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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E
INSTITUCIONAL
Rafaela de Quadros Rigoni
ASSUMINDO O CONTROLE.
Organizações, práticas e a experiência de si em trabalhadores
da Redução de Danos na região metropolitana de Porto Alegre
Porto Alegre
2006
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Rafaela de Quadros Rigoni
ASSUMINDO O CONTROLE.
Organizações, práticas e a experiência de si em trabalhadores
da Redução de Danos na região metropolitana de Porto Alegre
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Psicologia Social e Institucional. Programa de Pós
Graduação em Psicologia Social e Institucional.
Instituto de Psicologia. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Orientador Prof. Dr. Henrique Caetano Nardi
Porto Alegre
2006
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4
Ao Rafael Machado Madeira, que me ensinou que é possível demonstrar afeto
sem dizer uma palavra, que é possível estar próximo, mesmo a milhares de quilômetros de
distância, e que é possível amar e crescer, quando se conta com a liberdade.
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Agradecimentos
A todos trabalhadores participantes desta pesquisa, agradeço pela disponibilidade, pela
inestimável troca de idéias e por lutarem por uma outra saúde possível.
Aos meus amigos e colegas de trabalho da ONG Movimento Metropolitano de Redução de
Danos, especialmente ao Dílson Strossi e à Anna Gottuzzo de Castro, pela compreensão, pelo
respeito, pelos sonhos partilhados e por serem mestres na arte de aliar o trabalho ao prazer. Á
Juliano Alves Lopes e à Lorena Haack, pelo convívio e aprendizado de vida. À Locimara
Kroeff, por ser a responsável por eu conhecer a redução de danos e este povo maravilhoso.
Ao Centro de Referência para o Assessoramento e Educação em Redução de Danos,
especialmente a Rose Mayer, pela disponibilidade, pelas parcerias, e pela alteridade.
A ABORDA, especialmente ao Domiciano Siqueira, pela acolhida e pela implicação.
A Simone Debacco, por disponibilizar o material e as idéias.
Ao Henrique Caetano Nardi, meu orientador, por estar presente em todos os momentos, pela
humanidade, e pelo incentivo à reflexão livre e implicada eticamente.
Aos meus colegas do mestrado, pelos debates, e especialmente ao Fernando Pocahy, por
compartilhar prazeres, dificuldades e uma disciplina de Psicologia e Políticas Públicas.
À Jaqueline Tittoni, pelas vivências de ensino e aprendizagem na graduação, à Marta Conte
pelas idéias e disponibilidade. Á ambas, ao Ricardo Burg Ceccim e ao Edward MacRae, por
aceitarem contribuir com uma aspirante à pesquisadora.
Ao Márcio Malavolta e Iacã, pela observação dos grupos, pela parceria e discussões.
À Laura e Daniel, pelo abstract e pelo incentivo.
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por possibilitar-me, desde a graduação, um
ensino gratuito, público e de qualidade. A CAPES, pelo apoio financeiro e possibilidade de
dedicação à pesquisa. Ao Programa de Pós Graduação em Psicologia Social, pelos excelentes
professores e pela luta por uma outra Psicologia.
A Solange de Quadros Rigoni, minha mãe, exemplo de persistência, que com seu apoio
emocional (e financeiro!) sempre me impulsionou a seguir meus sonhos.
Ao Alceo Rigoni, meu pai, por se satisfazer com minha felicidade em fazer o que gosto.
A toda minha família que, espalhada pelos quatro cantos do país, soube entender e me ensinar
que a distância (geográfica), às vezes doída, também faz parte de um crescimento pessoal e
profissional.
As famílias Machado e Madeira, pela proximidade, afetividade, e acolhimento.
6
Resumo
O presente estudo tem como objetivo principal problematizar a rede enunciativa e os
jogos de verdade que constroem os lugares da Redução de Danos (RD) no campo da saúde
coletiva por meio da análise das formas de inserção das ações em RD no Sistema de Saúde, da
organização e das práticas cotidianas, assim como dos efeitos deste conjunto de aspectos na
produção da subjetividade de seus trabalhadores. Foram analisados 11 programas/ações de
RD na RMPA e entrevistados 36 trabalhadores em RD entre coordenadores de
programas/ações, redutores de danos, representantes de uma associação nacional de redutores
de danos e de um centro de referência estadual em RD. Utilizando a perspectiva genealógica
de Michel Foucault, foi possível discutir a diversidade dos atravessamentos discursivos no
cotidiano dos trabalhadores em RD; a relação entre a sociedade civil e o Estado; as
características da fronteira entre o Público e o Privado; as racionalidades em disputa presentes
nos jogos de verdade sobre drogas; as características consideradas importantes para ser um
redutor de danos; a divisão entre “técnicos” e redutores de danos; a profissionalização do
redutor de danos; o trabalho voluntário e a militância; e, finalmente, a precarização do
trabalho, em suas interfaces com todos os atravessamentos anteriores. A análise pôde
identificar, por um lado, a percepção dos trabalhadores de uma falta de suporte político,
financeiro e administrativo por parte do Estado e de parte da comunidade; e por outro lado, o
reconhecimento por parte do público atendido, que se mostra como motor para a continuidade
do trabalho. Discute-se a importância para a RD da constituição de espaços conjuntos de
reflexão e diálogo, que poderiam contribuir em muito para a saúde dos trabalhadores e, ainda,
para a organização coletiva dos mesmos. Finalmente, ressalta-se a necessidade resgatar o
papel de controle social, no sentido de negociar com o Estado diversas formas de apoio na
direção da sustentabilidade dos trabalhadores e ações.
Palavras-chave: redução de danos, trabalho, subjetividade, políticas públicas.
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Abstract
This study aims mainly at investigating the discursive net and the truth games that are
present in Harm Reduction (HR) sites and their effects on HR insertion in the Health System,
on work organization and practices, and on workers’ subjectivity. Eleven programs/actions in
HR were analyzed in the metropolitan area of Porto Alegre (MAPA) and 36 HR workers were
interviewed, among programs/actions coordinators, outreach workers and representatives
from a national outreach workers association and a State HR reference center. Departing from
the genealogic perspective of Michel Foucault, it was possible to discuss the competing
rationalities present in the discourse on illegal drugs and their overlapping, as well as the
relation between civil society and the State, the characteristic of the borders between Public
and Private, the rationales considered important in order to be an outreach worker, the
distinction between outreach workers and technicians, outreach workers’ professionalization,
voluntary work and militancy, and, finally, work precariousness in all its communications
with previous overlapping. The analysis shows workers’ perception of the lack of political,
financial and administrative support from the State and part of the community and, moreover,
the recognition on the side of the assisted public. This last aspect appears to be the main
driver for the continuity of the work. Finally, the study highlights the importance of creating
integrated spaces for reflection and discussion, which could contribute to workers’ health and
collective organization. It is also necessary to rescue the role of social control, in the sense of
negotiating with the State about several forms of support, and achieving sustainable actions
and more stable conditions for outreach workers.
Key-words: harm reduction, work, subjectivity, public policies.
8
Lista de tabelas
Tabela 1 – Localidade1 e Localidade2.................................................................................30
Tabela 2 – Localidade 3 e Localidade 4...............................................................................33
Tabela 3 – Localidade 5 e Localidade 6...............................................................................35
Tabela 4 – Localidade 7 e Localidade 8...............................................................................38
Tabela 5 – Localidade 9 e Localidade 10.............................................................................40
Tabela 6 – Localidade 11......................................................................................................43
Tabela 7 - Escolaridade dos participantes ..........................................................................127
Tabela 8 – Dificuldades no trabalho...................................................................................131
9
Lista de abreviaturas e siglas
AA – Alcoólicos Anônimos
ABORDA – Associação Brasileira de Redutores de Danos
ACS – Agente Comunitário de Saúde
CAPSad – Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas
CC – cargo de confiança
CMS – Conselho Municipal de Saúde
COMAD - Conselho Municipal Anti-Drogas
COMEN – Conselho Municipal de Entorpecentes
CONEN – Conselho Estadual de Entorpecentes
COTE - Comunidade Terapêutica da Cruz Vermelha Brasileira
CRRD - ESP/RS – Centro de Referência para o Assessoramento e Educação em Redução de
Danos da Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul
CTA – Centro de Testagem e Aconselhamento
DST/aids – Doenças Sexualmente Transmissíveis e aids
HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana, o vírus causador da aids
MmRd – Movimento Metropolitano de Redução de Danos
MS – Ministério da Saúde
NA – Narcóticos Anônimos
NEP – Núcleo de Estudos da Prostituição
OG – Organização Governamental
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONG – Organização Não-Governamental
PAM - Plano de Ações e Metas Municipal
PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde
POA – Porto Alegre
PRD – Programa de Redução de Danos
PROERD – Programa Educacional de Resistência às Drogas
PSF – Programa de Saúde da Família
PTS - Programas de Trocas de Seringas
RD – Redução de Danos
RMPA – Região Metropolitana de Porto Alegre
RPA – Recibo de Profissional Autônomo
SAE – Serviço de Atendimento Especializado
SENAD – Secretaria Nacional Anti-Drogas
SM – Saúde Mental
SMS – Secretaria Municipal de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
UD – Usuário de drogas
UDI – Usuário de drogas injetáveis
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
US - Unidade de Saúde
10
SUMÁRIO
1. Análise de implicação.......................................................................................................11
2. A Pesquisa ........................................................................................................................16
2.1 Antecedentes...................................................................................................................16
2.2 O Problema.....................................................................................................................19
2.3 Ferramenta genealógica..................................................................................................20
2.4. Passos da pesquisa.........................................................................................................21
3. Mapeamento dos Programas de Redução de Danos da Região Metropolitana de Porto
Alegre .......................................................................................................................................25
3.1 Por que e como fazer um mapeamento?.........................................................................25
3.2 O primeiro PRD do Estado.............................................................................................28
3.3 Ações de RD vinculadas à OG na RMPA ......................................................................30
3.3.1 Localidade 1 ............................................................................................................31
3.3.2 Localidade 2 ............................................................................................................32
3.4 Ações de RD vinculadas à ONG na RMPA ...................................................................33
3.4.1 Localidade 3 ............................................................................................................34
3.4.2 Localidade 4 ............................................................................................................34
3.5 Programas de Redução de Danos vinculados à ONG na RMPA ...................................35
3.5.1 Localidade 5 ............................................................................................................36
3.5.2 Localidade 6 ............................................................................................................37
3.5.3 Localidade 7 ............................................................................................................39
3.5.4 Localidade 8 ............................................................................................................40
3.6 Programas de Redução de Danos vinculados à OG na RMPA ......................................40
3.6.1 Localidade 9 ............................................................................................................42
3.6.2 Localidade 10 ..........................................................................................................42
3.6.3 Localidade 11 ..........................................................................................................44
3.7 A diversidade do trabalho em RD na RMPA .................................................................45
4. A Sociedade Civil e o Estado ...........................................................................................50
5. Entre o Público e o Privado..............................................................................................60
6. Jogos de verdade sobre drogas: diferentes formas de governo de si e dos outros ...........68
6.1 Modelo jurídico-moral....................................................................................................71
6.2 Modelo médico-moral ....................................................................................................82
6.3 saúde – ética....................................................................................................................92
7. A complexidade do trabalhador redutor de danos..............................................................105
7.1 Um ideal para o redutor de danos.................................................................................105
7.2 O redutor usuário de drogas como trabalhador em saúde ............................................112
7.3 A divisão entre “técnicos” e redutores .........................................................................121
8. A Precarização do trabalho.................................................................................................130
8.1 Alguns atravessamentos da precarização .....................................................................131
8.2 Possibilidades da Profissionalização ............................................................................141
8.3 O trabalho voluntário e a militância .............................................................................148
9 - Considerações finais..........................................................................................................157
10- Referências bibliográficas................................................................................................161
APÊNDICES ..........................................................................................................................168
APÊNDICE A - Base para questionário comparativo - situação dos PRD:.......................169
APÊNDICE B - Temas para os grupos ..............................................................................170
APÊNDICE C - Questionário individual para redutores....................................................171
APÊNDICE D – Consentimento Livre e Esclarecido ........................................................172
APÊNDICE F – Carta de aprovação no comitê de ética....................................................173
11
1. Análise de implicação
A construção de um problema de pesquisa se dá a partir da problematização
1
da
temática a qual nos propomos a estudar. Assim, moldamos o nosso objeto de estudo a partir
de nossa implicação
2
com o mesmo. Partindo deste ponto de vista, consideramos importante
traçar algumas páginas que contem ao leitor como surgiu a idéia e se deu o desenvolvimento
da presente pesquisa até a produção do material aqui apresentado.
Iniciei minha participação no movimento social da Redução de Danos (RD) no ano de
2003, quando fui convidada a fazer parte de um trabalho de avaliação de um Projeto em
Redução de Danos – o “TreinAgente”, da ONG Movimento Metropolitano de Redução de
Danos (MmRd). O trabalho consistiu na realização de grupos focais com Agentes
Comunitários de Saúde (ACS) de Programas de PACS (Programa de Agentes Comunitários
de Saúde) e PSF (Programa de Saúde da Família) de diferentes Unidades de Saúde (US) de
municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). A realização dos grupos tinha
por objetivo avaliar um programa de treinamento
3
para o desenvolvimento de ações em RD
em sua prática diária.
Durante os quatro meses em que realizamos estes grupos iniciei uma aproximação
com a proposta da RD e percebi que esta abordagem trazia à tona questões polêmicas
carregadas de preceitos morais e questionamentos éticos acerca dos usuários e do uso de
drogas, das formas de tratamento e das práticas possíveis de profissionais da saúde neste
campo. Enquanto alguns participantes viam na proposta uma via para uma saúde possível,
outros acreditavam que estariam incentivando o uso de drogas, ou ainda, demonstravam medo
e/ou repulsa em atender usuários de drogas.
O objetivo dos treinamentos realizados pelo projeto que avaliávamos era de inserir o
usuário de drogas e o soropositivo na rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS),
1
Para Castel, problematizar é colocar em evidênciaa existência de um feixe unificado de questões (cujas
características comuns devem ser definidas) e que emergem em um determinado momento (que é preciso datar),
que se reformularam várias vezes através de crises, integrando dados novos (é necessário periodizar essas
transformações) e que ainda hoje estão vivas. (CASTEL, 1998, p. 29).
2
A implicação é um conceito proveniente da Análise Institucional e se refere à relação que vai sendo produzida
num processo de análise entre o interventor e o “objeto” de análise, relação esta que é parte integrante deste
processo. “... a implicação não é um processo apenas psíquico, nem inconsciente, mas de uma materialidade
múltipla e variada [...] Ao mesmo tempo, um processo político, econômico, social, etnológico, heterogêneo...”
(BAREMBLIT, 1994, p.153.)
3
O treinamento foi desenvolvido e executado pelo projeto TreinAgente, financiado pelo Ministério da Saúde
através do Programa Nacional de DST/Aids, e vinculado a ONG MmRd.
12
possibilitando uma atenção caracterizada pela eqüidade e a participação dos usuários, visando
o resgate da cidadania. Porém, para alguns profissionais da saúde, isso parecia difícil de ser
realizado, pois a RD questionava seus valores, preconceitos, crenças, medos e desejos. A
polêmica gerada em torno do tema muitas vezes fazia com que diferentes profissionais de
saúde revelassem profundos preconceitos em relação ao trabalho dos redutores de danos, aos
usuários de drogas e aos soropositivos. Já a fala militante em favor da Redução de Danos
proferida pela ONG, e também por boa parte das ACS que haviam passado pela capacitação,
afirmava o resgate da cidadania, a prevenção em diferentes níveis, o cuidado possível. Em
meio a estas discussões passei a compreender a RD como estratégia importante em saúde e na
luta pelos direitos humanos e, ainda, como uma abordagem que busca a abertura de espaços
de participação e cuidado para o usuário de drogas que permanece sendo usuário,
considerando-o como um cidadão responsável por suas escolhas.
Terminada a avaliação, já bastante interessada no trabalho em RD, fui convidada a
permanecer no projeto como “redutora de danos”. Como este projeto não visava um Programa
de Redução de Danos (PRD), mas um conjunto de ações para formação continuada de
profissionais da saúde, o trabalho como redutora era diferenciado daquele geralmente
realizado por redutores que vão a campo
4
. Enquanto os redutores geralmente são responsáveis
pela abertura e manutenção do campo numa comunidade, meu trabalho e de meus colegas
também “redutores” consistia em realizar oficinas com os ACS, além do planejamento
conjunto de projetos de intervenção, acompanhamento e supervisão dos mesmos. Assim,
nosso vínculo maior era estabelecido com o ACS, e por meio dele e de seus projetos, com a
comunidade atendida.
Mesmo não vivenciando diariamente o trabalho de campo, realizei incursões na
comunidade com outros redutores e também com os ACS, vivências que trouxeram o impacto
dos mesmos preceitos morais que haviam sido evidenciados nos grupos focais; afinal, os ACS
são atravessados pelos enunciados que circulam na comunidade. Participei de campos onde eu
e meus colegas distribuíamos preservativos, visitávamos usuários e/ou suas famílias,
levávamos informações, realizávamos grupos com usuários e eventos comunitários conjuntos
com ACS, usuários e demais membros da comunidade. Além disso, fazíamos supervisões e
discussões de caso fora do campo, investíamos na sensibilização e vinculação com as equipes
4
Ir a campo significa ir para a comunidade escolhida para desenvolver o trabalho e lá ir produzindo vínculos
com os moradores para realizar o trabalho de abordagem e prevenção. Sobretudo, busca-se acessar os usuários
de drogas e sua rede de interação social a partir de uma metodologia de “busca ativa”, já que não se fica
esperando o usuário chegar, mas se vai atrás dele. A abertura de campo se refere ao início do trabalho na
comunidade, quando o redutor passa conhecer e ser conhecido por ela, procurando mapear o território em busca
de áreas de uso, usuários e sua rede de interação social, necessidades locais.
13
de saúde das US, e organizamos uma cartilha destinada aos ACS sobre o trabalho com RD na
comunidade. Em função deste trabalho diferenciado, algumas vezes ouvi de outros
trabalhadores em RD que não éramos “verdadeiros” redutores de danos, pois nosso trabalho
era diferente daquele realizado pelo redutor “clássico”.
Assim, desta experiência, emergiam diversas questões: qual seria a diferença do nosso
trabalho para aquele do redutor de um PRD? Haveria mesmo esta diferenciação? Como
conviver com a resistência dos ACS, equipes de saúde, gestores, e por vezes também da
comunidade em relação à RD? Por que esta insistência de alguns em entender a RD como um
incentivo ao uso de drogas e não uma estratégia de saúde? Tínhamos permanentemente que
explicar e relembrar o propósito do nosso trabalho, inclusive para nós mesmos, pois os
preceitos morais acabavam, às vezes, por nos “engatar”. Ao mesmo tempo, acompanhei
pessoas que transformaram seu modo de ver o usuário ou seu próprio uso de drogas, outras
que iniciaram um processo de busca de seus direitos de cidadão; outras tantas que começaram
a questionar e a se desvencilhar de seus próprios preconceitos com relação ao usuário, ou
mesmo a auxiliar outras pessoas que agora viviam situações semelhantes àquelas pelas quais
já haviam passado. Estas situações e muitas outras traziam o sentimento de que nosso trabalho
realmente operava algum sentido para estas pessoas e para nós mesmos. Estas experiências
“paradoxais” certamente influenciavam ou modificavam nossas práticas, modos de viver, de
trabalhar e significar o próprio trabalho, apesar de não termos uma clareza do “como” isto
acontecia. Tais questões e muitas outras relacionadas atravessavam a produção de
subjetividade de todos trabalhadores em RD, mas de que forma?
A entrada no mestrado em Psicologia Social e Institucional me fez atentar também
para outras questões compartilhadas pelos trabalhadores em RD, as quais eu já havia
vivenciado em alguns momentos. Dentre elas, estava a espera tensa e a incerteza dos finais de
projeto, onde não sabíamos se teríamos trabalho e salário pelo próximo ano, se haveria
continuidade das ações, ou seja, não podíamos ter um planejamento concreto de trabalho a
longo ou médio prazo. À incerteza do financiamento, somava-se nossa permanente luta e uso
de estratégias de sensibilização na tentativa de garantir que nosso trabalho pudesse ter espaço,
o que demandava um esforço de inserção em espaços de discussão política e boas relações
com os gestores e equipes de saúde. Através de minha participação no Grupo de Estudos em
RD para Álcool e Crack (uma parceria entre o MmRd e o Centro de Referência para o
Assessoramento e Educação em Redução de Danos da Escola de Saúde Pública do RS –
CRRD-ESP/RS), pude entrar em contato com outras organizações - governamentais e não
governamentais - que trabalhavam também com RD e vivenciavam situações muito
14
semelhantes. Como elas estariam lidando com a questão de suas lutas pela sustentabilidade?
Estariam encontrando saídas coletivas?
Com estas questões e muitas outras parti para agridoce tarefa de realizar uma pesquisa
em um campo conhecido. Como não ficar “embretada” em meio aos caminhos da militância
em conjunção com a posição de pesquisadora? Como resposta, busquei assumir uma postura
provocativa e investigativa, na tentativa de gerar debates e incertezas, num movimento
contínuo (e por vezes doído) de reflexão e análise. Assim como procurei questionar as
“verdades” encontradas, também fui questionada e avaliada em minhas “verdades” e
principalmente em minhas perguntas. Se a investigação social enquanto processo de produção
é ao mesmo tempo produto de uma objetivação da realidade e de uma objetivação do
investigador (MINAYO, 2004, p.237), posso dizer que também me tornei produto de minha
própria produção. Assim, neste processo, muitas de minhas idéias foram balançadas, muitas
noções revistas, e algumas posturas modificadas. Repetidas vezes os questionamentos e
interpretações levantados pelos participantes levaram a uma mudança de foco. Apesar de
minha familiaridade com o campo da RD levar-me a construir algumas questões
“sabidamente” relevantes para os trabalhadores da área, a pesquisa veio revelar novos
caminhos (e afinal, não é este seu papel?), produzindo novos enfoques e deixando outros no
aguardo de um momento ou sentido diferente.
Minha relação com as pessoas participantes desta pesquisa foi, em alguns casos,
criada, em outros, reativada e, constante, nos demais. Uma investigação precisa ser pautada
pelo desejo sincero de comunicação igualitária com cidadãos e não com “exemplares” de um
grupo, sendo que o que está em jogo é uma liberdade de dirigir-se ao pesquisador como um
companheiro (GONÇALVES FILHO, 2003). Se por um lado as pessoas que construíram
comigo esta pesquisa já eram minhas companheiras de movimento social, por outro, esta
mesma cumplicidade certamente deve ter produzido uma diferença na comunicação. Relações
institucionais previamente constituídas, relações hierárquicas, de grau de escolaridade
distinto, interesses múltiplos, muitas vezes devem ter influenciado na forma como a conversa
se construiu. Porém, não assumo aqui uma postura epistemológica que tenha como verdade a
tal “neutralidade científica”, portanto, busquei também apreender destas relações questões
pertinentes à pesquisa que, na medida do possível, foram inseridas no debate com os
participantes.
Nos últimos meses de 2005, já na fase de análise do material da pesquisa, uma
experiência de trabalho em um CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras
Drogas) da RMPA me conduziu a novas experimentações do ser militante e ser trabalhador
15
em RD. Estando agora “na outra ponta da rede”, pude vivenciar a dificuldade de inserção da
RD e da reforma psiquiátrica em um serviço criado para ser substitutivo ao manicômio e cuja
legislação apóia e suporta este trabalho. Pude ver que a falta de profissionais com
competências para o trabalho no SUS muitas vezes dificulta o trabalho da construção de redes
de atenção, por mais que haja um desejo sincero de trabalho. Vivenciei a posição de estar em
uma Organização Governamental (OG), com suas diferenças de tempo, burocracia, relações e
continuidades com relação à (para mim) costumeira ONG. Sobretudo, pude experimentar a
importância de espaços de reflexão e debate dentro do ambiente de trabalho para que ocorram
transformações e inserções de novas práticas. Acredito que todas estas questões de alguma
forma estão contempladas na presente dissertação, não só por terem sido parte de minha
experiência, mas por terem reflexos no cotidiano de diversos trabalhadores em RD.
Muito aprendi durante todo o processo de elaboração e execução desta pesquisa de
mestrado por meio do contato com teorias, relações pessoais, institucionais, reflexões,
questionamentos, experiências de vida! Como já disse, esta dissertação reflete minha
afinidade com a proposta da Redução de Danos e seus trabalhadores, os quais oferecem uma
importante alternativa de cuidado para aqueles que não querem ou não conseguem manter-se
abstinentes e, acima de tudo, são defensores dos Direitos Humanos dos usuários de drogas,
cidadãos portadores de direitos e de responsabilidades. Assumo aqui um posicionamento ético
e político em relação ao tema de pesquisa, pois não sou “indiferente”, mas sim um destes
tantos trabalhadores dos quais esta dissertação fala. Ao final deste processo (sempre
provisório) fica a dúvida: de quem são as idéias que aqui se encontram? Minhas, de meu
orientador, colegas, amigos e principalmente dos trabalhadores em RD com os quais convivi e
ainda convivo: claro, todas elas atravessadas pela minha escrita e pensamento. Espero
sinceramente que esta dissertação possa produzir mais do que longas páginas e horas de
leitura, uma contribuição para aqueles que dedicam parte de suas vidas ao cuidado de si e de
outros para que possam reduzir também seus danos na busca de uma saúde possível, e não
ideal.
16
2. A Pesquisa
2.1 Antecedentes
A inserção de ações em Redução de Danos como programa de saúde é relativamente
nova: pouco mais de duas décadas de inserção internacional e 17 anos no Brasil. Os primeiros
estudos científicos acerca do tema foram publicados no início da década de 90, e desde então
a produção de trabalhos tem aumentado consideravelmente. A revisão da literatura científica
mostra que a maioria dos estudos, nacionais e internacionais, se centra predominantemente
em dois campos: discussão das implicações dos diferentes modelos de tratamento para o
usuário de drogas comparando o modelo chamado de “médico” e o modelo de redução de
danos (HELLER et al., 2004; BASTOS; KARAM; MARTINS, 2003; BRASIL, 2003b); e a
discussão do modelo de redução de danos aplicado a usuários de drogas injetáveis (RHODES;
JUDD, 2004; HACKER et al., 2001.). Porém, ainda poucos estudos enfocam os trabalhadores
e o trabalho em redução de danos (STRIKE et al., 2004; INSUA; MONCADA, 2003;
FONSECA et al, 2006). Alguns estudos científicos realizados por redutores de danos contam
com incursões pelo cotidiano destes trabalhadores (DOMÂNICO, 2001; GRÉGIS, 2002), seu
foco, porém, é no usuário de drogas abordado e nas estratégias utilizadas pela RD. Neste
contexto, o tema central da presente dissertação é o trabalho e o trabalhador em RD.
A Redução de Danos pode ser definida como um conjunto de medidas que tem a
finalidade de minimizar os danos decorrentes do uso/abuso de drogas, sem que haja,
necessariamente, uma diminuição do consumo. Tais ações possuem como princípio
fundamental o respeito à “liberdade de escolha”, já que nem todos os usuários conseguem ou
desejam abster-se do uso de drogas, mas podem desenvolver cuidados na direção de uma
“saúde possível”. Assim, preconiza-se a redução dos danos à saúde decorrente do uso/abuso
de drogas - como os riscos de infecção pelo HIV e hepatite (BRASIL, 2001) e a
morbimortalidade por causas diversas como: trombo embolias, arritmias cardíacas,
convulsões, etc. (BASTOS; KARAM; MARTINS, 2003). Outro objetivo da RD é a redução
dos danos sociais decorrente deste uso/abuso, por exemplo, a violência, o delito, o
desemprego, a violação dos direitos humanos de usuários de drogas e seus familiares. A RD
também se refere à possibilidade do usuário de drogas refletir sobre o que é melhor para sua
saúde, fazer escolhas de acordo com seu julgamento – apesar de saber-se que isso não é
17
possível em todos os casos – afirmando a responsabilidade do indivíduo em relação ao seu
tratamento e ao uso de drogas (CRUZ, 2000).
Além da RD, duas outras estratégias são tradicionalmente adotadas pelas políticas
relativas às drogas no Brasil: a redução da oferta de drogas e a redução da demanda. A
primeira se preocupa em destruir plantações e princípios ativos, reprimir a produção e o
tráfico, combater a “lavagem” de dinheiro, controlar e fiscalizar a produção, a
comercialização e o uso das drogas; a segunda procura desestimular ou diminuir o consumo e
a iniciação nas drogas e tratar usuários dependentes tendo a abstinência como meta
indispensável.
Embora a história da RD como programa de saúde seja recente, a literatura científica
tem situado sua origem na Inglaterra em 1926 com o relatório Rolleston, o qual estabelecia a
possibilidade de o médico prescrever, legalmente, opiáceos para dependentes de heroína como
parte do tratamento quando demonstrado que os benefícios desta administração seriam
maiores que os riscos potenciais da síndrome de abstinência (BASTOS; KARAM;
MARTINS, 2003). Não obstante, somente na década de 1980 as ações baseadas neste
princípio foram sistematizadas em programas. O primeiro surgiu na Holanda, em 1984, por
iniciativa de uma associação de usuários de drogas chamada “Rotterdamse Junkiebond” ou
Junkie Union, existente ainda hoje
5
. A iniciativa foi motivada pelo fato de uma farmácia ter
decidido interromper a venda de apetrechos de injeção para usuários de drogas injetáveis
(UDI), de onde partiu a preocupação com uma possível epidemia de hepatite B (VERSTER,
1998). O método de prevenção utilizado nesse país foi a troca de seringas (o usuário fornece
suas seringas usadas e as troca por novas). Já nos países onde a troca era considerada ilegal,
como no início dos programas de RD no Brasil, o método de prevenção utilizado era a
desinfecção das seringas com uma solução de hipoclorito de sódio. A proposta atual para os
UDI consiste no não-compartilhamento de seringas, ou seja, na troca de usadas por novas. Foi
somente com a entrada de profissionais da saúde na RD Holandesa que se vinculou a troca de
seringas à prevenção do HIV (BASTOS; KARAM; MARTINS, 2003). Já no Brasil, a RD
nasce através da Política de DST/aids, sendo vinculada desde o início aos programas de
prevenção desta política.
A inserção da RD no Brasil se dá no contexto da reabertura política, da Constituição
Federal de 1988 e no cenário das lutas pela Reforma Sanitária e Psiquiátrica. Assim, a noção
5
O termo “junkie”, uma forma pejorativa utilizada para denominar um abusador de drogas ou dependente, foi
escolhido pelos fundadores propositalmente, para firmar uma posição (GRUND, 2005).
18
de saúde ampliada, a participação e o controle social, e princípios como eqüidade e
universalidade são bandeiras que nascem conjuntamente com o movimento social em
Redução de Danos, o qual vem se desenvolvendo a partir da luta de sua inserção como
proposta no Sistema Único de Saúde. No Brasil, a primeira tentativa de fazer troca de seringas
ocorreu em 1989 em São Paulo; entretanto, não houve continuidade devido a uma interdição
judicial (BUENO, 1998) que considerou as trocas ilegais. Somente a partir de 1995 foi
possível realizar as trocas legalmente, inicialmente em Salvador, e em 1998, em São Paulo,
quando foi sancionada uma lei autorizando os programas de RD no Estado (BRASIL, 2001)
6
.
No Rio Grande do Sul, o primeiro programa de troca de seringas data de 1996, em Porto
Alegre; entretanto, a regulamentação do trabalho só aconteceu três anos depois, com a
aprovação do Projeto de Lei n°69/99 (RIO GRANDE DO SUL, 1999).
Deste movimento de implantação de ações de RD participaram usuários de drogas e
trabalhadores militantes de Organizações Não-Governamentais (ONG) e Organizações
Governamentais (OG), o Ministério da Saúde (MS), o Ministério da Justiça, o Programa
Nacional e as Coordenações Estaduais e Municipais de DST/aids. Mais recentemente
juntaram-se a esta luta o Programa Nacional de Hepatites Virais, a Secretaria Nacional de
Direitos Humanos, alguns setores ligados à Saúde Mental, dentre outros. Hoje, vários estados
e municípios possuem leis que regulamentam o trabalho em Redução de Danos e, além do
Ministério da Saúde, outros órgãos vêm apoiando e financiando ações em RD em todo o país.
Além de representar uma abordagem para a prevenção e tratamento de uso/abuso de
drogas comprometida com a cidadania e o respeito aos direitos humanos para os usuários de
drogas na sociedade, a RD vem crescendo como estratégia de saúde também pela eficácia
demonstrada em suas ações
7
. O trabalho em redução de danos já conquistou um espaço de
atuação mais amplo do que a prevenção entre usuários de drogas injetáveis, abrangendo
usuários de diferentes drogas como crack, álcool, cocaína aspirada, maconha, loló, entre
6
De acordo com Domânico, em 1994 uma equipe multidisciplinar vinculada à organização não-governamental
APTA (Associação para Prevenção e Tratamento da Aids) de São Paulo teve aprovado pelo MS um projeto em
RD para abordagens com UDIs; porém, embora aprovado o projeto, o item troca de agulhas e seringas usadas
por novas foi “cortado” pela equipe ministerial. Apesar do corte, o Projeto recebeu apoio e insumos da
Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e pôde ser iniciado com equipamento disponível (DOMÂNICO,
2001).
7
De acordo com uma pesquisa feita pelo Projeto Ajude Brasil em grandes capitais brasileiras, 60% dos usuários
de drogas injetáveis cadastrados pelos PRDs deixou de compartilhar agulhas e seringas e 23% solicitou
tratamento para dependência química. Dos cadastrados, 48% eram portadores de HIV (MS, 2001). Conforme um
dossiê preparado pelo CRRD-ESP/RS, as avaliações dos PRDs têm demonstrado que eles não têm encorajado
um maior uso de drogas, mas, de fato, aumentaram a demanda por tratamento da dependência, diminuíram o
número de equipamentos (agulhas e seringas) utilizados e descartados sem segurança e ajudaram a conter a
epidemia de HIV/aids (CRRD, 2004).
19
outras. A distribuição ou troca de cachimbos (para usuários de crack), o kit snif (para cocaína
aspirada) e estratégias de diminuição, substituição ou cuidados no uso são aplicadas para
reduzir os danos mediante a negociação de “contratos terapêuticos” firmados entre os
redutores e os usuários no campo. Nestes contratos o vínculo e o diálogo entre o trabalhador e
o usuário, a partir do desejo e das possibilidades do usuário, são os fatores centrais da
abordagem.
Com o crescimento e a diversificação das ações em RD, novos desafios e
configurações de trabalho surgem, tanto em relação à ampliação das ações quanto na busca
por formas de sustentar o trabalho e os trabalhadores. Mesmo com os avanços conquistados
pelo movimento de redução de danos, ainda nos deparamos com diversas dificuldades em
relação à inserção da RD na sociedade, no SUS e nas políticas referentes às drogas. A
visibilidade negativa do usuário e os entraves para obter investimentos que promovam a saúde
nesta população, a dificuldade de se entender uma proposta que não vise necessariamente à
abstinência e a diminuição do consumo como forma de tratamento possível, a resistência em
se perceber o usuário de drogas como um cidadão responsável por suas escolhas e portador de
direitos, a precária situação dos trabalhadores em RD com relação aos nculos trabalhistas e
continuidade das ações são algumas das dificuldades enfrentadas.
Assim, sendo a intervenção do trabalhador em RD focada nas possíveis formas de
reduzir danos – as quais evocam temas como a aids, modelos de tratamento, saúde mental,
trabalho - partimos do pressuposto que os jogos de verdade/as redes discursivas que cercam
estes temas atravessam a organização e inserção deste trabalho no Sistema de Saúde, bem
como a produção da subjetividade
8
deste trabalhador. Assim, consideramos importante
discutir tais atravessamentos. Da mesma forma, nos parece fundamental produzir e divulgar
conhecimento a cerca do trabalho e do trabalhador em RD possibilitando, assim, chamar a
atenção para a necessidade de se implantar políticas públicas que visem a sustentabilidade do
trabalho dos redutores. Deste modo, com o presente estudo, esperamos estar contribuindo para
uma reflexão acerca do trabalho em Redução de Danos e para a discussão relativa às políticas
públicas referentes ao tema e às questões que o cercam.
2.2 O Problema
8
Por subjetividade entendemos a experimentação de si em um determinado jogo de verdades, ou seja, a forma
como o sujeito se constrói e é construído na trama social.
20
Como as redes enunciativas e os jogos de verdade que constroem os lugares da
Redução de Danos atravessam a inserção das ações de RD no Sistema de Saúde, a
organização e práticas deste trabalho, bem como a produção da subjetividade do
trabalhador em redução de danos?
2.3 Ferramenta genealógica
Para compreender como o trabalho e a produção da subjetividade do trabalhador em
Redução de Danos são atravessados pelas redes enunciativa e os jogos de verdade que
conformam os discursos sobre as drogas, a saúde, a aids e o trabalho na sociedade
contemporânea, utilizaremos a perspectiva de investigação genealógica de Michel Foucault
(FOUCAULT, 1971).
Foucault retomou de Nietzsche o sentido da genealogia: “investigar por detrás das
obras, dos feitos, das ações e construções, o afeto e o valor que os motiva e os rege”
(MARTINS, 2004, p.952-3). Esta estratégia foi utilizada por Nietzsche para desconstruir a
crença na verdade e na moral, consideradas então verdades transcendentes. Em sua visão de
mundo, a genealogia não busca a origem das coisas, nem trabalha com informações ou com
objetos como se fossem dados a priori. Para o genealogista os objetos são criados da forma
como os conhecemos a partir de encontros aleatórios, e apenas sua permanência é que nos faz
acreditar que são absolutos e que possuem uma essência transcendente (MARTINS, 2004)
9
.
A genealogia busca, então, desconstruir verdades a partir da constatação de que já fomos e/ou
possuímos um potencial para sermos diferentes do que somos hoje. Assim, a perspectiva
genealógica é inseparável da dimensão política crítica da moral dominante, quando esta nega
a vida enquanto produção permanente e exclui a diferença (ANDRADE, 1999).
A genealogia pretende explicar a existência e transformações dos saberes situando-os
como peça de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo político. Para Foucault, a
genealogia é “... uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos
discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito...” (FOUCAULT,
1979, p.7), isto é, chegar a uma análise que possa dar conta da própria constituição do sujeito
9
Antes de se valer da genealogia, Foucault trabalhou com a arqueologia como ferramenta de investigação.
Machado afirma que a arqueologia busca estabelecer a constituição dos saberes privilegiando as inter-relações
discursivas e a articulação com as instituições, respondendo como os saberes aparecem e se transformam. Já a
genealogia teria como ponto de partida o porquê buscando explicar o aparecimento dos saberes a partir de
condições de possibilidades imanentes a eles. Para Foucault“Enquanto a arqueologia é o método próprio à
análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita,
ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade.” (FOUCAULT, 1979, p.172).
21
na história, e que não pense encontrar uma “origem” dos discursos em um sujeito constituinte
ou uma superestrutura. Uma das teses fundamentais da genealogia é que o poder é produtor de
individualidade, ou seja, que o indivíduo é uma produção do saber e do poder (FOUCAULT,
1979).
Para Revel (2002), a análise das condições de possibilidade da constituição dos
objetos de conhecimento e aquela dos modos de subjetivação são indissociáveis. Portanto,
para entender a produção de subjetividade dos sujeitos trabalhadores em RD, é necessário
conhecer os jogos de verdade que circundam seu trabalho e suas práticas. Interrogar os jogos
de verdade quer dizer interrogar as relações através das quais o sujeito se constitui
historicamente como experiência. Em outras palavras, interrogar como os saberes estão
imbricados nas relações de poder em determinadas circunstâncias históricas, as quais vão
implicar em determinados cuidados de si.
Escolhemos então um foco para nosso trabalho de investigação, que se traduziu na
produção da subjetividade dos trabalhadores em redução de danos. Tal produção foi analisada
a partir dos jogos de verdade que se atravessam em seus relatos e na experiência que fazem de
si enquanto trabalhadores, tanto no que se refere à inserção das ações no Sistema de Saúde,
quanto à organização e dinâmicas do trabalho.
2.4. Passos da pesquisa
Foram investigados 11 programas/ações de Redução de Danos na RMPA e realizados
cinco grupos focais (ANDRADE, 1987) com redutores de danos em três destes locais, além
de duas entrevistas individuais com redutores. Além destes foram entrevistados representantes
do CRRD – ESP/RS e da Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA)
10
. Ao
total foram entrevistadas 36 pessoas, sendo 21 redutores de danos, 12 coordenadores de PRD,
presidentes de ONG e/ou gestores municipais (sendo que dentro destes, três se identificaram
10
A Associação Brasileira de Redutores de Danos – ABORDA, surgiu em 1997, como resultado da auto
organização de usuários de drogas, ex–usuários, técnicos de diversas áreas e demais pessoas comprometidas com
as questões relacionadas a triangulação drogas/HIV/cidadania. Seu principal objetivo é lutar por melhores
condições de saúde e pela redefinição de papéis sociais para os usuários de drogas e sua rede de interação social,
contribuindo para a construção de políticas públicas sobre drogas. O Centro de Referência para o
Assessoramento e Educação em Redução de Danos (CRRD), iniciou suas atividades na ESP/RS no final de
1999. Sua proposta de trabalho vem englobando o pensar, refletir e discutir a vida individual e coletiva com suas
questões correlacionadas (prazer, dor, morte, sexualidade, preconceito, discriminação, violência, classe social,
interações sociais), ambientando sua proposta técnica e assistencial nos princípios da educação em saúde coletiva
e promoção da vida (Disponível em: http://www.esp.rs.gov.br/esp2/default.asp?mostra=2&id=5
. Acessado em
29 jul. 2006).
22
também como redutores)
11
e três representantes da ABORDA e CRRD. Inicialmente foram
realizadas as entrevistas com as coordenações de cada um dos 11 Programas e contatada a
ABORDA. Em seguida, foram realizados os grupos focais e entrevistas individuais com os
redutores de danos. O CRRD foi acessado em diferentes momentos.
As entrevistas com os coordenadores foram em sua maioria individuais, sendo que em
duas contaram também com a presença da presidência da organização, a critério dos
entrevistados. As entrevistas tiveram duração aproximada de uma hora e meia, e foram
realizadas pela pesquisadora, geralmente no próprio local onde o programa se estabelece (à
exceção de duas entrevistas). As questões abordadas partiram de um roteiro–guia previamente
testado em uma entrevista-piloto (apêndice A). O roteiro foi construído a partir da experiência
da pesquisadora no campo da RD, da revisão bibliográfica e da discussão teórica. Cabe
salientar que o roteiro representou apenas um guia, abrindo-se espaço para outros assuntos
que emergissem no momento da entrevista. O intuito das entrevistas com os coordenadores
foi de conhecer o funcionamento e a organização dos programas, tendo como foco o trabalho
e sua sustentabilidade
12
.
Os grupos focais realizados com os redutores de danos ocorreram em três locais
diferentes, dois com dois encontros cada e um com um encontro. Cada grupo ocorreu com
redutores pertencentes a um mesmo PRD, em função da dificuldade de deslocamento entre
programas e municípios. Os encontros partiram de dois temas básicos (apêndice B), mas
também foram flexíveis para seguir o direcionamento dado pelos participantes. Cada encontro
teve a duração aproximada de duas horas e, na tentativa de ampliar a discussão e auxiliar na
reflexão contaram com a participação de observadores
13
. Foram realizadas ainda duas
entrevistas individuais com dois redutores de danos que não participaram dos grupos e que se
dispuseram a participar da pesquisa. Estas entrevistas também contaram com um roteiro-guia
(apêndice C). O intuito das entrevistas e grupos com os redutores de danos foi de investigar a
forma como produzem e percebem sua experiência enquanto trabalhadores.
No projeto original de pesquisa estava previsto um acompanhamento do trabalho de
campo dos redutores de danos. Em função do volume do corpus
14
de pesquisa constituído
11
Para fins de organização, chamaremos daqui em diante todas estas categorias apenas de “coordenadores”,
fazendo alusão à posição de liderança formal que estas pessoas possuem dentro de seus respectivos
programas/projetos.
12
Entendemos aqui como sustentabilidade o necessário apoio político, técnico-administrativo e financeiro
necessário à continuidade das ações de redução de danos implantadas pelos programas.
13
Os observadores foram profissionais da área da saúde: um educador físico, sanitarista, que trabalha com saúde
mental e um psicólogo recém formado.
14
Optamos por não utilizar aqui a palavra dados para reforçar nossa consideração de que o material aqui
encontrado não é “dado”: é “construído” na relação entre a teoria e a experiência, entre os participantes da
23
apenas com as entrevistas e o levantamento das características dos programas e ações, este
acompanhamento não foi realizado. Acreditamos que a observação do trabalho de campo
poderia trazer excelentes contribuições para um maior entendimento das práticas de trabalho.
Porém, para fins da presente pesquisa, consideramos que o material produzido seja suficiente
para realizar o debate proposto.
Todas as entrevistas individuais e as discussões dos grupos foram gravadas em fitas
cassete e depois transcritas para análise. No caso dos grupos com redutores, houve também
discussões posteriores da pesquisadora com os observadores. Na análise do material
procuramos ser fiéis à diversidade de trabalhadores e olhares percebidos em campo, sendo
que as falas aqui relatadas emergem “do diálogo de muitas opiniões”. Também compõe o
corpus da pesquisa documentos referentes à legislação, às políticas públicas, e a reportagens
publicadas em jornais, revistas e internet. Todos participantes da pesquisa assinaram o termo
de consentimento esclarecido (apêndice D), e o projeto de pesquisa obteve aprovação do
Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (apêndice F).
Após uma análise inicial do material, houve um debate com os entrevistados
interessados em torno das conclusões preliminares. Este debate prévio à conclusão da
dissertação foi pensado como forma de intensificar a reflexão e de colocar “à prova” o
material produzido até então, dando continuidade à idéia da construção conjunta da pesquisa e
as possibilidades de utilizar o conhecimento produzido como material útil aos trabalhadores
em redução de danos.
Até o presente momento o leitor pôde ter contato com a análise de implicação da
pesquisadora (no capítulo 1), e ainda com as motivações, problema, e metodologia da
presente pesquisa (neste capítulo). Nos próximos capítulos procederemos à análise do
material produzido, cuja organização para apresentação ao leitor se dará como segue. No
capítulo 3, faremos uma descrição dos 11 locais analisados na RMPA, contando com uma
breve análise de alguns pontos considerados relevantes para este estudo. A partir desta
descrição realizaremos, nos capítulos seguintes, uma análise dos atravessamentos discursivos
e jogos de verdade que circundam tais organizações e práticas, na busca das experiências que
o trabalhador em redução de danos faz de si.
No capítulo 4 discutiremos alguns atravessamentos referentes à relação que se
estabelece entre o Estado e a sociedade civil, levando em conta os atravessamentos referentes
ao discurso neoliberal de desresponsabilização do Estado e a necessidade de uma retomada do
pesquisa e o pesquisador. Assim, não existe uma “verdade” desvelada pelo pesquisador, mas uma forma de olhar
possível perante o contexto em que a pesquisa e seus atores se inserem.
24
papel da sociedade civil organizada. No capítulo 5 faremos uma análise da percepção, por
parte dos trabalhadores, das fronteiras entre o Público e o Privado em diferentes níveis de
práticas: desde a relação entre os trabalhadores e os gestores municipais ou trabalhadores do
SUS (incluindo a formação de parcerias e as trocas de gestão municipais) até a relação dos
trabalhadores com os instrumentos utilizados em seu trabalho ou com a comunidade.
O capítulo 6 buscará explorar como as racionalidades presentes nos diferentes
discursos sobre drogas se apresentam (e atuam em conjunto) na definição de práticas,
organizações do trabalho e na produção de subjetividade do redutor de danos enquanto
trabalhador. São propostos três modelos discursivos sobre as drogas para esta discussão: o
modelo jurídico–moral, o modelo médico-moral e o modelo saúde–cidadania. O capítulo 7
discute características consideradas importantes, pelos trabalhadores, para exercer a função de
redutor de danos; as racionalidades suscitadas com relação ao redutor de danos que é usuário
de drogas; e a percepção dos trabalhadores com relação a uma divisão existente entre
“técnicos” e redutores de danos.
O capítulo 8 discute mais profundamente a precarização do trabalho em suas interfaces
com os modos de organização do trabalho e trabalhadores em RD, trazendo alguns
atravessamentos da precarização, uma discussão sobre a profissionalização do redutor de
danos e ainda uma análise sobre as relações entre o trabalho voluntário e a militância,
discutindo possibilidades e riscos desta conexão. Por fim, o capítulo 9, traz algumas
considerações finais, buscando interligar os capítulos anteriores.
25
3. Mapeamento dos Programas de Redução de Danos da Região Metropolitana
de Porto Alegre
3.1 Por que e como fazer um mapeamento?
Os Programas de Redução de Danos (PRD) são a forma predominante de implantação
da estratégia da redução de danos no Brasil e
(...) consistem em um elenco de ações desenvolvidas em campo por agentes
comunitários de saúde especialmente treinados (denominados ‘redutores de danos’
ou simplesmente ‘redutores’), que incluem a troca e distribuição de seringas,
atividades de informação, educação e comunicação (IEC), aconselhamento,
encaminhamento, vacinação contra hepatite e outras ações. (BRASIL, 2001, p. 12 e
13).
Estes programas podem ser executados por OGs ou ONGs e geralmente contam com
um coordenador, um assistente de coordenação e redutores contratados, os quais dividem seu
trabalho em áreas da comunidade, cada uma constituindo um “campo” diferenciado. A
formatação atual dos PRDs é fruto de anos de modificações sucessivas em função da
experiência prática e avaliação destes programas em todo mundo, não sendo possível definir
uma “origem” dos mesmos. No entanto, podemos dizer que na Holanda iniciaram-se os
Programas de Trocas de Seringas (PTS), que passaram a incorporar progressivamente novas
atividades (que não só a troca de seringas), tornado-se programas em redução de danos num
sentido amplo. Apesar disso, a maioria dos programas fora do Brasil continuam sendo
chamados de PTS, sendo nosso país uma exceção neste sentido (BASTOS; KARAM;
MARTINS, 2003; FONSECA et al, 2006).
Atualmente, o Estado do Rio Grande do Sul possui 26 programas/ações em RD, sendo
15 PRDs ligados a municípios (OG) e o restante projetos de ONG. Na RMPA, atualmente,
são nove os programas/ações financiados, sendo que quatro deles constituem-se em projetos
de ONG financiados a partir de 2006, em sua maioria executadas por movimentos sociais
parceiros da RD (movimento das profissionais do sexo, travestis e homossexuais)
15
. Para que
o leitor possa visualizar as diferentes formas de organização do trabalho, optamos aqui por
diferenciar programas e ações em RD. Um programa em RD (PRD), como já afirmamos
acima, possui uma estrutura de equipe e de trabalho mais ou menos comum. Já um local com
15
Informações gentilmente cedidas pela Assessora para os projetos de RD da Seção Estadual de DST/Aids do
RS em maio de 2006. Durante o desenvolvimento da presente pesquisa estas informações foram modificando-se,
novos programas/ações surgiram e outros foram suspensos. Neste estudo, procedemos à investigação de 11
programas/ações.
26
ações não possui um programa estruturado e/ou desenvolve trabalho com redução de danos
fora deste moldes, por exemplo, com ACS ou realizando intervenções pontuais na
comunidade a partir de lideranças. No presente mapeamento, investigamos quatro locais com
ações em RD e sete PRDs.
Mas para que realizar um mapeamento destes programas/ações? Inicialmente, para
produzir um material que possa dar visibilidade às diferentes práticas e formas de organização
dos PRD e locais com ações. As informações apresentadas neste mapeamento nos auxiliam a
ter uma compreensão do panorama geral da redução de danos na RMPA: as formas de
inserção da RD nos municípios, o tempo de vida dos diferentes programas, as diferentes
formas de financiamento e contrato da equipe e redutores, as atividades realizadas, os recursos
com os quais contam, os critérios de entrada dos trabalhadores, a existência de trabalho
voluntário, as parcerias estabelecidas, a existência de legislação específica para a RD nos
municípios e a existência de participação política dos programas e seus trabalhadores. Este
material pode nos possibilitar a realização de uma discussão mais ampla e aprofundada a
respeito do trabalho e dos trabalhadores em RD na RMPA
16
.
O crescimento e a diversificação das ações em RD trouxeram novos desafios e
configurações do trabalho, tanto em relação à ampliação da abordagem quanto em relação à
busca por outras formas de sustentar as ações e os trabalhadores. Conforme já afirmamos,
apesar do crescimento do número de programas/ações financiados e da diversificação das
fontes financiadoras e parcerias, muitas dificuldades ainda são encontradas, tornando-se
importante as trocas de informação entre os locais no sentido de incentivar saídas coletivas.
Diversos Encontros e Fóruns
17
vêm sendo realizados pelo movimento social em Redução de
Danos para discutir estas questões, e muitas discussões e avanços já ocorreram. Porém, como
já afirmamos, devido ao crescimento e desenvolvimento dos Programas e ações em Redução
de Danos serem recentes no país, são raros os estudos acadêmicos dedicados à descrição ou
mapeamento das diferentes formas de funcionamento desenvolvidas pelos PRD.
