se dá por sedução,
quando revela seu segredo à menina: era mesmo uma fada, ela endurece suas carnes,
rejuvenesce seu corpo tornando-o um “espelho de prata” (p. 349), assim como
transforma toda a natureza à sua volta.
88
A moça tem grande consideração pela velha, nutre por ela os sentimentos mais
sinceros de gratidão, “aquela mulher lhe merecia tudo” (p. 349), por ter-lhe acolhido em
um momento difícil. Assim como os pais, a menina também acredita que a velha é
mesmo uma fada, por isso, não se espanta com as atitudes dela porque “devia ser
mesmo feita do que de melhor houvesse no mundo” (p. 349). A Mãe do Mundo,
cumprindo o papel actancial de destinador-julgador, estabelece uma sanção positiva,
recompensa a moça pelo seu comportamento: torna-a encantada, transformada na Mãe
do Ouro.
O percurso da Velha, a Mãe do Mundo, no conto lendário é:
Ajudante ------------ destinador-manipulador ---------- destinador-julgador
(acolhe a filha do casal) (estabelece as regras) (encanta a menina)
O percurso da filha órfã é:
Sujeito ------------ proteção ---------- recompensa
(toma a iniciativa) (ganha novo lar) (transformada na Mãe do Ouro)
transformada na Mãe do Ouro, ela recebe da Mãe do Mundo a missão de sair pelo
mundo “a banhar-se nos rios e nos lagos deixando a terra engolir os cachos, as penugens
e os pedaços de seus cabelos que não cessavam de nascer e de crescer de repente” (p.
349-350). Um dia, um caçador viu a Mãe do Ouro nadando em um rio fundo. O
caçador, desempenhando o papel actancial de oponente, tenta impedir aquela mulher,
com corpo e cabelos de ouro, de desempenhar sua performance de semear o ouro. Ele
não consegue atirar-se na água devido à interferência da Mãe do Mundo, que o deteve
com braço forte. A Mãe do Mundo, desempenhando o papel actancial de ajudante da
Mãe do Ouro, pune o caçador: ele corre com medo da Mãe do Ouro transformada em
serpente, que, assim, ganhou o poder de morar acima das nuvens.
O percurso da Mãe do Ouro no conto lendário é:
Sujeito -------------------- cumpre a missão -------------------- recompensa
(recebe poderes mágicos) (fertilizar a terra com ouro) (transformada em serpente)
89
Análise no nível narrativo
PN1: Havia, no lugarejo, um casal que não acreditava no que o povo dizia sobre a Velha
da montanha. Sempre diziam à filha Menina, a Velha que ninguém sabe quem é de
ser uma fada”. O sujeito do fazer é o casal, os pais da moça, pois realizam a ação de
aconselhar. O sujeito de estado é a filha, pois recebe os conselhos. O objeto-valor é a
obediência aos conselhos dos pais.
F (aconselhar a filha) [S
1
(pais) (S
2
(filha) Ov (obediência))]
PN2: Um certo dia os pais da menina morreram. Ela, vendo-se desamparada e sem
comida, lembrando-se do conselho dos pais, vai ao encontro da Velha da montanha. O
sujeito do fazer é a menina, pois decide o que fazer. O sujeito de estado é ela também,
pois sofre uma transformação: fica órfã. O objeto-valor desejado pela menina é a
sobrevivência longe da família.
F (sobreviver sem os pais) [S
1
(menina) (S
2
(menina) Ov (sobrevivência))]
PN3: A Velha foi buscar a menina na ladeira da montanha e levou-a para casa. O sujeito
do fazer é a Velha, pois realiza as ações. O sujeito de estado é a moça, pois sofre outra
transformação: deixa de ser órfã. O objeto-valor é a proteção.
F (acolher a moça) [S
1
(Velha) (S
2
(moça) Ov (proteção))]
PN4: À noite, enquanto a moça dormia, a Velha descia a montanha e ia até a beira da
lagoa. Suspirava três vezes e a paisagem tornava-se encantada. Quando se fartava
“suspirava para dentro” e tudo voltava ao normal. A Velha é o sujeito do fazer e o
sujeito de estado porque possui dons mágicos. O objeto-valor é o prazer que a Velha
sentia naquele momento.
F (sair à noite) [S
1
(Velha) (S
2
(Velha) Ov (prazer))]
PN5: Numa noite a Velha disse que, quando chegasse a lua cheia, elas iriam tomar
banho na lagoa. Quase no mesmo instante, a lua apareceu toda cheia. O sujeito do fazer
é a Velha, pois determina o que deve ser feito. O sujeito de estado é a moça, pois apenas
obedece. O objeto-valor é a confiança.
F (banhar-se na lagoa) [S
1
(Velha) (S
2
(moça) Ov (confiança))]
90
PN6: A moça acompanhou a Velha e, supondo-a sem forças para a jornada, amparou-a
pelo caminho, sempre lembrando do conselho dos seus pais. O sujeito do fazer é a
moça, pois amparo à velha. O sujeito de estado é ela também, pois ignora tudo a
respeito da Velha. O objeto-valor é ainda a confiança.
F (auxiliar a Velha) [S
1
(moça) (S
2
(moça) Ov (confiança))]
PN7: A moça não se espantou ao ver o corpo rejuvenescido da Velha, quando se
despiram à beira da lagoa, pois ela “devia ser mesmo feita do que de melhor houvesse
no mundo”. A moça é o sujeito do fazer e o sujeito de estado, pois “aquela mulher lhe
merecia tudo”. O objeto-valor é a gratidão.
F (não mostrar assombro) [S
1
(moça) (S
2
(moça) Ov (gratidão))]
PN8: A Mãe do Mundo compreendeu o pensamento da moça, fez surgir das águas um
palácio maravilhoso de cristais e pedrarias e tornou-a encantada. Quando a menina
entrou no banho, as águas amareleceram seus cabelos. O sujeito do fazer é a Velha, pois
decide recompensar a dedicação da moça. O sujeito de estado é a moça, pois sofre outra
transformação: torna-se encantada e é transformada na Mãe do Ouro. O objeto-valor são
os poderes mágicos adquiridos pela moça.
F (recompensar a menina) [S
1
(Mãe do Mundo) (S
2
(moça) Ov (poderes))]
PN9: A e do Ouro saiu pelo mundo a banhar-se nos rios e nos lagos “deixando a
terra engolir os cachos, as penugens e os pedaços de seus cabelos que não cessavam de
nascer e de crescer de repente”. O sujeito do fazer é a Mãe do Ouro, que se banha nas
águas. O sujeito de estado também é ela, pois cumpre a missão dada pela Mãe do
Mundo. O objeto-valor é deixar a terra engolir os cabelos, ou seja, semear o ouro pela
terra.
F (sair pelo mundo) [S
1
(Mãe do Ouro) (S
2
(Mãe do Ouro) Ov (semear o ouro))]
PN10: Um caçador viu a Mãe do Ouro revolver-se nas águas de um rio fundo. O
espanto do homem lhe deu coragem de atirar-se na água. O sujeito do fazer é o caçador,
pois realiza as ações. O sujeito de estado é ele também, pois sofreu uma transformação
sentimental: primeiro ficou espantado, depois criou coragem. O objeto-valor é a Mãe do
Ouro, que atiçou o caçador.
91
F (ver algo no rio) [S
1
(caçador) (S
2
(caçador) Ov (Mãe do Ouro))]
PN11: O caçador foi detido quando ia atirar-se na água pelo braço forte de uma velha
horrível. O sujeito do fazer é a Velha, pois realiza a ação de impedir o caçador. O
sujeito de estado é o caçador, que foi impedido. O objeto-valor é a preservação da Mãe
do Ouro.
F (deter o caçador) [S
1
(Velha) (S
2
(caçador) Ov (Mãe do Ouro))]
PN12: A Mãe do Mundo secou o rio, transformou a Mãe do Ouro numa serpente e,
como recompensa, deu-lhe o poder de morar acima das nuvens. O sujeito do fazer é a
Velha, pois possui poderes sobrenaturais para realizar as ões. O sujeito de estado é a
Mãe do Ouro, que sofre uma transformação: passa a ser serpente. O objeto-valor são os
novos poderes mágicos recebidos.
F (recompensar a Mãe do Ouro) [S
1
(Mãe do Mundo) (S
2
(Mãe do Ouro) Ov
(novos poderes))]
PN13: O caçador viu tudo acontecer e correu, mundo afora, com medo da serpente,
encontrando por toda parte as pontas dos cabelos louros da moça. O caçador é o sujeito
do fazer e o sujeito de estado, pois correu amedrontado. O objeto-valor é o medo.
F (fugir da serpente) [S
1
(caçador) (S
2
(caçador) Ov (medo))]
A velha, conhecida como Mãe do Mundo, relaciona-se com a menina primeiramente
através do papel actancial de ajudante, depois pelo de destinador-manipulador e, por
fim, ao descobrir que a menina nutria por ela sentimentos de gratidão, o de destinador-
julgador. A menina, com a morte dos seus pais, vendo-se desamparada e sem comida,
sai em busca da garantia de sua sobrevivência. A Velha acolhe a moça em seu buraco na
montanha onde morava. A velha propõe, implicitamente, um contrato de amparo mútuo,
oferecendo à menina os objetos-valor lar, comida e proteção, em troca da sua
companhia e juventude. A moça aceita o contrato e tinha-se por feliz, pois no buraco da
montanha “tudo era de prata” (p. 348) e reinava a abundância e a paz. A velha, à
noitinha, tinha o hábito de ir até a beira da lagoa, onde exercitava seus poderes
sobrenaturais. A menina ignora tudo sobre aquela mulher, até mesmo o nome, mas ela
obedece e confia nela sem lhe despertar o instinto da curiosidade, o querer-saber.
92
Assim o tempo foi passando até que uma noite a Mãe do Mundo fala para a moça
que elas tomariam banho na lagoa assim que a lua cheia chegasse. A velha mulher
manipulou por provocação para testar a menina e certificar-se se ela tinha mesmo
aceitado o contrato. A jovem, porém, obedeceu à ordem e, além disso, amparou-a pelo
caminho, pois a velha quase não podia andar e tremia ao menor movimento. Quando se
despem à beira da lagoa, a Mãe do Mundo revela seu segredo e manipula usando
claramente a sedução: rejuvenesce seu corpo tornando-o “um espelho de prata em que
as estrelas brilhavam e a lua refletia em todo seu esplendor” (p. 349). A moça, porém,
não mostra nenhum assombro, pois seus pais sempre lhe disseram que aquela velha era
uma fada. Ela sente que aquela mulher que a ajudou “devia ser mesmo feita do que de
melhor houvesse no mundo”, por isso, “lhe merecia tudo” (p. 349), como gestos de
carinho, de reconhecimento e de gratidão.
Na posição de destinador-julgador, a Mãe do Mundo verifica se a conduta da moça
está de acordo com o contrato inicial e, ao comprovar que o compromisso assumido foi
cumprido, julga-a positivamente. Enquanto a feiúra e a velhice da Mãe do Mundo
causavam repugnância à gente do lugar, a moça lembrava do conselho dos pais de
que ela era uma fada e, assim, obedecia e confiava na velha. Dessa forma é julgada
positivamente e recebe uma retribuição, sob forma de recompensa: a transformação na
Mãe do Ouro. A moça tornou-se encantada e invisível aos olhos dos que encontram
algum fio dos seus cabelos de ouro que as águas amareleceram e que a terra engoliu.
A menina assume o percurso de sujeito, mas conta com a ajuda da Velha, conhecida
como Mãe do Mundo. A menina, ao ver-se desamparada com a morte dos pais, toma a
iniciativa de buscar os objetos-valor perdidos e decide procurar pela velha. Assim,
cumpre os papéis actanciais de sujeito do querer e sujeito do fazer. O instinto de
sobrevivência despertou na jovem o querer-fazer, ou seja, buscar comida e proteção e,
para isso, conta com a ajuda da velha. A menina não se assustava com a feiúra e a
velhice da Mãe do Mundo que intimidavam o povo do lugar, já que “de perto ninguém a
vira jamais nem houve quem se animasse a ir ao seu encontro ou ao seu pouso” (p. 348),
pois acreditava, baseada no conselho dos pais, que ela era uma fada.
A menina também é sujeito do saber, isto é, ela possui uma competência relativa, um
certo conhecimento de como chegar até a montanha onde mora a Mãe do Mundo.
Embora possua essa competência necessária para desempenhar a performance de buscar
os objetos-valor casa, comida e proteção, ela os atingirá com a ajuda da Mãe do
Mundo, que se prontifica a acolher a menina. Existe entre os actantes uma
93
cumplicidade, pois o valor proposto pela velha à moça é aceito. Com base na crença da
velha ser uma fada, sabe que pode depositar tamanha confiança nela a ponto de ignorar
tudo a seu respeito, até mesmo o nome. As ações da moça, segundo a comprovação da
Mãe do Mundo, foram coerentes com o contrato inicial estabelecido. A moça é julgada
positivamente e recebe uma recompensa: é transformada na Mãe do Ouro, tornando-se
encantada.
O percurso realizado pela Mãe do Ouro também é de sujeito, mas o actante Mãe do
Mundo ajuda a cumpri-lo. A Mãe do Ouro cumpre os papéis actanciais de sujeito do
fazer, sujeito do saber e sujeito do poder porque recebe da Mãe do Mundo os meios,
poderes mágicos, que lhe garantem a competência necessária para realizar sua
performance de sair pelo mundo com a missão de banhar-se nos rios e lagos deixando
a terra engolir os cachos, as penugens e os pedaços de seus cabelos(p. 349-350). Os
cabelos da Mãe do Ouro eram mágicos, pois não cessavam de nascer e de crescer de
repente” (p. 350).
O caçador desempenha o papel actancial de oponente quando tenta, certo dia, após
ver agitar-se nas águas de um rio fundo uma mulher com corpo e cabelos de ouro,
atirar-se na água para resgatá-la. Ele não conseguiu interromper o desempenho da tarefa
da Mãe do Ouro devido à interferência da Mãe do Mundo, que o deteve com um braço
forte. A Mãe do Mundo assume o papel actancial de ajudante da Mãe do Ouro, ao deter
o caçador através da intimidação: seu aspecto horrível, sua força e sua voz, que ecoou
como se viesse de dentro de um buraco, paralisaram o caçador. A velha faz secar o rio,
transforma a Mãe do Ouro em serpente com o poder de morar até acima das nuvens,
livre da cobiça dos homens, e pune o caçador. Ele correu com medo da e do Ouro
transformada em serpente, mundo afora, encontrando por toda parte as pontas dos seus
cabelos louros.
Análise no nível do discurso
O conto lendário de Souza Carneiro inicia com uma frase “Nos princípios do
mundo...” (p. 348) utilizada nas narrativas míticas. Esse conto narra o mito da Mãe do
Ouro, ou seja, é um relato da origem da entidade sobrenatural conhecida por Mãe do
Ouro. O conto é narrado em terceira pessoa, por um narrador com uma visão externa
dos acontecimentos, dando uma percepção de distanciamento dos fatos. Não o tom
testemunhal, já que nenhum dos actantes é o narrador da história. Entretanto,
94
delegação interna de voz, mas em forma de falas isoladas de alguns actantes. Tal
recurso cria um efeito de proximidade com a realidade porque dá a impressão de que os
fatos e as falas ocorreram e envolveram pessoas reais.
O conto investe em forte figurativização visual, através da qual temos a
caracterização da Velha como vítima da decadência física, sendo o percurso
figurativizado por expressões como: “quase não enxergava”, “nem podia andar”,
“tremia ao menor movimento”, “muito mal se ouviam suas palavras”, “muito velha que
até parecia haver a morte se esquecido dela”, “mulher que vira nascer o primeiro deus e
se tornara a mais feia e velha do mundo” (p. 348). Em contrapartida, a moça tem um
percurso contrário, pois a ela se associam “tanta beleza” e “tanta mocidade” (p. 348). A
velha não tinha casa, seu pouso era um buraco no meio da montanha, o que caracteriza a
miséria mas, em compensação, no buraco “tudo era de prata: paredes, teto, chão, pilares,
tudo como de musgo ou de filigrana, ou antes, como árvores sem folhas” (p. 348) e
reinavam a abundância e a paz.
Outro exemplo de figurativização é o caráter assombroso com que a velha e suas
ações são descritas. Primeiramente, ela é uma ameaça pela sua aparência horrível: “de
perto ninguém a vira jamais nem houve quem se animasse a ir ao seu encontro” (p.
348). Depois, o seu perfil de feiticeira é descrito por expressões como: suspirava três
vezes”; as águas borbulhavam e sorriam”; as flores fechavam-se e tornavam-se
donzelas formosas e rapazinhos alegres”; “‘suspirava para dentro’ e tudo voltava ao que
era”; “suas carnes endureciam” (p. 348); “de seus olhos saíam longos fachos que
descobriam os caminhos”; “das águas, surgiu um palácio maravilhoso de cristais e
pedrarias”; “as águas amareleceram os cabelos da moça” (p. 349); “fecharam-se as
entranhas da terra”; “paralisou-se a corrente do rio”; “o vento não soprou”; “o rio secar-
se”; “a moça transformar-se numa serpente” (p. 350).
