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CRISTIANE REBERTE DE MARQUE
Construção de identidade e formação de vínculos,
no processo psicoterapêutico de uma criança,
em diferentes contextos familiares
São Paulo
2006
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CRISTIANE REBERTE DE MARQUE
Construção de identidade e formação de vínculos,
no processo psicoterapêutico de uma criança,
em diferentes contextos familiares
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica
Orientadora: Profa. Dra. Isabel Cristina
Gomes
São Paulo
2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Marque, Cristiane Reberte de.
Construção de identidade e formação de vínculos, no processo
psicoterapêutico de uma criança, em diferentes contextos familiares /
Cristiane Reberte de Marque; orientadora Isabel Cristina Gomes. --São
Paulo, 2006.
100 p.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-
Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica)
Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Psicoter
apia da criança 2. Família 3. Identidade (criança) 4.
Relações familiares 5. Winnicott, Donald Woods, 1896-1971 6.
Setting (psicanálise) I. Título.
RJ504
Cristiane Reberte de Marque
Construção de identidade e formação de vínculos,
no processo psicoterapêutico de uma criança,
em diferentes contextos familiares
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Clínica
Banca Examinadora:
______________________________________
______________________________________
______________________________________
Data da aprovação: _____/ _____/ _____.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Isabel Cristina Gomes, pela oportunidade propiciada e pela orientação
íntegra e tão cuidadosa. Com ensinamentos, sensibilidade e confiança, ofereceu-me
estímulo e espaço fundamentais para que este trabalho fosse desenvolvido de maneira
autêntica.
Aos meus pais, Gélson e Maria, pela generosidade e pela confiança expressa através do
constante incentivo e do apoio incondicional ao meu desenvolvimento. A disposição
deles de amparar-me foi essencial para que eu avançasse mais este passo em minha
vida.
À Profa. Dra. Regina Helena Lima Caldana, que me apresentou aos desafios da
psicoterapia com crianças ao supervisionar o atendimento que apresento neste trabalho,
pelo incentivo à realização deste estudo e pelas tantas contribuições recebidas, da
Graduação ao Exame de Qualificação.
À Profa. Dra. Kaioko Yamamoto, por ter aceitado o convite para debater este estudo e
pelas preciosas sugestões com que, de maneira gentil e respeitosa, presenteou-me no
Exame de Qualificação.
Aos meus irmãos, Norberto e Marcelo, e à minha cunhada Aline, que me acolheram em
suas casas nas minhas inúmeras viagens a São Paulo, tornando essa experiência também
um encontro familiar muito prazeroso.
À psicóloga Neiva Maria da Silva Mayor, por se dispor em dividir seus conhecimentos
sobre a teoria e a técnica de Winnicott, encorajando-me frente a este desafio.
À Camila Petean, Claudia Pedrosa, Josiane Isaac, Lílian Miranda e Renata Mazzoti, que
pela amizade profunda ajudaram-me a compreender a importância dos vínculos.
À Maira Sei e Juliana Fernandes Pereira, pela troca de idéias e pelo companheirismo ao
dividir as experiências pessoais com a Pós-Graduação.
À minha analista, Guiomar Papa de Morais, que compartilhou toda a criação e a
elaboração deste trabalho, auxiliando-me a viver os afetos despertados e a compreender
o significado dele em minha vida.
E especialmente, à Yara, criança que apresento neste estudo, por ter permitido que eu
compartilhasse nosso tesouro com outras pessoas. Com sua riqueza pessoal,
fortaleceu minha crença na natureza humana e impulsionou-me em minha formação
profissional.
Para os meus pais,
com muito amor.
O senhor mire e veja. O mais importante e bonito,
do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas –
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam e desafinam. Verdade maior.”
João Guimarães Rosa
RESUMO
Marque, C. R. de Construção de identidade e formação de vínculos, no processo
psicoterapêutico de uma criança, em diferentes contextos familiares. 2006.100p
Dissertação de Mestrado - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo.
Atualmente é possível observar diversos tipos de configuração familiar que fogem ao
modelo tradicional da família nuclear. Dentre essas configurações, ocorre a
possibilidade de uma criança transitar por diferentes contextos familiares, em lugar de
permanecer em sua família de origem por toda a infância. Considerando que os grupos
familiares são base essencial para o desenvolvimento psíquico, objetivou-se investigar a
estruturação de identidade e o estabelecimento de vínculos de uma criança que, durante
o processo de psicoterapia, vivenciou modificações em sua configuração familiar. Para
tanto, utilizou-se a metodologia qualitativa, o instrumento de estudo de caso e o
referencial psicanalítico de Winnicott. A criança em questão, após o falecimento de sua
mãe, a prisão de seu pai e um período de acolhimento por parentes da linhagem
materna, foi transferida para uma instituição de abrigo infantil. Nessa instituição, foi
solicitado o atendimento psicoterápico à criança. Durante esse período, a criança deixou
o abrigo, viveu novamente com a família acolhedora por algum tempo e retornou ao
convívio com o pai biológico numa família reconstruída. A psicoterapia de orientação
analítica foi mantida durante essas mudanças devido à disponibilidade de adaptar o
setting físico às variações externas, que exigiram que este fosse deslocado, inclusive
para locais pouco usuais de atendimento psicoterápico. Esse deslocamento do setting
possibilitou manter a estabilidade e a continuidade do vínculo terapêutico, ajudando a
paciente a vivenciar fases de instabilidade externa com menor turbulência e maior
ganho emocional, favorecendo seu desenvolvimento afetivo. Em relação à construção
da identidade, o self pôde regredir e resgatar vivências importantes para maior
integração, independência e autenticidade. Em relação ao estabelecimento de vínculos,
foi possível recuperar a confiança no ambiente suficientemente bom e ampliar os
relacionamentos. Constatou-se também que as mudanças no contexto familiar
vivenciadas pela paciente, e o convívio num ambiente familiar nos moldes do modelo
de circulação de crianças, em substituição à família nuclear, foram favoráveis ao seu
desenvolvimento. Este estudo baseou-se no referencial winnicottiano, no qual o
manuseio do setting é um recurso importante para a criação de um ambiente de holding,
a partir do qual um espaço potencial pode ser concebido. Considera-se esta perspectiva
de grande valor para a elaboração de propostas interventivas em psicologia clínica
comunitária e preventiva.
Palavras-chave: psicoterapia infantil, contexto familiar, Winnicott, setting terapêutico,
identidade, vínculos.
ABSTRACT
Marque, C. R. de Identity Construction and Link Formation in a Child’s
Psychotherapeutic Process in Different Family Contexts. 2006. 100p. Master’s
Degree Dissertation Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
Several types of family configurations other than the traditional nuclear model can be
observed nowadays. Within the context of these configurations, there is the possibility
for one child to transit through different family contexts, instead of remaining in its
original family throughout childhood. Regarding family groups as the essential basis for
psychic development, we aimed at investigating the identity structuration and link
establishment in a child which, during the psychotherapeutic process, experienced
modifications in its family configuration. In order to do so, we used the qualitative
research methodology, the single case study instrument and Winnicott’s psychoanalytic
referential. The child, after the death of its mother, prison of its father and a period of
sheltering by the mother’s relatives, was transferred to a children’s sheltering
institution, where it was indicated for psychotherapeutic consultation. During this
period, the child left the institution, living again with the mother’s relatives and,
afterwards, with the biological father in a restructured family. The analytic-oriented
psychotherapy was maintained during this period given the therapist’s availability to
adapt the physical setting to the external changes, which demanded this to be moved,
including to unusual locations for psychotherapy consultation. This setting relocation
allowed for the continuation and maintenance of the therapeutic link, helping the patient
experience periods of external instability with less turbulence and greater emotional
gain, and favoring its affective development. Regarding the identity construction, the
self could regress and rescue important experiences for greater integration,
independence and authenticity. As to the link establishment, it was possible for the child
to recover its confidence due to the environment good enough and to widen up its
relationships. It was also observed that the changes in the family context experienced by
the patient and the life in a familiar environment designed in the model of children
circulation, in place of the nuclear family, were favorable to its development. This study
was based on Winnicott’s referential in which the handling of the setting is an important
resource for the creation of a holding environment, from which a potential space can be
conceived. This perspective is regarded as of great value for the design of intervention
proposals in clinical communitarian and preventive psychology.
Key words: children psychotherapy, family context, Winnicott, therapeutic setting,
identity, links
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................17
1. 1. FAMÍLIA E DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL ............................... 18
1.2. CONFIGURAÇÕES FAMILIARES ALTERNATIVAS ............................ 23
1. 3. O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL SEGUNDO
WINNICOTT .............................................................................................. 27
1.4. PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS EM
CONDIÇÕES ESPECIAIS.......................................................................... 34
2. OBJETIVO................................................................................................................39
3. METODOLOGIA.....................................................................................................41
3.1. O SETTING TERAPÊUTICO..................................................................... 45
3.2. A HISTÓRIA DA CRIANÇA...................................................................... 48
3.3. ASPECTOS ÉTICOS................................................................................... 51
4. RESULTADOS .........................................................................................................53
4.1. ACOLHIMENTO INTRAFAMILIAR........................................................ 58
4.1.1.CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE............................................. 59
4.1.2. ESTABELECIMENTO DE VÍNCULOS..................................... 66
4.2. FAMÍLIA RECONSTRUÍDA ..................................................................... 69
4.2.1.CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE............................................. 70
4.2.2. ESTABELECIMENTO DE VÍNCULOS ..................................... 73
5. DISCUSSÃO..............................................................................................................79
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................88
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................93
ANEXOS.......................................................................................................................97
ANEXO A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO.......................................................................... 98
ANEXO B - CARTA DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA................... 100
APRESENTAÇÃO
Na graduação em Psicologia, tive a oportunidade de, como estagiária, prestar
atendimento psicológico a crianças vítimas de algum tipo de violência, abrigadas em
uma entidade de proteção à infância e à adolescência. Na maior parte dos casos
atendidos pela instituição, as crianças eram vítimas de negligência.
Entre as atividades propostas nesse trabalho de atendimento, estava o
compromisso de o estagiário tentar manter o atendimento a criança após o desabrigo,
quando ela voltasse a conviver com a família de origem ou fosse entregue a uma família
substituta. Esse atendimento era planejado considerando as importantes e prováveis
dificuldades de adaptação da criança e da família a essas situações.
A partir daquele momento, começaram a preocupar-me as dificuldades vividas
por crianças expostas a situações desse tipo e constatei a falta de estudos que guiassem a
prática do psicólogo clínico para lidar com essa realidade. Observei a escassez
informações com respaldo científico sobre esse tema, especialmente quando se trata da
realização de um trabalho psicoterápico longitudinal que acompanhe as vivências
infantis nesse processo de convivência em diferentes contextos familiares.
Assim, o estudo aprofundado do tema por meio de pesquisa torna-se
fundamental para que, a partir do maior esclarecimento, possa ser intensificado o
investimento na área e possa ser elevada a qualidade de vida das crianças e das famílias
em situações semelhantes.
É de relevância tal estudo ser desenvolvido com essa população, visto que se
insere em um contexto social onde se observa a crescente colocação de crianças em
abrigos e em lares substitutos. Considerando que os motivos para o abrigamento e para
a mudança de lar são variados e podem ser conseqüência de momentos de
desestabilização familiar, conhecer o significado das sucessivas mudanças de contexto
familiar para a criança merece tanto a atenção de nossa categoria profissional quanto a
já dedicada para os contextos de abrigo ou adoção.
A abordagem metodológica de estudo de caso proposta para investigar a
realidade de uma criança que viveu em contextos familiares diferentes, partindo do
atendimento ludoterápico realizado durante sua passagem por esses diversos contextos,
constitui-se ainda como uma possibilidade enriquecedora de conhecimento, na medida
em que os dados clínicos obtidos na psicoterapia ajudem a compreender a construção de
identidade e a formação de vínculos da criança nesse percurso.
1. INTRODUÇÃO
18
1.1 FAMÍLIA E DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL INFANTIL
Osório (1996, p.16), ao definir “família”, expressa que é preciso avançar sobre
os conceitos de unidade básica de interação social para se obter um sentido
operacionalizado do termo. Considera-a
[...] uma unidade grupal onde se desenvolvem três tipos de
relações pessoais aliança (casal), filiação (pais/filhos) e
consangüinidade (irmãos) e que a partir de objetivos genéricos
de preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e
fornecer-lhes condições para a aquisição de suas identidades
pessoais, desenvolveu através dos tempos funções diversificadas de
transmissão de valores estéticos, religiosos e culturais.
O autor divide esquematicamente as funções da família em biológicas,
psicológicas e sociais, ressaltando que, na realidade, elas estão intimamente
relacionadas e se confundem umas com as outras. Como função biológica, destaca
assegurar a sobrevivência dos novos seres através dos cuidados, provendo nutrição e
condições ambientais adequadas aos recém-nascidos. A função social se expressa pela
transmissão de valores culturais e pelo preparo das crianças para a vida em comunidade.
E, como função psicológica, o autor destaca tanto o ato de prover o alimento afetivo à
criança, tão indispensável à sua sobrevivência como os nutrientes orgânicos ingeridos,
quanto a possibilidade de servir de continente para as ansiedades existenciais dos seres
humanos durante o processo evolutivo, favorecendo o adequado suporte na superação
das crises previsíveis ao longo da vida.
19
Osório (1996) considera que família pode apresentar-se originalmente sob três
formas básicas: a nuclear, a extensa e a abrangente. A configuração familiar mais
simples é a nuclear, constituída por pai, mãe e filhos. As famílias extensas são aquelas
em que também outros membros, unidos por algum laço consangüíneo, coabitam o
mesmo espaço, enquanto nas abrangentes outros indivíduos não parentes são incluídos.
Contudo, o autor refere que as experiências da modernidade forçam a avançar
para além dos formatos básicos, incluindo outras formas de organizações familiares.
Chama a atenção para as diversas configurações familiares surgidas atualmente a partir
de casamentos desfeitos e de novas composições matrimoniais, que deram origem a um
novo perfil das famílias. Dá o nome de famílias reconstruídas àquelas formadas a partir
de casamentos desfeitos, que introduzem uma nova realidade vivencial e o
estabelecimento de vínculos não prefigurados na família de corte tradicional, seja ela
nuclear, abrangente ou extensa.
Os conceitos apresentados por Osório (1996) demonstram que o tema “família”
é bastante amplo e pode ser estudado por diversos vértices. Entretanto, no presente
trabalho, ele será enfocado a partir de sua importância no processo de desenvolvimento
emocional e de formação de identidade pessoal.
Segundo Velho (1987), ao se refletir a respeito de família e de subjetividade, é
preciso inicialmente retomar a divisão entre correntes sociológicas de pensamento que
descrevem a subjetividade como natural ou como construída. Segundo o autor, há duas
vertentes de análise: uma considera a subjetividade algo natural, anterior à vida social e
à inserção na sociedade, que identifica e particulariza cada indivíduo; outra parte da
idéia básica de que a subjetividade do indivíduo é algo construído, não natural, mas
produto elaborado pela sociedade e pela cultura. Entretanto, ambas as correntes
20
reconhecem que a família é uma instituição fundamental no processo de socialização da
subjetividade.
Na tentativa de reconhecer o laço entre essas duas vertentes, em vez de
dicotomizar os conceitos, Figueira (1987) ressalta que a discussão em torno da família e
da subjetividade, ou da estruturação da subjetividade, depende de um alargamento das
ciências sociais a partir de uma teoria que estude a dimensão da subjetividade, como,
por exemplo, a psicanálise.
A psicanálise, desde a sua origem, atentou para os intensos relacionamentos
afetivos desenvolvidos entre os membros da família, reconhecendo-a como a matriz
relacional do desenvolvimento psíquico.
Freud (1969) postulou que é durante os primeiros anos de vida que ocorre a
organização da personalidade, dando condições à criança de se relacionar com o mundo.
Em seus apontamentos, priorizou a constituição da família nuclear e reconheceu a
relação triangular formada por paimãefilho como fundamental no desenvolvimento
emocional humano, caracterizando-a como a base para a estruturação da personalidade.