No Estado do RS têm sido feitas algumas análises situacionais a pedido da Seção
Estadual de DST/Aids e do CRRD-ESP/RS, como por exemplo, a análise situacional dos 24
PRD existentes no Estado em 2003 (DEBACCO e OLIVEIRA, 2003). Tal análise teve como
objetivo coletar subsídios para a criação/aplicação de uma Política de Redução de Danos
16
Ao longo deste estudo utilizamos a expressão “trabalhadores em RD” quando nos referimos tanto a
coordenadores de programas/ações quanto redutores de danos ou outros trabalhadores que desenvolvam um
trabalho ligado a esta temática (representantes de associações, centros de referência, assessores, etc.).
17
Fórum Metropolitano de Redução de Danos, que congrega os PRDs da RMPA; Grupo de Estudos em álcool e
crack, que viabiliza uma troca de experiências de ações entre PRDs e outros serviços da rede de saúde;
Encontros Estaduais de PRDs; Encontros Nacionais de Redutores de Danos, dentre outros.
27
estadual e foi realizada através de questionários e visitas das consultoras aos programas. Com
relação a estudos acadêmicos, atualmente um diagnóstico situacional vem sendo realizado
pelo IPPSEA (Instituto de Planejamento, Pesquisa Social e Estudos Avançados) junto a
algumas ONGs que atuam com projetos de RD no Estado de Santa Catarina e nos municípios
que compõem a Grande Porto Alegre, no RS. Tal diagnóstico é realizado a pedido do
Programa Nacional de DST/AIDS, e ainda se encontra em desenvolvimento, tendo sido
desenvolvido através de questionários respondidos por e-mail e algumas entrevistas em
profundidade, sendo que os resultados ainda não se encontram disponíveis. Ainda um outro
estudo, com resultados preliminares publicados recentemente (FONSECA et al, 2006),
pretende avaliar a efetividade da implantação das políticas sobre drogas por ONG e OG e as
atividades diárias de 45 PRD no Brasil a partir de cinco blocos temáticos: cobertura do
programa, financiamento, controle dos recursos, capacidade organizacional e ambiente
político. O estudo foi realizado através da resposta a questionários enviados para as
organizações pela internet.
Assim, durante o período de março a setembro de 2005, procedemos à investigação de
11 programas/ações situados na RMPA, localizados nas cidades de Alvorada, Cachoeirinha,
Canoas, Charqueadas, Gravataí, Parobé, Porto Alegre, São Leopoldo e Viamão (Charqueadas
e Parobé, no entanto, poderem ser considerados municípios da região macro - metropolitana).
Na análise deste material utilizamos como base para comparação (nos casos onde a
informação foi localizada) a análise situacional de Debacco e Oliveira (2003)
18
. A intenção
da comparação foi de poder observar algumas continuidades e descontinuidades presentes nas
histórias dos programas em RD.
Escolhemos o formato de tabela para apresentação das informações produzidas para
facilitar a visualização e a comparação entre programas/ações. Após as tabelas encontram-se
descrições explicativas acerca do material exposto, e ao final do capítulo há um item
discutindo o conjunto das informações. O material utilizado na construção das tabelas foi
obtido das entrevistas realizadas com os coordenadores dos respectivos projetos/ programas e
correspondem à situação do programa no momento da entrevista. Na descrição das tabelas
algumas informações acessadas pela pesquisadora foram atualizadas, mas devido ao caráter
dinâmico dos programas optamos por manter na análise o que foi apresentado na data da
18
O material analisado em 2003 gerou um relatório (DEBACCO E OLIVEIRA, 2003), gentilmente cedido pelo
CRRD. Já o material bruto possibilitou um comparativo, e foi gentilmente cedido pelas consultoras que
realizaram o estudo. A análise de 2003 dividiu-se em 4 macro-regiões, sendo que na região macro metropolitana
foram analisadas Alvorada, Butiá, Cachoeirinha, Canoas, Charqueadas, Gravataí, Montenegro, Parobé, Porto
Alegre, São Leopoldo e Tramandaí.
28
entrevista e que consta nas tabelas. Devido ao caráter sigiloso das entrevistas os locais
analisados foram nomeados por códigos (localidade1, localidade2, etc.).
Antes de iniciarmos a descrição do material produzido pelas entrevistas, faremos um
relato mais detalhado da história do primeiro PRD estabelecido no Estado do Rio Grande do
Sul. Por ter sido o primeiro, este programa foi considerado como “modelo” para a criação de
outros em todo o Estado. Além disso, a metade dos trabalhadores dos programas/ações da
RMPA participantes desta pesquisa passou pela experiência de trabalho neste PRD em algum
momento de sua trajetória na RD. Desta forma, este programa ocupa um lugar importante no
panorama da RMPA, merecendo aqui uma descrição à parte.
3.2 O primeiro PRD do Estado
Ao final de 1995 foi elaborado o primeiro projeto de Redução de Danos do Estado do
Rio Grande do Sul, para a cidade de Porto Alegre (POA). O projeto foi elaborado a pedido do
Ministério da Saúde, que reuniu em Brasília funcionários das Seções de Controle de Aids
Estaduais de diferentes estados brasileiros onde ainda não havia PRD
19
. O objetivo principal
do projeto era prevenir a transmissão de aids em usuários de drogas injetáveis (UDI), que na
época era a categoria de exposição predominante para os casos de aids no Estado, com 33%
dos casos notificados. Assim, a base da intervenção no projeto-piloto de Porto Alegre focava-
se na categoria dos UDI, com a troca e distribuição de seringas, a aproximação com o sistema
de saúde, o resgate da cidadania e reinserção social dos usuários de drogas (SIQUEIRA et al.,
1998).
Vale dizer que uma ação antecedeu a este projeto, pois houve em Porto Alegre uma
campanha financiada pelo MS e realizada pela Comunidade Terapêutica da Cruz Vermelha
Brasileira (COTE), que discutiu com usuários, seus amigos e familiares a confecção de um
material (adesivos) sobre o risco de compartilhamento de seringas no uso de drogas injetáveis.
A campanha teve o mote “A seringa passa, a Aids fica”. A COTE já possuía um trabalho
vinculado ao resgate da cidadania do usuário, mas, mesmo assim, houve dificuldades em
implantar a RD na instituição da Cruz Vermelha, por uma resistência institucional e de
usuários freqüentadores.
19
Informações gentilmente fornecidas pela equipe do CRRD, em especial, Marta Conte, que participou da
escrita deste primeiro projeto como funcionária da DST/aids Estadual na época.
29
Após a aprovação do projeto, foram convidadas algumas pessoas que já atuavam na
área para sua coordenação e execução. A idéia do MS era municipalizar as ações, assim, o
vínculo foi feito com a Coordenação Municipal de DST/aids e a Secretaria Municipal de
Saúde (SMS) de Porto Alegre. Baseando-se na experiência de Santos/SP que, a partir
divulgação antecipada das atividades do projeto, gerou resistências que impossibilitaram
legalmente as trocas de seringas, o projeto de RD em POA optou por apresentar-se com
cautela à comunidade. Inicialmente foi realizado contato com as instâncias governamentais,
depois com alguns jornalistas, o Ministério Público e o COMEN (Conselho Estadual de
Entorpecentes), através de contatos individuais que previam a sensibilização e apresentação
dos princípios da proposta.
Em janeiro de 1996 iniciaram-se as reuniões de discussão para implantação do projeto,
do qual participaram representantes da Seção de Controle de Aids do Estado, da SMS e da
Unidade de Saúde (US) escolhida para o projeto; em fevereiro do mesmo ano iniciaram as
atividades. Vale dizer que a escolha desta US se deveu ao fato de haver, antes mesmo da
implantação do projeto, a procura de agulhas e seringas por parte de UDI através de pedidos
aos técnicos, tendo ainda ocorrido um arrombamento da US onde só foram levadas agulhas e
seringas descartáveis. Além disso, ela se situa em um local reconhecido por sua
periculosidade em função do tráfico de drogas e sua população possui condições de vida
precárias devido à falta de saneamento básico, água tratada e baixo nível sócio-econômico
(SIQUEIRA et al., 1998).
Inicialmente pensou-se que a ação dos redutores de danos (na época denominados
monitores) deveriam se restringir ao âmbito da US em função da periculosidade da área.
Porém, as características da coordenação e o comprometimento da equipe com o trabalho de
campo produziram a implantação de plantões noturnos na comunidade, o que possibilitou
desenvolver vínculos rapidamente e ocupar um espaço significativo na área. Segundo
Domiciano Siqueira, na época coordenador do PRD, a grande parceria do projeto foi com
usuários e ex-usuários de drogas, facilitando o acesso a uma grande rede de UDI e um grande
número de trocas e distribuição de seringas (SIQUEIRA, 2001). As atividades de campo dos
redutores de danos eram: plantão de campo realizado à noite ou de madrugada com objetivo
de inserir o redutor em pontos de uso de drogas onde fazia a abordagem; plantão na unidade
de saúde juntamente com o coordenador, onde recebiam pessoas encaminhadas durante os
plantões noturnos e estabeleciam vínculos com os técnicos de saúde; reunião administrativa;
supervisão de campo com o coordenador; supervisão psicológica em grupo, onde eram
30
tratados problemas gerados pelas dificuldades encontradas em campo como angústias,
depressão, medos e ansiedade (SIQUEIRA et al., 1998).
O projeto virou Programa oficialmente implantado em 1997 (KUCHEMBECKER E
SUDBRACK, 2001), institucionalizado pela SMS e financiado através de verba da política
municipal de DST/aids. Desde o início todos trabalhadores eram (e continuam sendo)
contratados como autônomos. O PRD segue se desenvolvendo e ampliando suas atividades,
com algumas trocas de coordenações e de equipe de redutores de danos
20
.
As tabelas que seguem mostram o material produzido pelas entrevistas com os
coordenadores no diferentes municípios. Para fins didáticos, dividimos o material em quatro
itens: ações de RD vinculadas à OG, ações de RD vinculadas à ONG, Programas de Redução
de Danos vinculados à OG e Programas de Redução de Danos vinculados à ONG na RMPA.
3.3 Ações de RD vinculadas à OG na RMPA
Tabela 1 – Localidade1 e Localidade2
Local Localidade1 Localidade2
Tempo de
existência
Desde 2000 Desde 2002
Data da
Entrevista
2005/maio 2005/maio
Vínculo OG OG
Financiamento Sim Sim
Quem
financia
·2000-voluntário (ONG)
·2002-04 – MS (ONG)
·2005 – PAM – DST/Aids
21
*
·2006- PAM – DST/Aids*
* por contratação de ONG
·2001-voluntário (ONG)
·2003-05 – MS (ONG)
·2004– PAM -DST/Aids*
·2005 – PAM – DST/Aids*
·2006- PAM – DST/Aids*
* por contratação de ONG
Funcionando? Não – processo de licitação Não – processo de licitação
Equipe ACS
ONG contratada
ACS
ONG contratada
Forma de
contrato
Licitação /RPA
22
Licitação/ RPA
Critério de
entrada
Licitação
Concurso ACS
Licitação
Concurso ACS
20
Optamos por não realizar um resgate histórico de todo desenvolvimento do PRD de POA por uma questão de
espaço e tempo. Focamos apenas sua inserção, o que nos ajuda a perceber como o trabalho vem se construindo
dentro de determinados princípios, modos de trabalhar e ligações institucionais. Este material, juntamente com o
restante exposto nas tabelas, será analisado em diferentes partes da presente dissertação.
21
PAM DST/Aids = Plano de Ações e Metas do Serviço Municipal de DST/Aids.
22
RPA = Recibo de Profissional Autônomo
31
Voluntariado
Em 2000.
Até hoje com grupos de usuários de drogas
(UD)
Em 2001.
Coordenação
vai a campo?
Não Não
Atividades
Sensibilização e capacitação de ACS. Troca
de seringas, encaminhamento para CTA
23
,
abordagens nas escolas (ACS), intervenções
na comunidade, no trabalho cotidiano do
ACS.
Sensibilização e capacitação de ACS,
encaminhamento para CTA, abordagens
nas escolas (ACS), intervenções na
comunidade, no trabalho cotidiano do
ACS.
Em 2004, tentativa de criação de PRD
sem sucesso. Pretendem concretizar em
2006.
Recursos Financeiro para pessoal e insumos
24
Financeiro para pessoal e insumos
Parcerias Serviço Municipal de DST/Aids, PACS,
PSF, Conselho Municipal de Saúde, Saúde
Mental, Secretaria Municipal de Educação –
parou com a troca de governo.
Ainda em construção.
Representação
política
Não Não
Legislação
municipal
Não sabe. Sim, para o trabalho com seringas.
3.3.1 Localidade 1
A inserção das ações, nesta localidade, teve início através do trabalho voluntário de
uma ONG, que investiu na sensibilização dos gestores e de Agentes Comunitários de Saúde
(ACS) de PACS e PSF para o trabalho com RD. A partir de 2002 a ONG obteve
financiamento do Ministério da Saúde para a capacitação de ACS do município. Todos
trabalhadores foram contratados como autônomos (RPA). Vale dizer aqui que a condição de
autônomo não possibilita ao trabalhador nenhum tipo de garantia como férias, 13º salário,
seguro desemprego, seguro saúde. Essa condição, comum a todos os trabalhadores em RD,
mobiliza as lutas pela profissionalização do redutor de danos e pela inserção da RD no
Sistema Único de Saúde (SUS) como forma de garantir a sustentabilidade das ações e
trabalhadores. Trataremos mais a fundo destas questões no decorrer da análise.
No ano de 2003 o município possuía ações em RD realizadas com as ACS através do
trabalho da ONG acima citado. Previa-se a continuidade e desenvolvimento deste trabalho, a
partir de uma avaliação do que já havia sido realizado
25
.
23
CTA= Centro de Testagem e Aconselhamento
24
Insumos = preservativos femininos e masculinos, folders, informativos, seringas, swabs, pote para diluição,
água destilada e, em alguns casos, cachimbos.
25
Em função de não haver um PRD estruturado no município, não havia viabilidade de preenchimento do
questionário feito pelas consultoras da análise situacional (DEBACCO E OLIVEIRA, 2003) havendo apenas as
informações aqui relatadas. Isso impossibilitou a realização de um quadro comparativo.
32
Durante o ano de 2004 houve a continuidade do trabalho no município, através da
educação em serviço de ACS de três US do município
26
. A partir de 2005 o projeto da ONG
passou a fazer parte dos chamados “projetos de transição”, onde as ações/projetos de ONG e
OG financiados pelo MS (através do Programa Nacional e Estadual de DST/Aids) teriam seis
meses de continuidade entre o início e a metade do ano de 2005, período durante o qual
deveriam negociar com os municípios a inserção de suas ações em RD no PAM municipal.
Tal ação faz parte da descentralização do financiamento, monitoramento e avaliação das
ações. Após o encerramento do financiamento pelo MS para a ONG, com a sensibilização dos
gestores, o município inseriu a RD no PAM através do Serviço Municipal de DST/Aids,
realizando editais de contratação de ONG através de licitações. Houve a continuidade do
trabalho com as ACS por mais um ano. No momento da entrevista, as ações por intermédio da
ONG estavam suspensas em função de atrasos no processo de licitação. Apesar disso,
segundo a coordenação da OG, os ACS seguiam o seu trabalho realizando as atividades
descritas na tabela. O local ainda contava com o trabalho voluntário de uma pessoa da
comunidade, realizando grupos com usuários de drogas.
O recurso oferecido pelo PAM restringia-se à contratação de pessoal e insumos para o
trabalho, não contando com um local para sede. Devido à troca de pessoal, ocasionada pela
troca de gestão municipal no início de 2005, houve uma “parada” nas relações com as
parcerias antes existentes, e havia a tentativa de retomar o contato.
3.3.2 Localidade 2
Também neste local as ações em RD iniciaram-se a partir do trabalho voluntário, a
partir da mesma ONG que o realizou na Localidade 1. A partir de 2003 a ONG obteve
financiamento do MS para o trabalho no município através do mesmo projeto que integrava a
Localidade 1, seguindo com metodologia e atividades semelhantes.
Em 2004 deu-se a inserção da RD no PAM do Serviço Municipal de DST/Aids,
previamente sensibilizado pela ONG para este fim. O processo de licitação priorizou a
contratação de ONG locais, com o objetivo de criar-se um PRD no município. A tentativa não
26
Neste período as ACS realizaram planejamentos e intervenções em RD na comunidade. Houve um trabalho
conjunto de ACS com os redutores de danos da ONG e a aprendizagem do trabalho de campo também através do
acompanhamento de redutores de alguns PRD da RMPA. O trabalho de intervenção das ACS era
supervisionado pela equipe do projeto. As atividades realizadas foram: grupos de acolhimento de usuários de
drogas em escolas e unidades básicas, busca ativa de UDs na comunidade, oficinas de confecção de cachimbos
com usuários de crack, reuniões comunitárias, inserção da abordagem em RD nas visitas domiciliares e grupos
(hipertensos, gestantes e diabéticos) já realizados, reuniões periódicas para planejamento, supervisão e avaliação.
Tais informações foram retiradas do relatório de progresso enviado pela ONG ao Programa Nacional de
DST/Aids.
33
teve sucesso, segundo a avaliação da coordenação, em função da pouca experiência da ONG
selecionada (que não era a mesma que vinha tocando o trabalho até então). Na data da
entrevista, as ações estavam paradas em função do processo de licitação, que ainda não havia
sido aberto. Atualmente, (março de 2006) o processo de concorrência já foi concluído, tendo
sido aberto também a ONGs, não-locais. A ONG vencedora se encontra à espera da verba e
de questões burocráticas para o início dos trabalhos. A intenção desta localidade é a criação
de um PRD.
No momento da entrevista não havia nenhum tipo de trabalho voluntário, e segundo a
coordenação, os ACS continuavam realizando seu trabalho através das ações descritas na
tabela, sendo que o Serviço Municipal de DST/Aids fornece seringas e material informativo
para os ACS realizarem as abordagens. Há uma lei municipal que regulamenta o trabalho com
seringas. A importância de uma legislação que regulamente as ações do redutor de danos com
relação à troca de seringas, cachimbos e outros insumos que venham a ser criados, se dá em
função de possíveis interpretações da Lei de Entorpecentes (BRASIL, 1976) que podem julgar
o trabalho como incentivo ao uso de drogas. Muitos redutores sofreram interpelações policiais
e mesmo detenção ou lesões físicas em função do material que carregam nas abordagens.
Apesar de poucos municípios da RMPA possuírem uma lei para o trabalho, há uma lei
Estadual que regulamenta a troca de seringas (RIO GRANDE DO SUL, 1999), mas não faz
referências sobre outras atividades, como a troca de cachimbos.
3.4 Ações de RD vinculadas à ONG na RMPA
Tabela 2 – Localidade 3 e Localidade 4
Local Localidade 3 Localidade 4
Tempo de
existência
Desde 1997 Desde 1998
Data da
Entrevista
2005/junho 2005/junho
Vínculo ONG ONG
Financiamento Não Não
Quem financia
-
MS, quando tem.
Funcionando? Sim Sim
Equipe
um presidente
155 usuários cadastrados
Equipe diretiva
quatro redutores
11 lideranças comunitárias
Forma de
contrato - RPA, quando tem verba
Critério de Cadastro Lideranças comunitárias
34
entrada
Voluntariado
Sim, a maior parte do trabalho é
voluntário
Sim, a maior parte do trabalho é voluntário
Coordenação
vai a campo?
Sim Sim
Atividades
Assessorias para PRDs e projetos
através de oficinas, participação em
eventos de capacitação.
Capacitação de multiplicadores de prevenção
na comunidade, encaminhamentos para
testagem para o HIV, consultas, e tratamento
para dependência química, visitas
domiciliares, trocas de seringas, distribuição
de insumos e informações na comunidade,
atividades com promotora legal prisional,
plantão na sede da ONG, reunião de equipe,
participação em eventos de capacitação.
Recursos
-
Sala cedida, computador, impressora,
telefone/fax, moveis.
Parcerias
Dificuldade com parcerias
Pequena Casa da Criança, Escola de samba,
time de futebol, pastoral, associações (todas
estas na comunidade), instituto de pesquisa
em SC, Programa Fome Zero.
Representação
política
CONEN, Fórum Metropolitano de RD
Associação de bairro; Fórum Metropolitano
de RD
Legislação
municipal
Não Não
3.4.1 Localidade 3
A entidade existe desde 1997, tendo sido fundada por pessoas que participaram do
desenvolvimento das primeiras ações em RD do Estado. No ano de 2000 houve um “racha”
na instituição, devido a divergências relacionadas à forma de trabalho. Os membros que
saíram desta localidade fundaram outra ONG. Esta localidade já possuiu projetos financiados,
mas não atualmente. Através da presidência, a ONG realiza trabalhos de assessoria para PRD
e projetos em RD em todo Brasil. Com exceção da contratação para oficinas, o restante do
trabalho é realizado de forma voluntária. A ONG está transformando-se em uma rede
estadual de usuários de drogas, já contando com 155 usuários cadastrados. A entidade
participa do Fórum Metropolitano de Redução de Danos, criado pelos próprios PRDs da
RMPA para servir de local de integração e de articulação das lutas políticas; e também conta
com uma cadeira de representação de usuário de drogas no CONEN (Conselho Estadual de
Entorpecentes).
3.4.2 Localidade 4
35
A ONG foi fundada por redutores de danos e lideranças comunitárias, que também
participaram do desenvolvimento das primeiras ações em RD no Estado. A maior parte do
trabalho realizado pela ONG é de caráter voluntário, sendo que antes mesmo de montarem a
instituição seus fundadores já realizavam este tipo de trabalho em sua comunidade. Nos
períodos em que contaram com financiamento este se deu através do Ministério da Saúde,
onde a forma de contrato dos trabalhadores era como autônomo. Na data da entrevista
contavam somente com trabalho voluntário, mas atualmente (abril de 2006), contam com a
aprovação de um projeto para formação de multiplicadores. A ONG atua predominantemente
em uma comunidade, onde possuem um grande número de parcerias e onde mora grande parte
de seus integrantes.
3.5 Programas de Redução de Danos vinculados à ONG na RMPA
Tabela 3 – Localidade 5 e Localidade 6
Local Localidade 5 Localidade 6
Tempo de
existência
Desde 2000 Desde1998
Data da
Entrevista
2003 2005/agosto 2005/junho
Vínculo ONG ONG ONG
Financiamento
Sim
Sim, mas com atraso
oito meses.
Sim, mas com atraso.
Quem financia
MS
·2000 - MS insumos e
Pessoal voluntário
·2001-05 – MS
·2005 - atual – PAM
·1998 -2005 - MS
·2005 - atual – PAM
Funcionando? Sim Sim Sim
Equipe um coordenador, um
auxiliar,
três redutores
15 amigos do projeto
27
três técnicos, três ACS
um coordenador,
um auxiliar,
três redutores
um coordenador,
um auxiliar,
cinco redutores
Forma de
contrato
RPA RPA RPA
Critério de
entrada
Indicação
28
ONG Parceiros
Voluntários
Variável: alguns como
voluntários outros por
convênios, ou por abordagem
na comunidade.
27
O “amigo do projeto” ou “amigo do programa” é uma pessoa da comunidade que se dispõe a auxiliar o redutor
em seu trabalho, guardando materiais (seringas, cachimbos, preservativos) em sua casa para trocas ou
distribuição em horários que o redutor não se encontra no campo. O amigo também auxilia acessando os
usuários que (ainda) não querem aparecer para o PRD.
28
Segundo o relatório da pesquisa, a categoria “indicação” diz respeito a pessoas que eram voluntárias e/ou
amigas do programa antes de ingressarem como redutores (DEBACCO E OLIVEIRA, 2003).
36
Voluntariado
Sim Sim.
Sim. Nos períodos de atraso
no repasse e amigos do
programa
Coordenação
vai a campo?
NI
29
Sim Não
Atividades Treinamento,
participação em
Conselhos,
aconselhamento,
reuniões com a
comunidade, reinserção
social de UDI e UD,
abordagem de usuários
de crack com troca de
cachimbos, abordagem
em presídios,
abordagem com
profissionais do sexo e
moradores de rua,
encaminhamentos para
testagem e tratamento
de HIV,
encaminhamento para
tratamento em
dependência química,
vacinação para
hepatites.
Reuniões com a
comunidade,
abordagem de usuários
de crack com troca de
cachimbos, abordagem
em presídios,
abordagem com
profissionais do sexo e
moradores de rua,
encaminhamentos para
testagem e tratamento
de HIV,
encaminhamento para
tratamento em
dependência química,
aconselhamento, visitas
domiciliares, vacinação
para hepatites, oficinas
de geração de renda,
reunião de equipe,
participação em eventos
de capacitação.
Encaminhamento para
testagem, aconselhamento e
tratamento para HIV/aids,
encaminhamento para
consultas, para tratamento em
dependência química,
aconselhamento, visita
domiciliar, trocas de seringas,
distribuição de insumos,
informação para comunidade,
plantões na sede, abordagem
de profissionais do sexo e
travestis, capacitação de
equipes, abordagem em
presídios, reunião de equipe,
participação em eventos de
capacitação, grupo de estudos.
Recursos Casa, televisão, vídeo,
fax, carro, telefone,
computador, scanner,
impressora, máquina
fotográfica, som.
Casa, televisão, vídeo,
fax, carro, telefone,
computador, scanner,
impressora, máquina
fotográfica, som.
Casa, telefone, fax, carro,
computador, insumos,
pagamento de pessoal.
Parcerias
US, Saúde Mental,
Serviço municipal de
DST/Aids, Associação
Comunitária, Vigilância
Sanitária.
US, Saúde Mental,
Serviço municipal de
DST/Aids, Associação
Comunitária, Vigilância
Sanitária, SAE, SAMU,
ULBRA, HPS,
Hospitais.
Escola Superior de Teologia,
ONG NEP (Núcleo de Estudos
da Prostituição),
Coordenadoria da Mulher, US,
Serviço Municipal de
DST/Aids.
Representação
política
NI
Fórum metropolitano
de RD
Fórum metropolitano de RD,
COMEN, CONEN,
Coordenação Municipal de
DST/Aids
Legislação
municipal
Não Não
Não. Mas possuem convênio
com a Prefeitura desde 2001
para a troca de seringas em
US.
3.5.1 Localidade 5
O PRD é um dos projetos vinculados a esta ONG, tendo sido criado em 2000 contando
com financiamento do MS para os insumos, sendo que o trabalho dependia de voluntários. De
2001 até a metade de 2005 o projeto teve financiamento do MS também para o pagamento de
pessoal, sendo que as contratações eram por RPA. Em agosto de 2005, após a sensibilização
29
NI = não informado.
37
continuada dos gestores municipais, o PRD se encontrava inserido no PAM através do
Serviço Municipal de DST/Aids. O projeto já havia sido aprovado pelo município, porém a
equipe contava com um atraso no repasse da verba que já durava oito meses. No primeiro
semestre de 2005 o PRD fez parte dos “projetos de transição” no MS, porém, esta verba ainda
não havia chegado, nem começado o financiamento do PAM. O PRD estava mantendo-se em
funcionamento através do trabalho voluntário de seus integrantes. Segundo a coordenação, o
critério de entrada dos trabalhadores se dá por meio da ONG Parceiros Voluntários, que
recruta e seleciona pessoas para trabalharem como voluntários em entidades do terceiro setor.
Todos trabalhadores, quando contratados, são autônomos.
Em comparação com a situação em 2003, a equipe se manteve em termos de número
de participantes, mas mudaram alguns integrantes: houve a troca de coordenação, que passou
a ser um dos antigos redutores, e a mudança de redutores. A presente pesquisa não previu a
observação de números de amigos do projeto ou trabalhadores “parceiros” como técnicos de
outras unidades, etc., apenas a equipe “fixa” do programa/ação. Os recursos e atividades
permaneceram os mesmos, acrescentando-se às atividades oficinas de geração de renda para
os usuários. As parcerias do projeto ampliaram-se, contando agora também com o SAE
(Serviço de Atendimento Especializado), a SAMU (ambulâncias), o HPS (Hospital de Pronto
Socorro) e demais Hospitais e ainda com a ULBRA (Universidade Luterana do Brasil),
através de estagiários.
3.5.2 Localidade 6
O PRD é um dos projetos vinculados à ONG, contando com financiamento do MS
desde 1998 até a metade de 2005, por ocasião dos “projetos de transição”. Através da
sensibilização dos gestores, o PRD conseguiu negociar a inserção da RD no Plano de Ações e
Metas do Serviço Municipal de DST/Aids. Na ocasião da entrevista se encontrava no aguardo
dos trâmites burocráticos para o recebimento da verba, porém, mantendo o funcionamento no
aguardo do recebimento retroativo. Todos trabalhadores eram e continuaram sendo
contratados como autônomos, e tiveram um aumento de salário com a inserção no PAM. Não
foram encontradas informações sobre o trabalho na análise de 2003, não sendo possível uma
comparação. A coordenação não vai a campo atualmente, mas antes de ocupar este espaço
havia trabalhado como redutor de danos neste mesmo PRD.
38
Tabela 4 – Localidade 7 e Localidade 8
Local
Localidade 7
Localidade 8
Tempo de
existência
Desde 1999 Desde 2002
Data da
Entrevista
2005/maio 2003 2005/março
Vínculo ONG ONG ONG
Financiamento Sim, mas com atraso há cinco
meses.
Sim, mas com atraso
há seis meses
Sim, mas com atraso
dois meses.
Quem financia
·1999 – MS (ONG a)
·2000 – ONG b por convênio
OG
·2002 – 06 ONG c por convênio
com OG
·2003 - MS (ONG)
·2003-05 – MS (ONG)
·2004 – MS (OG)
Funcionando? Não – atraso no repasse.
Em reestruturação.
Reduzido pelo atraso
no repasse.
Sim.
Equipe
um coordenador,
três redutores
um coordenador
um auxiliar
três redutoras
oito amigos do
projeto
seis multiplicadores
de informação
três voluntários
um coordenador,
um auxiliar,
quatro redutoras
Forma de
contrato
Convênio com ONG. RPA
RPA RPA
Critério de
entrada
Por Indicação:
ONG local – redutores
Serviço de Aids – coordenação
Amigas do projeto,
com trabalho
voluntário.
Amigas do projeto, com
trabalho voluntário na
época de atraso,
moradoras da
comunidade.
Voluntariado
Sim. Nos períodos de atraso de
repasse
Sim Sim.
Coordenação
vai a campo?
Não Sim Sim
Atividades
Encaminhamento para CTA e
tratamento de aids,
encaminhamento para consultas,
aconselhamento,
encaminhamento para
tratamento em dependência
química, visitas domiciliares,
trocas de seringas, distribuição
de insumos, informação na
comunidade, reunião de equipe,
participação em eventos de
capacitação.
Palestras participação
em conselhos
municipais,
aconselhamento,
reuniões com a
comunidade,
acompanhamento
tratamento p/ dep.
Química, atividades
que visem reinserção
social de UD´s e
UDI´s e seus
parceiros,
distribuição de
insumos e material
informativo,
participação em
Encaminhamento para
testagem do HIV,
consultas, e tratamento
em dependência
química,
aconselhamento, visitas
domiciliares, trocas de
seringas e de
cachimbos, distribuição
de insumos, informação
para comunidade,
plantões na sede,
abordagem a
profissionais do sexo,
participação em eventos
do movimento hip-hop,
participação em eventos
39
eventos do
movimento hip-hop e
eventos da SM de
Cultura.
de capacitação.
Recursos
Sede e gastos, combustível,
computadores, impressora, fax,
som, fogão industrial.
Sala cedida,
computador,
impressora, scanner,
filmadora, insumos.
Sala cedida, telefone,
fax, computador,
impressora, filmadora,
scanner, internet,
insumos.
Parcerias Tentativas com CAPSad,
COMEN, US, Secretaria do
Trabalho Cidadania e
Assistência Social, Secretaria da
Cultura e do Esporte, delegados
do Orçamento Participativo,
associações comunitárias.
US, Associação
comunitária.
US, Associação
comunitária, ONG NEP
e CEAMEN, SAE,
CTA, PROERD,
PACS/PSF, AA, NA,
comunidades
terapêuticas
30
.
Representação
política
Não NI
Fórum metropolitano
de RD, COMAD.
Legislação
municipal
Sim. Para trabalho com seringas,
especificamente com a ONG
contratada
NI Não
3.5.3 Localidade 7
O PRD foi criado por iniciativa de uma ONG e obteve financiamento do Ministério da
Saúde. Já em 2000 passou a ser financiado diretamente pela prefeitura através de uma verba
destinada a convênios (não pelo PAM), que foi realizado com outra ONG, mas com os
mesmos profissionais. A partir de 2003, por ocasião da desistência da ONG em continuar com
a parceria, a prefeitura fez convênio com um ONG local, que desenvolve o trabalho até hoje.
Não foram localizados os dados referentes ao PRD na análise situacional de 2003 para
proceder à comparação. A coordenação do PRD não faz parte da ONG, sendo uma indicação
técnica da Secretaria de Saúde. Já os redutores de danos fazem parte da ONG e são por ela
indicados.
Em maio de 2005 o Programa se encontrava inativo há três meses, pois apesar de
contar com o financiamento da OG os trabalhadores estavam há 5 meses sem receber, em
razão do atraso nos pagamentos por parte da Prefeitura. Apesar de geralmente realizarem
trabalho voluntário em períodos de atraso no repasse, a equipe se encontrava praticamente
impossibilitada de trabalhar devido à falta de recursos. Além disso, o Programa se encontrava
em uma fase de reestruturação conjunta entre a ONG, Coordenação e Prefeitura, e tentando
30
ONG CEAMEN (Centro de Apoio a Meninos e Meninas de Rua), SAE (Serviço de Atendimento
Especializado), CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento), PROERD (Programa Educacional de Resistência
às Drogas – programa vinculado à Polícia Civil e que visa combater o uso de drogas por crianças e adolescentes,
trabalhando junto aos colégios), AA (Alcoólicos Anônimos), NA (Narcóticos Anônimos).
40
resgatar e articular algumas parcerias perdidas em função da troca de gestão ocorrida nas
eleições para a prefeitura em 2004.
3.5.4 Localidade 8
O PRD foi criado por iniciativa de uma ONG, obtendo financiamento do MS desde
2002 até a metade de 2005, sendo que no último semestre fez parte dos “projetos de
transição”. Na análise situacional realizada em 2003 o PRD se encontrava com funcionamento
reduzido em função do atraso de seis meses no repasse de verbas. As amigas do projeto que
deram continuidade às atividades do PRD neste período foram contratadas como redutoras
quando a verba chegou. No ano de 2004 a OG (SMS) também obteve um projeto em RD
aprovado, mas acabou devolvendo a verba para o MS e seguiu auxiliando o trabalho da ONG.
Na data da entrevista, o PRD se encontrava com atraso no financiamento há dois meses,
funcionando com atividades reduzidas.
Em relação a 2003, a equipe “fixa” contava com o aumento de uma redutora de danos,
e os recursos do PRD também haviam aumentado. As parcerias já haviam se ampliado, assim
como as atividades, que passaram a contar também com plantões na sede, abordagem a
usuários de crack com cachimbos e abordagem a profissionais do sexo. Participavam do
Fórum Metropolitano de RD e tinham uma representação política no COMAD (Conselho
Municipal Anti-Drogas). O município não possui uma lei específica para o trabalho com RD.
Houve uma tentativa de inserir uma lei para o trabalho com cachimbos, mas devido à
repercussão negativa de uma reportagem veiculada em um jornal local, os vereadores optaram
por não votar o projeto (o título da matéria, de capa, era: “Fuma crack? O governo dá o
cachimbo!”).
Ao final do financiamento pelos “projetos de transição” o PRD ainda não conseguiu
inserir-se no PAM municipal. Até o final de 2005 algumas ações eram realizadas de forma
voluntária pelas redutoras, atualmente (abril de 2006), o Programa encontra-se desativado.
3.6 Programas de Redução de Danos vinculados à OG na RMPA
Tabela 5 – Localidade 9 e Localidade 10
Local Localidade 9 Localidade 10
Tempo de
existência
Desde 2002
Desde 2000
Data da
Entrevista
2003 2005/junho 2003 2005/junho
41
Vínculo OG OG OG OG
Financiamento Sim Não específico Sim Não
Quem financia
· 2002 – 03 – MS
· 2002 – 04 –
MS
·2005 –atual –
prefeitura,
cedido por CC
NI
·2000-voluntário
·2001-2004 – MS
·2005 -atual – sem
verba, PAM em
construção.
Funcionando? Sim Sim Sim Sim
Equipe
um coordenador,
um auxiliar,
quatro redutores
um
coordenador
um coordenador,
um auxiliar,
um consultor,
três redutores,
nove amigos do
projeto,
dois voluntários
um coordenador,
um redutor
Forma de
contrato
Cooperativa
Coordenador –
CC cedido
Coordenador –
pago pela
prefeitura
Consultor e
redutores – pagos
pelo programa.
Coordenador -
funcionário federal
parcialmente cedido
Redutor – CC cedido
Critério de
entrada
Indicação Indicação indicação
Permanência de parte
da equipe
Voluntariado
Sim Não Sim
Sim, nos períodos sem
verba e com atraso de
repasse
Coordenação
vai a campo?
NI Não NI Sim
Atividades Prevenção com
alunos da rede
escolar,
encaminhamento
s para CAPS,
aconselhamento,
reuniões com a
comunidade,
palestras,
distribuição de
insumos e
informativos,
acompanhament
o e tratamento
para dependência
química.
Palestras em
escolas.
NI
Visitas domiciliares,
encaminhamentos para
CTA, marcação de
consultas na rede de
saúde, distribuição de
insumos,
encaminhamentos para
tratamento em
dependência química,
reunião de equipe,
participação em eventos
de capacitação.
Recursos
Sala,
computador,
impressora,
vídeo cassete,
telefone.
Sala,
computador,
telefone,
pagamento de
pessoal.
Salas, televisão,
vídeo, computador,
impressora,
telefone, máquina
fotográfica,
veículo.
Salas, televisão, vídeo,
computador, telefone,
veículo.
Parcerias US, Saúde
Mental,
Associação
Comunitária,
posto de
gasolina.
Serviço
municipal de
DST/Aids.
Serviço municipal
de DST/Aids,
CTA, PACS/PSF,
presídio
Serviço municipal de
DST/Aids, CTA,
presídio, outros
serviços de saúde.
Representação
política
NI - NI -
Legislação Não Não NI Não
42
municipal
3.6.1 Localidade 9
O PRD iniciou em 2002 através de um projeto da prefeitura aprovado pelo Ministério
da Saúde. A coordenação foi então indicada pela prefeitura e os redutores contratados
segundo indicações na comunidade, através de uma cooperativa. Se compararmos a situação
do programa na data da entrevista com relação a 2003, vemos uma grande diminuição em
termos de equipe, atividades e parcerias. Tal desestruturação se deu em função de uma troca
de gestão ocorrida no município no início de 2005, onde a coordenação e todos os redutores
da equipe foram demitidos.
Desde então, não houve uma verba específica destinada ao Programa, mas havia um
espaço e recursos materiais cedidos pelo município. Através de um cargo de confiança (CC),
também cedido, foi designado um novo coordenador, que já possuía uma trajetória de trabalho
com drogas em uma linha que prioriza a abstinência. Por ocasião da entrevista somente o
coordenador atuava no PRD. Em função da falta de pessoal, os usuários antes assistidos
ficaram sem atendimento, mas a coordenação pretendia retomar o trabalho com a contratação
de um redutor (pertencente à antiga equipe). Outra mudança que ocorreu foi com relação ao
trabalho voluntário, que passou a não mais acontecer. Alguns meses depois da entrevista a
contratação do redutor ocorreu, mas atualmente (abril de 2006), o coordenador foi deslocado
para outro setor do município, e o PRD encontra-se desativado.
3.6.2 Localidade 10
O PRD iniciou em 2000, através do trabalho voluntário de militantes. De 2001 ao final
de 2004 obteve verba do MS através de um projeto da Prefeitura Municipal. Desde o fim da
verba para o programa pelo MS, membros da antiga equipe (em parceria com uma ONG) vêm
negociando com os gestores a continuidade do PRD através da inserção no PAM municipal,
ainda sem sucesso (informação confirmada em abril de 2006).
Com relação a 2003, vemos uma redução na equipe e nos recursos. Apesar de não
termos o material da análise de 2003 para comparação das atividades, os membros atuais da
equipe referem uma drástica diminuição das mesmas, em função da falta de pessoal. Na
ocasião da entrevista o PRD encontrava-se sem financiamento, funcionando apenas com um
coordenador (funcionário federal parcialmente cedido para o trabalho) e um redutor de danos,
cargo de confiança cedido para o trabalho. Ambos são trabalhadores da antiga equipe do
43
PRD, a qual após o término do financiamento trabalhou voluntariamente por um bom tempo,
mas acabou desvinculando-se. O PRD continua com os mesmos recursos, ampliando o espaço
físico e contando com as mesmas parcerias.
Tabela 6 – Localidade 11
Local Localidade 11
Tempo Desde 1996
Data da Entrevista 2003 2005/setembro
Vínculo OG OG
Financiamento Sim Sim
Quem financia
PAM DST/Aids
·
1996 – MS
·1997 – 2003 – PAM DST/Aids
· 2004 – atual – PAM Saúde Mental.
Funcionando? Sim Sim
Equipe um coordenador,
oito redutores,
42 amigos do programa
um coordenador,
10 redutores
Forma de contrato
RPA RPA
Critério de entrada
Indicação
Seleção
Amigos do programa
Voluntariado
Sim – amigos do programa.
Sim, no período inicial do programa, amigos
do programa que querem ser redutores, e em
atrasos de repasse.
Coordenação vai a
campo?
NI Não
Atividades Treinamentos, palestras,
participação em Conselhos,
aconselhamento, pesquisa,
reuniões com a comunidade,
acompanhamento tratamento p/
dep. Química, atividades p/
reinserção social de UD´s e
UDI´s e seus parceiros,
vacinação para hepatite,
encaminhamento para testagem
e tratamento para HIV,
supervisão de campo, reunião
de equipe, eventos de
capacitação.
Busca ativa de UD, encaminhamentos para
testagem, consultas, e tratamento em
dependência química, aconselhamento,
visitas domiciliares, trocas de seringas,
distribuição de insumos e informações na
comunidade, terapia comunitária em
serviços e parques, oficinas em casas abrigo
e outros serviços de saúde, capacitação de
equipes, atendimento a UD moradores de
rua, plantão na sede do PRD, abordagens em
presídios, reunião de equipe, participação em
eventos de capacitação.
Recursos Sala, telefone, computador,
impressora, máquina
fotográfica, fax, vídeo, veículo
insumos.
Sala, telefone, computador, impressora,
máquina fotográfica, fax, insumos.
Parcerias DST/Aids, PACS/PSF,
coordenação da saúde mental,
presídios, associação
comunitária, serviços de saúde.
CTA, PACS/PSF, CAPSad, Hospitais de
internação, Cais Mental, Abrigos, Programa
Fome Zero, DETRAN, Presídios, Serviço de
DST/Aids.
Representação
política
NI
Fórum Metropolitano de RD, Reuniões
inter-secretarias
Legislação
municipal
Não Não
44
3.6.3 Localidade 11
O PRD iniciou em 1996 através do financiamento do MS, já passando no ano seguinte
a ser financiado diretamente pelo PAM do Serviço Municipal de DST/Aids. Com relação à
análise situacional de 2003, na data da entrevista o PRD contava com um aumento de dois
redutores de danos na equipe, bem como um aumento nas parcerias de trabalho. Além disso,
houve uma ampliação e diversificação das atividades, como a terapia comunitária, as oficinas
em Abrigos e outros serviços de saúde. Entretanto, algumas intercorrências importantes com
relação à continuidade do programa se deram entre 2005 e 2006.
No início do ano de 2005 houve uma troca da gestão municipal, que culminou na não
renovação dos contratos dos trabalhadores e na permanência do PRD na situação de inativo
por alguns meses, correndo o risco de ser fechado
31
. Na temporada de “suspensão das
atividades” alguns redutores de danos continuaram os trabalhos de forma voluntária. Durante
este período, muitos atuaram de forma militante denunciado a possibilidade de fechamento do
Programa e a situação em que os trabalhadores e a população atendida se encontravam.
Através desta movimentação dos redutores de danos, e de pressões exteriores (locais com os
quais o PRD possuía uma parceria de trabalho), em março os contratos de todos trabalhadores
foram renovados por seis meses. Porém, um mês depois, houve a demissão da coordenação do
PRD e o anúncio da possibilidade de mais demissões.
Houve um deslocamento do vínculo do Programa dentro da OG, que passou do PAM
ligado ao Serviço Municipal de DST/Aids (que nesta gestão optou por não trabalhar com a
RD), para o Serviço Municipal de Saúde Mental. Da mesma forma que na Localidade 9, a
nova coordenação designada já possuía uma trajetória de trabalho com drogas em uma linha
que prioriza a abstinência. A priorização deste tipo de ação vem ao encontro da proposta da
gestão atual, que apoiou a reabertura de leitos em hospitais psiquiátricos e operou o
fechamento de um CAPSad que possuía uma proposta de trabalho ligada à RD. O PRD
reabriu, mas permaneceu com as atividades suspensas até que fosse completada a transição e
feita uma “reavaliação” das atividades. Por este mesmo motivo, nos foi impossibilitado um
contato direto com a coordenação para a realização da entrevista. A visita ao local só foi
possível em setembro de 2005, quando o programa já havia voltado a funcionar quase em sua
totalidade. Este foi o único local onde a coordenação “oficial” não se fez presente na
entrevista.
31
Estas informações complementares foram produzidas a partir do contato com diversos trabalhadores em RD, e
da participação da pesquisadora no movimento social em RD, não fazendo parte, necessariamente, da entrevista
realizada por ocasião deste estudo.
45
Na data da entrevista a coordenação ainda avaliava os redutores contratados, sendo
que havia a possibilidade de mais demissões, o que realmente veio a acontecer mais tarde. A
intenção relatada, em contato telefônico, era de aumentar o número de redutores até o final de
2005, o que não ocorreu. Os recursos permaneceram os mesmos, mesmo após um período
durante o qual os trabalhadores ficaram praticamente sem insumos, salário, computador,
impressora ou veículo.
3.7 A diversidade do trabalho em RD na RMPA
Como podemos ver a partir do mapeamento realizado, há uma diversidade de
programas e ações em Redução de Danos na Região Metropolitana de Porto Alegre. Optamos
por dividir, didaticamente, o material entre as entidades que possuem programas e os que
possuem ações em RD, e ainda entre aquelas que são ONG ou então OG. Do total de 11 locais
analisados, sete deles eram PRD e quatro possuíam ações, cinco deles integravam
Organizações Governamentais e seis faziam parte de Organizações Não-Governamentais. Dos
cinco locais com vínculo de OG, em três o financiamento estava incluído no Plano de Ações e
Metas do município, sendo os dois com ações (Localidades 1 e 2) através do Serviço
Municipal de DST/Aids e um PRD (Localidade 11) pelo Serviço de Saúde Mental; os outros
dois eram PRDs que não possuíam um financiamento específico dentro do município
(Localidades 9 e 10), mas contavam com um local e um ou dois funcionários cedidos para o
trabalho. Dos seis locais com vínculo de ONG, dois com ações não possuíam financiamento,
apenas trabalho voluntário (Localidades 3 e 4); dois PRD tinham financiamento pelo PAM
através do Serviço Municipal de DST/Aids (Localidade 5 e 6); um PRD ainda contava com
financiamento do MS (Localidade 8) e outro PRD com um convênio via prefeitura
(Localidade 7).
Percebemos que em todos os locais que possuem financiamento, a verba é pública,
seja do Ministério da Saúde através de projetos, seja das Prefeituras Municipais através de
convênios ou Planos de Ações e Metas de serviços de DST/Aids ou de Saúde Mental, não
havendo referência a verbas de capital privado. Estes resultados encontram semelhança com o
estudo de Fonseca et al, que mostra que entre os 45 PRDs analisados no país a principal fonte
de financiamento está no governo, predominantemente na esfera federal. Já a assistência
privada se mostrou bastante limitada, mas existente em alguns poucos casos (FONSECA et
al, 2006).
Podemos ver ainda que na maioria dos municípios o trabalho com redução de danos
iniciou-se através de um trabalho voluntário, geralmente por parte de alguma ONG.
46
Comumente, esta é uma fase de inserção das ações na qual é priorizada a sensibilização de
gestores e equipes de saúde além, é claro, do trabalho de mapeamento de locais e
necessidades no campo. Nos locais onde o início foi voluntário, logo após passou-se a ter
financiamento do MS através de um projeto de licitação pública. Os locais que já iniciaram
com financiamento, também o obtiveram primeiramente através do MS, todos a partir da
verba destinada à prevenção das DST/aids.
Como já dito anteriormente, a passagem do financiamento por projetos (MS) para a
inserção no PAM dos municípios foi estimulada pelo Programa Nacional e Seção Estadual de
DST/aids com os chamados “projetos de transição”, onde as ONG e OG teriam seis meses de
continuidade entre o início e a metade do ano de 2005 para negociar com os municípios a
inserção de suas ações em RD nos Planos de Ações e Metas municipais. Este processo de
descentralização, porém, não contou com apoio político e técnico-administrativo suficiente
por parte do Estado, que deixou as negociações para a inserção das ações, em sua maioria, na
mão das ONGs que desenvolviam os projetos. Muitos locais tiveram dificuldades com relação
à inserção no PAM por desconhecer os caminhos por onde tal negociação deveria ocorrer.
Desta forma, como vimos, três locais ainda não inseriram suas atividades no orçamento dos
municípios (Localidades 8, 9 e 10), o que gerou o desemprego de trabalhadores e uma
desestruturação das atividades e do atendimento à população. Na maioria dos locais da
RMPA onde houve a inserção no PAM, esta se deu através da política de aids do município,
havendo apenas uma exceção onde a ligação se deu com a Saúde Mental, em função de uma
opção da gestão. Este vínculo preferencial com a aids provavelmente se dê em função da
ligação histórica da RD com esta Política desde o início da inserção das ações no país e no
Estado, onde, como já afirmamos, a RD nasce vinculada à aids com abordagens específicas
para a “categoria de exposição” UDI (usuários de drogas injetáveis).
A maioria dos coordenadores dos programas entrevistados relatou, em algum
momento, ter sofrido atrasos no repasse de verbas, seja por parte do MS ou do município, o
que acaba prejudicando o trabalho. Em muitas ocasiões o trabalho voluntário sustenta as
ações em campo durante estes períodos, porém, com atrasos prolongados geralmente diminui-
se o número de integrantes nas equipes e, por vezes, o trabalho tem que parar, já que os
trabalhadores têm que ser liberados para conseguir seu sustento em outros locais. O próprio
critério de entrada dos trabalhadores acaba por perpetuar esta forma de trabalho, já que muitos
entram por indicação dentre os que foram amigos do programa, ou seja, os que já fizeram um
tipo de trabalho voluntário para o programa antes de uma contratação propriamente dita. Um
dos locais visitados não estava funcionando em função do longo atraso no repasse de verbas
47
(Localidade 7), e outros dois em função da espera pelo processo de licitação que operaria na
contratação de uma ONG para desenvolver o trabalho (Localidades 1 e 2). Estas “paradas
involuntárias”, além de prejudicar a manutenção dos trabalhadores, prejudicam as ações e a
população que fica sem assistência, sendo que a cada retorno a o vínculo de confiança com a
comunidade deve ser restabelecido. Cinco locais se encontravam mantendo as atividades sem
financiamento (Localidades 3, 4, 5 e 6).
Tanto a OG quanto a ONG sofrem com os atrasos no repasse da verba e/ou
dificuldades de financiamento, porém, uma questão que só foi encontrada na OG é a da
possibilidade da descontinuidade da linha de trabalho em função das trocas de gestão.
Diferentemente da ONG, a troca de gestão municipal da OG acarreta uma troca na equipe e
coordenação do Programa, ficando a cargo destas novas pessoas o modo de continuar o
trabalho. Com as eleições municipais de 2004, ocorreu uma troca de gestão (nem sempre de
partido, mas de pessoas) em oito dos nove municípios analisados. Estas trocas, em diversos
casos, dificultaram ou inviabilizaram também as parcerias já existentes por terem ocorrido
mudanças de coordenações e secretarias. Assim, novas sensibilizações tiveram que ser feitas
na tentativa de garantir o apoio. Neste sentido é que vemos a complexidade inerente à
sustentabilidade dos programas e ações em RD: além da continuidade do financiamento, é
necessário também o apoio político contínuo - no sentido de sensibilizar gestores para a
importância da inserção e/ou manutenção das ações em RD - e também uma continuidade de
suporte técnico-administrativo - para agilidade nos processos burocráticos, efetivo
monitoramento e avaliação das ações/projetos em execução (garantido a efetividade das ações
e continuidade de uma linha de trabalho), e ainda a capacitação, tanto de OG quanto de ONG,
para um maior conhecimento dos processos necessários à inserção e continuidade das ações.
