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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA
GABRIELA RINALDI MEYER
A CLÍNICA DA PSICOSE:
TRANSFERÊNCIA E DESEJO DO ANALISTA
São Paulo
2006
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GABRIELA RINALDI MEYER
A Clínica da psicose:
Transferência e desejo do analista
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de doutor em Psicologia Clínica.
Área de concentração: Psicologia Clínica
Orientador: Prof. Dra. Jussara Falek Brauer
São Paulo, Março de 2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Meyer, Gabriela Rinaldi
A Clínica da psicose: Transferência e desejo do analista / Gabriela
Rinaldi Meyer; orientador(a) Jussara Falek Brauer, São Paulo, 2006.
125 p.
Tese ( Doutorado Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Clínica) Faculdade de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
1.Transferência na psicose 2.desejo do analista 3.Psicologia Clínica
I.Título.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Gabriela Rinaldi Meyer
A Clínica da Psicose: Transferência e desejo do analista
Tese apresentada à Faculdade de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor.
Área de concentração: Psicologia Clínica.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _____________________________________________________________
Instituição:___________________________Assinatura:________________________
Prof.Dr.______________________________________________________________
Instituição____________________________Assinatura:_______________________
Prof.Dr.______________________________________________________________
Instituição:____________________________Assinatura:_______________________
Prof.Dr.______________________________________________________________
Instituição:_____________________________Assinatura:______________________
Prof.Dr.______________________________________________________________
Instituição:______________________________Assinatura:_____________________
Ao André e ao João, pela alegria de viver.
Aos sujeitos que me inspiraram e me inspiram
no exercício da clínica da psicose.
AGRADECIMENTOS
A Jussara Falek Brauer, pela carinhosa orientação deste trabalho.
A minha mãe, pela paciência, pela força e pelo constante incentivo: lhe sou muito
grata.
Ao meu pai pela cuidadosa, preciosa e carinhosa revisão de português.
Ao André e ao João, por tudo, pela alegria diária, pela felicidade infinita.
Às instituições que contribuíram para o desenvolvimento deste trabalho: USP e
CAPES.
A Maria Lúcia Baltazar, por sua contribuição no exame de qualificação.
Ao CAPS Clarice Lispector, pelo campo de exercício da clínica da psicose.
Aos colegas do CAPS Clarice Lispector, pelo constante companheirismo.
Aos pacientes do CAPS Clarice Lispector, pelo constante ensinamento.
A Adriana Barros, amiga e colega de profissão, pelas intensas conversas psicanalíticas
e o constante otimismo.
A Letícia Balbi, pelo trabalho de análise.
A Cícera, por me ajudar a cuidar de minha casa e, principalmente, de meu filho.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a crianca diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A crianca não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira
E pois.
Em poesia que é voz de poeta. que é a voz de fazer nascimentos
O verbo tem que pegar delírio.
Manoel de Barros
O Livro das Ignorãças
RESUMO
A partir de uma articulação entre a teoria psicanalítica e a clínica, esta tese
investiga os fenômenos da transferência na psicose pelo viés do que Lacan nomeou de
desejo do analista.
Para isso, inicialmente, realizamos uma retrospectiva da forma como Freud, ao
inaugurar a pesquisa psicanalítica das psicoses, abordou a questão da psicose.
Privilegiamos, desta maneira, a importância de suas contribuições para o estudo do
tema. Neste caminho, enfatizamos que Lacan, ao desenvolver a noção de foraclusão
do Nome-do-Pai foi além de Freud em suas elaborações sobre a estrutura da psicose e
que isto se deu ao dedicar-se ele à clínica da psicose, tendo sido, mais
especificamente, por meio dela que irá se aproximar da psicanálise.
Ao realizar uma investigação sobre o sujeito na psicose, fundamental para o
desenvolvimento da clínica, trabalhamos o conceito de transferência em Freud e
Lacan, com o objetivo de contextualizar as questões pertinentes aos impasses da
transferência na psicose. Por meio da apresentação de dois casos clínicos, discutimos
a relação entre a transferência na clínica da psicose e o desejo do analista, eixo central
desta tese de doutorado.
RÉSUMÉ
Nous avons pris comme point de départ de notre étude le rapport entre la
théorie psychanalytique et la pratique clinique. Notre but est d’examiner les
phénomènes de transfert dans la psychose à la lumière de ce que Jacques Lacan a
nommé le désir de l’analyste.
Pour ce faire, nous réalisâmes initialement une étude rétrospective de la
façon para laquelle Freud, au moment même d’inaugurer la recherche
psychanalytique des psychoses, a abordé la question de la psychose. Tout en
reconnaissant l’importance de contributions freudienne à l’examen du thème, nous
avons dû admettre que Lacan, en développant la notion de forclusion du Nom-du-
Père, est allé au-delà de Freud luis-même dans l’élaboration de la structure de la
psychose. Cela s’est produit par le fait que très tôt Lacan s’est dédié à la clinique de la
psychose. D’ailleurs, c’est par le moyen de celle-ci qu’il s’est approché da la
psychanalyse.
En réalisant une recherche sur le sujet de la psychose, recherche qui s’avère
fondamentale pour le développement de la clinique, nous avons travaillé le concept de
transfert chez Freud et chez Lacan, pour mettre en contexte les questions relatives aux
impasses du transfert dans la psychose. A travers l’exposition de deux cas cliniques
nous discutons le rapport entre le transfert en clinique de la psychose et le désir de
l’analyste, rapport qui est au centre de cette thèse de doctorat.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 CAPÍTULO I
A psicose e a função do pai: algumas pontuações
19
3 CAPÍTULO II
Algumas considerações sobre o sujeito na psicose
41
4 CAPÍTULO III Pontuações sobre o conceito de transferência em
S.Freud e J.Lacan: a transferência na psicose
55
5 CAPÍTULO IV
A clínica da psicose e o desejo do analista
76
6 CONCLUSÕES
117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
122
10
INTRODUÇÃO
A clínica da psicose, a par de ser instigante e atraente, é portadora de
dificuldades tão grandes que podem ser chamadas de impasses. Estes a constituem
intrinsecamente, garantindo sua especificidade e sua diferença, ao mesmo tempo que,
paradoxalmente, promovem sua realização. Apresenta obstáculos à primeira vista
suficientes para desencorajar os praticantes, o que fica evidente quando observamos o
discurso de muitos psicanalistas colocando em dúvida sua possibilidade de realização.
Freud manifesta interesse em refletir sobre ela, enunciando, contudo, na
maioria da vezes, as dificuldades que a transferência apresenta neste caso,
configurando um obstáculo determinante à sua realização. Como indica Allouch
(1997), não é possível pensar a transferência na psicose com base na teoria freudiana,
pois ele criou a psicanálise desenvolvendo o conceito de transferência a partir da
neurose, e não teria sentido adaptarmos tal conceito para a psicose, pois trata-se de
uma estrutura clínica marcada por outra lógica, outra organização. Reconhecer a
psicose como uma estrutura clínica originalmente diferente da neurose, significa um
avanço para o desenvolvimento de sua clínica, o que foi possível com Lacan e com o
que ele trouxe de contribuição para este campo.
Ao seguir a orientação de Lacan de não recuarmos diante dela, tenho
construído um percurso de trabalho em sua direção. O que me leva a escrever esta
tese é o exercício clínico que tenho experimentado neste campo e que tem me feito
pensar constantemente sobre o lugar ocupado pelo psicanalista nesta clínica. Isso me
conduz à reflexão sobre as particularidades da transferência. Minha pretensão é
trabalhar tais particularidades.
Constatamos que a transferência na psicose evidencia uma intensidade
diferente em relação à forma como se manifesta na neurose. Ao se instaurar,
11
apresenta-se freqüentemente de forma maciça, o que certamente traz dificuldades para
o trabalho clínico. A partir dos casos que serão examinados pretendemos pensar como
o dispositivo transferencial, fundamental para qualquer clínica, pode ser sustentado
neste clínica específica, o que nos leva a articulá-lo àquilo que Lacan designou como
desejo do analista. Na clínica da psicose, observamos que a demanda de tratamento
não parte, na maioria das vezes, do sujeito e sim do outro (semelhante). Quando é
possível ao sujeito apresentar alguma demanda, ela se mostra, em diversas situações,
sob a forma de um pedido de afirmação de existência, o que coloca o psicanalista em
um lugar especial, diferente do que ocorre na clínica da neurose: aquele de
acompanhar o sujeito na construção de uma forma de existência que o sustente. A
posição do psicanalista, assim, através de sua presença e de seu desejo é fundamental
e determinante.
Em um dos casos a serem apresentados, a presença da psicanalista
acompanhada de uma disponibilidade e de uma abertura para escutar o discurso do
sujeito, acreditando que algo pudesse se dar a partir da fala, foi o que propiciou o
desenrolar do tratamento. Noutro caso clínico que será abordado ao longo da tese, fica
igualmente evidente a importância da construção de um lugar de escuta neutro,
despretensioso e acolhedor, fundamental para a organização do conteúdo invasivo que
tomava o paciente de forma massiva.
Ao refletir sobre o desejo do analista, nos perguntamos: afinal, o que vem a
ser o desejo do analista? Antes de tudo, é necessário dizer que, como todo desejo, é
um desejo articulado ao campo do Outro - é um desejo do Outro. Não é um desejo
pessoal e sim uma função que se relaciona à posição que o psicanalista ocupa na
relação analítica. Pretendo investigar como pode ser pensada a articulação entre a
transferência e o desejo do analista na clínica da psicose a partir da hipótese de que é
12
o desejo do analista investido de uma condição especial que pode viabilizar a
transferência com todas as particularidades aí presentes.
No Seminário 11, sobre Os quatro conceitos fundamentai da psicanálise
(1964), Lacan trabalha a noção de sujeito suposto saber como base da transferência,
sustentando a íntima relação entre o lugar de sujeito suposto saber atribuída ao
analista e a busca do desejo inconsciente. O analista é suposto saber partir ao encontro
desse desejo. Neste sentido, o desejo é o eixo do que se formula, inicialmente, como
demanda no discurso do paciente, ou seja, a própria transferência. O desejo do
analista tal como o apresenta Lacan neste Seminário, é o que está por trás dessa
demanda, justamente o ponto comum entre o desejo do paciente e a transferência. Na
clínica da psicose, o que deve ser questionado é justamente essa suposição de saber,
pois a crença delirante de que o Outro sabe e, portanto invade o sujeito, obriga-nos a
repensar a posição do psicanalista de sujeito suposto saber na direção clínica deste
trabalho. Como indica Zenoni (2000), a posição de aprendizagem em que o
psicanalista é colocado pela própria condição da psicose que aponta para um saber,
promove o esvaziamento de qualquer saber prévio, o que propicia o surgimento de um
sujeito suposto não saber. Esta posição é “ favorável para encontrar um sujeito que
sabe o que acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é endereçado
enigmaticamente (…). Na psicose o saber não é suposto, mas realizado pelo próprio
sujeito (…).” (Zenoni, 2000, p.20).
Foi, mais precisamente, o saber delirante que se caracteriza como certeza, pois
não abre espaço para ser questionado, que fez com que Lacan se encantasse com
Marguerite, mais conhecida pelo nome fictício Aimée, caso sobre o qual se debruçou
em sua tese de doutorado. Allouch (1997), ao refletir sobre o lugar do psicanalista na
clínica da psicose, retoma a tese de Lacan valorizando a idéia de que a transferência
13
nestes casos se apresenta inicialmente do lado do analista - é uma transferência para
com o psicótico sendo este o fator preponderante para a realização da clínica. Tal
transferência aponta para o desejo do analista e podemos pensá-la como relacionada a
uma posição de não-saber que abre espaço para o saber do sujeito.
A noção de “secretário do alienado” definida por Lacan no Seminário 3 (1955-
56), pode nos servir de guia sobre o lugar do psicanalista nesta clínica: um lugar de
escuta que valoriza o discurso do sujeito e que o acompanha na construção de algum
sentido que lhe dê sustentação na vida. Foi exatamente esse lugar que Lacan ocupou
em sua relação com Marguerite. Notamos aqui uma articulação entre a função de
secretário, desejo do analista e posição de não-saber.
A articulação teórica que desenvolveremos na presente tese parte da clínica da
psicose na instituição pública de saúde mental, trazendo à tona a discussão sobre a
contribuição que a psicanálise pode oferecer para a construção de uma nova forma de
atendimento aos psicóticos no contexto institucional. Não nos deteremos, contudo,
nessa discussão, pois o que interessa é avançar e elaborar as questões que giram em
torno da clínica da psicose, mais especificamente da transferência na psicose,
independente do contexto onde se dá tal clínica. No entanto, não deixaremos de
esbarrar na questão da instituição, já que é no contexto institucional que os casos que
serão apresentados se desenvolveram.
Por isso, faz-se necessário apresentar resumidamente a instituição de saúde
mental onde exerço a clínica com a psicose e o contexto em que ela foi formada. O
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) Clarice Lispector nasceu dentro de um
Hospital Psiquiátrico do Município do Rio de Janeiro, o IMAS
1
-Nise da Silveira, com
o nome inicial de Centro de Convivência, com o objetivo de construir uma nova
1
Instituto Municipal de Assistência à saúde antigo Centro Psiquiátrico Pedro II.
14
forma de tratamento e de atendimento aos psicóticos. Nesta época já funcionava como
CAPS, mas por estar dentro dos muros do hospital não podia ser considerado como tal
oficialmente, o que se deu em Maio de 2005, ao sair do hospital.
Os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) surgiram a partir do movimento da
reforma psiquiátrica como serviços substitutos dos hospitais psiquiátricos. A reforma
psiquiátrica no Brasil teve início por volta do ano de 1978 com o movimento de
denúncias, reivindicações e críticas aos maus tratos, descaso e violência
determinantes do tratamento à saúde mental preponderante até então. Esse movimento
terminou por alcançar repercussão nacional e, em conseqüência, a questão da
assistência à doença mental começou a ser divulgada e debatida na imprensa e no
interior de entidades expressivas da sociedade civil. A sociedade brasileira mostrou-se
indignada com a violência e a falta de recursos que marcavam o tratamento dos
cidadãos enfermos, de forma bastante parecida com o que ocorreu na Europa durante
o pós-guerra.
A reforma psiquiátrica pode ser dividida em três momentos: o primeiro
caracteriza-se pelo movimento de denúncias supracitado, mais conhecido por “crise
da DINSAM (Divisão Nacional de Saúde Mental)”. A DINSAM era um órgão do
Ministério da Saúde responsável pela formulação das políticas de saúde do subsetor
saúde mental e sua crise foi marcada por uma greve realizada por profissionais das 4
unidades que a compunham: Centro Psiquiátrico Pedro II; Hospital Pinel; Colônia
Juliano Moreira e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho.
Neste momento, contextualizado a partir da conjuntura dos últimos anos do
regime militar, foram plantadas as bases para a reorganização dos partidos políticos,
dos sindicatos, das associações etc., crescendo os movimentos sociais de oposição a
ditadura militar. Foi neste contexto que surgiu o Movimento de Trabalhadores em
15
Saúde Mental (MTSM), assumindo papel fundamental no processo da reforma. A
primeira Conferência Nacional de Saúde Mental que se definiu por ser um
desdobramento da oitava Conferência Nacional de saúde teve a participação
fundamental do MTSM, e alguns desdobramentos importantes como o II Congresso
Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, onde foi construído o lema “por uma
sociedade sem manicômios”. Como afirma Amarante (1998, p.94):
É nesta trajetória que surge o Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS), (1987), em São Paulo, que é feita a intervenção na Casa
de Saúde Anchieta, em Santos, com a posterior criação de Núcleos
de Atenção Psicossocial (NAPS), (1989) ou que surge o Projeto de
Lei 3.657/89. Nesta trajetória, passa-se a construir um novo projeto
de saúde mental para o País.
Esse projeto de Lei estimulou o debate sobre a loucura em todo país e, depois
de ficar muito tempo em trâmite no congresso, foi aprovada e sancionada no dia 6 de
Abril de 2001(Lei 10216).
Com a reforma psiquiátrica muitas mudanças já foram operadas na realidade
do atendimento à saúde mental no Município do Rio de Janeiro, mas muito ainda se
tem que caminhar neste sentido. A construção de uma nova política de saúde mental
exige um conjunto de ações que levem em conta a cidadania e que desenvolvam
formas de atendimento que respondam às necessidades da população. É neste
contexto que são criados os CAPS, construindo uma rede de assistência voltada para a
reabilitação psicossocial e para uma atenção integral e diária à uma clientela com
sofrimento psíquico mais grave. A divisão do Rio de Janeiro em áreas programáticas
possui o objetivo de promover que cada área tenha sua rede de assistência específica,
sendo os CAPS considerados os centros de referência, ordenadores da rede, que inclui
ainda os postos e centros de saúde, os ambulatórios e os hospitais.
A divisão do município em áreas programáticas nos leva à noção de território
tal como desenvolvida pela Psiquiatria Democrática italiana. O conceito de território
16
tem sido fundamental para pensar um novo modelo para a assistência à saúde mental
no município do Rio de Janeiro, sendo que cada área da cidade cobre um número
específico de bairros, ou seja, um território, e sua correspondente população.
O Instituto Municipal Nise da Silveira é um hospital de grande porte que
possui uma série de serviços: Centros de Atenção diária, atendimento ambulatorial,
enfermaria de curta permanência, enfermaria de longa permanência com internação,
um serviço de atendimento a crianças etc. Com o Hospital sendo responsável por um
território específico que se concentra em suas mediações, o CAPS Clarice Lispector,
inserido no território do hospital, é responsável por uma parte desse território.
A prioridade de atendimento do CAPS são as psicoses e neuroses graves e
para absorver essa população ele possui uma equipe multidisciplinar formada por
vários profissionais do campo da saúde mental. Esta equipe é composta por:
Psiquiatras, Psicanalistas, Psicólogos, Terapeutas Ocupacionais, Musicoterapeutas,
Assistentes Sociais, Enfermeiros, Auxiliares de enfermagem, Nutricionistas e
Farmacêuticos. Os dispositivos de tratamento são: atendimentos médicos, individuais
com o psicólogo e com o psicanalista, atendimentos familiares (individuais e grupais),
grupos e oficinas terapêuticos, o que inclui as atividades geradoras de renda (cantina,
reciclagem de papéis e latas, brechó, bijuteria etc.…); trabalho de intervenções na
comunidade, com o objetivo de levantar as possibilidades de relações que existem a
partir das atividades num clube próximo ou numa igreja vizinha; visitas domiciliares
para os casos em que o paciente deixa de comparecer ao serviço e não há outra forma
de comunicação com ele; acompanhamento terapêutico.
Ao refletirmos sobre a equipe multidisciplinar, fundamental para o
atendimento de uma clientela muito grave, portadora de um intenso sofrimento, surge
a questão: qual o lugar do psicanalista nesta equipe? Atualmente ele está muito mais
17
presente na instituição de saúde mental do que no passado, quando se restringia mais
especificamente ao setting do consultório particular, seu locus tradicional, de onde se
originou. A inserção do psicanalista na instituição traz dificuldades, já que o contexto
institucional convoca o psicanalista a atuar num campo que o coloca em um lugar
diferente, fugindo, muitas vezes, das regras básicas do que ocorre no consultório
particular. “Atender” o paciente não significa somente se fechar numa sala e convidá-
lo a falar de seus problemas, mas também acompanhá-lo numa oficina terapêutica ou
simplesmente ajudá-lo a contar para seu médico o que está sentindo. Tais diferenças
inauguram um novo campo clínico que nos faz pensar em ampliar ou expandir a
clínica psicanalítica, assim como Freud sugeriu em “Linhas de progresso na terapia
psicanalítica” (1918) quando se refere a importância da inserção da psicanálise na
assistência pública, o que implica uma adaptação da técnica psicanalítica, como deixa
claro:
Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica
às novas condições. não tenho dúvidas de que a validade de nossas
hipóteses psicológicas causará boa impressão também sobre as
pessoas pouco instruídas, mas precisaremos buscar as formas mais
simples e mais facilmente inteligíveis de expressar as nossas
doutrinas teóricas.(Freud, 1996, p.181).
O trabalho do psicanalista na instituição pública torna-se ainda mais
importante na clínica da psicose, uma vez que a instituição, desde que transformada,
tem também um papel importante de abrigo e acolhimento de casos muito graves e
intensos de sofrimento psíquico.
Como psicanalista que atua na instituição, realizo um trabalho clínico de
atendimento individual, coordenação de grupos terapêuticos e de oficinas
terapêuticas. Estes espaços grupais de acolhimento da fala propiciam uma troca entre
os pacientes em que um, ao escutar o outro, passa a refletir de forma diferente sobre
sua vida. São espaços muito importantes no trabalho com a psicose, e determinantes
18
do trabalho institucional, que tem como uma de suas metas, além do trabalho de
atendimento clínico, promover a construção de possibilidades de criação de laços
sociais, já que sem esta mediação os pacientes não conseguem, na maioria das vezes,
ampliar seu universo de trocas sociais. A instituição, neste sentido, têm a função de
criar situações que lembrem, em parte, situações do cotidiano fora dela.
No presente trabalho, como ponto de partida, consideramos necessário lembrar
como a questão da psicose foi abordada pela psicanálise, por Freud e depois, por
Lacan. Um segundo passo será a reflexão sobre o conceito de sujeito na psicose,
fundamental para a clínica e para o posterior estudo sobre o conceito de transferência,
uma vez que, na clínica estamos lidando com um sujeito que emerge na relação
transferencial. Na seqüência realizaremos um estudo sobre o conceito de
transferência, em Freud e Lacan, necessário para o aprofundamento e a elaboração das
questões que surgem ao penetrarmos no delicado terreno da transferência na psicose,
através da apresentação de dois casos clínicos.
19
CAPÍTULO I - A PSICOSE E A FUNÇÃO DO PAI: ALGUMAS
PONTUAÇÕES
Freud, a despeito de ter se dedicado à clínica da neurose, manteve ao longo de
sua obra um persistente interesse em refletir sobre a psicose, manifestando a visível
intenção de diferenciá-la da neurose. Inaugurou a pesquisa psicanalítica sobre as
psicoses, ao mencionar pela primeira vez o problema da paranóia em 1895, enviando
a Fliess um longo memorando sobre o assunto Rascunho H (1950[1892-1899]), em
que define a paranóia como “um modo patológico de defesa, bem como a histeria, a
neurose obsessiva e a confusão alucinatória.” (Freud, 1996,p.254). É em uma
passagem deste texto que surge pela primeira vez o conceito de projeção, onde indica
que a particularidade do modo de defesa na paranóia é justamente o mecanismo de
projeção.
Aproximadamente um ano mais tarde, observamos que Freud mantém seu
interesse pelo tema da paranóia ao apresentar um outro memorando à Fliess, o
Rascunho K, que posteriormente é ampliado, dando origem a uma parte do segundo
artigo sobre “As Neuropsicoses de defesa” (1896). Por volta desta época (1894/1896)
ele tenta diferenciar os campos das neuroses e das psicoses com base no conceito de
defesa. No primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de defesa” (1894) são abordadas
três tipos de defesa com relação a idéias incompatíveis: a defesa histérica, a defesa
obsessiva e a defesa psicótica. Nas duas primeiras, a defesa contra a idéia
incompatível se efetiva separando-a de seu conteúdo afetivo. A defesa psicótica, por
outro lado, se dá por uma rejeição, por parte do ego, da idéia incompatível,
juntamente com seu conteúdo afetivo, onde o ego se comporta como se a idéia jamais
lhe tivesse ocorrido. No segundo artigo sobre “As Neuropsicoses de defesa” (1896), a
20
partir da análise de um caso de paranóia crônica, fica evidente que na paranóia, como
na histeria e na neurose obsessiva, deve haver pensamentos inconscientes e
lembranças recalcadas. A única diferença da paranóia para as outras duas, é que nela
os pensamentos inconscientes são ouvidos pelo paciente como alucinações
classificadas por Freud, neste texto, como sintomas do retorno do recalcado. Ele
considera uma característica típica da paranóia as auto-acusações recalcadas que
retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta.
Na carta 125 (1950a [1899]) enviada à Fliess, a paranóia é tratada como sendo
um retorno a um auto-erotismo primitivo. Após este ensaio, Freud somente voltará a
examinar a questão da psicose na análise das Memórias do Presidente Schreber
(1911), construindo aí importantes hipóteses acerca do tema, destacando-se a de que o
núcleo da formação de sintomas na paranóia é a projeção, reafirmando o que já havia
mencionado no Rascunho H.
Anos depois, será com base na noção de narcisismo que Freud se
fundamentará para pensar a diferença entre neurose e psicose, ao utilizar-se da
elaboração sobre os destinos da libido, a energia sexual. No texto “ Sobre o
narcisismo, uma introdução” (1914), notamos que a psicose é considerada uma via
privilegiada de acesso ao estudo sobre o narcisismo e que a retirada da libido dos
objetos pode acarretar destinos neuróticos ou psicóticos. Na neurose, a libido retirada
dos objetos será mantida em suspenso na mente até encontrar um substituto para a
ligação perdida, o que faz com que o neurótico não corte suas relações eróticas com
as pessoas e as coisas do mundo externo, retendo-as e supervalorizando-as na
fantasia. Na psicose, por sua vez, há realmente a retirada da libido do mundo externo,
ocorrendo um estancamento de sua circulação, o que faz com que ela permaneça
retraída para o ego. Tal retração dificultaria a ligação do psicótico aos objetos. Este
21
ponto é importante, por estar no cerne da indicação de Freud de que na psicose a
possibilidade de transferência, base da clínica, estaria abalada
2
.
Posteriormente, em “Neurose e Psicose” (1924[1923]), Freud caracterizou as
neuroses e as psicoses como reflexo de um fracasso no funcionamento do ego, que se
vê em dificuldades para reconciliar as várias exigências feitas a ele. Na neurose, o ego
está em conflito com o id, a serviço do superego e da realidade, enquanto que na
psicose há a retirada dos investimentos libidinais. Neste mesmo ano, centrou-se na
relação com a realidade no texto “A Perda da realidade na Neurose e na
Psicose”(1924), deixando claro que na neurose um fragmento da realidade é evitado
por uma espécie de fuga, não havendo um corte das suas relações com o mundo
externo, pois o neurótico se relaciona com a realidade através da fantasia, dela
retirando material para suas novas construções de desejo. Na psicose, por outro lado,
há um repúdio da realidade, e sua substituição por outra: a realidade delirante. Em
ambas, a tentativa de restabelecer os laços com a realidade não é bem sucedida, pois
na neurose, a pulsão recalcada não consegue um substituto completo e, na psicose, a
representação da realidade não pode ser remodelada de forma satisfatória.