Destacou o papel paterno da quebra da relação simbiótica entre mãe e filho e a presença
de sentimentos de ambivalência da criança em relação aos pais no estágio do complexo
de Édipo, vislumbrando, a partir dessa relação triangular, a possibilidade de a
personalidade desenvolver-se de maneira saudável ou de apresentar um distúrbio
neurótico.
Winnicott (1896-1984) foi um dos psicanalistas que, ao desenvolver alguns
conceitos na psicanálise, mais valor conferiu à importância do convívio familiar na
facilitação do desenvolvimento do potencial herdado de cada indivíduo. (GROLNICK,
1993)
21
Tendo iniciado sua carreira como pediatra, esse autor teve uma longa
experiência, de aproximadamente 40 anos, no atendimento a crianças. Esse grande
contato com crianças e mães favoreceuseu grande interesse na infância também como
psicanalista. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, foi consultor para o
Projeto de Evacuação do governo britânico, e tal experiência com crianças evacuadas o
impulsionou ainda mais intensamente para a publicação de uma obra com originais
contribuições à compreensão do desenvolvimento infantil, enfatizando o papel do
ambiente na saúde e nos distúrbios. (GROLNICK, 1993)
Como Freud, Winnicott confere importância à situação edípica. Pensa,
entretanto, que existe uma força natural propulsora do desenvolvimento da
personalidade e que a riqueza da vida está associada à criatividade, cujos primórdios se
localizam na relação estabelecida pelo bebê com sua mãe, estando ambos amparados
pela figura do pai (OUTEIRAL, 1993). Em suas palavras:
Repetidas vezes procurei afirmar e reafirmar a teoria do
crescimento emocional da criança, crendo que a estrutura familiar
deriva em grande parte das tendências para a organização
presentes na personalidade individual. A família possui lugar
claramente definido naquele ponto em que a criança em
desenvolvimento trava contato com as forças que operam na
sociedade. O protótipo desta inserção é encontrado na relação
original entre criança e mãe, relação essa que, por vias
extremamente complexas, o mundo apresentado pela mãe pode vir
a auxiliar ou impedir a tendência inata da criança ao crescimento.
(WINNICOTT, 2001, p. 1).
Ele considera que, no início da vida, a condição imatura do bebê o impossibilita
até mesmo de compreender que é uma pessoa inteira e separada das demais, uma vez
22
que o relacionamento inicial do ser humano é baseado apenas no contato deste com sua
mãe. À medida que a tendência herdada à integração o leva adiante, graças a um
ambiente suficientemente bom, a terceira pessoa o pai passa a desempenhar
importante papel, pois, ao senti-lo em papel distinto do da mãe, a criança entra em
contato aquele que é talvez o primeiro elemento de integração e totalidade pessoal.
(OUTEIRAL, 1993)
Segundo Winnicott (1990, p. 57),
[...] quando chega ao estágio de desenvolvimento em que consegue
perceber a existência de três pessoas, ela própria e duas outras, a
criança encontra, na maioria das culturas, uma estrutura familiar
à sua espera. No interior da família, a criança pode avançar passo
a passo do relacionamento entre três pessoas para outros mais e
mais complexos. É o triângulo simples que apresenta as
dificuldades e também toda a riqueza da experiência humana. Na
estrutura familiar, os pais fornecem também a continuidade no
tempo, talvez uma continuidade desde a concepção da criança até
o fim da dependência, que caracteriza o término da adolescência.
Winnicott enfatiza a importância da família para o desenvolvimento psíquico e
social da criança, considerando importante que os pais acompanhem seus filhos até que
estes possam assumir sua independência.
As idéias desses autores permitem visualizar a importância do grupo familiar na
constituição da subjetividade. A psicanálise enfatiza o período que compreende a
infância como referencial para o desenvolvimento emocional, a partir do modelo
tradicional de família nuclear. Com o intuito de compreender a experiência emocional
de uma criança que passou por transformações em sua organização familiar, é
necessário também avançar este estudo em direção a outros contextos familiares.
23
1.2 CONFIGURAÇÕES FAMILIARES ALTERNATIVAS
1
Atualmente, algumas noções próprias às transformações sofridas pelas famílias
são amplamente discutidas. Contudo, ao contrário de uma morte anunciada da vida
familiar, essas transformações indicam que os grupos familiares continuam sendo base
indispensável ao desenvolvimento psíquico e aos processos de subjetivação (PASSOS,
2003).
Mello (1995) aponta que, em literatura especializada, é possível encontrar o
termo “desorganização familiar” em referência aos problemas apresentados pelos
membros da família. Mas muitas vezes esse mesmo termo é usado pra referir-se a
configurações familiares não nucleares. A autora sugere que, em lugar de
desorganização, seria mais apropriado falar de “polimorfismo familiar”. A família,
segundo essa autora, deve deixar de ser vista segundo modelos teóricos preestabelecidos
ou segundo diferentes perspectivas de classe social. Dessa forma, seria possível ser
menos influenciado pela rigidez de fórmulas preestabelecidas e preconceitos para se ver
a família “como ela é”. Na visão dessa autora, as variedades atualmente encontradas não
são exemplos de que a família se encontra desorganizada, mas “organizada de maneira
diferente, segundo as necessidades que lhe são peculiares” (MELLO, 1995, p. 58).
Santos (2002) adverte que, ao considerar a família tradicional como modelo
imutável, se justifica a idéia de que a família está em crise. Mas, se, por outro lado, a
família for considerada sistema vivo e em constante formação, unidade composta que
existe pelas interações de seus componentes, os diversos modelos deixarão de ser vistos
como fracassos, anomalias ou frutos de uma sociedade em decadência.
1
Termo utilizado por Fonseca (2002), em referência à modelos de configuração familiar diversos
daquele característico da família nuclear.
24
Osório (1996) partilha da mesma opinião e coloca que a família se constitui num
laboratório de relações humanas no qual se testam e se aprimoram os modelos de
convivência humana, transparecendo nelas, portanto, as diferenças relacionadas à
diversidade de contexto social e histórico.
Fonseca (2002) apresenta estudo bastante interessante de casos da realidade
brasileira, no qual aponta a possibilidade de dinâmicas familiares “alternativas” e
discute a questão da circulação de crianças, termo utilizado para designar a transferência
de uma criança de uma família para outra, seja sob a forma de guarda temporária ou de
adoção propriamente dita. A autora coloca que até recentemente a circulação de
crianças, hoje considerada sintoma de desorganização familiar, não era necessariamente
malvista. Considera que o fato de as camadas abastadas terem adotado a família nuclear
como norma hegemônica explica a tendência de perceber qualquer desvio dessa norma
como problemático. No entanto, sugere que a norma não se apresenta com a mesma
força em todas as camadas sociais e ainda aponta a possibilidade de dinâmicas
familiares alternativas que gozam de popularidade e de legitimidade em determinados
setores da sociedade, sendo a circulação de crianças apenas um exemplo.
Em seu estudo, Fonseca (2002) percebe inclusive que a palavra “adoção”,
freqüentemente usada por brasileiros da classe média, não é nem mesmo uma palavra
constante do vocabulário dos moradores dos bairros pobres. A situação nesses contextos
é expressa pelo verbo “criar”, que enfatiza mais a relação do que o indivíduo isolado,
indicando uma noção de parentesco que não se limita ao aspecto biológico, mas que se
nutre nas relações sociais ao longo da vida.
A autora mostra que o modelo nuclear é conceito que se manifesta não somente
empiricamente em determinados casos, mas também como idéia bem definida no
imaginário social. Já a circulação de crianças é conceito que, embora seja evidente na
25
vida prática de muitas famílias, não aparece como valor consciente, nem mesmo como
prática reconhecida pela grande maioria dos sujeitos envolvidos. Seria, portanto,
altamente arriscado tratar os dois fenômenos como de ordem idêntica.
No entanto, a autora salienta que se deve reconhecer que o modelo nuclear não
reina da mesma forma que há 30 anos. Atualmente se apresenta a necessidade de pensar
a normalidade a partir de elementos diversos: pais homossexuais, bebês de proveta,
famílias recompostas, nascimentos virgens e avós criadeiras. Ela deixa como sugestão a
possibilidade de discutir as dinâmicas de parentesco de forma mais abrangente e flexível
do que no modelo de família nuclear.
Já Becker (2000) discute uma situação um pouco diferente na saída de crianças
de sua família de origem para o ingresso em família substituta. A autora examina casos
em que crianças são separadas dos pais por motivos judicialmente conhecidos e coloca
como forma mais radical de separação a morte dos progenitores. A forma mais
dramática é, contudo, aquela em que as soluções são geralmente encontradas de forma
mais imediata e natural. Nestes casos, os membros da família ampliada, sobretudo avós,
irmãos e tios, são os sucessores dos pais falecidos para assumir a responsabilidade pela
criança.
Com relação ao tema da circulação de crianças ou da adoção propriamente dita,
encontram-se ainda outros estudos. Mais especificamente na literatura sobre adoção,
encontram-se referências sobre a importância das condições psicológicas dos pais
adotivos para que se possa estabelecer uma boa relação com o filho, favorecendo de
forma saudável o desenvolvimento da família como um todo, especialmente o da
criança. Nesse tema, aponta-se a infertilidade como uma das motivações, própria dos
casais adotantes, que pode prejudicar o estabelecimento de vínculos saudáveis entre pais
e filhos adotivos. (LEVINZON, 1999)
26
Há, contudo, relatos de estudos que indicam que, mesmo em adoções cujas
motivações foram consideradas inadequadas, não houve prejuízo ao relacionamento
entre pais e filhos adotivos. Isso revela que o estabelecimento do vínculo afetivo pode
ser forte o bastante para neutralizar tais motivações, desde que os adotantes adquiram
capacidade psíquica para lidar com questões difíceis ao longo do processo. O estudo de
Vargas (1998) trouxe importantes contribuições a respeito das motivações para a
adoção. Em seu trabalho, a autora encontrou motivações de cunho social e humanitário
que conduziram a adoções tardias, observadas em casais que já possuíam filhos
biológicos e até mesmo em casais sem filhos biológicos, mas capazes de gerá-los.
Levinzon (1999) também favorece o tema ao colocar que a adoção em si não
representaria um problema, mas sim as condições de separação da criança de seus pais
biológicos. Chama atenção ainda para a necessidade de não atribuir os problemas
observados em uma criança à sua condição de adotiva, levando em conta a dinâmica
familiar na qual ela se encontra inserida, que muitas vezes pode, por si, ser favorecedora
de patologias. Em sua concepção, os recursos internos da criança assim como os
recursos da família para lidar com a situação de adoção e com as frustrações resultantes
do processo são condições essenciais para o desenvolvimento psíquico saudável da
criança adotiva.
Di Loreto (1997), ao examinar sua própria prática clínica no atendimento de
crianças adotadas, constatou que em todos os casos por ele atendidos de crianças nessas
condições que apresentavam patologia psíquica, a patologia familiar era prévia e alheia
à adoção. Em linhas gerais, também chama atenção para a complexa e indissociável
interação entre os recursos individuais da criança e os dados do ambiente que podem
favorecer ou dificultar o estabelecimento de relações familiares saudáveis, em
contraposição à possibilidade de um modelo normativo e saudável a priori.
27
Em síntese, é possível notar que mudanças no contexto familiar não são raras em
nossa sociedade atual, mas, ao contrário, são freqüentes, tornando indispensáveis
estudos que tratem desse assunto sem os preconceitos que possam impedir o verdadeiro
conhecimento da realidade.
1.3 O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL SEGUNDO WINNICOTT
Winnicott considera o desenvolvimento emocional do bebê indissociável dos
cuidados maternos que ele recebe, ressaltando a importância do ambiente externo nos
processos de maturação. Em sua teoria, entrecruzam-se constantemente dois caminhos
aparentemente paralelos: de um lado, está o crescimento emocional do lactente; e de
outro; o cuidado materno que satisfaz necessidades específicas dele. (VALLER, 2003)
Para Winnicott, todo bebê traz consigo tendências hereditárias que
correspondem a um impulso biológico para a vida, para o crescimento e para o
desenvolvimento. Contudo, o desenvolvimento emocional e físico, para realizar-se,
demanda um ambiente que se adapte às necessidades infantis, também chamado
ambiente facilitador. O autor adverte da existência deste paradoxo inicial que é preciso
aceitar para compreender suas formulações: “o lactente é, ao mesmo tempo, dependente
e independente”. (WINNICOTT, 1983d, p. 81) Ao afirmar isto, Winnicott refere-se a
indissociabilidade entre bebê e cuidados maternos, na medida em que o potencial
herdado de um lactente não pode-se tornar um lactente a menos que ligado ao cuidado
materno” (WINNICOTT, 1983b, p. 43), e também que “o ambiente torna possível o
progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança.
Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial”.
(WINNICOTT, 1983d, p. 81)
28
Ao se referir aos cuidados de que a criança necessita, Winnicott utiliza a palavra
holding” para indicar todos os tipos de cuidados, físicos e psíquicos, que são essenciais
ao seu desenvolvimento inicial e o serão por toda a vida. Esses cuidados envolvem um
estado de devoção da mãe e convergem para a composição do ambiente de holding ou
de facilitação, que jamais perde sua importância. Esse ambiente se inaugura com a
relação mãebebê dentro da família, inclui necessariamente o pai e progressivamente se
expande para outros grupos sociais. (ABRAM, 2000)
Em linhas gerais, Winnicott descreve o desenvolvimento emocional humano em
termos da jornada da dependência à independência (WINNICOTT, 1983d). No início da
vida, o bebê é totalmente dependente da provisão física proporcionada pela mãe, não
tendo sequer meios de perceber os cuidados maternos fase chamada pelo autor de
dependência absoluta. Winnicott refere-se a este período também como fase de holding,
em que é absolutamente importante que a mãe possa vivenciar o estado de preocupação
materna primária, no qual está devotada aos cuidados do seu bebê, e pode provê-lo
naturalmente em suas necessidades, segurando-o no colo e fornecendo-lhe alimento,
calor e higiene.
Por volta dos seis meses, a criança ingressa na chamada fase de dependência
relativa, na qual, em resposta ao maior amadurecimento fisiológico, a mãe começa a
apresentar o mundo externo ao bebê,que passa a distinguir entre si e o exterior, a
compreender intelectualmente o mundo e a conscientizar-se de sua dependência dos
cuidados maternos.
Se esses dois estágios iniciais forem transpostos satisfatoriamente, a criança
pequena pode estabelecer um mundo interno bastante sólido, baseado em suas próprias
experiências. Gradativamente, torna-se capaz de encarar o mundo e suas
complexidades, e, por ter mais consciência de si e do mundo exterior, pode distanciar-se
29
do ego auxiliar da mãe. Desenvolve os meios para ir vivendo sem cuidado real, para
ingressar por volta dos dois anos no estágio de maior maturidade, chamado de rumo à
independência. O objetivo final dessa jornada rumo à independência é que o convívio
social possa ser desfrutado sem que o indivíduo perca suas características pessoais.
Entretanto, a crescente independência segue lado a lado com a dependência, ainda em
fases ulteriores da vida de uma pessoa. (WINNICOTT, 1983d, 1999)
Ao descrever o desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott enumera três
processos que ocorrem muito cedo na vida do ser humano: integração, personalização e
realização (WINNICOTT, 2000a). No início da vida a personalidade experimenta um
estado de não-integração primária, que pode avançar rumo à tendência de integrar-se
graças ao holding materno, que, ao prover cuidados à criança (como aquecer, segurar no
colo, chamar pelo nome), favorece as tendências instintivas que tendem a aglutinar a
personalidade. (WINNICOTT, 2000a)
Com o surgimento de períodos de integração, gradualmente soma e psique se
envolvem no processo de personalização, que é o desenvolvimento do sentimento de
estar dentro do próprio corpo. Para Winnicott, não é estranha, mas antes necessária, a
noção de que a psique venha de fora e se aloje no corpo, a partir das necessidades
instintivas e da experiência de estar sendo fisicamente cuidado. Para esse autor, o
psiquismo encontra-se em algum lugar do conjunto indivíduoambiente, e a devoção
materna permite que o psiquismo seja acolhido no corpo. (WINNICOTT, 2000a; LUZ,
1996)
Após esses dois estágios iniciais, o lactente passa a ter uma membrana limitante
entre dentro e fora, que se expressa até certo ponto pela superfície da pele,
possibilitando estabelecer uma diferenciação entre o “eu” e o “não-eu” do bebê.