No conto, a Velha é construída com características semelhantes ao Deus-criador. Ela
tem poderes sobrenaturais para fazer nascer, para dar origem e criar cada momento
desejado. A natureza à beira da lagoa obedecia ao seu comando, “suspirava três vezes”
(p. 348) e transformava-se: as flores tornam-se donzelas formosas e rapazinhos alegres,
e dançam ao som da música das ondas e ao cântico das folhas das plantas, as águas
borbulhavam e sorriam. Quando estava farta daquele prazer, novamente sob seu
comando “suspirava para dentro” (p. 348), a ordem era restabelecida e tudo voltava ao
normal. A Velha exercia um comando sobre os astros: ao dizer à menina que tomariam
banho na lagoa quando chegasse a lua cheia “quase no mesmo instante, a lua apareceu
95
toda cheia, iluminando a terra como se fosse o sol” (p. 349). Ela também tem poderes
sobre seu corpo, consegue rejuvenescer, endurecer suas carnes, transformar seu corpo
em um espelho de prata” (p. 349) a fim de despertar inveja em qualquer jovem, bem
como metamorfosear-se em uma velha horrível, esfarrapada, fedorenta e com uma voz
que parece vir de dentro de um buraco para causar repugnância e medo.
Outra imagem construída pelo conto em relação à velha é a de mãe. Ela não apenas
ampara uma menina órfã, mas acolhe no seu seio e oferece-lhe comida, abrigo e
proteção, condições sicas para sua sobrevivência. Dotada de instintos maternos, a
velha pressente e defende a moça do perigo, quando impede o caçador de aproximar-se
dela. A velha, embora vítima da decadência física, busca nas suas entranhas as forças e
os artifícios necessários para defender como uma leoa a sua cria.
As ões do caçador o descritas de maneira a caracterizar a cobiça, a ganância e a
obsessão: viu um corpo de mulher revolver-se na corrente de um rio fundo”; “seu
corpo e seus cabelos eram de ouro”; “se isso espantou o homem, também lhe deu
coragem”; “ia atirar-se à água” (p. 350). O conto compõe a imagem de um homem
bruto, corajoso e destemido para enfrentar o perigo. Ele queria aquela mulher de ouro
para expô-la como mais um troféu de suas caçadas. No entanto, o final do conto mostra
o actante caçador como um homem apavorado e medroso, pois fica com “os cabelos em
pé” (p. 350) e prefere fugir da Mãe do Ouro transformada em uma serpente, para salvar
sua vida.
Em relação à moça, o texto constrói uma imagem de fragilidade e de humildade. Ela,
seguindo o conselho dos pais, acredita ser a velha uma fada, o que se confirma no texto.
Devido à inexperiência em relação à vida, a jovem órfã necessita do amparo do outro,
após a morte dos pais, por isso, vai buscar a ajuda da mulher da montanha, que a acolhe
e a leva para casa, onde reinam a fartura e a paz. A moça estava feliz, pois resgatou os
objetos-valor casa, comida e proteção. A menina confiava na velha pelo fato de ela ser
uma fada, o que mostra a inocência ou a pureza do seu caráter. Ela o tem medo da
aparência horrível da Mãe do Mundo, que causava repugnância nas demais pessoas do
lugar e não maldade nas atitudes dela porque faria coisas boas, que era uma
fada. A obediência, primeiro aos pais e depois à velha, assim como a dependência e a
submissão não são vistas como negativas porque a moça é recompensada por seu
comportamento. A velha, ao comprovar que a moça possuía um coração de ouro e que
nutria por ela sentimentos de carinho, de reconhecimento e de gratidão, diferente do
restante do povo do lugar, transformou-a na Mãe do Ouro, uma criatura encantada e
96
invisível àqueles que encontram um fio de seus cabelos, com a missão de sair pelo
mundo a banhar-se nos rios e nos lagos deixando a terra engolir os cabelos, as penugens
e os pedaços de seus cabelos que não cessavam de nascer e de crescer de repente” (p.
349-350). Em nenhum momento percebemos a moça como um sujeito auto-suficiente,
pois no seu percurso ela é, em primeiro lugar, uma menina dependente dos pais e,
depois, uma moça dependente da Mãe do Mundo.
O discurso trata do tema da bondade e da gratidão, pois o ser humano foi criado para
conviver em sociedade. Entre os habitantes de uma comunidade devem imperar os
valores de ajudar, de compartilhar, de respeitar, pois nenhum ser humano é tão auto-
suficiente que o necessite da colaboração do próximo. Os bons, os nobres, os dignos
são recompensados; já os maus, os blasfemadores são castigados. O discurso também
trata da origem da figura lendária da Mãe do Ouro, surgida sob a forma de uma
recompensa dada pela Mãe do Mundo a uma pessoa que cultivou esses bons
sentimentos.
5.3 – As semelhanças e as diferenças
Depois de realizado o processo de desconstrução e análise textual das diferentes
interpretações da lenda A Mãe do Ouro, percebemos, além da presença da personagem
Mãe do Ouro, a recorrência de alguns elementos como a morte, a noite, o ouro, o pacto
e o segredo. Procedemos, então, à análise intertextual para ver como tais elementos
foram empregados nos diferentes textos, devido às influências ou interferências
presentes na construção dessa personagem na memória coletiva de cada comunidade.
A entidade feminina Mãe do Ouro está representada, no texto de Alberto Coelho da
Cunha, sob a forma de uma “moça lindíssima” que possuía uma pele alvíssima,
cetinosa, com ondeações brilhantes e reflexos dourados”, uma “nuvem de cabelos
d’ouro lhe desabava sobre o colo”, os olhos eram “dois centros de fulgores” e estava
sentada “nuazinha” (p. 34) sobre uma pedra, a brincar com a água que escoava ao redor.
A escritora Ruth Guimarães apresenta a Mãe do Ouro sob a forma de uma mulher
“branca como a neve e com uma cabeleira cor de fogo” (p. 48). No texto de Souza
Carneiro, ela também aparece sob a forma de uma mulher de tamanha beleza, que tinha
o corpo e os cabelos de ouro. As águas encantadas da lagoa amareleceram os cabelos”
que eram engolidos pela terra e “não cessavam de nascer e de crescer de repente” (p.
350). Nas características da pele e dos cabelos da Mãe do Ouro, observamos a presença
97
de vestígios europeus, principalmente da sereia, misturados a aspectos da e d’Água
indígena, resultando na figura emblemática da Mãe do Ouro.
no texto de Veiga Miranda, a Mãe do Ouro está representada, supostamente, como
uma mulher que possuía uma “cabeleira de estrelas” (p. 31) da qual as estrelas iam
caindo, apagando-se e virando pedras, enquanto atravessava os ares. Lucília Garcez, na
sua narrativa, representa a Mãe do Ouro como uma mulher que sai das águas
conduzindo um facho de luz que inunda o espaço com milhões de estrelas cintilantes e
coloridas. Nessas narrativas observamos a relação com o fenômeno meteorológico,
conhecido por Zelação, freqüente na região do São Francisco, pois apresentam a Mãe
do Ouro confundida com a estrela cadente, ao mesmo tempo, amaldiçoada e tida como
capaz de satisfazer votos formulados durante sua trajetória cintilante.
A diferença está no texto de Nitheroy Ribeiro, que inova ao apresentar a personagem
da Mãe do Ouro como originária da África. No poema, uma moça “castiça de sangue
azul” (p. 89) chamada Hylaria é trazida como escrava para o Rio Grande do Sul e morre
depois de ser açoitada. O espírito dessa mulher negra, descendente de uma tribo de
Moçambique, transforma-se na Mãe do Ouro e torna-se a guardiã do ouro roubado do
senhor, bem como de todo ouro ou tesouro escondido no Cerro do Jarau.
A presença da morte nos textos está relacionada ao modo de punir uma transgressão.
No texto do escritor pelotense Alberto Coelho da Cunha, a morte é a pena estabelecida
pela Mãe do Ouro para punir a curiosidade da filha da china. Assim que a menina
revelou o segredo, quebrando o pacto, a concha de marisco parda-furta-cor partiu-se e o
ouro transformou-se em víboras. Uma das cobras ficou enroscada no braço da chininha,
escorregou pela manga ao seio e mordeu-a no peito. No texto de Ruth Guimarães, a
morte também é a pena estabelecida ao “rico senhor de escravos, de modos rudes e
coração cruel” (p. 47) para que seja restabelecida a ordem naquela comunidade. Devido
a um desabamento de terras, o mineiro morreu soterrado na mina de ouro que explorava,
permanecendo enterrado junto ao metal precioso que tanto cobiçava. A e do Ouro,
no papel semelhante ao da Dama de Branco ou da Virgem Maria, castiga o mineiro, um
antimodelo de indivíduo que representa um contra-exemplo de condutas em uma
comunidade e recompensa o escravo Pai Antônio, libertando-o do cativeiro e dando-lhe
o direito de viver de forma sossegada.
No texto de Lucília Garcez, a morte também é uma espécie de punição, isto é,
Januário foi impedido de usufruir do ouro que conquistara. Depois do esforço pela
busca da liberdade e da riqueza, Januário morreu vítima da malária sem conseguir
98
garantir o futuro da família. A febre lhe impossibilita de explicar aos amigos onde
guardara o ouro garimpado, por isso, Januário “com as últimas forças de seu coração”
(p. 21) entregou sua vida e seu segredo a Deus e aos orixás, pedindo-lhes que
orientassem a família a encontrar o tesouro escondido. A Mãe do Ouro, entidade
enviada para proteger o tesouro, também vai punir com a morte os garimpeiros
atrevidos que se aproximarem do ponto no rio onde está o ouro, pois encontrarão a
morte nas profundezas do mesmo rio.
A diferença está nas narrativas de Veiga Miranda e Souza Carneiro, que não
apresentam a morte, e sim, o tornar-se encantado. Na primeira, a mulher que fizer o
pacto com a Mãe do Ouro torna-se encantada: a alma passa a “pertencer para sempre”
(p. 31) à Mãe do Ouro, isto é, passa a ser dominada por ela. A perda da liberdade de
escolhas pode ser interpretada como uma punição pela realização de um pacto com a
Mãe do Ouro, entidade associada ao Diabo, porém, a mulher é recompensada com uma
vida prazerosa, podendo participar, todas as noites, de festas e orgias no palácio dela.
Na narrativa de Souza Carneiro um duplo encantamento. Primeiramente, a jovem
foi recompensada pela confiança e dedicação prestadas à velha fada. A menina é
transformada na Mãe do Ouro, ou seja, passa do campo terrestre e real ao campo
sobrenatural, tornando-se, assim, “encantada e invisível” (p. 349). Depois, a entidade
sobrenatural Mãe do Ouro também é encantada e transformada em serpente, ou seja,
ocorre uma nova recompensa, ao ser elevada de categoria dentro desse campo e ganhar
“o poder de morar até acima das nuvens” (p. 351).
No poema do escritor quaraiense Nitheroy Ribeiro, os dois elementos, a morte e o
tornar-se encantado, estão presentes. A morte é a punição da escrava Hylaria, que foi
castigada no açoite porque tentou a fuga. Em compensação, seu espírito é recompensado
sob a forma de tornar-se encantado: é transformado na Mãe do Ouro, que retorna a terra
para punir o patrão, por isso, rouba-lhe o ouro e o leva para o Cerro do Jarau, onde será
sua morada eterna.
A morte está apresentada de forma ambivalente: como punição ou como
regeneração. A morte como punição de uma transgressão revela o aspecto destrutível da
existência, representa uma forma de aniquilar um contra-exemplo de indivíduo ou um
desvio de condutas que deve ser evitado. O encantamento é também uma maneira de
morrer. No entanto, a morte significa um rito de passagem, pois ela destrói uma
existência para iniciar uma outra, uma vez que todas as iniciações atravessam uma fase
de morte, é preciso morrer para reviver ou renascer. O “tornar-se encantado”, que
99
aparece em alguns textos como retribuição, é uma forma de regeneração e de
renascimento desse indivíduo em outro plano que lhe garante a condição de uma vida
superior, como ocorre, por exemplo, no poema do escritor quaraiense: a escrava Hylaria
morre e seu espírito renasce na entidade sobrenatural da Mãe do Ouro.
A noite está associada ao mistério, ao perigo e à morte, por isso, sua presença nas
interpretações. Na narrativa do escritor pelotense, a Mãe do Ouro se manifesta à noite,
pois a filha da china encontra a estranha criatura “numa linda noite de verão” (p. 34).
Todas as ações, os encontros, as conversas, a realização do pacto, aconteceram durante
a noite, sob a luz da lua. No poema de Nitheroy Ribeiro também predomina a noite. O
esconderijo do tesouro era verificado às noites; a escrava exercia, na senzala, “enquanto
o senhor dormia” (p. 89) um estranho poder sobre os demais escravos e a tentativa de
fuga por parte de Hylaria ocorreu à noite. “Em altas horas da noite” (p. 90) ocorre
também a manifestação do espírito da mulher negra, sob a forma de Mãe do Ouro, para
apoderar-se do ouro.
No texto de Souza Carneiro as ações também ocorrem à noite. A velha descia a
montanha como um vaga-lume e ia até a beira da lagoa, onde fazia as águas
borbulharem e sorrirem, as flores transformarem-se em donzelas formosas e rapazinhos
alegres a dançarem ao som da música das ondas e dos cânticos das folhas das plantas. A
revelação do segredo da velha ocorreu à noite, sob a luz da lua cheia, quando as águas
da lagoa “amareleceram” (p. 349) os cabelos da jovem e ocorreu sua transformação em
Mãe do Ouro. Na versão paulista de Veiga Miranda, a Mãe do Ouro saía do seu
esconderijo pelas tardes, o que pode ser interpretado como a hora crepuscular do
anoitecer. Já as festas encantadas, das quais participavam as mulheres que pertenciam a
ela, ocorriam no seu palácio todas as noites, enquanto seus corpos dormiam na cama.
Na versão goiana de Lucília Garcez as ações mais significativas da narrativa ocorrem
no período da noite, como a fuga de Januário com sua família. A diferença está na
manifestação da Mãe do Ouro, que ocorre nos dois turnos: dia e noite. Durante o dia, a
Mãe do Ouro atrai os garimpeiros com um brilho intenso que vem do fundo das águas.
Durante a noite, de vez em quando, eles são surpreendidos pelo surgimento de um facho
de luz que, num movimento incandescente, conduzido por uma figura de mulher, sai da
água e inunda o espaço com milhões de estrelas cintilantes e coloridas: a noite se
transforma em dia. na narrativa de Ruth Guimarães a manifestação da Mãe do Ouro
ocorre sempre durante o dia, não há nenhuma referência à noite. Ela apareceu ao
100
escravo Pai Antônio durante o dia, inclusive o desabamento ocorreu “na hora em que a
sombra ficou bem em volta dos pés no chão” (p. 50), ou seja, ao meio-dia.
A noite simboliza o tempo das gestações, das conspirações, na qual se misturam as
idéias negras, pesadelos e monstros. A hora crepuscular é a chamada hora aberta” por
Cascudo (1972: p. 597), uma espécie de portal que garante a passagem desses seres
sobrenaturais para a esfera terrestre a fim de que possam perambular pelo perímetro
definido por uma comunidade, assediar e ameaçar seus membros. A noite é o mundo
dos fantasmas, das almas do outro mundo, dos animais fabulosos, das luzes espantosas,
dos tesouros enterrados, das penitências estranhas e de todo o cortejo apavorante que
vive nas trevas. A Mãe do Ouro pertence ao grupo de entidades sobrenaturais que
povoam as trevas, devido ao fato de estar associada ao Diabo, aos fogos-fátuos e às
almas penitentes, que guardam tesouros ocultos. Por isso, sua manifestação, na maioria
das vezes, é noturna e acompanhada de sentimentos como o medo e o espanto. A
manifestação diurna ocorre quando ela realiza ações positivas como prestar alguma
ajuda, pois, na versão de Ruth Guimarães, a Mãe do Ouro não causa medo nem espanto:
“sem se admirar, o negro contou-lhe sua desventura” (p. 48).
Se a deusa Mãe do Ouro é a responsável pela criação do ouro na natureza, tem
também a função protegê-lo, por isso, na presença dela, o elemento ouro também está
presente. No texto de Alberto Coelho da Cunha, o ouro é o elemento desencadeador da
morte da filha da china, por ser o mais cobiçado entre os metais. A menina recebeu uma
concha de marisco parda-furta-cor que continha ouro cascateando “em ondas” (p. 35).