Dentre os vários textos que escreveu sobre o tema, um dos que mais chama
nossa atenção é o que contém sua análise do livro de memórias de um doente dos
nervos, “Notas psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de
Paranóia caso Schreber” (1911). Na análise deste caso, observa-se a construção de
uma série de hipóteses sobre a paranóia, dentre elas, a de que, na sua base, encontra-
se, de modo determinante, o desejo homossexual, havendo um retrocesso da libido à
fase narcísica. Ocorre aí um estancamento da circulação da libido, que se apresenta
voltada basicamente para o próprio ego.
2
Isto será trabalhado no terceiro capítulo, sobre a Transferência.
22
Por meio da interpretação do que Schreber chama de “fim de mundo”, Freud
observa que, para ele, o fim de mundo é a projeção do fim de seu mundo subjetivo, de
seu conflito interno, cuja única saída se dá através de um desinvestimento libidinal do
mundo e um total investimento libidinal no ego. A partir deste desinvestimento do
mundo, através do recalque, o paranóico tenta construir um novo mundo de
significações.
A fantasia de desejo homossexual de amar um homem é o que se apresenta na
base do conflito nos casos de paranóia entre indivíduos do sexo masculino. As formas
principais de paranóia são representadas como contradições da proposição única “ eu
(um homem) o amo (um homem)” e caracterizam-se por quatro tipos de delírios:
- Delírios de perseguição, onde, através do mecanismo de projeção, o
indivíduo substitui percepções internas por externas, sentindo-se perseguido pelo
objeto, justificando seu ódio por meio da substituição da proposição: “ eu não o amo”,
por “eu o odeio”, transferindo essa percepção para o objeto, chegando à conclusão:
“ele me odeia”.
- Delírios erotomaníacos, caracterizados pela transformação de “ eu não o amo”
para “ eu a amo, porque ela me ama”. Isso se dá também através do mecanismo de
projeção;
- Delírios de ciúme, que, também por meio da projeção, manifestam-se pela
contradição: “ não sou eu que o amo, ela o ama.”
- Finalmente, no delírio de megalomania, que é bastante característico da paranóia,
a libido do indivíduo está totalmente voltada para o ego que se torna
engrandecido. Neste tipo de delírio, a projeção só pode ser percebida pela
colocação do próprio indivíduo como objeto de amor: “ eu não o amo, não amo
ninguém; eu só amo a mim mesmo.”
23
Neste texto podemos encontrar a principal contribuição freudiana para o
estudo das psicoses, ao romper com as concepções da psiquiatria que abordam o
delírio como sintoma patológico e introduzir uma novidade ao caracterizá-lo como
uma tentativa de recuperação, uma reconstrução do sentido. O delírio é aí uma via
através da qual o psicótico procura restabelecer os laços com o mundo externo,
reconstruindo a realidade. O ponto culminante do sistema delirante de Schreber é a
sua crença na missão de redimir o mundo e de restituir à humanidade o estado perdido
de “beatitude”. Tal missão deveria ser precedida por sua transformação em mulher,
por meio de milagres divinos, e isto se impunha a ele como um “dever”, como fica
claro na passagem:
Não se deve supor que ele deseje ser transformado em mulher;
trata-se antes de um “dever” baseado na Ordem das Coisas, ao qual
não há possibilidade de fugir, por mais que, pessoalmente,
preferisse permanecer em sua própria honorável e masculina
posição na vida. (Freud, 1996,p.27).
Esta nova maneira de conceber o delírio pode ser tomada como um grande
passo em direção ao aprofundamento da pesquisa sobre as psicoses, que modifica a
concepção então dominante. Ao contrário da clínica psiquiátrica, nosológica, que visa
definir um diagnóstico, para logo em seguida suprimir o delírio na tentativa de cura
do paciente, a psicanálise inaugura uma outra forma de abordar a questão.
Ainda no “Caso Schreber”, ao evidenciar que o Dr. Flechsig
3
e Deus
ocuparam o lugar de perseguidor, Freud conclui que representavam respectivamente o
irmão mais velho de Schreber e seu pai:
3
Flechsig foi o médico que o atendeu desde a primeira doença que teve início no outono de 1884. Por
esta ocasião, Schreber passou seis meses em sua clínica e teve o diagnóstico de uma grave crise de
hipocondria. Desde esse momento, Flechsig passou a ter um lugar importante para Schreber e também
para sua esposa, que o reverenciou por ter lhe restituído o marido.
24
(…) temos ainda de chamar atenção para nossa visão da
decomposição do perseguidor em Flechsig e Deus como uma
reação paranóide a uma identificação previamente estabelecida das
duas figuras ou a pertencerem elas à mesma classe. Se o
perseguidor Flechsig fora inicialmente uma pessoa a quem
Schreber amara, então também Deus deveria ser simplesmente o
reaparecimento de alguém mais que ele amara, e, provavelmente,
alguém de maior importância.
4
Isto nos dá indícios da importância do pai de Schreber no desenvolvimento de
sua psicose. Freud nos chama a atenção para a atitude infantil dos meninos em relação
ao pai, deixando claro que ela é composta de “submissão reverente e insubordinação
amotinada”. Todas essas atitudes encontram-se presentes na relação de Schreber com
Deus, o que evidencia que esta seria uma substituição da relação de Schreber com seu
pai. A partir daí, Freud vai mostrar como se apresenta o complexo paterno em
Schreber. Em suas palavras: “A luta do paciente com Flechsig revelou-se a ele como
um conflito com Deus, e temos portanto de explicá-la como um conflito infantil com
o pai que amava (…)”.
5
O conteúdo delirante de Schreber determinou-se a partir do
conflito com o pai e no fim, estabilizou-se na própria relação com ele, representado
por Deus:
A fantasia feminina que despertou uma oposição tão violenta no
paciente, tinha assim suas raízes num anseio, intensificado até um
tom erótico, pelo pai e pelo irmão. Esse sentimento, na medida em
que se referia ao irmão, passou, por um processo de transferência,
para o médico, Flechsig; e, quando foi devolvido ao pai, chegou-se
a uma estabilização do conflito (Freud, 1996, p.59).
O sentimento que se intensificou até um certo tom erótico em relação ao pai e
ao irmão, no momento em que se referia ao irmão, transferiu-se para Flechsig e, ao
ser transferido para Deus acarretou a estabilização do conflito Deus aí estaria no
4
Ibid., p.59.
25
lugar do pai. A partir do momento em que a relação com Deus não era mais de
perseguição, como inicialmente, e sim, positiva, o conflito estabiliza, tanto que o
cerne do delírio referia-se ao fato de tornar-se mulher de Deus.
Penetrando no terreno do complexo paterno, da relação do sujeito com o pai,
alcançamos a via principal utilizada por Lacan para abordar a questão das psicoses, a
via da função paterna enquanto função simbólica.
Os estudos sobre a função do pai levados a efeito por Lacan remontam a 1951
com o Seminário sobre o caso de Freud “O homem dos lobos”(1918), onde se dá a
primeira aparição da expressão Nome-do-Pai que Lacan, anos mais tarde, no
Seminário 5 As formações do inconsciente (1957-58) vai aproximar da noção de pai
simbólico, ao abordar o mito freudiano do Édipo para fundamentar o que ele chama
de função do pai. O Édipo e a função do pai são a mesma coisa, já que não existe a
questão do Édipo quando não existe o pai, ou qualquer outra pessoa que venha
assumir sua função, ou seja, “falar do Édipo é introduzir como essencial a função do
pai”, diz Lacan. (1999,p.171). Já antes disto, no Seminário dedicado à questão das
psicoses, do ano de 1955-56, ele trabalharia o tema da função paterna exaustivamente,
a propósito do “Caso Schreber”, situando-a e contextualizando-a um ano mais tarde
no texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957-
58) e no Seminário sobre As formações do inconsciente realizado no mesmo período.
Nesta época, ainda estava, de uma certa forma, bastante próximo à teoria freudiana do
complexo de Édipo, tratando o complexo de castração juntamente com o Édipo.
Lacan, ao caracterizar o pai como o pai simbólico indica que o pai é uma
metáfora um significante que vem no lugar de outro significante é o que define o
pai no complexo de Édipo, onde sua função é ser um significante que substitui o
5
Ibid., p.64.
26
primeiro significante da simbolização, o significante materno. A metáfora é o
resultado justamente da substituição do significante materno pelo paterno.
Essa identificação do Nome-do-Pai ao pai simbólico se dá mais
especificamente no Seminário 5 (1957-58). Entretanto, como nos indica Porge (1998),
em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, Lacan
indícios de que o Nome-do-Pai não é idêntico ao pai simbólico. Nas palavras do
próprio Lacan (1998, pp.584/585): “ Para passarmos agora ao princípio da foraclusão
do Nome-do-Pai, é preciso admitir que o Nome-do-Pai reduplica no lugar do Outro o
próprio significante do ternário simbólico, na medida em que ele constitui a lei do
significante.” O Nome-do-Pai pode ser pensado, assim, como um vestígio do pai
simbólico no discurso.
Situar as noções de função do pai, Nome-do-Pai e pai simbólico nas
formulações de Lacan é fundamental para a introdução da reflexão sobre a questão da
psicose em sua obra, pois a teoria que elabora gira em torno do conceito de foraclusão
do Nome-do-Pai. O conceito de função simbólica foi desenvolvido por Freud, não
apenas em relação ao complexo de Édipo, mas em “Totem e Tabu” (1913), obra em
que apresenta um “mito de origem” da sociedade, da moral, da cultura e da religião,
centrado na função do pai. É neste texto que Freud apresenta a origem da ordem
simbólica a partir de um crime primordial em que o pai morto se transforma em
totem, passando a ocupar lugar simbólico.
O conceito de foraclusão
6
, por sua vez, é formulado por Lacan, com base na
noção freudiana de Verwerfung, apresentado pela primeira vez no texto “As
neuropsicoses de defesa”(1894), onde Freud situou, com relação à psicose, a
existência de uma defesa muito mais eficaz, que consistia uma rejeição, por parte do
6
Termo importado do campo jurídico.
27
ego, da idéia incompatível, juntamente com o afeto a ela referido. Mais tarde, em
1918, Freud utilizou esta noção notavelmente na análise do caso do Homem dos
lobos, onde ele distingue recalque (Verdrängung) de Verwerfung.
Ao especificar uma outra forma de organização psíquica para pensar e definir
a psicose, como conseqüência da foraclusão do significante paterno, Lacan
empreende uma diferenciação entre as estruturas psicótica e neurótica. É no
Seminário 3: As Psicoses (1955-56) que desenvolve a noção de foraclusão, ao tomar
o pai como uma função simbólica, o terceiro, que vem separar a mãe da criança.
Lacan vai elevar o termo Verwerfung traduzido como foraclusão à categoria
de conceito, como o mecanismo específico da psicose. Com base no texto freudiano
sobre o caso Schreber, e nas próprias memórias de Schreber, analisa o lugar do pai na
configuração subjetiva e na construção delirante, justamente em um caso de psicose
onde o pai não sustentou a função simbólica. O pai de Schreber, Daniel Gottlieb
Moritz Schreber (1808-1861), era médico ortopedista e pedagogo, autor de vinte
livros sobre ginástica, higiene e educação das crianças. Era autoritário e legislador,
pregando uma doutrina educacional rígida e moralista, com o objetivo de ter um
controle completo sobre todos os aspectos da vida, desde os hábitos de alimentação
até a vida espiritual; tal identificação com a lei pode ter impossibilitado a sustentação
da função simbólica. Observa-se, assim, uma falha na função significante e simbólica
da lei, e é a partir deste ponto que Lacan concebe a foraclusão como uma resposta do
sujeito à ameaça de castração, assim como o recalque no caso da neurose e a
renegação no caso da perversão. A foraclusão significa que a lei não se inscreveu
através de um significante privilegiado, o significante paterno, o que perturba a
transmissão da falta, ou seja, a simbolização da castração.
28
Neste Seminário, Lacan centra-se basicamente na questão do pai, na medida
em que o pai de Schreber não se inscreveu como função simbólica. No Seminário
seguinte, sobre A relação de objeto (1956-57), abordará o lugar da mãe, pois nem
tudo depende do pai quando se trata de um caso de psicose. Não é só do registro do
simbólico que se trata, mas também do imaginário e, mais tarde veremos, do real, pois
o Nome-do-Pai é uma metáfora que diz respeito ao pai e, fundamentalmente, ao
desejo da mãe. Pensar a relação do pai com a lei implica estarmos atentos ao lugar
que a mãe reserva para a entrada desta lei, pois cabe à ela permitir que o pai
intervenha em sua relação com o filho.
Em relação ao que designamos como falha do pai, devemos explicitar,
portanto, que o que falha é a função do pai. O pai da realidade é aquele que busca na
escola, que vai nas festas do dia dos pais, é o pai que existe no imaginário dos filhos.
Mas, a questão permanece: o que este pai precisa fazer para exercer uma função
simbólica para os filhos? Ele precisa da mãe para isto, pois é ela quem abre este
espaço de existência simbólica do pai para o filho, sendo ela quem nomeia este lugar
de lei, de um terceiro ao qual ela se remete, desviando seu olhar da criança. Lacan
indaga no Seminário 5 (1957-58) - o que é o pai? Responder o que é o pai na família
seria simples, diz ele, pois aí o pai pode ser ou não ser um monte de coisas. O que
importa aqui é pensar o que é o pai no complexo de Édipo, o pai simbólico, uma
metáfora, um significante que vem no lugar de outro significante e é nesse nível que
se pode pensar na carência paterna, na carência do pai no complexo e não na família.
Ao desviar o olhar da criança e remetê-lo a um terceiro, geralmente o pai, a
mãe marca uma ausência para a criança, abrindo um espaço para o pai existir com
função de lei. Mas, não é só da mãe que depende isso tudo, depende também do pai,
da sua possibilidade de sustentar a função simbólica, função de lei, o que não
29
significa se igualar à lei. A relação do pai com a lei deve ser considerada, pois se ele
realmente assume esse lugar de legislador, isso pode fazê-lo “excluir o Nome-do-Pai
de sua posição no significante”. (LACAN, 1998, p.585).
7
Isto demonstra que o pai da
realidade, o pai na família, não deve aventurar-se a assumir no sentido literal e
concreto o lugar da lei, identificando-se a ela, pois é encarnando a lei que ele pode
falhar em sua função simbólica, como aconteceu com o pai de Schreber.
Desta forma, pensar a relação do pai com a lei implica estarmos atentos ao
lugar que a mãe reserva para a entrada desta lei, cabendo a ela introduzir o pai, mas o
pai deve também sustentar o seu lugar sem bancar o legislador. Trata-se de uma
função mediadora bastante sutil, pois é invisível e muito menos localizável que a da
mãe. Em 1953, no artigo “O mito individual do neurótico” Lacan refere-se às três
categorias “real, imaginário e simbólico” definindo-as como adjetivos para
caracterizar os três lugares do pai pai simbólico, pai imaginário e pai real -
assinalando que a assunção da função do pai implicaria numa relação simbólica
simples, se o simbólico fosse capaz de recobrir plenamente o real. Seria preciso então,
que o pai não fosse somente o nome-do-pai, mas que ele representasse todo o valor
simbólico de sua função. De qualquer modo, como ele mesmo indica, isto é
impossível, pois a sobreposição do simbólico e do real é inapreensível, como frisa:
Pelo menos numa estrutura social como a nossa, o pai é sempre, de
algum modo, um pai discordante relativamente à sua função, um
pai carente, um pai humilhado, como diria Claudel. Existe sempre
uma discordância extremamente nítida entre o que é percebido pelo
sujeito no plano do real e a função simbólica. É nesta in-
coincidência que reside aquilo que faz com que o complexo de
Édipo tenha seu valor de modo algum normatizante, mas mais
frequentemente patogênico. (Lacan, 1980,p.75).
7
“Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957-58).
30
Isto nos faz pensar que o pai, para ocupar o lugar de função simbólica,
enquanto lei, deve ser carente, não identificado à lei em si. Didier-Weill (1997)
observa que foi pensando sobre o caso Schreber que Lacan se interrogou sobre o que
sucede na função paterna que permite a transmissão do significante Nome-do-Pai. É
no texto, acima citado, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose”(1957-58), que ele é levado a supor a existência de uma outra função, a
função do “Um-pai”. Esta suposição leva-o a criticar a noção de triângulo edipiano,
na medida em que o terceiro paterno deve ser desdobrado entre a dimensão simbólica
do Nome-do Pai e a dimensão onde o Nome-do-Pai, para ser operante, tem que
encarnar um quarto elemento o “Um-pai”. Nas palavras de Lacan (1998, p.584):
“Mas, como pode o Nome-do-Pai ser chamado pelo sujeito no único lugar de onde
poderia ter-lhe advindo e onde nunca esteve? Através de nada mais nada menos que
um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai.” Fica claro
nesta passagem que é o Um-pai quem invoca o Nome-do-Pai.
Refletindo sobre isso, Didier-Weill se pergunta como podemos definir de
forma mais precisa o que seria a tarefa do pai da realidade, já que estando num lugar
de sustentação da função simbólica, como fazer isto sem incluir aí as suas falhas, as
suas faltas?
Podemos observar que, de fato, o pai da realidade é estruturalmente
discordante do pai simbólico, na medida em que não pode ditar toda a lei; por isso ele
vai ser sempre carente e é nisto que consiste a possibilidade de ele assumir uma
posição de promoção da lei. O questionamento acima nos remete à história do sujeito
que é o pai, suas formas de lidar com a lei e as marcações que esta lhe impôs,
fundamentais para pensarmos a possibilidade de o pai sustentar a função simbólica,
podendo assim transmitir a falta ao filho, a falta que o marcou ao longo de sua vida. O
31
engendramento de tais fatos dar-se-á em cada caso em particular, tomando-se sempre
o cuidado de não generalizar as situações, não perdendo de vista a clínica.
A lógica quaternária se apresenta ao longo da obra de Lacan de diversas
formas e podemos percebê-la também no Seminário 4, A relação de objeto (1956-57).
Por isso, consideramos importante retomar algumas de suas formulações quando
Lacan introduz inicialmente a tríade imaginária - mãe-criança-falo - tríade pré-
edípica, ao tratar da questão do objeto do desejo. A relação mãe-criança, concebida de
início como uma relação concebida como dual, plena, uma típica relação em espelho,
que se evidencia no eixo imaginário ‘a------a’, a partir da introdução da tríade
imaginária, é subvertida, pois pode-se pensar a falta da mãe, a castração, que é
marcada pela linguagem. O falo, neste momento um objeto imaginário, é a evidência
da falta, pois é o objeto do desejo da mãe. A criança, num primeiro tempo, permanece
identificada a este objeto, até o tempo em que se dá o que Lacan chama no Seminário
As formações do inconsciente (1957-58) - de primeira simbolização, com o jogo do
fort-da. Aí, a ausência da mãe aponta para o fato de que o desejo dela se direciona
para outra coisa que não só para a criança. O falo é o significado das idas e vindas da
mãe, e é isso que permite a entrada do pai num momento posterior. Lacan apresenta
neste ponto o triângulo simbólico, mãe criança pai, que seria complementar ao
triângulo imaginário, e marca esta relação entre os dois quando afirma que há uma
simetria entre falo e pai. Esta simetria caracteriza-se por ser uma ligação de ordem
metafórica e é isto que nos leva para a dialética do complexo de Édipo. No Seminário
5, ele pretende articular a posição do significante paterno no simbólico com a posição
do falo no plano imaginário. É o pai como significante que vem simbolizar o falo e
isto significa simbolizar a falta, a castração, pois o falo é o significante que aponta
para a castração.
32
Ao se dar conta de que o objeto concebido puramente como imaginário não
era suficiente para situar os fenômenos do desejo, Lacan, ao longo do Seminário
4(1956-57), dá um salto e passa a caracterizá-lo como simbólico. É neste momento
que ele chama atenção para a função de um “quarto elemento”, um quarto termo na
estrutura, voltando a definir a existência de quatro termos para a estruturação do
sujeito, tal como havia indicado em “O mito individual do neurótico” (1953). Com
isto, ele já dá indícios da diferenciação entre o significante fálico e o significante
Nome-do-Pai, o que realmente ficará mais esclarecido muito mais tarde no Seminário
sobre o Avesso da psicanálise (1969-70).
Contextualizar na obra lacaniana a diferenciação entre o falo e o Nome-do-Pai
e a desvinculação entre a castração e o Édipo, o que será desenvolvido mais adiante, é
de extrema importância para pensarmos a questão da psicose, na medida em que
evidencia que, por mais que o sujeito na psicose sofra os efeitos da foraclusão do
Nome-do-Pai, o que define um acesso diferenciado ao simbólico, ele não escapa aos
efeitos da castração, da ação da linguagem.
A estrutura triangular pré-edípica indica o momento em que a criança, ao se
deparar com o fato de que não é o falo da mãe, entra no Édipo. Essa estrutura marca a
existência de todo sujeito, inclusive a do psicótico. O que ocorre na psicose é que, ao
entrar no Édipo, algo não se completa, ou seja, o pai como função simbólica não se
inscreve, e é esse o fato que determina para o psicótico um destino diferente em
relação ao neurótico. Nas palavras de Lacan (1985, p.229)
8
: “Numa psicose,
admitimos perfeitamente que alguma coisa não funcionou, não se completou no Édipo
essencialmente. (…) A psicose consiste em um buraco, uma falta ao nível do
significante.”
8
Em O Seminário, Livro 3: As psicoses (1955-56).
33
Observamos que Lacan vai apontando, ao longo do Seminário 4 (1956-57),
que o pai real é o agente da castração, definindo esta paralelamente à frustração e à
privação e indicando a questão da falta do objeto nessas três operações. A castração é
função simbólica, concebida na articulação significante; a frustração é imaginária e a
privação é da ordem do real. Em relação ao pai real, Lacan define-o como agente da
castração, pois cabe a ele o trabalho da agência-mestra. Mais tarde, no Seminário
17(1969-70) Lacan esclarece melhor o conceito de pai real, que muitas vezes aparece
de forma ambígua no Seminário 4, indicando o pai da realidade. Como afirma no
Seminário 17: “ o pai real nada mais é que um efeito da linguagem, e não tem outro
real. Não digo outra realidade, pois a realidade é uma outra coisa.” (Lacan, 1992,
p.120).
Neste último texto, fica claro que a castração não é uma fantasia e sim uma
operação real introduzida pela incidência do significante. Portanto, o pai nada mais é
do que o suporte da castração, deixando de ser o pai natural, sendo assim o pai real, já
que é a linguagem que promove a castração e que permite que haja a função
significante do Nome-do-Pai. Neste momento, ele desvincula a castração do
Complexo de Édipo, indicando que ela é anterior, desfazendo alguns equívocos, o que
é fundamental para pensar a questão da psicose. Assim, Lacan descola o significante
fálico do significante paterno, o que nos faz pensar que na psicose o sujeito se depara
com a falta, que não é, contudo, simbolizada, devido ao não funcionamento do
significante paterno, o Nome-do-Pai. Esta desvinculação entre falo e Nome-do-Pai
é indicada pela própria fórmula lacaniana da metáfora paterna, como nos diz Porge
(1998, p.188): “(...) a fórmula de Lacan introduz já uma disjunção entre Nome-do-Pai
e falo. O falo não é o significado do Nome-do-Pai, mas um significante, que
representa para um outro significante”.
34
Sendo o pai real o agente da castração, onde se situa o pai natural? Ele (ou
qualquer pessoa que ocupe seu lugar na dinâmica familiar) está presente nas três
consistências de pai descritas por Lacan: pai simbólico, pai imaginário e pai real,
estando nos três lugares ou em nenhum, pois se trata de lugares, representações. Fala-
se assim em posições ocupadas pelos sujeitos e pelo pai, que pode ser um excelente
pai, mas pode não ter transmitido a falta, a castração para o filho. Mas como assim?
Se a castração, tal como Lacan deixa claro no Seminário sobre O Avesso da
Psicanálise (1969-70), é fruto da linguagem, do significante, e não de um pai que não
foi pai, o que significa não transmitir a falta ao filho? Se é a linguagem quem castra,
todo humano há de ser castrado. Mas, trata-se aqui de uma operação simbólica, e
quando o pai não funciona como suporte desta operação simbólica, o filho vai se
haver com isto. Digo suporte, pois é o suporte da função paterna que delimita a
castração e quando isto, por algum motivo, não vai bem, a castração, enquanto falta,
não é simbolizada, delimitada, permanecendo imaginarizada, e neste sentido ela pode
ser pensada como uma privação. É o real do pai que indica que ele é furado, sendo o
que permite que ele tenha uma eficácia simbólica sobre o sujeito.
Foi no Seminário RSI de 1974-75 que Lacan utilizou o termo père-version
para falar do real do pai, que define justamente uma posição do pai não direcionada
para a criança, mas direcionada para uma mulher, uma vez que ela se apresenta como
causa de seu desejo.
Ao se referir à versão do pai, Lacan faz um jogo de palavras entre perversion e
père-version, indicando que perversion caracteriza o lado perverso do gozo paterno e
que o pai, ao promover a lei, produzindo o corte, está colocando seu gozo em jogo e
isto tem sua eficácia na estruturação do sujeito como indica Vegh (1997). Père-
version quer dizer também a versão do pai, a versão que é eficaz na produção da
35
divisão de águas entre o destino de um psicótico e o destino de um neurótico. Neste
sentido, referindo-se à versão paterna, o autor afirma que o real do pai é o impossível
de ser dito e de ser coberto pela representação. O real do pai indica que ele é furado e
é isto que faz com que ele tenha uma eficácia simbólica sobre o sujeito, sendo sua
presença real que produz um destino não psicótico para o filho. É preciso reconhecer
a falta para transmiti-la ao filho. Estamos nos referindo aqui à presença e à ausência, o
que determina o simbólico, mas aponta para o real, pois a presença é sempre não-toda,
o que nos lembra que o real é o limite interno do simbólico.