Winnicott ressalta que é em função do holding suficientemente bom que o bebê se torna
30
apto para desenvolver a capacidade de integrar a experiência e de desenvolver o
sentimento de “eu sou”, sendo possível também ao ego iniciar o reconhecimento do
“não eu” (meio ambiente) e o reconhecimento de aspectos da realidade, como o tempo e
o espaço.
O contato com a realidade externa é inicialmente assustador, e o bebê necessita
que a mãe lhe apresente o mundo de maneira compreensível e limitada, adequada às
suas necessidades. A ajuda da mãe e sua disposição para compartilhar com a acriança as
primeiras experiências de contato com a realidade permitem que o bebê tenha uma
experiência positiva de onipotência, expressa através de um paradoxo, que é a ilusão de
que o ambiente externo foi tanto encontrado quanto criado por ele. O momento de
ilusão constitui-se como uma experiência ímpar, que o bebê pode considerar ou uma
alucinação sua ou um objeto pertencente à realidade externa.
Esse momento de ilusão propicia à criança viver tanto a realidade interna quanto
a externa como se elas fossem coisas idênticas, como quando ele alucina o seio e a mãe
oferece-o em resposta à sua necessidade. Para isso necessita da ajuda de sua mãe e por
essa razão Winnicott considera não ser possível a um bebê existir sozinho, física ou
psicologicamente, sendo de fato necessária uma pessoa que cuide dele no início e medie
seu primeiro contato com a realidade externa.
Gradualmente a mãe dedicada vai aumentando a porção de realidade
compartilhada que oferece ao bebê, mas sempre com o cuidado de preservar certa
porção de ilusão, condição indispensável para que o lado criativo da criança possa ser
integralmente vivido. A experiência de ilusão é a base da criatividade primária, que
Winnicott considera fundamental para o simbolismo e para a experiência cultural e
também a base para o contato com os fenômenos transicionais (WINNICOTT, 2000b).
Os fenômenos transicionais referem-se a uma dimensão do viver que não depende nem
31
da realidade interna, nem da realidade externa, constituindo-se no espaço potencial em
que ambas as realidades se encontram e separam o interior do exterior. É a dimensão em
que se localizam a cultura, o ser e a criatividade, construída ao longo do
desenvolvimento a partir do uso da ilusão, do uso dos símbolos e do uso de um objeto
(ABRAM, 2000).
Maturidade, para Winnicott, significa que o indivíduo teve a oportunidade, por
intermédio da maternidade suficientemente boa, de construir uma crença num ambiente
benigno através da repetição de gratificações instintivas satisfatórias que se iniciaram no
momento de ilusão. É a crença de que pode suportar viver neste mundo porque pode
criar e encontrar o que necessita para viver nele. Para Winnicott, é ainda a sorte de
poder contar com uma mãe que se adapte ativamente às necessidades inicias do bebê
que os capacita a aceitar que, na verdade, o contato possível com a realidade é sempre
ilusório, constatação esta que permite ao indivíduo o próximo passo para o
reconhecimento da solidão essencial do ser humano. (WINNICOTT, 1983b, 1990)
Winnicott utiliza o termo “self” para se referir a uma descrição psicológica de
como o indivíduo se sente subjetivamente, sendo o “sentir-se real” o centro do
sentimento de self do sujeito. Em termos de desenvolvimento, tem sua origem como um
potencial do recém-nascido que se desenvolve em um self total com a contribuição do
ambiente de holding, desembocando na constituição de uma pessoa capaz de diferenciar
o eu do não-eu. Winnicott estabelece ainda diferenças entre o verdadeiro self e o falso
self, e discorre também sobre um self não comunicado, que, em favor da saúde mental,
permanece sempre isolado e ao qual o indivíduo nunca tem acesso (ABRAM, 2000).
Ao discorrer sobre as falhas ambientais, Winnicott diferencia os termos privação
e deprivação. Segundo Abram (2000, p. 48), “a privação diz respeito à criança jamais
ter experimentado algo que é bom; a deprivação, por sua vez, refere-se ao indivíduo
32
que, em algum momento, percebeu o que é bom, ou seja, a memória inconsciente de ter
sido amado”. Assim, pode-se notar que na deprivação a falha ocorre na fase de
dependência relativa, período posterior à fase de dependência absoluta do
desenvolvimento.
O autor considera a tendência anti-social como um efeito da deprivação,
compreendendo atitudes de roubo e destrutividade, originadas da perda de algo vivido
como bom pela criança que lhe foi tirado. Através das atitudes citadas, a criança busca o
objeto perdido e procura um ambiente estável que suporte seu comportamento. Essa
tendência se constitui em um sinal de esperança, fundado no desejo de reencontrar o
ambiente bom vivido antes da perda. Assim, mais do que encontrar o objeto, a tendência
anti-social revela capacidade para buscar algo, considerando que, na verdade, “o que a
criança procura é a capacidade de encontrar, e não um objeto”. (WINNNICOTT,
1957, apud ABRAM, 2000, p.48)
As falhas ambientais estariam, portanto, diretamente associadas à possibilidade
de doença, e poderiam manifestar-se explícita ou indiretamente através da formação de
um falso self. Winnicott associa a possibilidade de se viver de acordo com o verdadeiro
self a um holding bem estabelecido, caracterizando a situação de saúde emocional
(WINNICOTT, 1999).
Sobre os conceitos de verdadeiro e de falso self, Winnicott (1983b) explicita que
o verdadeiro self consiste na
[...] posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a idéia
pessoal. O gesto espontâneo é o verdadeiro self em ação. Somente
o self verdadeiro pode ser criativo e sentir-se real. Enquanto o self
verdadeiro é sentido como real, a existência do falso self resulta
em uma sensação de irrealidade e em um sentimento de futilidade.
33
O autor considera útil, para classificações diagnósticas, fazer uma divisão de
tipos de pessoas, em três classes. De um lado, estão as pessoas que tiveram contato com
um ambiente de holding suficientemente bom e são candidatas a viver a vida de maneira
agradável e proveitosa. De outro, estão as que sofreram privações ambientais e
experiências traumáticas, candidatas a uma vida tempestuosa e possivelmente a doenças
psicóticas. Um grupo intermediário seria formado por aquelas pessoas que trazem
consigo experiências traumáticas e ansiedades impensáveis ou arcaicas, que conseguem
esconder suas dificuldades e a ameaça de um colapso psíquico debaixo de uma fachada
de sanidade, que ele define como falso self. (WINNICOTT, 1999)
As considerações de Winnicott evidenciam a importância conferida ao holding.
Ele deixa clara sua opinião de que, no setting analítico, a atenção dispensada pelo
analista em conjunto com a atividade interpretativa criam um ambiente de holding que
norteia as necessidades psicológicas e físicas do paciente, a partir do qual um espaço
potencial pode ser concebido. Esse holding analítico fornece ao paciente a possibilidade
de regredir à dependência, como forma de reviver algum trauma sucedido no momento
de uma falha ambiental. Essa experiência, por sua vez, possibilitará ao paciente,
enquanto regredido à dependência, descobrir o seu verdadeiro self. (ABRAM, 2000)
Para favorecer o desenvolvimento emocional dos pacientes, Winnicott considera
o manuseio do setting um recurso importante, principalmente no tratamento de
pacientes muito regredidos, esquizóides, borderlines ou psicóticos. Esse manuseio
objetiva alcançar o clima de aconchego do cuidado materno e é transformado num
poderoso instrumento, que inclui desde a habilidade do analista para se relacionar com o
paciente até o espaço físico compartilhado por ambos. (HISADA, 2002)
Por fim, ao discorrer sobre os processos de desenvolvimento da saúde ou da
doença, Winnicott considera importante o oferecimento do holding em diversas fases do
34
desenvolvimento, e não apenas nos primórdios da infância, como facilitador ao
desenvolvimento das potencialidades de cada um. Em suas palavras,
É a tendência inata no sentido da integração e do crescimento que
produz a saúde e não a provisão ambiental. Ainda assim é
necessária provisão suficientemente boa, de forma absoluta no
princípio e de forma relativa em estágios posteriores, no estágio
do complexo de Édipo, no período de latência e também na
adolescência. (WINNICOTT, 1983c, p. 65).
Essa apresentação do desenvolvimento emocional segundo Winnicott traz
algumas idéias de grande valia ao trabalho clínico, que serão utilizadas como base para
o entrelaçamento de teoria e prática no presente estudo.
1.4 PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA DE CRIANÇAS EM CONDIÇÕES
ESPECÍFICAS
Ao discorrer sobre especificidades na análise de crianças em geral, Lisondo et al.
(1996, p. 18) referem algo relevante para a condução do presente trabalho. Segundo as
autoras, “o setting analítico é, antes de tudo, um setting psíquico”, havendo também “a
necessidade de ele ser concretizado em uma situação material que comporta
freqüência, horários, adequação e arrumação da sala e meios para que a criança possa
se expressar, tais como brinquedo, material gráfico etc.” Discorrem sobre a rigidez das
regras, como abstinência e neutralidade, ao se tratar de pacientes adultos “neuróticos” e
introduzem as peculiaridades do setting analítico com crianças. “No caso do trabalho
psicanalítico com crianças, essas regras fundamentais não são tão delimitadas e
precisas, e o setting tem que ser arranjado para se adaptar às necessidades e
35
possibilidades de comunicação da criança” (LISONDO et al., 1996, p. 18). Anne
Alvarez (1994), psicanalista com grande experiência no tratamento de crianças autistas,
carentes, maltratadas e borderlines, destaca que atender a esses pacientes traz problemas
técnicos para o terapeuta similares aos de pacientes psicóticos mais enfermos, como a
comunicação primitiva e pré-verbal.
Neste contexto, sugere que o psicoterapeuta confira menor ênfase a
interpretações que invocam o passado como explicação do comportamento, dando
maior atenção à necessidade e ao funcionamento no aqui-e-agora, num estudo das
“interações vivas e das erosões” de partes preciosas da personalidade que podem ocorrer
nessas interações. Dessa maneira se estimula a ampliação do self que possa incluir a
recuperação de partes perdidas, que só pode ser realizada a partir de uma presença
realmente viva do analista na sessão, improvisando a partir da experiência sentida no
momento.
Alvarez (1994, p. 14), ao analisar a necessidade de o analista conter sentimentos
e pensamentos dos pacientes, retoma o conceito de holding de Winnicott, lembrando
que, na impossibilidade de mudar suficientemente fatores externos à criança, o que se
pode tentar fazer é proporcionar uma oportunidade para que alguma coisa nova
aconteça dentro da criança”. Refere como essencial a esse trabalho maior atenção e
respeito à possibilidade de reparação e de criação, ou seja, crescimento e
desenvolvimento mental. Considera que essa postura em relação ao paciente é essencial,
pois “o psicoterapeuta é testemunha de sua luta para tornar-se sadio e dos esforços
extenuantes para assim permanecer” e precisa respeitá-lo por esta coragem.
Sei (2004), em uma análise winnicottiana sobre a ludoterapia de uma criança que
sofrera maus-tratos, pondera que, entre as possíveis conseqüências dessa violência, está
o atraso no desenvolvimento físico e emocional. Essa realidade muitas vezes forçaria o
36
terapeuta a desempenhar funções maternas, acolher e suportar as vivências da criança
com muito cuidado para não criar um ambiente invasivo, respeitando o ritmo imposto
pelo paciente.
Souza (2002), em uma análise kleineana do material ludoterápico de uma
criança vítima de abandono, entende que tal situação potencializaria a agressividade
inata da criança. Assim, aponta para a necessidade de expressar essa agressividade na
psicoterapia, o que viabilizaria a abertura de espaço interno para introjetar sentimentos
amorosos e caminhar rumo à integração de aspectos bons e maus dos objetos. Refere
que, segundo Klein (apud Souza, 2002, p.154)
[...] a criança, em seus jogos na psicoterapia, pode assumir o
papel do adulto para expressar como sente que seus pais ou
pessoas de autoridade comportam-se ou deveriam comportar-se
em relação à ela. Ela pode também expressar sua agressividade
e ressentimento em relação a eles, sendo, no papel de um deles,
agressiva com a criança representada.
Winnicott, ao discorrer sobre sua teoria da agressão, coloca que é o ambiente
externo que exerce influência sobre o modo com que a criança lidará com sua agressão
inata. Para ele,
[...] em um ambiente bom, a agressão passa a integrar a
personalidade individual como energia proveitosa relacionada ao
trabalho e ao brincar, ao passo que em um ambiente de privação a
agressão pode vir a se tornar carregada de violência e destruição.
(WINNICOTT, 1957, apud ABRAM, 2000, p. 5).
O autor ainda considera essencial que na psicoterapia a criança encontre um ambiente
que suporte suas explosões agressivas, para que ela possa também reencontrar o aspecto
saudável destes impulsos.
37
Conforme já citado neste trabalho, Winnicott (2001, 1996), em seus
atendimentos a crianças evacuadas no período da Segunda Guerra Mundial, percebeu
certos comportamentos comuns a crianças que haviam passado por experiências
semelhantes, que haviam tido como ponto de partida um ambiente suficientemente bom
e, por alguma razão, o perderam. Segundo ele, os atos anti-sociais (como enurese
noturna, roubo, mentiras e atitudes destrutivas) são um sinal de esperança do indivíduo
na busca de possuir novamente aquela experiência anterior à perda do bom ambiente,
presente no tratamento de crianças com história de perdas afetivas posteriores ao
período de dependência absoluta.
Ao discorrer sobre o trabalho do terapeuta com essas crianças, Winnicott faz
uma consideração que, apesar de longa, será transcrita na íntegra, a fim preservar
fielmente o sentido de suas palavras:
A criança, sem o saber, espera poder encontrar alguém que seja
capaz de ouvi-la no momento de deprivação ou na fase em que a
deprivação consolidou-se em uma realidade inexorável. A
esperança reside no fato de que a criança poderá experimentar
mais uma vez, a partir da a relação com a pessoa do terapeuta, o
intenso sofrimento que se seguiu imediatamente após a reação à
deprivação. O momento no qual a criança faz uso do suporte
oferecido pelo terapeuta com o fim de repetir o intenso sofrimento
daquele período predestinado é seguido da lembrança de um
tempo que é anterior à deprivação. Dessa maneira a criança pode
reaver a esperança perdida de encontrar os objetos ou a
segurança perdida daquilo que a sustentou. A criança retoma uma
relação criativa com a realidade externa e com o período em que a
espontaneidade era segura, mesmo que isso envolva os impulsos
agressivos. Essa retomada é feita sem o roubo ou a agressão, já
que isto é algo que surge automaticamente como resultado daquilo
que anteriormente foi intolerável para a criança: o sofrimento
38
reativo à deprivação. Por sofrimento entendo uma confusão
extrema, desintegração da personalidade, uma queda eterna,
perda de contato com o próprio corpo, uma completa
desorientação e outros estados desta natureza. Uma criança que
consegue ingressar nesse terreno pode lembrar-se disso e do que
veio antes, por isso é tão difícil compreender a razão pela qual as
crianças anti-sociais passam suas vidas buscando auxílio desse
tipo. Elas não conseguem dar continuidade as suas vidas a menos
que alguém possa olhar para trás junto com ela, ajudando-as a
recordar através da suavização do resultado imediato da
deprivação. (WINNICOTT, 1957, apud ABRAM, 2000, p.53).
Para Winnicott, o momento da perda deve dar-se na relação de transferência,
sendo a habilidade do terapeuta em localizar e compatibilizar o momento da esperança
responsável por fornecer o ambiente de holding que sustentará a tendência integrativa
do paciente. Se o terapeuta, além disso,for capaz de reconhecer a perda de seu paciente,
passa a existir a chance de que ele redescubra a experiência boa que ele perdeu
(ABRAM, 2000).
Estas são considerações importantes para o trabalho com crianças que sofreram
perdas e mudanças ambientais importantes na infância, utilizadas para fundamentar as
considerações tecidas neste estudo.
