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Universidade Estadual
de Londrina
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL
ADOLESCENTES EM LONDRINA:
HISTÓRIA DE RUA E HISTÓRIA DE VIDA
Edsônia Jadma Marcelino
LONDRINA - PARANÁ
2006
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EDSÔNIA JADMA MARCELINO
ADOLESCENTES EM LONDRINA:
HISTÓRIA DE RUA E HISTÓRIA DE VIDA
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
graduação, em Serviço Social e Política Social,
da Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial para à obtenção do título de
Mestre.
Orientadora: Prof
a
. Dra. Maria Luiza Amaral
Rizotti.
LONDRINA - PR
2006
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EDSÔNIA JADMA MARCELINO
ADOLESCENTES EM LONDRINA:
HISTÓRIA DE RUA E HISTÓRIA DE VIDA
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
graduação, em Serviço Social e Política Social,
da Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial para à obtenção do título de
Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Profa. Dra. Myrian Veras Baptista
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
____________________________________
Profa. Dra. Maria Angela Silveira Paulilo
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Profa. Dra. Maria Luiza Amaral Rizotti
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, 06 de dezembro de 2006.
Dedico à Sra. Luzinete Macena dos Santos e ao Sr. José
Marcelino Filho, meus pais, primeiras pessoas resilientes que
conheci. Pessoas a quem amo muito, que me possibilitaram
conhecer “novos mundos”e dar sentido à vida sobre as bases
do cuidado, do afeto, do respeito e da liberdade. Vocês são luz
em meu caminho! Obrigada pela presença constante em
minha vida por sempre terem me encorajado a enfrentar os
desafios diários. Amo vocês!
AGRADECIMENTOS
- A Deus, pela presença constante em minha vida. Esperança viva de que o Reino
aconteça aqui na terra, com dignidade, justiça e liberdade na vida plena para todos.
- À Maria Eduarda, que, mesmo antes de seu nascimento, vivenciou comigo todas
as etapas deste mestrado. Filha, você sempre me inspirou e foi motivo da minha
perseverança.
- Ao Alexander, que, ao assumir integralmente a paternagem, contribuiu para que
minhas ausências fossem menos sentidas pela nossa filha. Meu amor e gratidão, ao
seu apoio, carinho, compreensão, sugestões, comentários, imprescindíveis a esta
jornada.
- Ao Edson, meu irmão, à Janete e Alessandra, minhas cunhadas, ao Sr. Mauro, Srª
Mercedes, meus sogros, ao Vinícius e Gustavo, meus sobrinhos. Obrigada pela
presença, cuidado e apoio incondicional à minha determinação profissional.
- À minha orientadora, Profª Drª Maria Luiza Rizotti Amaral, por ter aceito me
orientar, por compartilhar comigo a sabedoria e por respeitar minhas limitações.
Sempre fui admiradora da sua capacidade e competência profissional. Nestes anos
de convívio, pude aprender com o seu companheirismo, solidariedade e amizade.
Meu afetivo agradecimento.
- À Profª Drª Maria Ângela, a quem aprendi a conhecer e a estimar. Obrigada pela
sua disponibilidade irrestrita em contribuir com esta dissertação. Suas considerações
sempre foram pertinentes, inquietantes e estimulantes, alimentando o desejo pelo
conhecimento. Obrigada por ter, gentil e afetivamente, acolhido minhas angústias e
incertezas.
- À Profª Drª Myrian Veras Baptista que prontamente aceitou o convite em compôr a
banca. É um prazer e privilégio poder contar com seu conhecimento na análise
deste trabalho, o que tornará esta dissertação mais rica.
- À Edina Mariane Rocha, pela disponibilidade incondicional em contribuir com este
estudo. Admiro sua luta em prol da causa das crianças e adolescentes em condição
de vulnerabilidade nas ruas. Você é uma referência significativa na minha formação
profissional. Obrigada pela sua amizade.
- Aos jovens sujeitos da pesquisa, pela amabilidade ao me receber, ouvir e partilhar
a vida comigo. Meu enorme carinho por vocês.
- A todas aquelas que provaram valer a pena acreditar nas pessoas com
pernanência nas ruas - Tio Gerson, Armando, Adriana, Márcia, Lourdinha, Marta,
Padre, Edina, tio Paqüera, e tantos outros; Nestas pessoas-referência sintam-se
contemplados todos aqueles que acreditaram no potencial e capacidade das
crianças e adolescentes do Abrigo municipal no período de 1993.
- À Marcia Helena de Carvalho Lopes, a quem admiro, pois com sua história tem
demonstrado que é possível fazer justiça e lutar para que as pessoas tenham seus
direitos respeitados enquanto cidadãs. Seu papel como gestora da política municipal
de Assistência Social em Londrina contribuiu para alterar o rumo da história na
perspectiva da inclusão, do respeito e da dignidade às pessoas em condição de
vulnerabilidade social. Meu afetivo agradecimento.
- À minha turma de mestrado, lembrada nas pessoas de Sandra Cordeiro, Cristina
Coelho, Daniela, Márcio Antunes e Denise, agradeço pelo companherismo,
solidariedade e amizade neste tempo que passamos juntos.
- Aos meus amigos do CEBI Cida, Claudia, Diva, Cristina, Marisa; aos amigos de
caminhada, Nívia, Gisele, Sandra Nishimura, Américo, Teone, Cláudio, Cirlene,
Nena, Mara, Ivo, Dirceu, Sandra Coelho, Sandra Bianconi, Karina, Wellton. Vocês
são especiais em minha vida. Obrigada pela afetividade partilhada comigo durante
este processo de desenvolvimento profissional, estimulando, ouvindo, acolhendo
minhas ansiedades, continuem assim. A presença de vocês é fundamental na minha
vida.
- Aos colegas de trabalho que são muitos, por isso não citarei nomes. Agradeço o
aprendizado profissional adquirido na convivência com vocês.
- A todos, enfim, que, direta e indiretamente, contribuíram para o resultado que hoje
apresento.
MARCELINO. Edsônia Jadma. Adolescentes em Londrina: história de rua e
história de vida. 2006. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade
Estadual de Londrina.
RESUMO
A adolescência é caracterizada como uma fase do desenvolvimento na qual as
descobertas são vividas com grande intensidade e o sentimento de pertencimento é
um referencial na busca de sentido para a vida. A dinâmica vivenciada dentro do
modo capitalista de produção expõe as pessoas a exclusões perversas, marcando
significativamente a infância e adolescência. Nesta realidade, a criança e o
adolescente, por necessitarem identificar espaços que lhe possam dar o sentido de
pertencimento e acolhimento, encontram a rua como uma oportunidade para
expressão de seus desejos e necessidades. O presente estudo buscou conhecer os
fatores que favoreceram crianças e adolescentes a superarem a condição de
vulnerabilidade nas ruas, tendo como referência a implantação do primeiro serviço
público de atendimento a esse público em 1993, na cidade de Londrina - Pr. O
referencial teórico enfatizou a trajetória da construção dos direitos e a política de
Estado desenvolvida para a infância e adolescência no Brasil a partir de 1970, em
especial para aquelas em condição de vulnerabilidade nas ruas. A adolescência foi
estudada, compreendendo-a como fase da vida de transição da heteronomia para a
autonomia, associadando-a à vulnerabilidade e resiliência como fatores de risco e
proteção. Abordou-se, também, o contexto da política pública desenvolvida em
Londrina em 1993, que teve como marco a instituição da Secretaria Municipal de
Assistência social como órgão responsável pela implantação do primeiro serviço
governamental destinado a este público. A pesquisa de campo buscou identificar, a
partir do olhar daqueles que vivenciaram as mais diversas adversidades nas ruas, os
fatores positivos que favoreceram a decisão por um outro modo de vida. Seus
resultados apontaram para a importância de se considerar os vínculos pessoais e
sociais, a valorização das capacidades e potencialidades, o sentido para a vida e o
desejo de vida digna. Os resultados desta pesquisa podem instruir formuladores e
executores de políticas no campo da proteção à criança e ao adolescente,
valorizando os aspectos apontados como essenciais por estes sujeitos, destacando-
se as pessoas de referências que passaram por suas vidas e desenvolveram um
importante papel, especialmente os educadores do Abrigo municipal.
Palavras-chave: adolescência; rua; proteção social; vulnerabilidade; resiliência.
Marcelino, Edsônia Jadma. Adolescents in Londrina: a street story and a story of
life. 2006. Dissertation (Master’s Degree in Social Services) – Londrina State
University.
ABSTRACT
Adolescence is marked by a developmental phase in which discoveries are
intensively lived and the feeling of belonging is a reference in the search for the
meaning of life. The dynamics lived within the capitalist production mode exposes
people to perverse exclusions. This significantly marks childhood and adolescence.
Within this reality, the child and the adolescent find the streets as an opportunity to
express their desires and needs because they need to identify spaces that may
provide them with the feeling of belonging and being welcome. The present study
aimed at uncovering the factors that favor children and adolescents in overcoming
the condition of vulnerability on the streets, having as a reference the implementation
of the first public service attending on this clientele. This first public service was
established in 1993 in Londrina -PR. The theoretical reference emphasized the
trajectory of the construction of rights and the state politicy developed for childhood
and adolescence in Brazil starting in 1970 mainly for those in vulnerable condition on
the streets. Adolescence was studied bearing in mind that it is the transition phase in
life between heteronomy and autonomy, associating it to vulnerability and resilience
as risk and protection factors. The context of the public policies developed in
Londrina in 1993 was also approached, and it had the foundation of the Social
Assistance Municipal Secretary Institution as a landmark. This institution was the first
government service intended for this public. The field research attempted to identify
the positive factors through the eyes of those who experienced several misfortunes
on the streets. These positive factors pointed in favor of the decision for a different
lifestyle. Its results pointed to the importance of considering the bonds between
people and society, the worthiness of the capabilities and potentialities, the meaning
of life and the desire for a dignified life. These research results can instruct the policy
makers and performers in the area of protection to children and adolescents, adding
value to the aspects regarded as essential by these subjects, emphasizing people of
reference who spent their lives and developed an important role, mainly the
Municipal Shelter educators.
Key words: adolescence, street, vulnerability, social protection, resilience.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1 - ASPECTOS SÓCIO - HISTÓRICOS DA ATENÇÃO À
CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO BRASIL NO
FINAL DO SÉCULO XX .......................................................... 18
1.1 - Política de atenção à infância e juventude nos anos 70 - auge da
ditadura militar
..................................................................................... 20
1.2 - Os anos 80 - a atenção à infância e juventude no contexto da
redemocratização
................................................................................ 28
1.3 - A última década do século XX - As políticas sociais e a influência
do neoliberalismo ................................................................................ 38
CAPÍTULO 2 - ADOLESCÊNCIA, VULNERABILIDADE E RESILIÊNCIA ...... 59
2.1 - Adolescência....................................................................................... 59
2.2 - Vulnerabilidade ................................................................................... 75
2.3 - Resiliência........................................................................................... 82
2.4 - Necessidade de estabelecimento de vínculos .................................... 91
2.4.1 - O cultivo da rede das relações ...................................................... 92
2.5 - O desejo de uma vida digna - a busca de alternativas às
adversidades
....................................................................................... 95
2.5.1 - A família como vítima do contexto da desproteção. ...................... 97
2.5.2 - O reconhecimento das capacidades e potencialidades................. 98
2.5.3 - A importância da renda, mas principalmente do emprego. ......... 100
Capítulo 3 - (Re)construção das capacidades que superam a vida
nas ruas ................................................................................ 103
3.1 - O contexto da política pública de Londrina para criança e
adolescente
....................................................................................... 103
3.1.1- Estruturação dos serviços governamentais e não
governamentais
........................................................................... 115
3.2 - A superação da vulnerabilidade nas ruas sobre o olhar de
quem viveu a história
........................................................................ 117
3.3 - As histórias de vida ........................................................................... 118
3.3.1 - A história de Jonas....................................................................... 118
3.3.2 - A história de Judite....................................................................... 136
3.3.3 - A história de Débora .................................................................... 148
3.3.4 - A história de Ester....................................................................... 165
3.3.5 - A história de Rute......................................................................... 193
3.4 - As primeiras aproximações a partir da história dos adolescentes..... 206
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 211
ANEXOS ........................................................................................................ 234
ANEXO A - Roteiro Pesquisa de Campo ....................................................... 235
ANEXO B - Termo de Consentimento Informado........................................... 236
10
INTRODUÇÃO
Da mesma forma que o mundo vem se transformando em
velocidade acelerada, a infância e a juventude transformam-se em busca de suas
necessidades e da construção de suas identidades.
A dinâmica vivenciada pela sociedade em face a um contexto de
globalização econômica e cultural e de exclusões perversas tem colocado as
crianças e adolescentes diante de realidades muito distintas. São muito
diferenciadas as formas de acesso a bens e serviços, alguns poucos têm acesso a
tudo, outros alcançam um aceso limitado e outros conseguem acessar apenas o
suficiente para a sobrevivência, uma vez que se encontram segregados pela
pobreza. Isso gera formas diferenciadas de ver, de viver, de conviver, de consumir e,
sobretudo, de ocupar no mundo o lugar de cidadão que a todos cabe.
A história de proteção aos direitos da criança e do adolescente é
recente na humanidade. No Brasil, legislações como a Constituição Federal de 1988
e o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 incorporaram o que havia de
melhor nas normas internacionais visando ao reconhecimento da criança e do
adolescente como sujeitos de direitos. Pressupõe-se que a existência de direitos
positivados leve à definição de políticas que permitam a diferenciação necessária,
atendendo a cada um conforme sua necessidade e especificidade.
O presente trabalho trata da análise das condições objetivas e
subjetivas que marcaram a trajetória de permanência e superação dos adolescentes
em condição de rua.
A avaliação foi realizada sob a ótica dos adolescentes que
participaram do projeto Casa Abrigo na cidade de Londrina-Pr, em 1993. Esses
adolescentes sofriam, nas ruas, violências que iam desde a perda de direitos ao
convívio familiar, passavam pelo assédio do mundo do tráfico e agressões físicas de
autoridades policiais e outros grupos até a expulsão da rede de políticas sociais
básicas.
A pesquisa teve como objeto as condições que levaram os
adolescentes à vida na rua e aquelas que determinaram sua participação no projeto
que contribuiu significativamente para a superação da condição de vulnerabilidade
nas ruas e para a reconstrução de suas vidas juntos às famílias.
Constituíram-se, portanto, objetivos deste estudo compreender a
11
trajetória de vida a partir da perspectiva daqueles que resistiram e a (re)construíram
e analisar os fatores positivos que contribuíram para a superação da condição de
vulnerabilidade nas ruas. Espera-se, desse modo, contribuir para o aprimoramento
do sistema de cuidado e proteção às crianças e adolescentes em condição de
vulnerabilidade nas ruas.
A pesquisa teve abordagem qualitativa, utilizando-se a história de
vida tópica por compreender que, nesta, o narrador é quem interpreta e apresenta
os sentidos e os significados do real vivido e do imaginário construído em seu
cotidiano.
Segundo Paulilo (1999), a vida olhada de forma retrospectiva
permite uma visão total de seu conjunto e, no tempo presente, temos a possibilidade
de uma compreensão mais aprofundada do momento passado.
Foi também utilizada a pesquisa documental baseada no material
produzido na gestão do governo municipal de 1993 a 1997, que apresenta
informações substanciais do atendimento à população infanto-juvenil em condição
de vulnerabilidade social nas ruas, e na produção jornalística publicada naquele
período, que demonstrava a relevância da questão no período estudado.
A pesquisa de campo teve como universo inicial trinta e nove
crianças e adolescentes que tinham a rua como espaço de moradia, tendo sido eles
os primeiros a serem atendidos na implantação do serviço municipal direcionado a
este público.
Essas pessoas foram identificadas através de documentos de
registro oficiais e da contribuição da agente pública que atuava, na época, como
militante na defesa dos direitos de crianças que permaneciam em condição de
vulnerabilidade nas ruas e que, posteriormente, coordenou o serviço público que os
atendeu. Contribuíram, ainda, duas pessoas que vivenciaram a experiência de rua
naquele período. A intenção, nesta etapa, foi garantir maior precisão quanto à
exatidão do público que envolvia o universo desta pesquisa.
A segunda etapa consistiu em delinear quais seriam os sujeitos a
serem entrevistados. Constatou-se que, dos trinta e nove jovens que participaram do
projeto, cinco faleceram, dezoito encontram-se envolvidos em atos infracionais e/ou
dependentes do consumo de substâncias psico-ativas, oito apresentam outras
situações como doença mental, desaparecimento, residência em outras localidades
fora do município de Londrina.
12
Este processo de delimitação do universo permitiu identificar oito
pessoas, dos trinta e nove, com potencial para participar desta pesquisa. Estes
sujeitos apresentavam as seguintes condições: encontraram outro modo de viver
alternativo à permanência na rua há mais de seis anos, possuíam residência fixa no
município de Londrina, viviam em abstenção do consumo de substâncias psico-
ativas, e permaneceram por período superior a um ano no serviço municipal de
abrigo.
Todos foram contatados e cinco deles aceitaram participar da
pesquisa.
Trata-se de sujeitos marcados por uma trajetória de privação
relacionada à sobrevivência, afeto, cuidado e proteção que, na busca de satisfação
de suas necessidades e de construção de suas identidades, procuraram localizar
espaços e pessoas que os apoiassem na busca de significado e sentido à vida.
Foram realizadas cinco entrevistas, previamente agendadas em
locais que favorecessem os entrevistados, realizadas no local de trabalho ou
residência. O primeiro contato foi por meio de telefone, quando foram apresentados
os objetivos da pesquisa. No momento da entrevista, retomava-se sua finalidade e
apresentavam-se os procedimentos. Foi elaborado um termo de compromisso para
que o entrevistado tivesse segurança quanto à confidencialidade, destinação e
utilização das informações fornecidas. Foram também informados quanto ao direito
de interrupção da entrevista a qualquer momento, caso julgassem conveniente,
sendo reservado ao entrevistado o direito de responder apenas o que aceitasse ser
revelado. As perguntas partiram de um roteiro previamente elaborado, de modo a
reconhecer os aspectos mais relevantes para a discussão dos fatores que
influenciaram positivamente na trajetória de vida dos adolescentes na superação da
condição de vulnerabilidade nas ruas. Todos os nomes utilizados no estudo são
fictícios.
Após as primeiras entrevistas, o roteiro foi reelaborado visando
garantir que os objetivos da pesquisa fossem melhor alcançados.
Inicialmente, houve a preocupação quanto ao fato de todos já me
conhecerem, o que poderia interferir na exposição de algumas particularidades de
suas vidas. Contrariamente ao esperado, o conhecimento prévio dos sujeitos
permitiu que o momento da entrevista fluísse com naturalidade, descontração e
tranqüilidade. O trabalho de coleta de informações ocorreu no período de maio a
13
agosto de 2005.
Os eixos adotados nesta pesquisa foram: a percepção de si; as
relações familiares; fatores que favoreceram a vida na rua; o significado da rua na
vida desses sujeitos; aspectos e motivações que favoreceram e afirmaram um outro
modo de vida fora das ruas; fatores que favoreceram a permanência no Abrigo; a
importância do Abrigo; aspectos que motivaram o retorno às ruas; as perspectivas
para o futuro. Acrescentam-se ainda, alguns dos eixos trazidos pelos próprios jovens
como liberdade, consumo de drogas; cuidado, proteção, vínculo e pertencimento;
pessoas-referência, vida digna.
Desse modo, tivemos a preocupação de buscar transmitir, em nosso
relato, todos os sentimentos e emoções dos jovens que participaram desta pesquisa.
Cada história de vida é única e singular, o que as torna histórias fascinantes pela
riqueza de cada vivência, pela beleza expressa pelos sentidos e emoções e pelos
significados que dão à existência.
(...) o que interessa quando trabalhamos com história de vida é a
narrativa da vida de cada um, da maneira como ele a reconstrói e do
modo como ele pretende seja sua, a vida assim narrada. (BOSI,
1994 apud PAULILO, 1999).
A partir da ótica dos sujeitos, com suas experiências e visão de
mundo, de suas histórias de vida e suas trajetórias, foi possível recolher dos jovens
uma fala espontânea, coerente e lógica.
Na análise realizada procurou-se interpretar o contido em cada
história, fatos, acontecimentos, resultados, dificuldades constitutivas do real. Assim,
a partir do resultado obtido dos dados analisados, tornou-se também possível tecer
considerações para o aprimoramento do sistema de cuidado e proteção às crianças
e adolescentes em condição de vulnerabilidade nas ruas.
A análise realizada permitiu, ainda, estabelecer correspondência
entre as condições subjetivas, as condições sociais objetivas das pessoas
entrevistadas e as experiências vividas relacionadas ao serviço de proteção, em
especial, o serviço de Abrigo.
O referencial teórico foi construído com enfoque na construção da
proteção social às crianças e adolescentes no Brasil e na tríade adolescência,
vulnerabilidade e resiliência.
Desse modo, considerou-se importante estudar a construção dos
14
direitos sob a ótica da política de atendimento como processo histórico, fruto de
determinadas opções e intenções adotadas pelo Estado e sociedade, a partir da
perspectiva de que a desigualdade não deve ser limitada à questão da renda, mas
sim, compreendida em dimensões mais amplas, estendidas as outras variáveis além
da pobreza. A proteção social desenvolvida, as legislações dirigidas ao público
infanto-juvenil e as opções econômicas e políticas assumidas pelos governantes
repercutem diretamente na vida das crianças, adolescentes e suas famílias.
Os avanços no campo dos direitos sociais se consolidarão para as
crianças e adolescentes, mesmo que expressos em leis, somente por meio de
políticas sociais que derem concretude e garantia a tais direitos.
No primeiro capítulo, buscou-se localizar, a partir da década de 70,
os principais aspectos da trajetória da política de atenção desenvolvida junto à
criança e adolescente em condição de vulnerabilidade social, especialmente àqueles
em condição de rua, tanto no que concerne à intervenção do Estado no
desenvolvimento de ações dirigidas a esse público, como no que se refere à ótica de
segmentos organizados da sociedade civil organizada na defesa dos direitos da
população infanto-juvenil. Foram identificas as diferentes proposições presentes na
formulação e reformulação da política de atendimento executada pelo Estado,
pautada, na maioria das vezes, numa cultura clientelista, correcional-repressiva ou
ainda privativa. Após percorrer essa trajetória sócio-histórica, faz necessário
compreender o que envolve ser adolescente. É sabido que a adolescência
apresenta certas especificidades que lhe são peculiares, mas não exclusivas. Esta
fase da vida é produto de um conjunto de dinamismos histórico-sociais e, desse
modo, considera-se essencial o seu conhecimento.
Desse modo, o segundo capítulo apresenta as especificidades que
caracterizam a adolescência, período carregado de significados simbólicos, de
promessas e de ameaças, de potencialidades e de fragilidades, fatores que a
distinguem e a diferenciam das demais fases do desenvolvimento humano. Nesta
fase, a vida dos entrevistados foi marcada por uma trajetória de privação relacionada
à sobrevivência, ao afeto, ao cuidado e à proteção e, na busca das suas
necessidades e construção de suas identidades, procuraram localizar espaços e
pessoas que dessem significado e sentido à vida. A rua é um desses espaços, que
passou a ser referência e no qual experienciaram determinados modos de viver.
Este capítulo mostra, ainda, os vários fatores que interagem e interferem na
15
construção da identidade na adolescência.
Neste enfoque, tornou-se pertinente tratar, ainda no segundo
capítulo, da vulnerabilidade e da resiliência, por se constituírem conceitos
relacionados a fatores de risco e de proteção, com potencial para intensificar a
influência de tais aspectos na vida das pessoas.
A vulnerabilidade pode levar à fragilização e ruptura dos vínculos
provocando nas pessoas inseguranças e instabilidade, o que, na adolescência,
configura-se como uma ameaça ao desenvolvimento de perspectivas futuras, que
correspondam às suas expectativas e necessidades. A resiliência aponta uma
condição interna de busca de estabilidade no manejo com tais adversidades
presentes no cotidiano das pessoas.
No terceiro capítulo enfatiza-se a trajetória histórica da Assistência
Social no município de Londrina, que mostra, até 1992, os mesmos conflitos e
contradições identificados no cenário nacional. Em 1993 inaugura-se um marco no
atendimento à criança e adolescente na execução de ações alternativas para
implementação da política de atendimento a este segmento. Neste ano, é criado o
primeiro serviço público municipal para atendimento a crianças e adolescentes em
condição de rua, que tem como uma de suas diretrizes a recuperação de direitos
violados, dentro de uma perspectiva que respeite sua condição de cidadão e
favoreça a construção de um projeto de vida.
No município de Londrina, após as eleições de 1993, iniciou-se um
novo momento político e social na história da cidade, na medida em que chegou ao
governo uma nova administração. Pode-se dizer que ocorreu uma ruptura com os
velhos padrões de gerir a administração municipal, a partir da introdução de uma
perspectiva diferenciada de governar, principalmente no campo social, com a
estruturação do órgão responsável pela política pública municipal de Assistência
Social.
Nesse período, os problemas com os quais o governo municipal se
deparou foram de grandes proporções, dada à situação de pobreza e ausência de
serviços para atendimento às pessoas em situação de risco e vulnerabilidade. O
quadro existente naquele momento não se diferenciava do que ocorria no país,
diante da precariedade e ausência de prioridade de investimentos na área social.
O terceiro capítulo apresenta, ainda, a história de vida daqueles que
são os protagonistas desse cenário, entendendo que a singularidade do sujeito não
16
está desvinculada de sua história. Na análise da história de vida destes sujeitos,
buscamos identificar os fatores que influenciaram suas trajetórias de vida e
favoreceram a superação da vulnerabilidade nas ruas.
Na sociedade contemporânea, marcada pela desigualdade,
extremos de privação, ausência de oportunidades e marginalização social, às vezes,
torna-se difícil perceber e compreender o quanto as intervenções realizadas
contribuem para mudanças significativas da realidade existente, principalmente no
que tange aos efeitos das ações das políticas públicas.
Segundo Martins (2002), os problemas sociais vivenciados pelas
pessoas as marcam profundamente, deixando, por vezes, seqüelas que podem se
perpetuar no decorrer de uma geração e, por isso, exigem daqueles que se
inquietam com a ocorrência deles a busca do seu desvendamento por inteiro, num
agir consciente, visando à sua superação.
Pela experiência profissional, constatou-se que a Política de
Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente do município de Londrina,
especialmente após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em
1990, tem avançado no sentido da consolidação de direitos e criação de serviços
que respondam às necessidades decorrentes do agravamento das questões sociais
contemporâneas. O fato de ter acompanhado este processo, a princípio na condição
de estagiária do curso de Serviço Social/UEL e, posteriormente, como profissional
da instituição, na área de atenção à criança e ao adolescente, como técnica da
Secretaria Municipal de Assistência Social e como conselheira dos direitos da
criança e do adolescente, motivou-nos a estudá-lo com maior profundidade.
Conforme coloca Castel, é necessário buscar conhecer e analisar
mais de perto essas circunstâncias “sociais e individuais” que implicam na
superação da condição de vulnerabilidade nas ruas, compreendendo ser este um
drama da miséria, mas, também, da dessocialização. (CASTEL, 2003, 133).
A criação de espaço público para atendimento a crianças e
adolescentes em condição de vulnerabilidade nas ruas configura-se como um dos
fatores que favorecem o restabelecimento dos direitos da criança e do adolescente.
No entanto, questionamos qual é o grau de efetividade que os
serviços de proteção social dirigidos à população em condição vulnerabilidade nas
ruas conseguem atingir, entendendo que tais pessoas se deparam com uma gama
de circunstâncias adversas que, muitas vezes, dificultam seu acesso e inserção nos
17
serviços de atendimento existentes.
Essas circunstâncias e vicissitudes privam os cidadãos do básico
para viver com dignidade, determinando a existência de uma linha tênue de
condicionamentos e possibilidades. Instiga-nos estudar e conhecer o que de positivo
foi construído no sentido de favorecer a vida daqueles que foram vítimas de tantas
adversidades sociais.
Nesse sentido, compreende-se que a história de vida dos jovens
participantes desta pesquisa, que foram atendidos pelo primeiro serviço municipal
direcionado para crianças e adolescentes em condição de rua e que superaram a
condição de permanência nesse espaço, contribuirá para o desvendamento da vida
nas ruas. É olhar a partir dos sujeitos, apreender aquilo que Martins coloca com
tanta propriedade: ver e compreender a partir da perspectiva dos que padecem, na
dimensão reveladora do que é limite para quem está no limite (MARTINS, 2002,
p.24).
Pretendemos, portanto, identificar a correspondência entre a
condição de vulnerabilidade dos sujeitos pesquisados e a eficácia da intervenção
institucional. Pretendemos, ainda, conhecer se os resultados atingidos pela ação
institucional correspondem às expectativas e necessidades demandadas pelas
pessoas participantes da pesquisa e, mais do que isso, compreender quais
significados os sujeitos atribuem aos serviços de proteção ofertados pelo município,
neste caso específico, o Serviço de Abrigo.
Tentar-se-á, portanto, evidenciar como, diante de situações tão
adversas, esses sujeitos resistiram e persistiram na (re)construção de suas vidas
fora das ruas.
O estudo realizado e a prática exercida demonstraram que, muitas
vezes, a existência de casa, comida, escola e remédio não são suficientes para
motivar a busca de uma outra maneira de viver. Há, ainda, a necessidade de
aprimorar as ações das políticas de atendimento a fim de acelerar o processo de
inclusão daqueles para os quais são muito tênues os limites entre o viver e o
sobreviver.
Pretende-se, ao final, contribuir para uma discussão mais ampla, a
partir da análise efetuada e da indicação de propostas mais adequadas ao cuidado e
proteção a que têm direito as crianças e adolescentes.
18
CAPÍTULO 1 - ASPECTOS SÓCIO - HISTÓRICOS DA ATENÇÃO À
CRIANÇA E AO ADOLESCENTE NO BRASIL NO FINAL DO SÉCULO XX
Para compreender os fatores que favoreceram a superação da
situação de vulnerabilidade de crianças e adolescentes vivendo nas ruas atendidos
pelo primeiro Serviço de Abrigo Público do município de Londrina, considera-se
necessário reportar à trajetória de assistência dirigida à infância no Brasil, fazendo
um.
É nesta década que se agrava a crise econômica e se torna mais
visível o contingente de crianças e adolescentes oriundos de famílias pobres que
desenvolviam, nas ruas, estratégias de sobrevivência, demandando a intervenção
do Estado a este fenômeno. No fim dos anos de 1970, ocorrem as primeiras
alterações da legislação em vigor com a instituição em 1979 do novo Código de
Menores.
Historicamente, as políticas dirigidas à infância no Brasil nem
sempre buscaram realizar a proteção a esse segmento da população. A história de
construção e proteção aos direitos da criança e do adolescente no país traz marcas
de autoritarismo, de luta e interesses.
A infância e adolescência, dentro do sistema político-econômico
predominante, ao invés de ser vista e tratada como prioridade pela condição
desfavorável em que muitas vezes se encontra, é duplamente punida por ser
responsabilizada e culpabilizada ao aplicar às crianças e adolescentes medidas
segregativas e assistencialistas.
Dentro dessa cultura tradicionalista, centralizadora e assistencialista,
que tem como traço predominante a relação de poder e domínio, o controle social
advindo do Estado exerce um papel de mantenedor da ordem e da moral. As
propostas assistencialistas são reiteradamente impostas, de modo a compensar a
ausência de uma política social efetiva, que assegure condições de dignidade e
acessibilidade a todas as crianças e adolescentes.
De acordo com Rizzni e Pilotti (1995), neste processo, a prática de
recolhimento e institucionalização de crianças favoreceu o estabelecimento de uma
cultura de segregação do meio social, de confinamento e de contenção espacial e
de controle do tempo, enfim a submissão à autoridade, sob a alegação da
prevenção aos “desvios” e à reeducação.
19
Essa mesma autora acrescenta que, nessa perspectiva, a família em
situação de vulnerabilidade social era tratada como incapaz de cuidar de seus filhos,
cabendo a realização de violenta intervenção do Estado, tendo os juristas a
autoridade de suspender, retirar e restituir o Pátrio Poder, sempre que julgasse uma
família inadequada para uma criança, contando sobretudo com o respaldo das elites
da época (RIZZINI; PILOTTI, 1995).
Diante desse quadro, ao olhar para o passado, para as intervenções
praticada e seus efeitos, percebe-se a ressonância que tais atos e atitudes
produziram no decorrer dos tempos. Os adjetivos pejorativos adotados expressam o
modo como as crianças em situação de vulnerabilidade social eram vistas e
classificadas: expostas - as menores de sete anos; abandonadas - as menores de
18 anos; vadias – o(a)s atuais menino(a)s de rua; mendigas - aquelas que pedem
esmolas ou vendem coisas nas ruas; e libertinas - aquelas que freqüentam
prostíbulos; menor -as crianças e adolescentes em situação irregular; e, ainda,
trombadinha, infância perdida, entre outros (VALLADARES; ALVIM, 1988; SILVA,
2004; BRASIL, 1927).
Concordamos com Neto (1993, p. 11) ao afirmar que a questão da
criança e do adolescente em situação de rua é resultante de um conjunto de causas
históricas e estruturais fruto da relação entre o Estado e a Sociedade Civil, das
políticas assistenciais, do tipo de desenvolvimento implementado, da atuação das
igrejas, dos interesses dos grupos e classes dominantes.
Diante de tal compreensão, buscaremos identificar, nos aspectos
sócio-históricos a influência da estrutura econômica e política na vida das crianças,
adolescentes e suas famílias, pois os avanços relacionados aos direitos sociais das
crianças e adolescentes se consolidam, depois de expressos em leis, através de
políticas sociais que dão concretude a tais direitos.
A implantação e renovação destas políticas devem acontecer em
num processo de sucessivas aproximações num contínuum de aprimoramentos.
Conforme Baptista (2000),
(...) não existe um momento no qual se possa dizer que se tenha
perfeitamente delineado e delimitado o objeto da intervenção: ele vai
se construindo e reconstruindo permanentemente no decorrer de
toda a ação planejada, em função de suas relações com o contexto
que o produziu, sendo modificado e modificando-o
permanentemente.(BAPTISTA, 2000. p.31)
20
Ao recorrer à trajetória dos acontecimentos relacionados à infância e
adolescência a partir dos anos 70, temos a oportunidade de penetrar a realidade
vivenciada, o que poderá oportunizar a (re)construção do significado de proteção
para o alcance de novos patamares e para a concretização de novas políticas
sociais dirigidas às crianças e adolescentes. A proteção à infância é muito mais do
que a formulação de leis, diagnósticos e a execução de ações de atendimento que,
mesmo compondo aspectos importantes dentro de um conjunto ordenado num
sistema de proteção, tornam-se insuficientes para a concretização da devida
proteção para o desenvolvimento integral da criança, se não houver o compromisso
efetivo dos responsáveis e operadores da política, bem como recursos financeiros
para a área. A existência do compromisso favorece a elaboração de respostas mais
qualificadas, legítimas e com a máxima eficácia no âmbito da intervenção.
O que nos faz lembrar Bobbio (1992) ao afirmar que
A história tem apenas o sentido que nós, em cada ocasião concreta,
de acordo com a oportunidade, com nossos desejos e nossas
esperanças, atribuímos a ela. (BOBBIO, 1992, p. 64).
1.1 - Política de atenção à infância e juventude nos anos 70 - auge da
ditadura militar
Neste contexto, é importante situar que, nos anos 70, a população
brasileira correspondia a 93.139.037 habitantes
1
, sendo que 55% morava nas
cidades e os bolsões de pobreza absoluta correspondiam a cerca de 40% da
população.
O processo de desenvolvimento do país era utilizado pelos
governantes para vender a idéia do “milagre econômico”, o que diminuía o impacto
causado pelas medidas de segurança utilizadas pelo governo. Segundo Soares
(2001), um dos resultados do sistema político e econômico vigente divulgado era o
índice do PIB per capita que chegou a atingir 115%, embora em outros índices,
considerados significativos, como longevidade e educação o desempenho foi baixo,
aumentando apenas 33% e 15%, respectivamente, tendo, conseqüentemente, mais
de 90% dos municípios brasileiros situados no patamar do baixo desenvolvimento
humano.
1
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
21
Na realidade, os dados e a história retratam que a busca de
desenvolvimento econômico ficou bem distante do desenvolvimento social,
confirmando que o crescimento econômico não gera, automaticamente, as
condições para o desenvolvimento social.
Os sinais da crise econômica internacional são sentidos mais
precisamente no Brasil, a partir de 1975, quando se acentua o processo de
endividamento externo (SADER & GENTILI, 1999).
No tocante às políticas dirigidas à infância, elas ainda objetivavam o
controle social, a partir da manutenção da ordem e da moral, impondo
reiteradamente propostas assistencialistas. O governo militar, ao adotar medidas
repressivas dirigidas às crianças e aos adolescentes pobres e marginalizados,
materializava sua estrutura de poder e de controle.
Assim, essas crianças, intituladas como “menores”, eram tidas como
problema de Segurança Nacional. Bazílio (1985) relata que “grupos de menores
passam a colocar em risco a ordem pública estabelecida, participando,
ostensivamente, em ações e crimes contra o patrimônio e homicídios”. (1985, p. 61-
64), a única alternativa proposta era o enquadramento desses grupos a uma Política
de Segurança Nacional.
Oriunda da Doutrina de Segurança Nacional, a Política Nacional de
Segurança, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de Guerra, que, por sua vez,
teve como matriz americana o National College War e o National Security Act, de
1947 (SILVA, 2004, p.294), concebia que, em primeiro, deveria vir a ordem, seguida
pelo desenvolvimento e, posteriormente, em decorrência, a vigência dos direitos
civis, políticos e sociais. (NETO, 1993, p. 73).
É, sob tais concepções que ocorre a criação da FUNABEM –
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - criada pela Lei nº 4.5413 de 01/12/64,
que incorpora o patrimônio e atribuições do SAM
2
– Serviço de Assistência a
Menores - publicamente reconhecido como um fracasso político e técnico por não
cumprir os propósitos para os quais foi instituído. A FUNABEM tinha a finalidade de
organizar os serviços de assistência, sendo considerada o ápice de um processo de
intervenção. Compreendia-se que caberia a instituições especializadas a
“recuperação” e a formação de uma infância “moralizada”, e o Estado contribuiria
2
Decreto-Lei n. 3.799 de 5 de Novembro de 1941.
22
para a formação de indivíduos úteis à sociedade e bons trabalhadores.
(VALLADARES; ALVIM, 1988).
Segundo Silva, a criação de uma Fundação Nacional era um projeto
idealizado desde a 1ª Semana de Estudos dos Problemas de Menores, patrocinado
pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (SILVA, 2004, p. 294).
Embora alguns autores defendam a intencionalidade do Estado na
mudança quanto às ações dirigidas às crianças e adolescentes em situação de
marginalidade e defendem também que a criação da FUNABEM tenha ocorrido
independentemente do regime autoritário, “a idéia de um novo órgão para substituir
o SAM já vinha sendo cogitada desde o final dos Anos 50”. (VALLADARES; ALVIM,
1988, p. 10).
É fato que a proposta de criação do órgão foi rejeitada na Câmara
dos Deputados em 1961. Em 1964, após adolescentes moradores nos morros do
Rio de Janeiro assassinarem o filho do então ministro da Justiça, Milton Campos, o
presidente General Humberto Castelo Branco cria, por decreto, a Fundação, depois
de procurado pelo então ministro e por um grupo de juristas. (SILVA, 2004, p. 294).
Percebe-se, portanto, que a criação do órgão moveu-se muito mais
por uma circunstância imediata do que pelo reconhecimento da importância a ser
destinada a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Dessa forma, a FUNABEM apresenta, em termos de conteúdo,
método, organização e decisão, uma gestão centralizadora e verticalizada. Suas
ramificações estaduais, as FEBEM´s, reproduzem o enfoque correcional-repressivo,
historicamente presente no âmbito da atenção à infância e juventude, atuando
paralelamente a uma prática assistencialista.
Segundo os Anais da X Semana de Estudos do Problema do Menor
(1971), o presidente da FUNABEM, Mário Altefender, argumenta a favor de uma
nova política que tenha como base a execução por um órgão federal, descartando
qualquer possibilidade de descentralização político-administrativa para os âmbitos
locais e, assim, desconsiderando a complexidade e especificidade de cada região
(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE São Paulo, 1971).
Nesse contexto, a percepção quanto à problemática do “menor”
ganha relevância na Doutrina de Segurança Nacional, como um problema de ordem
estratégica, transitando da competência exclusiva do judiciário para a esfera de
competência do executivo.
23
Segundo Batista (1998), o sistema de atendimento da FUNABEM
obedecia àsdiretrizes políticas direcionadas para o atendimento de crianças e
adolescentes compreendidos como “carentes” e/ou “infratores” de acordo com a
lógica de penalização da pobreza, operada através da articulação entre
criminalidade e carência.
Acrescentam Rizzini; Pilotti (1995) que as diretrizes da FUNABEM e
o próprio Plano de Integração do Menor e da Família na Comunidade – PLIMEC -
embora tivessem a finalidade de instituir uma nova forma de intervenção,
reproduziram o mesmo sistema de punição correcional, associados a denúncias de
corrupção e arbitrariedade institucional.
Nessa compreensão, a “intenção pedagógica” baseava-se na
estigmatização e culpabilização da criança pela sua condição econômica e social, o
que retratava a visão da situação como judicial e não social.
Aplicava-se uma restrição à liberdade, uma privação de liberdade
como típica forma de punir, mas, eufemisticamente, dizia-se não estar punindo e,
sim, protegendo (SEDA, 2005). Pode-se, então, dizer, que as crianças e
adolescentes, usuários de tal sistema de atendimento, encontravam-se como se
estivessem sentenciados.
Não se constata preocupação alguma com a fase de
desenvolvimento em que se encontravam as crianças e adolescentes, na definição
de propostas alternativas que considerassem habilidades, capacidades, aptidões e
interesses, além das especificidades que caracterizam as diferentes regiões do país.
Havia uma definição de âmbito nacional e sua reprodução ou operacionalização nos
âmbitos locais. As particularidades demandadas por crianças e adolescentes em
situação de risco eram interpretadas como uma questão de ordem individual, sem a
associação com o contexto mais amplo da estrutura e conjuntura do momento.
Cabe, ainda, salientar que, durante o regime militar, o sistema
educacional brasileiro foi afetado pela Doutrina da Segurança Nacional, na
introdução do currículo de conteúdos que reforçavam o patriotismo e nacionalismo e,
na FUNABEM, por sua vez, a educação das crianças e adolescentes sob a tutela de
seu sistema era realizada segundo os preceitos do militarismo, dando-se ênfase à
segurança, à disciplina e à obediência. (SILVA, 2004, p. 295).
Em meados dos anos 70, assiste-se a um aumento significativo de
crianças e adolescentes nas ruas buscando espaço, produção de renda e moradia.
24
É neste período que se disseminaram os termos pejorativos como “pivetes” e
“trombadinhas”, associando-se a presença de crianças e adolescentes na rua com a
criminalidade. A imprensa, por sua vez, age denunciando o problema e os juízes,
defendendo veemente o recolhimento em instituições especializadas.
(VALLADARES; ALVIM, 1988, p. 10).
As estimativas apresentadas na época não conseguiram mensurar a
dimensão da realidade de “menores abandonados” e delinqüentes”. No Rio de
Janeiro, por exemplo, em 1975, 10 mil menores passaram pela Delegacia de
Menores; já em São Paulo, em 1986, a Secretaria de Justiça registrou, em todo o
Estado, 28.519 processos de menores abandonados e infratores, sendo 15.942
casos na Capital. (VALLADARES; ALVIM, 1988, p. 10-11).
Outros dados baseados em indicadores sócio-econômicos apontam
o número de 25 milhões de menores carentes e abandonados. (QUEIROZ, 1984, p.
51). Já Alves informa que, em 1975, havia 13.508 menores carentes e 1.908.570
abandonados. (ALVES, 1984, p. 335).
Embora os números não coincidam, a constatação da existência
dessa problemática fica evidente, decorrente da situação crescente de penúria que
vivencia grande parcela da população, bem como o crescimento e a complexidade
da problemática, o que exige novas medidas, além do confinamento, pois essa
alternativa além de insuficiente, torna-se inviável para o Estado.
O Censo Demográfico de 1970 e da PNAD de 1977 associa o
aumento do trabalho infantil como um reflexo das transformações sociais e
econômicas ocorridas na última década. Interpretado como uma forma de aumentar
a renda familiar, o trabalho infantil é visto como tendo uma grave conseqüência: a de
dificultar a escolarização e profissionalização dos jovens (VALLADARES; ALVIM,
1988, p. 20).
A partir de tais colocações, constata-se que o trabalho para a
criança, além de incorporar um valor econômico, carrega um aspecto cultural,
advindo do fato da família também ser transmissora da ideologia do trabalho.
Alves (1984) apresenta dados colhidos de estatísticas
governamentais que confirmam que 70% da população do Brasil tem consumo diário
de calorias inferior ao considerado necessário ao desenvolvimento humano. “A fome
e a subnutrição, segundo o IBGE, são responsáveis por 40% dos óbitos infantis no
país.” A taxa de mortalidade infantil, no período, foi em média, de 87,3 de cada
25
1.000 nascidos vivos, sendo que, em regiões como o Nordeste, essa proporção
subiu para 130 por 1.000. Como média de expectativa de vida, os dados forneciam a
idade de 62 anos e, para as áreas mais pobres, de 49 anos. (NETO, 1993, p.74;
ALVES, 1984, p. 293).
Dados também apresentados por entidades como a CNBB, a OAB e
a Anistia Internacional, que retratavam um quadro dramático de miserabilidade
dentro do país, caracterizado pelo abandono de milhares de crianças, prisões de
centenas de trabalhadores, invasões domiciliares, entre outras agressões aos
direitos de cidadania. (NETO, 1993, p.73).
Em face deste contexto, outras instituições se pronunciaram, como a
Pastoral do Menor, MNMMR, Movimento Sem-Terra, os partidos políticos e os
Movimentos de Moradia. Todas essas e outras forças sociais reivindicaram os
direitos de cidadania, luta que teve como momento apoteótico marcante o
“movimento pelas Diretas Já”.
O ano de 1978 traz o ressurgimento explosivo das associações e
movimentos sociais de bairro que lutam por acesso a bens e serviços coletivos. E,
segundo Werneck Vianna (1983), também é o ano em que retorna o movimento
operário com as greves no ABC paulista.
A própria Igreja Católica se envolve com a situação de vida das
crianças e adolescentes e cria projetos e serviços de atendimento alternativo às
instituições estaduais existentes. A instituição da Pastoral do Menor ocorre em 1978,
em São Paulo, momento em que a Arquidiocese de São Paulo solicita ao CEDEC –
Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - uma pesquisa “sobre crianças e
jovens que vivem nas ruas da capital paulista”, período em que se engaja nos
programas oficiais existentes” (VALLADARES; ALVIM, 1988, p. 10).
A Pastoral do Menor teve um papel preponderante na defesa do
direito à vida com dignidade para as crianças e adolescentes em situação de
pobreza e marginalidade na sociedade brasileira. Neste sentido, promoveu debates
e pesquisas sobre esta realidade, apontando números exorbitantes de crianças e
adolescentes que se encontravam nas ruas ou que teriam cometido atos
infracionais.
Os juristas, deparando-se com tamanha complexidade,
encomendaram pesquisas para conhecer a situação social do “menor
marginalizado”, buscando subsidiar as suas ações junto aos Juizados de Menores.
26
Pesquisas realizadas tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo representam “os
primeiros estudos sistemáticos que se conhece sobre a problemática da infância,
marcando de certa forma, a entrada das ciências sociais no tratamento do tema”.
(VALLADARES; ALVIM, 1988, p. 10). Havia, também, uma tendência de associação
do aumento da criminalidade infanto-juvenil com a pobreza no Brasil.
Nesta maneira de pensar, a associação das causas e
conseqüências é, muitas vezes, empírica, sem a existência de análise mais
aprofundada, envolvendo outras categorias de análise como a questão política e
econômica. A família seria um dos principais alvos de culpabilização da situação de
marginalidade real ou em potencial de seus filhos.
Segundo Passetti, a FUNABEM explicava que os “desajustes
sociais” apresentados pelas crianças e adolescentes eram decorrentes da falta de
afeto e amor na família, sendo que a implantação da Política Nacional do Bem-Estar
do Menor - destacou que um dos três aspectos considerados relevantes era a
importância de se trabalhar as necessidades afetivas em função da ausência de
vínculos familiares (PASSETTI, 1991, p. 158).
A complexidade da problemática, agravada pela ineficiência de
políticas públicas, leva à instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito,
pela Câmara dos Deputados, em 1976, intitulada “CPI do Menor”, que apresentou
um documento resultado dos trabalhos realizados, denominado “A realidade
Brasileira do Menor”. O documento retratava a própria falência do Código de
Menores de 1927, que ainda vigia, por não dispor de “mecanismos eficazes para a
resolução da questão” (VALLADARES; ALVIM, 1988, p. 11), e também favorecia
uma maior visibilidade e publicidade à questão da criança e adolescente
marginalizados fortalecendo a luta empreendida pelos atores envolvidos, que
reclamavam a prioridade absoluta a ser destinada às crianças e adolescentes do
país.
A CPI do Menor revela a existência, em 1976, de 13.542.508
menores em situação de carência - aqueles cujos pais ou responsáveis não
possuiam condições para atender às suas necessidades básicas - e 1.909.570
abandonados – aqueles que não tinham pais ou responsáveis para o atendimento
de suas necessidades básicas. Informa também que, em 1975, 11.812 delitos
haviam sido praticados por menores, com maior incidência no Sudeste (44,17%) e
no Nordeste (37,98%). E, ainda, afirmava existirem 25 milhões de menores carentes
27
e abandonados. (VALLADARES; ALVIM, 1988, p. 11).
O documento resultante da CPI torna-se referência para os demais
documentos posteriormente formulados e pesquisas realizadas, que tratavam sobre
a questão, como diagnóstico da situação vivenciada por crianças e adolescentes
naquele período.
Vários acontecimentos marcam o final da década: comemora-se o
Ano Internacional da Criança em 1979, organiza-se o Movimento em Defesa do
Menor, que age denunciando maus-tratos e violências sofridas pelas crianças em
São Paulo, praticadas principalmente pela Polícia e a FEBEM – Fundação Estadual
do Bem-Estar do Menor (JUNQUEIRA, 1986).
Em 10 de outubro de 1979, pela lei federal nº 6.697, é criado o novo
Código de Menores, que vai legislar sobre a situação de crianças e adolescentes de
0 a 18 anos que se encontravam em situação irregular. Nesse Código, persiste,
portanto, a idéia de segregação, servindo apenas de punição para a criança e
adolescente pobre que comete atos infracionais, indo na contramão da perspectiva
de garantia de direitos, da qual tratavam as legislações internacionais e debates
nacionais de defesa de direitos humanos e especiais para a criança e o adolescente.
Com a nova legislação, esperava-se atuar sobre os chamados
efeitos da ausência de políticas públicas, atribuindo ao Estado a tutela sobre o órfão,
o abandonado. Rotulam-se os pais como ausentes e, assim, tornam disponíveis os
seus direitos de pátrio poder
3
. Legislava-se sobre aqueles que se encontravam à
margem da sociedade, principalmente os pobres.
Pode-se dizer que a atenção dada à infância até então não se
configurava como uma proposta politicamente viável de distribuição de renda, saúde
e educação.
Embora em vários cantos do mundo já se discutisse a necessidade
de promover os direitos da criança e do adolescente, no Brasil, optou-se por uma
legislação que desconsiderava estes sujeitos como portadores de direitos,
continuando a tratá-los de forma discriminada, classificando-os pela situação
irregular em que se encontravam. Esse Código desconsiderou os instrumentos
(normativas, documentos, pactos e declarações) já existentes de proteção aos
direitos humanos e, especialmente, àqueles destinados às crianças e adolescentes.
3
No novo Código Civil (2002) altera para poder familiar.
28
Para que se possa visualizar a referência dos instrumentos já existentes na história
de proteção aos direitos humanos e específicos da criança e do adolescente, pode-
se citar os princípios da Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de
1924, como os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de
1948, e o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que obrigou os países
signatários a adotarem, em seu direito interno, os princípios da Convenção,
figurando ali a proteção à família e aos direitos da criança, embora, no Brasil, a
ratificação tenha ocorrido apenas em 25 de setembro de 1992. A própria Declaração
sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 20 de novembro de 1959,
também foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990. Por sua vez, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, são ratificados no Brasil somente
em 1992. Assim, fica evidente que a existência de tais instrumentos não teve
qualquer influência significativa na redação do referido Código de Menores.
Dessa forma, as ações e práticas desenvolvidas nem de longe se
aproximavam de uma perspectiva de apresentar resposta para a situação da
população infanto-juvenil em situação de risco nas ruas, tida como perigosa e
ameaçadora. A determinação vigente de integração à ordem estabelecida não dava
conta de integrar aquelas crianças que se encontravam à margem da sociedade e
dos benefícios.
1.2 - Os anos 80 - a atenção à infância e juventude no contexto da
redemocratização
No Brasil, a década de 80 apresenta a busca de ruptura com a
ditadura, crises de governo e governabilidade e a explosiva manifestação da
sociedade civil organizada que reivindica direitos de cidadania e participação na
tomada de decisões.
Neste período, a população estimada era de 109.002.706 pessoas,
sendo que, em 1981, somavam-se 58.286.961 pessoas abaixo de 19 anos, ou seja,
mais da metade da população era extremamente jovem. Segundo dados do
Ministério da Previdência e Assistência Social, Dentre estes, 55% encontravam-se
29
em situação de pobreza.
4
Esses dados refletem a conjuntura e estrutura existentes, resultado
de crises política, econômica, entre outras. Pode-se dizer que o momento era de
mudança e de resistência, pela passagem do regime autoritário ao democrático, em
que o velho regime político não podia mais se reproduzir e o novo regime não tinha
suas formas totalmente definidas. Vivencia-se um processo de liberalização do
controle exercido pelo Estado sobre a sociedade, principalmente sobre as
organizações populares, que reconquistam os direitos de expressão, de greve, de
voto, de organização e outros. O endividamento interno e externo se avoluma, o
Estado se desestabiliza, perdendo o controle da moeda e de suas finanças,
conseqüentemente reduz os gastos com investimentos públicos, permanecendo
estagnado em políticas de desenvolvimento.
Segundo Soares (2001) citando Fiori, o país passa por um processo
circular e crônico de instabilização macroeconômica e política: instabilidade da
moeda; instabilidade do crescimento; instabilidade na condução das políticas
públicas, etc. (SOARES, 2001, p. 19).
Continuando a análise, Soares (2001) apresenta dados que apontam
as inúmeras tentativas de acerto praticadas pelo Estado, somando, neste período,
oito planos de estabilização monetária, quatro diferentes moedas (uma a cada 30
meses), onze índices de cálculo inflacionário, cinco congelamentos de preços e
salários, quatorze políticas salariais, dezoito modificações nas regras de câmbio,
cinqüenta e quatro alterações nas regras de controle de preços, vinte e uma
propostas de negociação da dívida externa e dezenove decretos sobre a autoridade
fiscal: (SOARES, 2001, p. 153).
As condições acima ilustradas sinalizam algumas das dificuldades
enfrentadas pelo país, o que repercute nas condições de vida dos brasileiros. São
contrastes muito expressivos dentro de um mesmo país. O Brasil, mesmo sendo
considerado a oitava potência industrial do mundo e a primeira da América Latina,
pelo porte de sua indústria, apresenta uma situação social fortemente deteriorada:
250.000 crianças menores de um ano morrem anualmente. Em 1981, 50% da
população detinha 13.4% da renda nacional, enquanto que 1% da metade restante
apresenta quase a mesma participação, 13%. (SOARES, 2001).
4
IBGE, População Residente, Por situação do domicílio e por sexo - 1940-1996.
30
Em 1984, o Brasil possuía 7 milhões de crianças e adolescentes
abandonados, equivalendo quase à população da Áustria ou à metade da população
da Austrália. Em 1987, a CNBB divulga a existência, no Brasil, de 36 milhões de
menores empobrecidos.
Segundo Rivera (1990), em 1988, perderam-se 400 mil crianças de
zero a cinco anos, por doenças que poderiam ser evitadas, e outras 100 mil de
males infecciosos, para os quais existiam vacinas preventivas. Quantidade de
mortes equivalente aos efeitos de cinco bombas de Hiroshima (RIVERA, 1990,
p.24). Essas crianças e adolescentes viviam em estado de carência absoluta, sem
condições de moradia, educação, saúde e alimentação.
Agustin Cueva, ao analisar o desenvolvimento do capitalismo na
América Latina, apontou que as previsões desenvolvimentistas da CEPAL dos anos
50, de maior igualdade na distribuição da propriedade, renda e poder, não se
cumpriram, enfatizando que ocorrera justamente o inverso: uma crescente
concentração destes elementos em todos os países da região (CUEVA, 1983, p.
198).
Dessa forma, pode-se dizer que, ao longo desta década, a ausência
de crescimento econômico e os altos índices inflacionários provocaram um aumento
da concentração de renda e, por outro lado, um imensurável empobrecimento da
sociedade.
Já a FUNABEM apresenta, no ano de 1984, resultados passíveis de
questionamento: “606 mil menores atendidos num ano com recursos próprios, sendo
a maior parte do atendimento em regime de internato”. (BRASIL, 1984a, p. 11).
Estes dados representam a condição de ‘‘desassistência” vivenciada
pelas crianças e adolescentes e também conflitam com documento da própria
Instituição (BRASIL, 1987, p. 29) que propunha o combate à pobreza e à redução
das desigualdades sociais como medidas imprescindíveis para que o “menor
carente” não se tornasse “abandonado” ou, ainda, “infrator”. Fica evidente que a
prática exercida como intervenção do Estado estava longe de representar algum tipo
de cuidado ou proteção às crianças e adolescente em condições de maior
vulnerabilidade.
Quando o próprio órgão responsável pela condução da política de
atendimento apresenta tais considerações, acaba por confirmar sua posição político-
ideológica de agir dentro de uma concepção meramente assistencialista e
31
correcional-punitiva.
O panorama geral é complexo e não encontra no Estado o devido
amparo para a definição de novas perspectivas, o que leva a sociedade civil a se
impor através de mobilizações de questionamento e exigências de uma redefinição
do quadro existente.
O momento exigia a busca de experiências alternativas gestadas na
atenção a crianças e adolescente em situação de vulnerabilidade nas ruas, que
primassem pela interação com a comunidade.
Segundo Costa (1990a), tratava-se de “aprender com quem estava
fazendo”, interagindo com aqueles que atendiam meninos e meninas em situação de
rua ou nas comunidades pobres. Envolveram-se com esse processo a vanguarda
técnica da FUNABEM, o Ministério da Previdência e Assistência Social e o UNICEF,
período demarcado entre 1982 a 1984.
Na campanha pelas “Diretas-já”, a sociedade civil demonstra o
desejo de mudança e qualquer tentativa de retrocesso ou manutenção do regime
não encontraria base social que o sustentasse ou legitimasse.
Assim, diante da conjuntura existente, a luta contra o autoritarismo
passa a ser substituída por demandas precisas: salários, garantia de emprego e
melhores condições de trabalho. São deflagradas greves pelos trabalhadores (ABC
Paulista) e começa a ser gestado a partir do movimento de trabalhadores um partido
político (com uma visão de sociedade mais justa) que representasse a classe
operária e as minorias sociais, denominado Partido dos Trabalhadores.
São organizados projetos como o “Projeto Alternativas de
Atendimento a Meninos e Meninas de Rua” e eventos como o “Primeiro Seminário
Latino Americano de Alternativas Comunitárias de Atendimento a Meninos e
Meninas de Rua”, realizado em Brasília, oportunizando a abertura de novas
perspectivas às práticas tradicionalmente adotadas até então no trato de crianças e
adolescente em situação de vulnerabilidade social, desencadeando uma abertura
para a diversidade e a possibilidade do envolvimento comunitário.
O cenário das Diretas Já, configurando-se como um marco para
história do Brasil, tornar-se-á realidade somente em 1989. Novos sujeitos sociais (no
meio popular, com os movimentos de bairro; no meio sindical, com as novas centrais
sindicais; nos setores médios urbanos, com as novas associações e, no meio
cultural, com o movimento das mulheres) surgem e agem, concomitante à
32
apresentação de novas demandas que o Estado não consegue responder ou
controlar.
Em 1986, acontece a Segunda Semana Ecumênica, coordenada
pela Pastoral do Menor (a primeira foi em 1980), que teve como foco a reflexão
sobre a culpabilização atribuída à criança pela sua situação e a indicação de
alternativas de superação dessa condição, tendo como tema “Menor, Profeta que
denuncia as injustiças e nos desperta para uma nova sociedade”. Segundo Neto
(1993), a Pastoral do Menor desenvolvia uma prática pedagógica que envolvia as
crianças e a população de modo geral quanto aos direitos daquele público.
Nesse sentido, organismos relacionados aos direitos da criança e do
adolescente (MNMMR, Pastoral do Menor, entidades de defesa de direitos
humanos) também defendiam a luta pela garantia de direitos. São elaboradas quatro
emendas populares, no Plenário e nas ruas, contando inclusive com recolhimento de
assinaturas para que fossem inseridos, na Constituição Federal, artigos que
garantissem direitos às crianças e adolescentes.
Nesse contexto, o Movimento de Meninas e Meninos de Rua –
MNMMR
5
- teve uma atuação histórica e de reconhecimento inclusive internacional,
pela enfática oposição à concepção vigente da Doutrina da Situação Irregular
(Código de Menores – 1979) e na exigência da operacionalização de políticas
públicas para a promoção dos direitos à infância e adolescência.
Em maio de 1985, ocorreu, em Brasília, o I Encontro Nacional de
Meninos e Meninas de Rua, fruto da organização instituída em nível local, estadual,
através de comissões. O Encontro contou com a participação de “meninos e
meninas de rua” que se reuniram em encontros em nível local, a fim de debater e
apresentar, no Encontro, denúncias da violência sofrida, as condições de vida a que
são expostos, como também exigindo das políticas públicas o reconhecimento
enquanto sujeito de direitos.
O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, com apoio
internacional, organizou seus estatutos, sua administração, tendo voz nos fóruns
governamentais e não governamentais sobre a criança. Em 1992, o MNMMR conta
com 90 comissões locais estruturadas, 139 núcleos de base de meninos e de
programas, 3.000 militantes aproximadamente, 03 centros de formação de
5
Coordenação nacional instituída em 1985.
33
educadores de rua, sendo desenvolvidos um total de 400 programas de atendimento
(BARBETTA, 1993, p. 170).
Em setembro de 1986, é criada a Comissão Nacional Criança e a
Constituinte através de Portaria Interministerial nº 449, articulação do setor público
federal, que envolvia os Ministérios da Educação, Saúde, Previdência e Assistência
Social, Justiça, Trabalho e Planejamento. Esta Comissão buscou reunir estratégias
que pudessem sensibilizar e mobilizar a opinião pública e os constituintes para a
necessidade de garantia de direitos às crianças e adolescentes. Nesse sentido, a
Comissão organizou encontros nacionais, debates, distribuição de panfletos e
abordagem direta aos parlamentares, manifestações com a presença de crianças e
adolescentes em frente ao Congresso Nacional. Conseguiu-se também a adesão da
iniciativa privada, espaços foram garantidos na mídia de modo geral (rádio,
televisão, imprensa escrita). Para a criação da Frente Parlamentar Suprapartidária
pelos Direitos da Criança e do Adolescente, foram colhidas 1.200.000
6
assinaturas.
Foram organizados também os Fóruns DCA de Defesa da Criança e do Adolescente
em todo o país (COSTA, 1990).
Neste mesmo ano, acontece o IV Congresso: O Menor e a
Realidade Nacional. Conforme aponta Costa (1990a), era preciso olhar aqueles
meninos a olho nu, com o olhar desarmado das categorias estigmatizantes do
Código de Menores (situação irregular) e da PNBEM (Política Nacional de Bem-
Estar do Menor) (COSTA, 1990a).
Segundo este mesmo autor, começava-se perceber o menino de rua
como figura emblemática da situação da infância no país. E que, por trás dos
meninos e meninas de rua, era possível identificar a realidade vivenciada pelas
famílias em condição de pobreza nas periferias, sem condições mínimas de
subsistência e dignidade (COSTA, 1990a, p10).
A FUNABEM, em documento oficial (BRASIL, 1984b), reconhece a
necessidade de sua reformulação, refere-se, inclusive, à necessidade de
descentralização e, pela primeira vez, coloca a questão do atendimento à criança e
ao adolescente como um direito. Assim, em 1986, apresenta o Projeto Diagnóstico
Integrado para uma nova Política do Bem-Estar do Menor, que aponta uma série de
incapacidades e distorções relacionadas à centralização, ausência de articulação
6
Dados consultados no documento: Comissão Nacional Criança e Constituinte. Lute por mim:
propostas para a Assembléia Constituinte/ Gráfica Pirâmide, 1987.