No caso Schreber, seu pai, onipotente, se impôs a ele, como vimos, de forma
avassaladora, sem furo, identificando-se à lei e foi isso que fez com que ele não
transmitisse a falta ao filho. Não é por acaso que o delírio de Schreber foi marcado
pela idéia de redenção do mundo e criação de uma nova raça de homens. Aliás, como
podemos observar neste exemplo, é fundamental destacar que, entre a função do
significante Nome-do-Pai e qualquer um que venha a ocupar esse lugar de pai, existe
uma hiância que não pode ser preenchida, o que evidencia o furo que marca o
simbólico. Na psicose, parece que o pai não funciona como suporte da castração, que
permanece não delimitada, o que indica que o pai real não teve uma eficácia
simbólica. Isto nos leva a perguntar: o que faz com que o pai seja suporte da falta,
simbolizando-a para o sujeito? O que faz com que ele seja não-todo? O que ocorre
com o pai na psicose, para que ele se apresente para o filho como todo, como não
delimitando a falta? Estas questões são difíceis de responder, mas, provavelmente, o
lugar que o pai real ocupa num caso de psicose, tem intensa relação com o lugar que a
mãe ocupa para este pai. Como nos indica Julien (1999), o real do pai é um homem
estar com seu desejo e seu gozo orientados para uma mulher e não para a criança. E a
36
mulher, que além de ser mulher também é mãe, para onde aponta seu desejo? Nas
palavras de Lacan (1992, p.105)
9
:
O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não
é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente.
Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês
estão a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de
estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso. (…) Há um rolo,
de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e
isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que os
põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha.
Assim, é o falo que impede que a mãe devore o filho. Ao retomar o Seminário
sobre A relação de objeto (1956-57), observamos que nele Lacan já apontava isto
quando apresentou a tríade imaginária: mãe-criança-falo. O falo pode ser imaginário
ou simbólico, sendo o pai como significante, como Nome-do-Pai, que vem simbolizá-
lo.
Neste ponto, é importante assinalar que há dois momentos na teoria de Lacan
sobre a psicose. No primeiro, ele a caracteriza como efeito de uma falha no simbólico,
definindo-a a partir do conceito de foraclusão, que pode ser pensada como a não-
inclusão ou não-inscrição do significante paterno. Nesta parte do trabalho tivemos o
objetivo de situar tal tempo junto com a preocupação de indicar alguns avanços
importantes para a reflexão sobre a clínica da psicose.
Ao “desmistificar” a tríade edípica, indicando a existência de quatro
elementos, além do ternário pai, mãe e criança, podemos pensar que Lacan anuncia
algo que mais tarde será elaborado a partir da introdução do nó borromeano como
modo de articulação dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário. O nó
borromeano é mencionado pela primeira vez no Seminário 19, Ou pior (1971-72).
9
Em O Seminário, Livro 17(1969-70).
37
É nos anos posteriores, nos Seminários Os não-tolos erram (1973-74), RSI
(1974-75) e O Sinthoma (1975-76) que, efetivamente, desenvolve a teoria dos nós, o
que faz com que o simbólico não tenha mais primazia sobre os outros registros, pois,
no nó, há equivalência entre eles.
10
No Seminário RSI (1974-75), definiu inicialmente
o nó borromeano a três, deixando claro que ele é o que confere aos três registros uma
medida comum, unindo-os e, ao mesmo tempo, tornando-os distinguíveis um do
outro, apesar de estarem unidos. No entanto, se um desata, todos desatam essa é a
propriedade borromeana: “ (…) para que o nó consista como tal, existem três
elementos, e é como três que esses elementos se suportam: nós os reduzimos a serem
três e somente aí está o que faz seu sentido. (…)” (Lacan, inédito, p.11). Mais adiante,
neste mesmo texto, ele vai falar do nó borromeano a quatro, sendo o quarto elo
designado pelos termos de realidade psíquica e complexo de Édipo, fazendo uma
referência a Freud, e também pelo de Nome-do-Pai, sustentando a amarração dos três
registros. Esse quarto elemento que amarra os outros três será definido no Seminário
seguinte, O Sinthoma (1975-76) como sinthoma.
Neste trabalho, onde ele se debruça sobre a escrita de James Joyce, concebe
uma outra amarração possível, para além do Nome-do-Pai. Sustenta a hipótese de que
a arte de Joyce supriu sua falta de sustentação fálica, já que houve uma foraclusão de
fato, já que, em Joyce, há efetivamente o traço da foraclusão do Nome-do-pai. A arte
permitiu, assim, uma outra amarração do nó, que não pelo Nome-do-Pai. Lacan indica
isto, mesmo não tendo afirmado que Joyce era um psicótico, pois não houve um surto,
um desencadeamento da psicose. No entanto, diante da foraclusão do Nome-do-Pai, o
que surge é o desejo de criar um nome, um nome próprio, por meio da escrita. Neste
momento, Lacan está caracterizando a psicose, não como efeito de uma ausência ou
10
Conforme Rinaldi, D. Joyce e Lacan: algumas notas sobre escrita e psicanálise, 2006 (no prelo).
38
como algo deficitário em relação à neurose, mas como algo que pode ser positivado,
no caso de Joyce, pela arte da escrita.
Joyce, de um modo privilegiado, visou com sua arte o quarto termo do nó, o
que deu um sentido a sua vida. A partir daí, Lacan questiona: Como uma arte pode
visar, de maneira divina, substancializar em sua consistência, e igualmente em sua
existência, esse quarto termo essencial ao nó? É este o ponto de partida de Lacan
neste Seminário. Ao se debruçar sobre a arte de Joyce, questiona o modo como ele
supre o desnodulamento, supondo que o desejo de ser um artista seja exatamente a
compensação do fato de que seu pai nunca foi um pai para ele. O nome próprio faz
aqui tudo o que pode para suprir a ausência do pai.
A partir do que se produz com Joyce, num prolongamento do que já vinha
elaborando no Seminário RSI (1974-75), Lacan constata que o mínimo que se pode
esperar da cadeia borromeana é esta relação de um a três outros e é sobre três
suportes que um quarto termo tomará apoio. Pensar o nó borromeano a quatro
introduz uma diferença é o que ele chama de diferença comum aos três. Esse quarto
termo ele define como o sinthoma, caracterizando-o como o elemento que permite ao
simbólico, ao imaginário e ao real manterem-se juntos. Situa o sinthoma como
produzindo-se no mesmo lugar onde o traçado do nó faz erro. Erro é o que se entende
por lapso e é sobre o lapso que se funda, parcialmente, a noção de inconsciente. Desta
forma, o sinthoma está no próprio lugar onde o nó rateia, onde está o lapso do nó. É
neste ponto que podemos pensar a desmontagem do nó no que diz respeito à psicose.
Neste momento, Lacan está se referindo ao sinthoma como quarto elemento a
propósito do que foi vivenciado por Joyce a partir de sua arte. Esta foi amarradora
para ele, oferecendo uma suplência a sua carência paterna, articulando para ele os três
registros. Neste sentido, Lacan, no presente momento de sua obra, repensa e relativiza
39
a teoria da foraclusão do Nome do Pai já que a amarração dos três registros não se dá
somente pelo Nome do Pai, passando também por outras vias pelo Sinthoma no
caso de Joyce via a arte, através da escrita.
Enfatizar a importância da teoria de Lacan a respeito da foraclusão do Nome-
do-Pai para a reflexão sobre a psicose é fundamental, já que ela foi seu ponto de
partida no que diz respeito à clínica da psicose. Foi a partir dela igualmente que ele
pôde avançar em suas elaborações, atingindo um segundo momento quando pôde
relativizar a sua importância no tocante à compreensão da clínica. Entretanto, ele não
abre mão desta noção. Ele a mantém, mas vai além, relativizando-a. Foi por uma
imposição da clínica que se deu tal avanço, impulsionando-o a ir além deste conceito.
Acredita-se que relativizar seja o termo adequado à situação, pois, mesmo avançando,
ele não deixou de servir-se dele.
Como indica Porge (1998), após o Seminário RSI (1974-75), Lacan deixa de
recordar publicamente a suspensão de seu Seminário sobre Os nomes do pai de 20 de
Novembro de 1963. Nesta época ele estava às voltas com a articulação do Nome-do-
Pai com o real, o simbólico e o imaginário e isso se constituía numa problemática que
naquele momento não conseguia formular de modo explícito. Tal empreendimento só
se torna possível num tempo posterior, justamente a partir de 1974-75 com o
Seminário RSI, quando encontra a solução ao anunciar a quarta consistência do nó
borromeano que caracteriza como Nome-do-Pai: “É encontrando a solução que o
problema implícito torna-se explícito. Neste sentido o quarto elo é bem “explicitado”
no nó a quatro. O quarto elo explicita o Nome-do-Pai implícito nos três.” (Porge,
1998, p.154). A grande novidade que surge com esse seminário diz respeito ao novo
sentido que é atribuído ao Nome-do-Pai, que deixa de designar apenas o nome dado
ao pai, passando a designar o nome dado pelo pai o que interessa aqui não é o pai
40
como nome, mas o pai como nomeante. Em tal momento, Lacan identifica o
simbólico, o imaginário e o real ao que ele chama de nomes do pai.
Na psicose paranóica há uma indistinção dos três registros, o simbólico, o
imaginário, o real, os três são uma só e mesma coisa há uma indistinção do RSI é
nisto precisamente que consiste a psicose paranóica. Desta forma, a psicose não seria
marcada pela propriedade borromeana do nó, pois, como já dito, o que caracteriza tal
propriedade é justamente a distinção dos três registros. Colocando as três
consistências em continuidade, Lacan quebra o nó borromeano e o que ocorre na
psicose é os três registros se apresentarem de forma desamarrada, soltos, um se
misturando aos outros.
Tal elaboração aponta-nos um caminho de reflexão sobre a forma como se
apresenta o sujeito na psicose, questão fundamental para a clínica. No caso de Joyce,
o Sinthoma, como quarto elemento, veio amarrar os três registros trazendo uma marca
singular para o sujeito Joyce. Isto nos remete à questão do sujeito na psicose, de como
pensar as possibilidades de amarração que cada um pode encontrar, a partir da
clínica.
É pensando na psicose como uma estrutura que possui uma forma de
organização psíquica própria que, no próximo capítulo, seguiremos fazendo uma
reflexão sobre o conceito de sujeito na psicose.
41
CAPÍTULO II ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O SUJEITO NA
PSICOSE
Ao seguirmos os passos de Lacan quando nos convida a não recuar diante da
clínica da psicose, sustentamos a hipótese da presença de sujeito nesta estrutura,
sendo isto que nos norteia em nossa escuta clínica. Como afirma Allouch (1997,
p.387): “Seja com o que for que a psicanálise lide na clínica, jamais se trata de outra
coisa que não de sujeito”.
Lacan introduz a noção de sujeito na psicanálise partindo de uma reflexão
sobre o sujeito cartesiano, fundado no cogito: “penso, logo sou”, anunciando que se
trata do sujeito que nasce com a ciência moderna
11
, mas que é, entretanto, excluído
pela própria de seu campo de atuação. Tomando como fio condutor o cogito
cartesiano, formula a divisão do sujeito que a experiência psicanalítica atesta com
base na divisão entre saber e verdade, deixando claro que o avanço trazido pela
teoria de Descartes foi fundamental para a elaboração do conceito de sujeito na
psicanálise. Ao afirmar que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode
ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1998, p.873) indica-nos que o sujeito com o qual a
psicanálise lida é, por base, o sujeito da ciência, só que de forma subvertida. Ao
operar a subversão do sujeito cartesiano, a partir da descoberta do inconsciente por
Freud, Lacan vem demonstrar que o sujeito da psicanálise não é o sujeito da razão,
mas sim algo que surge nas falhas do discurso, nos tropeços da fala. Transforma,
desta maneira, a fórmula: “penso, logo sou” em “eu não sou lá onde sou joguete de
meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar.”(Lacan, 1998,
11
“A ciência e a verdade”(1965-66), em Escritos, 1998.
42
p.521).
12
Neste sentido, o sujeito da psicanálise constitui-se a partir da inserção do
objeto a, objeto da falta, ao contrário do sujeito cartesiano que se carateriza como
ancorado no ser.
Retomando a fórmula freudiana Wo Es war, soll Ich werden, Lacan situa o
lugar do sujeito: lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir. Ao incluir o
objeto da falta como determinante do sujeito, o cogito só tem sentido na medida em
que se vincula à fala, à linguagem. O sujeito sobre o qual operamos no campo da
psicanálise é o sujeito dividido, apreendido na estrutura da linguagem
13
.
É nesta perspectiva que Lacan evidencia que quanto ao sujeito não se trata de
algo fenomênico e sim estrutural, articulado a uma estrutura maior que é a da
linguagem, a cadeia dos significantes, sendo no ato da fala que ele pode surgir, o que
fica claro quando ele se pergunta no Seminário 5: As formações do inconsciente
(1957-58):
O que é um sujeito? Será alguma coisa que se confunde, pura e
simplesmente, com a realidade individual que está diante de seus
olhos quando vocês dizem o sujeito? Ou será que, a partir do
momento em que vocês o fazem falar, isso implica necessariamente
uma outra coisa? (…) quando há um sujeito falante, não há como
reduzir a um outro, simplesmente, a questão de suas relações como
alguém que fala, mas há sempre um terceiro, o grande Outro, que é
constitutivo da posição do sujeito enquanto alguém que fala.
(Lacan, 1999,p.186).
Na medida em que o sujeito é falante, sua relação com o outro não se fecha
numa relação dual, já que inclui um terceiro, o grande Outro que constitui a posição
do sujeito enquanto falante. É a relação do sujeito com o Outro que nos oferece o
12
“A instancia da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957), em Escritos, 1998.
13
“A ciência e a verdade”(1965-66), em Escritos, 1998.
43
caminho para investigar o que é específico do sujeito na psicose, o que pretendemos
discutir a partir da análise de um fragmento clínico.
Nara
14
é uma mulher de uns 50 anos que até dois anos atrás nunca havia
realizado nenhuma forma de tratamento. Ela chegou ao CAPS por ocasião de sua
primeira internação, acompanhada por seu sobrinho. Seus dois filhos moram em outro
estado e Nara mora sozinha num apartamento da zona norte do Rio de Janeiro. Foi
internada em virtude de um conflito com o vizinho do andar de baixo, que exigia há
muito tempo que ela consertasse uma infiltração na parede. Nara, pela constante
sensação de invasão que vive, recusava-se a permitir que qualquer pessoa entrasse em
sua casa para resolver o problema. Deste modo, o vizinho se viu obrigado a contatar a
justiça, que enviou um oficial à casa dela, intimando-a a realizar o conserto.
Encontrando-se diante de algo insuportável, Nara exaltou-se e desacatou o oficial, o
que resultou em sua prisão, seguida de encaminhamento para um manicômio
judiciário. Lá, seu sobrinho, depois de muito argumentar, conseguiu que ela fosse
transferida para um hospital psiquiátrico. Podemos identificar o episódio que
provocou a internação de Nara como o desencadeamento de uma crise psicótica, na
medida em que a fez romper com uma organização que até então vinha dando conta
de sua inserção no mundo.
Ao começar a contar o que lhe aconteceu, Nara relata a forma como se sente
na relação com o Outro, indicando-nos o seu lugar de existência no mundo, lugar
marcado e determinado pelo significante invasão. Há anos sente-se invadida por seus
vizinhos que estão sempre a lhe usurpar tudo o que tem: namorado, trabalho,
amigos… Isso se dá desde a morte do homem com quem iria se casar, pois na
presença dele se sentia protegida em todos os sentidos, inclusive financeiramente, e
14
Os nomes utilizados nesta tese são fictícios para preservar a identidade dos pacientes.
44
com sua morte tornou-se completamente vulnerável à ação deles que teve início
através do boicote ao seu trabalho. Nara deixa claro que a presença deles já existia
em sua vida antes, quando ainda era casada com o pai de seus filhos e morava na
Bahia, entretanto, era uma presença menos invasiva e mais controlável.
Nara trabalhava como costureira em sua própria casa e tinha sua clientela. Aos
poucos seus clientes foram sumindo até chegar ao ponto dela não ter mais
encomendas e ficar sem dinheiro; isso se deu paralelamente à ação deles, o que a faz
ter certeza do boicote a sua vida. Nesta época começou a ter que depender dos filhos
para viver, ficando muito fragilizada. Tentou ainda investir em um outro trabalho, de
cabeleireira em salão, ramo em que havia atuado anteriormente, mas não deu certo, já
que estava tomada e perturbada pelo boicote constante de seus vizinhos. No início tal
ação manifestava-se por alguns fenômenos esquisitos que, com o tempo foram
intensificando-se e transformando-se de fato no que ocorre atualmente: considera os
vizinhos como pertencentes a um grupo demoníaco que age contra ela por meio do
desenvolvimento de hierarquias no abstrato. É no abstrato, explica, e não por meio
da realidade concreta que eles se comunicam com ela, invadindo sua mente e seu
corpo. Por telepatia a fazem capaz de escutar tudo que falam e tramam. Essas falas
são percebidas em seu ouvido, exercendo igualmente uma pressão sobre sua mente e
é aí que se tornam insuportáveis.
Nara sente na pele a invasão do Outro, da linguagem, permanecendo colada ao
significante em sua literalidade. Tal condição, que a coloca no lugar de objeto do
gozo do Outro, é conseqüência da foraclusão do significante Nome-do-Pai, que barra
o Outro, permitindo que o sujeito se proteja de uma invasão sem piedade. É desta
forma que o sujeito se apresenta neste caso, completamente exposto à ação do
45
significante, falado e boicotado através dos fenômenos elementares (alucinações
auditivas) e do automatismo mental.
Eles me mostram às pessoas antes de eu chegar nos lugares,
mostram a roupa que eu vou vestir definindo-a por mim, isso
acontece principalmente quando vou a algum evento com pessoas
novas, que não conheço e deste modo eles me casam via telepatia
com essas pessoas que começam a agir contra mim por pressão
deles.
O automatismo mental é uma síndrome definida por Clérambault que inclui
um conjunto de fenômenos presentes na psicose, tais como o pensamento antecipado
e o eco do pensamento. Como indica Jean-Luc Ferreto (1999), o que é fundamental
do automatismo mental é justamente o quanto ele é a evidência da presença invasiva
do significante, do Outro, nos casos de psicose, já que diz respeito aos efeitos da
marca do significante na relação do sujeito com o Outro. É precisamente este ponto
que estamos considerando importante para a nossa reflexão sobre o lugar do sujeito na
psicose.
Nara luta diariamente para barrar o Outro e isso de fato se efetiva
parcialmente em virtude do tratamento que lhe oferece um espaço para falar sobre
tais acontecimentos. Esse lugar de escuta é fundamental para que ela organize todo o
conteúdo que vem do Outro de forma massiva. Tal lugar deve ser investido de um
desejo, o desejo do analista que possibilita, desta forma, a transferência com a
abertura de um espaço para o sujeito, sustentando uma existência possível. O
acolhimento da fala de Nara viabiliza para ela uma forma de existir que é fundamental
para que possa seguir se relacionando com as pessoas de um modo a se sentir menos
invadida. É neste espaço reservado que ela se permite falar o que se passa com ela,
sem medo de ser julgada ou taxada de louca. Fora deste contexto, disfarça o quanto
46
pode o seu tormento, procurando evitar conversar com eles, pois aí iriam chamá-la de
louca na rua e, louca eu não sou, diz ela. É essa abertura e a possibilidade de acolher a
fala que vem do Outro, a fala delirante, da forma mais neutra possível, ou seja, de
modo a não estranhá-la e julgá-la, que faz operar o desejo do analista e, por
conseqüência, a transferência que se manifesta no caso de Nara pela presença semanal
para compartilhar sua vivência e, desta forma, barrá-la cada vez um pouco mais. O
esforço constante, diário, de Nara para barrar o Outro ilustra de forma clara o lugar do
sujeito de estar a mercê de um Outro que não foi barrado, sendo nesta relação que
podemos identificar o sujeito.
O estado do sujeito, tanto na neurose como na psicose, depende do que se
desenrola no campo do Outro, campo da linguagem. Deste discurso o sujeito faz parte
e é desta forma que ele se implica em sua existência. É a partir do Outro que o sujeito
pode formular a questão de sua existência. Essa questão se coloca sob a forma de uma
pergunta: “Que sou eu nisso?” (Lacan, 1998,p.555). Isto diz respeito ao sexo e às suas
conseqüências, ser homem ou mulher e, por outro lado, diz respeito aos símbolos da
procriação e da morte. Nas palavras de Lacan (1998, p.556).
15
Que a questão de sua existência inunde o sujeito, suporte-o, invada-
o ou até o dilacere por completo, é o que testemunham ao analista
as tensões, as suspensões e as fantasias com que ele depara; mas
resta ainda dizer que é sob a forma de elementos do discurso
particular que essa questão no Outro se articula. Pois é por esses
fenômenos se ordenarem nas figuras desse discurso que eles têm
fixidez de sintomas, que são legíveis e se resolvem ao serem
decifrados.
15
“De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” em Escritos, 1998.
47
Ao articular o conceito de inconsciente à linguagem, Lacan enfatiza a
primazia do significante sobre o significado, já que é o significante o responsável pela
imposição do significado ao sujeito. O sujeito, desta forma, situa-se no intervalo
significante, nas falhas do discurso, surgindo como conseqüência da operação de
castração do Outro que, ao ser marcado como desejante, abre espaço para que o
sujeito possa advir. Estamos nos referindo aqui ao sujeito dividido que surge como
desejante, assim como o Outro. No caso de Nara, o sujeito fica no lugar de objeto do
Outro que faz com ele o que quer isto é, no lugar de objeto do gozo do Outro, não
sendo caracterizado na perspectiva do sujeito desejante tal como foi formulado por
Lacan inicialmente. Ao tomar como referência o sujeito desejante nos remetemos a
um sujeito que foi afetado, atravessado pela falta em sua relação com o Outro. Na
psicose, a partir do caso de Nara, podemos pensar que a relação do sujeito com o
Outro não foi atravessada pela falta, já que é uma relação não dialetizada, não
mediada.
Em sua tese de doutorado Sujeito e Psicose (2000) Angela Pequeno anuncia
“duas versões” para o sujeito que nos ajudam a pensar o modo como ele se situa na
psicose. Ao realizar uma diferenciação entre o sujeito do significante e o sujeito do
gozo, caracteriza o primeiro como o sujeito desejante, aquele ao qual nos referíamos
no parágrafo acima. Para que ele advenha é necessário que o lugar do Outro seja
marcado por uma falta, determinando-o como falta-a ser, como desejante. Lacan em a
“Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”(1960) define
que:
um significante é aquilo que representa o sujeito para outro
significante. Esse significante, portanto, será aquele para o qual
todos os outros significantes representam o sujeito: ou seja, na
falta desse significante, todos os demais não representariam nada.
Já que nada é representado senão para algo. (Lacan, 1998, p.833).
48
É o significante Nome-do-Pai, responsável pela barra do Outro, que organiza a
cadeia significante no inconsciente, fazendo a articulação entre S1 e S2. Na
foraclusão desse significante, como já foi trabalhado no capítulo anterior, S1 não se
articula a S2, o que faz com que esse primeiro significante para o qual os outros
significantes representam o sujeito, fique solto, desarticulado. Como conseqüência
disto, não se instaura uma falta no Outro e o sujeito fica no lugar de objeto do gozo
desse Outro absoluto, não castrado.
No Seminário sobre O Avesso da psicanálise (1969-1970) Lacan, ao deixar
claro que a linguagem é a condição do inconsciente, evoca a cadeia significante para
pensar quatro possibilidades de discursos: o discurso do Mestre, o discurso
universitário, o discurso da histérica e o discurso do analista, que organizam as
posições simbólicas no laço social. Desta forma, todo discurso diz respeito ao gozo, e
a relação do sujeito com o gozo refere-se a sua constituição primitiva, inaugurada a
partir da operação significante que situa o sujeito no intervalo entre dois significantes.
Da relação entre S1 e S2 surge o sujeito e desta operação algo resta, o objeto a, objeto
causa do desejo, portanto, determinante do sujeito. Lacan afirma neste momento que
a relação com o gozo “se acentua subitamente por essa função ainda virtual que se
chama a função do desejo”(Lacan, 1992, p.17).
Para especificar a relação do sujeito com o Outro é importante pensar como se
estabelece a relação do sujeito com o gozo. Lacan retoma Freud, numa tentativa de
articular o que nele pode ser identificado ao que caracteriza como gozo. Ao fundar a
noção de inconsciente, Freud nos permite situar o desejo. Em “Além do princípio do
prazer” (1920), menciona a questão da repetição para definir a pulsão de morte. Lacan
privilegia este texto para mostrar a articulação entre pulsão de morte e gozo, através
49
do conceito de repetição, ao afirmar que é o gozo que necessita da repetição. Em suas
palavras:
Na medida em que há busca do gozo como repetição que se produz
o que está em jogo no franqueamento freudiano o que nos
interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é
propriamente aquilo que se dirige contra a vida. É no nível da
repetição que Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria
estrutura do discurso, a articular o instinto de morte.
16
A repetição define um ciclo que busca o retorno ao inanimado, e é neste ponto
que podemos fazer uma ligação com o gozo tal como descrito por Lacan, indicando
que, na produção da linguagem há uma perda de gozo, e a repetição seria uma
tentativa de recuperar este gozo perdido. Porém, como Freud afirma, o próprio
processo de repetição implica numa perda na qual se origina, no discurso freudiano, a
função do objeto perdido. É no lugar dessa perda, introduzida pela repetição, que
Lacan situa o que chama de objeto a, sendo por meio deste que o gozo se introduz na
dimensão do ser do sujeito. Portanto, o que diz respeito ao gozo está diretamente
ligado à falta que circunscreve o desejo, como nos diz Lacan, “(…) esse ponto de
perda, é o único ponto, o único ponto regular por onde temos acesso ao que está em
jogo no gozo. Nisto se traduz, se arremata e se motiva o que pertence à incidência do
significante no destino do ser falante.”
17
. Desta forma, não há discurso que não seja
discurso do gozo, ou seja, discurso da falta.
E na psicose, como se dá a relação do sujeito com o gozo? Ao nos determos
no caso de Nara, observamos que em sua relação singular com a linguagem ela, ao
falar, esboça a fala do Outro, mostrando-se atada à experiência invasiva vivida em
sua relação com o abstrato - o abstrato é o Outro, a própria linguagem. O gozo
aparece aí não delimitado pela falta e, portanto, invasivo para o sujeito. Como
16
Ibid., p.43.