39
2. OBJETIVO
40
O presente trabalho pretende investigar a construção de identidade e a formação
de vínculos afetivos de uma criança em processo de psicoterapia, ao longo do qual
ocorreram modificações no contexto familiar que exigiram alterações no setting
terapêutico.
41
3. METODOLOGIA
42
Utilizou-se a metodologia qualitativa que, segundo Demo (2001) e Gonzales-
Rey (2000), considera a pesquisa um processo de produção de conhecimento, e não
apenas de dados. O conhecimento é, por sua vez, compreendido como a organização
que o pesquisador faz de suas idéias. Sob essa perspectiva, principalmente ao se
considerar as contribuições da Psicanálise com relação à influência do inconsciente
sobre a compreensão intelectual, pode-se apostar apenas em consensos provisórios
sobre uma determinada informação, que estarão sujeitos a reconstruções, na medida em
que uma análise pode qualificar, mas não desfazer o mistério da comunicação e da
consciência humana. (DEMO, 2001)
Como foi utilizado o referencial psicanalítico, vale notar a colocação de Lino da
Silva (1993), que afirma que a psicanálise se caracteriza por considerar o material
inconsciente como objeto de estudo. Neste referencial, a clássica divisão positivista
entre sujeito e objeto é substituída pelo diálogo íntimo entre dois sujeitos o
pesquisador e seu sujeito , em interação e criação mútua. A emergência do
inconsciente, dos significados submersos à relação intersubjetiva, é considerada e
investigada em paralelo aos fatos mais superficiais. O pesquisador, sob essa ótica, é
visto como parte de sua pesquisa e como sujeito que integra, reconstrói e apresenta em
construções interpretativas diversos indicadores, conferindo significado a um mundo
composto também por aspectos afetivos e inconscientes. Significado este não evidente
em si, mas assim assimilado pela interpretação prévia do pesquisador dentre outros
sentidos possíveis.
O estudo da psicanálise nos cursos de pós-graduação é defendido por Mezan
(1999), que considera a aceitabilidade de pesquisas que a utilizam decorrentes da
coerência dos argumentos entre si, da fecundidade das hipóteses apresentadas e da
capacidade do autor para reconhecer aspectos de seu tema. Também ao discorrer sobre
43
pesquisa em psicanálise, Rezende (1993) afirma que ela pode ser realizada de diferentes
formas, como na biblioteca, no mundo vivido e no consultório, surgindo desses estudos
diferentes tipos de contribuição.
Nesse trabalho optou-se pelo uso do estudo de caso que, segundo Gonzales-Rey
(2000), se configura como uma fonte privilegiada por permitir, como nenhuma outra,
entrar em contato, ao mesmo tempo, com a subjetividade individual e com a
subjetivação da realidade social que o indivíduo viveu, expressando a tensão
permanente entre o individual e o social. Santos (1999) também defende o uso desse
instrumento de pesquisa ao propor que a ciência seja analógica e tradutora, incentivando
os conceitos e teorias desenvolvidas localmente a emigrarem para outros contextos que
não o de sua origem. Assim, em vez de ser concebido através da quantidade e
uniformização, o conhecimento é aquele que concebe através da imaginação e
generaliza através da qualidade e da exemplaridade” (p. 48).
Em relação ao uso de material clínico em pesquisas, Safra (1993) lembra que
Freud, ao elaborar e sistematizar seu pensamento sobre os fenômenos psíquicos,
estabeleceu a psicanálise como teoria e forma de tratamento, inaugurando o modelo de
diálogo entre teoria e clínica como norteador de pesquisas.
Safra (1993) explica que o relato do ocorrido numa sessão de psicoterapia é um
modelo construído a partir de um recorte do que realmente ocorreu na sessão. Assim, ao
considerar esse tipo de material, é preciso retomar o fio metodológico condutor deste
trabalho, no qual se aceita que a subjetividade e a participação do pesquisador
influenciam o fenômeno que se observa, constituindo-se como parte inerente do
conhecimento que se produz.
Ainda assim, como maneiras de buscar maior credibilidade para a pesquisa,
Safra (1993) ressalta a importância tanto da análise pessoal do pesquisador como a
44
supervisão do atendimento na tentativa de delimitar as reações transferenciais e
compreender melhor as observações realizadas.
As sessões de psicoterapia aqui apresentadas, ocorridas em um contexto usual de
atendimento psicológico, e não de experimentação científica, privilegiam a informação
assim como ela se apresenta na realidade (DEMO, 2001) e valorizam a expressão
individual como geradora de idéias e de conhecimento.
O presente trabalho de pesquisa foi realizado a partir das anotações referentes ao
material clínico obtido nas sessões de avaliação clínica e de ludoterapia realizadas com
uma criança de 7 anos, que será chamada de Yara (nome fictício), e será descrito
abaixo.
O atendimento à criança foi realizado no período que vai de abril de 1999 a
dezembro de 2000, como parte das atividades do estágio profissionalizante
“Ludoterapia de orientação psicanalítica com crianças e adolescentes vitimizados”,
oferecido aos alunos do curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. A clientela atendida era
composta por crianças e adolescentes que estavam ou estiveram abrigadas numa casa
abrigo no interior do estado de São Paulo.
A participação nesse estágio profissionalizante foi efetuada após a aprovação da
pesquisadora em processo seletivo para desempenhar a função de psicoterapeuta
infantil. As anotações fizeram parte deste contexto clínico de aprendizagem, sendo
realizadas com o objetivo de ampliar a compreensão do psiquismo da criança e
aprimorar a prática clínica da pesquisadora, através da supervisão semanal do caso
realizada com a docente psicóloga responsável pelo estágio. Além das supervisões,
foram realizadas reuniões semanais que visaram a fundamentação da atuação prática
através de discussões teóricas, sob responsabilidade da supervisora e com a colaboração
45
de outra profissional psicóloga com larga experiência clínica no trabalho psicanalítico
com crianças.
O encaminhamento das crianças para o atendimento psicológico era realizado
por técnicos da instituição responsáveis pelos casos, parecendo não haver um critério
específico de seleção a esse atendimento. O critério parecia ser prático, girando em
torno de os técnicos considerarem que a criança apresentava alguma dificuldade
evidenciada mediante seus comportamentos.
3.1 O SETTING TERAPÊUTICO
Constituía-se proposta do estágio continuar o atendimento psicológico mesmo
quando a criança fosse desabrigada. Esse atendimento seria realizado em locais onde
fosse possível para a criança ser atendida, tais como postos de saúde, creches e escolas.
O objetivo nestes casos estendia-se para como seria sentida pela criança a dinâmica
familiar, fornecendo a ela apoio numa nova fase, e almejava-se inclusive ajudá-la a
elaborar as situações de conflito.
Esse objetivo do trabalho implicava, portanto, a disponibilidade da terapeuta de
adaptar-se às modificações nas situações externas, deslocando o setting físico do local
de origem para reconstruí-lo em outros locais, por vezes pouco usuais, de atendimento
psicoterápico.
O acompanhamento psicoterápico de Yara teve início no período em que ela
estava saindo da instituição de abrigo e seguindo para a casa de tios que a acolheriam.
Foi solicitado pela instituição porque a criança apresentava alguns comportamentos
considerados desadaptados e também porque tinha a chance de ser acolhida por
familiares, caso estes se sentissem também amparados nos cuidados à criança. Assim, a
46
solicitação de atendimento tinha como um de seus objetivos dar suporte emocional à
criança e à família acolhedora no processo de saída da instituição e volta ao convívio
familiar, para reduzir as chances de devolução ao abrigo.
O atendimento iniciou-se quando ela ainda tinha certo vínculo com a instituição
de abrigo e continuou enquanto a criança esteve na casa dos tios que a acolheram e,
depois, na do pai biológico, sendo que, na data de encerramento do trabalho, Yara já
morava há quase um ano com sua “família reconstruída” (OSÓRIO, 1996), formada
pelo pai, pela madrasta e por um irmão mais novo por parte de pai.
Como a criança morou em locais diferentes durante o processo de ludoterapia,
para que este fosse mantido, foi necessário que a terapeuta encontrasse locais
alternativos para o atendimento, o que significou algumas mudanças necessárias no
setting terapêutico. O trabalho foi iniciado nas dependências da clínica-escola do curso
de Psicologia, mas, devido à dificuldade da tia em levar a criança até o local, ele foi
transferido para as dependências do posto de saúde municipal mais próximo da sua
residência. Era um local mais próximo, mas não o suficiente para que a criança pudesse
ir sozinha, o que não sanou a situação, permanecendo a reclamação da família.
Então, após um período de quatro meses, o atendimento foi transferido para
outro local ao qual a criança podia ir sem a companhia de um adulto responsável, como
forma de garantir seu comparecimento às sessões. Passou a ser realizado em uma sala
cedida pela escola estadual na qual Yara estudava. Quando foi morar na casa de seu pai,
em um bairro distante, por dificuldades alegadas pelos responsáveis em transportar a
criança, o atendimento foi novamente transferido: desta vez, para uma sala da nova
escola estadual na qual ela estava estudando, aonde ela também ia sozinha.
O processo de ludoterapia compreendeu, portanto, o período de um ano e nove
meses correspondentes ao estágio, durando dos 7 aos 9 anos da criança. Foi realizado
47
sob a forma de sessões com duração de 50 minutos cada e com freqüência variando
entre três sessões semanais para o primeiro ano de atendimento e duas para o segundo.
Ocorreram períodos de interrupção do atendimento nas férias escolares, de 15 dias e um
mês, em julho e dezembro, respectivamente.
As sessões de atendimento psicológico à criança foram realizadas de acordo com
o referencial teórico e técnico psicanalítico.
As primeiras sessões foram realizadas com objetivo de diagnóstico clínico. Para
contribuir na facilitação do estabelecimento do vínculo entre terapeuta e paciente e
como mediadoras dos primeiros contatos com a realidade interna da paciente, foram
realizadas sessões de ludodiagnóstico inspiradas na técnica de “Desenho-Estória”
desenvolvida por Walter Trinca (1987). Como principais alterações adotadas, nenhuma
anotação foi realizada durante a sessão e não foi imposto nenhum impedimento a que a
criança continuasse desenhando após ter começado a contar a história. Imediatamente
após o término da sessão, foram feitas anotações sobre o ocorrido, com a maior riqueza
de detalhes que foi possível à terapeuta.
Posteriormente às sessões diagnósticas, iniciou-se o atendimento psicoterápico
propriamente dito, com base na técnica psicanalítica. Foi introduzido o uso da caixa
lúdica individual e selado o contrato terapêutico com a criança. Antes de comprometer-
se com ela, já haviam sido combinadas as regras e esclarecidas as dúvidas sobre o
atendimento com a tia de Yara. A partir dessa data, sessões regulares de orientação à tia
foram realizadas por outra profissional, sendo raros os momentos de conversas e
encontros entre a tia e a terapeuta da criança. Quando a criança foi morar com a família
do pai, o contrato foi refeito, mantendo-se as mesmas regras anteriores. O pai e a
madrasta mostraram-se pouco interessados em participar do processo de orientação de
48
pais, e não foram acompanhados por outra psicóloga. As sessões foram transcritas e
submetidas à supervisão semanal do caso, conforme já descrito.
3.2 A HISTÓRIA DA CRIANÇA
Os dados referentes à história de Yara foram fornecidos por familiares da
criança e também por alguns profissionais que estabeleceram contato com esses
familiares, e serão apresentados com o intuito de favorecer a compreensão do material
clínico. O maior volume de informação e de detalhes diz respeito ao período em que a
criança esteve em psicoterapia, pois não foi possível ter acesso a muitos dados
anteriores a esta época da vida da criança.
O nome utilizado é fictício e alguns dados, irrelevantes para o objetivo desta
pesquisa, foram omitidos com a intenção de preservar a identidade das pessoas
envolvidas.
Yara viveu em companhia de seus pais biológicos até por volta dos 2 anos,
quando o pai se separou da mãe e foi viver com outra mulher, e a criança ficou sob o
cuidado materno. Quanto tinha 4 anos, a mãe, que trabalhava como prostituta, foi vítima
de assassinato brutal ocorrido nas redondezas de seu local de trabalho. Após este
acontecimento,a criança foi, morar com o pai e sua amásia. Aos 7 anos, seu pai foi
preso.
Ela foi recebida, então, por um casal de tios, parentes de linhagem materna, que
já tinham dois filhos, um menino e uma menina, com idade pouco superior a de Yara.
Viveu na casa deles por alguns meses, mas a família teve muitas dificuldades em lidar
com ela, queixando-se muito de comportamentos como desobediência, agressividade,
roubo, mentiras e atitudes sexualizadas. A família acabou acionando o Conselho Tutelar
49
para solicitar que cuidassem do destino da criança. Os tios não estavam dispostos a
assumir a responsabilidade legal sobre o desenvolvimento de Yara, visto que tinham um
relacionamento conflitivo e a criança poderia voltar para o pai quando este estivesse em
liberdade.
Ela foi levada a um abrigo que recebia crianças vítimas de algum tipo de
violência, como mais um caso de abandono (negligência). Os familiares mantinham
certo contato com a criança, visitando-a e levando-a para passar alguns finais de semana
em sua casa. Yara era bastante ligada a eles, que demonstravam ambivalência quanto ao
desejo de recebê-la novamente no convívio com a família. Após algumas semanas,
decidiram acolher a criança novamente, com a ressalva de não assumirem nenhuma
responsabilidade legal sobre ela, nem mesmo a guarda provisória, pois referiam
preocupação com as implicações futuras dessa atitude. Nesse momento foi solicitado
pela instituição o acompanhamento psicológico da criança.
A criança foi recebida novamente pelos tios e primos, e viveu nesse ambiente
por mais um ano. A tia era a figura mais forte e presente na vida da criança,
participando inclusive de sessões de orientação de pais paralelas à psicoterapia da
criança. Assumiu os cuidados de Yara com muita dedicação e a família como um todo
cumpriu as funções de cuidado da criança. A tia era pessoa rígida, bastante religiosa e
moralista, além de exigente quanto ao cumprimento de deveres e ao desempenho da
criança em suas atividades escolares. Demonstrava uma postura ambivalente, pois, ao
mesmo tempo em que parecia extremamente envolvida com a criança, fazia constantes
ameaças de devolver Yara ao abrigo. Sinalizava com isso uma fragilidade interna que
dificultava suportar a ameaça de uma situação transitória, as ambivalências e
sentimentos não amorosos da criança. A tia trabalhava em casa e passava grande parte
do tempo com a criança. O marido trabalhava fora e os filhos estudavam, além de
50
algumas outras atividades acadêmicas. Os outros membros da família eram pouco
referidos por Yara, mas percebidos pela criança como figuras positivas, salvo em
situações de pequenos conflitos específicos.
Quando o pai saiu da cadeia, Yara foi morar com ele, a madrasta e um bebê,
filho do casal. O pai compareceu na retomada da psicoterapia quando chamado para
conversar com a terapeuta e depois se distanciou. Quem atendia aos eventuais chamados
da terapeuta, ou mesmo a procurava espontaneamente, era a madrasta. Inicialmente a
madrasta demonstrava certa resistência a aceitar a criança, mas aos poucos Yara foi
integrando-se ao novo grupo familiar e as reclamações sobre comportamentos da
criança que incomodavam diminuíram. O pai da criança trabalhava predominantemente
no período noturno e dormia grande parte do dia; a madrasta tinha alguns trabalhos fora
de casa e, muitas vezes, enquanto trabalhava, a criança tomava conta de seu irmão mais
novo. Apesar do pouco contato dos pais com terapeuta ou com a outra psicóloga, a
criança descrevia um convívio familiar agradável, ressaltando aspectos positivos do
contato com o grupo e não referindo situações que poderiam ser preocupantes, como,
por exemplo, maus-tratos ou negligência. O período de psicoterapia enquanto a criança
vivia nesse contexto familiar foi de 9 meses, e é lá onde ela continua vivendo.
Considerando todos esses dados, pode-se reconhecer, na vida de Yara, perdas
afetivas e mudanças na estrutura familiar. Ao longo deste estudo, espera-se que o
conteúdo das sessões de psicoterapia possa fornecer dados que lancem luzes sobre os
significados, para a criança, de viver essa realidade e como nela se desenrolaram os
processos de construção de identidade e de estabelecimento de vínculos afetivos.