A quase totalidade dos trabalhadores, com exceção daqueles cedidos pelas prefeituras,
é contratado como autônomo, não possuindo acesso a nenhuma garantia da legislação
trabalhista: férias, 13º salário, seguro saúde, seguro desemprego, fundo de garantia, etc.; e
possuindo aposentadoria apenas em caso de contribuição individual ao INSS. Também em
nível nacional estes resultados se mostram semelhantes. Segundo Fonseca et al, 55% dos
trabalhadores em RD pertencentes aos 45 programas avaliados são contratados como
autônomos, e 31% são voluntários. Somente 7% destes trabalhadores possuem formas de
contratação mais estáveis como vínculo de servidor público ou contrato por CLT
(Consolidação das Leis Trabalhistas) (FONSECA et al, 2006). Estas condições, aliadas aos
atrasos de repasse e às descontinuidades no trabalho, nos dão uma visão da precarização do
trabalho; questão que será discuta mais detalhadamente ao longo deste estudo.
48
As atividades realizadas pelos redutores de danos atualmente se mostram semelhantes
em muitos pontos àquelas realizadas pelos redutores do primeiro projeto em RD do Estado,
apesar de terem tido uma ampliação. Abordagens de algumas populações mais específicas
como detentos, profissionais do sexo, moradores de rua e usuários de crack foram sendo
desenvolvidas ao longo do tempo. No entanto, a atividade de supervisão psicológica existente
no primeiro projeto não foi mais encontrada, existindo apenas em alguns casos, de forma
intermitente. Como veremos no capítulo 8, tal supervisão parece estar fazendo falta para
muitos trabalhadores. Praticamente a metade dos coordenadores realiza trabalho de campo
junto aos redutores de danos, sendo que a maioria absoluta destes trabalhou como redutor
antes de assumir a função atual de coordenação. Como veremos ao longo deste estudo, o
trabalho de campo se coloca como grande “balizador” da experiência que os trabalhadores
fazem de si.
A partir do material aqui analisado, podemos citar um aumento referente à
participação política dos trabalhadores em RD ao longo dos anos. A criação do Fórum
Metropolitano de RD no final de 2003 proporcionou um espaço de debate acessado por
muitos locais. Além deste, outros espaços como COMEN, COMAD, CONEN e Associações
de Bairro foram citados. A participação ainda é tímida, e mais freqüente nos locais onde o
vínculo das ações/programa se dá com ONGs. Apenas dois municípios possuem leis para o
trabalho com seringas, mas a existência de uma lei estadual já regulamenta este trabalho (RIO
GRANDE DO SUL, 1999)
32
. A Lei estadual, no entanto, não regulamenta o trabalho com
cachimbos ou outros insumos que venham a ser desenvolvidos ou adotados, assim, ainda
podem ocorrer intervenções policiais nos municípios onde há um trabalho com usuários de
crack com a adoção destes insumos.
A partir do mapeamento aqui realizado e breve análise das organizações e práticas em
RD na RMPA muitas informações foram relatadas, pretendendo dar ao leitor uma idéia sobre
o complexo panorama da RD e seus trabalhadores. Entretanto, tal complexidade foi ainda
brevemente discutida. Através da ferramenta genealógica buscaremos, então, nos próximos
capítulos, desenvolver uma análise referente aos atravessamentos discursivos e jogos de
verdade que circundam tais organizações e práticas. Não temos aqui a pretensão ilusória de
realizar uma análise exaustiva de todos os elementos atravessadores, pois isso seria tarefa
32
Vale dizer que a legislação presente nos dois municípios e mesmo a estadual foram articuladas e estabelecidas
através da participação de militantes do movimento social em RD e sua sensibilização de gestores, conselheiros,
vereadores, deputados. Se avaliarmos que há 10 anos não era possível pensar uma estratégia como a RD,e muito
menos haver um movimento social baseado na cidadania do usuário de drogas, talvez já se tenha avançado
bastante, porém ainda não o suficiente.
49
impossível para uma dissertação. Porém, buscaremos refletir sobre algumas questões, na
busca da experiência que o trabalhador em redução de danos faz de si.
50
4. A Sociedade Civil e o Estado
Segundo Revel (2002), a análise das condições de possibilidade da constituição dos
objetos de conhecimento e aquela dos modos de subjetivação são indissociáveis. Assim, para
entender a produção de subjetividade dos sujeitos trabalhadores em redução de danos, é
necessário conhecer os jogos de verdade que constituem seu trabalho e suas práticas.
Compreendemos, então, que os modos de trabalhar e a produção da subjetividade dos
trabalhadores são atravessados pelas formações discursivas (FOUCAULT, 1997) que
conformam estes jogos de verdade. Como já afirmamos vários são os atravessamentos na
constituição da RD e seus trabalhadores.
Podemos iniciar nossa análise a partir da relação que se estabelece entre o Estado e a
sociedade civil. Vimos no capítulo anterior que as ações em RD na RMPA têm sido
financiadas de diferentes formas: através da concorrência de projetos pelo Ministério da
Saúde; diretamente pelos municípios em seus Planos de Ações e Metas, através de convênios
ou cedência de alguns profissionais; ou ainda não financiadas, mas realizadas em caráter
voluntário. Assim, todas as atividades que possuem financiamento o têm através de verba
pública, ou, do Estado. Dos 11 locais analisados seis se conformam como ONG; em outros
dois locais, vinculados à OG, o trabalho surgiu através de uma ação voluntária de ONG, e dos
três restantes pelo menos em um a participação da sociedade civil organizada foi essencial
para o início e continuidade do programa. Vemos então que mesmo nos casos onde o
programa ou ação é vinculado à OG, a sociedade civil organizada, ou, o movimento social em
RD, é de extrema importância para sua operacionalidade.
Segundo Steil (2001), é a partir dos anos 90 que a sociedade civil passa a ser
“parceira” do Estado, e é chamada a desempenhar um papel fundamental na definição,
implantação e avaliação das políticas de intervenção social e cultural através de organismos
privados (fundações, instituições, empresas) e de organismos não-governamentais ou
comunitários. Desde então o termo “parceria” tem sido usado para designar um tipo de
relação baseado em financiamentos de projetos, por parte do Estado, para que a sociedade
civil execute ações sociais. Tal configuração é indissociável do contexto da época:
aprofundamento da crise financeira, hegemonia do capital financeiro internacional, e as
privatizações de serviços e órgãos públicos mediadores de políticas sociais, com repasse para
iniciativa privada de serviços até então estatais. A visão de que todos têm que pagar pelos
bens e serviços sociais e de que o Estado (de Bem Estar) Social é inviável naturaliza-se, e há
51
um movimento de desresponsabilização do Estado, associado ao redimensionamento de suas
atribuições, reduzindo a esfera de regulação social e ampliando sua ação de incremento das
relações de mercado (NARDI, 2006; STEIL; CARVALHO, 2001). Neste contexto, a
sociedade civil organizada passou a ser constantemente incitada a assumir as funções do
Estado, apesar das limitações e impossibilidade de virem a desempenhar tal papel (MEDA,
2004; CASTEL, 1998).
Nesta tentativa de repasse de papéis, um dos sentimentos dos trabalhadores em RD
vinculados ao movimento social é de um descaso por parte daquele que teria o dever de
desempenhar as tarefas:
...porque infelizmente, assim, nos últimos anos, a gente tem tido por parte do
Ministério da Saúde e mesmo da Seção Estadual aqui do Estado o que eu considero,
assim, um processo de desrespeito muito grande, né. Porque os projetos atrasam,
não tem preservativo, não tem dinheiro, não tem isso, não tem aquilo, e eles sequer
mandam um e-mail, uma nota técnica dizendo... uma mentira mais deslavada que
seja, mas dizendo, sei lá “a mãe do fulano de tal morreu, a gente está muito triste e
não consegue trabalhar”, sabe, que seja algo assim. É bem isso. É algo que me
desagrada muito porque o silêncio, ele pode significar duas coisas neste caso pra
mim. Uma é “eu ocupo um lugar tal, e eu não tenho que te dar explicações daquilo
que eu faço ou deixo de fazer. Então pra quê eu vou ficar mandando e-mail pra ti
pra dizer que o recurso dos projetos atrasou e tu não vai receber... eu não preciso,
eu sou autoridade, tu depende de mim pra executar tuas tarefas, do dinheiro que eu
libero” e ponto final. E a segunda assim, a segunda possibilidade é uma questão de
incompetência mesmo. Você não sabe o que fazer diante de uma situação e então
tem que ficar quieto. [...] mas eu também acho assim, que essas instâncias de gestão
elas só se permitem esse tipo de postura em função de que eu acho que tem um
posicionamento equivocado da sociedade civil no momento, sabe? Que é a
sociedade civil, por depender quase que exclusivamente de financiamentos da área
pública tem se colocado numa posição de refém dos gestores públicos inclusive. E
isso pra mim é um equívoco. (Jorge
33
, coordenador).
As ações, apesar de serem de dever do Estado, são repassadas à sociedade civil sem
muito comprometimento com a mesma, nem com as ações. A relação de “refém” que a
sociedade civil pode estabelecer com o Estado, como denuncia Jorge, nos remete ao risco de
que a mesma deixe de exercer seu papel de fiscalizadora das ações do Estado, de controle
social, com medo de perder a “mesada” que sustenta seu trabalho e seus trabalhadores. Ainda
com relação ao descaso materializado na falta de insumos para o trabalho, há uma percepção
por parte dos trabalhadores de que o órgão financiador parece não perceber (ou não se
importar com) os problemas que podem ser gerados por não ter este material:
Nós estamos há trinta dias sem preservativos. Olha, uma cidade que tem a nossa
cultura, fazer com que as pessoas entrem por aquela porta [do PRD] solicitar
33
Os nomes aqui apresentados não correspondem aos nomes verdadeiros dos participantes, em respeito ao sigilo.
52
preservativo, é uma dificuldade. É uma dificuldade! E nós estávamos já com uma
demanda muito interessante... (Nelson, coordenador).
...com esse negócio aí, desde dezembro, essa operação vampiro
34
, essas coisas aí, o
repasse de preservativos não foi mais o mesmo. Então a gente tá trabalhando com
metade do estoque praticamente, metade da quantidade. E para a redução de danos
a quantidade que a gente pegava já era pouca. E com as profissionais do sexo, a
quantidade é maior. (Fúlvia, coordenadora e redutora de danos).
Há um grande investimento em termos de vínculo para que os usuários não só passem
a utilizar estratégias de cuidado em suas vidas, como também comecem a acessar a sede do
programa, ou seja, permitam serem vistos por outras pessoas de sua cidade como alguém que
busca um apoio em um local onde grande parte daqueles que entram podem ser usuários de
drogas e/ou portadores de HIV/aids. Neste sentido, a falta de materiais pode ocasionar uma
descontinuidade e prejudicar o trabalho, interferindo no acesso à sede e vínculo com a
população. Na falta de materiais para distribuição ou troca em campo, há também a cobrança
(e a necessidade!) por parte dos usuários que utilizam o insumo. Não se trata aqui de dizer que
não é possível fazer nenhum tipo de trabalho de prevenção sem preservativos, folders,
seringas ou cachimbos, mas sim de o material é necessário para as práticas de prevenção
veiculadas pelos trabalhadores. Aliás, práticas de prevenção que são a grande força
motivadora do Estado para o repasse das verbas. Assim, o que se coloca é uma denuncia da
ocorrência do repasse de tarefas sem o devido suporte para sua realização.
A falta de suporte por parte da OG também pode ser percebida em termos de um
sentimento de “solidão”:
... Tu nunca sabe com quem pode contar, o que vai acontecer no outro dia. Então
eu, por exemplo, me sinto muito solitária ali. Porque da instituição prefeitura a
gente também não tem nenhuma retaguarda. Eles entregam o dinheiro e dizem bom,
agora não me incomodem mais. Tipo assim "Tá, eu te dou a grana, mas tu não me
incomoda” (Helena, coordenadora).
Na visão desta coordenação a postura do Estado (representado pela prefeitura) é de
utilizar a ONG a fim de terceirizar um serviço sem se preocupar em absorver, avaliar ou
monitorar o trabalho que está sendo realizado. Assim, toda a gestão, execução e por vezes
avaliação das ações em RD são deixados a cargo da ONG contratada, conveniada ou então
vencedora de uma concorrência de projetos. Se por um lado isso possibilita uma continuidade
34
A Operação Vampiro foi uma operação do Ministério Público Federal e Polícia Federal, em 2004,
desencadeada pela existência de um esquema de fraudes em licitações para a compra de medicamentos no
Ministério da Saúde, principalmente hemoderivados. Devido à suspensão de licitações suspeitas de fraude houve
um déficit no abastecimento de preservativos em alguns locais.
53
referente à linha de trabalho e dá certa autonomia para os trabalhadores e militantes, por outro
acaba por perpetuar uma relação onde a “parceria” se dá só pela via financeira e pelo repasse
de responsabilidades, mas não pela construção conjunta de propostas e Políticas Públicas.
Um dos riscos de aceitar assumir o papel do Estado sem exigir ações responsáveis e
transformações com relação às Políticas, é o de perpetuar uma relação de
desresponsabilização do Estado e de descontinuidade das ações. Se a ONG executa uma ação,
mas não se encontra suficientemente articulada com a OG em termos de sensibilização dos
gestores para o trabalho, parcerias, apoio político (e não só financeiro), o trabalho corre o
risco de ficar “invisível” para o Estado, e ainda acabar não sendo absorvido por ele como
tarefa própria.
...era uma verba que vinha para o município. Só que ficou uma lacuna em como
repassar esse dinheiro que vinha com uma assinatura, uma rubrica que dizem,
específica para quem estivesse executando trabalho. Por que o município que
estivesse executando redução de danos seria fácil: contrataria os redutores e deu.
Mas houve município que, como [município], na época não quis ficar com
R$50.000 para redução de danos, porque na época tinha uma ONG que fazia
redução de danos. "Então não vamos se preocupar com esse tipo de gente aí".
(Raul, coordenador).
Nos casos onde a gestão municipal não possui a percepção da importância de uma
política de atenção aos usuários de drogas, além do atravessamento do regime de verdades
que sustenta o Estado Neoliberal, questões de ordem moral também se atravessam. O estigma
que constitui o usuário de drogas como sujeito, faz com que muitos gestores prefiram não
gastar dinheiro com “esse tipo de gente aí”, como diz Raul. Para alguns deles, investir em
usuários de drogas “não rende votos”, ainda mais quando se trata de investir na redução de
danos, onde a idéia não é necessariamente a abstinência para todos. Assim, é um investimento
que pode “pegar mal”
35
.
Como vimos no capítulo três, a sensibilização de gestores e da equipe é importante
para a inserção e desenvolvimento das ações em RD. Portanto, um dos grandes desafios dos
trabalhadores é a falta de educação permanente para as equipes de saúde do SUS. A função de
manter atualizada a formação de pessoal seria do Estado, que possui um investimento
insuficiente em recursos materiais e humanos para tal tarefa. Desta forma, coordenadores e
redutores de danos realizam constantemente sensibilizações de gestores e equipes de saúde
nos municípios onde trabalham, tendo como objetivos uma melhoria na abordagem da
população que atendem em comum com os serviços, e com a possibilidade de um apoio para
35
Analisaremos mais detalhadamente esta relação do trabalho e do trabalhador em RD com o julgamento moral
no capítulo 6.
54
atendimento integrado. Porém, a falta de “pernas” para uma capacitação continuada, ou
mesmo a rotatividade de pessoal aliada à falta de uma sensibilização, já no ingresso do
servidor, acabam por gerar dificuldades:
Eu acho que, no momento, não digo preconceito, mas tem algumas lacunas em
certos serviços ainda. Porque dentro do município, nosso serviço de saúde funciona
de maneira assim: é muita troca de equipe. Tu sensibiliza toda uma equipe hoje, e
se daqui a 90 dias se tu voltar, tu não tem 50, não tem 20% daquela mesma equipe
que tu iniciou. Então com a gente tem 32 postos dentro de (município), com PSF
funcionando. Então a gente vai e sensibiliza toda uma equipe, e depois diz "Bom,
agora vamos começar a trabalhar em parceria". Quando tu chegar lá a equipe que
estaria já sensibilizada está desmontada. E aí tu vai ter que reiniciar todo trabalho
novamente. (Raul, coordenador).
Na fala desta coordenação é evidente um cansaço, uma sensação de um trabalho
interminável do qual nunca se pode colher os frutos. A todo o momento a troca de pessoal
exige novas sensibilizações, e a parcela de aproveitamento daquelas já feitas na forma de
parcerias acaba sendo pequena. Uma questão interessante com relação às falhas na formação
de pessoal é que a queixa não aparece endereçada ao Estado: a preocupação é em fazer o
trabalho novamente. Segundo Ceccim, algumas saídas para a atualização permanente dos
trabalhadores se colocam na constituição de equipes multiprofissionais, coletivos de trabalho,
lógicas apoiadoras e de fortalecimento, orientadas sempre por uma maior resolutividade dos
problemas de saúde das populações (CECCIM, 2005). Dentro deste contexto, há uma
necessidade apontada pelos próprios trabalhadores em retomar o papel que a sociedade civil
pretende ter perante o Estado.
Podemos então falar em uma redefinição da relação de “parceria”, que deve ser não a
de funcionar como um executor de tarefas não realizadas pelo Estado, mas sim de negociar
Políticas Públicas com o governo. Uma parceria que busque governar em conjunto, e não
assumir uma posição assujeitada. A relação de “parceria” entre sociedade e governo é
entendida por Costa (1994) como expressão de uma autonomia conquistada, e, mais do que
isso, como a criação e negociação de novas formas de relação e democracia. Para o autor, a
sociedade civil seria a porta voz da opinião pública formada através da disputa de idéias e de
consensos públicos, gerados na intersubjetividade e no entendimento, num processo que
envolve trocas simbólicas (cultura, identidade, tradição, solidariedade). Desta forma, a
sociedade civil organizada poderia ser vista como um agente transformador, tanto com relação
à criação de novas políticas quanto com relação a mudanças no contexto social que faz com
que tais políticas sejam necessárias:
55
...ela [a RD] é profundamente filosófica. Não dá para falar da redução de danos
como uma estratégia. O que tem a ver com o início da nossa conversa, troca de
seringas é estratégia, cachimbo é estratégia, mas isso tudo... faz parte de uma
filosofia e de uma idéia. É uma intervenção necessária, é importantíssima, mas são
intervenções. A gente não pode desejar ou querer que a gente continue, que o
governo crie essas intervenções e que não modifique o contexto que faz com que
elas sejam necessárias. (Machado, coordenador).
Em outras palavras, podemos dizer que o movimento social tem a necessidade de lutar
pela construção de Políticas Públicas e pela transformação de condições políticas, sociais e
culturais. A fala de Machado resgata, então, o papel da sociedade civil perante o Estado, que
é de exigir mudanças e lutar conjuntamente para que as mesmas aconteçam, sem que isso
queira dizer submeter-se aos posicionamentos estatais. Podemos aqui pensar na noção de
Política Pública não como uma política veiculada pelo Estado no sentido tradicionalmente
atribuído ao governo, mas uma política que seja um instrumento de construção da sociedade
que queremos (obviamente diferentes arranjos societários estão em disputa neste
“queremos”). Assim, o movimento social poderia pressionar a máquina estatal em uma lógica
de inversão do exercício de controle do biopoder (entendido como política de controle das
populações pelo Estado) (FOUCAULT, 2001), para fazer com que a Política seja Pública
realmente, no sentido de que o Público não é o Estado, mas toda sociedade.
Uma das formas de exercitar este papel ativo é criando novas formas de participação e
de relação com o sistema político: o movimento social pode ser agente na reconstrução e
(re)criação do sistema político e da democracia, não devendo ficar limitados aos canais de
participação e limites institucionais já estabelecidos. Segundo Paoli, se olharmos para os
movimentos como locais criativos onde se produzem, além de novas formas de estar no
mundo, novas formas de negociar e de realizar a democracia, os veremos como um
instrumento de aprendizagem de negociações políticas, de construção conjunta da lei (PAOLI,
1995).
Para operar neste sentido de construção conjunta, a sociedade civil deve estar
organizada, ou seja, deve atuar ela também de forma conjunta em seu interior. Bauman afirma
que na modernidade os poderes passaram do “sistema” para a “sociedade”, da “Política” para
as “políticas da vida”
36
, descendo do nível “macro” para o nível “micro” do convívio social
(BAUMAN, 2001, p.14). Assim, uma das funções reivindicadas pelos movimentos é, através
da articulação, transformar uma forma de ação individual caracterizada pelas políticas de
vida, para uma forma de ação conjunta que caracteriza a Política com P maiúsculo. Os
36 A “política-vida” se refere ao que as pessoas podem fazer por si mesmas para si próprias, a Política com P
maiúsculo, ao que podem realizar em conjunto cada uma delas se reunirem forças (BAUMAN, 2001, p.77).
56
esforços da RD neste sentido traduzem-se na criação de várias instâncias de articulação
conjuntas, e no incentivo à participação em instâncias de representação já existentes para o
debate sobre as políticas referentes às drogas.
Alguns locais de debate criados pelo movimento de RD são: em nível internacional, a
International Harm Reduction Association - IHRA e a Rede Latino-americana de Redução de
Danos – RELARD; em nível nacional, a Associação Brasileira de Redutores de Danos –
ABORDA (que promove os Encontros Nacionais de Redutores de Danos e debates através de
Fóruns regionais), a Rede Brasileira de Redução de Danos – REDUC, a Rede Brasileira de
Usuários de Drogas; em nível regional o Fórum Metropolitano de RD e os encontros
promovidos em parceria com a Coordenação Estadual de DST/Aids, CRRD-ESP/RS e
movimento social. Há também um incentivo à participação em locais já institucionalizados
como a Comissão de Articulação dos Movimentos Sociais (CAMS) em nível nacional; o
CONEM em nível estadual; Fóruns de Saúde Mental, Fórum de Educação em nível regional;
os COMEN, Conselhos Municipais de Saúde e Associações Comunitárias, em nível
municipal, dentre outros. Além disso, o movimento estimula a participação na discussão de
mudanças na legislação e novos projetos de lei em múltiplas instâncias governamentais.
Mais especificamente o Fórum Metropolitano de RD, do qual participam seis dos 11
locais aqui investigados, foi criado no final de 2003 tendo caráter de um órgão consultivo e a -
partidário. Surgiu a partir da necessidade de incentivar e promover o intercâmbio entre as
instituições, sejam elas OG ou ONG, que realizam ações de RD na RMPA. O Fórum tem
atuado também como um espaço de articulação política entre a sociedade civil organizada e o
Estado, através da participação da Assessoria para os projetos em Redução de Danos da
Coordenação Estadual de DST/Aids, e do CRRD-ESP/RS. O Fórum é composto pelas
representações das diversas entidades que trabalham com Redução de Danos na RMPA, e tem
discutido assuntos referentes ao seu próprio caráter e funcionamento, à continuidade das
ações, ao apoio político, financeiro e técnico necessário, à avaliação e monitoramento dos
projetos em RD de seus filiados, às representações políticas do movimento de redução de
danos, à introdução de atores de diferentes movimentos sociais no cenário da RD, dentre
outros
37
.
Dos 11 locais observados neste estudo, cinco ainda não exercem uma representação
política. Dos seis que possuem este tipo de participação, todos freqüentam o Fórum
37
Dados referentes a um resgate das Atas do Fórum desde sua criação, realizado pela representante do CRRD no
Fórum. A presente pesquisadora também faz parte do Fórum como vice-representante da ONG MmRd, tendo
freqüentado as reuniões a partir do final de 2005.
57
Metropolitano de Redução de Danos. Além disso, um participa também do COMEN, sendo
que outro está tentando articular este espaço; outros dois participam do CONEN, e outros
ainda da Associação de Bairro e reuniões entre secretarias. Apesar do verbalizado incentivo à
participação nestes locais, não foram encontradas participações mais efetivas em Conselhos
de Saúde Municipais. A articulação para participação no Fórum de Saúde Mental, Fórum de
Educação e outros locais estratégicos para a discussão das propostas referentes à RD está
sendo feita através do Fórum Metropolitano de RD.
Apesar do incentivo à ampliação da participação em locais de representação, podemos
argumentar que a mesma é ainda insuficiente. Para Sherer-Warren, as maiores dificuldades
para implantar ações de cooperação e complementaridade nas parcerias entre o governo e a
sociedade civil situam-se no campo da cultura política. Enquanto o Estado possui uma
dificuldade de publicizar o poder público – predominam rivalidades partidárias, clientelismo,
o “jeitinho”, as decisões atreladas aos interesses privados – a sociedade civil ainda possui uma
incipiente organização da população, havendo grande dificuldade de envolver o cidadão em
geral nos processos participativos e de dar continuidade às políticas sociais criadas
(SHERER-WARREN, 1999, p. 64). Os atravessamentos relacionados à questão da
privatização do público serão discutidos no capítulo seguinte; aqui, podemos ampliar nossa
reflexão sobre a organização do movimento social em Redução de Danos em que pese à
participação política de seus diferentes trabalhadores.
Pudemos observar um desconhecimento e certo estranhamento por parte de muitos
redutores de danos em relação aos mecanismos regulares de participação relacionados ao seu
tema de trabalho. Apesar da participação, há ainda uma falta de familiaridade com os
mecanismos formais de participação e uma dificuldade em assumir uma postura mais ativa
diante dos mesmos. Há ainda um desconhecimento por parte de muitos redutores com relação
às questões políticas e burocráticas relacionadas à inserção das ações em RD. Diante de uma
discussão sobre o que seria necessário para garantir o recebimento da verba em atraso e a
continuidade do PRD, observamos a discussão que segue entre redutores:
Virginia -... É que a gente nunca sabe. Que projeto de lei, sabe, na verdade a gente é
muito leigo nisso, nesse negócio de... Eu não entendo nada da seção de câmara, é
um vereador dormindo, outro cochilando, sabe. E a gente não entende nada. E ali
eles vão votando coisas... e ninguém nem aí, né. E aí eu não consigo entender como
acontecem os processos. Então na verdade, nosso grupo está muito assim, a gente
não sabe o que está acontecendo. Ninguém diz para nós. Se as coisas fossem
esclarecidas, nós estaríamos muito calmos, não estaríamos com essa indignação
toda e tal né. E aí a gente fica muito assim, sem saber como agir enquanto redutores
[...].
58
Rafaela - Pois é, isso que a Virginia falou eu achei bem importante... Que de
alguma forma vocês não sabem muito bem qual é o processo [...] E como é que
vocês podem ficar sabendo disso?
Joaquim - Acho que a gente, redutor, tem que começar a participar lá na Câmara,
ver... [...]
Graciliano - Não, eu acho, eu acho que isto aí é função da coordenação, ou no caso
do assistente [...].
Rafaela - Vocês acham então que isto é uma função da coordenação?
Graciliano - Acredito que sim, mas nós devemos estar a par sempre.
Clarice - Mas nada impede que a gente também vá ver o que está acontecendo.
Graciliano - Não impede, a gente tem que estar a par.
Joaquim - Tem que estar par
Virginia – [...] Aí, se a gente dividisse as tarefas dentro do próprio grupo, e
colocasse às claras "Olha, esses são os processos", até que se venha o dinheiro e
comece a funcionar, isso aí facilitaria muito. Porque como a gente não sabia o que
fazer... (Virginia, Joaquim, Graciliano e Clarice, redutores de danos; Rafaela,
pesquisadora).
Vemos aqui a noção da existência de uma divisão de tarefas dentro da equipe, onde
caberia à coordenação assumir as tarefas relacionadas às questões de participação política e
encaminhamentos “burocráticos”, no sentido da garantir a sustentabilidade do programa.
Muitas vezes, por questões de organização do trabalho e de uma divisão de saberes – da qual
trataremos no item 7.3 -, o redutor acaba se dedicando somente às atividades de “campo”, não
realizando atividades ligadas à participação e representação políticas, apesar de as
coordenações, em geral, terem afirmado que tal participação é importante. Nesta divisão de
tarefas, onde apenas alguns possuem o domínio das informações sobre os mecanismos
“burocráticos” e de participação, perde-se a possibilidade de que mais integrantes do
movimento social venham a criar e redesenhar o cenário político. Além disso, opera-se de
modo a não possibilitar o resgate da cidadania
38
dos próprios integrantes.
Se pensarmos que o início da implantação da RD no Estado deu-se há 10 anos,
podemos dizer que já se avançou bastante. Tanto regional quanto nacionalmente muitas
articulações vêm sendo pensadas e executadas, gerando apoio político, financeiro e técnico,
bem como transformações na legislação e políticas existentes (vide item 6.1 do capítulo 6).
Entretanto, vários avanços poderiam ser ainda pensados, como uma maior visibilidade do
usuário de drogas como cidadão mediante a participação na construção de Políticas Públicas
através de representações específicas (já existentes nos COMEN e CONEN) e da criação de
38
Segundo Sherer-Warren, a origem da noção de cidadão remonta à polis grega, onde nasce com uma dimensão
de manutenção da hierarquia e exclusão social: escravos, mulheres e crianças não são cidadãos, e não possuem
direito á participação política. Com a modernidade, diversas correntes ideológicas e políticas vem ampliar esta
noção: do liberalismo vem a idéia dos direitos individuais e a consciência da liberdade como valor primordial; da
democracia a ênfase na igualdade de direitos políticos; do socialismo a igualdade social e econômica; dos novos
movimentos sociais os direitos de terceira geração (étnicos, de gênero, ecológicos, etc.) (SHERER-WARREN,
1999).
59
novos espaços como as redes de usuários de drogas
39
. Além disso, pensamos ser muito
importante poder incentivar a rotatividade de funções dentro de uma mesma equipe de
trabalho, para que mais redutores de danos possam apropriar-se das formas de já existentes de
participação política bem como da construção de novos mecanismos, adquirindo experiências
que poderão estar utilizando nas comunidades como um disparador para o controle social e
resgate do papel da sociedade civil perante o Estado.
39
Domânico afirma que a criação de espaços de legitimidade aos usuários de drogas facilitaria a implementação
de estratégias preventivas: garantiriam aos usuários de drogas o direito à saúde e às várias formas de cuidados
que o uso de drogas exige (DOMÂNICO, 2001). Há na RMPA uma tentativa criação de uma rede estadual de
usuários de drogas (a RUDE). Além disso, no ano passado iniciou-se em Porto Alegre um movimento
antiproibicionista – o “Princípio Ativo” –, organizado por usuários de drogas e simpatizantes, que lutam por uma
mudança na política de drogas, mais especificamente pela legalização da maconha (http://www.principio-
ativo.blogspot.com). O assunto da legalização, porém, não é consenso no movimento social de RD.
60
5. Entre o Público e o Privado
Rafaela - Quais as maiores dificuldades relacionadas ao trabalho?
Helena - Eu acho que essas que eu estou te falando, dessa mistura, dessa falta
estabelecimento de uma linha que possa separar uma coisa da outra [...] o que é
privado e o que é público, o que é pessoal e o que é o profissional. (Helena,
coordenadora; Rafaela, pesquisadora).
A percepção de uma falta de separação ou de certa confusão entre o Público e o
Privado apareceu espontaneamente e de diferentes formas nas falas dos participantes da
presente pesquisa, constituindo-se em um dos atravessamentos discursivos que pretendemos
analisar na presente dissertação a partir da ferramenta genealógica. A partir das experiências
relatadas, pudemos perceber a existência do atravessamento da relação público–privado em
diferentes níveis de práticas: desde a relação entre os trabalhadores em RD e os gestores
municipais ou trabalhadores do SUS (incluindo a formação de parcerias e as trocas de gestão
municipais), até a relação dos trabalhadores com os instrumentos utilizados em seu trabalho
ou com a comunidade. Comecemos nossa análise investigando os atravessamentos
experimentados pelos trabalhadores em RD nas suas relações com os serviços e entidades que
são seus parceiros de trabalho. Lembramos aqui a importância do trabalho em rede para o
bom andamento das ações em RD. Como vimos no capítulo três, todos os locais com ações
diretas na comunidade possuem uma boa relação de parcerias. Tal como os ACS e os
PACS/PSF, os PRD e os redutores de danos têm sido uma ponte entre a comunidade e os
serviços de saúde - mais especialmente entre os usuários de drogas e sua rede de interação
social e os serviços de saúde. Para realizar atividades como prevenção ao HIV,
encaminhamento para testagem e tratamento de HIV/aids, atendimento aos moradores de rua,
população carcerária, profissionais do sexo, capacitação de multiplicadores, encaminhamento
e acompanhamento para tratamento em dependência química, encaminhamento para consultas
de saúde, atividades de geração de renda, vacinação para hepatites, atividades culturais,
reuniões comunitárias, participação em Conselhos de Saúde, dentre outros, os trabalhadores
em redução de danos precisam ter uma boa relação com toda uma rede de serviços dentro e
fora da comunidade onde atuam.
Porém, esta relação nem sempre é satisfatória, tendo sido colocada como uma das
maiores dificuldades do trabalho em redução de danos tanto por coordenadores quanto pelos
redutores de danos (vide tabela 8). Um dos grandes atravessamentos responsáveis por esta
dificuldade parece ser aquele dos enunciados referentes às drogas e seus usuários e à aids e
61
seus portadores, cujos jogos de verdade buscaremos explicitar no capítulo 6. Por hora
podemos afirmar que a visibilidade negativa que estes personagens possuem em nossa
sociedade acaba gerando julgamentos morais e dificultando as parcerias muitas vezes
indispensáveis ao trabalho. Além deste, o atravessamento da relação entre o público e o
privado também se faz presente na organização e práticas do trabalho em RD.
No caso da interação entre os trabalhadores em RD e as instituiçõesparceiras”,
podemos afirmar que relações que deveriam ser construídas e mantidas institucionalmente
acabam por ser, na maioria das vezes, pessoais:
... então algumas pessoas que nos davam apoio acabaram saindo por que mudou as
alianças, e outras pessoas que eu nem esperava... Ontem eu fui lá na Cultura e tinha
uma pessoa que era de um partido que sempre se mostrou muito contra, não contra,
mas daqueles que não é nem contra nem a favor, mas também não faz nada para
ajudar, e então ele se mostrou bem interessado no projeto. (Fúlvia coordenadora e
redutora de danos).
Apesar de a parceria ser realizada entre instituições (PRD e Secretaria da Cultura, por
exemplo), a forma como as pessoas envolvidas nas instituições lidam com a questão do que é
uma relação institucional, e do que é uma relação pessoal, é determinante da continuidade ou
descontinuidade nas alianças institucionais em uma mudança de gestão e de cargos. No caso
aqui relatado o novo secretário de Cultura era pessoalmente favorável à RD, o que trouxe
apoio às ações do PRD.
De acordo com Sérgio Buarque de Holanda essa preferência por relações pessoais e
afetivas ao invés das relações impessoais características do Estado, são características que nos
acompanham desde a colonização do país, e refletem o modo como fomos subjetivados
politicamente. Para o autor, a família patriarcal fornece o modelo por onde as relações entre
governantes e governados, monarcas e súditos são calcadas. Assim, a instância privada
precede sempre à pública, e as preferências fundadas em laços afetivos marcam nossa vida
pública, caracterizando uma comunidade doméstica, particularista e antipolítica (HOLANDA,
1995). Para melhor caracterizar tal forma de subjetivação Sérgio Buarque de Holanda retoma
e transforma o conceito de Ribeiro Couto para nos falar do “homem cordial”:
O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos
comportamentos de aparência afetiva, não necessariamente sinceras nem profundas,
que se opõem aos ritualismos da polidez. O homem cordial é visceralmente
inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do
indivíduo, e não de sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na
intimidade dos grupos primários (HOLANDA, 1995, p.17).
62
Assim, de acordo com o autor, o brasileiro não acha agradáveis as relações impessoais
características do Estado e busca reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo das “relações de
simpatia”. Isso não quer dizer que as parcerias institucionais não sejam feitas, mas que estas
só conseguem ter espaço se os “indivíduos” representantes de cada instituição possuem uma
relação pessoal “saudável”.
Assim, voltando ao nosso campo de estudo, podemos dizer que é desta relação
“pessoal - institucional” que geralmente dependem as possibilidades de atuação de um PRD
ou ações, segundo o apoio político, técnico e financeiro que irá ter ou não. Assim, a cada
mudança de gestão, a cada ano eleitoral, a cada troca de pessoal dentro de um serviço deve
haver uma nova negociação, pois as parcerias antigas podem desfazer-se, ou ficar “em
suspenso”, esperando por uma retomada e pelo aval da nova gestão para continuarem valendo.
Agora a gente vai retomar as parcerias porque mudou coordenação, mudou
secretarias, mudou um monte de coisas. A gente tentou uma parceria com o
(serviço de atenção à criança e adolescente), mas a gente nunca conseguiu [...] e
não fui só eu que não consegui: o pessoal da Educação também tentou e não
conseguiu. Eu não sei quem é que está coordenando agora, se ainda é a mesma
pessoa, mas eu tentei várias vezes e a gente não conseguiu. (Helena, coordenadora).
Ao invés de a inserção da redução de danos em um município obedecer às diretrizes
dadas pela legislação vigente, ou mesmo por uma programação institucional de governo, ela
se mostra constantemente atravessada por preferências pessoais de gestores, coordenadores e
funcionários. Da mesma forma que a troca de gestão pode significar o desmoronamento de
antigas parcerias, pode também constituir novas:
... E hoje também a rede, como está mais aberta, e o próprio vínculo, hoje
felizmente nessas Unidades de Saúde a coisa fica mais aberta. Porque na gestão
passada nós tínhamos duas técnicas de enfermagem que eram contra a Agente de
Saúde entregar um preservativo ou a alcançar uma seringa. Eu não sei que visão
elas tinham disso, tu está entendendo, mas a gente capacitou elas, elas foram todas
capacitadas: as técnicas e as Agentes. Eu não sei qual era visão que ela tinha disso,
que elas não deixavam as agentes... (Érico, redutor de danos).
Com a saída das técnicas de enfermagem que eram contrárias à proposta da Redução
de Danos as trocas de seringas e entregas de preservativos na comunidade puderam ser
realizadas pelos ACS
40
. Apesar da existência de uma legislação federal que incentiva o
trabalho com RD na Atenção Básica (BRASIL, 2004b), e de uma portaria que regulamenta as
40
Em muitos Postos de Saúde a entrega de preservativos somente é feita mediante um cadastro, onde a pessoa
vai com seus documentos até o Posto e lá retira os preservativos. Porém, esta metodologia dificulta o acesso para
a população usuária de drogas, que muitas vezes em função do preconceito e ilegalidade prefere manter-se no
anonimato. Dificulta também para população moradora de rua e outros que não possuem documentação e/ou
comprovante de residência.
63
ações de Redução de Danos no âmbito do SUS (BRASIL, 2005a), o determinante no
momento da inserção de ações da RD foram questões de ordem privada. O posicionamento de
um gestor acerca da importância e de seu interesse pela RD pode ser determinante, inclusive,
na disponibilidade de materiais para a concretização do trabalho:
...[o veículo do PRD] nunca funcionou como pedia no projeto. Uma hora era a
desculpa era que não tinha motorista, aí o secretário começou a usar para ele, para
os compromissos dele, aí depois passou a ser usado para os outros serviços... todo
mundo usava, menos o PRD. Era uma época também que dentro da secretaria o
PRD era rejeitado. Então tinha uma resistência dentro da secretaria mesmo. Todos
os assuntos referentes à redução de danos, todo mundo torcia a cara, o próprio
secretário, os funcionários, tudo era mais difícil. Nos últimos anos, mudou
secretário de saúde, e aí o novo secretário de saúde tinha uma outra formação, uma
sensibilização muito diferente, e aí a redução de danos teve um reconhecimento
bem diferente. Foi quando a gente pode usar [o veículo] mesmo que limitadamente,
porque tinha problemas de motorista, mas se pôde utilizar...
(Matilde,
coordenadora).
Apesar de estar colocado no projeto (que é um documento oficial) o pertencimento do
carro ao PRD bem como as formas de funcionamento do veículo, o cumprimento destas
normas depende da sensibilização do gestor com relação à RD. Assim, os trabalhadores
acabam ficando numa postura de refém com relação às preferências pessoais daqueles que
“mandam”, sejam gestores ou coordenadores de serviços. Com esta predominância do privado
sobre o público nos é colocada uma questão muito importante com relação às formas de
implantação e garantias de continuidade da RD. Como já afirmamos anteriormente, o próprio
movimento social em Redução de Danos ressalta a necessidade lutar por Políticas Públicas,
para garantir as ações como políticas de Estado. Por outro lado, a conquista de uma lei que
regulamente e apóie as ações infelizmente não é suficiente para garantir a real introdução da
proposta nos locais de trabalho, que por vezes depende de mudanças mais complexas de
pensamento, modos de trabalho e modos de vida da sociedade.
A mesma complexidade se dá com relação aos princípios do SUS e à Reforma
Psiquiátrica que, apesar de garantidos por leis e fruto de diversas lutas da sociedade civil
organizada, nem sempre conseguem ser efetivados nas práticas dos trabalhadores em saúde.
Com relação aos efeitos da Reforma Psiquiátrica nos modos de trabalhar, e nos processos de
subjetivação dos trabalhadores em saúde mental, Raminger afirma que um imperativo ligado à
necessidade de a Reforma dar certo, mesmo sem a implicação militante dos trabalhadores,
acaba sendo fonte de sofrimento para os mesmos, pois impede uma prática reflexiva e coloca
um imperativo de verdade (RAMINGER, 2005, p.94). Segundo Amarante (2002), a Reforma
Psiquiátrica envolve um processo complexo, onde devem estar presentes transformações de
64
caráter epistemológico (reconstrução teórica nas áreas da saúde mental e psiquiatria),
assistencial (invenção de novos dispositivos de cuidado), jurídico-político (modificação nas
legislações) e ainda cultural (imaginário social sobre a loucura). Assim, vemos que uma
legislação que implica uma nova forma de trabalho deve estar acompanhada de diversos
dispositivos externos a ela mesma, incluindo uma possibilidade de reflexão, criação e
implicação por parte dos trabalhadores e demais membros da comunidade.
Na ausência de espaços de reflexão e educação continuada para os trabalhadores em
saúde, torna-se difícil uma mudança do paradigma de atenção.
A gente vem há anos já tentando mediar com a saúde mental uma proposta de
trabalho digna: já propusemos busca ativa, propusemos que se criasse um grupo
onde os redutores participassem... Por que o que acontece aqui em (município) é o
que acontece em muitos municípios, sabe, onde, tudo bem, veio uma verba para a
construção de CAPSad e se cria o CAPS com médicos que são absolutamente
contrários a redução de danos. Aí o cara chega lá aí diz "Ah não, eu vou no (PRD)
assim e assim, o pessoal faz troca comigo". "Não precisar vir mais, ou pára com
isso vai tomar os remédios". Quer dizer, troca a ilícita pela lícita, não precisa mais
nem negociar com o traficante, porque é só pegar na farmácia. Talvez seja sonho da
gente, mas nós vamos tentar. (Yolanda, coordenadora).
Os CAPSad foram criados no contexto da Reforma Psiquiátrica (de onde também
nasce a Redução de Danos), para serem serviços alternativos ao modelo de internação ligado à
psiquiatria (BRASIL, 2002a; BRASIL, 2002b
41
). Porém, muitos CAPSad trabalham visando
unicamente o imperativo da abstinência através da utilização de medicamentos prescritos, e
mesmo da internação compulsória em Hospitais Gerais ou Psiquiátricos, não abrindo a
possibilidade de uma parceria com a Redução de Danos nem da inserção deste tipo de ação no
serviço. Esta parceria, no entanto, encontra-se respaldada por lei, incluindo financiamento
para as ações e garantia de participação de redutores de danos dentro do serviço (BRASIL,
2005b
42
). Apesar destas garantias legais, a coordenação acima citada se coloca em uma
posição de tentar “conquistar um sonho” de parceria, denunciando a insuficiência da
legislação na efetividade do trabalho.
Segundo Carvalho,
41
Respectivamente: Portaria nº. 336, de 19 de fevereiro de 2002, que estabelece o recadastramento dos CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial) e cria cinco tipos diferentes de CAPS: CAPS I (até 70.000 habitantes), CAPS
II (até 200.000 habitantes). CAPS III (acima de 200.000 habitantes), CAPS i (atendimento específico para
crianças e adolesscentes) e CAPS ad (atendimento específico para usuários de álcool e outras drogas); e
Portaria nº. 817, de 30 de abril de 2002, que institui as formas de organização, regulação e financiamento dos
CAPSad com procedimentos e valores de financiamento para internação exclusivamente em Hospitais Gerais.
42
Portaria nº. 1.059 de 4 de julho de 2005, que destina incentivo financeiro de R$ 50.000,00 anuais para o
fomento de ações de redução de danos em CAPS ad, incluindo o trabalho de campo, distribuição de insumos, e
agentes redutores de danos vinculados aos serviços.
65
Embora o desenvolvimento crítico dos indivíduos não seja suficiente para a
transformação da sociedade, ele é absolutamente necessário para que ela ocorra,
uma vez que o envolvimento em processos de mudança demanda um mínimo de
percepção do poder individual que sustente um processo produtivo de convivência
em espaços coletivos (CARVALHO, 2004, p.1092)
.
Assim como o exercício da reflexão dos indivíduos não é suficiente, mas é necessário
à transformação dos paradigmas de atenção, também a conquista de Políticas Públicas é
fundamental, mas não suficiente. Desta forma, a luta do movimento social parece envolver
transformações relacionadas aos modelos de atenção (no sentido teórico e das práticas), a
cultura e também a legislação.
Outro atravessamento da relação público – privado nas práticas de trabalho e na
subjetividade dos trabalhadores em RD é a indicação política (e não técnica) de trabalhadores
e coordenadores de PRD por parte dos gestores.
...Mas é uma coisa assim, que cada um de nós tem uma história. Não é de varde que
a gente cai numa redução de danos, de pára-quedas. Eu sempre digo para Cecília
que as nossas coordenadoras de redução de danos do PRD, talvez até tu conheça
algumas né... caíram de pára-quedas. Porque não conheciam nada. E aprenderam
com a gente, tudo. Aprender a fazer redução de danos, aprenderam a fazer o
programa, aprenderam da palestra, aprenderam a fazer uma reunião tudo com os
redutores de danos. (Julieta, redutora de danos).
Quando o PRD é vinculado diretamente à OG, nos casos de trocas de gestão pode
haver a troca tanto de coordenadores quanto da equipe como um todo, o que interfere na
continuidade do programa e ações. Na fala desta redutora podemos pinçar a idéia (bastante
difundida em nosso país) de que mais vale uma indicação do que a capacidade para conseguir
um determinado trabalho. Nesta mesma direção, Holanda afirma que desde o Brasil colonial a
escolha de quem exerce um cargo se dá mais por uma questão de confiança pessoal do que
por capacidades próprias ou técnicas (HOLANDA, 1995). Esta herança parece ter sido
absorvida, repetindo-se hoje em dia, por exemplo, quando cargos em um Programa de
Redução de Danos são vistos como cargos de confiança, portanto, passíveis de serem
modificados em uma troca de gestão. A modificação é realizada, no entanto, sem que se
atente para possíveis prejuízos de uma troca na equipe em termos de continuidade do trabalho
e de vínculos já estabelecidos com os usuários de drogas em campo.
Rafaela - Mas isso que eu não entendi, porque é que eles saíram, foram demitidos?
Nelson - Porque é que eles saíram? É porque era cargo de confiança.
Rafaela - Então eles eram cargo de confiança?
Nelson - Não é que eles eram... O programa pode ser pelo Ministério, mas as
pessoas... é um cargo de confiança. Os coordenadores da equipe... tem a prefeita e o
secretário de saúde que estão vinculados a... por que o dinheiro, nós temos uma
conta, e o dinheiro vem para a conta do PRD. [...] Por que, por exemplo, se um¢ for
66
gasto indevidamente, quem tem que responder judicialmente é o prefeito. (Nelson,
coordenador; Rafaela, pesquisadora).
Aqui se entende que os cargos dentro de um programa ou ação em redução de danos
são “cargos de confiança”, mesmo quando não se trata literalmente de algum funcionário que
seja filiado ao partido governista do município. A expressão cargo de confiança é usada para
justificar que a relação pessoal de confiança entre o gestor e os trabalhadores é vista como
fundamental, justificando demissões na equipe mesmo que isso implique em uma modificação
ou prejuízo na linha de trabalho. Neste caso, a relação de confiança é ligada não ao tipo de
trabalho que será realizado, mas ao financeiro: deve-se confiar em quem vai administrar o
dinheiro do município. Algumas vezes, quando há este tipo de indicação política para ocupar
um cargo de coordenação ou de redutor de danos, podem assumir pessoas que não possuem
um comprometimento com os princípios da RD, nem uma preocupação em desenvolver um
trabalho dando seguimento ao trabalho anterior, causando um desconforto entre os
trabalhadores e também na população atendida:
O trabalho que eles pensam para o redutor de danos é, aproveitando o vínculo que o
redutor tem com o usuário, é levar o usuário para um tratamento de abstinência [...]
Não admitem o redutor como usuário, se é usuário, tem que parar [...] até mesmo
com ameaças do tipo testagem de urina... (Matilde, coordenadora).
Nesta fala, uma coordenação refere algumas conseqüências ocasionadas em função da
troca de gestão e de uma indicação política em um PRD: a própria linha de trabalho ficou
ameaçada, trazendo uma possibilidade de descaracterização da proposta. Se pensarmos que
uma das idéias de sustentabilidade das ações é a inserção da RD no SUS, podemos refletir
sobre o risco de que situações como essas venham a ocorrer com maior freqüência. Como já
afirmamos no capítulo três, a possibilidade de descontinuidade da linha de trabalho em função
das trocas de gestão foi encontrada somente em programas vinculados à OG. Até hoje, mesmo
com tais trocas, a RD vem conseguindo se manter: seja porque parte da equipe que permanece
consegue sensibilizar os novos para a proposta, seja porque o movimento social ou mesmo o
Estado buscam capacitar os indicados. Entretanto, esta é uma questão sobre a qual o
movimento busca refletir com cuidado.
Se por um lado as relações pessoais podem atrapalhar o trabalho das organizações
quando não são favoráveis, elas podem ajudar quando tais relações favorecem. Segundo
Foucault, conhecer os jogos de verdade é fundamental para podermos entender as regras e,
como não é possível transformar nada estando fora do jogo, podemos então tentar jogar com
67
um mínimo de dominação (FOUCAULT, 2004b). Sabendo que as relações pessoais são as
que predominam, os trabalhadores em RD (assim como muitos outros) também se utilizam
desta estratégia no seu cotidiano. Uma das maneiras é a já citada sensibilização de gestores e
equipes de saúde, de onde esperam obter parcerias para um trabalho integrado. Nesta mesma
direção, podem se utilizar de relações favoráveis para a troca de favores como conseguir
vagas de internação, encaminhamentos para consulta, apoio para uma ação.
A gente tem uma relação muito boa com o pessoal do AA daqui, que o presidente
do AA é muito meu amigo. (Fúlvia, coordenadora).
Um risco que se coloca é o de ficar preso neste processo de captura do público pelo
privado e acabar não exercendo o papel de representante de um movimento social que busca a
transformação. Em alguns de nossos relatos a materialização deste risco se apresentou na
possibilidade de uso privado do equipamento público.
A coisa do carro também sempre foi motivo de briga, discussões. Que o carro
também acaba sendo usado como um carro particular, para resolver problemas
pessoais. E muitas vezes, muitas vezes mesmo [...] a gente precisava do carro para
trabalhar e o carro não estava lá na hora que a gente combinou. (Helena,
coordenadora).
Em função da predominância do privado sobre o público, pode haver uma mistura
entre o que é “meu” e o que é “público”, resultando em uma relação de posse pessoal de
objetos e materiais destinados ao programa. Este tipo de confusão pode influenciar
diretamente nas atividades dos redutores de danos como, neste caso, em relação à
disponibilidade ou não de materiais para o trabalho no momento necessário. O uso privado
daquilo que é público pode ser utilizado ainda como forma ineficiente de “resistência” a uma
demissão, ou a um salário baixo. Exemplos disso seriam “boicotes” como levar para casa os
dados do trabalho até então realizado para dificultar para a nova gestão, “queimar o filme” do
programa em uma comunidade para impedir a entrada de novos redutores (por exemplo,
dizendo que o redutor ou o programa possuem um conchavo com a polícia), ou ainda vender
equipamentos que seriam distribuídos pelo programa. Raros foram os relatos de ocorrências
neste sentido, mas é algo que o movimento e os trabalhadores devem atentar para evitar a
captura neste jogo clientelista-patrimonialista.
Podemos dizer, enfim, que diversos são os atravessamentos da falta de uma clara
divisão entre o que é Público e o que é Privado. Na relação dos trabalhadores em RD com os
serviços e entidades que são seus parceiros de trabalho, o público-privado se atravessa na
68
forma de relações que deveriam ser institucionais, mas são pessoais, podendo gerar
descontinuidades, indicações políticas prejudiciais e ainda sobrepor preferências pessoais à
legislação existente. Estas relações nos levam a pensar na forma como nos subjetivamos
politicamente e na complexidade necessária à mudança de paradigmas de atenção. Por fim, há
de se cuidar para não cair no risco de ficar preso na captura do público pelo privado e acabar
reproduzindo relações perversas, ao invés de produzir resistências. Todos estes
atravessamentos, além de pautar as práticas dos trabalhadores, operam na forma como se
percebem na relação com seu trabalho, colocando desafios e riscos sobre os quais é necessário
refletir.