Ao ver o ouro dentro da concha, a menina ficou tão deslumbrada que revelou o segredo
que deveria permanecer inviolável. Nitheroy Ribeiro apresenta o objeto ouro como
representante da riqueza e do poder do senhor, por isso, o guardava “no laranjal,
enterrando junto ao pé” (p. 90) e o vigiava todas as noites. Por valorizar mais a riqueza
material, representada pelo ouro, do que a vida, sua punição pelos crimes de crueldade
será a perda do metal precioso.
No texto de Ruth Guimarães, o ouro é o objeto cobiçado pelo senhor, que se ocupava
da mineração. A busca desse objeto é imposta ao escravo Pai Antônio, que tinha de
levar, diariamente, alguma quantidade do precioso metal para alcançar o valor de
escapar dos castigos. Na obra de Lucília Garcez, o ouro também é o objeto da busca do
escravo Januário. O escravo fugiu com sua família para buscar a sorte no leito dos rios,
queria encontrar ouro para libertar seus amigos e salvar sua família da pobreza e do
101
sofrimento. Januário atingiu o objeto, mas o o valor que o ouro lhe representava, pois
morreu sem realizar seu desejo.
As diferenças estão nos textos de Souza Carneiro e de Veiga Miranda. No primeiro,
a Mãe do Mundo transformou os cabelos da moça em ouro, no contato com as águas
encantadas da lagoa. A jovem torna-se o objeto da cobiça dos homens, representado
pelo caçador, pois tinha o poder de fecundar a terra que se abria para receber alguns
cachos, penugens ou pedaços dos seus cabelos mágicos. Os cabelos que a terra engolia
originariam o ouro. Veiga Miranda, no entanto, apresenta na versão paulista da Mãe do
Ouro um elemento novo: as pedras preciosas. As estrelas luminosas e coloridas que
caíam da cabeleira da Mãe do Ouro se transformavam em pedras preciosas da mesma
cor. Esse texto é um relato etiológico, pois é uma explicação da origem e da formação
das pedras preciosas.
A entidade sobrenatural que tem fama de realizar pactos é o Diabo. Nos textos, quem
realiza os pactos é a personagem da Mãe do Ouro, por isso, sua associação com o mal.
Na narrativa do escritor pelotense, a Mãe do Ouro pactua com a filha da china, que
seduzida prometeu acompanhá-la aos “reinos desconhecidos, que existem debaixo da
terra” (p. 34), assim como manter segredo sobre a promessa. O pacto é selado quando a
Mãe do Ouro entrega à menina uma concha de marisco parda-furta-cor. Na versão
paulista, o pacto é realizado apenas entre a Mãe do Ouro e as mulheres, casadas ou
donzelas, que têm a sorte de apreciar sua passagem pelos ares e fazer um pedido. O
pedido será atendido em troca da alma, que pertencerá para sempre à Mãe do Ouro. No
texto de Souza Carneiro, o pacto é realizado entre a fada velha, conhecida como Mãe do
Mundo, e a menina órfã, que vai tornar-se aprendiz de fada. A menina vai morar com a
Velha, confiar nela, fazer-lhe companhia e obedecê-la em troca de abrigo, comida e
proteção, que estava desamparada devido à morte dos pais e, mais tarde, será
transformada na Mãe do Ouro, que irá fazer germinar o ouro na terra, nas rochas e nos
leitos dos rios.
Nas versões de escravos de Ruth Guimarães e Lucília Garcez aparece a figura
masculina que realiza pactos com a Mãe do Ouro. Na versão mato-grossense de Ruth
Guimarães, o pacto ocorre quando a Mãe do Ouro decide ajudar o escravo Pai Antônio,
mostrando-lhe um lugar no rio onde existia ouro em troca do silêncio e de alguns
objetos: uma fita azul, uma fita vermelha, uma fita amarela e um espelho. Na versão
goiana de Lucília Garcez, a Mãe do Ouro surge em função de um pacto realizado entre
Januário e Deus e os orixás. O escravo Januário, que conquistara a liberdade e a riqueza,
102
na hora da morte, “com as últimas forças de seu coração” (p. 21) invoca a ajuda
sobrenatural para proteger seu tesouro e entregá-lo à família.
O segredo está intimamente relacionado ao pacto, pois representa a obtenção da
faculdade de um poder que deve permanecer oculto e hermético. Em função disso, o
segredo está relacionado à idéia de tesouro oculto que necessita de guardiães. Na
narrativa de Alberto Coelho da Cunha, a Mãe do Ouro ordenou à menina que
mantivesse segredo inviolável sobre os encontros, as conversas, os planos, a promessa
de acompanhá-la aos reinos desconhecidos e sobre o presentinho recebido. A violação
do segredo e, conseqüentemente, a quebra do pacto causou a morte da menina. Na
versão mato-grossense, a Mãe do Ouro também recomendou segredo sobre as aparições,
sobre o pacto, bem como sobre o lugar do rio que tinha grande quantidade de ouro.
Mesmo sob tortura, o escravo Pai Antônio não revelou o lugar do rio onde encontrara o
ouro; só o faz com a autorização da Mãe do Ouro.
Enquanto nas versões de Alberto Coelho da Cunha e de Ruth Guimarães, a Mãe do
Ouro atribui, respectivamente, à chininha e a Pai Antônio a função de guardiães de um
segredo, nas demais versões o segredo é um conhecimento hermético. No poema,
Hylaria exercia sobre os demais escravos, na senzala, uma espécie de feitiço “à voz de
Hylaria-Ylá todo o escravo obedecia” (p. 89). Essa influência era uma faculdade da
escrava desconhecida do senhor, porque ela agia “em altas horas enquanto o Senhor
dormia” (p. 89). Na versão paulista, a mulher que pactuou com a Mãe do Ouro também
passa a ter um segredo: todas as noites, enquanto dormir “sem ninguém perceber, sem a
própria pessoa ao dia seguinte lembrar-se” (p. 32), deixará seu corpo na cama para
aparecer no palácio da Mãe do Ouro, onde participará de festas orgíacas.
Na narrativa de Souza Carneiro, a velha, conhecida por todos como a Mãe do
Mundo, era uma fada. Inclusive os pais da menina que a velha acolheu, assim que ficara
órfã, suspeitavam disso. À noite, quando a menina dormia, ela ia até a lagoa, que os
homens diziam assombrada, e transformava a natureza. Esse segredo foi mantido pela
velha por um tempo até que, numa certa noite, por vontade própria, resolveu revelá-lo à
moça. Na versão goiana, Januário conseguiu guardar uma certa quantidade de ouro
numa pequena caverna por trás da cachoeira maior. Manteve o segredo consigo aa
morte e, sem conseguir revelá-lo aos amigos, entregou-o a Deus e aos orixás. Segundo
Chevalier e Gheerbrant (1991), as pessoas despreparadas para receber um segredo não
não o compreendem, como o desfiguram ou o transformam em motivo de zombaria.
103
aquele que é capaz de guardar um segredo, adquire uma força de dominação
incomparável que lhe confere um sentimento de superioridade.
Além desses elementos comuns, os textos ainda apresentam alguns aspectos
peculiares quanto ao papel actancial desempenhado ou percurso cumprido pela Mãe do
Ouro, quanto à presença de um objeto mágico, quanto ao elemento étnico representado
e quanto às metamorfoses.
Nas narrativas mato-grossense e goiana, a Mãe do Ouro assume o papel actancial de
ajudante em relação ao sujeito, pois o ajuda a cumprir seu percurso. Na primeira, ela
doa ao escravo Pai Antônio o saber e o poder ao revelar-lhe um lugar no rio no qual
existe grande quantidade de ouro. Dessa maneira, o escravo adquire a competência
necessária para desempenhar a performance de encontrar ouro e alcançar o valor
desejado: escapar do castigo. Na narrativa goiana, a Mãe do Ouro surge na história após
a morte de Januário para ajudar-lhe a tornar-se um sujeito realizado. Ela é uma entidade
enviada por Deus e pelos orixás com a função de proteger o tesouro escondido e
orientar a família de Januário a encontrá-lo. na narrativa de Veiga Miranda, a Mãe
do Ouro desempenha o papel actancial de destinador do objeto-valor. Ao atravessar os
ares com um longo cortejo de luzes coloridas, a Mãe do Ouro oferece às mulheres
aflitas a possibilidade de solução dos problemas ou uma mudança de vida, em troca da
alma e, para tanto, basta fazer o pedido.
Na narrativa de Alberto Coelho da Cunha, a Mãe do Ouro cumpre o percurso de
destinador-manipulador ajudante destinador-julgador. Primeiramente, ela comunica
o objeto “as maravilhas de reinos desconhecidos, que existem debaixo da terra” (p. 34),
através de sua descrição, ao destinatário filha da china que acender-lhe na alma mil
desejos de uma vida diversa (p. 34) e, então, aceita a busca pelo objeto-valor
apresentado pela Mãe do Ouro: faz um pacto e promete acompanhá-la. A Mãe do Ouro
também fornece as instruções necessárias para a menina desempenhar sua performance,
dá-lhe uma concha de marisco parda-furta-cor e ordena-lhe que deve manter segredo
inviolável sobre os encontros. A prova de que o segredo seria mantido, era a concha de
marisco permanecer intacta. Como a menina violou o segredo, a Mãe do Ouro exerce o
julgamento e aplica a sanção: a menina é punida porque não cumpriu o contrato inicial
estabelecido pelo destinador.
Nos textos de Nitheroy Ribeiro e de Souza Carneiro, a Mãe do Ouro cumpre o
percurso de sujeito operador. No poema do escritor quaraiense, a “castiça de sangue
azul” (p. 89) Hylaria foi arrancada de sua família e condenada ao exílio e à escravidão.
104
No entanto, ela tenta a fuga, é castigada pelo seu senhor e morre. Seu espírito retorna à
terra como Mãe do Ouro para punir o assassino. A Mãe do Ouro apodera-se do ouro que
o senhor escondia no laranjal e leva-o para o Cerro do Jarau, onde passa a morar. Na
narrativa de Souza carneiro, a menina órfã procura pela Velha, confia-lhe sua vida e lhe
faz companhia. Pela dedicação, a moça é recompensada: torna-se a Mãe do Ouro e
recebe os poderes necessários para desempenhar a performance de “banhar-se nos rios e
lagos deixando a terra engolir os cachos, as penugens e os pedaços de seus cabelos” (p.
349-350), cumprindo seu percurso.
Outro aspecto peculiar é a presença de um objeto mágico. Os textos de Alberto
Coelho da Cunha e de Souza Carneiro apresentam um objeto mágico. No primeiro, é a
concha de marisco parda-furta-cor que foi dada pela Mãe do Ouro para selar o pacto
com a menina. A menina vê “o ouro cascatear em ondas” (p. 35) dentro da concha, pois
ela é encantada. A concha representa a prova final do cumprimento do pacto: se
permanecesse intacta, o segredo havia sido mantido inviolável, mas como o segredo foi
violado, a concha, como por encanto, partiu-se e o ouro transformou-se em víboras. No
segundo texto, os cabelos da e do Ouro, que as águas do lago “amareleceram” (p.
349) e que a terra engolia, eram mágicos. A menina já transformada na Mãe do Ouro, ao
banhar-se nos rios e lagos, perdia cachos, penugens ou fios de seu cabelo de ouro que
“não cessavam de nascer e de crescer de repente” (p. 350). Os cabelos da Mãe do Ouro
tragados pela terra geravam o ouro, metal precioso encontrado nas escavações ou nos
leitos dos rios.
No texto de Ruth Guimarães, porém, a presença de um lugar mágico. A Mãe do
Ouro, depois de pactuar com Pai Antônio, parou num lugar do rio em que “foi
esmaecendo até que sumiu” (p. 48). A última coisa que o escravo viu “foram os cabelos
de fogo, onde ela amarrara as fitas” (p. 48). Naquele lugar do rio, Pai Antônio encontrou
muito ouro.
Nos textos variação quanto ao elemento étnico representado. O poema de
Nitheroy Ribeiro e as narrativas mato-grossense e goiana apresentam o elemento étnico
africano, inclusive, no regime da escravidão. A diferença fundamental está no poema
que apresenta a figura lendária da Mãe do Ouro como originária do elemento africano.
A escrava moçambicana Hylaria é cruelmente açoitada até a morte, devido à tentativa
de fuga, e seu espírito retorna para punir o assassino, roubando-lhe o ouro. Ela se torna
a guardiã desse ouro, que leva para o Cerro do Jarau. Nas narrativas, o elemento
105
africano não possui a competência necessária para solucionar seus problemas,
necessitando da ajuda de entidades do plano sobrenatural, como a Mãe do Ouro.
A narrativa do escritor pelotense Alberto Coelho da Cunha apresenta dois grupos
étnicos: o índio e o luso-brasileiro. O elemento índio incorporado ao povo rio-grandense
está representado pela figura da china que vivia agregada a uma estância onde cultivava
uma horta na qual “toda a hortaliça se encontrava: nada faltava...” (p. 33), devido a sua
sabedoria popular. O elemento luso-brasileiro está representado pela figura de Silvério
Nunes, avô de Anita, um paulista que se estabeleceu no continente, depois de muito
tropear para Sorocaba. Foi na estância de Silvério Nunes, envolvendo a família da
china, que ocorreu o episódio da Mãe do Ouro. Dessa forma, a lenda mescla vestígios
de crenças mestiças (européias misturadas com brasileiras do centro e do norte, como
paulistas, baianas, pernambucanas), propagadas pelo luso-brasileiro, com crenças
indígenas.
As metamorfoses que ocorrem nas narrativas são bastante peculiares. No texto do
escritor pelotense, a Mãe do Ouro presenteia a menina com uma concha de marisco
parda-furta-cor que contém ouro. Quando a menina revela quem lhe deu o objeto, o
ouro transforma-se em víboras e uma cobrinha, que fica enroscada no seu braço, morde-
a no peito. Na versão paulista, as mulheres que pactuaram com a Mãe do Ouro tornam-
se sereias, quando aparecem no seu palácio para participarem das orgias sexuais: com
os cabelos transformados em algas luminosas, com as pernas justapondo-se,
confundindo-se, alongando-se em forma de caudas de peixe” (p. 32), envoltas em
roupas transparentes para serem amadas pelos gênios encantados do rio Pardo. Nessas
narrativas, novamente, observamos a presença de vestígios europeus em relação à
víbora, uma serpente venenosa não-americana, e à sereia, entidade metade mulher e
metade peixe, que facilmente foi assimilada às superstições das águas e dos rios
brasileiros.
Na narrativa de Souza Carneiro, a Mãe do Mundo transforma a Mãe do Ouro em
serpente, após impedir a aproximação do caçador, e dá-lhe o poder de morar aacima
das nuvens, ou seja, é a transformação da Mãe do Ouro em Mboitatá, da qual os homens
correm com medo. A narrativa explica a conversão Mãe do Ouro Boitatá, da mesma
forma como Simões Lopes Neto (1984: p. 131) explica a conversão cobra-de-fogo
(mboitatá) bola-de-fogo, por isso, todas essas entidades pertencem ao mesmo ciclo de
crenças e superstições.
106
Na narrativa de Souza Carneiro a presença das mães. A Mãe do Mundo é uma
fada ou deusa responsável pela criação do mundo. Ela cria a Mãe do Ouro, que tem a
missão de sair pelo mundo a banhar-se nos rios e lagos fabricando o ouro que existe
debaixo da terra e dentro dos rios. A função da Mãe é a defesa do elemento criado, por
isso, a função da Mãe do Ouro é proteger as minas, os veeiros, os filões e as pepitas de
ouro. As Cis indígenas também têm a função defender o elemento ou a entidade que
haviam criado, mãe da fruta, mãe do fogo, etc, porém não tinham forma. Do mesmo
modo que as tribos africanas, os indígenas tupi-guaranis também tinham na sua teogonia
que todas as coisas, entidades e forças possuem origem feminina, uma mãe, a Ci
origem de tudo.
107
6 – Considerações finais
Após a análise das narrativas do grupo sulino e do grupo centro-nortista, traçamos
algumas considerações sobre esta personagem do cenário sobrenatural conhecida como
Mãe do Ouro.
A Mãe do Ouro está construída, no imaginário coletivo gaúcho, como uma
personagem que provoca medo porque está diretamente associada à figura do Diabo,
que rapta jovens indefesas, que realiza pactos em troca da alma e do silêncio, que
atormenta e ameaça os seres humanos. Na versão de Alberto Coelho da Cunha, o que
marca a Mãe do Ouro é o seu caráter ardiloso: ela convence a filha da china, através da
sedução, a aceitar o convite de conhecer os maravilhosos “reinos desconhecidos, que
existem debaixo da terra” (p. 34) em troca de manter inviolável o segredo sobre esta
aventura. A menina aceita, faz um pacto com ela e promete acompanhá-la, seduzida
pelos “mil desejos de uma vida diversa” (p. 34). Ela propicia o desejo de uma vida nova
e prazerosa, ao mesmo tempo, que ceifa a vida atual. Na descrição da personagem
também predominam os aspectos demoníacos e fatais, exteriorizados através da beleza
extraordinária e o fulgor dos olhos.