34
entre os serviços existentes de atendimento à criança e ao adolescente.
Para a sociedade, o momento é de grande esperança, frente à
perspectiva da definição das bases do novo regime democrático trazido pelo ensejo
de uma nova constituição para o país, vislumbrando garantir juridicamente
mecanismo legal que desse concretude aos esforços empreendidos na defesa dos
direitos da criança e do adolescente. Tanto a Comissão Criança e Constituinte,
quanto o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
composto, entre outros, pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, a
CNBB, a Associação de Fabricantes de Brinquedos, a ABI buscaram influenciar a
Assembléia Nacional Constituinte para inclusão, na legislação, de garantia de
direitos ao público infanto-juvenil. O resultado de tal mobilização foi a inclusão dos
artigos 227 e 228 na Constituição de 1988. Da mesma forma, o parágrafo 7 do artigo
227 que remete ao artigo 204, referente à descentralização e à participação da
comunidade, deve também ser aplicado à área da infância e adolescência. O
referido texto obteve um total de 435 votos a favor e 8 contra para a sua
incorporação na Constituição (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA,
1991, p.12).
Em 1987, a Igreja Católica lança a Campanha da Fraternidade com
o tema: “Quem acolhe o menor, a mim acolhe”, coordenada pela CNBB. Pauta a
realidade social das crianças e adolescentes em situação de abandono, nas ruas e
na exploração do trabalho infantil.
Neste mesmo ano (1987), em 18 de dezembro, é instituída a Lei
Federal nº 7.644, que regulamenta a atividade de “mãe social”, com atribuições e
direitos trabalhistas, para um sistema de “casas lares”, delimitando um total de dez
“menores” por casa, que deve ser isolada, formando, ao serem agrupadas, uma
aldeia assistencial ou vila de menores. Indica a lei que, para este cargo, a candidata
deverá passar por uma seleção e treinamento para verificação de sua habilidade.
No artigo 17, define como público alvo o menor abandonado, aquele considerado em
“situação irregular” pela morte ou abandono dos pais, ou, ainda, pela sua
incapacidade
7
.
Embora a Lei n. 7.644 reconheça o status da profissão de mães
7
Lei n. 7.644, de 18 de dezembro de 1987.
35
sociais
8
, garantindo direitos trabalhistas e definindo um número máximo de
abrigados, não conseguiu superar a política segregacionista e discriminatória
presente nos grandes orfanatos, ao tratar a situação da criança como irregular e por
julgar a necessidade de isolamento dessa população ao convívio comunitário e com
a sociedade de modo geral.
O agravamento da crise econômica coloca a população em
condições de maior vulnerabilidade, tendo seu reflexo no aumento significativo de
crianças e adolescentes nas ruas, principalmente nos grandes centros. A rua é
compreendida enquanto espaço de sobrevivência e de experiência de vida para os
denominados “meninos e meninas de rua”.
No governo de José Sarney (1985 – 1989) entre outros programas
de caráter paliativo, cria-se o “Programa Bom Menino”
9
, com o intuito de
encaminhar as crianças e adolescentes para o trabalho. Tal programa destinava-se
à “iniciação do trabalho do menor assistido com idade entre 12 a 18 anos”. Como
incentivo, cria uma bolsa de trabalho, exigindo a obrigatoriedade da freqüência
escolar.
As empresas com mais de 5 empregados deveriam contratar 5% de
seus funcionários nesta modalidade, sendo permitida uma jornada máxima de 4
horas com remuneração de meio salário mínimo, não gerando vínculo empregatício
ou encargos previdenciários e de FGTS. O programa é justificado como uma
prevenção à criminalidade.
Já o programa RECRIANÇA, do Ministério da Previdência e
Assistência Social, pretendia estimular a recreação e também incentivar a iniciação
ao trabalho, intitulando-se como um programa de apoio à criança e ao adolescente,
no entanto, sem a garantia de continuidade, tendo no artesanato sua atividade
predominante. Atividade que, quando isolada, muito mais desenvolve coordenação
motora do que qualifica para o trabalho (SILVA, 2004).
As FEBEM’s – unidades da FUNABEM para atendimento a crianças
e adolescentes em situação irregular - permanecem cada vez mais expostas pelas
denúncias de violência aos seus internos e péssimas condições de atendimento,
além das constantes fugas realizadas pelos internos.
8
Temos conhecimento que até recentemente muito serviços de abrigo, atribuía às mães sociais o
serviço voluntário em troca da moradia e alimentação, sem ao menos ter o direito de gozar do
descanso semanal.
9
Lei n. 2.318, de 30/12/86, regulamentada pelo Decreto n. 94.338 de 18/5/87.
36
Faleiros (1995), referindo-se à FEBEM do Estado de São Paulo, no
governo Montoro, afirma que o “sistema recebeu 500.000 menores (termo da época)
dos quais 6,67% eram infratores, 6% abandonados e 87,3% carentes, mas o
orçamento da FUNABEM é de apenas 0,002% da arrecadação do tesouro”. (apud
RIZZINI;PILOTTI, 1995, p. 88).
Esses dados, mais uma vez, sinalizam que o grande público
atendido nestas instituições de reclusão são crianças e adolescentes em situação de
pobreza, o que reforça, a importância do empenho da sociedade civil organizada
para mudança no ordenamento jurídico que referia ao público infanto-juvenil. Outro
dado significativo é o baixo investimento nesta área, reforçando a tão conhecida
colocação “política pobre para os pobres”.
O tempo e a exigência de novos rumos explicitam o caos a que
chegou a FUNABEM e, neste caso, Vogel (1995) chama a atenção para o conteúdo
apresentado nos comentários finais do documento Diagnóstico elaborado pelo
órgão, publicado em abril de1987 ao indicar extinção do órgão pela incapacidade de
se adequar às exigências da realidade (aput RIZZINI; PILOTTI, 1995).
É inegável o efeito destrutivo provocado pela forma como a política
de atenção à criança e ao adolescente vinha sendo operacionalizada, sem atender
às necessidades e especificidades características de tal fase de desenvolvimento do
ser humano enquanto criança e adolescente, pela ausência de compromisso ético,
político e social, demonstrado claramente pelo orçamento destinado a tais ações,
conforme anteriormente apresentado.
Mesmo diante dessa realidade, é possível identificar vitórias
conquistadas, dentre elas, a participação da sociedade civil, com o envolvimento de
novos atores reivindicando espaços de participação e luta por melhores condições
de vida, consolidando-se na instituição de uma nova Constituição para o país.
Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 – CF/88 - é
promulgada no governo de José Sarney, soando como resposta às mobilizações
sociais que tomavam as ruas desde o início da década. As mudanças
constitucionais, aliás, ocorrem exatamente no contexto de importantes modificações
sociais e políticas - situação que o Brasil representava bem no cenário mundial nos
anos 80.
Esta Constituição amplia e fortalece os direitos individuais e as
liberdades públicas, consagrando vários direitos de cidadania, entre estes aqueles
37
afetos diretamente ao público infanto-juvenil embora nos dias atuais tenha sofrido
inúmeras modificações em seu texto original, ferindo os direitos dos cidadãos, o que
será abordado quando entrarmos na década de 90, referindo-se ao governo
Fernando Henrique Cardoso – FHC.
Tanto a Constituição, quanto posteriormente o Estatuto da Criança e
do Adolescente de 1990, são considerados marcos na história, pois, pela primeira
vez, um país erigiu em norma de conduta o princípio de que a criança passe a ser
vista como sujeito completo e acabado, dotado de capacidades próprias.
Assim, com a Constituição, abriu-se a possibilidade de se efetivar
uma Doutrina de Proteção Integral à criança e ao adolescente através da Lei
8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente - considerado o aniquilamento da
Doutrina da Situação Irregular e, conseqüentemente, da FUNABEM, o que também
deverá ser enfatizado posteriormente.
Como se pôde verificar, as crianças e adolescentes no Brasil
encontravam-se excluídos, até a Constituição de 1988, de ordenamento jurídico que
lhes reconhecesse, ao menos, os direitos reservados aos adultos.
É por isso que a Constituição se define como um marco, por se
tratar de um conjunto de normas alterativas, ou seja, propõe alterar antigas
percepções, velhos princípios, ultrapassadas doutrinas. E no que se reporta à
criança e adolescente buscou reservar-lhes o direito à garantia de proteção integral.
Constata-se que, a partir da Constituição de 1988, a defesa da
proteção social à infância e à adolescência no Brasil inovou-se em pelo menos dois
aspectos: a afirmação dos direitos fundamentais enquanto pessoa humana em fase
de desenvolvimento e a partilha de responsabilidade pela família, Estado e
sociedade. Os direitos elencados tornaram-se, então, direitos de cidadania, devendo
ser protegidos por todos.
Nesse sentido, a Constituição trazia a esperança de ampliação dos
direitos de cidadania, beneficiando a massa dos trabalhadores,
concedendo estímulos à universalização do mérito e à introdução de
novas modalidades de gestão nas áreas sociais, associadas à idéia
da descentralização participativa. (NOGUEIRA, 1998, p.114).
Porém, o que se constata é que os efeitos da crise econômica e das
políticas de ajustes econômicos postos em execução, não favoreceram, na prática, a
possibilidade de reformas institucionais mais amplas nos sistemas de proteção
social.
38
Todavia, as medidas e ajustes neoliberais de superação da crise
econômica do capital neste final de século têm se mostrado ineficientes na
recuperação do desemprego econômico, não havendo elevações significativas nas
taxas de investimento e nem a retomada do crescimento econômico.
Para levar à prática o pacto social plasmado na Constituição de
1988, equivaleria, no plano econômico, à redução das taxas de
exploração e, no plano político, à construção de mecanismos
democráticos de controle. (NETTO, 1999, p.78).
Com o fracasso dos sucessivos planos de estabilização e o
aprofundamento da crise, a situação de ingovernabilidade tenderia a atingir um
ponto crítico, que, para Nogueira (1998), iria enfraquecer as condições de
legitimidade, autoridade e eficácia do governo e difundir-se “uma descrença
generalizada nas instituições e nas elites políticas”.
Nesse sentido, a reflexão e iniciativas de novas ações, com a
intenção de entender e agir, possibilitaram a definição de novos patamares -
assegurados pela legislação – e abertura para novos atores na construção da
história da política de atendimento às crianças e adolescentes no Brasil, embora
poderá ser constatado, posteriormente, na década de 90, que a correlação de forças
na maioria das vezes, é desproporcional, o que dificulta que as garantias ao público
infanto-juvenil sejam cada vez mais plausíveis.
Embora se tenha clareza de que a instituição de instrumentos
jurídicos não seja suficiente para garantia de que as crianças e os adolescentes
tenham acesso a políticas públicas de qualidade e sua cidadania seja respeitada,
este período continua sendo um marco histórico por possibilitar uma ruptura aos
valores tão reiteradamente reforçados, indicando uma nova postura na forma de
pensar, ver e agir em relação à criança e ao adolescente, principalmente os mais
vulneráveis.
1.3 - A última década do século XX - As políticas sociais e a influência
do neoliberalismo
No final dos anos 80 e início dos 90, a situação do país se agrava,
decorrente da crise econômica, que assume um caráter estrutural, dado pela
hiperinflação (1989/1993), pelo crescimento da dívida interna e pelo déficit
orçamentário, mas, sobretudo, por uma profunda instabilidade; a crise política invade
39
a esfera da representação, com a fragmentação crescente do sistema partidário e
ainda pelo enfraquecimento da ação estatal (SOARES, 2001).
A crise tem sérias repercussões sociais, dado o aumento dos
bolsões de pobreza, do desemprego, da violência e criminalidade urbanas, no
refluxo dos movimentos sociais
10
, que redundam, por razões diversas, no
esgotamento do espaço regulado.
O efeito vivenciado no Brasil não se distingue do panorama
internacional de aprofundamento da crise internacional e da exclusão social. Para
exemplificar, na América Latina, no período 1991-1997, o PIB por habitante
aumentou 13%, já a taxa de desemprego urbano aumentou quase 30% e, ainda, a
dívida externa, 42%. (BEINSTEIN, 2001, p. 238). Os dados indicam também que o
mundo se tornou mais desigual e que a marginalidade é crescente para a maioria da
população: Milhares de pessoas lutam para sobreviver sob condições extremamente
precárias, não só nos confins do mundo e entre as legiões de perseguidos e de
refugiados, mas também onde o capitalismo se apresenta como mais próspero
(LIMOEIRO-CARDOSO, 1999, p. 111).
Para Kliksberg (2002), o desemprego é um fenômeno em expansão
que atinge indiscriminadamente todos os países e, quando em longo período de
duração, produz efeitos negativos na personalidade, o que, em geral, permanece à
margem dos estudos econômicos. “Produz, entre outras coisas, apatia,
enfraquecimento grave do interesse em socializar-se e afastamento gradual da força
de trabalho”. Uma perda da auto-estima caracteriza o quadro. (KLIKSBERG, 2002,
p.14).
O empobrecimento tem, como uma de suas raízes, a baixa
escolaridade, a entrada precoce no mercado de trabalho, conforme dados
alarmantes apresentados por SOARES, ao apontar que a taxa de escolarização caiu
significativamente de 84,2%, na faixa de 10 a 14 anos, para 56,8%, na de 15 a 17
anos, faixa etária em que se observa um aumento significativo da participação no
mercado de trabalho: de 17,2% para 50,4% (SOARES, 2001, p. 162).
A autora acrescenta que o perfil da distribuição de renda no Brasil,
em 1990, é, em termos comparativos, um dos mais perversos, com os 10% mais
10
Para Gohn (1998), o que mudou nos movimentos sociais foi a forma, o modo de manifestação e de
mobilização das pessoas, enquanto atores fundamentais do momento político brasileiro (GOHN,1998,
p.10).
40
ricos se apropriando de quase metade (48%) do total de rendimentos dos ocupados.
(SOARES, 2001, 165). Em 1990, o Brasil se encontrava entre os 9 países com maior
numero – 19 milhões – de pessoas analfabetas (SOARES, 2001, p. 171). Segundo
estudos do IPEA, em 1990, o Brasil tinha 32 milhões de pessoas, o que corresponde
a 9 milhões de famílias em situação de indigência (INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA, 1993a).
Neste quadro, as crianças e adolescentes formam o contingente
populacional mais vulnerável ao flagelo da pobreza e aos riscos de perdas
irreparáveis no seu desenvolvimento físico e intelectual. Neste caso, são 15 milhões
de crianças e adolescentes pertencentes a famílias indigentes, ou seja, ¼ da
população infanto-juvenil. Destes, 3,3 milhões fazem parte de famílias chefiadas por
mulheres.
11
Ainda em relação à educação, são 2,6 milhões de crianças e
adolescentes que estão fora do ensino formal, dos quais 1,6 milhões se situam na
faixa etária entre 7 e 14 anos, cuja freqüência escolar é considerada obrigatória.
12
Têm-se, ainda, os jovens que não estudam e/ou trabalham, em
absoluta inatividade, perfazendo um total de 400 mil, o que representa 27% do total
de indigentes dessa faixa etária. Segundo Soares, este fenômeno é característico
das grandes cidades, onde se concentram bolsões de pobreza, permanecendo mais
expostos à vulnerabilidade e risco (SOARES, 2001).
As pessoas são reiteradamente submetidas a privações e, neste
caso, ao processo educacional, que não se resume à escolarização, embora ocupe
uma posição fundamental, o que caracteriza situação concreta de preservação da
miséria.
A recuperação do crescimento econômico deve estar comprometida
não apenas com a situação sócio econômica, mas também com o bem estar da
infância, o que pressupõe um desenvolvimento social mais amplo. Compreende–se
que a satisfação das necessidades básicas da população precisa da construção de
um modelo alternativo de sociedade, no qual formas igualitárias e solidárias possam
sobrepor-se aos interesses particulares do capital. É preciso reconhecer que a
exclusão social só poderá ser enfrentada através de mecanismos políticos, se o
objetivo prioritário for construir uma sociedade mais justa.
11
I INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA), 1993.
12
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Mapa da Criança, 1993.
41
Contrariamente a tal perspectiva, a partir da década de 90, o Brasil,
frente ao processo de crise global e de mundialização do capital, passa a
implementar programas de ajuste estrutural e de estabilização econômica para
adequar o país à nova ordem econômica, ou seja, passa a seguir o receituário neo-
liberal (FIORI, 1996).
Diante desse cenário, em 15 de março de 1990
13
, Fernando Collor
de Mello toma posse como Presidente da República, sendo o mais jovem presidente
do Brasil. No processo de eleição, fez grande investimento em marketing
14
, sob a
figura de “caçador de marajás” (combate à corrupção e privilégios), vencedor da
inflação, além de utilizar apelos demagógicos aos descamisados e aos “pés
descalços”, promessas de combate à miséria e à injustiça social, compromissos de
recuperar a autoridade, o prestígio e a liderança da Presidência da República
(NOGUEIRA, 1998, p. 130).
Nogueira ainda destaca algumas características da campanha
eleitoral que se tornaram marca registrada de Collor:
(...) seu estilo centralizador, obstinado e autoritário, o fundo eclético e
ambíguo de seu discurso – o qual se entrelaçam neoliberalismo e
social democracia, fraseologia populista e reformismo modernizante -
e sua insistência em posar como outsider do sistema apolítico
brasileiro, distante dos partidos, das elites, das práticas e da cultura
política predominante, uma espécie de “não-político” fazendo política
acima dos interesses corporificados. (NOGUEIRA, 1998, p. 125).
Logo após tomar posse na Presidência da República, Collor de Mello
encaminha um projeto de reforma administrativa e a FUNABEM é extinta e
substituída pela FCBIA - Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência
- o que é consagrado na Lei 8.029 de 12 de abril de 1990 (art. 13). Este órgão tinha
como responsabilidade a “garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes do
país, articulando-se nos níveis federal, estadual e municipal com entidades
governamentais e não-governamentais, com a finalidade de resgatar a dívida que
data de séculos com nossa infância e juventude”
15
. A FCBIA, juntamente com a
13
A eleição presidencial de 1989, que em si já representou um ruptura após trinta anos de
autoritarismo, consagrou, por meio do voto majoritário, um candidato que, ao mesmo tempo,
representava a direita política e conseguiu aglutinar em torno de si amplos setores da população ao
propor uma “reformulação profunda”da situação vigente (KLIKSBERG, 2000, p.38).
14
A mídia e o marketing tornaram-se personagens decisivos da vida política e cultural, impulsionando
ainda mais a especularização da democracia e fazendo com que a forma, a imagem, a
“mensagem”ficassem mais importantes que as identidades substantivas (NOGUEIRA, 2003, p.14).
15
CBIA, 1990; LIMA, 2003.
42
LBA, passam a integrar o Ministério de Ação Social e, posteriormente, o Ministério
do Bem-Estar Social.
No governo de Collor, ocorre a ratificação da convenção da ONU e a
criação, em maio de 1990, do Ministério
16
da Criança, com ministros mirins. No
entanto, na prática, continuam as políticas clientelistas e fragmentadas através da
LBA
17
, restringindo recursos e adotando a política neoliberal
18
de redução do
Estado, embora em seu primeiro documento a CBIA se compromete a mudar o
conteúdo da política, os métodos e a aplicar os preceitos do ECA.
O Ministério da Criança esteve inicialmente sob a responsabilidade
do Ministério da Ação Social e, posteriormente, é transferido para o Ministério da
Saúde, em função do projeto CIAC – Centro Integrado de Apoio à Criança
(SOARES, 2001).
Este Projeto, inicialmente concebido no âmbito da LBA com o
objetivo primordial de expandir a rede de creches com o apoio da iniciativa privada,
é totalmente reformulado, passando a controlar um enorme volume de obras
públicas centralizadas nas mãos do Ministro da Saúde. Dessa forma, a linha política
principal do “Ministério” da Criança parece ir se delineando no sentido de uma
“integração” inter-setorial, que aponta para uma submissão das políticas de Saúde,
Educação e Alimentação a uma política assistencial seletiva, que tenderia a
reqüalificar a clientela alvo, através de uma discriminação dos alunos matriculados
nos CIACs. (SOARES, 2001, p. 293).
A prática de realocação dos programas sociais, nos diversos
governos, responde a um campo de interesses, muitas vezes obscuros, sem
considerar a natureza das variadas políticas públicas e a necessidade dos setores
mais vulneráveis, portanto, sem a preocupação quanto ao impacto que tais
intervenções sociais causam à sociedade. A ausência de uma análise mais
aprofundada sobre a realidade e a demanda existente dificultam o estabelecimento
de parâmetros para criação e/ou reformulação de “novos” programas sociais, o que
justifica a existência de um desconexo conjunto de ações dispersas e fragmentadas.
16
Denominado ora como “Ministério”, ora como “Programa”, ora como “Projeto”.
17
Legião Brasileira de Assistência (1942).
18
Ao buscar viabilizar a ascensão do neoliberalismo, inviabilizam-se as possibilidades de que as
políticas públicas desenvolvidas promovam os direitos sociais. O neoliberalismo é profundamente
pessimista e individualista acerca das possibilidades de cooperação social e ação coletiva(...) O
mercado é perfeitamente auto-regulável conforme as expectativas dos agentes econômicos. ‘Além do
mais, o verdadeiro neoliberal condena a política social porque o auxílio aos pobres inibe o trabalho e
a iniciativa individual(...)(PEREIRA, 1996, p.189).
43
Dessa forma, a promulgação dos direitos da criança e do
adolescente no Brasil tornou-se fruto da conjuntura interna do país que sinalizava as
condições precárias e que exigiam a adoção de uma doutrina protetiva, a Doutrina
da Proteção Integral.
O grande movimento pela democratização do país colocou na ordem
do dia a pauta dos direitos humanos, que basicamente significava um veemente
repúdio a todo e qualquer resquício deixado pelo Regime Militar.
Nesse sentido, o reordenamento jurídico do país deu-se pelo
Movimento Nacional Constituinte e pela promulgação da Constituição Federal em
1988. A marca do reordenamento jurídico foi a negação ao autoritarismo e a
preocupação de assegurar a inclusão, aprovação e manutenção de diversos
dispositivos que colocassem o cidadão a salvo das arbitrariedades do Estado e dos
Governos.
E, nesse sentido, o artigo 226 da Constituição Federal de 1988
incorporou todos os preceitos das Cartas Internacionais de 1945, 1948, 1951, 1959,
1966, 1968 e 1979, no que se refere à proteção à mulher e à família, mas foi no
artigo 227, ao exigir uma lei específica que o regulamentasse, que possibilitou,
através do Estatuto da Criança e do Adolescente, que fosse incorporada a
responsabilidade da família, da sociedade e do Estado em assegurar, com absoluta
prioridade, os direitos da criança e do adolescente. O artigo 227, sintetiza, em seu
texto, os pontos básicos da Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidas,
considerando que tudo o que é direito das crianças e adolescentes deve ser
considerado dever das gerações adultas, representadas pela família, pela sociedade
e pelo Estado.
Dessa forma, o atendimento a tais direitos deve ser encarado como
prioridade absoluta, devido ao fato de serem pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento, e possuírem um valor intrínseco, sendo seres humanos integrais
em qualquer fase de seu desenvolvimento e um valor projetivo, por serem
portadores do futuro de suas famílias, de seus povos e da espécie humana.
Incorpora, ainda, o preceito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança
para a família, a sociedade e o Estado, que compreende a promoção de um
conjunto de direitos fundamentais da população infanto-juvenil e a sua defesa contra
um conjunto de situações de risco pessoal e social ou circunstâncias especialmente
difíceis.
44
No Estatuto da Criança e do Adolescente encontramos dividido em
três elencos básicos o conjunto de direitos fundamentais a ser promovido pelas
gerações adultas, sendo eles: o direito à sobrevivência (vida, saúde, alimentação), o
direito ao desenvolvimento pessoal e social (educação, cultura, lazer e
profissionalização) e o direito à integridade física, psicológica e moral (dignidade,
respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária). O conjunto de situações de
risco pessoal e social ou de circunstâncias especialmente difíceis, fatores em
relação aos quais as crianças e adolescentes devem ser protegidos (colocados a
salvo) são a negligência, a discriminação, a exploração, a violência, a crueldade e a
opressão (BRASIL, 1997).
Nessa perspectiva, segundo Costa (1993), abrange o campo dos
direitos individuais (vida, liberdade e dignidade) e o campo dos direitos coletivos
(econômicos, sociais e culturais) (COSTA, 1993, p. 22).
É importante considerar que a aprovação do Estatuto da Criança e
do Adolescente foi possível devido ao processo de mobilização vivenciado pelo país,
enquanto conjugação de forças, conforme abordado anteriormente, acompanhando
a orientação mundial de defesa dos direitos humanos.
É nesta compreensão de Proteção Integral que passa, então, a ser
considerada criança, até 12 anos, e adolescente, até 18, definidos como “pessoas
em fase de desenvolvimento”, reconhecendo a todos nessa fase de
desenvolvimento da pessoa humana, o que exige a eliminação da existência de
rótulos que reiteradamente predominaram em nossa sociedade como “menor”,
“infrator”, “carente”, “abandonado”, entre outros (BRASIL, 1997).
Dessa forma, a Lei Federal nº 8.069/90, conhecida como Estatuto da
Criança e do Adolescente
19
, aprovada em 13 de julho de 1990, constituiu-se como
um instrumento jurídico inovador, por ter como base a concepção de proteção
integral, defendida pela ONU na Declaração Universal dos Direitos da Criança,
dentro da perspectiva de proteção dos direitos humanos, trazendo a marca do
caráter civilizatório presente na consagração de tais direitos. Sobretudo, o Estatuto
da Criança e do Adolescente superou o enfoque repressor e assistencialista das leis
anteriores e introduziu na legislação nacional a concepção das crianças e dos
adolescentes como sujeitos de direitos exigíveis em leis. Propõe uma visão de
19
ECA.
45
proteção integral à criança, considerando o espaço familiar o melhor para educá-la.
Dentro dessa concepção, a família deve ser fortalecida e o Estado deve criar as
condições necessárias para que a criança continue no núcleo familiar.
O artigo 226 da Constituição explicita que a “família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado”, assim como o artigo 16 da Declaração
dos Direitos Humanos afirma que a família é o núcleo natural e fundamental da
sociedade com direito à proteção da sociedade e do Estado. Este reconhecimento
da importância da família na vida social pouco tem sido visualizado nas condições
de vida das famílias brasileiras, tendo em vista o processo de mudanças a que são
sujeitas, seja pelo enxugamento dos grupos familiares, pela variedade de arranjos
familiares ou, ainda, pelo processo de empobrecimento acelerado e de
desterritorialização das famílias gerado pelos movimentos migratórios. (BRASIL,
2004, p. 9). Esta legislação inova, ainda, por deixar de tratar a criança e o
adolescente como uma “questão” exclusiva dos Juízes de Menores, configurando
uma nova projeção a partir da descentralização político-administrativa, aumentando
a capacidade local na partilha de responsabilidades e competências nos municípios
e legitimando a participação da sociedade.
Pode-se perceber que, mais do que regulamentar as conquistas em
favor das crianças e adolescentes expressos na Constituição Federal, a Lei Federal
nº 8.069/90 promoveu um importante conjunto de mudanças que extrapola o campo
jurídico e desdobra-se em outras áreas da realidade política e social no Brasil que,
segundo Costa (1990), constituíram-se os pilares de sustentação desta lei as
mudanças compreendidas como de conteúdo, método e gestão.
Dessa forma, a mudança de conteúdo se afirma no artigo 3º do
Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual declara que as crianças e
adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,
dando enfoque à proteção integral em substituição à situação irregular.
Já a mudança de método baseia-se na compreensão de que a
criança e o adolescente constituem sujeitos de direitos exigíveis definidos por lei,
sendo pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, ou seja, detentoras de
todos os direitos que têm os adultos e que sejam aplicáveis à sua idade, além dos
seus direitos especiais, decorrentes da peculiaridade natural do seu processo de
desenvolvimento. O reconhecimento enquanto absoluta prioridade está baseado nos
valores intrínseco e projetivo, conforme definido anteriormente, nos quais o interesse
46
superior da criança deve prevalecer em qualquer circunstância (COSTA, 1990).
A mudança de gestão implica o reordenamento institucional da
relação entre a União, os Estados, os Municípios e a sociedade civil organizada.
Essa mudança é fundamentada no artigo 204 da Constituição Federal de 88, cujas
ações governamentais são formuladas em acordo com as diretrizes da
descentralização político-administrativa, com competências e atribuições específicas
e complementares em cada nível da esfera e, da participação da população, por
meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das
ações em todos os níveis. (COSTA, 1990b).
Esse modelo de gestão prima pela agilidade do atendimento às
crianças e adolescentes e pelo controle das ações em todos os níveis, favorecendo
formas de participação mais efetivas.
No Estatuto, a proposta de gestão começa a ser delineada no artigo
86 ao se referir a que política de atendimento far-se-á mediante um conjunto
articulado de ações governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios. E no artigo 88, apresenta as diretrizes dessa política de atendimento
nos incisos de I a VI, que prevêem, respectivamente a municipalização do
atendimento; a criação de Conselhos dos direitos da criança e do adolescente como
órgãos deliberativos de composição paritária entre sociedade civil e governo, com
expressão em cada nível da Federação; criação e manutenção de programas
específicos, observada a descentralização político-administrativa; manutenção de
Fundo vinculado aos respectivos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente
para destinação de recursos na área; integração operacional dos órgãos da criança
e do adolescente; integração operacional dos órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria Pública e Assistência Social, para agilidade do atendimento a
quem se atribua autoria de ato infracional (BRASIL, 1997, p. 27-28). Nestas
diretrizes, é possível visualizar os princípios reitores da política de atendimento do
ECA: I. Princípio da Descentralização: municipalização do atendimento; II. Princípio
da Participação: criação de Conselhos; III. Princípio da Focalização: criação e
manutenção de programas específicos; IV. Princípio da Sustentação: manutenção
de fundos nacional, estaduais e municipais; V. Princípio da Integração Operacional:
atuação convergente e intercomplementar dos órgãos do Judiciário, Ministério
Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social no atendimento
ao adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional; VI. Princípio da
47
Mobilização: desenvolvimento de estratégias de comunicação, visando à
participação dos diversos segmentos da sociedade na promoção e defesa dos
direitos da população infanto-juvenil (BRASIL, 1997).
Esta política de atendimento compreende também ações que podem
ser divididas em quatro grandes linhas: 1. Políticas Sociais Básicas, direitos de todos
e dever do Estado, como educação e saúde; 2. Políticas de Assistência Social, para
quem se encontra em estado de necessidade temporária ou permanente, como os
programas de renda familiar mínima; 3. Políticas de Proteção Especial, para quem
se encontra violado ou ameaçado de violação em sua integridade física, psicológica
e moral, como os programas de Abrigo; 4. Políticas de Garantia de Direitos, que
trata dos mecanismos de exigibilidade de direitos, enquanto sistema de justiça e
segurança disponível para acesso e garantia dos direitos assegurados pela lei,
tendo como exemplo o Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros (BRASIL,
1997).
Como se pode perceber, a Política de Atendimento reafirma o
preceito da descentralização e participação enquanto nova forma de gestão, a partir
do novo tipo de arranjo federativo baseado na partilha de decisões, funções e
recursos do Executivo Federal para os estados e municípios, de modo que os bens
culturais, econômicos e sociais, o direito de inclusão social e, portanto, de cidadania
sejam acessíveis para toda a sociedade brasileira.
Cabe ressaltar que, no período de promulgação do ECA, o Brasil se
deparava com uma situação fortemente agravada pela permanência de crianças e
adolescentes nas ruas, que realizavam os chamados “arrastões”, e suas
repercussões atingiram o panorama internacional. Os determinantes desse cenário
serão discutidos no decorrer deste estudo.
A existência da legislação vem se configurar como anteparo para
que ocorra a implementação efetiva de estruturas descentralizadas e participativas.
Dessa forma, em 1991, é lançado o “Pacto pela Infância”. Trata-se
de um manifesto à Nação com 90 assinaturas de personalidades de várias entidades
governamentais, sindicais, patronais, religiosas, assumindo a melhoria do ensino
fundamental e o posicionamento contra a violência, impulsionado pelo UNICEF,
inspirado na Cúpula Mundial pela Criança, realizada em Nova Iorque em setembro
1990. Em novembro de 1991, inclui-se o compromisso com a saúde, convidando
governadores a participarem do mesmo. O encontro dos governadores se realiza em
48
maio de 1992, assumindo compromissos na área da saúde, da educação e do
combate à violência, com uma estratégia, ao menos simbólica, de defesa da
cidadania. Neste ano, presenciou-se também a ocorrência de arrastões no Rio, e de
rebeliões dos internos da FEBEM Paulista, que destruíram a sua maior unidade de
contenção – O quadrilátero do Tatuapé.
Embora estejam definidos parâmetros para a constituição das
políticas públicas para a infância mantém-se, em muitos casos, uma cultura
preconceituosa e discriminatória, permeando a lógica dos serviços de atendimento
às crianças e adolescentes em condição de pobreza.
Dessa forma, a história retrata um quadro que causa perplexidade
pelas severas diferenças sociais existentes na sociedade brasileira, assim como as
sucessivas políticas econômicas adotadas pelo Estado, conforme vem sendo
contextualizado, que afetaram a qualidade de vida da população, e diretamente a
infância.
O governo, ao ratificar e criar normatizações que reconheçam as
crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos, não garante condições para o
estabelecimento de mecanismo de enfretamento da situação social. Não há como
conciliar as determinações e condicionamentos impostos pelo receituário neoliberal,
de um processo de destruição, conforme analisa Soares (2001), iniciado pelo
governo Collor: desorganização da economia, desemprego e desmonte do aparato
estatal, sobretudo na área social.
Os dados de 1994 do UNICEF apontam que as estatísticas na área
da saúde infantil colocam o Brasil em 63º lugar, com base na taxa de mortalidade
até cinco anos, junto a países como El Salvador, abaixo de vizinhos como Chile,
Uruguai e Argentina e distante de países como Cuba e EUA (FUNDO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA INFÂNCIA, 1994).
O governo Collor assume, na sua gestão, a redefinição na condução
das políticas públicas, principalmente nas políticas assistenciais que foram
constantemente denunciadas por operações irregulares, por manobras eleitorais e
de corrupção, sendo que muitos dos programas desenvolvidos pela LBA, FAE, INAN
foram alvo de investigação pelo Tribunal de Contas da União e de CPI na Câmara
dos Deputados.
Além disso, a própria concepção do governo em relação à
Assistência Social é apontada por Soares (2001) como “assistencialização”,
49
conforme indica o Relatório Geral da LBA
20
(ligada ao Ministério de Ação Social) de
1990, “as relações entre os Governos Federal, Estadual e Municipal, principalmente
no tocante ao gerenciamento das fontes alternativas de recursos para financiamento
de programas sociais, de suma importância para as comunidades, permitiram uma
transferência do papel do Governo Federal como indutor da iniciativa privada nos
investimentos de caráter social nos Estados”. E, ainda, continua o relatório, “surge
como estratégia mobilizadora o “Projeto Minha Gente” que tem por finalidade a
interação de ações, buscando a participação efetiva da sociedade na política de
Assistência Social”. (SOARES, 2001).
Referindo-se à forma de execução das políticas neste governo,
Sposati (1995) denuncia: “(...) estive, no Amapá, no lugar que Roseane Collor
21
inaugurou antes de sua saída da direção da LBA, o Programa Minha Gentinha, em
Macapá. Minha Gentinha, alternativa ao Minha Gente, é o que eu pude ver lá: um
iglu no meio do Equador. Num bairro operário de casas de madeira, estava instalado
em suntuoso equipamento, uma obra arquitetônica toda conformada em iglus,
desenhada numa prancheta em Brasília, não correspondendo absolutamente à
realidade enfrentada pela população de lá. Esse equipamento foi inaugurado às
pressas em agosto de 1991”. (apud ROSA, 1995, p. 184).
Em 1992, Collor é denunciado por corrupção, ocorre uma grande
mobilização social exigindo providências e o Congresso vota pelo impeachment,
assumindo o vice Itamar Franco.
22
O governo Collor acabará melancolicamente dois anos depois de ter
iniciado, condenado (pela sociedade, pelo Congresso, e pela Justiça) por um
processo de impeachment inédito na vida republicana, que desbaratou um enorme
esquema de corrupção e de manipulação privada da coisa pública. Sua trajetória
espetacular não será sem conseqüências. Aproximara a questão do Estado dos
termos liberais e globalizados, desmoralizara ainda mais as atividades de governo e
aprofundara com radicalidade a distância que separava o Estado da sociedade civil.
As prerrogativas da Constituição Federal de 1988
23
e a
20
LBA, Relatório de 1990.
21
Primeira-dama.
22
Protestando contra a corrupção e a favor do impeachment de Collor, surge em 1992, o Movimento
dos Caras Pintadas, composto maciçamente por jovens, marcou a retomada do movimento estudantil
no Brasil (GOHN, 2001, p. 145).
23
A Assistência Social torna-se um componente da seguridade social, ganhando status de direito,
devendo ser concretizada por uma política pública – a política de Assistência Social.
50
normatização das ações sociais a partir de 1993, com a promulgação da Lei
Orgânica da Assistência Social – LOAS -, (promulgada em 07 de dezembro de
1993), redesenham o sistema de proteção social brasileiro no que se refere à
descentralização política e administrativa da Assistência Social.
A LOAS, entendendo que a instituição do ECA em 1990 não era
suficiente para garantir vida digna às crianças e adolescentes, vem priorizar atenção
privilegiada a esse público. Ao apontar como central o atendimento (art. 23) à
infância e à adolescência em situação de risco pessoal e social, visa ao
cumprimento do art. 227 da CF 88 e do próprio ECA.
O governo Fernando Henrique Cardoso
24
(FHC), ao mesmo tempo
em que promete valorizar a democracia e os direitos sociais, anuncia a perspectiva
de privatização das empresas estatais, da previdência social e redução do Estado
(CARDOSO, 1994). “Falta justiça social. É esse o grande desafio do Brasil neste
final de século. Será este o objetivo número um do meu governo
25
”.
Porém, nos anos
26
que se seguem, o governo impõe uma série de
medidas e proposições de reformas, tanto no campo econômico como no campo
social, que nem de longe representam qualquer possibilidade de enfrentamento às
causas que determinam a pobreza, pelo contrário, cada vez mais se distanciam do
propósito inicial, configurando-se como um panorama muito mais “consistente” de
mudanças em direção a um ajuste de contornos neoliberais.
No Plano Diretor de 1995, a Reforma do Estado proposta pelo
governo, evidencia-se o caráter privatizante: “reformar o Estado significa transferir
para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado”
(BRASIL, 1995, p. 17).
Nesse sentido, o Plano Diretor representa a forma como o governo
define sua desresponsabilização de obrigações definidas na Constituição de 1988,
que estabelece a prestação dos serviços de educação, saúde, como dever do
Estado e direito do cidadão.
Segundo Costa (1998), a terminologia adotada explicita a
intencionalidade do governo, sendo que subsidiar é muito diferente do conceito ser
"responsável". Dessa forma, a proposta do governo é de transferência para o setor
24
Eleito presidente em 1994.
25
Discurso de posse em janeiro de 1995, indicando a intenção de somar as forças do governo e
sociedade civil para acabar com a fome e a miséria.
26
Dois mandatos 1994 – 1998 e 1998 – 2002.
51
privado da produção de bens e serviços realizados até então, pelo Estado. “O
governo coloca ainda que a ação do Estado deve ser de parceria com o setor
público não-estatal e setor privado.” (COSTA, 1998).
Nesta mesma direção, Kliksberg (2000) aponta que se coloca em
ação uma proposta de “desregulamentação” da economia, na qual o Estado se
exime da regulamentação dos preços da economia em geral e das relações capital-
trabalho. Regulamentação considerada geradora de “distorções”, substituída pelo
“livre jogo do mercado”. Derivam-se, daí, as propostas de privatização das empresas
estatais, ocorrendo intencionalmente a redução do setor público e o rearranjo da
máquina estatal, dentro da perspectiva de Reforma do Estado (KLIKSBERG, 2000,
p. 39). As ações se voltam, sobretudo, para aspectos fiscais e econômicos,
buscando a estabilidade da moeda, o combate à inflação e a redução dos gastos
públicos
27
.
O Brasil tem a 103º expectativa de vida do planeta, menor que a de
países como Filipinas, que tem metade de sua renda per capita. O número de
brasileiros que sobrevivem com menos de US$ 1 por dia aumentou, passando de
9% em 1999 para 11,6% da população em 2001 (PNUD, 2002).
Os pequenos saltos observados na alfabetização de adultos na
esperança de vida ao nascer não foram suficientes para impulsionar as dimensões
de longevidade e da educação, fundamentais no IDH. (...) Um PIB per capita alto
convive com baixas taxas de alfabetização e expectativa de vida mais curta do que a
média de países de renda equivalente. A renda, em suma, não se traduzindo em
bem-estar, é um sinal evidente de que está excessivamente concentrada. (...) O
relatório de 2002 (...) mostra que aumentou a distância entre a renda e os
indicadores sociais (NOGUEIRA, 2003, p. 9).
Foram compromissos e promessas de desenvolvimento, justiça
social, emprego, educação e segurança para as grandes prioridades do país, que
não se concretizaram conforme pode ser constatado pelos dados apresentados.
Os números expressam uma crônica desigualdade social, a pobreza
se transfigurou, assumindo formas mais perversas, transpondo os limites das
27
Para Kliksberg (2002), um Estado inteligente na área social não é um Estado mínimo, nem
ausente, mas um Estado com uma “política de Estado, não de partidos, e sim de educação, saúde,
nutrição, cultura, orientaçao para superar as graves iniqüidades, capaz de impulsionar a harmonia
entre o econômico e o social, promotor da sociedade civil, com um papel sinergizante permanente
(KLIKSBERG, 2002, p. 48).
52
fronteiras.
Há quase três milhões de crianças entre 10 e 14 anos fora da escola,
muitas das quais no mercado de trabalho. (NOGUEIRA, 2003, p. 9)
O Brasil, ao ter se comprometido com a implementação da
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança
28
, tratado assinado pelo país
junto a outros 190 países em 1990, deveria ter apresentado em 1992
(posteriormente, a cada cinco anos) documentos que demonstrassem o cuidado
com o desenvolvimento saudável da população infanto-juvenil. Os governos de
Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso deixaram de cumprir
essa obrigação.
O ajuste neoliberal agravou o desajuste social, tornando-se cada vez
mais incompatível a construção de uma política social justa e universal. O Estado,
ao buscar executar uma política de estabilização, sustentada pela elevação dos
juros, na abertura econômica e na sobrevalorização cambial, dentro dos princípios
do ajuste neoliberal, deixa de agir em programas de desenvolvimento sustentável.
Mais uma vez assiste-se ao desmantelamento das políticas públicas
desenvolvidas, a Legião Brasileira de Assistência - LBA - é extinta e a Fundação
Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência - FCBIA - rompe convênio com
inúmeras instituições de atendimento à criança e adolescente.
Segundo Sposati (2004), ao extinguir a LBA, que até então
respondia em nome da política nacional de Assistência Social e, substituí-la pela
Comunidade Solidária
29
, o governo demarca sua posição de “dificultar e impedir o
avanço do paradigma da Assistência Social sob a égide do avanço dos direitos
sociais”. (SPOSATI 2004, p. 35).
Dessa forma, vive-se uma crescente fragmentação da gestão do
social, os chamados programas de enfrentamento à pobreza, com soluções
minimalistas e pulverizadas, destituindo-se cada vez mais aqueles que demandam
por serviços sociais de terem voz e poder de decisão sobre o seu destino.
Os agravantes de tal realidade social refletem em vários âmbitos da
sociedade, dentre eles, a questão da violência enquanto desvalorização e
28
Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989.
29
Ficou demonstrado que esses programas “alternativos”, que substituíram as políticas sociais em
alguns países, baseados apenas na retórica da “solidariedade”e da “participação comunitária”,
focalizados na pobreza, de cobertura e eficácia duvidosas, não foram capazes sequer de atenuar os
problemas sociais existentes, que dirá resolvê-los (KLIKSBERG, 2000, p. 80).
53
banalização do valor da existência humana, comprometendo a vida dos jovens e de
toda a sociedade.
Segundo o DATASUS de 2000, no Brasil, os jovens se tornam
vítimas da violência. Compreendendo a faixa etária de 15 a 24 anos, 70,3% das
mortes foram por causas externas, ceifando a vida de 17.762 jovens; 39,2% dessas
mortes foram por homicídios. Os dados do IBGE (2002) complementam que, nessa
faixa etária, 70,67% dos óbitos envolveram homens e, 34,14%, mulheres. (FOLHA
DE S. PAULO DE 18/12/2003, p. C-6; FALEIROS, 2004, p. 89).
No estudo organizado por Sposito & Carrano (2003), são
identificados 30 programas e ou projetos governamentais gestados no governo FHC,
destinados ao atendimento da população juvenil
30
, porém com pouco impacto na
mudança de realidade para esse público.
Para explicar o baixo impacto, verifica-se o orçamento do governo
federal destinado para a área, que foi reduzido de R$ 96,6 milhões em 1995 para
33,8 milhões. Em 2002, executou-se apenas 61,27% do orçamento e em 2003, a
previsão do orçamento foi ainda menor, bem como a sua execução (FALEIROS,
2004, p.87).
Segundo Costa, foi colocado na Constituição e no ECA o que havia
de melhor nas normas internacionais, porém
Uma das maiores tragédias do Brasil e da América Latina reside no
fato de que, em mais de 500 anos de evolução histórica, nossas
elites não foram capazes de responder a uma questão básica: "O
que fazer com os filhos dos pobres?". A resposta correta deveria ser:
"O mesmo que fazemos com nossos filhos." Em nossa sociedade,
porém, sempre se procurou fazer coisas diferentes com os filhos dos
pobres, como pô-los para trabalhar muito cedo ou criar estratégias de
atendimento que têm, em comum, o propósito de oferecer uma pobre
educação pobre para os pobres mais pobres. Na verdade, o que
devemos oferecer aos pobres é uma rica e diversificada gama de
oportunidades educativas. Uma rica educação rica, que se revele
capaz de desenvolver o potencial e a riqueza; aquelas promessas
que cada um traz consigo ao vir a esse mundo. (COSTA, apud MEC,
2002).
Em 1995, a Medida Provisória n. 813, de 1 de janeiro, envolvendo a
política pública de Assistência Social, “ao repartir e obscurecer em vários ministérios
as atribuições constitucionais previstas para a assistência (CF 88 art. 203 e 204),
30
Na dimensão etária da juventude, a infância pode se alargar até aos 14 anos de idade e o jovem
ser designado como maior de 10 anos de idade (Sposito; Carrano, 2003, p. 8).
54
contribuiu para fragilizá-la como direito de cidadania e dever do Estado (YAZBEK,
1995, p.152).
A política de atendimento ao adolescente, a quem se atribui a
autoria de atos infracionais, deixa, assim, de ser responsabilidade da Assistência
Social, tendo sido incorporada ao Ministério de Justiça, bem como à Secretaria
Executiva do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente –
CONANDA.
O projeto político de FHC tinha a determinação de inserir o Brasil no
mundo globalizado. Para tanto, a abertura comercial, a estabilização da moeda, a
redefinição das funções do Estado, a privatização, o modo de encarar os direitos e
as políticas sociais, o ajuste nas contas públicas e a reforma administrativa tiveram
como fundamentação e justificativa a idéia de que a globalização era mais
oportunidade que problema e somente poderia ser aproveitada se o país se
apresentasse em completa sintonia com o sistema econômico, a cultura e o modo
de vida que imperavam no mundo (NOGUEIRA, 2003, p.11).
Dessa forma, a submissão do país e de suas forças – Estado,
deixando ser remodelado e desconstruído, deixou de cumprir ainda mais suas
funções.
31
Para Nogueira (2003), trata-se de um Estado hipertrofiado, funcional
a uma determinada modalidade de revolução burguesa, oneroso para a sociedade,
que não só se submeteu a ele como teve de suportar todo seu custo e os efeitos de
sua ineficiência.
Os anos 90 foram também um período de protestos e reações contra
o reformismo e as opções governamentais por ele patrocinadas. Veiculou-se uma
nova idéia de cidadania e sociedade civil pautada no caráter substitutivo dos
serviços públicos e não na sua possível atuação complementar.
A expansão do terceiro setor no mundo representou um crescimento
que atingiu 44% entre 1991 a 1995, e no Brasil movimentou 11 bilhões de dólares, o
que equivale a 1,5 do Produto Interno Bruto – PIB nacional (PEREIRA, 2003, p. 95).
A forte hegemonia neoliberal e as mudanças ocorridas na estrutura
da sociedade contribuíram para a abertura de um fosso entre a movimentação social
31
O que o governo pretende é uma mudança essencial das funções, atribuições e obrigações do
Estado dentro da sociedade, portanto, não se trata apenas de uma simples reforma do aparelho do
Estado (COSTA, 1998).
55
e as forças políticas, entre a inquietação social e a institucionalidade política
(NOGUEIRA, 2003, p. 14).
Neste período, o que se produziu foi um grave “desajuste” na
estrutura social, pela ampliação e cristalização de uma grande e resistente zona de
pobreza e exclusão, cuja reiteração prolongada deixou marcas em todos os setores
do Estado e da sociedade.
No governo Fernando Henrique Cardoso, fica evidente o retrocesso
na questão dos direitos sociais.
Costa apresenta as características marcantes da política social no
Brasil, utilizando-se dos estudos ABONG - Políticas Sociais 1995/96:
- centralização política e financeira no nível federal;
- fragmentação institucional;
- exclusão da participação social e política dos processos decisórios;
- conteúdo corporativo das demandas, decisões e condução das
políticas e programas sociais;
- clientelismo no uso de recursos e benefícios;
- princípio do autofinanciamento social e privatização.
Quanto aos problemas na oferta dos serviços sociais, ocorre:
- superposição de objetivos, competências e clientela-alvo;
- instabilidade e descontinuidade dos programas sociais;
- alto grau de ineficiência e ineficácia, gerando desperdício de
recursos;
- distanciamento entre formuladores e beneficiários;
- ausência de mecanismos de controle das ações. (COSTA, 1998,
p.5).
Diante de tal constatação, de fato é necessário repensar o papel do
Estado no desenvolvimento de ações que busquem cumprir com sua
responsabilidade frente aos direitos elencados na Constituição de 1988, sob o
prisma da eficiência e qualidade dos serviços públicos no atendimento das
demandas colocadas pela sociedade ao Estado.
A histórica subordinação da política social aos ditames da política
econômica prescreve o agravamento de uma estrutura social desigual, pelo
atendimento residual e fragmentado da população.
A qualidade de vida de um povo pode ser medida pelos indicadores
56
de desenvolvimento e modernidade. Neste caso, o Brasil padece pelos elevados
números de infração às condições mínimas de existência, decorrentes da
miserabilidade, violência, escolaridade entre outros dados que foram apresentados
neste estudo.
O legado dos anos 90 foi bastante negativo. Não apenas porque os
índices de bem-estar permaneceram baixos, mas também porque as margens de
pobreza e exclusão se ampliaram e ganharam complexidade, projetando-se no
cenário convulsivo da globalização. A sociedade permaneceu desigual e irregular,
recortada por múltiplos focos de miséria e injustiça, que certamente exponenciaram
os fatores de tensão social e turbulência, com impactos evidentes na governança e
na governabilidade.
Sader (2003) caracteriza o final do mandato de FHC: Um país com
uma capacidade produtiva - industrial e agrícola - desarmada, com a competitividade
internacional tendendo a zero, com a fragilidade externa da economia colocando o
Brasil à mercê dos especuladores internacionais, com os serviços públicos sofrendo
os piores cortes da sua história, transformados em sucata, para demonstrar como o
governo considera os direitos da massa da população. E, pior, com um povo
impotente para tomar os destinos em suas próprias mãos.
Dessa forma, as determinações e limites histórico-sociais foram
terrivelmente destrutivos para aquilo que se compreende como essencial para a
promoção do bem-estar de uma sociedade, sob parâmetros de justiça social,
eqüidade, a partir um projeto nacional de desenvolvimento.
A construção histórica da política de atenção a crianças e
adolescentes acumulou um estado de “negação” e “ausências” de direitos, expresso
por um “mix de ações dispersas e descontínuas de órgãos governamentais e
instituições privadas" , compondo um universo multifacetado e tirânico de pobreza,
violência, abandono, marginalização que transparecem nas contradições e
interpenetrações de desigualdades e diferenças intensas no mundo real
(RAICHELIS, 1998, p. 81).
A defesa da dignidade para a criança, é acima de tudo, a luta para
que a vida seja respeitada. Os caminhos adotados exigiram sacrifícios, exploração e
injustiça, havendo a necessidade de que as pessoas se posicionassem e agissem,
construindo projetos alternativos que primassem pela dignidade da pessoa humana,
para que a esperança do povo não fosse impedida de nascer. Não se trata de um
57
eufemismo, aproximem os cidadãos da condução da coisa pública, e teremos,
seguramente, uma maior racionalização na gestão dos serviços.
O estudo apresentado demonstrou a necessidade de avançar sem
dicotomizar as dimensões técnica e política na formulação de ações no âmbito das
políticas públicas (Baptista, 2000). O alcance das mudanças pressupõe o
(re)significar de práticas cotidianamente repetidas, passando pela redefinição das
estruturas existentes. Não se trata de uma opção fácil, pois exige uma nova relação
política, econômica, social e técnica a ser instituída, porém o resultado favorecerá
condições mais adequadas para o pleno desenvolvimento das crianças e
adolescentes, sujeitos das ações realizadas.
Precisamos de muito mais democracia, de uma visão mais horizontal
e interconectada da estrutura social. (DOWBOR, 1998, p. 46).
Isso implica uma mudança ampla na própria forma de conceber a
ação sobre a transformação social, passando pela dimensão cultural, política e
ideológica. Requer a busca de soluções político-institucionais que se configurem
enquanto respostas às transformações possíveis de ocorrer através de sistemas
flexíveis e participativos que comportem as próprias mudanças (DOWBOR, 1998).
Dessa forma, a Doutrina da Proteção Integral terá maior viabilidade
de concretização, quando os esforços se voltarem para a integração dos setores a
fim de constituir uma efetiva ação pública voltada aos interesses e qualidade de vida
da população através da implementação de formas inovadoras e criativas de
realização da gestão democrática. Implica, ainda, vontade política de fazer valer a
diversidade e a inter-relação das políticas locais (KOGA, 2003, p. 25).
Dessa forma, conforme aponta Draibe (1997), a concepção de
eqüidade supõe políticas capazes de trazer à posição de sujeitos econômicos
aqueles que se encontram desfavorecidos pelos bens e serviços produzidos em
sociedade, aumentando sua produtividade e reforçando a proteção social. O
desenvolvimento sustentável, a partir de um compromisso democrático, não pode
ser viabilizado numa sociedade sem que se tenham princípios como a busca da
eqüidade. Dessa forma, a mesma autora afirma que os objetivos da eqüidade e da
consolidação democrática orientam a implantação de um novo sistema de proteção
social que tem sua expressão nos direitos humanos, como instrumentos de
cidadania e como princípios estruturadores do sistema de proteção social, dentro de
uma concepção integrada de progresso social, abrangendo o conjunto das
58
necessidades sociais e ambientais para o desenvolvimento humano sustentável
(DRAIBE, 1997, p. 12).
Se é verdade que o quadro geral brasileiro de pobreza, injustiça,
desigualdade e exclusão social pouco mudou e que suas perspectivas de reversão
são exíguas, é verdade também que há, hoje, maiores possibilidades de
participação democrática da população na esfera política.
Cabe aos formuladores e executores de políticas sociais destinadas
à infância e juventude superarem a perspectiva do olhar apenas para o
“necessitado” (SPOSATI, 2003), dirigindo um olhar para a “necessidade”
apresentada por tais sujeitos, compreendendo-a enquanto condição sine qua non de
cada ser humano. Para tanto, devem inscrever as políticas neste campo em uma
pauta ampliada de direitos públicos de caráter universalista, considerando-os de
fato, como sujeitos de direitos com “voz e vez”, dotados de capacidades e
potencialidades a serem estimuladas para a construção de novos patamares na
história desse público.
59
CAPÍTULO 2 - ADOLESCÊNCIA, VULNERABILIDADE E RESILIÊNCIA
Este capítulo trata de três eixos centrais na formulação de políticas
públicas para a população infanto-juvenil em condição de vulnerabilidade nas ruas.
São eles: adolescência, vulnerabilidade e resiliência, intrinsecamente relacionados
quando nos voltamos à análise dos elementos fundantes na formulação de políticas
neste setor.
No processo da pesquisa empírica, os sujeitos nos trouxeram temas
que nos obrigaram a aprofundar aspetos que efetivamente relacionam o cotidiano da
pobreza na infância e juventude e aspectos que, para eles indicavam os caminhos
da superação do modo de vida nas ruas.
A trajetória da pobreza apresentada pelos sujeitos das pesquisa
indicou-nos um importante elemento para a análise referente à resiliência, enquanto
condição de superação das adversidades às quais a pobreza e a vida nas ruas os
expunham.
Este mix envolve sentimentos de pertencimento, de vínculo, e as
determinações da capacidade de desenvolver-se dentro do modelo capitalista de
produção que também para os adolescentes tem intrínseca relação com inclusão no
mundo do trabalho e, conseqüentemente, a garantia de dignidade em situação de
pobreza.
O conteúdo aqui apresentado traz uma reflexão que busca balizar
aspectos referentes às vivências dos adolescentes que permitem influenciar as
proposições das ações de políticas socais neste campo. Para tanto referenciamo-
nos em autores e estudos que se voltam à difícil articulação entre a adolescência e a
condição de pobreza.
2.1 - Adolescência
No processo de construção do novo direito da população infanto-
juvenil, é um desafio dedicar-se ao tema adolescência dentro de uma gama
diversificada de conceitos, complexidades, relações e determinações sociais.
Esse o estudo favorecerá uma compreensão de aspectos
significativos e singulares que na trajetória de vida dos sujeitos pesquisados, que
tiveram na adolescência, em sua grande maioria, a busca de rompimento com a
realidade vivenciada encontrando alternativas diferenciadas para a construção de
60
seu modo de vida.
No Brasil, foi na segunda metade de 1990 que o tema adolescência
ganhou maior projeção e complexidade no espaço público, pois aumentou a
proporção de adolescentes no conjunto da população nacional afetados de forma
particularmente intensa pelo aprofundamento das desigualdades das mais diversas
ordens; criam-se legislações e convenções direcionadas ao cuidado e proteção das
crianças e adolescentes; particularmente, no Brasil, consagra-se um novo estatuo
jurídico da infância e adolescência (a Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do
Adolescente).
Essa parcela da população ainda ganha destaque sendo colocada
como protagonista ou vítimas de problemas sociais. Ações são formuladas diante de
um imaginário social que tende a associar adolescência com problema. Tal
tendência aponta uma visão unilateral da adolescência.
Esta fase de vida também já foi caracterizada como período de
transição à vida adulta, sendo que a aprendizagem tinha como direcionamento a
incorporação da vida adulta, sendo muitas vezes concebidos como pequenos
adultos. Este entendimento que durante longo período ordenou as ações e atitudes
em relação às crianças e adolescentes, teve grande influência no modo de agir em
sociedade, visão que acarretou ônus a ser superado nas gerações seguintes.
Tem-se avançado quanto à atuação das políticas públicas
principalmente para a população infantil, o que favorece que cheguem à
adolescência com melhores condições de desenvolvimento. Porém, os
investimentos ainda não são suficientes e nem conseguem atingir um maior grau de
eficácia e efetividade na ampliação de oportunidades pessoais e materiais, que
favoreçam a circulação das crianças e adolescentes por múltiplos espaços, públicos
e domésticos, como partícipes de ações que respondam às necessidades e
expectativas dessa parcela da população.
Ocorre que esta fase de vida contempla singularidades que ainda
precisam ser bem compreendidas e, é tarefa de todos nós - família, sociedade e
governo - buscarmos mecanismos para o seu desvelamento. É preciso reconhecer
os direitos das crianças e adolescentes, estejam eles e elas onde estiverem (ou
independente do espaço onde se encontrem), o que exige um olhar atento para suas
especificidades. Podemos e devemos criar oportunidades para que tenham
condições de construir um projeto de vida que lhes dê condições de fazer escolhas e
61
de se responsabilizarem por elas.
Para Dowbor (1998), as novas tecnologias combinadas com uma
filosofia participativa em políticas para crianças, favorecem a tomada de decisões
com entendimento muito melhor da situação geral do município e com um
acompanhamento permanente de ações especificas (DOWBOR, 1998, p. 301).
No Brasil, somente os adolescentes somam mais de 21.249.557
pessoas, o que representa 12,5% da população brasileira, pessoas que vivem um
momento especial do seu desenvolvimento (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
INFÂNCIA, 2002), e que apresentam peculiaridades e diversidades. Este trabalho
não pretende buscar a definição de uma conceituação da adolescência tarefa que
segundo o UNICEF (2002), é bastante complexa e difícil, dada a heterogeneidade
que envolve a adolescência no Brasil, pelas grandes diversidades e desigualdades ,
em seus aspectos naturais, sociais e culturais (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA INFÂNCIA, 2002, p. 9).
Trataremos, portanto, de identificar algumas das características que
permeiam a adolescência, que são peculiares, mas não exclusivas, e favorecerão o
conhecimento e interpretação das situações e condições que envolvem a existência
e desenvolvimento neste momento da vida humana.
Dessa forma, no Brasil, a Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do
Adolescente - define esta fase como característica dos 12 aos 18 anos de idade,
embora muitos estudiosos sobre o assunto não delimitam um período exato de
duração da adolescência.
A palavra ‘adolescência’ tem sua origem etimológica no Latim “ad”
(‘para’) + “olescere” (‘crescer’); portanto ‘adolescência’ significaria,
strictu sensu, ‘crescer para’. Pensar na etimologia desta palavra nos
remete à idéia de desenvolvimento, de preparação para o que está
por vir (...). (PEREIRA, p. 1, 2004).
Segundo o UNICEF (2002), esta fase de desenvolvimento humano é
caracterizada por mudanças e transformações múltiplas e fundamentais para que o
ser humano possa atingir a maturidade e se inserir na sociedade no papel de adulto
(FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA, 2002, p. 9).
COSTA (2000) acrescenta que a adolescência é uma fase de
transição, ou seja, de travessia. Travessias que se faz na heteronomia da infância e
a autonomia da idade adulta, do mundo da educação para o mundo do trabalho, da
dependência total ou parcial para a independência, da transição de ser filho para a
62
possibilidade de fazer filho. Acrescenta, ainda, que, para empreender essa travessia,
o adolescente passará por uma trajetória biográfica e por uma trajetória relacional
(conjunto das relações interpessoais por ele estabelecidas ao longo de sua trajetória
biográfica com o mundo adulto e com seus pares) (COSTA, 2000, p. 21).
Identificam-se, portanto, desde características físicas e biológicas,
que podem ser consideradas enquanto “sinais” de transição entre a vida infantil e a
adulta, o que não significa dizer que a determinação da fase adolescente seja
definitiva e exclusivamente reconhecida por intermédio da idade e pelas alterações
orgânicas. Para se pensar em adolescência, é preciso considerar, de modo especial,
os aspectos psicológicos, fatores sócio-culturais, cognitivos, etc. Igualmente, é
preciso pensar no contexto, ou seja, refletir sobre o mundo - o cenário - em que o
adolescente está inserido. É,na verdade, um período de rápido desenvolvimento em
todos os aspectos – físico, emocional, psicológico, social e espiritual. Segundo o
UNICEF (2002), a adolescência, fora o período pré e neonatal, é a fase de mais
rápido desenvolvimento humano. Complementa, ainda, o documento, referindo-se
ao modo como os próprios adolescentes vêem a adolescência, como um momento
único, real e que dá sentido a sua existência (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
INFÂNCIA, 2002, p. 12).
Na adolescência, busca-se sair do círculo restrito da família para
participar da sociedade que deveria acolhê-los (as) como cidadão (ã) de direitos e
deveres. O (A) adolescente deveria encontrar na sociedade espaço de evasão para
expressão de seus sentimentos, de suas inquietudes, de sua reflexão crítica e,
sobretudo, de sua criatividade e sensibilidade face ao mundo à sua frente.
A dificuldade dos adultos em dialogar e (con)viver com os (as)
adolescentes favorece associá-los (as) com problemas e crises. Este momento de
desenvolvimento humano, por vezes tratado como impulsivo, intransigente, rebelde,
outras vezes interpretado como características de inovação, criatividade,
inventabilidade, busca de novas relações, valores e atitudes, tudo isso pode
representar potencialidade, mas também o seu risco, ou seja, parece existir uma
linha tênue entre estas duas possibilidades.
Mesmo determinadas experiências de transgressão podem trazer
crescimento e amadurecimento, desde que reconhecidas em seu
significado e assumidas como aspectos de um processo de busca de
referências de autoridade e de limites em uma fase em que seu
desejo é transpor a tudo e a todos (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS
63
PARA INFÂNCIA, 2002, p. 42).
É neste período da vida em que se intensifica a busca de
experiências, de curiosidade e experimentação.