6. Jogos de verdade sobre drogas: diferentes formas de governo de si e dos
outros
43
.
Só são três instituições que entendem o uso de drogas na nossa sociedade: a saúde,
a justiça, e a religião. A saúde vê no uso de drogas, uma doença, a justiça vê no uso
de drogas um delito, e a religião vê no uso de drogas um pecado. Uma pessoa que
usa drogas, ela sabe que o que ela faz está visto por essas três instituições. Qual é o
caminho do doente? O hospital. Qual é o caminho do delinqüente? É a cadeia. Qual
é o caminho do pecador? É o inferno. Ele vai agir de acordo com aquilo que se
espera dele! Se nós criarmos um quarto conceito que é o conceito que a gente
precisa criar para entender a redução de danos, que é o conceito de cidadania, ver o
uso de drogas não como doença, não como delito, não como pecado, mas com uma
questão de direito, a gente muda o conceito. E como cidadãos e cidadãs de direito,
as pessoas são muito mais felizes independentemente do que elas usam. (Machado,
coordenador).
No presente capítulo, buscamos explorar como as racionalidades presentes nos jogos
de verdade sobre as drogas se apresentam na produção de subjetividade do redutor de danos
enquanto trabalhador. Como podemos observar na fala acima, cada regime de verdades sobre
as drogas vai se refletir em diferentes estratégias de “atenção/repressão” ao usuário, definindo
com isso a que tipo problemas dará visibilidade, as formas como tais problemas devem ser
tratados, as linhas de pensamento em que se baseiam, e o tipo de indivíduo que almejam
produzir. Consideramos, então, que cada estratégia se constitui em uma forma de governo de
si e dos outros, possuindo uma racionalidade própria
44
. Analisar estas diferentes
43
Este capítulo contém fragmentos do artigo “Marginalidade ou Cidadania? A rede discursiva que configura o
trabalho do redutor de danos”, escrito em conjunto com Henrique Caetano Nardi. In: Psicologia em Estudo,
Maringá, v. 10, n. 2, p. 165-173, mai./ago. 2005.
44
Revel afirma não existe razão sem o seu inverso, a desrazão. Em um dado momento na nossa cultura a razão
exerce “uma captura sobre a não-razão para lhe arrancar sua verdade, então, passa a existir um corte entre o
normal e o patológico, entre a razão e a não-razão (REVEL, 2002, p.51). Segundo a autora, Foucault faz uma
critica a razão construída como forma de normalização da população, e faz uma cuidadosa diferenciação entre
razão e racionalidade, posto que a confusão entre ambas
se apresenta como estratégia de poder. A história crítica
69
racionalidades irá nos auxiliar a desnaturalizar os regimes de práticas e os jogos de verdade
presentes em cada uma das formas de entender/lidar com uso/abuso de drogas.
Os regimes de práticas são práticas institucionais entendidas como os modos
costumeiros e rituais a partir dos quais fazemos coisas - como cuidar, educar, aconselhar - em
certos locais e em determinados momentos; em uma analítica do governo examinamos as
condições sob as quais os regimes de práticas surgem, são mantidos e transformados. (DEAN,
1999, p.21). Assim, a analítica de governo permite entender que as práticas poderiam ser
diferentes daquilo que são hoje, abrindo espaço para inovações e formas de resistência. Dean
retoma de Deleuze quatro dimensões para a análise dos regimes de práticas: o exame dos
campos de visibilidade do governo, a preocupação com o aspecto técnico do governo
(techne), a abordagem do governo como uma atividade racional e refletida (episteme) e a
atenção à formação de identidades (ethos) (DEAN, 1999).
Para Dean, a perspectiva daqueles que procuram governar é de considerar que a
conduta humana pode ser regulada, controlada, modelada e modificada para fins específicos
(DEAN, 1999). O autor propõe uma analítica de governo partindo do conceito foucaultiano de
governamentalidade. O termo governamentalidade, num sentido amplo, se refere a uma
junção dos termos governo e mentalidade, e lida com o como nós pensamos sobre o governo,
com as diferentes mentalidades de governo. Segundo o autor, a mentalidade aqui é entendida
como um pensamento coletivo dos corpos de conhecimento, crenças e opiniões que temos
coletivamente acerca do governo. Assim, o termo governamentalidade se refere ao
entendimento de que o que pensamos sobre exercer autoridade (sobre os outros, o Estado ou
nós mesmos) se desenha a partir de teorias, idéias, filosofias e formas de conhecimento que
são parte dos produtos culturais e sociais
45
(DEAN, 1999).
Podemos iniciar nossa análise das diferentes racionalidades existentes nas distintas
formações discursivas sobre drogas retomando a elaboração já existente de classificações, que
a partir destes discursos identificam diferentes “modelos preventivos”. Acselrad (2000)
mapeou alguns destes modelos, elaborados pelas autoras Helen Nowlis e Ana Kornblit com
base nas variáveis drogas, indivíduo e contexto social. Segundo Acselrad, Nowlis identifica
da razão é aquela que mostra a transformação das racionalidades, o que quer dizer que não existe uma verdade,
mas diferentes racionalidades que foram sendo transformadas ao longo do tempo.
45
Foucault propõe entender a governamentalidade de três formas: primeiramente, como um conjunto de
instituições, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer o poder tendo a população como alvo
principal, a economia política como forma mais importante de saber, e os dispositivos de segurança como
instrumento técnico essencial. Segundo, como um tipo de saber que se pode chamar governo – soberania e
disciplina; e terceiro, como resultado de um processo de transformação do estado, mais especificamente, de
governamentalização do Estado, que segundo o autor, permitiu a sobrevivência do mesmo. Nesta dissertação
estaremos utilizando, sobretudo, os dois primeiros sentidos (FOUCAULT, 2004c).
70
quatro modelos de discursos sobre drogas: o jurídico-moral, o de saúde pública, o psicossocial
e o sociocultural
46
. O jurídico-moral busca, através da punição ou ameaça de punição, manter
o indivíduo afastado do consumo de drogas, considerado um comportamento indesejável (e
criminoso). O modelo de saúde pública considera o uso de drogas como doença baseado na
racionalidade da prevenção às doenças infecto-contagiosas: quanto menos agentes
transmissores (usuários) em circulação, menos chances de a população vir a se contaminar;
devem-se isolar os usuários, e considerar seu desejo como obstáculo ao tratamento. No
modelo psicossocial retoma-se a importância de fatores sociais e culturais no contexto do
consumo, bem como o lugar do indivíduo na participação da execução de projetos
preventivos; todavia, o objetivo continua sendo somente a abstinência e se incorre na
culpabilização do indivíduo em caso de fracasso nesta meta. Já no modelo sociocultural o
foco de transformações é somente no contexto social, considerado responsável pelos
“comportamentos indevidos”. Kornblit identifica também quatro modelos: o ético-jurídico,
semelhante ao jurídico-moral de Nowlis; o médico-sanitário, que considera o usuário um
doente a ser tratado; o psicossocial e o sociocultural, também semelhantes aos de Nowlis
(ACSELRAD, 2000, p.176-180).
Acselrad afirma que estes modelos incorporam enunciados pedagógicos autoritários,
propondo o “bem de todos” exclusivamente por meio da abstinência, não considerando os
diferentes tipos de usos de drogas. Da mesma forma, através de técnicas e racionalidades
diferentes, todos excluem o usuário da elaboração de programas referentes à prevenção e
tratamento, não atuando na formação de sujeitos de reflexão e ação. Neste sentido, a autora
propõe a construção de um “discurso democrático” sobre as drogas onde se resgata o saber
coletivo e o diálogo aberto: tanto o professor como o aluno (ou cuidador e indivíduo) é
considerado agente de transformação, não mero sujeito de repetição. No discurso democrático
há um compromisso político com a democracia e com a expansão da liberdade do sujeito; a
experiência da droga é reconhecida como parte da condição humana, e a abstinência uma
opção individual. Assim, aprofunda-se a reflexão sobre os riscos, mas o objetivo central é a
redução de danos (e não do próprio risco, inerente à vida) (ACSELRAD, 2000, p.186).
46
O que a autora chama de discursos, em uma perspectiva foucaultiana, deve ser entendido como os distintos
arranjos enunciativos que correspondem a uma formação discursiva e a um determinado regime de verdades.
Para Foucault, “no caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, [um]... sistema de
dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se
puder definir uma certa regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações),
diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva... “. (FOUCAULT, 1997, p.43). Segundo o
autor, o enunciado pertence a uma formação discursiva e tem sua regularidade definida por ela.
71
Dentro das redes enunciativas que configuram o campo de ação e a subjetividade dos
redutores de danos estão as diversas formações discursivas sobre as drogas com suas
diferentes racionalidades. Cada uma carrega distintas formas de legitimar um conhecimento
que se traduz em verdades acerca do usuário, seu corpo, sua moral, suas formas de ser.
Foucault afirma que a verdade está em relação direta com as tramas do poder, sendo que:
... não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou
arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que
o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento
(FOUCAULT, 1997, p.30).
Todo saber, portanto, origina-se em relações de poder e é político: para que um saber
exista devem existir condições políticas necessárias à sua “legitimação”. Temos, então, que as
relações de poder e saber - no caso, referentes a algumas formas do fazer em saúde - investem
os corpos humanos e os submetem, fazendo deles objetos de saber. Cabe ressaltar que, para
Foucault, onde existe poder está também presente a resistência. Assim, apesar de estas redes
enunciativas atravessarem as práticas e programas de governo produzindo diferentes
“identidades” para o usuário de drogas e o trabalhador em redução de danos, estas
possibilidades não devem ser confundidas com o sujeito real ou com a subjetividade: os
regimes de governo não determinam formas subjetividade, eles promovem, facilitam,
encorajam (DEAN, 1999, p.30-32). Em outras palavras, tais práticas e programas promovem
um modelo, com o qual o sujeito se confronta, mas de qualquer forma, um modelo que passa
a fazer parte de sua constituição, que baliza a forma como faz a experiência de si.
A partir das falas explicitadas pelos participantes da pesquisa, buscamos aqui analisar
algumas racionalidades presentes em leis, instituições, modelos de atenção e regimes de
práticas, atentando para a forma como atuam na produção de subjetividade do redutor de
danos. Partimos, inicialmente, da racionalidade presente nos modelos propostos acima
citados, porém, buscamos adaptá-los às experiências traduzidas pelas falas dos trabalhadores.
Dividimos aqui os atravessamentos observados em três “modelos”, que chamaremos de
jurídico-moral, médico-moral e saúde-ética. Apesar desta divisão, devemos considerar que os
atravessamentos se produzem em diversas direções; estes atravessamentos múltiplos poderão
ser observados ao longo do texto.
6.1 Modelo jurídico-moral
72
Como já dito anteriormente, Acselrad afirma que o modelo jurídico-moral considera o
consumo de drogas um comportamento indesejável, e pretende manter o indivíduo afastado
dele por meio da punição ou ameaça da punição (ACSELRAD, 2000). Do ponto de vista da
moral, usuários de drogas são “vagabundos”, imorais, pessoas de “espírito fraco”. Nesta visão
o problema está na mente (em um sentido não biológico) e no comportamento da pessoa: a
partir daí se deve agir para poder “recuperar” o indivíduo. Processos terapêuticos passam por
uma reforma espiritual e do comportamento, que pode incluir rezas e uma disciplina rígida de
trabalho (já que o trabalho enobrece o homem), freqüentemente aliado ao enclausuramento,
para que possa “refletir” sobre os erros e então reformar o caráter. Muitas abordagens hoje em
dia veiculam este modelo de atenção (geralmente mescladas com o modelo médico, como
veremos no próximo item), no qual o usuário se recolhe para um lugar afastado da sociedade,
e lá busca a “reforma interior”, voltando ao convívio social “renascido”.
No modelo jurídico-moral o uso de drogas ilícitas é visto como crime (desvio social),
e a informação sobre os perigos (absolutamente trágicos) decorrentes deste uso é uma
proposta preventiva que fortalece e justifica as leis repressivas - a lei se incorpora à educação.
Como todos são passíveis de serem dependentes, o melhor é “não usar nunca” ou “parar para
sempre”. Neste modelo o contexto sociocultural é visto como permissivo, sendo que a crise
atual de valores traria a necessidade de leis duras (ACSELRAD, 2000).
Podemos analisar então, de que forma a legislação sobre drogas tem se constituído no
Brasil. A política de drogas no Brasil tem sido conduzida por várias instâncias: a SENAD
(Secretaria Nacional Anti-drogas) e diferentes Ministérios (Saúde, Educação e Justiça), pelos
CONEN (Conselhos Estaduais de Entorpecentes), COMEN (Conselhos Municipais de
Entorpecentes) e pela sociedade civil organizada. Tal diversidade se reflete na legislação e nas
políticas sobre drogas, as quais possuem orientações até certo ponto controversas. A SENAD,
órgão responsável pela PNAD (antiga Política Nacional Anti-drogas, agora denominada
Política Nacional sobre Drogas em função de atuações do movimento social) é ligada ao
Gabinete de Segurança Institucional e dirigida por um representante das Forças Armadas. A
orientação desta política é a redução da demanda e da oferta de drogas, tendo como
pressuposto básico alcançar uma sociedade “livre das drogas” e a “busca da conscientização
do usuário de drogas ilícitas acerca de seu papel nocivo ao alimentar as atividades e
organizações criminosas” (BRASIL, 2004a, p.13 e 14). De encontro a estes pressupostos, a
PNAD reconhece a estratégia da RD como intervenção preventiva que deve ser incluída entre
as medidas a serem desenvolvidas, sem prejuízo das outras modalidades (BRASIL, 2004a).
De acordo com os princípios adotados pela RD o uso de drogas sempre existiu na sociedade,
73
portanto, uma sociedade livre das drogas seria utópica. Além disso, seu objetivo é o resgate da
cidadania do usuário, e não sua culpabilização. Assim, vemos convergir num mesmo
documento orientações com princípios bastante diversos.
Ainda como marcador da rede enunciativa sobre drogas, encontramos na legislação
brasileira a já citada Lei de Entorpecentes, que define o uso de drogas como crime e/ou
doença, prevendo cumprimento de pena no sistema penitenciário e/ou tratamento – visto
também como pena - para recuperação da dependência (BRASIL, 1976). A lei condena o uso,
a produção e o consumo de certos tipos de substâncias (dividindo as drogas em lícitas e
ilícitas), e coloca o usuário, o produtor e o comerciante das chamadas drogas ilícitas em uma
posição de “fora da lei”, de marginal. Apesar das tentativas de atualização desta lei
47
- que
buscam a criação de um Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), a
reinserção social de usuários e dependentes de drogas, a opção por uma política de redução de
riscos e a retirada do tratamento como pena (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2004) - as
críticas à eficácia do projeto de lei continuam, pois não há critérios objetivos de diferenciação
entre quantidade para uso e para tráfico, nem entre grandes chefes do tráfico e os “aviões”,
mantendo-se o porte ou uso de drogas como crime sujeito a penalidades (IBCCRIM, 2004). A
idéia é promover uma “descarcerização” do usuário, mas não uma descriminalização. O
usuário é, assim, ainda entendido na posição de “fora da lei”.
Em uma direção diversa deste contexto repressivo, a Política do Ministério da Saúde
para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas traz em suas diretrizes o apoio à
implantação da RD como alternativa às propostas “de caráter total, fechado e tendo como
único objetivo a ser alcançado a abstinência (BRASIL, 2003a, p.5). De acordo com este
documento, para que uma política de saúde seja coerente, eficaz e efetiva, deve ter em conta
que distintas estratégias (como o retardo do consumo, redução de danos do consumo e a
superação do consumo) são complementares, e não concorrentes (BRASIL, 2003a).
Nesta mesma direção temos a Portaria nº. 2.197, que redefine e amplia a atenção
integral para usuários de álcool e outras drogas no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde).
Esta “preconiza” a adoção da lógica de redução de danos na Atenção Básica, nos CAPSad
(Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas), ambulatórios e outras unidades
especializadas. A Portaria prevê ainda a criação do Serviço Hospitalar de Referência em
47
Uma primeira tentativa ocorreu com o Projeto de Lei n. 7.134-A, de 2002 – substitutivo que não foi aprovado. Uma
segunda tentativa ocorre com o Projeto de Lei n. 7.134-B (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2004) que, já aprovado pela
Câmara de Deputados, tramita para votação no Senado Federal.
74
Hospitais Gerais, para dar suporte à demanda gerada em outras instâncias de atendimento,
evitando a internação de usuários em hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2004b).
Além disso, o movimento social esperava a assinatura de uma Portaria do MS
regulamentando as ações de RD no âmbito da saúde pública desde 2003. A Portaria nº. 1.028
(BRASIL, 2005a) foi finalmente assinada em 01/07/2005 e divulgada no dia 4 de julho
juntamente com outras legislações
48
. Porém, a conquista fortemente festejada pelo movimento
em RD teve de esperar ainda um pouco mais: no dia 13 de julho, em função da troca do
Ministro, todas as portarias foram suspensas por “até 30 dias” “para análise de impactos
financeiros e apreciação da Comissão Intergestores Tripartite” (BRASIL, 2005c). Somente no
dia 9 de setembro foi publicada uma nova Portaria (BRASIL, 2005d), determinando a entrada
em vigor das Portarias ministeriais 1.028, 1.059, 1.169 e 1.174 e modificando a Portaria 1.027
através da publicação da Portaria 1.612
49
. Assim, surge uma série de novas legislações no
ano de 2005 apoiando e regulamentando as ações de RD em diferentes níveis de
complexidade do SUS.
Vemos, então, que a legislação que parte do Ministério da Saúde vem apoiando e
buscando dar sustentação à proposta da RD, considerando-a como uma importante forma de
atenção à saúde. Apesar disso, as leis que partem do Ministério da Justiça se mostram um
pouco mais controversas, e ainda atuam prioritariamente no sentido repressivo. As leis
constituem, em si, normas para governar um país e uma população. Assim, também possuem
uma mentalidade a respeito do que deve ou não ser governado e de que forma, conceitos estes
que irão atravessar o trabalho e a subjetividade do redutor de danos. Neste contexto, mesmo
com apoio de instituições como o Ministério da Saúde, a construção social/legal proibitiva em
torno do uso/produção/venda de drogas pode configurar o trabalho do redutor de danos como
um trabalho de risco, onde o trabalhador passa a ser inserido na ilegalidade e na
marginalidade, podendo ser visto como alguém “suspeito”, e não como um agente/trabalhador
da saúde:
48
Portaria nº. 1.027, de 1º de julho de 2005, que prevê o tratamento de urgências, overdoses e internações de
até 15 dias de usuários de álcool e outras drogas em hospitais gerais, para municípios acima de 200 mil
habitantes; Portaria nº. 1.059, de 4 de julho de /2005, já citada anteriormente; Portaria nº. 384, de 5 de julho
de 2005, que autoriza os CAPS I ampliarem sua oferta de atendimento para usuários de álcool e outras drogas.
49
A Portaria nº. 1.169 destina incentivo financeiro para municípios que desenvolvam iniciativas de geração de
renda e inclusão social pelo trabalho, beneficiando usuários de saúde mental; a Portaria nº. 1.174 institui o
programa de qualificação dos CAPS e a supervisão clínico institucional; e a Portaria nº. 1.612, de 13 de
setembro de 2005, que aprova as normas da Portaria 1.027 destinando recursos para 12 Hospitais Gerais, ainda
em 2005, para que sirvam de referência nos casos de transtornos associados ao consumo de substâncias.
75
João - [...] No início, eu nunca passei por isso, mas teve alguns redutores que foram
pegos, abordados pela polícia, com o equipamento ali. Se não tivesse alguma
identificação...
Florbela - no [brete] uma vez... deu uma batida, a gente entrou na Kombi. Só que a
gente não estava com [o carro do PRD]. Aí entrou a polícia "Mãos ao alto, mãos
para cima" aí a gente foi saindo devagarinho, e eles foram vendo que a gente estava
de crachá, e daí eles baixaram as armas. Mas se a gente não está com alguma coisa
que identifique, até tu já levou bala né.
Todos falam juntos
Florbela - e isso acontece também né. Se tu não tem uma identificação, até tu dizer
que trabalha na saúde... tu já levou (risos), já levou ou já apanhou...
João - já levou uns cascudos.
Florbela - tem que estar preparado para tudo. (João e Florbela, redutores de danos).
Aqui a suspeita da polícia é provavelmente acionada em função do local onde os
redutores se encontravam: um brete, ou seja, um local onde se faz uso de drogas e, neste caso,
também um local freqüentado por moradores de rua. Em uma lógica repressiva, locais como
este devem ser constantemente “limpos”, e a população que o freqüenta observada e regrada
para manter a “ordem”. Sendo este um local de trabalho dos redutores de danos o mesmo se
aplica a eles, pelo menos até que provem não ser eles mesmos “meliantes”.
Grande parte dos redutores de danos usa um uniforme para o trabalho em campo, que
consiste em um colete ou camiseta com o nome do PRD e uma sacola onde levam os insumos.
Alguns possuem boné, outros utilizam apenas um crachá de identificação. De qualquer forma,
estes recursos são utilizados para que possam ser identificados como trabalhadores. No
começo do relato acima um redutor lembra que no início da inserção da RD vários redutores
foram abordados pela polícia em função do equipamento que carregavam (seringas para
trocas). Hoje em dia, após o trabalho estar mais difundido, raras são as ocorrências de lesões
ou detenção em função do material, mas as “batidas” policiais ainda acontecem: como eles
mesmos referem, “tem que estar preparado para tudo”.
A ilegalidade do uso de drogas também pode trazer outras dificuldades para o trabalho
do redutor, por exemplo, quando o trabalhador tem que entrar em locais que não conhece,
quando não é morador da comunidade onde atua, ou ainda quando não conhece previamente
os usuários e/ou não tem “acesso liberado” aos pontos de uso e venda de drogas. Nestas
ocasiões tarefas como abrir campo e identificar os usuários pode trazer algumas dificuldades,
como áreas “proibidas” e problemas com o tráfico local.
Álvares – Eu tive acho que já umas quatro vezes revólver apontado pra cara
Virginia – Eu não
Rafaela – Trabalhando em campo?
Álvares – Trabalhando em campo. Em (município) tinha uma rua sem iluminação,
e então os próprios traficantes também eram usuários, e aí tinha o pessoal que
cuidava na frente, que também eram usuários, e estavam sobre o efeito da droga ali.
Então qualquer movimento, qualquer barulho, porque eles só enxergavam quando
76
era em cima, porque não tinha iluminação mesmo, e o trabalho era feito à noite, né.
Então seguido quando nós abrimos aquele campo, eles não tinham conhecimento “o
que que vocês estão fazendo aí”? Não sabiam, né. E aí a gente tinha que explicar
com o cara assim [faz gesto de segurar uma arma de grande porte, com os dois
braços, sendo uma mão no gatilho], segurando as armas apontadas para o nosso... e
tinha um também que quando estava sobre o efeito da droga demorava para ver que
era a gente, porque ele era meio ceguinho, e aí ele ficava com aquilo apontando
(risos). “É nós!”, e aí ele ficava com aquilo assim [faz o mesmo gesto]. Mas a gente
já estava acostumado com aquilo, mas mesmo assim a gente não sabia se ele
poderia uma hora atirar, né. [...] (Álvares e Virginia, redutores de danos; Rafaela,
pesquisadora).
Neste exemplo a dificuldade trazida pela ilegalidade do uso e comercialização de
drogas se deu na relação com os usuários e a rede de tráfico, que por ainda não conhecer bem
os redutores e seu trabalho agiram no sentido de defender seu território. A questão da
ilegalidade, portanto, traz um risco pessoal à vida do redutor, já que ele pode ser confundido
com o policial (aquele que, pela racionalidade repressiva, deve “governar” o traficante e o
usuário de drogas através da prisão ou dos “cascudos”), e também com o traficante ou usuário
(alvos da polícia). Além deste risco, a racionalidade punitivo-repressiva do modelo jurídico-
moral traz uma dificuldade no sentido de conquistar a confiança da rede de usuários e da
comunidade, o que é fundamental para o estabelecimento de um vínculo que irá permitir o
trabalho.
Aluisio - Porque ele é um líder comunitário, né, o traficante. E também ajuda. Não
que gente queira sempre se espelhar nisso, mas se a gente não tiver uma licença
numa boca para passar... não adianta, entendeu?
Elisa - Ah, isso é verdade. Eles ficam assim preocupados "O que é que vocês estão
fazendo? Isso aí ainda vai ter polícia, não quero que o meu nome apareça na
polícia... não quero isso não quero aquilo". E aí a gente tem que dar o nosso
currículo para ele, explicar o trabalho está fazendo aquela coisa toda, né. Aí eles
ficam mais confiantes. Assim mesmo, quando nós fomos lá no... no... nos [ponto de
venda], aí o cara disse "Não, não, já estou, com a polícia já estou direitinho, não
quero me envolver mais”, não isso, não aquilo, de jeito nenhum, né, dando uma
entrevista. “Eu já estou pagando, já tem que pagar... de onde já estou enrolado com
eles". Então eles ficam cheio de medo. "Não, não, a senhora é da polícia" (ri).
Aluisio - Nós estava dentro da vila do G. lá, e os cara perguntaram se a gente era da
DENARC
50
, sendo que a gente faz trabalho lá toda quarta-feira. (Aluisio e Elisa,
redutores de danos).
Novamente aqui a ilegalidade produz uma desconfiança, mais especificamente por
parte de pessoas envolvidas com o tráfico, que podem desconfiar que o redutor de danos seja
um agente da polícia interessado em descobrir as redes de tráfico. A todo o momento, então, o
redutor de danos deve relembrar e explicar sua função dentro de campo para obter o apoio dos
50
DENARC = Departamento de Investigações sobre Narcóticos.
77
traficantes locais para seguir com o trabalho. Como bem lembra este outro redutor, a
dificuldade reside na “invisibilidade” das redes de uso e de tráfico em função da repressão:
...quer dizer... o redutor de danos é um agente de saúde, né. E ele tem uma
população específica que ele busca atender, a população usuário de drogas
principalmente as ilícitas aqui, né. Então nós estamos falando de pessoas que
constroem uma rede de relações, de comércio, e essa rede ela é construída... o
controle de qualidade desta rede e que os usuários e vendedores de drogas
constroem, o controle de qualidade desta rede reside justamente no fato de ela
conseguir se manter clandestina né. Uma rede que consegue se manter afastada da
polícia, dos jornalistas, de tudo mais, isto é uma rede bem construída. Ou seja, ela é
construída para que ninguém entre, e é justamente aí que o redutor vai ter que
entrar. (José, redutor de danos).
A legislação repressivo-proibitiva em torno do uso da droga acaba empurrando o
usuário para uma posição de invisibilidade, que é por ele procurada e mantida na tentativa de
garantir sua segurança. Assim, uma resistência inicial por parte da comunidade e
principalmente dos usuários é esperada. Não se pode chegar a campo e simplesmente
perguntar “onde estão os usuários”. É preciso paciência e respeito, para que os próprios
usuários se aproximem gradativamente e se identifiquem. É preciso esperar para aos poucos
quebrar esta invisibilidade, sem que isso signifique colocar a vida e a segurança do usuário
em risco.
Ainda no que se refere aos regimes de práticas evocados pela racionalidade repressiva,
podemos retomar a questão do material que os redutores levam a campo para realizar as trocas
com os usuários. Como já afirmamos no item 2.1 da presente dissertação, a primeira tentativa
de inserção das ações de RD no Brasil, em Santos/SP, foi barrada por uma decisão judicial,
que interpretou como ilegal as trocas de seringas. Esta decisão foi desencadeada pela
interpretação da Lei 6368/76 (Lei de Entorpecentes), cujo Artigo 12 discorre sobre a
produção, fabricação, transporte e venda de substâncias entorpecentes, onde são enquadrados
traficantes e por vezes usuários (já que não há limite de quantidade na lei), incorrendo em
pena de 3 a 15 anos de reclusão e pagamento de 50 a 360 dias multa. O inciso III do parágrafo
2º deste artigo cita que incorre na mesma pena quem “Contribui de qualquer forma para
incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que
determine dependência física ou psíquica" (BRASIL, 1976).
A interpretação obtusa desta lei considera erroneamente que os programas de redução
de danos, em função da troca de seringas entre usuários, se constituiriam como forma de
contribuição para o incentivo e difusão ao uso indevido de drogas. Maria Lúcia Karam,
advogada e juíza, afirma que há uma contradição entre esta interpretação e a norma apontada
78
no artigo 268 do Código Penal, que criminaliza a infringência da determinação do poder
público destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa (KARAN,
2000, p.154-5) - no caso do trabalho dos PRD, a troca de seringas é destinada a prevenir a
aids, as hepatites, dentre outras moléstias. Apesar das contradições, principalmente no início
da implantação da RD aconteceram diversos casos de constrangimentos, lesões corporais e
detenção de redutores de danos e usuários por parte da polícia.
...a gente teve casos da época, quando comecei aqui, de usuários e redutores
apanharem, de tocarem todas as seringas limpas fora. [...] E aí a gente foi na
delegacia de polícia e disse "Olha, a gente tem este trabalho de prevenção à aids, a
gente está procurando conscientizar, desenvolver a cidadania do usuário de drogas,
conscientizar que ele não joga a seringa em qualquer lugar, que pode trazer
transtornos para a comunidade e para ele. Então, a própria polícia não fez mais
aquela repressão em função de a pessoa estar portando seringas, nem de o redutor
estar com material. (Mafalda, coordenadora e redutora de danos).
A prévia sensibilização da polícia atuante nos locais onde os redutores fazem campo,
auxilia em uma diminuição das investidas. O argumento utilizado para a sensibilização vai ao
encontro do artigo 268 do Código Penal relatado por Karam, além de citar a cidadania do
usuário. Tais argumentos também se baseiam na legislação do Ministério da Saúde, que apóia
o trabalho da RD tanto em seu caráter terapêutico, quanto preventivo (considerando-se
diferentes níveis de prevenção). A legislação estadual que regulamenta o trabalho de trocas de
seringas (RIO GRANDE DO SUL, 1999) auxiliou bastante na proteção ao trabalhador com
relação às investidas policiais. Algumas situações de constrangimento, porém, voltaram a
ocorrer em função da ampliação do trabalho e da criação da estratégia de trocas e distribuição
de cachimbos para usuários de crack.
Lia - Eu acho que o problema mais era quando, quando saiu no jornal né, sobre os
cachimbos. Porque eu não sabia que os PM sabiam que a gente era redutora, mas
eles sabiam que a gente era redutora. E quando a gente ficava andando na rua com
esta sacola aí, bendita (ela se refere a uma sacola vermelha da aids) eles paravam a
gente e perguntavam o que é que tinha na sacola. Mas nenhuma vez eles me
pegaram com cachimbo. Eles nos paravam, perguntavam o que a gente tinha na
sacola e aí a gente tinha que abrir.
Rafaela - E seringa tinha?
Lia - A seringa tinha.
Rafaela - E o que é que eles diziam?
Lia - Seringa pode, seringa pode (ri).
Rafaela - E eles não faziam nada?
Lia - Não. Só que eles avisavam, "se a gente pegar vocês com cachimbo...” (ri).
(Lia, redutora de danos; Rafaela, pesquisadora).
Talvez em função de uma maior sensibilização e conhecimento da polícia com relação
ao trabalho dos redutores de danos, as investidas policiais, segundo relatos, se mostraram
79
mais “suaves” com os cachimbos, ficando basicamente na “ameaça verbal” e “batidas” em
busca do material. Mesmo assim, o redutor de danos continuou sendo colocado em uma
posição de suspeito, de quem pode estar infringindo a lei e que deve explicações sobre seu
trabalho. Apesar do constrangimento gerado por estas situações, muitos redutores riem ao
contar tais episódios.
Nos casos citados da busca de sensibilização da polícia para o trabalho desenvolvido
pelos redutores de danos, a resposta parece ficar no âmbito do abrandamento das intervenções
policiais, ou seja, um abrandamento da sua tarefa repressiva.
A gente andou tendo assim, não digo, não digo assim problema, mas deles
(policiais) estarem assim, os usuários estarem sendo abordados de forma rígida,
ríspida, e coisa assim. E a gente falou com a brigada [...] os policiais do PROERD
tem uma postura completamente diferente dos outros, não tem uma postura
agressiva de empunhar armas, eles têm todo um outro tipo de lidar com a situação.
E aí através deles, a gente conseguiu, assim, minimamente, fazer com que eles
tratem melhor pelo menos nossos usuários, os redutores nossos. (Fúlvia,
coordenadora e redutora de danos).
A parceria conseguida com a polícia se refere, antes de qualquer coisa, a um “respeito”
maior com os trabalhadores e usuários, em outras palavras, a um pedido para que os redutores
de danos e os usuários não sofram abordagens agressivas. Trata-se mais de umnão
atrapalhar” o trabalho do que realmente uma parceria. No entanto, outro atravessamento que a
ilegalidade das drogas pode produzir nas práticas de trabalho do redutor de danos, é o risco
que os trabalhadores correm de ter seu trabalho “apropriado” pela polícia de maneira
indevida, para mapear pontos de venda e uso:
Elisa - Exatamente, a gente está fazendo a prevenção. Eles [os policiais] têm que
entender que a gente está fazendo a prevenção das pessoas. A gente não está
levando drogas e nem... eles estão vendo trabalho.
Cecília - E para quê. Aprendi muito isso. Eles têm que saber para que é o nosso
trabalho. Às vezes eles nos seguem para ver onde é que a gente vai entrar. Então
quer dizer, eles estão sabendo que a gente está entrando no brete onde tem usuário.
Só que a gente tem muito cuidado assim, de quando eles estão nos cuidando a gente
não entrar num lugar onde a gente sabe que tem venda de drogas. Porque às vezes
tu entra num lugar onde tem tráfico... e os caras estão cuidando. Então a gente toma
esse cuidado, senão acaba prejudicando nós, né. (Elisa e Cecília, redutoras de
danos).
A ilegalidade do uso e venda das drogas coloca o redutor de danos constantemente
entre a desconfiança da polícia e a desconfiança dos usuários. Em função da desconfiança que
já existe “a priori” na entrada dos trabalhadores na rede de uso e tráfico, uma apropriação
indevida do trabalho dos redutores pela polícia produzirá uma quebra do vínculo conquistado
com a comunidade. Tal quebra pode prejudicar o trabalho a ponto de impossibilitar sua
80
continuidade, se a população entender a presença dos redutores de danos como uma ameaça.
Pode, inclusive, representar uma ameaça à integridade física dos trabalhadores, se a percepção
for de que os redutores entregaram informações à polícia.
Estes riscos vividos em campo em função da ilegalidade da rede que os redutores de
danos acessam
51
são vivenciados de forma mais tranqüila para uns e menos para outros.
Devido ao fato de muitos redutores serem usuários ou ex-usuários, serem ou terem sido
moradores de comunidades carentes, e ainda de alguns terem passado por períodos de
detenções ou participação no crime, tal realidade é bastante “comum” para alguns, o que não
significa que não produza insegurança e riscos. Para estes redutores, porém, mais do que
tensão e insegurança, a vivência continuada com esta realidade, agora como redutores de
danos, produz mais fortemente o sentimento de estar em um “outro lugar”, ainda que
continuem freqüentando os mesmos lugares geográficos
52
.
Entretanto, alguns redutores nunca tiveram esta vivência na rede ilegal antes do
trabalho em RD. A discussão abaixo relata diferentes formas de reação às situações
encontradas em campo, e ocorre entre alguns redutores que passaram a vivenciar estas
situações somente a partir deste trabalho. A discussão foi disparada pela fala de Álvares,
citada na página 79, quando contava a experiência de uma abertura de campo onde tinha
armas apontadas para sua cabeça. O debate abaixo se dá na seqüência do relato:
Álvares – [...] Mas a gente já estava acostumado com aquilo, mas mesmo assim a
gente não sabia se ele poderia uma hora atirar, né. [...]
Rafaela – Mas e como é que é isso, uma hora acostuma?
Uns dizem que não, outros que sim. Muitas risadas.
Álvares – Sempre tem aquela coisa assim, mas de certa forma tu acostuma porque
na primeira vez chega dar um pânico, assim, mas depois tu sente, mas já não é da
mesma forma, já fica normal. Eu mesmo, a última vez que aconteceu tinha um
rapaz, ele era assaltante, e não fazia duas semanas que ele tinha matado um cara e a
polícia andava atrás dele. E aí ele pegou e me apontou o revólver no rosto, e ele
dizia assim “E se eu quiser atirar”, e eu disse “Pô meu, eu não gosto dessas
brincadeiras, tira a arma do meu rosto, eu te respeito então também vamo me
respeitar”, sabe, cheguei a falar isso e ele “não, tudo bem, tava brincando”. Esse
tipo de coisa assim, que eu acho que se tu deixar até abusam contigo. [...]
Graciliano – A gente vai ficando frio, infelizmente vai.
Rafaela – Tá, e para vocês que não acostuma?
Ângela – Eu discordo que acostume. Eu tive uma situação... foi uma batida da
polícia, a gente estava lá sentado, tomando um chimarrão bem belo, e tinha um
senhor, e aí pra ele aquilo era tão normal que ele pediu se iam caçar passarinho,
para os policiais (rindo), cada um com duas armas assim (faz o tamanho da arma de
grande porte, com os dois braços)
51
Há outros tipos de risco que não necessariamente se colocam em função desta ilegalidade. Trataremos destes
no capítulo 8.
52
Por este não ser o foco do presente capítulo, trabalharemos mais profundamente esta questão no capítulo 8 – a
propósito da militância e do trabalho voluntário.
81
Graciliano – E nós ali, né. Teve outro que eu acho que se não fosse por nós eles
teriam matado um cara aquele dia. A gente foi abrir um campo aí e uma pessoa se
ofereceu que já conhecia e tal. E chegou lá e ele tinha um problema com um
cidadão lá. O cara saiu da penitenciária...
Virginia – E nós no pátio do cara
Graciliano - E os caras vieram em três, e um estava com a arma atrás, eles vieram
fazer o serviço [...] porque uma semana antes nós tínhamos conversado com o cara
que ele estava devendo, e ele “Báh, o trabalho de vocês é legal, a rapaziada aqui
está gostando” e ele tinha acabado de entrar, o mesmo cara, e graças àquela
intervenção a gente se ajudou e ajudou o cara também. O máximo que ele levou foi
um soco na orelha e caiu ali mesmo, na nossa frente e ele “tá, nós vamos aliviar
porque o trabalho dos caras é legal, a gente conhece eles”.
Virginia – Neste campo eu não consigo ir. Eu nunca me esqueço, eu quero voltar lá,
eu sei que mudou, mas eu não me sinto bem [...] a vida do cara estava em jogo, a
gente ia ver o cara morrendo, sabe... (Álvares, Graciliano, Ângela e Virginia,
redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
Alguns redutores de danos acabam se “acostumando” com a tensão e os riscos
experimentados em campo e vão, aos poucos, adquirindo um conhecimento da cultura e das
formas de funcionamento da comunidade que acessam, desenvolvendo estratégias de ação e
comportamentos mais afins com a situação, ao que chamam de “frieza” ou ainda de
“malandragem”. Já outros (neste caso duas redutoras) dizem não se acostumar com a
violência e a potencialidade dos riscos vividos em campo. Em alguns casos, a estratégia
utilizada por estas trabalhadoras é não freqüentar mais determinados campos onde consideram
que a violência e os riscos ultrapassam aquilo que podem suportar, respeitando seus limites.
Esta discussão nos leva a uma outra, que se refere ao perfil desejado para o redutor de danos a
partir das características deste trabalho. Segundo alguns, é necessário que o redutor de danos
tenha esta “malandragem” para que possa se movimentar bem dentro da comunidade e da
rede ilegal. Assim, deveria o redutor ser sempre alguém morador da comunidade, ter tido
experiência com o uso de drogas e experiências na rede ilegal do uso, venda ou mesmo do
crime para saber lidar mais facilmente com estas situações? Ou seria possível a alguém que
nunca vivenciou estas situações ser um redutor de danos? Quais seriam as vantagens e
limitações em cada um dos casos? Buscaremos discutir tais questões no capítulo 7.
Por fim, podemos dizer que a racionalidade repressiva aqui representada pela
legislação e práticas do sistema judiciário acaba colocando o redutor de danos em uma
posição de suspeita, tanto em sua relação com a comunidade quanto com a polícia. Tal
suspeita se materializa em uma maior dificuldade em obter um vínculo de confiança com a
população, e ainda em riscos e tensões sofridos em campo. Este é apenas um dos diversos
motivos de críticas do movimento de RD ao sistema repressivo. Segundo Karam (2000), a
ineficácia da repressão é inevitável, e o sistema penal, ao querer veicular uma forma de
82
controle, acaba por estimular o lucro da produção e distribuição das mercadorias que proíbe,
criando violência e corrupção que, direta ou indiretamente, vão tornar mais problemático o
consumo das substâncias que se pretende evitar. Assim, além de prejudicar o trabalho do
redutor de danos, a repressão prejudica a própria população a quem objetiva “defender”, sem
obter sucesso na almejada erradicação do uso de drogas. Vale dizer aqui que o modelo
repressivo adotado pelo Brasil é veiculado, e muitas vezes imposto, pela conhecida política de
“Guerra às drogas” do governo Bush, que ao longo dos anos vem influenciando a legislação
de países em desenvolvimento.
6.2 Modelo médico-moral
Segundo Cruz (2000), foi somente a partir do século passado que o uso abusivo de
substâncias psicoativas passou a ser definido como um problema médico, e não mais como
moral e religioso. Com o modelo médico o uso/abuso de drogas passou a ser visto como
doença, inicialmente determinada exclusivamente pelo seu caráter biológico, mais tarde
ampliando-se para as dimensões social e comportamental, contempladas nos manuais como o
CID-10 (Código Internacional de Doenças -10) e DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders - IV). Neste modelo o usuário passa a ser considerado doente, incapaz de
responder por suas escolhas, devendo ser orientado por um especialista que deve saber o
melhor para sua saúde.
Nas experiências dos trabalhadores em RD, o modelo médico atua em uma conjunção
freqüente com o modelo moral. Tal conjunção pode ser explicada se entendermos que a
medicina não é uma ciência universal e indiferenciada para os seres humanos como um todo,
pois possui uma construção que é interna à cultura. Isso implica que, apesar da modelação
materialista da doença pela medicina clínica, assuntos soteriológicos (referentes a sofrimento
e salvação) e morais se fundem com a questão médica, e por vezes ascendem como questões
centrais em suas práticas (GOOD, 1994). Um exemplo poderia ser a distinção entre o uso de
drogas lícitas e ilícitas, e o escandaloso volume de prescrições de drogas psicotrópicas que
causam tantos (ou mais) efeitos colaterais e dependência que as drogas ilícitas – se você está
nervoso e não consegue dormir, deve usar um ansiolítico, mas não poderá fumar um cigarro
de maconha com o mesmo fim.
O modelo médico vê como única possibilidade de tratamento para todos os tipos de
uso de drogas a abstinência, e como única possibilidade de prevenção não experimentar. O
83
usuário é visto como doente, e a dependência como doença incurável, já que um dependente
nunca poderá resistir à droga. Este atravessamento moral existente nos modelos de tratamento
que trabalham com o imperativo da abstinência acaba, muitas vezes, por produzir nos usuários
uma colagem de sua identidade à condição de (ex) usuário ou (ex) dependente, como se não
pudessem ser nada mais. Bento (apud CRUZ, 2000), afirma que a palavra adição (do latim
addictum) “Designava aquele que, na República Romana, para pagar uma dívida, tornava-se
escravo, por não dispor de outros recursos. Addictum era aquele que tinha perdido sua
identidade, assumindo uma outra identidade imprópria como única maneira possível de
saldar sua dívida. Para ser alguma coisa, devia aceitar não ser ninguém”. (CRUZ, 2000,
p.236). O imperativo da abstinência retira do usuário a possibilidade de controle sobre seu
uso, e a participação em seu tratamento, já que é tratado com alguém que não consegue ser
racional e que, para manter-se saudável, deve evitar qualquer contato com a droga
, já que a
droga possui o domínio sobre ele. Para “abrandar” este domínio, muitas vezes são utilizados
os medicamentos prescritos.
.
O imperativo da abstinência pode, assim, produzir a segregação de cidadãos usuários
de drogas, inviabilizando seu acesso e acolhimento nos serviços de saúde, a partir de uma
posição julgadora dos profissionais. Além disso, uma política que é repressiva em relação às
drogas é atravessada pela lógica do biopoder (FOUCAULT, 2001), realizando uma
homogeneização de todos a partir da necessidade indistinta de abstinência. A partir das
discussões e relatos dos participantes, pudemos observar que enunciados presentes no modelo
médico, em conjunto com o modelo moral, acabam por produzir um julgamento não só acerca
do usuário de drogas, mas também do trabalho do redutor de danos.
As práticas vistas como possíveis e legitimadas com relação a um tratamento vão
depender daquilo que é considerado terapêutico em um modelo, o que vai depender daquilo
que é considerado problema. Como dissemos, o problema que se coloca no modelo médico
envolve qualquer tipo de uso de drogas, e por conseqüência, a terapêutica única é a
abstinência total. Assim, as práticas e estratégias utilizadas pelos redutores de danos podem
acabar sendo julgadas como não sendo práticas legítimas de saúde por quem desconhece ou
não concorda com o trabalho:
Lia -... Mas é difícil, tem muita gente que não... tem vários usuários ali... tem uma
família que o conheço desde criança, que a gente morava em uma outra cidade. Daí
esta família, eles acham que meu trabalho é errado (ri) todas as vezes que eles me
vêem eles falam quando é que vou largar este trabalho, porque onde é que já se viu
estar dando cachimbo para os outros fumarem. Aí eles dizem que eu, que eles viram
crescer, estou fazendo isso. Daí eu falo “ai, eu não acredito!”.
Rafaela - Mas eles acham errado?
84
Lia - Eles acham que eu estou ajudando a pessoa usar... (Lia, redutora de danos;
Rafaela, pesquisadora).
A RD trabalha com estratégias de trocas e distribuição de insumos como a seringa e o
cachimbo por entender que o não compartilhamento destes materiais entre usuários pode
reduzir possíveis danos como: a transmissão de diversas doenças pelo sangue no caso do uso
de drogas injetáveis; a transmissão de hepatite, herpes no caso do compartilhamento de
cachimbos ou latas no uso de crack; o risco de transmissão de leptospirose (lata suja), cortes e
queimaduras nos lábios, e a ingestão de substâncias tóxicas (tinta, alumínio) no caso do uso
da lata para o consumo do crack. Considera-se que o fato de o usuário começar atentar para os
possíveis danos causados pelas diferentes formas de uso da droga é um fator de cuidado de si,
que pode desencadear novas formas de cuidado a partir da própria percepção de sua
experiência no mundo, o pode incluir uma diminuição no uso ou abstinência, se o usuário
assim o desejar. Porém, a racionalidade que entende que só a abstinência é válida, entenderá a
não obrigatoriedade da mesma como um incentivo à doença, e não uma possibilidade de
cuidado. Assim, o redutor pode passar a ser visto não como um trabalhador em saúde, mas
como alguém que alicia usuários e contribui para aumentar seus malefícios.
Este tipo de idéia com relação ao trabalho do redutor pode partir tanto da comunidade
(e mesmo de alguns usuários) quanto de serviços de saúde, dificultando seu trabalho e
exigindo sempre uma prévia explicação e uma constante sensibilização com relação à
proposta:
Cecília - Mas eu acredito assim, como a gente trabalha com o usuário, a gente
sempre fez assim: trabalhar com usuário, família, comunidade, tudo junto,
entendeu. Se a gente pára dentro de uma área, tu vai na associação, se dá com cada
pessoa que estiver na rua, e ela sabe o que tu está fazendo ali. E às vezes elas
discordam, umas acham que a gente está incentivando. E a gente dá toda uma
explicação do que é que a gente está fazendo ali, porque é que o usuário é
importante para a gente, importante para a comunidade. Deixa bem claro, que essa
é a história de vida, que não se atirou porque quis. Que marginais mesmo às vezes
nem são, não roubam ninguém, que nós já entramos e saímos de dentro e nunca
fomos roubados, com bolsa e com tudo.
Adélia - Mas tem os programas aqueles, o amor exigente. Ah, eles não... eles báh,
eles lutam fervorosamente contra a redução de danos. Para eles redução de danos,
troca de seringas é “vocês não fazem nada com nada, como é que vão falar com o
usuário que está em... que está usando, que está em uso? Aí não tem acesso!”. Eles
não consideram como assistência primária. Para não ser pior os hospitais... eles não
encaram esse fato. Eles encaram só o que é comum, eles acham que tem que largar
tudo. (Cecília e Adélia, redutoras de danos).
Dentre os argumentos utilizados para explicar o trabalho estão a tentativa de descolar a
ligação entre usuários de drogas e “marginais” ou “vagabundos”, e ainda resgatar a
85
importância do contexto social, político e cultural. A disputa entre diferentes maneiras de ver
o usuário e as possibilidades de tratamento que visibilizam, fazem com que para alguns locais
implicados com a abstinência como única via, o trabalho da redução de danos seja visto como
algo sem utilidade. Sobre a relação de redutores de danos com o modelo médico-moral dentro
de um hospital e ainda sobre estratégias utilizadas frente ao julgamento temos o relato
seguinte:
Tive um entrave, vivenciei na pele apenas um ponto e aí foi um aprendizado. Foi no
hospital N, a gente começou a trabalhar no hospital N no início de março de 2004 e
a gente constituiu uma prática de ir semanalmente [...] e... tá, tudo bem, a nossa
entrada era permitida, mas eu achei que aquilo tinha que estar mais amarrado: “Não
é assim, a gente vem aqui... a gente tem mais contato com esta galera do que
algumas pessoas daqui, a gente tem que participar um pouco mais ativamente deste
negócio”. E aí a gente solicitou a algumas pessoas da equipe o direito de participar
das reuniões de equipe da unidade de desintoxicação do hospital. A resposta que a
gente teve foi a seguinte, foi a de que... algum tempo antes, eu conheci esta pessoa
inclusive, um agente redutor de danos de uma cidade, ele internou-se lá no N para
fazer desintoxicação. E esse cara, enfim, ele aprontou algumas lá dentro, ele fugiu,
conseguiu levar a droga lá para dentro, aprontou... incomodou, digamos assim. A
postura do chefe da unidade, do médico lá foi de que ele não queria redutores de
danos participando da reunião de equipe porque enfim, ele não queria mais saber de
redutor de danos, que redutor de danos era aquilo ali mesmo. Eu me lembro que
aquilo me despertou muita ira, assim, eu disse "Pô, cara...". Porque na verdade o
cara não aprontou essas coisas por ser um redutor de danos, ele aprontou estas
coisas porque é um usuário de drogas em síndrome de abstinência. Enfim, qualquer
outra pessoa humana aprontaria isto: um advogado, um médico, enfim. Eu me
lembro que na época cheguei a escrever uma cartinha para ele, bem desaforada.
Enfim, era um médico psiquiatra, e eu falei que se ele não queria mais trabalhar
com redutores de danos em função disso, eu também não queria mais trabalhar com
psiquiatras em função de mais de um século de barbaridades cometidas por esta
classe profissional (risos) Aí enfim, as coisas ficaram bastante estremecidas durante
alguns meses. Depois e me dei conta de que não tinha sido uma boa estratégia, não
tinha sido uma boa estratégia política. Mas com o tempo gente conseguiu retornar e
no final do ano a gente estava fazendo dois encontros semanais. (José, redutor de
danos).
A idéia da “permissão” para realizar oficinas com os usuários de drogas em um
Hospital (grande representante do modelo médico), traz a noção de uma interdição a priori,
ainda mais quando se trata de realizar um trabalho integrado, ou, um compartilhamento de
saberes. Nesta fala vemos que, inicialmente, não há o reconhecimento do redutor de danos
enquanto um trabalhador, um profissional, posto que a ocorrência de um episódio onde um
usuário era redutor de danos foi generalizada, de forma negativa e pessoal. O fato de muitos
redutores de danos serem usuários (ou ex-usuários) de drogas, por vezes acaba sendo usado
como mais um argumento para dizer que não se trata de um trabalho. Aqui se coloca uma
impossibilidade de ver um usuário de drogas como uma pessoa “produtiva” socialmente.
Também podemos observar que, com relação aos argumentos utilizados, a idéia de “retrucar”
86
o ataque com outro ataque não obteve sucesso, sendo mais prudente e efetivo a lenta
negociação e sensibilização.
Os atravessamentos produzidos pelo discurso médico-moral tamm influenciam na
forma como a comunidade percebe o trabalho e os trabalhadores em RD:
Clarice -... Só que às vezes tem muito preconceito né. As pessoas que convivem
com a gente, por exemplo, no dia-a-dia, e já vi pessoas me falando "Ah, pessoas
que usam drogas, tem mais é que fazer alguma coisa para elas morrerem de uma
vez, tipo dar uma injeção que for para eles morrerem de uma vez, porque eles não
são nem seres humanos, né." Uma coisa absurda assim, as pessoas têm muito
preconceito. Só que a gente vê que quem tem filhos não pode julgar ninguém,
porque não se sabe que vai ser dos filhos da gente... então é chato de ouvir essas
coisas.
Joaquim - Tu tem uma sociedade só para julgar
Clarice - E condenar né.