Na versão de Nitheroy Ribeiro, a Mãe do Ouro é o espírito vingador de uma escrava
moçambicana que possui “contas” a acertar na terra. A escrava que foi cruelmente
morta, após uma tentativa de fuga, retorna a terra para vingar-se de seu agressor. Ela se
transforma na entidade sobrenatural da Mãe do Ouro ao apoderar-se do ouro, o bem
mais valioso do seu senhor, e o leva consigo para o Cerro do Jarau, onde passa a vigiá-
lo. As manifestações da e do Ouro, por meio dos raios e trovões, no alto do cerro
subentendem uma maneira de impedir a aproximação do senhor para recuperar o ouro.
Nos relatos do grupo sulino, a Mãe do Ouro realiza ações negativas, ela é uma
ameaça às comunidades, pois ataca os membros desta, levando-os à autodestruição, por
meio da morte prematura, por exemplo. Segundo a classificação
39
proposta por Jean Du
Berger (1990), a Mãe do Ouro pertence à classe 1211, que agrupa os mortos penitentes,
39
O etnólogo da Universidade de Laval, Jean Du Berger, fez um estudo sobre as figuras tradicionais do
Québec e definiu o lugar de onde emergem essas figuras. Nos relatos, as personagens significantes são
dotadas de corpo ou sem-corpo, o afetadas de valores positivos ou negativos, o sujeitos ativos de
ações ou passivos e são afetadas da qualidade voluntário ou involuntário. No campo não-corporal, a
classe 1111 abrange as personagens que agem de modo bondoso em relação aos humanos; as classes
1112, 1121 e 1122 abrangem as personagens que exercem involuntariamente um ministério ou sofrem,
voluntária ou involuntariamente, uma ação; a classe 1211 abrange as personagens sobrenaturais que
ameaçam as comunidades, atacando seus membros. No campo corporal, as personagens também foram
divididas em classes, conforme suas características.
108
os espíritos assombradores e os vingadores. A esta classe de personagens sobrenaturais
também pertence o Diabo pactuador, que concede riquezas em troca da alma, os fogos-
fátuos e os duendes. Esses seres se metamorfoseiam e vêm perturbar os humanos,
ameaçando as comunidades e seus membros, pois todos os personagens que agem por
sua própria vontade, o dotados de poderes que excedem os dos homens e, por isso,
assediam o perímetro definido pela cultura do grupo.
Sob outro aspecto, a ação da Mãe do Ouro de vingar sua morte e punir seu agressor
pode ser interpretada como positiva. Ela intervém, de forma milagrosa, para denunciar
um crime, para ajudar seus próximos e para restabelecer a ordem do mundo natural.
Assim também, na versão mato-grossense, a Mãe do Ouro interfere para auxiliar uma
vítima da escravidão, para livrar Pai Antônio das garras do seu carrasco. Nesses casos, a
Mãe do Ouro pertence à classe 1111, a qual agrupa personagens que operam de modo
bondoso em relação aos humanos, como a Dama de Branco ou Virgem Maria, os anjos
da guarda ou espíritos serviçais que ajudam, assistem e protegem os humanos. Por meio
de uma intervenção milagrosa, as doenças são curadas, os incêndios o impedidos, as
crianças perdidas são encontradas, os tesouros escondidos são descobertos, o futuro é
revelado, ou seja, as crises são conjuradas e a ordem do mundo é reafirmada. Portanto,
uma das características fundamentais da Mãe do Ouro é o caráter ambivalente, porque
ela provoca ou realiza ações tanto positivas quanto negativas.
Na versão de Lucília Garcez, a Mãe do Ouro também apresenta este caráter
ambivalente. Durante o dia, a Mãe do Ouro atrai os garimpeiros, que se aproximam do
ponto do rio onde está o tesouro de Januário, com um brilho intenso que vem das pedras
do fundo do rio. Alguns, enlouquecidos de ambição, até mergulham em busca do ouro,
mas o voltam mais, ficando presos nas águas profundas. À noite, de vez em quando,
os garimpeiros acampados ao longo das margens do rio Paranã são surpreendidos pelo
surgimento de um facho de luz conduzido por uma mulher, que sai da água. Essas
ações, que deixam o observador ora maravilhado, ora assustado, são uma forma de
proteger o tesouro de Januário e impedir a aproximação de outros garimpeiros. Por um
lado, podem ser interpretadas como ações positivas, já que a Mãe do Ouro é uma
entidade enviada com a função de proteger o ouro e entregá-lo à família de Januário.
Por outro lado, podem ser entendidas como ações negativas, pois as manifestações da
Mãe do Ouro acabam se tornando uma armadilha para os garimpeiros, que se sentem
atraídos pelo brilho das pedras e mergulham em busca da morte ou fogem apavorados,
abandonando o garimpo.
109
Os papéis actanciais desempenhados pela Mãe do Ouro também reforçam seu caráter
ambivalente: ora assume o papel de destinador, ora de ajudante, ora de sujeito. Na
narrativa de Alberto Coelho da Cunha, a Mãe do Ouro cumpre um percurso:
desempenha os papéis actanciais de destinador, de ajudante e de julgador. Ela, no eixo
da comunicação, comunica ao destinatário filha da china, futuro sujeito operador, o
objeto-valor “reinos desconhecidos”. A menina “acender-lhe na alma mil desejos de
uma vida diversa” (p. 34) e deixa-se manipular, aceitando a busca por aquele objeto-
valor. A menina faz um pacto com a Mãe do Ouro e promete acompanhá-la. A Mãe do
Ouro passa, então, a desempenhar o papel actancial de ajudante, pois transmite à menina
a competência necessária para desempenhar sua performance. A Mãe do Ouro
recomenda segredo sobre as conversas, sobre os encontros, sobre a concha de marisco
parda-furta-cor que representa a firmação do pacto, enfim, sobre tudo. Estas eram as
instruções que a menina deveria seguir para atingir seu objeto-valor, mas ela viola o
segredo. Na interpretação da Mãe do Ouro, a filha da china não cumpriu os
compromissos assumidos, por isso sofre um julgamento negativo e, conseqüentemente,
uma punição: a morte.
Na narrativa de Veiga Miranda, a Mãe do Ouro apenas desempenha o papel actancial
de destinador. Ela comunica às mulheres aflitas, que contarem com a sorte de apreciar a
passagem de seu longo cortejo de luzes coloridas pelos ares, a possibilidade de realizar
um pacto. Então, a mulher faz um pedido, ou seja, opta pelo pacto: a solução dos seus
problemas em troca da alma.
Nas narrativas mato-grossense e goiana, que envolvem escravos, a Mãe do Ouro
desempenha o papel actancial de ajudante no cumprimento do percurso do sujeito. Na
narrativa de Ruth Guimarães, a Mãe do Ouro mostra ao sujeito Pai Antônio um lugar no
rio em que havia muito ouro, em troca de algumas fitas e um espelho. O sujeito
precisava desempenhar a performance de encontrar ouro para atingir o valor “escapar do
castigo”, mas não tinha a competência necessária para realizá-la. A Mãe do Ouro doa-
lhe essa competência, o saber e o poder, ao revelar-lhe o lugar no rio. Na versão de
Lucília Garcez, ela ajudará a cumprir o percurso do sujeito Januário, que morreu vítima
da malária devido às péssimas condições de trabalho e à região ser muito insalubre.
Januário não conseguiu revelar aos amigos onde guardava seu ouro, então, na hora da
morte, entregou sua vida e seu segredo a Deus e aos orixás, pedindo para orientar sua
família a encontrar o tesouro. A Mãe do Ouro é uma entidade enviada para proteger o
ouro escondido, entregá-lo à família de Januário e torná-lo um sujeito realizado.
110
Nas versões de Nitheroy Ribeiro e de Souza Carneiro, a Mãe do Ouro assume o
papel actancial de sujeito e cumpre o percurso de sujeito. No poema, a e do Ouro
retorna para punir seu agressor: roubar-lhe o ouro que escondia enterrado junto ao pé de
laranjeira a fim de levá-lo para o Cerro do Jarau, onde passa a protegê-lo. Na versão de
Souza Carneiro a moça, de aprendiz de fada, transformou-se na Mãe do Ouro, com
poderes gicos para desempenhar sua missão. Ela sai pelo mundo a fertilizar a terra,
ou seja, é a responsável pela criação do ouro que está debaixo da terra, dentro dos rios e
lagos, deixando cair pedaços, cachos e fios dos seus cabelos, que eram de ouro.
Augusto Meyer (1975) dizia que a Mãe do Ouro rio-grandense possui em seu
contexto traços evidentes da influência dos mitos da Mãe d’Água. Não deixa de ter
razão, porque a Mãe do Ouro de Alberto Coelho da Cunha tem forte relação com o
elemento água: ela estava na sanga, sentada nua sobre o lajeado “a brincar com a água
que marulhava ao redor da pedra” (p. 34), pede um pente de cabelos e dá à menina uma
concha de marisco. Também assimilou da Mãe d’Água a sedução mortal porque, assim
como esta canta para atrair o enamorado que morre afogado querendo acompanhá-la
para bodas no fundo das águas, a Mãe do Ouro rio-grandense atrai a menina com sua
beleza, seduz com sua voz de condão e arrasta-a para devorar sua vida
40
. Por causa
disso, também está associada à Mãe do Ouro paulista, de Veiga Miranda, que mora na
gruta de um rio, em meio à pedraria preciosa, que metamorfoseia as mulheres em
sereias para poderem participar de festas orgíacas em seu palácio e para serem amadas
pelos gênios encantados do rio. Esta, por sua vez, mantém relações com a figura do
Diabo pactuador, pois a Mãe do Ouro faz pactos com “as mulheres mais lindas, casadas
ou donzelas” (p. 32): resolve problemas de toda ordem, financeira ou sentimental, em
troca da alma do pactuante.
Nas caracterizações físicas da Mãe do Ouro, de Alberto Coelho da Cunha, que
apresenta uma pele “alvíssima”, “cetinosa”, loura com cabelos de ouro” e no objeto
solicitado pente de cabelos”, observamos claramente vestígios das mouras encantadas
que foram trazidos pelos espanhóis, portugueses ou orianos. As mouras encantadas
estão associadas às serpentes, pois, às vezes, apresentam cauda de serpente no lugar dos
membros inferiores. A Zelação é uma tradição trazida pelos portugueses que contribuiu
para a construção da Mãe do Ouro paulista, de Veiga Miranda, e a goiana, de Lucília
40
O processo de sedução da Mãe do Ouro em relação à filha da china pode ser comparado ao da jararaca
que envolveu um sapo descuidado na rede fatal de sua influência magnética. Esse episódio foi descrito
por Victor Valpírio no terceiro capítulo intitulado “A jararaca e o sapo”, da novela A Mãe do Ouro.
111
Garcez. A absorção de aspectos da Yara ou Mãe d’Água, assim como a relação com a
crença dos cerros bravos ou encantados, revela a influência do elemento étnico
indígena. A exceção está na versão de Nitheroy Ribeiro, que apresenta a Mãe do Ouro
como originária do elemento étnico africano.
Assim como os elementos noite, morte, pacto e segredo, outros como o ouro, o fogo
e a serpente estão relacionados de forma intrínseca à figura da Mãe do Ouro. Eles
também apresentam na sua essência o mesmo caráter ambivalente e ardiloso. O ouro é
considerado na tradição como o mais precioso dos metais, o metal perfeito que contém
o brilho da luz, pois é a imagem da luz solar na terra, simbolizando toda a glorificação.
Tem o caráter ígneo, pois é o fogo sólido e seu aspecto dourado é o reflexo das chamas.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1991: p. 669), o ouro é “o filho dos desejos da
natureza”, acredita-se que ele nasça da terra como produto da gestação lenta de um
embrião ou da transformação aperfeiçoamento ou amadurecimento de metais
vulgares guardados nas camadas subterrâneas.
O ouro é o princípio da felicidade porque é o símbolo da riqueza material, que
garante a solidez e a segurança humana, que é, por sua vez, no pensamento tradicional
europeu, a representação da riqueza espiritual. O ouro propicia a felicidade, se
empregado para a busca do saber, do conhecimento supremo; caso contrário, acelera a
perdição de seu proprietário, pois o ouro-moeda é um símbolo da perversão e da
exaltação impura dos desejos, uma materialização e degradação do espiritual.
O fogo, associado à e do Ouro, é um signo do mal, pois assim como o ouro,
representa a destruição do homem pela cegueira: o fogo pela cegueira da cólera e o ouro
pela cegueira da cobiça. Entre todos os fenômenos, conforme Bachelard (1994), o fogo
é o único capaz de representar tão nitidamente as duas valorizações contrárias do bem e
do mal. O fogo subterrâneo, instrumento do Diabo, o portador das chamas do Inferno, é
personificado nas almas errantes, nas almas penitentes (fogos-fátuos ou fogos
diabólicos), almas que deixaram tesouros escondidos, dos quais o ouro constitui a
representação essencial, não se salvando enquanto o tesouro estiver inútil.
As serpentes também são signos do mal porque são animais criados pelo Diabo, que
representam a destruição do homem pela tentação. A tentação pela riqueza fácil levou
garimpeiros, em tempos idos, a vasculharem os sertões em busca do ouro e,
conseqüentemente, da morte. O ouro está associado à morte pelo fato do Diabo, a antiga
Serpente, passar a inflamar a chama interna e a mover a serpente que nos habita,
gerando apenas os nossos vícios que nos trazem a morte, pois ao darmos a vida a eles,
112
eles nos darão a morte. A sedução também esrelacionada à serpente, ao assumir as
formas femininas de enroscar-se, beijar, abraçar, sufocar, engolir e digerir, por isso, a
serpente que mora nas profundas camadas da consciência e da terra está associada à
destruição.
As serpentes são deuses protetores das fontes
41
da vida, bem como da imortalidade
representada pelos tesouros ocultos, são também responsáveis pela fecundidade da terra,
pois são as forças criadoras terrenas. Associa-se também à divindade das nuvens e das
chuvas fertilizadoras por ser o reservatório de todas as latências da vida. As grandes
deusas da natureza, essas deusas mães que no Cristianismo voltarão sob a forma de
Maria, mãe de Deus encarnado, têm a serpente como atributo.
Uma associação ouro-serpente revela-se no Ural. A Grande Serpente da Terra é o
Senhor do Ouro, pois, segundo Chevalier e Gheerbrant (1991), por onde passa, o ouro
se deposita e, quando se zanga, pode levá-lo para outro lugar. Tudo gela a sua
passagem, até o fogo, a o ser no inverno, quando ameniza o tempo e faz a neve
derreter. Essa associação ilustra a crença segundo a qual o ouro, metal precioso por
excelência, constitui o segredo mais íntimo, mais hermético da terra.
Com base na narrativa de Souza Carneiro, podemos interpretar que a e do Ouro,
na sua originalidade, é uma deusa responsável pela fecundação da terra, uma vez que
saiu “pelo mundo a banhar-se nos rios e nos lagos deixando a terra engolir os cachos, as
penugens e os pedaços de seus cabelos” (p. 349-350), da qual irá nascer o ouro. Ao ser
transformada em serpente pela deusa responsável pela criação do mundo, a Mãe do
Mundo, torna-se também o gênio ou espírito-guardião desse elemento e assim explica-
se a relação da Mãe do Ouro com a Boitatá, a cobra de fogo que corisca o céu rio-
grandense.
O fogo-fátuo que se desprende da ossada dos animais mortos, na forma de chuvisco,
gerou a criação da figura e, conseqüentemente, da lenda A Mãe do Ouro, depois se
desdobrou na Boitatá que corisca no céu, porém basta um deslocamento do fago-fátuo
para que ou corram de medo dele ou creiam que no lugar de onde saiu existam tesouros
escondidos. Na sua migração misturou-se às crenças indígenas e missioneiras dos cerros
bravos ou encantados, que é a explicação do enfurecimento da terra, soltando bramidos
41
Conforme Augusto Meyer, em seu Guia do folclore gaúcho (p. 171), no Rio Grande do Sul, a Mãe
d’Água é a cobra de cacimba. Apolinário Porto Alegre recolheu no município de Porto Alegre a crendice.
Estranhou o fato de os vizinhos pouparem um casal de jararacas entocado junto a uma cacimba, apesar do
grave perigo, e obteve a seguinte explicação: “Não se deve matar a cobra que faz morada junto a uma
fonte ou cacimba, porque é a mãe d’água, e morta ela, a vertente seca, acontecendo mesmo o dono
definhar lentamente e acabar por morrer”.