51
3.3 ASPECTOS ÉTICOS
Este projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com
Seres Humanos do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, e
a Carta de Aceite encontra-se em anexo.
De acordo com a Resolução n. 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia com
referência à pesquisa com seres humanos e com as normas do Conselho Nacional de
Saúde, é necessário que seja realizado um esclarecimento detalhado ao participante
sobre a natureza da pesquisa, e solicitado o consentimento por escrito para sua
participação.
Considerando que o presente estudo trata da participação de uma criança na
pesquisa, embora de forma indireta (através da análise de seu prontuário), foi solicitado
o consentimento ao seu representante legal, conforme a orientação dos órgãos citados
acima. Além disso, como forma de garantir o respeito à liberdade de decisão e à
privacidade dos participantes, foi importante o assentimento verbal da criança, que
representou sua concordância em participar da pesquisa, mesmo considerando que ela
não possui condições de entender todas as implicações dessa decisão.
Foram explicitados, no Termo de Consentimento Livre e Informado, cujo
modelo se encontra anexo, os objetivos e as implicações do estudo, e foi ressaltado o
compromisso de sigilo em relação aos dados confidenciais obtidos na pesquisa, assim
como a liberdade para consentir ou não com a realização do trabalho.
A participação, portanto, foi voluntária e consistiu na autorização para a
utilização das anotações referentes às sessões de ludoterapia que constam do prontuário
da paciente. Os dados foram coletados em contexto clínico de atendimento a criança e
faziam parte das atividades acadêmicas/profissionalizantes da pesquisadora.
52
Considerando as disposições da Resolução do Conselho Nacional de Saúde
relacionadas ao risco da pesquisa para o participante, pode-se afirmar que se trata de
uma pesquisa de risco mínimo. Ainda que o participante direto seja uma criança que
passou por condições especiais, como o abrigo em uma instituição de proteção aos seus
direitos, o trabalho em questão propõe-se apenas a realizar uma análise das transcrições
das sessões de ludoterapia já realizadas. As anotações foram feitas com finalidade de
supervisão da prática clínica e não com finalidade de pesquisa, o que favorece a
confiabilidade nos dados enquanto fiéis representantes de um atendimento clínico usual,
pois, como não havia a intenção de coleta de dados para pesquisa, é insignificante o
risco de inferências relativas aos objetivos deste trabalho durante a realização da
ludoterapia. O atendimento ludoterápico foi realizado após a aprovação da pesquisadora
em processo seletivo para desempenhar a função de psicoterapeuta infantil, e as
atividades foram constantemente supervisionadas por uma profissional experiente e
qualificada para tanto, o que indica que os procedimentos não sujeitaram a paciente a
um risco maior do que o encontrado em outras atividades de estágio de prática clínica.
53
4. RESULTADOS
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O atendimento à criança foi iniciado com algumas sessões para avaliação
diagnóstica, realizadas na época em que a criança estava sendo desabrigada, com o
intuito de reconhecer algumas características emocionais em evidência nesse momento.
Nessa etapa foi possível perceber o rico potencial afetivo e cognitivo da criança, ainda
que seu comportamento, principalmente atitudes de desatenção em sala de aula,
agitação em casa e na escola, mentiras e comportamentos sexualizados, demonstrasse
sua dificuldade para utilizar seus próprios recursos.
As sessões diagnóstica forneceram algumas informações sobre sua dinâmica
interna e sobre os principais conflitos vividos, que foram surgindo de maneira mais
intensa ao longo do processo psicoterápico.
É possível conhecer um pouco da criança pelo breve resumo das histórias
produzidas durante as sessões, que será apresentado a seguir.
A primeira história fala de uma menina que mora com sua mãe em uma casa no
jardim de uma fazenda, e ganha de presente uma boneca. Na segunda, a menina ganha
uma bola da mãe, mas esta não mora mais com ela; tinha ido ao sítio só de passagem
para ver como a criança estava. Na terceira, ela já se mostra ligada à terapeuta,
desenhando corações para ela, e tem grande dificuldade para fazer o desenho da mãe,
que tinha dado dois presentes à criança um nenezão e uma bola; ao final, uma das
tentativas de mãe é transformada em uma barata. Na quarta história, desenha árvores,
com passarinho e ovos, e também suas próprias mãos com um passarinho botando
ovo em uma e fazendo cocô na outra (neste desenho, não havia menina, nem casa). Na
quinta história desenha duas casas: uma pertencia a uma menina com piolhos no cabelo,
tinha a janela quebrada e só possuía televisão; a outra pertencia a outra menina, que
tinha tomado banho, e sua casa possuía cama, televisão e chuveiro. Também desenhou
suas próprias mãos, representando os anéis e as pulseiras que usava na ocasião, dizendo
55
que eram da menina sem piolho. Ao final perguntou à terapeuta qual casa ela preferia, e
a criança mesmo respondeu que preferia a casa com cama, televisão e chuveiro.
Esse breve resumo das histórias apresentadas mostra a absorção da criança em
fantasias que remetem ao contato com a figura materna e com o ambiente familiar.
Pode-se notar o incremento de angústia e também maior contato com sua realidade
interna ao longo delas. Mas também é possível notar, principalmente nas duas últimas
histórias, os movimentos de cisão da criança ao separar características agradáveis e
desagradáveis, assim como o desejo de ser provida por um ambiente que disponha de
recursos que remetem a conforto e cuidados.
Já nessas sessões, a criança sinalizou possuir uma representação de vida em
família, com grande desejo de ser aceita e de sentir-se pertencendo a um grupo familiar,
em contraste com a realidade que estava vivendo, impregnada por sentimentos de
abandono e de indefinição. Demonstrou a necessidade de não perder suas raízes ao
verbalizar, logo na primeira sessão, seu desejo de rever o pai e manter contato com ele.
No começo do trabalho psicoterápico propriamente dito, Yara parecia bastante
confusa com relação a qual era, enfim, o seu ambiente familiar. Eram comuns desenhos
nos quais ela desenhava duas casas e as separava por uma linha, demonstrando sua
dificuldade em integrar o conceito pessoal que tinha de família com aquele que a
realidade permitia que ela tivesse no momento. Nas primeiras sessões, fez desenhos
com duas casas, como o da quinta sessão, em que a criança dividiu a folha ao meio e de
cada lado desenhou uma casa. Em um dos lados, a casa era preta e o céu também, e ela
disse que lá era o Japão; no outro, a casa era colorida, com árvores e corações.
Ao longo da psicoterapia, sempre era considerada a variável ambiente externo
como influenciadora das vivências internas da criança, não interpretando o conteúdo
trazido em sessão apenas como representante de suas fantasias inconscientes. As
56
mudanças de contexto externo eram então tratadas como variáveis com as quais era
preciso lidar, o que implicou inclusive a necessidade de mudanças de locais de
atendimento para que o processo psicoterápico fosse mantido.
Na condução da ludoterapia da criança, a orientação psicanalítica esteve sempre
presente, na escuta e nas interpretações da terapeuta, na valorização da espontaneidade
no/do encontro e na crença nos recursos criativos da criança. Foi uma “experiência”
tanto para a terapeuta quanto para a paciente, com o sentido de tentativa de arriscar algo
novo e também de adquirir algo nesse ato.
Como já mencionado, foram necessárias três mudanças de local de atendimento,
pois as famílias alegavam dificuldade para transportar a criança até os lugares
inicialmente estipulados. Na tentativa de não interromper o atendimento, locais não
usuais, como, por exemplo, uma sala de aula em escola pública, foram utilizados como
sala de ludoterapia, em movimento compatível com a proposta de trabalho que incluía a
atitude maleável da terapeuta.
O espírito do contato terapêutico vivido pela criança e pela terapeuta parece bem
representado pela vinheta clínica abaixo:
10
A
SESSÃO
Pegou massinha, xícaras, pratos, bule e toalhinha, perguntando se eu tinha aprendido a
amassar massa, porque eu iria fazer isso. Nos meus pratinhos escreveu “Cri” com
canetinha, e nos dela a primeira sílaba do seu nome, apagando seu nome várias vezes,
até que achou bom e deixou (...). Disse que faríamos um bolo. Deu-me o caderno e o
lápis, dizendo que era para eu ir escrevendo uma receita e ir falando para ela, que ela
ia fazendo. Comentei que ela gostaria que eu tivesse receitas para ensinar muitas
57
coisas para ela, mas que, assim como não tinha uma receita para o bolo, não tinha
para outras coisas, mas que nós duas faríamos juntas. Então ela pediu para eu ir
escrevendo o que ela ia falando. Ditou os ingredientes (bolo, açúcar, ovos, baunilha,
guaraná, fôrma) e também procedimentos como não deixar o bolo queimar, nem o
leite derreter, usar copos plásticos e “não de vidro porque vidro quebra”. Era um bolo
para festa. Pediu para eu reler várias vezes a receita enquanto ela fazia, e falou que
achava que não ia ficar bom porque era ela quem estava fazendo. Comentei que ela
achava que só tinha feito coisas ruins e que não sabia fazer coisas boas, mas eu
acreditava que ela podia fazer um bom bolo, bem gostoso. Fez cara de dúvida, mas
continuou cozinhando: fez o bolo, colocou cobertura e fez suco. Comemos e achamos
que estava muito bom.
Nessa sessão a criança expressou a noção de que possuía laços de pertencimento
e a sua dificuldade em se apropriar do que é seu, sejam recursos internos ou laços
(vínculos) com os objetos. Expressou a fantasia de que, talvez, sua incapacidade para
construir e manter bons relacionamentos tenha provocado as perdas sofridas, solicitando
que a terapeuta lhe ensinasse uma receita de como construir a si mesma e suas relações.
A terapeuta diz à criança apenas que acredita nos seus recursos internos e que juntas
conseguirão inventar algo que possa alimentá-las no árduo trabalho de terapeuta e de
paciente na construção de significados.
É interessante notar que a criança lembra à terapeuta que o bolo necessita de
certas condições de preparo para que possa dar certo, o que, a partir de um olhar
embasado na teoria winnicottiana, faz pensar que ela tenha tentado transmitir à
terapeuta a mensagem de que ela também necessita de um ambiente que favoreça seu
crescimento emocional.
58
Para maior profundidade na compreensão do material clínico, em função das
mudanças de contexto familiar vividas pela criança ao longo do processo psicoterápico,
optou-se por apresentar os principais conteúdos observados separadamente. Num
primeiro momento, serão apresentadas as sessões realizadas no período em que Yara
esteve alojada na casa da tia, na situação chamada de acolhimento intrafamiliar. Em
seguida, serão apresentadas as sessões referentes ao período em que ela voltou a viver
com seu pai biológico, modelo que será chamado de família reconstruída. Esses dois
períodos estão ainda divididos em dois grandes temas: construção da identidade e
estabelecimento de vínculos afetivos. Estas categorias foram escolhidas em função do
conteúdo apresentado em sessão e também em função do referencial teórico escolhido,
visto que Winnicott enfatiza a importância do meio ambiente na constituição subjetiva
do indivíduo e nas suas ligações objetais. Em cada um desses temas, existem duas
subcategorias que limitam o foco dos conteúdos para a análise, associadas à
apresentação de trechos de sessões que exemplificam e promovem a discussão numa
interface da teoria com a pratica clínica.
4.1 ACOLHIMENTO INTRAFAMILIAR
Esta fase da psicoterapia durou de abril de 1999 a fevereiro de 2000, período em
que a criança viveu na casa de uma tia, com os demais membros da família (tio e
primos). Foi realizada em três locais: inicialmente na clínica-escola (as três primeiras
sessões), passando para um posto de saúde (4 meses) e depois para uma escola (7
meses). As mudanças de local foram solicitadas pelos responsáveis pela criança, que
alegavam dificuldades para levá-la aos dois primeiros lugares citados. A escola onde
59
aconteceu a maior parte dos atendimentos ficava a dois quarteirões da casa da criança e
ela ia sozinha.
Nesta fase do processo psicoterapêutico, chamaram a atenção a presença de
angústias primitivas e de imaturidade emocional, e o enfoque do trabalho recaiu sobre o
fortalecimento do vínculo entre paciente e terapeuta e sobre o contato da criança
consigo mesma, para que pudesse reconhecer-se e elaborar situações traumáticas.
4.1.1 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
4.1.1.a) O re-nascimento
16
A
SESSÃO
Há alguns dias a criança contava que sua tia estava empenhando-se para conseguir o
seu registro, pois ela não tinha. No início da sessão, bateu com a mão na cabeça,
dizendo: “Ai, cabeça, funciona. Eu tenho uma coisa pra te falar, mas esqueci o que
era... ããããã... lembrei! Meu registro saiu!” (...). Um pouco depois, disse que ontem
tinha sido a sua crisma, que a madrinha dela ficou com a mão no ombro dela e que
tinha sido na igreja. Por alguns instantes cantou músicas de igreja.
17
A
SESSÃO
Falou que íamos brincar de um jogo que era assim: quem acertasse o dia da semana
que a outra tinha escolhido em pensamento, podia fazer um pedido (...). Na vez dela,
acertou e disse: “Eu queria uma casa”. Como podia ter complementos, perguntei: “E o
60
que mais?”. Respondeu: “Um carro, televisão, geladeira e tudo igual o que tem na sua
casa”. Depois foi a minha vez e pedi pra ela me ajudar a escolher o pedido. Ela disse
pra eu escolher um presente, um presente de aniversário. Pedi mais dicas e ela disse
que começava com “Y”, depois com “a”, depois com “r” e depois com “a”. Então eu
disse: “Yara”. Ela negou, sorrindo envergonhada.
21
A
SESSÃO
Ela quis arrumar a sala como se fosse um quarto, do jeito que havia feito na sessão
anterior (...). Perguntou se eu lembrava que seu aniversário seria na segunda-feira. Eu
disse que sim e perguntei o que ela achava de aniversário. Ela disse “bolo, bom”.
Falou que faríamos sua festa de aniversário, que só nos duas íamos comemorar. Ela
era a filha aniversariante que faria o bolo e eu a mãe que faria o churrasco. Embrulhou
o jogo de dominó num papel e disse que seria o presente que eu ia dar pra ela.
Cantamos parabéns, comemos bolo, churrasco e suco, e eu entreguei o presente a ela,
mas ela não abriu. Comentei que ela estava feliz com seu aniversário, que é uma festa
pra ela sentir que está renascendo e que ela queria dividir isso comigo.
22
A
SESSÃO
Chegou na sessão dizendo que sua tia tinha pedido pra eu atendê-la na escola dela,
porque estava difícil levá-la ao posto e eu disse que conversaria com a tia. Perguntou
se eu estava lembrando do aniversário dela, que era naquele dia, e que ela tinha
ganhado um urso escrito “eu te amo” da professora, que só a tia e a professora tinham
dado parabéns para ela. Falei que me lembrava, dei meus parabéns, dizendo estar
61
muito contente de comemorar essa data com ela, e que o meu presente era estar com
ela vivendo tudo aquilo. Pediu para eu montar “o quarto”. Pegou uma bexiga e encheu
um pouquinho, dizendo que era uma “pepeta” e ficou chupando. Encheu outra bexiga e
disse que era sua mamadeira. Passou quase a sessão inteira falando como um bebê,
dizendo frases como “Mamã, tedê minha pepeta?”, e completou dizendo que queria
chupar chupeta pra sempre. Pediu para eu fazer mamadeira para ela, e depois tirar a
chupeta da sua boca, mas ela não soltou. Comentei que ela queria que eu a ajudasse a
crescer e que ela achava isso difícil. Certa hora disse que era um bebê que não sabia
nem falar e eu disse que ela queria minha ajuda para aprender a lidar com o mundo e a
dar nome pras coisas. Mas depois encheu outra bexiga, dizendo que tinha crescido,
virando uma menina de 4 anos, depois 10 anos e depois 18 e 20 anos, mas sempre
chupando chupeta e dependente da mãe que tinha que fazer tudo pra ela. Quando ela
estava uma menina grandinha, que ia na escola, pediu pra eu escrever um bilhete
falando bem dela para a professora.