Joaquim - Mas mandar um prato de comida...
Rafaela - Tu falou do preconceito, vocês acham que tem preconceito com o
trabalho do redutor de danos, com a redução de danos?
Joaquim - Não, eu acho que não. Eu acho que a gente é bem aceito até. No nosso
trabalho nas ruas, as pessoas sempre estão esperando a Virginia, estão esperando
ela, estão esperando eu...
Clarice - Não, com as pessoas que a gente acessa não tem preconceito, nem tem
como né. Mas tem preconceito sim das pessoas de fora. Não é todo mundo, mas
tem. Porque com o trabalho que gente faz, até colocar na cabeça deles que é uma
coisa para a saúde, é demorado [...].
Joaquim -... não é todo mundo que aceita, que acha que a gente está fazendo um
trabalho certo levando uma seringa para eles, para as pessoas injetar né, trocando
um cachimbo... isso aí que ela quer explicar. Tem umas pessoas que pensam
diferente, que a gente está incentivando. E a gente não está incentivando, gente está
levando a informação né. Que a nossa cidade está em primeiro lugar na aids,
entendeu? (Clarice e Joaquim, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
Aqui a dificuldade de aceitação do trabalho do redutor de danos como produtor de
saúde, e a deplorável visão do usuário de drogas como “não-humano” são relatados pelos
redutores em termos de “preconceito” advindo da sociedade. Este mesmo termo foi por vezes
utilizado pela pesquisadora, apesar de neste e na maioria dos outros casos onde foi citado, ter
partido dos próprios redutores de danos ou coordenadores. A noção que pretendemos trazer
aqui pela expressão “preconceito” é aquela do sentido etimológico da palavra – um “pré” –
anterior – “conceito”, ou seja, um conceito formado anteriormente a qualquer conhecimento
sobre o assunto, que poderia ser favorável ou desfavorável. No entanto, temos que levar em
conta que, dado o histórico da RD e os jogos de verdade sobre as drogas, há um uso corrente
desta palavra entre os trabalhadores para exprimir uma posição julgadora, num sentido de um
conceito formado anteriormente com uma tonalidade desfavorável à proposta. Reproduzindo
esta expressão não pretendemos naturalizar o termo “preconceito”, nem partir do pressuposto
da existência de uma verdade e um fim único, que seria a implantação da RD.
87
Voltando então à análise do relato verbal, vemos que a questão do preconceito é
trazida inicialmente pela percepção de um forte julgamento moral do usuário de drogas na
comunidade, visto como alguém que merece morrer. O usuário de drogas é portador de um
estigma em nossa sociedade, resultante da propagação e generalização do preconceito.
Segundo Goffman (1988), o estigma se liga a um indivíduo que não está habilitado a obter
uma plena “aceitação social”, o que leva a uma generalização e à perda do caráter humano da
pessoa ou grupo social tido como diferente. Assim, indivíduos considerados “normais”
tendem a agir de forma diferente com relação a estas pessoas. Goffman (1988) afirma que os
problemas que se apresentam aos estigmatizados se propagam, o que pode levar a um
compartilhamento do estigma por pessoas próximas e simpatizantes: familiares, amigos,
colegas, ou outras pessoas consideradas “normais” e que decidam, juntamente com o
estigmatizado, superar o estigma e suas origens. Assim, o estigma que o usuário de drogas
carrega, pode passar a ser carregado também pelo redutor de danos, seja ele usuário ou não.
Na fala citada, os redutores evocam a noção de que as pessoas que possuem
preconceito com a RD são pessoas desinformadas a respeito do trabalho, que não são
acessadas por eles em suas intervenções. Para eles, a partir do momento em que explicam que
o trabalho visa à saúde, há a possibilidade (mas não a certeza), de que elas possam
compreender e aceitar a proposta. Porém, como dizem, há o estigma de que a RD incentiva o
uso de drogas, herança obtida da errônea interpretação da Lei de Entorpecentes, aliada à idéia
da abstinência como único tratamento possível.
O estigma que o usuário de drogas possui na sociedade denota ainda algumas
peculiaridades ao trabalho dos redutores de danos, como por exemplo, ter que acompanhar
alguns usuários aos serviços de saúde em função do mau tratamento que podem receber:
Érico -... E existe também por parte dos servidores do SUS um certo preconceito
né, então essas pessoas assim, por exemplo, moradores de rua, não são bem tratados
se não forem acompanhados por um redutor de danos. [...]
Lima -... como o Érico falou, se ele [o usuário] vai fazer um exame, uma consulta, e
é maltratado, ele não volta. Não estou dizendo que tem que tratar... a pão-de-ló, mas
um tratamento digno né. Porque uma pessoa que mora na rua não tem a disposição
de tomar um banho, trocar de roupa e vir para o serviço cheiroso. Ela está numa
situação precária. E quando ele recebe uma atenção assim, que às vezes a gente
escuta muito das pessoas falarem da atenção que gente dá para eles, e isso aí facilita
bastante para o tratamento deles. Então isso é uma coisa que uma atitude médica,
um primeiro contato, uma atitude que o médico tem na primeira vez aí, é decisiva
para vida de uma pessoa. Porque às vezes a pessoa chega lá, foi buscar tratamento e
o médico tratou mal, não deu importância, olhou com cara torcida. Então é isso que
a gente vê. (Érico e Lima, redutores de danos).
... Não, isso facilita, isso aí nós temos [encaminhamentos para consultas]. Claro, se
o usuário vai sozinho... aí tem coisa da... do preconceito, do sistema de tratamento,
88
do modo de tratar que é diferente. Aí nós acompanhamos o usuário, portador ou
não, aí facilita, né. Eu acredito muito nisso, no respeito que eles têm que ter. E eu
faço com que respeitem. Tanto a mim quanto ao usuário que está ali do meu lado.
Eu brigo muito por isso. (Cecília, redutora de danos).
A conjunção do estigma do usuário de drogas com o estigma do morador de rua
(também considerado vagabundo, marginal, improdutivo) e do portador de HIV produz um
estigma múltiplo do usuário. Vemos então uma denúncia de falhas graves no que se refere ao
atendimento por alguns profissionais do SUS, a partir de um entendimento preconceituoso e
do não cumprimento de princípios como a universalidade, eqüidade e a integralidade (às quais
podemos adicionar a perspectiva da humanização).
O estigma do usuário de drogas também pode dificultar a chegada do usuário no
próprio PRD, pois dificulta o acesso destas populações ao sistema de saúde como um todo.
Como a demanda aqui (plantão na sede) não é muito grande, a gente vai mais na
rua, enfim. Agora que aumentou um pouco né, porque quando posto saiu daqui, as
pessoas se sentem mais à vontade de para vir aqui. Porque aqui era um posto 24h,
então eles vinham aqui e perigava dar de cara com a mãe, com a irmã, com a
sobrinha, né. Então era uma coisa mais difícil de eles virem. Mas agora, eles até
que têm vindo depois que o posto saiu, eles vêm com mais freqüência. (Fúlvia,
coordenadora e redutora de danos).
Para evitar serem reconhecidos como usuários e/ou como portadores do vírus HIV
muitos têm receio de freqüentar a sede do PRD ou mesmo de procurar um serviço de saúde
em função de algum dano causado pela droga. Este tipo de característica reforça a necessidade
e a originalidade do trabalho do redutor de danos, que é o trabalho de campo com a “busca
ativa”, ou seja, o redutor não espera o usuário chegar ao PRD, ele vai à comunidade e busca
mapear as redes de usuários, conquistando aos poucos o vínculo e a confiança. Em função da
dificuldade de o usuário se aproximar dos serviços de saúde num primeiro momento,
receando ser descoberto enquanto usuário e discriminado (ou mesmo obrigado a realizar
algum tipo de tratamento que não queira) pela equipe ou pela comunidade, o trabalho de
busca ativa se faz necessário. O acesso do usuário em sua própria comunidade passa a ser,
então, uma porta de entrada possível para o Sistema de Saúde, e mesmo para outras instâncias
de cuidado.
Apesar desta necessidade, os redutores de danos e os PRD acabam sendo os únicos
trabalhadores do sistema de atenção usuário de drogas que fazem um trabalho de campo
nestes moldes, por vezes apoiados por Agentes Comunitários de Saúde. O restante dos
89
serviços disponíveis – CAPSad, Hospitais, Comunidades Terapêuticas, AA, NA - ficam
esperando o usuário chegar.
... Até os próprios funcionários dos CAPSad não sabem disso, mas o CAPSad não
foi feito para reproduzir o sistema de tratamento que tinha. Os funcionários do
CAPSad têm que ir para a rua. O CAPSad surgiu por causa do trabalho de campo,
porque é assim que funciona. O trabalho de campo foi sempre, foi o grande mérito
da coisa. Agora os CAPSad têm até cadeado na porta, têm guarda, eles não
entenderam ainda [...] alguns até assumem um pouco o conceito da redução de
danos, mas ainda não descobriram que o CAPSad tem que funcionar da porta para
fora, ele tem que ser uma referência para usuários de drogas procurarem serviço. Os
funcionários dos CAPSad tinham que ser redutores de danos. (Machado,
coordenador).
Como já afirmamos no capítulo 4, os CAPSad foram criados para serem serviços
substitutivos ao modelo manicomial de tratamento e internação de usuários de drogas para
tratamento. Os CAPS, em geral, foram concebidos para funcionarem de forma centrífuga, isto
é, constituírem-se como um ponto de referência, de encontro, buscando saber o que está
acontecendo com os usuários mesmo quando estes não vêm ao serviço, procurando mediar
inserções sociais na comunidade e viabilizando uma porta aberta (ROCHA, 2002). Além
disso, a nova legislação que apóia o trabalho com RD dentro dos CAPSad prevê a
participação de redutores de danos no serviço, bem como a realização do trabalho de campo
nos moldes da busca ativa. Há aqui, porém, uma denúncia de que isso não vem acontecendo.
Os “cadeados” e “guardas” de alguns CAPSad falam de uma demanda de “proteção” que nos
remete ao lugar de marginalidade dado aos usuários de drogas. É interessante pensar que tipo
de relação terapêutica se coloca como possível de ser estabelecida quando se vê o usuário ser
acolhido no serviço de saúde como um inimigo, como alguém do qual devemos nos proteger.
Assim, muitos CAPSad acabam reproduzindo o modelo manicomial gerando uma grande
demanda para internações, inclusive as compulsórias. Como já mostramos no capítulo 5,
muitos trabalham somente com a possibilidade de abstinência, apesar das legislações do MS
que apóiam a inserção da RD nestes locais. Tais posturas acabam produzindo um afastamento
cada vez maior entre o usuário de drogas e a rede de saúde.
A falta de apoio da rede de serviços é reforçada pela dificuldade citada com relação à
falta de locais para encaminhamento de usuários de drogas para tratamento, e ainda as
exigências que estes locais possuem e que muitas vezes não são adequadas às características
do público que atendem:
90
Rafaela - Bom, vocês falaram muito do reconhecimento que as pessoas que vocês
atendem têm com relação a vocês, e as dificuldades, quais vocês acham que são as
maiores dificuldades do trabalho de ser um redutor?
Florbela - eu acho que é uma só, que a maior dificuldade que a gente sente é de
atender um usuário de drogas, e encaminhar ele para o atendimento médico-
hospitalar e a gente não consegue. Consegue até a fase de fazer um exame, mas
para internar ou continuar o tratamento mais longo, que ele realmente necessite,
principalmente com relação ao morador de rua, a gente encontra muita dificuldade
para conseguir um leito, um atendimento [...].
Érico - eu acho que nós temos a dificuldade, por exemplo, do tratamento para
dependência química, uma vaga para desintoxicação, a gente tem uma dificuldade
que não é uma dificuldade de PRD, é uma dificuldade do município né, por falta de
alguns serviços estratégicos. Que a nossa esperança é que sejam criados o mais
breve possível, como, por exemplo, os Capsad, né que não existem. Então, é
também uma dificuldade, para conseguir, por exemplo, um leito na desintoxicação
do Hospital N, o usuário tem que estar em crise, colocando em risco a sua vida ou a
vida de terceiros, senão não consegue vaga. Então o que é que acontece, a gente vai
a campo e quando o cara está malucão o cara não quer se tratar, se o cara está
maluco ele quer ficar mais maluco ainda. Ele vai querer se tratar no outro dia,
quando ele ver o tamanho da bobagem que ele fez, o prejuízo que ele teve e deu
para sua família e tal, enfim, quando ele avaliar os danos que o uso da droga está
acarretando. Enfim, ele resolve parar e nos procura, e aí a gente não consegue vaga
porque ele não está em crise, ele não está precisando segundo avaliação do
psiquiatra. Então isso é uma dificuldade. (Florbela e Érico, redutores de danos;
Rafaela, pesquisadora).
uma pessoa para ter acesso ao serviço de saúde mental de (município) tem que ser
encaminhada por um médico. Então tu não pode dar conta se o dependente químico
vai lá e pede uma ajuda, tu entende? Então acho que o processo de redução de
danos bem-feito vai também dar o subsídio para todos no município entenderem
que não é assim que se lida com a dependência química, que não pode exigir como
eles ali exigem lá que a pessoa vá com identidade, comprovante de endereço, um
familiar acompanhando, às 5 da manhã para tirar uma ficha para acolhida, e tem
que ter ido com encaminhamento médico. Como é que tu vai trabalhar com
dependente químico assim, com todas essas limitações? (Claudia, coordenadora).
Os redutores (e uma coordenação) relatam aqui uma dificuldade amplamente citada
com relação à falta de locais para o tratamento do usuário quando ele assim o desejar. Esta
queixa parece estar ligada principalmente às características dos tratamentos possíveis, que
fazem exigências nem sempre pertinentes ao público que atendem. A necessidade de o
usuário estar em crise para ser atendido, por exemplo, coloca um empecilho ao acesso por não
respeitar o tempo e as condições necessárias ao usuário para que produza a demanda por um
tratamento. Além das exigências aqui citadas, muitos locais exigem que o usuário (muitas
vezes dependente) procure o serviço sem estar sob o efeito da droga, ou seja, exigem a
abstinência antes mesmo do início do tratamento. A incompatibilidade aqui percebida é entre
os altos níveis de exigência destes serviços e as práticas da redução de danos, que buscam
uma adequação ao momento e possibilidades dos usuários para fazer combinações
terapêuticas. Além disso, podemos pensar que a internação indiscriminada acaba levando a
91
uma falta de vagas, onde talvez uma boa triagem e encaminhamentos diversificados incluindo
serviços alternativos pudessem abrandar a situação.
Como vimos nas falas aqui apresentadas, as verdades sobre os usuários de drogas
refletidas nos modelos hegemônicos de tratamento trazem uma das maiores dificuldades
citadas tanto pelos redutores de danos quanto pelos coordenadores, que se refere à falta de
suporte da rede de serviços. Esta falta de suporte pode estar ligada à falta de serviços
substitutivos e às altas exigências para ingresso. Porém, grande parte da dificuldade se
localiza na postura de profissionais da rede que estigmatizam o usuário como não sendo
merecedor de um atendimento digno como outros cidadãos, e que julgam o trabalho da
redução de danos como um incentivo ao uso de drogas, ou ainda como um não-trabalho.
Assim, podemos ver que o atravessamento da ilegalidade do uso de drogas, somado à
visibilidade negativa (ou estigma) que o usuário possui na sociedade e ainda ao imperativo da
abstinência veiculado pelos modelos hegemônicos de atenção e tratamento ao usuário,
produzem um maior fechamento da rede de uso e de usuários, aumentando seu distanciamento
com relação às equipes e serviços de saúde.
Mas, diante destes estigmas e preconceitos com relação ao trabalho e os trabalhadores
em redução de danos, como se sente o trabalhador? Questionaria ele o seu trabalho como
sendo da ordem da saúde diante de uma racionalidade avessa aos seus propósitos?
Rafaela - E esse tipo de coisa que acontece [de achar que se ajuda a usar drogas e
das intervenções da polícia]... tu te sente mal com este tipo de julgamento?
Lia - Eu já me senti uma vez, acho que a única vez que me senti assim bem
deslocada. Porque até tem um desconforto, quando as pessoas vêm para cima da
gente dizer que a gente está aliciando, que gente está ajudando as pessoas se drogar.
Mas a vez que eu me senti mais mal foi quando saiu no jornal, e eu fui para igreja.
... e um homem que é meu amigo foi lá falar, pegou microfone e falou "Este jornal
aqui..." e era o meu trabalho, e muitas pessoas que estavam ali sabiam que era meu
trabalho. E... ele disse "Que é uma pouca vergonha, que eles estão distribuindo..." e
falou bastante tempo sobre aquilo ali, sobre o trabalho de distribuição de
cachimbos. Aí quando terminou eu me senti bem mal, sabe? Eu fiquei até em
dúvida, eu acho, se eu estava fazendo este trabalho certo. E aí quando terminou eu
fui falar com ele, aí ele falou para mim que ele ia fazer uma oração para que eu
conseguisse outro trabalho. Mas eu fiquei pensando bem aquilo ali, e eu mesma fiz
uma oração para mim e pensei, não, não pode estar errado... porque eu queria
entender. Eu pensei não, não pode, é certo, não pode ter alguma coisa errada nisso.
Já pensei várias vezes sobre esse assunto e pensei que não pode ser. (Lia, redutora
de danos; Rafaela, pesquisadora).
Rafaela - Mas tu, em algum momento assim, quando alguma pessoa chegou e disse
"Ah, este teu trabalho, acho que não está certo", tu chegou a duvidar se o trabalho
estava certo?
Clarice - Não. Não porque quando cheguei aqui, no começo até eu fiquei meio
assim. Mas depois que a gente começa a ver, e a trabalhar com a realidade gente vê
que está certo mesmo, e o que não está certo é ver gente morrendo por
desinformação, né, por estar naquele mundo suburbano...
92
Graciliano - Eu acho sim que a gente deve fazer um balanço do nosso trabalho.
Parar, olhar e imaginar a gente fazendo campo, o que tu está falando, o que tu tá
fazendo, como é que tu está agindo, o que é que está mudando, se isso está legal.
Mas eu também já tive assim duas... duas abordagens, que eu abordando já tive
duas abordagens, de um senhor com uma bíblia embaixo do braço... ele falou... báh,
desceu... tudo o que ele podia, que o nosso trabalho é uma vergonha, estar
investindo dinheiro no sem-vergonhismo, coisas assim, sabe. Só que isso aí não
me... isso aí eu sei que é... tem em toda parte, são exceções. Mas são pessoas que
são ignorantes, eu considero ignorantes, porque não conhecem o que a gente está
fazendo. Não conhecem o trabalho, não conhecem as pessoas que também tem
direito à cidadania, como ele, né. Outra coisa foi num outro bairro aqui a questão
com uma mulher que disse "Ah, vocês tinham que dar feijão e arroz ao invés de
dar..." sabe, toda vez isso. Então, agora não mais, mas aconteceu em vários
encontros que a gente foi. [...] E esses carinhas assim que criticam, e eles te dão
mais força também. Eu já falei né, eu tenho prazer em confrontar essas pessoas...
(Clarice e Graciliano, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
Apesar de, inicialmente, até poderem ficar “balançados” diante de um julgamento
moral relacionado ao seu trabalho, os redutores participantes da pesquisa relatam que não
assumem para si o estigma de estar “incentivando o uso de drogas”, nem de estarem fazendo
algo “errado” do ponto de vista moral ou da saúde. Estes atravessamentos, entretanto,
produzem determinadas características em seus regimes de prática, já que assumem as tarefas
de, constantemente, acompanhar usuários aos serviços e realizar sensibilizações de outros
profissionais e equipes de saúde, comunidade, usuários, visando um maior apoio a partir do
esclarecimento do trabalho que realizam.
6.3 saúde – ética
Segundo Dean, existe uma autonomia da ética com relação à política, das práticas de si
em relação às práticas de governo dos outros e do Estado, e esta relativa independência
implica em que as práticas do self podem não somente ser instrumentos para atingir metas
políticas, econômicas e sociais, mas também podem ser meios de resistência às outras formas
de governo (dos outros e do Estado) (DEAN, 1999, p.13). Em uma tentativa de ultrapassar os
modelos jurídico–moral e médico-moral buscam-se outros modos de intervenção, que
procuram lutar contra a força do estigma de usuários de drogas, o fracasso da repressão, e as
possíveis implicações de inexistência ou abrandamento da responsabilidade do usuário sobre
o que lhe acontece.
Afirmamos no capítulo 3 que a Redução de Danos se insere no Rio Grande do Sul na
década de 90 (e final da década de 80 no Brasil), a partir de projetos financiados pelo
Ministério da Saúde, em torno das questões de prevenção às DST/aids. Neste contexto,
93
podemos pensar, para além das possíveis produções discursivas já discutidas, que outras
lógicas se processam quando se alia a rede enunciativa em torno do uso das drogas à
preocupação com a aids. Lembrando que, para Foucault, na análise do campo discursivo:
(...) trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua
situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites de
forma mais justa, de estabelecer suas conexões com outros enunciados a que pode
estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui (FOUCAULT,
1997, p.31),
podemos pensar, então, em quais fatores criaram as possibilidades de inserção da
política da aids nos modos de tratamento em relação ao uso/abuso de drogas e na rede
enunciativa desta nova estratégia chamada redução de danos.
O objetivo principal da RD, em sua inserção, era prevenir a transmissão de aids em
usuários de drogas injetáveis (UDI), categoria de exposição predominante na transmissão do
HIV na época (33% dos casos notificados no Estado, tendo influência também na transmissão
sexual através de parceiros de UDI - SIQUEIRA et al., 1998). Na década de 80 trabalhava-se
na prevenção à epidemia com o conceito de “grupos de risco”, acreditando-se que a
transmissão do vírus HIV ocorria a partir de grupos como “gays”, “prostitutas” e “drogados”,
gerando estigma e aumentando a visibilidade negativa desta população na sociedade.
Já na década de 90, quando a RD dá seus primeiros passos no país, em função do
alastramento da epidemia para além dos “guetos”, percebeu-se que a noção de grupos de risco
não se mostrava adequada, e passou-se então a trabalhar com a noção de “comportamentos de
risco”, onde o indivíduo era culpabilizado pela não-prevenção. Ainda encontramos no
imaginário social a representação da aids como “castigo divino”, como mais uma alegação de
“culpado” dependendo a forma de contágio - as “vítimas inocentes” pela transmissão através
do parto ou por transfusões de sangue; e os “culpados”, pela transmissão por via sexual ou
uso de drogas - (PICCOLO, 2001). Neste sentido, a aids foi utilizada para reforçar o cerco
sobre os desviantes, denunciando pessoas com comportamentos distintos daqueles
socialmente aceitos. Profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e usuários de
drogas foram duplamente culpabilizados. Aqui vemos convergir a “anatomia política” da
disciplinarização dos corpos a partir de uma “teoria geral do adestramento” e os dispositivos
biopolíticos preocupados com as intervenções e controles reguladores da vida. O biopoder
produz aqui uma normalização do viver, engendrando o corpo vivo em mecanismos
contínuos, operando distribuições em torno da polarização normalidade/anormalidade
(FOUCAULT, 2001).
94
A aids, então, engendrada neste complexo de relações de poder-saber, foi construída
socialmente como uma “epidemia das anormalidades sexuais”, e a morte de seus portadores
também foi social, atravessada pelo estigma e preconceito (BRASIL, 2003b).
Havia assim muito preconceito na questão da redução de danos, na questão do... de
ser redutor de danos. "O que? Um viciado, drogado, não sabe nada, não fazem
nada, o negócio de vocês é usar droga e deu... é catar aidético por aí”. Ih, já ouvi
muito isso. "Ah, o papel de vocês é catar aidético para encher as unidades de saúde
de aidético, de aidético, de drogados". Ih, já ouvi muito isto. (Eunice, coordenadora
e redutora de danos).
Aqui o redutor de danos é visto como um “viciado” que não faz nada, ou melhor, um
viciado que traz “problemas”, pessoas indesejadas para o serviço, pessoas que são motivo de
sentimentos de repulsa, medo e ameaça (dentre eles o portador de HIV ou doente de aids).
A lógica do biopoder que atravessa a racionalidade do Estado na prevenção à aids
também pode justificar suas ações através de uma racionalidade econômica de custo-
benefício: basicamente, a distribuição de preservativos ou seringas descartáveis é muito mais
barata ao Estado do que o tratamento para aids. Em um contexto onde o ideário neoliberal se
mostra hegemônico, associado à proporção de um Estado que reduz a esfera de regulação
social ao mercado (NARDI, 2006), produz-se uma mercantilização também da saúde. Esta
racionalidade encontra eco também na comunidade, podendo servir como explicação para o
trabalho do redutor de danos:
Rafaela - Mas tu acha que com a redução de danos tem preconceito na
comunidade? Tu vê isso no teu trabalho?
Lia - No mais assim, em geral, a gente não nota muito. É mais as pessoas dizendo
que está certo, ainda mais quando a gente usa aquele argumento do dinheiro né.
"Ah, se em dez a gente comprar cachimbo, comprar seringa, comprar camisinha, se
a gente estivesse pagando para tratar todo esse pessoal que está doente ia sair mais
caro né". Isso! É tu colocar este pensamento que pronto, todo mundo se rende e
acha que está certo(risos). Tem que mais é que dar camisinha e seringa. (Lia,
redutora de danos; Rafaela, pesquisadora).
O argumento financeiro é transformado em um grande trunfo: dizer que as estratégias
de RD atuam no sentido de prevenir doenças, cujo tratamento poderia sair mais caro aos
cofres públicos, é uma forma de “sensibilizar” gestores e a comunidade. Assim, um
argumento baseado numa racionalidade não comprometida com a transformação da condição
do usuário de drogas, pode ser (e tem sido) utilizado com esta finalidade pelo movimento
social (atentando-se para os riscos de “colar” nesta racionalidade). Neste sentido, a aids
possibilitou a visibilidade das práticas do uso de droga injetável e de seus usuários, chamando
a atenção para a necessidade de outros tipos de intervenção ligados à saúde para este público.
95
a gente encontrava as pessoas que diziam "Ah, redução de danos é aqueles caras da
seringa", que até acham que a gente incentiva, acham que a gente distribui, e a
gente não distribui, a gente troca seringas com quem usa realmente. Até porque se a
gente for oferecer uma seringa para quem não usa não vai... não é porque ganhou
uma seringa limpinha e novinha que vai começar a usar né. Não, não tem nada a
ver. Agora o cara que usa é claro que ele vai querer a seringa limpa por causa do
risco do compartilhamento. (João, redutor de danos).
Em função de a RD ter sido legitimada pelas trocas de seringas, esta marca do redutor
como quem realiza trocas é presente na comunidade, demarcando uma determinada lógica de
trabalho diferente da usual abstinência como única via. A troca de seringas em campo
legitima a atenção ao UDI pela via da prevenção ao HIV, pelo “risco do compartilhamento”.
As ações relacionadas à prevenção do HIV/aids, extremamente normalizadoras num
momento inicial, transformaram-se a partir da pressão dos movimentos sociais, levando à
discussão atual em torno do combate à vulnerabilidade, em uma perspectiva que se aproxima
da proposta da RD. O conceito de vulnerabilidade traz em si uma racionalidade de que a
condição mínima necessária para que o indivíduo possa proteger-se contra eventuais danos é
tornando-se um sujeito ativo no que se refere a sua própria saúde, denunciando as limitações
dos conceitos de grupos e comportamentos de risco. Segundo Ayres (1996), o conceito
também vem chamar atenção para os limites da epidemiologia como único recurso técnico-
científico para pensar a epidemia da aids, já que vem abstraindo das associações estabelecidas
por seu intermédio, as determinações propriamente sociais dos fenômenos que estuda,
limitando também o necessário diálogo entre diferentes serviços. Para Ayres (1996), a noção
de vulnerabilidade não pretende diferenciar pessoas que têm alguma chance de se expor à aids
de pessoas que supostamente não têm: ela pretende dar elementos para avaliar objetivamente
as diferentes chances que todo e qualquer indivíduo tem de se contaminar.
Segundo o autor, a noção de vulnerabilidade procura particularizar as diferentes
situações dos sujeitos (individuais e/ou coletivos) ante a epidemia da aids em três planos
analíticos básicos: o individual, o programático ou institucional, e o social. No plano
individual, a vulnerabilidade é relacionada a comportamentos que criam a oportunidade de
infectar-se e/ou adoecer, sendo que o comportamento não é visto como uma ação voluntária
dos indivíduos, mas sim relacionada com as condições do meio em que vivemos, com o grau
de consciência que temos sobre nossos comportamentos e com as condições de
transformarmos este comportamento a partir do momento em que adquirimos essa
consciência. No plano da vulnerabilidade social se avaliam questões de coletivos, como: o
acesso à informação; os investimentos na saúde por autoridades e legislações locais; o acesso
96
a serviços de saúde; indicadores epidemiológicos; aspectos sóciopolíticos; o grau de liberdade
de pensamento e expressão das pessoas; relação entre gastos militares e gastos com saúde;
condições de bem-estar social. Por fim, a vulnerabilidade institucional diz respeito ao
desenvolvimento e qualidade das ações institucionais (ou programas) especificamente
voltados para o problema da aids. Isso tem a ver com ações efetivamente propostas pelo
Estado, com a capacidade de ação conjunta de diferentes programas, planejamento de ações,
resultados das ações desenvolvidas, tipo de financiamento previsto para os programas
propostos, continuidade dos programas, e com a avaliação dos programas
53
.
A partir destes conceitos, a rede discursiva que configura as ações preventivas à aids
possibilita à redução de danos um trabalho ampliado, no sentido de não reproduzir uma lógica
de controle das populações, mas de agir em várias frentes buscando a diminuição das
vulnerabilidades através de um atendimento integral.
...então também fica muito preso a essa coisa, redutor de danos é quem dá seringas
e mais nada. E a gente está fazendo um trabalho bem diferenciado, a gente trabalha
não só DST/aids como também agora a saúde mental, também serviço social, a
gente procura visar à integralidade do cidadão. Então tudo isso aí são imagens que
ficaram fixadas e gente tem que de construir com nosso trabalho. (João, redutor de
danos).
Assim como pensamos a vulnerabilidade para a aquisição do HIV a partir dos
conceitos de vulnerabilidade individual, programática e social, da mesma forma podemos
pensar a vulnerabilidade ligada aos danos decorrentes do uso de drogas. O redutor de danos,
em seu trabalho, busca agir nestes três planos através de uma multiplicidade de ações: acesso
à informação, promoção da liberdade de pensamento e expressão, incentivo ao trabalho
integrado entre serviços, estímulo ao exercício de uma reflexão baseada no conhecimento de
si e dos danos decorrentes do uso/abuso de drogas integrando, além da prevenção às
DST/aids, outros programas e estratégias.
Principalmente hoje, eu vejo que a redução de danos está mudando muita coisa,
está entrando nos serviços para dar mais atendimento para as pessoas. E às vezes é
difícil para o usuário, quando está completamente desconectado do mundo, ter uma
pessoa que ligue, que entenda eles, e que ajude eles se ligarem a um mundo, na
questão de saúde, de eles verem que eles têm direito à saúde. Eu acho que aí vem a
gratificação, independente do modo que eles estão ali, deles poderem enxergar que
53
Domânico exemplifica como esta construção conceitual pode se aplicar no caso das abordagens aos UDI: “...
existem pessoas que estão mais expostas à infecção pelo HIV/aids, seja por não se perceberem em risco, e desta
forma compartilharem equipamentos de injeção e praticarem sexo desprotegido (vulnerabilidade
comportamental); por não terem moradia e noções mínimas de cidadania (vulnerabilidade social); ou por não
serem atendidas em programas de saúde pública específicos, tanto para tratamento à drogadependência, como
para tratamento da infecção pelo HIV/aids (vulnerabilidade programática)” (DOMÂNICO, 2001, p. 31).
97
existe uma possibilidade de mudança, mesmo que seja reduzindo aos poucos, mas
existe uma possibilidade de mudança. (Lima, redutor de danos).
Este redutor vê seu trabalho como incentivo para que o usuário conheça e busque seus
direitos com relação à saúde, ou, em outras palavras, como um incentivo ao resgate da
cidadania, iniciando por um dos direitos fundamentais do cidadão, que é a saúde.
Trabalhar a partir desta noção ampla de vulnerabilidade, no entanto, significa
considerar que um argumento de trabalho para a RD centrado exclusivamente na prevenção
do HIV/aids acabaria por reduzir imensamente o trabalho. Coppel e Doubre (2004) afirmam
que limitar a redução de danos a ações de controle do risco de infecção (ao HIV e outras
doenças transmissíveis) significa barrar as possibilidades de mudança nas políticas de drogas,
o que deve ser um dos grandes alvos da RD. Além disso, em função das características da
população com a qual se trabalha (muitas vezes sem acesso a condições mínimas de
sobrevivência), coloca-se a obrigatoriedade de ampliar as perspectivas de trabalho, o que já
vem sendo realizado pelos programas e seus trabalhadores.
Assim, para além da complexidade da rede discursiva que envolve a aids, há outros
enunciados que fazem parte da inserção das ações de RD em nosso país. Como já tivemos a
oportunidade de afirmar, a redução de danos se insere no Brasil em um contexto de abertura
política, com a Constituição de 1988 e a criação do SUS. O Movimento Sanitário se
desenvolve no contexto da ditadura militar, lutando por um conceito de saúde que considera
não só a dimensão biológica, mas tamm a social no processo saúde-doença. Neste
movimento, intelectuais dos Departamentos de Medicina Preventiva e Social das
Universidades articularam-se ao Movimento Sindical e o Popular para defender a
redemocratização da sociedade, tendo como base a Reforma Sanitária (RAMINGER, 2005).
No momento da reabertura política, em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde
lançou princípios básicos para a reformulação de uma nova política de saúde, que
influenciaram na elaboração da Constituição Federal de 1988 e nas diretrizes e princípios do
SUS. Além de estabelecer o reconhecimento da saúde como direito do cidadão e dever do
Estado, a Constituição de 1988 afirmou a necessidade de haver controle social das políticas
adotadas através da participação da comunidade, e adotou o atendimento integral à saúde com
prioridade para as atividades preventivas, criando constitucionalmente o Sistema Único de
Saúde (RIO GRANDE DO SUL, 2000). O SUS foi regulamentado através das Leis Federais
98
nº. 8.080/90 e nº. 8142/90
54
, adotando o conceito ampliado de saúde definido na 8ª
Conferência, conceito este que sintetiza o pensamento do Movimento Sanitário:
Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda,
a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis
de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.
Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do
disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e á coletividade
condições de bem-estar físico, mental e social (Lei Federal nº. 8080/90, RIO
GRANDE DO SUL, 2000).
Os primeiros movimentos para uma Reforma Psiquiátrica também correram durante a
ditadura militar, nos anos 60, com as experiências de algumas comunidades terapêuticas em
alguns hospitais, que passaram a privilegiar a tomada da palavra na instituição, em grupos
operativos e assembléias. Logo após vieram os movimentos dos trabalhadores em Saúde
Mental, que se mobilizaram em prol da Reforma Psiquiátrica, da Reforma Sanitária e da
redemocratização política do país (ROCHA, 2002). Os ideários da Reforma Psiquiátrica,
assim como os do Movimento Sanitário, também passam por um questionamento acerca da
divisão entre saúde e doença, ou, normalidade e anormalidade. O Movimento pela Reforma
Psiquiátrica luta pela transformação/erradicação do modelo de tratamento imposto nos
Hospitais Psiquiátricos, questionando o estatuto da loucura como doença mental a ser tratada
por especialistas com base no internamento. Como afirma Foucault (2004a), a idéia da
loucura como doença mental foi sendo construída ao longo do tempo, não existindo um
estatuto de verdade deste conceito. A medicina, por meio da psiquiatria, teve um papel central
nesta construção, tomando para si a tarefa de curar os insanos; dentre eles, desde o início, já
se encontravam os “bêbados” (FOUCAULT, 2004a).
A aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica no RS vem regulamentar a gradativa
substituição do sistema hospitalocêntrico por uma rede integrada de serviços, determinando
regras de proteção especialmente no que se refere às internações (RIO GRANDE DO SUL,
1992). Abriu-se a possibilidade legal para reverter o modelo assistencial vigente, baseado na
centralidade do médico, do hospital e na internação (por vezes perpétua) em Hospitais
Psiquiátricos. Dentro deste contexto histórico, alinhada aos princípios das Reformas e do
SUS, a redução de danos se insere no Brasil visando o resgate da cidadania e a reinserção
54
Lei Federal nº. 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção
e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências;
Lei federal nº. 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do
SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras
providências (RIO GRANDE DO SUL, 2000).
99
social dos usuários de drogas (SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE/RS, 2001) –
juntamente com a já citada prevenção das DST/aids.
Podemos então pensar a redução de danos como uma forma de governo de si baseada
em uma racionalidade que vem resistir aos modelos hegemônicos, resgatando o papel ativo e
participativo do usuário de drogas em seu tratamento e nas políticas públicas a ele referentes.
Comparando a abordagem tradicional (de abstinência) com a abordagem da RD, Wodak
afirma que a primeira “vê os usuários de drogas como marginais frente à sociedade, apenas
aceitáveis desde que livres das drogas”, enquanto a RD “vê os usuários de drogas como
membros da sociedade, almeja reintegrá-los à comunidade” (WODAK, 1998, p.57). Neste
sentido, a rede enunciativa que define a RD e, por conseqüência, o trabalho do redutor, se
apóia na promoção do exercício da cidadania do usuário, o que significa o reconhecimento,
em primeiro lugar, da condição de cidadão portador de direitos, antes da condição de usuário
de drogas na sociedade.
Conte (2004) nos mostra que, mesmo em casos de toxicomania (dependência), a não-
obrigatoriedade da abstinência no tratamento traz valiosos benefícios, como a possibilidade de
se estabelecer um vínculo terapêutico e se produzir uma ressignificação da experiência com as
drogas. Assim, não se impõe a abstinência, mas se afirma a importância de se avaliarem os
riscos que são, sem dúvida, reais. De acordo com Acselrad (2000), trata-se de uma “educação
para autonomia”, em que, ao invés de se identificar qualquer tipo de uso com o uso
dependente, esclarecem-se as diferentes relações estabelecidas com a droga e as diferentes
possibilidades de ação educativa: no uso não dependente poderia se trabalhar a percepção dos
riscos e o acompanhamento, ao invés de medicalização e ação policial; no uso dependente,
um apoio na formulação da demanda de tratamento e do encaminhamento, respeitando
particularidades, mantendo uma relação de confiança e acompanhamento, desfazendo terrores
e discriminações.
Podemos pensar, então, no papel do redutor de danos no “processo terapêutico” e
reinserção social dos usuários de drogas. Já afirmamos com relação às estratégias de
prevenção à aids que a redução de danos busca trabalhar com um conceito de vulnerabilidade
que não se restringe ao plano individual, passando também pelo social e programático. Da
mesma forma, os “contratos terapêuticos” firmados em campo entre redutores e usuários vão
muito além da simples troca de seringas ou cachimbos, ou da distribuição de preservativos,
que poderia ser entendida como meramente comportamental. Eles são realizados com base em
um vínculo que é estabelecido entre usuário e redutor, onde a construção daquilo que está se
100
tornando um problema é conjunta, e o uso da droga é entendido dentro de um contexto
ampliado de saúde.
[...] É isso que a gente faz, tenta ver o que precisa lá na vila, e quem precisa a gente
leva um conforto. A gente não leva só camisinha, a gente leva uma conversa, a
gente... não adianta o campo a gente chegar lá e cá, a gente tem que dar o tempo
que for necessário para as pessoas, para as pessoas explicarem, para a gente saber o
que que há com elas, o que é que ela tem, o que que ela precisa. Então a redução de
danos é isso aí, a gente tenta levar para as pessoas aquilo que elas realmente
necessitam. Uma palavra de conforto, um momento para escutar, isso aí é redução
de danos, entendeu? (Joaquim, redutor de danos).
A atenção ao usuário é aqui pensada de forma ampla, na menção às “necessidades”
das pessoas atendidas. A conversa e a escuta emergem como elementos importantes,
juntamente com o respeito ao momento da pessoa, para que ela formule sua demanda. No
caso de o problema ser especificamente o uso/abuso de drogas, a construção de um plano
terapêutico é feita a partir da experiência do usuário, tanto da experiência corporal perante o
uso/falta/substituição da droga quanto da experiência reflexiva no sentido de seus projetos de
parada/diminuição/substituição da droga. Assim, enquanto a atenção ao usuário ligada aos
modelos moral e médico pode ser entendida a partir das dicotomias: bom versus mau, doença
versus saúde, loucura versus sanidade; a perspectiva da redução de danos busca oferecer um
olhar diferenciado. Ao invés de trabalhar com conceitos estanques, a RD propõe olhar para a
saúde como um processo, onde vários passos podem ser dados em direção à saúde possível no
momento, de acordo com os desejos e processo de cada usuário.
Ao buscar romper com os modelos anteriores, a RD desconstrói verdades e possibilita
a emergência de novas formas de ação em relação ao uso/abuso de drogas. Nesta direção,
Brasil (2003b) propõe que a RD seja compreendida como um dispositivo que se diferencia
dos modos de intervir que exercitam técnicas de biopoder, já que não estabelece relações com
os usuários pela via da moral, do ressentimento ou do resgate de um estado de saúde ideal
estabelecido pela norma médica. A partir dessas noções, podemos pensar a inserção da RD e o
trabalho dos redutores como um movimento de resistência a um regime de verdades/modo de
subjetivar dominante, e como uma forma de resgate da cidadania do usuário de drogas.
...essa coisa do normal da sociedade né, contrariar um pouco e tentar mostrar, pelo
menos para alguns ao nosso redor que existe, que essas pessoas usuários de drogas,
portadores de DST/aids, ou qualquer uma que viva algum tipo de preconceito, que
elas têm direito tanto quanto qualquer uma, né, que se diz limpinho, com grana, ou
“normal” da sociedade. Essa é a luta constante da redução de danos eu acho, uma
política assim de cada dia tentar desmascarar um pouco. (Graciliano, redutor de
danos).
101
Ao buscar romper com a noção de normal e patológico a RD pretende resgatar o
direito à cidadania comum a todos os cidadãos, independente de serem ou não usuários, de
terem ou não um bom status financeiro. Há ainda a referência ao trabalho do redutor de danos
ser uma política diária, ou seja, de possuir uma implicação política no sentido de construir
uma outra saúde possível para o usuário de drogas, as pessoas portadoras de HIV, as
profissionais do sexo, dentre outros estigmatizados. Seria então uma “micropolítica”, onde o
trabalho de “formiguinha”, e as pequenas - grandes ações realizadas no dia a dia vão aos
poucos contribuindo para uma transformação possível.
Uma destas micro-transformações diz respeito à experiência de si do próprio usuário
de drogas. Podemos dizer que o telos da RD gira em torno do mote “assuma o controle”
55
,
que faz alusão à intenção de que o usuário possa assumir o controle sobre o uso de sua
substância, não ficando em uma posição de dependência ou abuso. A partir deste mote a RD
propõe aos usuários que decidam por si mesmos se devem cuidar ou não de si e de que forma
fazê-lo, de modo que a questão que interessa não é a noção de desvio, mas a de excesso ou
moderação, de ser mestre ou escravo de seu próprio desejo.
..
. sempre achei que o problema não é o uso, é o abuso. As pessoas não sabem usar,
sempre fazem o abuso. As pessoas não sabem tomar um copo de vinho no almoço,
ou fumar um baseadinho à noite, ou cheirar uma linha no fim de semana. [...] mas
eu acho que pode sim, como existem várias pessoas no mundo dentro da área de
saúde, profissionais, em todas as áreas tem pessoas que usam drogas e convivem
perfeitamente. Eu pessoalmente né, eu fumo meu baseado da noite, e faço meu
trabalho normal. Mas quando vou ver um filme, sei lá, vou ver alguma coisa eu dou
meus peguinhas eu sei controlar né. [...] (João, redutor de danos).
Ao falar sobre a cultura de si, Foucault define que o controle “é uma prova de poder e
uma garantia de liberdade” (FOUCAULT, 2002, p.69). Com isso, quer dizer que é uma forma
de não nos ligaremos a coisas que não dependem do nosso domínio, e de só nos
relacionarmos com aquilo que depender de nossa escolha livre e razoável. Na fala deste
redutor, a liberdade e o “assumir o controle” estão ligados a poder escolher livremente o
horário e a quantidade de substância a ser ingerida, sem que isso afete a possibilidade de
realizar um trabalho “normalmente”.
Vale ainda dizer que o “assuma o controle” também pode ser (e vem sendo) pensado
de uma forma ampliada, como um controle que o sujeito pode exercer sobre a própria vida, e
55
Mote oficialmente utilizado pela ABORDA (Associação Brasileira de Redutores de Danos).
102
que se aproxima da idéia de Foucault sobre a possibilidade de exercer sua liberdade de forma
ampla.
...No nosso trabalho, quem tem mudado o comportamento de alguém são os usuários, os
grupos que a gente acessa. Eles que tem mudado. As políticas públicas sobre drogas hoje
no Brasil estão sendo modificadas graças ao comportamento dos usuários de drogas
vinculados aos programas de redução de danos. [...] Porque este conceito de redução de
danos é tão bem bolado que ele serve para tudo. Ele não é uma medida minimalista, não é
uma medida de emergência. Quem entende o conceito de redução de danos, amplia
realmente a sua postura no mundo. Eu acho ele extremamente filosófico, né. A gente
trabalhava até então com duas políticas públicas na relação com as drogas: era a política
de prevenção e a política do tratamento. A política da prevenção era "Não use drogas
nunca", e a do tratamento "Pare para sempre." E aí a gente ficou achando que era só isso.
A gente negava que entre os que não vão usar nunca, eles que vão parar para sempre
existe um mundo de gente, que as drogas..., que faz parte da nossa cultura usar os mais
diversos tipos de drogas. É o nosso trabalho que vem alertar para isto. E aí começa
aparecer dentro da prevenção e tratamento o conceito da redução de danos. E à medida
que ele vai crescendo, ele vai envolvendo a prevenção e tratamento. Ou seja, nós temos
que ter uma política de drogas que seja maior do que a ilusão da prevenção e que seja
maior do que essa ilusão do tratamento. Porque tanto prevenção quanto tratamento, eles
querem no fundo, no fundo, transformar as pessoas naquilo que outros desejem. E a
redução de danos aceita as pessoas como elas são. Dando a elas a condição de assumiram
o controle, de fazer das suas histórias de vida uma melhor vida possível. (Machado,
coordenador).
Segundo Foucault, a prática reflexiva da liberdade é a postura ética que possibilita ao
sujeito decidir sobre o próprio destino, o que se dá pela decifração dos jogos de verdade que o
atravessam, permitindo assim jogar num nível mínimo de dominação (FOUCAULT, 2004b;
DREYFUS e RABINOW, 1995). Deste modo, podemos pensar a redução de danos como um
governo de si que extrapola a questão do controle da substância, e que oferece uma
possibilidade de questionamento dos regimes de verdade e racionalidades comumente aceitas
em nossa sociedade, incentivando os sujeitos a exercerem uma prática reflexiva da liberdade.
Porém, como toda forma de governo de si e dos outros, a redução de danos possui suas
verdades e regras. Todas estas verdades, quando não questionadas e refletidas, correm o risco
de estar concorrendo não para uma prática refletida, mas para uma nova técnica de biopoder.
Neste sentido, há o risco de o trabalhador acabar colado aos seus princípios da RD como se
fossem verdades inquestionáveis. Desta forma, poderiam estar agindo de acordo com uma
política do biopoder, principalmente se assumirem uma relação com o Estado de mero
executor de editais, exercendo o controle sobre a população que atende ao invés de buscar a
promoção à cidadania.
103
...por exemplo, da gente estar fazendo um trabalho de campo, e abordar um usuário
de crack, e o usuário de crack colocar para gente que ele não agüentava mais, que
estava super na pilha de abandonar o crack, que queria parar, e da reação do redutor
a esta solicitação ser assim "Tá, mas porque que tu tem que parar, tu não precisa
parar, tu pode...", entende? Quer dizer, é como reproduzir a mesma lógica ao
contrário. É claro que este questionamento, questionar para a pessoa porque que ela
precisa parar, é interessante, obriga a pessoa a pensar sobre isso. Mas nesse caso
específico o que estava dado não era isso, era justamente uma idéia de que não, que
essa coisa de parar não... Eu tive um debate muito forte uma vez com
B [também da redução de danos] justamente isso, colocando para ele que "Pô, eu
estou em abstinência e me sinto muito bem com isso" e o cara me dizendo que tinha
que ter clareza que essa postura não é uma postura saudável e, que a postura
saudável é a pessoa que usa de forma controlada, e não a abstinência, abstinência
não é uma forma saudável. Eu digo pô, mas quem define o que é saudável? Onde é
que está, qual é o manual que está isso. Mas eu acho que sim, eu acho que no
trabalho de campo se tem esse risco. (José, redutor de danos).
A percepção do risco de se assumir uma prática normativa (neste caso, observada no
trabalho de colegas) vem marcada por uma crítica, definindo o risco de o redutor reproduzir a
lógica de uma obrigatoriedade, de uma regra não refletida que passa a pautar suas práticas e o
modo como deve cuidar de si. Além do risco da radicalização da proposta se colocam outros,
referentes aos possíveis atravessamentos das formações discursivas dominantes sobre as
drogas, considerados os “verdadeiros” enunciados aqui a partir dos modelos jurídico-moral e
médico-moral. Em alguns casos, apesar de opostos aos enunciados que configuram a
proposta da redução de danos, os modelos moral e médico podem atravessar também a fala do
redutor de danos:
Então a redução de danos ensina a gente a viver um pouco, a ser mais humano com
coisas que a gente não era. A gente vê muita violência na cidade, e a gente aprende
a viver, a conhecer a dor do outro, e através disso a gente aprende a poder ajudar
eles. Eles embaixo do viaduto, passando mal, e tu poder passar ali, conversar e
encaminhar eles, poder salvar uma vida. Essas coisas que fazem... a gente não
ganha muito, mas tudo isso daí aumenta a força da gente trabalhar. (Florbela,
redutora de danos) [grifo nosso].
Eu entrei na redução de danos numa época muito difícil da minha vida. Eu fazia
dois anos que tinha pedido a minha irmã com aids, né. [...] então isso aí meio que
me abalou. E quando elas chegaram conversando da redução de danos, me
explicando o que que era redução de danos... eu botei na cara: não vou salvar todo
mundo, né, mas ao menos quem puder... aconselhar para fazer um exame, para ver
se está legal ou não... (Aluisio, redutor de danos). [grifo nosso].
Cecília - é acreditar que se de 10 tu conseguir salvar cinco... não é questão de
salvar, porque isso também é muito forte. Mas de acreditar que essa pessoa tem os
direitos dela, que ela tem direito à saúde, que ela pode... ser uma pessoa...
Elisa - ser uma cidadã, né.
Cecília - que pode ser diferente, mesmo usando... (Cecília e Elisa, redutoras de
danos) [grifo nosso].
104
A menção de “salvar vidas” como parte do trabalho do redutor nos pareceu ligada a
contextos diversos que não o uso ou abuso da droga em si: nestes casos, à situação precária de
vulnerabilidade em que se encontra uma pessoa que vive embaixo de um viaduto e a uma
perda familiar decorrente da aids. Na terceira fala a redutora chega a pronunciar a expressão
“salvar”, mas logo em seguida a troca pela questão dos direitos e da cidadania. Já vimos que a
idéia veiculada pela RD não seria de “salvar”, mas de resgatar as possibilidades para que a
própria pessoa assuma as responsabilidades por suas escolhas, sejam elas quais forem. Assim,
poderíamos fazer uma distinção entre uma ação moral pautada em regras externas à pessoa, e
uma ação ética, pautada em uma escolha refletida a partir do conhecimento do campo em que
se está inserido:
...tudo que vem de fora que é para organizar nosso lado de dentro a gente chama de
moral: os dez mandamentos, a constituição, o código de trânsito, o código penal, o CID
10. Tudo isso são códigos morais que vem do lado de fora para organizar o nosso lado e
isso não funcionou. Se funcionasse, não haveria necessidade de ter redução de danos.
Então a gente trabalha num sentido contrário, a gente faz com que o lado de dentro
organize lado de fora, o que não se chama moral, chama-se ética. Então eticamente, a
redução de danos é o retrato fiel de uma necessidade e de uma grande possibilidade de
organização de uma sociedade. E que está construída dentro da idéia da auto
organização [...] e aí começa aparecer o conflito de natureza política: ver esse
pensamento cada vez mais aprofundado vai nos conduzir a idéia de que quanto menos
autoridades do lado de fora, mais autoridade do lado de dentro. Quanto mais autoridade
do lado de dentro, mais as pessoas se responsabilizam por suas escolhas, inclusive o uso
de drogas, o uso do corpo e uma infinidade de coisas aí que se encaixam bem nos
direitos individuais. (Machado, coordenador).
A redução de danos pode ser então, amplamente entendida como uma postura ética
que possibilita ao sujeito decidir sobre o próprio destino, apoiando-se em uma reflexão da
forma assumida pelo regime de regras imposto/sugerido pelo modelo de sociedade em vigor.