113
ou estrondos, infundindo terror e espanto a quem ousar aproximar-se. Na novela de
Alberto Coelho da Cunha, a lenda é apresentada como a explicação de um fenômeno
natural: “de repente, ao longe um estampido como uma explosão terráquea reboou, e o
seu eco esvaiu-se na distância. Na extrema do horizonte via-se, na atmosfera comovida,
uma espiral vaporosa como uma tira de neblina rarefeita ao sol, aos ares ascender” (p.
32). Esse fenômeno era conhecido como a mudança da Mãe do Ouro. A lenda da Mãe
do Ouro associada à crença dos cerros bravos ou furnas encantadas é própria do povo
rio-grandense, pois não há referência nas demais versões literárias.
Uma das trajetórias da Mãe do Ouro é de que ela tenha vindo “das bandas do Plata,
evocada pelos jesuítas das Reduções
42
e incorporada à teogonia tupi-guarani de que
todas as coisas, entidades e forças da natureza têm uma origem feminina, as cis, que têm
como função a defesa do elemento criado. A região das Missões está povoada de lendas
do ciclo do ouro, com as salamancas, os cerros bravos, com animais fabulosos como
nhandus e teiuiaguás que correm, voam e desaparecem nas coxilhas iguais a meteoros
luminosos. Então sua viagem saiu do sul rumo ao sudeste e centro-oeste “a Mãe do
Ouro viajou, de cerro em cerro, com um séqüito de tempestade, para as terras onde os
homens extraíam o metal amarelo
43
e, na sua passagem, foi se mesclando com o ciclo
da Mãe d’Água e com a Zelação mineira.
Uma outra provável trajetória da Mãe do Ouro tem como base Souza Carneiro (1937:
p. 351) que afirma que o mito nos veio da África” trazido pelas tribos Haussás do
Sudão ou outras tribos com influências islâmicas. Esses “mouros africanos”, como eram
conhecidos na Bahia, formaram uma colônia e se tornaram “apurados transmissores do
seu e renovadores do folclore afro-negro, ora vestindo-os à moda árabe, ora à sua” (p.
347). Tal hipótese é reforçada pela versão do poeta quaraiense Nitheroy Ribeiro, que
apresenta a origem da Mãe do Ouro no elemento afro-negro de Moçambique. Aos
poucos o elemento mestiço (mais provável que seja o baiano) articulou e propagou esses
mitos para o centro do Brasil, onde incorporaram outras crenças e resultaram em lendas
locais.
Em São Paulo e em Goiás, a Mãe do Ouro mistura aspectos do ciclo meteorológico
da Zelação mineira, a estrela cadente, ao mesmo tempo amaldiçoada e tida como capaz
de satisfazer votos formulados durante sua passagem, com aspectos do ciclo da Mãe
d’Água. Na versão de Veiga Miranda, a Mãe do Ouro mora, inexplicavelmente, num
42
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002, p. 313.
43
Id., p. 312.
114
subterrâneo (gruta) do rio Pardo em meio a pedrarias preciosas. Mas tem o hábito de
sair pelas tardes, com um longo cortejo de luzes de todas as cores, atravessando pelo
ar” (p. 31), soltando estrelas da sua cabeleira, que vão caindo, apagando-se e virando
pedras. A Mãe do Ouro atende os votos femininos formulados na sua passagem em
troca das almas, que transforma em sereias para participarem de suas festas orgíacas em
seu palácio. O processo de sedução é o mesmo da Mãe d’Água, que canta para atrair o
enamorado, o seduz e o arrasta para a morte. A Mãe do Ouro paulista também assimilou
os poderes e hábitos do Diabo pactuador, pois atende a pedidos em troca da alma do
pactuante.
Na versão goiana a Mãe do Ouro, em sua manifestação, apresenta aspectos da
Zelação quando surge de forma súbita das águas, à noite, num facho de luz que inunda o
espaço com milhões de estrelas cintilantes e coloridas. Durante o dia, a Mãe do Ouro
atrai os garimpeiros com um brilho intenso que vem do fundo das águas. Eles, animados
pelos reflexos que vêm das pedras no rio, mergulham em busca do ouro e,
conseqüentemente, da morte. Nesse aspecto a Mãe do Ouro se assemelha à Mãe
d’Água, que também, com seu caráter ardiloso, atrai para a morte.
As influências da Mãe do Ouro paulista chegaram ao Rio Grande do Sul através dos
bandeirantes luso-brasileiros, que aqui vieram em busca de gado xucro e de índios para
trabalharem na mineração do ouro, ou aqui se estabeleceram. A versão de Alberto
Coelho da Cunha reforça essa hipótese porque a lenda ganha vida na voz da filha de um
tropeiro paulista que se estabeleceu no Rio Grande do Sul. A Mãe do Ouro rio-
grandense também recebeu influências das crenças indígenas referentes aos cerros
bravos ou encantados, tornando-se a lenda uma explicação sobrenatural para esses
fenômenos naturais, porém incompreensíveis. A “forma de serpente” convida a pensar
na lagartixa mágica, o carbúnculo dos andinos ou o teiuiaguá dos guaranis, como uma
adaptação da lenda em solo rio-grandense, uma contribuição originária do novo mundo
para tornar a figura da Mãe do Ouro ainda mais enigmática: além de guardiã, também
propiciadora de riquezas.
No Rio Grande do Sul, a figura da Mãe do Ouro presente nas lendas da literatura oral
está convergida ou amalgamada nas lendas literárias da Salamanca do Jarau e da
Mboitatá. A princesa moura encantada” possui aspectos visíveis da Mãe do Ouro
quanto à caracterização da sua figura enigmática: o processo de sedução, a função de
guardiã de tesouros e propiciadora de riquezas em troca do silêncio. A Mboitatá, cobra
de fogo, que se transforma em bola de fogo esconjurada que persegue o campeiro pode
115
ser entendida como uma explicação da origem ou da convergência da Mãe do Ouro.
Baseado nos escritos do padre Teschauer sobre as crenças missioneiras, Simões Lopes
Neto criou” as suas lendas, redimensionando, de certa forma, o significado da
personagem da Mãe do Ouro, embora em sua essência, a Mãe do Ouro esteja associada
às furnas encantadas e aos fogos-fátuos. A literatura sobre a Mãe do Ouro que perdurou,
através da oralidade, por gerações, ainda povoa o imaginário coletivo gaúcho. As lendas
e histórias referentes ao ouro missioneiro levantadas, pela primeira vez, no século XVII,
chegaram ao nosso século eternizadas como temas literários. A riqueza dessa tradição é
uma fonte de inspiração que suscitou a criação de obras literárias como A Salamanca do
Jarau, que, ainda na contemporaneidade, garantem a originalidade do veio poético
iniciado com os poetas e ficcionistas da geração do Partenon Literário.
A crença no sobrenatural e a explicação não-racional de um fenômeno
incompreensível no imediato, conforme estudos de Sylvie Dion (1999), continuam
gerando lendas na sociedade contemporânea. Nos nossos dias, dificilmente
encontraremos as entidades da noite como os diabos, os lobisomens, os duendes e as
mães do ouro que assombravam nossos ancestrais, mas outras crenças mais atuais.
Assim como os agressores da noite mudaram de rosto, os lugares geradores do medo
também mudaram, embora o medo permaneça latente: as jovens, por exemplo, não
encontram mais o “belo diabo dançarino” (DION; 1999: p. 238) nas festas da
comunidade, mas encontram estupradores que as ameaçam com uma faca na esquina de
uma rua ou são encontradas assassinadas, misteriosamente, em terrenos baldios.
As crenças da Mãe do Ouro foram substituídas por outras mais atuais, por exemplo,
identificando a Mãe do Ouro com UFOs e seus periféricos”. Esses objetos voadores
que surgem na forma de bolas de fogo ou luzes misteriosas sempre à noite, dançando no
céu e desaparecendo misteriosamente, causam medo pelo fato de desconhecer-se,
cientificamente, a natureza e a procedência deste “objeto”. Como afirma Jean Du Berger
(apud DION; 1999: p. 240) a lenda vive somente na crença e pela crença da qual ela é
o signo singularmente eficaz; não sendo mais objeto de crença (a narrativa) será
recuperada pela função lúdica”, ou seja, os relatos dos medos, anseios e angústias de
uma comunidade nascem e, através das gerações, morrem e/ou transformam-se. Da
mesma forma, as personagens sobrenaturais que povoam tais relatos, deixam de
ameaçar os membros dessa comunidade para ganharem vida nos contos de fadas do
mundo infantil.
116
7 – Referências
ALMEIDA, Renato. Cadernos de folclore 3: Folclore. Rio de Janeiro: Evoluarte
Geradora Promocional/MEC, 1976.
AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Instituto Progresso Editorial,
1948.
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2003.
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. Literatura e crítica na imprensa do Rio Grande do
Sul: 1868-1880. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes,
1982.
_____. Literatura sul-rio-grandense: ensaios. Rio Grande: FURG, 2000.
BERGERON, Bertrand. Au royaume de la légende. Chicoutimi: JCL, 1988.
BERTUSSI, Lisana. Literatura gauchesca: do cancioneiro popular à modernidade.
Caxias do Sul: EDUCS, 1997.
BOFF, Leonardo. O casamento entre o u e a terra: contos dos povos indígenas do
Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.
CARNEIRO, Souza. Mitos africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Nacional, 1937.
CASCUDO, Luis da mara. Antologia do folclore brasileiro. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1944.
_____. Dicionário do folclore brasileiro. Brasília: INL/MEC, 1972.
_____. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1978.
_____. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1986.
_____. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002.
CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: período colonial. Porto Alegre:
Globo, 1970.
_____. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971.
CÉSAR, Getúlio. Crendices: suas origens e classificação. Rio de Janeiro: MEC, 1975.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1991.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.
117
CORSO, Mário. Monstruário: inventário de entidades imaginárias e de mitos
brasileiros. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2004.
DION, Sylvie. Transgressões e crenças populares: o lendário do Quebec. IN:
BÉLANGER, Alain; HANCIAU, Núbia; DION, Sylvie (orgs.). A América Francesa:
introdução à cultura quebequense. Rio Grande: FURG, 1999, p. 225-240.
_____. Diables, loups-garous et dames blanches: migration, adaptation et survivance de
quelques figures légendaires au Québec et au Rio Grande do Sul. VII Congresso
Internacional Abralic. Belo Horizonte, 2002.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São
Paulo: Ática, 2002.
DU BERGER. Jean. Lieux de pouvoir et figures traditionnelles au Québec. IN:
TURGEON, Laurier. Les productions symboliques du pouvoir XVIe-XXe siècle.
Québec: CÉLAT; Septentrion, 1990, p. 139-162.
_____. Tradição e constituição de uma memória coletiva. IN: BÉLANGER, Alain;
HANCIAU, Núbia; DION, Sylvie (orgs.). A América Francesa: introdução à cultura
quebequense. Rio Grande: FURG, 1999, p. 191-220.
EVERAERT-DESMEDT, Nicole. Sémiotique du récit. Bruxelles: De Boeck-Wesmael,
1988.
FAGUNDES, Antonio Augusto. Mitos e lendas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Martins Livreiro, 2003.
FARIAS, Vilson Francisco de. Dos Açores ao Brasil meridional: uma viagem no
tempo: 500 anos, litoral catarinense: um livro para o ensino fundamental. Florianópolis:
Editora do Autor, 2000.
FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, F. Marques (orgs.).
Dicionário brasileiro da língua portuguesa. Publicação em forma de fascículos
encartados nas edições das quartas-feiras de Zero Hora, s/d.
FIORIN, José Luiz. Teoria dos signos. In: _____ (org.). Introdução à lingüística. São
Paulo: Contexto, 2002.
GALANTE, Eloá Ribeiro. O percurso do Barba-Azul: do conto popular a Ângela
Carter. 2004. 103f. Dissertação (Mestrado em História da Literatura) - Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2004.
GARCEZ, Lucília. Mãe do ouro. São Paulo: Scipione, 2005.
GUIMARÃES, Ruth. Lendas e fábulas do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1972.
118
HAASE FILHO, Pedro (org.). Lendas gaúchas. 5 volumes. Porto Alegre: Zero Hora,
2000.
JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: União de
Seguros Gerais, 1979.
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1978.
LAYTANO, Dante de. Folclore do Rio Grande do Sul: levantamento dos costumes e
tradições gaúchas. Caxias do Sul: EDUCS, 1987.
LE BON, Dr. Gustave. As opiniões e as crenças. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, s/d.
LESSA, Barbosa. Estórias e lendas do Rio Grande do Sul. São Paulo: Literart, 1960.
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos e Lendas do sul. Rio de Janeiro:
Globo, 1984.
_____. Lendas do sul. São Paulo: Globo, 1996.
MAROBIN, Luiz. A literatura no Rio Grande do Sul: aspectos temáticos e estéticos.
Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1985.
MARQUES, Lílian Argentina B.; RIBEIRO, Paula Simon; SANCHOTENE, Rogério
Fossari; CAMPOS, Sonia Siqueira. Rio Grande do Sul: aspectos do folclore. Porto
Alegre: Martins Livreiro Editor, 1992.
MEYER, Augusto. Prosa dos pagos. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1943.
_____. Guia do folclore gaúcho. Rio de Janeiro: Presença/INL, IEL, 1975.
MIRANDA, Veiga. Mau-olhado. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925.
MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: EST/ICP, 1982.
_____ (org.). Narradores do Partenon Literário. Porto Alegre: IEL, 2002.
MOZZANI, Éloise. Le livre des superstitions: mythes, croyances et légendes. Paris:
Éditions Robert Laffont, 1995.
PELLEGRINI FILHO, Américo (org.). Antologia de folclore brasileiro. São Paulo:
EDART, 1982.
PIRES, Cornélio. Conversas ao pé do fogo. São Paulo: Monteiro Lobato, 1924.
POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Porto
Alegre: Movimento/IEL, 1974.
RIBEIRO, Nitheroy. Chasques e lendas gaúchas. Canoas: Editora La Salle, 1966.
RODRIGUES, Alfredo Ferreira. Almanaque literário e estatístico do Rio Grande do
Sul. Pelotas: Livraria Americana, 1891.
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
119
SANTOS, Theobaldo Miranda. Lendas e mitos do Brasil. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1955.
VAN GENNEP, Arnold. La formation des légendes. Paris: E. Flammarion éditeur,
1920.
WEITZEL, Antonio Henrique. Folclore literário e lingüístico. Minas Gerais: UFJF,
1995.
ZILBERMAN, Regina; SILVEIRA, Carmem Consuelo; BAUMGARTEN, Carlos
Alexandre. O Partenon Literário: poesia e prosa – antologia. Porto Alegre: Escola
Superior de Teologia São Lourenço de Brindes/Instituto Cultural Português, 1980.
ZILBERMAN, Regina. Literatura gaúcha: temas e figuras da ficção e da poesia do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1985.
_____. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
SITES DA INTERNET
1) Lendas e mitos da Mãe do Ouro
, acessados em junho de 2005.
www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/3contos/mae_ouro.html
www.ccerqueira.hpg.ig.com.br/Lenda_a_mae_de_ouro.htm
www.citybrazil.com.br/sp/campojordao/folclore.htm
www.asminasgerais.com.br/rio_doce/UniVlerCidades/historia/lendas/area.htm
www.ilhabela.com/Lendas.asp
www.tomdopantanal.org.br/o_pantanal/cultura/mitos_lendas.asp
www.guaraparivirtual.com.br/lendas.asp
http://jangadabrasil.com.br/dezembro/a141200b.htm
www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/3contos/entesul.html
2) Lendas e mitos de Minas Gerais
, desenvolvido por Antonio de Paiva Moura,
acessado em julho de 2006.
www.mineiros-uai.com.br
3) Lendas gaúchas lendas indígenas e ciclo dos tesouros
, desenvolvido por Rosane
Volpatto, acessado em julho de 2006.
www.rosanevolpatto.trd.br/maedoouro.htm.
120
4) Os UFOs e seus periféricos, desenvolvido por Pepe Chaves, acessado em julho de
2006,
www.viafanzine.jor.br/perifericos.htm
5) Artigo “O caipira e a viola brasileira”
, de Ivan Vilela, publicado em Sonoridades
luso-afro-brasileiras, acessado em julho de 2006.
www.ivanvilela.com.br/sobre/artigo_caipira.pdf
6) Geografia brasileira
, acessado em fevereiro de 2006.
http://pt.wikipedia.org
121
ANEXO 1
COTEJO ENTRE AS VARIANTES DE VEIGA MIRANDA E ALCEU MAYNARD
ARAÚJO.
As versões literárias da lenda A Mãe do Ouro de Veiga Miranda (VM) e de Alceu
Maynard Araújo (AMA) apresentam o mesmo tema, mas também revelam algumas
diferenças. A primeira semelhança é em relação ao fato da Mãe do Ouro morar numa
gruta de um rio, porém na versão de VM trata-se do rio Pardo; já na versão de AMA, do
rio das Garças.