17
Ibid., p.49.
50
acentua Lacan, é através de um gozo circunscrito pela falta “que se estabelece a
divisão em que se distingue o narcisismo da relação com o objeto.”
18
A relação do sujeito com a linguagem se dá de um modo em que ele não se
insere ou não é inserido no que chamaríamos de discurso, ou seja, o sujeito está na
linguagem, mas não está no discurso. E o que é estar no discurso? É estar numa
relação dialetizável, de troca com o Outro e não subsumido ao Outro. Neste sentido, o
sujeito, ao falar, esboça uma fala que não é compartilhada socialmente, colocando-se
à margem do que poderíamos chamar de laço social.
No Seminário sobre As psicoses (1955-56), ao teorizar a respeito da psicose,
Lacan considera os fenômenos que ocorrem nesta estrutura clínica como fenômenos
de linguagem, enfatizando que a psicose provém de algo que se situa justamente nas
relações do sujeito com o significante. Há uma relação especial do psicótico com a
linguagem que determina o sujeito. O psicótico é um testemunho aberto do
inconsciente e a psicanálise, neste sentido, legitima o discurso delirante como
discurso do inconsciente, por ele estar amarrado ao significante na sua mais pura
literalidade.
O acesso do psicótico ao simbólico é, deste modo, singular, o que não
significa, contudo, que ele esteja excluído de tal registro, pois este preexiste ao
sujeito. Lacan explica que o psicótico fica no lugar de testemunha aberta do
inconsciente, do discurso do Outro, por ele não ter o véu do recalque que protege o
neurótico em sua relação com o Outro, definindo um lugar para ele de ser gozado
pelo Outro incessantemente, como nos atesta Nara. A passagem supracitada sobre o
sujeito no Seminário 5 (1957-1958), indica muito claramente que quando falamos,
nos remetemos a um outro (semelhante) e, por meio desta relação, nos remetemos ao
18
Ibid., p.47.
51
Outro. Na psicose, por não haver uma mediação simbólica, o outro é tomado como
Outro absoluto que invade e ordena. Acredito ser neste sentido que Pequeno (2000)
caracteriza o sujeito da psicose como sendo o sujeito do gozo e não do significante.
Retomando o início deste capítulo, consideramos que no exercício da clínica
da psicose, aposta-se justamente na existência do sujeito, um sujeito que se organiza
com bases em uma estruturação específica, e que marca sua diferença em relação à
neurose, por exemplo. Todavia, por que estamos sempre a comparar a psicose com a
neurose? Isso parece facilitar a abordagem da psicose, mas, ao contrário, pode
igualmente dificultar sua apreensão, o que não exclui o que essa comparação pode
trazer de contribuição. Entretanto, ao nos colocarmos diante da clínica as diferenças
vão existir para cada sujeito, independente da estrutura clínica que investigamos. Por
isso a clínica é fundamental para abordar as questões que determinam cada sujeito e
sua riqueza está em não generalizarmos o que é específico de cada um.
No Seminário sobre As psicoses (1955-56), ao especificar a relação particular
do psicótico com a linguagem, Lacan enfatiza que “(…) convém escutar aquele que
fala, quando se trata de uma mensagem que não provém de um sujeito para-além da
linguagem, mas de uma fala para-além do sujeito” (Lacan, 1998,p.581).
19
Identificamos o sujeito pelo modo como constrói e como dirige sua fala ao outro, seja
pelo delírio ou por uma posição de apagamento que muitas vezes aparece nos casos
de psicose. Nesta perspectiva, no Seminário sobre Le Sinthome (1975-76), Lacan
volta a se referir à condição parasita da palavra, da linguagem, quando analisa a
presença de palavras impostas no caso de Joyce. Ele assinala que todo ser humano, ou
seja, todo ser que está mergulhado na linguagem, é, de certa forma, vítima da
condição parasitária da palavra. Entretanto, diz: “A questão é mais de saber por que é
52
que um homem normal, dito normal não percebe que a palavra é um parasita? Que a
palavra é uma cobertura. Que a palavra é a forma de câncer pela qual o ser humano é
afetado.”(Lacan, 2005 (inédito), p.95)
Esta afirmação nos coloca diante da diferença que marca a relação do sujeito
na psicose com a linguagem, encontrando-se no lugar de refém de sua condição
parasitária, invadido por ela, manipulado por ela. Neste sentido, observamos que a
palavra é colocada na relação com o sujeito como lhe sendo exterior, vinda de fora e
não de dentro, o que significa não se apropriar, não ter o domínio da linguagem, ou
pelo menos a ilusão de ter tal domínio. Todos os seres humanos, seres de linguagem,
são dominados, de uma certa forma, por ela, no entanto, alguns, os ditos normais, têm
a ilusão de que a dominam e isso, por ser um dado da estrutura, parece ser suficiente
para protegê-los da condição parasitária da linguagem.
Para refletirmos sobre a forma como, na psicose, o sujeito se dirige ao
outro/Outro, é importante lembrarmos como Schreber se endereçou a seu médico, o
Dr. Flechsig , o que vem atestar a relação transferencial que se deu entre os dois. Foi
ele quem atendeu Schreber por ocasião de sua primeira doença, um período anterior a
instalação de sua crise. Nesse momento ele obteve um certo sucesso no tratamento,
ganhando a afeição por parte de Schreber e de sua esposa. Mais a frente, num tempo
posterior, quando realmente a crise delirante se instalou, o médico mudou de lugar,
havendo uma inversão: ao invés de ser objeto da afeição virou objeto do ódio. Esta
inversão, segundo Freud, teria relação com o impulso homossexual que estaria na
base da paranóia, o que vai ser questionado por Lacan. Dr. Flechsig ganha assim o
lugar de perseguidor que exerce uma forte influência sobre Schreber.
19
“De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”(1957-58) em Escritos, 1998.
53
No entanto, é à Flechsig que Schreber se endereça por meio do pedido para
que realize um exame benévolo de seus escritos, suas memórias. Flechsig ganha um
lugar na transferência lugar que fica evidente na carta aberta escrita para ele lugar
de destinatário. Pede desculpas pelas coisas que escreveu sobre ele; no entanto, as
reforça, atestando sua posição delirante ao evidenciar a real influência emanada do
sistema nervoso de Flechsig sobre o seu sistema nervoso. Afirma com toda certeza
que mesmo à distância Flechsig manteve com seus nervos uma relação hipnótica e
sugestiva. O que é interessante pontuarmos aqui é a importância do endereçamento do
discurso delirante ao outro como tendo função de estabilização para o sujeito que se
produz aí. Para que isso efetivamente se dê é preciso que o discurso delirante seja
acolhido pelo destinatário para que realmente ganhe um sentido de estabilização e não
se transforme em puras letras sem sentido.
O discurso delirante de Schreber foi endereçado ao outro, numa tentativa de
ser reconhecido pelo Outro, aquele ao qual nos dirigimos para além do semelhante, do
outro imaginário. Como ele demonstra pelo “sistema do não-falar até-o-
fim”(Schreber, 1985, p.209), a interrupção da mensagem aponta para um abandono ao
qual o psicótico está sujeito, não sendo reconhecido pelo Outro. A articulação
delirante de Schreber indica que não ter o reconhecimento do Outro faz com que o
sujeito seja constantemente invadido por uma “coação a pensar”, frases interrompidas
e desconexas. Neste sentido, ao ser acolhido pelo destinatário, que pode ser o
psicanalista, o discurso delirante tem possibilidade de ganhar um sentido de
ancoramento e de organização para o sujeito.
O trabalho clínico com a psicose, desta forma, deve caminhar na direção de
acolher ou até produzir um possível endereçamento, criando condições para que o
sujeito, que muitas vezes parece não estar lá, possa encontrar um espaço de
54
existência. Para que isto seja possível, é preciso acompanhar o psicótico na criação
de meios para barrar o Outro, sendo este trabalho o que Lacan chamou de secretariar,
quando nos aconselhou a ser secretários do alienado. No caso de Nara isto se produz
a cada dia por meio de um acolhimento de sua produção delirante, o que tem lhe
possibilitado um lugar de existência menos invadido e portanto, menos sofrido.
No próximo capítulo examinaremos a questão da transferência, realizando um
breve histórico sobre a construção do conceito em Freud e Lacan, a partir da seleção
de alguns textos e algumas passagens pontuais, elaborando um caminho para a
reflexão de questões que envolvem os impasses da transferência na psicose. Com esse
histórico serão sublinhadas as dificuldades que Freud introduz com relação a
possibilidade de transferência na clínica da psicose, e, a partir da teoria lacaniana,
encaminhar e desenvolver a hipótese da existência de uma articulação entre
transferência e desejo do analista, de forma especial na clínica da psicose.
55
CAPÍTULO III PONTUAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE
TRANSFERÊNCIA EM S.FREUD E J.LACAN A TRANSFERÊNCIA NA
PSICOSE
O conceito de transferência foi desenvolvido por Freud a partir da clínica da
neurose, tendo sido por meio do tratamento das histéricas que ele se deparou com tal
fenômeno, a princípio, imprevisto. O fenômeno surge, desta forma, como um
obstáculo ao bom andamento do trabalho por manifestar-se, numa primeira
experiência, sob a forma de um intenso interesse do paciente pelo analista, que Freud
deixa claro de imediato não se tratar da pessoa do analista, mas sim do que ele
representa.
Foi nos “Estudos sobre a histeria”(1893-95) que surgiu pela primeira vez tal
conceito na obra freudiana. Oficialmente a psicanálise ainda não havia nascido, o que
só viria a acontecer em 1900 com “A Interpretação de sonhos”. No entanto, nos
“Estudos sobre a histeria”, já estava presente o conceito de transferência,
principalmente na apresentação do Caso Anna O, caso atendido por Joseph Breuer.
Como acentua Lacan no Seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964), foi a propósito deste caso que se descobriu a transferência. É neste
sentido que ele diz que toda teoria da transferência está intimamente ligada ao desejo
do analista, o que será desenvolvido mais adiante.
Breuer se encantou com sua paciente assim como ela com ele, chegando
mesmo a fazer uma gravidez imaginária. A transferência que se instalou, por um lado,
foi fundamental para que Anna falasse tão intensamente, estabelecendo a famosa
“cura pela fala”, mas por outro lado, no que se refere a implicação de Breuer na
situação de transferência, acabou por atrapalhar o andamento do tratamento, já que ele
56
não soube lidar com a transferência, o que provocou a interrupção do tratamento. A
transferência é fundamental para que o processo analítico se dê, porém deve ser
manejada, manobrada, para que não impeça o processo. É um obstáculo caracterizado
como uma resistência, por um lado, mas por outro é o motor do trabalho analítico. É
sinal de que o inconsciente está presente manifestando-se na própria repetição
sintomática que caracteriza o tratamento, tal como indica Freud.
É importante pontuar que a noção de transferência foi utilizada por Freud em
algumas passagens de “A Interpretação de sonhos” (1900), onde ele se refere à
transferência no sentido de deslocamento, ao mencionar como o sonho se apropria dos
restos diurnos, montando-os com um sentido diferente a serviço do desejo
inconsciente, que é o responsável pelo sonho. Geralmente eles “pegam carona” nestes
restos diurnos para se expressar de uma maneira aceitável para a consciência. Neste
sentido a transferência é pensada como uma formação do inconsciente. Entretanto,
como Freud a conceituará mais adiante, ela tem a particularidade de se manifestar no
tratamento, uma vez que surge endereçada ao analista, incluindo-o, o que a diferencia
das outras formações do inconsciente. Em “Fragmentos da análise de um caso de
histeria”(1905[1901]), o caso Dora, Freud caracteriza a transferência como:
reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o
avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas
com a característica (própria do gênero) de substituir uma pessoa
anterior pela pessoa do médico. Dito de outra maneira: toda uma
série de experiências psíquicas prévia é revivida, não como algo
passado, mas como um vínculo atual com a pessoa do médico.
(Freud,1996, p.111).
Freud abordou neste trabalho a questão da transferência, fazendo uma análise
de sua posição com relação à Dora, com o objetivo de refletir sobre o lugar em que foi
colocado por ela na transferência, a partir do que poderíamos designar como desejo
57
do analista, desejo de escuta, de que houvesse trabalho de elaboração do conflito
psíquico. Ele chegou à conclusão de que não conseguiu dominar a tempo a
transferência, por ter se equivocado quanto ao verdadeiro objeto de interesse de Dora,
ao acreditar que seu interesse principal era o Sr.K, não percebendo que o desejo de
Dora se voltava principalmente para a esposa do Sr.K; o homem era o mediador para
a aproximação de Dora em relação ao mistério essencial que cerca o desejo de uma
histérica: o que quer uma mulher? Isso fez com que Dora interrompesse o tratamento.
Neste texto Freud trata da transferência para esclarecer detalhes do caso,
estabelecendo uma ligação entre o que seria seu grande mérito e seu grande defeito
é justamente este o responsável pelo valor do caso, por permitir que reavaliasse sua
posição de escuta do discurso de Dora e assim desse um passo adiante na elaboração
de sua teoria. Segue seu depoimento:
(…) Não consegui dominar a tempo a transferência; graças à
solicitude com que Dora punha à minha disposição no tratamento
uma parte do material patogênico, esqueci a precaução de estar
atento aos primeiros sinais da transferência que se preparava com
outra parte do material ainda ignorada por mim (…).
20
Neste momento Freud deixa claro que o tratamento psicanalítico apenas revela
a transferência que está oculta na vida psíquica, dando a ela um colorido todo
especial, sendo considerada um produto da situação analítica. Observa-se já aqui a
introdução do aspecto da repetição presente na transferência, o que vai ser trabalhado
com mais profundidade em 1914 no texto “Recordar, repetir e elaborar”.
Em “A Dinâmica da transferência” (1912), um dos textos mais importantes
dedicados ao tema, Freud trabalha basicamente as noções de transferência e
resistência como sendo duas faces da mesma moeda. A transferência caracteriza-se
20
Ibid., p.113.
58
por ser o motor do processo analítico, ao mesmo tempo que, em sua faceta de
resistência, age no sentido de criar um obstáculo ao processo associativo que constitui
a análise. Lacan refere-se a este aspecto da transferência ao mencionar o amor como
efeito que, justamente por ser de tapeação, fecha o sujeito ao impacto da interpretação
do analista, isto é, faz função de fechamento do inconsciente e não de abertura. Há
necessidade de uma manobra do analista com o objetivo de suspender os
componentes hostis e eróticos, mas com o cuidado de manter o laço que o liga ao
analisando. O ideal do equilíbrio seria manter constante a transferência positiva de
sentimentos amistosos, o que colocaria em trabalho o processo analítico, sem oferecer
resistência. No entanto, a resistência é inerente ao processo e também fundamental,
sinal de que o inconsciente está em ação já que as defesas da consciência se
apresentam de tal forma. É esta ambigüidade que caracteriza a transferência e a
análise se efetiva por causa dela e apesar dela.
Dois anos depois, em 1914, Freud dedicou-se a pensar a relação entre a
repetição e a transferência. É neste trabalho, “Recordar Repetir e Elaborar” que surge
pela primeira vez a expressão “compulsão à repetição”, indicando a nova forma de
recordar descoberta pela psicanálise. O paciente expressa o que esqueceu e recalcou
pela atuação, ao invés de recordá-lo, repetindo-o, mas sem saber disto. É por uma
repetição desta espécie que o paciente iniciará seu tratamento. No entanto, afirma
Freud:
O que nos interessa, acima de tudo, é, naturalmente, a relação desta
compulsão à repetição com a transferência e com a resistência.
Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um
fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do
passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para
todos os outros aspectos da situação atual. (Freud, 1996, p.166)
59
Naturalmente, quanto maior a resistência maior será o trabalho da repetição, o
que substituirá o recordar. Contudo, a repetição é necessária na medida em que pode
ser considerada um processo de elaboração, o que será trabalhado por Freud em um
texto posterior: “Além do princípio do prazer” (1920). A repetição é uma repetição do
passado, mas se dá por atuação no presente, evocando fragmentos atuais, devendo ser
tratada como algo atual, apesar de o trabalho se basear em remontá-la ao passado. É
importante lembrarmos aqui o conceito de “a posteriori”(Nachträglich) em Freud, a
partir do qual acentua que o sujeito modifica a posteriori os acontecimentos do
passado, elaborando-os. Foi tendo como base essa idéia de temporalidade que a
psicanálise se fundou, partindo do futuro, do futuro para o passado, pois é só no
futuro, no depois, que o passado pode ser analisado.
Freud questiona o que se pode fazer para suspender tal compulsão do paciente
à repetição e formula que isto depende do manejo da transferência, que pode permitir
a transformação de tal compulsão num motivo para recordar. No desenvolvimento da
análise, os sintomas ganham um novo sentido, substituindo a neurose comum por uma
“neurose de transferência” acessível à intervenção do analista que, no manejo da
transferência, conduz o tratamento no sentido da superação das resistências. Em sua
palavras:
A transferência cria, assim, uma região intermediária entre a
doença e a vida real (…). A nova condição assumiu todas as
características da doença, mas representa uma doença artificial, que
é, em todos os pontos, acessível à nossa intervenção (…). A partir
das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao
longo dos caminhos familiares até o despertar das lembranças, que
aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter
sido superada.
21
60
Nesta direção Freud abordará o amor transferencial no artigo “Observações
sobre o amor transferencial” (1912) onde afirma que o amor transferencial, sob a
forma de uma atitude afetuosa em relação ao psicanalista, é necessário para a
condução do tratamento, porém, quando ele se torna o foco central e absorve
completamente o paciente, começa a interferir no bom andamento do tratamento, e
isto é sinal da ação da resistência. Ele se pergunta, afinal, de que amor se trata em tal
situação? Qual a diferença deste amor em relação ao amor existente na vida? Não se
trata de um falso amor por guardar as características do amor comum, diferenciando-
se dele, entretanto, por ser produto da situação analítica. Tal amor é fundamental para
que se dê o tratamento, porém é também sinal de resistência, se for tomado em um
sentido erótico. Neste caso, o que se observa é a interrupção da associação, não por
acaso, mas justamente quando o trabalho analítico leva o analisante a recordar algo
recalcado o que é uma evidência concreta da ação da resistência pela via do amor.
Não há dúvida que Freud criou o conceito de transferência a partir da clínica
com a neurose e direcionado a ela. Não tratou da psicose, muito embora tenha se
referido a ela em diversos trabalhos, deixando uma grande contribuição ao
desenvolver um importante trabalho sobre o tema, o “Caso Schreber” (1911), como
foi mencionado em capítulo anterior. De fato, ele recua no tocante à clínica da
psicose e tal recuo teve como base a dificuldade de o psicótico fazer laço com o outro,
o que prejudicaria a possibilidade de instauração da transferência. Freud deixa isto
evidente em alguns trabalhos importantes, como o texto “Sobre o narcisismo” de 1914
e o artigo sobre “O Inconsciente” de 1915. Mesmo assim, ele não encerra tal
possibilidade, apontando para ela sempre que possível.
21
Ibid., p.170.
61
Em “Sobre o narcisismo: Uma introdução” (1914) menciona claramente a
impossibilidade de tratar o parafrênico (termo proposto por Freud neste trabalho para
denominar a demência precoce de Kraepelin e a esquizofrenia de Bleuler) em virtude
de, nestes casos, a libido se apresentar voltada para o próprio ego, desligada assim dos
objetos. Como ele diz:
Esse tipo de pacientes, que eu propus fossem denominados de
parafrênicos, exibem duas características fundamentais:
megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo de
pessoas e coisas. Em conseqüência da segunda modificação,
tornam-se inacessíveis à influência da psicanálise e não podem ser
curados por nossos esforços. (Freud, 1996, p.82).
Neste texto considera a psicose como uma via privilegiada de acesso ao
narcisismo, já que nela a libido se apresenta voltada para o ego, oferecendo assim a
possibilidade de investigação deste estado com maior profundidade. Ao contrário do
que ocorre na neurose, na psicose há realmente a retirada da libido de pessoas e coisas
do mundo externo e isto se apresenta sem a substituição por outros laços na fantasia,
havendo um estancamento da circulação da libido. A hipótese desse estancamento
sustentada por Freud quanto à psicose traz-lhe dificuldades para pensar a transferência
nesta clínica, na medida em que conceituou a transferência como constituindo-se
justamente de investimentos libidinais, amorosos, que o paciente dirige ao
psicanalista. Se na psicose estes investimentos estão retidos no ego, como pensar a
possibilidade de transferência? Mesmo diante deste impasse, não fecha as portas ante
as impossibilidades, colocando-se num lugar de permanentemente revê-las,
repensando e questionando, quando necessário, sua posição.
No texto sobre “O Inconsciente” (1915) continua fiel à sua teoria, deixando
claro que na psicose há efetivamente um abandono das catexias objetais, o que torna
62
tais pacientes incapazes de transferir. Em dois outros textos Freud continua nesta
linha de raciocínio: as conferências “A teoria da libido e o narcisismo” e a
“Transferência”, ambos de 1916-17. Na primeira, ele se refere às neuroses narcísicas
em contraposição às neuroses de transferência, caracterizando-as como sendo aquelas
onde a libido está voltada para o ego, o que determina que não podem “ser acometidas
mediante a técnica que nos foi de utilidade nas neuroses de transferência” (Freud,
1996, p.423). Nestes casos a resistência seria intransponível. Na conferência sobre a
transferência Freud enfatiza que ela se encontra presente especificamente nas
“neuroses de transferência” como o próprio nome indica. Situa as neuroses narcísicas
da mesma forma como o faz na conferência anterior, como não estando sujeitas ao
processo da transferência, o que fica claro na passagem:
Existem, entretanto, outras formas de doença nas quais, malgrado
as condições sejam as mesmas, nossa conduta terapêutica jamais
obtém êxito. (…)utilizamos o mesmo procedimento, estamos
prontos a fazer as mesmas promessas e oferecer a mesma ajuda
apresentando idéias orientadoras (…).Ainda assim, não
conseguimos remover uma única resistência ou suprimir uma única
repressão. Esses pacientes, paranóicos, melancólicos, sofredores de
demência precoce, permanecem, de um modo geral, intocados e
impenetráveis ao tratamento psicanalítico. (Freud, 1996 p. 440).
Assinala-se que, mesmo se encontrando diante de tal impasse trazido pela
própria estrutura da psicose, Freud vislumbra uma possibilidade de transferência,
como na análise do “Caso Schreber” (1911) onde evidencia o “sentimento amistoso”
que Schreber desenvolveu para com seu médico, considerando-o um representante ou
substituto de alguém muito importante para o paciente.
Em “A Dinâmica da transferência”(1912), Freud aponta uma outra abertura,
ao indicar que nas instituições de saúde mental está presente a transferência negativa,
63
que deve de imediato ser identificada como tal para ser manejada. No entanto, ao
longo do texto ele mostra que, se a capacidade de transferência se limitar a uma
transferência negativa, nestes casos, como ocorre com os paranóicos, torna-se nula a
possibilidade de qualquer influência ou cura.
Entendemos, assim, que mesmo não seguindo adiante na construção e na
elaboração de uma clínica da psicose, Freud semeou o terreno para que Lacan
seguisse construindo a sua teoria. Diferentemente de Freud, Lacan partiu da psicose
para introduzir-se na psicanálise.
Lacan inaugura sua entrada na psicanálise através de sua tese de doutorado
“Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade” (1932), onde, por meio
de um atendimento clínico, o caso “Aimée”, nome fictício de Marguerite Anzieu,
desenvolveu uma teoria sobre a paranóia, ainda com alguma herança da psiquiatria,
mas já integrando-a aos moldes freudianos.
Lacan chama sua paciente de Aimée, que significa amada, e essa nomeação
pode ser pensada como um significante, o significante da transferência, pois é o que
marca a relação de Lacan secretário com Marguerite sabedora, como nos diz Allouch
(1997, p.452):
A relação de Lacan com a relação de Marguerite com o saber é de
um teor tal que o conduz a Freud. É uma relação que, longe de se
fechar neles dois, abre-se para Freud. O jovem psiquiatra, discípulo
de Clérambault, encontra na psicanálise algo como um respondente
à experiência que ele acaba de viver com Marguerite (…).
Marguerite tocou Lacan no que diz respeito ao saber, pois ela sabia, tinha
certeza. Neste sentido, ele se direcionou à psicanálise, através do encontro com o
saber inventado por ela, capturado pela pergunta: o que é o saber? Foi sua tese de
64
doutorado sobre uma psicótica que o levou a fazer a experiência da psicanálise, por
meio da clínica e, portanto, da relação transferencial que aí se estabeleceu.
No Seminário 8 (1960-61), dedicado à transferência, um dos pontos
trabalhados por Lacan é o conceito de transferência pela via do amor, a partir de uma
análise do Banquete de Platão. Ao situar este tema, inicialmente, Lacan nos lembra
que o amor está no começo da experiência analítica ao referir-se à primeira
experiência de talking cure, a cura pela fala, inaugurada por Anna O., paciente de
Breuer. Lacan considera esta primeira experiência vítima de um acidente inaugural
que impediu Breuer de levar adiante a condução do tratamento. Diz que Breuer “caiu”
numa história de amor, de “uma contratransferência um pouco acentuada” (Lacan,
1992, p.16). É necessário assinalar que “contratransferência” não é um termo
normalmente utilizado por Lacan apesar de aparecer nesta passagem. Ele menciona
tal noção justamente fazendo uma crítica a ela quando enfatiza a implicação do
psicanalista na situação de transferência, definindo-a como sendo uma só, onde estão
envolvidos o analista e o analisante. Ao sustentar neste momento de sua teoria a
presença de dois sujeitos na experiência analítica, evidencia, contudo, a não
equivalência da posição dos dois, pois não se trata de uma relação intersubjetiva a
intersubjetividade é o que se apresenta de mais estranho ao encontro analítico.
No entanto, é efetivamente via a análise do Banquete de Platão que vai
caminhar nesse seminário em relação à questão da transferência, ao assinalar que o
segredo de Sócrates, personagem principal do Banquete, é o que está por trás de tudo
o que dirá sobre a transferência neste ano. Esse segredo diz respeito ao saber e o saber
tem relação com o amor, como afirma: “Sócrates pretende nada saber, senão saber
65
reconhecer o que é o amor, saber reconhecer infalivelmente (…) onde está o amante e
onde está o amado.”