Nos trechos apresentados a criança traz a notícia de que ela existe concreta e
legitimamente, registrada em cartório. Esta condição, fornecida externamente pelo
holding oferecido pela família acolhedora e também internamente pelo holding
oferecido pela terapeuta, possibilitaram a ela emocionalmente viver a experiência de se
reconhecer como uma pessoa integrada e completa, diferenciada dos outros seres
humanos. (WINNICOTT, 2000a)
Yara demonstrou a noção tratada por Winnicott de que a psique para existir tem
inicialmente a necessidade de se alojar em um corpo (casa), sendo que o indivíduo sente
que vai poder existir se for oferecido a ele um ambiente que favoreça o seu
desenvolvimento. Era como se a criança dissesse à terapeuta: “Para eu poder ser Yara,
62
eu preciso de um ambiente facilitador e espero ao menos que você, através de cuidados
devotados, possa fornecer-me esse ambiente de que tanto necessito.
A partir daí, passa a estabelecer uma relação mais íntima com a terapeuta,
montando o “quarto” onde a história de seu crescimento psíquico ia se desenrolar, como
se fosse em um cômodo de uma casa da vida cotidiana. O quarto pronto propicia então a
chegada do esperado bebê pela mãe: ela anuncia o dia do seu aniversário, seu
renascimento, para que ambas possam comemorar juntas. A comemoração parece
centrar-se na possibilidade de regredir e de reviver na brincadeira o bom ambiente
experimentado nas fases de dependência absoluta e dependência relativa descritas por
Winnicott (2000a), para que possa futuramente retomar seu desenvolvimento rumo à
independência, dessa vez fortificada pela experiência terapêutica.
4.1.1.b) Contando sobre o falecimento da mãe biológica
34
A
SESSÃO
Logo no início da sessão mostrou sua boca machucada e perguntou se eu sabia o que
era. Disse que não sabia, que talvez podia ser por causa do frio (...). Começou a falar
de um ator que tinha morrido (...). Enquanto brincávamos, de repente falou: “Você já
teve mãe?”. De forma desconcertada me contou como sua mãe morreu, mas sem falar
as palavras nitidamente, falava para dentro e fazia gestos. Fez 20 mostrando as mãos e
disse faca, referindo-se às vinte facadas. “Foi um colega dela, eu tinha 4 aninhos”,
disse. Perguntei se ela se lembrava da época e ela disse que soube pela avó. Contou
que a tia a levara para ver os ossos da mãe, que lá onde eles estão o pai dela nem
mandou cimentar, que está nascendo mato em cima. Repentinamente quis ir ao
63
banheiro fazer cocô. Pediu para eu ir junto e que ficasse com ela no banheiro,
entregando-lhe o papel, dando a descarga e colocando o sabão na sua mão (...). De
volta à sala, comentei que era muito duro para ela não ter a mãe por perto e ela disse
que a mãe estava perto, apontando para o céu. Perguntou quantos anos eu tinha, me
achou nova e disse que queria que as pessoas vivessem 100, 200, 300 anos. Falou que a
sua tia disse que só morre quem é ruim e eu disse que até onde eu sabia, todo mundo
morre.
Essa sessão ocorreu logo após o período das primeiras férias. É possível notar
que a interrupção do contato terapêutico foi sentida transferencialmente como uma
perda para Yara, que reviveu ansiedades muito primitivas associadas ao falecimento de
sua mãe, e pode falar sobre o assunto em função do holding oferecido no retorno do
contato terapêutico.
A carga emocional provocada por rememorar o contato com o trauma foi
intensa e a criança viveu momentos de regressão e de frágil dependência, apoiando-se
na figura da terapeuta para suportar o sofrimento dessa lembrança (WINNICOTT,
1983d). Contudo, o holding oferecido favoreceu maior contato com sua história pessoal
e a integração de aspectos que anteriormente pareciam tão cindidos e esquecidos,
enriquecendo o self (ALVAREZ, 1994).
A atitude rígida e moralista da tia parecia associar-se na mente da criança à
figura da mãe biológica pecadora e ruim, e conversar francamente sobre esses assuntos
com outra figura feminina, a terapeuta, proporcionou à criança a possibilidade de
internalizar uma figura materna mais integrada e menos persecutória, abrangendo
aspectos positivos e negativos.
64
4.1.1.c) A relação com a tia: uma mãe adotiva?
36
A
SESSÃO
Começamos a arrumar as coisas e ela perguntou se eu ia ter reunião de pais na escola.
Questionei o motivo da curiosidade e ela disse que ela ia ter. Perguntei se ela estava
com medo e ela disse que “sim, eu sei que vai ser tudo D (as notas)”, que quem iria na
reunião seria a tia, ia saber de seu desempenho. Tentei investigar mais e ela falou:
“não quero mais falar sobre isso”e encerramos a conversa (...). Disse que eu era a sua
filha e tinha arrumado a cozinha tudo errado. Mandou que eu arrumasse tudo
novamente, sob berros em que ela dizia que eu era lerda e burra, além de fazer
ameaças de me bater de cinta. Falei que ela sentia que as pessoas eram muito bravas
com ela, por isso estava sendo tão brava comigo. Então ela disse: “as pessoas são
bravas, menos a minha tia”. E disse que é muito brava e aprendeu ser assim com as
meninas da sua classe. Comentei que ela era brava com ela mesma também.
54
A
SESSÃO
Chegou dizendo que precisava pensar se tinha alguma coisa para me dizer. Ensaiou um
pouco e contou que mentiu para a tia sobre fogo, pois ela tinha colocado fogo no
fósforo (...). Mostrou seu caderno de matemática e passou despercebida por um escrito
de sua tia. Depois deixou a folha virada e disse para eu ler, saindo do meu lado. Estava
escrito: “não devo mentir nunca, é pecado”. Falou que a tia escreveu para ela
aprender isso, que deveria copiar na folha inteira. Perguntei um pouco mais sobre o
acontecido e se ela estava triste, ao que ela respondeu que era a tia quem estava triste
65
com ela. Comentei que isso a entristecia também e ela concordou. Contou que de noite
não dormiu, ficou gritando porque o diabo estava com ela. Perguntei se ela se
lembrava disso e ela disse que não, que foi a tia quem tinha visto e contado (...). Disse
que estava dormindo no sofá quando aconteceu isso de gritar. Perguntei porque ela
dormiu no sofá, ela me explicou que foi castigo. Falou que sua tia disse que, se ela
mentisse de novo, ia colocar ela pra dormir na varanda, porque o diabo tem asas e ia
levar ela embora. Comentei que ela sentia medo de a tia deixar de gostar dela. Ela
falou que a tia disse que não gosta mais, que não quer mais ficar com ela. Comentei
que ela via que era difícil para a tia compreender as coisas que ela fazia, que talvez a
tia ache até que a Yara não goste muito dela quando fazia essas coisas. Então ela me
disse que gostava da tia, que era a tia quem apontava os seus lápis, que ela só tinha
dois lápis, quando um quebra ela pega o outro para a tia apontar o que quebrou. Eu
disse que sabia como ela gostava da tia, porque ela me contava, mas que parecia difícil
para a tia compreender todas essas coisas. Ela disse que não gostava de falar destas
coisas porque ficava triste. Eu comentei que eram coisas muito importantes de falar,
essas coisas de sentimentos e perguntei se ela tinha medo de ficar muito triste. Aí ela
disse que, se eu falasse, ela falaria essas coisas para a tia dela. Eu disse que não estava
mandando ela fazer alguma coisa, só conversando um pouco sobre como ela se sente.
Ela ficou pensativa e voltou a dizer que estas coisas a deixavam triste. Pediu para levar
o desenho para mostrar para a tia, que depois traria de volta.
O relacionamento da criança com a tia era bastante intenso, e nele foram
reeditados sentimentos primitivos da criança. Aspectos pessoais da tia associados ao
contexto transitório dos cuidados à criança dificultavam o acolhimento aos aspectos
66
“indesejados” da criança, como dificuldades escolares e mesmo atos anti-sociais
(WINNICOTT, 1996).
No contexto externo, as atuações de agressividade, que poderiam ser entendidas
como um sinal de esperança, em que a criança está testando o acolhimento do ambiente,
eram motivos de constantes ameaças de devolução ao abrigo.
Na psicoterapia, comportamentos associados a sentimentos agressivos foram
vividos por um longo período de tempo nas sessões, quando a criança colocava a
terapeuta no papel de criança e ficava no de adulta, tratando-a de maneira cruel.
Contudo, este era um espaço onde esses sentimentos podiam ser vividos e suportados,
reafirmando à criança a força suficientemente boa desse ambiente e favorecendo a
integração desses aspectos (WINNICOTT, 1957, apud ABRAM, 2000).
É importante ressaltar que a criança tinha a necessidade de proteger a figura da
tia, ao dizer que ela não era brava, assim como também reconhecia os seus cuidados. A
criança sente que esta desempenha funções maternas, como uma mãe adotiva que, ao
“cuidar de seus lápis”, a está preparando para a vida.
4.1.2 ESTABELECIEMNTO DE VÍNCULOS AFETIVOS
5.1.2.a) Vou ficar com a minha tia? Amanhã eu volto?
1
A
SESSÃO
Enquanto eu me apresentava e explicava os motivos de estarmos ali, ela subitamente
perguntou: “Eu vou ficar com a minha tia?”. Respondi não saber, que isto não era eu
67
quem resolvia, e em seguida continuei explicando. Então ela perguntou: “Amanhã eu
venho de novo?”
Já no primeiro contato, a criança faz uma pergunta que, além de revelar sua
insegurança sobre o ambiente, expressa seu desejo e sua esperança de encontrar alguém
capaz de estar com ela, de ouvi-la e de olhar para a sua história, ajudando-a, assim, a
reaver a segurança perdida (WINNICOTT, 1957, apud ABRAM, 2000).
Nos primeiros meses de atendimento, frases relacionadas ao tempo que “ainda
tínhamos” na sessão e as datas das sessões eram repetidas várias vezes em cada
encontro. A criança parecia muito insegura com relação à estabilidade de vínculos
afetivos, tanto na psicoterapia quanto nos externos, como no caso da tia e do pai.
Demonstrava necessidade de certificar-se de que o contato existia,
insistentemente , com grande desejo de ligação afetiva e medo de que os laços não
fossem fortes o suficiente para resistir ao convívio com ela.
4.1.2.b) Medo intenso da quebra do vínculo/abandono
14
A
SESSÃO
Começou a fazer perguntas quanto tempo ainda tínhamos naquele dia, se eu teria
aula depois da sessão, se quando eu não tivesse aula poderia ficar até mais tarde, se eu
tinha aula todos os dias. Falei que o nosso tempo era sempre o mesmo, 50 minutos, e
que não era por causa da aula que eu ficaria mais ou menos, que esse era nosso
combinado. Quanto aos dias da semana, falei que tinha aulas como ela, todos os dias
menos sábado e domingo. Ela disse que tinha outros dias sem aulas, as férias. Falei
68
que na terapia também íamos ter férias, a primeira em julho, de 15 dias. E ela: ”Ah, é?
Vai fechar aqui em julho?”. Falei que o posto não, mas que, como já tinha dito no
início da terapia, teríamos 15 dias de férias em julho. Ela disse que então teria que
contar os dias.“Como assim?”, perguntei.“Vou ter que contar assim: 1, 2 , 3... até
chegar no quinze”. “E aí? É o fim do mundo?” Perguntei porque ela perguntava aquilo
e ela disse que conversou com sua colega sobre o fim do mundo, que “o mundo vai, vai,
vai, até que um dia ele acaba”. Eu disse que o mundo não acabaria, que ela poderia
ficar com saudade, mas que as férias acabariam e voltaríamos a nos encontrar.
30
A
SESSÃO
Logo no início da sessão Yara disse que estava passando mal. Perguntei o que estava
sentindo e ela continuou sua frase dizendo que já sabia que dia íamos terminar, que era
no dia 16. Eu confirmei e disse que retornaríamos no dia 2/8, no mesmo horário.
Nesses trechos, a criança revela seu receio de que a interrupção para as férias
significasse o fim do mundo ou do ambiente facilitador (WINNICOTT, 1983d) da
psicoterapia. Demonstra ainda dificuldade para confiar na solidez do vínculo e na
permanência deste após um período de separação, sem encontros reais com a terapeuta.
Depois das férias surgiu o conteúdo relacionado à morte da mãe, indicando que
as férias da psicoterapia propiciaram a revivência de um estado muito primitivo, de
angustia e de perda do ambiente de holding materno, que ela sentia ter na psicoterapia.
O retorno para o atendimento pareceu ter funcionado como uma experiência
emocional em que algo de novo pode acontecer dentro da criança (ALVAREZ, 1994),
em que a fantasia de morte e de abandono não foi confirmada.
69
Após as primeiras férias, ela se tornou mais confiante na continuidade do
trabalho, mas por um período ainda se manteve preocupada com a quantidade de tempo
de cada sessão, voltando a ter esse tipo de ansiedade sempre que em contato com
conteúdos angustiantes.
4.2 FAMÍLIA RECONSTRUÍDA
Onze meses após o início do atendimento à criança, o pai dela terminou de
cumprir a pena de reclusão carcerária. A criança podia, então, viver na casa de sua
família reconstruída, formada pelo pai, pela madrasta e pelo meio-irmão mais novo.
Foi um período conturbado, que despertou emoções intensas. A tia de Yara
sentiu-se traída pela criança quando esta declarou seu desejo de reencontrar e de viver
com o pai, queixando-se de que a criança, na verdade, não tinha afeto por ela, e que ela
apenas representava segurança em sua vida, por tê-la acolhido num momento de
abandono. Reclamava, dizia que Yara gostava do pai, que ligava na rádio para oferecer
músicas para ele e que já estava arrumando suas coisas para ir embora. Aos poucos pôde
perceber a realidade com maior clareza, sentindo-se mais confiante no espaço que
ocupava na vida da criança.
Yara mudou-se para muito longe do local onde estava sendo realizado o
atendimento, que necessitou ser novamente transferido para ter continuidade, pois a
família recomposta alegava falta de condições de levar a criança no local antigo. O
atendimento passou a ser realizado então na escola estadual onde ela começou a estudar,
muito próxima à sua casa atual e para onde ela também ia sem a companhia de algum
adulto responsável. O período total do atendimento à criança nessa nova estrutura
familiar e nesse novo setting foi de 9 meses.
70
A seguir, serão comentados os principais temas percebidos e a dinâmica da
criança na época da mudança de contexto familiar (lar) e no período que se seguiu,
mantendo as categorias de construção da identidade e estabelecimento de vínculos
afetivos.
4.2.1 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
4.2.1.a) Período da mudança: confusão e culpa
1
A
SESSÃO APÓS A MUDANÇA DE LAR
Chegou parecendo bastante abatida, triste e desanimada. Disse apenas “oi”. Fomos
em silêncio para a sala e ao entrarmos falei: “Fazia tempo que a gente não se
encontrava, né?”. Ela não respondeu. Abriu a caixa, pegou folhas e disse que íamos
fazer desenhos. Aí mudou de idéia, dizendo para eu fazer uma colagem. Para eu colar o
corpo de um com a cabeça de outro. Ela pegou a tesoura e cortou o corpo de um
homem e a cabeça de uma mulher e colou, dizendo: “Virou outra pessoa, ele virou
mulher e ela virou homem” (....) Mostrou-me algumas feridinhas que tinham aparecido
em sua boca, mas não queria conversar nesse dia.
2
A
SESSÃO APÓS A MUDANÇA DE LAR
Veio sozinha, trazendo flores e também seu caderno e cartilha, para fazer a tarefa.
Estava bem mais animada. Mostrou que suas feridas tinham sarado, que ela tinha ido
na casa na tia e esta tinha cuidado dela, colocado-a em uma piscina com iodo. Depois
71
falou que os meninos dizem que ela é homem, por causa do cabelo curto, e que seu pai
falou que ela vai deixar o cabelo crescer bastante.
A criança demonstrou inicial sofrimento com a necessidade de redefinir seu
papel em outro contexto familiar. O contato com a figura paterna e com a família
reconstruída pareceu despertar vivências de confusão e de culpa, expressos em
somatização e fechamento para o contato com a terapeuta.