Tais decisões incluem o uso do corpo como um direito privado, o que significa, por exemplo,
que em termos de uso de drogas e sexualidade, não seria direito do Estado intervir. Apesar da
argumentação favorável aos direitos humanos e privados, sabemos que ainda existem diversos
entraves de ordem jurídica e moral para que isto se torne efetivamente uma possibilidade.
Como já afirmamos anteriormente, em uma transformação na lógica de atenção à saúde
devem estar presentes transformações em seu campo teórico, assistencial, jurídico-político e
ainda na forma como é entendido e apropriado culturalmente. Para isso, é necessário que tal
transformação esteja acompanhada de diversos mecanismos externos a ela mesma, sendo de
extrema importância o resgate e criação de espaços de reflexão e trocas de saberes, onde
trabalhadores da saúde e usuários operam uma construção conjunta na definição de uma saúde
possível, e não na imposição de um ideal.
105
7. A complexidade do trabalhador redutor de danos
Além dos jogos de verdade sobre drogas, da relação entre a sociedade civil e o Estado
e entre o público e o privado, outros enunciados atravessam a experiência dos trabalhadores
em RD. Neste capítulo propomos, mais especificamente, discutir como o redutor de danos
constrói sua subjetividade como trabalhador em relação às características consideradas
fundamentais para exercer este trabalho, bem como algumas “divisões” e “normas” que
aparecem quando desta discussão.
7.1 Um ideal para o redutor de danos
Como já vimos até aqui, o trabalho dos redutores de danos é um trabalho desenvolvido
dentro e fora das comunidades, atendendo prioritariamente aos usuários de drogas e sua rede
de interação social (amigos, familiares, etc.), estabelecendo pontes entre estes e uma
diversidade de serviços em saúde e outros recursos. Para executar seu trabalho, os redutores
de danos necessitam se inserir na rede ilegal do uso de drogas e então tentar ampliar a
mobilidade do usuário para além desta rede, possibilitando às pessoas que atendem uma outra
conexão com os serviços em saúde, educação e cultura, entre outros. Também já afirmamos
que devido às características deste trabalho colocam-se questões com relação ao tipo de
trabalhador que desejam ou que poderia ser considerado como “necessário” para um bom
andamento das ações.
Além disso, a possibilidade da profissionalização do redutor de danos e de haver
concursos públicos a partir da criação desta profissão; e, ainda, as tentativas de inserção da
redução de danos no SUS, criam um cenário pertinente à discussão de um “perfil” para o
redutor. Estas últimas questões são atravessadas pelo receio da possibilidade de haver uma
“descaracterização” do redutor de danos no modo como se apresenta hoje, o que poderia
acontecer ou em função de o trabalho em RD ser absorvido por ACS (no SUS), ou então em
função de não haver como garantir, em um concurso público, as características que o
trabalhador assume hoje.
Desta maneira, questionamos os participantes da pesquisa sobre suas percepções a
respeito de haver ou não um perfil para o redutor e, em caso afirmativo, defini-lo. Atentamos
também para as características exaltadas durante toda a entrevista, não só no momento de
resposta a esta pergunta. Neste sentido, uma característica considerada importante para o
106
trabalhador em RD em geral (não só para o redutor de danos, que aqui discutimos), e que não
foi citada diante da pergunta realizada, foi debatida fora deste espaço e diz respeito à
implicação com o trabalho, ou, mais especificamente, a militância (debatida no capítulo 8).
Nem todos os trabalhadores acreditam que exista um “perfil” único para o redutor de
danos, mas todos concordam na existência de “características importantes”. As características
citadas se basearam praticamente em dois critérios de avaliação, as quais se associam às ações
realizadas pelos redutores: o papel e postura do redutor de danos dentro da comunidade e o
seu uso pessoal de drogas. Como veremos a seguir, apesar de a “postura idealizada” se referir
à relação do redutor com a comunidade de uma forma mais ampla, ela também diz respeito às
possibilidades de uso de drogas por parte do redutor.
Em relação à postura do trabalhador na comunidade, foram ressaltadas as seguintes
características:
Eu acho que meu perfil de redutor seria o líder, aquele que se sente seguro como
líder dentro da área onde ele atua, ou seja, dentro do lugar onde ele mora. Não
necessariamente onde ele mora, mas que ele tenha uma boa influência, um bom
relacionamento em outra área... (Mafalda, coordenadora e redutora de danos).
O redutor tem que ser bem articulado dentro da comunidade até para poder
desenvolver essas ações todas, se não fica muito difícil, até porque é uma
população alvo que é atendida que é difícil também de estar lidando de estar
acessando, de estar vinculando ao serviço. (Alcy, redutor de danos).
As características de “liderança” e boa “articulação” retomam a importância do
estabelecimento e manutenção do vínculo no trabalho do redutor de danos, o que faz com que
sua afinidade com a comunidade seja fundamental para que a mesma possa desenvolver uma
relação de confiança e proximidade com o redutor. A idéia de ser bem “articulado” também
faz referência à articulação que o redutor deve fazer entre os diferentes serviços de dentro da
comunidade, para que possa realizar seu trabalho de ser um elo entre o usuário de drogas, sua
rede de interação social e a rede de serviços de saúde. Assim, há uma referência a que o
redutor de danos deva ser alguém com experiência no trabalho com comunidades, mesmo que
não seja necessariamente morador do local onde atua.
Nesta mesma linha, outra característica citada se refere a um respeito ao “momento”
do usuário e da comunidade, no sentido de ter paciência e esperar que se sintam à vontade
diante de sua presença.
...tu tem que saber que aquele momento ali, tu pode estar ali. E tu tem que saber
que aquele momento tu não pode estar ali. Esse é o trabalho do redutor. Porque é
isso que vai fazer com que as pessoas tenham confiança em ti. [...]. Então acho que
o fundamental de tudo é o redutor saber respeitar momento, não só do usuário, mas
da comunidade também [...] o redutor, muitas vezes ele quer criar o vínculo
107
rapidamente com um usuário e não é assim que funciona. Primeiro tu tem que
retroceder. (Fúlvia, coordenadora e redutora de danos).
O respeito ao momento aqui pode se dever tanto ao tempo necessário para que as
pessoas se sintam à vontade para abordar assuntos como drogas e aids como também ao
tempo necessário para conhecer e ser conhecido pela comunidade, para ter acesso permitido
às redes “escondidas” de usuários de drogas, e ter acesso aos locais de uso. A confiança passa
pela necessidade de ser “avaliado” pela comunidade como alguém com quem se pode ou não
contar e ainda cujo trabalho possa ser visto realmente como um trabalho em saúde que visa
beneficiar a comunidade, e não incentivar o uso de drogas ou denunciar redes de tráfico à
polícia (como vimos no capítulo anterior).
Ainda com relação à postura do redutor de danos, agora não só na comunidade, mas
em um sentido mais amplo, foi citada como importante a (não) adoção de um determinado
paradigma em saúde:
... tem que ter um perfil. Aí por exemplo fica muito claro do cara que tem uma
formação positivista, bioquímica, higienista, ele não pode ser um redutor de danos
né, não pode, não vai conseguir. Ou ele derruba a essa concepção interna dele, ou
ele está fudido, ele não vai segurar. [...] e obviamente uma pessoa que não pode ser
preconceituosa porque a gente vai estar se relacionando neste trabalho com pessoas
que são extremamente estigmatizados, né, e se eu reproduzir este estigma eu
também não vou ser um bom trabalhador... (José, redutor de danos).
Já outros acreditam que não há necessidade de ter estas características a priori, mas
que as mesmas podem ser construídas a partir da modificação de alguns conceitos ao longo do
trabalho.
Graciliano – Eu acho que não tem perfil, o único perfil é esse que o Joaquim falou,
é ter amor à camisa e ter a sensibilidade de ouvir e de tentar ajudar
Álvares – No início que eu entrei pra redução de danos se fosse por perfil eu não
teria nenhum, porque além do preconceito com quem era portador do vírus, que eu
tinha, eu tinha também com homossexualismo, essas coisas.
Rafaela – Com usuário de drogas também?
Álvares – Com usuário nem tanto porque eu vivia no meio, até nunca fui santinho e
já fiz o meu uso. Então eu não tinha perfil nenhum nesse sentido, só que eu entrei...
a redução de danos, quando eu conheci, eu achava que era um incentivo, eu não
achava legal a proposta. Mas só que nisso eu mexia com uma guria, que era
portadora, e eu e meus amigos sempre fazíamos um comentário. Bom, eu estou há
seis anos com ela agora, estou casado com ela, né. Então eu modifiquei todo o meu
conceito, assim. Então eu acho que é isso, tu ter vontade de ajudar as pessoas, tu ter
coração, eu acho. (Graciliano e Álvares, redutores de danos; Rafaela,
pesquisadora).
108
Desta forma, enquanto uns consideram que há de se ter uma adoção a priori de
princípios da RD, outros afirmam que a “sensibilidade” e a “vontade” são suficientes,
inclusive, para transformar as próprias crenças dos trabalhadores.
O outro critério citado para a avaliação das características consideradas importantes
para o trabalho do redutor de danos tem relação com a experiência pessoal do trabalhador na
relação com o uso de drogas, seja este uso pessoal, de algum amigo ou familiar. Algumas
questões que aí se colocam são: deveria o trabalhador ter uma experiência próxima com o
uso? E, em caso afirmativo, seria melhor que ainda fosse usuário ou então ex-usuário de
drogas? E se fosse usuário, como deveria se portar perante a comunidade e o trabalho em
relação ao uso? Aqui aparece uma diferença entre as respostas diante da pergunta sobre haver
um perfil, e os comentários feitos ao longo das entrevistas. Quando questionados acerca do
perfil para ser redutor a idéia que aparece, na grande maioria das vezes, é a da diversidade
com relação ao uso de drogas:
Não, não tem nenhum perfil ideal. Se tem um ideal, esse ideal é o da diferença [...]
Então, por exemplo, essa menina (redutora não usuária) é uma pessoa muito
afetiva, carinhosa ela tem um jeito de tratar as pessoas que é muito simpático. E
isso muito bem recebido dentro do campo. [...] Tem um outro redutor de danos que
é um usuário [...]. E daí ele já é um cara que tem aquela malandragem do usuário,
então é interessante o perfil dele porque é um cara que consegue... tem muitos
usuários que a gente ainda não consegue chegar e ele consegue. (Helena,
coordenadora).
Eu já vi diferentes redutores: redutor usuário, ex - usuário, e os que nunca usaram
nada. Eu acho que as três formas funcionam, mas eu acho que tem que ter as três
num programa.[...] Por que tu tem coisas boas e ruins em cada um. O redutor, por
ele ser usuário, ele tem léguas à frente de facilidade de acesso que uma pessoa que
não usou, mas ele tem seus limites também, tem coisas que ele não vai alcançar, né,
de uma pessoa que tem outra vivência que vê de fora. Tem o ex-usuário, que já
conhece tudo aquilo, que tem a facilidade, mas ele tem a visão de não usar, tem
experiência de não usar. E o que nunca usou, ele tem a visão de fora, que também é
importante, que não dá para ser desconsiderado. (Matilde, coordenadora).
Diferentes posturas dos trabalhadores com relação ao uso de drogas são vistas como
interessantes a um PRD, apostando-se na diversidade para abranger trocas de experiências e
maiores possibilidades de assistência (através do trabalho com pares) dentro de um mesmo
programa. Um usuário ou ex-usuário é visto como alguém que teria uma maior agilidade em
acessar as redes de usuários em campo, em função de sua vivência, experiências semelhantes
e linguagem mais próxima. Já pessoas que nunca usaram poderiam ter maior facilidade em
109
acessar outras pessoas, como amigos e familiares, ou mesmo trazerem uma “visão de fora” da
experiência de uso de drogas.
Porém, apesar da diversidade ser enaltecida quando questionados sobre características
importantes para ser um redutor de danos, em outros momentos da entrevista a questão de ser
ou ter sido usuário é apontada como importante para este trabalho:
Por isso que eu acho importante, que vai ser mais fácil para o redutor de danos que
foi ou que é o usuário de drogas ilícitas, mas que é o usuário com este perfil de ir lá
na boca, de conhecer o traficante, de dialogar com ele, de barganhar preço. Porque
é neste mundo que o redutor vai ter que entrar, (José, redutor de danos).
...eu acho que o redutor de danos tem que ser uma pessoa que tem que conhecer
algo, algo a gente fala de drogas, em si, né. [...] o redutor que simplesmente tiver
conhecimento só de 'A', para ele falar sobre 'B' vai ficar difícil. (Manuel, redutor de
danos).
A valorização do saber adquirido pela experiência de ser usuário se refere à
necessidade de se conhecer o mundo no qual se irá realizar um trabalho de prevenção. A
adoção da “diversidade” como opção vem ao encontro de uma proposta que pretende
estimular a aceitação e convívio com as diferenças, e que possui ações em saúde levando e
conta o conceito ampliado da mesma. Para além da diversidade, porém, a característica de ser
(ou ter sido) usuário é colocada como sendo de extrema importância para o andamento das
ações do PRD em campo: usuários conseguiriam acessar mais rapidamente as redes dos
usuários e teriam uma maior facilidade no estabelecimento de vínculos e confiança, ou seja,
seriam possuidores de um “know how” importante para o desenvolvimento das práticas.
Cabe-nos, então, pensar, em quais poderiam ser as motivações para esta preferência,
ou seja, porque, apesar da referência à diversidade, surge a importância da experiência de uso
de drogas. Por um lado, se considerarmos que os objetivos da RD envolvem o resgate da
cidadania e a reinserção social dos usuários de drogas, podemos ver esta valorização como a
possibilidade de ter um outro olhar sobre a experiência do uso de drogas e do usuário, vendo
esta bagagem não como um “estigma”, mas como um aprendizado que pode servir de
currículo para o trabalho com outros usuários. Assim, poderia também estar assegurando um
campo de trabalho a pessoas desvalorizadas em razão do uso e, muitas vezes, pela condição
sócio-econômica.
Porém, não é somente a partir da transformação do usuário em redutor de danos que se
dá o resgate da cidadania, e haveria mesmo uma impossibilidade de que todos os usuários
fizessem tal transformação. Fosse esta a proposta, a RD se resumiria a “dar emprego” a
110
usuários de drogas, e não é esta sua finalidade. Em seu estudo sobre o compartilhamento de
seringas por UDI, Domânico afirma que a escolha de um usuário de drogas para ser redutor de
danos na equipe de trabalho em que atuava se mostrou como mais apropriada por três razões:
o redutor usuário teria acesso à rede de uso; nas cenas de uso ele teria o equipamento
disponível para a troca e, finalmente, conheceria os locais de uso e recolheria os
equipamentos deixados por outros usuários. Enfim, este redutor teria mais chances de estar
presente nas diversas cenas de uso em vários horários, o que segundo a autora, é um fator
importante para prevenir o compartilhamento de seringas pelos UDI, (DOMÂNICO, 2001).
Se por um lado o movimento social em RD busca resgatar a cidadania do usuário de drogas,
atuar no sentido de valorizar o saber do usuário e demonstrar a importância do trabalho com
pares pode ser uma das formas de incentivar uma mudança de condição para o usuário de
drogas na sociedade. Por outro lado, porém, restringir o ingresso à condição de usuário é
operar em uma lógica homogeneizante no trabalho, e condizente com uma postura
corporativista de “reserva de mercado”.
Ainda com relação à questão do uso de drogas por parte do trabalhador, pudemos
perceber uma posição diferenciada com relação a algumas coordenações (de OG), que não
participam do movimento social em redução de danos. Apesar de coordenarem
programas/ações em RD e afirmarem ser comprometidas com a proposta, essas pessoas não se
ligam às lutas e discussões travadas em conjunto pelos militantes. Quando questionadas sobre
a existência de um perfil para o redutor de danos, citam a valorização do trabalho com pares,
porém, quando questionadas sobre como vêem o usuário enquanto trabalhador de saúde,
outras idéias surgem:
Claro que não pode ser só os usuários, tem que ter alguém que vá coordená-los que
vai dar um limite para certas coisas, porque deve ser difícil. Eu tenho um medo
muito grande de expor essas pessoas... Assim, tu tá... eu tenho uma dúvida se a
gente quando põe o redutor de danos, usuário ou ex usuário, em campo, se a gente
não está instigando ele também a fazer uso. Porque talvez a pessoa também esteja
tentando resgatar coisas na sua vida, e a gente esteja dificultando isso, né. Nesse
sentido de pôr em risco, de estar confrontando ele com seu próprio problema, né,
[...] Agora eu tenho certeza absoluta que a educação pelos pares, o processo de
educação pelos pares, é o mais conveniente. Porque ninguém vai ter o linguajar que
tem um usuário para lidar com o usuário e mesmo para perceber ele, para saber
aonde ir, saber como chegar. (Claudia, coordenadora).
Na fala desta coordenação aparece uma racionalidade ligada ao modelo médico-moral,
onde, já que o usuário não pode ter o controle sobre a substância, seria melhor manter-se
111
afastado dos locais de uso e de outros usuários, sob pena de ter uma “recaída”. Assim, ela
parte de uma impossibilidade de o usuário de drogas ser alguém que vá se governar (ou, se
“coordenar”) sozinho, precisando para isso de alguém que lhe imponha limites; neste sentido,
mostra-se avessa a um dos principais objetivos da RD. Além disso, como veremos a seguir,
para muitos usuários redutores de danos o trabalho como redutor, ao invés de colocá-los “em
risco” com relação ao controle ou abstinência do uso, os auxilia a manter um padrão de
cuidado de si. Ainda com relação a esta postura frente ao usuário de drogas como trabalhador
em saúde, podemos afirmar que as coordenações que possuem opiniões semelhantes a esta
são vinculadas a OGs. Assim, podemos reafirmar nossa preocupação com relação à formação
das coordenações e a sua relação com a continuidade da linha de trabalho quando a RD faz
parte da OG.
Partindo da diversidade de opiniões podemos buscar, então, o que poderiam ser as
“bases” da construção de uma “identificação” do redutor de danos como trabalhador no
Brasil
56
. A idéia de um “perfil” para o redutor de danos começou a ser discutida mais
profundamente durante o 1º treinamento de RD no Brasil, realizado em 1998 (encontro
promovido pela ABORDA com apoio do MS). A discussão naquele momento era de que, em
sendo um usuário de droga, um aspecto positivo do redutor de danos seria “ir direto ao
assunto”, chegando mais rápido nas redes e, portanto, tendo uma intervenção mais objetiva.
Além do aspecto positivo, pensava-se também em um aspecto negativo, ligado ao estigma do
usuário de drogas na sociedade, que poderia favorecer intervenções policiais e dificultar a
aceitação na comunidade.
No caso de um ex-usuário de drogas, o aspecto positivo seria o mesmo: pessoas que
conhecem o “caminho”, facilitando a intervenção. O aspecto negativo sob o qual se refletia
seria a possibilidade de uma recaída por parte do redutor de danos, ou seja, temia-se o risco de
que, convivendo com usuários e com o uso de drogas em seu trabalho ele voltasse a usar
drogas. Vemos aqui, novamente, o atravessamento das racionalidades referentes ao modelo
médico-moral nas próprias discussões do movimento em RD. Realmente, a partir da prática,
se descobriu que alguns usuários de drogas acabaram não conseguindo fazer seu trabalho
como redutores sem voltar a usar. Porém, outros descobriram que era realmente possível usar
drogas quando quisessem. Assim, parece reforçar-se a idéia da diversidade no sentido de que,
para cada usuário, em cada momento e contexto de uso, há um tipo diferente de abordagem
56
As informações a seguir foram resgatadas das entrevistas realizadas.
112
que se coloca como preferencial. Desta forma, não há um tipo “bom” ou “ruim” em absoluto,
mas a necessidade de se respeitar a vontade e o momento de cada usuário.
Nesta discussão travada em 1998 sobre os diferentes “estilos” de redutores, havia
ainda o grupo das pessoas que não possuíam uma experiência no campo das drogas e/ou no
trabalho em comunidades. Os representantes característicos deste grupo eram (e parecem
continuar sendo) os chamados “técnicos”. Em princípio, por técnico se entende uma pessoa
que tem uma formação superior, e, segundo os relatos, nos parece também carregar o
“estigma” de ser alguém que não possui proximidade com as comunidades, ou que tem “medo
de ir para a rua”, isto é, de fazer o trabalho de campo. Estes seriam os pontos negativos do
técnico, com o qual contrastariam a habilidade na coleta de dados, na compreensão, e na
conceituação. Apesar de considerar-se que nem todos se caracterizavam por estes pontos
negativos, vemos uma permanência até hoje da percepção de uma divisão entre técnicos e
redutores (analisada no item 7.3) e que se mostra perpassada por esta divisão do trabalho a
partir das abordagens de campo.
Vemos então que o enaltecimento da experiência prévia em relação às drogas esteve
presente desde o início da implantação das ações em RD no Brasil. Além disso, se
retomarmos a forma de inserção das ações no estado do Rio Grande do Sul, através do PRD
de Porto Alegre (discutido no item 3.2), observamos que a parceria com os usuários de drogas
deu-se desde o início para o desenvolvimento das ações, muitas vezes na figura dos “amigos
do projeto” que após um tempo tornam-se redutores de danos dos programas. Da mesma
forma, o enaltecimento da proximidade com a comunidade, que também esteve presente
desde o início das ações em RD no Brasil, continua forte, constituindo-se em uma
característica amplamente citada e concordante entre todos entrevistados.
O uso da droga por parte do redutor de danos foi debatido durante os grupos e
entrevistas para além da questão do perfil, se colocando como um interessante disparador para
pensarmos algumas racionalidades existentes nos regimes de práticas dos redutores de danos e
coordenadores, como veremos a seguir.
7.2 O redutor usuário de drogas como trabalhador em saúde
Todos os coordenadores e redutores de danos entrevistados foram indagados a respeito
da possibilidade do uso da droga influenciar (ou não) o trabalho do redutor de danos e, em
caso de resposta afirmativa, especificar se tal influência se daria de uma forma positiva ou
113
negativa
57
. Em todos os grupos realizados com os redutores de danos, mesmo sem ter sido
feita a pergunta, o tema surgiu espontaneamente em meio à conversa. As opiniões dos
trabalhadores sobre a questão mostraram-se diversas, porém, todas contaram com um ponto
semelhante: o fundamental com relação a um redutor que é usuário de drogas é poder separar
o uso pessoal do trabalho. A concordância, porém, pára por aí, havendo variações quanto ao
grau de rigidez desta separação.
Para facilitar a visualização das opiniões montamos o fluxograma a seguir. As
vantagens percebidas de o redutor ser (ou ter sido) um usuário de drogas, são as mesmas já
discutidas anteriormente. Há também a percepção de algumas desvantagens que se referem
basicamente a relação que o trabalhador irá estabelecer com a droga a partir deste trabalho; a
percepção já discutida do risco que o redutor volte a usar a droga (no caso de ser ex-usuário),
ou que perca o controle (no caso de ser usuário); a possibilidade de uma visão negativa por
parte da comunidade levando a perda do respeito e credibilidade na relação com a população
atendida. Na tentativa de minimizar as desvantagens colocam-se algumas “normas” para o
redutor usuário durante o trabalho, as quais iremos debater neste item.
57
A conotação de “negativo” e “positivo” foram usadas pela entrevistadora, não sendo expressões escolhidas
pelos participantes. A idéia aqui era de dar ênfase à relação uso da droga – trabalho, para saber quais
características poderiam ser consideradas vantagens ou desvantagens para o trabalho.
Redutor usuário
“positivo” “negativo”
Conhecimento da
linguagem
Maior aceitação,
credibilidade e
proximidade com os
usuários
Maior facilidade
e rapidez no acesso
às redes de usuários
“Trabalho com
pares”
Risco de
“recaída” para o
redutor ex-usuário
Possibilidade de
visão negativa da
comunidade.
Perda do respeito
e credibilidade junto
à população
atendida.
Separar
trabalho e uso
“Se policiar”
Não usar ou
pegar a droga
no campo, à
vista do usuário.
“regras”
114
A partir do quadro acima e das questões estabelecidas, podemos pensar, então, sobre
qual seria a racionalidade de governo presente na redução de danos em relação ao uso de
drogas por parte do redutor, e de que forma esta se atravessaria na produção de subjetividade
de seus trabalhadores. Foucault (2002) retoma os gregos para afirmar que a “cultura de si” se
fundamenta na necessidade do cuidado de si, uma idéia segundo a qual devemos nos ocupar
de nós mesmos. A expressão “cultura de si” remete à idéia de que o princípio do cuidado de
si
58
adquiriu um alcance bastante geral, que circula em numerosas e diferentes doutrinas, e
que se desenvolveu em procedimentos, práticas refletidas, desenvolvidas e ensinadas a partir
de relações intersubjetivas.
Já tivemos a oportunidade de afirmar que as mentalidades de governo contêm um
elemento utópico, o telos, o qual devemos isolar para poder compreender os regimes de
governo (DEAN, 1999). Afirmamos ainda que o telos da RD gira em torno do mote “assuma
o controle”, que faz alusão à intenção de que o usuário possa assumir o controle sobre o uso
de sua substância. O “assuma o controle” também pode ser (e vem sendo) pensado de uma
forma ampliada, como um amplo controle que o sujeito pode exercer sobre a própria vida, e
que se aproxima da idéia de Foucault sobre a possibilidade de escolher, a partir de um campo
de possibilidades, os rumos de sua vida.
A partir do enunciado “assuma o controle”, podemos afirmar que um objetivo do
redutor de danos, então, seria incentivar nos usuários atendidos a possibilidade de
experimentar este controle de si e a “prática refletida de sua liberdade”. Porém, segundo
Foucault, para cuidar dos outros é necessário primeiro cuidar de si. Assim, esta proposta de
governar-se na relação com o uso da substância a partir de um controle próprio sobre o uso
recai também sobre os redutores. Para Dean, definir o governo como conduta da conduta é
admitir casos em que governante e governado são dois aspectos do mesmo ator, ou seja, a
noção de governo inclui não só como nós exercemos autoridade sobre os outros, ou
governamos entidades abstratas como os Estados e as populações, mas também como nós
governamos a nós mesmos. Isso inclui uma problematização do indivíduo acerca de sua
própria conduta, o que também está ligado a um determinado telos: quem e o que nós somos e
deveríamos ser (DEAN, 1999).
58
Embora Foucault tenha usado a expressão para pensar a constituição do sujeito grego e, cuja extrapolação não
pode ser feito para o sujeito contemporâneo, buscamos aqui a inspiração da noção do cuidado de si para pensar
como os sujeitos da RD buscam se constituir de uma outra forma daquela que estigmatiza e que é hegemônica no
campo de possibilidades demarcado pelas disputas de saber-poder com relação às drogas, à aids e a sexualidade,
entre outros.
115
Mas quais seriam as práticas de governo de si que os redutores deveriam ter perante o
uso de uma substância? Se pensarmos no “assuma o controle”, a racionalidade de governo de
si poderia ser a exigência de controlar o uso de forma a ser mestre de seus desejos, e não
escravo deles. O Manual de Redução de Danos, elaborado por diversos redutores de danos e
outros trabalhadores de RD e publicado em 2001, se destina a “sistematizar a experiência
nacional” adquirida até então e “subsidiar as pessoas e instituições que se propõem a
implantar, melhorar e avaliar” ações e projetos em redução de danos (MS, 2001). No capítulo
destinado ao trabalho de campo, mais especificamente onde se descreve a “atuação em
campo”, diz-se que não existe um perfil ideal de redutor de danos, mas colocam-se como
importantes algumas características, que vão ao encontro daquelas já discutidas
anteriormente: “jogo de cintura”, sensibilidade para saber como e quando entrar em campo,
conhecimento da importância do trabalho que se realiza, e não ser preconceituoso. Diz-se
ainda que o trabalho em campo exige alguns “limites”:
Se o redutor de danos é um usuário de droga, ele não deve ir a campo em condições
de intoxicação que o impeçam de atuar. Da mesma forma ele não deve portar
drogas ilícitas quando estiver atuando no campo, para evitar riscos e contratempos
desnecessários à equipe e ao projeto (se ocorrer uma batida policial, por exemplo).
Não se trata aqui de negar a condição de UD do redutor de danos, mas de
desenvolver a sua capacidade de discernir entre sua vida privada e o trabalho.
(BRASIL, 2001, p.49)
Do nosso ponto de vista, os limites aqui colocados não se referem a não trabalhar
tendo usado drogas, mas referem-se à não usar drogas em uma quantidade tal que não permita
o trabalho (ou seja, manter o controle sobre o uso), além de não portar substâncias durante o
trabalho devido à ilegalidade envolvida (o que poderia ocasionar uma ligação indevida do
trabalho em RD com o tráfico). Ao final da citação, há a menção de ter que discernir entre
vida privada e trabalho.
Retomemos então a unanimidade sobre a necessidade de separação do uso pessoal e
do trabalho a partir das falas dos redutores:
Julieta - Sempre foi assim né, a redução de danos, quando tu está fazendo campo, tu
não pode usar.
Aluisio - [...] Cansei de chegar em roda, e os caras fumando um baseado. Eles
oferecem, mas eu digo que não.
Cecília - Eles oferecem, mas tu tem que te colocar no teu lugar. É essa
responsabilidade que tu tem com o trabalho, né. [...]
Rafaela-Mas o que é que vocês acham que prejudica no campo?
Todos falam mesmo tempo
Cecília - Isso tem a ver com a credibilidade do trabalho. O que é que tu está
levando para aquelas pessoas em campo [...] acho que perde o respeito.
116
Adélia - (fala em voz bem baixa) E eu não acho legal isso. Não sei, eu não vejo que
perde o respeito porque eu não tenho essa visão da droga de ter respeito ou não ter
respeito, porque fuma ou porque não usa. Mas eu acho que, que nem, ele estava
trabalhando ali, e não deveria ter usado. Ele não tinha. Se quer fumar fuma quando
sai do trabalho, então. Não precisava ter fumado junto. [...]
Enquanto isso todos discutem junto
Rafaela - Tá, mas deixa eu botar mais lenha na fogueira, então, pra gente pensar.
Porque vocês moram na comunidade e então vocês estão fazendo campo lá, e daqui
a pouco vocês gostam de beber uma cervejinha. Mas então, enquanto vocês estão
fazendo campo vocês não vão fazer isso. Aí acabou o horário de trabalho, e vocês
vão para o bar ali da comunidade. Aí pode fazer?
Todos falam juntos.
Cecília - [...] Não, não porque se resolveu assim, dentro do trabalho... de nunca
ficar na área. Terminou o plantão tu sai da área pela responsabilidade, no caso, que
o programa tem contigo também. Tu está trabalhando, fazendo um trabalho. Se
acontecer alguma coisa, te rala, é problema teu e tu vai resolver. Sempre isso ficou
muito claro. [...] se tivesse que tomar uma cervejinha, alguma coisa... eu ia para um
lugar bem diferente, entendeu, porque eu posso fazer o meu uso, cada um na sua.
Terminou plantão é nunca ficar dentro da área. Porque as pessoas que fizeram isso
de voltar na área buscar alguma coisa... depois era passado isso para nós.
Adélia - Mas eu acho que a questão é tu ter acesso ao teu uso da droga. E isso é que
não é sensato porque no momento que tu chega ao campo, é para ti ter acesso ao
usuário. Ele oferece, na boa, tu não vai perder o respeito... (Julieta, Aluisio, Cecília
e Adélia, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
A discussão acima foi disparada a partir do comentário de que um redutor haveria
“dado uns pegas” em um baseado juntamente com alguns usuários que estava abordando.
Apesar da concordância que não se deveria usar a substância durante o trabalho, houve uma
discordância sobre o uso após o trabalho dentro da comunidade atendida. Na noção de que o
uso perante a comunidade atendida comprometeria a credibilidade e o respeito parece estar
presente a possibilidade de um julgamento moral com relação à postura do redutor de danos.
Já na noção da responsabilidade que o redutor deveria ter com o programa (que é de não usar
o nome do PRD para justificar-se à polícia no caso de ser pego em campo usando drogas),
aparece uma combinação realizada entre redutores e os programas, para evitar que o trabalho
da RD possa ser confundido com o tráfico, ou que sirva para aumentar o estigma de que é um
“estímulo ao uso de drogas”. A base do argumento é de que o uso é privado, portanto, as
conseqüências do mesmo devem ser assumidas pessoalmente – o que faz parte da idéia de
assumir o controle e a responsabilidade por suas escolhas.
Assim, poderíamos pensar que não usar em campo se coloca como uma “prudência”
relacionada ao modelo jurídico-moral, no momento em que há o risco de comprometer todo o
trabalho de um programa dentro da comunidade. O uso de drogas, ao invés de assumir um
caráter privado, passa a se atravessar institucionalmente. Já no caso de não poder usar nem
fora do horário de trabalho o atravessamento parece ser puramente moral. Além disso, parece
haver uma confusão entre uma racionalidade onde somente a abstinência seria possível, e a
117
racionalidade presente na RD de que o fundamental é ter o controle sobre a substância e não
necessariamente “não usar”.
O relato a seguir sugere um atravessamento moral claro, porém, na opinião deste
redutor, tal atravessamento se daria não com o usuário de drogas, mas em relação à população
não usuária:
Rafaela - E o que vocês acham do uso de drogas, quando o redutor usa drogas.
Vocês acham que isso influencia o trabalho dele positiva ou negativamente?
Manuel - Eu acho que tem o positivo e tem negativo.
Rafaela - Qual tu acha que o positivo e qual é o negativo?
Manuel - O positivo seria que é uma opção dele, e o negativo seria a visão de uma
comunidade [...] se eu tiver dentro deste contexto num enfoque de uso, o meu
diálogo tem que ser outro, tenho que pegar só que ele público-alvo mesmo [de
usuários de drogas]. Porque como é que vou falar alguma coisa se a comunidade
sabe que eu uso? (Manuel, redutor de danos; Rafaela, pesquisadora).
Como já vimos anteriormente, as questões de cunho moral e aquelas referentes ao
imperativo da abstinência vindas do modelo médico se atravessam na compreensão sobre o
trabalho e o trabalhador em redução de danos. Assim, enquanto o atravessamento moral pode
julgar o redutor de danos como alguém moralmente inadequado para ser confiável ou ser
considerado um trabalhador de saúde, o modelo médico pode exigir uma “sanidade mental”
ligada à abstinência para que o redutor seja considerado saudável suficiente para ser um
trabalhador da saúde (mental). Assim, Manuel afirma que a visão que a comunidade não
usuária pode ter sobre um redutor usuário impossibilitaria o mesmo de realizar um trabalho de
prevenção. Aqui opera o mecanismo moral pelo qual estigma transforma o usuário em uma
pessoa desacreditada (Goffman, 1982) e, por conseqüência, qualquer prática como passível de
ser desacreditada se conduzida por um usuário de drogas. Uma alternativa apresentada por
este redutor para não ter que arcar com as “desvantagens” de ser usuário, seria a de omitir
para a comunidade este fato, por exemplo, não usando drogas dentro da área.
Segundo Goffman (1982), quando a “qualidade diferencial” da pessoa estigmatizada
não é imediatamente aparente e não se tem dela um conhecimento prévio, a pessoa é
“desacreditável”, e não “desacreditada”. Aí se coloca a questão da manipulação da
informação sobre o seu “defeito”: contar ou não contar, exibir ou ocultar. Por um lado,
poderíamos pensar que o redutor, ao definir que omitiria na comunidade o fato de ser usuário,
estaria sujeito ao mecanismo de estigmatização, o qual opera por meio de um jogo de
visibilidade-invisibilidade: mostrar-se para os outros como uma pessoa que não usa drogas,
apesar de trabalhar com uma linha que admite o uso como um direito. Por outro lado,
podemos afirmar que se trata de uma forma de burlar o estigma, i.e., o redutor pode utilizar-se
118
da estratégia de não “abrir” o uso como forma de poder abordar a comunidade não usuária
com maior facilidade, e sem suscitar preconceitos. Neste sentido, não usar drogas em campo
poderia ser visto uma forma de manter a “credibilidade” com a população atendida (que aqui
parece ser mais especificamente a população não usuária).
Outra forma de se ver o uso do redutor na comunidade se coloca na fala a seguir. Aqui
a noção do governo de si aparece claramente, pois assumir a postura de usuário dentro da
comunidade (fora do horário de trabalho) se coloca como uma possibilidade de “dar o
exemplo” para a comunidade atendida de que é possível ter um uso controlado.
Então a gente fica pensando muito isso, vamos nos policiar: se vamos tomar
cerveja, vamos tomar cerveja decente, não vamos ficar atirado na esquina. A gente
é muito visado, então a gente procura se policiar. Eu acho que como o redutor
encaminha o usuário, ele também tem que ter um caminho, tem que ter um
comportamento. Não é mentir para usuário de drogas, mas pelo menos assim "ó, eu
uso, eu faço uso, mas eu uso quando estou em casa, ou no meu lazer". (Mafalda,
coordenadora e redutora de danos).
Para poder veicular o enunciado “assuma o controle” para os usuários que atendem, os
redutores de danos devem demonstrar que podem exercer o cuidado de si. Assim, estarão de
acordo com sua reflexão “ética” e não correrão o risco de serem colocados em uma posição de
quem faz “moral de cuecas”, dizendo para o usuário buscar um uso controlado, mas usando
drogas de forma descuidada.
A partir desta noção de servir como “exemplo”, podemos analisar também a
valorização de uma experiência prévia de uso de drogas para o trabalho do redutor de danos.
A passagem pessoal pelo uso de drogas, aliada a uma aprendizagem no sentido de poder
“assumir o controle” sobre sua vida e a substância colocam o redutor de danos usuário de
drogas numa posição de quem “conhece o caminho”, e pode ajudar o usuário que atende a
partir de sua experiência:
... porque a imagem que passa assim né de um cara que tomava, já usava drogas e
tudo, não tinha nenhuma redução, e de repente se arrumar na vida, colocar planos
na sua vida, melhorar, serve de exemplo. Daqui a pouco tu encontra camaradas que
tu estava em uso um tempo atrás, e que hoje tu, eles estão te vendo de uma forma
diferente. Antes tu ia lá para pegar a droga, agora tu está fazendo esse trabalho, eles
vêem que tu melhorou, que já está bem com a tua família, e antes da droga
despontava, tu não via saída. E eu acho que o usuário vê isso em nós, vê que hoje a
gente está com outra visão, entre nesses meios dessa outra forma, e sendo vistos de
outra forma. (Lima, redutor de danos).
... a partir do momento que eu fiz essa terapia de substituição como eu falei [do uso
de cocaína para o trabalho como redutor de danos], eu comecei a me sentir bem
119
mais forte com relação à fraqueza que eu tinha com a droga. Eu comecei a ver que
era um lixo que eu poderia reciclar. E até hoje consegui usar isso, todas essas
experiências minhas que eu tive para passar para as pessoas que continuam usando
drogas. No sentido de que... não é impossível também a pessoa deixar de ter
problemas com as drogas, e não necessariamente para isso ela tenha que parar de
usar, mas aprender a usar de uma forma mais racional, né. (Érico, redutor de
danos).
Estes dois redutores iniciaram o trabalho na redução de danos após serem abordados
por outros redutores do Programa de Redução de Danos em sua comunidade, por serem
usuários de drogas. Assim, a redução de danos representa para eles uma forma de cuidado de
si que puderam experimentar para depois transformar suas experiências em matéria útil a fim
de veicular o cuidado dos outros.
Na cultura de si as conversas com guias, confidentes ou amigos faziam parte das
práticas e exercícios realizados no tempo destinado ao cuidado de si. Tais exercícios de trocas
eram tidos como benéficos mesmo para o preceptor, pois “assim ele os reatualiza para si
próprio” (Foucault, 2002, p.57). Havia, então, uma hierarquia: os que estavam mais
avançados na direção de si próprios podiam abraçar a tarefa de dirigir os outros. Assim,
também podemos pensar as formas de construção dos sujeitos trabalhadores em RD, onde o
cuidado de si acontece na relação do usuário com o redutor de danos (o vínculo), numa troca
permanente de experiências e reflexões. Nesta troca, ambas as partes são beneficiadas na
medida em que cuidar do outro, para o redutor, também se vincula à idéia de poder cuidar de
si. Ao refletir e reaproveitar uma experiência de aquisição do controle sobre uma substância
e/ou sobre a própria vida, o redutor tem a possibilidade de reatualizar e desenvolver o cuidado
de si, assumindo um duplo papel de “cuidado” e cuidador.
...eu acho que o que dá sentido no trabalho é aquilo que tu... não sei se nesse
momento eu estou te ajudando ou tu está me ajudando a ou a gente está auto se
ajudando. Porque tem aquela coisa do policiamento assim, tem que estar me
policiando a todo o momento. Todo mundo sabe que no momento em que der
abertura vai voltar. Então se ele estiver em um contato diário, muitos dizem que
não, eu já vi psicólogos dizendo que "Báh, não, quando convive muito perto, muito
próximo, tem que ter cuidado". Eu acho que quanto mais próximo, tu fica te
policiando, para não estar nas mesmas recaídas que o outro está tendo. Eu acho que
fica uma mútua ajuda sem tu perceber [...] Pelo menos, naquele momento em que
eu estou trabalhando, tenho uma outra posição. Muitos dizem que o redutor é o
espelho do usuário, então não posso estar com aquele espelho sujo, senão ele não
vai conseguir refletir a imagem dele no meu espelho. Ele vai ver "Pô, mas se ele
conseguiu porque é que eu não estou conseguindo". (Raul, coordenador).
Para este trabalhador em RD - ao contrário da racionalidade presente no modelo
médico-moral, na qual o contato com o uso pode incentivar uma recaída para o ex-usuário (já
120
que ele não tem o controle sobre a substância) - o cuidado exercido no atendimento aos
usuários em campo incentiva uma reatualização do cuidado de si em relação ao uso da droga.
Em suas palavras, incentiva a “estar se policiando” para não ter as mesmas “recaídas” que vê
o usuário tendo em campo. Neste mesmo sentido, o possibilita estar ocupando um outro lugar
no momento em que está trabalhando – é usuário, mas no momento em que está realizando as
abordagens em campo, sua posição de cuidador passa a ser preponderante.
Como veremos adiante, a possibilidade de ressignificar o uso pessoal de drogas
aproveitando sua experiência na relação com outras pessoas e os ganhos pessoais obtidos a
partir da adoção da “filosofia” da RD em suas vidas, são motivos que fazem com que os
redutores possuam uma implicação com o trabalho que transcende o “emprego”. Ao mesmo
tempo em que esta ressignificação pode ser mais um passo para a conquista da cidadania e do
controle de si, porém, há o risco de que a mesma possa acabar servindo de meio para
continuar à margem, através da aceitação da precarização do trabalho “por amor à camiseta”
(discutiremos esta questão no próximo capítulo).
Considerando todos os atravessamentos aqui analisados, podemos perceber que o uso
da droga por parte do redutor traz consigo formas de cuidado de si que nem sempre se
mostram consensuais entre os trabalhadores. Apesar do consenso sobre a necessidade de
separar a “vida privada do trabalho” podemos afirmar que esta separação não é possível, pelo
menos não no sentido amplo de “privado” e de “trabalho”, pois se consideramos a
subjetividade é constituída a partir da experiência de si e afirmarmos a importância que o
trabalho assume na vida dos sujeitos, vemos que não há possibilidade de separação. Mesmo se
limitarmos aqui o “trabalho” e o “privado” ao consenso sobre a impossibilidade de uso da
droga durante as abordagens em campo, vemos que as motivações ou explicações para
assumir este comportamento variam de acordo com as experiências pessoais dos
trabalhadores, traduzindo racionalidades diversas: para uns, a questão é a moralidade presente
na comunidade com relação ao usuário de drogas; para outros a questão é a ilegalidade do
uso; outros ainda afirmam o papel do redutor como um exemplo com relação ao controle do
uso pessoal, no qual a questão passa a ser o cuidado de si como forma de assumir o cuidado
com o outro, o que, por sua vez, reatualiza o cuidado consigo.
Para além desta diversidade, podemos refletir sobre a necessidade imperativa de não
usar/portar drogas durante as abordagens de campo. Vimos que tal “regra de conduta” serve
para proteger o próprio trabalho em redução de danos, em função da rede legislativa que rege
o uso de drogas em nossa sociedade. A nosso ver, o que parece mostrar-se aqui é um limite à
121
ação do redutor de danos e da própria redução de danos enquanto um movimento social:
apesar de se defender o direito ao uso de drogas e o usuário como um cidadão como qualquer
outro, em determinadas circunstâncias coloca-se como prudente a invisibilização do uso. Aqui
se evidencia uma especificidade da redução de danos enquanto movimento social em relação
aos movimentos que buscam afirmar suas lutas através de uma identidade e da possibilidade
de ocupação de espaços “proibidos” pelo preconceito: além do estigma (e das categorias
constantes do CID 10 e DSM IV), há a formalização a diferença entre o usuário de drogas e o
cidadão “normal” através de legislações repressivas, nas quais existe a possibilidade de se
excluir, legalmente, o usuário do convívio social. Assim, o modelo jurídico – moral acaba
sendo um dos grandes entraves do avanço da proposta da redução de danos na sociedade,
dificultando a organização de usuários de drogas em associações ou grupos que assumam sua
visibilidade perante a comunidade em geral
59
.
Apesar dos limites impostos pelos modelos jurídico-moral e médico-moral, deve-se
levar em conta que o uso de droga por parte do redutor de danos, de acordo com os princípios
da RD, emerge majoritariamente não como um imperativo de conduta, mas sim com uma
possibilidade de avaliar a situação em cada caso, fazendo uso da liberdade refletida e
assumindo as responsabilidades perante as possíveis conseqüências.
7.3 A divisão entre “técnicos” e redutores
A percepção de uma divisão entre duas categorias de trabalhadores em redução de
danos - os “técnicos” e os redutores de danos – surgiu espontaneamente nas entrevistas. Tal
divisão foi citada prioritariamente por trabalhadores em RD que realizam o trabalho de
campo: redutores de danos ou então coordenadores que já foram ou ainda seguem como
redutores de danos.
Nesta divisão, os redutores de danos trazem como característica diferenciadora,
principalmente, o fato de serem os grandes responsáveis pelo trabalho de campo. Já os
“técnicos”, como sugere a palavra, seriam sujeitos que possuem formação universitária ou
59
Só muito recentemente podemos ver tais redes surgindo no país, como associações de usuários de drogas e
movimentos anti-proibicionistas. Os participantes de tais movimentos, porém, ainda tem que arcar com o
estigma, a criminalização do usuário e suas possíveis conseqüências pessoais e institucionais. Um exemplo aqui
poderia ser o do movimento antiproibicionista de POA, o princípio ativo. Em função de uma decisão de
participar da Marcha Mundial da Maconha (realizada todo o dia 7 de maio em diversos países), o grupo passou a
receber ameaças de intervenção policial, inclusive através de reportagens em jornais de grande tiragem no estado
do RS. A participação do grupo na marcha acabou sendo cancelada.
122
técnica. Estas diferenciações parecem estar na base da separação entre as duas categorias, mas
as motivações para separar uma e outra se mostraram um pouco mais complexas: além da
escolaridade e do trabalho de campo, parece tamm haver diferenças em relação à
proximidade com comunidades carentes, à situação sócio-econômica e ao acesso a diferentes
“espaços” de trabalho dentro da RD.
Na busca de entender algumas motivações para esta diferenciação, remontamos aos
momentos iniciais da inserção das ações de redução de danos no Brasil e no Rio Grande do
Sul
60
. De acordo com alguns participantes, a divisão entre técnicos e redutores parece ter
“nascido” junto com o movimento em RD: desde o início, no custeio do transporte fornecido
pelo MS para a participação em encontros e eventos, havia uma parcela destinada aos
“técnicos” e outra aos redutores. Aqui parece estar implícita a idéia de que o técnico seria uma
pessoa da coordenação do programa/ação, e redutor seria o trabalhador “do campo”. Ainda
hoje a divisão entre “técnicos” e “redutores” por vezes parece se aproximar da divisão entre
coordenadores e redutores. Porém, esta seria uma visão reducionista: nem todos
coordenadores “caem” na conotação de técnicos, e muitos técnicos exercem posições outras,
que não a coordenação de programas/ações.
A diferenciação relacionada ao trabalho de campo que parece ser o grande disparador
desta divisão, também parece ter iniciado há bastante tempo. Em 1997, no 1º Encontro
Nacional de Redutores de Danos quando foi oficialmente criada a ABORDA, ficou definido
pelos participantes que o redutor de danos possui um compromisso, basicamente, com o
trabalho de campo, definindo assim um “perfil” para o redutor de danos que segue até hoje.
Também a ABORDA assumiria esta divisão, tendo este nome em função da prioridade dada à
“abordagem”, e a finalidade de fortalecer o saber do redutor de danos. Vale dizer que o
equivalente internacional da expressão “redutor de danos” (específica para os trabalhadores
brasileiros) é o “outreach worker”, cujo significado remete a um trabalho realizado “na rua”.
Se remontarmos, então, às discussões dos itens anteriores sobre a “diversidade” nas
características consideradas fundamentais para ser um redutor, lembraremos que o chamado
“técnico” entrava em uma categoria que possuía “facilidade” com as palavras, conceitos e
números. Porém, na idéia dos redutores, possuía uma dificuldade para realizar o trabalho na
comunidade. Assim, seguindo esta divisão “ao pé da letra”, enquanto os técnicos seriam
aqueles cujo campo de saber abrange o conhecimento formal, o campo de saber dos redutores
de danos seria da ordem da “experiência”. Cabe dizer que esta divisão assume aqui uma
60
As informações a seguir foram resgatadas a partir de entrevistas realizadas.
123
forma um tanto “caricata”, já que no cotidiano do trabalho os “supostos” saberes de técnicos e
redutores nem sempre se mostram tão divididos; porém, a divisão existe, devendo ser
explicitada e ser alvo de reflexão.
Como bem nos lembra Foucault, não há saber que não se constitua a partir de em
relações de poder: todo conhecimento, científico ou ideológico só pode existir a partir de
condições políticas que são as condições de formação dos sujeitos e dos saberes. E assim
como todo exercício de poder é um lugar de formação de saber, todo saber assegura um
exercício de poder: não há saber neutro; todo saber é político (FOUCAULT, 1979). Deste
modo, a investigação de um saber não deve remeter a um sujeito do conhecimento, mas às
relações de poder que o constituem. Neste sentido, os indivíduos estão “sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder,
são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos,
passa por eles”. (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.183). Uma das conseqüências desta
“circularidade” do poder, é que onde existe poder está também presente a resistência, que se
traduz em uma ação do poder, ou uma ação contra o poder “dominante”.
Nesta divisão entre técnicos e redutores, podemos observar que a valorização dos
diferentes saberes parece estar ligada a uma tentativa de assegurar um espaço de atuação
específico. Neste sentido, os redutores trazem uma valorização do seu lugar de enunciação
como sendo um lugar válido no “campo”, lugar onde o saber do técnico poderia não contar
com uma legitimidade e virar-se contra ele mesmo, na medida em que dificultaria o acesso à
comunidade:
...a gente batalhou muito. Na questão de trabalho corpo-a-corpo na comunidade,
não tem pessoas melhores para abordarem a população do que nós redutores de
danos. Tem uma grande diferença sim, entendeu? Os técnicos dizem que não, mas
há uma grande diferença na tua fala, entendeu? Na maneira de se inserir tem várias
coisas que entre técnico e a população da comunidade tem um bloqueio. Com os
redutores de danos - usuários ou não, porque uma dona-de-casa também pode ser
redutora-, não tem este bloqueio, entendeu? O vínculo é muito mais fácil do que
com um técnico. Porque sabe né, que o técnico ele veste fardamento, que nem eu
digo, e se bloqueia, dali ele não passa. E a gente não, a gente consegue se inserir
melhor, a gente cria um vínculo com o usuário... (Eunice, coordenadora e redutora
de danos).
O “técnico” nesta descrição é alguém que não consegue se apresentar perante a
comunidade de uma forma próxima, supostamente em razão de não ter uma vivência de ser
morador, trabalhar em uma comunidade ou mesmo em função de uma escolaridade formal
124
adquirida, a qual transformaria sua fala. A diferença percebida na linguagem do técnico e do
redutor de danos fica clara na conversa abaixo:
Adélia -... É que eu digo assim, a pessoa que tem contato com a comunidade, ela
tem outra maneira de falar com o usuário, que quem tem uma formação técnica não
sabe falar. Então a abordagem já é diferente. O cara que usa drogas não vai se abrir
para o técnico que vai chegar com um papo todo formal. E se o cara conhece, ele já
vai entrar em contato de uma outra maneira. Então é... eu tenho um filho, eu tenho
um parente, um vizinho, então ter o contato sensibiliza mais. Eu acho que o fator de
ser liderança comunitária é o ponto X. Ou morar na comunidade, de alguma forma
interagir na comunidade.
Elisa - Já sabendo falar a linguagem deles. Imagina, falar na malandragem, um
técnico não entende, então já fica mais difícil. Às vezes a gente mesmo não entende
algumas coisas, e tem que falar a linguagem do nosso povo. Então isso é bem aceito
na comunidade. Senão aí vem o técnico falando todo formal, ninguém entende
nada. E às vezes é uma coisa tão simples né... (Adélia e Elisa, redutoras de danos).