22
Neste sentido, nos mostra que, para se fazer entender nesse momento, vai
tomar o Banquete como se fosse um relato de sessões psicanalíticas. Ele gira em torno
do tema “de que serve ser sábio em amor?”
23
, já que Sócrates pretende ser sábio
fundamentalmente em relação ao amor. É em torno disto, mais precisamente, que se
coloca a questão da transferência no que diz respeito à situação analítica a pergunta
que se impõe ao analista é: “A saber, qual nossa relação com o ser de nosso paciente?
Sabe-se bem, afinal, que é disso que se trata em análise. Nosso acesso a esse ser será
ou não o do amor?”
24
. Tais perguntas, inicialmente, permanecem em aberto para nos
fazer pensar e para isso, continua Lacan,
“Nada de melhor podemos fazer, nesse sentido, do que partir de
uma interrogação sobre aquilo que o fenômeno da transferência é
considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se
com ele: o amor.”(Lacan, 1992.p.45).
Ao analisar o texto de Platão, Lacan conclui que foi mais precisamente o saber
de Sócrates, o saber sobre o que diz respeito a Eros, ao desejo, que fez com que
Alcebíades se encantasse por ele não há posição mais sedutora do que esta, a do
saber. Desta forma, Sócrates, estando no lugar de quem detém o saber, indica o lugar
da transferência.
Aqui já podemos notar a noção de sujeito suposto saber, ainda não formulada
de forma evidente, mas implícita. Lacan toma o diálogo que Sócrates desenvolve com
Alcebíades no Banquete como exemplar da situação da transferência, situando
preliminarmente o lugar do psicanalista como sendo o do sujeito suposto saber. A
situação analítica não pode ser compreendida, contudo, fora do registro do que ele
22
Ibid., p.15.
23
Ibid., p.36.
66
apontou como o lugar de a, o objeto parcial, o agalma na relação de desejo. Lacan
indica que Sócrates, por não atender aos apelos de Alcebíades, mantém o enigma do
desejo que se articula a falta. Neste sentido, ele contém o agalma, que é justamente o
segredo do desejo, sendo em busca disto que Alcebíades parte. Mesmo que o sujeito
não o saiba, já é no outro que o pequeno a, o agalma funciona. Nas palavras de
Lacan
25
:
Pelo simples fato de haver transferência, estamos implicados na
posição de ser aquele que contém o agalma, o objeto fundamental
de que se trata na análise do sujeito, como ligado, condicionado por
essa relação de vacilação do sujeito que caracterizamos como o que
constitui a fantasia fundamental, como o que instaura o lugar onde
o sujeito pode se fixar como desejo.
A suposição de saber que situa o lugar do analista na transferência aponta,
paradoxalmente, para um não saber sobre o desejo. É nesta perspectiva que podemos
pensar na relação entre a posição de Sócrates e a posição do analista. Sócrates diz para
Alcebíades se ocupar de sua alma. Como indica Rinaldi (1997, p. 20) em sua leitura
do seminário 8 (1960-61):
É porque Sócrates se esquiva das solicitações de Alcebíades,
mantendo o enigma de seu desejo ao mostrar-lhe que nesse lugar
não há nada, que ele pode reenviar Alcebíades para o seu
verdadeiro desejo. Aqui fica evidenciada a dupla face da
transferência, por um lado resistência e, por outro, mola
fundamental da análise.
Foi no ano de 1964, no Seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise que Lacan explicitou a noção, já presente embrionariamente no seminário
sobre a transferência, de sujeito suposto saber, ao afirmar: “Desde que haja em algum
lugar o sujeito suposto saber (…), há transferência”(Lacan, 1988, p.220). A
transferência, como suposição de saber, é um produto da situação analítica ao mesmo
24
Ibid.,p.45.
67
tempo que é a responsável por sua existência. Ao situar a transferência como
conseqüência direta da experiência analítica, a noção de sujeito suposto saber coloca
o analista em posição privilegiada, caracterizando uma estrutura de relação
dissimétrica, não dual. É exatamente esta natureza de relação que permite que o
analisante fale de seus incômodos de um modo em que estes lhe retornem como
questões, devendo-se deixar levar pela livre associação na busca da verdade sobre si
mesmo, na verdade sobre seu desejo. Essa busca se dá no limite de sua própria
palavra, de sua fala a um Outro que é seu ouvinte. É a escuta delimitada por um
silêncio que permite que a fala marcada pela palavra se desdobre e vá descobrindo
novos rumos. O silêncio não é somente a ausência de palavras, mas deve ser
acompanhado por intervenções e interpretações quando necessárias, com o cuidado
constante de não se precipitar a satisfazer a demanda do analisante.
O fenômeno da transferência se manifesta, portanto, na relação com alguém a
quem se fala, na medida em que, como nos diz Lacan no Seminário 8 (1960-61):
Tudo o que sabemos sobre o inconsciente, desde o início a partir do
sonho, nos indica que existem fenômenos psíquicos que se
produzem, se desenvolvem, se constróem para serem ouvidos,
portanto justamente para este Outro que está ali, mesmo que não se
saiba. (Lacan, 1992, p.177).
A posição do psicanalista é fundamental para que haja análise, no entanto, esta
posição privilegiada em relação ao outro deve ser cuidadosamente manejada para não
ser utilizada de forma abusiva. Em qualquer situação clínica pensamos ser
fundamental o analista seguir uma ética que implica não se aproveitar do poder que
sua função pode lhe atribuir. Trata-se “de um rigor de alguma forma ético, fora do
qual qualquer tratamento, mesmo recheado de conhecimentos psicanalíticos, não pode
25
Ibid.,p.194.
68
ser senão psicoterapia” (LACAN, 1998, p.326).
26
Neste sentido, o psicanalista não
deve identificar-se com o sujeito suposto saber, tendo claro que ele está assumindo
uma função e o saber não se refere a sua pessoa, mas sim a um lugar e isso tem
relação a um certo domínio que o psicanalista deve ter no que diz respeito ao processo
analítico, como fica evidente na passagem:
A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo em
que conduz seu paciente, em torno do quê o movimento gira. Ele
deve saber, a ele deve ser transmitido, e numa experiência, aquilo
de que ele retorna. Esse ponto-pivô, é o que eu designo (…) pelo
nome de desejo do psicanalista. (Lacan, 1988, p.219)
27
O desejo do psicanalista que Lacan destaca neste trecho tem intensa relação
com o desejo do Outro, já que é a cadeia funcionando no nível do desejo do Outro que
permite que o desejo do sujeito se constitua. Como tal, ele está relacionado a uma
falta. Desta forma, é necessário um esvaziamento de um certo saber prévio para o
analista poder assumir a função de suposto saber. O analista é suposto saber ao se
dirigir ao encontro do desejo inconsciente, sendo nesta perspectiva que Lacan vai
dizer que a transferência é a atualização da realidade do inconsciente. Isso nos faz
pensar na clínica com a psicose, já que na psicose, em virtude da ausência da
mediação do recalque, a presença do significante no Outro não é vedada ao sujeito, o
que determina que o inconsciente se apresente a céu aberto. Em virtude disto, Lacan
aponta que é nesta estrutura que encontramos a prova viva da existência do
inconsciente.
Como dito, foi justamente a clínica com a psicose que levou Lacan à
psicanálise, indicando a possibilidade de existência da transferência. Ao refletirmos
sobre a transferência na psicose ficamos convictos de que seu manejo deve ser muito
26
“Variantes do tratamento padrão” (1955) em Escritos, 1998.
27
Em O Seminário, Livro 11 (1964): Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
69
delicado, já que em tal estrutura a transferência se apresenta de forma maciça. O
outro, a forma vedada de o Outro se apresentar ao sujeito, aqui se apresenta como o
próprio Outro presença incessantemente absoluta e invasora. Esse lugar de Outro
absoluto, ao ser ocupado pelo psicanalista, evidencia a forma como se manifesta a
transferência, como perseguição ou erotomania. Contudo, é fundamental que ele
escape deste lugar a fim de promover a falta no Outro, através da constituição de uma
metáfora delirante, uma significação para o sujeito. Neste sentido, a relação com o
saber aí deve se estabelecer de uma outra maneira para o sujeito não se sentir
invadido, perseguido ou demasiado amado pelo psicanalista, sendo fundamental
analisarmos de que forma o sujeito pode elaborar seu delírio.
Ao reenviarmos a noção de sujeito suposto saber à clínica da psicose,
observamos que tal noção ganha um sentido mais nítido a partir da reflexão do que
ocorre nas psicoses, como fica claro na leitura que Allouch faz da tese de doutorado
de Lacan (1997, p.440):
De fato, é nas psicoses que se encontra, muito mais
ostensivamente que em outros lugares, a posição de um Outro
suposto saber e talvez da maneira mais pura no delírio de
suposição, onde o sujeito crê saber que o Outro sabe, sem mesmo
às vezes jamais ter necessidade de saber, de inventar aquilo que o
Outro sabe (…).
Esse Outro, contudo, é absoluto, e o saber é tomado como certeza.
Allouch (1997) sustenta que, afirmar a inexistência de transferência na psicose
é no mínimo precoce e preconceituoso. Freud, ao não reconhecer a especificidade da
transferência psicótica, considera o estudo psicanalítico das neuroses uma condição
para a abordagem das psicoses. Abordar as psicoses a partir das neuroses significa
construir um muro quase intransponível, com relação ao qual psicanálise e psicose
não se encontram do mesmo lado. Pensar a transferência psicótica com base na teoria
freudiana nos faz partir de um falso suposto, pois ele teorizou o conceito de
70
transferência a partir de sua escuta da neurose e não cabe adaptá-lo para a psicose,
pois esta é marcada por outra lógica, por outra organização. Pensar a clínica da
psicose significa considerá-la independente da neurose e de seus pressupostos. Neste
sentido, Lacan, apesar de seu retorno a Freud, não foi prolongador de Freud, pois, ao
desenvolver a clínica das psicoses e afirmar a incidência da transferência na mesma,
teve que partir de outro paradigma, para além de Freud.
É justamente pela crença presente no delírio de que o Outro sabe e, portanto,
invade o sujeito, que a posição do psicanalista como sujeito suposto saber deve ser
repensada na direção clínica do trabalho com o psicótico. Quem porta um saber aí é o
sujeito, já que ele tem certeza de que o Outro sabe sobre a sua vida, sobre seus
pensamentos, sobre a sua condição e, neste sentido, o persegue, o tortura, o faz refém,
prisioneiro. Foi exatamente este saber delirante que se caracteriza como certeza, pois
não abre “brecha” para nenhuma possibilidade de dúvida, que tocou Lacan em
Marguerite, viabilizando uma direção de tratamento que colocou o discurso delirante,
ou seja, o discurso do sujeito em questão, como o elemento norteador da escuta
clínica. A regra no campo paranóico das psicoses é o saber como sendo inicialmente
o saber do Outro, sendo a partir desse registro que a especificidade da transferência aí
se apresenta, marcada por uma estrutura ternária: o psicótico fala ao psicanalista algo
que lhe é falado pelo Outro. O psicanalista não tem aí outra escolha a não ser afirmar,
em seu diálogo com o alienado, a posição do alienado de testemunha, de narrador do
que lhe vem do Outro, exercendo a função de secretário. Mas, o que vem a ser
testemunha do discurso do Outro? Como Lacan diz, no Seminário sobre As psicoses
(1955-56):
(…) o psicótico é um mártir do inconsciente, dando ao termo
mártir seu sentido, que é o de testemunhar. Trata-se de um
testemunho aberto. O neurótico também é uma testemunha da
71
existência do inconsciente, ele dá um testemunho encoberto, que é
preciso decifrar. O psicótico, no sentido de que ele é, numa
primeira aproximação, testemunha aberta, parece fixado,
imobilizado, numa posição que o coloca sem condições de
restaurar autenticamente o sentido do que ele testemunha, e de
partilhá-lo no discurso dos outros. (Lacan,1985,p.153).
O psicanalista, ao ocupar o lugar de secretário, para além de afirmar a posição
do sujeito de testemunha aberta do discurso do Outro, pode ajudá-lo a construir um
sentido para isto que ele testemunha. Assim, seu papel é ativo, o que significa não
somente registrar o que a testemunha relata, mas tomar seu testemunho “ao pé da
letra”. Como pensar a transferência nessa relação? Allouch (1997) responde que
precisamos estar atentos à especificidade da transferência na psicose, não se podendo
dizer que o psicótico transfere tal como ocorre na neurose, mas podendo afirmar que o
psicótico coloca em ato a transferência. Deste modo, o psicanalista não deve convidar
o psicótico a falar “ o que lhe vem à mente”, a regra da associação livre, pois ele não
pode dizer ao psicanalista o que pensa porque isto não é o que lhe atormenta; o que
lhe perturba é a fala do Outro, as vozes que lhe falam quase o tempo todo. Nas
palavras de Allouch(1997, p.447)), ao psicanalista resta:
deixar ao psicótico o encargo de “por transferencialmente”,
reconhecer nele a pertinência deste ato, mediante o que é ele, o
psicanalista, quem se vê em posição de transferir. Assim Lacan
pôde dizer que a transferência psicótica é, em primeiro lugar, uma
transferência para com o psicótico.
A formulação de Lacan de que, na psicose, a transferência é uma transferência
para com o psicótico nos faz pensar na transferência do lado do analista que
pretendemos aproximar ao que chamamos de desejo do analista desejo de acolher o
delírio, o discurso do sujeito. Partimos do pressuposto de que é o desejo do analista
investido de uma condição especial, ou seja, uma certa disponibilidade para a clínica
da psicose, que pode viabilizar a transferência nesta clínica, por se tratar justamente
72
de uma clínica bastante singular e complexa. O caráter concreto e maciço com que a
transferência se apresenta na psicose exige do psicanalista uma habilidade que coloca
em cheque muito diretamente a possibilidade ou não dele desenvolver sua função de
analista, apontando-nos a necessidade de um manejo específico em cada caso, cada
situação singular. A posição do psicanalista, então, não deve ser jamais uma posição
de suprimir as alucinações e a produção delirante.
Ao sustentar o desejo do analista, o lugar de secretário ocupado pelo
psicanalista deve ser antes de sujeito suposto não saber, uma vez que nesta clínica
ocupar um lugar de quem sabe pode inviabilizar qualquer possibilidade de tratamento.
É preciso que o analista se dispa efetivamente de qualquer saber prévio para se abrir
às surpresas e ao inesperado que as produções da psicose podem apresentar. Tal lugar
é diferente do ocupado pelo psicanalista na neurose, justamente lugar de suposto
saber.
Em relação à noção de suposição de saber, ela é questionada e melhor
precisada pelo próprio Lacan numa passagem do Seminário 17 sobre “O avesso da
psicanálise”(1969-70):
O que impressiona, com efeito, nessa instituição do discurso
analítico que é a mola-mestra da transferência, não é, como alguns
pensaram ter escutado de mim, que o analista, seja ele colocado na
função do sujeito suposto saber. Se a palavra é tão livremente dada
ao psicanalisante (…) é porque se reconhece que ele pode falar
como um mestre(…). (Lacan,1992,p.34).
Podemos pensar aí numa outra dimensão da suposição de saber, pois há uma
suposição de saber no analisante. É de sua fala que surge o saber inconsciente, a partir
do não-saber. Na medida em que o analista convida o analisante a associar livremente,
está apostando no saber inconsciente. Essa passagem nos é útil para pensar no lugar
73
ocupado pelo psicanalista na clínica da psicose, onde fica evidente o saber do
analisante, neste caso o saber delirante, o saber do Outro, daí a importância da escuta
se dar a partir de um não saber, permitindo ao psicótico construir uma rede de
sentidos e significações em relação ao que lhe é endereçado enigmaticamente.
É neste sentido que podemos pensar a transferência em sua relação com o
desejo do psicanalista, pois se o analista não ocupa um lugar desejante, não há como
haver a transferência. Seguindo a orientação de Lacan, a transferência é um fenômeno
único, situando-se entre o analista e o analisante, envolvendo os dois lados que estão
em posições diferentes. Em relação à transferência que afeta, que toca o analista,
aposta-se que ela pode se manifestar pelo desejo do analista, o que viabilizaria a
transferência do paciente e a possibilidade de o tratamento se efetivar.
Este lugar de escuta sustentado pelo psicanalista deve seguir parâmetros
diferentes dos adotados no caso da clínica com a neurose. Isso é fundamental se
quisermos realmente pensar em uma clínica da psicose. Como indica Zenoni (2000),
invertendo os termos da equação freudiana, ao invés de se aplicar a psicanálise com
neuróticos à psicose, o que resulta infrutífero, aplica-se a psicose à psicanálise, pois a
própria psicose nos ensina sobre sua estrutura, sua lógica, indicando-nos o caminho
de escuta que devemos seguir, por meio das soluções que ela mesma encontra para
lidar com a falta estrutural do significante paterno. Neste ponto, esvazia-se o sujeito
suposto saber, base da transferência no tratamento psicanalítico com neuróticos, pois
quanto mais esvaziado é esse sujeito do saber, mais se torna possível a clínica. Em
suas palavras: “É na escola da psicose que nós nos colocamos para aprender como
praticar.”(Zenoni, 2000, p.19).
Tal assertiva nos leva a refletir ainda mais sobre a vivência desta clínica que é
marcada por surpresas e que exige assim uma certa dose de criatividade e jogo de
74
cintura nas intervenções necessárias para cada situação. Ao nos abrirmos para um
novo aprendizado clínico, a partir do que a própria estrutura psicótica nos ensina,
vamos, aos poucos, construindo formas de pensar esse trabalho. O lugar de aprendiz é
fundamental, por abrir caminhos de intervenções clínicas guiadas pelo sujeito que vai
ensinando o que ele pode e o que não pode suportar, ou seja, suas limitações. Trata-se
de algo difícil, já que temos que nos desviar o tempo todo de um lugar de quem sabe
para irmos ao encontro de um sujeito frágil que pode se sentir invadido muito
facilmente, fechando portas para um trabalho possível.
O esvaziamento do saber prévio, propicia o surgimento de um sujeito suposto
não saber que é, como indica Zenoni (2000)
28
:
uma posição favorável para encontrar um sujeito que sabe o que
acontece com ele, que é ele mesmo a significação do que lhe é
endereçado enigmaticamente. É uma posição favorável para
encontrar esse sujeito, sem alimentar uma posição intensiva,
persecutória de transferência. (…) Na psicose o saber não é
suposto, mas realizado pelo próprio sujeito, que é a referência, o
gozo desse saber. É por isso que quando o Outro se apresenta como
o Outro do saber, ele pode ser encontrado sob uma forma
erotomaníaca ou persecutória. Enquanto que a posição do sujeito
não saber deixa principalmente ao sujeito a iniciativa de saber.
Podemos identificar isto ao observarmos o caso de Nara, já mencionado no
capítulo anterior, que construiu uma realidade delirante para explicar e dar algum
sentido a sua vivência psicótica. Seus vizinhos são os responsáveis por tudo o que
acontece de ruim a ela, pois eles invadem seus pensamentos, lendo-os, dando-lhe
ordens imperativas, exigindo que ela deite com eles e usando seu corpo, sua
“fachada” para conseguirem as coisas, como drogas, por exemplo. Obrigam-na a
assinar procurações que lhes dão plenos poderes, já que ela é uma superintendente de
28
Ibid., p.20.
75
assuntos gerais do mundo, do universo, uma pessoa muito importante. Tais pessoas
tem um poder especial, agindo de forma velada, aparecendo somente para ela,
promovendo dores em seu corpo, mal-estares. Essa forma que Nara criou para
ordenar, organizar e entender o que se passa com ela é a própria realidade delirante.
Ao escutar o discurso de Nara, percebe-se que ele é marcado por uma certeza
e por um saber que não devem ser contestados, e o acolhimento destes viabiliza a
transferência e a possibilidade de Nara se proteger. Dando ênfase a formulação de
Lacan sobre a relação particular do sujeito com o significante, é a escuta se pautando
por essa referência, no caso de Nara, pelo saber delirante, que nos conduzirá ao
percurso a ser trilhado na construção da clínica. O saber do sujeito, aliado a um não
saber do psicanalista e da equipe, será o responsável pela realização da clínica da
psicose.
É justamente sobre a clínica que nos deteremos no próximo capítulo, a partir
da apresentação de dois casos, abordando a transferência pelo viés do desejo do
analista, tema central da presente tese.
76
CAPÍTULO IV A CLÍNICA DA PSICOSE E O DESEJO DO ANALISTA
A transferência não pode ser pensada se não levarmos em conta o desejo do
analista e na psicose, mais especificamente, esses dois conceitos parecem estar
bastante articulados, devido à especificidade de tal clínica. A hipótese trabalhada na
presente tese deriva das formulações de Lacan e da clínica que venho desenvolvendo
numa instituição pública de saúde mental. A pergunta que retomamos neste contexto
é: O que vem a ser o desejo do analista? Como todo desejo, é um desejo do Outro.
Não se trata de um desejo pessoal, algo que estaria no registro da vontade, da
subjetividade, mas sim de uma função essencial viabilizadora de um possível trabalho
psíquico e isso se relaciona com o lugar que o analista ocupa na relação analítica.
Como fica claro no Seminário 11(1964), é no nível do desejo do Outro que o homem
pode se reconhecer como desejante; neste sentido, o desejo do homem é o desejo do
Outro. O desejo do analista referido ao campo do Outro, possui uma função essencial
ligada a uma suposição de saber sobre o inconsciente na medida em que ele se dirige
ao encontro do desejo inconsciente. Na clínica com a psicose, esse encontro pode
levar o analista a se deparar diretamente com um saber que vem do Outro, restando à
ele a posição de não pretender saber.
Foi a partir do atendimento clínico, da escuta da fala de pacientes psicóticos,
que me deparei com as características da transferência no campo referido, e com o
desafio de seu manejo. Em que lugar o psicanalista é colocado pelo paciente
psicótico? Na psicose a transferência aparece de forma intensa e maciça, revelando-se
em dois pólos: o outro como objeto de uma erotomania intensa ou como perseguidor.
77
O psicanalista, na transferência, pode assumir um dos dois lugares ou nenhum deles e
é a partir da demanda do sujeito que este processo vai se desenvolver.
Fazer referência à demanda em relação à clínica com a psicose remete à
necessidade de pensar a sua explicitação. Na maioria das vezes notamos que a
demanda não parte do sujeito, mas sim de um outro (semelhante). Quando o sujeito
finalmente inicia alguma forma de tratamento, o que se observa é que geralmente
trata-se de um pedido de afirmação de existência e não de uma demanda de amor, tal
como ocorre na neurose. É um pedido de ajuda para encontrar um lugar de existência
no mundo. A partir desta demanda o psicanalista é colocado e se coloca em alguma
posição isso se refere ao desejo do analista.
Por meio de um trabalho que venho desenvolvendo no CAPS Clarice
Lispector, ao me defrontar com a questão da transferência, tenho me perguntado
sobre a importância da disponibilidade do psicanalista para tal clínica como
viabilizadora da instauração da transferência: será isso o que pode se aproximar do
desejo do analista? Neste caminho, encontro respaldo em algumas formulações
teóricas de Jean Allouch em seu livro já citado em capítulo anterior: “Marguerite ou a
“Aimée” de Lacan”(1997), onde ele faz uma leitura da tese de Lacan “Da psicose
paranóica em suas relações com a personalidade”(1932). Aí podemos observar que
Lacan, ao se colocar no lugar de secretário na escuta do delírio de Marguerite,
evidenciou o desejo do analista que determinou a sua função analista. Isto se deu a
partir do lugar que ele assumiu ao acolher as produções da loucura de Marguerite.
Este é o ponto fundamental onde se encontram desejo do analista e transferência, pois
foi desta forma que Marguerite desenvolveu um laço transferencial com Lacan. Neste
sentido penso que o desejo do analista possui íntima relação com a possibilidade de
acolhimento do discurso delirante que é marcado pela diferença em relação ao que
78
chamamos de “normalidade”. Desta forma, para que seja realizável a clínica das
psicoses é preciso uma aposta que estaria ligada a uma condição especial do lado do
analista.
A fim de enriquecer e melhor esclarecer a questão da transferência via desejo
do analista, espinha dorsal desta tese de doutorado, apresentaremos dois casos
clínicos: No primeiro deles ficará claro o lugar do analista e o desejo do analista que
foi fundamental para o andamento do caso; o segundo será um exemplo de um caso
onde o desejo do analista, pautado por uma disponibilidade e possibilidade de escuta,
não se efetivou em virtude das condições e do contexto em que o caso se
desenvolveu.
Caso Ana
Ana é uma moça de mais ou menos uns 28 anos que chegou para atendimento
após viver sua primeira internação em virtude de sua última e mais grave crise, que
culminou com uma tentativa de suicídio. Desde então ficara mais dependente da
família, principalmente em relação aos cuidados com sua filha. Não se sentindo capaz
de controlar sua própria vida, acabou por se entregar e por aceitar ser cuidada e
tratada. Acentua-se a palavra aceitar, pois Ana não desejava ser tratada, tendo que
aceitar essa condição diante da grave situação em que se encontrava. Não tinha outra
alternativa que não essa. Chegou ao CAPS trazida por sua sogra, que havia se tornado
sua família, já que sua mãe se afastou e seu pai, apesar de presente, não aceitava o seu
casamento.
Apesar de não resistir, a demanda de tratamento não partiu dela, de um desejo
de se tratar, mas da situação por isso, foi muito difícil para ela entrar em alguma
79
forma de tratamento e conseguir falar sobre seu sofrimento ou sua ausência de
sofrimento, já que se apresentava de forma apática, sem vida e sem motivos para
viver. Ela representava o próprio vazio e isso era muito difícil de suportar. Difícil
também para mim, a psicanalista que a acolheu desde a entrevista de recepção, e
sustentou desde então um lugar de suporte para este vazio, que definia, neste
momento, a condição de Ana.
É importante esclarecer e definir aqui o que significa recepção no serviço em
questão. A recepção é a primeira forma de atendimento aos pacientes que são
encaminhados, definindo-se por ser um processo que tem início com uma primeira
entrevista, e que pode se prolongar em outras entrevistas. Ela pode, no entanto, se
encerrar no primeiro encontro isso vai depender da necessidade de escuta imposta
por cada caso específico. Ao final da recepção, de acordo com uma primeira
suposição diagnóstica, decide-se se o caso deve ser acolhido no serviço ou
encaminhado para outra unidade de tratamento.