Outro aspecto comum é o fato da Mãe do Ouro sair de sua gruta e atravessar os ares
com um longo cortejo de luzes, mas diferenças quanto ao período em que ocorriam
essas saídas. Na versão de AMA a Mãe do Ouro saía da gruta no lusco-fusco da tarde,
quando os primeiros vaga-lumes saem zanzando no torpor da tarde que se esvai, pois
não gostava da luz do sol; enquanto na versão de VM, ela não saía com muita
freqüência, mas quando o fazia era pelas tardes. A versão de AMA ainda acrescenta que
a e do Ouro vive no meio da pedraria preciosa, como brilhantes, ametistas, rubis,
berilos, turquesas e safiras.
Ambas as versões mostram que da cabeleira da Mãe do Ouro caíam luzes que se
apagavam e viravam pedras, mas diferenças quanto às luzes. Na versão de AMA, da
cabeleira luzente como as estrelas caíam pingos de luz que, quando tocavam a terra,
transformavam-se em pedras preciosas da cor dessa luz; já na versão de VM, da
cabeleira caíam estrelas que se apagavam e viravam pedras. A mulher que visse
desprender-se uma dessas luzes e fizesse um pedido, antes dela se apagar, seria
atendida, mas ficaria pertencendo para sempre à Mãe do Ouro.
Nas duas narrativas a mulher que teve seu pedido atendido sairia do seu corpo,
enquanto dormia, deixaria a pele na cama e apareceria no palácio da Mãe do Ouro, onde
iria participar de festas maravilhosas e delícias permanentes. Na versão de AMA isso
aconteceria nas noites de lua cheia; já na versão de VM, em todas as noites. Em ambas
as versões as mulheres assumiam formas diferentes das convencionais, ao penetrarem
na gruta, mas não podiam falar umas com as outras nem se tocar, apenas podiam ver-se.
Na versão de AMA elas tinham seu corpo coberto por um traje vaporoso, magnífico e se
desobedecessem às regras, virariam carvão. Na versão de VM, as mulheres mais lindas,
casadas e donzelas, compareciam envoltas em roupagens riquíssimas e transparentes,
122
com os cabelos transformados em algas luminosas e com as pernas justapondo-se,
confundindo-se, alongando-se em forma de caudas de peixe.
Outro aspecto comum é o fato de as mulheres serem amadas pelos gênios das águas.
A versão de VM apresenta os gênios encantados do rio: príncipes antigos, mortos nas
grandes guerras, de uma formosura de estátuas, que se recolhiam à noite no fundo das
águas e de manhã partiam, diluídos nos nevoeiros. Na versão de AMA não
especificação dos gênios das águas que amariam essas mulheres, mas acrescenta um
outro dado: elas saem da gruta em forma de nevoeiro de nuvens brancas, quando o galo
cantar pela primeira vez. Então, elas voltam para suas casas, retornam a sua pele e a sua
vida.
COTEJO ENTRE AS VARIANTES DE RUTH GUIMARÃES, LUIS DA CÂMARA
CASCUDO E THEOBALDO MIRANDA SANTOS .
A lenda A Mãe do Ouro constitui o corpus desta pesquisa. As versões literárias
escritas por Ruth Guimarães (RG), Theobaldo Miranda Santos (TMS) e Luis da Câmara
Cascudo (LCC) apresentam o mesmo tema, mas revelam algumas diferenças na
estrutura.
O primeiro ponto em comum é o fato da cidade em que ocorre o episódio ser
chamada Rosário. Nessa cidade morava um dos personagens da narrativa, um senhor
rico, que se ocupava da mineração de ouro e era dono de escravos, entre eles um
velho chamado de Pai Antônio. A primeira diferença é em relação à localização da
cidade: as versões de RG e LCC a situam a montante
44
do rio Cuiabá, enquanto a versão
de TMS a situa às margens do rio Cuiabá. A versão de LCC ainda especifica que o
senhor morava no lugar em que agora se encontra uma capela.
O segundo ponto em comum nas narrativas é que os escravos eram obrigados a
trazer diariamente uma determinada quantidade de ouro. O escravo Pai Antônio estava
com dificuldades de encontrar ouro, por isso andava triste e cabisbaixo, temendo o
castigo. A diferença está em relação ao tempo que o escravo ficou sem encontrar ouro:
as versões de LCC e TMS especificam que o escravo passou uma semana inteira sem
44
Locução adverbial que significa para o lado da nascente de um rio. Cf. Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa.
123
encontrar ouro, enquanto a versão RG diz apenas que “não lhe saía na bateia uma
pepita de ouro” (p. 47) e, mais dia menos dia, sofreria o castigo.
Apenas na versão de RG o escravo Pai Antônio tem uma reação em relação ao fato
de o encontrar ouro. Certo dia, não foi trabalhar e saiu andando pelo mato onde se
sentou, cobriu o rosto com as mãos e chorou. Quando descobriu o rosto, viu diante de si
uma formosa mulher. Na versão de LCC, o escravo viu, subitamente, uma mulher
sentada; enquanto na versão de TMS, o escravo viu a sua frente uma linda mulher.
Quanto à caracterização da Mãe do Ouro, embora os aspectos físicos enfatizem a
influência européia, também diferenças. Na versão de RG, é branca como a neve e
possui uma linda cabeleira cor de fogo, enquanto na de LCC ela é branca como a neve e
possui uma cabeleira loura. na versão de TMS, ela apresenta cabelos louros. Nas
narrativas de RG e TMS a Mãe do Ouro perguntou ao escravo Pai Antônio o motivo de
sua tristeza e ele contou sua desventura. Na de LCC esse dado foi omitido.
Também é um ponto em comum o fato da Mãe do Ouro pediu alguns objetos. Na
versão de LCC ela pediu uma fita azul, uma fita vermelha, uma fita amarela, um pente
e um espelho. Na versão de TMS ela pediu os mesmos objetos e disse que ajudaria o
escravo; enquanto na versão de RG ela disse ao escravo “não chore mais” (p. 48) e
pediu para comprar as fitas da mesma cor e um pente. Na versão de RG o escravo saiu
do mato e foi a uma loja na qual comprou os objetos. Depois, retornou ao mato para
encontrar a Mãe do Ouro e lhe entregou os objetos; enquanto nas versões de LCC e
TMS o escravo apenas arranjou os objetos e entregou-os à Mãe do Ouro.
Quanto à indicação do lugar em que havia muito ouro também diferenças. As
versões de LCC e TMS apenas especificam que a Mãe do Ouro indicou o lugar; já na
versão de RG um maior detalhamento das ações: a mulher foi diante do escravo e
parou num lugar do rio, ali ela foi esmaecendo aque sumiu completamente, porém a
última coisa que o escravo viu foram os cabelos onde ela amarrara as fitas. Uma voz de
dentro da água disse “não conte a ninguém o que aconteceu” (p. 48). Nas versões de
LCC e TMS a Mãe do Ouro proibiu Pai Antônio de revelar o lugar em que achou o
ouro.
Outro ponto em comum é o fato de Pai Antônio ter trabalhado e conseguido recolher
uma grande quantidade do precioso metal que foi entregar ao seu patrão. A versão de
TMS especifica que, com a entrega do ouro, o escravo esperava livrar-se do castigo.
Nas versões de RG e TMS o mineiro queria saber em que lugar o escravo havia
encontrado o ouro. Na versão de TMS o escravo recusou-se a dizer o lugar em que
124
havia achado o ouro; enquanto na versão de RG o escravo dissimulou a resposta
dizendo que havia encontrado o ouro lá no rio mesmo, mas que não se lembrava em que
altura. Na versão de LCC estes dois últimos dados foram omitidos.
O escravo Pai Antônio foi castigado por não ter revelado ao seu senhor o local onde
encontrou o ouro; esse fato é outro ponto em comum nas versões. Mas diferenças
quanto ao tempo de duração do castigo: na versão de TMS Pai Antônio foi chicoteado e,
diariamente, recebia o mesmo castigo; na versão de LCC o escravo foi maltratado e
açoitado todos os dias; enquanto na versão de RG o escravo foi amarrado no tronco e
maltratado, sem especificar por quanto tempo.
Também é um ponto em comum o fato da Mãe do Ouro ter permitido que Pai
Antônio revelasse o segredo, o lugar em que havia encontrado a grande quantidade de
ouro, porém diferenças na maneira em que se deu esta permissão. Não suportando
mais tanto sofrimento, Pai Antônio implorou à e do Ouro que deixasse contar o
segredo, assim ocorre na versão de TMS; na versão de LCC desesperado, o escravo foi
novamente à procura dela; já na versão de RG, quando soltaram o escravo, este correu
para o mato, sentou-se no chão, chamou pela moça e disse “se a gente não leva ouro,
apanha. Levei o ouro e quase me mataram de pancada. Agora, o patrão quer que eu
conte o lugar onde o ouro está” (p. 49).
Nas versões de LCC e TMS, respectivamente, a Mãe do Ouro, além de permitir a
revelação do segredo, ainda manda um recado ao dono: que escavasse com todos seus
homens, pois haveria de encontrar um grande pedaço de ouro e que levasse 22 escravos
para cavar a mina ao fundo. A versão de RG informa que o escravo indicou o lugar
para o qual o patrão se dirigiu com 22 escravos e cavaram muito; já a versão de LCC
apenas informa que o mineiro trabalhou com 22 escravos. As versões de RG, LCC e
TMS ainda explicam que o era possível ver a base do grande pedaço de ouro
encontrado porque se enfiava para baixo na terra, como um tronco de árvore.
Também é um ponto em comum o fato da Mãe do Ouro avisar Pai Antônio para sair
da mina, mas o recado foi dado de forma diferente. Na versão de RG o escravo, no
terceiro dia, foi à floresta porque vira entre as abertas do mato o vulto da Mãe do Ouro
que o chamava para dizer-lhe “sai de amanhã, antes do meio-dia” (p. 49). Apenas
nessa versão a escavação durou quatro dias. Já na versão de LCC a Mãe do Ouro
mandou que Pai Antônio, no dia seguinte ao início das escavações, pouco antes do
almoço, pedisse licença para retirar-se um pouco antes do meio-dia; enquanto na versão
125
de TMS, no dia seguinte, ela disse ao escravo que, depois do almoço, desse uma
desculpa e se afastasse da mina.
O fato de o escravo Pai Antônio ter obedecido às ordens da Mãe do Ouro também é
um aspecto em comum, porém diferenças na forma como essas ordens foram
obedecidas. A versão de TMS apenas diz que o escravo cumpriu às ordens da Mãe do
Ouro; as versões de LCC e RG apresentam as desculpas arranjadas pelo escravo. Na
versão de RG, no quarto dia, quando o sol ia alto, Pai Antônio pediu para sair um
pouco, alegando que estava doente; na versão de LCC o escravo, pouco antes do meio-
dia, disse estar com dor de barriga e afastou-se da mina. Apenas na versão de RG
aparece a informação de que o patrão deixou Pai Antônio sair. As versões de TMS e
LCC ainda informam que o mineiro e os outros escravos continuaram cavando para
retirar ouro, enquanto Pai Antônio se afastava depressa da mina.
Outro aspecto em comum é o fato de ter havido um desabamento de terras, fechando
o buraco enorme aberto para retirar o ouro, mas esse desabamento é apresentado de
forma diferenciada. Na versão de RG “na hora em que a sombra ficou bem em volta dos
pés no chão” (p. 50), um barulho estrondou na floresta e as paredes do buraco
desabaram. O mineiro e os demais escravos foram soterrados e morreram. Na versão de
TMS de repente tudo ruiu, os homens rolaram para dentro da mina e foram soterrados
por um desabamento de terras; na versão de LCC dentro de pouco tudo ruiu, o patrão
e seus homens foram soterrados e nunca mais foram vistos. A versão de TMS ainda
informa que o mineiro morreu e que Pai Antônio salvou-se, graças à proteção da Mãe
do Ouro, e viveu, tranqüilo e feliz, mais de cem anos. A versão de LCC também
informa que Pai Antônio viveu muito tempo e chegou a mais de cem anos.
126
ANEXO 2
A Mãe do Ouro, de Alberto Coelho da Cunha
De repente, ao longe um estampido como uma explosão terráquea reboou, e o seu
eco esvaiu-se na distância. Na extrema do horizonte via-se, na atmosfera comovida,
uma espiral vaporosa como uma tira de neblina rarefeita ao sol, aos ares ascender.
E a natureza de novo recaiu na calma.
Anita com voz trêmula interrogou:
- O que foi isto, mamãe?
- A mãe do ouro que mudou-se.
- A mãe do ouro! Que mudou-se?!...
- Sim, ela, que com suas riquezas mudou-se de lugar. A terra abre-se para ela sair e
tomar outro sítio mais avantajado...
- Quem é a mãe do ouro?
- Uma mulher muito formosa que é dona de todos os metais que debaixo da terra,
dentro das pedras e dos arroios. É ela quem faz o ouro, quem fabrica a prata...
- Conte-me, então, a história dela, mamãe.
- Pois ouve, minha filha.
“Já faz tanto tempo que isto sucedeu!... O teu avô, Silvério Nunes, que era paulista,
quis se estabelecer no continente. Ele tinha tropeado muito para Sorocaba, e com tanto
trabalho chegou a juntar porção de meias-doblas.
Veio dar nos palmares. Havia um ilhéu dono de uma porção de datas de campo
que tinha comprado, tudo, não sei se por duas doblas ou três... Teu amontava o seu
cavalo de estimação, que era um sebruno guapo que nem o mais guapo...
O ilhéu que o tinha em todas as suas tropilhas pingo mais lindo pôs-se a cobiçar o
sebruno de teu avô. Ele estava coberto de pratarias. Fez ao teu aoferta para comprá-
lo: ele não aceitou.
Mas o homem estava renitente.
- Pois patrício, não lhe vendo o meu sebruno, mas troco-lhe disse meu pai, vendo
que ele queria ser dono do cavalo. Troco por essa campanha que se estende desde a
Coxilha do Guaraxaim até o Arroio das Capivaras.
- Pois está feito o negócio – retrucou-lhe o homem.
E teu avô passou a ser estancieiro.
Havia agregada à estância uma china com uma porção de filhos e uma filha quase
mocinha. A china era uma mulher trabalhadeira que não podia estar debalde. Por trás
dos arranchamentos corria uma sanga por cima de pedras entre uns barrancos cobertos
de matinhos de pitangueiras.
No terreno entre a sanga e os arranchamentos fez-se um cercado de faxina trançada.
A china trazia-o sempre plantado. Nessa horta toda a hortaliça se encontrava: nada
faltava...
No fim dela havia para a sanga uma descida num lajeado nu e liso; o lajeado descaía
suavemente para o arroio. Aos lados havia porção de pedras, umas deitadas, outras de
pé, e entre elas apareciam reboleiras de urumbebas e mandacurus, e infinita vegetação
rasteira. Os maracujazeiros se enredavam em todo o sentido por cima delas.
À borda da sanga, meio dentro d’água, havia uma pedra quadrada vestida de macio
musgo, e mais à direita, dois renques de rochas perdiam-se no bosque. As trepadeiras
enlaçadas, de um lado a outro estendidas, faziam aí, impenetrável sombra.
Desde certo tempo começou a china a notar grande estrago da noite para o dia na sua
plantação: aqui as alfaces destroçadas, ali o feijão machucado.
127
Coisa singular: nem o feijão era comido, nem a alface tampouco; mas reconheciam-
se as vagens chochas, por lhe terem absorvido o suco; via-se que os talos tenros da
alface haviam sido chupados.
A boa mulher buscou embalde a explicação deste mistério; pôs-se de noite à espreita:
e nunca viu nada de suspeito.
Uma noite... Era numa linda noite de verão. O pau de cachimbo cobria-se de
esplêndidos buquês de flores, e orlava o matinho de alvíssimas ondas amplas e
odoríferas; por sobre o campo arrastava a brisa frouxa, a essência predileta de marimal.
A campina coalhava-se de cintilações; estrelas sem órbitas a roçarem no plaino, dos
vagalumes, como uma praga, as constelações erravam. No verde-mar infinito dos
campos julgar-se-iam ardentias flutuando nas espumas erradias. A filha da china
descuidosa atravessou a horta.
Ao frontear o lajeado olhou para a sanga. Asfixiada de pasmo não deu um passo!...
Uma moça lindíssima, nuazinha estava assentada sobre a pedra. A sua pele
alvíssima, cetinosa, tinha ondeações brilhantes e reflexos dourados: uma nuvem de
cabelos d’ouro lhe desabava sobre o colo; os olhos, esses não tinham cor, porque eram
dois centros de fulgores.
A menina enleada e cheia de susto não atinava como fugir...
Ia a disparar, quando a moça dando pela sua presença lhe dirigiu a palavra, e pediu-
lhe que não fugisse; dissuadiu-a de seus temores com voz convincente, que a menina
ficou fascinada. Então a filha da china falou-lhe com toda a confiança.
Quando separaram-se, a moça lhe pediu de vir visitá-la na noite seguinte, e que lhe
trouxesse um pente de cabelos.