A facilidade de aprendizagem e o desenvolvimento de sua
capacidade cognitiva peculiar a essa fase da vida; as vivências das
fases anteriores; seu desenvolvimento físico e mental vão permitindo
ao adolescente colocar-se como ser único no mundo, mas, ao
mesmo tempo, uma pessoa que é parte de um tecido social formado
por suas referências familiares, comunitárias e sociais, em que
desempenha papéis como cidadão de direitos e deveres (FUNDO
DAS NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA, 2002, p 12).
O grupo da mesma idade tem grande influência. Costa (2000)
acrescenta que “é este sentido de pertença a um grupo que facilita o crescimento
psicológico do indivíduo e serve como força de integração na primeira parte da
adolescência”. (COSTA, 2000, p.72). Este mesmo autor, em palestra
32
proferida
colocou que na vida se nasce duas vezes, a primeira vez para a família e, a
segunda, na adolescência, onde nasce para si mesmo (descobre-se), para a
comunidade e para a sociedade.
Nesse sentido, é importante pensar a adolescência como uma
categoria relacional, já que na realidade os adolescentes se constituem no espaço
social em relações entre eles mesmos, suas famílias, as gerações adultas e as
instituições da sociedade.
A adolescência também é uma construção social e cultural, que. Ela
se situa entre a dependência infantil e a autonomia da idade adulta, naquele período
de inquietude, mudanças, imaturidade, entre a falta de autoridade e de poder.
A singularidade do ser adolescente, nesta fase da vida, localizada
entre a infância e a idade adulta, fazem-nos depositários de direitos a serem
garantidos pelos adultos compreendidos como responsáveis pelo seu
desenvolvimento enquanto pessoa em formação – família, sociedade e Estado (art.
4º do ECA e art. 227 da CF/88).
Para Costa (2000), este período transitório é exatamente o caráter
limítrofe da adolescência, sua natureza fugidia carregada de significados simbólicos,
de promessas e de ameaças, de potencialidade e de fragilidade; essa construção
cultural é objeto de atenção ambígua, ao mesmo tempo cautelosa e plena de
32
Palestra proferida por Antonio Carlos Gomes da Costa na Capacitação dos funcionários do Centro
de Sócio Educação em fevereiro 2005, Londrina, PR.
64
expectativas. Com esse olhar cruzado e ambivalente, no qual se misturam atração e
desconfiança, caracteriza-se a adolescência como uma realidade cultural carregada
de uma imensidão de valores e de usos simbólicos e não só como um fato social
simples, analisável de imediato (COSTA, 2000, p.77).
Novaes (2003) explica que, nesta fase da vida, os limites são
testados principalmente porque os adolescentes estão, em termos biológicos, mais
longe da morte (apud FREITAS; PAPA, 2003 ; p. 2003).
Todas as considerações até aqui expostas se colocam como
desafios, frente ao significativo índice populacional que os adolescentes
representam, o que nos indaga conhecer mais e melhor a realidade deles.
Já se evidenciou que as características da própria adolescência,
como fase importante do desenvolvimento humano, geram desafios constantes.
Somam-se a elas, ainda, as condições adversas às quais são impostas pelo sistema
político, econômico e social que impera na sociedade vigente.
A revolução tecnológica, a globalização e a modernidade não se
configuram como uma garantia de acesso de todos aos produtos e bens produzidos.
Ao contrário, acirra a exclusão.
Para Costa (2000), a juventude é produto de um conjunto de
dinamismos histórico-sociais: a revolução industrial, a urbanização e a emergência
da escola pública. Todas as manifestações do fenômeno juvenil constituem-se a
partir da disponibilidade maior de tempo livre e do relacionamento com seus pares,
ou seja, os jovens são o resultado do ambiente econômico, social e cultural do seu
tempo e das relações pessoais e sociais que estabelecem nessa fase da vida
(COSTA, 2000, p. 110).
Nesse sentido, a adolescência constitui-se um desafio para as
políticas públicas no seu desenvolvimento integral, principalmente quando se
considera de fundamental importância associar o conhecimento às demais
experiências da vida.
Conforme a afirmação do Unicef (2002), o processo educativo
básico além de cumprir a responsabilidade da qualificação profissional, deve ainda
assegurar o acesso a um conjunto de conhecimentos necessários para que as
pessoas possam participar da vida pública e enfrentar as dificuldades impostas
pelos processos das diferentes formas de globalização.
65
(...) a adolescência é um período de vida precioso para o
desenvolvimento de habilidades intelectuais necessárias a essas
realidades. Isso inclui fundamentalmente o desenvolvimento da
inteligência, que na adolescência atinge a fase do pensamento
formal, condição essencial para todo o trabalho de raciocínio mental
e abstrato. (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA, 2002,
p. 25).
A escola, na adolescência, constitui um importante papel de
referencial estruturante, sendo que as experiências vividas neste ambiente
educacional pelos adolescentes favorecem o processo de socialização e de
desenvolvimento. Ao favorecer o exercício do desenvolvimento social e a
participação coletiva, tem um papel primordial de instância formadora para exercício
da cidadania em todas as suas dimensões.
(...) os quatro primeiros anos do Ensino Fundamental são decisivos
para o desenvolvimento cognitivo rumo ao estágio das operações
formais e das habilidades intelectuais subjacentes para acompanhar
o programa de ensino. Pesquisas recentes sobre as dificuldades do
adolescente em prosseguir os estudos a partir da 5ª série do Ensino
Fundamental apontam para a importância da qualidade da
alfabetização como fator de fixação e continuidade na escola.
(FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA, 2002, p. 26)
Novaes (2003) ainda complementa que a escola é apontada como
uma instituição em que os (as) adolescentes confiam, vista como um bom lugar para
se fazer amigos. Portanto, estar prematuramente fora da escola é estar privado da
sociabilidade que caracteriza a condição dos adolescentes (apud FREITAS; PAPA,
2003, p. 2003).
As políticas públicas também devem contar com equipes
especializadas e competentes na atenção a esse público, capazes de acolhê-los na
complexidade de suas demandas. Por exemplo, a atenção à saúde mental, que
deve dispor de serviços especializados para adolescentes. Embora esta área sofra
careça de grande defasagem em todo âmbito nacional.
Segundo o UNICEF (2002), por se tratar de um período de
consolidação e de aquisição de hábitos de vida que irão marcar todos os
comportamentos adultos relativos aos cuidados com a saúde - hábitos alimentares,
uso e abuso de drogas, relações sociais e afetivas, práticas de violência, práticas
sexuais e comportamentos de risco todos os serviços de atendimento a
adolescentes devem se constituir em espaços de atenção à saúde física e mental.
Complementa o documento com a seguinte afirmação:
66
Uma política de estímulo ao autocuidado e autoproteção configura-se
em um desafio de múltiplas políticas nas quais educação, saúde,
cultura, esporte, lazer, assistência social desempenham tarefas
específicas, mas profundamente articuladas em um processo no qual
o acesso à informação tem ligação direta com o acesso aos serviços,
condição básica para a mudança de atitude. (FUNDO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA INFÂNCIA, 2002, p. 34).
Cabe, ainda, ressaltar, um aspecto significativo no desenvolvimento
humano que é a sexualidade e, na adolescência, a sua iniciação é uma experiência
marcante, que repercutirá durante toda sua vida, devendo, portanto, ser tratada com
a devida atenção pela família, políticas públicas e sociedade.
Ao se verificar como o (a) adolescente ocupa seu tempo livre, a
pesquisa realizada pelo UNICEF (2000) identificou o que os adolescentes
apresentam como entretenimento, sendo que a convivência com os amigos obteve
primeiro lugar por 53% dos entrevistados e em segundo lugar a televisão, apontada
como fonte de diversão e lazer por 51% dos entrevistados. A pesquisa ainda
menciona que a grande maioria dos adolescentes entrevistados não identificam
outras opções e oportunidades de entretenimento, sendo que mais de 80% não
dispõem de equipamentos públicos ou comunitários que assegurem o direitos ao
esporte, cultura e lazer gratuitamente (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA
INFÂNCIA, 2002, p. 43).
A partir desses dados, percebe-se a importância que o grupo,
denominado amigos, tem para os adolescentes. Na experimentação da convivência
com o outro, tem-se a possibilidade de expressão de sentimentos, de aprendizagem
e desenvolvimento de habilidade. Porém, também se identifica, através dos dados
apontados que a existência de oportunidades, através de espaços de socialização
com ações direcionadas ao desenvolvimento psicomotor, serve de estratégia ao
desenvolvimento pessoal e à socialização. Assim, estimular o desenvolvimento da
sensibilidade favorece ao ser humano voltar-se para o belo, para o estético e
também para o outro e para o ético. Dessa forma, a cultura, o esporte, o lazer são
ferramentais fundamentais que favorecem a melhoria da auto-estima, do auto-
conhecimento e da auto-proteção.
A auto-estima é um elemento básico que contribui para dar sentidos
positivos e a construção de projetos de vida aos adolescentes.
O Unicef (2002) afirma que essa dimensão da alteridade é
ingrediente fundamental para a construção de redes afetivas e sociais (FUNDO DAS
67
NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA, 2002, p. 44).
Considerando o significado que as relações ocupam na vida do
adolescente, conforme apontam os estudos e pesquisa nesta área, Costa (2000)
contextualiza que muitos autores têm denominado este tipo de (con)vivência como
“neotribalismo”. Explica o autor que esta terminologia caracteriza a socialização
definida pela fluidez, encontros pontuais e a dispersão, onde os adolescentes
“vinculdados por sensibilidades compartilhadas e emoções vividas em comum”,
constróem suas identidades – muitas vezes transitórias (COSTA, 2000, p.116).
Tais considerações reafirmam que na adolescência, percorre-se por
uma trajetória biográfica e por uma trajetória relacional, o que corresponde a um
conjunto de experiências socializantes, que possibilitam subverter o destino, que
pela origem de sua classe, corresponderia na estrutura social. Nesse sentido, o
modo de ser, de agir e a forma como os (as) adolescentes lidam com as utopias,
opressões, liberdade e justiça, lhes permite-lhes transgredir, transformar, não
alienando sua capacidade. Cabe lembrar que, neste processo de desenvolvimento
da adolescência, em muitos momentos, depara-se com uma linha tênue e que a
ausência de cuidado e proteção nesta fase de vida acarretará em conseqüências
significativas, que terão influência no seu próprio modo de se ver e (con)viver com
as demais pessoas em sociedade.
Dessa forma, ao falar de adolescência, deve-se levar em
consideração a dinâmica dos centros urbanos, o contexto atual, de globalização,
mundialização da cultura, exclusões, dentre outros aspectos.
Todo este contexto coloca os (as) adolescentes em condições muito
diferencias, diante de realidades muito distintas, em que alguns têm acesso a tudo e
outros são segregados pela pobreza, ignorância, o que gera formas distintas de ver,
de viver, de conviver e, sobretudo, de consumir.
Ressalta Dowbor (1998) que passamos a (con)viver com uma nova
realidade, que avançou muito mais rapidamente do que a nossa capacidade de
sistematizar sua compreensão e, sobretudo, a nossa capacidade de gerar e gerir as
instituições correspondentes. Neste processo vertiginoso de mudança em que
vivemos, somos desafiados a pensar no “como”, em organização político-
institucional, agir sobre as macrotendências da sociedade. Porém, as soluções
político-insitucionais devem constituir uma resposta à mudança, e não a uma nova
situação (DOWBOR,1998, p. 415).
68
Este mesmo autor ressalta que vivemos a mais profunda e
acelerada revolução que a humanidade já conheceu, sendo
essencial revermos nossas ideologias, as nossas concepções sobre
as formas de organização social e política, levando esta revolução
em conta. Isto porque, à medida que este prodigioso aceleramento
do tempo de transformação se dá em forma profundamente desigual,
os referenciais tradicionais perdem boa parte do seu sentido, ou no
mínimo se tornam demasiado grosseiros e globais, frente a uma
realidade muito diferenciada. Não é a situação que mudou, exigindo
novas políticas: não há mais situação, e sim um processo de
mudança permanente, exigindo formas de gestão social radicalmente
alteradas, visões de mundo renovadas. (DOWBOR, 1998, p. 297).
Da mesma forma que o mundo vem se transformando numa
velocidade em tempo acelerado, o público infanto-juvenil transforma-se em busca de
suas necessidades e da construção de sua identidade, o que nos faz pensar que as
circunstâncias devem ser transformadas em oportunidades, pois o tempo é o agora
neste processo de mudança permanente.
Para Costa, o adolescente pobre se encontra em dupla
desvantagem: a primeira, por ser pobre, e, em segundo lugar, por ser adolescente
pobre (COSTA, 2000).
A marca da pobreza é tão profunda e conseqüente que um
adolescente, ao ingressar precocemente no mercado de trabalho sem uma formação
adequada, tem mínimas opções de escolha do seu futuro profissional, tendo pouca
possibilidade de proteção e de benefícios sociais.
Mais do que uma perda de coisas, a pobreza é a perda do direito a
opções.
O desejo de consumo é despertado em todos, mas o acesso é
limitado e restrito, predominando a situação econômica/social na qual as crianças e
adolescentes se encontram, diferenciando o significado e o sentido da fase infanto-
juvenil.
Porém, ao longo do processo histórico, essa parcela da população
vem buscando sua identidade e construindo modos de vida. Atualmente, a
sociedade vive um paradoxo em relação à juventude, ou seja, a cultura atual de
supervalorização do ser jovem não condiz com sua inserção sócio-econômica,
quando há desemprego, falta de investimentos em equipamentos sócio-culturais,
falta de horizontes profissionais.
As alternativas muitas vezes encontradas pelos adolescentes e
69
jovens para sua inserção social, podem privá-los ainda mais do acesso e gozo de
seus direitos.
Castells coloca com muita propriedade:
Enquanto organizamos, por cima, a nova ordem econômica e
tecnológica, um amplo setor de jovens está construindo, por baixo,
uma desordem alternativa feita de sua negação a um sistema que os
nega. (CASTELLS, 1999, p.10).
Trata-se, portanto, de uma população mais frágil e vulnerável e que
se não for cuidada e protegida, conforme estabelece o ECA, está sujeita às
situações que a expõem à situação de vulnerabilidade e risco como, por exemplo,
privações de todas as ordens; dificuldade de permanência e sucesso na educação
formal; estabelecimento de relações familiares e comunitárias conflitivas; ingresso
precoce no mercado de trabalho; permanência nas ruas; suscetibilidade a
comportamentos transgressores e infracionais; baixa capacidade de competitividade
com outras crianças e adolescentes.
O conflito também é um aspecto presente na vida dos (as)
adolescentes, seja pela diferença entre suas expectativas e demandas, como
também pelas respostas dadas pelo mundo institucional adulto.
Nem sempre os adolescentes se incorporam socialmente sem que
haja sinais de conflito. As instituições sociais que atuam na inserção, devem ter
certo grau de flexibilidade, para não reproduzirem o aparato repressivo e controlador
da sociedade. Na adolescência, diante do potencial criativo e de experimentação (ou
vivência de experiências), reivindicam reconhecimento e delimitação de seu território
simbólico; ocorre que nem sempre a família, a sociedade e as políticas públicas
conseguem identificar esta necessidade e nem estabelecer e/ou intermediar uma
negociação simbólica, optando pelo exercício do poder, o que aguça a existência de
conflito.
A possibilidade de autonomia, começando pelo próprio corpo,
concretiza-se de maneira exclusiva contra ou à margem das
instituições vigentes, seja através da ação político-social, a
diferenciação cultural ou a delinqüência, isto é, colocando em ação o
corpo, capaz de falar, amar e comunicar-se (FREITAS; PAPA, 2003,
p. 20).
É perfeitamente cabível afirmar que a adolescência apresenta no
contexto atual uma nova condição de ser e de fazer. E não há mais espaço para as
instituições terem o papel de ser transmissoras de uma cultura adulta hegemônica.
70
Neste processo de mudanças, seus saberes são questionados e confrontados,
perdendo pouco a pouco sua eficácia enquanto propagadora de tais preceitos e por
não conseguirem interpretar e adentrar na subjetividade infanto-juvenil. Estabelece-
se, portanto, um fosso entre aqueles quepromovem ações de intervenção e seus
destinatários. E com a riqueza de potencial e energia, estes últimos constróem
alternativas que podem tender ao aumento do risco e vulnerabilidade.
Essa nova condição juvenil se caracteriza por uma forte autonomia
individual (especialmente no uso do tempo livre e do ócio), pela
avidez em multiplicar experiências vitais, pela ausência de grandes
responsabilidades de terceiros, por uma rápida maturidade mental e
física, ainda que atrasada no econômico, com o exercício mais
precoce da sexualidade (FREITAS; PAPA, 2003, p. 25).
Ao longo do tempo, o período infanto-juvenil era apontado como
tempo de aprendizagem, muitas vezes penosa e árdua, para adquirir experiência
suficiente para chegar à vida adulta, conforme já sinalizado anteriormente, com
pouca ou nenhuma autonomia, ou mesmo o reconhecimento de suas capacidades e
desejos.
E para afirmação desse modo de agir para com as crianças, criava-
se um imaginário de que as “melhores coisa da vida” estavam reservadas aos
adultos, especialmente no plano econômico, político e sexual (Freitas; Papa, 2003,
p. 25) e, dessa forma, aguçava a ânsia da população infanto-juvenil de se introduzir
definitivamente no mundo adulto e, por outro lado, felicitavam-se os adultos quando
conseguiam realizar-se com rapidez (FREITAS; PAPA, 2003, p. 25).
Num processo de construção da identidade, a experimentação do
desenvolvimento humano pode ser vivida por aproximações sucessivas e temporais,
nas quais as responsabilidades podem ser assimiladas e compreendidas para que
possa ter no futuro condições de responder por inteiro pelos atos de sua vida. Cabe
também lembrar que o período de formação tem se alongado na perspectiva de uma
maior preparação para inserção trabalhista e melhoria das condições de vida.
(...) os anos de capacitação, mais que uma certeza de inserção
trabalhista, aparece como um imaginário de esperança passível de
amainar as incerteza das brecha cada vez maior entre o capital e o
trabalho, como prolongar uma idade sem maiores exigências
produtivas de renda e o ampara das instituições educacionais
(FREITAS; PAPA, 2003, p. 26,27).
Para o CETAD – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas
– da Universidade Federal da Bahia, os adolescentes possuem de fato uma
71
dimensão psíquica singular, articulada com aspectos biológicos, sociais e culturais
(ABRAMOVAY; CASTRO, 1998).
Suas estatísticas se referem ao grupo de 14 a 20 anos como alvo de
programas especiais para adolescentes (considerando o aumento de
consumidores habituais de drogas e/ou toxicômanos nessa faixa
etária e a sua resistência em relação ao tratamento clínico mais
convencional), contudo advertem que, em que pese a interpretação
de desorganizações, inconformismos, resistências aos adultos,
convenções e instituições, e até atos de criatividade naquela faixa
como “crises da adolescência” haveria que cuidar sobre o perigo de
políticas e práticas de medicalização homogeneizadoras, uma vez
que se algo mais se acentua, ou se visibiliza em tal ciclo seria a
busca pó expressar singularidades, a subjetividade (ABRAMOVAY;
CASTRO, 1998, p. 582).
Diante de tais colocações, vale a pena possibilitar aos adolescentes
que se apropriem do seu processo de desenvolvimento.
Crianças e adolescentes são entes de direito que invocam proteção
e atenção, mas uma grande parcela encontra-se exposta e desclassificada desse
direito.
Os direitos existem, segundo Dallari (1984), “porque todas as
pessoas têm algumas necessidades fundamentais que precisam ser atendidas para
que elas possam sobreviver e para que mantenham sua dignidade”. Direitos
existem, portanto, para atender necessidades, principalmente as básicas. Nem todas
as necessidades podem ser providas através do Direito, mas quando se
reconhecem as necessidades como “direitos” significa que estas são exigíveis, são
reclamáveis.
Na promoção dos direitos, e especificamente o direito a uma vida
digna para todas as crianças e adolescentes com proteção integral, há de visualizá-
los como um todo, objetivando o seu desenvolvimento social, assegurando que os
mesmos sejam sujeitos de direitos, cidadãos.
Nessas configurações e rearranjos da sociedade, surge a
necessidade de pensar de que maneira vem se dando o sustento econômico e
cultural das famílias que vivem a situação de exclusão social. O fato é que estes
segmentos da sociedade se mostram ainda mais fragilizados, marcados pelo
contexto neoliberal que agoniza a situação das famílias já empobrecidas, na medida
em que se amplia a distância entre as classes através da maior concentração de
renda em favor das elites.
72
Concordamos com Costa (2000), uma vez que a ausência de
direitos sociais próprios, de seu acesso e de sua exigibilidade, de instâncias
públicas às quais recorrer, os coloca em uma situação de grande vulnerabilidade
social (COSTA, 2000, p.118).
Destacamos anteriormente, o significado que o acesso ao lazer,
cultura e esporte tem na vida de um (a) adolescente. A realidade vivenciada por uma
parte dos (as) adolescentes brasileiros depara-se com números que ferem
significativamente seus direitos, deixando-os vulneráveis e suscetíveis a práticas de
maiores riscos.
Segundo recente pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística), apenas 12% das escolas públicas de ensino básico no Brasil possuem
instalação esportiva (quadra ou piscina). O investimento público nesta área não
ultrapassa 1% do orçamento, seja pelo governo federal e municípios, o que
demonstra que o esporte como política pública ainda fica aquém de contribuir para a
diminuição das desigualdades e desenvolvimento bio-psico-social das crianças, na
ocupação do tempo livre como instrumento de lazer e formação das crianças
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2006, pág. D1).
Além dos dados apontados, cabe refletirmos o fato de terem um raio
restrito de circulação, geralmente segregados em seus bairros, seja pela dificuldade
de acesso a estruturas de esporte, cultura e lazer, seja pela locomoção, na qual o
meio de transporte, pela ausência de renda, configura-se em um limitar significativo,
condições que os privam do benefício do uso da cidade em que vivem.
(...) além da falta de oportunidades de trabalho e de alternativas de
lazer, uma marca singular dos jovens, nestes tempos, é a sua
vulnerabilidade à violência, o que se traduz na morte precoce de
tantos (...) se falta de alternativas de trabalho e lazer não é o traço
novo na vida dos jovens de baixa renda no Brasil, o medo, a
exposição à violência e a participação ativa em atos violentos e no
tráfico de drogas seriam marcas identitárias de uma geração, de um
tempo no qual vidas jovens são ceifadas como em nenhum outro
período da idade moderna, exceto as circunstâncias de guerra civil
ou entre países. Ou seja: são marcas dos tempos atuais e não
distintos de uma classe pobre (...) (CASTRO, 2001, p. 69).
Nesta limitação imposta, recorremos a Telles (1992) que explica a
exclusão social como um fenômeno multidimensional que não se restringe à
insuficiência ou ausência de renda, mas expressa a combinação de várias
desvantagens que impedem o excluído de pertencer à sociedade e de nela ser
73
reconhecido como sujeito de direitos (TELLES, 1992, p. 7).
Castro (2001) complementa que não há uma relação linear absoluta
entre pobreza e violência, mas que, além dos efeitos negativos na qualidade de vida
material, a pobreza facilita sentidos culturais perversos, inclusive comprometendo a
subjetividade, a criatividade (...) (CASTRO, 2001, p. 25).
A condição de existência humana, portanto, propicia condições ao
desenvolvimento de condutas anômalas em relação à moralidade e à legalidade
vigentes na sociedade.
A realidade tem mostrado que o público infanto-juvenil goza
(...) de abundante tempo livre, embora se trate de um tempo de
espera, vazio, em virtude da falta de trabalho, de estudo e de
alternativas de um ócio criativo e vitalmetne enriquecedor. Não é um
tempo legitimado e valorizado socialmente pela família e pelos pares,
mas sim o tempo da angústia e da impotência, o tempo da
estigmatização social, um tempo que empurra na direção da
marginalidade e da exclusão, o tempo do ficar “marcando bobeira”
numa esquina, exposto aos agentes da limpeza social. A estes, a
perspectiva de uma vida de trabalho e sacrifício não lhes parece ter a
mesma eficácia que aos seus avós, seja por saberem que não
conseguirão o que estes obtiveram, ou porque não lhes interessa
conseguir incamente o que seus avós buscavam (FREITAS; PAPA,
2003, p. 26).
A atenção da sociedade e do Estado para o público nesta condição
exige olhá-lo identificando-o como uma oportunidade real de desenvolver o seu
potencial como pessoas e cidadãos do futuro e propiciando uma forma construtiva
de socialização.
A sociedade tem, portanto, cidadãos vivendo um período especial de
suas vidas que oferecem ao País energias geradoras de mudanças
positivas, de novas vivências e descobertas que, estimuladas e
apoiadas, vão contribuir decisivamente para melhorar a qualidade de
vida de todos (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA,
2002, p 13).
Nesta faixa etária, demanda-se por espaços de sociabilidade e de
manifestação de criatividade, e o desencanto com os aparatos institucionais gera a
perda de referencial ético, a baixa auto estima.
O investimento na valorização da auto-estima, o fato de “se querer
bem” pode contribuir significativamente para o afastamento de condições de
vulnerabilidade social.
Entretanto, o sentido de se querer vai além do imediato, do presente,
74
é um se querer que se nutre da apreciação por outros, de forma positiva (CASTRO,
2001, p. 487).
Para a Fundação Travessia (São Paulo), a auto-estima constitui um
processo de busca identitária ou de desidentificação com símbolos negativos
impostos (apud CASTRO, 2001, p. 487).
Portanto, mais do que uma tipologia abstrata das características
desse momento, é preciso reconhecer que a adolescência significa os primeiros
contatos com os dilemas que constituem a vida adulta e, dessa forma, a construção
da identidade e a experimentação são elementos fundamentais para o campo das
escolhas e dos caminhos que se fazem ao longo da história.
Cabe às políticas públicas serem sensíveis às necessidades
materiais e simbólicas dos adolescentes, sendo que as ações desenvolvidas
demonstram conhecimento, enganos e fracassos que deverão ser devidamente
observados para que possamos avançar na história de construção de direitos.
Segundo Martins,
Nas últimas décadas o país experimentou mudanças
modernizadoras, muitas vezes induzidas, que convivem com o
arcaísmo de práticas e de instituições que alimentam relações de
poder e valores enraizados em estruturas oligárquicas ainda não
superadas, o que nos configura como uma “sociedade de história
lenta” (MARTINS, 1994).
Por essas razões, somos portadores de relações sociais que, no
presente, traduzem datas e processos históricos diversos (FREITAS; PAPA, 2003, p.
57).
Não é objetivo de deste trabalho percorrer todos os temas
subjacentes à discussão desse momento da fase de vida. A condição da
adolescência refere-se ao modo como uma sociedade constitui e significa esse
momento do ciclo de vida, e a situação que traduz os diferentes percursos
experimentados pela condição juvenil a partir dos mais diversos recortes: classe,
gênero, etnia, origem rural ou urbana.
Segundo Freitas e Papa (2003), as orientações e imagens
socialmente construídas sobre juventude refletem relações de poder estabelecidas –
a partir de hierarquias econômicas, culturais e de idade – e tendem a negar a
diversidade de situações. Destacam que se trata de um campo de disputa não só
em torno das modalidades de ações, mas principalmente em torno dos significados
75
atribuídos à condição de adolescente (FREITAS; PAPA, 2003, p. 61).
Dessa forma, como as ações de atenção e cuidado ao público infato-
juvenil ocorrem de forma precária, limitada e insuficiente e/ou inexistente, as
crianças e adolescentes buscam suprir os vazios “instituídos” deixados pela família,
pela escola em seu processo de construção da identidade e de desenvolvimento
social e afetivo. Vão buscar identificar espaços de socialização, convivência e talvez
reciprocidade em que tenham condições de expressar uma afetividade, acabam por
construir sua identidade e desenvolver sua personalidade (COSTA, 2000, p. 113).
A ausência de um projeto de vida para o (a) adolescente faz com
que tudo se restrinja ao momento presente; por não perceber um horizonte adiante,
também não vê razão em cuidar de si e dos outros. Portanto, um desafio colocado é
a estimulação para que despertem o desejo pela vida. Do contrário, o rumo que ele
(ela) dá para sua vida acabará repercutindo na vida da família, da comunidade e,
conseqüentemente, na própria sociedade, a qual cobra de cada pessoa um papel
social a desempenhar.
Oxalá consigamos atingir a compreensão prescrita na legislação de
que cada criança e adolescente tem um potencial, e que desenvolvê-lo é um dever
e um direito seu (COSTA, 2000,p.112).
2.2 - Vulnerabilidade
A vulnerabilidade e a resiliência vêm sendo estudadas com maior
ênfase nos últimos tempos, ao estarem relacionadas a fatores de risco e de
proteção, buscando identificar a influência de tais aspectos na vida das pessoas.
Vivenciamos uma gama de situações que colocam as pessoas em
condições de vulnerabilidade decorrentes da degradação dos modos de vida. Tal
processo de degradação tem no enfraquecimento e destituição da condição
salarial
33
– o desemprego em massa, a instabilidade das situações de trabalho, a
perda da renda, perda de identidade e insuficiência de sistemas de proteção – o
cerne de significativas transformações que implicam diretamente no modo como as
pessoas passam a viver em sociedade. São novas configurações que se instituem
na (con)vivência das famílias, comunidade e sociedade, o que implica diretamente
33
A condição salarial é aqui entendida na centralidade do trabalho compreendendo-o como (Castel,
2003) eixo das relações sociais, como processo que origina as configurações culturais, simbólicas e
identitárias. (CASTEL, 2003, p. 12).
76
em suas trajetórias de vida.
A fragilização e ruptura dos vínculos provocam, nas pessoas,
insegurança, o que se configura como uma ameaça ao desenvolvimento de
perspectivas futuras que lhe possibilitarão gozar de uma vida digna. Essa condição
vivenciada por pessoas e grupos é denominada vulnerabilidade social.
A dificuldade da sociedade em manter a coesão vem favorecer a
manifestação da questão social. Segundo Castel (2003), a questão social é uma
aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua
coesão e procura conjurar o risco de sua fratura" (CASTEL, 2003, p.30). Ela
questiona o conjunto da sociedade. E é justamente este risco que incomoda,
inclusive, quem está em uma condição mais confortável. Por vezes, a simples
existência da pobreza
34
não se caracteriza em nenhum “agravante”, ocorre que
seus desdobramentos como o aumento dos bolsões de pobreza, da permanência de
crianças na rua, do cometimento de atos infracionais e crimes podem agravar a
estabilidade social, configurando-se, por exemplo, num aumento explosivo da
violência.
A impotência diante de acontecimentos que ultrapassam nossa
compreensão e o desconhecimento sobre as complexidades e diversidades
presentes nas cidades e na vida de seus habitantes dá margem à existência de um
imaginário preconceituoso e estereotipado associado à pobreza, o que se configura,
muitas vezes, na culpabilização da pobreza, implicando em conseqüências diretas
para as pessoas que vivenciam tal realidade.
Marcuse (2004) ilustra bem esse contraste existente na sociedade:
(...) a riqueza e a pobreza convivendo face a face não se podem
mutuamente ignorar. Se a riqueza é aparatosa e gosta de exibir seu
luxo, a pobreza não pode esconder-se, atravessa os limites dos
bairros pobres e chega às ruas bem comportadas, às avenidas, às
pontes e viadutos, às marquises dos edifícios grandiosos (...)
O rosto da pobreza não é bonito onde quer que se encontre, com
certeza na cidade, ele é mais feio e mais carregado de símbolos
depreciativos (...) Cruza diariamente nosso caminho e é parte da
imagem e da consciência que temos da cidade.
34
Para Paugam, a pobreza deve ser definida a partir de reações sociais provocadas por
circunstâncias específicas (apud SAWAIA, 2004, p. 69). Complementa ainda o autor: “Nas
sociedades modernas, a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens
materiais; ela corresponde, igualmente, a um status social específico, inferior e desvalorizado, que
marca profundamente a identidade de todos os que vivem essa experiência” (PAUGAM, 2003, 45)
77
(...) Para as classes dominantes é difícil reconhecer um igual nos
personagens da pobreza. Reconhece-se o diferente como desigual.
Da desigualdade à inferioridade não há muita distância (...). (apud
SAWAIA, 2004, p.129).
Zaluar (2004), referindo-se a Castel, comenta sobre o
(...) “individualismo negativo” o, individualismo dos que ficaram
ilhados no esgarçamento do tecido social, isolados, atomizados, sem
o ideário e os valores partilhados socialmente, o individualismo dos
que, através do narcisismo, buscaram as ilusões de uma
independência individual absoluta e encontraram o vazio (ZALUAR,
2004, p. 286).
Esse quadro revela uma condição antropológica nova, que Castel
(2003)l chama de uma espécie de nova barbárie, que é menos o retorno à
selvageria de antes da civilização do que a invenção de um estado de
dessocialização própria da vida moderna, ou seja, vivencia também uma
degradação moral, além da miséria material. Portanto, o pauperismo desafia todas
as estruturas existentes, por ter o poder de levar à degradação completa dos modos
de vida, o que afeta diretamente em todas as relações sociais estabelecidas
(CASTEL, 2003, p. 287).
A miséria e a subversão da inteligência, a pobreza e o aviltamento
da alma, o enfraquecimento e a decomposição da vontade e da
energia, o torpor da consciência e da personalidade, o elemento
moral em uma palavra, sensivelmente e mesmo com freqüência,
mortalmente atingido. Eis o caráter essencial, fundamental e
absolutamente novo do pauperismo (CASTEL, 2003, p. 287).
Nesse sentido, a questão social passa a ser marcada por um
processo em massa de desenraizamento e vulnerabilidade social.
Considerando que a vulnerabilidade social é tratada como um
fenômeno que vem se acentuando no mundo contemporâneo, buscaremos
estabelecer uma maior aproximação para a compreensão da temática e seus
desdobramentos.
A vulnerabilidade é interpretada por Castel (2003) como uma zona
intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos
suportes de proximidade, situações estas, identificadas e presentes nas trajetórias
de vida das pessoas que participaram desta pesquisa.
São muitas as pessoas que se deparam com dificuldades de
(con)viver, decorrente das condições desiguais, seja na esfera econômica, seja na
esfera sociocultural, o que suscita o enfraquecimento das proteções.
78
Wanderlei (2004), ao se referir a Castel, comenta que este autor
denomina tais processos contemporâneos como a desestabilização dos estáveis.
Explica a autora que as pessoas, ao se tornarem vulneráveis e se instalarem na
precariedade, podem culminar na inexistência ou no déficit de lugares ocupáveis na
estrutura social, ou seja, a chamada (inutilidade social), percorrendo-se o difícil
caminho de estar como que suspenso por um fio (apud SAWAIA (org), 2004).
Portanto, buscaremos situar nesta zona intermediária, as conseqüências que têm
para as pessoas atingir a precariedade econômica e a instabilidade social. Os
autores anteriormente citados buscam deixar claro que a vulnerabilidade de massa
difere da consciência secular de uma pobreza de massa. Castel (2003) explica que a
vulnerabilidade se caracteriza por uma condição de miséria vivenciada e de
dissociação social. (CASTEL, 2003, p. 219;220). Essa condição de estar parece ter
um efeito cumulativo na fragilização das relações familiares e nas relações mais
amplas.
A vulnerabilidade tem grandes conseqüências para as famílias.
Quando atingidas pela degradação da condição salarial, perdem o status social e,
passando a viver na precariedade econômica, ficam muitas vezes reduzidas à
gestão de seu capital relacional (CASTEL, 2003, p. 534). Ocorre que tais
instabilidades comprometem também a administração e cuidado com as suas
relações primárias.
Esta precarização se apresenta como déficits nas trajetórias de vida
das pessoas, implica diretamente no modo “como se vive” e, para desvendá-las, faz-
se necessário conhecer “de onde se vem”, para então poder projetar, reenviando a
dinâmicas mais amplas.
No estado de vulnerabilidade, vivencia-se com incertezas, o que
dificulta a constituição de um projeto de vida, de ter perspectivas para o futuro,
condição que alimenta a esperança por projetar sonhos e desejos.
Para Paugam (2003), a ausência quase total de um projeto de
ascensão social, associada à perda de referências familiares e tradicionais, leva a
graves dificuldades, dentre as quais aponta a inadaptação às normas de ambiente
coletivo, o consumo excessivo de substâncias psico-ativas, a negligência.
(PAUGAM, 2003, p.168).
Esta condição de estar, marcada pela incerteza, pela instabilidade,
revela o sentimento de estar como que suspenso por um fio.
79
É neste sentido que consideramos necessário conhecer
determinados aspectos que, na trajetória de vida das pessoas, conduzem à
vulnerabilidade, como também as motivações que as movem na busca de
superação da situação vivenciada. Neste sentido, a trajetória e os processos pelos
quais as pessoas passam e vivem no decorrer de suas vidas, algumas com
conteúdo muito particular, são carregados de significados e/ou situações
significantes, que envolvem as relações, os suportes de proximidade e os
denominados sistemas de proteção, podendo ainda estar relacionados à moral, à
reciprocidade, à solidariedade, à mutualidade e à autoridade. Seu agravamento se
converge a condições de fragilidade e/ou estagnação. Sobrepujar tais condições é o
que elevaria a um patamar comum de identidade (na sociedade) e de sentimento de
pertencimento social.
Para identificar as pessoas que se encontram nesta condição, Castel
(2003) prefere os denominá-los como desfiliados. A desfiliação
35
é apresentada
como uma ruptura de pertencimento. Consideram-se pessoas ou grupos com
insuficiência de recursos materiais e também fragilizadas pela instabilidade
relacional. Portanto, a desfiliação ocorre pela via da pauperização e pela perda de
vínculo societal. O autor ainda explica que há risco de desfiliação, quando o conjunto
das relações de proximidade que uma pessoa mantém a partir de sua inscrição
territorial, que envolve sua inserção familiar e social, é insuficiente para reproduzir
sua existência e para assegurar sua proteção (CASTEL, 2003, p. 51). A desfiliação,
porém, não significa a ausência completa de vínculos, mas a ausência de inscrição
do sujeito em estruturas que têm um sentido (Ibid., 2003, p. 536).
Conclui-se, portanto, que a precarização dos modos de vida de uma
pessoa pode levar ao drama de inexistência externa e interna, é quando a
fragilidade dos vínculos sociais, se intensifica.
Wanderlei (2004) ressalta ainda que, no mundo das relações sociais
a fragilização dos vínculos (família, vizinhança, comunidade, instituições) pode
produzir rupturas que conduzem ao isolamento social e à solidão. (apud SAWAIA,
2004, p.23)
Pode-se dizer que, diante de tal condição, a pessoa se depara com
35
A expressão desaffiliation é um neologismo na língua francesa. O termo vem sendo traduzido por
desfiliação e/ou desafiliação, termos também inexistentes na língua portuguesa. (SAWAIA, 1999, p.
21).
80
o seguinte dilema: por um lado, vivencia-se a dificuldade de suportar tal situação e,
por outro, angustia-se com a impossibilidade de transformá-la profundamente
(CASTEL, 2003). O que nos desafia é identificar o que seria motivação para se
buscar uma outra maneira de viver.
As crianças e adolescentes em condição de rua retratam bem a
questão da desfiliação, pois os coletivos protetores como a família, grupo de
vizinhança, instituições já não conseguem mais promover sua proteção.
Neste contexto, convive-se com uma sociedade com um grande
número de pessoas suscetíveis de serem assim desestabilizadas.
(...) um terço ou da metade da população global, conforme os lugares
e as épocas, está na situação de viver quase “pensando só no dia de
hoje”, eternamente ameaçada de se encontrar aquém do patamar de
recursos que permite uma autonomia mínima (CASTEL, 2003, p.
217).
A miséria, torna-se, portanto, um componente estrutural essencial
dessas formações sociais (CASTEL, 2003, p. 217) e a vulnerabilidade à dimensão
coletiva da condição popular.
A ausência ou precária existência de alternativas a esta condição de
vida das pessoas, ao negar-se o acesso a determinados insumos como educação,
trabalho, saúde, lazer e cultura, diminuem as chances de aquisição e
aperfeiçoamento desses recursos que são fundamentais, principalmente para a
população infanto-juvenil, situação que tende a manter-se, agravar-se e até mesmo
aumentar, ao perpetuar pelas gerações seguintes, privando-as de condições de
dignidade.
Castel, ao analisar a deterioração da condição de existência
humana, denomina esta parcela da sociedade como supranumerários, sendo
aqueles indivíduos desterritorializados, com grande mobilidade, que não encontram
lugar na organização tradicional do trabalho. Estes, portanto, nem sequer são
explorados, complementa, pois, para isso, é preciso possuir competências
conversíveis em valores sociais. São supérfluos. Coloca o autor, que inexistem
socialmente, pois, para existirem deveriam ter um lugar na sociedade. (CASTEL,
2003, p. 117; 33). Já Arendt (1983) se refere como os “inúteis para o mundo”.
São, para outros, pessoas sem rosto, figurantes, por seus corpos
terem sido desfigurados; são errantes, porque interiorizaram uma condição marginal,
não se sentem pertencentes; sem valor, por já não terem mais nada o que perder. A
81
esperança e o desejo, já não fazem parte de seus imaginários porque este está
estagnado ao longo de uma trajetória de dor e sofrimento pessoal e social. Por fim,
são depreciados por toda a sociedade por não serem “úteis” e por não terem
“utilidade”, por não responderem às necessidades tidas como contemporâneas.
Martins (1997) ainda acrescenta que a sociedade moderna vem
criando uma grande massa de população sobrante que tem poucas chances de ser
novamente incluída nos padrões atuais de desenvolvimento. Essa condição, que
deveria ser transitória, vem se transformando num modo de vida permanente e
criando uma sociedade paralela (MARTINS, 1997, p. 33;34).
As crianças e adolescentes têm sido vítimas desse fenômeno,
decorrente da estrutura e conjuntura vivenciada, que afeta significativamente sua
condição de vida, tais restrições e limitações econômicas, sociais, culturais
interferem diretamente o modo de ser e de se relacionarem. Assim, diante da
situação em que vivem tais crianças e adolescentes, as esferas convencionais de
sociabilidade já não oferecem respostas suficientes para preencher suas
necessidades. E, diante dos vazios deixados, eles buscam constituir outras esferas
ou dimensões de sociabilidade.
A rua, então, passa a ser um dos espaços de (con)vivência,
respondendo a algumas necessidades tidas como imediatas, às quais denominam,
muitas vezes, como liberdade, convivência em grupo, solidariedade, afeto, entre
outros.
Ocorre que, nas ruas, permanecem também expostos a condições
de vulnerabilidade e suscetíveis a condições de fragilidade. As pessoas da
sociedade ora se colocam como piedosas e compadecidas da situação que
visualizam, ora são extremamente preconceituosas e discriminatórias. O
distanciamento e rompimento com os laços familiares e comunitários, a violência a
que estão expostos, a negligência do Estado, todas são situações que marcam
profundamente a trajetória de vida desta população.
A droga é mais um elemento de risco na vivência na rua. A
experiência com a droga também deixa marcas, sendo que os motivos que os levam
ao contato com as substâncias psico-ativas vão simples curiosidade, aceitação ao
grupo, disfarçar o frio e desconforto da madrugada, para enganar a fome, ou ainda
para esquecer a realidade de abandono.
Assim, as relações e sentimento de pertencimento se colocam como
82
aspectos significativos para pessoas, sendo que, na socialização primária, são
referências básicas da noção de vinculação, dando base à existência e forma às
vinculações nas relações com a vizinhança, participação em grupos, associações,
entre outros. Já a perda de tais vínculos, ruptura e no caso dos supranumerários,
sua inexistência, compromete significativamente as possibilidades de
(re)estabelecimento de um sentido para viver.
Castel adverte para se evitar as tentações de profetismo e de
catastrofismo (CASTEL 2003, p. 497), para a análise da realidade e suas formas de
enfrentamento. Deve-se, portanto, buscar, à luz do processo histórico, avaliar a
amplitude exata das mudanças ocorridas e estabelecer medidas para o
enfrentamento. Acrescenta que o tratamento da questão numa perspectiva histórica
permite dispor de algumas peças para recompor um novo quebra-cabeça.
Uma das alternativas identificadas para enfrentamento de tais
situações tem como referência a definição de políticas de inserção, podendo ser
entendidas como aquelas que utilizam a lógica da discriminação positiva, para
aqueles que estão em situação deficitária e que necessitam de atenção e cuidado,
como é o caso de crianças e adolescentes com vivência de rua, que necessitam de
uma estrutura de atendimento especializado, como é o caso do serviço de Abrigo,
ou seja, medidas específicas para um coletivo de pessoas numa dada condição.
A perspectiva de atuação com tais parcelas da população, deve ter
como preceito a constituição de uma sociedade de sujeitos independentes e, para
tanto é necessário identificar algumas condições para que isso chegue ou possa
acontecer.
Para pensar neste futuro, não é suficiente acreditar que o amanhã
possa ser melhor que o hoje e nem apenas esperar no futuro a melhoria dessa
condição. Voltamos a afirmar que é necessário preparar as condições que,
progressivamente, possam favorecer o desenvolvimento e socialização necessários
a uma vida digna.
2.3 - Resiliência
A resiliência, enquanto realidade humana, pode ser tão antiga
quanto a própria humanidade. A história da sociedade apresenta pessoas que,
mesmos diante de situações adversas, como privações, limitações, renúncias
83
impostas e diversos tipos de violências, resistiram e superaram tal condição.
No entanto, o interesse científico por este objeto é recente. Muitos
países ainda apresentam-na como uma definição apenas das ciências exatas. Em
dicionários, por exemplo, podemos identificar a sua definição voltada para a
engenharia, enquanto capacidade de um material recuperar sua forma original,
depois de ser submetido a uma deformação sob pressão. O dicionário de língua
portuguesa, Novo Aurélio, reporta-se à Física para definir resiliência como
“propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida
quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica”. No sentido figurado,
este dicionário a define como “resistência ao choque”. Já o dicionário de língua
inglesa Longman Dicitionary of Contemporary English (1995) oferece duas
definições de resiliência, sendo a primeira enquanto “habilidade de voltar
rapidamente para o seu usual estado de saúde ou de espírito depois de passar por
doenças, dificuldades etc.; resiliência de caráter”. E a segunda como “a habilidade
de uma substância retornar à forma original quando a pressão é removida:
flexibilidade” (TAVARES, 2001, p. 14).
A resiliência é um conceito novo de uma realidade antiga que, hoje,
assume um significado especial na formação das camadas mais
jovens e nos grupos sociais de alto risco ou sujeitas a elevados
níveis de desestruturação e de stress. (TAVARES, 2001, p. 43).
Vanistendael (1999) aponta que buscar a definição da resiliência
poderia gerar um debate sem fim, embora a defina enquanto capacidade de uma
pessoa ou de um sistema social de viver bem e desenvolver-se positivamente,
apesar das condições difíceis de vida, e isso de maneira socialmente aceitável. O
autor admite que tal afirmação provoque inquietações, podendo gerar
questionamentos de todas as ordens. (VANISTENDAEL, 1999, p. 11).
Diante do exposto, compreendemos que uma maior aproximação
com o tema favorecerá a leitura da realidade a partir da trajetória de vida percorrida
pelas pessoas que participaram da pesquisa de campo.
Placco vem contribuir para nossa compreensão de resiliência, ao
apresentá-la como a possibilidade do sujeito superar a si mesmo e às pressões de
seu mundo, desenvolvendo um autoconceito realista, autoconfiança e um senso de
autoproteção que não desconsidera a abertura ao novo, à mudança, ao outro e à
realidade subjacente (apud TAVARES, 2001, p. 8).
84
Já Zimmerman & Arunkumar (1994) chamam a atenção para uma
importante diferenciação ao afirmarem que resiliência e invulnerabilidade não são
sinônimos. Explicam os autores que, mesmo sendo a resiliência uma “habilidade de
superar adversidades”, não significa que a pessoa saia da situação ilesa, como
implica o termo invulnerabilidade. Como também não se deve dar a conotação de
irresistível, insensível ou até mesmo conformado. Mas, ao contrário, trata-se da
condição da pessoa estar forte o suficiente para reagir (apud TAVARES, 2001, p.
17). É importante também ressaltar que o grau de resiliência de uma pessoa não se
configura como uma quantidade fixa e estável, podendo variar conforme a pessoa e
a circunstância.
Desse modo, como a realidade se transforma, sua dinâmica também
pode alterar a resiliência de uma pessoa. A resiliência, portanto, compõe-se de
fatores tanto pessoais quanto ambientais.
Na contemporaneidade, os desafios e confrontos encontram-se cada
vez mais presentes, gerando insegurança à nossa integridade física, emocional e
cultural.
A busca permanente pelo equilíbrio pessoal e social está presente
na resiliência. Isto favorece que as pessoas identifiquem um sentido para se viver,
não se configurando, necessariamente, em ter um projeto de vida definido. E
mesmo ao se deparar com situações extremas, a ponto de ferir sua integridade, a
pessoa resiliente busca reagir; ousa tentar, o que favorece o estabelecimento de
novos rumos para a vida.
Dessa forma, quando pensamos o que desencadeia a saída da
criança de casa para rua, devemos avançar na compreensão de vê-la apenas sob a
ótica de fuga da realidade, admitindo a possibilidade de ser uma reação e
enfrentamento da situação vivenciada. Pode ser a manifestação do estranhamento
do cotidiano e a capacidade de lutar pela vida, em busca de outros modos de viver.
Devemos, portanto, olhar para vivências e experiências com significado e
importância, pois estes são elementos substanciais que ajudam a dar sentido à vida.
Este processo de construção de significado estaria igualmente na
base da instituição e na reformulação de estratégias de resiliência bem precisas e
próprias de cada sujeito, as quais ativam e consolidam, ao longo da vida, a
aquisição dos marcos importantes da autonomia, da integração ou da reconstrução
da identidade (TAVARES, 1997, p. 99).
85
O desenvolvimento da resiliência apóia-se em outras capacidades
desenvolvidas como a auto-estima, a perseverança e autoconfiança, entre outros. A
emoção e o sentimento assumem uma importância vital. O significado pessoal
ganha grande relevância. O desenvolvimento de um conjunto de características
pessoais, somadas às experiências vividas e interpretadas de maneira singular,
definirá o significado a ser atribuído às vicissitudes a que somos confrontados
durante a vida.
Desse modo, faz-se necessário valorizar as competências,
reconhecendo o outro como possuidor de recursos e capacidades e, mesmo que
ocultos, devem ser (re)avivados, reconhecer na pessoa seu potencial, enquanto
possuidora de mecanismos próprios para enfrentamento das situações. Ser
resiliente torna-se também um modo de proteger a si mesmo.
É importante ressaltar que este é um processo que vai se
desenvolvendo ao longo da vida, pois a resiliência pode ser adquirida pela educação
e pela experiência das dificuldades ultrapassadas e, nesse sentido, funciona como
um elemento de preservação da estrutura psicológica da pessoa (TAVARES, 2001,
p. 87).
Podemos afirmar que, durante a trajetória de vida da pessoa, ela
pode recorrer à sua memória, para trazer lembranças que lhe encorajam a enfrentar
determinadas circunstâncias.
É preciso, pois ter bem presente que o desenvolvimento pessoal
resulta de uma multiplicidade de aspectos que não se restringem às
influências externas – nomeadamente as inerentes ao processo de
socialização e aos condicionalismos da intervenção educativa – mas
incluem também elementos de natureza interna que, numa ótica
consentânea com a teoria piagetiana, determinam a apropriação que,
em cada momento, vai sendo possível das experiências
proporcionadas nos referidos contextos. É tudo isto que vai estar na
base da existência de importantes diferenças quanto às
repercussões que os mesmos acontecimentos têm de indivíduo para
indivíduo (TAVARES, 2001, p. 99;100).
Enquanto apoio externo, os agentes protetores (família, comunidade,
Estado) desempenham um importante papel de suporte social.
Segundo Williams & Pereira (1999), o apoio social é um
determinante da saúde mental. E Anderson e Snow (1998), através de estudos,
concluiram que é a percepção do suporte social que protege contra a
desestabilização. Explicam que as representações internas, o imaginário existente
86
na mente das pessoas possibilitam os respectivos significados apresentados como
determinantes, e não apenas o meio sócio-ambiental.
Enquanto suporte social, o grupo de amigos tem grande influência
no desenvolvimento da adolescência, conforme já apontado em capítulo anterior
(apud TAVARES, 2001).
O grupo de pares, juntamente com a família e a escola, são os
principais contextos nos quais is adolescentes desenvolvem as suas
características pessoas e sociais, úteis para a atuação na sua vida
adulta (SPRINTAHALL & COLLINS, 1999 apud TAVARES, 2001, p.
93).
Neste sentido, Barreto (2005), referindo-se à importância que as
relações têm para as pessoas, coloca que aqueles que participam em algum
momento de nossa história, deixam-nos marcas (positivas ou negativas) que
poderão se fazer presente durante o percurso de nossa vida. (BARRETO, 2005).
Conforme já dito antes, ao nos reportarmos à memória, trazemos para o presente
lembranças que tenham significado. Desse modo, a vivência pessoal e social pode
interferir na transformação de sentimentos e ajudar na (re) significação de
determinados fatos.
Essa afirmação reforça a importância dos vínculos nas relações
estabelecidas. Segundo Alvarez (2005), ninguém é resiliente sozinho. Para este
autor, a resiliência pede parcerias, empatia, encontros.
Outro aspecto que merece nossa atenção, refere-se à reflexão
trazida pela psicologia, ao afirmar que uma pessoa que vivencia uma situação de
fragilidade significante não consegue mais voltar ao que era, pois a experiência do
evento se soma às suas experiências anteriores. A forma como se comportará,
dependerá de sua condição, ou seja, se a pessoa não apresentar nenhuma
disposição interna, ficará mais vulnerável. Se tiver alguma resistência interna e
contar com fatores de proteção, mostrará sua resiliência (ALVAREZ, 2005).
Segundo Hutz e Koller (1997), crianças e adolescentes ao
vivenciarem no cotidiano das ruas situações de risco que testam constantemente
sua vulnerabilidade emocional, social e cognitiva, desenvolvem estratégias de
adaptação e sobrevivência. A rua gera altos níveis de instabilidade e fragilidade.
Para Vanistendael (1999), a resiliência de uma pessoa está
intimamente associada a valores éticos e morais previamente estabelecidos em
sociedade. O autor ilustra a seguinte problematização: Um jovem, após privações e
87
negligências vivenciadas na infância, ganha a vida dedicando-se ao tráfico e à
criminalidade como alternativa de sobrevivência. Questiona o autor se isto pode ser
resiliência; afirma que não. Para ele, a resiliência não é a lei da selva, nem
sobrevivência a qualquer custo. Cita frase do professor Osborn, de Bristol-Reino
Unido: ”Assim, pois, apesar de seus intentos malogrados em satisfazer as
necessidades sociais e econômicas de todos os seus componentes, a sociedade
continua exigindo dos que sofrem as piores privações, que libertem a si mesmos,
unicamente por meios socialmente legítimos.” Conclui, o autor, que a sobrevivência
deve ser aquela socialmente aceitável (VANISTENDAEL, 1999, p. 11).
Esta colocação levanta um debate instigante quanto à interpretação
do que é socialmente aceitável e sobre quem a define. Compreendemos que a
resiliência envolve a leitura dos aspectos culturais presente na sociedade mas,
principalmente dos aspectos pessoais, presentes no imaginário, o que pode fazer a
diferença no modo de viver em sociedade.
A presença das pessoas no mundo não é a de quem a ele se adapta,
mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não
ser apenas objeto, mas sujeito da História (FREIRE, 1999, p. 60).
O desenvolvimento das capacidades de resiliência, favorece vários
aspectos da vida, como o fortalecimento dos vínculos sociais, da responsabilidade,
da confiança, do respeito, da solidariedade e da tolerância, o que favorece a
construção da identidade com bases mais justas e em condições de liberdade.
Devemos, pois, capitalizar as forças.
E impossível contribuir com alguma coisa para alguém, sem buscar e
ver em cada um toda a beleza que ele tem, porque não se ajuda a
ninguém, identificando o que é mal, o que é feio, o que é distorcido.
(VANISTENDAEL, 1999, p. 13).
Em vez de nos determos nos pontos inócuos e no modo de
compensá-los, temos que nos dedicar a potencializar os pontos fortes e o modo de
como aproveitá-los.
Em vez de diagnosticar problemas e procurar que se relacionem com
soluções prontas, passaremos a diagnosticar as necessidades e as
forças das pessoas, das famílias e das comunidades, tentaremos
mobilizar ditas forças e ver se permitem às famílias e às
comunidades idealizarem algumas soluções. (VANISTENDAEL,
1999, p. 07).
Esta perspectiva permite identificar novos significados diante dos
88
problemas a serem enfrentados, favorecendo caminhar em outra direção, diferente
da focalização nos problemas, o que se faz numa via distinta e desafiadora.
Torna-se imprescindível o desenvolvimento de propostas
pedagógicas para os serviços de proteção social a crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade. Propostas que tenham por base o encorajamento
destes sujeitos. Entendemos ser nossa a responsabilidade de contribuir para que
estas pessoas se tornem mais resilientes e menos vulneráveis, sendo agentes de
suas próprias vida.
As pessoas podem e devem ser tornar partícipes, pensando,
refletindo, questionando e formulando suas próprias perguntas para
não lamentar-se como quem perdeu seu endereço na História.
(FREIRE,1999, p. 21).
Freire ainda, coloca que devemos ensaiar a experiência profunda de
assumir-nos.
Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante,
comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de
ter raiva porque é capaz de amar. (FREIRE, 1999, p.46).
Olhar apenas para os problemas nos consome as energias, alguns
problemas não estão em apenas nosso âmbito de intervenção, e nem por isso pode
nos neutralizar, imobilizar, e estagnar a esperança. Entendemos que buscar
identificar potencialidades é revelar aquilo que pode estar desconhecido, e isto pode
ser instigante e motivador.
Para Cowan e Schulz (1996), resiliência refere-se a processos que
operam na presença de risco para produzir conseqüências boas ou melhores do que
aquelas obtidas na ausência de risco. Rutter complementa que a resiliência é o
processo final de proteção que não elimina o risco, mas que encoraja a pessoa a
enxergá-lo e a reagir (apudTAVARES, 2001, p. 27).
Bruno Bettelheim apresenta uma contribuição importante ao refletir
sua experiência no Holocausto, colocando que sua adequação naquele contexto
pôde fazer a diferença entre a vida e a morte. Explica ele que, num campo de
concentração nazista tornava-se premente viver o momento presente, o dia-a-dia e,
às vezes, o hora-a-hora, centrando-se em coisas insignificantes e imediatas,
relativas a necessidades básicas vitais ou de interação social (apud TAVARES,
2001).
Deve-se, portanto, identificar a dinâmica existente entre fatores de
89
risco e proteção que, o tempo todo, interagem e determinam a situação de maior
vulnerabilidade ou resiliência nas pessoas em situação de rua. Estes, mesmo
vivenciando experiência de (con)vivência nas ruas e situações de extremo
sofrimento pessoal e social, não sucumbiram, ou sejam, apresentaram potencial
para encontrar e desenvolver sentido para suas vidas.
A resiliência se mostra como uma condição básica para o
enfrentamento das adversidades às quais estamos sujeitos no mundo
contemporâneo. Dessa forma, Vanistendael aponta alguns elementos que
contribuem para o desenvolvimento da resiliência em crianças: a) aceitar
incondicionalmente a criança enquanto pessoa, o que não significa a aceitação de
seu comportamento; b) ajudar a criança a encontrar uma lógica, um sentido para sua
vida; c) levar a criança a compreender a importância da relação com o meio
ambiente. d) desenvolver a auto-estima; e) desenvolver o sentido do humor.
São elementos fundamentais que devem ser integrados às ações
desenvolvidas nos mais diversos ambientes e pelos diferentes agentes protetores
envolvidos com tais sujeitos em desenvolvimento, podendo fazer a diferença em
suas vidas.
Desse modo, os agentes públicos têm papel fundamental em
identificar e suscitar as forças e capacidades das pessoas, utilizando-se dos
recursos internos e externos na superação de tais circunstâncias. Devem, portanto,
estar atentos às necessidades e realidades presentes na vida cotidiana das
pessoas, compreendendo os âmbitos potenciais de resiliência que podem ser
dinamizados e revitalizados.
Contribuir para tornar as pessoas mais resilientes é um imperativo
social e comunitário. Tal promoção do desenvolvimento pessoal e social proporciona
condições para o alcance de um estilo de vida mais saudável, sendo que os ganhos
refletem positivamente no coletivo. Ao contribuir para que, principalmente as
crianças e adolescentes, fortaleçam-se internamente, promove-se o
desenvolvimento de outras capacidades associadas à inter-relação, ou seja, no
modo como se relacionar com as demais pessoas, ao controle de seus impulsos, à
solicitação de apoio e ajuda em situações difíceis, bem como no modo de agir
diante dos problemas.
Buscamos ressaltar aspectos que consideramos significativos da
resiliência, mesmo reconhecendo que existam outras formas de explicá-la e de
90
identificá-la nas pessoas.
Temos clareza de que estas questões postas são mais fáceis de
escrever do que de realizar, no entanto, se acreditamos que as pessoas são
capazes de conduzir suas próprias vidas, não podemos deixar de investir nos
recursos internos, para que a vontade e o desejo sejam alimentados junto aos
sonhos e esperanças, tornando-se uma condição sine qua non para enfrentar os
desafios postos na luta por melhores condições de vida e dignidade.
No mundo atual, os desafios e dificuldades fazem parte constante da
vida cotidiana e, muitas vezes, a expectativa externa se choca com as possibilidades
reais de concretização, ainda mais quando agravada pela precarização de
condições materiais e relacionais. Torna-se, portanto, um desafio identificar
alternativas e mecanismos de resistência que estimulem a reagir e lutar pelas suas
necessidades, prioridades, desejos e sonhos, não permitindo que as contingências e
circunstâncias tomem a vida da pessoa, a ponto de anulá-la em sua forma de ser e
estar.
Compreendemos que somente os recursos externos não têm sido
suficientes para o enfrentamento da realidade vivenciada, embora se apresentem
como um valor significativo na vida das pessoas. As oportunidades, por exemplo,
caracterizam-se como ferramentas à participação na vida social e coletiva, porém
não bastam em si. Para aquelas pessoas que trazem a vida marcada por incertezas
e inseguranças, é necessário identificar recurso interno capaz de impulsioná-las a
resistir e a reagir diante de tantas adversidades a que estão sujeitas, o que poderá
fazer a diferença no modo de viver e ver a realidade/mundo, bem como a trajetória
de vida percorrida. Nem sempre esta fortaleza interna está aparente, e sua
descoberta, identificação e potencialização podem ocorrer por meio de recursos
externos.
A reação interna, enquanto um modo de agir diante de tais
adversidades, tem sido denominada de resiliência
36
. Trata-se da capacidade de
responder, de forma mais consistente, aos desafios e dificuldades, tendo uma
postura mais flexível e perseverante diante de circunstâncias desfavoráveis e/ou
adversas.
A complexidade que envolve o estudo da resiliência baseia-se na
36
A etimologia da palavra resilio de re + salio significa “ser elástico” (TAVARES, 2001, p. 46).
91
multiface de interpretações, conceitos e significados presentes nas mais variadas
áreas como física, psicanálise, psicologia, filosofia, teologia e sociologia.
Para Tavares (2001), a resiliência evoluiu do concreto para o
abstrato, das realidades materiais, físicas e biológicas, para as
realidades imateriais, ou espirituais, indo para o campo da psicologia,
sociologia e antropologia, apresentando-se sob diferentes formas,
pessoas e contextos (TAVARES, 2001, p.21).
A busca de sua compreensão assume, portanto, maior relevância
quanto ao interesse de identificar os significados atribuídos no processo de
desenvolvimento humano, bem como, o conhecimento das estratégias adotadas
pelas pessoas para enfrentamento das adversidades e vicissitudes que permeiam a
vida.
Cabe destacar, ainda, o papel relevante que as políticas públicas
assumem ao se voltarem para a valorização das capacidades das pessoas. Os
agentes públicos, ao compreenderem a importância que tal atitude tem para a vida
em sociedade, avançam na forma de gestão social.
As pessoas resilientes alimentam a esperança da vida.
Além dos aspectos acima tratados, este capítulo trata também de
aspetos teóricos demandados a partir dos sujeitos, ao refletirem quanto aos
elementos fundamentais que impulsionaram as mudanças da condição de rua para a
chamada, por eles, de “vida digna”.
2.4 - Necessidade de estabelecimento de vínculos
É sabido que a pessoa humana necessita do outro para viver. A
primeira relação de dependência passa a ser estabelecida no nascimento, com os
primeiros cuidados, sendo esta uma relação primária, voltada à proteção.
Neste primeiro modo relacional estabelecido entre as pessoas,
aprende-se uma das formas mais elementares de solidariedade. Trata-se de uma
realidade ainda subjetiva, mas necessariamente experimentada pela pessoa.