Além disso, novos questionamentos com relação à sua identidade surgiram, em
nível diferente do que tinha sido encontrado no início do trabalho, pois agora suas
preocupações avançavam das mais primitivas e duais, como a relação mãebebê, e
voltavam-se à diferenciação sexual e aos papéis de homem e de mulher, demonstrando o
significado, na mente da criança, da inclusão de seu pai, o terceiro masculino, em seu
universo (WINNICOTT, 1969, apud OUTEIRAL, 1993).
A disponibilidade da tia para superar seu ciúme e manter o vínculo afetivo com a
criança ajudou-a a ultrapassar a culpa e a adaptar-se à sua nova família, agora
reconstruída. A proximidade com o pai, por sua vez, encorajou-a em relação ao desafio
de entrar em contato com as vivências edípicas e com a identidade feminina.
4.2.1.b)A inclusão de um terceiro masculino na relação
123
A
SESSÃO
Eu tenho uma coisa pra te contar, mas é segredo, é só para você. “Adivinha o que
aconteceu?”. Eu pedi para ela me ajudar e ela insistiu para eu adivinhar, dizendo que
era do Cristiano menino da escola de quem ela estava gostando. Perguntei se eles
72
tinham conversado e ela disse que sim, mas que não era isso, era para eu falar outra
coisa. Pedi ajuda, ela fez uma mímica de beijo com a mão e perguntei se eles tinham se
beijado. Ela confirmou, sorrindo e falou para eu bater corda cantando “Com quantos
anos você pretende se casar”. Errou no número 20 e falou: “Ai, só com 20? Vai
demorar muito, eu já prometi para o Cristiano que ia ser logo”. Então perguntou se eu
morava com meu namorado e comentei que achava que ela estava querendo saber
como eu faço, para aprender comigo também esse negócio de crescer, namorar, casar,
que ela queria crescer logo e um dia construir uma outra família também.
O convívio mais intenso com o pai biológico e com a madrasta favoreceu a
retomada da triangulação edípica, aumentando a curiosidade da criança sobre
relacionamento afetivo sexual entre homem e mulher. Os conteúdos das sessões
referiam-se ao conflito edipiano (FREUD, 1969) e, além de perguntas sobre casais,
eram freqüentes as queixas de que seu pai e a madrasta a excluíam em algumas
situações, como alguns passeios.
Vale notar que a criança se interessou por um colega de escola que tinha o nome
da terapeuta no masculino, e gostava de compartilhar as experiências relacionadas a
esse garoto com a terapeuta. Parecia também usar essa situação para investigar sobre a
maneira da terapeuta proceder em relação à exclusão, oriunda das relações triangulares
(pois estava fora da relação da criança com o garoto) e também como a terapeuta
desempenhava a função feminina em sua vida pessoal.
73
4.2.2 ESTABELECIMENTO DE VÍNCULOS
4.2.2.a) Insegurança, mas maior confiança no vínculo com a terapeuta
Com o intuito de ilustrar o estado emocional da criança nessa fase crítica de
transição, optou-se por apresentar o conteúdo da última sessão realizada enquanto ela
ainda morava na casa da tia e da primeira ocorrida quando ela já morava com o pai, em
sua família reconstruída.
ÚLTIMA SESSÃO ANTES DA MUDANÇA DE LAR
Logo que entramos na sala me contou que a transferência (de escola) estava pronta,
que a tia tinha falado que ia fazer tudo com calma e depois ia me ligar (...). Falou:
“Vamos brincar? Vamos brincar de fazer tatuagem?”. Pediu para eu sentar na
cadeira, igual em cabeleireiro. Começou pintar meu rosto com um giz azul que tinha
trazido com ela, dizendo que era uma tatuagem. Depois pintou o olho, a boca, fez
brinco de tinta e disse que eu estava muito bonita. Então pediu para fazer uma outra
tatuagem no meu ombro e desenhou um coração e uma boca. Pintou o coração de
vermelho e a boca de marrom, cor do meu batom. Então eu falei pra ela que ela
parecia estar querendo me deixar uma marca dela no meu corpo, pra não esquecê-la.
Envolveu o coração e a boca em um outro coração flechado. Depois falou que eu
parecia triste. Eu perguntei como ela estava se sentindo, mas ela não respondeu, e
falou que íamos fazer uma festa. Enquanto brincávamos falou: “Ai, essa festa está
triste, essa festa está muito triste”, duas vezes. Perguntei porque ela achava que estava
triste e ela disse não saber. Comentei que estava triste porque estava parecendo uma
74
festa de despedida, que ela e eu estávamos preocupadas com a possibilidade de nos
separarmos. Aí eu voltei a perguntar se ela já sabia quando ia e ela falou que achava
que seria na sexta-feira. Então disse que, quando ela fosse, tentaríamos encontrar um
outro lugar para continuar com a terapia, que provavelmente nos separaríamos por um
tempo, mas que eu me preocupava em continuar o trabalho e ia fazer o possível para
isso, que ela podia ficar tranqüila com relação ao meu empenho e que eu entraria em
contato. Na hora de irmos embora ela ficou perguntando que, se ela viesse para a
sessão de sexta, que horas seria, mas que talvez não viesse, que era para eu ligar para
a tia dela. Eu disse que, caso ela fosse vir, nosso horário era o mesmo, e que ia
telefonar para a tia de qualquer maneira. Ela foi indo para a porta falando “tchau,
tchau, tchau, tchau, tchau...”, e eu disse: “Nossa, quantos tchaus, parece que é
despedida pra bastante tempo”. E ela disse: “Então tá bom, se eu vier é uma hora, mas
se eu não vier então você me dá um abraço?”, e correu em minha direção. Nos
abraçamos forte e falei para ela não se preocupar que eu telefonaria para ela e tentaria
arrumar tudo logo.
1
A
SESSÃO APÓS A MUDANÇA DE LAR
Quando íamos saindo da sala, após uma sessão em que a criança tinha estado bastante
silenciosa, ela me disse: “Aqui é o (nome do bairro). É muito longe, Cristiane?”.
Respondi: “É longe, mas eu venho”. Ela sorriu e então nos despedimos.
A criança revelou insegurança em relação ao período de mudança, mas com
maior confiança no ambiente de holding, representado pelo vínculo com a terapeuta,
acreditando que ele resistiria às mudanças ambientais.
75
Demonstrou certa insegurança e a necessidade primitiva de deixar
concretamente uma marca sua no corpo da terapeuta, mas, ao final do encontro, revelou
crer que ambas tinham investimento afetivo o suficiente na relação para suportar um
período de separação e lutar por um reencontro.
Aqui se percebe a evolução da internalização do ambiente de holding pela
criança, conforme teorizado por Winnicott (1957, apud ABRAM, 2000), que possibilita
a crença na capacidade de perpetuar o bom ambiente. No momento em que puderam se
encontrar novamente, a criança foi reassegurada pela terapeuta de que manteriam o
contato.
4.2.2.b) Encerrando o processo psicoterápico
Como este processo psicoterápico se constituiu como uma experiência de estágio
profissionalizante da terapeuta, tinha data marcada para terminar. O processo de
desligamento foi bastante doloroso para paciente e terapeuta, que se encontravam
bastante envolvidas emocionalmente com o trabalho. Contudo, o envolvimento e a
sintonia emocional propiciaram que este fosse também um processo criativo,
exemplificado a seguir.
134
A
SESSÃO
Estávamos brincando de pular corda, ela parou e disse que ia embora. Falei que ainda
tínhamos 12 minutos e ela pulou mais um pouco. Depois parou e falou para eu guardar
as coisas na caixa e eu disse que ainda tínhamos 3 minutos. Ela olhou em seu relógio e
disse “Não Cristiane, ainda tem 10 minutos, o seu relógio está errado”, e pediu que eu
76
acertasse o meu relógio com o dela. Falei de seu desejo de prolongar o tempo que
temos ainda para ficar juntas, que ela não falava abertamente, mas estava preocupada
com o fim do nosso trabalho. Então ela perguntou até quando eu iria ficar e eu disse
que até o meio dezembro, que tínhamos ainda quase dois meses para aproveitar nosso
trabalho e conversar sobre isso também. Guardamos as coisas, fechamos a caixa e
fomos embora.
139
A
SESSÃO
Pegou na bolsa um livrinho de histórias bíblicas que tinha trazido e me mostrou.
Escolheu uma história para eu ler, dizendo que era bem grande e que ela achava linda.
Era a história de Moisés: sua mãe não podia ficar com ele porque o rei tinha ordenado
que matassem todos os filhos homens do reino para acabar com um povo, aí ela o
colocou em uma cesta e deixou amarrada no rio. Nesse momento, interrompeu-me,
dizendo que ia aparecer uma moça para salvá-lo. Então uma princesa o encontrou e o
adotou; ele foi criado num castelo. Quando cresceu, descobriu sua verdadeira origem,
sua raça, e resolveu lutar pela libertação de seu povo. Perguntei o que ela gostava na
história e ela disse que achava bonita. Falei que talvez ela gostasse por se achar um
pouco parecida com esse Moisés, que perdeu sua mão biológica, encontrou uma moça
que a ajudou e agora estava crescendo, e sentia-se mais forte para lutar. Mas que
talvez ela também estivesse se sentindo um pouco abandonada com o término do nosso
trabalho, sem saber se já estava grande o suficiente pra se cuidar sem minha ajuda.
77
144
A
SESSÃO
Há algumas sessões falava sobre sua preocupação em deixar seus brinquedos e
materiais dentro da caixa quando encerrássemos o trabalho. Nesse dia disse que andou
pensando sobre isso e falou para sua madrasta que ia levar o estojo da caixa com ela,
mas pensou melhor depois e viu que isso não precisa, porque ela já tem estojo.
Comentei com a criança sobre sua percepção da apropriação de seus recursos
internos, que ela representava ao falar dos objetos da caixa.
Com o passar dos meses, a terapeuta tentou encontrar mais espaço nas sessões
para falar sobre o término do período de psicoterapia sob sua responsabilidade.
A criança demonstrou seu desejo de continuar, e sempre lhe foi explicitado que
isso não aconteceria por razões práticas a terapeuta iria se formar e assumir outras
responsabilidades e que não estava relacionado com a criança.
Yara pôde, ao trazer para a sessão um livrinho de histórias, transmitir de maneira
criativa tanto o seu reconhecimento da ajuda recebida quanto o seu receio de não estar
preparada para ficar sem a terapeuta. Na verdade, ela contava de sua história: perder a
mãe, ser acolhida por alguém por quem ela sente gratidão tão grande que faz com que
pareça uma princesa (tia e terapeuta), por ter-lhe oferecido um ambiente de holding que
significou a oportunidade de desenvolver-se para então lutar por si própria com mais
coragem. Mas, apesar de sinalizar compreender e perdoar a terapeuta por precisar deixá-
la em decorrência de fatores externos, contava também a história de alguém que estava
se sentindo abandonada antes da hora, pois no seu relógio emocional ela ainda precisava
de mais tempo para se preparar.
78
No transcorrer das sessões, foram feitas comunicações pela terapeuta no sentido
de que tudo o que tinha sido vivido já estava guardado dentro dela e não ia mais ser
perdido. Também foi dito à criança que ela teria uma nova terapeuta no próximo ano,
que continuaria ajudando-a a se desenvolver.
A criança, aos poucos, foi ficando mais tranqüila e confiante nos recursos que
possuía para, de maneira mais independente e autêntica, escrever sua própria história.
A despedida aconteceu sem intercorrências, em um clima emocional agradável.
Nesse dia, criança, terapeuta e tia se encontraram e foi encerrado o processo
psicoterápico.
79
6. DISCUSSÃO
80
Ao se atentar para os recursos afetivos da criança, pode-se hipotetizar que ela
provavelmente viveu em um ambiente inicial que proveu alguns cuidados, constituindo-
se como favorecedor ao desenvolvimento dos seus recursos egóicos. No entanto,
situações de vida adversas contribuíram para uma série de mudanças no ambiente em
uma idade em que a personalidade infantil está consolidando suas bases e a
continuidade da estrutura familiar é um aliado essencial para a progressão do
desenvolvimento emocional.
Segundo Winnicott (1983a, 2005), para a criança, é importante que o holding
familiar seja sólido e se estenda aos períodos ulteriores da infância e aos do início da
adolescência para que o indivíduo possa avançar ao mundo adulto mais preparado
emocionalmente, imbuído com a crença de que pode viver de maneira independente no
mundo, pois pode criativamente encontrar nele o que necessitar.
Angústias despertadas ante a instabilidade e necessidades externas exigiram
reorganizações psíquicas e o processo psicoterápico permite observar longitudinalmente
os movimentos psíquicos que acompanharam as mudanças no ambiente, representado
pelas diferentes estruturas familiares em que a paciente transitou. Em linhas gerais,
esses movimentos se traduziram em uma tentativa de elaborar as transformações
ambientais e de adaptar-se ativamente às novas situações, que reeditavam na situação
atual necessidades emocionais anteriores e primitivas.
Considerando, como pontos centrais da discussão, a construção de identidade e a
formação de vínculos, acredita-se ser necessário ressaltar alguns pontos, separados em
três itens com objetivos apenas didáticos:
a) como foi sentida pela a criança a mudança ambiental ou de contexto familiar;
b) o papel da psicoterapia;
81
c) o setting terapêutico utilizado.
a) Já na primeira sessão diagnóstica, ainda em situação de abrigamento, a
criança fez um comentário apontando seu desejo de manter um vínculo afetivo com um
familiar que a amparasse e ajudasse, garantindo a continuidade de seu sentimento de
pertencer a uma família. Nota-se isso quando ela questiona a terapeuta sobre com quem
ficará, se será com a tia.
No transcorrer da psicoterapia, a criança retornou ao convívio da família
acolhedora e percebe-se que ela se envolveu verdadeiramente nesse ambiente,
especialmente com a tia, figura feminina cuidadora. O relacionamento intenso com a tia,
permeado por também intensos sentimentos e atitudes por vezes ambivalentes,
preenchia-a com a sensação de estar realmente ligada a alguém que, de alguma forma,
se preocupava muito com ela, com contribuições importantes para a estruturação da
identidade e para o estabelecimento de vínculos.
Essa vivência da criança, mais próxima daquela definida por FONSECA (2002)
como circulação de crianças, diferente do modelo tradicional de família nuclear,
garantiu laços de familiaridade e de parentesco que favoreceram o seu desenvolvimento.
Por outro lado, o caráter provisório de sua estadia na casa, visto que sempre
foram mantidas as possibilidades de a criança voltar a conviver com seu pai biológico
ou de ser devolvida ao abrigo, dificultavam o estabelecimento do ambiente de holding
por parte da família e mantinham certa insegurança quanto à força dos vínculos e à
ameaça de abandono. Yara sentia-se compelida a preencher as expectativas da tia para
continuar sendo aceita, o que poderia favorecer o desenvolvimento de um falso self,
desconectado de espontaneidade pessoal (WINNICOTT, 2000a).
82
A possibilidade de voltar a conviver com o pai e com uma família reconstruída
inicialmente intensificaram sentimentos de culpa e de tristeza pela separação da figura
feminina cuidadora. Mas seu grande desejo de voltar para sua família aliado à percepção
de que o vínculo com a tia se mantinha apesar de elas morarem em casas diferentes
facilitaram seu envolvimento com a família biológica tão desejada e mostraram que os
cuidados recebidos pela família acolhedora trouxeram benefícios para Yara se adaptar a
outra mudança ambiental.
Na família reconstruída, a criança pôde retomar seu contato com o pai biológico,
experiência sentida como muito importante para ela, com grande significação para o seu
desenvolvimento emocional. No nível da estruturação da identidade, outras angústias
surgiram, dessa vez mais diretamente ligadas ao conflito edípico, tipicamente familiar.
O foco deslocou-se de vivências mais primitivas de desamparo, associadas a
necessidades de cuidados maternos, para outros conflitos, característicos de meninas da
sua idade, como a identificação com grupos de amizade e de afeto, envolvendo pessoas
não familiares ao estabelecer vínculos e dissipando a insegurança quanto ao
acolhimento do ambiente.