No caso apresentado, por supormos se tratar de uma psicose grave, que se
apresentou sob a forma de uma melancolia, acompanhada de algumas tentativas de
suicídio, decidiu-se por encaminhá-la para uma oficina de fala, como o próprio nome
diz, a “oficina da palavra”, para que ela pudesse escutar os outros pacientes e iniciar
um processo de falar de seu sofrimento psíquico. Ana demonstrou estar bastante
assustada com o ambiente de um serviço inserido no território de um hospital
psiquiátrico
29
, que trata de pacientes externos que apresentam quadros de crise agudas
como ela, mas também dos pacientes ditos crônicos com histórico de longos anos de
internação. Apesar de estar num momento estabilizado de sua doença, o que poderia
nos levar a pensar em encaminhá-la para um atendimento ambulatorial, considerou-se
29
Instituto Municipal Nise da Silveira.
80
mais prudente matriculá-la no CAPS, justamente por se tratar de um caso grave que
poderia precisar de uma estrutura de atendimento mais complexa que uma simples
rede ambulatorial pode oferecer.
Ao iniciar seu tratamento na “oficina da palavra”, coordenada por mim, Ana
escutava o discurso dos outros, mas pouco falava de si, parecendo não se sentir à
vontade para falar de seus problemas no meio de tanta gente. Com o tempo me pediu
que a atendesse individualmente. Ao acolher esse pedido ainda não tinha tido tempo
de me dar conta do tamanho do desafio que me esperava. Penso que ao dirigir esse
pedido a mim, algo de um laço transferencial já se ensaiava. Desta maneira, Ana
começou a freqüentar esse novo espaço de tratamento, além das consultas com sua
psiquiatra. Pouco falava, sempre afirmando não ter muita coisa a dizer sobre sua vida,
deixando claro o esvaziamento em que se encontrava. Aliás, dizia que esse
esvaziamento não era momentâneo, mas existiu desde sempre, desde sua infância.
Descreve-se como uma pessoa quieta, voltada para dentro, de poucos amigos e assim
era quando criança. Era esse apenas o conteúdo de sua fala; aos poucos foi deixando
claro que não queria estar ali falando, mas vinha por insistência da família, sempre
trazida por alguém, o pai ou a sogra. Podemos observar, desta forma, que a demanda
inicial não partia de Ana, mas sim do outro (semelhante). Contudo, o pedido para ser
atendida individualmente parece se caracterizar como uma demanda. De fato, me
questiono se podemos chamar esse pedido de Ana de demanda, já que foi feito a partir
do contexto de uma imposição familiar de tratamento. De qualquer forma, trata-se do
esboço de estabelecimento de um vínculo, a partir de uma demanda, ainda que seja
algo muito frágil que aparenta poder se desfazer a qualquer momento.
No início de seu tratamento, apesar de ter sua casa com seu marido, estava
morando praticamente com a sogra, pois o marido estava sempre de viagem a
81
trabalho. Seu pai e sua mãe estavam recém-separados, tendo a mãe saído de casa; seu
pai resolveu passar uma temporada com Ana, o que complicou bastante sua vida
conjugal. Por não estar em condições de cuidar de si e de sua filha, sua sogra assumiu
esses cuidados.
Por grande insistência da psicanalista, Ana continuava freqüentando os
atendimentos, falando pouco, mas falando alguma coisa. A analista estava sempre ali,
naquele espaço, sustentando a aposta de que Ana não era só o vazio que trazia, que
tinha, sim, algo dentro dela que em algum momento iria aparecer. Esta posição
aponta para o lugar que o analista assume na escuta do vazio, da desamarração que
traz a psicose. Um lugar muito difícil de ser sustentado, pois acena para a impotência
do psicanalista no trabalho com psicóticos. É preciso uma abertura e uma
disponibilidade para acolher o vazio existencial do sujeito, a partir de uma posição de
um não-saber. A situação poderia levar o analista a tentar quebrar esse vazio com o
seu saber. Contudo, o desejo do analista o conduz a um lugar vazio que está
intimamente ligado à posição de não-saber de sua parte, sustentando um lugar que
promova a instalação da transferência. Como indica Baio (1999), no tratamento da
psicose é preciso que se saiba “responder às condições exigidas pelo sujeito psicótico,
a saber, que saiba ‘saber-não-saber’ ” (Baio,1999,p.66) é necessário sustentar o
vazio do não-saber. Podemos cogitar que isso significa escutar e se deixar levar pelo
saber do sujeito psicótico – um saber muitas vezes não acessível para nós. Essa escuta
de um lugar de quem não sabe, e assim se coloca na relação, aberto ao que estar por
vir, permite ao sujeito falar de um modo em que possa construir um sentido que o
sustente.
O que chama atenção no caso de Ana é justamente o esvaziamento de sentido,
que faz com que sua vida seja marcada por uma ausência de vontade de viver. Diz
82
não ter ânimo para fazer qualquer coisa e, ao se dirigir à qualquer atividade que seja,
inclusive seu tratamento, coloca-se de forma passiva como se o outro tivesse que
demandar ou desejar por ela. Por este viés, parece que sua demanda se dirige ao
outro desta maneira, o que nos faz lembrar a histeria.
Neste momento cabe esclarecermos a diferença entre demanda e desejo, tal
como formulada por Lacan, para ajudar a pensar o que se passou e o que se passa no
caso de Ana. Em “A significação do falo”(1958) Lacan define demanda como algo
distinto das satisfações por que clama, trata-se de “demanda de uma presença ou de
uma ausência”, ou seja, algo distinto do que poderíamos chamar de necessidade. A
demanda situa-se no registro da relação do sujeito com a linguagem, a sua marca pelo
significante, o que define um desvio das necessidades do homem justamente pelo fato
dele estar na linguagem. Neste sentido, ela pode ser pensada como sendo uma
espécie de estágio inicial do desejo que se localiza para além da demanda, como
afirma Lacan (1998, p.698):
Ao incondicionado da demanda o desejo vem substituir a condição
‘absoluta’: condição que deslinda, com efeito, o que a prova de
amor tem de rebelde à satisfação de uma necessidade. O desejo
não é, portanto, nem o apetite de satisfação, nem a demanda de
amor, mas a diferença que resulta da substituição do primeiro à
segunda, o próprio fenômeno de sua fenda (Spaltung).
O desejo, desta forma, está para-além da demanda, mas mantém uma relação
com ela, na medida em que ela o veicula. O que marca sua diferença, no entanto, é
que o desejo é irredutível à demanda, não se esgotando nela. Refletindo sobre a
clínica de forma geral, e sobre a transferência, para que esta se instale é preciso que
exista uma demanda. Ao analista não cabe satisfazer, atender à demanda, o que pode
inviabilizar o surgimento do desejo do sujeito. Inicialmente o que surge é a demanda,
que, não sendo satisfeita, pode abrir portas para o que está para-além dela, o
83
desejo. Em relação à clínica da psicose, observamos que a demanda surge de forma
diferente. No caso de Ana, inicialmente, parecia não existir uma demanda,
propriamente dita, ela não tinha o que falar e nem queria falar. Estava ali por ter
vivenciado uma crise profunda de depressão e demonstrava ter consciência disto,
contudo, isso não era suficiente para lhe fazer querer falar, demandar algo. Foi neste
sentido que a presença da analista e a aposta de que em algum momento a demanda
pudesse vir a surgir, tiveram importância para que Ana começasse a falar.
O lugar assumido pela psicanalista permitiu alguma modificação na posição
de Ana em relação a sua vida. Sua aposta numa possibilidade de tratamento indica o
modo como se instalou a transferência e como a analista foi incluída nela: diante de
uma ausência de demanda faz-se necessária a oferta de um espaço de escuta e
acolhimento do sujeito na sua condição, sustentada pela presença do analista. Foi
deste modo que se deu a constituição do que vamos chamar mais adiante de desejo do
analista. Brincando com as palavras de Lacan podemos dizer que inicialmente não se
instalou uma demanda de presença ou de ausência, mas sim uma ausência de
demanda, o que fez com que a analista se abrisse para a transferência pautada por tal
referência.
Esta ausência de demanda muitas vezes se apresenta nos casos de psicose com que
nos deparamos numa instituição de saúde mental como o CAPS. Os pacientes com
perfil para tratamento num CAPS se caracterizam por serem muito graves, com os
laços sociais bastante comprometidos, não demonstrando condições de dar conta de
tal quadro sem a ajuda de uma instituição como o CAPS. Geralmente nestes casos
não se apresenta de imediato uma demanda de tratamento que parta deles, mas sim da
família ou da própria instituição. A condição da psicose, de rompimento das relações
com o mundo, convida o psicanalista a cair no lugar de demandar que se tratem
84
trata-se de uma demanda aliada a um oferecimento de um lugar de acolhimento da
fala desses sujeitos. Esse pode ser um primeiro passo para a construção realmente de
possibilidades para que o paciente venha a se tratar, mas será um bom lugar para o
analista ocupar? Essa demanda de tratamento pode viabilizar a transferência assim
como estamos apostando que o desejo do analista viabiliza? Qual a relação deste
lugar demandante com o lugar vazio de não-saber proposto por Baio (1999), tal como
formulamos na passagem acima? Qual a demanda que pode surgir no caso da clínica
da psicose? Como dito, acreditamos ser uma demanda que diz respeito a afirmação de
um lugar de existência. Nos perguntamos, no caso de Ana, se a demanda apareceu
inicialmente do lado da analista, que se viu no ímpeto de trazê-la para o
tratamento. Essas perguntas nos servem como guias para a discussão e o
desdobramento de nossa hipótese.
Para melhor situar o que está sendo discutido, é fundamental configurar o
contexto social, político e clínico em que se dão as diretrizes de atendimento no
CAPS. A divisão do município do Rio de Janeiro em áreas programáticas implica que
cada área tenha a sua rede de assistência. Isto atribui aos CAPS a função de
ordenadores da rede psicossocial, o que os coloca como responsáveis por toda a
população de seu território, inclusive aquela que não tem indicação para ser acolhida
e tratada no CAPS. Neste sentido cabe a eles promoverem o encaminhamento para a
unidade de saúde indicada. Esta exigência de responsabilidade atribuída aos CAPS
pela Secretaria Municipal de Saúde acarreta conseqüências sobre a clínica
desenvolvida neles.
No CAPS Clarice Lispector, que conta com alguns psicanalistas, dentre outros
profissionais, uma das vertentes seguida é a da clínica psicanalítica. Como
psicanalista, trabalho junto a uma equipe multidisciplinar num serviço que surgiu a
85
partir do movimento da reforma psiquiátrica, e que tem como prioridade atender a
uma população em grave sofrimento psíquico (psicoses e neuroses graves), inclusive
aqueles classificados como institucionalizados, que estão há muitos anos com seus
elos com o mundo rompidos. Trabalhar como psicanalista num contexto institucional
da rede pública, como já indicava Freud em “Linhas de progresso na terapia
psicanalítica”(1918), importa na necessidade de fazer uma certa adaptação, como se
observa na passagem:
Não podemos evitar de aceitar para tratamento determinados
pacientes que são tão desamparados e incapazes de uma vida
comum, que, para eles, há que se combinar a influência analítica
com a educativa. (…) É muito provável, também, que a aplicação
em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da
análise livre com o cobre da sugestão direta; (…)No entanto,
qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa
assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha,
os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a
ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não
tendenciosa. (Freud, 1996, pp. 178/181).
É importante ficar claro que este ponto não será aprofundado, mas é
necessário situá-lo somente para trazer à tona uma questão que surge a partir do
trabalho institucional: como conciliar a noção de responsabilidade que se atribui ao
CAPS, que impõe que tratemos a todo custo a população referida, com o pressuposto
da psicanálise de que a demanda de tratamento parta do sujeito?
Estão aí, lado a lado, duas noções diferentes de clínica que caminham juntas
na instituição: uma que inclui a idéia de reabilitação psicossocial, o restabelecimento
dos laços do sujeito com o mundo e que nos coloca como responsáveis por um
gerenciamento de sua vida, já que sozinho não pode fazê-lo; outra, a clínica
psicanalítica, que valoriza prioritariamente o sujeito, considerando-o responsável por
suas escolhas e por sua forma de inserção no mundo. Estamos colocando esta questão
porque acreditamos que ela enriquece o nosso debate, na medida em que nos remete
às questões colocadas acima sobre a demanda que surge na clínica com psicóticos,
86
mais especificamente neste contexto institucional. Como dito, a condição da psicose,
de desligamento do mundo, automaticamente tende a nos colocar numa posição
demandante em relação ao tratamento, e isso se intensifica por causa da noção de
responsabilidade que o serviço deve assumir. Tal noção, muitas vezes, coloca-nos
numa posição de “correr atrás do paciente”, o que pode comprometer, em muito, a
possibilidade de tratamento, principalmente psicanalítico. Por outro lado, promove a
possibilidade de tratamento para aqueles que têm muita dificuldade de se tratar. De
fato, isto depende de cada caso em particular e deve ser analisado a partir do contexto
do caso.
Retomando o caso de Ana, aos poucos algo foi se modificando em sua relação
com o tratamento, e essa modificação possui íntima ligação com o fato dela começar
a entrar mais em contato com o seu sofrimento. Com o passar do tempo e das
sessões, algumas pequenas mudanças começaram efetivamente a se anunciar. Quando
falo pequenas, quero enfatizar que, de tão pequenas, as pessoas não envolvidas no
processo não notariam. Algumas janelas se abriram quando ela começou a falar das
dificuldades que estava vivendo em seu casamento, das insatisfações com o excesso
de viagens a trabalho de seu marido, e com a notícia de que ele estava querendo se
separar dela. Fala de sua tristeza e de sua vontade de estar com ele, mas não
demonstra nenhum destes sentimentos em suas feições, ou seja, fala de uma forma
desafetada. Mas, de fato, é neste momento que inicia um relato um pouco mais
profundo de sua história, recontando-a.
Lembra como foi o início de seu namoro com Pedro, reconhecendo ter sido ele
quem insistiu no namoro, uma vez que ela se colocava de forma indiferente. No
entanto, diz que aos poucos foi se interessando por ele. Foi por esta ocasião que teve
sua primeira crise, mais ou menos aos 16 anos. Esta foi marcada por uma tentativa de
87
suicídio e Ana fala dela de forma confusa, sem saber direito a que motivos atribuí-la.
Acaba atribuindo-a a algum desentendimento com os pais por conta de seu namoro
com Pedro, já que o pai não gostava muito dele. Os pais caracterizaram o
acontecimento como um episódio da adolescência, não dando importância ao fato de
Ana ter ido parar no hospital para fazer lavagem em virtude da quantidade de
comprimidos que havia ingerido.
Desde o início do tratamento de Ana chamamos os familiares algumas vezes
para conversar e indicamo-lhes a importância de sua participação no tratamento, via
atendimento no grupo terapêutico realizado para os familiares dos pacientes. Neste
tempo, seu pai e sua sogra revezaram-se na freqüência ao grupo de família e em
algumas conversas comigo, solicitadas por mim a pedido de Ana. Por se sentir muito
frágil na relação com o outro, não se considera capaz de colocar seus sentimentos,
seus pensamentos e seus limites. Isso se dá principalmente na relação com o pai, que
está sempre impondo sua visão de mundo à Ana. Ao falar dessa sua dificuldade, ela
me pede para ajudá-la a dizer o que pensa e o que quer ao pai e, eventualmente, à
sogra. Todas as conversas com o pai se deram com a presença de Ana, sendo
mediadas pela analista com o objetivo de promover a possibilidade de Ana falar o que
sente e o que pensa.
Cabe uma reflexão sobre o lugar ocupado pela analista nestas situações e
sobre sua função. Tal questionamento só pode se dar a posteriori, num momento de
afastamento que possibilita a reflexão. Este afastamento não significa deixar de
atender Ana, e sim um exercício constante e necessário para refletir sobre o caso.
Ocupar o lugar de quem agencia a possibilidade de Ana se comunicar com o outro,
não significa, por mais que pareça, fazer por ela. Ela, de fato, me pede que faça por
ela, tamanho é o seu sofrimento, mas não assumo este lugar, deixando claro que
88
estou ali para ajudá-la a construir uma forma possível de comunicação, mediando sua
relação com o outro, agenciando formas dela poder fazer.
Essa função assumida pela analista nos remete à noção desenvolvida por
Lacan no Seminário sobre As psicoses (1955-56) de secretário do alienado, ao
convidar-nos a simplesmente escutarmos o sujeito e escutar o sujeito significa aceitar
o que ele diz, mesmo que seja aparentemente sem sentido para nós, como deixa claro:
“Não temos razão alguma para não aceitar como tal o que ele nos diz, sob pretexto de
sei lá o quê, que seria inefável, incomunicável, afetivo (…)”(Lacan, 1985, p,236). Se
soubermos realmente escutar o discurso do sujeito, e isto tem relação com o fato de
que é preciso ter uma certa abertura para tal, notaremos a relação específica do sujeito
com o conjunto do sistema da linguagem.
A função de secretário assumida no caso de Ana nos faz pensar na relação
difícil que o psicótico tem com o limite, o que evidencia a relação misturada com o
outro, de não separação. Se o pai de Ana expõe o que pensa e, se esse pensamento é
contrário a suas atitudes, ela se sente invadida e sem possibilidades de saber quem é
ela e o que pensa. Quase chega a achar que o pai está certo em tudo, mas resta aí um
ponto de interrogação, que é o que a faz pedir ajuda à analista. É acompanhando o
sujeito na construção de um lugar possível de existência que a analista entra na
intimidade da transferência, fornecendo um suporte para que o espaço que se abre
com este ponto de interrogação possa propiciar alguma elaboração.
Além de contarmos com as presenças do pai de Ana e da sogra, tentamos
diversas vezes que seu marido também comparecesse, mas ele se mostrava ocupado e
com pouca disponibilidade. Continuamos insistindo na importância de sua presença e
um tempo depois ele pôde comparecer para uma conversa. Isto se deu em um
momento em que Ana seguia avançando em sua análise, falando de sua tristeza com
89
seu casamento, do afastamento de Pedro em relação a ela e à filha, por passar quase o
tempo todo viajando.
Esta conversa foi fundamental, pois ele falou de seu sofrimento em relação ao
estado de Ana, da relação difícil que se estabeleceu entre os dois, do quanto estava
sendo duro para ele suportar o desinteresse dela em relação a ele. Há muito se sentia
só, já que Ana se distanciava cada vez mais dele vivia mergulhada em uma apatia,
uma falta de vontade de viver e um desânimo. Conta que na época da primeira crise
de Ana houve um episódio que para ele foi determinante da crise. Sua irmã, sempre
muito competitiva, começou a paquerá-lo e disse para Ana que era ele quem estava
interessado nela. Ana ficou muito afetada por essa confissão, mas acabou acreditando
em Pedro. Diz que o pai de Ana sempre foi uma pedra no caminho deles e não foi à
toa que foi abandonado pela mãe de Ana, pois é um homem bastante complicado. Em
sua opinião, Ana, doente, só poderia mesmo contar com a família dele, pois a dela é
completamente desestruturada. Desabafou, chorou bastante e conseguiu falar que não
queria mais viver com ela. Entende que este temperamento dela possa ter relação com
sua doença, mas deixa claro que não quer mais a relação. Deseja inclusive que ela
continue morando com sua mãe, mas diz que vai procurar um outro lugar para ele.
Ana, por sua vez, continuou falando da sua tristeza com o fim de seu
casamento, mantendo ainda alguma esperança de reconciliação, esperando uma
conversa com Pedro, conversa prometida por ele, mas segundo ela, não cumprida. Por
um tempo esse se torna o tema de seu atendimento, quando ela consegue ir
caminhando um pouco mais no percurso de sua história. A partir disto passa a falar
mais de sua mãe e da falta que esta lhe faz; conta que ela sempre foi muito ciumenta e
não aceitou de bom grado seu casamento, demonstrando isto ao entrar na igreja de
preto. Começa a fazer planos de procurá-la, mas sem o conhecimento de seu pai que
90
se coloca contra isto. Sua relação com o pai é difícil também por ela não querer
desagradá-lo e este se intrometer em sua vida com Pedro de forma bastante invasiva,
o que se intensificou com a separação. Seu pai se coloca contra o fato de Ana e sua
filha ficarem sob os cuidados da sogra, alegando que desta forma eles vão querer tirar
a guarda de sua filha. Ana fica muito confusa e perturbada com a opinião do pai; diz
não concordar, mas demonstra o impacto e a força do pai em sua vida. O pai aparece
aí como lei, mas uma lei idealizada e categórica, não fazendo portanto função
simbólica, pois na sua autoridade acaba se identificando à lei. Ana, sem a sustentação
da função simbólica, não consegue enfrentar o pai, dizer o que pensa e o que deseja.
Diante de sua autoridade ela se mostra paralisada, não conseguindo sair desta posição.
Este momento foi um dos quais ela pediu para chamar seu pai para uma conversa e
entendi, mais uma vez, que ela estava pedindo ajuda no sentido de mostrar a ele, o
que estava sentindo, já que sozinha não conseguia fazê-lo.
Este fato nos faz notar o quanto é importante a presença do analista para o
psicótico. Como aponta Lacan no Seminário 11(1964), a presença do analista é uma
manifestação do inconsciente e não é possível, desta forma, conceber um conceito
independente do outro. A transferência, pensada como um produto da situação
analítica, deve ser situada neste contexto. Ela tem relação com a presença do analista
e com a função que ele opera na sustentação de um lugar de escuta. Tal lugar se
define por ser vazio, já que é a partir dele e de sua neutralidade que se pode tecer
algum sentido para o sujeito. Podemos dizer novamente que no caso da clínica com a
psicose o lugar ocupado pelo analista deve ser, por excelência, vazio vazio de saber.
No caso de Ana, a presença da analista, presença física e simbólica, foi
fundamental para que pudesse iniciar uma mudança de posição em sua vida que
culminou com sua entrada em análise. Isto evidencia a passagem do analista de um
91
lugar de demanda inicial ao lugar de sustentação do desejo do analista. Foi preciso
aproximadamente um ano para que ela deixasse de falar que não tinha nada a dizer.
No entanto, muita coisa aconteceu antes disto; o percurso foi longo e ainda está sendo
construído. O que estou nomeando como mudança de posição não tem relação com
nada definitivo, mas sim com um início de uma fala sobre seu sofrimento, sobre o
vazio que povoa sua vida. O que é importante acentuar é que a presença do analista,
neste caso, tem intensa ligação com o que estou chamando de desejo do analista.
Como deixa claro Lacan ainda no Seminário 11(1964), a teoria da transferência
possui íntima relação com o desejo do analista, pois trata-se de um fenômeno em que
estão incluídos o sujeito (paciente) e o psicanalista. Em suas palavras: “Não há apenas
o que, no caso, o analista entende fazer de seu paciente. Há também o que o analista
entende que seu paciente faça dele.”(Lacan, 1988, p.151).
É importante situar como Lacan concebe a noção de desejo do analista,
articulando-a à transferência como um fenômeno essencial ligado ao desejo humano.
É o fenômeno responsável pela confiança do sujeito no psicanalista e mais que isso,
possibilita que os conteúdos inconscientes e a posição do sujeito frente ao Outro se
atualize na relação com o analista. Como vimos no capítulo anterior, Lacan situa a
transferência no texto de Platão, onde se discute o amor: o Banquete, a partir da
ligação entre amor e saber, esboçando a noção de sujeito suposto saber. No Seminário
11 (1964), Lacan afirma a idéia de sujeito suposto saber como pré-condição da
transferência e do processo analítico, como podemos observar na passagem:
Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também
partir ao encontro do desejo inconsciente. (…) o desejo é o eixo, o
pivô, o cabo, o martelo, graças ao qual se aplica o elemento-força,
a inércia, que há por trás do que se formula primeiro, no discurso
do paciente, como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto
92
comum desse duplo machado, é o desejo do analista, que eu
designo aqui como uma função essencial.
30
No trecho acima Lacan vincula diretamente transferência e desejo do analista.
O desejo é o que está por trás do que incialmente se formula como demanda no
discurso do paciente - isso é a transferência. A suposição de saber atribuída ao
analista diz respeito a um saber que é inconsciente.
Na clínica da psicose, é justamente a noção de sujeito suposto saber que dever
ser repensada. Se, neste Seminário, Lacan coloca tal noção como pré-condição da
transferência no caso da neurose, ao nos remetermos ao Seminário 3, sobre As
Psicoses (1955-56), retomamos a noção de secretário como sendo o que define o
lugar do psicanalista nesta clínica. Isso nos indica o vínculo íntimo que há neste caso
entre a posição do psicanalista e a noção de sujeito suposto não-saber, como assinala
Zenoni (2000).
O desejo do analista, tal como Lacan o apresenta, é uma função essencial na
medida em que o analista se afasta do lugar de idealização em que ele é chamado pelo
sujeito a encarnar e assume um lugar vazio, o de objeto a. Por trás do amor de
transferência o que há é a afirmação do laço do desejo do analista com o desejo do
paciente. Na psicose, por não haver uma mediação entre o eu e o outro/Outro, o
analista deve ocupar o lugar de não-saber justamente para permitir que o saber do
delírio, ou seja, o saber do sujeito, tome as rédeas do trabalho. Contudo, seu
investimento na transferência por vezes precisa ser mais intenso no sentido de ofertar
um espaço para o sujeito que possibilite o surgimento de uma demanda.
Nesta etapa, será de grande contribuição evidenciarmos a forma como Allouch
(1997) situou o lugar de Lacan no tratamento de Marguerite; um lugar que determinou
sua função de secretário, fundamental para pensarmos a articulação do desejo do
30
Ibid., p. 222.
93
analista à transferência na psicose. Vamos tomar alguns pontos importantes
trabalhados por Allouch para nos orientar.