É interessante perceber como, no decorrer da trajetória de vida, tal
experiência passa a se constituir, a se transformar ou inexistir diante da influência de
adversidades e determinantes do meio e da própria estrutura social.
Provavelmente, a evolução histórica contribui para diferenciar os
indivíduos, a multiplicidade dos círculos sociais que se cruzam,
assegurando-nos a originalidade e uma certa independência. Mas
92
originalidade não significa unidade/ independência exterior não
significa uma verdadeira autonomia (PAUGAM, 2003, p. 66).
No percurso de uma vida humana, a relação estabelecida na
convivência familiar, comunitária e em sociedade sofre modificações influenciadas
pelo modo de se relacionar, provocando conseqüências diretas à estabilidade
relacional, afetiva, conforme já apontado em outros tópicos deste estudo.
É um ciclo de transformações a que estamos sujeitos durante o
processo de nossa existência. O diferencial para a forma como enfrentamos a
realidade à nossa frente pode estar no apoio que recebemos, dando-nos condições
de termos maior possibilidade de (re)elaboração de um novo modo de ser e estar.
As experiências dão base à constituição da identidade e, segundo
Sawaia (2004), a identidade é um processo constante de configuração de
significações, que age como elemento ordenador em relação aos valores, afetos e
motivações do sujeito individual ou coletivo, existindo uma dialética
identidade/alteridade.
Complementando, Ciampa (1987) afirma ser a identidade um
processo de construção de um modo de ser e estar no devir do confronto entre
igualdade e diferença, que nega o individualismo, abrindo o sujeito ao coletivo (apud
SAWAIA, 2004, p. 123).
Assim, os vínculos sociais, incluindo os laços familiares, favorecem
nossa inserção em movimentos participativos e associativos, o que nos oferece
maior condições de participação na vida coletiva e nos torna agentes de
transformação e em transformação, nos processos de identificação na trajetória de
nossa vida.
Desse modo, nas relações que estabelecemos, a identidade, ao
mesmo tempo que se transforma, afirma um modo de ser.
2.4.1 - O cultivo da rede das relações
Segundo Paugam, a precariedade de vida está diretamente
relacionada à diminuição da sociabilidade. Desse modo, quanto maior esta
precarização, além das conseqüências já mencionados, aumenta-se o risco de
enfraquecimento dos vínculos sociais. As condições materiais fragilizam a existência
humana, afetando diretamente o estado emocional. O prolongamento e/ou
perpetuação de tal situação pode interferir em mudanças culturais e afetivas e,
93
portanto, nos relacionamentos estabelecidos (apud SAWAIA, 2004).
Ocorre a interiorização de uma identidade negativa, sendo que as
atitudes quanto aos relacionamentos estabelecidos na convivência familiar e
comunitária sofrem uma introspecção. A desqualificação social vivenciada, a partir
da degradação das condições de vida, desestabiliza as relações com o outro.
Neste processo, as pessoas escapam às malhas primárias ou
preventivas da proteção social, as situações com que se deparam ganham
proporções significativas, afetando vários setores da vida e aumentando o grau de
marginalidade. A ausência de renda fixa, problemas de saúde relacionados à
dependência de substância psico-ativa, dificuldade de relacionamento familiar geram
sentimentos de fracasso, o que se coloca como limitador para a busca de
alternativas.
Este processo de degradação tem fortes implicações na vida de uma
criança e/ou de um adolescente, fase em que o processo de desenvolvimento passa
por mudanças rápidas, significativas e desconhecidas. São estes, portanto, os que
sofrem maior fragilidade e dificuldade na compreensão e leitura dos fatos, o que
poderá marcá-los no decorrer de suas vidas. Vivenciar situações de violência das
mais diversas ordens, ausência de proteção e acolhimento, fracasso escolar, podem
comprometer a forma como no futuro o adolescente lidará com as diversidades da
vida.
O medo do desconhecido, gerando ansiedade, agressão e a busca
de sinais identitários, foi suficientemente explorado na literatura. O
homem ao defrontar-se com aquilo que não conhece e domina,
perde a capacidade de controle, fica inseguro e muitas vezes
desesperado. Guiddens (1993, p. 200), um dos mais importantes
sociólogos europeus da atualidade, tem refletido sobre o
enfraquecimento da tradição e de todos os eixos identitários rígidos,
como a tradição, nação, comunidade, família e sexualidade, e sobre
a conseqüente falta de confiança dele decorrente, que pode ser
negativa ou positiva à emancipação humana, a depender do grau de
liberdade de reflexão das pessoas envolvidas no processo. O
enfraquecimento da tradição pode favorecer a autonomia das
escolhas, quando acompanhado de atitude reflexiva, mas quando a
reflexão é impedida, pode gerar sofrimento de diversas ordens e
mecanismos defensivos, fundamentalistas e apartheid, sendo um dos
mais comuns à busca de parâmetros fixos de identidade (apud
SAWAIA, 2004, p.120 e 121).
A moradia, conforme já conceituado, representa também um
sentimento de pertença. A pessoa, ao afastar-se deste ambiente, não se sentindo
94
proprietário, com direito de ir e vir intensifica o processo de desqualificação social.
(...) o significado da habitação para o ser humano extrapola a função
de simples meio de proteção física. Para o individuo, a casa
representa o seu lugar no mundo, e é por meio de seu endereço que
ele confirma esse lugar no espaço e na própria sociedade. (...)
O direito à moradia digna, assim, está intimamente ligado aos direitos
fundamentais à vida e à saúde, pois, o conceito ampliado de
habitação envolve a função de proteção em largo espectro. As
condições do espaço de habitar, mais do que de quaisquer outros
espaços, podem ser consideradas fatores de risco ou de saúde,
dependendo de sua qualidade. Considerando, ainda mais, que a
habitação é fundamental para o desenvolvimento das atividades
produtivas e criativas do ser humano (SILVA, 2004, p. 137,138).
Essas considerações afirmam a importância que a moradia tem para
o ser humano como função essencial à proteção, espaço onde ele possa produzir e
reproduzir a vida.
A criança e/ou o adolescente, que sai de casa para a rua,
primeiramente se sente deslocado, fora do seu habitat ‘natural’ e, no decorrer do
tempo, com a assimilação de uma nova realidade, passa a absorver hábitos e
costumes e, posteriormente, sente-se mais habituado, em condições de assumir
esta permanência nas ruas. O que poderá ser constatado nos trechos das histórias
de vida apresentadas neste trabalho, nos quais identificamos a tendência de maior
distanciamento das relações familiares, quanto mais se prolonga a permanência nas
ruas.
Paugam, com um estudo realizado com moradores de rua,
demonstra que:
Em 1994, mais de 50% dos indivíduos que estavam sem moradia
afirmavam ter confiança na família, em 1997 essa porcentagem
diminuiu, corroborando a idéia de que os vínculos com a família se
rompem progressivamente em função do tempo sem moradia. É
importante indicar aqui um duplo efeito: ao invés de ser solidária, a
família pode adotar uma atitude reticente em relação ao membro,
marginalizado em virtude do sentimento de desonra que ele acabou
despertando nos seus familiares. O rompimento significa, neste caso,
uma maneira de evitar o descrédito. Cumpre ressaltar que muitos
moradores de rua, em particular os jovens, deixaram sua família
após um desentendimento ou uma série de conflitos (apud, SAWAIA
(org.), 2004).
Para o autor, a ruptura dos vínculos sociais é resultado de um
processo e, no caso da pessoa com permanência prolongada na rua, esta interioriza
a condição atual sem vislumbrar grandes esperanças numa outra perspectiva de
95
vida. Um dado interessante apontado é que a grande maioria admite o
reestabelecimento de contato com a família, no momento em que encontra uma
condição de vida melhorada.
Assim, fica mais uma vez evidente que a existência de condições de
vida digna influencia e favorece o relacionamento social.
Para Castel, a desafiliação social tem um caráter dinâmico e
dialético, o que abre a possibilidade de existência de algum tipo de inserção ou de
afiliação das pessoas, seja individual ou coletivamente, no interior de certas
categorias e sistemas sociais (apud SAWAIA, 2004, p. 87).
Este autor abre um fio de esperança em meio a tanta adversidade,
sendo que, mesmo se encontrando em condições extremamente precárias de vida,
existe a possibilidade da pessoa recuperar ou construir um outro modo de viver, de
afiliar-se.
Nesta perspectiva, a constituição e preservação dos vínculos atua
como um elemento catalisador e integrador, pois além de afirmar nossa própria
identidade, estimula a participação na vida social e coletiva.
Os serviços e agentes públicos têm grande importância neste
processo à medida que valorizem e respeitem o significado e dimensão que os
vínculos têm para o ser humano, principalmente para aqueles em maior condição de
vulnerabilidade social.
O vínculo é uma porta aberta para o diálogo, para o respeito e
reconhecimento da diversidade entre as pessoas, compromete e contribui para o
desenvolvimento pessoal e coletivo. Desse modo, os serviços que compõem a rede
de proteção social às pessoas exercem um papel preponderante para a
conservação dos vínculos sociais, principalmente para crianças e adolescentes,
como referência na constituição do seu modo de ser e de agir. Os serviços de
proteção social, assim, constituem-se uma oportunidade de socialização e de
definição do modo como se quer viver.
2.5 - O desejo de uma vida digna - a busca de alternativas às
adversidades
As transformações desencadeadas pelo projeto neoliberal e a lógica
da globalização provocam uma reestruturação econômica e, conseqüentemente,
social, afetando as pessoas - os trabalhadores - que se vêem compelidas a
96
vivenciarem novas experiências de sobrevivência.
Estas estratégias de sobrevivência ocorrem sobre bases, muitas
vezes, frágeis e instáveis, como aquelas relacionadas aos sistemas informais
precários e/ou ilegais, situações que deixam as pessoas expostas à constante
situação de vulnerabilidades e riscos sociais.
Conforme já apresentado, as pessoas, ao passarem pela
experiência da desagregação social, deparam-se com uma diversidade de
dificuldades como a convivência permanente com a pobreza, a ausência de renda e
condições básicas à sua sobrevivência, as manifestações das mais diversas
violências, a impossibilidade de trabalho, as relações de vínculos deficitários,
questões estas que se configuram como situações-limites da precarização humana.
Estas pessoas estão diante de um acúmulo de desvantagens - formação
inadequada, baixa escolaridade, sentimento de fracasso - que as colocam em
condições desiguais frente à busca de sobrevivência de modo digno.
As jovens gerações podem também passar muito rapidamente de
uma situação de fragilidade para a marginalidade, pois as
dificuldades de inserção profissional se acompanham sempre de
uma “dissocialização” progressiva e de sinais de distúrbios no caráter
e no comportamento (ansiedade ou depressão, sentimentos de
fracasso, de culpa ou de vergonha, abuso de bebidas alcoólicas, de
drogas) (PAUGAM, 2003, p. 274).
Quanto mais as pessoas se encontram à margem, ou na zona franjal
(Castel, 2003), mais se distanciam da possibilidade de trabalho e de proteção social,
e de traçar perspectivas futuras, projeções, sonhos para realização de seus desejos
através de projetos de vida.
Tal precarização tem sua origem na negação de liberdades
elementares a um grande contingente de pessoas – talvez até mesmo à maioria.
Segundo Sen (2000), a pobreza econômica rouba das pessoas a liberdade de saciar
a fome, de obter uma nutrição satisfatória, o tratamento adequado para a doença, a
oportunidade para vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso à água
tratada ou saneamento básico (SEN, 2000, p. 18).
Nas histórias de vida que serão apresentadas, poderemos observar
os déficits significativos e impacto que a negação a deste direito elementar na vida
destas pessoas.
Assim, ainda mais perceptível o quanto a restrição a tais liberdades
substantivas refletem as condições de existência e implicam no modo como as
97
pessoas percebem sua existência. Pensar na possibilidade de mudança, de um
outro modo de viver, provoca a exigência de ter uma concepção de vida e se dispor
a uma adaptação, muitas vezes, surpreendente em face das dificuldades da vida
cotidiana já que todas as pessoas reúnem condições de fazê-lo.
2.5.1 - A família como vítima do contexto da desproteção.
Esse novo cenário afeta diretamente as relações familiares. Família,
compreendida aqui, como locus priveligiado onde a criança elabora suas
identificações e vive os conflitos inerentes à busca de uma identicidade.
E, nas famílias pobres, tais ameaças sempre foram mais presentes e
o desemprego muito mais constante.
Os pais perdem seus postos de trabalhos, muitas vezes de maneira
irrecuperável. Mulheres voltam ao mercado, não mais na figura de
complementadoras da renda familiar, mas como principais
responsáveis pelo orçamento doméstico. Os filhos por sua vez,
vivem o assombro de uma sociedade que ameaça não lhes abrir
espaço no mercado formal de trabalho, a despeito de toda a
dedicação e investimentos eventualmente realizados pela família em
sua formação educacional e profissional. (...) A rua passa a ser o
espaço em que, paulatina e crescentemente, ganha visibilidade
social uma grande gama de excluídos: homens em idade adulta e
produtiva, velhos e crianças (GUIMARÃES e ALMEIDA apud
ACOSTA; VITALE (org.), 2005, p.129).
Todas essas questões tornam a família vulnerável, sua situação de
penúria e precarização da capacidade de manter atendidos e protegidos os seus
membros.
Nestas circunstâncias, a figura real do pai se distancia da figura
paterna idealizada, destituído que ele está de seu tradicional papel
provedor e protetor. Os filhos perdem a confiança e a esperança não
apenas em seus pais, como – sobretudo e simultaneamente – na
própria sociedade que os desqualifica. As mães, mesmo atuando
como provedoras, têm dificuldades em garantir solitariamente a
unidade e a proteção familiar. Ocupadas, em geral em atividades
subalternas, trazem para casa um ganho que além de insuficiente,
contribui para colocar em questão a capacidade de seus
companheiros de se colocarem no mercado de trabalho
(GUIMARÃES e ALMEIDA apud ACOSTA; VITALE (org.), 2005,
p.129).
Esta representação demonstra como a família pobre é afetada e
dispõe de poucos e precários recursos internos e externos para enfrentamento da
realidade. Soares apresenta uma análise substantiva das características das
98
famílias pobres no Brasil, qualificando e quantificando o que representa a pobreza
nas famílias (SOARES, 2001, p. 180 e 181).
Sawaia (2005) consegue identificar uma esperança diante desta
situação tão caótica colocando que a afetividade na família é uma estratégia de ação
emancipadora que permite enfrentar e resistir a profunda desigualdade social
modelada pelo neoliberalismo (apud ACOSTA; VITALE, 2005, p.39).
Tal afirmação nos permite dizer que os investimentos públicos
tornam-se mais efetivos quando associam à promoção dos direitos elementares da
família o fortalecimento das relações familiares e sociais, a valorização dos laços
familiares e a afetividade entre seus membros. Tal dimensão favorece à família a
recuperação de suas capacidades, possibilitando que seus membros se sintam
fortalecidos e traçarem uma trajetória de vida em condições de dignidade.
2.5.2 - O reconhecimento das capacidades e potencialidades.
É o reconhecimento das potencialidades
37
das pessoas que lhes
daria condições para participarem da vida coletiva e se integrarem aos valores
sociais considerados positivos.
Acreditamos que cada pessoa, tendo a capacidade de se constituir e
se manter, tem também a de se transformar sob a influência do meio ou da estrutura
social.
A existência ou não de oportunidades pode contribuir ou
comprometer a vida das pessoas, ou seja, esta condição favorece a capacidade de
viver em vez de sucumbir. Para Sen (2000), o que as pessoas conseguem realizar é
influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e
por condições habilitadoras como educação básica, incentivo e aperfeiçoamento de
iniciativas.
Entendemos estar aí um dos determinantes na busca de superação
das adversidades, a existência de desejo para dar prosseguimento à sua trajetória
de vida com base na dignidade. A potencialização e valorização das capacidades se
traduzem em oportunidade para idealização de um projeto de vida e de busca de
status social que lhes proporcionem (Sen, 2000) condições de viverem a vida que
37
Potencializar significa atuar, ao mesmo tempo, na configuração da ação, significado e emoção
coletivas e individuais. Pressupõe o desenvolvimento de valores éticos na forma de sentimentos,
desejos e necessidades para superação do sofrimento vivenciado. (SAWAIA, 2004, p. 113).
99
têm desejo de viver.
Essas condições habilitadoras, apontadas por Sen (2000), explicitam
a necessidade de existência de condições reais que oportunizam as pessoas a
viverem em sociedade e de modo digno.
Oportunidades sociais são as disposições que a sociedade
estabelece nas áreas de educação, saúde etc., as quais influenciam
a liberdade substantiva de o indivíduo viver melhor. Essas facilidades
são importantes são importantes não só para a condução da vida
privada (como por exemplo, levar uma vida saudável, livrando-se de
morbidez evitável e da morte prematura), mas também para uma
participação mais efetiva em atividades econômicas e políticas. Por
exemplo, o analfabetismo pode ser uma barreira formidável à
participação em atividades econômicas que requeiram produção
segundo especificações ou que exijam rigoroso controle de qualidade
(uma exigência sempre crescente no comércio globalizado). De
modo semelhante, a participação política pode ser tolhida pela
incapacidade de ler jornais ou de comunicar-se por escrito com
outros indivíduos envolvidos em atividades políticas (SEN, 2000,
p.56).
Os serviços devem favorecer que as pessoas busquem a afiliação
social, desse modo, favorecem condições de superação da pulsão meramente pela
subsistência, para desejarem a pulsão pela vida, ao terem condições de
expressarem seus desejos e afeto.
(...) Todos sentem alegria e prazer com a conquista das
reivindicações, mas nem todos sentem a vitória como conquista da
cidadania e da emancipação de si e do outro, e não apenas de bens
materiais circunscritos (SAWAIA, 2004, p. 105).
Na responsabilidade de um Estado provedor, é necessário que o
mesmo tenha compromisso com a vida das pessoas em sua plenitude, um Estado
que tenha “cuidado” com os seus cidadãos, pois ao se preocupar com os
“sofrimentos” das pessoas, preocupa-se em buscar meios de garantir sua
capacidade de autonomia (condições objetivas e subjetivas). As múltiplas afecções
que atingem os ser humano – corpo e alma – provocam mutilações em suas vidas
de diferentes formas.
As pessoas, muitas vezes, estão despontencializadas do
“conatus”, que representa a força que constitui o desejo e está presente em todas
as coisas. É o impulso vital, esforço de resistência, de apropriação e afirmação
que leva as coisas a perseverarem no próprio ser (ESPINOSA, 1957, p.
141).
100
Costa costuma dizer que, quando o adolescente não tem um projeto
de vida, tudo se restringe ao momento presente. Como não percebe um horizonte
adiante, também não vê razão em cuidar de si ou de se preocupar com os outros.
Percebemos que muitas pessoas se tornam adultos e não conseguiram amadurecer
este olhar para o outro.
Carreteiro (2004, p. 20) coloca que o homem é essencialmente
social e que produz idéias, desejos, sistemas de valores e de normas que
atravessam os sujeitos, e se transformam muitas vezes em projetos a serem
alcançados (apud, SAWAIA, p. 88). Desse modo, podemos e devemos estimular as
pessoas a terem a pulsão pela vida e lutarem para que a tenham em condições de
dignidade.
Traçar uma perspectiva de vida possibilita recorrer ao tempo
passado, refletindo o presente e desejando o futuro. Esta ligação é possível, por
sermos capazes de imaginar, sonhar, elaborar, destruir, abandonar, mas, acima de
tudo, por termos a capacidade de desejar.
Segundo Chauí, Espinosa sublinha que é livre o que age por
necessidade de sua natureza e não por causalidade da vontade
(1999:81) (apud SAWAIA, 2004, 88).
Portanto, evoca ter condições de fazer escolhas e a escolha é
reveladora da maneira como se está sendo no mundo. A potencialização e
valorização das capacidades, auto-estima, um auto-conceito de suas capacidades
permite às pessoas idealizarem um projeto de vida e se sentirem motivadas para a
busca de um status social que lhes proporcionem condições de viverem a vida que
têm desejo de viver.
2.5.3 - A importância da renda, mas principalmente do emprego.
A realização de atividade profissional através de emprego
remunerado garante, segundo (Paugam, 2003), segurança material e financeira,
relações sociais, organização do tempo e do espaço. E, ainda, para o jovem, trata-
se do reconhecimento de seu status de adulto, portanto, de homem e mulher.
Assim, ao emprego remunerado se condicionam todas as dimensões
do êxito social: vida familiar, satisfação das necessidades materiais (PAUGAM,
2003, p. 93).
O anseio de uma posição social mais desejável está ancorado na
101
existência de um trabalho remunerado estável e pelo reconhecimento e aceite da
sociedade como cidadão. Algumas dificuldades se apresentam de forma visível e
concreta dada a pouca expansão de postos de trabalho, à baixa escolaridade e à
qualificação profissional, condições que diminuem as chances de trabalho.
Em sociedades como a nossa, em que o desenvolvimento social está
cronicamente descompassado em relação ao desenvolvimento
econômico, a adaptação da mão-de-obra aos níveis cambiantes da
composição orgânica do capital é muito lenta. Não só em termos de
educação, mas também e sobretudo em termos de ajustamento às
características cambiantes do mercado de trabalho. Há um certo
anacronismo na força de trabalho que deixa um numero crescente de
pessoas em condições descartáveis em face das novas
características do desenvolvimento econômico. É no universo dessas
pessoas que se revigora a cultura do trato e com elas as condições
sociais adversas que propiciam e facilitam o seu recrutamento por
meio de formas não contratuais de trabalho, portanto, para o trabalho
servil (MARTINS, 2002, p. 160).
São inúmeros obstáculos encontrados, frutos das desvantagens que
acompanharam as pessoas durante todo o percurso de sua história, sendo que
algumas impõem limitações severas, na privação de gozar daquilo que gostariam
para a sua vida.
A participação ativa no funcionamento de grupos sociais organizados
é, portanto, uma condição para integrarem-se. Numa sociedade
produtivista, a integração apóia-se sobretudo na atividade
profissional, que assegura, simultaneamente, segurança material e
financeira, relações sociais, organização do tempo e do espaço e
identidade ligada ao trabalho”. É por essa razão que se pode dizer
que o desemprego não é apenas a privação de uma atividade e de
um salário, mas de um status social (PAUGAM, 2003, p. 275).
Talvez seja este um dos motivos dos pais desejarem um outro tipo
de vida para os seus filhos, conforme os relatos das histórias de vida desta
pesquisa. O fato de terem constatado que, por mais que as oportunidades se
fizeram presentes em suas vidas; não foram suficientes para a garantia de todos os
seus desejos, sonhos e expectativas; tiveram que correr contra o tempo para que
alguns outros pudessem ser satisfeitos. À medida que os filhos já nascem e crescem
num outro patamar de vida, aumentam as chances de não repetirem uma trajetória
de privações presente, muitas vezes, na história de vida dos pais, podendo,
inclusive, alcançar uma vida mais saudável e digna.
Segundo Paugam (2003), o êxito quanto à educação e ao futuro dos
filhos determina, então, a dignidade das famílias em situação de precariedade
102
econômica e social (PAUGAM, 2003, p. 246). Acrescenta, ainda, o autor:
Nessas famílias sem posses, o investimento em educação é menor.
Isso não quer dizer que haja um desinteresse por parte dos pais. Ao
contrário, nesses meios desfavorecidos essas crianças são muitas
vezes a única riqueza possível e, certamente, um dos substratos
privilegiados da “realização de si mesmo” (PAUGAM, 2003, p. 241).
A tentativa de tratar aspectos teóricos que iluminam a análise do
contexto da vida dos adolescentes em especial dos adolescentes pobres e em
condição de rua, demonstra a complexidade e a diversidade destes temas. Tornou-
se um desafio organizar conceitualmente aspetos trazidos pelos entrevistados como
explicação para a resiliência presente em suas vidas.
Desse modo, apesar das circunstâncias de que são vítimas, existem
aqueles que se apegam a valores morais como a honestidade, a sinceridade, o brio
e a responsabilidade, sendo esta a condição que os jovens que participaram de
nossa pesquisa buscam vivenciar.
Assim, o equilíbrio na vida, para uns, pode estar na união da família,
na empregabilidade, nas condições básicas de existência. Está na resistência e na
luta, ao fazerem um esforço surpreendente e significativo ao não se sujeitarem a
uma perda progressiva da motivação e estímulo.
A diversidade de temas aqui expostos ainda que sem vencer a
profundidade que lhes é peculiar permitiu a fundamentação da analise realizada a
partir das histórias de vida, assunto do próximo capítulo.
103
CAPÍTULO 3 - (RE)CONSTRUÇÃO DAS CAPACIDADES QUE SUPERAM A
VIDA NAS RUAS
O presente capítulo trata dos aspectos fundamentais sob ótica dos
adolescentes que viveram nas ruas a superaram esta condição. Nesta linha dois
eixos foram aqui apontados: o contexto da política pública desenvolvida em Londrina
no período estudado e as histórias de vida que apontam a trajetória vivida pelos
sujeitos da pesquisa.
3.1 - O contexto da política pública de Londrina para criança e
adolescente
O município de Londrina apresenta um forte protagonismo na luta
pelos direitos de cidadania. Sua história é marcada pela trajetória de pessoas que,
no decorrer do tempo, não mediram esforços para uma participação mais ativa da
sociedade e para a existência de melhores condições de vida e dignidade dos
cidadãos londrinenses.
Dentro os municípios do Paraná, e mesmo do Brasil, fomos
pioneiros na constituição dos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do
Adolescente, Assistência Social e Conselho Tutelar tão logo houve a promulgação
das legislações afetas, afirmando a prerrogativa da importância desses órgãos para
uma participação mais democrática.
Desse modo, o município de Londrina tem mostrado que os
ordenamentos jurídicos, como a Constituição Federal de 1988 – CF 88, o Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA/ Lei Federal n 8.069/90, a Lei Orgânica da
Assistência Social – LOAS/Lei Federal nº 8.742/93 de 07 de dezembro de 1993,
entre outros, configuram-se enquanto proteção jurídico-social aos cidadãos quando
criados instrumentos que os instituam.
O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
instituído em Londrina como posteriomente em outras cidades do Paraná, constituíu-
se em um importante instrumento na defesa de direitos e definidor das principais
diretrizes da política pública para o setor. Como cita Gomide (1992), ao apresentar o
diagnóstico da realidade da cidade.
Este Conselho determinou que um diagnóstico da situação da
criança de rua da cidade de Londrina fosse realizado. (...) viabiliza o
equacionamento dos diversos programas de atendimento, a definição
104
adequada das ações e investimentos do governo municipal, estadual
e da sociedade londrinense, no sentido de dirimir o sofrimento destas
crianças e adolescentes e encaminhá-los a um futuro promissor. (...)
O menino de rua deixa de ser apenas um número, de viver no
anonimato e passa a ter nome, sobrenome e apelido; passa a ter
uma identidade, uma vontade (GOMIDE, 1992, p. 2).
Muitas vezes, o empenho para a consolidação de tais mecanismos
pautava-se na realidade gritante vivenciada no município, decorrente do
empobrecimento e degradação das condições de existência da população.
Tendo em vista que a década de 1980 foi marcada por um profundo
agravamento na situação social da maioria da população brasileira,
em Londrina não foi diferente, uma vez que atualmente a condição
social dos londrinenses aponta, entre outros indicadores, 11 mil
famílias recebendo até 1 salário mínimo, déficit de emprego superior
a 50 mil vagas, sendo que 10 mil estão efetivamente
desempregados, uma população favelada em torno de 18 mil
pessoas, e uma população indigente de 20 mil famílias (LONDRINA,
1993a, p. 191).
Na década de 90, como reflexo do cenário nacional, vivencia-se, em
nível local, a deterioração das condições sócio-econômicas, o aumento do êxodo
rural, o aumento do desemprego e a ausência de perspectivas de um futuro melhor.
(...) o processo de crescimento londrinense, a exemplo do ocorrido a
(sic) nível estadual e nacional, ainda que quantativamente notável
(...), tem traços indesejáveis: a desproporcional distribuição dos
benefícios e ônus do crescimento, o caráter expulsor da mão-de-
obra, a violência e criminalidade, o desemprego, a indigência e a
fome, entre outros (LONDRINA, 1993a, p. 197).
Os problemas sociais vivenciados nem sempre foram tratados com a
devida importância nem assumidos como responsabilidade do Estado. A visão
dominante pautava-se na compreensão da condição de pobreza como um problema
individual e não reflexo da própria forma de organização da sociedade.
Desse modo, a população padecia da devida assistência, limitada
pelo acesso e oferta de bens e serviços que favorecessem a promoção da dignidade
dos cidadãos em condição de vulnerabilidade.
O trabalho de Ação Social em Londrina, ao longo dos anos, tem se
utilizado do clientelismo e do assistencialismo como forma de
abranger os conflitos. Com isso, perpetua a situação de miséria da
mesma população já socialmente excluída dos bens e serviços que o
município deveria prestar. (...) Meninos e meninas de rua e menores
infratores: as iniciativas são, ainda, mais insuficientes (LONDRINA,
1993a, p.135).
105
A Assistência Social, na administração municipal, tem pouca
inserção para a mudança da realidade, dada a quase inexistência de serviços
governamentais para atendimento da demanda existente.
Das 50 Creches existentes no município, apenas duas são públicas.
(...) Há cinco outras entidades sociais de atendimento às crianças e
adolescentes, em regime de internato, todas de natureza filantrópica,
cujo número de atendimento chega a 592. (...) Os dados ainda
demonstram que do total de serviços ofertados na área de
profissionalização, menos de 4% são totalmente públicos, os demais
recebem subsídios da Secretaria da Ação Social do Município
(LONDRINA, 1993a, p. 137).
O quadro abaixo demonstra um alto grau de institucionalização, o
que confronta com o que define o Estatuto da Criança e do Adolescente, que se
encontrava em vigor desde 1990, por utilizar a denominação de internato,
concentrando um elevado número de crianças. O ECA determina que o atendimento
deveria ser realizado por serviços de abrigo, com número reduzido de crianças em
unidades que se aproximassem às características de uma residência comum de
família. Para complementar, a baixa ou quase nula atuação do município em
serviços de atenção à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade
decorrente das condições de vida a que suas famílias são submetidas, conforme
demonstrado, contrariava também os artigos 203 e 227 da Constituição Federal, que
prescreve que deve ser dada prioridade absoluta ao público infanto-juvenil.
TABELA 1 - ENTIDADES SOCIAIS PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES,
LONDRINA-PR, 1993.
TIPO NATUREZA FAIXA
ETÁRIA
Nº DE
ENTIDADE
ATENDIMENTO
Internato Filantrópica 0 a 14 anos 2 43
Internato Filantrópica 0 a 18 anos 2 417
Internato Filantrópica 2 meses a 10
anos
1 32
TOTAL 5 592
Fonte: LONDRINA, 1993, p.136.
Dessa forma, a cidade contava com Abrigos sob moldes antigos e,
ao se modificarem, pelo menos até meados dos anos 90, para adequar-se às
propostas do ECA, nem sempre representavam espaço de acolhimento. Ao
contrário, em alguns casos, expulsavam as crianças que se tornavam moradores de
rua.
A população sentia a deficiência e precariedade dos serviços,
106
conforme pôde ser constatado na pesquisa realizada junto à população em julho de
1993, que indicava como os principais problemas enfrentados pela população,
desemprego (42%); fome (23%); crianças e adolescentes nas ruas 21 (%) e número
de moradias insuficientes (14%). A pesquisa foi realizada nas regiões do município
de Londrina e, em todas elas, manteve-se a mesma ordem dos problemas
(LONDRINA, 1993a, p.139).
Os dados acima demonstraram a necessidade de uma gestão
direcionada ao desenvolvimento sustentável, uma vez que a ordem de problemas
apontava para o acesso às necessidades elementares da pessoa, como o emprego,
relacionado com o poder de acesso à renda; a subsistência; apontada pela ausência
de alimento e, posteriormente, a preocupação da sociedade com as crianças e
adolescentes que se encontravam à margem e excluídas de qualquer tipo de
atenção do poder público municipal, sendo que representavam o futuro da cidade.
Dessa forma, o cenário local demandava a necessidade de definição
de ações do governo municipal para além da cultura assistencialista ou repressora
e, principalmente, com o compromisso de cuidado e proteção da infância e
adolescência.
Os meios de comunicação retratavam, a seu modo, a situação de
ineficácia das políticas públicas na garantia da devida atenção à população em
situação de pobreza.
Pelas manchetes dos jornais, percebia-se que boa parte da
sociedade cobrava a resolução dos problemas sociais, tornando-se evidente que as
políticas desenvolvidas, tidas como compensatórias, excludentes e seletivas,
geravam não-cidadãos, que buscavam ocupar espaços de afirmação e resistência
(bolsões de pobreza, permanência nas ruas, violência) diante da luta pela
sobrevivência.
Dessa forma, as manchetes dos jornais apontavam:
“Casa do Caminho amontoa 25 crianças em 7 colchões
38
”.
“Sem abrigo, crianças se amontoam nas calçadas para fugir do
frio
39
”.
“Pastoral começa a trabalhar com menor carente na própria rua
40
”.
38
FOLHA DE LONDRINA,17/02/83, p. 5.
39
FOLHA DE LONDRINA,13/07/85, p. 4.
40
FOLHA DE LONDRINA, 30/11/86, p. 6.
107
“Dos maiores problemas, o menor é para Londrina
41
”.
“Lugar de menor carente ainda é na rua
42
”.
“Menores livres e sem direitos
43
”.
“Menores sonham com uma casa, mostra pesquisa
44
”.
“Meninos de rua acabam com a paz da Saul Elkind
45
”.
“Menores de rua usam casa abandonada como abrigo
46
”.
“Ação Social retém recursos pra (sic) os menores até agosto
47
”.
“Londrina tem 200 menores vivendo nas ruas
48
”.
“Em Londrina: menor delinqüente compõe paisagem urbana
49
”.
“Menores de Rua são uma bomba relógio
50
”.
“Guerra dos meninos: Menores aterrorizam Londrina
51
”.
Mesmo diante de todas as reservas feitas à mídia pelo modo
pejorativo com que, em algumas circunstâncias, utiliza-se das tragédias humanas
para sua promoção, não há como desconsiderar que, pelas “chamadas” dos jornais,
a situação segue um percurso histórico e cronológico de descuido, de destrato, de
ausência e, principalmente, de agravamento da situação vivenciada pelos meninos e
meninas.
Um fato teve grande repercussão e notoriedade no município, tendo
como cenário as ruas centrais da cidade e como atores principais crianças e
adolescentes que faziam da rua seu espaço de vivência. Desafiaram a estrutura
organizacional da sociedade e, se não bastasse a permanência nas ruas, em um
determinado dia, provocaram grande tumulto. O grupo ameaçou a “harmonia” com
que, costumeiramente, a sociedade estava acostumada a conviver com os
denominados “meninos de rua
52
”.
41
FOLHA DE LONDRINA, 24/03/90, p. 5.
42
FOLHA DE LONDRINA,30/12/90, p. 4.
43
O ESTADO DO PARANÁ, 24/03/91.
44
FOLHA DE LONDRINA, 23/10/91.
45
FOLHA DE LONDRINA,13/02/92, p. 6-A.
46
FOLHA DE LONDRINA, 04/04/92, p. 4-A.
47
FOLHA DE LONDRINA, 04/07/92, p. 4-A.
48
JORNAL DE LONDRINA,11/07/92, p. 4-A.
49
O ESTADO DO PARANÁ, 23/10/92, p. 3.
50
CORREIO LONDRINENSE, 25/10/92, p. 12.
51
CORREIO LONDRINENSE, 30/10/92, p. 13.
52
Cada vez mais, as políticas públicas de assistência à criança e ao adolescente em situação de rua
têm se confrontado com o agravamento das condições em que essa população se encontra nos
grandes centros urbanos do país. (...) Por situação de rua entende-se aqui o uso do espaço da rua
por crianças e adolescentes como local privilegiado de vivência, seja através de atividades de
subsistência, lazer e/ou moradia, independente de outros vínculos familiares ou escolares(LESCHER;
108
O fato aconteceu em outubro de 1992 e foi denominado “arrastão”,
expressão designada em comparação aos movimentos que vinham acontecendo em
São Paulo e Rio de Janeiro.
Foi um movimento rápido, mas significativo, houve muita gritaria,
quebra-quebra, apedrejamento de pessoas e lojas do comércio, era uma reação em
cadeia. Em um período de 12 horas, a Polícia Militar recebeu 76 chamadas referente
ao fato (LONDRINA, 1994a, p. 2).
As conseqüências foram trágicas - adolescentes machucados pela
ação da polícia, comerciantes e comunidade com medo pela proporção da situação,
os prejuízos dos estabelecimentos comerciais, entre outras situações.
Com a cidade atônita, o assunto torna-se pauta, conseguindo reunir
os mais diversos atores que compunham o cenário local, como comerciantes,
lideranças comunitárias, autoridades religiosas, governo local, segurança pública
que, em meio à troca de acusações, buscavam identificar algumas alternativas para
a situação provocada pelas crianças e adolescentes em situação de rua.
A política repressiva com respeito à vagabundagem representa a
solução para uma situação que não comporta solução. Castel (2003) questiona: Que
fazer com indivíduos que suscitam problemas inextricáveis, por não estarem em seu
lugar, mas que não têm, em parte alguma, um lugar na estrutura social? (CASTEL,
2003, p. 136).
Talvez um dos motes a ser debatido para pensar em alternativas a
essas crianças e adolescentes seria: Que motivações teriam para arranjar uma outra
maneira de viver?
É neste contexto que a cidade reconhece a existência de meninos e
meninas que faziam da rua seu espaço de afirmação e reconhecimento. Há anos,
crianças e adolescentes viviam pelas ruas, esmolando, furtando, sendo explorados
sexualmente e cometendo atos infracionais. E, conforme apontam os documentos
oficiais, os meninos e meninas “resistiam à assistência tradicional” (LONDRINA,
1994a, p. 2).
Fica evidente, neste período, que o atendimento estava aquém das
necessidades que apresentavam crianças e adolescentes, portanto, tornava-se, até
então, mais fácil ignorá-los e condená-los do que propor alternativas à realidade
et al, 1999)
109
vivenciada. Segundo Castel (2003), a condenação do vagabundo é o caminho mais
curto entre a impossibilidade de suportar uma situação e a impossibilidade de
transformá-la profundamente.
A imprensa novamente traz nas manchetes a interpretação que faz
daquele momento, chamando a atenção da cidade para o fato:
“Arrastão é um Alerta para prefeito
53
”.
“Guerra dos meninos: Menores de rua aterrorizam Londrina
54
”.
“Baderna: Menores depredam lojas em Londrina
55
”.
“Adolescentes com fome atacam lojas
56
”.
“Londrina ainda assustada com menores
57
”.
As omissões e transgressões, que violentam a sua integridade e
desviam o curso de sua evolução pessoal e social, exprimem-se nas
mais diversas formas de conduta divergentes ou mesmo antagônicas
à moralidade e à legalidade da sociedade que o marginalizou
(COSTA, 2001, p. 21).
Uma das situações provocadoras da reação das crianças e
adolescentes era o fechamento do o albergue no qual dormiam e isso já se configura
motivo suficiente para uma reação imediata e agressiva. Soma-se, ainda, o consumo
abusivo de substâncias psico-ativas, e a própria fase da vida em que se
encontravam – adolescência - que reconhecidamente é marcada pela busca de
enfrentamento, desafio e conflito com o poder.
Numa das reuniões para discussão da situação, conforme
documento Londrina Cidade Criança, os questionamentos se faziam presentes:
“Se há tantas entidades assistenciais, por que continua a haver
crianças de rua?” (LONDRINA, 1994a, p. 3).
Tal questionamento reafirmava que as estruturas existentes não
conseguiam corresponder aos desafios da realidade vivenciada.
Tinha-se, portanto, a necessidade de um novo arranjo
organizacional que correspondesse às exigências dos novos tempos, seja pela
forma como a conjuntura local se apresentava, seja pelo cenário de constituição de
direitos que o Estatuto da Criança e do Adolescente proclamava e, ainda, pela
53
CORREIO LONDRINENSE, 30/10/92, p. 7.
54
CORREIO LONDRINENSE, 30/10/92, p. 13.
55
FOLHA DE LONDRINA, 30/10/92.
56
JORNAL DE LONDRINA, 30/10/92.
57
FOLHA DE LONDRINA, 31/10/92, P. 5.
110
proposta do governo que assumiu a administração local em 1993.
Novamente podem ser destacadas manchetes de jornais
demonstrando que a questão das crianças e adolescentes ainda se fazia presente
enquanto pauta para a sociedade:
“Polícia alerta contra meninos de rua
58
”.
“Mesa-Redonda define situação do menor
59
”.
“Menores viram nômades em Londrina
60
”.
“Menores de Londrina continuam na rua
61
”.
“Menores foram recolhidos no MEPROVI, mas fugiram
62
”.
“Menino de rua: Busca de solução volta a ser debatida
63
.”
Neste contexto, em 1993, assumiu o governo municipal o Partido
dos Trabalhadores, deparando-se com a realidade em que se encontrava a
população em situação de pobreza, principalmente crianças e adolescentes em
situação de rua.
O plano de governo apresentava os princípios norteadores sob os
quais deveriam ser pautadas as ações da administração municipal: a)
democratização do poder (estimulando, ampliando e assegurando a participação nas
decisões, estimulando a organização autônoma e independente da população e sua
auto-gestão e descentralização do poder); b) resgate da cidadania em todos os seus
níveis e formas; redução das desigualdades, combate à miséria e à deterioração das
condições sociais; articulação das demandas locais às questões nacionais e
internacionais; c) planejamento democrático do espaço urbano e rural, invertendo as
prioridades até aqui conhecidas; d) gerenciamento e estruturação da cidade como
um grande ecossistema; e) favorecer aos cidadãos o acesso às informações e
desenvolvimento de ações e experiências individuais e coletivas, que apontem para
uma nova ordem social, cultural, ética e moral (PLANO DE AÇÃO DE GOVERNO
PARA LONDRINA NAS ELEIÇÕES DE 1992).
Os princípios indicavam a intenção de uma gestão democrática
popular:
58
FOLHA DE LONDRINA, 04/11/92, p. 06.
59
FOLHA DE LONDRINA, 06/11/92.
60
CORREIO LONDRINENSE, 08/11/92, p. 7.
61
O ESTADO DO PARANÁ, 15/11/92, p. 20.
62
JORNAL DE LONDRINA, 19/11/92, p. 8.
63
FOLHA DE LONDRINA, 20/11/92, p. 7.
111
Dimensionar o tempo da gestão com as possibilidades do fazer,
compatibilizar as demandas com a capacidade de respostas,
considerar os processos diferenciados de maturação das
proposições e ações e a paciência histórica pra uma construção
coletiva, constituem alguns desafios na construção de uma gestão
que se pretende democrática e radical no compromisso com os
princípios de cidadania e direitos universais (LOPES, 1999, p. 135).
A partir de desses propósitos de governo, era possível vislumbrar
uma perspectiva de maior reconhecimento do Estado de suas responsabilidades
com os cidadãos.
No Planejamento Estratégico realizado pelo governo municipal, a
criança e adolescente em situação de vulnerabilidade nas ruas foram assumidas
como prioridade:
“Investir na criança é o melhor destino para os recursos públicos, e é
o que a Prefeitura de Londrina faz com prioridade, dedicação e eficiência (...)”.
Prefeito Luiz Eduardo Cheida (LONDRINA, 1994a, p. 1).
Dessa forma, a área social ganha no formato e estrutura, a
Secretaria de Ação Social, criada em dezembro de 1991(Lei municipal nº 4.910 de
26/12/91) que passa a funcionar a partir de janeiro de 1993. O órgão responsável
pela Política Municipal de Assistência Social, até então, encontrava-se vinculado ao
Departamento da Autarquia Municipal de Saúde, não cumprindo o estabelecido pela
Constituição Federal de 1988, capítulo II, art. 194, que a definiu como política social
básica, no mesmo patamar da saúde e previdência, formando, assim, o chamado
tripé da Seguridade Social.
Na Assistência Social, que em Londrina, se caracteriza pela
prestação de serviços da rede privada e filantrópica, com quase total
ausência do Poder público, muito embora recém-criada Secretaria de
Ação Social tenha procurado oferecer alguns atendimentos, a grande
questão é buscar uma forma de estabelecer prioridades e criar uma
receita que tornem os serviços menos seletivos e mais universais e
descentralizados. Neste sentido, faz-se necessária a criação de um
Conselho Municipal de Assistência Social, capaz de formular
diretrizes e políticas para o setor (LOPES, 1999, p. 141).
A Assistência Social, ao mesmo tempo em que tem na
administração municipal a instituição de um órgão gestor na condução da política
pública de Assistência Social, no âmbito federal passa a contar com a Lei Orgânica
de Assistência Social – LOAS, lei n 8.742, que atribui um novo ordenamento jurídico
e institucional à Assistência Social, nos três níveis de governo.
112
Segundo Lopes “A nova política exigia nova estrutura, novas
atitudes e habilidades” (LOPES, 1999, p. 142).
O propósito de mudança tem, no artigo 5 da LOAS, que trata da
primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de Assistência
Social em cada esfera de governo, a base para a constituição de novos patamares
para a política pública de Assistência Social.
Dessa forma, as ações desenvolvidas pelas entidades não-
governamentais constituem-se prioridade da gestão, buscando-se instituir uma rede
de serviços de Assistência Social pública, o que denotaria uma nova relação com as
entidades sociais filantrópicas.
No atendimento direto à criança e adolescente em situação de
vulnerabilidade nas ruas, embora não deva ser a Assistência Social a única e
exclusiva política a viabilizar a garantia de direitos para esse público, cumpriu um
importante papel no direcionamento e articulação com as demais políticas para o
atendimento a tais sujeitos historicamente desassistidos pelo Estado.
Dessa forma, a Secretaria de Ação Social implantou serviços de
abordagem e atendimento direto nas ruas às crianças e adolescentes que se
encontravam em situação de rua, atendimento sócio-educativo em vários pontos da
cidade, Serviço de Abrigo direcionado especificamente a esse público,
profissionalização e encaminhamento ao mercado de trabalho.
Fica evidente o reconhecimento das crianças e adolescentes em
situação de rua como cidadãos nas colocações da Secretária de Ação Social, Márcia
Lopes :
(...) eles são pequenos cidadãos e, se podem enfrentar a vida nas
ruas, podem também tomar suas próprias opções.
(...) lutamos num terreno minado pela miséria, da qual as crianças de
rua são apenas conseqüência.
(...) lutar, integrando poder público e entidades em programas
conseqüentes, com liberdade, oportunidades e responsabilidades
para os pequenos cidadãos. Nessa luta, todos podem ajudar,
simplesmente combatendo o rancor e os preconceitos contra eles,
que assim já estarão facilitando muito para que aconteçam as
mudanças (LONDRINA, 1994a, p. 4).
Percebe-se, em tais afirmações, que o que se pretendia era de fato
cumprir o que determinam as legislações afetas ao público infanto-juvenil, no
reconhecimento como sujeitos de direitos, respeitando sua dignidade e liberdade,
113
condição peculiar de desenvolvimento necessitando serem cuidadas e protegidas
por adultos.
Na política de Assistência Social implantada, destacam-se como
diretrizes para as ações voltadas ao atendimento da criança e do adolescente, a
defesa dos direitos prescritos no ECA, a oferta de serviços voltada à necessidade
dos sujeitos, superando a prática institucionalizadora, o envolvimento da família e
comunidade, a articulação com a rede não governamental e a proposição de uma
política regional para a área.
Dessa forma, reconhecendo experiência e vínculo com as crianças e
adolescentes em situação de rua, a Secretaria de Ação Social, em 14/01/1993,
busca no Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – M.N.M.M.R - uma
parceria para a implantação do primeiro serviço para atendimento a esse público
(LOPES, 1999, p. 131;142).
Estava deflagrado o início da atuação intersetorial das políticas, a
articulação com uma organização não governamental e a definição do segmento
criança e adolescente como prioridade de atenção da política de Assistência Social
do governo municipal.
A interface entre as políticas era uma decisão de governo, buscando
cumprir o estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (lei federal
nº 8069/90), conforme pode ser confirmado pela fala do então prefeito Cheida em
reunião com o secretariado: “Criança e Adolescente é prioridade em nosso governo,
por isso, é preciso que todas as áreas e secretários participem e colaborem com a
Secretaria de Ação Social” (LOPES, 1999, p. 132).
Era janeiro de 93, e eram os 32 meninos e meninas do quebra-
quebra de outubro, concordando em sair da rua para dormir em
casa-albergue, desde que com liberdade. Mas com normas que
discutiam junto com os educadores de rua, profissionais que primeiro
tinham ganhado a confiança deles nas ruas, com apoio e
compreensão. E pela primeira vez em anos, começaram a ter aulas,
recreação, refeições regulares.
(LONDRINA, 1994a).
Cerca de 32 crianças e adolescentes em situação de rua passam,
então, a contar com uma equipe composta por treze pessoas – assistente social,
psicólogo, pedagogo, terapeuta ocupacional, educadores de rua, médico pediatra e
auxiliares. Além disso, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
114
Adolescente é coadjuvante neste processo, à medida que os projetos estruturados
na área infanto-juvenil são discutidos, aprovados e cadastrados neste órgão,
responsável pela condução da política municipal para este segmento da população
londrinense (LONDRINA, 1992).
O primeiro serviço de atenção a esse público se intitulava PROJETO
– “Meninos e Meninas de rua Pequeno Trabalhador”, tendo como objetivo geral -
Atender integralmente a criança e adolescente desassistido das políticas sociais
básicas e em situação de risco pessoal e social. (LONDRINA, 1993b, p. 4) – como
objetivos específicos, visava oferecer atividades alternativas relacionadas à
educação, lazer, cultura, recreação, esporte; garantir o acesso às políticas públicas;
prestar atendimento social às famílias; construir, em conjunto com as crianças e
adolescentes, estratégias de superação da condição em que se encontravam.
Propunha, ainda,: o conhecimento da realidade; avaliação permanentemente da
proposta desenvolvida e promover a formação dos profissionais engajados no
projeto. Para tanto, várias órgãos são envolvidos, como Secretaria Municipal de
Educação, Cultura, Obras, AMETUR, SETA, Universidade Estadual de Londrina,
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar e
entidades não governamentais.
Compunha o Projeto “Meninos e Meninas de rua Pequeno
Trabalhador” o Projeto de Proteção Especial, destinado a crianças e adolescentes
sem vínculos familiares, institucionais e usuários de droga. Proteção especial
compreendia, portanto, a intervenção com grupos de crianças e adolescentes que se
encontravam em circunstâncias especialmente difíceis, ou seja, aqueles em situação
de risco pessoal e social.
Dessa forma, o Projeto de Proteção Especial integrava dois serviços:
o de Abordagem de Rua e o de Casas Abrigo. O Projeto define o caráter de
atendimento das Casas Abrigo como transitório para cumprimento do objetivo, que é
o retorno à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes
atendidos.
Nesse sentido, o objetivo geral se expressa em prestar atendimento
integral às crianças e adolescentes em situação de risco, favorecendo o
fortalecimento dos vínculos familiares, o acesso e permanência no ensino regular, a
superação da dependência de substâncias psico-ativas e a profissionalização, ações
integradas à rede de serviços existentes (LONDRINA, 1994b).
115
Posteriormente, o Projeto foi implementado, transformando-se no
PACA – Programa de Atenção à Criança e ao Adolescente – programa mais
abrangente - que trazia como diretrizes a garantia da defesa dos direitos da criança
e do adolescente conforme as definições do ECA; a oferta dos serviços em
conformidade com as necessidades do público alvo e busca de superação da
perspectiva tradicional de cunho institucionalizador; envolvimento da família e
comunidade nos projetos de atenção à criança e ao adolescente; articulação com a
rede de atendimento a esse público; a busca de articulação para formulação de
política regional de atendimento à criança e ao adolescente.
O PACA era composto por dois sub-programas, um direcionado à
primeira infância e outro que aglutinava os programas considerados de proteção
especial, compreendendo cinco projetos: Educando, Brincando e Formando
Cidadãos – atendimento sócio-educativo descentralizado nos bairros; Sinal Verde –
abordagem de rua; Abrigo – atendimento em regime de moradia; NAPS - Núcleo de
Atendimento psicossocial; Programa de Encaminhamento ao Trabalho e à Escola.
3.1.1- Estruturação dos serviços governamentais e não governamentais
Os serviços voltados à criança e adolescente em situação de rua,
especificamente o serviço de Abrigo municipal correspondem ao modelo instituído a
partir da lei nº 8069/90 que humaniza e apresenta de forma mais personalizada os
serviços destinados às crianças e aos adolescentes que apresentam ruptura e/ou
fragilização dos vínculos familiares e comunitários.
Dessa forma, 32 crianças e adolescentes do “arrastão” de outubro
são convidados, em janeiro de 1993, a participarem do Abrigo e da definição das
suas normas, junto a educadores que, primeiramente, trabalharam com eles nas
próprias ruas, estabelecendo uma relação de confiança e respeito.
Inicialmente, o M.N.M.M.R. realizava atividades educativas e
esportivas no “Zerão
64
”, durante o dia,com as crianças e adolescentes em condição
de vulnerabilidade nas rua. Um mês após, foi inaugurado o primeiro serviço público
de Abrigo direcionado a esse público. Foram compostos grupos de profissionais que
atuariam nas ruas e outro no Abrigo. As equipes tinham a supervisão de um médico
psiquiatra, que contribuía para a consolidação do atendimento pela administração
64
Espaço de referência da cidade, área aberta, utilizado para atividades de esporte, recreação e
lazer.
116
municipal.
As crianças e adolescentes envolvidos com o projeto receberam
atendimento social e psicológico, foram encaminhados à profissionalização, ao
ensino regular, desenvolveram atividades esportivas e, quando possível, retornavam
ao convívio familiar.
“(...) o objetivo final é que estas crianças e adolescentes recuperem
seus direitos de tutela familiar, de acesso à escola, ao trabalho, aos serviços sociais
e à vida comunitária” (LONDRINA, 1994a, p. 3).
Dessa forma, os procedimentos metodológicos envolviam os
seguintes momentos: o primeiro tratava da abordagem sob a perspectiva da criação
e fortalecimento de vínculos entre educador e educando; apresentação de proposta
alternativa à permanência nas ruas; atendimento a necessidades básicas e
desenvolvimento de atividades sócio-educativas. O segundo momento compreendia
a inserção no serviço de Abrigo, sob o acompanhamento do educador, assistente
social e psicólogo, realizando atendimento psico-social às famílias; encaminhamento
e inserção nas políticas de educação, saúde, além da profissionalização. O serviço
define como estratégias a garantia de condições objetivas que envolvem o Abrigo; o
atendimento psico-social individual e grupal; atendimento esportivo, lúdico e cultural;
o encaminhamento aos serviços especializados e a integração com a rede de
serviços sócio-jurídicos (LONDRINA, 1993b, p. 1;5).
A Secretaria Municipal de Cultura implantou o projeto Crianças de
Rua
65
, visando somar o atendimento a esse público.
As mudanças empreendidas na visão, condução e prática puderam
ser constatadas até na postura de outros atores, quando um soldado da Polícia
Militar colocou, conforme documento Londrina Cidade Criança:
“Pela primeira vez, eu não era chamado para prender, mas para
proteger aquelas crianças. Aí eu senti que as coisas estavam mudando.” (1994a,
p.5)
O caminho para a mudança estava definido, exigindo empenho,
compromisso e efetividade. Mas para que as novas perspectivas se
estabelecessem, o governo demonstrou concretamente o investimento no social.
Dessa forma, a Secretaria de Ação Social contava, no início da administração, com
65
LONDRINA,1993a, p. 154.
117
um quadro de 45 funcionários para operacionalizar suas ações; em março de 1994,
eram 145; destes, 101 voltados para o atendimento à criança e ao adolescente. Para
suporte das ações, o orçamento destinado à Assistência Social era de 4,9% do
orçamento total da prefeitura, considerado o “maior investimento social da história de
Londrina até o momento” (LONDRINA, 1994a, p. 13).
É importante destacar que o serviço foi implantado para atendimento
a todas as crianças e adolescentes em condição de rua e que necessitavam de
apoio.
Percebe-se que os pressupostos colocados pela CF 88, pelo ECA e
pela LOAS podem e devem ser assumidos pelo Estado. Mas de que tipo de direito
estamos falando? De todos, desde o mais elementar:
O direito à vida é uma prerrogativa fundamental da humanidade que
nenhuma sociedade pode transgredir, pois o que está em jogo é sua
própria unidade: “Em todo lugar em que existe uma classe de
homens sem subsistência, existe uma violação dos direitos da
humanidade e o equilíbrio social é rompido (CASTEL, 2003, p.243).
Sem dúvida, o investimento no capital humano é uma das maiores
heranças que o Estado pode reservar a seus cidadãos, o que exige colocar em
curso uma prática que combata as formas perversas de anulação das pessoas
enquanto não-cidadãos, construindo uma nova cultura de Estado, de
desenvolvimento e de sociedade.
3.2 - A superação da vulnerabilidade nas ruas sobre o olhar de quem
viveu a história
A difícil tarefa de concretizar respostas afirmativas e propositivas
para as políticas públicas que atuam com a infância e juventude reiterou nossa
posição de construí-las a partir do conhecimento e vivência dos que foram usuários
destas políticas. Dois aspectos foram aqui enfocados - o primeiro constituiu-se em
voltar a análise para os aspectos positivos a fim de que os mesmos possam ser
conhecidos, reforçados e aprimorados; o segundo trouxe à tona, ou mesmo à luz da
academia, a expressão da vida articulada ao campo do chamado conhecimento
científico. O caminho metodológico utilizado foi a história de vida, o que possibilitou
a expressão e o registro de experiência humana dos adolescentes sujeitos desta
pesquisa.
As falas do(a)s jovens que participaram desta pesquisa são cheias
118
de motivações, descrições de situações e de sentimentos, nos fazendo-nos refletir o
quanto as palavras, atos e atitudes têm impacto sobre a vida das pessoas, muitas
vezes, sob a forma de intervenção social, correspondendo ou não às necessidades
e expectativas da pessoa.
Nas histórias de vida, foi possível identificar sinais que apontam para
determinados fatores que contribuíram para a superação da condição de
vulnerabilidade nas ruas. Os vínculos pessoais e sociais são fatores identificados
como preponderantes por perpassarem toda a dimensão dos aspectos que
compõem e marcarem a vida de desses jovens, contribuindo significativamente para
a decisão de assumir um outro modo de viver. Neste novo modo de viver, também
pudemos identificar a preocupação com o futuro, com a estabilidade de vida e com
reconhecimento social. Trata-se do desejo de viver dignamente, enquanto condição
que eleva um status social, compreendendo ser esta uma das condições que
favorece a prevenção de condições de vulnerabilidade, a eles e aos membros da
família.
3.3 - As histórias de vida
3.3.1 - A história de Jonas
Jonas tem, atualmente, 24 anos, estudou até o 3º ano do 2º grau,
tem dois filhos, o primeiro, fruto do relacionamento com sua primeira esposa e, o
segundo, com a atual companheira. Jonas tem estatura mediana, anda sempre bem
alinhado, é um belo jovem.
Primeiramente, por telefone, foi estabelecido contato com Jonas,
que se mostrou receptivo ao ser convidado a participar da pesquisa. A entrevista foi
realizada na cozinha da ONG na qual trabalha.
Iniciei informando sobre a pesquisa e a importância da entrevista
para os objetivos propostos. Era a primeira entrevista, tinha grande expectativa com
relação ao resultado que ela provocaria.
Jonas foi muito colaborador, é educado, gentil, além de uma
excelente comunicação. Também é meigo e se considera sentimental. A
permanência nas ruas não o fez perder a sensibilidade. Foi para a rua aos 14 anos,
já adolescente.
As primeiras palavras de Jonas estavam bem elaboradas, parecia
119
querer concatenar palavras e idéias.
Pergunto como contaria sua história de vida.
A história é a seguinte: nasci em vinte e um do sete, não é do treze,
apesar de estar no registro, de mil novecentos e oitenta. São dois
meses aí...tudo... Não conheci meu pai. Só através do que minha
mãe fala e do que eu sei. Dizem que está numa cadeira de rodas em
São Paulo. Junto com minha mãe e com os meus irmãos, passamos
o pão que o... bicho amassou. Morávamos de aluguel na Vila Yara,
numa casa toda...chovia dentro tudo.. Tivemos um amparo de umas
irmãs da Igreja da Nossa Senhora de Fátima, que nos colocou na
creche pra minha mãe trabalhar e que foi onde conseguiu uma casa
pra nós onde eu moro hoje, no Jardim Novo Perobal. E ali, nesse
Jardim não tinha água, luz, não tinha nada. E tudo que fosse de ruim
eles tinham prá oferecer, mas de bom não tinha!
Risos.
Jonas se refere às péssimas condições de habitação existentes no
Jardim no qual foram residir. Continua a contar sua história.
Lança um sorriso no canto da boca.
As palavras de Jonas reforçam a análise de Castel (1998) quando
diz que as pessoas são colocadas em situação de flutuação na estrutura social,
tendo dificuldade de encontrar um lugar, dependendo, muitas vezes, da intervenção
de terceiros para sua alocação nesta estrutura. As desvantagens se acumulam,
conduzindo as pessoas a viverem na precariedade das necessidades básicas e
elementares à sobrevivência. Essa condição pode gerar insatisfação e até mesmo
desilusão. As relações de proximidade existentes no território podem se tornar
insuficientes para assegurar a devida proteção aos indivíduos. No caso de Jonas,
nesta ocasião, o vínculo afetivo contribuiu para a decisão de rompimento do modo
de viver sob o efeito de substâncias psico-ativas.
Pergunto o que o levou à rua.
O motivo foi .... Eu não fui influenciado.
É enfático nesta colocação.
Foi para saber como era. Eu posei um dia na rua e tal. Depois desse
dia, eu fui tomando gosto de posar outras vezes, outras vezes. Até
que eu fiquei definitivamente. Aí, por eu ter posado o primeiro dia, a
minha mãe já começou a falar, falar ... Foi onde eu comecei a trocar
diferenças com ela. Achava que ela tava errada, não sei o quê, não
sei o quê ... Fui achando motivos para quando eu voltasse, ficasse
definitivamente. Foi aonde eu consegui. Não foi por causa da minha
mãe ser ruim, é porque eu queria liberdade. (...) eu não tinha tanta
experiência. Eu conhecia alguns que já estavam na rua. Daí, por eu
120
conhecer, foi o motivo de eu ter ficado mesmo na rua também.(...)
Porque os colegas mesmo de bairro, estavam na rua também. Tinha
uns três ou quatro que a gente andava junto porque a gente
engraxava na época, eles também estavam todos juntos conosco.
Pela fala de Jonas, percebemos que o vínculo com a rua ocorre por
aproximações, o que demonstra a necessidade da intervenção permanente, de
modo a reverter a situação inicial instalada com a descoberta do novo. Na
adolescência, conforme tratado no capítulo anterior, os momentos e descobertas
parecem ser únicos, dando sentido à existência. O novo pode exercer um fascínio
impressionante, oferecendo diversas opções que tornam a pessoa mais suscetível e
vulnerável. Outro aspecto a ser observado é a dificuldade da família em lidar com a
situação, o que fragiliza a relação, impulsionando o ir para a rua.
Nesse processo de transformação e busca, o (a) adolescente passa
por uma das fases em que procura outras presenças, “indo ao encontro de outros
que estejam vivenciando a mesma situação. Jonas confirma as colocações de Costa
(2001) parecendo estar à procura dos bens perdidos; uma busca desorientada,
errática, que chega até a ignorar as leis e convenções morais que já pouco ou nada
lhe dizem.
Pergunto se encontrou a liberdade que procurava.
Em partes... Achei liberdade, mas não a que eu queria. Mas,
digamos que foi bom pra mim aprender. Aprendi muita coisa.
A liberdade parece ser um pano de fundo diante dos desejos e
necessidades que envolvem o ser adolescente.
Ao ir para a rua, pergunto se deixou alguma coisa para trás.
Larguei meus estudos, tava na quarta série, eu saí no final do ano.
Deixei minha mãe. Na realidade eu nunca ... Deixei ela em casa sim,
mas sempre que eu podia, eu voltava!
Seu semblante está sereno e feliz, suas mãos estão postas
suavemente uma sobre a outra. Jonas identifica o abandono do ensino regular ao ir
para a rua, percebe-se que a educação tem um peso significativo em sua vida, pois
mesmo com as intercorrências vividas, conseguiu concluir o segundo grau, o que
contribuiu significativamente com forma de se expressar, de interpretar a realidade
em sua volta. Jonas também retoma a relação com a mãe pois mesmo estando
afastado pela permanência na rua, voltava para alimentar o vínculo materno.
Jonas aponta que, no seu caso, não houve o rompimento definitivo
121
dos laços com a mãe, embora a saída para rua tenha fragilizado a relação familiar.
Não tinha contato com ela, mas, à noite, quando eu ganhava algum
dinheiro na rua, eu deixava embaixo da porta e voltava para a rua. E
... não sei ... Nunca perdi o contato, mas quando eu saí de casa, eu
deixei o amor, o amor dela para trás. Mas eu nunca esqueci dela,
nem de meus irmãos, porque eu sempre levei o amor dela comigo
pra onde quer que eu fosse.