Assim, de acordo com as idéias de Mello (1995), Santos (2002) e Osório (1996),
constata-se que determinadas mudanças no contexto familiar ocorridas em função de
necessidades peculiares do grupo familiar não devem ser associadas diretamente como
uma situação de “desorganização familiar”, mas remetem, sim, a um exemplo de
sistema vivo e, portanto, sujeito a constantes transformações, no qual as relações
humanas são experimentadas pelos membros com base em seu contexto histórico, social
e afetivo.
b) Na psicoterapia, um ambiente de holding baseado em um vínculo
suficientemente forte foi construído, mantendo a continuidade no tempo e na mente da
83
paciente, em contraposição à instabilidade externa (WINNICOTT, 1983d). Esse vínculo
provedor de cuidados favoreceu que sentimentos primitivos e cindidos fossem
vivenciados e integrados, enriquecendo a personalidade e ampliando as possibilidades
de contato com o meio.
Em outras palavras, o espaço terapêutico possibilitou à criança regredir e
vivenciar seu verdadeiro self de maneira espontânea, contribuindo para a construção de
identidade e para a formação de vínculos afetivos mais condizentes com sua história
pessoal e realidade interna, em contraposição a um self em favor de necessidades
externas (ALVAREZ, 1994; WINNICOTT, 1957, apud ABRAM, 2000).
Enfocando especificamente a estruturação da identidade, o self resgatou
vivências importantes características da relação mãebebê, reviveu na transferência o
trauma da perda e avançou, experimentando num momento posterior, após a inclusão de
seu pai biológico à relação inicialmente dual, sentimentos característicos do conflito
edípico (FREUD, 1969; WINNICOTT, 1990).
No início do trabalho, a angústia da paciente era grande, e assim também
necessitou ser o esforço da terapeuta para suportar sua regressão a estágios primitivos
do desenvolvimento emocional, importantes para a estruturação da identidade.
Yara experimentou na brincadeira ser um bebê totalmente dependente da mãe e,
passando pelos processos de integração, personalização e realização, foi gradativamente
evoluindo ao período de dependência relativa, no qual reconheceu a si e ao mundo.
Desenvolveu o sentimento de se perceber uma pessoa real e completa, que, a partir dos
cuidados externos, se alojou dentro de sua própria “casa”, percorrendo ao longo do
trabalho o caminhar da fase de dependência absoluta rumo à independência emocional,
em um progressivo contato com o seu verdadeiro self .(WINNICOTT, 1983d)
84
Com relação ao estabelecimento de vínculos afetivos, a criança, no início, era
insegura quanto à continuidade dos laços afetivos e adquiriu maior confiança na
continuidade das relações.
A permanência do atendimento funcionou como uma experiência emocional na
qual algo de novo aconteceu dentro da criança (ALVAREZ, 1994), na qual a fantasia de
morte e de abandono, ao ser vivenciada também tranferencialmente, não foi confirmada,
tornando-a mais confiante num ambiente bom e estável, com maior nível de maturidade
emocional (WINNICOTT, 1983a).
O vínculo com a terapeuta, ao possibilitar maior elaboração da relação mãe
bebê, permitiu que a criança avançasse rumo a relacionamentos mais complexos. Foram
percebidos os ganhos para sua vida social associados à evolução de uma relação
primitiva e dual para a triangulação edípica, que ampliou os horizontes de contato com
o outro. A criança mostrou-se mais envolvida e mais identificada com grupos de pares,
dividindo seus afetos com pessoas estranhas ao seu círculo familiar.
Em síntese, o apoio psicoterápico favoreceu que os períodos potencialmente
críticos, como as mudanças externas, por exemplo, fossem vividos como possibilidade
de crescimento, e não apenas como situação de desorganização externa, na medida em
que foi possível, na situação terapêutica, constituir um vínculo estável e um espaço de
holding em que as diversas realidades externas e internas puderam ser “brincadas”.
c) O processo psicoterapêutico, por sua vez, só pode ser mantido graças à
disponibilidade da terapeuta de deslocar o setting físico, buscando manter a estabilidade
e a continuidade do vínculo, ainda que a psicoterapia ocorresse em locais pouco usuais
de atendimento psicoterápico.
85
A manutenção desse setting baseou-se na maior valorização do vínculo em
detrimento do setting físico (LISONDO, 1996), sendo este utilizado como mais uma
opção de cuidado e atenção à criança (WINNICOTT, 1983d; HISADA, 2002).
O esforço da terapeuta para manter o trabalho através da mudança de local de
atendimento foi decisivo para a manutenção do ambiente de holding da psicoterapia,
que, em conjunto com o esforço de compreensão da paciente através da interpretação,
favoreceram a introjeção de atitudes de devoção e de cuidado pela paciente, ampliando
sua percepção de seus recursos amorosos e desenvolvendo de maneira mais sólida sua
“capacidade de encontrar” (WINNICOTT, 1957, apud ABRAM 2000), seja o objeto
desse encontro um vínculo, um processo de elaboração ou um ato criação.
Os pontos mencionados podem servir como base para reflexão das formas como
o cuidado a crianças nessa situação está sendo organizado com relação às decisões
legais e, principalmente, como os serviços de psicologia oferecem atendimento a essa
clientela.
Esta experiência pode ser um alerta às decisões do Judiciário, como um exemplo
em que o acolhimento provisório na casa de familiares foi sentido pela criança como
favorecedor ao seu desenvolvimento. Contudo, como já apontado, esse período parece
apresentar características ansiogênicas intrínsecas, que, por si só, sugerem a necessidade
do acompanhamento psicológico da criança e da família acolhedora.
O acompanhamento psicoterápico pode representar para a criança um ponto de
referência estável dentro da situação de instabilidade externa e um espaço onde as
angústias podem encontrar formas de significação. E, além disso, atingir pontos
importantes para a estruturação da identidade e para a formação de vínculos afetivos,
bases de uma vida saudável. Para a família/pessoa acolhedora, o atendimento pode
86
representar um espaço onde as dificuldades associadas a esse período podem ser
acolhidas.
Atentando às modalidades de atendimento em psicologia clínica comunitária e
preventiva, apontamos para a necessidade da formulação de propostas interventivas que
possam realmente manter o vínculo terapêutico, quando a criança é exposta a outras
configurações familiares que não a família nuclear.
Essa experiência clínica mostrou que a concepção de um setting originalmente
psíquico, sustentado pelo vínculo entre terapeuta e criança, possibilitou que o setting
físico sofresse mudanças sem comprometer o desenvolvimento do trabalho
psicoterápico, mas, ao contrário, garantiu que o trabalho tivesse continuidade e sucesso.
As mudanças físicas, necessárias à continuidade do processo, foram importantes
instrumentos de trabalho ao terapeuta, pois ajudaram a confirmar a crença num
ambiente de holding que se perpetua, criando espaços potenciais. Exigiram, contudo,
uma postura profissional viva, de ativa adaptação, em que não houve espaço para a
concepção clássica de trabalho na qual o terapeuta é uma figura neutra e distante. É
importante dizer que foram mantidas algumas regras que compõem o “enquadre
clássico”, como horários, duração de sessões e relacionamento profissional entre
paciente e terapeuta, sem cair em alterações técnicas que, por si, comprometeriam o
andamento de um trabalho com proposta psicanalítica. O campo psicanalítico esteve
mantido, passando por alterações alheias ao desejo ou à necessidade do terapeuta
individualmente, mas que foram usadas para atender a necessidades da dupla a fim de
continuar percorrendo sua jornada.
Talvez uma proposta de trabalho sem essas características anulasse a
possibilidade do mesmo ter continuidade, pois, muitas vezes, pareceu clara a pouca
valorização (ou o desconhecimento do valor) do trabalho terapêutico pelos
87
responsáveis, que nem sequer assumiam o compromisso de levar a criança ao
atendimento.
A indisponibilidade dos pais ou dos responsáveis poderia ter sido um obstáculo
intransponível para o trabalho se a criança e a terapeuta não assumissem as rédeas do
processo e não cuidassem dele da maneira possível, com improvisos. Em situações
como a descrita, em que o ambiente externo não é o maior aliado para o bom
desenvolvimento da criança, é preciso contar com a coragem e a força da própria
criança para se desenvolver, a fim de realizar o trabalho (ALVAREZ, 1994).
88
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
89
Dada a contribuição deste estudo para trabalhos futuros, pensou-se em
aprofundar a discussão com respeito ao setting utilizado e suas implicações tanto para a
paciente quanto para a terapeuta.
Winnicott introduziu modificações na estrutura do setting terapêutico para o
tratamento de pacientes que, em função de terem sofrido falhas precoces no
desenvolvimento, apresentavam necessidades especiais. Entre esses pacientes, incluíam-
se os muito regredidos, esquizóides, borderlines e psicóticos (HISADA, 2002).
O presente estudo mostra que outras necessidades especiais existem e exigem
alterações no setting terapêutico, como as perturbações originárias do ambiente externo.
Populações compostas por crianças abrigadas e crianças que convivem em
configurações familiares diferentes do modelo tradicional de família nuclear são
exemplos de clientelas que podem não se enquadrar no setting clássico.
Mesmo possuindo riqueza de recursos pessoais, que justificaria o uso do setting
padrão, outras especificidades se impõem sobre as necessidades intrapsíquicas dos
pacientes que convivem com alterações ambientais importantes. Dessa forma, chama-se
atenção para as necessidades do ambiente, e não apenas para as emocionais, na
utilização de um setting diferenciado.
Os resultados deste atendimento estimulam a crença na efetividade de propostas
interventivas que utilizem esse modelo. Por outro lado, realizar um trabalho com tais
características exige investimento em experiências inusitadas e incertas. Além disso,
quando se foca a realidade social e econômica em que se inserem os serviços de
atendimento, logo é possível ser atropelado por questionamentos e limitações que pouco
encorajam esta prática.
Winnicott pode ajudar a perceber os alcances desse tipo de trabalho, ao se pensar
em suas concepções relativas à criatividade.
90
O autor, ao tratar das bases do viver criativo, ensinou a aceitar um paradoxo: o
seio foi criado tanto pelo bebê quanto também já estava lá para ser usado por ele. A
mesma lógica desse paradoxo pode explicar o que aconteceu com esse setting: ele
estava lá em todos aqueles lugares, mesmos nos que pareciam pouco apropriados, e
estava também dentro da mente da terapeuta e da mente da paciente, como um desejo de
encontrar algo. Mas foi necessário permitir a ilusão de sonhar com ele, criá-lo e
encontrá-lo onde ele já existia. Esta experiência de criação possibilitou que a criança e
também a terapeuta usufruíssem os benefícios do trabalho, que se perpetuou , por
bastante tempo, após o encerramento do processo psicoterápico.
Essa posição é ilustrada por um fato ocorrido entre a terapeuta e a criança.
Três anos após encerrar o atendimento, quando eu já havia iniciado o curso de
Pós-Graduação e pensava em trabalhar com dados deste atendimento, fui
procurar Yara e sua família para uma conversa e pedir para que assinassem o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Iniciei meus contatos por
telefone, conversando com alguns membros da família, como a tia, o pai, a
madrasta e, por fim, a criança. Após o susto inicial da nossa primeira conversa,
em que Yara parecia mal poder acreditar que estava falando comigo, perguntei
se lembrava de mim, ao que respondeu imediatamente:
“Lembro, eu me lembro direitinho de você! Nossa! Direitinho! E você sabe,
Cristiane? O meu cabelo cresceu! Eu estou com o cabelo super comprido
agora!”.
91
Prosseguimos nossa conversa, falamos sobre minha vontade de usar nossa
experiência juntas em um estudo, que talvez pudesse ajudar outras psicólogas a
trabalhar com crianças de história de vida semelhantes à dela. Yara concordou
efusivamente, parecendo bastante orgulhosa. Fiquei contente com as notícias e
pensando sobre isto pude certificar-me de que existia realmente uma força
criativa associada ao nosso trabalho, frutos de nosso contato que continuavam
vivos e crescendo, pois a criança retomou, ao conversar comigo, um símbolo que
havia sido importante durante o trabalho terapêutico: o seu cabelo. Com base
nesse símbolo, remetíamo-nos ao modo como ela percebia a própria identidade e
como, a partir dela, estabelecia seus contatos com outras pessoas e o ambiente. E
ela me contava, depois deste tempo, como esse espaço simbólico continuava a
crescer e florescer.
Assim como o cabelo da paciente, outros fatores haviam continuado a crescer
nessa área transicional construída pela terapeuta e pela paciente a partir da experiência
criativa, podendo expandir-se e fazer parte de uma realidade agora não apenas subjetiva,
mas também parte da realidade a ser compartilhada por outras pessoas.
Realizar este trabalho propiciou o uso criativo de objetos da realidade, pois sua
continuidade dependeu da convocação da paciente e da terapeuta para criarem o espaço
de trabalho, o espaço do brincar interno e externo, nem interno nem externo.
(WINNICOTT, 2000b).
O preço do envolvimento e do esforço para construir esse setting teve sua
contrapartida em retorno tanto para a saúde da paciente quanto da terapeuta, na medida
em que áreas da mente de ambas foram objetos usados para criação. E essa criação da
92
dupla pôde continuar sendo e continuar existindo, pois o desenvolvimento de ambas
continuou, em uma área de transicionalidade como esta Dissertação de Mestrado.
93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
2
2
De acordo com: ASOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e
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97
ANEXOS
98
ANEXO A : Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (MODELO)
I - Título da pesquisa:
3
Um estudo sobre o desenvolvimento emocional de uma criança vivendo em
diferentes contextos familiares durante o processo de ludoterapia.
II - Pesquisadora responsável:
Cristiane Reberte de Marque - Psicóloga (Aluna Pós Graduação)
CRP: 06/61961
Orientadora: Profa. Dra. Isabel Cristina Gomes
Instituto de Psicologia (Universidade de São Paulo)
III - Esclarecimento ao participante da pesquisa
Após a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, estamos convidando o senhor,
responsável por uma criança que recebeu atendimento psicológico realizado por mim,
para participar dessa pesquisa que tem por objetivo conhecer as características de
crianças que passam algum tempo longe da família, a partir da análise das sessões de
terapia.
Muitas crianças passam por situações de vida em que não convivem
integralmente com os pais e irmãos, e a sua participação e a autorização para a
participação de seu filho serão muito importantes para conhecermos mais sobre o modo
como tais situações podem influenciar o comportamento das crianças e a vida da
família. Esperamos com isto poder ajudar a planejar formas de atendimento à criança e
à família que passam por situações assim.
A sua participação é voluntária e também solicitamos a sua colaboração no
sentido de autorizar a participação de seu filho neste estudo, através da autorização para
a consulta do prontuário da criança, onde estão contidas as anotações das sessões que
foram realizadas com a mesma durante seu atendimento psicológico, o qual fazia parte
das atividades acadêmicas / profissionalizantes da pesquisadora.
3
Este era o título inicial do estudo, utilizado na ocasião em que o projeto de pesquisa foi submetido ao
Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado por ele. Após o Exame de Qualificação, o título foi alterado para
99
Seu filho e você não serão identificados em hipótese alguma, sendo mantido o
sigilo das informações coletadas.
Solicitamos também a autorização para o uso deste material em publicações
científicas futuras.
Não haverá qualquer tipo de despesas com esta participação.
Agradecemos a sua colaboração e colocamo-nos à disposição para maiores
esclarecimentos.
Cristiane Reberte de Marque Profa. Dra. Isabel Cristina Gomes
Psicóloga Pós Graduação Orientadora
Telefone: (16) 3931- 4868 Telefone: (11) 3091-4173
AUTORIZAÇÃO
Declaro que, após ter sido satisfatoriamente esclarecido pela pesquisadora
Cristiane Reberte de Marque, eu ___________________________________________,
RG __________________ , concordo voluntariamente e dou meu total consentimento
na participação da pesquisa “Um estudo sobre o desenvolvimento emocional de uma
criança vivendo em diferentes contextos familiares durante o processo de
ludoterapia”, e autorizo a participação de meu filho
__________________________________________________ na mesma.
Ribeirão Preto, ____ de ________________ de 2004.
_________________________________________
Assinatura do Participante
ou Representante Legal
“Construção de identidade e formação de vínculos, no processo psicoterapêutico de uma criança, em
diferentes contextos familiares”, de acordo com sugestão dos membros da Banca examinadora.
100
ANEXO B Carta do Comitê de Ética em Pesquisa
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