O saber do redutor de danos em relação à linguagem da comunidade, a qual inclui o
conhecimento da “malandragem” relacionada aos códigos da ilegalidade e da rede de usuários
de drogas, se coloca como uma forma de exercício do poder. Este saber assume o status de
uma linguagem que somente o redutor teria acesso, e que pode usar na tentativa de assegurar
um espaço de atuação baseado em um saber específico, tal qual o técnico possui por ter curso
superior ou técnico. O saber específico do redutor, porém, não é adquirido através de estudos
na rede de ensino formal, mas sim através da experiência de vida. Da mesma forma em que no
ensino formal alguns saberes são “privatizados” através de uma linguagem “técnica”, ou seja,
que só os “iniciados” podem entender, também no saber conquistado pela experiência de vida
se aprende a entender uma linguagem de códigos (no caso, a “malandragem”), que o técnico
não entenderia a priori, e que seria o diferencial do redutor de danos.
João -... o W lá do abrigo X era um caso perdido. Já tinha feito quatro internações
no [hospital A] fora o [hospital B], e ele é um usuário que tem problemas com co-
morbidade. E aí nos chamaram e nos pediram, "Olha, conversem com o W". Olha,
a gente conversou com ele acho que duas vezes, e tinha um grupo de dependência
química lá nas quintas-feiras de manhã que eu acho que ele não participava. A
partir de que a gente fez uma intervenção com ele, ele começou a vir. Enfim...
segredos do redutor (risos)... as conversas né. Que às vezes perguntam o que que
vocês falam? E não, é aquela coisa de tu já ter passado, de ter vivido, ter sofrido.
Então acho que o usuário se sente mais à vontade com o redutor, de ter uma
conversa mais mano a mano, que não é que nem ter uma conversa com um
psiquiatra...
Rafaela - Segredos do redutor...
Florbela - Às vezes é só conversar, levar o cara a sério, acolher. Às vezes as
relações são tão frias que o cara nem vai lá porque acha que vão tratar ele mal. Aí
se tu chega e dá uma atenção, conversa, o cara se sente mais seguro. "Não, o cara
está me apoiando, está me dando força" e aí a pessoa se sente bem e participa. Mas
tu tem que dar um carinho, uma atenção, um aperto de mão, um sorriso.
João - Isso aí é muito importante para o usuário, se sentir valorizado. (João e
Florbela, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
125
Aqui o “segredo do redutor” na abordagem com o usuário é colocado por João como
sendo reflexo da experiência pessoal do uso de drogas, que levaria a uma maior proximidade
com o usuário. Já para Florbela, não parece tanto se tratar do conhecimento de uma outra
linguagem, mas sim de questões que seriam básicas na saúde, como o acolhimento, coisa que
infelizmente, muitos profissionais da rede de saúde não fazem na relação de atendimento com
o usuário de drogas.
Apesar de chamarem atenção para enaltecer o saber do redutor como sendo tão (ou
mais) importante que o dos técnicos para determinadas tarefas dentro da RD, há também a
percepção de que não há um reconhecimento deste saber em função de uma falta de
escolaridade formal que o ateste. Esta idéia pode ser percebida na fala abaixo, disparada pela
discussão sobre a possibilidade de haver salas de uso
61
no Brasil:
...Mas eu não sou muito favorável não [às salas de uso]. Porque assim, eu acho que
é outra forma de os técnicos se inserirem também (risos). Porque daí vai ter a sala,
vai ter um médico, vai ter isso, vai ter aquilo. E os redutores onde é que ficam? [...]
Então anos atrás a gente meio imaginava, porque a gente chegava e aquela
sujeirada, aquele fedor... “báh, já pensou a gente poder transformar isso daqui, estar
tudo limpinho e poder ficar um redutor aqui, tirando o seu plantão no brete,
orientando o pessoal, orientando para fazer higiene, limpar, lavar... eu acho que isso
é uma outra história, sabe? E a sala de uso não tem nada disso. É só o médico, a
enfermeira, e tal. E o psicólogo: deprimiu, psicólogo. E o médico, se tem overdose
um médico que atende. A enfermeira te ensina primeiro a fazer a limpeza no local...
isso redutor também sabe fazer, entendeu? Tem redutor que até na época já
trabalhou no PRD, que era analfabeto e que sabia controlar a overdose dos usuários,
aplicar nos usuários [...] Então eu também sou contrária, mas na hora em que a
gente começar a discutir isso vai dar muita pauleira. Eu acho que é mais uma forma
de sair muita grana, entendeu... e precisando de tanta grana para fazer outras coisas
muito mais úteis do que salas de uso. Eu acho que não tem necessidade de sala de
uso. Ninguém precisa ter uma praça que nem na Suíça
62
“. (Eunice, coordenadora e
redutora de danos).
A discussão aqui se refere ao tipo de saber que é valorizado e entendido como
“verdadeiro” em nossa sociedade; neste caso, seria o do “técnico” e ainda aquele vindo do
estrangeiro, ligado à questão econômica. Na opinião da participante, este saber se contrapõe
61
A sala de uso é uma estratégia utilizada em alguns países da Europa, e consiste em um local onde é possível
realizar o uso de drogas com a assessoria de uma equipe técnica de saúde, com o objetivo de prevenir doenças
transmissíveis, overdoses, abscessos e outros danos decorrentes do uso. Aqui no Brasil, quando da discussão
sobre o projeto de lei que previa a modificação da Lei de Entorpecentes (discutida no item 5.1 da presente
dissertação), considerou-se a possibilidade de haver salas de uso dentro de uma universidade em caráter
experimental, para pessoas com um grau elevado de dependência. Na fala, a participante traz à tona esta
discussão para exemplificar suas idéias sobre a relação entre redutores de danos e técnicos.
62
A praça aqui referida é uma praça criada na Suíça onde o uso de drogas era permitido. Porém, a proibição em
outros países vizinhos acarretou a migração de muitos usuários de outros países para o local com a finalidade
única de consumir drogas, trazendo algumas dificuldades em relação à assistência e organização do local. Em
função disso, a praça foi fechada.
126
ao saber dos redutores, mais vinculado ao saber do cotidiano/da experiência. Nas palavras de
Foucault,
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é,
os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo
de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 1979, p.12).
A denúncia, então, parece ser a de que há um saber desvalorizado, que não é adquirido
ou atestado através da educação formal, e que é preterido em relação a outros. Esta
valorização da escolaridade formal, fortemente presente até hoje, e a desvalorização do saber
adquirido com a prática de trabalho é fundamental para entendermos o lugar em que o redutor
de danos se coloca como trabalhador, e as motivações relacionadas à percepção da separação
entre técnicos e redutores. Podemos pensar que o redutor de danos é subjetivado e se subjetiva
na relação com um saber, que possibilita o trabalho de campo, como forma de resistência a
um modelo de oferta de mercado relacionado ao trabalho que prioriza os diplomas adquiridos
através do ensino formal. Através da valorização da sua experiência de vida com as
comunidades e com as drogas, o redutor de danos tenta garantir um espaço próprio de
atuação, como o técnico possui devido à profissão.
Assim, a forma de contratação que prioriza um usuário de drogas e/ou uma pessoa
moradora da comunidade poderia ser vista como uma possibilidade de inserção dos
“inempregáveis” no mercado de trabalho. Valorizar a experiência de ser usuário e de ser
morador poderia ser uma forma de valorizar um saber adquirido de uma maneira não-formal,
como uma forma de resistência às exigências impostas pelo mercado. Além disso, também
como uma possibilidade onde a experiência de ser usuário de drogas (e muitas vezes de ter
passado pelo sistema penitenciário) pode não só ser “assumida”, como também utilizada
como currículo:
... eu usei... eu usei por muito tempo... cheirei direto, detonei... aqueles casinhos
típicos, eu não conseguia controlar. Em algum momento, em algum momento não,
especificamente aos 28 anos de idade, eu cheguei àquilo que o pessoal de
comunidade terapêutica chama de fundo de poço. Me detonei completo, tudo. E fui
para uma comunidade terapêutica. Fiz um tratamento de nove meses em uma
comunidade terapêutica. Depois que saí de lá, tinha toda essa história assim, eu
estava tri na pilha de reiniciar a vida, mas ao mesmo tempo não tinha nada. Eu
disse "Caramba, não tenho nada, quero fazer um currículo, mas não tenho nada para
colocar no currículo". E aí me caiu à ficha que a única coisa que eu conhecia legal
era justamente esse mundo da droga. E aí me caiu à ficha que eu podia transformar
limão em limonada. "Eu posso dar alguma coisa legal para o mundo, e posso
receber por isso, legal, boa idéia." isso no momento não tinha nem primeiro grau
127
completo, era a única perspectiva que eu tinha... Ai nisso eu pensei "Vai ser por aí".
Construí um currículo meio maluco, mandei para alguns lugares, e acabei indo
trabalhar em uma comunidade terapêutica... (José, redutor de danos).
Apesar de poder servir como porta de entrada no mercado de trabalho, podemos nos
questionar sobre os limites de tal inserção. Se retomarmos a discussão sobre a
sustentabilidade das ações e dos trabalhadores em redução de danos, enquanto pertencentes ao
chamado 3
o
Setor, e trabalhando sob as condições aqui já discutidas, até que ponto estaria se
produzindo uma real inserção destas pessoas no mercado? Meda (2004) afirma que as ONGs
correm o risco de cristalizar uma “cidadania de segunda classe” para aqueles que não
cumprem as exigências de inserção no mercado de trabalho contemporâneo. Assim, apesar da
possibilidade de tornar usuários “empregáveis” (pelos mesmos motivos que antes eram
considerados “inempregáveis”), a inserção não é suficiente para que não permaneçam em uma
zona de instabilidade, correndo o risco, a todo o momento, de voltar à condição de
“excedente”.
Vale destacar aqui que a escolaridade evidencia uma variação interessante em relação
às funções de coordenador ou redutor de danos dentre os participantes da pesquisa, como
mostramos na tabela abaixo:
Tabela 7 - Escolaridade dos participantes
Escolaridade Coordenadores Redutores de Danos
Superior completo
63
sete -
Superior incompleto um três
Ensino médio completo três seis
Ensino médio incompleto um três
E.Fundamental completo - sete
E. Fundamental incompleto - dois
Vemos que enquanto a maior parte dos coordenadores entrevistados possui um nível
de educação superior, a maioria dos redutores fica entre o ensino fundamental e médio. Além
da escolaridade diferenciada, podemos também apontar a diferenciação em termos de salário:
o salário de um coordenador fica entre R$1.000,00 a R$1.200,00, e o salário de um redutor de
danos, atualmente, fica entre R$300,00 e R$500,00.
63
Dentre os cursos de terceiro grau dos participantes, sejam eles completos ou incompletos, estão: Medicina,
Psicologia, História, Educação, Serviço Social, Ciências Sociais e Teologia.
128
Os altos índices de desemprego no país trazem cada vez mais a necessidade de
“aprimoramento” dos trabalhadores, que devem conseguir chances maiores de ocupar o
mercado de trabalho. Dentre as características exigidas para poder estar em um nível de
competição no mercado encontra-se a escolaridade. Assim, há uma percepção por parte de
alguns redutores de que os técnicos (representantes do saber formal) poderiam estar “tirando”
a possibilidade do redutor de danos (que possui este perfil ligado à comunidade e à
experiência do uso), ocupar um outro lugar (para além do trabalho de campo):
Érico - Não, eu acho que existe sim, existe não por parte de todas as pessoas, mas
existem muitos técnicos que não respeitam... e também existe por parte dos
redutores de danos, por alguns também, esta mágoa. Porque fazem todo o trabalho
de ponta, que é a parte mais perigosa do trabalho, trazem subsídios para o
enriquecimento do próprio técnico né, e não é reconhecido por isto muitas vezes, ou
se sente diminuído em função de não ter um diploma. E hoje em dia tu sabe que faz
falta mesmo. Eu acho que é por aí né, por exemplo... para tu adquirir esse
conhecimento técnico, tu tem que ter dinheiro. Sem grana tu não estuda. E já para
aprender o que eu redutor aprende (ri), tu tem que viver, tem que viver daí né. Só
que... existe este atalho. De repente o técnico pode estar aprendendo, convivendo
com o redutor, ele pode estar aprendendo através do relato coisas que... que foi
vivido lá em campo, então o cara está aprendendo a coisa ali sem sujar o sapatinho
de barro. E vai estar usando isso em conferências e coisa e tal. Então isto também
traz muita mágoa para os redutores. Porque daí na hora de sujar o pé, de aprender,
de colocar o conhecimento na mesa, é grátis. E daí na hora que o cara tem que
aprender com o técnico ele vai cobrar aula, para dar uma capacitação para mim, por
exemplo. E na hora de viajar lá para outro estado, para falar sobre o trabalho, até
pela forma de comunicação, quem vai é o técnico que se apropriou do
conhecimento que o redutor buscou em campo. Então acho que existe mais ou
menos um pouco de recalque por parte do redutor e um pouco de desprezo por parte
do técnico. [...]
Rafaela - E vocês vêem alguma saída, alguma forma de ter este reconhecimento
pelo redutor mesmo? De vocês estarem ocupando outros espaços, de poder falar
sobre este trabalho? De não ter que deixar que alguém faça isso?
Lima - De a gente não precisar de um braço para...
Rafaela - Pois é não sei se precisa... mas de poder fazer isso diretamente.
Érico - O braço a gente já é, a gente não precisa é de boca, que nós também temos.
Lima - Eu acho que a partir da forma que a gente tiver espaço, que a gente tiver...
como é que vou te dizer assim, tiver condições melhores de poder desenvolver mais
este trabalho, tu poder apresentar, a gente é muito espremido [...] a partir de que a
gente tiver mais condições, as dificuldades que a gente tem com o veículo, de
concluir um trabalho. Às vezes a gente desenvolve todo um trabalho, cria um
vínculo, cria tudo, e daí para deslocar a gente precisa de outra pessoa, de outro
órgão, de outra rede, para completar aquele trabalho. E daí às vezes esbarra, e daí
tudo aquilo que a gente montou no começo, que é a base, fica difícil de... (Érico e
Lima, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
Ao mesmo tempo em que parece haver aqui um reconhecimento de que o saber do
redutor de danos é valorizado, há também uma denúncia de que esta valorização só seria
possível a partir de uma readaptação do mesmo a uma linguagem técnica. Assim, vemos a
percepção de uma impossibilidade de o redutor ocupar espaços em debates, conferências,
congressos.
129
As dificuldades para poderem ocupar um lugar de reconhecimento através de sua
própria fala parecem estar relacionadas também às dificuldades que os redutores encontram
em seu trabalho de campo, que os absorveria a ponto de não lhes sobrar tempo para se dedicar
a assumir outros espaços. Vemos então que a divisão percebida entre técnicos e redutores
vem, dentre outros, denunciar uma diferença entre os diversos atores da RD. Esta divisão
parece, em primeiro lugar, denunciar que não há uma igualdade de condições de disputa no
mercado de trabalho entre pessoas com escolaridades e saberes diferenciados. Assim,
podemos pensar na exaltação da experiência com a comunidade e com o uso de drogas como
uma forma de assegurar um espaço para pessoas que não tiveram a possibilidade de investir
no estudo formal. Podemos pensar também que a abertura para a diversidade (na contratação
de redutores) pode acabar representando uma ameaça àqueles que se valem somente de sua
experiência de vida. Desta forma, a questão aqui talvez não seja tanto a de uma separação
radical entre dois tipos de trabalhadores, mas sim a de um questionamento a respeito dos
saberes considerados verdadeiros e de seus atravessamentos no reconhecimento do
trabalhador em termos de salário, apoio, e de ter seu trabalho reconhecido como tal. Assim,
esta divisão também vem denunciar a precarização do trabalho e dos trabalhadores, a qual vai
servir de disparador às lutas por uma maior formalização e reconhecimento do trabalho, e que
vão implicar nas discussões sobre a profissionalização do redutor de danos.
130
8. A Precarização do trabalho
Vimos ao longo deste estudo que os locais com programas e ações em redução de
danos na RMPA nem sempre dispõem de recursos (humanos, materiais e financeiros) e apoio
(técnico e político) suficientes para realizar o trabalho da maneira como gostariam. Em
qualquer uma das formas encontradas de financiamento - projetos de concorrência pelo MS,
financiamento por convênios ou Planos de Ações e Metas pelas prefeituras municipais - as
ações e os trabalhadores em RD ficam sujeitos às oscilações de gestão e às aprovações anuais
de orçamentos e projetos. Esta forma de funcionamento pode gerar descontinuidades no
trabalho, nos salários dos trabalhadores e no atendimento oferecido à população, sendo que a
cada retorno a importante relação de vínculo e confiança com a comunidade deve ser
restabelecida. Mesmo quando o financiamento do projeto se encontra assegurado, o atraso no
repasse de verbas pôde ser encontrado em todos os programas/ações que participaram desta
pesquisa. Em muitas ocasiões o trabalho voluntário sustenta as ações em campo durante os
períodos de atraso de repasse, porém, com atrasos prolongados geralmente diminui-se o
número de integrantes nas equipes e, por vezes, o trabalho tem que parar, já que os
trabalhadores têm que conseguir seu sustento em outros locais.
Além desta precariedade produzida por uma falta de sustentabilidade política, técnica
e financeira, outros atravessamentos se produzem como aquele da relação entre a sociedade
civil e o Estado, entre o público e o privado, além do atravessamento dos diferentes jogos de
verdade sobre drogas, a legislação, as instituições, as disciplinas e, ainda de questões como o
saber-poder nas disputas em torno do modelo ideal de trabalhador. Para além destas relações,
há um outro atravessamento que se interconecta com estes todos, produzindo subjetividade
nas formas como os programas/ações e os trabalhadores se inserem e organizam suas práticas
na RMPA: este atravessamento faz referência ao contexto do trabalho em nossa sociedade.
Segundo Nardi, é somente no século XX que as relações de trabalho assumem a forma
contratual característica do “emprego”, a forma de integração da sociedade salarial, a qual é
regulada pelo conjunto de regras e proteções que caracterizaram o que veio a se chamar de
Estado de Bem Estar (NARDI, 2002). Neste contexto, o trabalho – emprego se transforma na
garantia da integração e da coesão social, possibilitando garantias aos trabalhadores e um
determinado campo de possibilidade de liberdade de ação e de reflexão. Entretanto, a partir
das transformações dos últimos trinta anos, uma nova ruptura ligada essencialmente à
desregulamentação das relações de trabalho vem ameaçar este papel integrador, trazendo um
131
maior risco de rupturas sociais e familiares, de enfraquecimento da coesão social, de
diminuição da renda e de piora das condições de vida. Desta forma, passamos de uma situação
de salários fixos e contratos de duração indeterminada (com negociação coletiva) aos
contratos flexíveis e temporários (com negociação individual), alternância de períodos de
desemprego e trabalho temporário, subcontratação e terceirização: ou seja, às múltiplas
formas de precarização do trabalho (NARDI, 2002).
Castel afirma que a situação atual é marcada pelo desemprego em massa e
instabilidade nas situações de trabalho, pela inadequação dos sistemas clássicos de proteção
para dar cobertura a essas condições, e ainda pela multiplicação de indivíduos que ocupam
uma posição de supranumerários, “inempregáveis”, inempregados ou empregados de um
modo precário, intermitente. (CASTEL, 2003, p.21). O autor demonstra que um dos efeitos
das novas configurações do capitalismo é a produção não somente de uma periferia precária,
mas também da “desestabilização dos estáveis”, ou seja, o aparecimento de uma zona de
vulnerabilidade (uma zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a
falta de suportes), e que produz, no final do percurso, o desemprego e a desfiliação (pessoas
expulsas da produção pelo desemprego e subemprego).
As transformações contemporâneas demonstram que o trabalho continua central do
ponto de vista da estrutura social e da construção material e psíquica dos sujeitos (NARDI,
2002), já que em nossa sociedade a grande maioria da população depende de vender sua força
de trabalho para garantir sua existência. Levando em conta tal centralidade e a precarização
das relações de trabalho materializadas nas descontinuidades presentes na RD, torna-se
importante explicitar como estas transformações do mundo do trabalho e suas racionalidades
vão balizar a experiência de si nos sujeitos trabalhadores aqui apresentados.
8.1 Alguns atravessamentos da precarização
Dentro deste contexto de instabilidade, vimos ao longo deste estudo diversas
dificuldades percebidas no trabalho, tanto por coordenadores quanto por redutores de danos.
Para facilitar a rememoração das mesmas e apresentar outras dificuldades de uma forma mais
clara para o leitor, montamos a tabela que segue:
Tabela 8 – Dificuldades no trabalho
132
Dificuldades percebidas
no trabalho
Redutor de Danos Coordenador
Falta de supervisão X
Falta de autonomia X
Falta de capacidade técnica X
Riscos em campo X
Falta de insumos X X
Falta de reconhecimento X X
Falta de estabilidade X X
Falta de suporte da rede X X
Falta de suporte político X
Isolamento X
Muitas das dificuldades acima citadas já foram discutidas em capítulos anteriores: os
riscos vividos em campo em função da ilegalidade do uso de droga; a falta de insumos para o
trabalho em função do atraso no repasse por parte do Estado; a falta de suporte político por
parte dos gestores e do Estado enquanto financiador das ações; a falta de suporte da rede no
sentido de ter que constantemente sensibilizar equipes de saúde e gestores para o trabalho
com RD, apesar das legislações que o garantem; a percepção de estar isolado trabalhando sem
apoio ou reconhecimento; a falta de reconhecimento por parte do Estado (que se materializa
na falta de suporte político, técnico e financeiro) e a falta de reconhecimento percebida pelos
redutores com relação ao saber não formal; e, por fim, a falta de estabilidade, que se apresenta
como resultado do conjunto de todas estas características. Além destas dificuldades, vemos no
quadro acima mais três citadas pelos redutores de danos, e que trataremos a seguir: a
percepção de uma falta de supervisão (com relação às emoções suscitadas pelo trabalho), de
uma falta de autonomia em determinadas circunstâncias, e de uma falta de capacidade técnica
para algumas questões.
Antes de entrarmos, porém, nestas dificuldades, nos cabe analisar como a instabilidade
relacionada aos atrasos de pagamento, à forma de contratação e ao baixo salário se atravessa
na forma como o redutor de danos faz a experiência de si como trabalhador. Já afirmamos
que todos os trabalhadores em RD participantes da pesquisa que recebem algum pagamento
pelo seu trabalho (com exceção daqueles três cedidos pelas prefeituras), são contratados como
autônomos. Esta forma de contrato significa que os trabalhadores não possuem acesso a
nenhuma garantia da legislação trabalhista: férias, 13º salário, seguro saúde, seguro
desemprego, fundo de garantia, etc. – sendo que só possuem direito à aposentadoria caso
contribuam, individualmente, com o INSS. Como bem nos lembra Castel, este tipo de
estrutura de contrato não conta com nenhuma referência a um coletivo, exceto àquela que os
133
contratantes formam entre si; também não existem referências a proteções, salvo às garantias
jurídicas que asseguram a liberdade e a legalidade dos contratos (CASTEL, 2003).
Assim, o atraso no repasse de verbas e a falta de verbas suficientes para realizar o
trabalho da maneira desejada acabam levando os trabalhadores a se “adaptarem” à situação,
desenvolvendo algumas estratégias de sobrevivência para continuarem exercendo este
trabalho:
É que grande maioria, acho que 90% desse pessoal, tem uma outra renda. [...] Quer
dizer que mesmo aquela equipe que trabalha à tarde, ela tem todo um outro
momento para estar se auto sustentando, como a gente diz. [...] o ideal seria que não
houvesse atraso no repasse, que a gente pudesse estar dando um salário bem mais
compatível para esse redutor né, e aí para ele poder estar um pouco mais inserido
dentro do trabalho. Mas por enquanto, ainda não dá. (Raul, coordenador).
... eu não tenho condições de manter os redutores ali, tem que liberar eles para eles
trabalharem num outro lugar. Então o que acontece é isso, eu sou obrigada a liberar
eles para fazerem bicos, uma delas está fazendo faxinas, o outro trabalha muito em
construção civil. Eu não tenho muito como chegar e dizer "não, vocês vão ficar
aqui vão ficar trabalhando de graça e sem ter que comer, sem ter como pagar a luz,
o aluguel”. Um deles foi despejado... então é extremamente difícil. São pessoas que
ganham R$400 por mês... (Helena, coordenadora).
Eu assim ó, estou mais calmo neste sentido assim, porque já estava meio que me
organizando para isto. Eu já, eu já venho já de outro trabalho de redução de danos
que acontecia freqüente mente de não ter a verba. Então o que eu nunca contei
muito com... mas assim, eu consegui entender o lado deles, porque para mim
começou hoje faltar o que ter para comer, então eu comecei a pedir. Então a partir
de agora as coisas começam a ficar um pouco diferentes. Então dá para ver um
pouco pela visão deles. Eu estou mais calmo nesse sentido por causa disso, porque
tinha uma reserva. Mas eu imagino sabe, como ela falou né, o trabalho voluntário é
muito bonito, não só bonito como é o incentivante para gente. Eu mesmo gosto
muito de fazer este trabalho. Só que também têm este lado de que a gente precisa se
manter né. (Álvares, redutor de danos).
Vemos então que as três estratégias acima apresentadas – o acúmulo de trabalhos
temporários, que faz com que grande parte dos trabalhadores (coordenadores ou redutores)
não disponibilize tempo integral para o trabalho na RD; a possibilidade de “fazer bicos” nos
períodos de atraso, o que implica em diminuir o ritmo de trabalho no programa ou então
suspender as atividades por um tempo, até a volta do financiamento; e guardar dinheiro para
os períodos de “seca” - se referem à saídas individuais para um problema vivenciado por
todas as equipes. Assim, na inexistência de contratos que possibilitem uma negociação
coletiva, a responsabilidade recai sobre o indivíduo.
Na discussão abaixo, o atraso no repasse da verba é discutido entre a equipe de
redutores, e percebido como uma falta de interesse/respeito dos gestores e uma falta de
134
reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Apesar da denúncia coletiva, há uma sensação de
impossibilidade de mudança da situação, e da permanência do trabalhador como refém desta
situação.
Clarice - Então a gente acaba gostando e ficando né, até quando agüentarem a
gente.
Virginia - Até o projeto não trancar na prefeitura. A gente fica fora de si, porque
eles acham que a gente não trabalha: quando não tem camisinha o pessoal pára o
sexo né, não tem o uso de droga... não tem problema nenhum até eles poderem
liberar o cheque...
(Todos falam juntos concordando).
Clarice - quando o projeto pára tudo pára (ri). Tem essas contradições né, tem
coisas muito absurdas.
Rafaela - Pois é como é que isso? A Ângela antes estava me falando que vocês
estão agora a um tempo sem receber. Como é que está isso para vocês assim, no
trabalho de vocês, como é que isso influencia?
Joaquim - O nosso trabalho continua igual, sempre continua nunca parou, graças a
Deus. Só que a gente também tem família, tem que ter comida.
Virginia - É o tempo que a gente está aqui, teu tempo também custa, assim como
dos outros. Assim como o dono do teu apartamento quer receber... essas coisas
todas.
Clarice - Assim como eu também, que eu tenho filho, e tenho que pagar para
alguém cuidar. Esses dias até eu andei meio para baixo com isso... não que a gente
esteja aqui por isso, a nossa causa é muito maior, mas infelizmente tu precisa do, do
dinheiro. Não tem nem como né. Então às vezes complica, às vezes eu me estresso.
[...] Olha só, eles [a prefeitura] votam o projeto, na outra semana eles... não,
primeiro eles enrolam várias semanas, daí eles conseguem votar o projeto. Daí na
outra semana tem que re-votar o projeto. Aí eles esqueceram que dentro desse
projeto tinha que ter dinheiro... daí eles votam o orçamento... (as pessoas dão risada
baixinho, e fazem que não com a cabeça) olha só... aí na outra semana eles re-
votam o orçamento. Pera aí! Ali já se passou um mês... e a coisa fica apertando né.
[...]
Graciliano - É que assim ó Rafaela, é aquela coisa. Que nem a Clarice falou... esse
trabalho é gostoso. Só que se a gente sai daqui, a gente precisa comer. A gente tem
aluguel para pagar, a gente tem a faculdade, tudo isso. Então assim ó, é uma pena,
porque queira ou não queira o nosso trabalho às vezes a não permite com que tu
tenha... que tu esteja pensando em coisas, contas, problemas. A pessoa quer
conversar contigo, e imagina alguém que está cheio de problemas, está conversando
contigo, e tu está no mundo da lua. E daí, ele está esperando de ti. E isso acontece,
é bucha, e está acontecendo , está influenciando, acaba atrapalhando.
Joaquim - Esses dias o cara perguntando para mim não sei o que lá, e eu digo:
"Báh, estou com a minha loja atrasada" [...] (risos). (Clarice, Virginia, Graciliano e
Joaquim, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
Apesar da percepção de que o atraso no repasse de verbas representa uma falta de
respeito com o trabalho, com o trabalhador e com a população atendida, os redutores de danos
acabam se cobrando uma posição de, mesmo sem receber, terem que estar “bem” para atender
a população. Relembram que sua implicação com este trabalho vai além do pagamento
recebido, mas percebem a influência negativa da falta do mesmo na qualidade da atenção que
conseguem dar à população.
135
Esta discussão nos remete àquilo que chamamos de “cuidado com o cuidador”.
Relembrando Foucault, podemos afirmar que é preciso primeiro cuidar de si, para depois
poder cuidar dos outros. Esta percepção de uma falta de cuidado para com o redutor vai ao
encontro da citada falta de supervisão com relação às questões emocionais. Esta mesma
percepção da falta de um “acompanhamento emocional” já havia sido citada por grande parte
dos programas que participaram da análise situacional realizada no ano de 2003 (ou seja, não
só os programas da RMPA, mas de todo o Estado do RS), onde foi percebida a necessidade de
um espaço de fala para os redutores de danos dentro dos programas no sentido de um suporte
para o trabalho realizado (DEBACCO E OLIVEIRA, 2003).
Rafaela - E se vocês tivessem que pensar quais as maiores dificuldades do trabalho,
o que vocês diriam?
Cecília - Eu para mim maior dificuldade de trabalhar esta falta de... falta de apoio...
para trabalhar a emoção...
Adélia – É, até assim...
Rafaela - Apoio de quem?
Cecília - De alguém que possa estar reunindo os redutores trabalhar essas coisas
que não se resolvem, e que angustiam [...] (Cecília e Adélia, redutoras de danos;
Rafaela, pesquisadora).
As fontes de angústia relatadas são relacionadas à insegurança financeira e às
situações encontradas no trabalho de campo:
o que eu levanto muito é o cuidado e com o cuidador. Porque a gente vê cada coisa,
que é inacreditável, em função de estar preso, a miséria [...], tu vai para certas áreas
aí que as pessoas bebem água, fazem comida com água que tem no buraco, que já
mandou tapar, que já caiu cachorro ali dentro, tomam banho naquela a água. Tu
entra em casa que não tem assoalho, mas tem gato, tem cachorro, tem rato, tem
galinha, tem porco, tem cavalo... tudo ali, sabe? Então não é só a função da droga.
Tu vai vendo cada coisa, em campo, e aí que isso chega contigo em casa... (Alcy,
redutor de danos).
Lia -... na casa da T é a mesma coisa. Eu me preocupava tanto quando eu ia lá, que
chegava a passar mal, eu ia para casa não conseguia desligar daquela situação [...].
Rafaela - Pois é, agora escutando o que tu está falando que tu acaba levando um
monte de problemas para casa, contigo. E não tem um espaço, no PRD vocês
tinham esse espaço de supervisão, ou um espaço para poder falar?
Lia - a Fúlvia sempre falava isso. Quando a gente estava se estressando no campo
[...] ela dizia que era dia do aconselhamento. E quando a gente começava a
conversar mais sobre isso, aliviava a carga do trabalho... (Lia, redutora de danos;
Rafaela, pesquisadora).
As situações vivenciadas em campo podem acabar gerando sofrimento para os
trabalhadores, que “levam para casa” muitos dos problemas encontrados (e não resolvidos)
em campo. Uma das questões aqui parece ser a de se deparar com um limite de sua própria
136
atuação diante da complexidade das dificuldades e vulnerabilidades da população assistida, ao
mesmo tempo em que se cobram (em função de sua implicação com o trabalho) e são
cobrados (em função de sua proximidade com a comunidade) por resultados efetivos. Esta
mesma situação de sofrimento já foi observada nos Agentes Comunitários de Saúde dos
PACS e PSF (THEISEN, 2004), que partilham de uma posição semelhante a do redutor na
comunidade. Apesar dos esforços destes trabalhadores, muitos dos encaminhamentos
necessários à população dependem de outros óros, sendo que a falta de reconhecimento do
trabalho por parte de outros servidores da saúde, a dificuldade de marcações de atendimentos
(falta de suporte da rede) ou da complexidade que envolve a resolução de questões estruturais
(saneamento básico, renda mínima, etc.) acabam causando sofrimento ao trabalhador. Assim,
em função da proximidade dos trabalhadores com a comunidade, há um sentimento de
responsabilidade pelos encaminhamentos e culpa pelos fracassos, que resultam em um
sofrimento por ver as pessoas que assistem sem a resolução que desejariam (THEISEN,
2004).
Neste contexto, o trabalhador – militante (aqui definido como aquele cuja implicação
com o trabalho vai além do recebimento de um salário, tendo ligação com uma luta maior)
aparece como aquele que acaba se sobrecarregando e adoecendo mais, justamente por seu
envolvimento afetivo (RAMINGER, 2005).
Lima - Porque o João respondeu aquilo que a gente não consegue fazer às vezes,
né. Porque não é da nossa alçada. E do outro lado é o que também nos interessou,
porque com certeza, todos nós, apesar de ter todo mundo aí com oito anos de PRD
ainda tem coisa que impressiona, que impressiona. Às vezes a gente vai para casa e
fica quieto. Um cara lá pedindo uma ação, pelo amor de Deus, que não tem como
conseguir. Às vezes tu fica no desespero mesmo. E a gente comenta na nossa
reunião... por isso que alguns já estão até com psicólogo né. Porque é pesado.
João - É uma coisa que gente já vinha há tempos já trabalhando, porque é algo que
a gente também precisa. Tem vezes que gente vai a campo e não consegue dormir...
certas coisas que a gente vê, certas coisas que a gente passa assim. E aí vai
acumulando aquela coisa e chega um momento que a gente também fica né... óóó...
também quero um médico assim. E agora inclusive, com essa nova gestão, a gente
tem lá uma psicóloga à disposição. Acho que a Florbela está indo né Florbela, na
psicóloga.
Florbela - Sim, agora sexta-feira eu vou.
João - E ela pretende passar, acompanhar todos.
Rafaela - Mas é um acompanhamento individual, para cada um, ou é em grupo?
João - Sim, é individual.
Rafaela - Foi isso que vocês pediram, individual?
João - Olha... eu acho que não ia fazer muita diferença. Eu acho que é melhor assim
Florbela - Para a gente se conhecer. É bom assim. Quando tu tá em grupo às vezes
tu fala, mas não fala tudo. E às vezes quanto está sozinho diretamente com o
psicólogo sai coisinhas assim que tu nem sabe [...] eu estou gostando. (Lima, João e
Florbela, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
137
O sofrimento gerado pela sobrecarga aliada ao envolvimento afetivo produz um
pedido de cuidado, de suporte. Na fala anterior de Lia, este suporte acontecia em reuniões de
equipe chamadas de “dia do aconselhamento”, já na fala acima o suporte veio em forma de
um atendimento psicológico individual. Retomando o exposto no capítulo três por ocasião do
histórico do primeiro PRD do Estado, podemos ver que já nesta primeira forma de
organização do trabalho estava presente, além da reunião administrativa e da supervisão de
campo com o coordenador, uma supervisão psicológica semanal, em grupo, para a equipe de
redutores de danos (na época chamados monitores). Nesta supervisão eram tratados
problemas gerados pelas dificuldades encontradas em campo como angústias, depressão,
medos e ansiedades. Entendia-se que atuação dos monitores junto ao PRD os expunha a
situações (ligadas ao uso, ao tráfico, etc.) que poderiam fragilizá-los, dependendo do
momento vivido por cada um (SIQUEIRA et al., 1998).
Isso demanda uma grande disponibilidade por parte da supervisão psicológica e, na
maioria das vezes, a necessidade de um tratamento psicoterápico, para que suas
dificuldades possam ser elaboradas. Os riscos relacionados à segurança pessoal
constituem os motivos que mais têm afastado os monitores do projeto. (SIQUEIRA
et al., 1998, p. 177).
A supervisão psicológica, aliada à supervisão de campo, também produzia uma
ressignificação do trabalho, a qual em muitos casos era associada ao desempenho de uma
missão - o que ainda hoje acontece-, mas aos poucos ia cedendo lugar aos aspectos técnicos e
mais relacionados com as propostas de reinserção social (SIQUEIRA et al., 1998). Vemos
então que a validade e a importância da supervisão psicológica são ressaltadas há bastante
tempo, havendo inclusive experiências exitosas neste sentido. Porém, nenhum dos
programas/ações participantes deste estudo afirmou possuir esta modalidade de supervisão de
forma mais estrutural – somente algumas consultorias pontuais ou, em um caso, uma
supervisão adquirida recentemente no formato de atendimento individual. Apesar de não
termos questionado os programas a respeito do porquê de não haver tal formato de supervisão,
podemos aqui inferir que diante da precariedade do trabalho, do financiamento insuficiente,
mesmo para as ações mais corriqueiras, uma assessoria psicológica torna-se um “luxo”, que
precisa ser dispensado mesmo que o custo seja alto para a saúde dos trabalhadores. Neste
contexto, uma saída mais imediata poderia ser a parceria com universidades na abertura de
138
estágios
64
, o que poderia proporcionar uma vivência ímpar para os estudantes em um cuidado
necessário para os trabalhadores.
Podemos ainda analisar como a falta de estabilidade e a precarização do trabalho pode
atravessar o sofrimento psíquico e a falta de supervisão, produzindo relações perversas:
Mafalda - [...] o redutor está sempre em risco, porque assim como tu chega na casa
do usuário e pode estar tudo bem, tu pode ser bem recebido, o usuário pode ter-se
desviado com alguém que tu não sabe, pode estar acontecendo alguma guerra
interna ou alguma outra coisa... o redutor está em risco todos os dias. E muitas
vezes redutor não fala por conta de não perder o serviço. Então essas coisas é que
tem que ser trabalhadas.
Rafaela - Tu diz para não perder o serviço em que sentido?
Mafalda - É... para não passar por fraco. Já teve casos quando eu estava lá, até de o
coordenador estar na área e ver o cara ser baleado e até os próprios redutores
dizerem, "Ah, isso aí a gente está acostumado a ver" de não ter esse olhar, do
quanto é difícil tu ter convivido com uma pessoa e de repente estar vendo ela ali
sendo morta, baleada... Eu acho que é nesse sentido, de tu poder trabalhar, trabalhar
essas barreiras, essas coisas que frustram o redutor. A gente já teve casos de
redutores que entraram e não conseguiram ficar [...]. (Mafalda, coordenadora e
redutora de danos; Rafaela, pesquisadora).
Aqui a percepção é de que assumir o sofrimento psíquico causado por determinadas
situações em campo, perante um coordenador, pode ser visto como um sinal de “fraqueza” do
redutor, o que significaria que ele não é bom o suficiente para executar este trabalho –
correndo o risco, então, de ser demitido e substituído por outro mais “forte”. Não nos cabe
aqui julgar se este temor seria ou não “real”, mesmo porque não teríamos informações
suficientes para tal, mas cabe analisar o contexto que possibilita o seu surgimento nestas
condições. Segundo Castel, os trabalhadores desprovidos do contexto salarial e suas garantias
se encontram em uma condição de “não proprietários”, de “despossuídos de si mesmos”
(CASTEL, 2003). Sendo que sua sobrevivência depende da venda de sua força de trabalho, e
que ele não se encontra em condições de negociar uma remuneração justa, o governo de sua
própria vida pertence àquele que lhe compra a força de trabalho (NARDI, 2002).
Castel (2003) afirma que a superação desta condição se deu somente no século XX
através da consolidação da propriedade social como forma de suporte para a existência dos
indivíduos. A propriedade social é entendida pelo autor como análoga à propriedade privada,
ao gerar segurança, e incrementar a autonomia do trabalhador. De acordo com Nardi (2002)
esse mínimo de propriedade social é representado, na história brasileira, pela legislação
trabalhista (de cunho autoritário) e pela Seguridade Social (restrita aos trabalhadores com
carteira assinada), que devido às suas configurações estavam longe do modelo de Estado
64
Conforme sugestão de Rose Mayer (do CRRD), por ocasião da discussão dos resultados desta pesquisa.
139
Social europeu, mas mesmo assim permitiram um relativo controle dos projetos de vida.
Porém, os trabalhadores em RD são em sua grande maioria “trabalhadores autônomos” e,
portanto, não possuem nenhuma destas formas de segurança proporcionadas pela propriedade
social (no que se refere às garantias trabalhistas).
Assim, a instabilidade que ronda a vida dos redutores de danos pode produzir uma
subjetividade “amedrontada”, que tende a dissociar seus sentimentos e sofrimentos pelo
receio de ser substituído. Enquanto não se torna possível uma forma de contratação mais
estável para estes trabalhadores, a constituição de espaços conjuntos de supervisão e reunião
de equipe que contassem com uma abertura para a reflexão e o diálogo poderiam contribuir
em muito para a saúde dos trabalhadores do programa e, inclusive, proporcionar espaços que
auxiliariam na organização coletiva dos mesmos.
Outra dificuldade citada pelos redutores de danos se refere aos riscos vivenciados em
campo, que vão além daqueles já descritos em função do contato com a rede ilegal do uso e
comercialização das drogas. Tais riscos se referem ainda à saúde do trabalhador, em um
sentido amplo:
João - É, apesar de claro, a gente adorar a profissão, a gente também tem que ter
uma segurança, né, tem que ter né.
Florbela - Segurança de vida, tudo. A gente vai a campo e a gente arrisca a vida, a
gente passa por vários momentos, como passar por bandidos, violência, cachorro,
cavalo. Uma vez um cavalo me deu uma mordida na bochecha. Se o Érico não me
tirasse assim, para cima de uma pia assim, o cavalo tinha tirado toda minha
bochecha. Um outro cachorro também mordeu o pênis do Érico [...] Isso aí é risco
de vida que tu passa.
João - Eu no ano passado peguei uma tuberculose, aí no contato... isso aí é uma
coisa que a gente também deveria ganhar: insalubridade, periculosidade, né... (João
e Florbela, redutores de danos).
Eu sou meio ingênua. Às vezes eu saio do campo e depois fico pensando "Báh,
aquela hora que pensei que era isso... não era bem". Mas assim, nunca me
aconteceu nada, nada de grave. O que me aconteceu uma vez realmente foi uma
tentativa de estupro. Que um guri pediu para mim material na casa da T e eu entrei
dentro da casa, ele tentou me estuprar. Mas... foi só dessa vez que, pelo campo, eu
me meti numa coisa assim. Porque pensei que tinha mais gente dentro da casa e eu
entrei. Só dessa vez. (Lia, redutora de danos).
O trabalho de abordagem no campo realizado pelos redutores pressupõe o contato com
locais onde não existe saneamento básico, condições de moradia, e mesmo de segurança.
Além disso, em função do material que utilizam e das condições de saúde das comunidades
atendidas, há o risco de contrair doenças, apesar de obedecerem às normas de biossegurança.
Tais condições do campo exigiriam garantias legais de proteção (como o seguro saúde) além
dos adicionais de salário (periculosidade, insalubridade). Como veremos no próximo item
140
deste capítulo, há uma grande expectativa por parte dos redutores de danos de que a
profissionalização traga todas estas garantias. Entretanto, por hora, os redutores se encontram
expostos a tais riscos sem nenhuma forma de proteção.
Em relação às dificuldades citadas pelos redutores de danos há ainda uma percepção
da necessidade de capacitação para o redutor, sendo que tal capacitação parece se dividir em
questões relacionadas à escolaridade formal e às questões políticas. Com relação à
escolaridade formal alguns redutores afirmam possuir uma dificuldade para a elaboração de
projetos que possam concorrer a financiamentos; já em relação às questões políticas, outros
afirmam desconhecer o modo de funcionamento dos canais de participação, bem como das
formas de negociação com os gestores em relação à inserção dos projetos de redução de danos
nos municípios (como já discutimos no capítulo 4).
Graciliano – Eu acho, eu acredito que deveria ter mais isso, aproximar mais os
redutores de danos desta questão burocrática, assim, acho que falta muito.
Rafaela – Por quê?
Graciliano – Justamente para nestes momentos a gente ter voz e vez, o
conhecimento nunca é demais. Porque todo mundo aqui tem condições de assumir
uma coordenação. Porque a gente tem a prática, entende, só que a gente tem que
estar inteirado em reuniões, em processos.
Virginia – Na própria elaboração de projetos, né, isso tudo cada um de nós deveria,
pelo menos pela lógica de raciocínio, entender como funciona [...] porque o
coordenador não dura para sempre, e aí, quando sai, o projeto acaba? Então a gente
também não pode... a gente tem que pensar numa coisa contínua
Joaquim – Isso mesmo que eu ia falar, não adianta tu pegar e botar alguém que
nunca trabalhou naquilo ali pra coordenar, botar do zero. Daí tu vê que tu mesmo
tem que estar ensinando, enquanto poderia ter botado alguém que já pudesse suprir
aquela... não botar por... botar por trabalho mesmo
Virginia – E tem redutores de danos que a gente ouve falar assim que os
coordenadores vão chegando do nada, e então isso é tão injusto para aquela equipe
de trabalho que não pode dar uma mínima opinião, né, sobre esta questão que é tão
importante e facilita um monte quando tu tem um bom coordenador, que facilita
todo andamento... (Graciliano, Virginia e Joaquim, redutores de danos; Rafaela,
pesquisadora).
A percepção do desconhecimento relacionado à elaboração de projetos, reuniões e
processos “burocráticos” possui uma ligação com uma possibilidade de participação e
autonomia no trabalho. Como já vimos ao longo deste estudo, trata-se também de abrir
diferentes espaços de participação aos redutores de danos, no sentido de haver uma troca de
saberes, incentivando o resgate da cidadania. A percepção de uma falta de autonomia no
trabalho por parte de alguns redutores se mostrou geralmente relacionada a um tipo de
coordenação que não possibilita a troca de idéias e opiniões dentro do grupo; ou ainda,
coordenações que, tendo sido indicadas em função de trocas de gestão (em OG), possuem
uma linha de trabalho que não corresponde ao que vinha sendo desenvolvido anteriormente.
141
Assim, a autonomia é entendida num sentido de planejar conjuntamente o trabalho,
desenvolvendo os rumos das intervenções a partir das experiências vivenciadas em campo,
propiciando ao redutor de danos não ser meramente um executor, mas alguém que produz os
próprios modos de trabalhar.
8.2 Possibilidades da Profissionalização
Uma das lutas atuais do movimento de redução de danos é a chamada
profissionalização do redutor de danos. A idéia da profissionalização do redutor surge a partir
da preocupação com a descontinuidade gerada pelos atrasos de pagamento para os projetos,
pelas trocas de gestão e pelo vínculo frágil que estrutura as relações de trabalho dentro dos
programas/ações. A possibilidade de profissionalizar o trabalho do redutor de danos vem
sendo entendida como uma forma de dar maior visibilidade e reconhecimento à RD e aos
trabalhadores, afirmando uma categoria profissional. Nacionalmente, a discussão vem sendo
estimulada principalmente pela ABORDA nos Encontros Nacionais de Redutores de Danos.
Na RMPA a profissionalização começa a ser discutida no Fórum Metropolitano de Redução
de Danos onde, como já afirmamos, há representações de entidades que trabalham com RD na
região. A partir das discussões travadas no Fórum, a profissionalização vem sendo pensada a
partir de um tripé: organização da categoria dos redutores, formação e regulamentação da
profissão.
Como já referimos anteriormente, o Centro de Referência para o Assessoramento e
Educação em Redução de Danos veio a compor a Escola de Saúde Pública em dezembro de
1999, após uma negociação com o MS, que financiava até então o Centro de Treinamento
situado na Cruz Vermelha Brasileira, RS. As competências do CRRD passam pelo
assessoramento e acompanhamento das ações, processos de trabalho, trabalhos acadêmicos,
equipes, instituições, serviços e programas de redução de danos; pelo desenvolvimento da
formação, metodologias, informações e conhecimentos na área; planejamento e organização
de diferentes modalidades de cursos, oficinas, eventos, conferências, encontros e seminários
em redução de danos e suas interfaces; desenvolvimento de relações intra e intersetoriais para
implantação da redução de danos
65
. Sendo a formação de recursos humanos uma competência
do Centro de Referência para o Assessoramento e Educação em Redução de Danos, este teve
65
Estas informações e as que seguem no texto acerca do curso técnico foram gentilmente fornecidas pela equipe
técnica do CRRD.
142
a iniciativa de planejar um curso técnico para o redutor de danos. O curso técnico foi pensado
como uma forma de delimitar a função do redutor de danos para responder a um dos
requisitos da profissionalização, que seria a formação. Segundo a equipe, a idéia do curso de
caráter profissionalizante iniciou a partir do 1º curso realizado para redutores de danos, com a
duração de uma semana, e que contou, para sua elaboração, com a participação de diversos
redutores de danos indicados pelos PRD (conjuntamente com a equipe do CRRD). Outro
disparador para a elaboração deste curso foi o movimento para regulamentação da profissão
de “consultor em dependência química”. Deste movimento surgiu um planejamento de curso
técnico para consultores em dependência química, o qual foi utilizado na elaboração do
planejamento pedagógico do curso para redutores de danos juntamente com o planejamento
pedagógico do curso de técnico de enfermagem da ESP/RS. O planejamento do curso foi
discutido junto a alguns redutores próximos, convidados pela equipe do CRRD.
Atualmente, o planejamento pedagógico encontra-se concluído, tendo sido
encaminhado para o MEC avaliar e assim poder concorrer a recursos públicos para seu
funcionamento. A idéia é que o curso seja gratuito e que a primeira edição contemple
redutores de danos já atuantes no Estado (apesar de não se saber se será possível abrir vagas
suficientes para todos). O curso terá a duração de um ano e meio, e contará com 1.200 horas-
aula, sendo 400 horas de prática. A metodologia foi pensada a partir de oficinas, aulas
expositivas e prática, podendo ainda contar com aulas em ambiente virtual para baratear as
despesas dos redutores que venham do interior. O curso contará com módulos, sendo que os
redutores que tiverem o ensino fundamental completo poderão ter diploma de “auxiliar em
redução de danos”, e os que tiverem diploma de ensino médio completo terão diploma de
“técnico em redução de danos”. Os cursos de ensino formal requeridos, na forma de supletivo
ou regular, poderão ser realizados paralelamente ao curso técnico, já que a comprovação do
diploma será exigida ao final, para o recebimento do diploma de técnico ou auxiliar.
Enquanto a formação vem se desenvolvendo, infelizmente pouco tem sido realizado
(ao menos na RMPA) com relação à regulamentação da profissão e à organização dos
redutores de danos. Observamos uma grande desinformação por parte destes trabalhadores a
respeito do que significaria e do que possibilitaria a profissionalização, inclusive, a respeito da
necessidade de auto-organização e do processo que envolveria a regulamentação
66
. Em muitos
66
Conjuntamente com a equipe do CRRD, descobrimos que o processo de regulamentação de uma profissão
envolve a aprovação de um Projeto de Lei em nível nacional, devendo ser encaminhado por um Deputado
Federal para votação no Congresso. Claramente, tal proposição de um Projeto de Lei exigiria a organização dos
redutores (em nível nacional) com uma ampla discussão sobre o conteúdo de tal documento, além de uma
143
casos, quando questionados sobre a profissionalização, os redutores se referem apenas ao
curso técnico, como se ele sozinho fosse dar conta de todo o processo:
estamos esperando que quando a redução de danos se tornar já uma coisa mais
profissional... que eu acho que está se encaminhando para isso, de várias discussões
de vocês lá, com o movimento também, de ter o curso de segundo grau, de ser um
técnico, não sei. E isso resgata bastante o que já se perdeu por estes motivos. Que
eles vejam em nós redutores profissionais de verdade, que está tentando levar esta
política aí para frente. Que está apostando tudo né, inclusive a abstinência salarial
(ri). (Virginia, redutora de danos).
A profissionalização é aqui identificada com o curso, e acompanhada da expectativa
de ser reconhecido como um profissional “de verdade”. Outras expectativas se referem à
conquista das garantias de uma legislação trabalhista e da estabilidade:
Érico -... o que eu acho que vai trazer de bom para gente como profissional é muito
mais segurança. Porque a gente teve [...] quatro meses sem trabalhar e sem receber.
Além de a gente deixar os nossos usuários sem atendimento... e a gente também
Florbela - A gente precisa de uma garantia de trabalho né
Érico - Precisa de uma estabilidade para nós
Florbela - Porque no momento gente depende da política, né, se a política pára...
João - Pára tudo.
Érico - E ao mesmo tempo acho que dentro da própria saúde pública a gente estaria
sendo mais considerado assim, em função do reconhecimento da secretaria da
saúde. Eu acho que automaticamente os outros profissionais vão ter que nos encarar
como profissionais, e não como os louquinhos que estão aí fazendo... (Érico,
Florbela e João, redutores de danos).