Seus olhos brilham, sua cabeça se inclina como se estivesse
encostado em sua mãe. O dinheiro embaixo da porta significava tanto ajudar a mãe
materialmente como deixar um pouco de si na casa da mãe, parece um gesto
simbólico de fazer a mãe lembrar-se dele e mostrar a elaque ele se lembra dela.
Jonas demonstra o vínculo com sua família, e, possivelmente tenha,
sido este um fator de proteção; ter a referência na família favoreceu o enfrentamento
dos desafios nas ruas e em outros espaços, como o Abrigo.
Pergunto a Jonas o que a rua foi para ele.
Foi minha experiência de vida lá fora. Queria conhecer o mundo e ali
eu conheci realmente. Conheci, aprendi a viver. Eu ficava só dentro
de casa, debaixo da saia da minha mãe, só estudava, era aquele
cotidiano! E, quando eu fui para a rua, eu encontrei o que eu fui
procurar. Eu queria liberdade, tudo, mas... Só que eu não encontrei
só liberdade, eu encontrei várias coisas...
A criança, ao viver em condições de pobreza, tem pouca
oportunidade de desenvolver seu potencial ativo e criativo. Os coletivos protetores –
família, comunidade, escola – não têm ocupado o tempo necessário para o
desenvolvimento das capacidades das crianças e adolescentes. Diante de tal
necessidade, principalmente os adolescentes saem em busca de espaços que
propiciem tais condições.
A rua, para Jonas, é a expressão da liberdade e da experiência. A
conquista destas também o levou à perda do convívio e não necessariamente do
vínculo familiar e de proteção da casa.
Neste momento da entrevista, Jonas está mais relaxado, olhando no
canto da sala, revivendo sua história.
Pergunto a Jonas quando saiu da rua. E ele responde:
Quando... a primeira vez... então que eu conheci a Márcia.
Pergunto a que Márcia se refere.
Márcia Lopes.
122
Lança um largo sorriso.
Foi ela que na época do Cheida... Não tem problema eu falar?
Faço sinal de que não há problema algum referir-se às pessoas que
estavam no governo municipal naquele momento.
Foi na época do Cheida que começou esse trabalho com meninos de
rua. Não que nós devemos a ele, porque essa iniciativa partiu
mesmo da Márcia, que .... pelo que eu sei... muitos educadores
falaram para nós na época. Quem sustentou mesmo esse projeto
dos meninos aí, não foi nem tanto o Prefeito, mas foi a Márcia.
Porque teve uma época, uma vez, que nós estávamos sem comida,
a prefeitura não queria liberar dinheiro, a Márcia deu o aval, o
dinheiro saiu. Ela que segurou realmente o trabalho.
Fecha o punho e encosta-o à mesa, de forma a demonstrar a
firmeza da atitude da Secretária na época. Jonas demonstra a capacidade de
reconhecer que o gestor à época tinha compromisso com a proposta.
Esboça um sorriso no canto da boca, compenetrado em sua história,
continua.
Eu tava na Concha Acústica, eu tava chapado de cola, aí a primeira
vez eu vi ela, aí eu peguei e falei para ela arrumar um lugar para mim
na Casa Abrigo. Que é onde a Édina... aqui na JK, onde a Édina
cuidava ali da molecada. Ali chamava Recanto Amigo.
Seu rosto demonstra alegria, dá a impressão de que está assistindo
a um filme do qual gosta muito.
Aí... ela pegou e falou que tinha que ter todo um processo, que tinha
que conversar com os educadores. Naquela época a Secretaria de
Ação Social tava implantando seu trabalho, porque tinha o Serviço
Social, tudo, mas para meninos de rua não tinha, foi criado naquela
época.
Jonas retrata o processo de construção e implantação, em 1993, de
uma política púbica direcionada ao atendimento de crianças e adolescentes em
condições de vulnerabilidade nas ruas.
E, aí ... conheci os educadores...que foram fazer o trabalho com nós
na rua. Na rua e não na Casa Abrigo. Porque, quem quisesse sair da
rua, tinha que passar por todo um processo na rua mesmo. Eu
conheci o Osvaldete, que era um dos educadores. E ele fez a
proposta pra mim: Se você realmente quiser sair da rua, você tem
que... tem que se .... como é que fala?! ...parar de usar droga, dentro
dela, na rua, estando dentro dela. Aí, eu falei que eu queria. Foi
difícil!
123
Faz um sinal com a cabeça como se estivesse confirmando o que
disse naquele momento. Continua:
Mas ... aí, eu peguei e falei: Essa é minha chance, se eu quiser? Aí,
ele falou tudo ... não a privacidade, mas todo processo que eu tinha
que passar depois que eu saísse. Aí, eu peguei e concordei. Eu
achei que pra mim era bom. Aí, eu peguei e saí. E também meu
irmão também, já tava fora da... ele já tinha.... Ele saiu primeiro, eu
tava me sentindo sozinho também. Pra não ficar sozinho, eu ...
metade dos meus colegas já tava na Casa Abrigo. E eu tinha quer ir.
Duas questões se fazem presentes na colocação de Jonas - o
desejo de sair da rua e a possibilidade de oferta de um serviço que respondesse
minimamente às suas necessidades.
É interessante frisar que, quando Jonas comenta sobre a Secretaria
e o trabalho desenvolvido junto aos meninos de rua, fala com propriedade da
metodologia, como quem conheceu e viveu essa história, tendo domínio do
processo. Ao dizer que saiu da rua para “não ficar sozinho”, Jonas expressa o
sentimento sentido naquele momento.
A relação educador-educando iniciada no contexto da rua possibilita
a reflexão sobre a realidade no espaço onde se encontram. Esta mudança é
paradigmática, pois se contrapõe à ação repressora e coercitiva de cumprimento de
mandatos legais no recolhimento das ruas e confinamento às instituições de
atendimento. Esta prática diferenciada dá à criança que se encontra nesta condição
de vulnerabilidade nas ruas certa segurança, favorecendo-lhe tomar decisões
importantes e significativas para a sua vida, tendo no educador uma pessoa adulta,
uma referência, que lhe oportuniza a reflexão e concretização de atendimento digno.
Neste momento de acolhimento, Graciani (1999) acrescenta que se
trata de um processo de conquista e de afeto, que permitirá a permanência dos (as)
meninos (as) no Abrigo pelo “desejo” de sentirem pertencentes, considerados,
ouvidos, no Abrigo, de poderem expressar seus anseios e angústias. Esses
momentos, profundamente presentes no cerne do conflito, são as reais
possibilidades de emancipação e engajamento dos (as) meninos (as) de rua ao novo
projeto de vida.
Pergunto como era no Abrigo.
Nossa! Muitas coisas! As chances de emprego que eu tive. As
oportunidades de emprego, voltei a estudar e era bem tratado pelos
educadores da época. Era, como se diz? Já tava acolhido. Modificou
124
muita coisa. E eu tava querendo realmente sair da rua. Querendo
realmente, querendo mudar de vida. E foi isso que me incentivou
continuar.
Fica evidente, neste momento, o propósito de mudar de vida, a partir
de condições objetivas e subjetivas, que se configuram em fatores de proteção que
o estimulam a buscar a superação da vulnerabilidade nas ruas. Jonas se depara
com oportunidades concretas e significativas para o desenvolvimento de suas
capacidades.
Pergunto se tem alguma lembrança ou fato significativo que o faça
recordar-se do Abrigo.
Lembrança não tem. Tem pessoas... Coisas boas foram muitas, e
ruins também. Mas tem pessoas que se destacam bastante, entre as
boas e as ruins. E que as boas superam as ruins também. Os
educadores, o casal social que depois de um tempo foi implantado.
Os educadores sociais que a gente mais estima é tio Gerson. Que
vem mais na cabeça? O tio Armando, a Edeni, que hoje tá no
Conselho Tutelar. E a Marinalva, o marido dela, o tio Paquera que
faleceu, são várias pessoas. E, depois, começou a vir o casal social,
que é o Jesuel e a Isabel. O casal social que mais mexeu conosco
ali.
Sorri tanto que mal consegue continuar a falar.
Depois deles, veio um lá do União da Vitória que... pelo amor de
Deus! Ninguém gostou! Foi pior que uma rebelião. A nossa casa
virou de perna para o ar. Não ficou uma semana, saiu!
Sorri com satisfação! Mal consegue conter a alegria! Fala com
empolgação e satisfação pela atitude que tomaram. E continua:
Ah! Não pelo fato porque eu tinha preconceito. Porque todo mundo
ali morava em favela. Mas pelo meu ponto de vista, não tinham uma
formação adequada para lidar... Não que nós éramos brutos, tal, não
sei o quê, mas para lidar conosco.... Nós não éramos santo! Mas
também não éramos malditos! Então, eu, no meu ponto de vista, eles
não tinham isto. E outra, não tinha... A mulher antes de fazer comida,
devia fazer um curso de ... entendeu? Não preciso nem falar o
restante! Era cabelo que a gente encontrava na comida e outras
coisas. Coisas que as meninas presenciaram lá que...
O casal citado por Jonas exemplifica que nem todas as pessoas
estão preparadas para atuar com crianças e adolescentes, pois não basta gostar de
gente. Provavelmente, mais do que o que foi expresso nesse trecho, o casal não
possuía habilidade para atuar junto às crianças e adolescentes do Abrigo. É
necessário ter interesse e compromisso com sua formação e desenvolvimento,
125
apresentar condições de conduzir o trabalho de maneira que as mudanças possam
ocorrer. Devem, para tanto, ampliar e aprofundar suas habilidades para melhor
exercerem seus papéis de educadores.
Confirmando tal afirmação, Costa (2001) acrescenta que o
educador, além de ter uma compreensão das grandes questões da sociedade, deve
ainda ser capaz de compreender, aceitar e lidar com comportamentos que
expressam aquilo que há de íntimo e oculto na vida de uma criança e adolescente,
principalmente aqueles em situação de maior vulnerabilidade. Assim, o adolescente
espera do educador algo mais do que apenas um serviço eficiente.
Jonas parece esquecer que estou ali, ele começa a falar com si
mesmo. Seu olhar está fixo e tem um sorriso constante no rosto. Ar de moleque,
entusiasmado com sua própria história. Continua:
Tinha até uma brincadeira que o... Polaco. Era o ..., esqueço o nome
dele, não vem na cabeça aqui, agora. Ele comia, comia, pra
caramba! Trabalhava no Parque Arthur Thomas comigo. Depois que
ela passou a fazer comida, ele, ele mesmo dava a comida dele, e
emagreceu, sinceramente, ele era gordo e emagreceu, não de
muitos quilos assim, mas parou de comer muita coisa!
Risos. E Jonas continua:
Foram anos e anos, vamos dizer, de Jesuel e Isabel. Depois entrou
outro casal, uma semana já... Lógico, muitos falavam numa semana
vocês não vão notar. Não vamos, o quê? Poxa vida! Ô louco! Era
uma diferença muito enorme (...) quando tá com a certeza, é a
certeza. Quando tá errado, é errado e nós estávamos certo naquela
vez.
Sua fala é empolgada. A entonação da voz é de quem está fazendo
a defesa de uma argumentação.
Pergunto quem os ouvia no Abrigo.
O Projeto tinha um coordenador, que coordenava as Casas Abrigo.
Aí, chegamos numa reunião, que tinha a reunião. Não me lembro se
era semanal ou mensal. E colocávamos isso. E não queremos e não
queremos mesmo. Foi posto e tiraram.
Para que a população infanto-juvenil tenha condições de lutar pelos
seus direitos e tomar decisões, é necessário criar espaços de fala e escuta para que
consigam exercitar o direito à participação, compreendendo que esta prática deve
ser estimulada em todos os espaços de convivência coletiva.
Segundo Costa (2000), os adolescentes, além de portadores de
126
entusiasmo e de vitalidade para a ação, são dotados também de pensamento e
palavra e o exercício destas faculdades favorecem sua entrada no mundo adulto. O
Serviço oportunizava a identificação do sentimento de “pertença” , pois os jovens, ao
remodelarem referências e valores, identificam-se com as práticas, princípios e
produtos dos projetos (Castro, 2001), situando-se como parte deles, em um
momento, e como parte de uma comunidade com responsabilidades sociais, em
outro.
No relato acima, o jovem se vê como “senhor da decisão” sobre o
que é melhor para si, para o coletivo e para o Abrigo. A metodologia adotada enfoca
o desejo e a vontade dos adolescentes; utilizam a fala e o diálogo, enquanto meio de
concretização das ações, como na polis grega: “tudo era decidido mediante palavras
e persuasão, e não através da força e da violência” (ARENDT, 1987, apud ZALUAR,
2004).
Vygotsky (1961 apud ZALUAR, 2004) complementa afirmando ser
necessário combinar observação e experimentação no processo de aprendizagem,
pois as habilidades cognitivas devem estar vinculadas às práticas que as invocam. É
o empoderamento positivo necessário à estimulação das forças vitais presentes no
ser humano na busca da preservação de condições necessárias ao seu bem estar.
Pergunto o que avalia como essencial no Abrigo que contribuiu para
que permanecesse no Serviço.
Ser bem acolhido! Quando o menino entra, no primeiro dia no Abrigo,
é ser bem recolhido. É ser bem acolhido! E, segundo, é não ficar
bajulando também, mas tratar bem a pessoa. Ter um bom
tratamento. Mostrar pra ele que não adianta só você chegar lá e
falar: A gente quer te ajudar, tudo é tal. Mas realmente mostrar que
quer ajudar.. Não é só ficar passando a mão na cabeça, na hora de
chamar a atenção, tem que ser chamado a atenção, como eu fui
chamada atenção várias vezes. E na hora de elogiar, elogiar mesmo.
Porque tem muitos que sentem: eu sou mesmo sou uma pessoa...
Hoje eu posso dizer, muitos que trabalharam comigo, conseguiram
ver isso, eu sou muito emotivo. E tem pessoas que necessitam
realmente de carinho e de atenção. Eu, quando tinha momentos que
eu fazia alguma coisa e se ninguém é.... quando era uma coisa boa,
prestasse atenção e não me elogiasse, essa alguma coisa..., Eu,
lógico, eu ficaria, ficava, eu ficava chateado. E eu acho que aí, tem
dar valor nesse ponto também, que tem pessoas que é muito
emocional e por causa disso pode gerar um grande conflito. Mas, o
principal pra permanecer, seria o básico: a boa preparação do
educador, é receber... ser bem acolhido e, no dia-a-dia é aquilo que
eu falei. Tratar bem e, não ficar, lógico, bajulando muito também.
Consideramos que um dos fatores que contribuiu para a superação
127
da condição de vulnerabilidade de Jonas nas ruas foi o tratamento dirigido enquanto
reconhecimento do outro como ser humano de valor. A aceitação incondicional da
sua individualidade, com seus sentimentos, temperamento, respeitando-o, portanto,
na sua forma de ser e contribuindo para que se tornasse um ser humano ainda
melhor.
Jonas indaga que o educador deve ser comprometido e seu
envolvimento deve ir ao encontro da causa pela dignidade do adolescente. Deve
estabelecer limites, sendo um facilitador no processo de decisão, respeitando a
identidade, o dinamismo e a dignidade dando a cada um condições de pensar e agir.
O que não representa passividade e indiferença, mais respeitabilidade e aceitação,
crédito no potencial criador e na força transformadora que cada um possui. Jonas
evidencia em suas palavras, a necessidade de transparência e honestidade na
relação com o educador, na postura adotada por esse profissional.
É interessante perceber como Jonas traça uma lógica de raciocínio
e, ao final de sua colocação, apresenta um resumo daquilo que, de fato, entende
como essencial em um serviço de Abrigo. Jonas valoriza o acolhimento,
pertencimento, vínculo, enquanto condições necessárias à ruptura com a rua e à
opção de mudança de vida.
Pergunto se chegou a voltar para as ruas.
Cheguei! Cheguei, quando eu saí. Foi na época ainda do tio Jesuel
com a tia Isabel. Eu me lembro uma vez que saí da casa, eu não
lembro o que fui fazer na cidade, aí eu encontrei uns colegas e tal e
usei droga. Só que esta foi à última vez que usei, enquanto na Casa
Abrigo. Depois que saí da Casa Abrigo, continuei usando.
A decisão de rompimento com a permanência nas ruas não é fácil,
principalmente quando existe o envolvimento com o consumo de drogas. A
motivação interna, o contexto da rua e o vínculo grupal contribuem para o desejo de
manter aquela condição de vida, envolvendo a rua e a drogadição. Segundo Muza
(1996), a drogradição apresenta-se com tantas faces e roupagens que, certamente,
algumas são desconhecidas, outras ainda emergentes. Ao abordar a questão do
uso/abuso de drogas na adolescência, é necessário que se faça dentro de uma
perspectiva, na qual os aspectos individuais, familiares e sociais interagem de forma
complexa, um pano de fundo histórico-cultural.
Pergunto o que o motivou a voltar às ruas.
Não sei. Sinceramente não consigo, sabe... interpretar, sei lá! Não
128
consigo dizer por que.
Olha fixo pra determinado ponto da sala, como se estivesse
tentando encontrar uma explicação. Continua:
Acho que foi pela vontade mesmo. Sei lá! Acho que foi pelo processo
de recuperação, que eu tive foi muito forte. Foi muito rápido. Porque,
se eu quisesse sair da rua, partir para uma Casa Abrigo, eu tinha que
parar ali. No durante, ali na rua, de usar droga e, então, foi muito
rápido o processo. E acho que foi por isso.
Escapa-lhe uma risada no canto da boca.
Continua a explicação:
Nós, primeiro, porque tava na rua, passamos um sufoco danado
apanhamo de polícia, tudo e tal... Depois, pra conquistar o espaço,
entendeu, também foi sofrido... E esses uns de hoje não. Eles
simplesmente têm uma rixa com fulano de tal, porque deve drogas
ou algum tipo de coisa... E já tem ali tudo encaminhado, meu, pra
ele. É complicado isso, então sei lá. Acho que tem que ser
trabalhado mais esta questão... Não é pelo fato só dele tá correndo o
risco de ser morto, tal, que vai pôr numa Casa Abrigo e não sei o
quê. Tem que ser bem avaliado.
Pergunto a Jonas: Quando você pensava em deixar a rua, o que o
atraía na rua.
Prá mim sair da rua?! Era porque... muita gente, ... quando ... que
nem eu tava falando, aconteceu do processo de eu sair da rua. Meu
irmão já tinha saído, ele tinha conseguido um emprego. É...Tinha
voltado a estudar, tudo isso estando na Casa Abrigo. E o que mais
me incentivou a sair da rua foi isso... o que me atraiu mesmo foi isso
.... É... porque, a liberdade que eu procurei na rua, tinha encontrado
em partes. Eu peguei e falei que se eu continuasse trabalhando...
que mesmo tando na rua, eu trabalhava.
Jonas entendeu o que o atraía fora da rua, o motivo que o fez sair da
rua. Lança um sorriso maroto no canto da boca.
Era o jeito que eu levava o dinheiro prá minha mãe. Porque eu tinha
minha caixa de engraxar, eu engraxava de manhã e depois, de
tardezinha, com o dinheirinho que eu conseguia, eu comprava droga.
Aí, eu peguei e falei: bom... se eu voltar a trabalhar, vou tá
estudando, tudo, aí sim, aí que, eu vou conseguir a liberdade que eu
quero. Porque eu vou tá trabalhando, tal. Na realidade eu pensava o
seguinte, eu pensava o seguinte, que eu tando trabalhando, minha
mãe já não ia mais mandar em mim e mais não sei o quê. Eu ia ser
totalmente livre. Então, foi isso que... E que na Casa Abrigo eu ia
conseguir uma liberdade mais assim, também. Foi o que me
incentivou também a sair.
Merece ser ressaltada a identificação que fazemos da fala de Jonas
129
com a reflexão de Sen (2000), ao apontar que a liberdade está sobre os valores que
atribuímos às escolhas que fazemos, quando as direcionamos para a solução dos
problemas que temos. Para Jonas, a liberdade é associada ao conhecimento e à
independência financeira.
Pergunto se encontrou a liberdade que procurava.
Achei a liberdade em partes... Porque na Casa Abrigo não tem nada
de liberdade (risos)
Tem regras.
Nesse momento, a entrevista foi interrompida,sendo retomada após
alguns minutos.
Lembro a Jonas que estava falando que a liberdade, no Abrigo, não
era completa.
Ah, sim. Então, é... em partes, porque tinha as regras também.
Horário prá entrar, é... horário prá poder sair. É horário de sair, é
horário de você ir para a escola, trabalhar e depois para o colégio e
o horário que você voltasse do colégio ... prá você... já vir direto pra
casa. Isso de dia de semana. Aí, final de semana, o horário era até
meia-noite. Então, nesses horários aí, se eu estivesse na casa da
minha mãe, até meia noite não entraria em casa.
No imaginário das crianças e adolescentes em condição de
vulnerabilidade, a rua é entendida como espaço livre de tarefas, limites e horários.
Tal representação se configura em resistência à adesão ao Abrigo, comparado
muitas vezes, ao ambiente familiar, do qual muitos trazem uma lembrança negativa
do convívio com regras e limites.
Porém, há momentos em que eles conseguem compreender a
importância de conciliar liberdade e responsabilidade e a utilizá-las em beneficio
próprio.
Pergunto se havia alguma semelhança com a casa da mãe.
Era igual é.. um pouquinho melhor, porque entraria até mais tarde.
Porque na casa da minha mãe não, o máximo era até oito horas,
todo mundo dentro de casa, já era bem rígido e final de semana não
podia sair.
Pergunto se estava querendo dizer que na casa da sua mãe eram
mais rígidas as regras.
Era mais rígido,... e também foi o que pensei, o que eu achei, se eu
tivesse trabalhando um pouco, eu seria o dono do meu próprio nariz!
130
Mas, não é nada disso. Enfim, o trabalho é só como se diz, é... um
caminho a seguir prá você ser alguém na vida e não ser dono do
próprio nariz.
Retomo a questão da liberdade, solicitando-lhe que explique qual o
significado de liberdade para ele.
Até hoje..., eu não consegui..., eu fui em busca disso e não consegui,
ainda, é... como se diz... encontrar. Não consegui encontrar até
hoje.Não... porque eu casei muito cedo também.
Sorri.
Mas, eu acho que resumindo, a liberdade é... Eu acho que a
liberdade é você poder não poder fazer tudo o que você quer. Mas
poder fazer as coisas no seu limite, você tá vivendo longe das
drogas. Quando você está nas drogas, ela te segura, te prende,
aquilo, só aquilo,... não é liberdade. Você tá sujeito a só uma
determinada coisa, não é liberdade, você tá sujeito a fazer várias
coisas, não o que você quer, mas tudo em seus limites, porque nós
somos limitados, podemos ir a até uma certa altura. Fazer tudo o que
quer dentro dos seus limites. Acho que a liberdade é isso. Isso eu
aprendi!
Eu saí em busca dessa liberdade, não encontrei, meu limite foi
aquele. Eu tive a liberdade até certo ponto. A hora que eu vi que eu
ia ficar amarrado mesmo àquilo, cheguei no meu limite, falei não,
agora quero mudar, foi na onde que eu mudei. Mudei assim. Até um
certo ponto. Depois que eu saí da Casa Abrigo, eu retornei... retornei
pra... pra vamos dizer, assim, recapturado pelas drogas, ! E foi aí
que realmente eu encontrei o meu outro limite. Foi aonde eu casei
pela primeira vez, e foi onde eu quis constituir uma família com
minha companheira, e foi aí que... legitimou a minha separação das
drogas.
A liberdade, para Jonas, também significa limite, ter autonomia em
relação à dependência das drogas. Acosta e Vitale (2005) explicam que aprender a
escolher é um dos maiores legados que se pode oferecer aos mais jovens, e que se
dá somente no exercício da capacidade crítica, da habilidade argumentativa e do
conhecimento de si e do mundo, incluindo-se o conhecimento sistematizado e
formal.
Pergunto se foi uma boa escolha.
Nossa, com certeza! E... ela também era usuária e, então, foi uma
coisa bem... vichi! Foi uma ótima recuperação, ali.
Procuro confirmar se foi a opção dos dois.
Dos dois.... nós falamos, conversamos, entramos em um acordo, eu
tava trabalhando, aí cheguei nela e..., doido para ter um filho na
131
época. Jovem é tão bobo! É...tão, não sei...
Risos.
Querer se amarrar cedo e ainda mais em pensar em ter filhos,... Aí
eu peguei, cheguei e falei com ela, falei: Pô! Mas... eu quero ter um
filho, você também... Como nós vamos ter um filho nessa vida? E aí,
nós demos um exemplo dum..., dum casal, marido e mulher e seus
outros filhos. Com... tudo drogado também,..E será que nós vamos
ser igual fulano... Ah, não....Então, tem que parar... Aí, eu parei de
comprar, paramos de usar nunca mais, até hoje. Graças a Deus!. E..
somos separados, ela não retornou! E somos separados, depois que
separamos, eu achei que ela ia.... recair.. Não! E nem eu também.
Graças a Deus! E foi uma recuperação... eu recuperei ela, ela me
recuperou...
Nesta última frase de Jonas, o jovem mostra a importância de uma
decisão compartilhada, de suporte mútuo.
Queria constituir família, tinha família. Então, para legitimar, ... para
consumar ... não é casamento nada, mais... a gente estava junto,
então, pra concretizar? Acho que era isso. Que nem eu falo hoje, não
sei o porquê eu fui casar cedo, ,.. e o porquêde ter filho cedo... .Eu
acho que foi mesmo para recuperar das drogas. Eu acho que foi prá
isso. Eu não tenho explicação prá isso. Mas só tem que... só tem
explicação para isso, é aquele lá em cima. Então, se um dia ele quis
que eu saísse das drogas, acho que ele colocou essa, vamos dizer
assim... essa assim bobeira entre aspas na minha cabeça.
O adolescente, o jovem ousa e, a seu modo, descobre como
responder pelo que quer fazer da sua vida. Sonha, faz projetos e almeja alcançá-los,
sua vitalidade o impulsiona a pensar em como “resolver sua vida”, buscando sua
satisfação pessoal.
A fala de Jonas demonstra quão apropriada é a reflexão feita por
Keniston (1960) (apud Acosta e Vitale, 2005) sobre o ato de crescer. Segundo ele,
crescer é sempre um problema. Acarreta o abandono daquelas prerrogativas
especiais, visões do mundo, discernimentos e prazeres que são definidos pela
cultura como especificamente “criancices”, substituindo-as por direitos,
responsabilidades, perspectivas e satisfações que são adequadas para o “adulto”
culturalmente definido. Embora os conceitos de “infantil” e “adulto” sejam diferentes
de uma cultura para outra, todas exigem alguma mudança nas maneiras habituais
de a criança pensar, sentir e agir. Dependendo do que tal condição representa para
o jovem, este pode, pelo menos temporariamente, negar a vida temida do adulto.
Segundo Serrão (1999), a construção do projeto de vida é uma
instância fundamental de desenvolvimento pessoal e social, significa que o
132
adolescente formou sua identidade, sentindo-se capaz de ingressar em numa nova
etapa de vida.
Pergunto a Jonas o que lhe vem à cabeça quando ouve a palavra
rua.
Hoje, eu vejo a vida que eu levo e justamente olhando pelos que não
se recuperaram. Porque hoje eu vejo... Não que é uma ... eu não
sinto pena deles... não sou maior e nem menor que eles, sou igual a
eles, mas, só que com uma pequena diferença, eu não estou mais
preso, não estou mais amarrado àquilo, àquela vida. Mas eu sinto,
tenho uma certa... sabe, vamos dizer assim... uma certa... não sei
explicar sem dizer pena, entendeu? Por eles na ta.... por eles não
terem recuperado, porque tiveram as mesmas oportunidades que eu
tive (enfático) . As mesmas chances, tudo, que eu tive eles tiveram
também. E, hoje, eu vejo eles... assim é o que me faz resistir... Já
tive vontade, depois de casado, de tudo, ter esquecido tudo, de
muitos anos. Há mais de dez anos que eu não uso mais droga. Hoje,
eu vejo assim sabe ... é complicado, viu?! Prá mim..., porque eu tô
recuperado e tudo, eu sinto dó deles.
Jonas tem clareza de que mesmo que a intervenção realizada tenha
buscado oferecer condições de acesso nem todos conseguiram se beneficiar. Por
outro lado, tem consciência de sua resiliência, de seu esforço e do seu compromisso
com a vida no presente, trazendo toda a experiência vivida no passado, revitalizando
sua própria vida.
Sua fisionomia fica entristecida, fala com pesar, compadecido com a
situação dos colegas. Continua:
Eu me sinto até culpado por não poder fazer nada. Então... e olha
que já tive contato com eles, depois, tentando ajudá-los, quando eu
trabalhei na APEART como educador, mas não deu certo, sabe?
Não deu certo, de eu continuar na APEART, sabe?
A entidade encerrou o projeto pelo qual Jonas era contratado.
Mas...sei lá, acho que os que estão na rua agora, depende de Deus
e de uma nova política, nova política social prá... um jeito diferente
para mudá-los. Acho que nem a Márcia quisesse voltar a ser... como
Secretária... fizesse todo... não recuperaria eles... teria que ser...
tudo o podia..., lógico. Tudo que pode ser feito, tá sendo feito, mas...
É porque eles não querem mesmo! Esses uns, eles se entregaram
mesmo... às drogas. A pessoa tem que querer, se não querer, não
adianta trabalho... não adianta Casa Abrigo, não adianta hospital,
não adianta nada. Esse negócio de clínica aí, é uma ajuda. Casa
Abrigo também. Se a pessoa não querer, não se recupera... não se
recupera. E... continuam a vida deles, a mesma rotina... não
mudaram nada. Por isso que eu falo: tem que querer. Se não querer,
não consegue!
133
Jonas refere-se aos demais jovens do seu tempo de rua que, até o
momento, não conseguiram superar a condição de permanência na rua e do uso e
abuso de substâncias psico-ativas.
Segundo Paugam (2003), o grau de comprometimento com as ruas
e todas as suas implicações – drogas, roubos, violência – associado à inexistência
de força que os impulsionem a querem outro modo de viver, torna-os abandonados
ao acaso. Sem força e sem vontade, tornam-se insensíveis ao julgamento do outro e
se retraem progressivamente em seu mundo limitado, reconstruído segundo as suas
próprias normas. Abandonam-se à indiferença, entregues ao destino, parecendo
assistir como testemunhas passivas e sem energia.
Procuro confirmar se um dia ele quis sair da rua.
Eu quis... Agarrei! ... A única oportunidade que eu tive, eu agarrei ela.
E, lógico, depois que eu saí da Casa Abrigo, eu.. desmanchei todo
um trabalho que os educadores fizeram comigo. Mas, depois que
quando eu vi que eu já não tava mais na Casa Abrigo, que eu não
tinha mais cara de voltar e falar que eu ... recaí, que eu... Eu peguei
e falei: então não, agora, parte de mim! Aí, foi naonde, quando eu e
minha esposa na época, nós decidimos largar.
È importante notar que, quando o trabalho realizado é comprometido
com a perspectiva maior de mudança e de promoção da justiça diante dos direitos
que foram lesados, embora inicialmente a pessoa desista de continuar, o que foi
plantado pode gerar frutos em outros espaços, pois aumenta o nível de reflexão e a
capacidade de fazer análises e tomar decisões sobre os fatores que contribuem ou
não para o desejo de vida digna.
Pergunto quais são suas motivações para não voltar às ruas.
É continuar vivendo pros meus filhos, para minha família. É o que
me faz a... tá em pé ainda hoje. Já pensei, já... Teve momentos que
já eu pensei de... por estar sofrendo nessa vida. É... por mais que eu
trabalhe e tudo, eu tenho minhas dificuldades. Todo mundo tem. Eu
não sei o porquê.... mas eu ainda passo por muitas dificuldades,
acho que pelo fato de não ter planejamento, não ter planejado ter os
filhos... tudo essas coisas. E a quantidade de filhos que eu tenho, eu
sei que recebo pouco e, é por isso a minha dificuldade que eu passo.
Às vezes, dá uma revolta, assim... a gente pensa... mas...logo pensa
nas crianças ... E eu penso, também, que eu decidi sair e não voltar,
e não voltar nunca mais mesmo. E essa coisa, é coisa passageira, é
coisa que passa pela cabeça, assim, mas... nada de concreto. É
momento passageiro.
Jonas ressalta sua preocupação com o bem-estar, o que
desestabiliza e gera oscilação quanto à qualidade de vida a que tem direito, a vida
134
que gostaria de ter. Porém, o que prevalece são os vínculos com os filhos como
fatores importantes em sua vida, os quais lhe dão sustentação para continuar a lutar
pela vida e, conforme afirma Paugam , a integração favorece a conservação dos
vínculos sociais (apud, SAWAIA, 2004).
O afeto é um sentimento presente na vida de Jonas e provavelmente
propulsor de sua resiliência. E ele recebeu afeto da mãe de pessoas da Casa
Abrigo, colegas da rua e da namorada, e parece ser o afeto que sente pelos filhos
que o mantém fora da rua.
Pergunto o que ganhou e o que perdeu com a saída da rua.
O que eu ganhei e o que eu perdi?... Aí... eu não perdi nada, eu só
ganhei. Eu só ganhei. Ganhei uma nova vida. Resumindo tudo, uma
nova vida! Só isso.
Neste momento, enche os olhos de lágrimas.
Pergunto se tem alguma referência para onde não quer mais voltar.
Você sabe...
Seu rosto ganha expressão de alegria, como se fosse me contar
algo muito engraçado, entusiasma-se, até se ajeita na cadeira para falar.
Teve uma vez, eu peguei... encontrei um colega meu e falei: olha, se
fosse para voltar para a rua, eu voltaria... mas se fosse nos tempos
nosso, de antigamente, com aquela turma.
Neste momento, fala compassadamente, lança um sorriso
carinhoso, parecendo se lembrar da turma da rua. Jonas fala de uma rua que não
existe mais, de amigos que não estão mais lá, ele não volta porque a rua que ele
conhecia desapareceu.
Mas como não existe, então... não essa possibilidade, nunca, graças
a Deus!
Risos.
E a rua é o local onde eu não voltaria. Poderia voltar prá Casa
Abrigo sim, mas pra rua, não! Porque, na Casa Abrigo passei
momentos... bons. É, na Casa Abrigo eu estaria assistido, de
qualquer forma, mas levaria meus filhos juntos!
Jonas tem certeza do modo de vida que optou por viver, recorda que
o serviço de Abrigo lhe garantiu assistência durante o período em que necessitou
daquele atendimento. Construiu uma imagem positiva de si, respeito próprio,
135
traduzido pela confiança em sua capacidade de assumir sua vida e a de seus filhos,
lutando pela concretização daquilo que deseja para sua vida.
Risos.
Aqueles ali não deixo por nada!
Pergunto sobre algo que não deseja para sua vida.
Se eu... lógico, quando eu disse que nunca mais eu quero voltar para
a rua isso já inclui não querer mais aquela vida. Isso eu não quero
mesmo. Se pudesse, se viesse, se partisse de mim essa ...eu não
queria mais prá mim, porque faz parte da minha vida, é ver o que eu
vejo hoje com esses que tão na rua. Só isso. E não quero que os
meus filhos também sigam prá.... esse caminho. É isso que eu falo:
eu vou fazer o máximo que eu posso... não tenho dinheiro pra cuidar
deles não, prá dar o bom e de melhor. Mas o pouco que eu tenho,
eu tenho certeza que pra eles é muito. Igual eu, o pouco que minha
mãe tinha, eu tava satisfeito ... com tudo o que ela podia me servir.
Mas a curiosidade... em conhecer o mundo lá fora e ... a ter essa tal
liberdade, que até hoje não encontre, foi maior e.. não foi pelo
maltrato, nada, que eu fui pra rua. Foi por curiosidade em conhecer o
mundo lá fora. E foi lá que... lá fora que eu aprendi tudo o que tenho
e o que eu sei hoje. Toda sabedoria que eu sei é... vivendo e
aprendendo e também acreditando. Aprendi lá fora. E é o que eu
tento mostrar, vou tentar passar para os meus filhos, quando eles
tiverem uma idade, na idade da curiosidade. Espero que não... que
não tenha mais esses casos, aí. Mas, se tiver, eu quero mostrar a
realidade prá eles. E falar, meu filho, é aquilo que eu passei um dia,
hoje eu estou aqui, mas por esforço meu. E vou falar pra eles, se ...
um dia Deus quiser, nunca cair numa maldição dessa, porque vou
falar a verdade, se a pessoa não querer, não tem volta.
Pergunto se considera uma maldição.
Prá aqueles que se deixam amaldiçoar.
Deus uniu a droga, eu e ela [a primeira esposa]. E tivemos a primeira
filha tal, infelizmente, mais prá frente nos separamos. Aí, depois de
um tempo, eu casei novamente e tive mais dois filhos. Uma menina
e um moleque. E... tô aí, tô na luta. Já trabalhei com meninos de rua
também, pela APEART e também pela Ação Social, lá em Cambe. E
hoje eu estou nessa ONG, tô satisfeito! E espero... continuar nessa
vida. Se tiver desempregado, tiver uma dificuldade, hoje em dia,
tem várias maneira de se trabalhar. Desde uma roça até catar papel
e não mido esforço prá isso. E tô feliz. O mais importante é que tô
feliz!
Finalizando, Jonas demonstra a superação da condição de
vulnerabilidade nas ruas, demonstrando satisfação com a vida que tem. Acreditamos
que Jonas leva consigo as palavras de Thiago de Mello, no Estatuto do Homem que
diz:
136
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos
dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, ou
como a semente do trigo, e a sua morada será sempre o coração do
homem (MELLO, 1987).
Jonas demonstra como é grande a força das pessoas e sua
coragem para enfrentar a vida.
3.3.2 - A história de Judite
Judite é uma jovem que vive com seus quatro filhos; e estava
grávida do quinto no período da entrevista. Tem atualmente, 28 anos, nasceu em
Londrina, estudou até a 5 série, mas não chegou a concluí-la.
Reside em um bairro da região norte, em área bem localizada, em
casa de alvenaria, que possui seis cômodos. Está neste local há três anos. O imóvel
foi adquirido através de financiamento, com dinheiro recebido do seguro de vida de
seu marido que num dia, após ter recebido o pagamento do salário da empresa
onde trabalhava, foi assassinado a caminho de casa.
A entrevista com Judite aconteceu em uma tarde de sábado do mês
de maio de 2005. No contato, solicitou que agendasse o quanto antes a entrevista,
visto que estava próximo o dia do nascimento de seu filho.
Ao chegar a sua residência, Judite estava terminando uma faxina,
sua casa estava organizada, tudo no seu respectivo lugar, como se estivesse
esperando uma visita. Seus filhos são receptivos, simpáticos, crianças fortes e
bonitas; bem cuidados, além de carinhosos entre si e com a mãe.
Judite estava com a aparência cansada, provavelmente decorrente
da organização da casa. É extremamente hospitaleira, buscou nos acomodar
confortavelmente para a realização da entrevista. Antes do inicio da gravação
orientou os filhos quanto ao que iria acontecer, solicitando que não interrompessem
a conversa que iríamos ter.
Solicitei a Judite que ficasse à vontade para interromper a entrevista
caso ocorresse alguma situação que lhe causasse desconforto.
Judite permaneceu nas ruas dos 7 até os 17 anos, ou seja, foram 10
anos de vivência de rua.
Judite começa contando sua história assim:
Eu morava com minha Vó, daí eu engravidei...., daí ela deu derrame,
137
ela ficou de cama. Aí... ela faleceu..., daí eu fiquei mais uns quatro
anos na casa. Aí, meu vô entrou na justiça para tomar a casa, daí ele
ganhou, né. Porque o pai dos meus filhos era usuário de drogas, né?
Ele inventou um monte de coisas.... Daí, eu fui pagar aluguel uns
dois anos, antes de vir para cá..
Judite silencia. Em suas colocações iniciais expõe algumas das
perdas que teve em sua vida: a perda da avó – poderemos constatar pelos relatos
que seguem, que teve uma importância vital em sua vida, sua referência positiva de
família, pois a acolheu e lutou pela sua vida - outra perda é o direito à moradia.
Pergunto-lhe quanto tempo permaneceu nas ruas.
Dos sete aos dezoito... dezessete prá dezoito. Dos sete aos dezoito
anos porque a última... rotatória pela delegacia foi aos dezoito!
Embora nesta colocação sua expressão ganha ar de malandragem,
inicialmente, ao solicitar-lhe que conte sua história de vida, sua expressão se enche
de tristeza, seu olhar fica longe, distanciando-se, sem fixá-lo em lugar algum, como
se uma grande tristeza tomasse conta de si. Ao solicitar-lhe que continue, responde:
Ah, acho que não dá, né?! É meio complicado. Não sei....
Balança a cabeça em sentido negativo, como se não quisesse fazer
muito esforço em recordar o passado. Tento recolocar a questão, perguntando como
contaria sua história. Ela responde:
Chorando...
Ri, demasiadamente! Deixa dúvidas se não havia entendido a
pergunta ou se era um modo de dissimular os sentimentos. Expressa mais algumas
palavras:
Ah... Acho que é uma experiência, né, que eu vivi. Daí, eu mudei,
agora estou vivendo outra experiência, né?!
Resolvi não insistir. Ficou perceptível se semblante abatido, ao lhe
solicitar que falasse de sua história, provavelmente por ter aspectos que a marcaram
de forma muito negativa. Soma-se, ainda, o fato de estar grávida e próximo o dia do
nascimento de seu filho, condição que talvez tenha lhe deixado ainda mais sensível.
Pergunto a Judite o que a rua foi para ela.
Acho que nada.... Para mim não representou muita coisa.
Representou assim... eu conheci bastante gente. Pessoas que, hoje
em dia, não viraram as costas pra mim, sempre estão presente, né?!
Foi bom por isso. Mas, por outro lado, acho que não. Perdi minha
138
infância, perdi aniversário, um monte de coisa.... não gosto muito de
ficar lembrando....
A tristeza continua fazendo parte de seu semblante, a sua voz
estava tão baixa, que mal conseguia ouvi-la. A voz não tinha a mesma entonação do
início da entrevista. Neste momento, a filha caçula se encosta em Judite, que lhe faz
carinho mexendo em seus cabelos.
Judite valoriza a presença através da relação significativa e de
qualidade que estabeleceu com as pessoas que encontrou durante sua trajetória de
vida nas ruas. Confirma as colocações feitas em capítulo anterior quanto à
necessidade que temos de presença. Ao contrário, quando esses vínculos não
existem, ou são demasiado frágeis e se rompem, a vida se torna vazia de sentido.
A jovem também se refere à sua infância de modo negativo, ao
terem sido lesados alguns direitos fundamentais ao seu desenvolvimento, como
brincar, e a valorização da auto-estima e reconhecimento da sua condição enquanto
pessoa, na comemoração de aniversário de vida, o que prejudicou um período de
vida precioso para o desenvolvimento de suas habilidades.
Pergunto-lhe se deixou alguma coisa para trás quando foi para a
rua.
O meu futuro.
As rupturas ocorridas na trajetória de vida de Judite interferiram na
perspectiva de vida que trouxe ao vir ao mundo. A condição de permanência nas
ruas interrompeu, pelo menos momentaneamente, o direito a ter futuro, ao entender
que, nas ruas, vive- se somente o presente.
Judite nos remete a refletir que sua história poderia ser diferente,
confirmando o que apontamos no capítulo anterior: a precarização se apresenta
como déficit na trajetória de vida destas pessoas.
Da experiência vivenciada, fica a perspectiva aprender a lidar com a
realidade presente na construção de projetos que dêem sentido e significado à vida.
Pergunto a ela o que tinha antes de ir para a rua.
Ah, eu não tinha nada, porque eu era uma criança.
A criança, enquanto pessoa em desenvolvimento, deve ser
portadora de um futuro. Condição que Judite não conseguiu visualizar, muito
provavelmente por não ter sido reconhecida sua condição de criança, pois conforme
139
aponta Cury (2002), a infância, à sua maneira, é um período de plenitude que deve
ser compreendido e acatado pelo mundo adulto, ou seja, pela família, pela
sociedade e pelo Estado.
Pergunto-lhe se lembra da sua infância.
Lembro..... Ah, eu era normal na infância. Não tinha problema na
infância. Eu saí da minha casa, não foi assim por apanhar ou passar
necessidade. Saí porque eu fui em busca de uma irmã, que minha,
que minha mãe abandonou. Então, daí eu comecei a dar trabalho na
escola, comecei a fugir de casa, só que eu fugia e ficava por aqui
mesmo, pela vizinhança, né?! Até que teve um dia, eu peguei o
ônibus e fui parar lá no bosque... já encontrei uma turma lá... e lá eu
fiquei. A primeira pessoa que eu conheci foi o Juquinha, o Juquinha
Rodrigues.Era um branquinho que tinha o cabelo lisinho.
Judite acrescenta outros fatos à sua história de vida, quando lhe
pergunto se teve alguma revolta que a motivou sair de casa para a rua.
Ah, eu tive, eu tinha revolta...e eu fui criada com minha Vó, então a
...minha mãe, ela me abandonou dentro de um bar, que eu não sabia
essa história... Me abandonou dentro de um bar para pagar uma
garrafa de pinga. Daí, minha Vó ficou sabendo da história e tudo, foi
e me buscou, pagou lá o que minha mãe devia. Minha mãe era
novinha também. Só que ela..., tipo assim, ela entrou nessa vida de
beber, beber porque meu vô expulsou ela... [tenta justificar a saída
da mãe]. Ela foi mãe jovem também. E foi o que ele tentou fazer
comigo quando eu engravidei do meu primeiro filho, ele me expulsou
da minha casa, só que minha Vó, que já não tava muito boa, falou:
Ela não sai daqui, porque aqui é a casa dela e é aqui que ela vai
ficar. Graças a Deus que impôs, porque senão ele tinha me colocado
pra fora da minha casa também.. .foi o que ele fez... Esperou minha
Vó falecer, entrou na justiça... pra poder conseguir a casa.
Inicialmente, Judite denomina sua infância como “normal”, por “não
apanhar e/ou ou passar necessidade”; num segundo momento, acrescenta o
alcoolismo e abandono da mãe e a luta da avó para seu acolhimento diante da
rejeição do avô. O abandono, os conflitos são raízes dos sofrimentos que Judite
viveu em sua infância, o que gerou uma situação emocional instável, insegura e
frustrante que a impulsionou à busca de rompimento com tal situação, optando por
permanecer nas ruas. Judite confirma as colocações de Placco, ao apresentar sua
resiliência superando a si mesmo e às pressões de seu mundo (apud TAVARES,
2001).
Constata-se, ainda, na fala de Judite, a afirmação de Soares (2001)
de que os arranjos familiares, quando associados à pobreza, podem aumentar a
probabilidade da vulnerabilidade entre crianças e adolescentes.
140
A partir dessas considerações, pode-se considerar que responder ao
papel de genitora e procriadora da vida em família não é uma tarefa fácil ou simples;
por outro lado, torna-se, para a criança, ainda mais penoso conviver com as
nuanças de tal realidade.
Pergunto a Judite o que a levou a sair da rua
Foi no tempo da Marta Cheida, né?!
Sua expressão ganha vida, como se esta parte de sua vida valesse
a pena ser lembrada.
Ela tava me procurando. Daí, eu cheguei lá no Provopar, tava já
bem grogue. Aí, a moça que trabalhava lá, falou assim: Você vem
aqui mais tarde, mas não vem com os meninos, você desvia o
caminho deles, você vem aqui que a Marta quer falar com você!
Falei: Ela vai me prender?! Não roubei ela!
Dá uma grande gargalhada, mal consegue continuar falando... Seus
filhos, que estão conosco na sala, riem junto, sem entender o que se passa.
Daí, eu cheguei lá, ainda tava meio grogue. Ela mandou eu sentar e
esperar um pouquinho, que ela tava numa reunião. Eu esperei. Daí a
moça me levou lá, prá mim pegar umas blusas de frio, uns
agasalhos. Daí, eu falei: acho que ela queria me dar roupa, né?!
Dá um sorriso no canto da boca, como se estivesse se preparando
para contar uma grande surpresa.
A mulher disse: Agora senta aqui e espera que a Marta vai te
atender. Ela me chamou na sala, mandou eu sentar, falou um monte
na minha cabeça. Ela falou: Eu vou te dar uma oportunidade prá
você voltar para a Escola Oficina, só que essa não vai ser pra você
voltar como aluna, vai ser para você ir para a Escola Oficina como
uma funcionária. Eu nem tava entendendo o que era. Daí, ela disse
pra Maria (uma que trabalha lá), pra ela separar mais umas roupa
pra mim, que ela ia dar passagem pra mim voltar pra casa da minha
Vó, que eu ia trabalhar na segunda-feira. Isso era numa sexta, eu
acho, que era pra eu tar lá antes das oito horas. Cheguei lá, era
cinco e pouco da manhã na Escola Oficina.
Explode em novas gargalhadas! As oportunidades criadas para que
o ser humano possa se desenvolver e a forma como respondem a tais condições
podem ser chamadas de eixos estruturantes para as pessoas em condições de
vulnerabilidade. Por esta via, podem recuperar a auto-confiança, o auto-conceito
enquanto pessoa capaz, bem como o desenvolvimento de perspectiva de futuro, ao
sentir-se capaz de lutar pela vida.
141
Acreditamos que, para Judite, este momento tenha sido de
plenitude. Costa (1999) afirma que são os momentos em que o nosso ser e o nosso
querer-ser se abraçam. É quando o sentido da vida, de repente realiza e se
materializa num acontecimento.
Neste momento, Judite interrompe a fala com a chegada de um
homem à porta de sua residência, que fica nos olhando por alguns instantes.
Pergunto se Judite gostaria de interromper a gravação para atendê-lo e sua resposta
é negativa. Sem nada falar a pessoa vai embora. A expressão de Judite está séria.
Posteriormente soube que se tratava do pai do filho que estava esperando. Pergunto
se gostaria de fazer um intervalo e Judite afirma negativamente.
Pergunto-lhe o que fez com que ela permanecesse no Abrigo
Eu sempre tinha, sempre várias recaídas (usava drogas) assim.. tipo
assim....eu ia... fui para a Casa Abrigo porque fui eu e a Roseli ......a
Rose, nós fomos as primeira menina a ir pro Abrigo. Daí, a gente
sempre recaía... aí, eu sempre ligava pra Márcia Lopes, porque
ninguém deixava eu entrar mais...daí (riso) ela pegava o carrinho e
deixava eu lá dentro do projeto, conversava comigo, dava uns
conselhos... Mas daí, tipo assim... eu acho que foi através das
pessoas que queriam me ajudar mesmo...que viam que eu tinha um
futuro ....alguma coisa...que foi que eu consegui ir pra frente.
Um dos papéis do educador é o de impulsionar o educando na
direção da convergência consigo mesmo e com os outros. Ao ser tratado com
dignidade, o educando pode encontrar o equilíbrio em sua vida, bem como identificar
aspectos que contribuem para o desenvolvimento pessoal e social.
Pergunto a ela se esses aspectos foram importantes.
Foram.
Volta a ficar cabisbaixa, com o olhar longe e sem muito ânimo.
Pergunto-lhe se o Abrigo lhe traz alguma lembrança.
Ah... acho que tudo...tipo assim, é você tá ali dentro, tá vendo as
pessoas que tão fazendo um trabalho por você...te tratar como uma
família, né... Lá no Abrigo pra gente, era como se fosse uma
família...era... pessoas assim que gostava da gente.. Tinha o tio
Gerson... pessoal que gostavam muito da gente...então, a gente
aprendeu, né, do Abrigo e a se relacionar com as outras pessoas da
comunidade. Inclusive, no primeiro...o ... dia que o tio Gerson foi
trabalhar lá, ele tinha ..., ele desmaiava. Daí, a gente levou um susto.
Dá gargalhadas descontraídas.
Eu e a Bia catamo uma toalha e queria enfiar na boca dele. Nós
142
queria salvar ele, né? Porque nós nunca tinha visto a pessoa .... Aí
depois disso, ele conversou com a gente, explicou como é que a
gente tinha que fazer se acontecesse. Daí ele cuidava de nós, e nós
cuidava dele e ele cuidava da gente. Tadinho! E ele tinha a ...não só
ele como vários,né. Tinha uns que eram assim mais durão. Que nem
o Gil, que era durão, que eu dei uma mordida nele... assim, né? Aí,
ele me levou para o hospital um dia lá, falando que eu tava doida.
Risos.
Contribuir para o desenvolvimento de crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade nas ruas supera a existência da moradia, alimentação,
higiene. O Abrigo tem um papel fundamental em contribuir para que o adolescente
possa enfrentar os desafios, preparando-o para a vida, para o desenvolvimento de
competências pessoais, sociais, cognitivas e produtivas que possibilitem a sua
realização como pessoa e cidadão.
Neste sentido, não se trata de ressocializar, mas de propiciar aos
jovens condições que permitam a concretização de um caminho mais digno e
humano para a vida.
Judite viveu, no Abrigo, experiências significantes que se tornaram
fatores de proteção na superação da condição de vulnerabilidade nas ruas, ao
serem fortalecidos valores como o acolhimento, a reciprocidade, a aceitação, a
valorização, a solidariedade, o pertencimento comunitário, bem como outros
aspectos essenciais para tornar-se pessoa adulta, como a convivência com a
diversidade, o conflito, a negociação e a relação de troca. E, conforme ressaltado
em capítulo anterior, um indicador da socialização do jovem é a importância que ele
dá à comunidade, no respeito às pessoas ao ter uma ética pessoal que percebe o
outro como uma pessoa com valor.
Cabe ainda, ressaltar que a participação na vida da comunidade é
uma exigência legal para os serviços de Abrigo enquanto direito a uma vida social
na comunidade onde reside, o que Judite apontou ser uma das diretrizes do
atendimento.
Pergunto-lhe qual é o significado dessas pessoas em sua vida.
Ah... acho que representa... não...pra mim, assim, são como se
fossem pessoas da minha família. Pessoas que me
ajudaram..ajudaram não só eu, como tem vários meninos, né?
Muitos que não se recuperaram... e agora tem outros que... ainda
tão.....
Pergunto a Judite por que se referiu às pessoas que trabalhavam no
143
Abrigo ao falar do Serviço.
Porque... me aconselharam... sendo que às vezes, pra mim... era
entrar por um ouvido e sair pelo outro, mas depois que eu comecei a
ver as coisas diferente comecei a pensar. E fui ver que tudo que as
pessoas falavam pra mim era para o meu próprio bem, né.?
A reflexão sobre o vivido e atitude crítica diante da vida favorecem
ver as pessoas e coisas com significado, ou seja, as pessoas e coisas deixam de ser
indiferentes, assumindo um valor que, segundo Costa (2001), poderá ser grande ou
pequeno, positivo ou negativo, construtivo ou destrutivo. Porém, o que faz a
diferença é que, para Judite, desta valorização nasceu o significado para com as
pessoas e coisas da vida. Portanto, ao valorizar a presença, reconhece-se a
importância da socialização e da convivência com o outro.
Na trajetória marcada pela insegurança e incerteza diante das coisas
e da vida, a persistência e investimento no potencial de uma criança em condição de
vulnerabilidade nas ruas favorecem que tenha oportunidade de valorizar tal incentivo
e fazer sua opção diante da vida.
Pergunto-lhe como era o atendimento no Abrigo.
Ah...tinha que passar por uma abordagem...onde que era feita uma
abordagem. Daí, era feito um acompanhamento com você. Daí, você
ia para uma casa. Dessa casa, você ia para outra, até.... assim.
(...)Hoje, o pessoal, eles vão e voltam, então, daí, não é aquela coisa
de família,.....porque, antigamente o, pessoal, eles eram mais
preparado, agora, hoje eu não sei, se continua (...).
Judite confirma um atendimento personalizado, sendo este uma das
prerrogativas exigidas pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, na
unicidade e peculiaridade de cada pessoa, por favorecer a construção da identidade.
Judite começou a demonstrar cansaço. Volta o desânimo para
responder às questões.
Pergunto-lhe como ela entende que deve ser o atendimento de um
Abrigo.
É... eu acho assim, que quem trabalha com menores, tem que ser
trabalhado, assim.., bem preparado. Porque quem vem lá de fora,
meninos que vêm lá de fora, eles não têm consciência mais de ter
uma família. De uma pessoa chegar e falar, você tem que fazer isso
e isso, isso é uma regra disso, e isso. A pessoa tem que trabalhar
com aquela criança durante um tempo, para começar impor umas
regras né? Não, assim, logo de cara, você chega, dita uma regra, daí
é aquilo e é aquilo....
144
Judite insiste no preparo do educador para o desempenho de sua
função, ou seja, a maneira de agir, tendo a capacidade de exercer um papel de
presença significativa na vida da criança. Ressalta ainda, alguns eixos fundamentais
do trabalho dos serviços de Abrigo como a constituição de elos e vínculos sólidos e
consistentes, a qual que permite uma estabilidade e segurança para a prospecção
do mundo, enquanto espaço de filiação, dentro de uma rede de existência social.
Judite também tem razão quando afirma que a simples imposição de
regras tem menor efeito quando não internalizada, principalmente pela população
infanto-juvenil, enquanto um valor; ao contrário, tem maior condição de aceitação e
internalização, provocando o resultado esperado.
Pergunto-lhe o que a fazia retornar às ruas.
Ah... porque, tipo assim a gente ... você quer mudar só que sempre
tem uma pessoa que fala assim: Ih, você vai ficar aí... sabe?... te
dando mal exemplo...daí, você acaba recaindo. Os embalo, né? E
você acaba indo atrás.
Pergunto a ela o que a atraía na rua.
Ah...a amizade. Muitas eram boa, mas muitas não.
Pergunto-lhe quais são os motivos que não a deixam voltar para rua.
Ah, eu tenho... meus filhos, né? Meus filhos, minha casa.... só de
pensar que um dia eu tivesse que chegar a perder meus filhos para a
justiça, assim, acho que...acho que eu não tenho coragem não.
Olha para cada um dos filhos que estão à sua volta acompanhando
a entrevista, sendo correspondida na troca de olhares, como se tivessem uma
linguagem própria.
Pergunto a ela que ganhou saindo da rua.
Ah... a liberdade de viver assim, dignamente. A melhor coisa, andar
de cabeça erguida. Não precisar ficar correndo pra lá e pra cá. Acho
que foi a melhor coisa. Que hoje em dia pra a gente mudar, a gente
tem vários obstáculos... A gente tem que enfrentar... um dia, a gente
passa por isso; outro dia, a gente passa melhor.
Judite demonstra toda sua resiliência ao associar liberdade com o
conceito de dignidade. Afirma que este não é uma condição simples, mas um
desafio a ser enfrentado a cada dia.
Pergunto-lhe o que perdeu saindo da rua.
Ah.... eu não perdi nada.... porque amizade por amizade eu tenho de
145
todo mundo. E onde que eu passo, cumprimento todo mundo, não
discrimino também.
Pergunto a ela se existe algo que não deseja mais para sua vida.
Sofrimento.
Nessa fala, Judite retrata toda a condição vivenciada desde sua
infância, entre outras dificuldades que, às vezes, colocam-se como insuperáveis em
sua vida. Sua biografia retrata a ausência dos mais elementares bens.
Pergunto-lhe se já sofreu muito.
Acho que já... Sabe que hoje em dia vejo a minha irmã, ela tem
dezesseis anos, é uma baita de uma moçona assim e eu pequeninha
cara tudo cheia de... querendo dar ruga, nova como eu sou. Olha só,
você acha?!
Pergunto-lhe quais foram as causas desse sofrimento.
Acho que foi as drogas. É muita química no corpo, no organismo, na
pessoa. No momento que você tá ali naquela vida, você não
percebe, mas você vai envelhecendo, vai perdendo.... vai te dando
falta de ar, você vai tendo vários tipos de problema. Então que nem
hoje em dia parece que eu tô sufocada, parece que vai me dá um
treco....eu tenho facilidade para pegar gripe, essas coisas. E tal e
tudo é decorrente da droga que usei. A única coisa que dou graças a
Deus é que meus filhos são tudo forte e arteiro.
Risos.
A trajetória de vida nas ruas traz algumas conseqüências que levam
ao enfraquecimento físico e moral. O abandono desse modo de vida deixa suas
marcas expressas no corpo e na forma como se vê. Judite confirma as palavras de
Vicente (apud ROSA, 1995), que diz que o corpo é o último território, que sobrou
para o morador de rua, ao ter perdido o espaço familiar, trabalho, comunidade, a
raiz. Assim, quando o corpo vai se perdendo no uso e abuso de substâncias psico-
ativas, deteriora-se sua própria identificação e pertencimento.
Os sonhos e desejos abandonados antes de serem concluídos
marcaram substancialmente a vida de Judite, porém, ressalta a gratidão da condição
de saúde e bem-estar dos filhos.
Eu dou uns gritinhos com eles aqui, mas... são minhas bencinhas,
né, fio?!....
Olha para o segundo filho e dá um sorriso e uma piscada para ele,
que responde com um largo sorriso. Em seguida, acaricia-o, dando concretude às
146
palavras de Boff (1999), pois a carícia é atitude, um modo que qualifica as pessoas,
inclusive as relações que estabelece. A carícia, enquanto um modo-de-ser-carinho,
toca o profundo da alma.
Pergunto-lhe se tem motivos para querer viver.
Ah...meus filhos, né?
O abandono da vivência nas ruas tem, para Judite, um mote
significativo na relação de vínculo e afeto estabelecida com os filhos. Mantém um
propósito de manutenção do relacionamento familiar, demonstrando maturidade
emocional e social.
Pergunto a ela se sua história de vida tem alguma relação com a
história de sua mãe.
Ah.. eu não conheço muito a história da minha mãe. Eu conheci, faz
pouco tempo, né? Então, eu não tive participação da história dela
né? Sei que hoje ela é desaparecida há dezenove anos e a gente
não teve mais contato nada, mais..., por parte assim ... que eu sai da
minha casa por me espelhar nela, acho não foi isso não...
Pergunto a ela se gostaria de dizer algo mais.
Eu tô grávida? Vichi... eu tô desesperada, porque vou sentir... a dor,
é horrível!
Percebo que Judite já não está tão motivada pela
entrevista.Compreendemos que chega o momento de preparar o encerramento da
entrevista, pois segundo Queiroz (Apud PAULILO, 1999), embora tenhamos
escolhido o tema, formulado as questões, é o narrador que decide o que narrar.
Pergunto-lhe o que espera do futuro.
Ah... quem sabe eu possa ser, assim, eu não sonho em ser pessoa
rica, mas eu sonho assim, poder dar uma vida melhor para meus
filhos, poder ajudar pessoas que necessitam, sempre sonhei, assim
em comprar uma fazendinha, plantar um monte de coisa e pôr um
monte de gente pra trabalhar.
Às pessoas, principalmente na fase de adolescência e juventude,
cabe reformular os sonhos até então construídos, ou, simplesmente, abandoná-los.
Não é uma tarefa simples e nem isenta de custos, refletindo-se em todo o seu
desenvolvimento psicossocial.
Judite demonstra não ter desejado vivenciar somente a experiência
biológica da procriação, ou seja, da gravidez e parto. Quer mais: renascer através da
147
vida dos filhos. Para eles reserva os mais escondidos e acalentados sonhos de uma
vida melhor, de um futuro promissor. Mesmo diante de todas as privações que
passou conseguiu assumir a maternagem e paternagem através de um esforço
admirável, ao prover a proteção dos filhos e cuidados do lar, construindo enfim, uma
base segura em relação aos filhos.
Ainda demonstra ‘fôlego’ em manter sonhos e alimentar a utopia de
justiça social não apenas para si, mas para todas as pessoas que vivem a exclusão.
Pergunto-lhe qual a origem das preocupações com os filhos.
Ah... tipo assim, não quero que eles passem pelo que eu já passei.
Se Deus quiser, meus filhos não vai passar tudo o que eu passei
não.
Judite deixa claro que a história vivida não deve e não pode se
repetir, deseja condições de dignidade para os filhos.
Pergunto-lhe se tem mais algo falar.
Sim. Só da dor?
A história de vida de Judite torna-se fascinante pelo fato de, mesmo
tendo vivenciado condições adversas, tanto do ponto de vista individual como
familiar e social, reúne recursos internos que lhe permitiram amadurecer com
dignidade e fazer-se presente integralmente na vida de seus filhos.
Como toda e qualquer pessoa Judite apresentou maiores
dificuldades em expressar os aspectos negativos de sua história de vida; por outro
lado, os momentos de conquistas, alegrias e “peraltices” foram expressos com maior
naturalidade.
148
3.3.3 - A história de Débora
Débora é uma jovem lutadora, tem atualmente, 27 anos, solteira,
independente, não alfabetizada. Trabalha, tem residência própria, moto e um cavalo.
Cultiva uma horta e, segundo ela, a casa tem tudo de que precisa, mas considera
que tem condições, vontade, sonhos e projetos para ser e ter ainda mais.