O autor indica que, a princípio, Lacan caracteriza a loucura de Marguerite
como estando associada à loucura de sua mãe, Jeanne, localizando algumas situações
que reforçam sua teoria de que o caso de Marguerite é um caso de loucura a dois, mãe
e filha. Jeanne Donnadieu ao casar com Jean-Baptiste Pantaine tem sua primeira filha
mais ou menos cerca de 9 mêses após seu casamento, nomeando-a Marguerite, assim
como sua mãe. Dois anos depois nasce a segunda filha, Élise e um ano mais tarde, a
terceira, Maria. Nessa cronologia Allouch considera importante situar dois
acontecimentos: o falecimento da filha mais velha e, meses depois, o nascimento de
uma criança natimorta. Há a suposição de que essa criança tenha nascido prematura,
confirmando a hipótese de que ela deve ter sido concebida após o acidente que matou
a primeira filha, num desejo de Jeanne de substituir a filha morta. Traçar esse
histórico é necessário para esclarecermos qual a relação da loucura de Marguerite, a
Aimée de Lacan, com a loucura de sua mãe, a partir do lugar que ela, ao nascer, veio
ocupar na estrutura familiar. Marguerite nasce justamente menos de um ano após o
episódio da criança natimorta, recebendo o nome da irmã mais velha, vindo assim
substituí-la. Nascer já ocupando o lugar de uma filha tão amada, coloca-a numa
posição delicada na relação com a mãe. Através de relato familiar, Jeanne sofria de
uma “loucura de perseguição” e isso se deu após a morte de sua filha, queimada viva
em sua frente. Como acentua Allouch (1997), são as variações do delírio de Jeanne
que apontam o caso de Marguerite como um caso de loucura a dois e:
(…) que valerão como prova de que a psicose de Marguerite é
realmente dirigida à sua mãe. Com efeito, as variações do delírio
de Jeanne verificam-se estar estreitamente relacionadas aos
principais acontecimentos da psicose de sua filha. (Allouch, 1997,
p.320).
94
Ele continua dizendo que, se o motivo do desencadeamento da loucura de
perseguição de Jeanne foi a morte da filha mais velha, este seria o ponto de
articulação entre a loucura da mãe e a loucura da filha substituta da filha morta.
O lugar privilegiado de Marguerite na relação com a mãe se rompe quando
ela decide sair de casa, renunciando a tornar-se professora primária assim como sua
mãe tanto desejava. Esse rompimento, avalia o autor, a partir da análise de uma
entrevista de Marguerite a Lacan, afetou a amizade das duas, podendo ser considerado
uma condição de possibilidade para a psicose de Marguerite. Nas palavras de Allouch
(1997)
31
: “Esta recusa de Marguerite, este rompimento com o que sua mãe espera
dela, nos aparece como inaugural do jogo de réplicas que se irá construir entre mãe e
filha, entre filha e mãe, na sua loucura a dois”. O laço forte e intenso que se
estabelece entre mãe e filha parece ser insuportável para Marguerite e, ao rompê-lo,
depara-se com as graves conseqüências disto para sua vida: defrontar-se com sua
própria loucura, o que se deu anos mais tarde quando efetivou-se sua entrada na
psicose na época de sua primeira gravidez. Allouch
32
destaca que “(…) terá sido
necessária a Marguerite nada menos que sua psicose para manifestar em ato a sua mãe
que ela não tolerava semelhante laço”
É justamente pelo ato que Marguerite chama a atenção de sua mãe e de toda a
imprensa. A passagem ao ato que se deu através do atentado à atriz Huguette ex-
Duflos, pode ser caracterizada como uma advertência à mãe, na medida em que todo
ato apresenta uma face significante, sendo um modo de dizer algo, algo que não pode
31
Ibid., p.320.
32
Ibid., p.323.
95
ser falado e por isso é “atuado”. O ato se deu contra a atriz, mas não foi dirigido à ela
e sim à Jeanne, como podemos observar logo abaixo no comentário do autor
33
:
A passagem ao ato da filha que substituiu a morta interroga a mãe
no próprio ato onde ela pretende realizar tal substituição. Como se
pode consentir num ato sexual, e mais ainda, um ato orientado para
a produção de um objeto substituto, quando se perdeu um filho
num acidente do qual não está excluído que se seja responsável?
Como uma mãe criminosa pode ousar fazer uma criança? Tal é a
horrível questão que vem atingir Jeanne Pantaine com a agressão
contra Huguette ex-Duflos.
A passagem ao ato rompe, de uma certa forma, com a loucura a dois, na
medida em que neste momento, ou melhor, no momento em que soube a forma como
sua mãe reagiu ao acontecido, Marguerite saiu de sua crise, colocando seu delírio em
reserva, estabilizando-se. Jeanne, por sua vez, assim que foi informada do que
aconteceu com Marguerite, do atentado e de seu aprisionamento, se fechou em seu
delírio, abrindo efetivamente uma crise psicótica, atribuindo a sua vizinha
perseguidora a responsabilidade pelo que aconteceu à filha.
Esta estrutura foi definida por Lacan como sendo a base de organização de
uma loucura a dois, mesmo que o desencadeamento da sintomatologia psicótica
manifeste-se tardiamente na genitora ele indica que são muitos os casos de delírios a
dois que reúnem mães e filhas; pais e filhos.
Após breve descrição do caso, retomamos o motivo pelo qual o estamos
introduzindo: localizar a posição de Lacan no tratamento de Marguerite, descrevendo
como ele desenvolveu a função de secretário, o que permite um maior esclarecimento
da função do analista no caso da psicose.
Marguerite era escritora e Lacan incentivou-a a realizar tal talento, ao
contrário de sua irmã mais velha, Élise, de quem Marguerite era bastante próxima,
33
Ibid., p.347.
96
mas que nunca incentivou-a a desenvolver seu talento de escritora, como fica claro na
passagem:
Aqui se evidencia a incompatibilidade entre Lacan e Élise: ao
‘renuncie’ de Élise, Lacan replica, não a Élise, mas a Marguerite,
por um ‘realize’, ‘seja essa romancista que pretende ser’; e, longe
de se limitar assim a despertá-la, ele vai-se dedicar a ser ele mesmo
seu editor, seu acessor de imprensa ainda por cima, dando a ler
seus escritos, reconhecendo seu valor literário (…)
(ALLOUCH,1997, ps.417/418).
É desta forma que Allouch (1997) retoma a noção de secretário desenvolvida
por Lacan ao longo do Seminário sobre as psicoses de 1955-56. Ao incentivá-la como
escritora e acompanhá-la na construção deste sentido para sua vida, Lacan fez
função de secretário e isto se deu por ele, desde o momento em que se aproximou de
Marguerite, ter reconhecido em seu discurso um saber. Allouch evidencia que o
secretário se liga ao saber do sujeito como sendo um saber de experiência, ao qual
permanece ligado por transcrevê-lo, publicá-lo e dirigi-lo. É assim que Lacan,
secretário de Marguerite e não de Aimée, escreve não o caso de Marguerite, mas o
caso Aimée, elevando ao nível de nome de autor o nome Aimée, nome de um
personagem de Marguerite Anzieu, a autora do romance Détracteur. Não é a toa que
ele usa esse nome, o significante da transferência que o une a Marguerite, como
podemos observar na passagem:
Nomeando Aimée o autor fictício a quem se deveria um tal saber
que não sabe de si mesmo, mas que, nem por isso, deixa de ser um
saber, Lacan, pela primeira vez em seu percurso, liga, sem saber, o
amor e o saber; ele formula assim, à sua própria revelia, e de uma
maneira que não é qualquer uma, que tem sua especificidade, a
articulação decisiva daquilo que se irá apresentar mais tarde como
sendo sua teoria da transferência. (Allouch, 1997, p.428).
Assumir o lugar de secretário significou reconhecer Marguerite como
detentora de saber, o que possui íntima relação com o incentivo dado por Lacan para
que ela se afirmasse como escritora - a publicação de seus escritos permitiu validar
97
seu saber em algum outro lugar que não só na psiquiatria o que foi fundamental para
Marguerite. O que convocou Lacan a assumir a função de secretário foi justamente a
posição ocupada por Marguerite de testemunha do discurso do Outro. Lacan em uma
das passagens clássicas do Seminário sobre as psicoses, ao caracterizar a função de
secretário, indica que seu papel é ativo no sentido de que é preciso tomar o
testemunho do alienado “ao pé da letra”
34
. Para isso é fundamental que alienado e
alienista caminhem juntos, como afirma Allouch (1997, pp.446/447):
Todos dois têm a ver com a ‘estrutura desse ser que fala ao sujeito’.
(…) Situados do lado do alienista, digamos, do psicanalista, como
ele também um teórico da sua experiência da loucura, não se pode
com efeito dizer que o psicótico transfere, como se diz sobre o
neurótico.
Ele vai dizer com isso que o psicótico fica em uma posição de objeto possível
da transferência, “ao fazer saber o que o Outro lhe faz saber”.
35
Isto é muito
importante, na medida em que evidencia o que é específico da transferência na
psicose, que tem ligação com um saber que é do Outro.
Ao se referir à posição do sujeito psicótico na transferência, Allouch (1997)
remete-se à indicação de Lacan de que a transferência psicótica é, em primeiro plano,
uma transferência para com o psicótico, ou seja, é uma transferência que parte do
analista e é neste ponto que se realiza a função de secretário, o que pode viabilizar a
transferência do psicótico. Como toda transferência, a transferência psicótica é
marcada por um significante da transferência que define a função de secretário. No
caso de Lacan com Marguerite tal significante é o significante “Aimée”, por meio do
qual Lacan se dirige a Marguerite. Ele deixa claro o quanto foi tocado por Marguerite
“no ponto preciso em que Marguerite o obriga a manter com ela uma posição estrita
de observador, que é também o ponto onde ela aceita entregar a ele seus devaneios
34
Lacan, Jacques O Seminário, Livro 3 (1955-56), p. 235.
98
mais íntimos”.
36
Foi justamente a relação de Marguerite com o saber que tocou
Lacan, e isto definiu seu lugar de secretário na transferência, um lugar ativo por meio
do qual potencializou o fazer saber de Marguerite, legitimando-a socialmente. O que
possibilitou que Lacan ocupasse esse lugar foi seu desejo do analista, “assumindo por
sua conta a realização do desejo de fazer saber de Marguerite e suspendendo assim a
impotência em que esse desejo se petrificava.”
37
Neste ponto podemos observar a relação entre desejo do analista e a função de
secretário na psicose, na medida em que apostamos que o desejo do analista, que é a
evidência da transferência do lado do analista, viabiliza a função de secretário,
assim como podemos observar no caso de Marguerite, onde Lacan, a partir da escuta
de seu discurso, valorizou seu desejo de ser escritora, incentivando-a a sustentá-lo
através da publicação de seus escritos. Traçando um paralelo com o caso de Ana,
observamos a realização da função de secretário na medida em que a analista, ao
escutar seu discurso, percebeu a importância de intervir, fazendo um trabalho de
mediar sua relação com o outro, agenciando formas através das quais ela conseguisse
colocar para o outro o seu limite.
Retomando o caso clínico, a entrada de Ana em sua história evidenciou-se a
partir do momento em que a fala sobre sua mãe e seu marido intensificou-se. A
analista sempre insistiu e apostou em sua fala, mesmo rala e rápida, como um modo
de trazer o vazio, pois afinal de contas, o vazio, como muitas vezes foi indicado, não é
apenas a ausência de algo, mas é também presença, apontando-nos algum caminho. É
difícil suportá-lo, mas é necessário. Atender psicóticos envolve suportar o vazio, a
errância, o desatrelamento da vida. Nessa perspectiva impõe-se refletir sobre o lugar
ocupado pelo analista, lugar vazio e, ao mesmo tempo, lugar de suportar o vazio
35
Ibid., pp.446/447.
99
que realmente se esvaziar, principalmente de expectativas; há que se fazer um
exercício permanente para não estar a esperar muito do psicótico, mas ao mesmo
tempo é preciso sustentar uma aposta de que algo pode vir a se articular. Nestes casos,
acredito que o desejo do analista deve estar ligado a algo mais do que seja uma
aposta, um investimento especial.
Ao se deparar o tempo todo com o vazio, Ana entrou em seu sofrimento em
relação ao fim de seu casamento falou bastante disto, a ponto de não ter mais o que
dizer, pois descartara a esperança de volta, e decidiu por não mais pensar em Pedro.
Isto foi difícil, mas aos poucos ela foi se centrando na complicada relação com sua
mãe, que indica uma das origens de sua tristeza, de seu “embotamento”. Iniciou-se
aqui uma nova etapa de sua análise. É interessante notar o movimento e a mudança de
Ana, que, de início, era “arrastada” para falar, não conseguia falar quase nada, até
chegar a um ponto em que pôde passar a ir sozinha aos atendimentos, dispensando as
companhias. Ela tinha medo de ir só e com o tempo começou a questionar isto; esta
atitude foi bastante significativa e se deu associada ao início da fala.
Neste momento era evidente o envolvimento de Ana em seu tratamento; no
entanto, os avanços que se apresentavam de forma clara eram volta e meia
acompanhados de retorno, o que significa que o tratamento não caminha em uma só
direção há sempre idas e vindas.
Após a fase em que teve alta da perícia e chegou a voltar a trabalhar, pôde
falar de suas dificuldades com o trabalho de um modo geral e especificamente com o
da atividade que exercia no momento. Chegamos juntas a conclusão de que talvez não
fosse possível voltar para tal trabalho já que este exigia demais dela, o que a fez
retomar sua licença.
36
Ibid., p.450.
100
Na medida em que mergulhava fundo neste vazio, eixo de sua vida há anos,
começou a esboçar o desejo de querer ter sua filha de volta morando com ela em sua
casa. A esta altura, já não estava mais morando na casa da sogra, morava com seu pai
e irmão, e sua filha se manteve com a sogra. No entanto, Ana ia lá todos os dias vê-la.
Começou a falar do desejo de ter a filha dormindo em sua casa, mesmo sabendo que
isso poderia ser um risco. Mas, por estar se sentindo bem, sem a presença de sintomas
alucinatórios e impulsos de cometer suicídio, começou a considerar de fato esta
possibilidade. Desejar cuidar de sua filha anunciava um novo horizonte para Ana
diante desta perspectiva iniciou planos de vida e não de morte.
Nesta etapa é interessante fazermos uma análise da relação de Ana tanto com
as figuras femininas como com as figuras masculinas. Tais relações evidenciam sua
relação com o outro, que permanece imaginarizada, não mediada pelo simbólico. As
relações com a mãe e a sogra se definem, de um lado por uma mãe ausente, e de
outro, por uma sogra invasora, no sentido de estar em permanente rivalidade com
Ana, assumindo os cuidados com sua filha. Ao passo que, suas relações com o pai e
com o marido apresentam o pai como invasor, que assume uma posição autoritária
para Ana, e o marido como ausente e distante. Ana parece estar sempre entre uma
figura invasora e uma figura ausente que não deixam muitas alternativas de um lugar
de existência para ela como sujeito. Para a construção deste lugar ela vai precisar
descobrir um outro eixo que aponte para alguma espécie de simbolização possível, o
que, acreditamos, poder ser viabilizado pela análise.
O dilema vivido por Ana no momento liga-se à luta que trava com sua sogra
pela conquista de seu lugar de mãe. Sente-se profundamente incomodada com a
atitude controladora da sogra, que fica ligando para ela de meia em meia hora quando
37
Ibid., p.455.
101
está passando a tarde com a filha em sua casa. Age, segundo Ana, como se não
confiasse nela. Este dilema é o que lhe permite cada vez mais falar de sua dor, de sua
vida esvaziada, de sua doença, de suas dúvidas. Aos poucos vai encontrando um forte
motivo para viver a luta pela presença da filha em sua vida. Ao falar do
esvaziamento de sua vida, vai reconstruindo seu eixo, costurando suas peças que
ficaram soltas por muito tempo. É o lugar de mãe que aponta para a possibilidade de
Ana se afirmar como sujeito, o que indica, no caso, um caminho de estabilização.
É importante deixar claro que o caso de Ana permanece em andamento por
meio de um trabalho conjunto da psicanalista com a médica psiquiatra. Ele foi
escolhido para ser apresentado por ser considerado emblemático para a reflexão sobre
a transferência na psicose, abordada pelo viés do desejo do analista. Foi a constante
presença da analista sustentando um desejo de escuta que permitiu uma mudança de
posição da paciente, que culminou com sua entrada em análise. No final de dois anos
de trabalho, a psicanalista teve que se licenciar por questões pessoais e a paciente,
logo depois, entrou em crise e foi internada. O motivo do afastamento da analista era
visível, ela estava grávida e precisou se afastar para ter seu filho, o que foi trabalhado
por longos períodos com a paciente. Na medida em que se aproximava o prazo de
encerramento do atendimento, a analista introduzia com freqüência a idéia de outra
pessoa entrar no caso, substituindo-a. Todas as vezes Ana respondeu negativamente a
tal proposta, deixando claro que queria falar com sua psicanalista, com quem já tinha
uma relação de “confiança e intimidade” (sic).
Ao refletir sobre os acontecimentos, observamos que justamente no momento
em que Ana lutava pela construção de seu lugar de mãe, a psicanalista teve que se
afastar para dar à luz seu filho, ou seja, consumar o lugar de mãe. Podemos considerar
que neste momento houve uma identificação imaginária com a analista. No entanto,
102
tal identificação, que se apresentou sob a forma de uma colação imaginária ao outro,
pode ter exigido que ela ocupasse um lugar ainda por se construir o lugar de mãe;
isso pode ter precipitado sua entrada em crise e a posterior internação. A partir de seu
discurso, percebe-se que este lugar é o que aponta numa direção dela se afirmar como
sujeito, lugar em permanente construção e ainda bastante frágil.
Lacan demonstra a importância deste lugar para onde se endereça a fala na
situação analítica numa passagem simples do Seminário sobre A Transferência (1960-
61): “(…) parece-me impossível eliminar do fenômeno da transferência o fato de que
ela se manifesta na relação com alguém a quem se fala. Este fato é constitutivo. (…)”
(Lacan,1992, p.177). No caso descrito, tal lugar de sustentação da fala foi construído
muito lentamente, passo a passo, de acordo com as diretrizes apontadas pelo sujeito.
Coube à analista se colocar de forma calma, sem apresentar grandes expectativas e
exigências. Trata-se de uma presença forte, mas silenciosa.
É evidente que em qualquer caso é fundamental a construção de um lugar para
onde a fala será endereçada esse lugar constitui-se através da presença do analista e
do desejo do analista. No entanto, acreditamos que na psicose tal desejo deve ser
temperado com algo a mais do lado do analista uma disponibilidade de acolhimento
da diferença que define o discurso do sujeito na psicose.
Passemos ao segundo caso, acompanhado das devidas elaborações.
Caso Vítor
Vítor chegou para atendimento no CAPS encaminhado pela equipe do
ambulatório central do IMAS Nise da Silveira. Inicialmente, ainda adolescente, fora
acolhido pelo serviço de atendimento à infância e adolescência que se situa dentro do
103
IMAS, onde permaneceu em tratamento por alguns anos. Ao completar 18 anos foi
encaminhado para o ambulatório onde foi atendido por alguns psiquiatras e
psicólogos. Todas as equipes de profissionais que estiveram à frente do caso relataram
a desesperança em conseguir que Vítor se vinculasse a alguma forma de tratamento;
apesar de estar há “anos” “vinculado” a tais instituições, segundo esses relatos, ele
nunca efetivamente se tratou no sentido estrito da palavra não tomava a
medicação, não participava das oficinas terapêuticas e nem de um atendimento
terapêutico individual. Tal situação chegou a um ponto em que o psiquiatra e a
psicóloga responsáveis por seu tratamento no ambulatório encaminharam-no para o
CAPS com a expectativa de estabelecer uma parceria, na tentativa de construção de
alguma forma de tratamento para Vítor.
Construir alguma forma de tratamento… essa frase nos faz pensar sobre o que
isso significa no caso da psicose. Neste caso, pensamos que a construção deva partir
dos possíveis caminhos indicados pelo próprio sujeito. Essa reflexão se dá num tempo
posterior, tempo já de escrita do caso. Na época em que o caso nos foi encaminhado
ainda não era possível fazer tal reflexão.
Vítor foi apresentado ao CAPS como um caso muito grave de
heteroagressividade, que culminou com uma agressão a sua avó, provocando-lhe um
traumatismo craniano. Ao ser descrito como uma pessoa extremamente agressiva,
manipuladora e avessa a qualquer forma de contato, ficou claro o sinal de
desesperança e de pouca aposta no caso. A suposição diagnostica descrita nos
prontuários indicava uma possibilidade de psicopatia. Até aquele momento Vítor
havia tido cerca de 20 internações essa foi a única forma de tratamento vivida por
ele, se é que podemos chamar internação de tratamento. Todas as vezes em que foi
internado nada de diferente se produzia, na maioria das vezes ele fugia ou tinha alta,
104
mas voltava em pouco tempo a ser internado novamente. Ele foi, durante todo esse
tempo, um exemplo vivo do que representou o tratamento da loucura antes dos ventos
da reforma psiquiátrica soprarem pelo Brasil.
Consideramos importante introduzir parte da história de Vítor numa tentativa
de entender um pouco do caso, através de seu lugar ou falta de lugar no contexto
familiar. Esta história pôde ser recolhida a partir da fala da mãe. Começamos, assim, a
conhecer um pouco de seu lugar na relação familiar, o que foi fundamental para
entendermos parte de sua história de adoecimento. Ele é o segundo filho de uma prole
de dois nasceu em um momento em que o pai, segundo a mãe, não queria mais
filhos, bastando para ele a filha. A mãe engravidou e teve Vítor à revelia do pai, que
não foi consultado para tal projeto. A forma como a mãe se refere ao pai indica seu
lugar “apagado” na família o que não tem voz ativa. Paralelamente, a maneira como
a mãe se refere à Vítor evidencia o possível lugar ocupado por ele em sua vida, lugar
de objeto, o que foi se esclarecendo ao longo de seu relato.
Conta que Vítor foi um bebê “lindo, muito bonito mesmo e normal” (sic), não
entendendo o que aconteceu para que ele ficasse “desse jeito” (sic). Foi quando
criança, aos 4 ou 5 anos, que apareceram os primeiros sinais de que ele poderia ser
uma criança diferente das outras. Fazia muita bagunça, era hiperagitado, não
conseguindo se concentrar em nada. Nesta ocasião, a mãe foi chamada pela psicóloga
da escola e foi quando se deu conta que o filho não era só agitado em casa, mas
principalmente na escola. Ela não sabia como lidar com esse comportamento dele e
quanto mais ela se desesperava, mais ele ficava agitado. O pai quase não aparece no
discurso da mãe, pois pouco se refere a ele ao fazer esses relatos, colocando-se na
posição de que era ela que tinha que ter pulso firme com o filho. Por outro lado, ao
mesmo tempo que conta que brigava e botava de castigo, fala de Vítor como se fosse
105
um brinquedo seu, um objeto, quase não considerando o fato concreto de se tratar de
uma outra pessoa, com sua própria subjetividade, diferente dela e do que planejou
para ele.
Foi em torno dos 12, 13 anos que Vítor foi internado pela primeira vez,
“porque estava muito agressivo e subiu no telhado, varando as telhas lá de cima”
(sic). O corpo de bombeiros foi chamado e levou-o para o atual IMAS-Nise da
Silveira, antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, onde ficou internado no serviço que trata
de crianças e adolescentes. Assim iniciou-se sua inserção psiquiátrica, que ocupou
grande parte de sua vida. Depois desta internação vieram muitas outras, que
marcaram sua adolescência. Foi por esta ocasião que recebeu o diagnóstico de
“esquizofrênico”, o que determinou para ele um destino diferente dos outros jovens.
Este fato foi decisivo, pois tal diagnóstico lhe foi transmitido, marcando-o de forma
definitiva, como se ele não pudesse ser outra coisa. Esse acontecimento nos dá uma
indicação de como pensar os caminhos a seguir no trabalho com o psicótico tal
conduta, ao invés de abrir portas, fechou-as.
Ao recebermos o caso, a idéia, de imediato, foi nos unirmos à equipe do
ambulatório no acompanhamento do atendimento familiar, que havia sido iniciado há
pouco tempo. A pergunta que podemos fazer é: Por que iniciarmos o tratamento de
uma pessoa via o acolhimento da família? A princípio, avaliou-se que o atendimento
familiar poderia ser uma das formas de aproximação a Vítor, já que a notícia que
recebíamos dele era de que não queria, de forma alguma, se tratar. Como as notícias
que tínhamos sobre a família indicavam sua desestruturação, chamando a atenção em
especial a posição da mãe, acolher o pedido de ajuda desta família pareceu
fundamental como um primeiro passo. Fui designada, assim, para compor a equipe
que participaria deste trabalho, assumindo o lugar de terapeuta de referência do caso.
106
Neste ponto, é importante abrirmos um parêntesis para situar quais são os
parâmetros clínicos do CAPS que estão na base de uma indicação e definição do
técnico de referência para cada caso específico. Esta definição possui íntima relação
com o que chamamos de recepção, que é a forma como recebemos cada paciente
encaminhado para o serviço. Há alguns horários de recepção e uma dupla definida
para cada horário; cada paciente recebido passa a ser referência daquela dupla
específica; foi assim que se deu em relação ao outro caso apresentado nesta tese, o
caso Ana. No caso Vítor, entretanto, o caminho foi outro, já que o caso chegou ao
CAPS encaminhado por uma outra equipe que já o estava atendendo. Neste sentido,
por não haver uma recepção como há normalmente, o que estaria então na base da
escolha do profissional de referência do caso? Neste momento, a equipe do CAPS
estava reduzida e eu havia acabado de chegar no serviço; além disso, era uma das
poucas psicanalistas que havia tido em outro contexto uma experiência de
atendimento familiar; desta forma, fui indicada para fazer este trabalho.
O trabalho iniciou-se por ocasião de uma das internações de Vítor, o que
propiciou que ele se aproximasse do CAPS, já que sua internação, na maioria das
vezes, realizava-se em uma das enfermarias de atendimento à crise, localizada no
IMAS, próximo ao CAPS. O objetivo do atendimento à família era promover um
lugar de escuta para os pais, a partir da relação com o filho, numa tentativa de resgate
das histórias de cada um. Com isso apostávamos que, pela fala, algo pudesse se
deslocar nas relações entre eles, propiciando a abertura de novas possibilidades de
existência para Vítor no seio familiar.
A partir do que foi se desenrolando nos atendimentos, foi-se percebendo a
dificuldade de inserção deste filho na família e de sua convivência na casa dos pais,
levando em conta a sua forma singular de estar no mundo. A relação do pai com Vítor
107
se definia por um afastamento, ao passo que a relação da mãe com o filho era pautada
por exigências e expectativas, não reconhecendo as dificuldades e os limites do filho.