...é, é que o problema que eu vejo é assim ó [...] sempre quando há troca de
governo... há um carnaval dentro do programa. Porque aí chega no final do ano e
não pode haver renovação dos contratos, os contratos são anuais. Tu nunca sabe se
vai permanecer no programa. [...] E aí tu o tem aquela segurança. Então uma vez
profissionalizado aí... tá garantido, independente da troca de governo... (Alcy,
redutor de danos).
Rafaela - O que é que vocês acham que são as vantagens de profissionalizar?
Cecília - Eu acho que a... como é que se diz ter a tranqüilidade...?
Rafaela - Estabilidade?
Cecília - Estabilidade! [...] E assim ó, Rafaela, eu gostaria de ter estabilidade. A
gente está sempre com medo de perder. E principalmente de ter os meus direitos.
Tu chega no fim do ano e tu não têm o 13º, tu não têm férias... tu tem que
continuar... continuar... sempre rodando, rodando, tu não tem tempo, né, para parar
assim a cabeça e pensar. Tipo 15 dias..., 15 dias já está ótimo né. Se tu ficar doente
tu não tem... [...] o caso é tu poder ficar tranqüilo. Tu gosta daquilo que tu faz. Ficar
bem ali e saber que tu não está sempre correndo risco, com medo de que amanhã
vai entrar alguém vai tirar... alguém que por... não gostar da tua cara né. [...] é uma
coisa que a gente está sempre na corda bamba. Eu acredito assim que, por que no
início eu não pensava tanto, só queria fazer, fazer o trabalho. Mas nos dias de hoje
me preocupo né.
Elisa - Amanhã ou depois...
sensibilização e articulação com os deputados para que o Projeto (após redigido e “apadrinhado” por um
Deputado) fosse aprovado pelos demais.
144
Cecília - Como é que vai ser? Daqui a pouco fico doente ou tem algum problema,
né... sei lá. A idade vai pegando, tu começa a ver que tu não tem muita energia, tu
não tem mais aquela energia como alguns novinhos que estão correndo atrás né.
(Cecília e Elisa, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
Nas falas acima podemos perceber uma expectativa de que a profissionalização traga o
reconhecimento e a afirmação do redutor de danos enquanto um profissional da saúde (como
já vimos no capítulo 6, muitos são os atravessamentos que produzem a noção da RD como um
não-trabalho). Além disso, há uma expectativa de que a profissionalização poderá garantir
uma estabilidade no emprego, tanto em casos de troca de gestão como no que se refere à
renovação anual dos contratos e do projeto; e ainda poderá trazer as garantias da legislação
trabalhista (férias, 13º salário, seguro saúde, etc.). Neste sentido, parece haver uma grande
confusão entre os significados e possibilidades de um curso técnico, da profissionalização, de
um trabalho com carteira assinada e da condição de funcionário público. A possibilidade de
ser contratado com carteira assinada traria garantias trabalhistas, mas não a estabilidade. A
regulamentação de uma profissão (que seria um passo além da criação de um curso técnico)
não implica necessariamente na criação de cargos em concursos públicos (que traria a
estabilidade); estes deveriam ser posteriormente demandados pela categoria.
De qualquer forma, podemos perceber que os trabalhadores reivindicam um tipo de
“propriedade social” que possibilite a “propriedade de si”, ou seja, suportes materiais que lhes
permitam se afirmar para além do mundo da necessidade e da luta pela sobrevivência,
buscando garantir um grau de liberdade possível para a construção uma prática reflexiva, e a
possibilidade de exercer a cidadania. De acordo com Nardi “Não se trata de afirmar que a
inexistência da propriedade social destrói as possibilidades de resistir às formas de
dominação opressoras, mas sim de enfatizar que um grau mínimo de segurança é necessário
para viabilizar e qualificar a participação da população trabalhadora na discussão a
respeito de alternativas políticas de organização da sociedade num contexto democrático”
(NARDI, 2002, p.37). Assim, as garantias esperadas pelos trabalhadores poderiam dar suporte
para uma maior autonomia e participação no planejamento, desenvolvimento e criação de
novas formas de trabalho.
A conquista de um grau mínimo de segurança, ou, a saída da condição de extrema
vulnerabilidade em que se encontra o redutor de danos enquanto trabalhador poderia afastar o
receio constante da perda do trabalho, do atraso do pagamento, da não renovação dos
contratos. Como nos lembra Castel, “Sem a mediação de direitos coletivos, a
individualização das ajudas e o poder de decisão fundado sobre interconhecimentos, tendo
145
em vista as instâncias locais, correm sempre o risco de encontrar a velha lógica da
filantropia: jure fidelidade e será socorrido” (CASTEL, 2003, p.607). Assim, a possibilidade
de uma organização conjunta da categoria poderia produzir importantes negociações coletivas
que certamente trariam maior liberdade de ação e reflexão. Há, porém, a necessidade de uma
auto-organização dos redutores de danos para que possam discutir sobre suas expectativas a
partir do conhecimento das reais possibilidades e caminhos existentes para efetivá-las.
Outra questão referente à profissionalização e que talvez exigisse um debate mais
aprofundado entre os trabalhadores, se refere à exigência de escolaridade inerente ao curso
técnico. Enquanto para alguns tal exigência se coloca em termos de um incentivo para voltar
aos estudos, para outros pode se tratar de uma exclusão daqueles que não possuem a
escolaridade mínima exigida. Vale aqui lembrar que o grau de escolaridade do redutor de
danos fica, prioritariamente, abaixo do nível médio completo (antigo 2ºgrau) – vide tabela 7 -
o que implica em que, para obter o diploma de técnico, o redutor deva completar seus estudos.
...então eu acho importante, inclusive nós aqui da redução de danos, aqueles que
estão com o estudo mais atrasado, já estão colocando em dia para fazer o segundo
grau. O que também já é uma coisa boa, independente do trabalho de redução,
enquanto cidadão. (João, redutor de danos).
O técnico em redução de danos vai ter que ter segundo grau no mínimo, tanto é que
já fiz a minha matrícula, e vou voltar a estudar correndo para não perder este
gancho, entendeu? [...] Eu quero ser técnica em redução de danos. Por isso que
agora vou correr atrás da máquina, nem que seja concluindo o segundo grau.
(Eunice, coordenadora e redutora de danos).
Para estes redutores a necessidade da escolaridade se coloca como oportunidade de
crescimento pessoal e profissional, como “cidadão”. A partir do desejo aqui expresso de ser
“técnico”, podemos retomar as discussões realizadas no capítulo anterior sobre a percepção da
diferença entre o técnico e o redutor de danos. Em um contexto onde a precarização do
trabalho se evidencia - e ainda com mais força para aqueles que possuem uma escolaridade
mais baixa, em função da valorização do ensino formal – podemos entender este desejo do
ponto de vista de uma expectativa de maiores possibilidades de “barganha” no mercado de
trabalho.
Outros redutores de danos, no entanto, vêem a exigência da escolaridade como um
risco de exclusão, onde entra em questão a valorização do ensino formal e as dificuldades
envolvidas na volta ao estudo:
146
Ah, eu vou apanhar... eu sou contra. [...] Porque assim, ó, o que é que significa a
profissionalização? Eu tenho medo disso, tenho medo... profissionalizar significa o
que, significa, por exemplo, que a pessoa tem que ter curso técnico
profissionalizante, talvez isso seja uma coisa, né. Tá, ou eu estou enganado ou a
pessoa que não tem segundo grau completo não pode fazer. Pois é, sou contra. Sou
contra que alguns dos melhores redutores de danos de [município] não têm segundo
grau completo, nem o primeiro. Eu acho que esse modelo de formação aí... o lugar
da criança é na escola? É, mas a escola é uma merda. Então assim, ó, eu passei no
vestibular depois de ter feito o supletivo da SEC, ou seja, os conhecimentos que eu
não tive no segundo grau não fizeram falta no vestibular e não estão fazendo falta
agora, no meio do curso. Porque é que vão fazer falta para um redutor [...] É um
modelo de educação falida, e a gente não tem que investir nele, é isso que eu acho.
(José, redutor de danos).
Cecília - Eu acredito que seja... a gente vai aprender um pouco mais, eu nem digo a
teoria, porque a gente sabe teoria e prática, não... eu acredito que seja mais pela
necessidade de ter como é que é...
Elisa - Um certificado
Cecília - Um certificado para ti comprovar, para ti poder passar pelo concurso. Pela
necessidade de uma profissão ter que ter o ensino médio. Que a lógica da profissão
é que tem, no mínimo, tem que ter ensino médio. Se fosse por certificado, nós
tirávamos de letra, porque o que a gente mais tem é certificado de trabalho. Mas eu
acho que se for para estudar... até agora não consegui ainda correr atrás, eu estou
meio devagar, mas até o fim do ano eu dou um jeito nisso.
Rafaela - Então a idéia de vocês é voltar a estudar
Elisa - Até que nós gostaria, mas aqui na nossa idade, a gente não tem mais idéia...
Cecília - Eu no caso, o que dificulta é o tempo. É tanta coisa para fazer... eu tenho
filho ainda pequeno, né, então não consigo. Mas tem várias coisas que eu vou ter
que voltar a fazer. (Cecília e Elisa, redutoras de danos).
Na primeira fala há uma denúncia da possibilidade de, através da escolha de um curso
técnico, estar operando o que poderíamos chamar de uma “segunda marginalização”: uma vez
que grande parte dos redutores se encontra em condições de vulnerabilidade (tais como baixa
escolaridade, pertencer a uma comunidade pobre, ser usuário de drogas, ser soropositivo), a
exigência de um desenvolvimento escolar sem o devido suporte (como o tempo para o estudo
referido na 2ª fala), poderia colocar o trabalhador em uma nova situação de precariedade.
Vale dizer aqui que, segundo a equipe do CRRD que desenvolveu a proposta do curso
juntamente com os redutores, não existe a intenção de restringir o exercício da “profissão”
redutor de danos àqueles que completarem o curso (em nível técnico ou auxiliar). Porém, a
posse de um diploma por parte destes os diferenciaria no mercado de trabalho daqueles que
não tivessem realizado tal curso.
Outra questão que mereceria ser discutida mais profundamente pelos trabalhadores, se
relaciona às expectativas e potenciais dificuldades criadas pela possível existência de cargos
para redutores de danos em concursos públicos (na hipótese da regulamentação profissional).
Considerando-se a possibilidade da realização de um concurso coloca-se a questão da forma
de seleção, novamente refletindo sobre a possibilidade de contemplar ou excluir os
147
trabalhadores que já exercem esta função e que possuem determinadas características
consideradas importantes para desenvolver este trabalho:
... Eu acho muito difícil tu criar um instrumento de avaliação, assim para ver a
capacidade de uma pessoa em fazer o tipo de abordagem que a gente faz. Acho
difícil numa prova com questões teóricas a pessoa poder avaliar esse tipo de
capacidade. Não sei como seria um concurso público, como poderia ser elaborado,
e por quem seria elaborado [...] se fizer um concurso público nos moldes normais,
com conhecimento teórico, a tendência é que pessoas que estão se formando, por
exemplo, com serviço social, psicologia e coisa e tal, vão querer fazer este concurso
e vão ter muito mais chance de passar nesta prova teórica, por exemplo. E também
acho que no momento que se abre um concurso público não pode dizer que para
participar de um o concurso público que tem que ter usado drogas, não tem como.
“Não, mas eu estudei, estudei um monte, está aqui o comprovante”. (Érico, redutor
de danos).
...porque aí a gente que praticamente se criou dentro do programa, que trabalha, fica
de fora. [...] que tem gente que de repente não tem o grau de estudo que eles
querem. Porque de repente eu posso fazer a prova, eu posso saber tudo, mas na
ética como eles fazem ali eu não vou saber, eu vou de repente me perder nas
perguntas. E é uma coisa que estou sabendo. Mas conforme eles fazem, não vou
saber me expressar. (Cecília, redutora de danos).
Aqui novamente percebe-se a emergência de questões relacionadas à valorização de
um tipo determinado de saber na sociedade e no mercado de trabalho; questões estas que
geram o temor de que o redutor que há tempos vem trabalhando pelo programa e pelos
usuários acabe por ser preterido, enquanto outros “recém chegados”, com maior escolaridade,
acabem ocupando estas vagas.
A partir de todas estas questões poderíamos pensar a profissionalização de modo mais
amplo, como uma forma de investimento pessoal e profissional, mas também social,
institucional e político. Segundo Bauman, há um crescente abismo entre a condição de
indivíduos de jure e sua condição de se tornar indivíduos de facto. Enquanto ser indivíduo de
jure significa não procurar as causas da própria derrota senão na própria indolência e
preguiça, e não procurar outro remédio senão tentar com mais e mais determinação, ser
indivíduo de facto é ganhar o controle sobre seu destino e tomar as decisões que em verdade
se deseja. O autor afirma que o abismo entre estas duas condições não pode ser transposto
apenas por esforços individuais, sendo tarefa da Política com P maiúsculo (BAUMAN, 2001,
p.48-9). Desta forma, profissionalizar significa também, e cada vez mais, tomar o controle
para si no sentido de exigir transformações a partir das lutas coletivas. Entretanto, esta
transformação do indivíduo de jure para o indivíduo de facto envolve a necessidade de criar e
ampliar espaços de debate entre os trabalhadores, tornando mais “claros” os caminhos
possíveis e incentivando a participação e o controle social.
148
8.3 O trabalho voluntário e a militância
Como já vimos anteriormente, todos os programas e ações da RMPA que participaram
do presente estudo contaram, em algum momento, com pessoas realizando trabalho
voluntário. Muitas vezes, durante os períodos sem financiamento, lança-se mão do trabalho
voluntário para manter as ações em funcionamento; outras vezes, o voluntariado vem para
suplementar a o grupo de redutores que se torna insuficiente diante da verba fornecida; além
disso, na maioria dos municípios a inserção das ações em redução de danos iniciou através do
trabalho voluntário, geralmente por parte de alguma ONG. Enquanto a metade dos
coordenadores relatou ter iniciado seu trabalho na redução de danos como voluntário, mais de
90% dos redutores de danos afirmou iniciar seu trabalho desta forma.
Seguindo os relatos dos nossos participantes e as discussões que realizamos até o
momento, propomos aqui pensar o exercício do trabalho voluntário na redução de danos de
duas formas, não necessariamente excludentes: pela via da precarização do trabalho e pela via
da militância
67
. No que tange a militância, o trabalho se transformaria ainda em uma via de
mão dupla, ou seja, operando transformações a partir de um cuidado de si por parte do
trabalhador, que proporcionaria as bases para um cuidado do outro, e ainda possibilitando
uma outra visão da comunidade em que se vive e promovendo uma ação do sujeito sobre
aquilo que percebe.
Em função das descontinuidades, muitas vezes da possibilidade do trabalho voluntário
se coloca diante do trabalhador, seja ele já redutor de danos ou membro de uma comunidade
que atue como “amigo do projeto”. Como vimos no capítulo três, em muitos dos locais
analisados há uma prática comum ligada aos critérios de entrada das pessoas na equipe, que
passam pela indicação dos trabalhadores a partir de pessoas que já desenvolvem um trabalho
voluntário junto ao programa.
...a gente ficou uns seis meses sem receber grana e aí assim, o pessoal que estava,
se dispersou né. Não ficou mais, enfim, deu uns problemas aí. E aí então, eu usei
como critério para escolher, as pessoas que me ajudaram nesta fase que a gente
estava sem grana, os amigos do projeto. Aqueles que abraçaram junto, né, nessa
fase que a gente estava sem dinheiro. Então eu dei prioridade de contratação para
estas pessoas, até por serem aqui da comunidade, já tem um conhecimento e tudo.
(Fúlvia, coordenadora e redutora de danos).
67
Por “militância” entendemos a ação de seguir e defender as idéias e conceitos presentes na proposta da
Redução de Danos, tanto no espaço de trabalho como fora dele.
149
Pensando o trabalho voluntário pela via da precarização, podemos afirmar que a
prioridade de contratação de pessoas que realizaram um período de voluntariado acaba por
estimular a continuidade desta forma de trabalho. O voluntariado, muitas vezes, está ligado a
uma expectativa de poder vir a receber pelo trabalho mais tarde, seja por pagamento
retroativo, no caso do atraso de repasse, seja através da possibilidade de uma contratação para
trabalhar como redutor de danos quando se é um “amigo do projeto”.
Lia - Eu comecei a trabalhar voluntariamente porque tinha aquela expectativa que
eu ia receber por aquilo. Daí eu comecei a trabalhar no primeiro mês, nada, porque
a Fúlvia tinha falado que quando a gente trabalhasse, era no outro mês que a gente
ia receber. Aí eu trabalhei, não recebi o primeiro, não recebi o segundo, não recebi
no terceiro [...].
Rafaela - Tá, mas agora tu continua trabalhando como voluntária, e no que é que tu
te apega para continuar?
Lia - É, de vir a receber de novo também né, mas é que eu me apeguei na redução
de danos. Que mesmo que eu não fosse receber, eu gostaria de continuar tendo
algum meio de manter eles com cachimbo, com a camisinha e coisa, com a
informação. (Lia, redutora de danos; Rafaela, pesquisadora).
O “apego” à RD se refere a um vínculo feito com os usuários, e que se materializa em
um comprometimento de continuar atendendo, mesmo em caso de não haver verba
disponível. Aqui podemos novamente fazer um paralelo com a situação vivenciada pelos
ACS, que se sentem responsáveis pelo bem-estar de sua comunidade (que é a comunidade que
atendem), e que às vezes acabam fazendo mais do que poderiam ou do que seria de sua
competência (THEISEN, 2004). Como já vimos no item anterior, esta forma de trabalho
muitas vezes acaba levando a um sofrimento do redutor de danos, que se depara com os
limites do seu fazer para o atendimento da população.
Às vezes a gente quer fazer mais do que a gente pode, e eles precisam de mais às
vezes. Então às vezes coisas que a própria assistência social deveria fazer no
município, não faz, talvez porque eles não vão até eles lá, têm medo deles às
vezes... porque às vezes pensam que o usuário é uma pessoa violenta, é um bicho
né. Aí eu fico assim às vezes mal, quando chego do campo e não consegui resolver
alguma coisa. Por exemplo, quando tem algum exame que a gente não consegue
marcar né. Antes quando eu estava na prefeitura eu até conseguia marcar alguns
exames na secretaria né, de saúde, tinha algumas regalias. Agora já não tenho mais,
porque mudou muito o pessoal da equipe. Então me deixa mal porque não consegui
ajudar. E a gente não consegue tudo, abraçar tudo. Muitos precisam de outras
coisas... (Clarice, redutora de danos).
Muitas vezes a percepção de que a população precisa mais do que é possível fazer
dentro do PRD, acaba levando o redutor de danos a trabalhar fora de seu horário previsto,
principalmente quando é morador da comunidade onde atua, ficando “24 horas” à disposição
150
da população. Este comprometimento com o bem-estar do público que se atende acaba sendo,
na grande maioria das vezes, o motor que leva à continuidade do trabalho mesmo nos casos de
não haver financiamento.
A contratação vinculada a um trabalho voluntário pode, ainda, assumir o caráter de
“testar” a implicação das pessoas com o trabalho. Há uma noção corrente entre os
trabalhadores de que o “bom” redutor de danos (ou coordenador) é aquele que trabalha
mesmo sem receber, porque milita pela causa, ou seja, porque seu objetivo é maior do que ter
um trabalho ou um salário:
João - É, e aí também entra a qualificação do redutor né. As pessoas que se
interessam pelo trabalho procuram um espaço. Acho que não é só na redução de
danos, que em qualquer lugar, em qualquer área sempre tem aquele que né, “eu vou
lá e bato meu pontinho e tal” e, simplesmente para ter garantia, para ter seu salário
no mês. Tem uns que vão lá "Báh, eu sou redutor e coisa e tal". Agora tem os
redutores que vão mesmo, que vão a campo, se interessam, procuram. E a gente, a
maioria aqui, está nisso, por isso que está melhorando a redução de danos, está
sendo reconhecido. O trabalho está sendo ampliado pelo interesse da redução de
danos.
Florbela - E a participação né
João - Porque a gente sabe que por aí afora tem outras redução de danos que... de
ONG, inclusive, que o pessoal só quer viajar, pegar a verba, projetos para pegar a
verba, para viajar, para se manter. E não é o nosso caso. A gente vestiu a camiseta
mesmo, de manga comprida e tudo (risos). (João e Florbela, redutores de danos).
Érico - Eu acho que também dá para ressaltar que ele começou a trabalhar em
dezembro né, mas na verdade só foi contratado e passou a receber salário em abril.
Rafaela - Pois é ele trabalhou um tempo como voluntário. E tu também trabalhou
como voluntário?
Érico - Eu trabalhei três meses voluntário quando entrei. Trabalhei três meses como
voluntário, voluntário não recebe.
Florbela - No começo foi assim, os que entraram depois de tiveram mais facilidade,
não precisaram ficar tanto tempo esperando receber.
Érico - Não, olha que teve o A e o B que entraram recebendo. Não trabalharam
nenhum dia como voluntários, e são justamente os dois que não estão mais. (Érico
e Florbela, redutores de danos; Rafaela, pesquisadora).
O sentido do trabalho voluntário aqui, transcende a expectativa de recebimento de
salário. A posição de militante - alguém que “veste a camiseta”, independentemente das
condições de trabalho - é tida como fundamental para ser um bom trabalhador. Isso não quer
dizer que as más condições de trabalho não sejam levadas em conta, ou, que os trabalhadores
não se mobilizem no sentido de tentar melhorá-las, mas quer dizer que tais condições ficam
em segundo plano quando se trata de garantir a assistência ao usuário. Vale dizer aqui,
porém, que também está presente a crítica com relação ao trabalho voluntário, afirmada na
constatação de que o trabalho voluntário possui limitações, já que a sobrevivência pelo
trabalho é central em nossa sociedade. Isso implica em que, em alguns momentos, a qualidade
151
e intensidade do trabalho acabem diminuindo. Entretanto, a posição crítica é assumida apenas
por uma minoria.
Segundo Foucault (1994), o exercício da prática reflexiva da liberdade é a condição
para que os sujeitos possam decidir sobre o próprio destino, buscando construir uma estética
da existência que respeite a diversidade das formas de ser e se expressar. Além disso, já
afirmamos que uma das formas de garantir uma maior liberdade de ação e reflexão se dá
através das garantias possibilitadas pela propriedade social (CASTEL, 1998). Entretanto,
considerando a insegurança derivada das inúmeras descontinuidades, aliada muitas vezes a
uma baixa escolaridade, baixo salário e à falta de garantias que possibilitariam uma maior
propriedade de si, poderíamos entender o trabalho voluntário como uma forma de
“exploração” de um trabalhador que se encontra na zona dos supranumerários? Como estes
trabalhadores poderiam estar vivenciando o cuidado de si e exercendo sua cidadania para,
então, operarem nesta lógica com as pessoas que atendem?
Segundo Bauman (2001) e Castel (1998), a valorização do individualismo e da
competição produziu um enfraquecimento da solidariedade, uma fragilização dos laços sociais
e uma fragmentação da classe trabalhadora. Para Sennet (1999), a ênfase atual em trabalhos
em curto prazo, execução de projetos e flexibilidade, impede a formação do “caráter” do
indivíduo, pois este depende de virtudes estáveis como lealdade, confiança,
comprometimento, ajuda mútua. Assim, o contexto atual estaria criando as condições para o
surgimento de um sujeito que não se sente responsável ou implicado no laço social. De acordo
com Bauman, em função da flexibilização e fragilidade das relações, o trabalho hoje não
poderia mais oferecer um eixo seguro em torno do qual envolver e fixar autodeterminações,
identidades e projetos de vida; não poderia mais ser concebido como fundamento ético da
sociedade ou mesmo eixo ético da vida individual (BAUMAN, 2001).
Se analisássemos a situação dos redutores de danos somente deste ponto de vista,
talvez encontrássemos um trabalhador desinteressado naquilo que faz, sem comprometimento
com os laços na comunidade e com os resultados de seu trabalho em termos de implicação e
ajuda mútua. Porém, o que pudemos perceber durante a pesquisa é que, apesar da
precarização – a qual não devemos em hipótese alguma desconsiderar ou diminuir de
importância - o trabalho na redução de danos não parece estar destituído de sentido para seus
trabalhadores, ao contrário. Desta forma, se coloca uma pergunta: o que levaria um redutor de
danos a trabalhar sem receber, ou com atrasos no pagamento, e ainda assim ter orgulho do
trabalho que faz, sentir-se gratificado, “militar pela causa”? Já ressaltamos também a
152
implicação que possuem com as pessoas que atendem. Mas o que levaria a tal implicação?
Que atravessamentos operam em sua constituição enquanto sujeito para que a precarização do
trabalho assuma um papel secundário em relação à sua implicação com o mesmo? Neste
sentido, entender a ligação dos trabalhadores em redução de danos com seu trabalho se torna
fundamental para entendermos a forma como se pensa e se coloca enquanto trabalhador.
A partir das conversas e debates ao longo das entrevistas, vários redutores de danos
afirmam que o trabalho na RD lhes trouxe um aprendizado, uma mudança na visão que
possuíam e uma forma mais participativa de estar no mundo, mais integrada às questões
sociais:
...naquele tempo que mataram S, houve várias mortes, tudo pertinho, sabe. E aí eu
pensava assim... e todas as pessoas eram próximas de mim, né. E eu pensava
assim... como aquilo ali acontecia com tanta freqüência, e antes parecia que eu não
estava envolvida, que não conhecia, que não tinha nada a ver comigo. Mas como?
[...] Porque era toda hora, toda hora. A gente nem se abalava. Tinha tiroteio, várias
vezes aconteceu de ter tiroteio na minha rua, de jogarem arma para dentro do pátio
da minha mãe e passarem correndo, atirarem arma para dentro e depois passarem
para buscar. Mas a gente achava assim: meu irmão trabalha, eu trabalho, minha mãe
trabalha, minha irmã também é casada e mora do lado. A gente achava que não ia
envolver a gente [...] a gente achava que aquele problema não era nosso, mas este
problema é nosso. (Lia, redutora de danos).
Para esta redutora, o trabalho trouxe a percepção de que sua vida e suas escolhas não
são desconectadas daquilo que acontece em sua comunidade, e de que pode fazer algo para
transformar esta realidade através de seu trabalho. Neste sentido, contribuiu para o
estabelecimento de laços de solidariedade e de uma noção de participação, de engajamento,
que antes não ocupava um lugar importante em sua vida.
Outros redutores citaram uma implicação com o trabalho ligada à experiência de uso
de drogas e/ou soropositividade para o HIV por parte de amigos e familiares, às vezes
marcada pelas perdas. A partir desta experiência pessoal, o trabalho com RD foi assumido
como uma forma de poder fazer algo para auxiliar outras pessoas, saindo da posição de
“vítima” e de individualização para ocupar um lugar de “luta” por si e por seu semelhante:
...Então assim, foi uma coisa que detonou uma família inteira. E aí quando eu entrei
neste programa para resgatar o meu sobrinho... eu entrei antes do guri morrer, mas
não deu tempo. Aí tu vê... eu me coloco assim é no lugar da Didia. Tu conhece a
Didia, Gigi... aquela que perdeu um filho... foi num acidente. Às vezes eu me
coloco no lugar dela, porque foi uma mãe... ela é uma guerreira. Ela foi à luta pelo
crime do acidente do filho, e lutando por outros e por outros. Então ela perdeu um
filho, mas está na luta. Então eu me coloco naquele de lugar dela. Porque eu estou
na luta pelo meu filho, mas não só pelo meu filho, por outros e outros e outros. E
pelo meu sobrinho, que além de sobrinho foi criado junto. Um guri com 15 anos,
uma criança com 15 anos perder a vida... é ruim para uma família né. Então acho
assim que o nosso trabalho ele é muito gratificante... A gente não sabe nem... nem
153
esclarecer como é que é. Porque a gente se sente de uma forma assim... de uma
guerreira, de uma lutadora. (Julieta, redutora de danos).
A comparação com a mãe de Thiago Gonzaga que, após perder o filho em um acidente
de automóvel passou a realizar campanhas e projetos de prevenção de acidentes no trânsito
através da criação de uma fundação, é aqui realizada para exemplificar a percepção de si
como lutadora. A questão aqui parece ser a transformação de um “problema pessoal” em uma
causa que também é social, a partir do momento em que passa a atuar em sua comunidade no
sentido da prevenção por meio de sua experiência de vida. Outros trabalhadores, ainda,
afirmaram que a RD possibilitou um resgate próprio em função de um uso pessoal de drogas,
trazendo a possibilidade de poder utilizar-se desta experiência para auxiliar outras pessoas:
... Infelizmente já existia redução de danos, mas eu não conhecia, e eu usava droga
injetável, e compartilhava seringas. Então eu vejo que o trabalho que hoje eu faço
se tivesse sido comigo, talvez muita coisa não tivesse acontecido..., na questão de
saúde, a questão da casa, de serviços, de família, muitos altos e baixos... (Lima,
redutor de danos).
...E até hoje consegui usar isso, todas essas experiências minhas que eu tive para
passar para as pessoas que continuam usando drogas. [...] Então isso aí fez muito
bem para a minha pessoa, e eu comecei a me sentir assim poderoso. Ter conseguido
largar a história toda e ainda por cima, em cima disso, ter conseguido construir uma
coisa positiva. Então nas bocas onde eu ia antes com drogas e armas, subindo os
morros lá, hoje eu vou com preservativos, alternativas, aconselhamento e coisa e tal
. E é uma coisa que me dá orgulho né. Porque é normal tu estar entrando numa boca
perigosa né, eu acho que essa adrenalina também vicia, então eu consegui uma
maneira de usar essa adrenalina de uma forma positiva. (Érico, redutor de danos).
Para estes redutores, que passaram a trabalhar com a RD após terem sido abordados
por um PRD, a implicação com o trabalho se coloca no sentido de fazer por outras pessoas
algo que foi feito por eles. A partir de uma experiência onde puderam “assumir o controle”
sob o uso de uma substância, o trabalho em RD vem possibilitar “assumir o controle” também
de forma mais ampla, passando a exercer uma participação em sua comunidade. Além de
reatualizar o cuidado de si a partir do incentivo ao cuidado dos outros, o redutor passa a
ocupar um “outro lugar” na comunidade. Apesar de muitas vezes continuar freqüentando os
mesmos lugares de antes (bocas, presídio, bares, etc.), agora atua nestes locais como um
agente de transformação da realidade que vivenciou.
Neste contexto, podemos pensar o trabalho pela via da militância como uma atividade
que possui um significado na vida do trabalhador que vai além de ser um “meio de
sobrevivência”. O trabalho passa a ser considerado como uma atividade que visa à
transformação de condições sociais percebidas como indignas ou insuficientes a partir de
154
vivências do próprio trabalhador, que passam de um estatuto privado para uma luta vinculada
a um movimento social. Desta forma o trabalho possibilita, ao menos em parte, o exercício da
cidadania, trazendo ao trabalhador (como na fala acima) um sentimento de poder.
Cruikshank, citada por Dean (1999), define o empowerment
68
como uma tecnologia da
cidadania, uma estratégia ou técnica para a transformação da subjetividade constituída pela
“fraqueza” ou “impotência” (powerlessness) para uma constituição através da cidadania ativa.
Carvalho afirma haverem diferentes perspectivas do conceito de empowerment, onde destaca
a diferenciação entre o que chama de “empowerment psicológico” e “empowerment
comunitário” (CARVALHO, 2004). O empowerment psicológico seria guiado por uma
perspectiva filosófica individualista, que tende a ignorar a influência dos fatores sociais e
estruturais; trabalha-se com estratégias de fortalecimento de auto-estima e capacidade de
adaptação ao meio, assim como com o desenvolvimento de mecanismos de auto-ajuda e de
solidariedade. O objetivo final de tais práticas é a manutenção da harmonia social e de uma
relação saudável do indivíduo com seu meio externo. A grande questão (e limitação) colocada
neste tipo de abordagem se refere à despolitização que o empowerment psicológico provoca
no momento em que, desconsiderando fatores sociais e estruturais, pode criar nos indivíduos
uma ilusão de poder que não corresponde a uma realidade onde grande parte da vida é
fortemente influenciada por políticas e práticas macrossociais.
Já no empowerment comunitário é visto como um processo e um resultado de ações
que afetam a distribuição do poder no âmbito das esferas pessoais, intersubjetivas e políticas.
Assim, neste tipo de empowerment estão presentes microfatores encontrados no plano
individual, como autoconfiança e auto-estima; na mesosfera social com estruturas de
mediação onde membros de um coletivo compartilham conhecimentos e ampliam sua
consciência crítica; e ainda no nível macro, referente às estruturas sociais como o Estado e a
macroeconomia (CARVALHO, 2004, p.1092). Um aspecto central na noção de
empowerment comunitário é a reflexão, que qualifica a ação política e que envolve tanto o
“controle sobre os determinantes da saúde” quanto o “controle dos indivíduos sobre o próprio
destino”, ou seja, apoiar pessoas e coletivos a realizarem suas próprias análises para que
tomem decisões que considerem corretas, desenvolvendo a consciência crítica e capacidade
de intervenção sobre a realidade (CARVALHO, 2004, p.1093).
Considerando a RD como uma forma de governo de si e dos outros, podemos nos
perguntar a que tipo de racionalidade o trabalho e o trabalhador em redução de danos estariam
68
Apesar das diferentes formas (e erros) de tradução, o termo empowerment poderia se referir ao verbo
emancipar, no sentido de tornar livre, independente. (CARVALHO, 2004, p.1090).
155
ligados. As falas aqui reproduzidas dizem da possibilidade de ocupar um outro lugar, que vai
além da relação com a droga ou da rede de interação afetiva. Assim, podemos pensar que a
RD, apesar de surgir inicialmente como uma forma de governo de si com relação ao
uso/abuso de uma substância, ultrapassa a questão das drogas para significar uma nova forma
de estar no mundo enquanto sujeito:
...eu me lembro, voltando à comunidade terautica, o modelo de doze passos de
Alcoólicos Anônimos. E me lembro que os caras trabalhavam muito forte a história
do resgate espiritual, do resgate da espiritualidade, da conversão espiritual. E eu
pensava assim "Caralho, eu tô fundido, eu sou ateu" (risos) "Não tenho chances né,
não tenho chances". E aí eu me lembro que caiu nas minhas mãos um texto muito
lindo, chamado carta do Jung para o Bill, que foi um dos criadores dos Alcoólicos
Anônimos. [...] E o Jung ele fala assim que, ele enxergava três formas da pessoa
conseguir superar de alguma forma os problemas de alcoolismo, de uso abusivo de
álcool, de álcool dependência. Ele enxergava três formas: uma por uma ação da
graça, tipo assim, Deus vem e intercede na vida da pessoa, essa seria uma das
formas. Outra forma seria uma educação superior da mente, e ele não vai deixar
muito claro o que que ele quer dizer com isso na carta. E uma terceira forma ele
acha que se daria através de uma nova forma de se relacionar com o mundo. E eu
entendo isso como, no meu caso, como uma coisa da militância, da ação
transformadora, de tentar agir, de começar a me relacionar com um mundo de um
outro modo. (José, redutor de danos).
O “relacionar-se de outro modo com o mundo” tem a ver com uma transformação
pessoal que não parece se resumir na mudança de comportamento, mas que está relacionada a
um maior envolvimento com as pessoas e a situação de sua comunidade, com a implicação
com os problemas percebidos, passando então a ser um agente de transformação neste meio.
Assim, há uma mudança no plano individual que acaba agindo como catalisador para uma
forma de maior organização e mobilização no plano social. Lembramos aqui da contraposição
entre o indivíduo e o cidadão: enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em
relação a uma causa comum, o cidadão é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-
estar através do bem-estar da cidade (BAUMAN, 2001). Assim, apesar de todo o contexto da
precarização do trabalho que se atravessa na produção da subjetividade do redutor de danos,
se levarmos em conta a produção deste trabalho relacionada à percepção de estar ocupando
um “outro lugar”, podemos afirmar que há neste trabalho vinculado à militância uma
possibilidade de exercício da cidadania, ainda que não completa pela falta da garantia que
seus direitos sejam respeitados.
A precarização do trabalho é percebida, discutida e considerada como falta de
reconhecimento, respeito e consideração pelo trabalho realizado, integrando lutas pela
sustentabilidade das ações e dos trabalhadores. Entretanto, enquanto a precarização pode
acabar atuando em uma (tendência à) desintegração da credibilidade dirigida ao Estado e a
156
algumas de suas políticas, sua intensidade não é suficiente para produzir na subjetividade do
trabalhador a fragilização dos laços e o desinteresse pelo coletivo, o que pode ser observado
na implicação que possui com o trabalho e o público atendido. Desta forma, poderíamos dizer
que o trabalhador em redução de danos constitui sua subjetividade em meio aos
atravessamentos da precarização e da ação transformadora pela militância.
Poderíamos colocar novamente a questão: até que ponto a implicação com o trabalho,
que acaba servindo de incentivo ao voluntariado, pode ser positivamente considerada como
militância, e até que ponto pode acabar se transformando em exploração de mão de obra e
desrespeito com o trabalhador? Por um lado, vemos que a implicação com o trabalho se
produz a partir da transformação de uma questão pessoal transformada em uma questão
coletiva, ligada a um movimento social. Assim, o trabalhador assume um papel de mediador e
educador popular, no sentido dado por Sherer-Warren: “o trabalho de mediação e educação
popular compreende duas facetas principais: uma da prática de educação política direta,
organizativa e conscientizadora; outra da prática reflexiva, produtora de novas
compreensões e conhecimentos sobre a realidade social” (SHERER-WARREN, 1999, p.61).
Por outro lado, a relação de implicação que o trabalhador possui com o trabalho e a
população que atende pode acabar sendo utilizada como forma de garantir a necessidade do
trabalho voluntário e a “continuidade da descontinuidade”; se apesar de todas as questões
referentes à precarização do trabalho discutidas neste estudo - a instabilidade do vínculo do
trabalhador, as inúmeras possibilidades de descontinuidade das ações, as exigências do
mercado de trabalho e a posição de “inempregáveis” que muitas vezes assumem estes
trabalhadores, além dos atravessamentos jurídicos, médicos e morais que colocam o redutor
de danos em uma posição de não trabalhador - os trabalhadores em redução de danos
continuam exercendo suas atividades, como conseguir chamar atenção para a necessidade de
melhorar as condições de trabalho? Além disso, levando em conta as condições de
“competição” de muitos destes trabalhadores no mercado, podemos pensar nas reais
possibilidades de resistência às condições de trabalho que se impõem.
Assim, entre o ideal e o possível, talvez pudéssemos considerar as formas de inserção
e do trabalho e dos trabalhadores em RD como mais um passo na direção de uma saúde
possível e do resgate da cidadania também possível, e que em sua plenitude ainda demandará
muitas lutas e combates, associadas à intensificação dos espaços de solidariedade e controle
social e de uma retomada do papel do Estado e dos movimentos sociais na construção do laço
social.
157
9 - Considerações finais
Ao longo deste estudo buscamos compreender como as redes enunciativas e os jogos
de verdade que constroem os lugares da Redução de Danos atravessam a inserção das ações
de RD no Sistema de Saúde, a organização e práticas deste trabalho, bem como a produção da
subjetividade do trabalhador em redução de danos. Utilizando-nos da ferramenta genealógica
de Michel Foucault, discutimos uma diversidade de atravessamentos discursivos no cotidiano
dos trabalhadores em RD: a relação entre a sociedade civil e o Estado; a falta de separação
entre o Público e o Privado; as racionalidades presentes nos diferentes discursos sobre drogas;
as características consideradas importantes para ser um redutor de danos; a divisão entre
“técnicos” e redutores de danos; a profissionalização do redutor de danos; o trabalho
voluntário e a militância; e a precarização do trabalho, em suas interfaces com todos os
atravessamentos anteriores.
Os modos de subjetivação encontram-se associados aos jogos de verdade existentes
em cada período histórico e conjuntura social, cultural e econômica. A forma como o sujeito
faz a experiência de si, ou seja, do modo como vivencia, aceita, rejeita ou transforma os jogos
de verdade presentes na sociedade em que vive estão associados aos modos de subjetivação.
Tais modos podem ir à direção de uma homogeneização dos indivíduos ou então de um
campo maior de possibilidades de singularização. Modos de subjetivação menos coercitivos
possibilitam a constituição de sujeitos capazes de apropriar-se do próprio destino com maior
liberdade; a singularização demarca possibilidades do exercício da alteridade das formas de
ser e existir. Assim, vimos que o imperativo da abstinência, o julgamento moral e as redes
discursivas que configuram a rede legal sobre drogas podem produzir a segregação dos
usuários de drogas enquanto cidadãos, inviabilizando seu acesso e acolhimento nos serviços
de saúde, a partir de uma posição normalizadora por parte dos profissionais. O atravessamento
destes jogos de verdade recai também sobre os trabalhadores da RD, que podem ser julgados
como não trabalhadores e como incentivadores ao uso da droga.
Estes atravessamentos se mostram ainda conectados às possibilidades de
reconhecimento destes trabalhadores. Por um lado, vemos a falta de reconhecimento na
legislação repressiva, na falta de suporte político, financeiro e administrativo por parte do
Estado, e ainda por parte da comunidade. Entretanto, apesar da coerção e tendência à
homogeneização dos indivíduos que esta rede discursiva produz, o reconhecimento do
trabalho parece ser firmado pelos usuários atendidos e sua rede de interação social. A partir
158
deste reconhecimento, o vínculo e a implicação do trabalhador se constroem como um dos
motores do trabalho, que acabam por superar as condições precárias ao produzir em suas
vidas a possibilidade de outros modos de existência.
Entretanto, se por um lado o envolvimento afetivo com o trabalho é motor para sua
continuidade e para uma outra forma de produção do sujeito pautada por uma escolha ética,
não podemos esquecer que por outro lado ele pode servir de base para o sofrimento do
trabalhador. Este sofrimento toma lugar no momento em que o envolvimento ultrapassa seus
limites de atuação, e o trabalhador passa a sofrer por deficiências ligadas ao trabalho de rede
ou mesmo os limites de políticas estruturais, que se referem às condições políticas e sócio-
econômicas da população que atendem. Desta forma, resgatamos a importância e necessidade
de um espaço de supervisão para o redutor de danos, no sentido de um apoio emocional para
as questões suscitadas pelo trabalho. A demanda que aparece no presente estudo vem reiterar
o que a análise de Debbaco e Oliveira (2003) já havia mostrado: a falta de um espaço de
supervisão, sem julgamento do trabalhador, que possibilite um cuidado de si. A constituição
de espaços conjuntos que contassem com uma abertura para a reflexão e o diálogo poderiam
contribuir em muito para a saúde dos trabalhadores do programa e, inclusive, para
proporcionar espaços que auxiliariam na organização coletiva dos mesmos.
Podemos ainda resgatar a importância (e as dificuldades) do trabalho integrado para as
ações em redução de danos. A partir do estigma com relação ao usuário (que passa a ser um
estigma também do trabalhador), e ainda da constante rotatividade de pessoal nas equipes de
saúde, se coloca a necessidade de constantes “sensibilizações” de gestores e trabalhadores em
saúde para a proposta da RD por parte dos redutores de danos e coordenadores de ações e
programas. Aqui, porém, há de se cuidar para não acabar absorvendo uma tarefa que é do
Estado: há que se negociar o apoio no sentido de um maior investimento na educação
permanente em saúde, onde o tema da RD e os princípios nos quais se sustenta devem estar
presentes para o debate. Na ausência de espaços de reflexão e educação continuada torna-se
difícil uma mudança do paradigma de atenção à saúde dos usuários de drogas. Como nos
lembra Ceccim (2005), a área da formação se coloca em um lugar central às políticas de saúde
no momento em que considera os trabalhadores como atores sociais das reformas e do
ordenamento de práticas acolhedoras e resolutivas de gestão e de atenção à saúde.
Neste sentido, há a necessidade de resgatar o papel de controle social nos moldes
propostos pelos princípios do SUS. E, além disso, de envolver nesta participação a maior
parte possível dos trabalhadores, possibilitando com que todos possam experimentar uma
diversidade de lugares, criando e aprendendo novas formas de ser e trabalhar. Este incentivo à
159
diversidade deve ser visto como uma forma de promover a singularização e a alteridade, o que
quer dizer que, apesar de serem vistos como ‘”iguais” de um ponto de vista de direitos, as
diferentes características, possibilidades e necessidades de cada trabalhador devem ser
trazidas à tona e debatidas. Assim, afirmamos a necessidade da abertura de espaços de debate
relacionados às expectativas dos redutores de danos com relação à profissionalização, bem
como da falta de conhecimento citada no que se refere aos espaços de participação política e
aos caminhos “burocráticos” da sustentabilidade. A profissionalização, a inserção em espaços
políticos e a inserção da RD no SUS aparecem como tentativa de garantir uma maior
estabilidade ao trabalhador e às ações. No entanto, há que se debater sobre as reais
possibilidades e impossibilidades colocadas nestas “saídas”. Se por um lado, as garantias são
necessárias para que os trabalhadores possam obter a propriedade de si e exercer a prática
refletida da liberdade, por outro, para ter acesso a tais direitos é necessário uma auto-
organização, para que se possam decidir os caminhos pelos quais buscar o que se deseja.
Da mesma forma, há que se refletir sobre os possíveis riscos da inserção da RD no
SUS. Como vimos ao longo deste estudo, situações de descontinuidade de linha de trabalho
ocorreram somente em locais vinculados à organização governamental. Da mesma forma, os
atrasos no repasse de verbas sofridos pelas ONG, os laços precários de contratação dos
trabalhadores, enfim, as diversas formas de instabilidade, não cessaram a partir da inserção da
RD em espaços governamentais. Com a vinculação crescente de programas às organizações
governamentais podemos inferir que há um risco de que descontinuidades na linha de trabalho
e nos atendimentos à população venham a ocorrer com maior freqüência, em função das
trocas de gestão poderem afetar diretamente as equipes e coordenação dos programas. Até
hoje, mesmo com tais trocas, a RD vem conseguindo se manter: seja porque parte da equipe
que permanece consegue sensibilizar os novos para a proposta, seja porque o movimento
social ou mesmo o Estado buscam atuar na formação dos indicados. Porém, há de se refletir
sobre estes possíveis entraves antes que estes peguem os trabalhadores de surpresa: seria
melhor poder pautar uma agenda e possíveis soluções do que correr para “apagar incêndios”.
Ainda com relação à precarização do trabalho, podemos retomar a implicação
militante dos trabalhadores em RD. Como já afirmamos ao longo deste estudo, podemos
entender esta implicação a partir da produção de um trabalho que vai ao encontro da criação e
manutenção de redes e laços solidários, além de possibilitar uma permanente transformação e
reatualização de algumas formas de cuidado de si para o trabalhador. Porém, levando em
conta as condições de trabalho e de concorrência no que se refere ao mercado, esta mesma
implicação pode ser entendida também como uma forma de exploração do trabalhador, que
160
mantém sua responsabilidade perante o público atendido, porém sem a responsabilização do
Estado, que acaba por repassar tarefas que seriam suas, sem o devido suporte.
Por fim, podemos dizer que a RD vem oferecer uma alternativa de cuidado para os
usuários de drogas que busca seguir os princípios de cidadania, acolhimento, integralidade,
eqüidade, pautando-se pela conquista de uma saúde possível, e não ideal. Assim, podemos
pensar a RD como uma forma de governo de si que extrapola a questão do controle da
substância, mas que oferece uma possibilidade de questionamento dos regimes de verdade de
nossa sociedade, incentivando os sujeitos a exercerem uma prática refletida da liberdade. As
dificuldades para a integração desta forma de cuidado juntamente com as já existentes, porém,
ainda são muitas. Assim, entre o ideal e o possível, talvez possamos considerar as formas
atuais de inserção e organização do trabalho e dos trabalhadores em RD como as formas
possíveis no momento político e histórico em que vivemos.
Apesar de serem estas as possibilidades, no entanto, não queremos dizer que há de se
ficar estacionado à espera que “alguém” resolva a situação. Muitas das dificuldades aqui
descritas infelizmente não são exclusividade do movimento social em redução de danos, e
todas certamente demandarão muitas lutas associadas à intensificação dos espaços de
solidariedade e controle social, e de uma retomada do papel do Estado na sustentabilidade do
laço social. Assim, trata-se de vivenciar o trabalho possível, atentando-se para os limites da
reflexão na instabilidade e precarização, mas sem perder de vista a sociedade que queremos
construir (nosso ideal, nosso telos), vendo o espaço entre um e outro como um processo.
161
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Debate e Saúde Pública. Brasília: Ministério da Saúde, 1998. p.55-72.
168
APÊNDICES
169
APÊNDICE A - Base para questionário comparativo - situação dos PRD:
1. Identificação
a. Nome da instituição
b. Qual o vínculo institucional do projeto/programa (OG, ONG,...)?
c. Possui financiamento? De onde?
2. Equipe
a. Quais e quantos profissionais trabalham no projeto/programa?
b. Qual foi o critério de entrada?
c. Em sua opinião, existe um perfil de redutor?
d. Em sua opinião, o uso da droga influencia o trabalho do redutor de
danos de alguma forma, positiva ou negativamente?
e. Quais as atividades realizadas pelo PRD?
f. Existe trabalho voluntário?
g. O coordenador vai a campo?
3. Condições de trabalho
a. Com que recursos o PRD conta?
b. Já trabalharam sem financiamento?
c. O que fez continuar trabalhando mesmo assim?
d. Quais as dificuldades sentidas pelos coordenadores?
4. Parcerias
a. O projeto/programa possui parcerias com outras instituições? Quais?
5. Política
a. Os membros do programa participam de alguma instância de
representação política ou associação dentro da RD? Quais?
170
APÊNDICE B - Temas para os grupos
1º grupo – experiências de trabalho
Apresentação da pesquisa
Apresentação do grupo: nome/idade/escolaridade/ atividades que realiza no
PRD
Tema: Falar sobre a experiência de trabalho na Redução de Danos, a
trajetória e a implicação com o trabalho.
2º grupo - Sustentabilidade.
Relembrando o grupo anterior – experiências de trabalho
Tema: Situação da RD/PRD e como isso influencia a vida do redutor;
sobre a profissionalização e participação política.
171
APÊNDICE C - Questionário individual para redutores
1. Nome
2. PRD / cidade
3. Idade e escolaridade
4. Como você entrou para a RD? Há quanto tempo? Porque permaneceu?
5. Quais as atividades que desenvolve(u) como redutor(a)?
6. Já trabalhou sem receber? Por que motivos?
7. O que te fez continuar trabalhando apesar de não receber e/ou das dificuldades?
8. Quais as maiores dificuldades em ser um redutor?
9. Você acha que existe um perfil de redutor?
10. Você acha que o uso de drogas influencia no trabalho do redutor (positivamente ou
negativamente)?
11. O que você pensa sobre a profissionalização do redutor?
12. Você participa de alguma instância de representação política e/ou associação de
RD? Acha isso importante?
13. Você acha que existe preconceito com o trabalho da RD e do redutor? Sentiu isso
na pele? Como?
14. Já teve problemas ligados ao trabalho de redutor? De saúde; Polícia; Outros locais
da comunidade; Outros? Se sim, teve apoio de alguém para resolver?
15. Você sente falta de alguma coisa para melhorar o teu trabalho?
16. Qual é o papel do redutor de danos (para o usuário e a comunidade)?
172
APÊNDICE D – Consentimento Livre e Esclarecido
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional
Consentimento Livre e Esclarecido
Gostaríamos de convidar você a participar do estudo “Reduzindo Danos num Contexto de
Vulnerabilidade - discursos, sustentabilidade e o cuidado de si no trabalho de Redutores de
Danos da região metropolitana de Porto Alegre”. Estamos interessados em investigar como
os Programas de Redução de Danos e os redutores de danos da Região metropolitana de Porto
Alegre estão organizando suas ações. Sua participação é muito importante para nós, pois
pretendemos produzir dados qualitativos sobre o trabalho e o trabalhador em redução de
danos que possibilitem contribuir para a discussão relativa à RD e às políticas públicas em
saúde.
Sua participação consistirá em responder algumas perguntas, a partir de um roteiro
prévio, em entrevista com o pesquisador. Para melhor análise dos dados, a entrevista será
gravada. Todos os dados coletados nesta pesquisa terão garantia de sigilo e anonimato na sua
utilização. As fitas gravadas ficarão armazenadas no Instituto de Psicologia pelo período de
cinco (5) anos, podendo ser consultados somente pela equipe de pesquisa, em caráter sigiloso.
Após este período, as gravações serão destruídas.
Os investigadores estarão à sua disposição para esclarecer qualquer dúvida em relação
ao estudo, durante e após o estudo. Você poderá entrar em contato através do e-mail
ou pelo telefone (51) 81190679. Se você decidir não participar ou
mudar de idéia durante o estudo não haverá problemas, mas você deve comunicar ao
pesquisador responsável através dos contatos acima. Se você tiver alguma dúvida, pode
perguntar antes de decidir.
Após tomar conhecimento de todos os itens acima, concordo em participar deste
estudo.
Assinatura: ______________________________________________________
Nome do participante: _____________________________________________
Entidade do participante: ___________________________________________
Assinatura do pesquisador: __________________________________________
Data _____/_____/2005.
173
APÊNDICE F – Carta de aprovação no comitê de ética
Livros Grátis
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