Gosta da convivência com os amigos e, mesmo com uma história de
dor e sofrimento junto à família, parece insistir em tê-la presente para continuar sua
caminhada. Pode ser considerada uma pessoa resiliente, pois, apesar de todo o
sofrimento vivido, mantém o gosto pela vida. Dá testemunho pelos municípios afora
sobre a sua história de vida, acompanhando a pregação de religiosas de uma
determinada congregação, o que se configura em um forte fator protetivo em
trajetória.
A entrevista com Débora ocorreu numa tarde de julho, em seu local
de trabalho, no qual desempenha a função de motorista.
Solicito a Débora que conte um pouco da sua história de vida.
Mas hoje ou do passado?
Respondo-lhe que fale do momento que você preferir.
Eu me comparo muito, muito, o hoje e o passado, o que ficou. Das
conquistas que eu, que eu conquistei. Vejo as coisas que eu
conquistei, vejo que hoje, eu paro e penso muito: se eu tivesse tido a
chance de conhecer essa vida antes, eu não teria ido pra rua.
Débora confirma, com a história da sua vida, que as adversidades
vividas e a precarização de oportunidades foram condicionadores da sua trajetória
de contato e permanência nas ruas, impossibilitando, na época, um caminho
diferente. Porém, todas as contrariedades não foram suficientes para impedi-la de
construir um novo modo de vida. Na sua resiliência, soube extrair aprendizados que
lhe dão força para persistir naquilo que acredita:
Pra mim, que tudo que eu vi na rua foi uma coisa que me ajuda muito
hoje a viver. Porque como as pessoas estão vivendo no dia de hoje
não é fácil, nessa questão da violência, da droga que tá demais.
Então, hoje, por não, por não estar mais usando, nem na rua mais,
eu vejo como a violência tá... e como Deus me ama muito de ter
permitido que eu vivesse! Porque não foi 10 dias, não foi é 2 anos, 3
anos. Foi 10 anos! Então, hoje, eu me considero uma pessoa muito
feliz... Tenho meus altos e baixos, como todo mundo. Porque não é
fácil uma pessoa que praticamente nasceu na rua e viveu 10 anos na
149
rua e, de repente, ter tudo o que eu tenho hoje. A sociedade cobra
muito as responsabilidades. Até quando a tia Márcia me ajudou, eu
consegui essa casa que eu tenho hoje no São Judas. Uma das
minhas maiores preocupações era como eu ia pagar água e luz,
porque hoje eu tô contratada pela ONG, mas, e amanhã, pode
que eu não esteja mais. Então, é uma das coisas que eu questiono
muito e tenho muito medo porque eu acho que, que o me ajudou
muito, muito, muito a estar hoje, onde eu tô, de ter conquistado toda
essas coisas, das pessoas, da sociedade me respeitar, foi meu
trabalho. Eu me dediquei muito, hoje como você sabe, eu sou
motorista, tô fazendo muito o que eu gosto, que é dirigir. Então, as
conquistas, sabe de tirar a carteira, ter minha moto, ter minha própria
casa. Todas as noites eu deito na minha cama, eu agradeço muito a
Deus pelas minhas conquistas e eu quero cada vez mais. Que nem a
questão do estudo mesmo... assim... eu não tenho que falá pra você
que nem outra pessoa: i, mas eu trabalho 8 horas... Não dá tempo
de estudar. Não, isso é mentira! É que eu não tenho força de
vontade, mas eu sei que se eu tiver um empurrão de alguém, eu vou
pra frente e eu ainda quero muito, muito mesmo. Assim, como eu vi
você... Que eu já te conheço já faz muito, a gente já se conhece faz
muito tempo, na época que eu te conheci, você não era Assistente
Social ainda, né?! Hoje, você é. Como você conseguiu e muitas
outras pessoas que estão na Secretaria... Hoje, que tem concurso,
eu também posso. Eu acredito muito nisso, sabe! E é difícil sabe,
Edsônia, na sociedade..., com medo das pessoas, do que as
pessoas vão pensar de você por você ter sido menina de rua. De
você não dar conta de fazer as coisas e decepcionar as pessoas. De
decepcionar você mesmo, sabe! Porque eu tenho muito... na minha
cabeça... Eu não te obrigo você a gostar de mim não. Gosta de mim,
se você quiser! Eu não ligo muito prá essa questão de fora, sabe! Eu
ligo mais pra aquela questão de dentro mesmo. Olhar pra gente
assim, com humildade, dizer: dá um abraço verdadeiro. Porque tem
muita gente que, que é monstro! É isso daí, eu acho que enquanto
existir um trabalho da Secretaria de Assistência Social e as pessoas
se dedicarem... as pessoas que estão precisando... Na questão de
menino de rua, a gente nunca pode dizer assim: esse não tem jeito;
esse não tem solução. Eu não acredito nessa palavra “esse não tem
jeito”, “esse não vai pra frente, não é assim.
Débora, já em sua primeira frase, demonstra toda a sua resiliência,
ao apontar que na rua aprendeu a superar as adversidades. Mas poderemos
constatar no decorrer de todo o relato, o quanto aprendeu, com os percalços, a tirar
proveito deles e a se fortalecer.
Débora tem consciência de suas conquistas e das dificuldades
existentes para mantê-las. Confia em sua força de vontade, mas se depara com o
medo, por entender que somente ela pode não ser suficiente para manter,
principalmente, sua estabilidade financeira. O emprego se configura em um dos
motivos de sua vida, sentindo prazer quanto à função que desempenha. Neste
sentido, o trabalho torna-se um fator de proteção, pois ao contribuir para a
150
estruturação de sua vida, gera o sentimento de sentir-se incluída na sociedade.
A responsabilidade delegada ao jovem tem um peso significativo em
sua vida, provoca preocupações, medos, angústias, insegurança de não conseguir
corresponder às suas necessidades pessoais e aquelas delegadas pela sociedade,
ou seja, a manutenção da sua própria vida - a administração de todos os aspectos
da sua vida – financeiro, emocional, relacional.
Essas situação torna ainda mais vulnerável o jovem que apresenta
uma trajetória de privações e vivência nas ruas, nas quais as oportunidades de
realizar escolhas e opções são extremamente restritas, além dos estigmas e
estereótipos que o acompanham, gerando assim, dificuldades quanto a sua auto-
confiança. É o medo da desfiliação, denominada por Castel (1988), que assombra
Débora.
Débora ressalta, também, a importância da presença do Estado, na
figura da Secretaria de Assistência Social, responsável pelas proteções sociais.
Castel (1988) reforça que o Estado deve manter suas proteções por meio de uma
ação contínua e acrescenta que se o Estado se retira, é o próprio vinculo social que
corre o risco de se decompor.
Além da presença do Estado, Débora ainda destaca que o ser
humano é um ser único, e que esta singularidade deve ser respeitada no conjunto
da humanidade, entendendo que cada pessoa carrega um potencial e tem o direito
de desenvolvê-lo, não sendo apenas objeto de massificação e rotulação.
Débora prossegue contanto sua história:
Muitas vezes, é que nem eu, quando era adolescente, eu não
pensava.a questão de pagar água, questão de pagar luz, de ter uma
casa. Eu não pensava nisso, eu queria mesmo aquele momento, eu
me fechei pro mundo e eu queria viver aquele momento meu, de
viver o dia! Dizer: ninguém pode me bater, porque a lei me protege!
Não usava esse termo, mas é dizer: ninguém pode me bater, porque
a pessoa que me bate, vai preso, vai acontecer alguma coisa. Isso
era uma segurança pra mim.
A adolescência vivida por Débora é caracterizada como um
momento pessoal de desfrute da vida, sem muita preocupação quanto ao futuro.
Isso o difere da posição de alguns autores que apresentam a fase de adolescência
como que exclusiva das classes favorecidas (OSÓRIO, 1989).
Para Débora, o sentido da proteção pauta-se também no amparo
legal da legislação – ECA, sendo uma garantia de proteção à vida e de
151
desenvolvimento.
Por desconhecimento da fundamentação do ECA, muitos podem
interpretar tal colocação como um simples protecionismo distorcido. Mas, ao
contrário, para as crianças e adolescentes em condição de vulnerabilidade social
trata-se, por vezes, da única expressão concreta de proteção, que os fazem sentir-
se sujeitos de direitos, cidadãos. O ECA, portanto, possibilitou a estruturação de
mecanismos que podem proteger contra a ameaça ou violação de direitos, a
omissão e abuso praticados, o que, para estas crianças e adolescentes, são
garantias fundamentais que podem possibilitar-lhes o desenvolvimento a que têm
direito.
Que nem meu irmão. Mataram meu irmão e, depois, em seguida,
meu pai morreu também. Foi uma coisa que me chocou muito, me
deixou muito pra baixo. Eu achei que eu ia ter uma recaída, mas
não,. Graças a Deus! Com o apoio das pessoas, até com o meu
trabalho, que é uma coisa que eu gosto muito, as pessoas ao meu
redor me ajudô a se senti que eu não tivesse uma recaída e eu, tô aí,
firme, batalhando. E é isso!.
Pergunto a ela como a rua entrou em sua vida.
Como que entrou na minha vida?! Fui prá rua com seis... Fui com
seis pra rua...A rua entrou na minha vida, porque eu não tive opção,
entendeu?! Ou eu ficava em casa apanhando ou eu ia pra rua sabe?!
A primeira coisa, quando eu sai de casa... uu vou sair e não vou
mais voltar. E foi o que aconteceu! Porque daí, na rua, a minha
primeira noite foi horrível. Porque os piá que eu tinha gostado,
ficaram lá o dia inteiro cuidando de carro, quando foi à noite, os piá
voltaram pra casa e alguns ficaram na rua. Então, a sensação de
você ter que comer ali, catar uma moedinha e ia catá uma paçoca,
vai lá e comprá uma tubaína. E aquilo mexe com você, sabendo que
em casa você apanha, escuta aqueles palavrão. Então, isso foi assim
o que me levou ir pra rua mesmo, é isso aí.
No relato de Débora, não resta dúvida de que as crianças que
sobrevivem nas ruas apresentam necessidades agudas e precisam de cuidados
urgentes, pois a situação da população infanto-juvenil se agrava à medida que estão
nas ruas enquanto uma alternativa de vida.
A violência se apresenta numa relação de poder e força, como
apontado por Leal e César (1998), sendo uma articulação de relações sociais gerais
e específicas, ou seja, de exploração e de forças desiguais nas situações concretas,
não podendo, assim, ser vista como se fosse resultante de forças da natureza
humana ou extranaturais – por exemplo, obra do demônio – ou um mecanismo
152
autônomo e independente de determinadas relações sociais. A violência, portanto,
manifesta-se concretamente, através de uma relação de poder que se exerce pelo
adulto ou no caso mais forte, sobre a criança e o adolescente num processo de
apropriação e dominação não só do destino, do discernimento e da decisão livre
destes, mas de sua pessoa enquanto outro.
Débora teve a necessidade de romper com uma condição de
violência doméstica e desconforto, buscando encontrar novas formas de
sobrevivência.
A chegada à rua como condição de sobrevivência, pode ser um
desafio um tanto doloroso e difícil dadas às circunstâncias e adversidades que esse
espaço representa, confirmando-se, assim, os estudos (SAWAIA , 2004; SNOW,
1998) que apontam o quão desafiador é a primeira fase de permanência nas ruas,
pois, mesmo no caso de Débora, que já vivenciava condições de vulnerabilidade,
dada à violência intra-familiar, o novo ambiente gera medo, incertezas e
inseguranças.
A criança e o adolescente necessitam de proteção e quando o
próprio ambiente familiar e o espaço da rua não respondem a essa necessidade,
sentem-se ainda mais fragilizados. Complementando, Leal e César (1998) apontam
que os sistemas culturais, imaginários e simbólicos são processos históricos,
produto das relações sociais vigentes num período determinado das relações de
classes e interclasses sociais. Assim a construção da infância se inscreve nesses
sistemas.
A criança, enquanto pessoa em desenvolvimento, é sujeito de
aprendizagem e, ao aprender vivendo e pensando, constrói o desenvolvimento de
sua pessoa e de sua formação identitária, a expressão de sua autonomia e a
consciência de sua integridade corporal. Leal e César (1998) concordam que a
família e a escola são redes fundamentais de articulação desse processo de
formação da identidade, de proteção, de socialização da criança.
Na relação de aprendizagem/ensino/aprendizagem
66
, os adultos
devem se responsabilizar pela formação das capacidades de decisão, de
discernimento e de sobrevivência da criança em oposição à perspectiva de
subalternização, interiorização e naturalização da infância. Leal e César (1998),
66
Nesta relação o adulto também se dispõe ao aprendizado.
153
então, reafirmam que a compreensão da infância como produto das relações e,
portanto, das representações sociais é pressuposto para a construção da infância,
hoje, na perspectiva de direitos a ter direitos e não de objeto de decisões dos
adultos.
Pergunto-lhe como era sua família.
Minha mãe, ela casou e teve seis filho no primeiro casamento. Do
primeiro casamento, ela separou e amigou com meu pai. Eles
tiveram só eu. Só que daí meu pai violentou minha irmã e depois
esfaqueou outra irmã minha e, por último, ele esfaqueou minha mãe.
Foi quando ele fugiu, eu tinha quatro anos na época, quando ele
esfaqueou minha mãe, por último. Daí, ele fugiu e depois nunca mais
a gente viu. Então, o que levou eu a ir pra rua foi minha família. Era
porque, como meu irmão tinha, meu pai tinha violentado minha irmã,
estuprado,e esfaqueou minha outra irmã, a culpa caiu em cima de
mim. Porque minha mãe passou bastante tempo internada e depois
que minha mãe ficou internada, ela saiu e vendeu a casa e a gente
foi morar lá no Novo Perobal. A gente foi morar embaixo de lona.
Então, tudo que nós tava vivendo, meus irmãos acharam que era
culpa minha. Começaram a me bater e falavam que eu não era filha
da minha mãe. Que eu tinha nascido na lata de lixo. Então, aquilo foi
machucando muito, fora as porrada, que era bastante, e quando foi
um dia eu falei: Vou embora! E foi o que eu fiz, fui pra rua.
Na família de Débora vê-se que a relação não se configurava como
lugar da intimidade e emoções e atingiu a potencialização máxima da violência,
numa reprodução desigual e autoritária. A pobreza não pode ser considerada causa
de abuso, mas constitui uma situação de risco ao propiciar a promiscuidade, a falta
de alojamento, as frustrações da miséria e do desemprego, o analfabetismo, o
alcoolismo, a falta de cultura do diálogo com as crianças. Desse modo, é que Leal e
César (1998) apontam que violência intra-familiar é uma das mais importantes
dimensões da vulnerabilização.
Tanto as colocações de Débora como dos autores, nos fazem refletir
quanto à importância da disponibilidade de espaço que garanta a integridade e que
dê a sensação de bem-estar e segurança. Essas condições contribuem para a
sensação de ser aceito e querido e favorecem as possibilidades de expressão e
criação.
São várias as perdas que Débora vivencia enquanto criança - a
proteção e cuidado necessários, a moradia, o afastamento do convívio com a mãe, o
reconhecimento pessoal e valorização pelos familiares, o espaço e localização no
ambiente da familiar.
154
Na saída para a rua, parece estar despojada de qualquer vínculo de
pertencimento. Torna-se necessário tentar melhor sorte.
Até eu falo muito, foi coisa de Deus, porque 20 anos sem vê meu pai,
eu achei que ele tava morto, e de repente, eu acabei conhecendo
ele. Deus permitiu que eu enterrasse minha mãe em 97, e enterrasse
meu irmão em 2004, e meu pai em 2004 também, 28 dias depois que
meu irmão morreu, meu pai morreu também. Eu falo que isso é coisa
de Deus mesmo. Deus ter permitido que eu enterrasse os treis e
assim, que me surpreende mais, meu pai mesmo, a forma que eu
reencontrei ele. Ele me negô três vezes na minha frente, só quando
eu cheguei mais perto não teve como, ele já chorô por que eu sou o
xerox dele. Me doeu muito, porque no momento que eu vi ele eu não
senti nada, sabe! Nossa! Eu encontrei meu pai e não senti nada por
ele, não tive nem muita chance de conversar e de perguntar coisas
pra ele.
A necessidade de identidade parental, mesmo em relação familiar,
constitui-se como um valor necessário ao qual se valoriza. No caso de Débora,
parece ter ficado um vazio dentro dela, não foi deixado espaço sequer para sentir
ódio pelo pai.
O imaginário do que é uma família parece ser construído e mantido.
As lembranças e sentimentos parecem se confundir, com as carências e
necessidades afetivas acumuladas.
Pergunto-lhe o que foi a rua para ela.
A rua pra mim foi uma lição! Eu acho que se eu não tivesse vivido na
rua, eu não seria essa pessoa que eu sou hoje, sabe! Uma pessoa
pra frente, de não ter medo. Uma pessoa de garra mesmo!Hoje, eu
sei que se eu ficar desempregada, eu tenho outros meios pra mim
sobreviver dignamente.Acho que a rua foi uma ponte pra mim, por
mais que eu sofri bastante... Até você me ajudô muito. Eu acho que
eu tive chance de ter sido assassinada um monte de vezes, tive
chance de virar uma prostituta, tive chance de virar uma traficante,
mas eu acho que Deus olhou assim pra mim e disse: Não! Essa aqui
eu vou fazer... vou fazer uma outra coisa com ela.
Dá um belo sorriso.
Débora coloca a sua passagem pela rua como um momento de
travessia, configurada numa ponte. Demonstra sua capacidade de resiliência ao tirar
do sofrimento uma lição. Débora dá prova do que fez com aquilo que fizeram com
ela, no modo como se vê e se sente. Isso representa uma das etapas apontadas por
Costa (1999) sobre a resiliência, quando a pessoa se compreende e se aceita, tendo
auto-conceito e auto-estima. Essa relação consigo mesma é interpretada como um
sinal de amadurecimento, ao aceitar-se de forma incondicional, demonstra amor
155
próprio.
No decorrer de toda sua história também poderemos perceber sinais
de crença, de sua relação com o transcendental, sendo este outra motivação em sua
vida. No seu imaginário, Deus, enquanto manifestação divina, tem para ela um
projeto de vida com dignidade. Boff (1999) acrescenta ainda que a fé é dizer sim à
bondade fundamental da vida. Débora demonstra, com sua fé, o triunfo do sentido
sobre o absurdo, porque a fé, nas colocações de Costa (1999), exige de nós a
capacidade de irmos fundo na visão de nós mesmos e do mundo. Ao identificarmos
os pequenos sinais, em meio às ambigüidades desta vida, adquirimos motivações
para crer. Mais do que de certezas inabaláveis, a fé, freqüentemente, oscila entre a
dúvida e a esperança.
Desse modo, para Débora, a fé é um fator de proteção, dando-lhe a
segurança para acreditar que vale a pena viver.
Débora continua seu relato.
Então, eu me sinto assim, uma pessoa muito, mais muito feliz. E até
por Deus ter permitido que eu fosse pra rua, que eu vivesse tudo que
eu vivi. Hoje, com tudo que eu tô vivendo... Então, pra mim, de todos
os meus seis irmãos, eu é que me encontro melhor hoje...
financeiramente. De ter uma casinha. Ninguém dos meus irmãos tem
casa! Eu acredito muito nas pessoas, sabe, Edsônia, porque se você
tenta viver sozinho, você não consegue. Você precisa de pessoas
pra podê te ajudar, pra podê te olhar e te dizer: olha, você é
importante! Às vezes, as pessoas me perguntam, como é que você
conseguiu sair da rua, fazer isso e aquilo?! Eu acho que tudo isso
tem uma parceria. As pessoas te ajuda, as pessoas que olha e fala:
Não, esse aqui tem jeito! Não tem! Não existe esse negócio de não
ter jeito! Esse vai pra frente! E não vou dizer... hoje, tá prá fazer três
anos e, já fez três anos e dois meses que eu tô na minha
abstinência. Eu tô num período muito bom da minha vida, que em
três anos e dois meses eu consegui muita coisa. A sociedade me
respeita muito, coisa que, antigamente, não existia. E a gente nunca
pode dizer não quero mais! Por mais que esteje difícil, , a gente tem
que continuar sempre batalhando. E se você chegá a cair, levanta de
novo, meu!Não olha pra aquele, olha pra você. Mas, aquele a gente
ajuda, ajuda, ajuda e sempre tá caindo. Tem que pensar sempre em
você e dizer: Não, eu quero! Eu caí, vou levantar de novo. Vou pedir
ajuda para fulano de tal. Aquele desistiu de você?! Pede pra outro!
Então, eu penso dizer: nunca mais eu vou usar. Nunca mais eu vou
pra rua. Nunca mais eu quero isso. Não posso dizer isso, porque a
gente não sabe o dia de amanhã. De repente, eu posso até
encontrar uma pessoa, assim, que eu me apaixone e, de repente,
aquela pessoa é usuário ou aquela pessoa é um alcoólatra ou àquela
pessoa gosta de ficar na rua. Quando a gente ama alguém, isso é
um exemplo, quando a gente ama alguém, a gente se fecha pro
mundo e quer viver só em função daquela pessoa. Eu nunca vou
156
dizer assim: Nunca mais! Porque, nunca mais é muito tempo,
entende?! Meu irmão... eu fui descobrir que eu amava meu irmão,
depois que ele morreu. Sabe, eu sofro muito! Quando chega dia de
domingo, dá seis horas da tarde, eu choro! Sabe, e eu sou uma
pessoa muito durona! Eu não choro por qualquer coisa, não falo
muito da minha mãe e do meu pai, mas do meu irmão, se deixar, eu
falo todos os dias... Eu fico sozinha no meu canto, porque é uma
coisa que me doeu muito... Eu tive vontade de ir lá e matar aquele
cara, comprar um revólver e ir lá e matar ele. Meu Deus! Se eu fizer
isso, vou ta estragando minha vida, eu não vou estar estragando a
dele...
Débora expressa sua relação com a vida. A vida, no sentido mais
amplo da palavra. A vida é expressa por Costa (1999) como o pulsar de nossas
veias, o vibrar com intensidade em nossos desejos, o clamar por satisfação na
concretude de nossas necessidades, por cintilar em nossos sentimentos e
resplandecer no nosso entendimento de nós mesmos e do mundo natural e humano
do qual somos parte.
Dessa forma, o sentido da vida é considerado uma das etapas
intermediárias no processo do desenvolvimento pessoal e social do ser humano
(Costa, 2000), por ser a linha que une o ser ao querer-ser. Tudo que nos encaminha
na direção e no sentido do nosso projeto de vida, do nosso querer-ser racionalizado,
acrescenta valor à nossa existência. Por outro lado, tudo o que nos detém, desvia-
nos ou nos faz retroagir é visto e sentido como uma agressão.
Débora, tem, ainda, como um dos fatores de proteção, a relação e o
vínculo com as pessoas. Afirma ser uma ‘parceria’ necessária ao desenvolvimento e
bem-estar do ser humano. A relação é um esteio; de fato, podemos dizer uma rede
de proteção que dá segurança, que faz crescer e desenvolver-se e que orienta o
caminho. Trata-se das competências relacionais que envolvem o interpessoal e o
social, pois estar com o outro é a base para o aprender a ser e a estar consigo
mesmo (Costa; André, 2004). É a partir do sentimento de incompletude, que Débora
expressa o desejo de presença enquanto essência da vida.
No reconhecimento do outro como importante, coloca-se em uma
condição de igualdade, o que implica convívio com as diferenças (idéias, valores,
hábitos e costumes), obtendo condições de poder crescer e desenvolver-se.
Pergunto o que lhe vem à cabeça quando ouve a palavra rua.
Ah, vem, assim..., é força mesmo, é a pessoa vive aquilo, é sai
daquilo e, batalha.... Porque a rua é que nem o ar, o ar é livre, né?!
Então, quando você fala de rua é, assim, aquela coisa... sensação de
157
você não ter hora de dormir, hora de usar, hora de tomar banho.
Você não ter regra pra nada! Todas pessoas que têm oportunidade
de ir pra rua, vai pela sensação de liberdade, de não ter alguém
querendo te policiar toda hora ali,entende?! Eu acho que a rua você
aprende mesmo a viver, você aprende a encarar as coisas, a
realidade da gente mesmo. Que a violência da rua é aqui fora, é
no centro, é em qualquer lugar. Você vê coisas bárbaras em tudo
quanto é lugar, não é só no centro, onde fica um mercado, onde fica
um banco, não é só ali..
Débora traça o imaginário constituído do significado que a rua traz.
Para ela, representa a condição de desproteção e fragilidade de vínculos,
associadas a outras vulnerabilidades que permearam seu crescimento Todas as
considerações feitas em relação à rua ajudam a explicar porque, para ela, a rua
exerce tanta atração e até mesmo mais segurança e liberdade. A rua lhe dá a
sensação de liberdade, sentindo-se, por vezes, mais segura do que na própria casa.
Sente-se mais livre. Configura-se relativa “independência” dos pais em relação às
suas necessidades de consumo e satisfação pessoal. O adulto, aquele que
representa a figura da cobrança, da repressão, do controle, está ausente na rua.
Débora minimiza os aspectos negativos da rua.
Pergunto se deixou alguma coisa pra trás quando foi para a rua.
Eu deixei a minha mãe! Eu amava muito minha mãe. Minha mãe me
feriu muito, eu ainda não consegui perdoar ela, porque de todos os
meus irmãos eu sou a caçula e ela não foi atrás de mim. Então, isso
é uma coisa que me dói muito, sabe, porque não é piedade, não
quero que ninguém tenha piedade de mim, porque eu sou uma
pessoa muito feliz, mas é uma coisa que me dói muito. Em alguns
momentos da minha vida, eu penso: por que minha mãe não foi? Por
que a minha mãe não deu isso por mim? Por que que eu não vivi
como todos, como muitas crianças vive de tê uma mãe?. Então,
deixar minha mãe foi uma coisa que me feriu muito, mas, com o
tempo, eu fui largando mão dela, eu fui me abandonando na droga,
me abandonando nas pessoas que conviviam comigo ali. No mundo,
vamos dizer do crime mesmo, porque ali você vê de tudo e está
sujeito a tudo.
A ausência da mãe é ressentida por Débora. Não buscála foi a maior
expressão de abandono, deixando para trás a possibilidade de uma vida “normal”. O
desejo gradativo de se afastar do espaço de casa, aponta para uma busca de
construção de outros vínculos. O que não acontece sem deixar seqüelas na
constituição da identidade da pessoa. Muza (1996) acrescenta, ainda, que o
envolvimento do adolescente com as substâncias psico-ativas, enquanto motivado
por impulsos internos como a necessidade de experimentação, de buscar novas e
158
diferentes emoções, de correr riscos, etc., acaba por incorporar em suas
construções a questão social. O meio sócio-econômico assume, muitas vezes, um
papel de facilitador do fenômeno e as drogas serviriam como um instrumento de
alienação social, uma vez que interessa a uma parcela da sociedade que grupos
menos favorecidos mergulhem nas substâncias psico-ativas, diminuindo, assim, a
competitividade e a exigência pelo poder.
Pergunto-lhe por que saiu da rua.
As pessoas nos dá oportunidade, muitas vezes, a gente não agarra,
até porque a gente não tem força. Que nem eu te disse, não adianta
eu dizer: não dá pra eu estudar, porque dá! É porque eu não curto,
então, é isso, assim. As pessoas apóiam, acredita em você, te da um
voto de confiança e você se senti assim, querida, acolhida pelas
pessoas. Não porque as pessoas vê os meninos de rua hoje, nem
todas as pessoas mas algumas pessoas vê, fala: Nossa! Isso é um
monstro, sai de perto que isso vai roubar ou isso vai fazer alguma
coisa, e não é isso. Às vezes, a gente chega perto de alguém pra da
um abraço... Quantas vezes você não foi xingada? Mas aquele xingo
era de dizer assim: “me dá um abraço?!” A gente não sabe se
expressar: me dá um abraço, tia Edsônia! Quando eu fui pra clínica,
lá na Casa de Nazaré, a Adriana deixava o final de semana de ficar
com a família dela pra ir me ver. A tia Edina, a mesma coisa. Então,
é isso... as coisas que a gente dá valor porque a gente vai
conhecendo, assim, essa outra realidade de vida, que é de
responsabilidade... da sociedade te respeitar. Então, você vai cada
vez mais querendo... Eu sou uma pessoa muito ambiciosa e eu
descobri isso há pouco tempo, porque hoje se você perguntá pra
mim: Débora, você voltaria pra rua? Não volto! Sabe por quê?! Hoje,
eu falo hoje, não volto porque eu tenho uma casa, eu tenho uma
moto, tirei minha carteira e assim as pessoas acreditam muito em
mim e eu acredito em mim e é bom, mas o importante eu acreditar
em mim mesmo, nas minhas capacidades, de falar assim: Se eu ficá
desempregada, eu vou procurar outro meio de sobreviver, de ganhar
meu dinheiro dignamente. Como eu já tinha dito, acho que você
precisa só de pessoas boas que não falem pra você assim: Você não
dá mais; você não é forte. você tem que encontrar pessoas que
falam: Se você cair, levanta de novo, nós vamos estar aqui pra te
apoiar.
Dois aspectos estão presentes - a “oportunidade” e a “força de
vontade”. Oportunidade pode ser aqui entendida como a possibilidade de ser aceita,
querida, cuidada; e força de vontade, para Débora, resultou em condições de
melhorar de vida.
A presença do adulto na vida da criança assume um papel
fundamental quanto ao cuidado e proteção, configurando-se como o apoio afetivo
necessário ao seu desenvolvimento. Débora coloca que a criança em situação de
159
maior vulnerabilidade busca alternativas para suprir suas necessidades afetivas e
sociais, utilizando até mesmo a violência para expressar-se. Os adultos à sua volta,
interpretam tal atitude, muitas vezes, de forma apenas negativa. Reportamo-nos a
Siqueira e Dell'Aglio (2006), estes autores, confirmam que a rede de apoio social
tem uma profunda influência no bem-estar do indivíduo. A rede de apoio social e
afetivo define como o indivíduo percebe seu mundo social, como se orienta nele,
suas estratégias e competências para estabelecer relações, como também os
recursos que o mundo social lhe oportuniza frente às situações adversas que se
apresentam. A ausência de uma rede de apoio social pode produzir um senso de
solidão e falta de significado de vida.
Desse modo, podemos entender que, para a criança em condição de
vulnerabilidade nas ruas, a pessoa adulta torna-se uma referência - modelo
identitário.
Pergunto o que a fazia permanecer no Abrigo.
No Abrigo?! O Abrigo...
Risos.
O Abrigo era uma novela!
Novamente risos.
O bom do Abrigo é que às vezes você toma um banho, você tem
uma alimentação na hora certa. Eu acho que o Abrigo é mais...,
metade de uma ponte. Não pode nem dizer que é uma ponte,
metade, né?!
Débora descreve o Abrigo como outro ponto fundamental de sua
travessia, sua ponte se completa. E continua:
Os educadores, muitas vezes, a gente se apega, se apega a eles.
Então, aquilo te chama atenção, de você querer estar ali dentro. Aí,
vem aquela vontade de usar a droga, você acaba fugindo do Abrigo e
passa uns dias e você lembra: Nossa, mas eu comia lá, do rango de
lá, muito bom! Aí, você lembra do educador e você fala: Não! Eu vou
voltar! E você vai correr atrás do Conselho, de alguém que mande
um encaminhamento pra você voltá pra casa.
O apego, a proteção física e o conforto material faziam contraponto
com a dependência de drogas.
Débora apresenta dois aspectos significativos, que operaram como
fatores de proteção na sua trajetória de vida: o vínculo com os educadores e o
160
entendimento do Abrigo enquanto sua casa.
Risos.
Pergunto-lhe o que vem à sua cabeça quando se lembra do Abrigo.
O que vem na minha cabeça?! Olha, o Abrigo foi novela mesmo...,
Eu acho que o Abrigo me livrou do frio muitas vezes. Eu fui muito
acolhida no Abrigo. Eu acho que não só eu, mas todos da minha
época que viveram no Abrigo. Os educadores olharem pra gente, se
dedicarem prá gente e é como eu já disse, eu quando era
adolescente eu não queria nada com nada eu só queria curtir e mais
nada. Então sobrava era pros educadores, porque quando a gente
tava naquela?! A gente xingava, a gente queria bater, a gente falava
que ia matar, então era isso.
O Abrigo, neste momento da vida de Débora, respondeu à sua
função de habitação, acolhida e pertencimento. Abrigo, para Débora, foi sinônimo de
acolhimento material e emocional. Silva (2004) confirma que um Abrigo deve
oferecer condições de habitabilidade e de convivência saudável, de modo a
favorecer o desenvolvimento e fortalecimento da auto-estima e a identidade pessoal.
Nesta mesma compreensão, Cury (2002) também acrescentam elementos que
consideramos fundamentais no serviço de Abrigo, ao afirmarem que a criança deve
encontrar no Abrigo alguém que a assuma como guardião de pleno direito, isto é,
que tente construir com ela um relacionamento e um vínculo sólido, filial, e que, se
tivesse que perdurar no tempo, criaria a criar condições efetivamente estruturantes.
Pergunto-lhe por que se refere aos educadores quando fala do
Abrigo.
Porque eles foram muito importante! Eu acho que tem muita gente
hoje, eu falo, hoje, assim, antes, eu também acredito que existia...
Tem muita gente que tá no Abrigo, não é por gostá de trabalhar com
menino de rua, não é por gostá de estar ali, de sentir a dor do
menino de rua. A gente não pode falar só do menino de rua, a gente
tem falar do adulto de rua, porque eu fui um menino de rua e hoje eu
sou uma pessoa adulta, mas eu também posso voltar... aí eu
questiono: Será que você que me viu como uma adolescente, uma
criança, será que hoje você daria a mesma atenção prá mim, que
você me deu há oito, dez anos atrás?! Então, isso é uma das coisas
que eu me questiono muito....
Para Débora, a qualificação do educador está na capacidade de
compromissar-se, de “sentir a dor do menino”. Considera também que é mais fácil a
identificação de cuidador com a criança e, provavelmente, não haveria a mesma
disponibilidade com o adulto. Está presente nesta fala a facilidade de reconhecer a
necessidade de proteção para as crianças e não para o adulto em situação de
161
abandono. Débora, então, reforça a importância da interação com as pessoas.
Relação que deve priorizar o compromisso com a causa, acima da necessidade de
trabalho pela necessidade financeira.
Pergunto a ela se chegou a voltar para a rua.
Depois do Abrigo?! Várias vezes, voltei pra rua várias vezes.
Pergunto-lhe por que voltou às ruas.
Por causa da droga. A Casa Abrigo, ela é só meia ponte e ela não
me traz tudo aquilo que eu quero,: como a droga, o cigarro. Porque
naquela época você não podia fumar de jeito nenhum, entendeu?!
Você que tinha que lavar sua roupa. Então, tudo isso, na rua, você
não precisa ter esse tipo de regras. É como eu disse: quando é
criança, é adolescente, você não quer nada com nada, se deixar,
você fica um mês vestindo o mesmo shorts e a mesma camisa,
entendeu?! Que o mundo se acabe, você tendo a droga....
Débora apresenta a dificuldade de estabelecer o rompimento com a
rua, por mais que tenha sido despertada sua “querência” pelo Abrigo, pois a
dependência de substâncias psico-ativas e a imposição de limites, às quais não está
habitualmente acostumada a conviver dentro de quatro paredes, ecoam mais.
Pergunto a Débora o que avalia ter sido essencial ou importante
para que permanecesse no Abrigo.
Uma das coisas que eu achava muito legal no Abrigo era quando os
educador catava a gente ali e levava a gente lá no quartinho e
sentava: Agora, nós vamos conversar. E às vezes, a gente ficava
minutos e minutos conversando, sabe?! Então, eu acho que isso foi,
assim uma coisa muito boa que eu vivi no Abrigo. Foi por muitas
conversa que eu fiquei lá, muitos dias, foi ... pela questão da comida
que você gosta, dos educadores fazer ali a refeição com carinho, dos
educadores fazer... Era a mesma coisa de mãe e pai.
De você falar: Poxa vida! Minha mãe não faz isso e o tio tá fazendo.
Então, nisso chama muito sua atenção. Acho que o que fez eu
permanecer no Abrigo foi essa questão mesmo de diálogo. Do
educador ser profissional, não estar ali só pelo dinheiro, mas estar ali
por sentir sua dor, por falá assim: Nossa, essa criança, esse
adolescente ele tá precisando de socorro! Porque quando a gente
xinga, Edsônia, quando a gente chora, a gente quer quebrar tudo, a
gente quer chamar atenção. É uma coisa que tá ferindo lá dentro,
entende?! E, muitas vezes, um mau profissional acaba te batendo,
você acaba tomando raiva dele. Porque você sabe que a lei nossa
aqui não vale nada, você pode arrebentar o educador no pau que
não vai dar nada pra você. Você vai ficar lá quarenta e cinco dias lá
no CIAADI... Sabe, eu acho que se tem profissional, tem trabalho,
agora se não tem profissional, não tem trabalho. Porque a pessoa, se
ela tá ali só pelo dinheiro, ela não tem paciência. E, em primeiro
lugar, um profissional tem que saber o que ele tá fazendo e o que ele
162
pode fazer.
Para Débora, o educador é a pessoa em quem os educandos podem
confiar. Saber acolher implica estar disposto a escutar, porque a escuta facilita
compreender melhor a cada um conforme a sua individualidade.
Nesse modo de ser e de agir, o educador dá condições para que o
outro possa crescer, quando se coloca como facilitador para que as crianças e
adolescentes criem um olhar sobre o mundo à sua volta, permitindo-lhes tirarem
suas próprias conclusões e decisões. O vínculo entre educador e educando é
essencial para o processo ensino-aprendizagem, tanto que é associado à figura de
pai e mãe.
Agindo assim, a relação estabelecida com o educador passa a ser
um fator protetivo na vida das crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade atendidas no Abrigo.
Em relação à ação do educador, tanto pode ser um fator de proteção
ou de ameaça ao desenvolvimento saudável da criança. Ressalta, ainda, o autor,
que o educador, ao trabalhar com crianças, deve compreender a responsabilidade
de que sua presença, tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da
busca inquieta dos educandos. Sua função é contribuir para que estes passem da
heteronomia à autonomia.
Os educadores que trabalhavam no Abrigo, naquele momento,
tinham a habilidade de escutar e dialogar.
Pergunto-lhe quando pensava em sair da rua, o que a atraía na rua.
A liberdade... Sabe, a liberdade é aquela coisa, é aquilo que eu falo
pra você, é de você não ter hora pra dormir, hora pra comer, hora pra
nada, entende?! Eu, falava: Nossa..., ter que tomar banho em tal
horário, apesar que eu tomava banho quase todo dia. Meu Deus do
Céu, eu não quero. É a mesma coisa do Abrigo, de você ir pro Abrigo
e ficar dois, três dias e falar: Não aquento! Aí um chegava lá no
portão do Abrigo e falava: Vamos?! Ah! Era só pedir!.
Risos.
Pergunto-lhe o que é a liberdade à qual se refere.
A liberdade?! É não ter hora pra dormir, não ter hora pra comer, não
ter hora pra usar droga, usá, se quiser, 24 horas, entendeu?! É viajar
mesmo, sabe?! A sensação de fazer até maldade pro outro... Então,
essa é a liberdade.
O centro urbano desperta grande fascínio nas pessoas;, geralmente;
163
é mais bonito do que a periferia, oferece a oportunidade de acesso ao consumo
rápido de drogas, diversão, exerce um magnetismo pela promessa de liberdade
(RIZZINI, 2003).
Pergunto a ela se tem motivos para não voltar para a rua.
Em primeiro lugar, porque eu me amo muito. Acho que, hoje, eu não
daria mais certo morar na rua, porque eu, às vezes, falo: meu Deus,
eu me acho muito chata, eu gosto muito das coisas certas. E eu acho
que não daria mais certo eu voltar pra rua hoje, porque hoje eu tenho
uma vida nova e, quero crescer a cada dia mais. Eu falo assim pras
pessoas: quando eu era frente de trabalho, o dinheiro da frente de
trabalho eu aproveitei muito, sabe, assim, eu guardei e tudo que eu
tenho hoje, nada foi de roubo, nada foi de droga. Foi do meu suor
mesmo, porque quando não tô aqui, eu tô vendendo produto de
limpeza, matando porco no meio dos sítios pra vender... tô sempre
vendendo coisas da igreja católica, então sempre estou batalhando,
ajudando as pessoas naquilo que eu posso, sabe?!Eu acho que o
mais gostoso é quando você teve um passado de sofrimento e hoje
você poder olhar e poder ajudar as pessoas, né?! Hoje, eu vejo
aquelas pessoas que bebem, que ficam repetindo as mesmas coisas,
sabe, e aquilo vai te dando uma neura, um nervoso, sabe?! Daí, você
fala: eu não acredito que eu fazia tudo isso e mais um pouco... ficar
sem tomar um banho ... aquele cheiro horrível na boca, das pessoas
chegarem perto de você e te incomodar, entende?.... E o amor das
pessoas por mim, porque eu tenho muitas pessoas que me ama, que
acreditam em mim. Então, eu não quero falar pra você que eu não
vou voltar pra rua nunca mais, porque, como eu disse, é muito
tempo, e também não quero dizer que eu não vou voltar pra rua por
causa da tia Márcia, ou por causa da Edsônia, ou por causa de
fulano, ou cicrano, porque me ajudou, eu não quero voltar pra rua por
causa de mim mesmo... porque eu amo essa nova vida!Essa vida de
você poder entrar em todos os lugares, das pessoas te respeitar, de
você poder fazer um churrasquinho na sua casa... .São muitas
coisas, muitas coisas legal, muitas coisas que, quem tem chance, a
tendência é só ir para frente mesmo. E na questão de filhos era ...
pra eu ter uma penca de filhos, mas eu me cuido bem, graças a
Deus, eu acho que, também eu não tô preparada para ter filhos, até
porque eu tenho uma vida muito agitada, como eu já disse, eu sou
uma pessoa assim, .. ambiciosa, quero cada vez mais crescer. Quero
ter filhos, quero casar, não quero casar na igreja de vestido [risos],
mais assim, quero arrumar uma pessoa legal pra mim. Pra mim,
assim, o que importa é sê feliz ...às vezes, as pessoas perguntam,
assim, eu não sou feliz, mas a felicidade é, assim, uma coisa
momentânea, ela acontece aqui, daqui a pouco acontece alguma
coisa que te deixa triste e você acaba deixando um pouquinho
daquela felicidade que você passou, né .. .Muita gente fala: eu fui pra
clínica, eu fiquei lá tantos meses e vim pra cá e não consegui nada.
Eu tenho assim na minha cabeça, que hoje, se você for lá na minha
casa, é claro que a tia Márcia ajudou muito na casa que eu tenho
hoje (a Márcia Lopes)... Se você for lá hoje vai falar meu Deus a
casa mais bonitinha hoje do bairro é da Débora, porque eu murei, fiz
muita coisa dentro da casa, tem dois cômodos lá que eu aluguei para
um amigo na semana passada... , a minha horta, se você olhar a
164
minha horta!
Fica subentendido um processo de conversão ao catolicismo e a
introjeção de alguns valores a ele relacionados: convívio fraterno dignidade humana.
Esse modo de vida contribuiu para condições objetivas expressas na casa, no
trabalho, na qualidade de vida e também nas condições subjetivas como o amor
próprio, a auto-estima, o respeito e a solidariedade.
Nesta última parte da entrevista, Débora, indica a superação da
condição de vulnerabilidade nas ruas ao afirmar que fora das ruas encontrou espaço
para viver, sentindo-se feliz e tendo prazer em administrar sua vida.
Marx já expressava as condições que Débora aponta enquanto
necessárias ao bem estar. Ao dizer que “o primeiro pressuposto de toda a existência
humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições
de viver para ‘poder fazer história’. Mas, para viver, é preciso, antes de tudo, comer,
beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais”. Acrescenta, ainda, o autor, “
que o primeiro ato histórico é, portanto, a produção de meios que permitam a
satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material”.
Débora demonstra que as condições colocadas por Marx contribuem
para que possa ter novos desejos, sonhos e perspectivas em relação ao seu futuro.
Em sua história de vida, pudemos perceber os sinais que lhe permitiram para que
abraçar a vida.
No fazer história, constrói-se a si mesmo, renovam-se as
capacidades que alimentam nossa condição enquanto pessoa na vida coletiva;
busca-se um jeito criativo de estar no mundo a serviço da vida, seguindo em frente,
dando sinal de que o que se quer é viver.
Débora parece buscar as condições apontadas por Castel (2003)
enquanto necesssárias para o viver. Este autor afirma que a vida social não funciona
apenas com bons sentimentos, nem funciona só com o trabalho, e que é sempre
bom ter várias cordas no arco: lazeres, cultura, participação em outras atividades
valorizadoras... Débora busca a concretização dessas aspirações, sente-se
realizada e feliz.
Eu falo: ai, meu Deus, eu adquiri tudo isso. Eu não tenho o que
reclamar da minha vida, então, enquanto eu tiver pessoas que me
apóiam, que me incentivam a ir para frente, a tendência é só eu
caminhar.... É como eu disse, enquanto existir a Secretaria de
Assistência Social e as pessoas não estarem dentro da Secretaria
165
pelo dinheiro, mas .... pela criança e o adolescente e até pela aquela
criança que se tornou um adulto...
A condição de dignidade humana que faltou à Débora no início de
sua infância, não foi suficiente para desumanizá-la, pois se manteve viva, conservou
sonhos, acalentou tristezas. Em nenhum momento, portanto, nega seu passado,
pelo contrário, fez e faz dele um aprendizado. Desse modo, a dor, o sofrimento, a
incerteza não foram suficientes para abalar a confiança na vida.
Identificou pontos de apoio que foram necessários para a promoção
de sua resiliência, tanto que fez de alguns sonhos, realidade.
Ao sentir prazer em viver, ainda alimenta a coragem de lutar para
que outros sonhos e desejos se concretizem, colocando-se ao desafio da busca de
dias melhores, sempre. Como coloca Tiago de Mello, ‘não tem um caminho novo. O
que tem de novo é um jeito de caminhar’.
3.3.4 - A história de Ester
Ester é uma bela jovem, de estatura mediana, olhos miúdos, de
postura meiga, e ao mesmo tempo, firme dona de um belo sorriso. Tem, atualmente,
24 anos, casada, mãe de 3 filhos, sendo dois meninos, um de seis e dois anos, e
uma menina, de três anos. Não chegou a ser alfabetizada, embora tenha
freqüentado, em vários momentos, a escola.
Ester é a terceira filha de um total de sete irmãos. O irmão mais
velho é fruto do relacionamento de seu pai com uma outra pessoa, também tem uma
irmã já falecida. Nasceu em um Distrito da Zona Rural de Londrina; depois, aos seis
anos, foi morar com a família em uma chácara na região Sul.
Após a entrevista tive a oportunidade de conhecer sua residência,
que é simples, mas confortável, organizada e limpa. Fez questão de frizar que os
eletrodomésticos, objetos mais novos na casa, foram adquiridos pela renda obtida
do trabalho esporádico seu e do marido, demonstrando orgulho e satisfação do
modo como os adquiriu. Reside em um terreno cedido pela sub-prefeitura, em casa
de alvenaria, com dois cômodos. Dividindo a mesma parede, reside o pai, num
cômodo. No mesmo terreno, ainda residem os demais irmãos com suas respectivas
famílias. A disposição destas casas forma um “U” no terreno. Ester é beneficiária de
programa de transferência de renda do governo federal.
Tive, portanto, a felicidade de também poder rever alguns de seus
166
irmãos que conheci através do Programa de Ação Comunitária da Secretaria de
Assistência Social, em 1995. Acompanhei o processo de retorno à convivência
familiar do irmão caçula. Todos foram muito receptivos e simpáticos. Durante a
permanência na residência dos irmãos de Ester, pude constatar que a maioria se
encontra desempregada, realizando eventualmente trabalhos esporádicos.
No decorrer de sua história de vida, poderá ser observado o quanto
Ester é uma pessoa resiliente. Persiste em manter sua família unida, deseja uma
história de vida diferente da sua para seus filhos. “Mantém-se em pé”, mesmo
diante da falta de oportunidade de trabalho e renda, o que faz sua família viver em
condições de precariedade, como foi possível observar, ao mostrar os poucos
alimentos que dispunha para terminar o mês. Também pode ser considerada uma
pessoa resiliente, por insistir em ter uma “vida digna” superando a permanência nas
ruas, a abstinência do uso de substâncias psico-ativas, por se recusar a ter “dinheiro
fácil” facilitado pelo roubo.
O contato inicial com a rua foi aos oito anos, deixando-a após dez
anos de idas e vindas, entre a rua e o Abrigo. Ir para a rua talvez significasse a única
alternativa em buscar algum tipo de cuidado e proteção. A saída desse espaço não
foi uma decisão voluntária, embora reconheça que tenha sido o que de melhor
aconteceu para a decisão de um novo modo de viver.
A entrevista aconteceu numa tarde de sol do mês de setembro, na
sede do Projeto Viva Vida da Secretaria Municipal de Assistência Social, localizada
ao lado da residência de Ester, em um distrito da zona rural de Londrina.
Antes de iniciar a entrevista procurei deixá-la um pouco mais à
vontade, pois fazia muitos anos que não tínhamos contato, e talvez fosse bem
possível que não se recordasse de mim.
Ester estava inicialmente um pouco ressabiada e calada. Tentava
ser educada, mas era possível perceber o seu desconforto. Posteriormente a
entrevista transcorreu em clima mais confortável.
Assim Ester inicia sua história.
(...) Daqui, eu fui para o Franciscato, quando era pequena, depois eu
fiquei dois, três meses no Franciscato, depois eu fui para rua.(...) eu
fui para o Franciscato com seis anos e fui para rua com oito
anos(....).
Seus pais residiam na Zona Rural e como muitos trabalhadores
167
rurais, sofreram o êxodo para a cidade, devido à ausência de perspectivas no
campo.
O meu pai trabalhava com rami. Então, nós morávamos numa casa e
os parentes deles moravam do outro lado. Aí, o dono da fazenda
pediu a fazenda, fez acerto com a turma. Aí, pediu para entregar a
chácara, nós entregamos a chácara. Aí, não tínhamos aonde ficar,
nós ficamos na casa de minha avó, madrasta do meu pai. Foi todo
mundo junto... Nós ficamos na casa dela e ela nos tratava muito mal.
Às vezes, meu pai apoiava muito ela....e nós não conseguia se dar
com meu pai.
Ester retrata as privações vivenciadas pela sua família: emprego,
moradia, alimentação, afetividade, convivência e a própria intimidade familiar.
Essa nova condição provoca mudanças nas relações familiares.
Porque na minha casa eu era bem rejeitada, meu pai não ligava para
nós. Nós parava mais na casa dos outros, nós não tinha aonde ficar.
Minha avó negava comida para nós, nós passava fome.
A mãe de Ester ficou doente e acamada e, provavelmente, sem
condições de cuidar dos filhos. Os filhos deveriam permanecer na casa de “outras
pessoas”, em determinados momentos.
... Porque as casas dos outros, não é como as casas da gente... Por
mais que você esteja sofrendo pela ... própria família, mas.... Mas
casa dos outros você...se sente muito humilhada, você não tem a
capacidade de chegar num... fogão tirar um prato de comida pra
gente comer. Os outros já fica olhando....e você na tua casa, não...
você come do jeito que a gente come, ... na casa dos outros não.. na
casa dos outros a gente é muito humilhado porque... eu já passei por
várias casas dos outros .... então, eu... me sentia muito mal...
A instabilidade familiar pode levar à circulação das crianças.
Segundo Fonseca (2002), o hiato existente entre a maternidade e a dificuldade
concreta de exercer a maternagem pode levar as mães a desligarem-se dos filhos,
mas manterem o vínculo por meio de uma circulação temporária (apud ACOSTA e
VITALE, 2005).
Referindo-se a esse tempo na “casa dos outros”, Ester aponta um
aspecto fundamental do espaço de moradia, pois é nele que os hábitos e costumes
são expressos com maior liberdade, é uma identidade para o ser humano. Na
moradia, está a referência e deveria proporcionar estabilidade e proteção.
Para Silva (2004), uma casa só se torna ela mesma quando o
homem a habita, a vivencia, moldando-a com seus costumes, seus desejos, suas
168
angústias, seus sonhos. Significado que Ester não vivenciou em sua infância, pois a
moradia não representava acolhimento, nem aconchego. Porém, Ester mantinha o
respeito, era alguém educada tinha um padrão de limite do que era seu e do que
não era, conhecia até aonde podia ir.
O sentimento de rejeição, humilhação, associado às condições de
privação apontadas, são algumas das situações que provocaram a saída para a rua.
Então, foi assim, fui pegando desgosto e fui parar na rua, por causa
que ela (avó) me tocou para rua ... Aí, de vez em quando eu ia ver
minha mãe, que era muito doente....e aí, depois, ela acabou
morrendo, ....e aí não fiquei mais, continuei na rua.
Ester já se encontra cabisbaixa, tomada de grande emoção, chora
muito, principalmente no momento em que menciona seu “desgosto” provocado pela
convivência familiar, pela ausência de cuidado e proteção, tão necessários a esta
fase da vida. Desde o nascimento, a criança começa a construir suas referências. A
existência da mãe indicava um vínculo e, após sua morte, não sentia necessidade
de retornar para casa.
Não havia nenhuma intenção inicial que despertasse em Ester o
desejo de ir para a rua, seu lugar era junto à sua família. Mais à frente, será possível
identificar, em um trecho de sua fala, que suas saídas iniciais em busca de alimento
e dinheiro para a família, também são questionadas pela jovem. Desse modo, a
saída de casa para a rua se coloca como mais um tipo de agressão e violência , por
não encontrar na família o cuidado e proteção de que necessitava.
Pergunto como a rua entrou em sua vida:
Eu sei lá?! Os outros acham que quem mora na rua só é ladrão!....Eu
acho que eu fui mais recebida na rua do que na própria minha casa.
Quando era pequena, eu e minha irmã, tinha vez que nós saíamos
pelas casas dos outros no São Lourenço...
Emociona-se, chora com grande intensidade. O acolhimento da rua
perpassa toda a fala de Ester, esse sentimento tem grande significado em sua vida.
O fato de sentir-se aceita favorece sua aproximação com a rua, somado a outros
atrativos como o consumo de drogas e a possibilidade do dinheiro fácil. Esses
fatores favorecem a possibilidade de ruptura casa-rua.
Continua o relato, chorando:
Antes de eu ir para a rua ... é na época que nós pedia ali no São
Lourenço .... Aí, depois, nós ia para Londrina pedir dinheiro ..... trazer
para casa. Ia eu, minha irmã e as meninas. Direto, 24 horas, meu pai
169
ia buscá. Eu, de vez em quando, eu vinha apanhando de lá,
Londrina, até dentro do ônibus.
Dá gargalhadas!
Era o tempo de ele deixar eu dentro de casa ... ir para o bar e eu
voltar pra rua.
O fato de o pai ir buscar demonstra uma posição de limite ao filho no
exercício do seu papel de responsável. Porém, o processo de educação acaba não
finalizado pela inexistência de diálogo, aplicação de violência física e limitação de
convívio.
A relação de Ester com a rua acontece por gradativas aproximações.
O primeiro momento se dá pela prática da mendicância próxima ao local de moradia.
Esse contato com a rua tem a permissão do pai, provavelmente por estarem dentro
do território de moradia. Já no segundo momento, à medida que ocorre o
distanciamento do local de moradia, aproximando-se do centro da cidade, o pai
intervém, trazendo-a de volta para casa.
Muitos pais criam em seu imaginário que a prática da mendicância,
enquanto ato que contribua para a sobrevivência da família e exercida nas
proximidades de moradia, não oferece riscos. Esta forma de pensar é ilusória, pois,
em muitos casos, trata-se de um processo inicial de permanência nas ruas e de
contatos com atividades consideradas ilícitas e que trazem danos ao processo de
desenvolvimento das crianças.
A prática da mendicância é um fator que merece atenção também
dos agentes públicos que intervêm neste processo para identificação dos aspectos
envolvidos no vínculo da criança com a rua, assim como para desenvolver
estratégias de prevenção necessárias e adequadas às situações identificadas.
Ester prossegue.
Porque... é um tempo perdido você sair, pedir as coisas e trazer
dinheiro pra casa, trazer alimento pra casa e você ver seu próprio pai
tirar o que você traz para casa pra chegar no bar e trocar arroz e
feijão a troco de pinga, porque não tem dinheiro.... Nossa, era muito
difícil! Porque...quem sustentava a casa era nós mesmo! Meu pai
trocava tudo que nós colocava dentro de casa a troco de pinga!
Antigamente meu pai era muito viciado na pinga....então,
direto..quando minha mãe era boa de saúde ..direto ele ficava
trazendo pinga pra dentro da casa... Eu sentia como se fosse um
castigo ....! Porque ....ele... Foi ele que viciou minha mãe na
pinga...porque...minha mãe não bebia pinga. A minha mãe não podia
nem pegar a pinga. Pai, não pega as coisas nem troca em pinga,
170
porque a mãe não tá boa... Porque, às vezes, desde quando minha
mãe morreu, eu me sinto como se.......a maioria da culpa fosse dele.
Porque....se ele fosse um pai exemplar, fosse um bom marido.. ele
não teria a capacidade de tirar o que ponhava dentro da casa
pedindo dos outros .....tirar o próprio arroz dentro da casa que.... de
vez em quando nós tinha que comer água branca....pra ir lá na porta
do bar trocar a troco de pinga e embebedar sua própria mulher.
Ester expõe toda condição de precarização da vida familiar.
Segundo Silva (2004), a pobreza, ao aumentar a vulnerabilidade social das famílias,
pode potencializar outros fatores de risco, contribuindo para que crianças e
adolescentes mais pobres tenham mais chances de ver incluídos na sua trajetória de
vida episódios de abandono, violência e negligência. A condição sócio-econômica
precária das famílias, ao impor maiores dificuldades para a sobrevivência digna do
grupo familiar, pode funcionar como um elemento agravante e desencadeador de
outros fatores de risco preexistentes.
Percebe-se um imaginário do que Ester entende por família,
relacionado à responsabilidade, competências e papéis de seus membros. Sua
idealização de família é projetada num dever ser – a partir da existência de
afetividade, cuidado e proteção. A relação familiar existente não era a que desejava.
Quando nós não conseguia ganhar.....eu acho que nessa parte a
obrigação não era nossa, era dele... Então, era nós que sustentava a
casa. Foi uma época que nós parou de trazer dinheiro pra dentro de
casa .....e que nós trazia era alguma coisa pra comer, se nós não
comia, nós passava no restaurante, naquele simples, nós comia o
que os outro dava e tava bom. Porque... o que a gente trazia pra
dentro de casa, ia pro bar, não ficava em casa. Nós trazia, ele
levava tudo para o bar, trocava tudo em troca de pinga. Muitas
vezes, ele e... deixava nós dormir pro lado de fora! Então, era melhor
você dormir na rua do que ficar dormindo jogado pela casa dos
outros.
Eu não....não me sentia bem dentro de casa... eu não achava isso
bonito e.... nunca aceitava isso.
Ester inicia uma nova etapa na permanência nas ruas, demarcada
pelo rompimento com a obrigatoriedade de levar dinheiro para casa e justificada pela
necessidade da alimentação. A rua ainda não representa um atrativo, embora
compreendamos que o alimentar-se na rua, além de poder ser apetitoso e saboroso,
poderia ser lúdico e divertido. A decisão de não mais levar dinheiro para casa era
uma tentativa de manter o ambiente doméstico sem bebida alcoólica e a
possibilidade de alimentar-se.
171
A saída para a rua ocorre em momento em que a criança
compreende o que se passa, e faz uma tentativa de rompimento com esta realidade.
Ele direto espancando nós, nós era a mesma coisa que um filho de
cachorro .... Várias vezes ele pegava e amarrava a corda no teto e
amarrava nós de cabeça pra baixo para ficar espancando nós...
porque nós não trazia dinheiro pra casa. Então, nós nem podia sair
pra brincar...ele já... já começava a bater em nós. E... nossa revolta
mais contra ele, até hoje, foi quando ele, pela última vez, ele deu
aquela paulada na perna da minha irmã, aquele problema que ela
manca da perna ...então....eu...não consigo perdoá-lo até hoje, por
causa disso ...
Foi aí que eu acabei indo pra rua! (...). Aí, depois eu nunca mais eu
saí .... Eu não tinha um pingo de vontade de voltar para casa.....
Ester estabelecia parâmetros de valores como o tratamento
desumano tanto de violência física e castigos cruéis quanto da violação do direito de
brincar. Ser criança é ter tempo para brincar, sorrir, chorar, sonhar, colorir. Ter
tempo para viver todos esses momentos.
Ester aponta para o pai todas as (ir)responsabilidades. A
competência de provedor não correspondida, a dependência do álcool, a figura do
marido que não protege a esposa, negligência e a violência intra-familiar. Sua
análise da situação é focalizada na figura do pai, culpabilizando-o por todos os
transtornos e sofrimentos vivenciados pela família.
Segundo Muza (1996), o significado da expressão “pai ausente” vai
além da ausência física do pai, seja ele biológico ou substituto. Trata-se da ausência
psicológica do pai, que corresponde a um pai destituído de afeto, um pai que, apesar
de sua presença física, não reconhece o filho como um sujeito passível de trocas
afetivas, incapaz de exercer a paternagem. Contempla, ainda, a idéia de pais
autoritários e massacrantes, prontos a reprimir qualquer iniciativa criadora ou de
afirmação de seus filhos.
Ester não entende que, além do temperamento e comportamento do
pai, existem outros aspectos que ao atingirem uma dimensão maior, refletem
também em sua família.
Segundo as pesquisas de Nexin (Botarelli, 2002), relacionadas ao
estudo da dimensão psicossocial da dialética exclusão/inclusão, r o maior sofrimento
para o homem é o de não conseguir prover financeiramente o lar, o que motiva o
alcoolismo e a dependência química (apud Acosta e Vitaler, 2005) e, provavelmente,
172
até a violência.
Tais colocações remetem a uma compreensão mais ampla, sócio-
econômica e cultural, que envolve a tradição, aspectos inter-geracionais, poder,
transformações econômicas presentes nas relações estabelecidas em sociedade. É
esse cenário de crise que atinge e fragiliza as famílias, determinando novas
relações.
Segundo Leal (2003), estas relações são difíceis de serem digeridas
dentro da família, especialmente por parte das crianças e dos adolescentes:
alcoolismo, violência, negligência e tantas outras reações que vulnerabilizam sócio-
pedagogicamente esse segmento.
O choro de Ester é intenso e carregado de mágoa e ressentimento,
sentimento de abandono, rejeição e frustração, decorrente das situações
vivenciadas, como a perda da infância enquanto tempo de aprender a vida através
do lúdico, de experimentar e desfrutar o gozo da brincadeira.
O que Ester se referia como “desconforto” é a somatória do acúmulo
de situações vivenciadas, o que provocou uma reação de ruptura, tida como
definitiva, pela indisposição em retornar para casa.
Ester continua a relatar como a rua entrou na sua vida.
E foi aí que eu fui conhecendo o Tiago, que era só ele e o Amigo. O
Tiago e o Amigo entraram juntos na rua...eles já estavam uns dois
meses na minha frente... Aí, todo dia, eu ia pra Londrina, ia lá
conversar com eles.... Aí já começaram a me oferecer drogas . ... aí,
eu fui me envolvendo, me envolvendo e acabei ficando nessa vida.
Na rua, foi possível o encontro com o grupo e com as drogas, sendo
estas uma nova etapa na trajetória de vida na rua.
Esta busca de diálogos com os outros - “ia lá conversar” - de
convivência e de reciprocidade de mútuo aprendizado traduz muito mais do que uma
forma de comunicação entre os seres humanos, mas também uma forma de ordenar
o mundo, de atribuir significado à realidade em que vivemos.
Pergunto a Ester se quando foi para rua deixou alguma coisa para
trás.
Eu?! Acho que quando eu vim pra rua, a única pessoa que deixei pra
trás foi só a minha mãe. Porque ... era a única pessoa que me
apoiava, era a única pessoa que me ajudava e, por mais doente do
jeito que ela tava, ela ia na rua atrás de mim! Eu vivia..., ela ia atrás
de mim! Nunca deixava eu sozinha, era o mesmo tempo dela trazer
173
eu embora, era o tempo de eu virar pra trás. Catar o ônibus e voltar
para trás de novo.... Foi a única pessoa que me apoiou até hoje na
vida. Foi ela! Mas como mãe mesmo, com carinho mesmo, eu não
tenho consideração nenhuma....
A mãe representa, no imaginário, a figura de proteção. Ester busca
localizar um certo tipo de “cuidado" em oposição ao descuido vivenciado. Parece
invocar a presença da mãe como protetora na atitude de defesa diante do ‘risco’.
Ester fala, agora, do seu encontro com agentes públicos - pessoas
adultas -que ofereciam apoio, proteção e acolhimento às crianças e adolescentes
em condição de vulnerabilidade nas ruas. Inicia uma nova etapa em sua trajetória.