Vítor respondia à isto de forma agressiva, o que fazia a mãe ter medo dele,
impedindo-o de ficar em casa. Sua fala sobre ele evidenciava, aos poucos, o lugar
ocupado por Vítor em sua vida, tornando-se difícil saber se ela estava falando dela ou
dele. Deixava claro que ele era o motivo de sua vida, portanto, de seu sofrimento, já
que ele não é um menino “normal”. Fez tudo que pôde para que ele fosse “normal” e
não entende o motivo de tudo ter “dado errado”. Não se conforma com o fato de Vítor
não ter crescido normalmente, levado adiante os estudos, namorado e até casado.
Sonhou para ele uma outra vida e se sente muito mal por não conseguir fazer nada
para “consertar” o rumo das coisas. Ela se coloca numa posição de vítima de sua
própria história, não se implicando nela, colocando-se no lugar de um mero
espectador que está de fora sem saber como agir. Age como se não tivesse nenhuma
relação com a loucura do filho, como se esse fato lhe fosse exterior.
O que norteou a escuta do seu discurso, propiciando algumas oportunidades de
intervenção, foi a questão: como possibilitar o surgimento de um ponto de
interrogação neste discurso fechado, algum questionamento que abale sua certeza? Ao
escutá-la, a tentativa era de introduzir algum furo em seu discurso. Esse era o único
caminho que se vislumbrava em meio a tanta confusão familiar.
O atendimento à família de Vítor no CAPS teve prolongamento, mesmo sem a
presença dele. É interessante essa forma de se aproximar de um caso, via atendimento
familiar, pois a demanda partiu da família, o que acaba sendo comum nos casos de
psicose. As palavras presença e ausência são muito significativas aqui, pois Vítor não
estava exatamente ausente, já que estava o tempo todo presente na fala da mãe e essa
108
é uma forma simbólica de presença, muitas vezes mais intensa que a própria presença
física.
Retomando os termos presença / ausência é importante salientar aqui que
Vítor parecia nunca ter tido um lugar em sua família, desde o momento anterior a sua
concepção. Já nasceu sem lugar, pois o pai não o queria e a mãe o teve apesar disso.
Essa ausência de um lugar fora dos tentáculos da mãe aponta para o que é próprio de
uma estrutura familiar que determina uma psicose. Pensando com Lacan, nunca é
demais lembrar que é a oscilação entre a presença e a ausência da mãe que possibilita
a constituição de um lugar simbólico para o filho. No caso em questão o excesso de
presença materna acabou por causar uma completa ausência de qualquer referência
simbólica para o filho. Igualmente, não podemos esquecer aqui de mencionar o pai e
sua função. Na fala da mãe o pai é e sempre foi ausente ela fala isso com todas as
letras. Isso nos faz concluir o quão pouco vale a palavra do pai para a mãe, já sendo
deixada de lado desde o momento da decisão de ter o filho.
Nos atendimentos, observava-se a onipresença da fala da mãe, o pai realmente
pouco se manifestava. Suas intervenções eram reativas, pois todas as vezes em que a
mãe falava da vida do casal, ele negava o que ela dizia. Com o filho, segundo a mãe,
lida de uma forma fria, chamando-o de louco e dizendo que “lugar de louco é no
hospício” (sic). Apesar disto, é interessante notarmos que Vítor, sem casa, dormindo
não se sabe onde, pois em casa não podia ficar, já que nem cama havia para ele
dormir, procurava o pai em seu trabalho para lhe pedir dinheiro. O pai teve
oportunidade de falar sobre isto, afirmando que lhe dava o dinheiro com a condição
de que ele comparecesse ao CAPS para o tratamento. Tudo com Vítor era negociado
na base de condições ou às custas de chantagem: “Você só entra em casa se for ao
109
atendimento, se tomar a medicação…” (sic). Atitudes que em nada ajudavam Vítor a
se aproximar, pelo contrário, mais o afastavam.
Aos poucos o pai pôde encontrar um lugar para falar e com isso foi
aparecendo sua dificuldade em realmente encontrar um lugar também para ele na
relação com o filho. Vítor, no entanto, vinha se aproximando do pai e pedindo, de
uma certa forma, sua presença. Presença essa não invasiva para ele, em oposição a
presença intensamente invasiva da mãe. Nessa época, tudo o que se relacionava com a
mãe o fazia se afastar de qualquer possibilidade de tratamento.
Nos momentos em que estava internado, Vítor conseguia circular pelo CAPS,
colocando-se mais disponível para alguma intervenção possível, começando a
participar de alguns atendimentos à família, situação que não durou muito tempo. Em
algumas conversas com a terapeuta de referência, ele conseguiu dizer que queria ser
ouvido, mas não junto com sua família, pois eles o tratavam como louco e sua mãe,
mais uma vez, foi a responsável por sua internação. Contou que recebeu o diagnóstico
de esquizofrênico quando adolescente e isso atrapalhou muito sua vida. Considerava
tal diagnóstico um equívoco e há muito tempo lutava para revertê-lo, pedindo ajuda,
inclusive, a organizações estrangeiras para quem costumava escrever cartas e mandar
mensagens através da Internet. Pode-se perceber a importância da questão do
diagnóstico para ele, na medida em que determina um certo lugar de existência no
mundo. O diagnóstico ficou como uma marca, estigma decorrente do “Tu és isso”.
Existir como um esquizofrênico é insuportável para ele, então segue lutando para
construir alguma forma de existência que lhe seja menos sofrida. Falar destas
questões, entretanto, não seria possível no espaço do atendimento de família, como
ele mesmo de imediato deixou claro, demonstrando assim interesse em iniciar algum
tratamento, na tentativa de evitar outras internações. Nesta ocasião, isto não foi
110
possível, já que alguns dias depois ele fugiu da internação, o que sempre acabava
acontecendo.
Depois de ficar um grande período sem ser internado e sumido de casa e do
CAPS, Vítor voltou a ser internado, segundo a mãe, por ter tentado agredi-la. Vítor
parecia bastante calmo, procurando deixar claro que mais uma vez foi internado sem
motivos. Ao avaliar o contexto da situação chegamos à conclusão que realmente não
parecia haver motivos para tal internação e arriscamos uma intervenção ousada: uma
das profissionais que compunha o atendimento de família conversou com Vítor,
negociando com ele sua alta; desta forma ele saiu da internação mais uma vez com o
compromisso de continuar o tratamento no CAPS. Ele aceitou e realmente começou a
freqüentar o serviço e também a participar do atendimento de família. Logo no
primeiro atendimento após a alta, quando inclusive o pai estava presente, a loucura de
Vítor começou a aparecer de forma mais alarmante. Ele já estava há uma semana de
alta e, provavelmente, sem tomar a medicação de forma adequada, já que ele
acreditava que não precisava, pois afirmava com todas as letras: “eu não sou louco e
nem agressivo; preciso apenas conversar sobre sentimentos”(sic). Esta fala de Vítor
pode ser interpretada como um pedido de ajuda, endereçado ao CAPS e poderia ter
sido acolhido pela terapeuta de referência do caso. No entanto, a forma como o caso
chegou ao CAPS tocou algum ponto de dificuldade da psicanalista, que não pôde
acolher e escutar a fala de Vítor isto é, a própria transferência se manifestando.
Podemos pensar que tal impossibilidade que se apresentou do lado do analista foi
percebida por Vítor, já que o psicótico é extremamente sensível à possibilidade e
disponibilidade de acolhimento que vem do outro.
Nesta ocasião, Vitor nos pareceu bastante desestruturado, bastante mal. Na
medida em que o atendimento de família caminhava, alguns pontos obscuros iam se
111
esclarecendo, o que culminou com a completa desorganização de Vítor e a
demonstração de sua agressividade. Sua desorganização psíquica começou a surgir de
forma menos velada, ele começou a aparecer de vez em quando no CAPS, ainda
acuado, dizendo não gostar de se misturar com os pacientes loucos, mas aos poucos
foi encontrando aí um lugar. Isto, no entanto, não durou muito, pois Vítor tem muitas
dificuldades de fazer vínculos e, no momento em que ele teve que se deparar com
limites, regras, ele não suportou e novamente deixou de aparecer. É fundamental
esclarecer que aos poucos fomos aprendendo com Vítor como nos aproximar dele e
promover alguma possibilidade de ele se tratar. Com muito cuidado e delicadeza foi-
se criando condições dele começar a freqüentar o CAPS
38
.
Na construção de um projeto de tratamento para o psicótico, fica claro a
importância de escutarmos os limites e as aberturas que o próprio sujeito vai
indicando. Como aponta Zenoni (2000), a função de secretário do alienado implica no
acompanhamento do trabalho do sujeito psicótico, sendo um dos aspectos desta
função seguir os caminhos que o sujeito indica. Neste sentido, não cabe ao
psicanalista a função de interpretação, pois isso poderia comprometer a transferência
e a possibilidade de tratamento. A interpretação pode levar a uma dimensão de
enigma, o que pode desenvolver um caráter persecutório para o sujeito, levando-o a se
interrogar sobre o quê o psicanalista quis lhe dizer. No caso de Vítor, qualquer
empenho por parte da equipe de convocá-lo para o tratamento, por mais discreto que
fosse, era fadado ao fracasso. Qualquer abordagem, qualquer fala dirigida a ele o
fazia sentir-se bastante perseguido e invadido. Ele deixava muito claro que ia indicar
o tempo necessário para se chegar ao CAPS; restava à equipe ter paciência para
aguardar este momento. Isso, no entanto, só pôde ser elaborado no “só depois”.
38
Isto pôde se dar num segundo tempo, após a discussão do caso e o encaminhamento para outro
112
É importante lembrar que no desenvolvimento da clínica, e isso não se
restringe à clínica da psicose, além dos limites e aberturas do sujeito, há também a
posição do psicanalista e os limites de quem pretende sustentá-la.
Ao entrar no trabalho com a família e com Vítor, em virtude da forma como o
caso foi apresentado, já iniciei um primeiro contato vigilante, prevenido e receoso.
Um modo não muito favorável ao início de um trabalho clínico que, de certa forma,
guardava uma continuidade com a maneira como o caso foi abordado nos anos
anteriores, através da falta de investimento que se evidenciava por um prognóstico
bastante desanimado.
É importante, portanto, problematizar neste ponto o contexto em que se deu
minha entrada no caso como terapeuta de referência no trabalho com a família, um
contexto de um trabalho iniciado por uma equipe de profissionais de outra instituição.
Houve a sensação de estar embarcando em um trabalho sem efetivamente ter
participado da construção de seus fundamentos. Ao refletirmos e escrevermos sobre o
caso, percebemos que o significante da transferência neste caso é exclusão e foi desta
forma que a psicanalista foi incluída na transferência, pois já iniciou um trabalho
sendo colocada num lugar na transferência que se manifestou pela resistência.
Exclusão parece ser efetivamente o traço do caso: Vítor é excluído da família e do
tratamento, o pai é excluído da fala da mãe e da relação com o filho; não seria
possível esse traço não aparecer na clínica do caso. A possibilidade ou não de um
desejo de escuta surgir, a partir do desejo do analista foi marcada por esse traço que já
apareceu na maneira como o caso foi encaminhado. O desejo do analista não é um
desejo qualquer entre tantos outros. É um desejo que depende do percurso de análise
profissional, que assumiu o lugar de técnico de referência.
113
do próprio analista. Por isso, Lacan indica o seu surgimento na passagem de
analisante a analista, ao final de uma análise.
Iniciar o tratamento de Vítor via atendimento à família parece apontar, nesse
caso, para uma atitude defensiva da própria equipe que nos encaminhou o paciente, já
que não havia uma crença na possibilidade de ele realmente, em algum momento, vir
a se tratar. Esta estratégia não teve sucesso no que diz respeito à aproximação de
Vítor, como ele mesmo, inicialmente, deixou claro, ao dizer que não poderia falar
sobre seus problemas na presença da mãe. Neste momento, a psicanalista acabou
seguindo e reproduzindo o caminho indicado pela outra equipe, lugar assumido por
ela na transferência, lugar de exclusão, que nos remete ao lugar do pai na estrutura
familiar.
Acredito que no trabalho com psicóticos e com suas famílias, respectivamente
é necessário um grande investimento, e uma aposta, uma crença na possibilidade de
que algo possa vir a se mover, e se redirecionar. A delicadeza e o cuidado na
apresentação de um caso a ser encaminhado para outra equipe é fundamental para a
posterior condução do mesmo. Ao iniciar o trabalho com o caso, esperava-se que
algo se produzisse no sentido de um desejo do analista surgir, o que não aconteceu.
Mesmo não havendo desejo do analista, a psicanalista foi incluída na transferência,
exatamente pela exclusão. Não houve desejo, mas houve um ato do analista de sair
efetivamente do caso e passá-lo adiante para que ele pudesse avançar, o que realmente
se deu o caso avançou, abrindo um espaço para a fala de Vítor. O ato de sair do
caso, entretanto, não ocorreu sem um trabalho de elaboração e de reflexão junto à
equipe, e foi isto que propiciou o posterior avanço do mesmo. A experiência vivida aí
aponta para os limites da clínica, que indicam a resistência do analista. Falar dos
limites e dos fracassos é importante para a realização da própria clínica.
114
Ao assumir um lugar de atendimento no caso me propus a enfrentar o que para
mim já se apresentava como um desafio diferente dos outros casos com os quais me
deparei até aquele momento. Iniciou-se, assim, um trabalho marcado pela descrença,
o que a princípio não foi suficiente para definir uma desistência, pelo contrário. Insisti
e, na medida em que fui trabalhando em supervisão e em análise pessoal minhas
questões, pude estabelecer um certo investimento no caso. No entanto, se, por um
lado, ao trabalhar meus receios em supervisão e em análise pessoal, consegui abrir
algumas possibilidades de um trabalho com este caso, por outro, fui me dando conta
de que cada vez acreditava menos na possibilidade de Vítor fazer algum tipo de laço
transferencial; isso indica que a transferência, nesse caso, não pôde ser sustentada
pelo desejo do analista, evidenciando-se como resistência.
Ao encerrar o relato do caso, consideramos interessante mencionar Lacan no
momento em que ele faz uma crítica à noção de contratransferência utilizada pelos
teóricos ingleses, deixando claro que se trata aí da transferência no analista. Tal noção
torna-se inócua quando pensamos que a transferência é uma só, um fenômeno que se
apresenta na relação entre o analista e o analisante. Há, desta forma, uma implicação
do analista na situação de transferência, o que determina que sua posição é
fundamental para que o processo se efetive e para isso ocorrer é preciso sustentar o
desejo do analista. No caso trabalhado, o ato da psicanalista de sair do caso foi o que
possibilitou que se abrisse algum lugar para Vítor, constituindo-se aí um lugar para
ele demandar.
Para finalizar este capítulo, é importante mais uma vez deixar claro que o
desejo do analista não é o desejo de ser analista. É neste sentido que ele está ligado à
questão ética da prática analítica, apoiando-se em um saber esvaziado, ou seja, um
não-saber. Lacan trabalhou esta questão de um modo muito interessante e oportuno no
115
texto “Variantes do tratamento padrão”(1955) onde nos encaminha a pensar que o
analista só pode enveredar pela prática da psicanálise,
ao reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância (…). A
ignorância, de fato, não deve ser entendida aqui como uma
ausência de saber (…). O fruto positivo da revelação da ignorância
é o não-saber, que não é uma negação do saber, porém sua forma
mais elaborada.(Lacan,1998,p.360).
Ele desenvolve, assim, a idéia de que o psicanalista deve colocar o seu saber
em reserva e isto nos faz lembrar que é preciso saber não-saber.
Ao nos referirmos ao lugar do psicanalista na transferência, de sujeito suposto
saber, consideramos que há aí uma suposição de saber, mas o analista não deve se
colocar na posição de quem sabe. Isto aponta para o que pode lhe ser específico em
relação particularmente a clínica da psicose em que o lugar do psicanalista é
determinado não só por um não-saber, mas por uma não suposição de saber. Um
não-saber, como ensina Lacan, está na base de qualquer clínica, mas é fundamental
incluirmos, no que diz respeito à clínica da psicose, a idéia de que o sujeito não deve
supor que o psicanalista saiba, pois esta suposição de saber é de um Outro que invade
e ordena. O lugar de não-saber, lugar de um saber esvaziado pode viabilizar
justamente a construção de algum lugar de existência para o sujeito na psicose, a
partir do acolhimento desta demanda.
Os dois casos clínicos trabalhados têm como foco central esta questão: o caso
de Ana destaca a importância da presença da analista, sustentando uma possibilidade
de uma outra forma de existência para Ana que não o vazio que a impede de realizar
ou ter projetos de vida. O caso de Vítor, por sua vez, mostra-nos que a exclusão, traço
do caso, ao se apresentar na própria relação com a terapeuta de referência e na
reviravolta no atendimento, a partir da saída desta ao constatar determinados limites e
o encaminhamento para outro profissional, propiciou a abertura de algum lugar de
116
existência para ele na medida em que o caso pôde avançar. Este avanço foi se
tornando evidente a partir de uma modificação da postura de Vítor que começou a
demandar algo, iniciando uma freqüência ao CAPS, participando de alguns momentos
de trabalhos grupais. Com o tempo, começou inclusive a demandar um atendimento
terapêutico onde pudesse falar privadamente sobre seus sentimentos, o que antes era
quase impossível.
Por fim, ao analisar os dois casos tomados como paradigmáticos, constata-se
que, nos dois, a psicanalista foi incluída na transferência, contudo, obviamente, de
forma diferente em cada um. No caso Ana houve inicialmente uma demanda da
analista que se desenvolveu ao longo do trabalho, transformando-se no que estamos
chamando de desejo do analista. A ausência de demanda de Ana, que caracterizou o
início do trabalho clínico, evoluiu para a construção de alguma demanda que se deu
ao longo do percurso de seu tratamento, e isto possui íntima relação com a realização
da transferência sustentada pelo desejo do analista. No caso Vítor, a transferência não
sustentada pelo desejo do analista apresentou-se como resistência. Mesmo assim, por
ter havido um ato do analista, ato de sair do caso, pôde se abrir um lugar para Vítor
demandar, o que de fato aconteceu. Conclui-se, desta forma, que, mesmo a
psicanalista estando em posições diferentes em cada caso, os dois caminharam num
certo sentido. O primeiro exigiu que a psicanalista mergulhasse, entrasse no caso de
cabeça, ao passo que no segundo a psicanalista precisou recuar e foi isto que abriu
novas possibilidades, mudando sua configuração.
117
CONCLUSÃO
Como nos propõe Freud, a clínica é fundamental para que se possa formular e
articular a teoria. Ele mesmo deu provas disso ao criar a psicanálise a partir da clínica
das histéricas.
Lacan, ainda psiquiatra, aproximou-se da psicanálise e encantou-se com ela,
igualmente, via clínica, a clínica com a psicose. Nela, a partir do que foi
desenvolvido na presente tese, observa-se uma característica que lhe é própria: a
questão do saber que a psicose porta em sua estrutura. Neste sentido, aposta-se que a
psicose pode ensinar a própria psicanálise a lidar com ela, o que, como indica Zenoni
(2000), nos faz pensar a psicose aplicada à psicanálise e não o contrário.
Ao escrever sobre a clínica estamos sublinhando sua importância, sobretudo
no que diz respeito à produção teórica que nasce dela. A escrita da clínica envolve
diretamente a posição do psicanalista no caso em questão. Se a noção de transferência
nos leva a compreender que o analista, ao conduzir a experiência psicanalítica, passa a
estar incluído no inconsciente do analisante, podemos dizer que escrever um caso leva
o psicanalista a fazer uma análise da experiência conduzida por ele, a partir da
posição assumida na transferência.
Neste momento de encerramento do trabalho, não se trata de fechar
conclusões, mas de abrir novos caminhos, a partir do que foi desenvolvido. Sendo
assim, é fundamental fazer uma articulação entre desejo do analista e a função de
secretário que o psicanalista assume ou não em cada caso de psicose e quais as
conseqüências clínicas que daí decorrem. Lacan define a noção de secretário no
Seminário sobre as psicoses, indicando com precisão um lugar para o psicanalista na
clínica da psicose, como lugar de escuta e de valorização do discurso do sujeito,
118
fundamental para que alguma forma de tratamento se efetive. Em sua palavras:
“Vamos aparentemente nos contentar em passar por secretários do alienado. (…) Pois
bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que
ele nos conta.”(Lacan, 1985, p.235).
Assumir e desenvolver a função de secretário não é tão simples como
inicialmente pode parecer. Ser secretário do alienado significa colocar-se disponível
para incluir como eixo de sua função o saber que o psicótico traz em sua estrutura.
Trata-se de uma estrutura que apresenta um saber sobre o inconsciente, sobre o não
sabido por todos nós. Este saber coloca-o numa posição de refém do próprio
inconsciente, do Outro que invade e ordena. É uma estrutura que se organiza nestas
bases, como indica Lacan neste mesmo Seminário, sobre um tamborete de três pés
que a qualquer momento pode não agüentar a pressão do saber que lhe concerne.
Para assumir a função de secretário é preciso haver desejo do analista, pois é o
que sustenta a transferência na clínica da psicose, no sentido de valorizar o saber do
sujeito e os caminhos que ele indica. Para tanto, é preciso assumir um lugar de não-
saber, que significa despir-se de seus conceitos e preconceitos e se abrir a um saber da
diferença, na maioria das vezes não compartilhado socialmente. É isto que pode levar
o sujeito a incluir o psicanalista em seu mundo, permitindo a sua presença, a sua
escuta, o seu acompanhamento, sentindo-se mais a vontade para falar o que lhe
atormenta. A psicanálise, ao supor esse saber no sujeito, vai na contramão de toda
abordagem da chamada “loucura”, que destitui o sujeito de qualquer saber.
Não é demais lembrar, neste momento, o que Allouch (1998) indica, a partir
de sua leitura de Lacan: que a transferência na psicose, situa-se inicialmente do lado
do analista, como uma transferência para com o psicótico. É neste ponto que se
realiza a função se secretário, sendo a posição do psicótico de testemunha do discurso
119
do Outro que convoca o psicanalista a realizar esta função. A transferência que pode
se desenvolver para com o psicótico apresenta-se intimamente ligada ao que estamos
chamando de desejo do analista.
A partir do trabalho clínico desenvolvido, concluímos que a possibilidade de
estar na posição de não-saber pode determinar o desejo do analista. Lacan se refere ao
não-saber no Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54), ao qualificar o
saber do analista de ignorância docta, definindo-o como um não-saber, já que a
experiência analítica revela um saber não sabido, o saber inconsciente. No ano
seguinte, em “As variantes do tratamento padrão” (1955), ao evidenciar que o analista
só pode exercer a psicanálise reconhecendo em seu saber o sintoma de sua ignorância,
enfatiza igualmente a importância do não-saber que não é uma ausência de saber,
muito pelo contrário, mas “a sua forma mais elaborada”. O psicanalista, deve, assim,
colocar o seu saber em reserva para poder receber o saber do sujeito que lhe endereça
a fala.
A partir de uma elaboração a respeito do Caso de Vítor, um dos casos
apresentados no último capítulo, podemos pensar que este caso trouxe como marca
um excesso de saber a seu respeito: um primeiro diagnóstico fechado
(esquizofrênico), um segundo diagnóstico suposto (transtorno de personalidade) e
uma certeza constante de que Vítor não se vincularia a qualquer forma de tratamento,
sendo o seu destino ser internado repetidas vezes. Pautado nesta certeza, o caso foi
encaminhado para o CAPS. Ao recebermos o caso desta maneira, referido a tamanho
excesso de saber, definiu-se uma transferência desarticulada do desejo do analista que
apareceu como resistência por parte da psicanalista que inicialmente ficou do lado
desse saber desfavorável para o desenrolar do tratamento.
120
No momento em que a psicanalista, a partir de uma elaboração sobre sua
posição e sobre os limites que ela impunha ao desenvolvimento do tratamento, tomou
a decisão de sair do caso, realizando um trabalho de reflexão junto à equipe do
CAPS, houve uma escuta do discurso do sujeito que dizia com todas as letras que
daquela forma, mais uma vez, ele não iria se tratar. Pela primeira vez surgiu na
história do caso alguém colocando-se numa posição de um não-saber isto se deu a
partir do ato do analista e promoveu, como já mencionado, novas possibilidades para
Vítor, abrindo-se uma nova porta para ele, a partir da crença de que algo pudesse
ser diferente.
Traçando um paralelo com o outro caso apresentado, o caso de Ana, nele
podemos reconhecer que a transferência que se instaurou foi sustentada pelo desejo
do analista, o que permitiu que a analista assumisse a função de secretariar. O
atendimento deste caso se deu num momento posterior ao trabalho com o caso de
Vítor, este último tendo propiciado uma rica elaboração em análise pessoal e uma
conseqüente reflexão por parte da psicanalista sobre o lugar do psicanalista no
trabalho clínico com a psicose. No caso de Ana, de imediato, houve uma
disponibilidade por parte da psicanalista para escutar seu discurso, mesmo que
esvaziado e muitas vezes difícil de suportar.
A psicanalista ocupou, desde o início, um lugar de sustentação para este vazio
que se apresentava em seu discurso e definia sua condição. Foi isto que permitiu que,
ao longo do tratamento, se produzisse alguma demanda por parte de Ana, o que
inicialmente parecia bastante improvável. O lugar de suporte do vazio assumido pela
psicanalista foi um lugar de não-saber. Na clínica da psicose, o mais importante é que
o sujeito, muito sensível a qualquer movimento que venha do outro, não deposite uma
suposição de saber no psicanalista, o que inviabilizaria o tratamento, transformando a
121
transferência numa forma indigna de “servidão mental”, tal como afirma Freud em “A
Dinâmica da transferência”(1912):
Nas instituições em que doentes dos nervos são tratados de modo
não analítico, podemos observar que a transferência ocorre com a
maior intensidade e sob as formas mais indignas, chegando a nada
menos que servidão mental e, ademais, apresentando o mais claro
colorido erótico. (Freud, 1996, p.113).
Ao escutar e acolher o discurso do sujeito, o psicanalista deve agir com
cautela, delicadeza e sensibilidade, seguindo sempre os sinais que o sujeito lhe
oferece como guia.
Os dois casos trabalhados nessa tese oferecem elementos para refletirmos
sobre a articulação entre desejo do analista e a transferência na clínica da psicose,
através do que Lacan nomeou de função de secretário. Enveredar por essa clínica faz
com que nos defrontemos com situações, na maioria das vezes, inteiramente novas e é
por essa riqueza que consideramos fundamental apresentar a clínica como a origem da
articulação teórica que desenvolvemos ao longo dessa tese de doutorado.
122
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