Quando no outro dia anoiteceu já a chininha estava na horta.
A brincar com a água que marulhava ao redor da pedra, estava a moça quando ela
chegou.
Por muito tempo conversaram. A chininha ouvia com volubilidade a moça
descrever-lhe maravilhas de reinos desconhecidos, que existem debaixo da terra:
extasiada ouvia a sua voz de condão irresistível acender-lhe na alma mil desejos de uma
vida diversa.
A lua já ia alta. A chininha fascinada pela irresistível criatura fez pacto com ela e
prometeu acompanhá-la.
A moça de repente levantou-se: eram horas. Abraçou-a e disse-lhe que daí a cinco
dias, às mesmas horas, ela a esperasse nesse lugar. Recomendou-lhe segredo inviolável,
que a ninguém revelasse essas entrevistas, que a ninguém deixasse perceber o que tinha
visto...
À beira da sanga abaixou-se. Aos raios de prata da lua o seu corpo dourava-se de mil
fulgores. Levantou-se trazendo na mão uma concha de marisco parda-furta-cor:
depositou-a nas mãos da chininha admirada:
- Recebe este mimo que dá-te a mãe do ouro.
As duas conchas do marisco entreabriram-se: a chininha deslumbrada viu dentro o
ouro cascatear em ondas.
Nesse momento surdo rumor perpassou, e um estampido se ouviu ao longe; o ar
estremeceu.
A mãe do ouro tinha desaparecido.
Quando ela deu acordo de si estava sozinha.
Deitou a correr depressa para a casa.
No caminho as conchas entreabriram-se: o ouro espumava em ondas. A menina
deslumbrada as fitava louca de prazer; no auge da alegria o pôde conter-se; a correr
gritava:
128
- Mamãe, venha ver, venha ver que coisa linda! Venha ver o presente que deu-me a
mãe do ouro.
Quando pronunciou estas palavras reveladoras, como por encanto a dobradiça da
concha partiu-se, e uma metade caiu ao chão; outra ficou-lhe na mão: um bando de
cobrinhas rolou. Dera-se a mudança do ouro em víboras.
Uma cobrinha ficou-lhe enroscada no braço. Ela sacudiu-o com doido frenesi. A
cobrinha desvencilhando-se, num prisco escorregou-lhe pela manga ao seio: mordeu-a
no peito.
Um gritinho de dor e agonia foi repercutir no ouvido materno.
A mãe veio encontrar a filha caída; o rosto ficara-lhe lívido esverdeado. Estava
morta.”
129
Lenda da Mãe do Ouro, de Nitheroy Ribeiro.
Veio lá de Moçambique,
não era filha
de escrava,
seu pai até descendia
de guerreiro
que chefiava
muitas tribos reunidas
que a mata longe escondia!
Trazida
com outros tantos,
no barco escravo
atirada,
os dias de sofrimento,
de fome negra
varada,
se perdiam na escuridão
entre gritos e lamentos!
Leva
de escravos, vendida
para os Senhores
do sul.
Hylaria chamada Ylá
castiça de sangue
azul,
sofreu mais do que ninguém.
Moçambique longe está.
Na senzala
em altas horas
enquanto o Senhor
dormia.
à voz de Hylaria-Ylá
todo o escravo
obedecia,
como se fosse feitiço
Que a mata longe trazia!
O Senhor
guardava o ouro
na panela
de tripé,
no laranjal, escondia
enterrando
junto ao pé.
U’a noite quando voltava,
Deu com Ylá que fugia!
130
Para Hylaria
descendente,
Ylá em alma
aparecia
em altas horas da noite,
e na panela
trazia
o ouro par o Jarau.
No corpo marcas do açoite!...
Veio lá
de Moçambique,
não era filha
de escrava,
seu pai até descendia
de guerreiro
que chefiava
muitas tribos reunidas,
que a mata longe escondia!
131
A Mãe do Ouro, de Veiga Miranda.
em baixo, muito longe, onde as águas varavam por um subterrâneo, morava a
Mãe do Ouro. Às vezes saía, pelas tardes, com um longo cortejo de luzes de todas as
cores, atravessando pelo ar, serenamente, como se fosse um desses papagaios de papel,
que as crianças soltam ao vento em Agosto. Da sua cabeleira de estrelas iam caindo
todas, uma a uma, apagando-se e virando pedras. A mulher que visse desprender-se uma
dessas luzes e fizesse um pedido, antes de ela apagar-se, seria servida pela Mãe do
Ouro. Mas ficar-lhe-ia pertencendo para sempre: todas as noites, enquanto dormisse, o
seu corpo sairia todinho da pele, sem ninguém perceber, sem a própria pessoa ao dia
seguinte lembrar-se, e ia aparecer no palácio da Mãe do Ouro. Ali se realizavam festas
maravilhosas, as mulheres mais lindas, casadas e donzelas, compareciam, envoltas em
roupagens riquíssimas e transparentes, vendo-se umas às outras, mas sem se poderem
falar, sem se poderem tocar, com os cabelos transformados em algas luminosas, com as
pernas justapondo-se, confundindo-se, alongando-se em forma de caudas de peixe.
Iam ser amadas pelos gênios encantados do rio, príncipes antigos, mortos nas grandes
guerras, de uma formosura de estátuas, que se recolhiam à noite ao fundo das águas e de
manhã partiam diluídos nos nevoeiros, longas figuras, esguias, cor de cinza, dançando a
ronda das nuvens.
Entrelaçavam-se demoradamente, cada um a cada uma, e as horas marcavam delícias
orgíacas, valsas infinitas cantaroladas pelos seixos, pelas areias luminosas, ao coro dos
rochedos de uma e de outra margem, num ritmo dolente e suave. Os salões do palácio
eram grutas imensas, sucessivas, cada qual com a luz de uma cor, esta azulada, aquela
verde, aquela outra rósea ou violeta... As águas formavam coxins, tapeçarias, leitos
macios, condensando-se, colorindo-se, erguendo-se em docéis, repregando-se em
planejamentos amoráveis e discretos. E pelos recantos, os pares se dissimulavam,
zumbia a colméia dos beijos, soluçavam as carícias nupciais, ardentes, de intermináveis
desejos.
Quando uma rapariga se erguia do leito fatigada, de olheiras fundas, ela ouvira dizer
muitas vezes:
- Coitada!... Passou de certo a noite no palácio da Mãe do Ouro... Sabe Deus a troco
de que favores andaria essa tontinha por lá...
132
A Mãe de Ouro, de Ruth Guimarães.
Havia em Rosário, a montante do Rio Cuiabá, um rico senhor de escravos, de modos
rudes e coração cruel. Ocupava-se na mineração de ouro e seus escravos diariamente
tinham de lhe trazer alguma quantidade do precioso metal, sem o que eram levados para
o tronco e vergastados. Tinha ele um escravo velho a quem chamavam Pai Antônio.
Andava o negro num banzo que dava dó, cabisbaixo, resmungando, pois não lhe saía na
bateia uma pepita de ouro, e mais dia menos dia, iria ele para o castigo. Certo dia,
em vez de trabalhar, deu-lhe tamanho desespero, que saiu andando a toa pelo mato.
Sentou-se no chão, cobriu asos e começou a chorar. Chorava e chorava, sem saber o
que fazer. Quando descobriu o rosto, viu diante dele, branca como a neve, e com uma
linda cabeleira cor de fogo, uma formosa mulher.
- Por que está assim triste, Pai Antônio?
Sem se admirar, o negro contou-lhe a sua desventura. E ela:
- Não chore mais. Vá comprar-me uma fita azul, uma fita vermelha, uma fita amarela
e um espelho.
- Sim, sinhazinha.
Saiu o preto do mato às carreiras, foi à loja, comprou o espelho e as fitas mais
bonitas que achou, e voltou a encontrar a mulher dos cabelos de fogo. Então ela foi
diante dele, parou num lugar do rio, e ali foi esmaecendo até que sumiu. A última coisa
que ele viu foram os cabelos de fogo, onde ela amarrara as fitas. Uma voz disse, de lá da
água:
- Não conte a ninguém o que aconteceu.
Pai Antônio correu, tomou a bateia e começou a trabalhar. Cada vez que peneirava o
cascalho, encontrava muito ouro. contente da vida, foi levar o achado ao patrão.
Em vez de se satisfazer, o malvado queria que o negro contasse onde tinha achado o
ouro.
- Lá dentro do rio mesmo, sinhozinho.
- Mas em que altura?
- Não me lembro mais.
Foi amarrado no tronco e maltratado. Assim que o soltaram, correu ao mato, sentou-
se no chão, no mesmo lugar onde estivera e chamou a Mãe de Ouro.
- Se a gente não leva ouro, apanha. Levei o ouro e quase me mataram de pancada.
Agora, o patrão quer que eu conte o lugar onde o ouro está.
- Pode contar – disse a mulher.
Pai Antônio indicou ao patrão o lugar. Com mais vinte e dois escravos, ele foi para
lá. Cavaram e cavaram. tinham feito um buracão quando deram com um grande
pedaço de ouro. Por mais que cavassem não lhe viam o fim. Ele se enfiava para baixo
na terra, como um tronco de árvore. No segundo dia, foi a mesma coisa. Cavaram
durante horas, todos os homens, e aquele ouro sem fim se afundando para baixo sempre,
sem que nunca se pudesse encontrar-lhe a base. No terceiro dia, o negro Antônio foi à
floresta, pois viu, por entre as abertas do mato o vulto da Mãe de Ouro, com seu cabelo
reluzente, e pareceu-lhe que ela o chamava. Mal chegou junto dela, ouviu que ela dizia:
- Saia de lá amanhã, antes do meio-dia.
No terceiro dia, o patrão estava como um possesso. O escravo que parava um
instante, para cuspir nas mãos, levava chicotadas pelas costas.
- Vamos, – gritava ele – vamos depressa com isso. Vamos depressa.
Parecia tão maligno, o espantoso, que os escravos curvados sentiam um medo
atroz. Quando o sol ia alto, Pai Antônio pediu para sair um pouco.
133
- Estou doente, patrão.
- Vá, mas venha já.
Pai Antônio se afastou depressa. O sol subiu no u. Na hora em que a sombra ficou
bem em volta dos pés no chão, um barulho estrondou na floresta, desabaram as paredes
do buraco, o patrão e os escravos foram soterrados, e morreram.
134
A Mãe do Ouro, de Lucília Garcez.
Tudo aconteceu muitos anos, no coração do Brasil. Naquela noite, Januário não
queria dormir. Nem conseguiria. Arrastou-se até a porta aberta da senzala e alcançou a
brisa úmida da montanha.
Respirou fundo. No brilho da lua, via seus companheiros entregues ao sono, exaustos
do trabalho no garimpo. Sabia que esperavam muito dele, tinham confiança nas suas
palavras e na sua liderança. Via também seu filho dormindo na esteira. Ao lado da
criança adormecida, Isolina murmurava um acalanto.
O barulho das botas do feitor nas lajes de pedra cortava a suavidade da noite, e o
ranger das correntes dos negros presos assombrava a neblina, abafando a música da
fonte. Januário tinha bom comportamento e não dormia acorrentado. Mas, mesmo
assim, vida de escravo não era vida de gente. Havia sempre a ameaça da palmatória, dos
ferros quentes na pele, das chicotadas, da privação da comida, do suplício.
Januário calculou bem a distância dos passos do feitor. Agora não adiantava
fraquejar. Como todas as noites, ele vai entrar no paiol e ficar entretido uns momentos,
escolhendo a palha, depois vai preparar cuidadosamente o fumo com o canivete afiado.
É agora ou nunca.
Tocou levemente o braço de Isolina. Era o sinal:
- Vamos partir agora – disse suavemente.
Ela abraçou a criança adormecida e deslizou pelos lados do pátio, evitando a luz.
Mergulhou mata adentro como uma flecha certeira. Januário ia à frente, velozmente,
abrindo caminho. Correram sem parar até o pequeno rio que passava no vale próximo à
senzala.
Ali, onde Isolina, dia após dia, lavava a roupa do senhor de escravos, uma frágil
canoa os esperava escondida sob folhas e galhos. Os amigos facilitaram a fuga porque
sabiam que Januário garantiria um futuro melhor para todos.
Isolina acomodou o filho no chão da canoa, e os dois atravessaram a noite remando
em silêncio, unidos na mesma esperança, comungando o mesmo sonho. O rio escuro era
a liberdade. O rio cheio de mistérios, sombras, ruídos, assombrações era a estrada da
felicidade.
A essas horas o feitor descobrira a fuga, mas era tarde. A água não forma rastros.
O rio ajudava com a correnteza suave. Januário procurava afastar os pensamentos
tristes, mas tinha certeza de que alguns de seus amigos seriam duramente castigados
para falarem o que sabiam sobre o sumiço do líder. Seu coração palpitava forte quando
lembrava disso.
No momento em que as pedras começaram a surgir e a anunciar a cachoeira do
despenhadeiro, o dia já amanhecera, e Januário viu que era hora de abandonarem a
canoa. Desceram na margem e deixaram que ela continuasse flutuando sozinha para se
despedaçar na queda vertiginosa.
Prosseguiram caminhando rápido na direção do pôr do sol, cortando a mata até
encontrar sinais de cerrado. Paravam apenas para Isolina alimentar a criança ao peito,
tomar água nas fontes ou comer alguma fruta. Depois de muitos dias de caminhada,
estavam longe do alcance do feitor e de seus cães.
Avistavam, enfim, a fumaça do quilombo. Exaustos, mas felizes, foram recebidos
com festa. Nem todos se conheciam, pois tinham vindo de garimpos e minas diferentes,
de plantações de diversos lugares. Estavam unidos fraternalmente pelos mesmos
sofrimentos e pelo mesmo sonho. Acolhidos como irmãos, descansaram alguns dias e
festejaram o futuro.
135
Entretanto, Januário devia prosseguir. Seu plano era avançar mais para o centro-
oeste, de onde vinham notícias de muito ouro. Pedro tinha informações mais precisas e
estava pronto para acompanhá-lo na direção das novas terras. Deixar Isolina e o filho
temporariamente para trás era o mais difícil. Com o coração estraçalhado, mas
esperançoso, Januário partiu.
- Isolina, você fica com o nosso filho, que eu vou em busca da sorte.
- Januário, que Deus e os orixás te protejam!
O caminho foi difícil. As trilhas estavam encobertas pelo mato e havia muito perigo.
Pedro e Januário se guiavam pelas estrelas, pelo sol, pela lua, pelos rios, pelas
montanhas. Sempre em direção ao poente. Januário tinha o corpo fortalecido pelo
sofrimento e pelo trabalho duro, assim enfrentava os maiores desafios com firmeza.
Sempre que precisavam, os dois amigos iam improvisando armas e instrumentos de
pescaria com bambus e cipós. Caminharam dias e dias, alimentando-se de frutas, raízes,
pequenos animais e peixes.
Enfim, depois de muitos dias, conseguiram chegar à vila dos negros fugidos, perto
do rio Paranã. Descansaram e se alimentaram para recompor as forças despendidas na
viagem. Mandioca, milho, carne... Era uma graça de Deus e dos orixás.
Em volta da fogueira, ouviram noite adentro as histórias dos garimpeiros que
estavam ali havia mais tempo. Venturas, aventuras e desventuras. Também eram negros
maltratados na escravidão. Procuravam a sorte no leito dos rios. Alguns já tinham
encontrado ouro e encorajavam os amigos. Uma parte do produto do garimpo de todo o
grupo era separada para ajudar na libertação dos amigos que ainda viviam no cativeiro.
Havia riqueza para todos, e muitos braços ajudariam a garimpar melhor.
Januário quis logo começar a trabalhar e escolheu seu ponto do rio.
- É aqui que vou trabalhar, nesta curva do rio. Parece que neste ponto tem ouro. Aqui
está a minha sorte!
Foi construindo aos poucos, com a ajuda dos companheiros, sua casinha de taipa.
Embora livre, estava escravo da saudade, e a família não saía do seu pensamento.
Alimentado pelo sonho de encontrar ouro e buscar a mulher e o filho, trabalhou
duramente. Dia após dia, encharcado no rio, sob o sol ou a chuva, com a bateia nas
mãos. Pequenos pedregulhos dourados enchiam seu coração de ânimo e esperança.
Seus amigos mudavam de ponto, desencorajados com os frutos tão pequenos de tanto
esforço. Januário, porém, permanecia no mesmo lugar. Insistente, pressentia sua boa
sorte. Ali as pedras e socavões do rio já eram conhecidos e tinham se tornado seus
amigos e cúmplices. A água morna e os lajedos eram aconchegantes para aquele negro
que até então só conhecera o tronco e as chicotadas do feitor.
Ao anoitecer, depois do serviço, os garimpeiros reuniam-se em volta da fogueira e
contavam histórias de assombração: falavam sobre o Saci, o Negro d’Água, o
Romãozinho, o Caipora, o Lobisomem... A noite era cercada de mistérios, mas o dia era
dedicado ao trabalho.