(...) conheci a Édina Maria mais junto com os meninos. Foi a primeira
pessoa que começou a apoiar nós, caçando lugar para nós ficar, pois
era muito difícil os outros abrir porta prá colocar nós dentro. Aí, foi
que ela conheceu o padre (...) era o padre do Arthur Thomas. Nós
íamos todos os dias, tomava lanche, almoçava e depois nós
vínhamos para rua de novo. Mas ela estava sempre junto com nós,
todos dias (...)aí, nós ficamos por lá um bom tempo, e, aí, nós
ficávamos lá e na rua.
Ester se refere às atividades desenvolvidas pela Pastoral do Menor
em Londrina, sob a coordenação da Edina Mariane Rocha, pessoa que,
posteriormente, coordenou o primeiro serviço público do município de Londrina para
atendimento a estas crianças.
A atuação de uma entidade/movimento de defesa de direitos,
simbolizada na pessoa da Edina, figura histórica na defesa dos direitos de crianças e
adolescente em situação de vulnerabilidade nas ruas da cidade de Londrina,
militante que tinha/teve como opção de vida o trabalho com essas crianças e
adolescentes, o seu compromisso social e pessoal teve grande significado na vida
das crianças em condição de rua deste município. O contato com pessoas
apoiadoras fez diferença na vida de Ester.
Pergunto o que foi a rua para ela.
A rua, numa parte, foi ruim, mas, numa parte, foi boa, porque foi lá
que eu aprendi a viver, aprendi a mudar, apesar das minhas
bagunças, dos meus roubos.
A rua, para Ester, traz aprendizado, um olhar para além do cotidiano
vivenciado na família. Traz também aventura e desafios.
Solicito que explique o que chama de parte boa e ruim da rua.
(...) a parte ruim é a parte que a gente apronta, que a gente rouba cai
174
na cadeia e que não é a mesma liberdade. A gente que está dentro
da cadeia se arrepende do que fez lá fora, mas quando está fora,
você quer fazer a mesma coisa. O dinheiro que você rouba dos
outros não é um dinheiro abençoado, é um dinheiro roubado. E tudo
que você pega nunca vai pra frente. Eu fiquei, parei na cadeia, (...)
45 dias na minha infância, (...) direto caindo, e da cadeia veio o outro
Abrigo, que eles abriram lá perto... Lá perto do buracão.
Na adolescência, o ser humano oscila sua postura entre a busca do
novo e da independência e o medo do desconhecido e a perda da liberdade. Para
Ester, foi um tempo em que não media muito as conseqüências dos seus atos, não
se preocupava com elas. O mais importante era viver o momento.
A parte boa da rua... A parte melhor que eu não me arrependo até
hoje foi quando eu fiz um furto de quase três mil reais num negócio
de carro. Acabei estourando tudo num rodeio (...) e aí registraram
uma queixa. Daí do rodeio, eu fiquei três dias no SETREM (...). O Gil
fez uma ficha que era pra mandar eu pra Curitiba. Eu subi três vezes
pra Curitiba, nesta terceira vez, não tive chance mesmo, porque daí o
Juiz de lá mandou eu pra lá, porque a pena minha era de oito meses,
que era a pena máxima. De lá, o Juiz assinou que não era pra me
liberar e me mandaram pra Jacarezinho. De Jacarezinho, eu fiquei lá
mais 8 meses que tive que cumprir, era uma casa de recuperação de
drogas. Aí, eu fiquei lá e lá eu tinha tudo.
SETREM era a unidade de internação provisória. Ester se refere ao
Gil, que, na época, era Conselheiro Tutelar. E, numa articulação da unidade de
internação (localizada em Curitiba por não existir o serviço em Londrina na época)
com o Conselho Tutelar, o juiz aplica medida de proteção, encaminhando-a a uma
entidade de tratamento a drogadito nos moldes de uma Comunidade Terapêutica,
usualmente conhecida como de “recuperação de drogas”.
Para se referir ao que foi bom na rua, Ester apresenta duas
situações – a realização de um grande roubo e a reclusão que demarcará a
superação da trajetória de vida nas ruas.
Eu falei para o coordenador de lá: Chegou meu papel da liberdade?!
Não, Ester, chegou outro papel com mais 8 meses! Eu falei: Nossa senhora! Acho
que foi o último dia que eu tive uma tristeza desgramada. Cheguei a chorar mesmo,
de raiva!
Sorri tanto que mal consegue pronunciar as palavras.
Aí, eles me pegaram de lá e me levaram pra Jacarezinho. Eu falei
pra ele: Que lugar é esse que nem conheço esse lugar?!. Mas não!
Lá é muito bom! São duas casas de recuperação de drogas, uma
para as meninas e outra perto para os meninos. Muito bom! Nossa...
eu já tava com que... com dezenove anos.
175
Ester retoma explicando que a intervenção realizada provocou uma
mudança significativa em sua vida.
(...) a minha saída da rua ... para essa mudança foi o dia do ultimo
roubo meu, foi o roubo lá da oficina .. aí, eu fiquei...! Me pegaram no
outro dia de manhã dormindo. Nessa hora eu já tinha estourado todo
o dinheiro. Já não tinha um tostão mais, já tinha fumado tudo em
droga. No outro dia, me pegaram. De lá, eu fui para o SETREM,
fiquei, passei mais uma noite e, de madrugada, já estavam batendo
na cela, que eu, mais o Rodriguinho, tava subindo prá Curitiba.
Porque tava nós dois envolvido no meio. Caiu nós dois! Eu fui para a
Joana Richa e ele para uma casa de detenção e eu para outra, de lá,
eu fui para Jacarezinho e começou....
Joana Richa é nome da unidade de internação feminina em Curitiba.
Neste momento começa uma nova etapa na vida de Ester. É o rompimento com a
permenência na rua. Mais adiante constataremos que se trata de um rompimento
definitivo.
Tinha as pessoas que me ajudaram e lá que começou a minha vida.
Lá eu conheci a Rosinha, nessa época, não era para eu estar aqui,
era pra estar casada. Eu saí, cumpri minha liberdade, depois teve
minha graduação, que era de 8 meses. Foi o melhor momento, que
me ajudou, que eu considerei como minha mãe. Claro que minha
mãe verdadeira em primeiro lugar... Como lá era uma vez no mês
que eu tinha que visitar a família, ela que me pegava, como ela era a
chefe, a dona daquela chácara... Mas lá era pago, muito caro, ela
não cobrava, nunca cobrou e comprava o que eu não tinha
condições, minha família nunca me ajudou. Eu acho que minha ajuda
maior, depois de ter ido pra lá, quando eu fui pra lá, eu achava que
tinham me jogado lá, porque não me queriam mais. Mas o juiz
mandou pra um lugar onde tinha uma pessoa que poderia me tirar
dessa vida. E justamente foi ela. Eu devo minha vida pra ela! Eu
devo tudo para ela e, graças a Deus, eu estou em pé.
Fica evidente, neste relato, a importância que o adulto-referência
teve em sua vida. O cuidado de Rosinha (pessoa responsável pela entidade) para
com Ester foi um fator de proteção que, provavelmente, tenha contribuído para a sua
resiliência, na preservação de sua estrutura psicológica (Tavares, 2001). Porém, o
sentimento em relação a Rosinha é apresentado de forma um tanto ambígua –
confiança e desconfiança. Ester chora muito, demonstrando grande mágoa pela
ausência de sua família. Mal consegue pronunciar as palavras. E continua referindo-
se à Rosinha:
Era ela que comprava o que eu precisava, comprava o meu xampu,
comprava as minhas roupas. Ela comprava cigarros porque eu não
tinha visita, ela que me bancava em tudo... Eu fiquei lá como se
fosse uma filha dela e a proposta dela era que depois da minha
176
graduação, ela queria que eu fosse morar na outra chácara com ela,
ficar com os filhos dela. Aí, depois, eu fiquei lá mais 6 meses, ela
pagou minha passagem pra visitar minha família. Porque lá, não é
qualquer um que eles liberam pra ver, só depois da graduação (...)
Aí, eu vim pra cá e não voltei mais! Aí, uma vez eu tentei fugir e ela
disse: Ester, não compensa você fazer isso, porque se você fizer
estará jogando sua vida fora! Eu falei: Rosinha! Eu não tô fugindo, eu
estou abrindo o portão e saindo da porta pra fora, eu quero ir
embora, eu quero viver com a minha família, a minha família está
longe, eu estou longe deles.
Ester manifesta o desejo de querer tomar a sua vida para si. Neste
momento, Ester muda o seu tom de voz, tenta cessar o choro, passa a mão pelos
olhos, franze a testa e muda o tom da voz, falando alto e com ênfase.
Mas só que o problema lá é que eles não confiavam em mim.Eles
falam que eu não tinha capacidade de ir embora, que eu não ia
conseguir ficar sem as drogas, que eu ia voltar a roubar de novo. Eu
vivia falando: Rosinha, vocês não confia em mim, mas eu confio em
mim! Eu que sei se recuperei ou não. Também admiro o que vem de
vocês, vocês não sabem o que tenho dentro de mim!
Questiona que quem a conhece é ela própria. Ela mesma que tem
condições de saber o que sente.
Eu tinha falado pra Rosinha: eu sei que você não quer que eu
maltrate você, mas eu não quero. Eu quero pegar a minha vida de
volta, eu quero a minha liberdade, eu quero arrumar o meu marido,
arrumar meus filhos... Eu acho que já tá na hora de eu se levantar
sozinha, de parar de depender dos outros, não sou mais criança, eu
sou de maior, eu sei que o juiz assinou você como responsável por
mim, mas você não é mais responsável por mim, eu já tenho vinte
anos e já tenho minha própria liberdade.
Um dado interessante é o significado atribuído à idade de
maioridade associado à independência, liberdade, vontade própria. Ester chora
muito ao relatar sua conversa com Rosinha.
Sente a necessidade de independência.
Antes de sair de lá, a Edina Maria foi me visitar, até a Edina quando
foi lá não acreditou. Ela disse: Ester, se você sair daqui, você vai pra
rua e vai usar drogas de novo ?! Eu falei: Edina Maria, você me
conhecia no passado, você não conhece o futuro da gente, o futuro
da gente quem vê é a gente, não é os outros. Eu tenho que confiar
em mim. Eu que tenho que levantar e não os outros me levantar. A
gente usa drogas é pela própria decisão da gente e não pelas
decisão dos outros. Eu sei que vocês me ajudaram demais, mas já
está na hora de eu me ajudar sozinha.
Foi um dia que ela pagou a passagem pra mim, eu vim de lá pra cá.
Eu tinha um prazo para voltar de três dias e eu não voltei pra casa de
177
recuperação de drogas. Eu liguei pra ela e disse que não iria voltar
mais, que eu ia viver a minha vida!
A decisão de sair da casa de recuperação é uma espécie de teste de
capacidade. Ester avalia corretamente qual era a sua capacidade de superação,
demonstra segurança quanto à decisão tomada. Costa (2001) complementa ao
afirmar que a segurança cresce à medida que vai se sentindo capaz de definir para
si mesma o caminho a seguir e o comportamento a adotar para a realização daquilo
que pretende.
Uma vez que ela (Rosinha) veio pra cá e acabou decidindo vir
sozinha junto com mais dois alunos de lá. Era um dia, eu estava
trabalhando lá perto do Taquara. Ela foi lá dentro do sítio com o carro
e tudo, falar que foi me buscar pra ir pra casa dela, que não queria
mais deixar eu morando na casa de recuperação de drogas, que
queria eu morando na casa dela, que os meninos dela era muito
grudado comigo. Eu falei: Rosinha, eu gosto muito dos seus filhos,
eu adoro todos que estão lá. Mas, eu acho que cada um que saiu de
lá já passaram pelo mesmo que eu passei e, se eles se levantaram
até hoje, porque eu não posso se levantar? Se um pode, eu também
posso, não é porque eu não participo das reuniões que vocês fazem,
não é porque eu não gosto de psicólogo. Eu nunca gostei de
psicólogo. Eu falei: cada um faz da sua vida o que quiser!
Ester aponta a necessidade de reconhecimento e respeito à
individualidade. Declara que mesmo não seguindo todas as regras e normas
instituídas - participação em reuniões, acompanhamento psicológico - sente-se
capaz de superar sua condição de dependência – das ruas, das drogas, da tutela de
um adulto. Afirma, ainda, que só ela tem a responsabilidade sobre sua própria vida.
A fala de Ester nos leva a refletir sobre as regras instituídas e a ausência de
flexibilidade diante da singularidade de cada sujeito. Costa (2001) complementa
afirmando que se espera do jovem em dificuldade que ele se integre no corpo social
como elemento produtivo e ordeiro, sem suscitar qualquer forma de reprovação do
meio, dando-se o nome de socialização à adesão rudimentar a ordem estabelecida.
No enfoque da Pedagogia da Presença, defendida pelo autor, está socializado o
jovem que dá importância a cada membro da sua comunidade e a todos os homens,
respeitando-os na sua pessoa, nos seus direitos, nos seus bens. Ele agirá assim
não apenas por uma lei promulgada ou por meio de sanções, mas por uma ética
pessoal que determina o outro como valor em relação a si próprio.
Continua o relato do contato com Rosinha:
Você pode voltar sozinha, eu não pedi pra você vir atrás de mim, eu
178
te respeito, gosto muito de você, como se fosse minha mãe, você me
ajudou muito lá dentro, mas eu já acho que está na hora de eu se
levantar sozinha. Eu vou ficar até quando dependendo de você? Aí,
ela ficou até brava e disse: Você não vai conseguir ficar aí, sem
voltar para rua, voltar para as drogas.
Reconhece com gratidão e sentimento tudo o que foi feito por ela,
mas tem a decisão firme de se responsabilizar pela sua própria vida. Segundo Costa
(2001), quando a pessoa entende que tem a capacidade de agir e de se modificar,
busca vivenciar esta experiência intransferível de sentir-se autor de sua vida, de
sentir-se livre em face de si mesmo e da circunstância em que foi chamado a existir.
Sua resiliência é perceptível na perseverança da preservação de sua vida. Ester
consegue elaborar o que foi saudável e construtivo para sua vida e em que
momento a proteção exercida por terceiros compromete a sua própria liberdade.
A atitude de Rosinha reflete a dificuldade de muitos serviços em
aceitar a independência das pessoas em relação ao serviço de atendimento.
Parecem sentir-se “donos” da vida e destino das pessoas e, a independência deixa
de ser um aspecto relevante para a condução dos trabalhos realizados.
Neste momento, o choro se mistura a um tímido sorriso,
demonstrando satisfação e orgulho da sua determinação.
Eu falei para ela: eu passei pelas meninas! Eu fiz o meu próprio
teste! Depois de uma semana, eu fui lá, eu fui ver como é que eu ia
reagir perto de drogas. Mas não! A minha reação foi a mesma que eu
tive lá dentro da casa.
Eu conheço meus amigos, eu vejo eles! Você chega, olha para um
saquinho de cola, para uma maconha, para uma cocaína, eu não
sinto prazer nenhum.
Eu falei: Rosinha, se um dia eu voltar pra drogas, a primeira pessoa
que vou ligar é para você vir me buscar, mas se um dia eu não te
ligar, você pode ter certeza que eu não vou estar nas drogas.
Ester é destemida, testou sua firmeza e opção de vida quando
assumiu ao ir ao encontro do grupo que permanecia em condição de vulnerabilidade
na rua e, conseqüentemente, com a droga.
Neste momento, relata o dia em que Rosinha veio visitá-la em
Londrina:
O dia que a Rosinha veio, a Rosinha conheceu a minha família, ela
diretão ligava, eu não conversava com ela, com medo dela ficar
tentando estragar. Mas não, depois eu fiquei um mês aqui, eu casei,
tive meus filhos, eu tô até hoje, graças a Deus em pé! Quem não
179
acreditou em mim, não precisa acreditar, eu que tinha que me
acreditar e se eu ia cair ou não. Eu mesmo é que tinha que fazer
meu próprio teste. E é o que eu falei pra Rosinha: eu falei, você não
acredita em mim, mas eu confiei em você quando você queria me
ajudar. Falei: agora, eu tenho que confiar em mim mesmo, se eu fiz
aquilo, porque eu não posso passar e fazer o meu próprio teste?! As
meninas não passaram?! E direto ela liga pra mim ir pra lá, mas lá é
muito longe e ela sabe que a gente não tem condições.
Sorri timidamente. Ester demonstra a angústia sentida quando
percebeu que a pessoa que representava o apoio recebido pudesse interferir na sua
vida, prejudicando seus desejos e sonhos.
Pergunto a Ester o que vem à sua cabeça quando fala da rua.
Eu não sei, porque depois que eu saí da rua, eu já esqueci tudo!
Sorri! E continua:
Eu já nem .... tento lembrar porque .... depois que ajuntei com meu
marido, foi.. ele que me apoiou em tudo ... ele que tirou... às vezes
quando eu falava... Comigo aconteceu isso, aconteceu aquilo, mas
não... ele me aturou muito. Ele que me tirou dessa ... ele foi a
primeira pessoa de passar comigo, de fazer o teste com os meninos
para ver se eu ia ... recair de novo. Mas não! Eu acho que me
levantei mais ainda, por isso que eu passei lá ... e eu fiquei super
feliz, por isso!E não me arrependo, até hoje não... Quando eu olho
pra eles cheirando cola, eu lembro que eu passei pela mesma
situação...
Uma pessoa que eu tenho certeza que não vai sair dessa situação é
o Tiago. O Tiago tá super acabado, eu já falei pra ele. Ele é a ...
mesma coisa de não conversar com ninguém .... E dessa vida, vai
ser a única pessoa ... uma pessoa muito difícil de sair dessa vida!
Acho que só a morte mesmo é do Tiago....
Aqueles que não superaram a condição de permanência nas ruas
parecem ser desacreditados em razão dos fracassos que marcaram suas vidas. Não
possuem força suficiente para romper essa condição, para defender sua integridade
pessoal.
Também é importante perceber como o afastamento da realidade de
rua passa a ser visto de outra maneira para as pessoas que o superaram,
demonstrando, de fato, a superação da condição de vulnerabilidade nas ruas.
Um outro aspecto que nos chama a atenção é a colocação “ele é a
mesma coisa de não conversar com ninguém”, afirmação que corresponde à análise
de Castel (1998), que diz que muitas pessoas não existem socialmente, não ocupam
um lugar na sociedade, desse modo, são supérfluos, não são vistos, restando-lhes a
180
morte.
Continua Ester, expondo sua relação com as pessoas que ainda
permanecem nas ruas.
Mas eu vou..., Quando eu passo lá, eles me recebem muito bem ...
Eles sabem que eu me recuperei. Eles não têm coragem de chegar e
falar: Qué Ester, cheirar?! Não, eles sempre me apoiaram, eles
falam: Não, Ester, você está certa, porque esta vida não tá fácil.... eu
sempre pensava que ia chegar e eles iam falar: Toma, Ester, cheira
de novo! Vai fumar, vai fazer o que você fazia...! Mas, não...! Eles ...
me tratam do jeito que eles me tratavam! Mas a primeira coisa que
eu me orgulhei deles é que eles nunca me ofereceram a droga para
me recair de novo! Eu acho uma atitude ... honesta porque se fosse
... como eu fui... Eu era... a menina que mais roubava!
Aqueles que ainda permanecem na condição de vulnerabilidade nas
ruas mantêm uma adaptação “simbólica” à estigmatização, parecem não visualizar
perspectivas futuras, não acreditando em si mesmos como capazes de superarem
as adversidades vivenciadas. Outros simplesmente se recusam a se adaptar às
normas sociais. Castel (1998), denomina estes como desfiliados, não se sentindo
pertencentes, como coloca Paugam (2003).
Ester sorri, no canto da boca!
Eu mais Rodriguinho, nós dois era o que mais aprontava! Eu acho
que foi um atitude de.... amigo mesmo. Que nem eu falo sempre pra
Magda, no fundo, eu falo: Minha verdadeira amizade está rua, por
que... eu tinha as minhas irmãs, eu tenho tudo, mas, ... eu não confio
como eu confio nos meus amigos! Meus verdadeiros amigos estão
na rua. Eu nunca pensavam que eles iam me apoiar do jeito que eles
me apoiaram ... E quando eu vou lá,eles falam: Ester, vai embora ....
você tem seus filhos... vai embora cuidar do seus filhos ... Você saiu
dessa vida, se você ficar passando por aqui de novo, você vai acabar
recaindo. Eu falo para eles: A gente só se recai, se a gente quiser!
Se a gente não quiser, a gente não se recai....
É interessante a preservação do vínculo, pois da mesma forma que
a família, os educadores têm uma representação significativa na vida de Ester. O
‘grupo da rua’ representa os bons momentos vividos, o acolhimento não encontrado
na família. É a dialética e dinamicidade que a desfiliação social apresenta na
afiliação entre as pessoas, conforme já apontado em outro momento neste trabalho.
Ester ainda demonstra respeito e companheirismo pelo modo como a colega decidiu
viver sua vida, demonstra solidariedade com a condição na qual vivem na rua.
Eu passo por lá, porque... eu sinto...
Tem dificuldade de falar, está chorando muito.
181
Como... os outros podem me ajudar, eu tento ajudar o Tiago, porque
... foi o primeiro amigo que eu conheci! Foi o amigo que me apoiou
na rua. Ele que sempre carregava eu pra lá, quando eu era
pequena.... Então, eu o considero como meu irmão. Direto eu chamo
ele pra vir pra cá e, ele não vem. Ele fala que aqui é muito longe, que
o lugar é muito feio. Eu falo assim: Aqui é um lugar feio, mas é um
lugar sossegado .... Lá não tem roubo, não tem esses tipos de coisa
... e do mesmo jeito que eu fui ajudada pelos outros, eu quero ajudar
pelo menos um deles.... Todas as meninas que saiu, elas
conseguiram ajudar as amigas delas, porque eu não posso fazer a
mesma coisa por eles?! Então, eu quero que eles passem pelo que
eu passei. Porque .... ele não passou o que eu passei... passar por
tudo e .... ir pra Curitiba, ir pra outros lugar. Então eu não quero que
ele passe pelo que passei ...! E... ele sabe disso! Eu tenho um
carinho muito grande por ele, minhas irmãs também têm um carinho
muito grande por ele. Direto as meninas perguntam: Hoje eu passei
lá e o Tiago está daquele jeitão louco dele. Mas é que nem eu falo
para o Jorge, meu marido: Um dia, eu vou ainda conseguir ajudar o
Tiago ... Só tem uma coisa ...: eu não vou deixar eles para trás ... por
enquanto não ... não é porque eu saí, é que eu vou deixar meus
amigos pra trás....
Complementa apresentando a dificuldade de interferência na
decisão sobre a vida dos outros.
Então, só depende deles, eu não posso obrigar uma pessoa a sair
de uma vida que ela não quer .... Então, a gente tem que lutar pela
própria vontade da gente ...! Porque eu não posso falar: Vocês têm
que sair dessa vida! Não é assim ....Então, eles têm que procurar
ajuda! Eu não procurei ajuda, a ajuda que me procurou ....! Então, eu
me agradeço até hoje de ter saído dessa vida, eu não me
arrependo nenhum pouquinho de ter deixado eles na rua.....
Pergunto se houve algum momento em que pensou em sair da rua.
Não, eu não. Porque... eu acho... pra mim foi uma surpresa do jeito
que eles me pegaram lá, porque ... Eu tava pra completar 20 anos,
eles me pegaram de surpresa! Eu achei que do jeito que
completassem os oito meses lá, o juiz já me dá a liberdade, mas ....
foi um “baft-buft”. Foi oito meses e mais oito meses em outro lugar,
ainda eu falei ...
Sorri, empolgada, ao contar este trecho da história de vida.
Continua:
Nunca tive assim vontade de sair da rua....quanto mais, quanto mais
chegava gente, mais nós virava pra baderna. Eu nunca tive assim
vontade de sair da rua, nem quando eu fui lá...pra Curitiba. Não tive
vontade de sair da rua, me cataram de supetão mesmo pra me
mandar pra lá. Porque ....do mesmo jeito que eu tivesse a liberdade
de Curitiba pra Londrina de novo... uma hora dessa eu acho que era
pra mim estar no mesmo lugar. (...) porque eu gostava. (...) a única
coisa que era bom era o dinheiro e a droga .... nós passava direto 24
182
horas fumando. Era o que me segurava na rua. A droga era o que
mais me segurava na rua. (...) sabe aquela ansiedade de vontade de
fumar droga, eu acabava de chegar em casa, já estava doida,
alvoroçada. Eu era bem viciada ..... muito viciada, porque na época,
quando eu fui para rua nós era em três pessoas e então foi se
ajuntando e ajuntando e nós foi se unindo mais.
O nível de dependência de Ester em relação às substâncias psico-
ativas era elevado, o que interferia em pensar numa outra perspectiva fora das ruas.
Segundo Castro (2001), a droga ilícita – os inalantes, a maconha, o crack, ou outros
– é consumida geralmente fora do espaço da família, muitas vezes, numa relação
de amizade e de pertencimento a um grupo. Acrescenta, ainda, a autora, que o
envolvimento com as drogas também ocorre em função das dificuldades da vida,
“querem se sentir mais leves, mais contentes, porque carecem de referência
familiar”. Cabe pontuar que os serviços públicos de atendimento não deram conta de
superar a dependência que Ester mantinha em relação às drogas.
Pergunto o que é liberdade para ela.
Eu acho que a liberdade que eu senti maior foi quando .... porque lá
é mesma coisa de estar numa prisão, mas não é uma prisão, é uma
casa, uma chácara.
Ester tem dificuldade em se expressar. Tento facilitar a sua
compreensão, colocando que havia dito que tinha liberdade, mas na cadeia a
perdeu. Torno a perguntar o que era essa liberdade, a que se referia.
Porque....eu acho assim, porque quando a gente tá na rua .... você
tá fazendo aquilo que ... não deveria de fazer... e quando você entra
pra dentro da cadeia não é a mesma coisa. Lá, você tá trancado,
você olha, fala assim....: Perdi minha liberdade de tá na rua por
causa .... de um roubo fraco.... se fosse por causa de uma coisa de
valor eu não tava aqui dentro, .... muitas vezes, eu me arrependia lá
dentro. Tinha vez que eu chorava olhando para aquele buraco.
Nossa! A vontade de estar na liberdade, lá fora, ...os meninos... tudo
lá fora. E eu não posso tá lá fora ....
Sorri.
Pergunto se ela tinha liberdade na rua
Eu acho que liberdade, liberdade não! Porque ... a gente vive
correndo da polícia. Vive ... no meio das bagunças dos outros .... a
gente acaba envolvida nas coisas que você não quer se envolver ....
e a hora que você pára dentro de um lugar que você não queria,
você acaba tudo com a tua liberdade ....
Ester esclarece que toda a intervenção realizada de forma contrária
183
à sua vontade é interpretada por ela como uma privação – ‘cassação’ de liberdade.
E, por fim, apresenta o seu significado de liberdade:
A liberdade que a gente tem é quando a gente tá andando com a
cabeça erguida ... olhando para frente, sem olhar para trás .... e
depois que eu vim prá cá, eu esqueci pra frente e esqueci pra trás,
eu vejo só ... os meus filhos!
Ester, portanto, encontra-se diante de circunstâncias relacionadas
ao analfabetismo, à baixa qualificação profissional, à quase que inexistência de
oportunidades. Todos esses fatores colocam-se como limites ao exercício pleno de
sua responsabilidade e liberdade.
Eu penso nos meus filhos em primeiro lugar e pretendo arrumar um
serviço, já falei nem que já .... já fui atrás mesmo de ...já estes dias
atrás, um tempo, eu tinha ido atrás da Edina Maria pra ver um
serviço pra mim porque..... eu assim ... pra mim chegar e falar para
os outros... arrumar um serviço, é difícil....
Para Ester, os filhos são um mote em sua vida, ajudam a preservar
sua resiliência, são estímulo à luta pela dignidade e respeitabilidade e, ainda, à
conquista do emprego.
Sua testa franze novamente e começa a falar com entonação:
Porque se você não tiver uma pessoa lá dentro, que pode pôr você ...
que pode passar uma informação...: Não, ela .... mudou! Ela foi
aquilo, mas ela pode trabalhar....! É difícil! Porque .... quem já
passou pela rua é muito difícil arrumar um emprego e é muito difícil,
porque .... é duro..... os outros não confia nas pessoas...
Ester chora muito, interrompendo a fala por alguns segundos.
A independência, para Ester, está associada à conquista do
emprego, sendo que toda a condição pessoal que detém não é apontada como
suficiente. Necessita de alguém que ateste sua boa conduta.
Por causa das drogas, eu não consegui arrumar minha vida, eu não
consegui unir minha família.... Eu sei o que eu fiz e o que eu não fiz,
eu já me arrependi! Por causa disso eu nunca consegui emprego, eu
preciso trabalhar e eu não consigo. Os outros não confiam nessas
pessoas, e paga quem fez isso.
O período da vida - infância e adolescência – em que deveria
vivenciar a experiência de integração social e profissional foi prejudicado, trazendo
conseqüências que se fazem presentes em seu cotidiano.
Segundo Paugam (2003), aqueles que passam pela experiência da
marginalidade renegada consideram que “margem” é sinônimo de infortúnio, e não
184
podem mais suportar o caráter arbitrário desse status. A dependência de substância
psico-ativa é apontada como um agravante, cujo efeito provocou repercussão em
vários aspectos de sua vida.
Quando tem serviço na roça, eu vou.... Pago para alguém cuidar,
mas.... o serviço da roça não é dinheiro, porque.... sessenta reais por
sábado, você paga trinta , quarenta reais para uma pessoa cuidar
das crianças... Já não compensa. Você se mata numa roça .... já
não recompensa, porque não sobra nem para você e nem para
pessoa que olha por teus filhos....
O trecho abaixo traduz, de modo muito claro, o sentimento de
angústia e de revolta que algumas pessoas que são e/ou se sentem marginalizadas
têm de desejarem um futuro com “verdadeiras condições”, isto é, terem um status
social ligado a emprego, a trabalho.
Acho que a única parte que faz falta na minha vida é .... o emprego,
mais nada...! O que eu queria, eu já tenho, que é meus filhos....
Neste sentido, concordamos com Castel (2003) ao afirmar o trabalho
continua sendo uma referência não só econômica, mas também psicológica,
culturalmente e simbolicamente dominante, como provam as reações dos que não o
têm. O emprego, para Ester, é o máximo da liberdade; sem ele, a vida não fica
completa.
A partir deste momento, Ester relata sua relação com o Abrigo.
Pergunto o que vem à sua cabeça quando se lembra do Abrigo.
Não vem nada, porque.... o Abrigo, pra mim, era mesma coisa que
tá na rua. Porque... eu pulava o portão 24 horas, pra ir cheirar cola lá
pra cima. Depois eu descia de novo! Então, prá mim, era do mesmo
jeito! Eu não me sentia nem na rua e nem no Abrigo, porque .... eu
não dormia lá. Eu dormia lá, só de vez em quando. Quando tava com
vontade de tomar um banho, aí entrava, tomava um banho e fugia de
novo. E, aí, de noite, nós vazava de novo pra rua e só voltávamos
no outro dia de manhã. Lá não era a minha casa e,... lá, bem dizer,
era um lar pra.... acolher nós.... Prá ver se descansava um pouco a
cabeça do povo de nossa cidade! (fazer relação com as notícias de
jornal) Assim .... me sentia do jeito que me sentia.... pra mim dava na
mesma! Porque .... eu entrava, só almoçava, daqui a pouco, não
demorava cinco minutos e eu já tava cheirando cola lá trás , já estava
no meio da rua... Então... mais quem parava mais lá era só as
meninas, eu era mais na rua, eu.... metade lá dentro, metade lá
fora....
A ausência de referência de moradia e de um lar na vida de Ester
teve influência na sua relação com o Abrigo. Era um local de acolhimento, mas não
185
a sua ‘própria casa’. Por outro lado, nesta fase da vida, Ester vivia um momento
intenso de utilização de substâncias psico-ativas, cometimento de atos infracionais,
de total “liberdade”, o que dificultava sua adesão e permanência no Abrigo. Ester
comprova que a permanência de um grupo de adolescentes nas ruas era um
incômodo para a sociedade londrinense.
Pergunto o que a fazia permanecer no Abrigo.
O tempo que eu mais fiquei, foi quando...foi na época do padre ... foi
quando inaugurou, que o padre participou com nós, que ficou um
bom tempo com nós... Eu fiquei... oito meses sem usar droga lá
dentro e.... acho que foi só a única participação boa que eu tive.
Depois, que foi chegando mais gente, esses novato, nós não queria
aceitar, nós queria ficar com aquela turma mesmo.... que já era do
tempo da Edina Maria, antes dos outros conhecerem. Então, nós
queria ela pra nós, não queria dividi-la com os outros. (...) O que me
fez parar, ficar até oito meses sem usar drogas foi...o primeiro
serviço que a tia Edina arrumou pra nós. Foi no cemitério São
Pedro....eu já tava empolgada.....ganhava um pouquinho mais, já
ajudava a comprar alguma coisa.....Sempre ela inteirava! Quando
faltava, ela falava: Toma, Ester, vai lá e compra! Então, ela confiava
em mim, de dar dinheiro na minha mão de vez em quando.
Sorri, satisfeita, como se estivesse lembrando do gesto. Fica
evidente a importância da presença do adulto no estabelecimento de uma relação de
confiança e respeito.
E o padre sempre apoiando nós. O padre fazia o que podia. De vez
em quando, faltava algum alimento, porque a gente não tinha ......A
Edina Maria não tinha conhecimento do Conselho Tutelar direito....
Ela trabalhava por conta própria, ela trabalhava com o próprio bolso
dela, não era direto que ela tinha condições de estar mantendo a
casa.... O padre de vez em quando....aparecia algum alimento, o
padre levava......Muitas coisas assim, veio dos outros de fora, muitas
casas assim de perto levava. Levava suco, levava alguma coisa pra
gente passar a noite. De vez em quando, eles mandavam alimento,
nós cozinhava, quando nós não tinha, nós ia sobrevivendo e a Edina
Maria sozinha .... Ela se levantou sozinha, ela levantou muito bem a
casa, sem a união de ninguém ....só pela ajuda do padre, ajuda dos
outros vizinhos do lado .... Era muito difícil ela deixar nós sair pra
fora, mexer nas casas do lado ...porque a ajuda era mais dos
vizinhos. Então, nossos roubos era mais pra cima do que pra baixo....
Dá gargalhadas! Ester, nesta colocação, aponta que Edina dava
limites aos adolescentes atendidos, buscando reforçar a interação saudável com a
comunidade.
Porque ela sempre....ela mesmo saía sozinha atrás das coisas pra
nós, quando não tinha, ela tirava da bolsa dela mesmo pra comprar
pra nós .....
186
Ester retoma a constituição dos serviços de Abrigo. Continua
relatando o que a fazia permanecer no Abrigo.
(...)A Casa da JK que saiu primeiro, que teve a formação do padre.
Depois da JK todo mundo foi abandonado e aí acabou ficando a
Edina Maria e dois alunos só na casa, e aí eles foram embora para
casa deles. Depois, fecharam a da JK e abriram a da Dez de
Dezembro. Mas na Dez de Dezembro, a Edina ficou pouco tempo
e saiu de lá também. A primeira casa foi a da Edina Maria, do lado do
cemitério São Pedro. Depois, foi que saiu a da Dez de Dezembro. A
única casa que me segurou por um bom tempo mesmo foi ... ali perto
do cemitério São Pedro. Foi a primeira casa com a Edina Maria e
com o tio Gil. Nós era tudo unido, era muito gostoso! Era a Edina
Maria sempre pegando arrecadação de roupa.... e vendia para nós
com dinheirinho falso. Ela pegava um dinheirinho, aquele dinheirinho
de joguinho e vendia para nós. Ela falava que era um real cada peça
de roupa, então com aquele dinheiro nós comprava roupa e
comprava as coisas para nós ....todo mundo comprava. Direto ela
tava inventando alguma coisas....
Fala empolgada, com muita satisfação! Ester se refere a uma
atividade pedagógica desenvolvida no Abrigo junto às crianças e adolescentes.
Aponta também que Edina demonstrava afetividade, interesse e cuidados. A casa da
JK, na proposta que apresentava, foi um fator de proteção na vida de Ester, pela/na
oportunização de conivência mútua, sentimento de pertencimento, a afetividade
como elo que dá unidade às relações estabelecidas. O serviço de atendimento
congregava esforços no sentido de aproximar as crianças e adolescentes atendidos
para o estabelecimento de vínculos de pertencimento.
Complementa:
O que mais segurou nós nas Casas Abrigo foi ela com o tio Gil.... Na
Casa de Abrigo, eu fiquei quase nove meses. Aí, foi saindo um por
um. Um ia fugindo, outro ia voltando. Um saía pra cheirar cola do
outro lado. E aí foi começando... Depois, foi chegando uma nova
turma, já foi desunindo tudo! Nós já era acostumado com o grupo
antigo e ... era eu e a Escovão, a outras meninas. O Tiago, o Amigo,
e aí depois um foi fugindo, o outro. Aí, acabou ficando eu e mais
duas meninas. Aí, eu peguei e voltei atrás dos meninos de novo. Aí,
a Escovão embalou com o outro grupo porque ela era da outra
turma. Aí, eu voltei para o lado da nossa turma .... mais foi a primeira
casa que me segurou.... (...)o tio Gil era mais durão, nós mal fugia,
ele já corria atrás e trazia nós na marra pra dentro... (...) A gente
tinha aonde dormir, onde comer. Na rua, tinha vez de ninguém
comer, tinha vez de nada, ficava dois, três dias sem comer ...
Para traçar uma diferenciação entre o Abrigo e a rua, Ester recorre
ao imaginário, ao se referir às dificuldades vivenciadas na rua, como, por exemplo, a
falta de acesso à alimentação.
187
Castel (2003) afirma que o sentido de pertencimento a coletivos
protetores provoca segurança e contribui para a diminuição das condições de
vulnerabilidades vividas pelas pessoas. No caso de Ester, os adultos-referência e o
grupo de convívio representam este sentido.
Fica perceptível o quanto o grupo, principalmente na adolescência,
acaba tendo uma influência significativa.
Segundo Costa (2000), a interação mais intensa e mais importante
para os adolescentes é a relação com seus pares. Tanto em termos de tempo físico,
como de calor e de intensidade do vínculo, essa relação assume em suas vidas uma
centralidade que, muitas vezes, os familiares e educadores têm dificuldade de
compreender e de aceitar.
Cabe salientar que Ester deixa evidente a importância que o grupo
representa na adolescência, e Musa (1996) acrescenta dizendo que a identificação
do adolescente se faz com aqueles que se encontram no mesmo momento
existencial, o que proporciona um clima favorável à troca de experiências com seus
componentes, possibilitando uma melhor identificação dos limites entre o eu e o
outro.
Ester, neste momento, passa a se referir a um outro Abrigo
municipal onde permaneceu.
Lá, ficamos quase seis meses junto com os meninos, era dividido os
quartos. De lá, nós voltamos pra rua de novo.... aí, ficou aberto
pouco tempo, também fechou logo. Aí, nós continuamos na rua.
Continuei roubando, ia lá de vez em quando... Nós roubávamos, lá
por perto também. Depois, começou a aparecer um serviço no
cemitério São Pedro, comecei a trabalhar lá, era quarenta reais por
semana, a gente recebia sessenta reais todo sábado, comprava
algumas coisinhas e o resto em drogas.
Nessa colocação de Ester é possível identificar que a oportunidade
do emprego não era suficiente para provocar a abstinência em relação ao consumo
de drogas. Também não apresenta se havia a intervenção de outros serviços
direcionados ao tratamento de dependência de substancias psico-ativas.
Mas, às vezes, o tio Gil pegava nós pelas orelhas mesmo e o que ele
tinha que fazer, fazia! Como se fosse um pai ... Se ... quisesse ir, ia.
Mas não entrava mais pra dentro.....então, várias vezes, nós
pulávamos pelo fundo e ia a Edina Maria lá e fazia nós entrarmos pra
dentro de novo ... Mas o tio Gil nunca foi assim, de passar a mão na
cabeça, ele tratava nós como se fosse filha! Pegando pesado
mesmo! A Edina não, sempre coçava nossa cabeça.
188
Ester centraliza sua colocação, mencionando o modo como os
adultos-referência agiam em determinados momentos, comparando os gestos dos
mesmos com o papel de pai e mãe. A forma como se refere à generosidade de
Edina e até mesmo a forma de imposição de limites pelo Gil podem ser
considerados fatores de proteção que favoreceram a resiliência de Ester, como
poderá ser observado ao longo de sua história.
Pergunto o que acha da atitude que os educadores tomavam.
Às vezes, gostava! De vez em quando, tinha vez que xingava muito o
tio Gil.
Sorri!
Eu não gostava, xingava...Eu xingava mesmo... até uma vez, eu
xinguei o tio Gil de perna de cambito de sabiá! Uma vez, ele me
catou pelas orelhas, lá no fundo porque eu tava cheirando cola lá no
fundo, .... (...) Depois que eu saí da rua eu nunca mais vi o tio Gil, só
vi a tia Edina Maria. Eu chego perto da Edina Maria, meu carinho por
ela é o mesmo ... Foi ela ... que sempre apoiava nós na rua ... onde
que nós ia ela tava atrás com a muletinha dela ... Nunca deixava nós
abandonado .... o que ela podia fazer por nós ela fazia ... ! Ela só não
fazia se nós não queresse mesmo ....
A presença da Edina e o seu modo de agir junto às crianças e
adolescentes abrigados demonstram o respeito à pessoa presente em cada um,
acreditando que, para o desenvolvimento pessoal e social, é necessária a existência
de oportunidade para a manifestação dos potenciais de cada um. O respeito é
demonstrado, inclusive quanto à tomada de decisão de cada um deles: “Ela só não
fazia se nós não queresse mesmo...”
Continua Ester:
Vários serviços que tive, foi ela que arrumou ... da JK, foi ela que
arrumou ... do cemitério São Pedro, foi ela que arrumou. Já perdi
vária oportunidades de trabalho por causa de bobeira minha ... Para
mexer com coroa de flor, foi ela que arrumou pra mim ... O que ela
pudesse ajudar nós, ela ajudava! Era só se a gente não queria
mesmo .... mas todos que já passou na mão dela não pode reclamar
que não trabalhou .... todos trabalhou.
Essa colocação traz uma reflexão importante relacionada à
oportunidade correspondida ou não. As oportunidades presentes na vida de Ester,
no decorrer do tempo, fizeram-na refletir sobre si mesma e sua relação com o
mundo ao seu redor.
Pergunto se tem motivações para não voltar às ruas.
189
Eu não tenho nenhuma motivação, eu não tenho nenhum pingo de
vontade... Porque... a rua não tem nenhuma serventia. O que eu
passei na rua, não quero passar de novo e não quero para meus
filhos isso... Até hoje, eu falo para meus filhos, desde pequeno, o que
eu sofri ... Eu não quero que eles sofra, eu não quero que eles
mexam nas coisas dos outros. Porque, ... as coisas dos outros, não é
da gente. Porque eu já fiz isso! E pretendo falar até o último dia de
minha vida. Porque... eu não quero a mesma coisa pra eles. Porque
... eu não quero que eles passe o que eu passei, eu não quero o
mesmo futuro. Eu não quero a mesma coisa que nem eu passei com
minha família. Eu não quero que eles passem comigo..... se um dia
eles forem embora, eles vão pela própria vontade. Mas com as suas
mulher. Mas...ir pra rua, passar o que eu passei, eu não vou admitir
isso nunca. Eu faço isso por eles porque......eu sinto como um
exemplo pra eles. Eu quero ser um exemplo pra eles, o que foi
comigo. Eu não quero a mesma coisa dentro da minha família.
Então.... eu quero continuar passando para eles desde pequeno, pra
eles não ...não fazer o que eu fiz. Porque ...... passar pelas mãos dos
outros, apanhar de polícia e entrar dentro de uma cadeia não é fácil.
Ester explicita sua resiliência ao superar a condição de
vulnerabilidade nas ruas e por desejar um futuro diferente aos filhos, um contexto
social melhor. Na incorporação de valores pessoais e sociais, quer fazer de seus
filhos, cidadãos. Sente-se exemplo de vida, de luta, de resistência e de superação.
Ester procura explicar o que significa estar numa Cadeia:
É muito difícil você conviver com presos gritando a noite inteira na
sua cabeça. Você tem que aprender a respeitar um preso a noite
inteira, porque ... se não respeita é zoado a noite inteira. Você vai
comer, eles ta jogando aqueles pote de merda dentro da sua cela,
então não é a mesma coisa ... Na sua cama, na tua casa, você
come, come com respeito. Dentro da cadeia, não, você come a
mesma coisa que estiver comendo na rua. E melhor você comer um
pão jogado no lixo, do que comer com tudo aquilo jogado no meio do
corredor, dentro da cela. Então, é difícil pra quem passa por dentro
da cadeia.
Outras situações de violência são agregadas à trajetória, além das
vivenciadas na família, ficando também expostos em outros meios sociais – rua,
cadeia - em detrimento do desenvolvimento pessoal e social saudável.
Pergunto a Ester o que ganhou com a saída da rua.
Ahhh, eu?! .... O que que eu ganhei....?! Acho que foi o presente
melhor que ganhei, foi ter minha liberdade de volta! Ter minha vida
de volta.
Fala com muita satisfação.
....ter minha saúde, ter minha recuperação de volta sem .... sem ter
uma vontade de usar uma droga, foi a melhor coisa que já aconteceu
190
em minha vida! Foi .... a melhor coisa mesmo! O presente de Deus
foi ....meu marido, que eu já conhecia ele há muito tempo, que eu
abandonei ele por causa da rua..... e ele me esperou até hoje. Ele
sabia que uma vez eu ia conseguir sair dessa vida. Direto ele
passava... ele sempre me xingava .... Mas não, eu acho, que a
primeira mulher dele foi eu e.... até hoje eu estou com ele, graças a
Deus! ....eu não imaginava assim que ia chegar, de lá da fazenda e
ia encontrar ele me esperando ainda pra mim ele ... Ele só andava
atrás de mim porque ....eu andava na rua, ele não admitia porque eu
andava nessa vadiagem. Então, uma vez ele....pediu minha mão em
namoro do jeito certo e do jeito que eu era, eu abandonei ele. E ....
fugi de novo pra rua.
Alguns aspectos são ressaltados por Ester como condição de vida e
liberdade, como bem-estar pela abstinência voluntária do consumo de drogas - o
reencontro e convivência com a pessoa amada.
Dá um sorriso de molecagem e começa a relatar a relação com seu
amado e a e a idealização de um projeto de vida:
E......quando eu tava em Curitiba, eu direto pensava ....aí eu fui
descobrir que eu gostava dele! Eu achava que do jeito que eu fazia
com ele era a mesma coisa que eu fazia com os meninos, que nem
eu fazia... Mas....eu nunca imaginava que eu gostava dele, foi... foi a
melhor descoberta que tive quando eu tava em Curitiba. Descobri
mesmo que gostava dele. Eu direto mandava carta, mas ele não
respondia, de raiva, porque eu abandonava ele direto. A Edina Maria
tinha que mandar as cartas pra ele, porque eu só tinha o endereço
da Edina Maria.... Mas eu nunca imaginava que eu chegava assim...
Que se eu saísse da recuperação, ia encontrar ele do jeito que
estava, eu ia ficar com ele de novo e ia ter meus próprios filhos com
ele. Nunca eu tive....eu nunca pensava que isso ia acontecer comigo
.... Mas melhor presente que eu tive foi uma pessoa que eu ....
Sua voz mal consegue ser ouvida quando fala:
Acabei descobrindo que eu sempre amava . Foi a melhor coisa que
aconteceu em minha vida e até hoje eu não me arrependo ...não me
arrependo e nunca me arrependi....! Ele é uma pessoa muito boa pra
mim, trabalha quando tem condições. Quando não tem, fica em casa,
e assim veve .... o que pode dar pros meus filhos, ele dá..... É a
maior felicidade que tenho....
Ester demonstra como é bom sentir-se amada e retribuir tal afeto na
convivência familiar. Demonstra alegria quanto à sua realização pessoal por ter
constituído uma família, que tem como base a proteção e cuidado de seus membros,
superando o modelo familiar vivido.
Seu choro sai pelo canto dos olhos, demonstra felicidade.
Pergunto o que perdeu com a saída da rua.
191
Eu não perdi nada! Porque.... na rua, na mesma hora que você tem
amigo, na mesma hora você não tem. Porque, amizade sua é
quando você tá aqui. Mas, quando você tá lá dentro, você não tem
amigo. Porque amigo, que é amigo te ajuda quando você ta na rua e
quando você tá lá dentro.... Então, eu...eu sempre me senti
sozinha.....a minha amizade, era amizade ....Então, quando eu tava
na rua, eu nunca fui de ficar muito junto. Sempre fui de andar mais
separada. Então ... na rua, eles nunca me ajudaram e quando eu
tava na cadeia, eles nunca me ajudaram .... Eu não me sinto
nenhuma dessas partes... O que que eu não esperava aconteceu,
acabou acontecendo, eu sair dessa vida.
Sua colocação, neste momento, é um tanto ambivalente, conflitando
com o colocado anteriormente, em relação à amizade e solidariedade com o grupo
da rua. Aponta que na rua também chegou a sentir-se sozinha.
Pergunto a Ester o que gostaria para sua vida.
O que eu gostaria pra minha vida.....?! Eu já tenho tudo que é meus
filhos, meu marido. E... meu sonho mesmo é de ....que eu tenho é de
entrar na sociedade... porque eu acho que ainda eu não terminei o
meu trabalho. Eu tenho que ... arrumar um serviço pra mim, mostrar
o meu....meu serviço que eu tive lá dentro. Eu tenho que mostrar
aqui fora agora.... o meu trabalho não está bem preparado, porque
eu já passei por vários testes, mas os testes de passar pela casa dos
outros ainda não.... Já entrei em várias casas mais.....comum....Eu
quero um teste pra mim pro ano inteiro, pelo resto da vida, falta a
única coisa.... Então, eu tenho que ver a minha confiança! A
confiança dos outros em mim, porque ....a confiança da minha família
já chega! A confiança das outras pessoas de fora já chega! Eu quero
a confiança dos outros que eu conheço.... Porque, às vezes, você
fala: ah, eu quero um serviço. A pessoa que você conhece não tem
capacidade de dar porque já conhece a sua vida ....e porque eu não
tenho coragem de contar a minha vida pros outros?!, vai pedir um
serviço pros outros com essa vida que você tem, a gente não
consegue, porque essa vida da rua é miserável. Por causa
disso.....porque por mais que você sai de um lugar recuperado,
nenhuma pessoa tem confiança em você..... Então, os bicos que eu
faço é aqui mesmo. Mas é duro ter confiança, de vez eu quando eu
passo e lavo roupa.
Ter um histórico de passagem pela rua, cadeia, Abrigo, serviço de
tratamento à drogadição, é ter vivenciado uma deslocalização social. Na sociedade,
uma pessoa com tal histórico pode ser interpretada como incapaz, o que provoca
descrédito e limite à perspectiva de ascensão social.
Ester conseguiu conquistar vários aspectos em sua vida: a
superação da condição de vulnerabilidade nas ruas, a abstinência com relação à
utilização de substancias psico-ativas, a incorporação de valores pessoais e sociais,
a constituição de uma família, porém ainda sente a necessidade de um emprego.
192
Segundo Paugam (2003), a atividade profissional garante, ao
mesmo tempo, uma segurança material e financeira, relações sociais, uma
organização do tempo e do espaço. Para os jovens, representa a conquista do
status de adulto, portanto, de homem e de mulher.
A questão do emprego, para Ester, envia à sua auto-afirmação.
Enquanto cidadã, parece ser o atestado/reconhecimento de sua capacidade,
honestidade e reconhecimento pela sociedade como também o selo de sua
superação de vulnerabilidade nas ruas.
Pergunto se confia em si mesma.
Graças a Deus eu confio em mim! Porque muitas casas eu roubei
aqui mesmo. Uma delas é o mercado. Que foi o mercado do Mario
Português. Eu acho que foi o primeiro voto de confiança! Porque foi
ela mesmo que me pegou roubando. Acho que a única pessoa que
me deu um voto de confiança, por enquanto ....
O sentimento de estigmatização gera sentimento de desvalorização,
rejeição, insegurança em relação a como os outros a identificam e o que pensam a
seu respeito. É a expressão da dificuldade de afirmação de identidade, demarcada
pelos prejuízos acumulados durante sua trajetória de vida. À ‘pessoa de rua’
associa-se a marginalidade, o cometimento de delitos, entre outros adjetivos que
denigrem. A superação de associação de tal identidade é garantida pelo
reconhecimento social.
Volta a chorar.
Foi ela (a dona do supermercado), porque eu nunca pensava que ela
ia ter coragem de me chamar pra ir na casa dela lavar roupa para
ela, por eu lá dentro. Deixar meus filhos entrarem lá dentro. Porque
da mesma forma que ela não confiava em mim, quando eu roubei o
mercado dela, ela não teria a confiança dos meus filhos. Direto eu
ajudo ela, ela paga o que ela tem que pagar. Não é muito mais
ajuda. Vinte real hoje, já é bastante! Porque é a primeira pessoa que
confiou em mim até agora. De vez em quando eu vou para a Paula,
que é a filha dela, que casou faz pouco tempo. Então, eu vou
fazendo por aqui mesmo até acontecer o que tem que acontecer.
Ester alimenta a esperança de ter direito a um futuro, de pertencer a
uma comunidade e sociedade, de se vincular. Ela simplesmente deseja poder
participar da vida econômica e social e, conseqüentemente, beneficiar-se das
vantagens de ter um emprego efetivo. Ter renda lhe permite subir algum degrau na
escala da hierarquia social.
Demonstrou também a coragem de navegar “por mares nunca
193
dantes navegados”, de abrir caminhos com os próprios pés, reagindo a toda
privação que permeou sua vida no decorrer do tempo.
A decisão de Ester em retornar ao distrito rural onde sua família vivia
e ali constituir a sua própria família parece desejar a afirmação de pertencimento, de
localização territorial, de luta por condições de dignidade a todos seus entes.
3.3.5 - A história de Rute
Rute tem, atualmente, 27 anos, é casada, tem dois filhos, dois
meninos. Estudou até a segunda série do primeiro grau. Trabalha como empregada
doméstica, de segunda a sábado. Quando não está trabalhando, cuida dos filhos, do
marido e da casa. É evangélica praticante.
A entrevista foi realizada em sua residência, numa tarde de
domingo, do mês de agosto de 2005. Rute estabeleceu o dia e horário da entrevista
para que não houvesse prejuízo quanto às atividades que realiza: trabalho, cuidado
com a família, casa, compromisso com a Igreja. Quando cheguei à sua residência,
localizada na região Sul da cidade, já estava me aguardando, com a casa
organizada e limpa, o varal cheio de roupas lavadas e cheirosas.
Rute é extrovertida, alegre, do tipo “de bem com a vida”. Apresenta
grande desenvoltura para se comunicar, a entrevista flui com muita naturalidade e
descontração. A espiritualidade é um mote que anima não só sua relação com Deus,
mas com as pessoas de sua família e de sua comunidade, enfim na relação com a
vida.
A família de Rute, ao vir do campo para a cidade, sofreu com a
adaptação, sendo que as crianças e jovens tiveram contato precoce com as drogas,
o que teve grande influência para a desestabilização da família. Seus parentes,
principalmente os irmãos e sobrinhos, chegaram a situações críticas na vida nas
ruas, alguns faleceram devido ao envolvimento com as drogas e com atos
infracionais, outros permanecem nas ruas até o atual momento e, outros, já adultos,
foram institucionalizados em decorrência do alto comprometimento com substâncias
psicoativas. Diante de tal realidade, Rute saiu de casa para a rua aos doze anos,
permanecendo toda a adolescência entre a rua e o Abrigo.
Solicito a Rute que conte sua história de vida.
Dá uma grande gargalhada!
194
A minha história de vida? Pra mim contar agora do presente ou do
passado?
Respondo que poderá começar como quiser.
O que eu falo?!. Ah! Eu tenho vergonha de falar... .mas hoje eu
tenho orgulho da minha vida, né! Minha história é.... que eu sou de
uma família pobre,bem pobrezinha. Meu nome é Rute, sou casada
agora,.tenho dois filhos, um filho chama Lucas e o outro, Tiago, e
meu marido chama Pedro, Pedro Henrique. Nasci em Maringá, Santa
Casa de Maringá no dia 20 do 10 de 78. (...) não lembro o porquê
que meu pai veio pra cá, pra Londrina... Meu pai gostava muito de
mudar, gostava de sítio, de viver em chácara, e eu .acho que foi isso
que fez ele vir pra cá, pra Londrina.. porque assim que eu nasci lá,
eu já vim embora pra cá, aí eu fui criada aqui... A gente teve uma
chácara e depois.....não deu certo, fomos morar no sítio de novo,
deixamos nossa mãe pra trás, depois nóis voltemos de novo, assim
quando meus irmãos eram todos vivos, né. (...)Nóis viemos para
Londrina, ficava um tempo aqui, um ano às vezes. Vichi! Nóis
moremos em um monte de lugar... Nós moremos lá no Shangri-lá,
...perto do Atacadão, nós moremos ali, não sei se você se lembra
que ali tinha um predinho que era abandonado... antigamente, nós
veio pra cá... eu tinha sete anos quando vim para o Novo Perobal.
Viemos todos.
Rute retrata bem o processo de êxodo vivenciado pela sua família. A
migração coletiva de milhões de pessoas no mundo nos lembra que o Êxodo
continua atual. Todo ser humano que sai de sua pátria e migra para outro país ou
região está em êxodo, ou seja, busca melhores condições de vida e liberdade.
Êxodo, na concepção teológica, é apresentado como a esperança de libertação
social e política. Complementando, o teólogo Gutiérrez acrescenta que a “lição do
Êxodo" é, antes de tudo, a "construção do homem por si mesmo na luta política
histórica". O povo não se conforma com a situação de falta de dignidade e opressão
e sai em busca de vida nova, alimentada pela utopia de encontrá-la num novo
território. Ocorre que, quando tal busca não se concretiza, o caminho para a
marginalidade social pode se abrir.
Rute prossegue:
Então, quando meus irmãos era cinco, meu pai era vivo né...
Voltando para trás na história do pai.: Quando meu pai era vivo, nóis
tudo era unido! Aí, depois, meu pai faleceu e minha mãe tinha muitos
filhos... meus irmãos, já no começo, usava drogas escondido do meu
pai, né..., meu pai tentando controlar eles, mas não teve como... Aí,
como que meu pai faleceu, a família foi tudo desunida,.... Cada um
foi para um canto, meus irmãos foram para rua, morar na rua, né,
abandonemos nossa família que é a nossa mãe. Eu tava na escola,
minha irmã me tirou da escola quando eu passei para terceira
série.... eu fiz só o segundo ano. Aí, a gente...sei lá, alguma coisa
195
assim.... aconteceu... Assim, um.... eu posso dizer assim... na minha
linguagem evangélica, uma maldição de família, porque eu creio que
foi uma maldição que jogaram em minha família. Sei lá o que
aconteceu que cada um caçou o seu destino, e os destinos que nós
cassemos não foi nada pra melhor, foi só pra pior, porque eu perdi
meus irmãos na rua, meus irmãos morou tudinho na rua, perdi eles
tudo. Porque era tudo viciado em drogas, e eu também fui viciada em
drogas, né.. .depois eu fui pra rua, morar na rua. Eu fui pra rua eu
acho que tinha, uns...doze anos, quando eu fui morar na rua...tinha
doze anos... E aí, quando a gente está na rua... A gente não liga pra
vida, né.... .Que nem vocês mesmo viam, né, ninguém ligava pra
vida, ligava pra tomar banho, não ligava pra comer, pra nada.
O meio rural oferecia certa tranqüilidade, a vivência na cidade
apresenta uma simbologia e atrativos que provocam rompimento e conservação de
alguns valores e referências na família de Rute.
Rute ressalta, em sua primeira referência à família, que a união se
fazia presente, pois todos estavam unidos. Ocorre que os laços começaram a se
esgarçar a partir de abalos internos como o falecimento do pai, a dificuldade da mãe
em manter a coesão familiar e, provavelmente, a manutenção material da família e,
ainda, pelas interferências externas, representadas pelo consumo e dependência de
substâncias psico-ativas, a busca da alternativa na rua, a evasão escolar. E, dessa
forma, Rute interpreta todos esses acontecimentos que interferem na dinâmica
familiar, associando-os a questões místicas e divinas, a uma outra instância da vida,
o sobrenatural, quando diz que acredita que uma maldição tomou conta da família.
As perdas vão se somando e se sobrepondo, apresentando-se como
dificultadoras de encontrar um modo (saudável) de viver. Perda do território, do
espaço familiar, do trabalho, da comunidade, da raiz, caracterizando-se como um
processo seqüencial de perdas sucessivas.
Rute, em sua referência à família, confirma as colocações de
Acosta; Vitaler (2005), que afirmam que no mundo simbólico dos pobres, a família
tem precedência sobre os indivíduos, e a vulnerabilidade de um de seus membros
implica enfraquecer o grupo como um todo.
Continua:
Meus irmãos, um você conhece, né, que é o finado Tito, que morou
na rua..e... o finado Tito. O Robson, o Fú, que os meninos colocaram
o apelido nele de Oreia Seca, depois era Jamanta.....ele morreu lá no
João Turquino. O finado Tito morreu no Igapó...e...o agora o meu
sobrinho Fabrício, que ele morreu já vai fazer quatro anos, que ele
morreu....que mataram ele, ali nos pé de manga, né... Ali em cima.
196
Castel (1998) coloca que os marginalizados vivem como se tivessem
deixado de habitar este mundo. Pergunta o autor os motivos que teriam levado a tal
condição. Ele mesmo identifica as respostas através de estudos realizados – a
miséria dos casais; famílias destruídas; mulheres abandonadas; viúvas. É como
estar sem “fé nem lei”, isto é, sem o sentido de pertencimento social. Nas
colocações de Rute, embora relate as mortes ocorridas como conseqüência natural
do modo de vida, elas são perdas brutais, trata-se de uma condição de barbárie, que
soma as ausências, tanto objetivas como subjetivas de condições de vida,
associadas ao uso, abuso e tráfico de drogas. Cabe ressaltar que a insuficiência de
serviços públicos eficientes também se configura em violência perpetrada pelo
Estado contra a população (ZALUAR, 2004).
Após um breve silêncio, como que em respeito às vidas ceifadas dos
membros de sua família, Rute continua, dá uma longa gargalhada, quando começa
a falar da fase de vida nas ruas. Passa do histórico da vida da família a contar sobre
ela própria.
Então, só vivia aquela loucura besta! Loucura de paranóia mesmo,
que não tinha nada a ver. Mas aí, graças a Deus, Deus abençoou a
minha vida, né. Deus me deu um filho, que eu gosto muito do meu
filho, amo muito ele, que é uma coisa muito importante na minha
vida. Depois assim, eu sofri muito nas drogas, sofri muito nas drogas,
eu fui espancada na rua, até mesmo por polícia por moradores...
Assim, por comerciantes também..., tanto também nós apanhava
como também nós judiava, né! Porque as pessoas de rua é triste,
né?! Deus o livre!
Rute expõe o sofrimento diante da violência – drogas e
espaçamento nas ruas. O uso e abuso de substâncias psico-ativas trouxeram
marcas na sua vida. Segundo Zaluar (2004), a droga hoje se associa a uma cultura
de valorização do dinheiro, do poder, da violência e do consumismo. Seu comércio,
como alhures, tornou-se uma enorme fonte de lucros altos e rápidos (Fonseca,
1992); Salama, 1993) e de violência. A demanda, que garante os altos lucros do
empreendimento, é decorrência de mudanças no estilo de vida e nas concepções do
trabalho, do sofrimento e do futuro. Depois da II Guerra Mundial, o hedonismo
colocou o prazer e o lazer à frente das preocupações humanas. O jogo, as drogas, a
diversão tornaram-se o objetivo mais importante para muitos setores da população,
especialmente os mais jovens.
Rute parece sentir que a maldição termina, uma vez que Deus a
197
abençoou com um filho.
Novas gargalhadas. Continua:
É que ninguém ligava pra nada, não ligava pra nada! (...)Só que
graças a Deus, que chegou um dia, que Deus colocou um basta em
minha vida, né... Porque eu via acontecendo tanta coisa, tanta coisa,
amigos morrendo na rua, que nem nós perdemos muitos amigos na
rua, o finado Neguinho Doido, perdemos bastante amigas na rua.
Então, eu fui vendo aquilo, fui vendo e eu falava pra Deus que aquilo
não era vida pra mim... que eu queria mudar de vida. Mas como eu já
tava dependente das coisas, que eu tava dependente das drogas,
então, eu não tinha forças sozinha, eu não tinha forças... Por mais
que eu não tinha forças, eu buscava Deus. Eu buscava Deus na hora
da loucura, eu buscava Deus e falava: Senhor, tenha misericórdia de
mim, eu não quero viver essa vida. Eu quero mudar de vida, eu
quero cuidar dos meus filhos... que já que eu tenho dois filhos, eu
tenho que cuidar, né?!
Os dois filhos de Rute nasceram quando ainda permanecia nas ruas,
são frutos do relacionamento com um jovem do grupo da rua. Rute continua:
E foi aí que eu perdi meus dois, perdi meus dois filhos no Lar, que
graças a Deus esse, o Lucas, que mora comigo, Deus fez com que
eu conseguisse ele de novo. Mas... o outro, como não era registrado
no meu nome e era muito novinho, o juiz tomou de mim e deu para
uma família que eu nem conheço....que é o Tiago, ele vai fazer 8
anos agora em janeiro, dia 16 de janeiro ele faz 8 anos. Então, esse
aí, eu só vi ele até quando ele tinha três meses, depois dos três
meses, eu nunca mais vi ele... Aí, então, tudo isso daí ficava gravado
na gente, porque a gente é ser humano... O erro... a vida trás...
vários processos pra gente passar... Porque muitos passam por
problemas de saúde, por desemprego... Porque tudo na vida a gente
tem que passar por um processo, porque ninguém é perfeito na vida,
porque somente perfeito é Deus!
Diante de todas as perdas que Rute retrata na sua trajetória de
permanência nas ruas, a perda do direito à convivência com o filho pode ser
considerada como o ápice da condição de desfiliação (CASTEL, 1998), na sua
condenação pela impossibilidade de administrar sua vida e a de seus filhos. O relato
de Rute propõe a todos aqueles responsáveis pela operacionalização do sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente uma reflexão, pois ao se buscar
garantir o direito da criança a uma vida digna, fora das ruas, destituindo o poder
familiar da mãe, que se encontra em tal condição de vulnerabilidade, essa atitude
pode-se configurar num descrédito de que os genitores possam superar tal
condição, optando por um novo modo de viver que lhes garanta o direito de exercer
o papel de protetor e cuidador de seus filhos. É o que Rute provou com a superação
198
de tal condição de vulnerabilidade nas ruas.
Como citado em capítulo anterior, consideramos pertinente retomar
a colocação de Castel quando afirma que condenar vagabundos é a via mais curta
entre duas impossibilidades: a de suportar uma situação e a de superá-la. A
condenação resolve este dilema simplesmente eliminando-o.
Rute ainda continua a relatar sobre a sua permanência nas ruas. A
jovem foi atendida pelo serviço de abordagem e de Abrigo municipal através de suas
unidades de atendimento.
Então..., eu...peguei, comecei assim, participar de projetos.Assim
como vocês mesmo cuidou da gente nos projetos, nos Abrigos,
muitas pessoas carinhosas com nós, dedicadas, o seu carinho pra
nós. Mas, muitas vezes, naquele momento, a gente não enxergava o
carinho que as pessoas queriam dar pra gente, né?!. Porque ... a
gente quando é menor... só tem minhoca na cabeça, não pensa
nada... Depois vai começando a ter filhos, começa a aumentar a
idade...Aí começa a ficar mais assim. Aí, então chegou um dia que
eu lutei, lutei, lutei! Porque já estava viciada em todos tipos de
drogas. Aí lutei pedindo a Deus, comecei a freqüentar a Igreja, não
evangélica ainda. Aí comecei a freqüentar a Igreja...
A rapidez das mudanças na organização familiar, nas relações
sexuais, nos valores que faziam do trabalho a referência mais importante para
amplas camadas da população, agregados os valores associados ao consumo,
principalmente o consumo de “estilo” mais caro e menos familiar (ZALUAR, 2004),
provoca nos jovens em condição de pobreza maior exposição à vulnerabilidade e
suscetibilidade a riscos. Quando Rute fala do momento em que “só tinha minhoca na
cabeça”, talvez esteja se referindo à busca desenfreada pelo consumo e prazer,
período da vida de seus irmãos, que sofreram um custo elevado, sendo sacrificado a
própria vida sendo assassinados. Estes jovens que morreram tinham direito a
atendimento especial e especializado, a uma sociabilidade positiva que favorece
condições de participação na vida em sociedade. É importante salientar que o
comprometimento com as drogas está relacionado a processos sociais mais difusos
como, por exemplo, o tráfico de drogas. Rute parece associar a perda dos irmãos a
uma maldição da qual associa ter se libertado pela conversão e por ter gerado filhos.
Em relação ao Abrigo, o carinho e aconhego, necessariamente não
têm efeito imediato ou não foi suficiente para que Rute deixasse as ruas. Segundo
ela, o caminho mais eficaz foi o repúdio às drogas, e para ela está associado a uma
ação divina.
199
E assim, o Senhor começou a trabalhar na minha vida. Aí, o Senhor
começou a trabalhar na minha vida, eu comecei a pegar nojo de
drogas, porque nada me fez pegar nojo de drogas, então foi somente
Deus mesmo que me libertou e depois que eu passei pra Igreja eu
perdi 3 irmãos.... Quem sabe se não era pra entre esses três, estar
eu no meio?! Graças a Deus que o Senhor é maravilhoso, tão bom
que estendeu as mãos pra mim e ..... me tirou eu dessa. E eu
agradeço muito a Deus, porque primeiramente a gente tem que
agradecer a Deus, né?! Agradecer muito a Deus, porque só Ele tem
esses poder pra fazer isso na vida da gente.... E, assim, eu comecei
a ir na Igreja, comecei firme na Igreja, batizei na Igreja vai fazer 6
anos, no dia 19 de dezembro vai fazer 6 anos que eu tô na Igreja,
que fui batizada... Aí, eu comecei a freqüentar a Igreja, o Senhor
trabalhando, trabalhando na minha vida, graças a Deus, consegui
pegar meu filho de novo... que é o Lucas. Assim, Deus preparou um
namoro pra mim, com uma pessoa que é evangélica, e eu comecei a
namorar, a namorar, aí namoramos 3 ano, um a três meses... A
gente pegamos e fomos morar juntos.... fomos morar juntos, que é o
pai dessa menininha aqui ... Graças a Deus, Deus tem abençoado
muito a minha vida. E eu, hoje, eu me sinto uma outra pessoa e que
muitas vezes eu comento com meu marido dentro de casa, eu falo:
Nossa, eu nunca fiz tanta coisa que nem eu hoje eu tô vivendo... Pois
eu falo assim: Se eu sabesse que estar na presença de Deus era
tão bom assim, acho que eu nunca queria estar na vida que eu
passei, porque eu passei uma vida verdadeiramente... Olha,
diabólica! Porque... só vocês mesmos sabiam o que a gente vivia, 24
horas com a mente... Deus o livre! Só por Deus! E, então, graças a
Deus, que nem assim a gente... tem uma vida normal. Por exemplo,
eu chego para o meu marido, eu falo, converso com ele, eu se abro
com ele e tudo. Então, eu nunca tive estas oportunidades, porque a
minha família só vivia louca, louca! Então, não tinha nada para
desfrutar daquela vida.
Para Rute, a espiritualidade gerou um diálogo com Deus através da
religião. Tornou-se uma grande força em sua vida, podemos dizer que é sua
fortaleza. Ao cuidar do espírito, cuidou dos valores que dão rumo à nossa vida e
das significações que geram esperança com relação ao futuro. Rute confirma, com a
própria vida, o estudo realizado em capítulo anterior sobre resiliência, no qual
identificamos que a resiliência está associada ao desenvolvimento de um conjunto
de características pessoais que se forma a partir das experiências vividas e
interpretadas de maneira singular, atribuindo-se significado às vicissitudes a que
somos confrontados durante a vida. Para a pessoa resiliente, a emoção e o
sentimento assumem uma importância vital.
Rute tem a crença de que o reino de Deus pode se fazer presente
aqui na Terra, na medida em que existam condições objetivas e subjetivas para a
sua existência, como o reconhecimento das pessoas enquanto seres humanos que
devem viver com dignidade, e a preservação do vínculo alimentado pela afetividade.
200
O sentido de pertencimento ao espaço físico e comunitário tornou-se, para ela,
elemento fundamental para a concretização deste reino.
Assim, a espiritualidade, sustentada pela religião, pode ser um fator
de proteção que contribuiu para a superação da condição de vulnerabilidade nas
ruas. Nela, Rute encontrou aconchego necessário para seus sofrimentos, sua vida
adquiriu um sentido, não que tenha conseguido identificar as causas e explicações
para as adversidades pelas quais passou desde a infância, mas encontrou suporte
necessário para o fortalecimento de sua auto-confiança. Costa (1999) acrescenta
que religião quer dizer algo que re-liga, ou seja, que liga todas as dimensões do
humano – relação de cada um consigo próprio, com a natureza, com os outros e
com o transcendente – na articulação de um sentido novo e abrangente capaz de
desejar que a construção de uma vida digna seja para todos.
Rute consegue olhar para sua história e avaliar que, muito do que
viveu, não era um pré-determinismo, ao afirmar que aquela vida não era “normal”. A
indiferença existente no cotidiano familiar foi atitude que a marcou, podemos dizer
que apenas coabitavam. Sua família lembra a colocação de Costa (2000) quando diz
que em famílias assim, fala-se, porém não se compreende ou se pensa que não se
pode compreender e que nada se pode fazer pelos demais. Já não há desejo de
comunicar-se.
Pergunto do Abrigo, o que a fazia permanecer no Abrigo.
Ahhhh, lá era gostoso, né?! O que fazia?! ... várias coisas. Que lá, a
gente tinha a onde dormir... Lá a gente tinha onde dormir porque na
minha casa, não que eu estou só falando mal da minha família, que
na minha casa eu não tinha paz. Que nem o meu marido fala pra
mim hoje: Coitada, não tinha nem prazer para comer! Que ele tá de
testemunha, porque quando eu chegava da Igreja, não tinha nem
comida pra mim comer! Porque quem tava lá comia, quem não tava,
não comia mais. Então, lá, a gente dormia, dormia bem, se
alimentava muito bem, porque era o tempo do Cheida. E ele nos
tratava muito bem! Ele nos tratava muito bem! O tempo da Márcia
Lopes, você se lembra?!
Gargalhadas. Continua a falar sobre o Abrigo:
Eles nos tratava muito bem, com carinho. Olha, eu não tenho o que
reclamar daquele homem não..... Porque a gente comia muito bem
lá, era comida de fartura... Então... e assim, sei lá, tem vários tipos
de coisas que o Abrigo apresentava de bom pra gente.... o que eles
mais apresentava de bom pra gente, pra gente, assim, era mudar de
vida. Assim eles tentavam ajudar a gente a sair daquela ruína, subir
na vida. Oferecia vários cursos, só que ninguém ia. Ia o primeiro dia,
não gostava das pessoas, não sei o que era, era uma paranóia que
201
não ia com a cara das pessoas, aí já abandonava. Eles faziam de
tudo, de tudo mesmo, de tudo!
O Abrigo representava conforto físico e acolhimento psicológico,
humano e social. Rute fala com satisfação da “fartura” existente no Abrigo, condição
esta a que nunca teve acesso, também destaca a possibilidade favorecida pelo
Abrigo de mudança de vida, porém parecia viver uma ambigüidade, pois ao mesmo
tempo em que desejava mudar de vida, não correspondia às oportunidades
oferecidas, pela desistência dos cursos nos quais estava inscrita. Fica a indagação
se ocorria uma desmotivação pessoal, ou se os cursos oferecidos não eram
atraentes, ou mesmo se correspondiam às expectativas dos adolescentes.
Compreendemos, porém, que havia um compromisso de valorização das
capacidades das crianças e adolescentes atendidos pelo serviço, sinalizado pela
possibilidade de abertura para um novo modo de vida que se manifestava desde o
afeto à oportunidade de capacitação e desenvolvimento pessoal e social. O acreditar
no potencial existente no íntimo de cada um que busca superar a condição de
vulnerabilidade nas ruas se configurava um fator de proteção significativo à opção
de um outro modo de viver. As ações sociais e educativas, quando estruturadas
como vias inovadoras em que educadores e educandos conduzem o conhecimento
sobre si mesmo, sobre as relações com o outro e com a sociedade, sobre o mundo
do trabalho e sobre o próprio conhecimento, ganham novo sentido e significado.
Pergunto a Rute quem eram “eles” a quem se refere.
Assim, as pessoas que nem você. Elas, assim, que eram as
pessoas, que eram nossas mães. Eram nossas mães! A tia Édina,
né! Eu não falo muito do Gil não porque eu não gosto daquele
homem.... A tia Édina, a tia Édina foi uma mãe pra nós! E tanto viu,
ela lutou, ela lutou... Eu acho que ela tinha amor por nós. Eu creio
que ela tinha, porque tudo que ela fazia pra nós era com carinho...
Tinha vez que ela até chorava com nós, de ver nós naquela vida. Ela
até chorava com nós, tadinha...! Ela era muito boa mesmo. Meu
Deus, aquela mulher... Deus tem que abençoar muito a sua vida
porque ela merece. E.... então, assim, as pessoas que dedicavam
carinho, fazia comida com carinho pra dar pra nós.
Rute declara, através de palavras, o grau de compromisso de Édina
com as crianças e adolescentes em condição de vulnerabilidade nas ruas. Compara
a educadora à mãe. O choro é a expressão do envolvimento e compromisso
O fazer-se presente na vida do outro favorece a vida ser penetrada
pela vida de outras pessoas, isto faz a diferença, pois se deve ter disposição para
202
aceitar os outros e, numa relação de troca, também ser aceito. O educador deve
contribuir para que os educandos identifiquem e conquistem seus desejos e
necessidades.
A transcendência dos aspectos rotineiros favorece para que a
pessoa atendida pelo serviço perceba que a vida é bem pelo qual vale a pena lutar,
e que, segundo Costa (2001), podemos nos reconciliar com ela a partir do encontro
com outras vidas.
Pergunto o quê e quem vem à cabeça quando fala do Abrigo.
Sabe que nem sei,... Abrigo é uma coisa esquisita, né?! Porque
Abrigo, assim... Abrigo é uma coisa estranha, por falar: Abrigo! Eu
não tenho nem palavras pra falar sobre Abrigo. Abrigo, Abrigo, é pra
pessoas que não têm famílias, que não tem ninguém por aquelas
pessoas. Aí, eles pegam pra abrigar aquelas pessoas, né?!.
Rute faz uma distinção entre Abrigo para pessoas sem família e o
Abrigo no qual passava períodos de curta e longa permanência. Parece que um é
um lugar para ficar e o outro uma casa. Para ela o Abrigo tem sua lógica no
desamparo total e involuntário por parte da família.
Pergunto se quando estava no Abrigo chegou a voltar para rua e por
que voltava.
Um monte de vez. Por loucura, porque eu não tinha cérebro na
cabeça
Risos. Pergunto o que a fazia permanecer no Abrigo.
O que era bom demais, era que a gente tinha apoio. Assim, tinha
apoio, porque na rua, muitas vezes a gente não dormia. Porque a
gente passava momento de tribulação de noite. Às vezes, você não
sabe se está dormindo e chega alguém pra matar você. A polícia
chegava batendo, espancando a gente. Depois, chegava lá com a
cara de pau e falava que era mentira da gente. É ... então, lá, a gente
tinha um Abrigo de verdade mesmo! Que nem a casa da gente...
Vichi! O que eu tinha lá eu não tenho. Deus o livre! Lá era muito bom
mesmo... E cada coisa que a gente ia. Ia pra passeio, piquenique.
Era gostoso!
Para Rute, o serviço municipal responde ao papel de proteção, à
medida que era referência às situações que as fragilizavam como a violência, a fome
e oportunizava o acolhimento necessário e uma diversidade de atividades favoráveis
ao desenvolvimento pessoal e social das crianças e adolescentes atendidos.
Rute reforça a inferência à casa ao se referir ao Abrigo quando diz:
“Quem nem a casa da gente.”
203
Pergunto, ao pensar em sair da rua, o que a atraía na rua.
Ó, isso aí eu não sei explicar muito bem pra você, não. Mas, eu acho
assim, porque quando você está assim seguro para o mundo,
quando você não abre os olhos pra realidade, você vive só aquela
vida. Só aquela vida lá que te pertence, você está lá naquela vida
desgostosa, você acaba se aprofundando mais... O dia que você
acorda da vida, aí você se arrepende de tudo que você
passou.....porque se arrependo da vida que eu tive, eu se arrependo
daquela vida, eu nunca mais desejo aquela vida pra mim.
Misericórdia!
Rute refere-se à mudança de vida ou superação da permanência
nas ruas e do consumo de drogas como um despertar mágico. Demonstra a
superação da condição de vulnerabilidade nas ruas ao afirmar, com convicção, que
não sente mais desejo pela vida que viveu nas ruas. Rute encontrou motivações que
a estimulam na vida que decidiu viver, como pode ser observado no relato abaixo.
Pergunto se tem motivos para não retornar à permanência nas ruas.
Primeiramente, é não abandonar a Deus! Porque não é Ele que
abandona nós, é nós que vira as costas para Ele. A primeira coisa,
primeiramente... porque eu tenho uma família, que eu amo minha
família! E eu desejo ter um futuro mais melhor ainda, do que eu já
tenho. Porque eu já vivo uma vida maravilhosa, pela vida que eu
vivia, né?! Porque eu amo meu marido, amo meus filhos, amo minha
família. Então, isso daí é uma coisa que a gente tem medo de perder.
E se você conseguiu tudo isso, hoje você vai voltar pra trás?! Aí, não
compensa, tem que ir pra frente, uai! Não é carro velho pra ir pra
trás.
Gargalhadas!
Rute tem um jeito divertido e alegre de encarar a vida, sua devoção
traz energia vital que a anima e que vivifica a crença nos valores e na ética da
postura assumida no mundo. A vontade que tem de preservar o vínculo e a
afetividade em sua família torna-se uma auto-proteção que também a ajuda no
equilíbrio e desenvolvimento da convivência familiar.
Acosta e Vitaler (2005), utilizando-se de Espinosa, apontam que os
afetos são espaços de vivência da ética, pois qualificam as ações e as relações
humanas. O afeto nos ajuda a decidir se algo é bom ou não e que determinada ação
deve ser evitada. Ele também aumenta ou diminui nossa potência de agir em prol de
nossa necessidade de liberdade.
Outro fator preponderante é o desejo de constituir um projeto de
vida. Ter uma família, amar seus filhos e ter o desejo de um futuro melhor são
204
imprescindíveis para não querer o modelo de vida anterior. Segundo Serrão (1999),
o projeto de vida é o caminho para realização de um sonho. Sem sonho, sem um
forte desejo de querer-ser na sua base, o projeto de vida torna-se como uma
construção sem alicerce.
Pergunto o que ganhou ao sair da rua.
Vichi, muitas coisas! Não tenho nem palavras, muitas coisas.
Primeiramente, a saúde minha... Minha saúde, liberdade... Porque
hoje eu não sou uma pessoa oprimida...Eu não sou. Sou uma pessoa
feliz, sou uma pessoa feliz! Que nem eu já falei, também é pela
minha família, porque se eu não amasse... Porque eu falo assim pro
meu marido, que eu amo ele. Acho que eu nunca amei uma pessoa
que nem eu amo ele. Porque caso, né, a gente tá tocando no
passado, né....Eu já tive outro, mas eu não fui tão segura com o
outro, como eu sou com ele. Então, no outro não existia amor. Nele
já existe! Tem muitas vezes que nós briga, assim, mas eu tenho
medo de perder ele.
Risos!
Rute encontrou razões para viver um outro modo de vida,
valorizando alguns fatores vitais para a qualidade de vida. Boff (1999) contribui com
a valorização destes aspectos ao dizer que a saúde não é um estado nem um ato
existencial, mas uma atitude face às várias situações que podem ser doentias ou
sãs. Saúde não é a ausência de danos, mas sim a força de viver com esses danos.
Saúde é também saber acolher e amar a vida assim como se apresenta, alegre e
trabalhosa, saudável e doentia. A liberdade é associada ao fim da opressão e ao
amor da família. O amor e o companheirismo são identificados como fatores que
facilitam a mudança de vida.
Ele ajudou muito eu, me ajudou muito porque, quando eu tava assim,
começando ir para Igreja, aí vem as lutas e eu tentava, então, voltar
para trás. Aí, ele sempre me ajudava. Graças a Deus! Ele sempre
me dava conselhos bom, falava pra mim que não era pra eu voltar
pra trás, porque a vida que eu passava. Minha sogra também, que
ela é evangélica, sempre me ajudou, eu creio que sempre orou por
mim! Então... não tenho nem palavras.
Risos.
Identificamos nesse trecho, o papel da família do marido na
aceitação e acolhimento de Rute.
Esta jovem dá prova de que as profundas marcas vivenciadas
podem ser superadas. Como ela mesma aponta, lutou para a superação da
opressão em que vivia, não aceitando que esta se prolongasse. Na sua
205
determinação pela vida, descobre a importância do diálogo e do respeito ao outro
como condições de desenvolvimento humano. A ação e a relação de troca são fortes
potencializadoras da vida, conforme apontam os estudos de Acosta e Vitaler (2005).
No encontro com os outros, abre-se a potencialidade e capacidade como força de
conservação e de expansão da vida. É quando afetamos e somos afetados,
tornando as relações e a existência humana um bem maior.
Pergunto qual o significado da liberdade para ela.
A liberdade?! Ah, eu tinha sim uma liberdade, que não era assim,
liberdade... Uma liberdade fixa assim, na gente mesmo que nem
você... A liberdade, que eu falo, é você não ter vício. Você não
praticar mais aquelas coisas. Você não precisa ficar correndo, você
não precisa ficar andando pra lá e pra cá. E agora não, eu tenho
minha casa. Se eu quiser dormir, eu durmo. A hora que eu quero,
tomar banho, eu tomo. Na hora que eu quero... se eu quiser comer,
eu como, na hora que eu quero. E, graças a Deus, Deus nunca
deixou faltar comida dentro da minha casa....e....é assim... Ter
amizades diferentes, que as amizades que o mundo assim oferece,
amizades de drogados... Eu vou dizer pra você que eu não tenho
essas amizades, eu tenho mais, que eu não pratico essas coisas e
não me envolvo juntos,.... Eu moro aqui faz dezoito anos,
praticamente cresci aqui, cresci porque eu vim pra cá eu tinha sete
anos neste lugar.... Então, eu tenho muitas amizades, mas só que
assim, as amizades que eu quero dizer ... pessoas, que têm famílias
honestas, né...Se você é daquele jeito, nunca que as pessoas vão
querer ter amizades com você....
Rute destaca um fator de conquista importante na superação da
condição de vulnerabilidade nas ruas, a independência. A liberdade é associada a
“não ter vício”, ou seja, não ter uma relação de dependência. Também, é apontada
como uma condição de exercer o direito sobre sua própria vida em condições de
dignidade.
Para Rute, a beleza do sentido da vida está na conquista de sua
própria vida, transcendendo toda sua resiliência, ao utilizar tudo o que viveu e vive
para o seu próprio crescimento, não estando mais sob a responsabilidade de
terceiros o seu futuro, nem de seus familiares, amigos ou educadores, mas de si
mesma.
Pergunto o que perdeu ao sair da rua.
O que eu perdi? Eu não perdi nada! Só ganhei, não perdi nada.
Risos.
Pergunto o que gostaria para sua vida neste momento.
206
O que eu gostaria... ?!Vou falar para você a verdade....o que eu mais
gostaria era um emprego. Deus me deu! Agora, o que eu mais
desejo na minha vida mesmo é construir a minha casa. Construir a
minha casa e ter meus móveis... Ah! e ficar firme na presença de
Deus!.
Na sociedade em que vivemos, o trabalho continua sendo um valor e
referência importantes, pois é instrumento essencial à sobrevivência e ao consumo.
Através dele, muitas das idealizações, sonhos e necessidades podem se
concretizar, além disso, o trabalho também favorece o fortalecimento da auto-
confiança e sociabilidade.
Rute destaca, com orgulho, sua condição de estar empregada o que
parece garantir-lhe a afirmação de sua identidade, vitalidade e capacidade.
Rute parece auto-realizar-se à medida que se empenha em lutar
pela felicidade, sentindo-se feliz. Complementando, Costa (2000) afirma ser o
encontro do ser e o querer-ser que invadem a vida, penetrando os recônditos da
estrutura física, psíquica e espiritual.
A sociedade impõe necessidades sempre novas, interferindo
diretamente naquilo que desejamos para nossa vida, porém no encontro do nosso
ser com o nosso querer ser, fazemos nossas opções. Rute, no decorrer de sua
história de vida, mostra-nos que a felicidade se concretiza no dia-a-dia, nos
pequenos e nobres gestos, no encontro com a dignidade, na conquista de
necessidades. Tudo isso alimentado pela crença em um projeto de vida, tendo a fé
como elemento propulsor da esperança, da luta e do próprio desejo de uma vida
digna.
3.4 - As primeiras aproximações a partir da história dos adolescentes
Ao finalizar as análise, fizemos algumas aproximações, sem
sobrepô-las à riqueza das falas já apresentadas pelas histórias. Alguns fatores
puderam ser identificados como preponderantes no processo que estudamos, tanto
na motivação de ir para a rua, quanto o retorno ao convívio familiar.
a) O desamparo/ausência familiar na construção de sua história.
A família é o primeiro âmbito do convívio humano. Nascemos numa
família, porém, é necessário que esta nos adote. Isso mesmo, não basta a
procriação, se afetivamente somos negados. Segundo Woortmann (1987), a relação
entre pais e filhos constitui o único grupo em que as obrigações são dadas, que não
207
se escolhem. As outras relações podem ser seletivas, dependendo de como se
estabeleçam as obrigações mútuas dentro da rede de sociabilidade (apud ACOSTA
E VITALE, 2005, p. 32).
Os entrevistados manifestam o sentimento por tal fragilidade afetiva.
A inadequação das relações interpessoais que elaboram, referente aos pais e
cuidadores, a ausência de aconchego e manifestação de violência, pela falta de
satisfação de suas necessidades pessoais, a ausência do convívio familiar fragilizam
os jovens entrevistados. Torna-se um sofrido processo de identificação e de
internalização de valores, por não ter sido respeitada sua processualidade de
desenvolvimento e assimilação no convívio familiar e social.
b) Famílias com dificuldade para lidar com os conflitos da vida.
No entanto, a inabilidade dos pais em educar os filhos não deve ser
motivo de culpabilização, ao não disporem de recurso interno e externo que favoreça
atuarem como agentes de transformação. Como podemos cobrar dos pais que
protejam e respeitem seus filhos, se eles mesmos não foram protegidos e
respeitados como filhos(as), homens, mulheres, companheiras(os) e trabalhadores.
A ausência de vínculos afetivos é também ausência de vínculos de família. Sem
estes, os vínculos biológicos se esvaziam de sentido e significação profunda (Costa,
1999).
Na condição de vida vivenciada e na ausência de recurso interno,
sentiram-se impossibilitados de avançarem e até mesmo de desenvolverem, com
habilidade, o papel de ser pai e mãe.
c) A moradia não representava acolhimento e aconchego, espaço no
qual se aprende a construção eu-tu-nós, de uma maneira específica de ser e estar
no mundo. Segundo Costa (1999), nós nos tornamos pessoas através das pessoas
com quem nos relacionamos. Portanto, as distorções das relações sociais também
podem ocorrer no âmbito familiar. O fato de não se sentirem acolhidos e
pertencentes ao espaço da moradia torna-se fator de risco na busca de outros
espaços que respondam às suas necessidades.
d) A trajetória de privações, inseguranças, violências é associada a
algo sobrenatural - maldição.
Por não conseguirem identificar as condições objetivas que
desencadeiam tais vicissitudes no meio em que vivem, buscam, no imaginário,
razões transcendentais para justificar as adversidades a que estão sujeitos.
208
e) A superação da vulnerabilidade nas ruas. O ser humano é
receptor das mensagens que lhe chegam, de felicidade, de desgraças. Temos a
capacidade de guardar informações do processo evolutivo. Segundo Boff (1999), de
certo modo, tudo está guardado dentro da nossa consciência sob a forma da
memória (subatômica, atômica, mineral, vegetal, animal, humana), nos arquétipos,
sonhos, visões, símbolos, paixões e moções que habitam nossa interioridade
(BOFF, 1999, p. 148).
As experiências boas e as traumatizantes na relação com a família e
com os outros deram-lhes condições de moldarem uma determinada compreensão
das coisas e a visão do mundo ao redor. Quando saíram das ruas, assumiram um
projeto emancipatório para suas vidas, decidiram por cuidar dos sentimentos, dos
sonhos, dos desejos, do imaginário e utopias, dando sentido e significado para este
novo modo de viver.
f) O amadurecimento e a sobrevivência com dignidade. Para Costa
(1999), a consciência de si mesmo é fundamental para que, como seres de relações,
possamos abrir-nos plenamente para o relacionamento com o outro, com a
dimensão transcendente da vida, com a natureza, e com a dimensão cósmica da
existência. A partir das relações que estabelecemos, temos condições de nos
percebermos – qualidades, defeitos, potencialidades e limitações. Exige de nós
termos a disposição de nos deixarmos penetrar pela vida de outras pessoas, como
também a disposição para trocas, às vezes, de até ‘pequenos nadas’ (COSTA,
1999, p. 21).
Na adolescência, tempo de descobertas e experiências, esses
jovens, vivenciaram uma trajetória de oportunidades restritas e pouco
correspondidas, condição que marcou a entrada destes no mundo adulto. Mas,
mesmo assim, acumularam recursos para sobreviver e amadurecer com dignidade.
São jovens que amadureceram muito cedo e não tiveram tempo para viver a
juventude. Para algumas pessoas, tais dificuldades tornam-se um forte imperativo
que os impossibilitam de viverem a vida que valorizam viver (SEN, 2000).
g) A sensibilidade, auto-cuidado e auto-proteção na preservação da
vida. Para Boff (1999), ser saudável significa realizar um sentido de vida, que
englobe as varias dimensões do viver. A (re)definição de atitudes e valores na vida
destes jovens favoreceu a constituição um equilíbrio e novo sentido para a vida.
h) O sentido da vida associado aos filhos. Trazem a relação com os
209
filhos numa outra dimensão. Segundo Boff (1999), cuidar implica ter intimidade,
saber acolher, respeitar, dar sossego e repouso. É entrar em sintonia com,
auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele (BOFF, 1999, p. 96).
Embora tenham sido pais, quando ainda muito jovens, e não tinham
tido espaços familiares protetivos, apresentam disposição e responsabilidade no
cuidado e proteção de seus filhos, demonstram ternura e afeto em relação aos
filhos. São bem ‘cuidados’, bem tratados, saudáveis, alegres. O afeto parece ser
nutrido por ambas as partes, pais e filhos, numa cumplicidade, numa ligação
profunda. Transcendem a tudo o que vivenciaram, produzem, a seu modo, uma
dimensão segura, afetiva, acolhedora e terna em relação aos filhos.
i) O Abrigo – espaço de acolhimento. O Abrigo representa a
substituição, de forma eficaz, das funções familiares, desse modo, a criança passa a
ser uma responsabilidade para além do âmbito familiar, de toda a rede de
sociabilidade existente. O Abrigo representava a alternativa à vida na rua com
adversidades físicas e emocionais.
O fato de se sentir protegido é um elemento significativo para o
afastamento de condições de vulnerabilidade e risco. A permanência no Abrigo
apresenta vantagens objetivas e subjetivas como cuidados com a higiene;
alimentação adequada, acolhimento, sentimento de pertencimento, afeto, momentos
de felicidade; como também limitações e imposições, regras, rotina, o que, a priori,
remete ao imaginário de restrição à liberdade.
j) As pessoas significantes – propiciam relação de reciprocidade.
Figuram apoio, segurança, sentimento de pertencimento, cultivo de rede de
relações. A qualidade das relações determinam as dificuldades e habilidade no
enfretamento e na superação dos conflitos que encontrarão no curso da existência.
Segundo Muza (1996), uma das principais tarefas na adolescência é a busca da
identidade adulta. Assim, as pessoas, nesta fase de vida, necessitam da referência
de adultos enquanto modelos de identificação.
As pessoas – educadores - conseguiram transmitir a valorização da
família, a importância dos laços e da afetividade. Exerceram influência construtiva,
numa postura predominante de fala e escuta, dando atenção ao que sentiam e ao
que pensavam.
As funções de mãe, pai, avós, tios serão vivenciadas através dos
papéis virtuais com base nas diversas relações estabelecidas
210
(ACOSTA E VITALE, 2005, p. 65).
k) As drogas - o Abrigo não foi suficiente para responder à questão
da dependência de substâncias psico-ativas. Dois deles trataram da dependência
dessas substâncias em outras instituições. Constata-se a importância e
necessidade da existência de proposta efetiva da política de saúde que, articulada
com o serviço de Abrigo, possa oferecer o tratamento necessário e conveniente a
cada caso.
l) As lacunas deixadas pelas políticas públicas – no que se refere à
atenção às necessidades como o acesso e a existência de condições objetivas para
a permanência no sistema de ensino, adequação do processo de qualificação
profissional que lhes permitissem uma capacitação que valorizasse as habilidades e
potencialidades, uma proposta de atenção à saúde que primasse pelo cuidado
pessoal e com o seu meio. Os jovens expressam o impacto que essas lacunas
provocaram no decorrer da vida.
A construção de ações no campo nos campo das políticas sociais
deve ampliar suas possibilidades a partir da expressão das necessidades dos
usuários, superando a idéia de necessitado, além de não se “reduzir a decisão e
ação aos limites institucionais, mas o reconhecimento de que essa demanda pode
potencializar a abertura de novos espaços para o enfrentamento concreto da
questão a ser trabalhada” (BAPTISTA, 2000, p. 32).
211
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade apresenta-se mais complexa e diversificada. Mesmo se
admitindo a importância da confluência entre os interesses econômicos e os
interesses sociais, o que se vivencia é justamente o contrário, pela prevalência dos
interesses econômicos a qual produz uma desigualdade de oportunidades, de
produção e distribuição de bens. Os mecanismos de mercado, por definição,
orientam-se pela capacidade de compra, não por necessidades. Essa dinâmica
provoca não só desprovimento de renda como de condições afetivas, prejuízos que
se refletem com grande extensão na sociedade, acarretando, no decorrer do tempo,
perdas significativas para o ser humano, a ponto de fragilizar sua condição de ser e
estar.
As transformações sociais se refletem diretamente nas crianças,
enquanto vítimas de privações materiais e afetivas, somadas à ausência de cuidado
e proteção a que boa parte da infância brasileira fica submetida.
A atenção do Estado dirigida a essa população no decorrer dos anos
não se demonstrou suficientemente capaz de suprir determinadas necessidades que
atendessem as exigências do desenvolvimento na infância. A partir de 1980, os mais
diversos segmentos da sociedade posicionaram-se em defesa dos direitos da
criança e do adolescente, principalmente daqueles em maiores condições de
vulnerabilidade social, como as crianças e os adolescentes em condição de
permanência nas ruas.
Tem-se, a partir da Constituição Federal de 1988, um marco
significativo ao incorporar em seu texto o artigo 227, proclama a direito da criança e
do adolescente como prioridade absoluta, sendo responsáveis por zelar pelo
cumprimento de tal prescrição: a família, a sociedade e o Estado. Tal direito
configura-se como norma alterativa, por criar a condição de mudança de realidade.
Então, em 1990, a Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do
Adolescente - ao ser promulgada, declara a criança e o adolescente enquanto
sujeitos de direitos, reconhecendo a peculiaridade e especificidade da fase de
desenvolvimento em que se encontram.
A intitulação da Assistência Social enquanto política pública de
direitos também contribui para o avanço na compreensão da necessidade de ampliar
a proteção social a este segmento.
212
Constituíram-se, portanto, no Brasil, instrumentos legais inovadores
e atualizados quanto ao reconhecimento de direitos às crianças e adolescentes,
equiparados aos instrumentos de âmbito internacional preconizados a todos os
seres humanos.
Ocorre que a previsão legal não foi suficiente para estagnar as
injustiças e lesão aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiros,
conforme apontado por Soares (2001), ao analisar o Mapa da Criança do IPEA. São
vítimas das formas mais perversas de exclusão, que se expressa pela insuficiência
de escolaridade, de condições de moradia, de cuidados essenciais.
Este arcabouço legal que representava um importante mecanismo
de diminuição da degradação das condições sociais das crianças e dos
adolescentes não foi suficiente diante da realidade social e da precária rede de
proteção social para concretização dos direitos prescritos para a criança e o
adolescente.
A permanência de crianças nas ruas aponta para uma gama de
complexidades presentes em seu mundo. Desse modo, compreendemos que o
desenvolvimento da criança e do adolescente é marcado pelo tipo de inserção na
classe social e na cultura. O mundo da criança e do adolescente é formado pelo
cotidiano vivido e pelo imaginário criado, podendo, um ou outro, e até mesmo os
dois, impulsioná-los para o contato com as ruas.
Neste estudo, foi possível identificar que esta fase da vida é cheia de
experiências e descobertas. As transformações operadas no conjunto da sociedade
e principalmente no âmbito familiar colocam-nas ao desafio de identificarem espaços
para satisfação de suas expectativas e necessidades.
A rua, no mundo contemporâneo, ganha novos significados,
deixando de ser um espaço de lazer e comunicação, para ser o espaço do carro, da
violência e de outros riscos. A criança, na condição acima apresentada, vê a rua
como alternativa de (con)vivência - descoberta do novo, do modo de estar com o
outro não tendo dimensão da exposição a vulnerabilidades - violência, abuso de
drogas, cometimento de atos infracionais, inseguranças. Para os jovens que
participaram desta pesquisa, a rua era o lugar de vida.
Com o decorrer do tempo, esta deslocalização social toma
proporções que abalam a coesão da sociedade (Castel, 1998). Segundo este
mesmo autor, a interpretação da condição das pessoas nas ruas é denominada
213
como a-social, perigosa trata-se de uma construção de um paradigma negativo
dentro de um discurso de poder presente na sociedade. Conclui o autor que a
condenação destas pessoas é o caminho mais curto entre a possibilidade de
suportar uma situação e impossibilidade de transformá-la (CASTEL, 1998, p.137).
A utilização do método de reconstrução da trajetória de vida
permitiu, no decorrer desta pesquisa, o conhecimento dos fatores que contribuíram
para a superação da condição de vulnerabilidade nas ruas.
Assim, compete aos governantes a definição de estratégias, a
criação de instrumentos de gestão e compromisso com a causa, de modo a primar
pela qualidade de vida e por condições de dignidade às pessoas, superando
enfoques repressores e assistencialistas. O cumprimento dos direitos reservados às
crianças e aos adolescentes é a condição da garantia de seu pleno
desenvolvimento, tarefa que se torna possível por meio de esforços articulados e
compartilhados pelas políticas públicas e a sociedade civil.
No município de Londrina, vivenciava-se até o início da década de
90, um descaso do poder público quanto ao enfrentamento de grandes questões,
como a situação de crianças e adolescentes que se encontravam nas ruas em
condições de vulnerabilidade, pela inexistência de uma política dirigida a este
público.
A partir de 1993, o governo local buscou estruturar as bases para o
desenvolvimento da política municipal de proteção aos direitos da criança,
principalmente na implantação de serviços governamentais que respondessem à
demanda. Neste contexto, é implantado o primeiro serviço público municipal para o
atendimento a crianças e adolescentes em condição de vulnerabilidade nas ruas.
Esta ação é coordenada pela Secretaria de Ação Social, enquanto órgão da
administração direta.
O Abrigo municipal, primeira estrutura governamental de
atendimento dentro da nova Política de atenção a esse público, é um espaço de
acolhimento e proteção a tais crianças e adolescentes que se encontravam nas ruas
em 1993. Os educadores foram fundamentais no processo de estabelecimento de
vínculo e sentimento de pertencimento.
As histórias de vida retratadas neste estudo puderam dimensionar o
significado que a intervenção realizada produziu na vida destas pessoas. É
importante esclarecer que, por mais que os jovens participantes desta pesquisa se
214
reportem a determinadas pessoas e ações significativas daquele momento, temos a
compreensão de que o resultado atingido é fruto do esforço comum realizado dentro
de uma perspectiva de garantia de direitos com enfoque emancipatório.
Os dados biológicos, as condições do aprendizado social e, enfim, a
história pessoal de cada indivíduo são fatores considerados
determinantes na construção da personalidade. Os três elementos se
combinam para formar o capital cultural que se enraíza nas
estruturas mentais do individuo (PAUGAM, 2003, p. 166).
Assim, a partir da análise das histórias de vida e da fundamentação
teórica, pudemos constatar que as privações vivenciadas na infância trazem danos
significativos para a vida. A ausência do direito de ser cuidado e protegido, de
brincar, de vivenciar uma relação saudável com os pais, de descobrir o mundo de
forma lúdica, de realizar a passagem do mundo da família para o mundo da
sociedade dentro do seu tempo priva as crianças do direito de se desenvolver em
forma plena. Este ritual não deve ser negado e/ou antecipado, ou ainda ocorrer de
forma brusca e violenta.
Eles não só nasceram em meios desfavoráveis, como também
cresceram, na maioria dos casos em um clima de violência, o que os levou a uma
inevitável busca de ruptura familiar e da realidade vivida.
Mesmo assim, pudemos identificar alguns fatores que influenciaram
positivamente a trajetória de vida dos adolescentes na superação da condição de
vulnerabilidade nas ruas, conforme identificado a partir da experiência e da visão de
mundo dos que vivenciaram tantas adversidades sociais.
a) A existência de estrutura de acolhimento e atendimento. O Abrigo
significou a referência, pois, quando sentiam a necessidade de sair das ruas, mesmo
que fosse temporariamente, pelas mais diversas razões – frio, fome, medo, saudade
- havia uma possibilidade concreta e possível. O Abrigo possibilitou novas
experiências, maneiras diferentes de ver, perceber, agir e se relacionar com os
outros e com o mundo.
b) A internalização da proposta pedagógica. As falas demonstram
apropriação da processualidade definida para o atendimento no serviço público
municipal, desde o atendimento institucional na própria rua, até a verificação das
normas pré-estabelecidas de convivência dentro do Abrigo. Esta proposta
possibilitou a apropriação de valores, atos e atitudes para a perspectiva de um novo
modo de vida.
215
c) As pessoas-referência - o apoio externo se configura num forte
incentivador. A imagem positiva do educador reflete a confiança e o afeto deste para
com o adolescente. Uma das características mais marcantes na transformação
dessas pessoas está na relação educador/educando estabelecida no Abrigo. As
pessoas-referência demonstraram a concretização de um vínculo não apenas
afetivo, mas libertador no desenvolvimento para a cidadania. Ser educador é ser
presente, não apenas em corpo, mas um compromisso ético e político com a
promoção da vida humana.
d) A valorização das capacidades e potencialidades – condição para
identidade fortalecida, para acreditar em si mesmo e para o desenvolvimento de
habilidade para a convivência na diversidade (social, cultural, de gênero e de idade).
e) As escolhas e decisões tomadas pelos sujeitos indicam uma
perspectiva de futuro, de estabelecimento de um projeto de vida configurado no
desejo de ter equilíbrio na vida, de ter vida digna.
As pessoas, ao se depararem com circunstâncias adversas,
principalmente aquelas que envolvem certo grau de desfiliação (Castel, 1998),
demonstram, por vezes, maior dificuldade de acesso e inserção nos serviços de
atendimento existentes. Desse modo, procuramos identificar os resultados que a
intervenção dos serviços de proteção social conseguiu atingir em relação a este
público, podendo ser destacados os seguintes:
- Identificação de novas referências fora do espaço da rua.
- Definição de um sentido para a vida.
- Consciência/reconhecimento da importância de uma proposta
pedagógica que contribuiu à emancipação, para além do espaço do Abrigo; o que é
diferente de proporcionar a autonomia enquanto cidadão. Independência à
dependência.
- consciência da experiência vivenciada e não desejada para os
filhos; ruptura do ciclo, minimizando o conceito de história cíclica, mas dinâmica e
dialética. Chega a ser preventivo. Compreendem que as dificuldades acumuladas e
prejuízos decorrentes das privações que sofreram e das oportunidades não
aproveitadas não podem ser repetidos nas histórias de vida de seus filhos. A
educação dos filhos tem importância primordial.
- Mesmo não sendo possível conhecer a residência de todos os
sujeitos, pode-se perceber a valorização da estética através da aparência física, do
216
como se vêem, o cuidado com a família e o bem-estar. Constata-se, então, uma
mudança importante na perspectiva pela qual percebem sua existência. Isso implica
na transformação da organização de sua vida cotidiana.
- Reataram os laços com os familiares, mesmo tendo consciência
das condições desfavoráveis vivenciadas junto à família de origem. Consideram a
família como um fator importante para sua auto-afirmação enquanto ser humano.
Na.trajetória, vivenciada conservaram uma imagem de família e buscaram recuperar
as relações com os familiares.
- Superaram a condição de permanência nas ruas há mais de seis
anos.
Os aspectos ora destacados permitem traçar uma correspondência
entre a condição de vulnerabilidade dos sujeitos pesquisados e a eficácia da
intervenção institucional.
As histórias de vida dos jovens que superaram a condição de
vulnerabilidade nas ruas demonstram que o serviço de Abrigo, a proposta
pedagógica executada e o comprometimento dos profissionais que lá estavam,
mesmo não atendendo todas as demandas imediatas, corresponderam a uma
grande parte das expectativas e necessidades sentidas por estas pessoas,
conseguindo produzir-lhes, inclusive, um significado sobre tal serviço.
A garantia de acolhimento, respeito, aconchego, valorização das
capacidades e oportunidades fizeram a diferença na vida destes jovens. A proposta
pedagógica desenvolvida possibilitou a potencialização, permitiu a expressão,
condição significativante para o ser humano. Trata-se do reconhecimento do outro.
Favoreceu-lhes, ainda posicionarem-se diante de si, das coisas que implicavam em
suas vidas. Desse modo, tinham condições de confrontar com o que estava
instituído, provocando mudanças que se aproximassem às suas necessidades.
As pessoas que atuaram no Abrigo também fizeram a diferença na
vida desses jovens,contribuindo para a construção de uma outra perspectiva de
vida.
Segundo Serrão (1999, p. 37), todo grupo formado por adolescentes
necessita de um adulto-referência, ou seja, uma ou mais pessoas que os
acompanhem, com quem estabeleçam vínculo afetivo e a quem possam recorrer em
busca de apoio e acolhimento.
Os jovens entrevistados expressam a relação afetuosa estabelecida
217
com os educadores ao se referirem a eles como ‘os que levavam num canto para
conversarem’ - predominância do diálogo; ‘coçavam-lhes’ a cabeça, promoviam a
‘união’, sentiam a dor deles, a ‘dedicação’, favoreceram-lhes a oportunidade do
primeiro emprego, impunham limites, enfim, estabeleciam uma relação de confiança
e cumplicidade, condições fundamentais para uma relação afetiva positiva e de
favorecimento à construção e fortalecimento da identidade. Suas figuras são
associadas aos papéis de ‘pai’ e ‘mãe’ e ao sentido de ‘família’, pois deram
significância a tal vínculo e afeto, sentiam-se amados. Alguns aspectos ainda são
ressaltados, dada a particularidade do comprometimento do educador com aqueles
que ali se encontravam : ‘tiravam dinheiro do próprio bolso’ para ajudá-los; não tê-los
abandonado; deixavam de desfrutar da vida pessoal para estar com eles, ‘sentiam a
dor’ deles. Essas qualificações expressam um processo educativo, quando o
educando tem a percepção de que os educadores identificam suas necessidades,
compreendem seu sofrimento e partilham de seu processo de reconstrução e
sentido da vida.
O vínculo com o educador também foi motivador do retorno ao
Abrigo, quando das evasões. Jonas chega a destacar que o educador deve ter
sensibilidade, não pode ser ‘bruto’. Explica o jovem que o educador deve realmente,
‘demostrar que quer ajudar’, não bastando ‘passar a mão na cabeça’, deve chamar a
atenção, mas, acima de tudo ‘elogiar, elogiar mesmo’!
Segundo Sen (2000), o apoio social pode ser considerado um aporte
para a expansão da liberdade das pessoas, um argumento em favor da
responsabilidade individual, e não contra ela.
O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem
a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a
pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a
liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe à pessoa o
dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve
responsabilidade individual. Neste sentido a liberdade é necessária e
suficiente para a responsabilidade (SEN, 2000, 322).
O Abrigo favoreceu o estabelecimento da relação com outros, com a
comunidade. Mesmo constituindo-se como espaço institucional, reproduzia, dentro
dos limites, as condições de vida familiar e privada. Os educadores, portanto, no
exercício de sua função, desenvolviam os ditames da pedagogia e a afetividade
própria da vida familiar. Este ambiente tinha duplo objetivo: reconstruir aspectos
subjetivos que implicaram na condição da perda de vínculos familiares e a
218
recomposição do direito de acesso à educação, formação profissional e vida social e
comunitária.
As oportunidades oferecidas – convivência saudável, emprego,
escolarização, lazer, entre outros - quando aproveitadas favorecem a possibilidade
de novas perspectivas e, ao serem desperdiçadas dão a condição de reflexão; no
decorrer do tempo favorecida pelo amadurecimento.
Este estudo nos leva a refletir sobre a importância da intervenção
conseqüente nesta área de atuação. Trabalhando, estudando, conhecendo,
conversando com estes jovens, tivemos a oportunidade de compreender melhor
alguns aspectos de suas vidas e, ao apresentá-los neste trabalho, procurando
compartilhá-los e assim, poder contribuir para o aprimoramento do sistema de
cuidado e proteção às crianças e adolescentes em condição de vulnerabilidade nas
ruas. E, para tanto, apresentamos, a seguir, algumas propostas.
Um outro aspecto é a necessidade de abertura para o novo – o que
não se faz sem crítica, sem proposta e sem avaliação – como exigência dos serviços
de proteção que atendem o público infanto-juvenil. Este público impõe o desafio de
uma (re)construção constante de princípios e práticas que permeiem as ações
desenvolvidas para o seu atendimento. As estruturas mais tradicionais e
conservadoras apresentam dificuldades e limitações para curvar-se e avançar em tal
direção. Buscam, por vezes, explicações distorcidas e infundadas sob a alegação de
“indisciplina”, “ausência de limites”, outros. Agindo mais como uma figura
ameaçadora e culpabilizadora, no imaginário destas crianças e adolescentes, do que
uma figura estimuladora das capacidades.
Implica, então, abrir espaço de escuta para as questões emergentes
trazidas pelas crianças e adolescentes, favorecendo-lhes o posicionamento da
manifestação de suas necessidades e expectativas.
Segundo Zaluar (2004, p. 286), não podemos fazer "para" eles,
temos que fazer “com” eles, sabendo que cada grupo vai ter a sua forma de
participação e a sua forma de atuação. É uma caminhada difícil que exige uma
metodologia constantemente avaliada. Complementa, ainda, a autora, que para a
afiliação acontecer, deve-se reconhecer o processo de sujeitos ativos dele
participando. Assim, deve-se captar e disseminar a expressão dos jovens,
concretizando suas potencialidades juvenis e permitindo que eles contribuam para a
problematização de seu cotidiano.
219
A formação dos educadores, portanto, torna-se imprescindível. Cada
vez mais constatamos a importância da qualificação dos recursos humanos e, nesta
área, não é diferente. Desse modo, é necessária a formação de educadores
sensíveis à escuta e ao acolhimento. Sem preconceitos ou pré-julgamentos,
enquanto, co-responsáveis no desenvolvimento saudável das crianças e
adolescente. São elementos-chave do processo, sua referência vai para além dos
aspectos objetivos, pois devem ainda, atentar para os desejos, sentimentos,
fantasias e expectativas das crianças, mediante a compreensão do seu papel e do
limite do grau de sua interferência na vida dos educandos.
O cuidado oferecido à criança em seu dia-a-dia torna (ou não)
possível o desenvolvimento integral de seus potenciais e o desenvolvimento
necessário para a vida em sociedade. O fortalecimento dos elos da criança com o
seu meio - família e comunidade – contribui para a formação pessoal e social.
As pessoas-referência podem e devem se colocar como agentes
facilitadores para que as mudanças possam ocorrer na vida das crianças e
adolescentes. Devem, então, ter a oportunidade de ampliar e aprofundar seus
conhecimentos para terem melhores condições de exercer seus papéis de
formadores de gerações de crianças, pais, educadores e todos aqueles envolvidos
com a vida da criança.
Os pais de crianças e adolescentes em condição de vulnerabilidade
nas ruas também merecem especial atenção. Devem ser ouvidos, pois têm muito a
contar das experiências e significados com os quais buscam sobreviver.
Os papéis de heterogeneidades pessoais, diversidades ambientais,
variações no clima social, diferenças de perspectivas relativas e
distribuições na família têm de receber a séria atenção que merecem
na elaboração das políticas públicas (SEN, 2000, p. 133).
Desse modo, necessitam de apoio tanto os responsáveis como os
demais envolvidos no cuidado e atenção às crianças e adolescentes.
Considerar a profundidade do termo “respeito à individualidade”
proposto no ECA. Trata-se de atentar para os valores expressos ou não que as
crianças e adolescentes trazem para o Abrigo. Desse modo, exige reconhecer a
cada um como pessoa que tem identidade, necessidade, desejo e sentimentos.
Reconhecer que a opção de mudança de vida implica abdicar dos
meios ilícitos para aquisição de condições para seu bem estar,.o que, muitas vezes,
220
implica que aprender a sobreviver e administrar a vida com recursos extremamente
precários e restritos. Essa maneira de conceber a vida exige uma adaptação às
dificuldades da vida cotidiana considerada surpreendente. Trata-se de um penoso
reaprendizado da vida social.
Não poderíamos deixar de nos referir a Nogueira (1998) que
apresenta, com muita propriedade, o significado da mudança enquanto desafio:
Mudar é sempre uma forma de “tornar-se um outro”, encontrar uma
nova identidade, viver um difícil e doloroso processo de des-
identificação e re-identificação. Em termos psicanalíticos, lembrou
certa vez Hélio Pellegrino, “mudar é correr o risco de morrer” e nessa
medida é uma aventura que nem sempre consegue ser vivenciada,
posto que mexe com a segurança (neurotizante, digamos) de cada
um. Para falar com Leandro Konder (1992:14), “estamos todos, por
mais resolutamente revolucionários que sejam nossas disposições
subjetivas, vulneráveis a impregnações conservadoras sutis. Temos
medo de assumir todos os riscos inerentes à autotransformação”
(NOGUEIRA, 1998, p. 256).
E mesmo quando surge a oportunidade de emprego, encontram
dificuldades que esbarram na própria organização da vida cotidiana, pois esta exige
ter hábitos e atitudes voltados para o mundo do trabalho como disciplina,
cumprimento de horários, assiduidade e freqüência, saber lidar com conflitos e
diversidades que se colocam como limitadores. Às vezes, chegam a desistir
antecipadamente, auto-excluem-se, não se considerando capaz.
Isso demonstra a necessidade de investimento na formação das
várias dimensões que envolvem o ‘ser’. Potencializar as aptidões e desenvolver
habilidades fundamentais para a relação social. Dar condições para a afirmação da
identidade, na conservação de sua dignidade para resistência à decadência moral.
Em função de todas essas considerações, constatamos que as
necessidades que apresentam e as capacidades a serem potencializadas demanda
um desenho de gestão que permeia a execução de políticas públicas, que direcione
o seu foco para as necessidades da população e, numa dimensão transversal,
direcionada às singularidades geracionais.
As políticas, ao objetivarem inclusão e a emancipação, devem dar
condições para que as pessoas sejam donas de suas próprias vidas, com poder e
consciência de construírem um projeto de vida e de vivê-lo com liberdade, e assim,
não passarem toda a vida gastando energia para preservar sua existência biológica
(sua e de sua família) comendo, lavando-se e dormindo - reproduzindo-se -
221
comportamentos cotidianos que constituem atos reflexos destinados à preservação
da vida. Desse modo, frisa-se a preocupação, sobretudo, com as condições de vida
dos jovens, sua pobreza e as insuficientes alternativas de sobrevivência de suas
respectivas famílias.
O aprimoramento das políticas públicas, portanto torna-se
fundamental para que não sejam apenas as disponibilidades subjetivas ou a
generosidade individual que garantam o atendimento desta população.
Talvez seja mais simples trabalhar e desenvolver determinadas
competências e habilidades do que conseguir grandes avanços com o seu meio - a
família, o grupo e a comunidade. O adolescente, ao se tornar potencialmente forte,
apresenta condições para conviver com o modo de ser e viver das demais pessoas
à sua volta e, quando possível, pode contribuir para a transformação do seu meio.
Segundo Paugam (2003,165), é proporcionar-lhes condições de proteção de uma
identidade positiva para lutarem por um modo de conceber a vida, engajando-se em
uma outra cultura, mobilizando defesas para tentar reverter, ao menos em parte, o
sentido da marginalidade.
É preciso, ainda, a existência de mecanismos de acompanhamento
que possibilitem uma avaliação dos impactos também a longo prazo, no plano das
condições de vida e das relações sociais, enquanto sujeitos coletivos.
Aprendemos que, cada vez mais, devemos estar atentos à escuta do
outro. Permitir-lhes a expressão, pois eles, os beneficiários de nossas ações, têm
muito a dizer frente ao que é desenvolvido.
Precisamos desentranhar das palavras sua riqueza escondida.
Normalmente as palavras nascem dentro de um nicho de sentido
originário e a partir daí se desdobram outras significações afins
(BOFF, 1999, p. 90)
Um dos ingredientes básicos para o sucesso de experiência aqui
analisada é, sem dúvida, o envolvimento afetivo, o acreditar no ser humano e o
sentir-se acolhido e pertencido. É o elo de ligação para alçar outros patamares da
vida.
A valorização da auto-estima torna-se uma âncora, que motiva
sentir-se enquanto sujeito coletivo, que goste de si e que saiba conviver com a
diversidade. São atitudes que tendem à perspectiva da abertura para a participação,
bem como o investimento na formação de lideranças positivas, o que afirmaria
222
identidades, abrindo a mentalidade para valores positivos a favor da vida e dos
direitos sociais.
Dispor-se a “atuar com” envolve saberes e aptidões, por vezes, não
fáceis de serem verificados em uma mesma pessoa, o que dificulta a concretização
da intervenção proposta. Mas o conhecimento, o investimento na diversidade e
criatividade, quando direcionados e objetivados, podem dar sentido à vida, ou seja,
vidas que são cultivadas e potencializadas. O lúdico é um recurso significante,
podendo contribuir como estratégia para a redefinição de territórios de poder e
responsabilidades, por exemplo.
Entendemos que o caminho a ser construído pelos serviços de
proteção deve direcionar-se para o empoderamento das pessoas, tendo capacidade
de dizer de si e de representar-se. A idéia de usar a razão para identificar e
promover sociedades melhores e mais aceitáveis estimulou intensamente as
pessoas no passado e continuam a fazê-lo no presente.
Aristóteles concordou com Ágaton em que nem mesmo Deus podia
mudar o passado. Mas também concluiu que o futuro pode ser
moldado por nós. Isso poderia ser feito baseando nossas escolhas
na razão. Precisamos, então, de uma estrutura avaliatória
apropriada; precisamos também de instituições que atuem para
promover nossos objetivos e comprometimentos valorativos e,
ademais, de normas de comportamento e de um raciocínio sobre o
comportamento que nos permitam realizar o que tentamos realizar.
Sen, 2000, 284.
A utopia, tantas vezes citada neste estudo, não se refere ao sonho
impossível, mas sim ao ainda não feito, o não realizado ainda.
A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, se distancia
dois passos. Caminho dez passos. E o horizonte corre dez passos
mais. Por mais que eu caminhe, nunca o alcançarei. Para que serve
a utopia? Para isso, para caminhar (GALEANO, apud BRASIL, 2002,
p. 63).
Podemos, então, entender que a liberdade, tão reiteradamente
colocada nos trechos das falas dos jovens entrevistados, referia-se ao desejo de
terem a capacidade de fazerem o que gostariam e de levar um tipo de vida que
valorizam. Porém, a capacidade de escolha está sujeita a um conjunto de
oportunidades e condições a serem oferecidas para poderem optar.
Acreditamos que, atualmente, estes jovens acumulam sonhos, pelo
modo de vida que desejam para o futuro. São agentes de transformação da sua
223
própria vida e da vida dos outros. O amadurecimento, mesmo que precoce, tem
recorrências ao significado e sentido que a implicação de terceiros tiveram em suas
vidas, estimulando-os a modificarem sua trajetória e o modo de se querer viver.
O estudo nos proporcionou conhecer o que de positivo foi construído
no sentido de favorecer a vida daqueles que foram vítimas das adversidades sociais
próprias do modo capitalista de produção, favorecendo a esses sujeitos traçarem
uma perspectiva distinta da permanência nas ruas.
Acreditamos, também, que estes jovens, na superação da condição
de vulnerabilidade nas ruas, substituíram o domínio das circunstâncias e do acaso
sobre si pelo domínio de si sobre o acaso e as circunstâncias Karl Marx (apud SEN,
2000, p. 328).
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
24782003000300003&lng=e&nrm=iso>. Acesso em: 10 de novembro de 2005.
TAVARES, J. P. C. (Org.) Resiliência e educação. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Anais da X Semana de
Estudos do Problema do Menor. São Paulo: TJ, 1971.
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______. Situação Mundial da Infância 2001, UNICEF: Brasilia, 2001.
______. Situação mundial da infância. Brasília: UNICEF, 1994.
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Disponível em: <http//www.enfants-des-rues.com/pdf/bul_20_pt.pdf.> Acesso em: 22
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WERNECK VIANNA, L. A Classe Operária e a Abertura. São Paulo: Cerifa, 1983.
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ZALUAR, A. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004.
ZANIRATO, S. H. Marco Constitucional: ordenamento social e jurídico.
Descentralização, participação popular, universalização. In: Capacitação dos
Conselheiros Municipais da Assistência Social. Maringá: UEM, 2001.
ANEXOS
235
ANEXO A - Roteiro Pesquisa de Campo
Entrevista
Data: / / - horário/início: /término/
Local da entrevista:
Identificação
Nome:
Gênero:
Idade:
Estado civil:
Origem:
Residência fixa: tempo de moradia:
tempo nas ruas:
Escolaridade:
1) Fala um pouco de você.
2) Como a rua entrou na sua vida? (que idade tinha)
Como era sua família?
3) O que a rua foi para você? O que vem na sua cabeça quando se fala a palavra
rua?
4) E quando foi para a rua, deixou alguma coisa para trás?
5) O que você deixou para trás?
6) Por que você quis sair da rua? (que idade tinha)
7) O que levou você, a sair da rua?
8) O que o(a) fez permanecer no Abrigo? Tempo de permanência.
9) Quando você lembra do Abrigo, o que vem a sua cabeça?
10) Você chegou a voltar para a rua? Porque voltou às ruas?
11) Quando você lembra do Abrigo o que vem à sua cabeça?
12) O que foi importante/essencial na sua permanência no Abrigo? (atitude,
pessoa, gesto).
11) Quando você pensava em mudar de vida, sair da rua. O que ainda te atraía na
rua?
12) Quais são suas motivações para não voltar para a rua?
13) O que você ganhou com a saída da rua?
14) O que você perdeu com a saída da rua?
13) O que você gostaria para a sua vida, agora?
236
ANEXO B - Termo de Consentimento Informado
Esta pesquisa será conduzida sob responsabilidade de Edsônia Jadma Marcelino, aluna do
Mestrado em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina.
O estudo tem como objetivo geral, conhecer os fatores positivos que tiveram influência na
inclusão social dos adolescentes em situação de vulnerabilidades nas ruas e que possam
contribuir na construção de novos modelos de serviços.
Seus objetivos específicos são:
identificar aspectos dos serviços que corroboram para o processo de inclusão social;
conhecer se os resultados atingidos correspondem às necessidades apresentadas
pelos sujeitos;
compreender qual o significado que os sujeitos fazem do serviço ofertado;
conhecer as capacidades desenvolvidas de resistência e construção da própria vida
fora das ruas;
construir indicadores de avaliação de serviços que atuem na inclusão de crianças e
adolescentes que vivem nas ruas.
A participação neste estudo é voluntária e você poderá interrompê-la a
qualquer momento, sem conseqüências para sua vida pessoal.
Sua participação implica em responder algumas perguntas que permitam
trazer respostas para as questões levantadas nos objetivos específicos desta pesquisa.
As informações que você nos der serão tratadas de maneira confidencial,
de forma a impedir a sua identificação. Seu nome, ou qualquer outro dado pessoal que
possa identificá-lo não farão parte de qualquer publicação, relatório ou outra forma de
divulgação. Os resultados serão divulgados de maneira a contribuir para o aperfeiçoamento
de novos modelos de atendimento.
Se você tiver alguma pergunta a fazer sobre esta pesquisa ou sobre sua
participação nela, sinta-se à vontade para perguntar. No futuro, se você tiver dúvidas,
poderá procurar o(a) pesquisador(a) pelos telefones: 3337-7638.
Se você concorda em participar deste estudo, por favor assine embaixo.
Data ____/____/____ ______________________________
TERMO DE COMPROMISSO
A pesquisadora, Edsônia Jadma Marcelino compromete-se a conduzir
todas as atividades deste estudo de acordo com os termos do presente Consentimento
Informado.
Data ____/____/____ ______________________________
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