Numa manhã iluminada pelo sol do planalto central, a terra foi generosa. Januário
encontrou as maiores e mais belas pepitas de ouro. Depois de entregar todos os dias uma
parte para os companheiros, o felizardo passou a guardar, numa pequena caverna por
trás da cachoeira maior, o tesouro que libertaria seus amigos e salvaria sua família da
pobreza e do sofrimento. Ali, onde ninguém suspeitava que houvesse uma reentrância
na pedra, foi acumulando a liberdade, o futuro.
Mas o trabalho era duro, havia muitos insetos, a região era muito insalubre, e ficar o
tempo todo dentro da água prejudicava a saúde. Nem sempre a sorte é duradoura.
Januário encontrara o ouro, estava rico, mas seu corpo enfraquecido não lhe obedecia
136
como antes. Foi tomado por uma febre terçã trazida pelos mosquitos. Era a maleita,
também conhecida como malária.
Os amigos trouxeram ervas, fizeram chás, cuidaram dele. Mas sem sucesso.
Continuava ardendo por dias e noites. Delírio, tremores, calafrios, convulsões, medo,
insegurança. Tentava inutilmente organizar o pensamento e explicar aos amigos onde
guardara o ouro. Mas as palavras não saíam. A desordem das idéias não permitia que
contasse o segredo da cachoeira.
Vendo que estava perto do fim, com as últimas forças de seu coração, Januário
entregou a vida e seu segredo a Deus e aos orixás, pedindo que orientassem o filho e a
mulher a encontrarem o tesouro, e fechou os olhos com a imagem da família na
lembrança.
Desde então, todos os garimpeiros que se aproximam daquele ponto do rio são
atraídos por um brilho intenso que vem das pedras no fundo das águas. Enlouquecem de
ambição, mas, quando sacodem as pedras na bateia, tudo o que fica é cascalho sem
valor. Muitos deles, animados pelos reflexos que vêm das pedras do rio, mergulham em
busca do ouro e não voltam mais. Ficam presos para sempre nas profundezas.
De vez em quando, os garimpeiros acampados ao longo das margens do rio Paranã
são surpreendidos pelo súbito surgimento de um facho de luz que, num movimento
incandescente, conduzido por uma figura fulgurante de mulher, sai da água e inunda o
espaço, multiplicado e milhões de estrelas cintilantes e coloridas. A noite se transforma
em dia. Uma chuva de agulhas de fogo invade o u. Atordoados e amedrontados,
abandonam correndo o garimpo. E gritam:
- A mãe do ouro! A mãe do ouro!
137
A Mãe-do-Ouro, de Souza Carneiro.
Nos princípios do mundo havia uma velha muito velha que até parecia haver a morte
se esquecido dela. Quase não enxergava, nem podia andar. Tremia ao menor movimento
e muito mal se ouviam suas palavras. De perto ninguém a vira jamais nem houve quem
se animasse a ir ao seu encontro ou ao seu pouso num buraco no meio da montanha.
Havia entretanto um casal que o acreditava na voz do povo e sempre dizia à filha:
– Menina, a Velha que ninguém sabe quem é há de ser uma fada.
Um dia chegou a Morte e carregou com os pais da moça. Vendo-se desamparada e
sem pão, tomou o caminho da montanha. A velha foi buscá-la no meio da ladeira e
levou-a para casa.
A gente do lugar achou graça. Tanta beleza e tanta mocidade sepultadas com aquela
mulher que vira nascer o primeiro deus e se tornar a mais feia e velha do mundo.
A moça, porém, tinha-se por feliz. No buraco da montanha tudo era de prata: -
paredes, teto, chão, pilares, tudo como de musgo ou de filigrana, ou antes, como árvores
sem folhas. A abundância e a paz reinavam ali.
À noitinha, quando a moça adormecia, a velha, como um vaga-lume, descia a
montanha e ia aà beira de uma lagoa que os homens diziam assombrada. Suspirava
três vezes. As águas borbulhavam e sorriam. As flores fechavam-se e tornavam-se em
donzelas formosas e rapazinhos alegres. À música das ondas e ao cântico das folhas das
plantinhas, que se dobravam como se o vento as agitasse, os pares dançavam contentes.
Depois que se fartava naquele prazer, a velha “suspirava para dentro” e tudo voltava ao
que era.
A moça ignorava tudo isso e até mesmo o nome da criatura que todos chamavam de
Mãe-do-Mundo. E os dias foram se passando assim.
Numa noite a velha falou, trêmula, a voz arrastada. Quando chegasse a lua cheia, as
duas iriam tomar banho na lagoa. E, quase no mesmo instante, a lua apareceu toda
cheia, iluminando a terra como se fosse o sol.
A moça obedeceu. Supondo a velha sem forças para a jornada, amparou-a pelo
caminho, lembrando-se do que lhe disseram seus pais.
Aos poucos a realidade ia se fazendo. Mãe-do-Mundo ia se rejuvenescendo. Suas
carnes endureciam. De seus olhos saíam longos fachos que descobriam os caminhos que
as copas das árvores sombreavam. As ramas dobravam-se cantando hinos. Tudo era
perfume e alegria.
As duas despiram-se à beira da lagoa. O corpo da velha era um espelho de prata em
que as estrelas brilhavam e a lua refletia em todo seu esplendor. A moça não mostrou
assombro. Aquela mulher lhe merecia tudo. Devia ser mesmo feita do que de melhor
houvesse no mundo.
Mãe-do-Mundo compreendeu o pensamento dela. E logo, das águas, surgiu um
palácio maravilhoso de cristal e pedrarias.
As duas entraram no banho. As águas amareleceram os cabelos da moça. A terra
abriu-se e os recebeu.
Mãe-do-Mundo desapareceu e, com ela, o lago e o palácio.
A moça tornou-se encantada e invisível aos olhos dos que às vezes encontram um ou
outro fio de seus cabelos. Saiu pelo mundo a banhar-se nos rios e nos lagos deixando a
terra engolir os cachos, as penugens e os pedaços de seus cabelos que não cessavam de
nascer e de crescer de repente.
Um dia um caçador viu um corpo de mulher revolver-se na corrente de um rio fundo.
Seu corpo e seus cabelos eram de ouro. A terra de vez em quando se abria e se fechava.
Se isso espantou o homem, também lhe deu coragem. Ia atirar-se à água quando um
138
braço forte o deteve. Era de uma velha horrível, esmolambada, fedorenta. Sua voz,
como se viesse de dentro de um buraco, ecoou: fecharam-se as entranhas da terra,
paralisou-se a corrente do rio, o vento não soprou.
- É a Mãe-do-Ouro.
O caçador, os cabelos em pé, viu o rio secar-se e a moça transformar-se numa
serpente e correu com medo dela, mundo a fora, encontrando por toda parte as pontas
dos cabelos louros da moça que a Mãe-do-Mundo transformou em serpente e deu o
poder morar até acima das nuvens.
139
CURRICULUM VITAE
140
1) DADOS DE IDENTIFICAÇÃO:
Nome: Sônia Nickel André
Filiação: Haraldo Nickel e Similda Klumb Nickel
Naturalidade: Brasileira, nascida em São Lourenço do Sul/RS
Documentação: RG nº 2067602471, expedida pela SSP
CPF nº 952621800 – 00
TÍTULO ELEITORAL nº 070054840434
Endereço: Rua Padre Vieira, 571 – 96212-410 – Rio Grande/RS
2) FORMAÇÃO ACADÊMICA:
Graduada e licenciada em Letras e Licenciatura Plena no Curso de Letras Português
pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, concluído em 2003.
Pós-graduada no Curso de Mestrado em História da Literatura, na Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, em fase de conclusão.
2.1) CONHECIMENTO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA:
Prova de Proficiência em Língua Francesa, realizado no Departamento de Letras e
Artes, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, obtendo nota 9,0.
2.2) ATIVIDADES DE EXTENSÃO:
I ENCONTRO DE LETRAS, atividade de extensão de âmbito municipal, promovida
pelo Departamento de Letras e Artes e Diretório Acadêmico de Letras, da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, realizado em 20 e 21 de julho de 1999.
I COLÓQUIO DE LETRAS, atividade de extensão de âmbito municipal, promovida
pelo Departamento de Letras e Artes e Diretório Acadêmico de Letras, da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, realizado em 13 e 14 de novembro de 2000.
II COLÓQUIO DE LETRAS, atividade de extensão de âmbito municipal, promovida
pelo Departamento de Letras e Artes e Diretório Acadêmico de Letras, da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, realizado em 28 a 30 de maio de 2001.
141
LER E ESCREVER: HABILIDADE DE TODAS AS ÁREAS, curso de extensão de
âmbito regional, promovido pelo Departamento de Letras e Artes da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, realizado de abril a julho de 2001.
21ª SEMANA DE LETRAS e SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE LÍNGUA E
LITERATURA, atividade de extensão de âmbito internacional, promovida pelo Curso
de Letras e Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa
Maria, realizado no período de 08 a 11 de outubro de 2002.
OFICINA DE LÍNGUA FRANCESA, atividade de extensão de âmbito municipal,
promovida pelo Departamento de Letras e Artes da Fundação Universidade Federal do
Rio Grande, realizado de 30 de outubro a 20 de novembro de 2002.
SEMANA DE LETRAS, atividade de extensão de âmbito regional, promovida
pelo Departamento de Letras e Artes e Diretório Acadêmico de Letras, da Fundação
Universidade Federal do Rio Grande, realizado no período de 08 a 12 de setembro de
2003.
2º SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA LITERATURA, atividade de
extensão de âmbito nacional, promovida pela Comissão de Curso de Pós-Graduação em
Letras e pelo Departamento de Letras e Artes da Fundação Universidade Federal do Rio
Grande, realizado no período de 05 a 07 de abril de 2005.
GERAÇÃO E AVALIAÇÃO DE PRODUÇÃO CIENTÍFICA, mini curso
promovido pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, durante o VII Encontro
de Pós-Graduação, realizado nos dias 17 e 18 de novembro de 2005.
ENCONTRO DE POESIA RIO QUINTANA, atividade de extensão de âmbito
nacional, promovida pela Comissão de Curso de Pós-Graduação em Letras e pelo
Departamento de Letras e Artes da Fundação Universidade Federal do Rio Grande,
realizado no período de 06 a 07 de novembro de 2006.
3) EXPERIÊNCIA DOCENTE:
Atuação como estagiária no projeto LÍNGUA PORTUGUESA: REFORÇO
ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL E DIO, promovido pelo DECC e
DLA, da FURG, para alunos da rede municipal e estadual, realizado no período de
outubro a dezembro de 2000.
142
Atuação como estagiária no projeto REDAÇÃO E COMPREENSÃO DE TEXTOS,
promovido pelo DLA, da FURG, aos candidatos do Processo Seletivo do Vestibular,
realizado no período de 29 de julho a 02 de dezembro de 2002.
Atuação como professora de Literatura Brasileira no curso pré-vestibular SABER &
SUCESSO, situado à Rua Barão de Cotegipe, nº 463, com início em agosto de 2006, em
andamento.
4) EXPERIÊNCIA EM PESQUISA:
Participação como bolsista do PIBIC/ CNPq do projeto Literatura, Jornal e Cultura:
Estudo dos Jornais Pelotenses Grátis de Pelotas (1859), O Porvir (1868) e O Farrapo
(1889), arquivados na Biblioteca Rio-Grandense, orientado pela Profª Drª Néa Maria
Setúbal de Castro, da FURG, no período de agosto de 2001 a fevereiro de 2003.
Participação como bolsista voluntária do projeto Literatura, Jornal e Cultura:
Indexação dos Jornais Pelotenses O Pelotense (1853), Grátis de Pelotas (1859), O
Porvir (1868), Jornal do Comércio (1871), O Cabrion (1879), A Voz do Escravo
(1881), O Farrapo (1889) e Democracia Social (1893), arquivados na Biblioteca Rio-
Grandense, orientado pela Profª Drª Néa Maria Setúbal de Castro, da FURG, no período
de março de 2003 a março de 2004.
Participação como pesquisadora do projeto Literatura gauchesca e folclore:
constituição de uma memória coletiva (memória, cultura e tradição na literatura
regionalista), orientado pela Profª Drª Sylvie Dion, da FURG, desde março de 2005, ao
qual pertence a Dissertação de Mestrado A trajetória da Mãe do Ouro na Literatura
Rio-grandense.
4.1) APRESENTAÇÕES EM CONGRESSOS:
Participação no 10º Congresso de Iniciação Científica, 9º Laboratório de Pesquisa, 3º
Encontro de Pós-Graduação e Encontro Regional de Ciência e Tecnologia,
promovido pela UFPel e UCPel, realizado de 26 a 28 de novembro de 2001,
apresentando o trabalho intitulado Literatura, Jornal e Cultura: O Farrapo.
Participação no 10º Congresso de Iniciação Científica e Encontro de Pós-
Graduação, promovido pela FURG, realizado nos dias 24 e 25 de maio de 2002,
apresentando o trabalho intitulado Estudo do Jornal Pelotense – O Farrapo.
143
Participação da 21ª Semana de Letras e 7º Seminário Internacional de Língua e
Literatura, promovido pela UFSM, realizado no período de 08 a 11 de outubro de 2002,
apresentando o trabalho intitulado Estudo do Jornal Pelotense – A Voz do Escravo.
Participação na I Mostra da Produção Universitária, promovida pela FURG,
realizada de 27 a 30 de novembro de 2002, apresentando o trabalho intitulado A Voz do
Escravo – Um Jornal Pelotense.
Participação na II Mostra da Produção Universitária, promovida pela FURG,
realizada de 19 a 22 de novembro de 2003, apresentando o trabalho intitulado
Democracia Social: valorização do trabalho.
Participação no VII Encontro da Pós-Graduação dentro da IV Mostra da Produção
Universitária, promovida pela FURG, realizada de 16 a 19 de novembro de 2005,
apresentando o trabalho intitulado A trajetória da Mãe do Ouro na Literatura Rio-
grandense.
Participação no VIII Encontro de Pós-Graduação dentro da V Mostra da Produção
Universitária, promovida pela FURG, realizada de 18 a 20 de outubro de 2006,
apresentando o trabalho intitulado A trajetória da Mãe do Ouro na Literatura Gaúcha.
Participação no Encontro de Poesia Mário Quintana, promovido pela FURG,
realizado de 06 a 07 de novembro de 2006, apresentando o trabalho intitulado A casa
natal e o espaço da proteção.
4.2) PUBLICAÇÕES DE RESUMOS:
ANDRÉ, Sonia Nickel & CASTRO, Néa Maria Setúbal de. Literatura, Jornal e
Cultura: O farrapo. In: 10º CIC, LAP, ENPÓS, ENCITEC: 2001 UMA
ODISSÉIA DO SABER, 2001, Pelotas. Resumos. <10CIC\AREA08.HTM>
ANDRÉ, Sônia Nickel & CASTRO, Néa Maria Setúbal de. Estudo do jornal
pelotense O Farrapo. In: 10º CIC ENPÓS: PRÊMIO JOVEM PESQUISADOR,
2002, Rio Grande. Resumos. Rio Grande: Editora da FURG, 2002, p.268.
ANDRÉ, Sonia Nickel. Estudo do jornal pelotense A Voz do Escravo. In: 21ª
SEMANA DE LETRAS, SEMINARIO INTERNACIONAL DE LÍNGUA E
LITERATURA - LÍNGUA E LITERATURA: DERRUBANDO FRONTEIRAS, 2002,
Santa Maria. Resumos. Santa Maria: UFSM, CAL, Curso de Letras, 2002, p.33-34.
ANDRÉ, Sônia Nickel & CASTRO, Néa Maria Setúbal de. A Voz do Escravo um
jornal pelotense. In: MOSTRA DA PRODUÇÃO UNIVERSITÁRIA/FURG:
144
INTEGRANDO SABERES, 2002, Rio Grande. Resumos. Rio Grande: Editora da
FURG, 2002, p.452.
ANDRÉ, Sônia Nickel & CASTRO, Néa Maria Setúbal de. Democracia Social:
valorização do trabalho. In: II MOSTRA DA PRODUÇÃO UNIVERSITÁRIA, 2003,
Rio Grande. Resumos. <E:\resumos.html> Área 08.
ANDRÉ, Sônia Nickel. A trajetória d’A Mãe do Ouro na literatura rio-grandense. In:
IV MOSTRA DA PRODUÇÃO UNIVERSITÁRIA, 2005, Rio Grande. Resumos.
<E:/pos/resumos/Sônia Nickel André >.
ANDRÉ, Sônia Nickel. A trajetória da Mãe do Ouro na literatura gaúcha. In: V
MOSTRA DA PRODUÇÃO UNIVERSITÁRIA, 2006, Rio Grande. Resumos.
<E:/resumos/pos.html#80 >
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo