Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SERVIÇO SOCIAL
Marcelo Alves Lima
Compromisso de papel passado:
um estudo sobre conjugalidade e direito
Rio de Janeiro
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Marcelo Alves Lima
Compromisso de papel passado:
um estudo sobre conjugalidade e direito
Tese apresentada como pré-requisito parcial para obtenção
do título de Doutorado em Serviço Social pelo Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientadora: Profª Doutora Myriam Moraes Lins de
Barros.
Rio de Janeiro
2006
ads:
Lima, Marcelo Alves
Compromisso de papel passado: um estudo sobre conjugalidade e direito/Marcelo
Alves Lima. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS, 2006.
xi, 177 f.: 31 cm.
Orientador: Myriam Moraes Lins de Barros
Tese (doutorado) – UFRJ/ESS/ Programa de Pós-Graduação em Serviço Social,
2006.
Referências Bibliográficas: f. 180-193.
1.Casamento. 2. Direito de família. 3. Antropologia do direito. 4. Famílias em
sociedade complexas. I. Lins de Barros, Myriam Moraes. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social. III. Título.
Marcelo Alves Lima
Compromisso de papel passado:
um estudo sobre conjugalidade e direito
Rio de Janeiro, de de
___________________________________________________________
Pof.ª Dr.ª Myriam Moraes Lins de Barros – UFRJ/ESS
___________________________________________________________
Pof.ª Dr.ª Adriana Vianna – UFRJ/MN
___________________________________________________________
Pof.ª Dr.ª Andréa Moraes Alves – UFRJ/ESS
___________________________________________________________
Pof.ª Dr.ª Leilah Landin – UFRJ/ESS
___________________________________________________________
Prof. Dr. Joaquim Humberto Coelho de Oliveira– UNIGRANRIO/FESO/FDV
Resumo:
LIMA, Marcelo Alves. Compromisso de papel passado: um estudo sobre
conjugalidade e direito. Tese (Doutorado em Serviço Social) Escola de Serviço Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
O objetivo deste trabalho foi pensar refletir sobre a complexidade das
sociedades contemporâneas e suas expressões nas relações familiares. Para isso foi
sugerido pensar família a partir de relações familiares construídas e passiveis de
análise a partir de coexistência e manipulação de diferentes códigos e não como
resultado da imposição de modelos. Códigos manipulados em diferentes dimensões
tais como o individual e o coletivo. Da mesma forma, os discursos e práticas jurídicos
são pensados como manipulações destes códigos ao mesmo tempo em que alimentam
as práticas sociais de novos registros tais como os oriundos de sua matriz teórica
moderna, portadora de valores singulares, que por sua vez tornam-se fontes de novos
códigos. Como parte desta circularidade, as dimensões individual e coletiva se
organizam a partir de racionalidades e moralidades próprias ao mercado, à
racionalidade legal e às relações afetivas constitutivas da esfera privada. A análise da
construção e descontração de modelos de casamento juridicamente definidos ou
socialmente aceitos bem como as tentativas de se unificar suas formas e fórmulas,
sinalizam a coexistência entre concepções que o definem ora como contrato, ora como
sacramento e ora como compromisso, variando em função da diversidade e da
estratificação social.
Abstract:
LIMA, Marcelo Alves. Compromisso de papel passado: um estudo sobre
conjugalidade e direito. Tese (Doutorado em Serviço Social) Escola de Serviço Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.
The objective of this thesis was to analyze the familiar relations and the
complexity of the contemporary societies from the marriage, being understood the
familiar relations as constructed for the manipulation of different codes and not as
resulted of the imposition of legal models, that are understood as manipulations in
levels such as the individual one; the collective one; the public and the private one, at
the same time where they feed social practice with new codes. As part of this
circularity, the familiar relations negotiate with rationalities and moralities from the
economy, from the laws, from the affective relations constituent of the private sphere
and from the contemporary conditions of sociability. The analysis of the construction
of models of marriage - juridically defined or socially accepted - as well as of the
attempts of the Church or the State to unify its forms, they indicate the competition
between these different moralities and rationalities, to the step that in the complex
societies, the dissolution of models and the search for the legitimacy and recognition
of the diversity of marriage forms indicate the coexistence between them. The resource
of the classic anthropological analyses allowed identifying distinct conceptions of
marriage: as contract, as sacrament and as commitment, varying in function of the
diversity and the social stratification.
Sumário:
Introdução: ______________________________________________________________ 10
Politização da família e do direito_____________________________________________ 14
O discurso jurídico e as ciências sociais________________________________________ 20
Antropologia e direito ___________________________________________________ 31
Dádiva e direito: Marcel Mauss ___________________________________________ 44
A sensibilidade jurídica: Clifford Geertz ____________________________________ 48
Antropologia e pesquisa sobre o direito no Brasil_____________________________ 52
A judicialização das relações sociais________________________________________ 60
Família: instituição, código e diversidade ______________________________________ 68
A Família e modernidade_________________________________________________ 71
A família no Brasil ______________________________________________________ 75
A diversidade: famílias em sociedades complexas_____________________________ 80
Família como instituição e negociação ______________________________________ 92
Códigos individuais e coletivos ____________________________________________ 97
O espírito do casamento ___________________________________________________ 104
Casamento na igreja: desprezo, sacralização e direito ________________________ 115
A secularização do casamento: Classe, status e “bom” partido_________________ 139
Compromisso de papel passado: o casamento civil no Brasil ______________________ 146
O casamento civil no Brasil ______________________________________________ 152
Descasamento à brasileira _______________________________________________ 158
As leis a margem do casamento: união estável e parceria civil _________________ 165
Novas conjugalidades e o contrato de namoro_______________________________ 171
Conclusões: _____________________________________________________________ 174
Referências: _____________________________________________________________ 180
Anexos:_________________________________________________________________ 194
Agradecimentos:
Quanto mais tempo se leva para elaborar algo como esta tese, mais tempo para
surpresas, boas ou nem tanto. Muitas coisas ocorreram no caminho e muitas pessoas se
chegaram, permanecendo mais ou menos tempo, outras, todo o tempo. Se foi possível chegar
até aqui é porque o saldo foi mais que positivo e estas pessoas fizeram a diferença.
Listar seus nomes e suas contribuições não é fácil pois também não é fácil com
palavras estar à altura de estímulos, apoio e diálogos inspiradores que tornaram este trabalho
possível. A todos que contribuíram de forma incisiva e estimulante nos momentos em que este
trabalho foi exposto à criticas e sugestões, Maria das Dores Campos Machado, José Maria
Gómez, Leilah Landin, Luis Fernando Dias Duarte, Andréa Alves, Adriana Vianna, e em
especial à Joaquim Humberto Coelho Oliveira, não basta agradecer pelas contribuições e
críticas, mas também a confiança que em mim tiveram o estimulo que isto gerou.
As instituições são sempre parte importante de trabalhos como este. Lá e cá.
Lá, a Escola de Serviço Social da UFRJ, pelo ambiente sempre caloroso mas também
desafiador que oferece, aos colegas, em especial a Joana Valente, com quem dividi os
momentos mais agradáveis e mais difíceis desta trajetória e à CAPES, que viabilizou em
sentido muito concreto este trabalho, não poderia deixar de agradecer enormemente. Cá, a
minha família que tolerou as esquisitices incompreensíveis que acometem os que se metem
nestas searas, sou também mais que grato.
À minha orientadora, Myriam Morais Lins de Barros - e não seria redundante citá-la
aqui também como professora e amiga, pois seu papel neste trabalho foi muito além do que se
poderia esperar, em generosidade, em paciência, confiança e conhecimento - serei sempre
muito grato. Se algum mérito resulta deste trabalho é fruto de sua convivência sempre
amistosa, das afinidades intelectuais que partilhamos e do equilíbrio entre autoridade e afeto
com que conduziu tão habilmente sua orientação.
Por fim, porque a vida mistura pessoas, e pessoas misturam suas vidas, Isabella
Bottino misturou-se a mim e enriqueceu-me me partilhando sentimentos e humanidade, e
ofertando sua sempre generosa contribuição intelectual e sua erudição sem as quais este
trabalho não teria chegado a lugar algum. A ela sou mais que grato, sou eterno devedor, pelo
que aqui apresento e por muito mais.
Epigrafes:
- Vossa Mer casou-se? - perguntou Peralta. - Sim senhor -
respondeu Campuzano.
- Será que foi por amor? - disse Peralta, acrescentando: Tais
casamentos trazem sempre o arrependimento.
- Não saberei dizer se foi por amor - respondeu o alferes, embora
possa garantir que foi por amargor, pois do meu casamento ou
cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo,
para curá-las, me custaram quarenta suadouros, já para as da alma
não encontro um remédio que possa aliviá-las.
Miguel de Cervantes: O casamento ardiloso
En état de Toi qui veux te marier et qui te marieras, as-tu jamais
médité sur le Code civil? Je ne me suis point sali les pieds dans ce
bouge à commentaires, dans ce grenier à bavardages, appelé l’Ecole
de Droit, je n’ai jamais ouvert le Code, mais j’en vois les
applications sur le vif du monde. Je suis légiste comme un chef de
clinique est médecin. La maladie n’est pas dans les livres, elle est
dans le malade. Le Code, mon cher, a mis la femme en tutelle, il l’a
considérée comme un mineur, comme un enfant. Or, comment
gouverne-t-on les enfants? par la crainte. Dans ce mot, Paul est le
mors de la bête. Tâte-toi le pouls! Vois si tu peux te déguiser en
tyran, toi, si doux, si bon ami, si confiant; toi, de qui j’ai ri d’abord
et que j’aime assez aujourd’hui pour te livrer ma science. Oui, ceci
procède d’une science que déjà les Allemands ont nommée
Anthropologie. Ah! si je n’avais pas résolu la vie par le plaisir, si je
n’avais pas une profonde antipathie pour ceux qui pensent au lieu
d’agir, si je ne méprisais pas les niais assez stupides pour croire à la
vie d’un livre, quand les sables des déserts africains sont composés
des cendres de je ne sais combien de Londres, de Venise, de Paris,
de Rome inconnues, pulvérisées, j’écrirais un livre sur les mariages
modernes, sur l’influence du système chrétien; enfin, je mettrais un
lampion sur ce tas de pierres aiguës parmi lesquelles se couchent les
sectateurs du multiplicamini social. Mais, l’Humanité vaut-elle un
quart d’heure de mon temps? Puis, le seul emploi raisonnable de
l’encre n’est-il pas de piper les coeurs par des lettres d’amour?
Honoré de Balzac: Le contrat de mariage
10
Introdução:
O mundo parece estar em crise. A palavra crise é dessas que a gente a toda hora e
relacionada a quase tudo que nos cerca. Duas dessas crises, ou melhor, duas áreas nas quais
uma “crise” tem sido mais freqüentemente denunciada: a família e a justiça são o pano de
fundo deste trabalho.
De fato, pouca coisa é alvo de consenso quando se fala de justiça, em especial no
Brasil, a não ser a percepção de que esta estaria vivendo uma crise, cuja mais aguda
manifestação seria o difícil acesso à justiça de amplos segmentos da população, bem como a
morosidade e o formalismo presentes no judiciário que afastam as pessoas dos mecanismos
oficiais de defesa de seus direitos. Da mesma forma, quando se fala em família, a existência
de uma crise envolvendo-a aparece com uma força oriunda de fatos incontestes: aumento do
número de divórcios, conflitos entre gerações, incapacidade de reproduzir valores e garantir
uma sociabilidade pacífica e outras tantas coisas. Tais fatos, ora apresentados como
evidências da “crise”, ora apresentados como suas causas, estão presentes nas mais
heteróclitas fontes, tais como manuais de auto-ajuda; campanhas políticas, filantrópicas e
religiosas; matérias jornalísticas e na mídia em geral; bem como nos inúmeros saberes que
tomam a família por objeto.
Independente dos momentos em que estas duas crises se cruzam e alimentam-se
mutuamente e das visões possíveis sobre este encontro, - a crise da família como resultado do
afrouxamento dos controles sócio-morais que teriam no sistema judicial um de seus
sustentáculos, ou, de outro lado, a decomposição das relações sócio-morais decorrentes da
“crise da família” cujos efeitos sociais, na forma de desvios e violência, pressionam a
demanda sobre o sistema de justiça obrigando-o a constantes modificações em suas leis
11
família e direito são instituições sociais em constante movimento e permanentemente em
diálogo, e cujas relações podem dizer muito sobre as especificidades da sociabilidade em
diferentes contextos e momentos, haja ou não uma crise.
Um modo privilegiado para se ter acesso a estas relações é observar as diferentes
formas e fórmulas do casamento. Pois este é um ponto nodal das relações entre família,
enquanto instituição social, de economia afetiva e objeto do discurso jurídico. Permeia essa
tese a idéia de por trás das relações conjugais operam princípios que podem ser representados
por noções como compromisso ou contrato. Minha sugestão é que o uso da categoria
compromisso permite equacionar diferentes moralidades na construção da relação conjugal.
Deslizando entre o mais formal e o puramente moral e afetivo. Entre um contrato, externo às
pessoas que o celebram e um estado interior que as une. Não se trata de pensar de forma
esquemática uma dicotomia entre formal/legal de um lado e afetivo/moral de outro, ou de
forma evolutiva como se os contextos modernos e sua racionalidade contábil e jurídica tivesse
destruído relações desinteressadas, mas perceber formas de deslize entre, de um lado,
compromisso e, de outro, contrato que podem ocorrer na tradução de dramas familiares em
problemas jurídicos.
Por outro lado, permanecesse sempre no horizonte a idéia que a formalização das
relações afetivas do casamento, representadas pelos “papéis”, é tanto parte da economia
afetiva e moral relacionada ao casamento quanto parte da gica institucional das sociedades
modernas, articuladas pelo mercado e, sobretudo pelo Estado. Além disso, a diversidade e a
heterogeneidade das sociedades complexas tem por efeito não apenas imprimir à família
formas e rmulas diversificadas de casamento mas também desloca as linhas que atribuem
legitimidade a esta ou àquela forma e ao modo como esta ou aquela fórmula se impõe ou é
“escolhida”. Nesse contexto não pode haver um modelo, tampouco modelos podem se
impor mecanicamente, de baixo para cima, baseados unicamente na autoridade legal, religiosa
12
ou da tradição.
*
No primeiro capítulo procuro descrever as dimensões políticas relacionadas à família e
ao direito e tentar sinalizar alguma implicações disso na relação entre ambas. No segundo
capítulo: pretendo argumentar que, o desenvolvimento do direito nos paises ocidentais
modernos não forma um bloco homogêneo, pois têm em sua origem um discurso e práticas
marcadas por contradições e ambigüidades em meio a uma crescente complexidade social.
Entre estas contradições, em especial as relativas à emergência do individualismo e às
transformações no papel do discurso jurídico e do próprio Estado em relação à família e ao
controle social. Ainda neste capítulo, apresento, brevemente, alguns pontos de vista da
Antropologia sobre o direito, introduzindo categorias que acredito serem estratégicas para
análise das relações sociais, bem como algumas contribuições recentes da disciplina para
compreensão das práticas jurídicas no Brasil. No terceiro capítulo, minha principal intenção é
apresentar algumas discussões sobre família no Brasil, ressaltando uma perspectiva teórica
que a veja como uma construção social e enfatize a diversidade e a utilização de diferentes
códigos nessa construção.
No quarto capítulo: procuro distinguir algumas formas de se pensar a união entre duas
pessoas, na forma de um sacramento, tal qual apregoado pela igreja Católica e instituída
através de seus rituais, na forma de um contrato, que pode ser visualizado, em parte, através
do casamento civil e como um compromisso, que não ser reduz nem à primeira forma nem à
segunda e permite ao mesmo tempo operar a diversidade de fórmulas e formas de união entre
duas pessoas e articular as configurações modernas de valores tal qual portadas pelo discurso
jurídico e a configurações que lembram as descritas pela antropologia para contextos não
modernos. Esse capítulo procura descrever também, os investimentos sociais modernos em
direção a unificação do casamento e a relação entre o maior e ou menor sucesso dessa
13
empreitada em função da existência de estruturas sociais desiguais.
No quinto capítulo procuro, brevemente, apresentar algumas das vicissitudes do
casamento no Brasil e das novas conjugalidade como ilustração de colocações mais teóricas
feitas anteriormente. Também procuro sinalizar algumas contradições, ambigüidades e a
complexidade por trás da legislação sobre família no Brasil. Por fim, a título não de
conclusão, mas de sistematização procuro na última parte descrever e articular os diferentes
pontos apresentados ao longo deste trabalho.
14
Capítulo 1:
Politização da família e do direito
A idéia de que a família estaria em crise é acionada, como foi dito, em inúmeras e
diversificadas situações sociais. Freqüentemente de forma bastante politizada e apaixonada.
No entanto, esta crise é tão imprecisamente descrita a partir de suas causas quanto parece o
ser com precisão pelos seus efeitos. Muitas vezes, os prognósticos parecem superar ou mesmo
condicionar os diagnósticos e isso se deve, em parte, ao caráter político de que se reveste a
discussão. A família se torna uma etiqueta ideológica e uma moeda política importante
1
sempre que se estabelece uma ligação causal entre sua “crise” e determinadas conseqüências –
reais ou ainda por vir -, o que é feito de forma mais ou menos sofisticada, porém, raramente
baseada em pressupostos claramente explicitados, alimentando, assim assim, a uma espécie de
“retórica da crise da família”, que parece ser muito antiga.
Tal situação adquire contornos especiais, quando, como entre nós, é grande o peso
“ideológico” atribuído à família (DA MATTA, 1987). Além disso, é amplificada pela
polissemia do termo família (PARRY SCOTT, 2001), por sua “longa continuidade lexical”,
sacralização e reificação (DUARTE, 1995), por sua “naturalização” (DURHAM, 1983), sua
“dupla referência” modelo cultural e instituição social (BOURDIEU, 2005) e talvez até
mesmo pela sua popularidade (CASEY, 1992). Outro fator que contribui para formação dessa
“retórica da crise” é a natureza intrínseca e apaixonadamente política de seu objeto, uma vez
que, no âmbito do que se poderia chamar de “literatura especializada” os mesmos “usos
políticos” e debates apaixonados sobre a existência de uma crise da família encontram terreno
fértil, não mais pela forma vaga ou arbitrária com que esta é definida, mas, ao contrário, como
1
Como afirma Parry-Scott: “Família e gênero são metáforas de relações de poder mais amplas, embora, vistos de
maneira mais apurada, freqüentemente são o próprio material do qual são forjadas essas relações”. (2004, p.30).
15
resultado do modo com que se procura circunscrevê-la e ligá-la a teorias mais amplas sobre a
vida social como um todo (PARRY SCOTT, 2001 e 2004).
Se, por um lado, a politização da família se expressa através de uma “retórica da
crise”, por outro se atualiza pelas práticas sociais de que esta tem sido alvo e das estratégias
de controle social que se efetuam tendo-a como ferramenta (FOUCAULT, 1993). Jurandir
Freire Costa (1999) demonstra - a partir de uma análise tanto das famílias da elite
oitocentistas, quanto das famílias populares - como, no Brasil a política higienista da medicina
sanitarista, ao constituir as famílias como objeto de intervenção e de uma espécie de
saneamento social, as modelou e selou sua dependência para com saberes disciplinares, bem
como as atrelou à dinâmica política da classe burguesa. Nesse processo, de acordo com este
autor:
Por um lado, o corpo, o sexo e os sentimentos conjugais, parentais e filiais passaram
a ser programadamente usados como instrumentos de dominação política e sinais de
diferenciação social daquela classe. Por outro lado, a ética que governa o convívio
social burguês modelou o convívio familiar, reproduzindo, no interior das casas, os
conflitos e antagonismos de classes existentes na sociedade. As relações
intrafamiliares se tornaram uma réplica das relações entre classes sociais. (COSTA,
1999, p.13).
Jacques Donzelot (2001) mostra a constituição de dispositivos de controle sobre a
família. Recusando-se a fazer uma história “política” da família, na qual ela seria reduzida a
um demarcador entre posições conservadoras ou progressistas, mas também sem se contentar
com uma historiografia cujo mérito é apresentar a construção social do modelo burguês de
família e sua generalização, mas que não procura, no entanto, esclarecer as razões dessa
expansão, questão essa crucial para o autor. Donzelot procura então nas práticas que - na
França, desde pelo menos o culo XVIII - têm a família por alvo, sutis transformações e
modos de por em circulação os efeitos dessas transformações, que no conjunto formam a
polícia
2
das famílias, e que revelam a emergência e ascensão do “social” (DELEUZE, 2001).
2
A idéia de polícia pode ser entendida nos termos de Foucault: “Recuando um pouco se poderia dizer que, desde
o início da Idade Média, o poder exercia tradicionalmente duas grandes funções: a da guerra e a da paz, que ele
assegurava pelo monopólio dificilmente adquirido das armas; a da arbitragem dos litígios e da punição dos
16
Cristopher Lash (1991) procura reconstruir criticamente não somente os debate
contemporâneos sobre a família no EUA - sobretudo os que giram em torno da idéia de uma
crise da família, mas as tradições teóricas que inspiram ou confundem esses debates.
Analisando as interseções entre “teoria, ideologia e prática social”, Lash volta-se para os
últimos cem anos de debates em torno dos principais temas ligados a família para assinalar
seu papel em um processo contraditório de glorificação e isolamento da família frente ao
mercado, à vida social e à política, que ao mesmo tempo tornou mais sofisticada e complexa
as interferências destas esferas na própria família.
O que tanto Donzelot quanto Lash vão enfatizar é que as transformações da vida
familiar e as formas como são experimentadas em diferentes segmentos sociais não são partes
de uma evolução automática conduzida por forças sociais abstratas (LASH, 1991), imposição
direta de forças políticas ou simples força da atração do modelo Burguês (DONZELOT,
2001), mas sim resultado de práticas diversas e agentes múltiplos que redesenham formas de
controle social.
*
A família é uma moeda política importante, pois também é, internamente, um espaço
altamente politizado, uma vez que ali se atualizam e revelam diferentes dominações
(BOURDIEU, 2005; THERBORN, 2006), das quais as mais evidentes e discutidas são
aquelas relacionadas às assimetrias de gênero e as distinções valorativas atribuídas ao público
e ao privado. Tudo isso faz da família uma instância privilegiada para observação das
manifestações microscópicas de poderes, da “politização do cotidiano” (CERQUEIRA e
NADER, 2001) e das relações de poder que tenham por base não apenas as distinções de
delitos, que assegurava pelo controle das funções judiciárias. Pax et justitia. A estas funções foram
acrescentadas, desde o fim da Idade Média, a da manutenção da ordem e da organização do enriquecimento. Eis
que surge, no século XVII, uma nova função: a disposição da sociedade como meio de bem-estar físico, saúde
perfeita longevidade. O exercício dessas três últimas funções (ordem, enriquecimento, saúde) foi assegurado
menos por um aparelho único que por um conjunto de regulamentos e de instituições múltiplas que recebem no
final do século XVIII o nome genérico de ‘polícia’”. (FOUCAULT, 1993, p.197).
17
gênero (SALLES, 1994) e geração (DEBERT, 1992), mas a própria reprodução social
(PAOLI, 1984).
O discurso jurídico suas práticas e teorias não possui exclusividade na
normatização da família, tampouco desempenha este papel de forma homogênea, mas sem
dúvida tem, tanto em suas leis quanto em suas instituições e modos de agir um espaço
privilegiado para observação destes investimentos sobre a família e suas transformações.
Os discursos e práticas jurídicas são parte desta politização da “família”. Ainda que as
varas de família representem, de certa forma, um encontro privilegiado entre o Estado e a
população, as relações verticais que entre estes se estabelecem não esgotam o significado
deste encontro. Uma concepção restrita, que identifique o sistema de justiça como um
aparelho internamente homogêneo de controle social unidirecional - do Estado sobre a
população -, deixa de perceber a circulação horizontal de poder que permeia e molda as
diversas relações ali presentes. As varas de família são também um espaço de encontro entre
especialistas outros que não os operadores de direito (assistentes sociais, psicólogos,
psiquiatras e outros) e os destinatários de seu saber. Mesmo entre os operadores de direito,
diferentes fórmulas e concepções sobre a justiça e sobre como efetivá-la, assim como
diferentes formas de conceber teórica e praticamente as próprias práticas judiciais assinalam
que não se deve tomar o universo jurídico como algo homogêneo, mas sim como um espaço
de conflito e negociações.
Mas, também não se deve deduzir de sua heterogeneidade e das sutilezas que
organizam a circulação de poder neste universo jurídico, que ele não possua algum tipo de
coerência que se traduza numa capacidade de, o somente dar conta dos “casos” singulares
que chegam a suas entranhas, mas também atuar sobre a vida social como um todo. A
efetividade de suas práticas não deve ser vista como resultado de um consenso (ao menos não
um consenso a priori), mas como resultado de constantes negociações, das quais participam os
18
próprios clientes
3
do sistema de justiça: objeto dos saberes presentes. Se o direito pode ser
visto nos moldes dos sistemas peritos
4
, tal como definido por Anthony Giddens (1993), seu
discurso e suas práticas, em conjunto, estariam marcados pelo que este autor denomina
reflexividade institucional moderna
5
.
Na varas de família são postas em confronto diferentes moralidades e reflexões sobre
elas em um cenário no qual práticas são desenhadas e executadas para traduzir dramas
pessoais em uma linguagem formal e, dentro de modelos preestabelecidos de apresentação e
encaminhamento, construir uma decisão específica para um caso concreto. O conjunto de
casos e decisões arremessa os efeitos desses confrontos para além dos limites imediatos dos
casos particulares, moldando sua eficácia material (para cada caso) em eficácia simbólica
6
.
Além disso, na medida em que esta experiência torna acessível aos usuários do sistema
de justiça um estoque de ferramentas” para prevenção e resolução de conflitos
intrafamiliares e interpessoais, vinculado originalmente a determinadas concepções de
igualdade, pessoa, justiça, honra, etc, que não necessariamente correspondem àquelas dos
clientes, lógicas distintas são postas em confronto. É preciso, assim, se estar atento para a
forma como são absorvidos os conteúdos dos “direitos”, de forma a verificar até que ponto
esta recepção é informada por uma lógica própria dos usuários do sistema, e de um universo
3
Uso o termo cliente para me referir às pessoas que procuram o judiciário por entender que essa é a forma
privilegiada pelo Estado para tratá-los.
4
Sistemas Peritos são, de acordo com Giddens: “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que
organizam grandes áreas do ambiente material e social em que vivemos hoje” (GIDDENS, 1993, p.35). Os
sistemas peritos atuam influenciando o comportamento social a partir de diversas fontes. Os manuais de auto-
ajuda e as formas esotéricas de auto-conhecimento não se diferenciam tanto de outras que derivam de métodos
mais científicos, como a neurolinguistica, por exemplo, ou a própria terapia analítica, apesar de todas as
diferenças, se vistas como sistemas peritos, ou seja, um saber específico controlado por agentes especializados e
que determinam uma tecnologia capaz de influir sobre práticas e relações sociais prescrevendo padrões de
comportamento. Sobretudo por serem alvo de algum tipo de “confiança” por parte dos que os procuram.
5
Anthony Giddens (1993, p.39), assim define reflexividade institucional: “é institucional por ser o elemento
estrutural básico da atividade social nos ambientes modernos. E reflexiva no sentido de que os termos
introduzidos para descrever a vida social habitualmente chegam e a transformam - não como um processo
mecânico, nem necessariamente de uma maneira controlada, mas porque se torna parte das formas de ação
adotadas pelos indivíduos ou pelos grupos.”
6
Sobre a eficácia simbólica e material do discurso e das práticas jurídicas, ver Pierre Bourdieu (1989).
19
outro que não aquele em que se produz o discurso jurídico. Por outro lado, o próprio sistema
de justiça, nesse “diálogo” revê continuamente suas práticas formando também ele um saber
próprio, local um artesanato local -, que em grande medida destoa daquele que o sustenta
teoricamente.
Assim como Max Weber (1999), que circunscreve o interesse da sociologia pelo
direito aos limites da efetividade que este tem de influenciar a ação social dos homens, ou
seja, a maneira singular como as pessoas organizam sua sociabilidade tendo como referências
o direito e a legalidade, o pressuposto aqui é o de que, de alguma forma, o contato com o
judiciário, nas varas de família, ao fornecer um “código legal”, no sentido de uma linguagem
de direitos, condiciona a visão do que seja família e seus personagens (pai, mãe, marido,
mulher), em um processo cujo controle, intensidade, direção e grau de intencionalidade estão
em aberto para verificação, mas no qual se pode, desde suspeitar, não faz parte submissões
mecânicas a regras pré-definidas. A linguagem dos direitos se torna mais uma fonte de
códigos através dos quais se podem expressar as relações pessoais e familiares sem que isso
represente, necessariamente, uma submissão destas relações aos conteúdos normativos
oriundos do universo jurídico ou a seus princípios organizadores, tais como expressos nas
idéias de contrato e indivíduo.
A questão da diversidade social em geral e da diversidade de formas de família
aparece aqui porque é nessa prática que é gestada e testada a maior parte das inovações legais,
substantivas ou processuais, e, assim a heterogeneidade faz implodir os modelos mais rígidos
de família, ao mesmo tempo em que contribuem para aumentar e legitimar a complexidade
social. Os códigos se abrem e o discurso jurídico tem de repensar suas ambições regulatórias
pois não pode mais pensar em família, mas sim em relações familiares.
20
Capítulo 2:
O discurso jurídico e as ciências sociais
O discurso jurídico, tanto do ponto de vista das representações e valores presentes em
seu conjunto de leis e teorias, quanto do ponto de vista de suas práticas sociais concretas, e os
limites e alcance político - lato senso - destas, não se constituiu como um objeto “nobre” para
análise sociológica
7
, pelo menos não na mesma proporção em que seu valor político - stricto
senso - tem sido amplamente discutido pela filosofia política, desde pelo menos o século XVII
(POCOCK, 2003)
8
, e, no Brasil em especial, a partir dos anos 70 (FERRAZ, 2004). Ainda que
desde os clássicos precursores das ciências sociais o direito fosse alvo de reflexões
instigantes, parte importante de suas construções teóricas e de suas polêmicas intelectuais, é
somente após a Segunda Grande Guerra que emerge algo como uma “sociologia do direito”,
com autonomia em relação tanto à filosofia do direito quanto à dogmática jurídica (SOUSA-
SANTOS, 1993; LÉVY-BRUHL, 1997; ASSIER-ANDRIEU, 2000).
Por outro lado, agravou essa situação o fato de a influência teórica de o marxismo ter
levado um confinamento geográfico da produção sociológica sobre o direito. No âmbito do
marxismo, de um modo geral, o direito tem sido abarcado ou pelo político ou pelo ideológico,
reproduzindo-se assim um relativo desinteresse - senão desprezo – do próprio Marx em
considerar as formas jurídicas como objeto de primeira grandeza (HESPANHA, 1978).
De fato, parece haver uma relativa distância entre as ciências sociais e o direito e
7
No Brasil, parte das vicissitudes das relações entre Ciência Sociais e direito pode ser visualizada na análise da
listagem parcial dos trabalhos “socio-jurídicos” no Brasil, bem como os percalços do grupo direito e Sociedade
da ANPOCS, apresentadas JoFaria e Celso Capilongo (1991). Ver também Leonel S. Rocha (1988) para uma
exposição, também parcial, da gênese destes trabalhos.
8
Sobre as relações entre discurso do poder do Estado e o discurso jurídico, subsumidas na questão da soberania,
bem como a metamorfose destas relações, ver Michel Foucault (1993, p.179); e, para uma posição divergente
sobre as relações entre o poder político e o direito, assim como uma breve exposição da forma como essa relação
foi concebida por autores clássicos, ver Boaventura de Sousa-Santos (2001).
21
algumas dificuldades na comunicação entre estas áreas (SOUSA Jr., 2002), que faz com que
os trabalhos de um ou de outro lado tragam não apenas, como seria natural, a marca de suas
respectivas tradições teóricas, bem como suas respectivas inquietações (ASSIER-ANDRIEU,
2000), mas, e esse é o problema, se tornem desinteressantes ou ininteligíveis para o outro lado
(GEERTZ, 1983). Apesar do comentário feito por Henri Lévy-Bruhl (1997, p. 99), no inicio
dos anos 60, de que entre sociologia e direito “o gelo está quebrado” parece ainda perdurar a
situação descrita por este mesmo autor sobre os primeiros encontros de ambos: “Durante
muito tempo eles ignoraram-se, ou, mais exatamente, importunaram-se” (LÉVY-BRUHL,
1997, p. 95)
9
.
Uma das razões para isso é a posição social específica que adquire o direito - como
articulador “oficial” da distribuição social de bens simbólicos e materiais que confere,
conseqüentemente, critérios de distinção social àqueles envolvidos ou beneficiados em suas
operações (WEBER, 1999), sobretudo em sociedades como a brasileira que tem em suas
raízes práticas cartoriais e patrimonialistas
10
. Tal posição diferenciada tem contribuído ainda
mais para tornar o direito um saber hermético e avesso à devassa sociológica (AZEVEDO,
2001). Apoiando-se em códigos próprios e reservas corporativas como estratégias de defesa, o
universo jurídico tem criado e recriado barreiras que de alguma forma filtram a comunicação
com o restante da sociedade. As dimensões simbólicas envolvidas neste distanciamento
9
Ao privilegiar a demissão coletiva da vida humana, as ciências sociais desenvolvem uma visão critica do
individualismo que conforma uma ossatura própria ao discurso jurídico, surge assim um fosso profundo nas
origens intelectuais de ambos.
10
Patrimonialismo entendido como em sua utilização recorrente na literatura sobre a sociedade brasileira, de
acordo com Bernardo Sorj (2000, p.13): “O termo ‘patrimonialismo’ foi largamente empregado nos estudos
sobre o Brasil para caracterizar a apropriação privada dos recursos do Estado, seja pelos políticos ou
funcionários públicos, seja por setores privados. Como tal contrapõe-se a um tipo ideal de sociedade liberal ou
moderna na qual o Estado está separado do mercado, em que as burocracias funcionam de acordo com regras
universais e o governo expressa os projetos de representações políticas constituídas a partir da sociedade civil”.
Sobre as contradições entre patrimonialismo e liberalismo e as práticas cartoriais na tradição bacharelesca no
Brasil, ver Sérgio Adorno (1987), José W. Kozima (2005) e Antonio C. Wolkmer (2005). Ver, também Roberto
DaMatta (1995) e Mariza Peirano (2002) sobre os significados dos documentos e da burocracia na vida social
brasileira. Tanto o patrimonialismo em suas múltiplas acepções quanto o cartorialismo, se constituem não
apenas como formas de “mediação” entre Estado e sociedade, em especial, através do judiciário, como também
são matrizes de práticas sociais.
22
contaminam significativamente as práticas e representações deste universo, assim como
condicionam formas específicas de criar, pôr em práticas e recepcionar as leis.
As revoluções Americana e Francesa traduziram em leis os ideais iluministas do
século XVII e XVIII, mas também dos utilitaristas e dos fisiocratas, sobretudo no que diz
respeito à busca individual da felicidade e novas formas de conceber a justiça e o poder do
Estado. A associação entre a soberania assentada na nação e não mais no rei, e a produção
legislativa de leis, a cargo de representantes da nação, assim como a concepção de que as leis
podem ser racionalmente deduzidas de uma base natural, fez com que, desde os finais do
século XVIII a lei fosse adquirindo crescente primazia, senão exclusividade, na condição de
lócus de direito em detrimento dos costumes.
A revolução Francesa, em especial, criou os fundamentos de sistema jurídico que,
posteriormente se espalhou pela Europa Ocidental e pelas Américas, em um formato original:
o Code Civil, constituído a base de legislações por todo o mundo, a exceção do universo
anglo-saxão. Tendo por base um modelo jurídico baseado em leis codificadas e que tem por
sujeito um indivíduo, livre e racional por natureza, tal sistema tornou-se potencialmente
universalizável. O extremo individualismo presente na legislação revolucionária, na forma do
apego a liberdade e propriedade individual, somente no final do século XIX começa a ser
questionado diante da emergência do operariado e da necessidade de ações por parte do
Estado que equilibrassem a liberdade econômica com justiça social. A emergência, nesse
contexto, tanto dos direitos sociais, quanto do sufrágio universal, no entanto, se afirmou de
modo ainda mais comprometido com um individualismo fragmentário, reagindo aos
privilégios de corporação e de nascimento, mas diluindo a unidade de classe. O direito se
descobre como instrumento de controle político extremamente eficaz, sobretudo se
comparado às práticas policiais repressivas até então utilizadas para combater as mobilizações
dos operários (FOUCAULT, 1999).
23
José Bolzan de Morais (1996) demonstra que, por trás de um aumento do escopo
judicial no final do século XIX e início do século XX, observa-se uma tentativa por parte dos
Estados europeus de canalizar os conflitos sociais para a esfera jurídica. O desmonte do
regime das corporações, na passagem da sociedade feudal para a sociedade burguesa,
reestruturou a relação Estado/sociedade sem a mediação de grupos e reduzindo os privilégios
sociais associados a certas categorias. Assim, menos que o triunfo ideológico do
individualismo liberal, o reconhecimento de direito que funda as democracias modernas se
constituiu em uma estratégia de atomização e esvaziamento das identidades coletivas,
individualizando as relações com o Estado e com o Capital, através da concessão de direitos
políticos e sufrágio universal, da regulação legal das relações trabalhistas, baseadas em um
contrato individual de trabalho e a criação de uma legislação social e previdenciária
individualizada.
Michel Foucault (1999) argumenta que, na mesma época desenvolve-se o que ele
chama de “sociedade disciplinar”. Novos padrões de acumulação de riquezas, com estas agora
não mais coaguladas nas propriedades rurais, mas nas mercadorias estocadas e em circulação
nas cidades, acessíveis, portanto, à massa de operários e desocupados que nelas se
concentram, determinou uma reorganização das práticas penais legais distanciando-as das
bases teóricas formuladas pela crítica iluminista ao direito penal do século XVIII. Esta
reorganização teria como expressão a “estatização” de mecanismos populares e comunitários
de controle social, com o advento de “aparelhostais como a polícia, e de um conjunto de
saberes e instituições paralelas, como a psiquiatria e os manicômios, a escola de correção e a
pedagogia, etc.
Essa reorganização teve como base um deslocamento do objeto penal, não mais
centrado nos atos que violam uma regra jurídica, mas na potencialidade residente no interior
dos indivíduos em praticar tais atos, nas potencialidades mais que na efetividade, isto exigiu
24
uma substituição do antigo mecanismo de obtenção da verdade jurídica, o inquérito, tal qual
construído no final da Idade Média, que servia para atualizar no presente um ato ocorrido no
passado, pelo exame, ou seja práticas de observação e vigilância que estabelecem o normal e,
tendo-o como parâmetro avaliam os indivíduos. As práticas ligadas ao inquérito estiveram na
base do surgimento das ciências de observação da natureza, enquanto as práticas ligadas ao
exame, deram origem às ciências humanas: sociologia, psicologia, pedagogia, bem como das
ciências jurídicas.
*
Além das razões apontadas acima, parte da distância entre as ciências sociais e o
discurso jurídico, pode ser explicada também pela autonomia pretendida pelo saber jurídico.
São relativamente contemporâneas as tentativas, tanto das ciências sociais quanto do direito,
de se institucionalizar como campo de conhecimento. Esta busca de autonomia enquanto
conhecimento científico e não apenas enquanto “filosofia moral”, se dá no mesmo instante em
que as ciências sociais estão, também elas tentando se afirmar como campos de saberes
legítimos de bases científicas. Esta simultaneidade significou, como não poderia deixar de ser,
alguma competição e tensões, a exemplo das que ocorreram entre a sociologia então nascente
e a psicologia
11
. No caso das relações entre o discurso da sociologia e do direito, os
confrontos se deram em duas frentes: de um lado com a Criminologia e, de outro, com a
própria teoria do direito.
12
Mas, o discurso jurídico tem antecedentes na sua busca por autonomia: enquanto
instituição política - conforme as teorias de divisão de poderes - e como instituição social.
Assim, a autonomização do direito o reveste de uma dualidade: se constituir como campo de
11
Ver Marcel Mauss (1973 terceira parte e 1999 capitulo 3, primeira parte) e Luiz F. D. Duarte (1984).
12
No que diz respeito ao estabelecimento de fronteiras e limites entre as ciências sociais e o direito, ver, por
exemplo: do lado das Ciências Sociais, Max Weber (1999); e, do lado do direito, Hans Kelsen (2000) (que, aliás,
foi aluno de Weber), bem como Henri Lévy-Bruhl (1997). Poderiam, também ser citados os confrontos entre, de
um lado Gabriel Tarde, ou mesmo Émile Durkheim, e de outro a chamada “antropologia criminal”. Ver
Boaventura de Sousa-Santos (2001) sobre a questão da construção da cientificidade do direito suas relações com
o positivismo.
25
conhecimento e como prática social. Nas sociedades modernas, aquelas atingidas, em menor
ou maior grau, pelas instituições modernas, o discurso jurídico teve de se afirmar como
conhecimento tanto filosófico e moral em um primeiro momento - quanto como
conhecimento científico e, ao mesmo tempo, consolidar e legitimar seus dispositivos na forma
de práticas sociais concretas, que tivessem por alvo tanto indivíduos quanto segmentos sociais
ou a “população” como um todo
13
. Sem, com isso, negar ou trair suas relações recíprocas e
orgânicas com o Estado moderno, com o sistema capitalista de produção e a organização
social burguesa (FOUCAULT, 1999; MASCARO, 2003; WOLKMER, 2005; SOUSA-
SANTOS, 2001), nos séculos XIX e XX, a ciência do direito conheceu grande
desenvolvimento.
Este processo de institucionalização do direito, ainda nas sociedades “modernas”, foi
feito distanciando ou, mais freqüentemente imiscuindo, suas práticas e seus modelos (modelos
de comportamento, representações do humano, da sociedade, de contrato, etc.) as práticas e
modelos tradicionais
14
, num processo de racionalização (WEBER, 1999) e
destradicionalização (GIDDENS, 1997). Assim, esta autonomização do discurso e da prática
jurídica resultou (resulta) em arranjos variados de dinâmicas tais como, o local e o exógeno; o
moderno e o tradicional; o indivíduo e o coletivo, a repressão e o consenso, sem deixar de se
constituir e apresentar como uma espécie de vanguarda da universalização dos valores
políticos e morais que fundam os Estados modernos. A ambição legislativa do código
13
no Brasil, Maria C. Paoli (1984) sustenta que as ligações entre as primeiras tentativas de legislar sobre as
condições de trabalho, nos anos 20, em resposta às mobilizações operárias dos anos 1917-19, e tentativas de
focalizar o controle da força de trabalho, não na capacidade ou condição de trabalho, mas no sujeito moral do
trabalhador, o que incluía ainda que tangencialmente - sua dimensão familiar como objeto de discussões e de
leis específicas. Sobre a constituição da “população” como objeto de intervenção, ver Michel Foucault (1993).
14
Não se trata de processos lineares, uniformes e que tenham se desenvolvido da mesma forma em todos os
contextos em que ocorreu, mas sim influenciado por condições sociais, econômicas e políticas diversas. Sobre o
processo de institucionalização do direito no Brasil, e suas relações com as práticas locais, ver Wolkmer (2005).
Especificamente no que diz respeito ao casamento, esse processo se traduz na laicização do reconhecimento das
relações conjugais, numa disputa entre Estado e Igreja Católica, sobretudo a partir do século XIX (CASEY,
1992). Ver, por exemplo, uma descrição da reação da Igreja Católica a laicização do casamento, em Goiás, no
século XIX em Silva (2003).
26
napoleônico, por exemplo, pode ser vista como uma tentativa de varrer os antigos costumes,
associados ao modo de vida do Antigo Regime, substituindo-os por leis. De acordo com
Gilissen (2003) a legislação revolucionária e a codificação napoleônica evidentemente não
aboliram os costumes das práticas sociais, mas tampouco puderam abrir mão da “regulação”
social promovida por estes, no entanto, se referem a eles como “usos” – “usos bancários, usos
comercias, usos profissionais” (p:416), evitando-se assim assumir o termo “costumes”.
As transformações por que passou o direito ocidental moderno na sua busca por
autonomia assinalam de forma paradigmática as mutações do poder tão bem identificadas por
Michel Foucault. A gênese do poder disciplinar tem no direito não um inimigo, mas sim um
suporte. Desde a Idade Média, as teorias do direito se organizaram de forma a desempenhar o
papel de fixar a legitimidade do poder; primeiro do Rei e depois do Estado; ora a favor,
legitimando o poder do soberano, ora contra, afirmando a necessidade e os instrumentos para
limitá-lo de forma a que conservasse a legitimidade (FOUCAULT, 1993). No entanto, quando
se observam as relações entre direito e poder da ótica própria dos discursos jurídicos e
políticos, o que se são relações gravitando em torno do poder vertical que vai do rei aos
súditos, do Estado aos cidadãos, em dois sentidos: “de um lado os direitos legítimos da
soberania, e por outro a obrigação legal da obediência” (FOUCAULT, 1993, p. 181). Essa
visão tende a afirmar a dissolução (ou obscurecer a existência) da dominação exercida pelo
poder soberano, levada a cabo pelo desenvolvimento da técnica e do discurso do direito.
Mas, para Foucault, o direito é mais e menos do que isso, e é o que ele procura
destacar ao propor uma inversão na direção das análises do exercício do poder (o como do
poder) em geral e do direito em particular:
Nos últimos anos, meu projeto geral consistiu, no fundo, em inverter a direção da
análise do discurso do direito a partir da Idade Média. Procurei fazer o inverso: fazer
sobressair o fato da dominação no seu íntimo e em sua brutalidade e a partir daí
mostrar não como o direito é, de modo geral, o instrumento dessa dominação o
que é consenso mas também como, e até que ponto e sob que forma, o direito (e
quando digo direito não penso simplesmente a lei, mas no conjunto de aparelhos,
27
instituições e regulamentos que aplicam o direito) põe em prática, veicula relações
que não são relações de soberania e sim de dominação
15
.(FOUCAULT, 1993,
p.181).
Nessa inversão, Foucault apresenta um conjunto de precauções metodológicas
aplicada a diversos temas de estudo, tais como instituições psiquiátricas ou prisionais, que
fazem se revelar outra forma de poder, que ele irá designar Poder Disciplinar
16
, intimamente
relacionado ao funcionamento dos sistemas jurídicos e que, portanto, desenham novas
possibilidades de análise de seu funcionamento.
Outra matriz teórica, a partir da qual se pode compreender o papel e as transformações
do direito ocidental, é a desenhada por Boaventura de Sousa-Santos (2001). Este autor analisa
a modernidade a partir de dois pilares em relações tensas e mutáveis: a regulação e a
emancipação. Nessa análise, volta-se para a ciência e o direito. Cada qual desenvolve-se a
partir de promessas próprias de emancipação que, no entanto, a medida em que estes pilares
são tragados pelo capitalismo, perdem sua vocação original e tornam-se instrumentos de
regulação. De “espelhos” em que a sociedade poderia ver-se refletida e, a partir dessa imagem
se pensar e modificar, Direito e Ciência passam a estátuas” que não oferecem mais uma
imagem que a sociedade reconheça como sua e, rígidas, passam a vigiá-la. Ao descrever os
processos de transformação - de espelho em estátua - do direito ocidental, e novas promessas
na transição da modernidade, Sousa Santos abre inúmeras possibilidades novas para
compreensão do papel que o Direito exerce hoje na sociedade ocidentais.
Estas matrizes permitiram colocar e superar como eixos de preocupação dos estudos
15
Segue assim Foucault: “Por dominação não entendo o fato de uma dominação global de um sobre outros, ou
de um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto,
não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício
único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social”. (FOUCAULT, 1993,
p.181).
16
A rejeição à formulação de teorias totalizantes, e sistemáticas, defendida por Foucault, faz com que o poder
disciplinar seja mais descrito e que definido, no entanto, ele o apresenta, em linhas gerais, como um novo tipo de
poder, invenção burguesa fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que
lhe é correspondente; heterogêneo, que tem como alvo os corpos e não mais a propriedade de terras e de bens, e
destes corpos extrai, maximizando, o tempo e o trabalho, e através deles faz emergir e torna gerenciável a
população. (FOUCAULT, 1993, p.188).
28
sociais sobre o direito: de um lado a discrepância entre a lei dos livros e a lei na prática, que
dominou a sociologia do direito principalmente no universo anglo-saxão, e, de outro, o papel
da lei na modernização social. Em um segundo momento, foi possível a passagem de uma
visão normativista e substantivista para uma visão processualista institucionalista. E isto se
deu a partir de condições intelectuais e sociais próprias (SOUSA-SANTOS, 1993; SOUSA Jr,
2000), tais como: o desenvolvimento da sociologia das organizações, o desenvolvimento da
ciência política e sua atenção para o papel dos tribunais enquanto instância de decisão e poder
político e, por fim, o interesse renovado da antropologia pelo direito. De acordo com
Boaventura de Sousa-Santos:
A terceira condição teórica é constituída pelo desenvolvimento da antropologia do
direito ou da etnologia jurídica ao libertar-se progressivamente do seu objeto
privilegiado, as sociedades coloniais, virando-se para os novos países africanos e
asiáticos e para os países em desenvolvimento da América Latina até finalmente
descobrir o seu objeto duplamente primitivo dentro de casa, nas sociedades
capitalistas desenvolvidas. Ao centrar-se nos litígios e nos mecanismos da sua
prevenção e da sua resolução, a antropologia do direito desviou a atenção analítica
das normas e orientou-se para os processos e para as instituições, seus graus
diferentes de formalização e de especialização, sua eficácia estruturadora dos
comportamentos. (SOUSA-SANTOS, 1993, p. 108).
As reflexões desenvolvidas a partir destas matrizes sobre o discurso e práticas
jurídicas contemporâneas têm revelado, entre outras coisas, seu papel na formação de novas
configurações do conflito social; novos processos de constituição de sujeitos sociais e de
novos protagonismos. No cenário aberto pela fragmentação das identidades sociais ancoradas
em referentes sociológicos relativos ao processo produtivo e a articulação e mobilização de
novas identidades por diferentes discursos em competição, ao mesmo tempo em que se
enriquece a pluralidade de experiências vividas pelos sujeitos na vida social contemporânea,
(LACLAU, 1986), a luta dos movimentos sociais deslocou-se do âmbito da arena política
representativa para a arena legal, tendo a consolidação e efetivação dos direitos sociais como
pano de fundo, ao mesmo tempo em que a igualdade jurídica posta em confronto com
desigualdades sociais se tornou fonte crescente de reflexão intelectual e mobilização política o
discurso pelo direito à ter direitos se tornou uma espécie de denominador comum dos novos
29
movimentos sociais.
O aumento da demanda judicial causado pelos novos direitos sociais, bem como pela
integração ao mercado produtivo ou de consumo de setores da população anteriormente
excluídos pelo boom do pós-guerra, em especial a integração “definitiva” da mulher ao
mercado de trabalho, e não apenas circunscrita ao esforço de guerra, levaram a uma crise da
justiça que fez desta um objeto de reflexões e deu margem a novas formas de
encaminhamento de conflitos (NADER, 2000). Além disso:
Acresce que a integração das classes trabalhadoras (operariado e nova pequena
burguesia) nos circuitos do consumo foi acompanhada e em parte causada pela
integração da mulher na mercado de trabalho, tornada possível pela expansão da
acumulação que caracterizou este período. Em conseqüência, o aumento do pool de
rendimentos familiares foi concomitante com mudanças radicais nos padrões do
comportamento familiar (entre cônjuges e entre pais e filhos) e nas próprias
estratégias matrimoniais, o que veio a constituir a base de uma acrescida
conflitualidade familiar tornada socialmente mais visível e até mais aceita através
das transformações do direito da família que, entretanto se foram verificando. E esta
foi mais uma causa do aumento dos litígios judiciais. (SOUSA-SANTOS, 1993, p.
109).
A expansão do direito e sua extensão às relações familiares se dão sob um duplo signo.
Por um lado, se movem pela crítica aos ideais não realizados pela modernidade. A lei deveria
ser o recurso privilegiado para estender a igualdade do plano formal para a realidade social,
mas na verdade, segundo a crítica feminista, por exemplo, tal igualdade foi interditada pela
manutenção de concepções patriarcais na legislação de família, tendo sido alvo, portanto, de
intenso ataque no mesmo movimento em que se acredita poder reformá-la. Da mesma forma,
o recurso à lei como mecanismo de integração de sectores excluídos da sociedade, esbarra na
forma diferenciada como os “bens” jurídicos são accessíveis dificultando sua aplicação
universal. Por outro lado, as transformações sociais e a reorganização da sociedade em grupos
pressionam, através dos movimentos sociais, pelo reconhecimento de diferenças que devem
ser traduzidas juridicamente.
O impulso em relação ao reconhecimento jurídico e político das diferenças e sua
tradução legislativa na forma de direitos coletivos e transindividuais promove uma espécie de
30
desindividualização do discurso jurídico, que acaba por relativisar uma relação entre
igualdade e individualismo na qual é possível a primeira se o segundo for um indivíduo
descarnado, sem substância. Uma contradição que lembra certas concepções de Simmel.
Para este autor, a individualidade é resultado de um quadro histórico associado ao
Renascimento e a condições sociológicas particulares, tais como o tamanho e à diferenciação
do círculo social, está relacionada à divisão social do trabalho e seu impacto na produção de
uma cultura subjetiva diversificada. Neste quadro ocorre, para Simmel, uma segunda
revolução individualistas que sucede àquela do Renascimento e que caracteriza a sociedade
moderna do século XVIII ao XX. Esta é causada por uma mudança de ênfase no
individualismo. Em um primeiro momento, uma valorização da igualdade e da liberdade,
mas que, em um segundo momento vão se chocar, pois a da manutenção da ênfase na
liberdade pressiona pelo o surgimento de um impulso de fuga à igualdade – aliás, não
totalmente realizada no plano material -, indo no sentido da diferenciação. Simmel expressa
essa dualidade com os conceitos de individualismo quantitativo (singleness), individualismo
qualitativo (uniqueness). (SIMMEL, 2005, p. 103). Segundo Simmel:
Depois da libertação principal do indivíduo das correntes enferrujadas da
corporação, do estamento por nascimento e da Igreja, o movimento segue adiante,
no sentido de que os indivíduos tornados autônomos querem agora distinguir-se
entre si. O importante aqui não é mais o indivíduo livre como tal, mas que este é,
precisamente, aquele único e distinto. A procura moderna pela diferenciação ganha
com isso uma intensificação que desmente a forma imediatamente anterior, sem que
essa contradição permita enganos quanto à identidade do impulso primordial.
Durante toda época moderna, temos a busca do indivíduo por si mesmo, por um
ponto de solidez e ausência de dúvidas, o qual se torna tanto mais necessário quanto
mais o horizonte prático e teórico e a complexidade da vida aumentam
aceleradamente, tornando ainda mais urgente essa necessidade, a qual não pode ser
encontrada em instâncias externas à própria alma. (SIMMEL, 2005, p. 112).
Não é possível, portanto, falar de qualquer homogeneização resultado da aplicação de
leis que, por sua vez, não representam também um bloco homogêneo. A construção do
edifício jurídico pressupõe diversidade e negociação a partir da manipulação de diferentes
códigos, do mesmo modo como sua aplicação à vida real é também realizada pela
manipulação de códigos e não pela imposição mecânica de modelos. Um dos aspectos destas
31
negociações diz respeito exatamente à necessidade de se legislar sobre diferenças sociais,
umas para serem superadas, outras protegidas e ao mesmo tempo ter de lidar com modelos
que pressupões homogeneidade e igualdades absolutas. Estas questões serão retomadas mais
adiante, quando focalizadas aspectos da legislação brasileira sobre família.
Antropologia e direito
Entre as ciências sociais, a Antropologia tem uma posição inusitada no que diz
respeito à análise dos fenômenos ligados à família e ao direito. Claro que teríamos que
entender “família” e “direito” como algo bem mais amplo do que aquilo que nós “modernos”
entendemos por estes termos. Uma vez que o legado antropológico se constitui da observação
e comparação de contextos sociais distintos e culturas muito diferentes “da nossa” e entre si.
Fazendo este alargamento poderíamos até mesmo encontrar na história da disciplina
momentos em que “direito” e “família” se aproximam
17
, como em certos estudos clássicos
sobre o parentesco e o modo como ele dá forma às relações sociais, ou sobre as categorias de
dívida e contrato e seu papel na estruturação das relações sociais (DAVIS, 1973).
No entanto, se por um lado o parentesco tem na história da disciplina um papel
fundamental, embora um tanto ofuscado atualmente, por razões históricas e teóricas
18
, e as
formas que assume a família nas sociedades modernas e, dentro destas, de forma diferenciada
em seus vários segmentos, tenham se tornado um objeto recorrente e prestigiado, por outro o
“direito” teria permanecido praticamente um desconhecido da Antropologia.
Por ter sempre entre suas reflexões teóricas e metodológicas a questão das categorias
17
Tal regressão nos levaria, sem dúvida a Morgan (Ancient Society, publicado em 1877), que apesar de seu
papel de “fundador” da antropologia, era, antes de tudo um jurista, bem como seus “interlocutores”
privilegiados, MacLennan (Primitive Marriage, publicado em 1865) e Maine (Ancient Law, publicado em 1861).
18
Por razões históricas poderíamos entender o “desaparecimento” das “sociedades tribais” e, na história da
disciplina, a progressiva passagem ao estudo das sociedades modernas em detrimento das sociedades não
modernas, onde o parentesco teria maior relevância social. Viveiros de Castro, ao justificar que os estudos de
parentesco tenham deixado, de certa forma, a ribalta da disciplina, afirma: “o tema [parentesco] andou em perigo
de sucumbir às pressões combinadas do historicismo revisionista, do ceticismo analítico, e das ‘teorias da
prática’. A voga hermenêutica de origem americana, em particular, deu forte contribuição para o descrédito do
enfoque sociológico dominante na antropologia do parentesco”.(Viveiros de Castro, 1995, p.8).
32
nativas e as implicaçoes de descrever uma cultura em seus próprios termos ou nos termos da
cultura do antropólogo, a antropologia pode trilhar caminhos próprios entre as ciências sociais
na análise dos fenômenos “jurídicos”. Com isso foi possível senão evitar, ou ao menos
reconhecer, algumas armadilhas como, por exemplo, ser “tragada pelo direito” (Assier-
Andrieu, 2000). Um problema recorrente quando se tem o discurso jurídico por objeto é o
aceitar de modo acrítico suas categorias mais gerais ou mais específicas, tais como lei,
justiça, crime, etc, usando-as para descrever o objeto investigado.
Além disso, a vocação da antropologia para o particular distanciou de suas reflexões o
macro papel do direito, tal qual teria sempre sido a vocação tanto da sociologia quanto da
ciência política. São, assim, análises circunstanciadas que dificultam sua generalização e a
rotulação de seus produtos como pertencendo a uma “antropologia do direito”. No entanto, a
constatação de uma certa negligência da Antropologia para com o direito se deve,
provavelmente, não à inexistência de estudos que tenham o direito como objeto principal ou
secundário, mas à reduzida quantidade de trabalhos empíricos ou teóricos que assumam a
identidade de uma Antropologia do direito
19
. Independente de possuir ou não uma rubrica
própria, e das vantagens ou desvantagens que isto possa ter, tais trabalhos têm levantado
questões importantes que, se confrontadas e articuladas podem levar, por um alado, a uma
melhor compreensão tanto do funcionamento dos sistemas de resolução e prevenção de
conflito e dos mecanismos de controle social em diferentes contextos quanto uma critica dos
fundamentos modernos do direito e suas pretensões de universalização (SOUSA-SANTOS,
1988).
Talvez, entre os clássicos fundadores das ciências sociais a primeira explicação
propriamente sociológica do direito tenha sido a de Émile Durkheim (GURVITCH, 1999). De
fato, Durkheim rejeita não as definições jurídicas do direito (DURKHEIM, 2002[1893]),
19
Se autores como, por exemplo, para outros como Geertz (1983), por exemplo, não faz sentido pensar em uma
ramificação da disciplina – criando uma subdivisão: do direito”.
33
como também suas classificações típicas como, por exemplo, direito público e direito privado,
para apresentar uma definição que localize o direito na própria estrutura social e daí retirar
critérios para classificar tanto o primeiro quanto a segunda. Tal movimento permite a ele falar
de direito independente de suas manifestações através de um Estado ou um corpo
especializado para aplicação de “regras de sanções organizadas”, não restringindo, assim, sua
perspectiva às sociedades complexas. Ao estudar estas, aos poucos, Durkheim foi revendo a
rigidez das associações entre morfologia social e direito
20
. Rigidez essa oriunda de um
modelo evolutivo com o qual ele acreditava poder, a partir do estudo do mais simples chegar
ao mais complexo como, por exemplo, deduzir da oposição entre magia e religião nas
sociedades “arcaicas” uma oposição entre individual e coletivo que seria a gênese da distinção
entre direitos coletivos e direitos individuais.
Para Durkheim, o direito é antes de tudo uma função: atualizar materialmente a
solidariedade social. Sendo uma “expressão material” da solidariedade, sua função seria
garantir a coesão social sempre que esta estivesse ameaçada. E se o faz através de instituições
sociais tais como o costume, o parentesco, a religião e, nas sociedades complexas, através
predominantemente, mas não exclusivamente – de órgãos especializados, é porque todas
podem ser subsumidas a função social do direito. Se por um lado Durkheim pretende derivar
o direito da morfologia social, estrategicamente procura estabelecer a partir dessa relação um
método para discernimento das condições de coesão social e de suas modalidades. A
visibilidade que o direito permite à solidariedade possibilita discernir os diferentes modos
como ela opera e em que condições (tipos de sociedades: mais simples ou mais complexas),
assim como demonstrar a função social da divisão social do trabalho, quais as causas e
20
Flexibilizando essa rigidez, ele foi levado a repensar o papel do Estado moderno como variável condicionante
das formas de expressão do direito, uma vez que o próprio Estado não guarda relações inequívocas com o
modelo de preponderância progressiva da solidariedade orgânica sobre a mecânica, tal qual formulado por
Durkheim, assim como a passagem de uma a outra se ressente das formas anômicas da divisão social do
trabalho.
34
condições de que ela depende e quais suas condições de normalidade.
Com essa preocupação “metodológica” Durkheim parte para uma classificação do
direito, que, tendo por base uma formulação mais geral - o direito como “regras de sanção
organizadas” - permite a classificação das sanções em repressivas e restitutivas:
Trata-se de duas espécies. Umas consistem essencialmente numa pena, ou pelo
menos, numa limitação infringida ao agente; têm por objeto atingi-lo no seu pecúlio
ou na sua honra, ou na sua vida, ou na sua liberdade, priva-lo de qualquer coisa que
goze. Diz-se que são repressivas; é o caso do direito penal. [...] Quanto à outra
espécie, ela não implica necessariamente um sofrimento do agente, mas consiste
somente na reposição das coisas, no restabelecimento das relações atingidas na sua
forma normal. Que o ato recriminado seja conduzido pela força à forma de que se
desviou, quer seja anulado, isto é, privado de qualquer valor social. Deve-se,
portanto, repartir em dois grandes tipos as normas jurídicas, consoante sejam
sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas. A primeira
compreende todo o direito penal; a segunda o direito civil, o direito comercial, o
direito processual, o direito administrativo, e constitucional, abstração feita das
normas penais que aí se podem encontrar. (DURKHEIM, 1999b, p. 105-106).
A partir dessa classificação, Durkheim estabelece correlações entre, de um lado direito
restitutivo e solidariedade orgânica e de outro, direito repressivo e solidariedade mecânica
que podem ser esquematicamente resumidas da seguinte forma: quanto mais simples a
sociedade (ou grupo no interior dela) maior a consciência coletiva, ou seja o conjunto de
crenças, valores e sentimentos comuns a seus membros e maior é o peso da solidariedade
social mecânica na coesão do grupo, pois sua força deriva exatamente daquilo que é
partilhado pelo grupo (similitudes), e sua atuação liga o indivíduo diretamente ao grupo.
Qualquer ato que contrarie essa consciência coletiva ou ameace essa forma de coesão exige
da parte da sociedade como um todo ainda que manifestado por agentes especializados
uma resposta cuja intensidade é proporcional à energia coletiva existente no todo. Lembrando
que para Durkheim, o todo é maior que a soma das partes, resulta daí uma reposta
normalmente intensa que forma o direito repressivo.
À medida que se desenvolve a divisão social do trabalho, modifica-se a estrutura da
sociedade. A especialização crescente produz não só diversidade funcional, mas também
social, a sociedade torna-se mais heterogênea, e exige crescente cooperação de seus membros.
Em contextos assim estruturados, progressivamente decai a solidariedade social mecânica,
35
uma vez que decresce o volume de consciência coletiva, e aumenta a proporção das
consciências individuais. A função de garantir a coesão social passa para o que Durkheim
denomina solidariedade social orgânica. Sua especificidade reside na manutenção do
equilíbrio entre diferentes funções, garantindo sua regularidade. Quando algo perturba ou
rompe esse equilíbrio, são acionados mecanismos que visam restabelecer (restituir) o
equilíbrio rompido. Essa seria a base dos direito restitutivo, que nas nossas sociedades se
confunde com o direito civil e as partes que o compõem. A intensidade das respostas dadas
não é a mesma daquela originada no direito repressivo, uma vez que não afeta sentimentos
partilhados coletivamente
21
.
No meio da década de 20, Malinowski publica dois artigos e profere uma conferência
na qual organiza parte de suas observações feitas entre os trobiandeses, relativas a lei e à
ordem
22
. Afirmava ele, então, que a visão recorrente, mesmo entre os especialistas, de que os
mecanismos de controle social e das leis entre os povos primitivos funcionassem com total
eficácia, acabou por tornar desinteressante o estudo das “jurisprudências nativas”. Exatamente
por exagerar sua importância e perfeição, o direito” entre os nativos permaneceu não
questionado (MALINOWSKI, 2003). Da mesma forma, segundo Malinowski, a reificação do
“grupo” - casamento grupal, propriedade grupal, etc. e do caráter pré-lógico do pensamento
selvagem, que teriam predominado na Antropologia antes da utilização da pesquisa de campo
profissional, teriam levado a ilusões como a ausência de direitos individuais e de noções de
responsabilidade individual sobre atos entre os “povos primitivos”. Ainda nesses textos,
Malinowski procura desmistificar o “dogma da submissão automática ao costume”, o que para
ele constituía uma visão deturpada sobre o direito entre os povos primitivos.
21
A partir desse modelo, o desenvolvimento da divisão social do trabalho seria o responsável por um
decréscimo não só na abrangência do direito Penal, como também no abrandamento da violência de suas
respostas.
22
Esses trabalhos foram publicados posteriormente no volume: Crime e costume na sociedade selvagem,
Bronislaw Malinowski (2003).
36
Penso que a extrema dificuldade do problema reside na natureza muito complexa e
difusa das forças que constituem a lei primitiva. Habituados como estamos a um
mecanismo definido de ordenação, administração e cumprimento da lei, procuramos
algo análogo em uma comunidade selvagem e, não encontrando nenhum arranjo
similar, concluímos que toda lei é obedecida por essa misteriosa propensão do
selvagem em obedecê-la. (MALINOWSKI, 2003, p.18).
Os pontos principais de suas críticas seriam; em primeiro lugar, a visão de que os
chamados primitivos se submeteriam mecanicamente às leis ou costumes, e, em segundo
lugar, a exclusividade da lei criminal no pensamento antropológico que impõe aos etnógrafos
dificuldades para perceber formas de regular as relações sociais baseadas não apenas na
aplicação de sanções diretas, mas na auto-regulação sistemática derivada do fato de todos (ou
quase todos), zelarem pelo cumprimento de expectativas recíprocas.
Outro autor, Alfred R. Radcliffe-Brown (1973) - em um verbete enciclopédico
publicado originalmente em 1933 - partindo das idéias de Durkheim e de relatos sobre
diferentes contextos etnográficos, reserva a noção de direito às “sansões legais organizadas”,
e citando Pound:
O termo [direito], porém, restringe-se, em geral, ao “controle social através da
aplicação sistemática da força da sociedade politicamente organizada” (Pound). A
aplicação limitada, mais conveniente para fins de análise e classificação sociológica
será adotada nesse artigo; o campo do direito será, pois considerado coextensivo
com o de sansões legais organizadas. (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 260).
Essa forma de definir o direito serve para distinguir o domínio dos costumes do
domínio do direito, ao mesmo tempo em que propõem uma distinção entre o que ele designa
como direito público e direito privado (análogos, respectivamente, ao direito repressivo e o
direito restitutivo de Durkheim). Onde não houver sansões legais apoiadas por uma autoridade
que represente a comunidade como um todo (a semelhança de Weber), não se pode falar em
direito, mesmo que existam costumes cuja transgressão leve a algum tipo de sansão.
A sanção, para Radcliffe-Brown, é primordial para análise sociológica, dada sua
função na integração social, e pode ser distinguida em sanções negativas ou positivas, e ainda
em difusas ou organizadas, cabendo a estas últimas a designação de direito. Outro aspecto
interessante ressaltado por ele é que, ainda que destaque um certo grau de especialização ou
37
mesmo de autonomização do direito, pois depende de uma autoridade constituída para exercê-
lo em nome da comunidade, bem como de leis distintas dos costumes e sanções que não
sejam apenas reprovações morais, ainda que estas também sejam plenas de conseqüências -,
Radcliffe-Brown ressalta a interdependência do direito em relação ao sistema social como um
todo:
Nas suas manifestações mais elementares o direito está intimamente vinculado com
a magia e a religião; as sanções legais estão intimamente relacionadas com as
sanções rituais. Só se pode, pois, obter pleno entendimento do direito nas sociedades
atrasadas mediante o estudo comparado de sistemas inteiros de sansões sociais.
(RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 269).
Tanto Durkheim quanto Malinowski estão, cada qual a seu modo, preocupados com a
dimensão coletiva do direito, para o primeiro como parte da morfologia social e para o
segundo como componente essencial de sua fisiologia. Mas questões mais específicas
quanto ao papel do direito na organização social que se tornaram uma pagina clássica da
antropologia.
Talvez o momento mais conhecido das discussões antropológicas sobre o direito, seja
a polêmica entre Max Gluckman e Paul Bohannan, envolvendo as possibilidades e limites da
utilização da tradição jurídica ocidental para o estudo de sociedades tribais. Nesse debate é
possível encontrar muitos dos problemas teóricos da disciplina postos em confronto (DAVIS,
1973). No entanto, ao invés de mais uma vez retomar o debate o que já foi feito com
competência maior do que a que seria possível aqui
23
- gostaria de retomar algumas questões
interessantes sobre o material a partir do qual me parece que emerge a polêmica: as discussões
sobre dívida e contrato levantadas por Gluckman a partir de material etnográfico que inclui
parte da monografia sobre os tiv, elaborada por Paul Bohannan; da monografia sobre os
kachim, elaborada por Edmund Leach; o trabalho sobre a Irlanda rural, elaborado por
Arensberg e Kimball, bem como farto material sobre os barotse, do próprio Max Gluckman.
23
Ver, por exemplo a introdução de Shelton Davis (1973 ) para a coletânea na qual estão reunidos os textos estão
os textos aqui utilizaados.
38
A contribuição teórica mais geral proposta por Gluckman parece ser a de que em
contextos sociais em que prevalecem relações multiplex, ou seja, relações em que diferentes
interesses de uma pessoa estão mobilizados e nas quais estão presente também os interesses
de outras pessoas, e que estas tenham entre si relações de naturezas distintas (comerciais,
parentesco, amizade ou outras), o direito poderia ser entendido a partir de uma equação entre
dívida e obrigações, submetida a uma ligação estruturante entre status e certas modalidades
de apropriação de bens.
Para Gluckman, nesses contextos as relações sociais podem elas mesmas ser
concebidas e expressas em termos de vidas, uma vez que não existiria, ao menos de forma
plenamente desenvolvida, uma concepção de contratos que permitisse ver as obrigações como
derivadas não das relações entre as pessoas, mas dos próprios contratos, tal qual ocorreria no
direito ocidental moderno. Grande parte do esforço deste autor se desenvolve, em duas
direções: apresentar questões semelhantes no direito arcaico inglês (com o qual o autor possui
familiaridade) e no direito romano, de forma a confirmar a validade de sua proposição geral
de que o direito tribal se assemelha a fases arcaicas do direito ocidental; e de outro lado,
apresentar trechos de etnografias para afirmar não apenas a validade de suas colocações sobre
divida e contrato em contextos de relações multiplex, mas também de seu método
comparativo.
É nessa segunda direção que Gluckman, ao criticar certas posições teóricas de Leach e,
sobretudo ao retomar o material de Bohannan de forma particularmente crítica quanto ao
método por este adotado, estabelece os termos da polêmica já mencionada
24
. Mas acredito que
muito ainda se pode aproveitar do debate, descartadas, ao menos provisoriamente, as arestas
24
Ao iniciar a análise do material kachim Gluckman esbarra na afirmação de Leach de que haveria semelhança
entre a forma como os kachim expressam suas relações sociais em termos de dívidas (hka) e os termos usados
pelo antropólogo para descrever a estrutura social kachim. Uma afirmação para a qual Gluckman oferece uma
leitura “pouco crítica” e “problemática” (DAVIS, 1973, p. 18). Da mesma forma, ao iniciar sua apresentação do
material Tiv, Gluckman critica a distinção afirmada por Bohannan entre sistema folk tal qual presente na vida
social - e sistema analítico que pode tanto ser a forma como os antropólogos descrevem o sistema social em
termos ideais quanto, no caso do direito ocidental: a própria ciência jurídica.
39
polêmicas e as críticas de lado a lado, retomando os termos iniciais: as categorias de dívida e
contrato a partir de uma leitura que não necessariamente vai ler no material utilizado por
Gluckman a confirmação ou não de suas inferências, mas procurar interpretações ainda úteis
para a reflexão antropológica.
Como dito, para Gluckman haveria uma especificidade na forma como hoje
concebemos as idéias de dívida e contrato em comparação com as sociedades tribais e com
passado jurídico ocidental. Maine - e a teoria da evolução da sociedade de status para a
sociedade de contratos - parece ser um interlocutor privilegiado, no entanto é de autores que
discutem a história do direito inglês
25
que ele retira algumas das idéias mais claras acerca de
sua distinção entre dívida e contrato. Sem se questionar, entretanto, se as próprias leituras que
fazem estes estudiosos já não estão, de certa forma, marcadas pelas concepções atuais do
direito.
Nesses autores ele vai encontrar a demonstração de que no direito antigo uma
transação a crédito não era expressa em termos de um contrato algo externo às pessoas
envolvidas - mas de uma dívida que se estabelecia entre a pessoa de quem cedeu e a de quem
recebeu o bem em questão. A concepção de que um “devedor negligente é um malfeitor”
(GLUCKMAN, 1973, p. 26) presente no direito antigo, corrobora está interpretação. No
exemplo citado por ele, quando e onde prevalece a concepção acima, alguém que deixasse de
pagar pela compra de uma vaca seria visto como um ladrão: alguém que cometeu uma ofensa
contra o dono da vaca
26
; enquanto onde e quando existe uma concepção de contrato, ele
seria visto como alguém negligente que atentou não contra a pessoa do dono da vaca, mas
contra um contrato. O primeiro caso margem a uma punição sobre o devedor, no segundo
caso se exige uma reparação.
27
25
O que talvez justifique a crítica que lhe faz Bohannan de que faz “tradução às avessas”.
26
Ou, como diz Seagle, citado por Gluckman, contra o “grande deus da propriedade”.
27
Cardoso de Oliveira (1992) enxerga nisso uma certa semelhança com o esquema durkheiniano.
40
A tradução brasileira dos textos principais da polêmica, bem como dos textos que
serviram de referência a estes autores, é apresentado por uma introdução elaborada por
Shelton Davis, que sugere uma oposição entre obrigação e acordo como chave para começar
a compreender as discussões sobre dívida e contrato. Nessa abordagem, dívida estaria
relacionada à obrigação, ou seja, a um ato obrigatório e contrato a um acordo, algo que se
pratica ou a que se adere voluntariamente. Ambas expressam transações nas quais objetos
estabelecem relações entre os homens. A posição de Gluckman de que em todas as sociedades
tribais prevalecem as relações concebidas como dívidas e de que o direito ocidental antigo
(arcaico ou primitivo) estaria igualmente baseado na idéia de dívida se complementa com a
idéia de que, tanto em um caso quanto no outro a idéia de dívida permite pensar todas as
obrigações em termos de propriedade, isto é, a propriedade serve para representar as relações
sociais. E isso não somente nas circunstâncias em que estejam envolvidos “direitos” legais;
reparação por ofensas ou relações comerciais, mas em todas as relações multiplex. A
propriedade é uma espécie de linguagem metafórica para expressar as relações sociais.
O esforço de Gluckman passa a ser então o de demonstrar através de relatos
etnográficos dos autores já citados, como em contextos tribais ou “bolsões” de relações
multiplex nas sociedades modernas a categoria de vida permite expressar relações sociais
em termos de propriedade.
Gluckman diz encontrar na forma como Edmund Leach (1995) descreve a categoria
hka
28
entre os Kachin um ponto de contato entre ambos, que vai além da discussão sobre ser o
uso da categoria hka semelhante ao uso que os barotse fazem da categoria mutatu, descrito
pelo próprio Gluckman (semelhança que para ele é evidente), o que Gluckman pretendeu
destacar é que em ambos os casos os usos destas categorias seriam próprios de situações nas
28
Para o significado das categorias aqui utilizadas, salvo quando necessário, remeto aos próprios autores, uma
vez que, não bastasse a dificuldade de tradução entre as categorias nativas e o idioma dos antropólogos, e é em
torno disso que gira grande parte da polêmica entre os autores, aqui agravante de se estar interpretando
interpretações, ou seja, usando material “de segunda mão”.
41
quais prevalece uma indistinção da economia em relação a outras “esferas” como parentesco.
Na leitura que Gluckman faz do material kachim ele encontra subsídios para validar sua
concepção de relações multiplex e suas teorias sobre como a vinculação entre relações de
status e determinados tipos de bens perpassa as “regras” de contratação e o pagamento por
dívidas, sejam essas resultantes de ofensas ou de transações “econômicas”.
De fato, para Leach, “a relações sociais estão vinculada aos fatos econômicos”
(LEACH, 1995, p. 195). De acordo com Leach, uma classe particular de bens com valor
ritual e outros que são passiveis de negociações comerciais corriqueiras
29
. Toda as relações
mediadas por bens – pagamentos pela noiva, pagamentos de dívidas por ofensas, por exemplo
- são alvo de prescrições tradicionais que determinam os preços em termos de bens comuns ou
bens rituais e em função do status do pagador. Manipulando equivalências entre bens rituais e
bens comuns os kachim manipulam a própria estrutura social ao criar mecanismos de
ascensão social e prestígio em uma sociedade que se pretende organizada rigidamente na
forma de castas, ao mesmo tempo em que viabilizam relações entre desiguais.
Quando Gluckman se propõem a discutir o material de Bohannan sobre os tiv, o faz
com evidente preocupação de contrapor-se às limitações assinaladas por este autor para a
análise antropológica dos fenômenos “jurídicos” das sociedades tribais. E após apresentar as
situações com as quais Bohannan pretende demonstrar utilização da noção tiv de dívida (injô)
como um princípio classificatório das relações - e que seriam para Gluckman, mais uma vez,
semelhante ao uso que os barotse fazem da categoria mutatu -, se atém a uma análise mais
pormenorizada da descrição de Bohannan sobre o sistema de casamento entre os tiv.
Quando o governo britânico proibiu o sistema tradicional de troca de esposas, os tiv
criaram um sistema de pagamento por esposas. No primeiro sistema quando alguém toma
uma esposa, o grupo a que pertence o marido deve posteriormente ceder uma esposa ao grupo
29
Ver Godelier (2001) sobre uma discussão, a partir da obra do ensaio sobre o dom de Mauss, da relação entre o
sagrado e os tipos de bens formas de sua circulação ou acumulação.
42
de origem de sua esposa. Já no sistema de pagamentos, as mulheres de um grupo são
“repartidas” entre guardiões homens que recebem um pagamento quando as mulheres sobre
sua guarda são cedidas a homens de outro grupo. Quando um guardião recebe um pagamento,
pode usar o que recebeu para seu próprio casamento ou para o casamento de um parente em
seu próprio grupo. Aqui é necessário, reproduzir o trecho de Bohannan transcrito por
Gluckman:
O resultado da abolição dos casamentos por troca foi que duas estruturas
anteriormente confundidas isolaram-se. Num sistema social caracterizado pelo
casamento ratificado por bridewelth
30
pode-se ver uma estrutura de parentesco que
tem nódulos em casamentos individuais. Há, além disso, uma rede de relações de
dívida mais ou menos acompanhando a rede de relações de casamento e parentesco,
mas que tem seus nódulos em contratos individuais entre os guardiões de mulheres e
seus maridos. Essa separação lógica não era possível no casamento por troca, no
qual as dívidas também existiam, mas podiam ser vistas como laços potenciais no
sistema de parentesco, não um sistema especial fora deste. No sistema de troca, a
dívida estabelecida era uma mulher tutelada por um homem, esposa para outro.
(BOHANNAN, apud GLUCKMAN, 1973, p.44).
No sistema de pagamento por esposas, a dívida entre um marido e o grupo da esposa é
diferente da que este estabelece entre este e seus próprios parentes, caso estes paguem sua
esposa ou de este pagar a esposa de alguém de seu grupo. As dívidas são de natureza distinta
quando entre afins ou entre consangüíneos. A categoria ken é usada para exprimir o primeiro
tipo de dívidas, e não se confunde com a categoria injô, amplamente utilizadas para expressar
e classificar relações em geral. A primeira diz respeito aos pagamentos perpétuos do marido
ao guardião de sua esposa e é parte da estrutura social, e a segunda de um credor com um
devedor, portanto temporária.
É difícil avaliar corretamente a forma como Gluckman monta um quadro a partir de
fragmentos de etnografia tendo em vista objetivos tão precisos de comparação e
argumentação, sobretudo para quem, como eu, não tem familiaridade com esse tipo de
30
James Casey assim define
Bridewealth:
em inglês, o dote concedido pelo noivo à nubente ou
à
sua família. O
segundo caso, quando se usa também o termo
brideprice,
é típico dos grupos de descendência unilineares, cor-
respondendo a uma compensação pelo afastamento da mulher. O dote à nubente (como o
dower
inglês) é mais
comum entre os povos da Europa e do Mediterrâneo, e parece testemunhar uma certa dissolução das estruturas
tribais e a emancipação da família conjugal”.(CASEY, 1992, p. 225). No caso do Bohannan, seu uso se refere ao
pagamento do grupo do noivo ao da noiva.
43
material etnográfico. Acredito que parte das semelhanças que Gluckman encontra entre seu
material etnográfico e o de Leach, o de Bohannan assim como também a análise do sistema de
crédito na Irlanda rural, estudados por Arensberg e Kimbal (1973), se deve ao fato de ler
todos eles a luz dos termos criados pela história do direito ocidental para ler seu próprio
passado. Sobretudo pelo papel central que concede às idéias de propriedade. Mas também por
ter talvez superestimado semelhanças formais na forma como todos parecem dizer a mesma
coisa: a relações sociais são pensadas através de categorias que podem ser traduzidas como
dívida.
Assim, não é o caso de avaliar a justeza das críticas que lhe faz Bohannan, a não ser
por partilhar com este autor alguns pressupostos teóricos gerais, como a necessidade de
entender uma cultura nos seus próprios termos, mas tentar acompanhar os objetivos gerais de
Gluckman. Para ele, as idéia essenciais do direito entre os Barotse - e de resto em toda as
sociedades tribais - têm equivalentes nos estágios iniciais do direito romano e europeu. São
contextos nos quais não houve a “grande transformação” e prevalece uma economia e um
direito relativamente pouco desenvolvidos, e há, portanto uma indiferenciação entre
parentesco, religião, direito, economia, etc. Nestes contextos se forma em relação à terra – que
não é mercadoria - um sistema de status sobre o qual se organizam as relações sociais e estas
são pensadas em termos de dívida, ou seja, relações de obrigação traduzidas na forma de
propriedades. Dito nos termos da tradição ocidental: “o direito das Pessoas e o direito das
Coisas e o direito das Obrigações estão confundidos” (GLUCKMAN, apud Davis, 1973).
Se abandonarmos qualquer esquema evolutivo e as dicotomias fáceis e, sempre em
referência a contextos etnográficos particulares, as nuances presentes nas distinções entre
dívida e contrato tal qual presente nesses textos são uma matriz interessante para avaliar
relações sociais e jurídicas nos dia de hoje. O exotismo das situações narradas talvez não
esteja no fato de relações sociais serem expressas em termos de propriedades, mas no fato de
44
hoje evitarmos faze-lo por alguma sorte de estigma que nos impele a não de misturar o
pessoal com mercantil – “negócios são negócios, amigos à parte”.
Mas ainda uma questão. Se, de fato, é pertinente discutir a validade do uso de
categorias do direito ocidental para analisar sociedades tribais, qual a validade de se utilizar
categorias originadas em sociedades tribais para pensar o direito ocidental moderno? Se é que
podemos falar em direito ocidental moderno ou mesmo em ocidente moderno com a mesma
impunidade com que falavam estes autores sobre as sociedades por eles estudadas. E, ao fazê-
lo, como evitar os riscos de uma “tradução a avessas”. Acredito que a primeira pergunta pode
ser respondia com a ajuda de Marcel Mauss, e a segunda com a ajuda de Clifford Geertz.
Dádiva e direito: Marcel Mauss
Marcel Mauss no seu clássico Ensaio Sobre a Dádiva (MAUSS, 1973), sugere a
análise das obrigações de dar, retribuir e restituir como base para compreensão do direito e
da economia, tanto entre os povos primitivos quanto entre os ocidentais modernos. São
conhecidas as múltiplas interpretações sobre esta obra e as polêmicas de que têm sido alvo
(LÉVI-STRAUSS, 1973; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1979; SIGAUD, 1999; GODBOUT,
1999), bem como as contribuições seminais que deu não à Antropologia, como também às
demais ciências humanas, tal como a noção de fato social total, de forma que não se pretende
aqui retomá-las.
O ensaio seria para Mauss parte de um projeto maior dedicado ao estudo do direito
contratual e o sistema das prestações econômicas. O terreno no qual ele conduz sua
argumentação é formado pela Polinésia, a Melanésia e o Noroeste Americano, acrescido de
ilustrações do direito e a economia na antiguidade. Mas o tema em torno do qual gira sua
argumentação é o caráter voluntário, livre e desinteressado e, ao mesmo tempo, obrigatório e
interessado presente na forma como as sociedades “arcaicas” ou “primitivas” realizam trocas
cerimoniais. No entanto, seu horizonte é mais amplo, pois, esses traços não se restringem às
45
sociedades “arcaicas”, estando atuando mesmo entre nós
31
, o que faz Mauss pensar ter
encontrado uma base sólida sobre a qual a vida social é construída, uma base que permite a
ele deduzir uma saída para a crise do direito e a economia do final do século XIX e início do
século XX. Além disso, nas cerimônias por ele discutidas:
s'expriment à la fois et d'un coup toutes sortes d'institutions: religieuses, juridiques et
morales - et celles-ci politiques et familiales en même temps; économiques - et
celles-ci supposent des formes particulières de la production et de la consommation,
ou plutôt de la prestation et de la distribution; sans compter les phénomènes
esthétiques auxquels aboutissent ces faits et les phénomènes morphologiques que
manifestent ces institutions.(MAUSS, 1973, p. 147).
É para designar esses fenômenos que Mauss propõe a noção de fatos sociais totais.
Com este conceito em princípio um recurso metodológico - ele irá, analisar tanto o direito
quanto a economia das sociedades arcaicas. Para isso, ele irá, em primeiro lugar, enfrentar a
indistinção entre economia e demais “esferas” da vida social e se juntar a juntar a Malinowski
na tentativa de negar a existência de um “comunismo primitivo” ou uma “economia natural”.
Para ambos as sociedades arcaicas ou primitivas também têm “mercado” - ou um regime de
trocas - que funciona sem moeda nem contratos plenamente desenvolvidos, regidos por
princípios que não morreram completamente com o desenvolvimento da economia monetária
e dos contratos
32
. Duas coisas caracterizariam as economias primitivas e afastariam de vez as
suposições de que se trata de uma economia natural. Primeiro, as trocas não são entre
indivíduos, mas sim entre pessoas morais (coletividades); segundo, as trocas não se limitam a
bens e riquezas, mas incluem toda a sorte de gentilezas: “amabilidades, banquetes, ritos,
serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras”. Tudo isso forma um complexo
do qual as trocas de riquezas são apenas uma parte, e no conjunto formam um contrato amplo
e permanente que Mauss denomina Sistema de prestações totais
33
.
31
Para uma discussão sobre a presença da dádiva” nas sociedades ocidentais contemporâneas, ver a coletânea
organizada por Martins (2002).
32
Segundo CAILLÉ e GRAEBER (2002) esta seria uma espécie de critica de Mauss ao regime soviético e suas
pretensões de eliminar o mercado.
33
Mauss irá ainda qualificar uma “variedade” desses sistemas que ele vai designar como agonístico, pois
envolve disputas entre clãs, através de seus chefes, nas quais a destruição ritual de propriedade serve como arma
46
Com ampla erudição e domínio sobre material de outros antropólogos, Mauss vai
enfrentar também a questão do direito, sobre a forma de contratos. Com isso, ele estava
tentando atribuir consistência etnográfica à questão da mistura entre pessoas e coisas no
direito primitivo, para com isso demonstrar que o direito real esteve ligado ao direito pessoal.
Mais ainda, para Mauss, os princípios que sustentavam essa ligação permanecem vivos em
nossos dias, são uma forma permanente da moral contratual, mesmo que em contradição com
a racionalidade econômica e o individualismo moderno, que, para ele, estão unidas na noção
do “interesses individual pelo útil”.
Mesmo não tendo a pretensão de retomar as divergências em torno do trabalho de
Mauss, acredito ser pertinente uma pequena nota sobre a “acusação” de mistificação que lhe
foi dirigida por Lévi-Strauss, para não responder a questão da pertinência do estudo do
direito “arcaico” para compreensão do direito contemporâneo mas também articular a obra de
Mauss com as discussões sobre casamento apresentadas mais adiante. É mais do que
conhecida a interpretação que faz Lévi-Strauss do Ensaio sobre a Dádiva, nas páginas de
apresentação de Sociologie et Anthropologie. Para ele, Mauss teria antecipado o
desenvolvimento posterior da disciplina (o próprio estruturalismo levistrossiano) ao perceber
que algo subjacente às aparências que obriga a análise a mergulhar em “realidades mais
profundas”. No entanto, Mauss não teria realizado este mergulho em suas análises porque
teria se permitido mistificar pela teoria com que os sábios maoris explicam troca. Ao invés de
descobrir essa realidade subjacente, Mauss teria se contentado com a versão dada pelos
nativos.
Essa crítica é apresentada dentro de um quadro montado pelo próprio Lévi-Strauss
com citações descontextualizadas do texto de Mauss, é verdade que em meio a uma profunda
contra os rivais e instrumento para assegurar uma hierarquia entre os chefes, conseqüentemente, entre os clãs.
Nas sociedades que superaram a fase da "prestação total" e que ainda não alcançaram o contrato individual puro
e a moeda como padrão universal de troca, prevaleceu a troca-dom cujo paradigma é o kula, descrito por
Malinowski.
47
reverência e admiração. Nesse quadro, o objetivo do texto de Mauss seria algo como um
esboço de uma teoria geral da troca e para viabilizá-la ele teria se servido da explicação maori
do hau – o espírito da coisa dada que a faz retornar ao doador.
Não parece, ao que indicam alguns comentadores, tanto da obra de Lévi-Strauss,
quando da obra de Mauss que este tenha de fato se deixado mistificar por uma teoria nativa
nem que fosse seu objetivo estabelecer uma teoria da troca, por três razões. A primeira:
Roberto Cardoso de Oliveira (1979) lembra que a teoria maori é apenas um dos princípios
descritos por Mauss, para “explicar” as trocas, e assim, não possui a centralidade que lhe
atribui Lévi-Strauss
34
. E ela diz respeito a um contexto etnográfico particular: assim como
entre os maoris a coisa dada deve ser restituída por possuir hau, entre os tibetanos e entre os
celtas - também usados por Mauss para ilustrar sua argumentação - as trocas são concebidas
de outra forma. Segunda razão, Lígia Sigaud (1999) demonstra, com uma leitura atenta do
Ensaio e de seus leitores posteriores e à época, que Mauss não pretendeu em momento algum
formular uma teoria geral da troca e, portanto não se pode afirmar ser esse o objetivo do
Ensaio, e ainda menos corrigi-lo quanto à forma como ele teria (ou deveria) tê-lo feito.
Terceira, um componente sociológico, que - sem querer cair em um determinismo
sociológico, à la Durkheim - parece pertinente e reforça as objeções anteriores. Pois, logo no
início Mauss a entender que: a troca envolvida nas prestações sociais totais está ligada, de
alguma forma, à própria estrutura social, na forma de divisão social do trabalho e, em seu
programa de estudo ele afirma ser sua pretensão indicar os princípios pelos quais aquela é
organizada de forma a “manifestar” essa ligação:
De tous ces thèmes très complexes et de cette multiplicité de choses sociales en
mouvement, nous voulons ici ne considérer qu'un des traits, profond mais isolé: le
caractère volontaire, pour ainsi dire, apparemment libre et gratuit, et cependant
contraint et intéressé de ces prestations. Elles ont revêtu presque toujours la forme
du présent, du cadeau offert généreusement même quand, dans ce geste qui
accompagne la transaction, il n'y a que fiction, formalisme et mensonge social, et
34
Ainda que a passagem citada logo abaixo do texto de Mauss, na parte em itálico, deixe dúvida a respeito disso,
o restante do texto de Mauss autoriza esta interpretação.
48
quand il y a, au fond, obligation et intérêt économique. Même, quoique nous
indiquerons avec précision tous les divers principes qui ont donné cet aspect à une
forme nécessaire de l'échange - c'est-à-dire, de la division du travail social elle-
même - de tous ces principes, nous n'en étudions à fond qu'un. Quelle est la règle de
droit et d'intérêt qui, dans les sociétés de type arriéré ou archaïque, fait que le
présent reçu est obligatoirement rendu? Quelle force y a-t-il dans la chose qu'on
donne qui fait que le donataire la rend?(MAUSS, 1973, p. 147-148. itálicos do
autor, sublinhados meus).
A teoria maori do hau é, de fato, uma forma pela qual os nativos podem expressar e
organizar suas trocas, mas não é a única descrita por Mauss. O destaque dado por Mauss na
passagem acima e a clareza com que os dados etnográficos recolhidos junto aos maoris
permitem indicar como as coisas e as almas se misturam, aliados à força que adquiriu a
interpretação posposta por Lévi-Strauss ela própria possuidora de mana (SIGAUD, 1999)
levaram a uma espécie de interpretação canônica do texto de Mauss, segundo a qual este
conteria uma teoria das trocas centrada na idéia de reciprocidade derivada da noção de hau,
uma interpretação que atribui à identificação entre a coisa dada e o espírito do doador o
princípio de explicação das transações.
Minha leitura do “ensaio sobre a dádiva” caminha na direção de afirmar alguma
pertinência de suas interpretações para compreensão do direito atual, sobretudo no que se
refere a um a teoria dos contratos, e sobretudo o quanto esta pode revelar sobre as formas
como o casamento tem sido modificado ao longo dos anos. Questões essas que serão
retomadas na conclusão.
A sensibilidade jurídica: Clifford Geertz
Mais recentemente, Clifford Geertz (1983)
35
dedicou-se à discussão das afinidades e
possibilidade de diálogo entre a etnografia e o direito
36
com o objetivo de retomar os
problemas da mistura de culturas, tal qual formulados em vários de seus trabalhos
37
e, de certa
35
Par uma crítica da visão de Geertz sobre o direito, ver Cardoso de Oliveira (1992).
36
Uma das coisas que teriam em comum o direito e etnografia seria o interesse por casos particulares. Fazer de
casos particulares matéria prima para reflexões e objeto de orientação constituí a “afinidade eletiva” entre a
etnografia e o direito. Geertz tem em mente, sobretudo o modelo jurisprudencial anglo-saxão.
37
Em especial: Os usos da diversidade (GEERTZ, 2001).
49
forma, atribuindo ao direito a mesma “equação” aplicada por ele à religião, ao senso comum,
à ideologia e a arte (GEERTZ, 1989): apresentar o direito como sistema cultural. Ou seja, o
direito é - como é da própria natureza da cultura - ao mesmo tempo um mapa da ação e um
mapa para a ação.
Distanciando-se dos principais aspectos abordados pela Antropologia dedicada ao
estudo do direito e do debate sobre a pertinência de categorias jurídicas ocidentais para
descrever e analisar práticas não-ocidentais. Geertz vai definir como ponto de partida de suas
reflexões as relações entre fatos e leis (facts and law). Tais relações seriam cruciais e tratadas
de forma específica tanto no direito quanto na Antropologia: no primeiro, aparece nos
problemas colocados pelas formas de relacionar uma decisão com uma forma de juntar o que
aconteceu (o fato) e com o que é legal (lei). Enquanto na Antropologia, aparece na forma de
interpretar e descrever a relação entre padrões concretos de comportamento e as convenções
sociais que supostamente os governam.
Nessa relação entre fatos e leis, os fatos ou “configurações factuais” que alimentam o
sistema judicial não são dados brutos da realidade, mas sim uma construção do direito de
suas regras e procedimentos. Geertz não quer com isso acentuar um caráter artificial ou
discutir essas questões em termos de verdade/falsidade, mas sim demonstrar que, se
algum “truque”, este é na verdade a alquimia própria à cultura: trata-se da própria idéia de
representação.
It is, of course, not sleight-of-hand, or anyway not usually, but a rather more
fundamental phenomenon, the one in fact upon which all culture rests: namely, that
of representation. The rendering of fact so that lawyers can plead it, judges can hear
it, and juries can settle it is just that, a rendering: as any other trade, science, cult, or
art, law, which is a bit of all of these, propounds the world in which its descriptions
make sense. (GEERTZ, 1983, p. 173).
Dessa representação jurídica do mundo faz parte não apenas a maneira como se
articulam fatos e leis, mas também a forma como se constrói, a partir daí, uma linguagem da
50
decisão, ou, nos termos que Geertz toma emprestado de outro antropólogo
38
como o: “‘if-
then’ idiom of general precept, however expressed, and the ‘as-therefore’ one of the concrete
case, however argued”. (GEERTZ, 1983, p. 174) são equacionados para dar um desfecho a
um caso particular. Isso, para Geertz, aponta para algo importante: “how the institutions of
law translate between a language of imagination and one of decision and form thereby a
determinate sense of justice”. (GEERTZ, 1983, p. 174). Aliás, é essa linguagem da
imaginação a própria essência do direito.
The point here is that the "law" side of things is not a bounded set of norms, rules,
principles, values, or whatever from which jural responses to distilled events can be
drawn, but part of a distinctive manner of imagining the real. At base, it is not what
happened, but what happens, that law sees; and if law differs, from this place to that,
this time to that, this people to that, what it sees does as well. (GEERTZ, 1983, p.
173. Grifos meus).
Geertz desenvolve toda a sua argumentação a partir de sua experiência de campo em
Marrocos, em Bali e na Indonésia. Não é possível aqui reproduzir todas as nuances das
sensibilidades jurídicas encontradas por ele nesses contextos, mas apenas algumas das
precauções de que ele vai cercando para evitar uma série de armadilhas colocadas pela
“tradução” ente culturas e pelo fato de lidar com a diversidade. Não somente as diferenças
entre estes contextos (e entre eles e a sociedade contemporânea “ocidental”), mas também
internamente a cada um deles. Em primeiro lugar, para Geertz o direito é uma forma de
modelar a experiência, assim, não apenas uma forma de imaginar (ou refletir) o mundo, mas
também de construí-lo. No entanto não o faz com a imposição de modelos: a cultura é um
sistema de símbolos, que expressam padrões de significados produzidos e transmitidos
historicamente:
um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das
quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação a vida (GEERTZ 1989, p. 103)
Sistemas simbólicos são fontes de informação extrínseca, ou seja fora dos limites do
38
Trata-e de F. von Benda-Beckmann, cujo trabalho citado é: Property in social continuity. Verhandelingen va
het Instituut voor tall –land em Volkenkunde, 86, Haia, 1979.
51
organismo, não dados pela natureza biológica e interna dos homens. A ausência no Homem,
de um conjunto interno, biológico de padrões de comportamento causa sua dependência em
relação à cultura, para Geertz, o homem existe na cultura e através dela. Os padrões de
comportamento nos homens são integralmente responsabilidade da cultura, e atuam como
modelos, como representação simbólicas, são como mapas e, para este autor, a propriedade
que distingue a cultura, enquanto padrão de informação, de outros padrões intrínsecos como
por exemplo os genes, é a ambigüidade com que atuam como modelos: modelos de e modelos
para:
No primeiro caso, o que se enfatiza é manipulação das estruturas simbólicas de
forma a colocá-la mais ou menos próxima, num paralelo com os sistemas não
simbólicos preestabelecidos, como ocorre quando aprendemos como funciona um
dique desenvolvendo uma teoria hidráulica ou construindo um mapa de fluxo. A
teoria ou mapa modela as relações físicas de tal maneira- isto é, expressando sua
estrutura numa forma sinóptica- que poderão ser apreendidas; trata-se de um modelo
da realidade No segundo caso o que se enfatiza é a manipulação dos sistemas não
simbólicos, em termos de suas relações expressas no simbólico, como quando
construímos um dique de acordo com as especificações contidas em uma teoria
hidráulica, ou as conclusões retiradas de um mapa de fluxo. Aqui a teoria é um
modelo sob cuja orientação são organizadas as relações físicas - é um modelo para a
realidade. (Geertz 1989, p.108)
Os sistemas simbólicos atuam para expressar e modelar o mundo, da mesma forma
atuam para expressar e modelar o comportamento - modelos de ação e modelos para ação. Ao
mesmo tempo em que esta distinção é uma possibilidade analítica, pôr em evidencia, na
análise dos fatos simbólicos, uma ou outra é uma questão arbitrária, tem a ver com a
finalidade da investigação, que sempre ambos, mesmo que em proporções variáveis estão
sempre presentes na ação de qualquer símbolo, e na ação através de qualquer símbolo.
Assim como Mauss, Geertz não restringe a definição de símbolo a uma classe
particular de objetos, tanto o que é dito como o próprio ato de falar podem atuar como
símbolos, gestos, comportamentos, silêncio, palavras, imagens, qualidades, objetos, tudo pode
atuar como símbolo, o que para Geertz significa servir de veículo a uma concepção, a
concepção é o significado do símbolo”. A análise dos símbolos assim se dá no mundo
observável dos objetos e comportamentos concretos que atuam como símbolos, sem se
52
confundir com estes objetos e sem se perder em um mundo nebuloso de idéias”. É no fluxo
dos comportamentos modelados que se pode enxergar a cultura e, na forma que eles são
modelados podem ser identificados sistemas específicos, com o caso da religião, da arte, das
ideologias e do direito.
A religião, por exemplo, é um sistema de símbolos, e como tal tem como característica
o fato de prover, de forma sistemática, significados a existência humana, servir como um
mapa, e o faz mantendo o duplo caráter da cultura ou dos sistemas culturais em geral, de
serem modelo de e modelos para a realidade. Essa interdependência sistemática entre os dois
tem como implicação, determinar um sentido à ação, se o Homem para Geertz é um animal
amarrado a teias de significado que ele mesmo teceuessas amarras são uma conseqüência
da interdependência entre modelos de e modelos para característica da cultura, porém não
uma relação mecânica. “A cultura não é um poder, algo a que pode ser atribuído um poder
constituidor dos fenômenos, mas um contexto dentro do qual eles adquirem inteligibilidade.”
(GEERTZ, 1989)
Antropologia e pesquisa sobre o direito no Brasil
Muitos aspectos da vida social ganham novos contornos quando suas práticas são
expostas ao olhar antropológico. Assim também é quando se têm práticas ligadas ao
funcionamento da justiça como objeto de análise. No entanto, a ausência de um campo
específico da antropologia do direito dificulta a visualização e sistematização do alcance da
abordagem antropológica, bem como sua história. Entre nós, desde pelo menos Nina
Rodrigues
39
, algumas temáticas têm direcionado a atenção de antropólogos para as práticas
ligadas ao direito, como, por exemplo, os conflitos no campo e a questão dos mecanismos
legais e extralegais para sua resolução; o papel da lei na reprodução das relações no campo e
39
Este autor, um dos precursores da Antropologia no Brasil, a partir de seus estudos com populações marginais
defendia no final dos anos 90 do século XIX, a adoção de leis distintas de acordo com a raça dos indivíduos.
53
na cidade
40
; a criminalidade violenta urbana e a violência ligada a gênero
41
.
A predileção recente por temas ligados à criminalidade tem, certamente, origem nos
dramas cotidianos relacionados à violência e ao questionamento das práticas arbitrárias do
Estado. Tais estudos fornecem uma referência tanto para compreensão da sociedade brasileira
como um todo, quanto do funcionamento do Estado e são uma base segura com a qual se pode
dialogar na tentativa de compreender não somente o sistema de justiça no Brasil – suas
práticas e dilemas como também as formas culturais que privilegiamos para resolver
conflitos e “fazer justiça” dentro e fora do Estado. Ao construir quadros intertpretativos
sobre nossa vida social e o papel que nela têm desempenhado as práticas e discursos jurídicos,
esses estudos revelam também a penetração - mais ou menos crítica - em nossas reflexões das
configurações de valores modernos, que compõem uma referência para a modernidade
ocidental e seu modo de vida e de fazer política
42
.
Roberto Kant de Lima (1989, 1991 e 2000), por exemplo, enfocando as práticas
policiais e o instituto do inquérito policial, de uma perspectiva comparativa, aponta, a
existência de dois modelos de produção jurídica de verdade que correspondem a dois modelos
de solução de conflitos e, conseqüentemente, duas concepções sobre a ordem (e sobre
desordem) e como mantê-la
43
. O primeiro deles, é próprio de contextos onde prevalece uma
lógica hierárquica na organização das relações sociais, como seria o caso no Brasil, onde,
segundo o autor:
40
Especificamente sobre a questão das relações no campo, ver: por exemplo, os trabalhos de Margarida Maria
Moura (1978), Eduardo Carvalho (1991) e, na cidade, James Holston (1993). Ver também Lígia Sigaud (1996 e
2004).
41
Esses temas, evidentemente, não esgotam a produção das ciências sociais, nem é essa a pretensão aqui. Deve-
se ressaltar ainda, estudos recentes m feito do funcionamento da justiça seu objeto privilegiado, tais como as
análises sobre o Ministério Público, e sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Sobre o ministério público
a bibliografia já acumula alguns títulos, ver, por exemplo, a coletânea organizada por Maria T. Sadek (2000) e
Rogério B. Arantes (1999). Sobre o funcionamento dos Juizados Especiais Criminais, ver Rodrigo Azevedo
(2001). Sobre os juizados Especiais Cíveis, Luiz W. Vianna et al (1999).
42
Nesse sentido, esses quadros têm significados diferentes quando se passa da justiça criminal para a justiça de
família, voto a isso no final.
43
Tais modelos se revelam de forma clara através da comparação entre o funcionamento da justiça no Brasil e
nos EUA, contextos nos quais o autor desenvolveu suas pesquisas.
54
[...] diferentes segmentos têm acesso a diferentes deveres e direitos e, também,
regem suas relações por diferentes “códigos de honra”. No entanto, como somos,
teoricamente, uma república, tais diferenças se tornam objeto de estigma, não sendo
capazes de despertar sentimento de universal reconhecimento como legítimos
códigos de conduta. A ordem pública, que seria o resultado do conflito oriundo da
oposição de interesses, em uma sociedade igualitária, nesse modelo é a reunião
desses diferentes códigos, em harmonia, para manter implícito o conflito e a
estrutura desigual da sociedade. (LIMA, 2000, p. 168).
Parte da incapacidade da justiça de universalizar-se, entre nós, advém da coexistência
de diferentes códigos, oriundos de matrizes igualitárias ou hierárquicas, que dão origem a
práticas de justiças diferentes para segmentos distintos da sociedade
44
. Isso atinge o cerne da
legitimidade do sistema de justiça e compromete seu papel de mediador de conflitos, dando
margem a instauração de situações que o autor chama violência institucional, ou seja,
situações de violência que decorrem da ausência de canais institucionais legítimos de
mediação de conflitos.
Outros trabalhos, ainda tendo a justiça criminal como cenário, devem ser lembandos
aqui mesmo sem pertencer ao escaninho antropológico dos meios acadêmicos, situando-se
acima dessas clivagens, pois têm destacado aspectos cruciais relativos aos conteúdos das
decisões judiciais. Sérgio Adorno (1991), por exemplo, procurou identificar no
funcionamento da justiça criminal a incidência diferenciada das decisões – condenar ou
absolver - em relação a certos perfis sociais, bem como as variáveis extralegais que
condicionam o funcionamento da justiça criminal. Joana Vargas (1999 e 2004) analisando
crimes de estupro procura avaliar o papel das regras jurídicas substantivas e processuais
juntamente com a análise de variáveis extralegais na transformação de tais atos em crimes e
na determinação do resultado final dos processos. Danielle Ardaillon e Guita Debert (1987)
analisando julgamentos de casos em que mulheres são vítimas, procuram dissecar as lógicas
internas inerentes a estes casos. São trabalhos que seguem a estratégia de usar processos como
44
Tal como demonstrado pelo autor em relação à distinção “complementar” entre inquérito policial, cujo
princípio inquisitorial -, opera de forma semelhante às investigações da inquisição, e o processo penal
acusatório -, que opera com uma lógica derivada dos princípios igualitários anglo-saxões (Lima, 1991). Para este
autor, tais modelos têm incidência distinta entre as camadas sociais (Lima, 2000).
55
objetos de análise, nas trilhas abertas pelo pioneiro trabalho de Mariza Corrêa (1983) sobre
crimes passionais. Nesse trabalho, a autora analisa homicídios entre casais para revelar as
estratégias da discriminação de gênero. Tais trabalhos, como dito, ainda que guardem as
marcas de suas identidades disciplinares constituem um campo rico de analises que não se
confunde com nenhuma disciplina particular, ainda que reflexões antropológicas sejam parte
importante. A interlocução destes trabalhos, como conseqüência da própria urgência e
importância de seus objetos não se restringe às fronteiras acadêmicas, ampliando-se para
projetos mais ou menos assumidos ou ambiciosos de mudanças das práticas sociais e
dialogando com valores modernos de vida, sociedade e Estado.
Adriana Vianna (2002), num exemplo do potencial das análises do sistema de justiça
mesmo que fora da arena criminal, procura analisar através de casos envolvendo guarda e
adoção as relações de autoridade envolvida na gestão da condição jurídica de menoridade. E
assim dissecar a colocação em prática destes valores modernos de vida, sociedade, Estado,
família. Tais relações se estabelecem entre as famílias e a justiça em uma situação de
complementaridade onde múltiplas falas são utilizadas e diferentes moralidades são acionadas
visando a construção de uma relação tutelar.
Uma característica comum a esses trabalhos é identificar no funcionamento da justiça
a construção de estereótipos, a manipulação de preconceitos sociais e o deslocamento da
atenção: dos atos criminosos para os agentes envolvidos vítimas e réus - como recursos,
senão totalmente legais, ao menos tidos como legítimos e eficazes para a condução dos
processos. Distanciando-se, de certa forma, dos clássicos da tradição jurídica ocidental,
principalmente os reformadores penais dos séculos XVIII, que pregavam como objeto
privilegiado da legislação penal os atos criminosos, e afirmavam um compromisso com
princípios de igualdade e liberdade, ambos cristalizados em fórmulas como a “presunção da
inocência” e “o princípio do contraditório”, a sensibilidade jurídica no Brasil, ao menos nos
56
seus aspectos ligados ao direito penal, teria uma predileção por enfocar pessoas e relações, e
não indivíduos e fatos.
Um dos aspectos mais interessantes revelado pelas análises antropológicas dos
fenômenos ligados ao direito diz respeito ao encontro de diferentes moralidades que se
efetuam sob as práticas judiciais. Luis Roberto Cardoso de Oliveira (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2002), estudando o funcionamento das small courts no EUA, encontra uma
variedade de situações que envolvem as dificuldades de tradução de conflitos interpessoais
nas categorias pré-formuladas do direito. Para compreendê-las, bem como às dificuldades que
o sistema de justiça tem de lidar com elas, este autor formula a categoria insulto moral, que
aparece em casos “onde litigantes reclamam de agressões que têm dificuldade de formular
como um desrespeito a direitos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2002, p. 39). Este autor
identifica ainda:
[...] estas agressões como insultos de ordem moral ou como agressões cívicas, para
distingui-las daquelas agressões facilmente definidas na linguagem do direito, ou
imediatamente percebidas como um ato socialmente indevido e objetivamente
merecedor de punição ou reparo. (OLIVEIRA, 2002, p. 39).
No entanto, não se trata apenas de dificuldades de expressar uma situação em termos
compreensíveis para um discurso técnico ou mesmo a inexistência de “direitos” reconhecidos
legalmente que se adequassem à situação narrada, pois envolvem também dimensões afetivas
e cognitivas.
Embora os clientes do Serviço [as small courts nos EUA] não distinguissem em suas
falas o desrespeito ao direito legal como o não cumprimento de um contrato, por
exemplo —, da revolta gerada pela percepção de agressão contra a pessoa deles
enquanto cidadãos merecedores de respeito e consideração; é interessante notar que
a ênfase de suas colocações recaia sobre a percepção de agressão, ainda que esta não
pudesse ser formalizada como uma causa no Juizado. (CARDOSO DE OLIVEIRA,
2002, p. 39-40).
A fundamentação da agressão percebida, em muitos dos casos analisados pelo autor,
envolve fatos e argumentos alheios ou mesmo contrários às prescrições normativas do direito,
determinando, no interior do sistema, uma trajetória de insucesso e incompreensão das causas
assim colocadas. Para ele, muitos desses casos poderiam ter sido solucionados mais
57
facilmente a partir da compreensão por parte dos operadores do sistema e dos próprios
litigantes, das motivações e sentimentos por trás das ações dos envolvidos.
Ligia Sigaud (1996 e 2001), estudando as decisões de trabalhadores da zona canavieira
de Pernambuco, de procurar ou não a justiça do trabalho em face de queixas de violações de
direitos trabalhistas por parte dos patrões ou de condições de trabalho indevidas, sugere a
necessidade de ampliar os parâmetros das visões juridicamente centradas para incorporação
de fatores não legais. A ignorância ou conhecimento das leis trabalhistas é apenas um dos
fatores associados a outros como a gratidão, dívidas, insegurança, vergonha e etc., todos
condicionando a decisão de ir ou não à justiça. Nos casos por ela estudados, tanto “botar
questão na justiça”, quanto não fazê-lo, estão relacionados com as redes de relações e os
princípios de reciprocidade que as regem, e não com determinações de ordem legal, assim
como, são justificadas pelos próprios agentes por argumentos de ordem moral e não racional-
legal. Para a autora:
A coexistência de comportamentos distintos em face da violação das normas
jurídicas no interior de uma mesma configuração social é reveladora da fragilidade
da crença no direito como princípio de explicação para os comportamentos e sugere
que tais princípios devam ser buscados para além do direito, de suas normas e
instituições, como já o assinalava Max Weber em suas polêmicas com os juristas.
(SIGAUD, 1996).
O estudo empreendido por Boaventura de Sousa-Santos (1988 e 1999) no início dos
anos setenta em uma favela do Rio de Janeiro, chamada por ele de Pasárgada, coloca, entre
outras coisas, aspectos interessantes acerca da percepção dos direitos. Para este autor, as
dificuldades de acesso à justiça podem ser de ordem estrutural (dificuldade de acesso físico,
falta de recursos materiais, precariedade das instituições, etc.), mas também de ordem
motivacional (SOUSA-SANTOS, 1999). Dentro dessa segunda ordem de motivações, um
fator determinante, que este autor acredita ter encontrado operando na comunidade por ele
estudada, diz respeito a uma espécie de “ilegalidade quase existencial” (SOUSA-SANTOS,
1999, p. 89), que faz com que os moradores acreditem não possuir legitimidade para recorrer
58
à justiça oficial.
A grande maioria dos moradores vivia em propriedades irregulares do ponto de vista
da justiça oficial. Na entrevistas que efetuou sobre a história da comunidade ouviu dos
moradores, quando falavam da situação de suas moradias expressões como: “nós éramos e
somos ilegais”. Sobre a qual afirma o autor:
A expressão: “éramos e somos ilegais”, que no seu contexto semântico, liga o status
de ilegalidade com a própria condição humana dos habitantes de Pasárgada, pode ser
interpretada como indicação de que, nas atitudes destes para com o sistema jurídico
nacional tudo se passa como se a legalidade da posse da terra repercutisse sobre
todas as outras relações sociais, mesmo sobre aquela que nada tem a ver com a terra
ou com a habitação. Tal seria o caso se, por exemplo, um conflito jurídico de índole
estritamente pessoal não fosse levado a atenção dos operadores do sistema jurídico
nacional, pela suspeita das partes de que a ilegalidade de seu status residencial
afetasse desfavoravelmente o modo como o conflito seria processado pelos tribunais.
(SOUSA-SANTOS, 1999, p. 92).
Este breve apanhado de trabalhos que tenham feito de práticas legais seu objeto de
pesquisa, mesmo não sendo exaustivo, serve para demonstrar a fecundidade das análises que
problematizam o funcionamento das instituições jurídicas. Porém, tal fecundidade não se
resume ao estudo do funcionamento da justiça, outras questões mais gerais, ligadas mais ou
menos diretamente à justiça podem ser apreendidas considerando-se o papel da justiça na
construção da vida social, refiro-me, em especial, à cidadania. Como dito, essas discussões
são parte dos debates sobre as configurações modernas de valores sobre Estado, pessoa vida
social, etc. Ao mesmo tempo, retiram dessas configurações valores que estruturam suas
reflexões de forma mais ou menos crítica. A cidadania é um nódulo disso, pois articula Estado
e pessoa em uma configuração própria, portadores de valores e crenças arraigadas, ainda que
não homogêneas, na cultura ocidental moderna, é uma ferramenta política para práticas
sociais diversas e tem seu conteúdo as contradições de uma rotulação mais ou menos artificial
e uma hierarquia exógena entre um discurso legal e universal de direitos e um conteúdo local
de valores “culturais”, sendo, assim, uma chave para compreensão do país.
Na modernidade, um papel central dos sistemas de justiça seria dado pelo axioma que
estabelece uma correlação inexorável entre justiça social e igualdade jurídica (ADORNO,
59
1991; SOUSA-SANTOS, 2001). Dessa forma, as questões ligadas aos direitos dos cidadãos
adquirem um lugar central na formação dos Estados modernos, ainda que com dinâmicas
locais próprias de relação entre a eficácia material e simbólica dos direitos (ADORNO, 1991).
A forma como no Brasil se desenhou esta dinâmica, bem como as relações contraditórias por
parte do Estado, no que diz respeito ao reconhecimento e implementação de direitos
(SANTOS, 1979; CARVALHO, 2004), bem como as recentes questões suscitadas pela
violência urbana e as discussões acerca do papel repressor do Estado, tem colocado o conceito
de cidadania como um articulador teórico e político central na compreensão da sociedade
brasileira contemporânea, incluindo aí o papel do sistema de justiça
45
.
Nesse contexto, a Antropologia tem contribuído para revelar as relações entre, de um
lado especificidades culturais à qual corresponderia em termos provisórios - uma cidadania
popular, e de outro lado um ideal liberal-individualista associado à modernidade. Luis F. D.
Duarte et al. (1993) apresentam - em um artigo oriundo de um projeto de revisão das práticas
e concepções de projetos de promoção social, com especial atenção às idéias de direitos
humanos e tendo por base a experiência de um escritório modelo de assistência judiciária
montado pela OAB em uma favela do Rio de Janeiro - o choque entre a visão de mundo em
que se sustentam os ideais modernos de cidadania, fundada esta em valores tais como
igualdade, liberdade e indivídualismo e as concepções populares acerca de direitos e relações
pessoais, e assim, chamam a atenção para os aspectos da resistência à cidadanização e os
limites da “conversão” das classes populares aos valores modernos, bem como as implicações
dessa conversão à luz do poder disciplinar.
Roberto Da Matta, por exemplo, apresenta a questão da cidadania no Brasil a partir de
uma lógica dual; casa/rua, pessoa/indivíduo, usada para discutir a especificidade do Brasil nas
relações entre espaço público e privado. Mas, sobretudo através da identificação de duas
45
Sobre o papel da justiça e o impacto da violência na vida social brasileira recente, ver Tereza Caldeira (2000).
60
lógicas operando na organização da vida social brasileira, uma hierarquizante e relacional que
tem a categoria pessoa como operador e outra regida por valores igualitários, que tem o
indivíduo como pressuposto. Para esse autor, não se trata de pensar de forma evolutiva a
persistência dessas duas lógicas como atraso da sociedade brasileira, tampouco a necessidade
ou inevitabilidade da superação de uma pela outra, mas sim como um arranjo histórico
específico (DA MATTA, 1979 e 1991). Para este autor:
[...] enquanto as sociedades que passaram pela revolução individualista instituíram
um código de conduta hegemônico, fundado na idéia de cidadão, as sociedades
relacionais têm muitos códigos de comportamento operando simultaneamente.
que eles não estão em competição, são complementares entre si. Assim, aquilo que
um nega, o outro pode facultar. O resultado [...] é uma multiplicidade de códigos e
eixos de classificação que irão dar ao sistema um dinamismo peculiar e altamente
complexo. (DA MATTA, 1991, p. 97).
Assim, mais do que pensar dualidades, dicotomias e coisas afins a abordagem
antropológica se enriquece e ao debate social - identificando a multiplicidade de códigos e
as possibilidades de sua utilização. Ainda de acordo com este DaMatta, a coexistência de
diferentes “cidadanias” seria uma marca de nossa sociedade:
O resultado é um sistema social no qual convivem diferentes concepções de
sociedade, de política, de economia e, naturalmente, de cidadania. Num sistema
onde a palavra de ordem é a relação, podem conviver dimensões e esferas de vida
cujos valores são diferentes, embora complementares entre si. Daí a pergunta: será
que podemos falar de uma concepção de cidadania como uma forma hegemônica
de participação política, ou temos que necessariamente discutir a hipótese de uma
sociedade com múltiplas formas e fontes de cidadania, tantas quantas são as esferas
de ação existentes em seu meio? (DAMATTA, 1991, p.85).
A maior disseminação das experiências jurídicas entre nós tem colocado as
possibilidades de se pensar em uma disseminação dos direitos como um novo código. Ao
focalizar a permanência de coisas como a confusão entre pessoas e coisas, status e contratos,
acentua a contradição entre a cidadania tal qual formulada na tradição liberal ocidental, que
enfatiza a igualdade jurídica e a legalidade
46
. Mas, como se dá essa disseminação entre nós?
A judicialização das relações sociais
Para diversos autores, estaríamos observando uma invasão do direito no mundo
46
Sobre esta tradição e os princípios de igualdade e legalidade no direito capitalista ver: Roberto Mangabeira
Unger (1999); Fábio Ulhoa Coelho (1992) e Alysson Mascaro (2003).
61
contemporâneo, que se estende sobre as práticas sociais condicionando a sociabilidade. Tal
expansão pode ser observada, e analisada de diversos aspectos. A idéia de uma judicialização
das relações sociais pode ser assim ser entendida:
É todo um conjunto de práticas e de novos direitos, além de um continente de
personagens e de temas até recentemente pouco divisável pelos sistemas jurídicos -
das mulheres vitimizadas, aos pobres e meio ambiente, passando pelas crianças e
pelos adolescentes em situação de risco, pelos dependentes de drogas e pelos
consumidores inadvertidos -, os novos objetos sobre os quais se debruça o poder
judiciário, levando a que as sociedades contemporâneas se vejam, cada vez mais,
enredadas na semântica da justiça. É, enfim, a essa crescente invasão do direito na
organização da vida social que se convencionou chamar de judicialização das
relações sociais. (VIANNA et al. 1999, p. 149).
Um dos pontos que tem sido destacado nesse processo diz respeito à reorganização das
relações entre público e privado, resultado da expansão da intervenção legal sobre áreas tidas
como próprias da esfera privada, tanto do ponto de vista da criação de leis que afetam
diretamente as relações privadas, quanto das possibilidades abertas pelos movimentos de
ampliação do acesso à justiça. De acordo com Luiz W. Vianna et al (1999):
A invasão do direito no mundo contemporâneo [...] vem alcançando a regulação da
sociabilidade e das práticas sociais, inclusive daquelas tidas como de natureza
estritamente privada e, portanto, impermeáveis à intervenção do Estado, como são
os casos, entre outros, das relações de gênero no ambiente familiar e do tratamento
dispensado às crianças por seus pais ou responsáveis. (VIANNA et al. 1999, p. 148).
Se, por um lado, o direito se expande, por outro tem de facilitar seu consumo para
viailizar essa expansão. No que diz respeito ao estudo do que se convencionou designar:
acesso à justiça
47
, as coisas são ainda mais complexas revelam a modificação do papel da
justiça nas sociedades contemporâneas. De acordo com Rodrigo Azevedo (2001), estratégias
de informalização e ampliação do acesso à justiça são, em parte, tentativas de resgatar a
legitimidade dos Estados modernos. Estas estratégias, observáveis em grande parte das
democracias modernas, surgem como resposta à “crise de legitimidade de uma ordem baseada
em um discurso jurídico esvaziado, paralela à crise fiscal do Estado-previdência”
(AZEVEDO, 2000, p. 970)
48
. Para este autor, a incapacidade do Estado em promover a
47
Sobre o acesso à justiça, ver Mauro Capelletti (1988) e Kim Economides (1999).
48
Ver também Sousa-Santos (2001)
62
generalização de bem-estar, o desenvolvimento econômico, garantir eficientemente a ordem
pública, bem como resistir a pressões sobre as políticas governamentais e decisões judiciais
de parte da sociedade civil, e ainda, diante do esvaziamento das premissas teóricas de seu
modelo político, tem gerado crises para as quais uma legalidade abstrata apenas contribui.
Nesse quadro, reformas que visam tornar a justiça mais célere e próxima das pessoas
não são apenas correções técnicas de padrões defasados, de injustiças históricas, ou ainda
meramente rearranjos administrativos visando desafogar o sistema de justiça, mas sim
instrumentos que visam resgatar a legitimidade do Estado e da lei, sobretudo ao substituir um
discurso abstrato por práticas que demonstrem a efetividade da lei e do sistema de justiça.
Mesmo que para isso devam acionar modelos e espaços alternativos de resolução de conflitos
e relativizando a importância do caráter geral e abstrato das leis perante fórmulas particulares
circunscritas a casos concretos
49
. Ainda de acordo com Rodrigo Azevedo (2001), outro
componente nesse quadro diz respeito ao controle social e às modificações no papel que a
justiça desempenha na manutenção da ordem:
O problema é que as mudanças sociais ocorridas durante o século XX foram
gradualmente enfraquecendo os mecanismos de controle comunitário sobre os
comportamentos, exacerbando determinados focos de conflito antes abafados por
hierarquias tradicionais de poder. Com o debilitamento dos controles sociais
informais, o crescente sentimento social de desordem ampliou a demanda para que o
Estado restaurasse a ordem mesmo em domínios familiares e de vizinhança. Para
assegurar a consistência das expectativas normativas existentes na sociedade, o
sistema penal passa a ter de responder a uma demanda crescente por resolução de
conflitos privados. (AZEVEDO, 2001).
No Brasil, os processos de informalização da justiça, que ilustram o quadro acima, têm
sua melhor tradução na criação dos chamados juizados Especiais (cíveis e criminais). Mas
talvez o fator que mais tenha contribuído para disseminar a linguagem do(s) direito(s) é a
vulgarização do chamado direito do consumidor apoiada em instituições públicas e privadas
(como os PROCONs) e sua ampla disseminação na mídia. Nesses processos de
“popularização” da justiça, a linguagem do direito tem se disseminado sem que,
49
Ver, por exemplo, o relatório parcial do Ministério da Justiça e do PNUD sobre modelos alternativos de justiça
em Sinhoretto (2005).
63
necessariamente, haja algum controle sobre os efeitos disto. Esse processo para ser mais bem
compreendido prescinde de estudos empíricos que revelem tanto as distâncias entre os
discursos “nativos” e as configurações de valores de suas “queixas” (CARDOSO DE
OLIVERA, 2002) quanto ás lógicas que presidem as decisões sobre quando e como utilizar-se
dos mecanismo s legais e o conteúdo pessoal das relações sociais (SIGAUD,1996 e 2001),
Especificamente sobre os Juizados Especiais Criminais, Rodrigo Azevedo (2001)
chama a atenção para o fato de que sua criação, em um primeiro momento, não teve como
efeito à redução do número de casos atendidos pelas varas comuns, segundo o autor:
[...] em vez de assumir uma parcela dos processos criminais das Varas Comuns, os
Juizados Especiais Criminais passaram a dar conta de um tipo de delituosidade que
não chegava até as Varas Judiciais, sendo resolvido através de processos informais
de "mediação" nas Delegacias de Polícia ou pelo puro e simples
"engavetamento".(AZEVEDO, 2001).
Se, por um lado, a criação dos Juizados Especiais permitiu a alteração dos mecanismos
de controle social formal por parte do Estado, substituindo a polícia pelo judiciário no
atendimento de um tipo de conflitualidade antes praticamente invisível, por outro lado tem
contribuído para disseminar novas representações sobre as práticas judiciais
50
.
A juridicização da prática social significou a imposição de categorias, interações e
enquadramentos jurídicos estatais, relativamente homogêneos, nos mais diversos e
heterogêneos domínios sociais (família, vida comunitária, local de trabalho, esfera
pública, processo de socialização, saúde, educação, etc.). A manejabilidade do
direito estatal pressupunha a maleabilidade dos domínios sociais a regular
juridicamente. Sempre que prática social não pôde validar este pressuposto, o
resultado foi o que Habermas designou “colonização do mundo da vida”, isto é, a
destruição das relações sem a criação de equivalentes funcionais jurídicos
adequados. Sempre que tal aconteceu, o benefício jurídico do Estado-Previdência
converteu-se num bem humano condicional. Condicional pelo facto de poder
destruir a dimensões eventualmente benéficas das relações sociais a serem
reguladas, sem garantir a sustentabilidade da benevolência jurídico-estatal, dada a
dependência desta em relação a necessidades variáveis da reprodução do capital.
(SOUSA-SANTOS, 2001, p.151).
Do ponto de vista dos conteúdos dos novos direitos associados à judicialização das
relações sociais, estes têm atingido diretamente a vida privada ao estender a regulação - ou ao
menos dar visibilidade - aos direitos sexuais e direitos reprodutivos. No entanto, a afirmação
50
Sobre as representações populares sobre justiça, ver a coletânea organizada por Pandolfi et al (1999).
64
destes novos direitos se acompanhada da perspectiva de não serem eles apenas uma nova
geração de direitos, mas sim um novo paradigma, pois tematizam os próprios limites da lei na
intervenção sobre corpos e pessoas. Além disso, a formulação desses novos direitos não se
em um vácuo político, pois cada vez mais se faz com a participação dos próprios sujeitos a
que se destinam as leis em sua produção, exigem também o reconhecimento da diversidade e
a existência de grupos diferenciados no interior da sociedade, cujos direitos devem ser
expressos na forma de direitos coletivos e não individuais. Todas essas características estão
relacionadas à outra particularidade desta nova legalidade, o fato se serem movimentos sociais
que lhe dão suporte
51
.
No entanto, é preciso averiguar em que medida tem de fato ocorrido essa
popularização do direito e quais seria suas características e conseqüências. Kim Economides
(1999), a partir de estudos da sociologia jurídica norte-americana, alerta para o fato de que
aqueles que não têm experiências nos meandros do funcionamento da justiça têm maiores
dificuldades de mobilizar os recursos jurídicos a seu favor. No entanto, a “falta de
competência legal [...], ou seja, a habilidade de aplicar compreensão estratégica, ou know-how
tático, de modo a administrar o sistema judiciário para assegurar vantagens de longo prazo”
(1999, p.66-67) de um indivíduo, pode ser compensada pelos conhecimentos partilhados em
sua rede de relações
52
. Como outras práticas sociais, a experiência no sistema de justiça é
compartilhada por inúmeras pessoas e assim estende seus efeitos para além dos diretamente
envolvidos. Em certos aspectos é uma experiência coletiva e não individual.
Mesmo que as questões ligadas à família não tenham se beneficiado diretamente
destes processos de informalização, visto que sua condução se em uma parte especializada
51
Ver, por exemplo, a coletânea organizada por Maria Ávila; Ana Portella e Verônica Ferreira (2005).
52
De acordo com o autor: “Também são importantes a família próxima e a malha social que cerca o indivíduo:
as competências e experiências mais amplas, de amigos e parentes, com o sistema legal constituem elementos
essenciais na determinação da capacidade de um indivíduo mobilizar a lei e o sistema judiciário”.
(ECONOMIDES, 1999, P. 67).
65
do sistema de justiça as varas de família
53
a disseminação de uma linguagem dos direitos
transborda áreas específicas, e disso decorre que algum nível de contaminação pode ser
pressuposto em relação aos “direitos” inerentes às relações familiares.
Não as práticas do sistema de justiça, mas também as leis devem ser consideradas,
não por alguma capacidade intrínseca de moldar a realidade, mesmo quando acionando seus
dispositivos de repressão, o que não é característico da justiça de família - mas sim pelos
efeitos simbólicos que gera, tais como o efeito de estabelecer o normal e o patológico no caso
das relações familiares.
Sobre a forma como as leis atuam, o modo como, na prática elas condicionam a vida
social, alguma bibliografia tem sido produzida com resultados importantes. Um ponto de
destaque nessa bibliografia é a a distinção entre as regras e sua aplicação, traço fundamental
na sociologia do direito desde pelo menos Weber. Mas, por outro lado, é a sociologia das
organizações que tem inspirado boa parte da discussão sobre esta questão, sobretudo quando
tem por alvo as organizações judiciárias, no entanto, o faz privilegiando ou os aspectos
informais, portanto, o que está “fora das regras”, mas que são parte integrante do
funcionamento das organizações - as regras informais - ou centralizam a análise dos aspectos
rituais
54
da aplicação das regras (VARGAS, 2004).
A perspectiva adotada por Vargas (1999 e 2004), para análise de processos de estupro
é a de que as regras são constitutivas das realidades as quais se aplica. De acordo com a
hipótese da autora: “as regras jurídicas funcionam não apenas como uma orientação para os
operadores da justiça, mas de fato como delimitadoras de suas ações, bem como dos
comportamentos e situações por eles tratados” (VARGAS, 2004, p. 9). Mas isso não quer
dizer que as “leis” tenham um poder determinante ou sejam utilizadas de forma mecânica. As
regras são interpretadas de forma mais ou menos flexível. No entanto elas estão lá, e é em
53
Tramita atualmente no congresso um projeto de lei que cria os Juizados Especiais de Família.
54
Rituais aqui no sentido de atos meramente formais, vazios de conteúdo significativo.
66
torno delas que giram as ações. Negligenciá-las como, segundo esta autora, teria ocorrido em
análises baseadas no Interacionismo Simbólico pode apresentar inúmeros riscos. Entre estes
riscos o de perder a capacidade de interpretar as ações dos envolvidos no funcionamento dos
sistemas de justiça nos termos dos próprios agentes; ou ainda, perder de vista o caráter
gerador de novas realidades que decorre da criação, interpretação e aplicação de regras.
Outra maneira de incorporar as regras à análise derivada dos estudos sobre a
criminalidade que, inspirada nas sugestões de H. Becker (1977) sobre o desvio, desloca a
compreensão do ato criminoso da ação em si para as regras que a caracterizam como crime.
Ou seja, seriam as regras que determinariam o que é ou não crime e não alguma propriedade
interna ou conteúdo destas ações. No limite: são as regras que ao definir o que é crime criam
tanto os crimes quanto os criminosos. Estendendo esta perspectiva para análise de outras
situações que não aquelas encontradas no sistema de justiça criminal, é possível questionar se,
e em que medida, a existência e a “materialização” de certas regras por parte do judiciário é
geradora de novas realidades. Se tal perspectiva implica a análise das regras, vistas como
importante parte do cenário, indica, no entanto que estas regras sejam analisadas tal qual
aparecem são lidas e acionadas - para os atores envolvidos, e não apenas conforme
formalizadas nos textos legais.
Processos de tipificação da realidade são uma parte importante da forma como
pensamos e agimos no mundo
55
, e são inerentes ao funcionamento do sistema de justiça. Do
ponto de vista das regras formais, “fato pico” corresponde a algo previsto na lei, e tipificar -
nos termos dos operadores de direito - é o procedimento de identificar um fato ao que está
formalizado na lei. Mas a tipificação não se restringe apenas a identificar um fato com uma
lei, envolve também a redução de fatos a “casos típicos” cuja definição não se esgota pela
atribuição a eles de um artigo do respectivo código. Identificar um caso como “típico”
55
É esse o pressuposto de boa parte das teorias sociológicas do século XX.
67
significa uma ntese de reconhecimento (SCHUTZ, 1979) que remete às formas mais
eficazes para conduzir o processo, às provas que melhor funcionam e às estratégias retóricas
mais adequadas, tal qual testadas pelas experiências com casos semelhantes e cristalizadas no
estoque de conhecimento dos operadores de direito.
Os processos de tipificação ocorrem também na rotulação
56
e estereotipação de certos
perfis de vítimas (CORREA, 1983; ARDAILLON e DEBERT, 1987), de criminosos
(ADORNO, 1999) de forma a deslocar a avaliação da ação em si para os atores, e das regras
formais para preconceitos sociais. O mesmo ocorre em relação às motivações e circunstâncias
“típicas” nas quais um fato se dá. Sérgio Adorno (1999) demonstra, a partir da análise de
julgamentos no tribunal do júri, a existência de “teorias recorrentes” a respeito do perfil dos
criminosos, das formas e causas dos atos criminosos e mesmo sobre a própria criminalidade, e
como os operadores de direito procuram representar os fatos de acordo com essas teorias,
tanto quanto de acordo com os textos legais. Não se trata de supor a “crença” dos operadores
de direito nessas teorias, mas sim o reconhecimento por parte destes da sua utilidade, da
mesma forma não se coloca a questão da veracidade de tais teorias, mas sim de sua
verossimilhança e sua capacidade de atribuir sentido a certos acontecimentos.
56
Sobre o labeling approach em criminologia, ver Baratta (1997).
68
Capítulo 3:
Família: instituição, código e diversidade
A bibliografia sobre família no Brasil é vasta, eclética e indica a importância e o lugar
especial que dedicamos a ela em nossa vida social. Nela são recorrentes alguns temas em
torno dos quais giram algumas questões controversas que garantem não a vitalidade dos
debates, mas o aprofundamento da compreensão das dinâmicas próprias da família e da
sociedade brasileira. Um sobrevôo, mesmo que breve, por esta bibliografia permite
reconhecer algumas estradas, trilhas ou atalhos pelos quais escoam boa parte das discussões,
tais como, por exemplo, as discussões sobre a família patriarcal, os fatores condicionantes de
suas transformações, e sua condição de causa e efeito de nossas mazelas e virtudes culturais;
as relações de gênero e seus desdobramentos na família e as relações entre as transformações
na família e os processos de modernização social e econômica da sociedade brasileira.
Evidentemente que esses temas não esgotam a diversidade dos debates e, sobretudo, não
esgotam a forma de abordá-los.
Igualmente rico têm sido os debates de ordem mais metodológica sobre como estudar
família. Nestes, não somente dialogam diferentes disciplinas como no interior de cada uma
digladiam-se ou complementam-se diferentes correntes e abordagens. A centralidade - real ou
atribuída - da família em nossa arquitetura social e em nossas representações sobre nós
mesmos faz desta um objeto especial que não pode ser negligenciado por nenhum dos
compartimentos das ciências humanas, ao mesmo tempo em que a presença em sua
constituição de aspectos cujo exame é reivindicado pelos saberes psicológicos, sociológicos,
históricos, antropológicos, biológicos, econômicos, demográficos, etc., faz da família um
objeto sem dono e sobre o qual não se pode reivindicar a palavra final assim como não se
pode deixar de ouvir ou pelo menos tentar ouvir - constantemente o que cada um destes
69
saberes tem a dizer sobre a família e sobre o que se diz dela.
A própria definição ou definições, melhor dizendo, do que é família é parte
constitutiva destes debates – inter e intradisciplinares, e talvez seja até mesmo possível contar
a história das ciências humanas através da forma como a família foi concebida e analisada. De
fato, não escola, vertente, teoria importante ou modismo passageiro que não tenha
deixando suas marcas nos estudos sobre família. Mesmo as grandes divisões das ciências
sociais, tais como ação/estrutura, micro/macro análises
57
, normalmente relegadas para as
discussões meta-teóricas (ALEXANDER, 1987) se mostram de forma nua e crua em boa
parte dos debates sobre família, até porque, muitas vezes, os partidários de uma ou outra
posição procuram usar as pesquisas sobre família como munição para fazer oscilar o pêndulo
paradigmático das ciências sociais para seu próprio lado.
Essas grandes linhas divisórias da teoria social, visíveis, sobretudo em sua dimensão
discursiva, permitem organizar, ainda que um tanto artificialmente e de forma esquemática, os
debates mais teóricos sobre família, em, de um lado, aqueles que definem e analisam a família
como “coisa” e de outro os que a definem e analisam como “idéia”.
58
A questão é assim
colocada por Almeida et al:
Ou seja, o que pretendemos circunscrever ao definirmos família? Trata-se de um
grupo concreto composto por um certo número de pessoas ligadas por
consangüinidade ou aliança e que ocupam lugares diferentes numa hierarquia interna
de poder e de papéis? Ou trata-se de uma representação social que os diversos
grupos e sociedades fazem das relações de aliança e de consangüinidade, sendo,
nesse sentido, não uma realidade positiva visível, mas uma realidade simbólica - e,
portanto construída - que expressa, produzindo, reproduzindo e legitimando valores
que transcendem as fronteiras do grupo, uma mentalidade, uma maneira de se situar
na vida? (ALMEIDA et al, 1987, p. 13)
Duas correntes de estudos históricos nos anos 60 e 70 atualizam e representam
paradigmaticamente esses dois pólos e acabaram por repercutir na própria forma como a
família patriarcal foi revista entre nós (ALMEIDA et al, 1987), como se verá mais adiante. A
57
Entre outras,, tais como empiria / teoria, análises econômicas / culturais, sem contar o inevitável
qualitativo/quantitativo.
58
Há, é claro, aqueles cuja contribuição é precisamente compelxificar ou mesmo superar estas divisões, tal
como, por exemplo, Bourdieu e Parsons.
70
primeira teria como um de suas mais influentes expressões os estudos de Peter Lasllet na
Inglaterra, e a segunda o trabalho de Phillipe Ariès, na França. Nos anos 60 Lasllet e seus
colaboradores no que ficou conhecido como “Grupo de Cambridge” aperfeiçoaram os
métodos da demografia de reconstituição histórica da estrutura e da organização das famílias.
Entre seus achados mais interessantes, tendo registros paroquiais como fontes de pesquisa,
está a constatação de que em várias regiões da Europa a família nuclear era padrão antes
mesmo dos processos de industrialização e assalariamento, permitindo assim uma forte
evidencia empírica contra os esquemas evolucionistas e contra o modelo funcionalista de
associação entre, de um lado, família nuclear e a sociedade urbano-industrial e de outro
família extensa patriarcal e sociedades tradicionais.
Enquanto no início, na França dos anos 60, Ariès utilizou-se de fontes pouco
convencionais, como iconografia e obras artísticas, para enfatizar aspectos culturais e fazer
dos sentimentos um objeto de estudo, que permitiu a ele revelar a singularidade da família
ocidental e atribuir uma renovada dignidade e fôlego para o estudo histórico da família. Seu
foco sobre os sentimentos da infância e de intimidade familiar permite retraçar a gênese da
família moderna simultaneamente à formação de uma esfera autônoma privada.
Independente de ser concebida como coisa/estrutura/realidade empírica, etc, ou como
idéia/valor/ideologia, sem, é claro, supor que esses termos sejam sinônimos, um conjunto de
questões aparece de ambos os lados, tais como: reconhecimento de que a família é tanto
resultado de processos sociais quanto neles influi, e o reconhecimento de que ela passa por
transformações significativas na Europa a partir do século XVI, se espalhando posteriormente
a outras regiões do globo. Transformações estas, por sua vez, que atingem a vida social como
um todo, estruturando modos de vida, formações sociais e instituições, singularizando a
sociedade ocidental que e que são designadas normalmente como modernidade.
71
A Família e modernidade
uma especificidade no que chamamos hoje de família, que pode ser reconhecida
quando se procura compará-la com famílias em contextos históricos distintos, pré-modernos
ou não modernos. Esse trabalho de comparação mais ou menos assumido ou explícito vai
acentuar a existência de uma “originalidade” nas famílias modernas e, embora tenha como
pano de fundo a história, não se confunde com empreendimentos do século XIX e início do
XX que procuravam, na reconstrução do passado, um ponto de partida através do qual se
poderia explicar o fenômeno família em sua gênese, em seu estado puro, no qual se revelaria
suas funções mais elementares.
Tais empreendimentos permitiriam também a seus autores compreender e classificar
as variações do fenômeno “família” de acordo com roteiros evolutivos, seja da própria família
autonomamente ou como parte da evolução das sociedades ou ainda da humanidade como um
todo. Autores como Maine (1993), Morgan (1980), Smith (1903) McLennan (1970) e mesmo
Engels (1984), comprometidos com os esquemas evolucionistas do século XIX, tentaram de
estabelecer algo como uma história geral da família, e com ela reconstruir a história geral da
evolução humana. Ao contar essa “historia” pode-se privilegiar, ora continuidades
garantidas por uma suposta naturalidade (CHAPPLE e COON, 1946) -, ora rupturas radicais
ou ainda optar por modelos mais descritivos (CASEY, 1992), mas, em geral, estiveram
sempre a serviço de propostas teóricas mais ambiciosas.
Apesar das diferenças e polêmicas, às vezes acirradas, que não somente estabeleceram
os conceitos e as primeiras teorias dos estudos de parentesco, mas deram a estes um papel
central na Antropologia e a esta um destaque entre as ciências humanas - todos de alguma
forma partiram das “origens primitivas” inferidas ou “reveladas” por analogias com
sociedades indígenas da Oceania ou das Américas, para traçar um movimento em que a
família centrada na figura da mãe, e mais próxima da natureza, vai se organizando em torno
da figura do pai, num processo “artificial, que pressupões bastante inteligência e pensamento
72
abstrato” (CASEY, 1992:17). A família, portanto, seria um fato da civilização da mesma
forma que a propriedade - e, assim, espelharia em suas transformações o progresso desta.
A revisão dos modelos evolucionistas “libertou” os estudos da família para que
análises mais precisas e, menos comprometidas com teorias mais amplas, fizessem surgir o
interesse pela família por si só. Além disso, o impacto das transformações do século XIX,
tanto as agitações políticas, quanto a decomposição das hierarquias tradicionais e os contornos
dados pela revolução industrial à vida urbana, fizeram da vida social um problema que está
não na origem das ciências sociais, como também na preocupação com a família como
elemento formador da base “moral” da sociedade.
Ao contrario dos estudos evolucionistas - sem um contexto histórico delimitado e
compreendido -, Fustel de Coulanges (1975[1864]), retoma a história da Grego-Romana para
descrever os vínculos da família à religião e à política e enfatiza que não a família, mas
também a organização política têm de ser compreendidas pelas idéias que se tem dela e que
pertencem a crenças e formas de pensar antigas e arraigadas, que devem ser compreendidas a
partir do estudo da religião. Outro autor, esse cujo legado ainda repercute nos estudos sobre a
família (CASEY, 1992), Fédéric Le Play, escrevendo no mesmo ano em que Coulanges
publica seu Cidade Antiga, portanto, no contexto das preocupações com a degradação da vida
urbana nas grandes cidades da Europa no século XIX, e, de certa forma comprometido com
sua superação pela via de uma reforma moral, vai enfatizar que a família pode e deve ser mais
bem compreendida como um sistema moral do que como instituição social.
na segunda metade do século XX, os estudiosos da família puderam se beneficiar
de novas técnicas de investigação e do legado destes autores para restabelecer comparações e
estudos históricos, mas de uma forma completamente diferente e em meio a maior
diversificação, na qual, por exemplo, fica difícil encaixar a contribuição original de Lévi-
Strauss (1982) que ancora a gênese do parentesco na intercessão entre natureza e sociedade,
73
no “momento” mesmo em que nos humanizamos. Se a antropologia manteve uma certa
filiação aos estudos de parentesco, a história renovada pela “história das mentalidades” trouxe
um novo fôlego aos estudos de família ao destacar a singularidade da família moderna, tal
como o fez Ariès. Armados com referências teóricas mais sofisticadas, foi possível a esses
estudos evitar as armadilhas definir família a partir de processos naturais o que levaria, no
limite, no limite a roubar dela sua própria historicidade e reforçar a naturalização própria do
senso comum.
A mais visível manifestação desta família moderna é o se costuma chamar família
nuclear moderna, um casal e filhos, cujas bases vem se desenhando desde o século XVIII
(SHORTER, s.d.; ARIÈS, 1981), época em que ganha seus principais contornos. Mas seu
conteúdo mais significativo, o que lhe empresta toda sua originalidade são os sentimentos e
novas configurações afetivas em seu interior.
Michel Foucault (1993) procura demonstrar como a família moderna se forma,
reforçando os laços de afetividade com uma ênfase maior nos sentimentos filiais em
detrimento do amor conjugal romântico, torna-se, assim, uma matriz para indivíduos aptos
para as funções que deles espera a modernidade. Anthony Giddens (1993) vai enfatizar o
amor romântico como propulsor de uma redistribuição dos papéis públicos em privados para
homens e mulheres. Aos primeiros, o mercado e a vida pública, e às mulheres a administração
afetiva do lar. Nesses processos, Luis F. D Duarte (1995) ressalta que a família moderna
representou um nódulo decisivo da modernização, pois tanto podia ser afirmada e defendida
pelo “arautos da modernização”, quanto pela Igreja Católica que via nela um último recurso
para sustentar sua concepção relacional e hierárquica de pessoa.
Para Edward Shorter (s. d.), a família moderna é resultado de amplas transformações
nos sentimentos que se pode observar por três conjuntos de evidencias ao longo dos séculos
XVIII e XIX: em primeiro lugar, uma modificação nas relações entre os cônjuges
74
materializada no amor romântico, tal qual definido pelo autor, ou seja, como uma busca de si
mesmo na completude com o outro. Em segundo lugar, a modificação das relações da mãe
para com os filhos o desenvolvimento de um sentimento de maternidade que desloca a
criança para o centro da vida familiar e as mães para o interior da vida doméstica e, por fim,
as transformações nas relações entre as famílias e a comunidade, isolando estas no interior de
suas casas.
Mas, deve-se sem dúvida a Phillipe Ariès (1981) a mais consistente demonstração
sobre as origens da família moderna bem como das bases sociais de sua construção. Ariès
descreve o processo de sua constituição a partir do surgimento da escola, da privacidade do
lar e de um sentimento de intimidade familiar. A família transformou-se profundamente na
medida em que modificou suas relações internas com a criança: a preocupação de igualdade
entre os filhos e manutenção das crianças junto aos pais. Se antes a família era uma realidade
moral e social passou a ser uma realidade sentimental num processo lento e mal percebido por
seus contemporâneos.
Para Ariès, a infância tal como a conhecemos, emergiu no início do período moderno e
sua descoberta estaria intimamente ligada à emergência da família moderna ou família
conjugal, na qual as relações privadas entre pais e filhos haviam se tornado mais importante
do que a honra da linhagem, a integridade da herança ou a idade e permanência do nome.
Anteriormente, na Inglaterra e na França, a densidade dos vínculos de sociabilidade não
deixava espaço para a família, e esta só existia enquanto um conceito, sendo seu foco
principal mais a sociabilidade do que a privacidade. A família moderna emerge com a retirada
desta sociabilidade do recinto doméstico. Unindo a 'descoberta da infância' com as
transformações da família e da estrutura social, Ariès impulsionou toda uma geração de
pesquisadores.
Um dos efeitos da ascensão e da generalização destes novos sentimentos de família
75
parece ter sido exatamente o apagamento das evidências de sua “artificialidade”, ou seja, de
sua construção social. Desde então, sua origem social permanece ofuscada para o senso
comum, a família como a concebemos pareceu natural e eterna aos olhos de quem a vive, dos
que legislam sobre ela e, eventualmente, de alguns dos que se dedicaram a compreendê-la. No
entanto, Luis F. D Duarte (1995) ressalta que, ao contrário do parentesco, fenômeno
universal, aquilo que normalmente designamos por família, é algo não apenas exclusivo do
ocidente moderno, como também um fenômeno recente. A família é histórica, portanto
poderia ser alocada no eixo moderno/pré-moderno, enquanto parentesco não, portanto
pertenceria ao eixo moderno/não moderno.
As discussões sobre família se inserem em debates mais amplos dado o próprio
significado político que esta possui. Pelo conteúdo de que é “feita”: sexualidade, poder,
reprodução social e biológica, etc. (THERBORN, 2006), ela é um assunto de interesse da
sociedade e de boa parte de seus membros. Pelo fato de ser ela um instrumento de poder sobre
a população e sobre os indivíduos, é natural uma contaminação política nos debates em torno
dela. Russell Parry-Scott (2004) demonstra de que forma a literatura sobre família no Brasil
privilegiou em determinadas épocas certos temas e de que forma isso reflete preocupações
mais gerais.
A família no Brasil
As tensas, inconstantes e múltiplas relações entre moderno e não-moderno, concebidos
como o for, têm sido pano de fundo para discussões sobre os mais diversos aspectos da vida
humana: economia, religião, arte, direito, família, entre outros. Fornecendo parâmetros e
categorias que fazem, por vezes, o papel de amarras conceituais, as discussões sobre
modernidade, tradição, pós-modernidade e outras com as quais guardam afinidades, tais
como: civilização, ocidentalização, globalização, transnacionalidade, descolonização, etc, são
importantes matrizes teóricas das ciências humanas. O objetivo aqui não é discutir essas
76
questões, ao menos não com esse vel de generalidade e abrangência, tampouco esgotar os
desdobramentos destas matrizes teóricas nas discussões sobre família, mas sim argumentar
que, uma parte significativa das discussões teóricas sobre família no Brasil, que se
desenvolveu dentro da “tradição” que opõem moderno e não-moderno o fez utilizando a
família para pensar algo além dela própria e que isso obscurece a diversidade com que a
“família” tem existido entre nós.
De fato, parece próprio dos estudos sobre família, que estes façam articulações entre a
família e outras esferas da vida social (PARRY-SCOTT, 2004)
59
. Muitos dos trabalhos que,
no Brasil, tomam a família como objetos, e que escapam dos limites descritivos, têm
arremessado as famílias para discussões mais gerais e isso, freqüentemente, contamina as
próprias análises. A família tem sido uma categoria “boa para pensar” (SARTI, 2003a), e
enquanto tal tem sido amplamente utilizada para analisar a mudança social no Brasil. Isto,
certamente, em função de sua importância como referência na construção de identidades
sociais (SARTI, 2003a; ABREU FILHO, 1982); seu papel na articulação entre as esferas
produtivas e de consumo (BILAC, 1995 e 2003); sua relação com o mundo do trabalho
(PAOLI, 1986, SARTI 2003); nas suas relações com o Estado (CARVALHO, 2003); na
reprodução de valores; na relação com as discussões sobre identidade nacional e
desenvolvimento (PARRY-SCOTT, 2004), entre outros fatores.
Moderno e não-moderno ora servem para explicar diferentes formas que assume a
família, ora estas formas é que servem para explicar a modernidade de certo contexto, e os
59
Parry-Scott demonstra como a discussões sobre a família no Brasil estão conectadas a relações internacionais e
contextos mais amplos de discussão. Na medida em que a composição social da população é um ingrediente
significativo na construção da idéia que a coletividade faz de si própria, especialmente no caso das identidades
nacionais, a reprodução da população se torna objeto de poder: “Quem vai procriar para formar a população do
país é uma questão de relações de poder sobre o acesso a mulheres (e o controle sobre elas)”. (PARRY SCOTT,
2004, p.30). Ainda de acordo com este autor, nessas relações de poder duas questões são colocadas: Como se
controla a sexualidade? e como se forma a domesticidade?. Ambas subsumidas na forma como se discute e
pensa a família. Tais questões “politizam” as discussões sobre a família e este autor demonstra como as
mudanças na forma como a família tem sido enfocada no Brasil e as temáticas que dão o tom dessas mudanças
acompanham transformações sociais e políticas mais amplas.
77
estudos tendo a família por objeto que, de alguma forma, fazem uso da distinção entre
moderno e não moderno freqüentemente têm por pressuposto tanto um eixo temporal, onde o
moderno estaria substituindo o não-moderno, ou tradicional – mesmo que de forma paradoxal,
contraditória ou incompleta - quanto um eixo sincrônico, quando se discute a distribuição e
circulação das instituições modernas, e as práticas que lhe são subjacentes
60
, entre contextos
sociais marcados por algum tipo de referente sociológico, como, por exemplo, urbano, rural,
tribal, etc.; ou mesmo ainda entre segmentos sociais definidos por condições sócio-
econômicas, como por exemplo, operários, camponeses, classes médias, ou outros.
A família patriarcal parece ser o eixo destas construções. Ela não é, evidentemente, um
fenômeno exclusivo do Brasil, ainda que tenha sido tomada como alegoria de nossa formação
social. Pode se entender por família patriarcal diferentes coisas, tais como a forma de relações
familiares na qual preponderância do pai sobre os demais membros, sendo os limites da
ascendência deste sobre os demais membros da família, assim com a extensão da própria
família variáveis, desde o poder quase que absoluto do pai de família sobre, indistintamente a
mulher, os filhos e os escravos, como em Roma, onde poderia incluir os destinos sobre a vida
e a morte, até as legislações civis do século XX que submetiam em maior ou menor grau a
cidadania da mulher ao marido. Da mesma forma, a família patriarcal pode abarcar diferentes
gerações e se estender em graus distintos de parentesco ou ainda incorporando agregados da
mesma forma como pode se reduzir à família nuclear.
Patriarcalismo, no sentido que lhe empresta Max Weber (1999) se refere a um modelo
de relações de poder no interior de uma comunidade familiar no qual concentra-se nas mãos
de um (o patriarca) todo o poder, que se expressa, sobretudo, em termos patrimoniais e é
legitimado por uma crença na naturalidade (normalidade) da dominação. Por se tratar de um
60
Nesse quadro, uma parte dos estudos procurou deslocar e reservar as fronteiras para dimensões analíticas
problematizando a coexistência de aspectos modernos e não-modernos relacionados à família, tal qual proposto
por Gilberto Velho (1981, 1986 e 2001) ou por Anália Torres, em relação a Portugal (TORRES, 2001).
78
“tipo ideal”, é a-histórico, mantidas suas propriedades formais, pode ser encarnado em
diferentes contextos.
A família patriarcal tal qual desenhada por Gilberto Freire, dominou no Brasil as
representações sobre família, na literatura, no direito e mesmo, em parte, entre os especialistas
(SAMARA, 2002). As observações de Freire concentravam-se nas elites agrárias
pernambucanas, ou em contextos fortemente determinados pelos modelos culturais a ela
associados, bem como marcados pela economia açucareira. A família patriarcal, por vezes
generalizada indiscriminadamente, obscureceu a diversidade de formas de família e se tornou
parâmetro não apenas para a organização familiar - e sua interpretação - mas para a própria
organização da sociedade (DURHAM, 1982) até mais ou menos os anos 70 (BILAC, 1995).
Esta generalização deu as bases para que até mesmo a “família moderna no Brasil” fosse
pensada não somente como resultado de processos de transformação da sociedade brasileira,
mas sobretudo como adaptação deste modelo. Fazendo, nos anos 80, uma revisão dos estudos
de família, com especial ênfase nos estudos históricos, Samara chama a atenção para que, até
aquele momento:
[...] de acordo com a literatura a família brasileira seria o resultado da transplantação
e adaptação da família portuguesa ao nosso ambiente colonial, tendo gerado um
modelo com características patriarcais e com tendência conservadora na sua
essência. Esse modelo genérico de estrutura familiar, comumente denominado
patriarcal, serviu de base para caracterizar a família brasileira como um todo,
esquecidas as variações que ocorrem na organização da família em função do tempo,
do espaço e dos diferentes grupos sociais. (SAMARA, 1986, p.172).
Além disso, o conteúdo desse modelo patriarcal vai enfatizar não a dominação
masculina, que lhe empresta o nome, mas uma representação da unidade familiar que facilita
a confusão entre família patriarcal, parentela e família extensa (SAMARA, 1986). Tendo
permanecido a “família extensa” como uma espécie de critério com o qual avaliar a
sobrevivência ou a superação do “tradicional” na família brasileira.
Ângela Mendes de Almeida (1987) sugere duas interpretações sobre a família
patriarcal de Gilberto Freire: na primeira esta é vista como padrão de organização familiar
79
brasileira e os debates em torno da questão se esforçam, para comprovar e, mais recentemente
contestar os argumentos de Freire. De fato, a historiografia tem levantado questões sobre a
abrangência da família tal qual descrita por Freire, que não seria encontrada na história
colonial em outras partes que não o nordeste canavieiro e, mesmo neste, restrito à famílias de
grandes proprietários. Assim, para muitos autores poder-se-ia até mesmo entender a família
patriarcal como um mito ou construção ideológica própria dos anos 20 e 30, quando foi
formulada. Ainda que a historiografia colonial tenha relativizado de forma incontestável a
abrangência da família patriarcal enquanto padrão de organização familiar, não consegue, por
não ter por objetivo, dar conta de sua ampla aceitação como discurso sobre a família no
Brasil.
O que sugere uma segunda leitura na qual se irá exatamente partir da constatação de
que a família patriarcal é uma construção ideológica que enfeixa e dissemina padrões de
relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de poder.
Uma segunda leitura de Gilberto Freyre interpreta seu perfil de família patriarcal
brasileira como uma construção ideológica que, constituída de traços sicos do
comportamento familiar, serve de referência para a prática no que tange a padrões de
relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de hostilidade. Neste sentido, o modelo
de Freyre aparece, não como uma descrição da família brasileira, mas como uma
representação dela. Tal perspectiva não interpreta o modelo enquanto uma realidade
demonstrável a partir da organização familiar, mas enquanto ética que envolve o
conjunto de suas relações. O modelo gilbertiano funciona assim como critério, como
medida de valor para a vida familiar e para as pessoas nela envolvidas. O conteúdo
dos argumentos de Freyre permite que se conceba seu modelo como uma
representação de família enquanto um grupo estruturado numa hierarquia, que
embora forte - "todo mundo conhece seu lugar" -, está a cada momento sendo
subvertida, real ou aparentemente, por força de favores entre as pessoas
hierarquizadas. Isso permite que pensemos o modelo de família patriarcal como uma
estrutura de relações entre desiguais: pais e filhos, homem e mulher, branco e negro,
senhor e escravo, senhor e agregado e assim por diante. (ALMEIDA, 1987, P. 15-
16)
A historiografia e a demografia recentes tem procurado recolocar em outros termos as
discussões, ao criticar não a importância do modelo patriarcal nas análises, mas sim sua
centralidade e sua generalidade. A partir de dados históricos, têm procurado demonstrar que
as famílias extensas patriarcais, tal como na obra de Gilberto Freire não eram tão comuns
tampouco apareciam da mesma forma em todas as classes, etnias, contextos econômicos, na
80
cidade ou no campo. Mas, se não existiu “na realidade” com a mesma força com que aparece
no imaginário, não se pode negar que existiu enquanto modelo. E, nessa condição
condicionou a forma como transformações recentes na sociedade brasileira atuaram sobre as
estruturas da família no Brasil, sobre como estas foram analisadas e a legislação sobre ela
produzida.
A diversidade: famílias em sociedades complexas
Muitos autores reconhecem diferenças na forma como a “família moderna” se
apresenta em diferentes contextos e épocas. Particularmente, a partir da segunda metade do
século XX, na Europa e Estados Unidos, mas também ao redor do mundo, mudanças sociais
parecem ter intensificado sua diversidade - visualizada pelas alterações demográficas e
indicadores relacionados à família, tais como índices casamento, de divórcio, de famílias
monoparentais, etc, levando a uma família pós-moderna (VAITSMAN, 1994). A ascensão da
industrialização e da urbanização (VAITSMAN, 1994, PERILLO, 1988); da expansão do
individualismo moderno (DUARTE, 1995); da forma como são associados público/masculino
e privado/feminino (VAITSMAN, 1994); entre outros fenômenos sociais, teriam
transformado um modelo “burguês” que, no entanto, permanece sendo referência.
Este modelo “burguês” teve (e tem) nas classes médias urbanas sua melhor vitrine,
tornando-se, assim, mais ou menos disponível, e dispersando-se para contextos não atingidos
da mesma forma pelos processos acima ou por suas conseqüências, tais como as camadas
mais pobres das periferias urbanas ou contextos rurais
61
.
Várias são as causas apontadas para explicar a diversidade de formas de famílias e,
dependendo da intensidade com que se afirmam essas causas, as famílias que não estejam
“sincronizadas” com “modelos” ou o modelo original ou suas novas configurações –
aparecem, ou como um problema teórico, ou como evidência de uma “crise”. Mudanças
61
Da mesma forma que dessas camadas médias não estão ausentes traços normalmente associados a outros
contextos (VELHO, 1981 e 1986).
81
observadas a uma distância histórica tem um certo efeito que faz com que pareçam mais
homogêneas e lineares do que as mudanças das quais somos contemporâneos, assim, essas,
freqüentemente tendem a ser representadas na forma de crises. A constituição de novos
arranjos familiares e principalmente a diversidade de formas e fórmulas com que se convive
hoje tende a ser confundida com o fim da família.
A reificação dos mecanismos geradores destas transformações aumenta esta ilusão. É
como se as variações fossem percebidas como desvios de um padrão e, na medida em que
quanto mais se percebe a existência de famílias que escapam a este padrão e quanto mais as
explicações acionadas para dar conta deste fato apresentam estas famílias como resultado de
processos sociais atuando sobre uma família que lhe é subjacente, num raciocínio circular,
mais a diversidade é usada para reforçar o padrão. Ou seja, aquilo que seria um “modelo”,
diante da sua aparente decomposição, passa a ser visto como se antes tivesse sido uma
realidade. A evidência maior da existência concreta do modelo seria os restos mortais de sua
decomposição, na forma de diversidade.
As imagens utilizadas para expressar essa diversidade são inúmeras, e podem tanto
sinalizar uma compreensão do caráter acrítico da aplicação de padrões derivados de modelos
jurídicos e sociais quanto se deixar enredar pela submissão da diversidade a um único modelo.
Estruturas familiares que não correspondam aos padrões podem ser representadas como um
resíduo ou “sobrevivências” de épocas ou estágios anteriores, fruto, portanto de algum tipo de
atraso; como famílias desestruturadas, incompletas; “reflexo desorganizado do modelo
dominante” (PAOLI, 1984) ou mesmo “impossibilidades” (BILAC, 1995), ou ainda, de forma
irônica, como famílias “não-canônicas” (BERQUÓ et al, 1990). Muitas vezes, nessas
perspectivas, tudo que escapa aos modelos é desconsiderado por estar previamente condenado
a ser tragado por mudanças inevitáveis ou a ser corrigido de alguma forma pela educação,
ação do Estado, pela modificação das leis, melhoria das condições de vida, etc.
82
Processos aludidos acima, como compondo parte do que se poderia designar como
moderno individualização, industrialização, urbanização, privatização, redefinições de
gênero, entre outros, são acionados para explicar as mudanças sociais e na família e, muitas
vezes, o fazem afirmando a preponderância e a centralidade de um modelo de família em
detrimento da diversidade. Tal modelo, freqüentemente o “objeto” último para o qual se
procura uma explicação (ou uma crítica), seria constituído por processos abrangentes e
homogeneizadores, e, diante dele, não apenas as variantes perdem seu significado, mas a
própria diversidade traço constitutivo das sociedades complexas - sai de foco
62
. Um dos
traços mais marcantes das sociedades complexas é não apenas sua heterogeneidade social,
mas a multiplicidade de códigos para expressar experiências sociais distintas assim como os
campos de possibilidade que se abrem para diferentes trajetórias de vida (VELHO, 1981;
1984 e 1989).
De acordo com Lia Z. Machado (2001), esta perspectiva parece ser recorrente
principalmente nas análises feitas a partir das nações desenvolvidas, e menos naquelas levadas
a efeito nas sociedades menos desenvolvidas. Nesse sentido, pode-se questionar se, de fato, a
família ocidental moderna é assim tão ocidental (SEGALEN, 1997). Ainda de acordo Lia Z.
Machado:
Os intelectuais dos países centrais do mundo ocidental talvez se vejam,
predominante e acriticamente, como um mundo homogêneo ‘no que importa’,
relegando-se as diversidades a ‘preferências ou modalidades nacionais, locais ou de
classe’, que não são suficientes para colocar em risco as tendências gerais modernas
e homogeneizadoras do mundo ocidental. Quando encontram diversidades que
importam, e que constituem diferenças que se distanciam dos valores modernos dos
modelos de família, amor, sociabilidade e indivíduo, relegam tais diversidades aos
mundos dos outros: “etnias” ou “imigrantes”. (MACHADO, 2001).
Mesmo quando se afirma não a mudança, mas sim a continuidade, as análises sobre a
família também correm o risco de reforçar uma idéia de homogeneização. Quando se elege
62
Como alerta Lia Z. Machado: as tendências contemporâneas da família no Brasil, como, de resto,
mundialmente, ou no mundo ocidental desenvolvido o podem ser reiteradamente analisadas como se
obedecessem a um caminho linear único ou como se este caminho altamente moderno contivesse toda e todas as
idéias do “bem”. (MACHADO, 2001).
83
um modelo constituído não por processos sociais dinâmicos, mas sim pela manutenção de um
paradigma cultural estatuinte como talvez seja o caso, entre nós da centralidade atribuída ao
modelo de família patriarcal, tal como descrito por Gilberto Freire.
As abordagens que procuram compreender a(s) forma(s) de família contemporânea
identificando processos sociais dinâmicos ou traços culturais de maior permanência não
apenas se arriscam a perdem os possíveis significados da diversidade - o que não
necessariamente se constitui como problema, pois tal diversidade pode simplesmente não
fazer parte das pretensões analíticas desse tipo de abordagem - mas tendem a reforçar uma
certa “pureza” nas classificações.
Por exemplo, a família nuclear moderna, pode ser estatisticamente mapeada, e assim,
se tornar tanto um indicador de “modernidade” quanto um “problema” esperando para ser
explicado
63
. No entanto, o que vai ou não ser considerado “família nuclear moderna” é um
passo prévio que torna mais complexa as análises. Por exemplo, quando se confunde família
com unidade doméstica (DURHAM, 1983, MACHADO, 2001; BILAC, 2003; BOURDIEU,
2005). Pois, as unidades domésticas “podem ampliar-se para incluir pessoas que não são,
stricto senso, membros da família, mas, inclusive, podem constituir-se como grupos não
familiais” (DURHAN, 1988, p. 32) ou ainda, negligenciar a existência de laços de família que
persistem com efetividade mesmo sem coabitação.
As constatações demográficas quanto à incidência de famílias nucleares em camadas
médias urbanas, por exemplo, podem ofuscar os contatos e prestações recíprocas de
auxilio, bem como relações determinadas por códigos de honra e afeto entre o
núcleo familiar e os demais parentes, que são muitas vezes constantes e corriqueiras
- e não apenas ocasionados por momentos de crise, aproximando-se, assim, do
modelo de relações da família extensa, ainda que não centrada em uma unidade
doméstica (LINS DE BARROS, 1987).
Entre os fatos empíricos observáveis e quantificáveis relacionados às famílias e as
explicações construídas sobre eles, intervém modelos, conceitos e teorias (BOURDIEU,
63
Para uma indicação sucinta sobre critérios utilizados no Brasil, ver Elza Berq et al (1990). Para uma
demonstração de como uma leitura “ingênua” dos dados estatísticos pode levar a interpretações equivocadas
sobre a família no Brasil, ver Lia Z. Machado (2001). Ver também Pierre Bourdieu (2005).
84
2005). A construção da idéia de família nuclear moderna feita por oposição a um modelo a
família patriarcal, extensa tradicional ou o que quer que seja - ou por dados referentes à
habitação ou a unidades de consumo e produção são estratégias recorrentes que têm
demonstrado seu valor e seu compromisso com pressupostos teóricos. Tem também se
exposto a críticas que dinamizam as discussões sobre a família no Brasil e sobre o próprio
país, bem como os debates legais.
A existência de famílias sem casais, por exemplo, ou seja, aquelas nas quais exista
apenas um dos cônjuges, é um fato inconteste, a despeito das discussões sobre o significado
disso e sobre o quão novo isso seria. As explicações para tal fato são diversas e é provável que
combinadas tenham alcance maior do se acionadas isoladamente. Muitas vezes, tal fato é
lembrado não pelas causas que o determinam, mas sim pelas suas conseqüências
64
, e dentre
estas uma das mais citadas é sua rápida e decisiva contribuição para com o fim da família. No
entanto, a avaliação de que tal fato representaria uma crise da conjugalidade não é partilhada
por Russell Parry-Scott (2001), para quem, ao contrário, seria resultado de uma valorização da
conjugalidade.
Para Vaitsman, as mudanças na família contemporânea refletem uma crise na família
moderna e não a transformação de uma família tradicional em moderna. Sendo a principal
razão disso a ruptura da dicotomia entre papéis públicos e privados atribuídos segundo o
gênero. Para esta autora a família moderna não é igualitária, mas sim hierárquica e torna-se
dominante nos grandes centros urbanos, entre as classes médias, até o final dos anos 60. O
conflito entre valores igualitários e práticas hierárquicas levaram-na a crises e a
transformaram. No contexto atual, que a autora define como pós-moderno, entendendo esta
condição como uma crise de meta-narrativas que atribuem sentidos a experiência humana
como um todo, a família e o casamento se caracterizariam exatamente pela inexistência de um
64
Para uma discussão sobre família monoparental ver Elza Berquó et al (1990). Para uma critica da definição de
família monoparental ver Ana Paula Uziel (2004).
85
modelo dominante “seja no que diz respeito às práticas, seja enquanto um discurso
normatizador das práticas” (VAITSMAN, 1994, p.19).
Investigando as razões pelas quais, desde os anos 70, mulheres de baixa renda vinham
optando por um menor número de filhos e quais relações isto poderia ter com mudanças de
valores no que diz respeito à gênero Vaitsman (1997), desenvolve um estudo em quatro
comunidades pobres do Rio de Janeiro e esbarra com “a pluralidade de mundos práticos e
simbólicos dos quais participam os atores sociais” e o modo como o reconhecimento dessa
situação vem obrigando as ciências sociais a alargar seu repertório analítico e suas teorias
sobre a vida social escapando de um registro próprio de uma certa tradição nas ciências
sociais que a autora chama de “realismo”.
Se, por um lado, a autora reconhece que a pluralidade de mundos é um traço
reconhecido da cultura brasileira, expresso no modo de agir cotidiano, como atestam vários
autores, entre eles Gilberto Freire com a noção de híbrido e Roberto da Matta com a idéia de
sociedade relacional, ambos citados pela autora, assim como identifica na antropologia toda
uma produção a partir dos anos 80 que faz uso da distinção entre valores hierárquicos e
valores igualitários, sobretudo a partir dos trabalhos de Dumont, para tentar dar conta da
demarcação de fronteiras simbólicas bem como a caracterização da subjetividade individual
como importante objeto de análise e como um operador sociológico com peso e atuação
variáveis em contextos sociais distintos, ressalta, no entanto, dificuldades de se pensar nestes
termos as relações de gêneros entre camadas baixas urbanas mais recentemente.
A autora aponta, em primeiro lugar, as dificuldades de se pensar o domínio do
simbólico entre mulheres urbanas de baixa renda a partir de esquemas duais tais como
igualdade/hierarquia, casa/rua ou tradicional/moderno. De acordo com a autora:
Falar em um universo hierárquico ou tradicional das camadas populares significa,
conceitualmente, recorrer a uma classificação por demais abrangente e
universalizante para dar conta não apenas da diversidade existente, mas também do
conteúdo das mudanças sócio-culturais que o desenvolvimento recente da sociedade
produziu: a participação simultânea em diferentes mundos simbólicos e
86
institucionais, a coexistência entre a exclusão e aspirações em relação a bens e
direitos. (VAITSMAN, 1997, p. 303-304).
Alem disso, é preciso enfatizar, em segundo lugar, a idéia de que não se trata apenas
da simultaneidade em um mesmo espaço sociológico de diferentes realidades e configurações
de valores sem que nenhum se apresente como universalizável, mas sim da participação dos
sujeitos nestas diferenças, ou seja a simultaneidade de diferentes identidades e configurações
de valores no próprio sujeito. O problema que se coloca às ciências sociais é que, dentro do
“realismo” que caracterizaria parte de sua produção, no qual se opera com “um vocabulário
científico herdado da tradição clássica, de linhagem positivista e estrutural” para o qual “um
conceito deveria representar ou corresponder uma dada realidade” as ambigüidades e
ambivalência decorrentes da situação acima exigem uma revisão discursiva.
No que diz respeito a valores ligados a gênero, mesmo quando reconhecida uma certa
impureza nas classificações, esta aparecia como paradoxo ou resíduo, objeto de investigação
por excelência por ser a exceção que justificaria a regra freqüentemente adjetivada como
contradições, e paradoxos e eventualmente até como sobrevivência, no melhor estilo
tayloriano. A centralidade da oposição entre individualismo e hierarquia, por exemplo,
permitiu que se criasse um cenário típico-ideal no qual se articulam importante conceitos
como moderno/tradicional, público/privado e, evidentemente, masculino e feminino :
Estudos sobre práticas e valores de gênero continuaram essa tradição teórica na qual
as categorias Individualismo e hierarquia possuíam centralidade. Embora com
conflitos e fragmentação Interna. bem como incongruência entre práticas e
discursos. mulheres das camadas mais altas haviam rompido com os papéis restritos
à esfera privada, buscando um dos lados de sua realização pessoal no mundo público
da carreira e do trabalho remunerado, por verem a vida doméstica como prisão elou
empreendendo comportamentos afetivo-sexuais fugindo aos padrões típicos da
família conjugal moderna. Em outro sentido, a identidade das mulheres de baixas
renda e educação permaneceria tradicional. Entre essas. o papel de esposas e donas-
de-casa seria valorizado devido ao fato de, além da dupla jornada, elas terem
acesso, no mundo do trabalho remunerado, a atividades mal-pagas, repetitivas e sem
qualquer perspectiva de realização pessoal, o que, no caso das chefes de família,
seria acentuado pela ausência masculina. (VAITSMAN, 1997, p. 304-305).
Outros trabalhos vão enfatizar nas camadas de baixa renda o papel reprodutivo da
mulher na família como lócus privilegiado de formação de identidades e, quando da
87
existência de trabalhos remunerados fora do lar para as mulheres estes seriam vistos tanto
pelos próprios sujeitos homens e mulheres quanto pelas pesquisas como resultado da
precariedade das condições de vida mais do que uma opção ou escolha cultural.
As mudanças nos “valores” vivenciados pelas camadas mais populares tem sido tem
sido interpretadas de diferentes formas indagando sobre a validade da “correspondência
estrutural entre gênero, classe e valores- ideologia”, a autora se pergunta, de que forma as
transformações na família implicam ou não transformações nos valores? O discurso de seus
entrevistados não naturaliza as diferenças entre homens e mulheres, mas reconhece as
relações de poder. A hierarquia não é naturalizada mas vista como algo circunstancial e,
dentro de certos limites, contornável ou negociável. A satisfação emocional passou a ser
critério para a manutenção dos relacionamentos. Assim, as mudanças na família entre as
décadas de 50 e 80 não significariam uma passagem da família tradicional para a família
moderna, mas sim o esgotamento da família moderna, entendida esta como:
[...] entendo por família conjugal moderna uma família hierárquica que se
desenvolveu juntamente com os processos de modernização e industrialização: o
grupo de parentesco formado a partir da união fundada na livre escolha e no amor
o casamento moderno constituído, geralmente pelo do núcleo, mas podendo
incorporar outros agregados - caracterizado pela divisão sexual do trabalho nas
esferas pública ou privada, atribuídas segundo o gênero. (VAITSMAN, 1994, p.63).
Tal esgotamento deveu-se sobretudo pela “ruptura da dicotomia entre papéis públicos
e privados atribuídos segundo o gênero” :
“[...] ao romper a dicotomia entre público e privado atribuída segundo o gênero, as
mulheres desafiaram a meta-narrativa patriarcal legitimadora de um dos pilares da
hierarquia sexual na sociedade moderna.” (VAITSMAN, 1994, p.21)
Não é a superação da hierarquia que instituiu a modernidade da família, pois esta
hierarquia é parte da própria família moderna, e sua superação diz respeito a pluralidade, não
de novos modelos, mas de novos arranjos possíveis pelas articulações de diferentes códigos.
O ponto chave da compreensão das transformações seria a quebra da rigidez da
articulação entre gênero e a distinção público/privado. A industrialização ao deslocar a
produção reforçou a distinção entre publico e privado determinado aos homens os papéis no
88
primeiro e às mulheres no segundo sendo ainda o primeiro a “medida não só de poder,
prestígio e riqueza, mas também de cidadania” (VAITSMAN, 1997: 15) essa divisão
formatou a família conjugal moderna que teve como ingredientes adicionais valores ligados
ao individualismo, ao igualitarismo e à liberdade, embutidos na idéia de livre associação do
casamento romântico, sem que a hierarquia de gênero fosso problematizada.
Afirmar a diversidade é um ato político. A preocupação com a heterogeneidade é
também constitutiva da dispersão da legitimidade por diferentes formas de se experimentar a
vida em família. “A heterogeneidade institui-se, ganhou legitimidade social e cultural”
(VAITSMAN, 1994, p.13). Mesmo a crítica empírico-teórica ao modelo patriarcal é uma
crítica política em grande parte associada a lutas políticas mais amplas.
65
A discussão sobre as diferentes formas que assume a família e as causas e
conseqüência de sua variabilidade servem de introdução a uma outra questão recorrente na
literatura sobre família, que oscila entre duas posições não excludentes, mas de difícil
aproximação, a saber: de um lado os que concebem a família como uma instituição social
ancorada em processos sociais e, de outro, os que concebem a família como um valor, ou seja,
aqueles que vão dar ênfases a processos sociais como determinantes ou aqueles que darão
ênfases à dimensão simbólica da família (VELHO, 1981; ALMEIDA, 1987; MACHADO,
2001; BOURDIEU, 2005). Elisabete Bilac (1995), organiza a bibliografia sobre família no
Brasil temporalmente, da seguinte forma: em um primeiro momento deu-se maior atenção às
famílias da elite e modelos culturais abrangentes; a partir da década de setenta, a ênfase recai
sobre famílias populares e o olhar se volta para as condições econômicas e, a partir de final
dos anos oitenta, aumentam os estudos sobre família de classe média atentos, sobretudo a
visões de mundo e ethos particulares
66
.
65
Ver, por exemplo, as relações próximas que guardam com o discurso feminista em Maria Luiza Heilborn e
Bila Sorj (1999).
66
Ver Tânia Salém (1986).
89
A ênfase na estrutura da família e nas condições estruturais que a determinam, vai
afirmar sua relação com outras esferas sociais: o trabalho, o Estado, o mercado. Tende a
concebê-la como um mecanismo através do qual se garante a sobrevivência de seus membros.
Seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista das relações afetivas ou mesmo da
socialização. A família aparece como um mediador entre o meio - e seus recursos - e os
indivíduos. Nessa perspectiva a estrutura da família é dada pelas condições nas quais esta
pode desempenhar um ou mais dos seus papéis: na reprodução social, na reprodução biológica
e enquanto uma unidade de produção e consumo.
Tal perspectiva enfatiza a trajetória das famílias que teriam deixado de ser unidades de
produção para se tornarem unidades de reprodução da vida social ou, mais especificamente da
força de trabalho.
67
A partir da revolução industrial a família dos trabalhadores teria tido por
“função” a reprodução da força de trabalho e não mais como unidade de produção, enquanto
as famílias burguesas teriam sido reduzidas a função de preservação da propriedade. Nesse
modelo, a industrialização, ou mais especificamente, o assalariamento teria sido um dos
fatores privilegiados de desestruturação da família extensa. O declínio da produção familiar
seja na agricultura, seja em pequenas oficinas domésticas, reduziu um sistema de
remuneração familiar que não apenas permitia a manutenção de uma família extensa,
protegendo os que não tivessem (ainda ou mais) capacidade de trabalho, mas a pressupunha,
pois quanto o maior número de braços dedicados e unidos na produção melhor
68
.
Da mesma forma, o assalariamento e o deslocamento forçado de mão-de-obra de
contextos rurais, pré-modernos para os ambientes urbanos permitiram um afrouxamento dos
67
Para uma discussão sobre a vertente marxista de análise da família e sua contraposição com uma perspectiva
mais próxima da antropologia, centrada na cultura, ver Lia Z. Machado (1986) e Eunice Durham (1980).
68
Maria C. Paoli (1984) mostra como a proletarização no Brasil, nos primeiros anos do século XX, não se deu de
forma individualizada, mas sim através da família, forma privilegiada pela qual as fábricas arregimentavam mão
de obra. A questão das vilas operárias também é indicadora do entrelaçamento entre trabalho e a família. A
autora demonstra, também, como esse processo significou um reforço dos papéis e concepções tradicionais de
família, e não os substituiu os destruiu, ou menos nos primórdios da constituição da classe trabalhadora no
Brasil. Cito isso apenas para sinalizar que estou consciente que se trata de um tipo de abordagem sem a
simplicidade que aparenta.
90
laços da família com a comunidade e do controle das famílias sobre o casamento e a herança.
(SHORTER, s.d.) nestes contextos urbanos marcados por inúmeras diferenças no que diz
respeito à sociabilidade.
Do outro lado da história, falar de família como um valor é tanto falar do valor que
esta assim como seus modelos específicos - ocupa em um meio social (supondo que este
valor e sua importância possam variar de contexto para contexto), como também falar dos
valores que a estruturam internamente. Na primeira perspectiva, os estudos clássicos sobre a
família no Brasil têm demonstrado a importância que lhe é dada na sociedade brasileira bem
como o papel central que seus modelos - o modelo patriarcal, em especial - desempenham na
estruturação das relações sociais, econômicas e políticas. Da mesma forma, a análise dos
valores presentes na organização das famílias tem permitido a compreensão dos limites e
alcance das distinções entre as experiências familiares em contextos e situações distintas,
como por exemplo, nas camadas médias urbanas, entre os pobres e trabalhadores, no meio
rural e frente a situações como separação, nascimento de filhos ou netos, desemprego, entre
outras.
Nas trilhas abertas pelos estudos que problematizam as formas típicas como, entre nós,
se articulariam o moderno e o não-moderno, a distinção individualismo/holismo tem se
constituído em um importante recurso para análise da família no Brasil. Seja para explicar sua
crise, seja para interpretar suas transformações recentes. Do ponto de vista da análise dos
valores presentes na organização das experiências familiares em contextos distintos, ainda que
eventualmente apresente o risco de obscurecer ou reificar as diferenças nas experiências
familiares, por apresentarem semelhanças (DUARTE, 1995)
69
, ou dessemelhanças formais ou
superficiais ou ainda os riscos de se homogeneizar a diversidade que pode ser encontrada por
69
Para este autor, as diferenças residiriam, sobretudo, nas ênfases diferencias com que se atualizam na “família”
ocidental moderna três dimensões fundamentais do parentesco, a saber: a “localidade ou residência, a
corporatividade e o sistema de atitudes”. Para melhor caracterização da idéia de residência, ver, por exemplo:
Meyer Fortes, S/D; para uma idéia da corporatividade, ver, por exemplo, Elisa Reis (1995); e para uma noção do
sistema de atitudes, ver Marcel Mauss (1979).
91
trás de “abstrações” como, por exemplo, “os pobres”, tal distinção tem sido amplamente
utilizada para descrever o que haveria de próprio nas experiências familiares em certos
contextos, bem como explicar desde as formas típicas de violência familiar até estratégias de
reprodução social.
De outro lado, o individualismo presente nas sociedades modernas tem sido visto ora
como potencialmente prejudicial à família, uma vez que iria minar o valor social desta, ora
como um importante articulador de suas mudanças e transformações recentes. Mesmo
considerando-se a disseminação do individualismo moderno, para muitos autores as famílias
permanecem como espaços impregnados de valores não-modernos. Espaços hierarquizados e
relacionais (DUARTE, 1995; VAITSMAN, 1994) ou com traço residuais de hierarquia
(HEILBORN, 2004). Assim caracterizadas, as famílias podem ser vistas, para o bem ou para
o mal, como uma espécie idealizada de refúgio e proteção contra os desgastes dos ambientes
sociais modernos (LASCH, 1991; SENNETT, 1993), ou o espaço da sobrevivência de
práticas autoritárias e repressivas. Especialmente entre as famílias pobres (supostamente
menos afetadas pelos valores modernos), este caráter hierárquico e as práticas de dominação e
subordinação estariam ainda mais presentes, na forma da preeminência do homem sobre a
mulher, dos pais sobre os filhos e dos adultos jovens sobre as crianças e os idosos (SARTI,
1995 e 2003a e b), e com maior propensão a evoluírem para práticas violentas (MACHADO,
2001). Ainda de acordo com Sarti (1995 e 2003a e b), outra especificidade das famílias entre
os “pobres”, seria a vivência desta como um valor moral:
Ter a família como referência simbólica significa privilegiar a ordem moral sobre a
ordem legal, a palavra empenhada sobre o contrato escrito, o costume sobre a lei, o
código de honra sobre as exigências dos direitos universais de cidadania, julgando e
avaliando o mundo social com base em critérios pessoais, dos quais decorre a
dificuldade de estabelecer critérios morais universalistas. (SARTI, 2003a, p. 139).
Tanto do ponto de vista dos debates sobre o valor social da família, quanto do
potencial gerador de conflitos intrafamiliares, os valores associados ao individualismo têm
sido geralmente pensados como componente de uma crise na família.
92
As interrogações atuais sobre as tendências contemporâneas das formas de famílias e
de parentelas, e das modalidades de se conceber o valor da família na sociedade
brasileira, estão inspiradas na grande indagação sobre o futuro da família e das
parentelas no mundo ocidental diante da expansão do individualismo. O valor
atribuído ao individualismo no mundo ocidental parece estar pondo em cheque o
valor atribuído à família como princípio social balizador. Uma solução gica e
cômoda é a de resolver o impasse, dizendo que se trata agora de aumentar o espaço
da “individualização nas organizações familiares”. As tensões das formas familiares
e suas transformações são muito mais profundas. (MACHADO, 2001).
Talvez um dos maiores méritos teóricos dos estudos que se utilizaram, de alguma
forma, da oposição entre moderno e não moderno e correlatos - como recurso para
compreensão do Brasil tenha sido não a criação de ferramentas analíticas próprias, ou mesmo
a atualização e adaptação de contribuições teóricas mais gerais à nossa realidade, mas sim a
compreensão de que a simultaneidade, entre nós, do moderno e do não moderno desloca a
análise da aplicação dicotômica de categorias analíticas de forma mais ou menos mecânica
para uma compreensão mais sofisticada sobre a vida social.
Modelos são “apenas” modelos, o que não é pouco. São referências para a organização
das famílias, mas não são dotados de um poder causal especial, que faça deles causa e
fundamento último da forma como são organizadas as experiências familiares.
Família como instituição e negociação
É parte do senso comum ouvir e dizer que a família é uma instituição social. Mas isso
pode significar muitas coisas. Eunice Durham (1982 e 1983) usa essa idéia para enfatizar o
fato de que família não é natural, mas instituída pelo seres humanos. Ênfase que se faz
necessária, pois uma das dificuldades iniciais ao estudar o assunto é exatamente seu profundo
enraizamento no senso comum, dentro do qual muitas vezes o caráter construído da família se
apresenta obscurecido ou mesmo é negado. Esta autora, assim como Pierre Bourdieu (2005),
considera próprio do senso comum a naturalização de instituições estáveis, isto é, persistentes
ao longo do tempo. E isso é agravado no caso da família por sua estreita relação com
processos biológicos - tais como a reprodução e o sexo - e pela legitimidade que emprestam,
mesmo que indiretamente ou de forma não intencional, à idéia de uma natureza agindo por
93
trás da constituição da família, discursos de pretensões científicas que reforçam a
invariabilidade e universalidade da relação entre família e biologia (DURAHM, 1983).
Superar estas dificuldades, para esta autora, significa em primeiro lugar desfazer as
associações incluídas pelo senso comum na idéia de família demonstrando que tais
associações não representam um arranjo natural e universal, mas sim uma forma particular
através da qual organizar a vida social. Nesses arranjos misturam-se comumente: parentesco;
divisão sexual do trabalho e a forma como se relacionam homens e mulheres.
Uma primeira separação a ser efetuada é a que distingue família e parentesco. Sendo o
segundo uma linguagem, ou seja, uma espécie de código com o qual expressar e pensar certas
relações e fatos. A manipulação dessa linguagem o parentesco propriamente dito molda,
em parte, o que se irá ou não ser chamado de família. Isto significa não considerar família
uma derivação dos fenômenos universais que lhe seriam inerentes (casamento e procriação,
por exemplo), mas sim uma elaboração cultural sobre estes fenômenos que expressa num
determinado código as articulações de três dimensões: afinidade, descendência e
consangüinidade (DURHAM, 1983).
Outra questão que necessariamente deve ser enfrentada é a divisão sexual do trabalho.
Que pode ser entendida como a distribuição diferencial dos papéis próprios aos homens e às
mulheres nas relações de produção. Distribuição esta corporificada em grande parte nos
modelos de família e presente em todas as sociedades, ainda que os conteúdos variem
enormemente para cada uma delas e mesmo em seu interior. Essa distribuição é, também ela,
uma elaboração cultural sobre bases inscritas na biologia, o que não quer dizer que seja
determinada por esta base. As conseqüências desta distribuição são inúmeras, como tem sido
constantemente enfatizado pelos discursos feministas, inclusive moldar as formas como
homens e mulheres têm acesso diferenciado a riquezas e poder sociais.
Por fim, outra questão fundamental a ser discutida quando se quer “desnaturalizar” a
94
família é a formação do grupo conjugal, pois é sempre possível supor uma base biológica por
trás da universalidade com que homens e mulheres se unem. Os eixos constitutivos dessa base
seriam o prazer sexual e a reprodução. Aliás, poder-se-ia até pensar que são duas faces de
uma mesma moeda. No entanto, nos seres humanos a busca de satisfação sexual não se
restringe a reprodução tampouco se limita às fronteiras e prescrições - mais rígidas aqui - mais
flexíveis adiante, impostas pelos modelos de família ao exercício da sexualidade.
Da mesma forma, os laços criados pela reprodução poderiam ser vistos como naturais,
portanto inevitáveis e universais. Mas, segundo Eunice Durham, (1983) a necessidade desta
relação não vai além da relação imediata entre mãe e filhos pequenos, sendo mesmo está
relação passível de variar culturalmente, como bem demonstram Phillipe Áries (1981) e
Edward Shorter (s. d.). Além disso, outros laços nem sempre tão próximos da biologia, tais
como os que vinculam determinados homens a determinadas crianças, são parte da forma
como se moldam as relações - sociais e não necessariamente sexuais - entre homens e
mulheres, exatamente porque é a cultura e não a biologia que se encarrega de os estabelecer:
Ora, o próprio das famílias humanas, em todas as sociedades, é exatamente o
estabelecimento de nculos sociais entre os filhos de uma mulher e homens
determinados, vínculos esses que são criados através de representações (idéias,
sistemas, símbolos) incorporadas nas noções de parentesco e instrumentalizadas pelo
casamento. (DURHAM, 1983, p. 20-21, grifos da autora).
Por fim, cabe ainda lembrar que, ainda que hoje valorizemos culturalmente a idéia de
domesticalidade (BOURDIEU, 2005) associada à família e atribuímos um papel de destaque à
conjugalidade em detrimento de outros laços familiares, não se pode confundir família com
grupos domésticos e residenciais, pois são muitas as combinações entre estes termos possíveis
pela articulação de formas de interdição (tabu do incesto), a atribuição de responsabilidades
paternas a determinados homens e questões relativas a transmissão de riquezas e identidades.
Ainda de acordo com Durham:
Através do tabu do incesto, as sociedades regulamentam o casamento, também
instituição universal, embora varie tanto quanto à forma como quanto à intensidade e
permanência dos laços que cria, assim como quanto ao grau de exclusividade sexual
que pressupõe. O que de mais geral no casamento é que, em todas as sociedades,
95
ele é concebido como pré-requisito para legitimação da prole de uma mulher. Do
mesmo modo que o tabu do incesto destrói a naturalidade das relações sexuais, a
universalidade do casamento como pré-requisito para a procriação destrói a
naturalidade das relações entre a mãe e seus filhos, atribuindo a homens
determinados a responsabilidade para com a prole de cada mulher. (DURHAM,
1983).
Se um primeiro passo na afirmação e definição da idéia de que família é uma
instituição passa pela sua desnaturalização, um segundo é identificar os mecanismos através
dos quais se opera essa institucionalização.
Ao deslocar a institucionalização da família, da natureza para a cultura, é preciso
evitar algumas armadilhas. Uma delas é o esquecimento de sua dupla referência quando se
pensa em “família” como um modelo cultural, pois além de ser esta um modelo cultural
também se refere a grupos sociais concretos, empiricamente observáveis e que são
reconhecidos como família por seus membros e/ou pelo restante da sociedade. Para Bourdieu
(2005) a definição dominante, legítima da família ou da família normal, tem como efeito
contribuir para sua construção. Essa construção passa pela forma como as pessoas
representam a família e como organizam suas experiência a partir dessas representações.
Dito isso, se é verdade que a família é apenas uma palavra, também é verdade que se
trata de uma palavra de ordem, ou melhor, de uma categoria, princípio coletivo de
construção da realidade coletiva. Pode-se dizer, sem contradição, que as realidades
sociais são ficções sem outro fundamento que a construção social e que, ao mesmo
tempo, existem realmente, coletivamente reconhecidas. Em todos os usos de
conceitos classificatórios, como o de família, fazemos ao mesmo tempo uma
descrição e uma prescrição que não aparece como tal porque é (quase)
universalmente aceita, e admitida como dada: admitimos tacitamente que a realidade
à qual atribuímos o nome família, e que colocamos na categoria de famílias de
verdade, é uma família real. (BOURDIEU, 2005, p.126-127, grifos do autor).
Segundo Bourdieu (2005), alguns pressupostos se destacam por trás das
representações que temos hoje da família: tendemos a antropomorfizá-la, ou seja, atribuir-lhe
uma realidade e uma vida própria, e também supomos que ela existe como um universo
separado”, lócus de intimidade e protegido das agruras do mundo externo, e além disso,
associada a uma entidade física que lhe atribui segurança e estabilidade, a residência. O
significado deste ciclo de nomear e assim produzir a realidade nomeada “quando se trata do
mundo social, as palavras criam a coisas, que criam o consenso sobre a existência e o
96
sentido das coisas, o senso comum, a doxa aceita por todos como dada” (BOURDIEU, 2005,
p. 127) - não se esgota nesse movimento nem está circunscrito à família, mas reproduz a
totalidade da realidade social e reforça sua aura de real. A abrangência que tem a família e os
valores que se lhe atribui, fazem dela um princípio de construção da vida social como um
todo. Essa abrangência é garantida pela socialização, em grande parte realizada pelas próprias
famílias.
Esse circuito se reforça por um trabalho de instituição, que visa garantir condições de
integração e persistência que proteja as unidades familiares das flutuações dos sentimentos
individuais afinal, nem todos se identificam com o modelo de vida familiar da mesma
forma
70
. E o faz através de ritos que reafirmam essa unidade ao trabalhar sobre os sentimentos
individuais de acordo com os pressupostos de um modo de vida (amor filial, conjugal,
fraterno, etc.) próprios do discurso familista. Um trabalho que compete a diversas
instituições
71
, bem como às próprias famílias, em especial às mulheres (LASH, 1991;
GIDDENS, 1993; COSTA, 1999). E que tem como uma de suas razões de ser o potencial
desequilíbrio derivado do fato de ser a família também um campo com relações internas de
força física, simbólica e econômica.
Bourdieu prossegue dizendo que família normal não é para todos, pois depende de
condições concretas para sua realização. É um privilégio de fato que se torna privilégio
simbólico, pois têm um papel importante na reprodução social e não apenas na reprodução
biológica. Ela cria as condições de reprodução de capital cultural e econômico. Por fim, nas
sociedades modernas esse trabalho de institucionalização leva também a chancela do Estado.
É ele quem pode dar ares de oficial à família normal através da construção de categorias
70
Ver, por exemplo, as acusações de desvio em famílias em Velho (1986) e as implicações disso em termos de
manutenção de projetos familiares de reprodução social.
71
Ver, por exemplo, o surgimento e desenvolvimento de instituições de aconselhamento familiar e conjugal, com
bases na psicanálise ou na psicologia, nos EUA em Cristopher Lash (1991). O sistema de justiça de família
também divide essa responsabilidade quando se auto-atribui uma função “terapêutica” ou pedagógica, formando,
assim, parte do complexo de poder disciplinar, no sentido que empresta Foucault ao termo.
97
oficiais, assim como gerir as políticas públicas e sociais ou recursos econômicos que tenham
as famílias por alvo, tendo como referência estas categorias.
O Estado, especialmente através de todas a operações do estado civil, inscritas no
registro de família, realiza milhares de atos de constituição que constituem a
identidade familiar como um dos princípios de percepção mais poderosos do mundo
social e uma das unidades sociais mais reais. De fato, bem mais radical do que a
crítica etnometodológica, uma história social do processo de institucionalização
estatal da família mostraria que a oposição tradicional entre o público e o privado
mascara a que ponto o público está presente no privado, no próprio sentido de
privacy. Sendo produto de um longo trabalho de construção jurídico-política, do
qual a família moderna é o resultado, o privado é um negócio público. A visão
pública (o nomos dessa vez com o sentido de lei) está profundamente envolvida em
nossa visão das coisas domésticas e as nossas condutas mais privadas dependem,
elas mesmas, de ações públicas, como a política de habitação, ou mais diretamente, a
política da família. (BOURDIEU, 2005, p.135, grifos do autor).
Se família é uma construção social, os debates e a literatura que a descreve e discute
são parte dessa construção. Tanto o discurso jurídico, quanto suas práticas sociais concretas
são, de alguma forma, informados pelas discussões sobre família. Senão diretamente -
quando, por exemplo, especialistas em família são convidados a se pronunciar sobre questões
legislativas, ou técnicos atuam nos processos particulares (VIANNA, 2002) -, ao menos
através da divulgação que estas discussões alcançam através da mídia em geral.
Códigos individuais e coletivos
A atribuição de limites ao universo investigado tem certamente um peso teórico e um
valor analítico importante. Limitar as discussões a famílias operárias, ou famílias de classes
médias, por exemplo, circunscreve limites para generalizações e abre possibilidades de
comparação. No entanto, esse peso e esse valor não são necessariamente proporcionais à
efetividade das fronteiras tal qual se apresentam para os próprios grupos. A ênfase na
demarcação e no contraste que este procedimento possibilita pode tanto levar a uma
negligência em relação à diversidade interna, levando a supor uma homogeneidade, quanto
pode obscurecer a permeabilidade de tais fronteiras.
Mesmo quando se tem por objeto de estudo aspectos simbólicos ligados à família, e
sua distribuição diferencial em uma mesma sociedade, ou em sociedades diferentes,
98
permanecem as questões relativas à identificação dos marcos através dos quais é possível
estabelecer fronteiras - atribuir limites ao universo investigado - sejam estas definidas pelos
pesquisadores ou pelos próprios pesquisados, bem como as questões relativas à caracterização
deste universo frente a parâmetros teóricos abrangentes, tais como: o que é considerado
moderno ou o-moderno. A capacidade destas fronteiras de restringir ou permitir a
circulação de aspectos simbólicos é algo passível do mesmo questionamento que
freqüentemente acompanha este tipo de abordagem quanto à efetividade das fronteiras
estabelecidas unicamente por marcos sociológicos.
Percorrer o eixo moderno-não moderno sem estar atento aos riscos de restringir ou
deduzir mecanicamente aspectos simbólicos de recortes sociológicos, ou aos riscos da deduzir
recortes sociológicos unicamente de aspectos simbólicos, pode levar tanto a uma reificação do
objeto, como se existissem de fato uma família operária ou uma família de classe média
enquanto entidades pré-determinadas e unívocas, quanto a negligenciar os diálogos e os
fluxos que se estabelecem entre contextos distintos, porém não isolados e, freqüentemente não
homogêneos.
Ainda que possamos concordar com Sylvia Mello (2003, p. 53, grifos da autora) que
“não existe esta abstração que é A FAMÍLIA”, isso não significa, como, aliás, a autora não
está sugerindo, que não se possa teorizar sobre ela; que referências “sociológicas” ou
simbólicas não tenham importância ou mesmo que abordagens que privilegiem uma devam
necessariamente contrapor-se a outra (VELHO, 1981c). Ambas devem ser avaliadas quanto a
sua capacidade heurística tendo por referência o contexto etnográfico investigado, da mesma
forma como o próprio valor heurístico de se estabelecer recortes ao objeto de investigação
deve ser objeto de avaliação.
A abordagem aqui proposta procura valorizar a circulação em detrimento do
estabelecimento de limites estanques. A diversidade é assumida como categoria empírica,
99
parte do universo pesquisado. E a questão da delimitação deste universo não prioriza
analiticamente qualquer recorte que tenha por referência a posição das pessoas envolvidas em
termos de estratificação social e posição de classe, seja por participação em networks variados
ou pela construção de identidades coletivas. E o faz, tanto por opção teórica e metodológica
quanto por exigência das próprias condições da investigação. Uma destas condições diz
respeito às condições próprias da sociabilidade em contextos urbanos.
Dois eventos históricos marcam profundamente o desenvolvimento das cidades e a
construção das diferenças entre as cidades como as conhecemos hoje e a “cidades-estado” na
antiguidade: as transformações no sistema feudal, no final da idade média, e a Revolução
Industrial. Ambos associados ao surgimento e desenvolvimento do capitalismo. Este
desenvolvimento e toda a gama de significados que o cercam foram amplamente tematizados
nas artes e literatura que lhe são contemporâneas e bastante esmiuçado pela historiografia.
Mas é, sobretudo a partir do século XIX, quando inquietações quanto aos rumos do
“progresso” e suas conseqüências imediatamente perceptíveis na cidade se tornam parte
importante da literatura, que o “urbano” ganha visibilidade e status de cenário-personagem na
literatura. Aos poucos, essas inquietações adquirem outra densidade, passam a objetos de
estudos da nascente sociologia, sem que seus contornos deixem de se confundir
completamente com os das grandes cidades
72
. A Revolução Industrial, e as profundas
transformações que gerou na geografia física e social são, em alguma medida,
contemporâneas do surgimento das “ciências sociais” autônomas. Engels - e seu ensaio
clássico sobre a classe trabalhadora na Inglaterra (Engels, 1975) - desenvolve uma leitura de
72
O surgimento das ciências sociais está também ligado a emergência de um tipo de atitude reflexiva individual
que encontra nas cidades modeladas pela modernidade do século XIX o terreno fértil para seu desenvolvimento
Ortiz (2000). Assim, se a cidade foi o grande palco das transformações que deram o estimulo intelectual, para
não dizer pessoal e político, dos pais fundadores das ciências sociais, e nela tais transformações trouxeram
problemas que por sua vez fizeram das cidades laboratórios de testes de métodos e técnicas científicas aplicadas
à compreensão da vida social, elas também forneceram matéria prima humana para a aventura de desvendar a
vida social. Tal como pode ser exemplificado pela figura do Flaner-detetive.
100
tais transformações diretamente do tecido urbano, e pode ser considerado, assim, um dos
precursores dos estudos sociológicos sobre a cidade. No final do século XIX e início do
século XX os problemas, de certa forma inéditos, advindos do crescimento das futuras
metrópoles, e a urgência de enfrentá-los teria dado inicio a reflexões mais sistemáticas sobre
as especificidades que assume a vida nas cidades (Velho, 1976) e a utilização de métodos
científicos de pesquisa. Inaugurando, assim, uma tradição de reflexão sociológica sobre as
cidades.
Várias contribuições podem ser colocadas como precursoras da reflexão sociológica
sobre a cidade e o urbano
73
. Entre eles, a obra de Simmel, em particular seu clássico trabalho:
A metrópole e vida mental. Para Simmel, a intensificação dos estímulos nervosos seria a base
“psicológica” (sic) dos indivíduos que vivem nas metrópoles. Isto se deveria a constantes e
bruscas alternações entre estímulos internos e externos que demandaria da capacidade de
discernimento e discriminação dos indivíduos um dispêndio de energia e consciência maior
do que aquele exigido pelo modo de vida tradicional das pequenas cidades e contextos rurais.
Ao mesmo tempo, nas grandes cidades a freqüência acelerada com que se apresentam
estímulos à consciência dos indivíduos obriga a um menor envolvimento. Simmel apresenta o
contraste com as pequenas cidades a fim de esclarecer a vida psíquica nas metrópoles. Nas
pequenas cidades, a vida está baseada em relacionamentos mais intensos e sentimentais que
operam em uma faixa de consciência mais profunda, cuja recepção e absorção de estímulos
esta ajustada ao ritmo mais lento e padronizado da vida presidida pelo “tradicional” e pelo
habitual. Nas metrópoles, devido à freqüência com que se alternam estímulos vários, o
individuo tem de promover ajustamentos e adaptações que não são possíveis nesse nível mais
“profundo” de consciência, pois, ai as mudanças ocorrem acompanhadas de “choques ou
transtornos”. Nas metrópoles, o homem se relaciona com o mundo exterior com uma parte
73
Ver a coletânea organizada por Velho, 1976.
101
mais “elevada de sua consciência” e menos “sensível”: “Ele reage com a cabeça ao invés de
com o coração”. Isso porque o “intelecto” se adapta melhor e se constitui, assim na forma
menos custosa de se relacionar com o meio externo e, ao mesmo tempo, protege a vida
subjetiva contra o excesso de estímulos externos. À atitude de indiferença e embotamento de
decorrem da necessidade do homem das metrópoles se protege contra esta avalanche de
estímulos Simmel chama de Blasé.
A medida em que a antropologia estendeu seu olhar para além de seus objetos
“tradicionais”, ou melhor, o núcleo da identidade da disciplina se deslocou do estudo de
objetos bem marcados - os “nativos” e o registro de suas culturas, modos de vida, etc., para
um modo de olhar específico, atento principalmente para diferenças e a forma de as descrever
e teorizar sobre elas, as preocupações com contextos “familiares”, tais como as cidades
modernas ganharam legitimidade. Se o que está em pauta é a diferença, ou melhor, a
diversidade, as grandes cidades são palcos privilegiados. E a leitura dos significados que daí
decorem um desafio, sobretudo para a antropologia.
No Brasil, esse movimento esteve associado, em parte, ao estudo das “camadas médias
urbanas”, que vêm, desde o final dos anos 70, se constituindo como objeto de pesquisas em
antropologia. Assim como, de outra parte, ao estudo das periferias e dos movimentos
populares no meio urbano. Com isso, vem crescendo no Brasil as reflexões sobre as condições
particulares que assume a vida nos grandes centros urbanos e os diferentes sujeitos que
emergem desta condição.
No que diz respeito à caracterização da vida nas grandes cidades é quase consenso a
percepção da heterogeneidade como inerente ao meio urbano. Esta heterogeneidade é
conseqüência não apenas do acumulo” de diferenças sociais, geradas pela estratificação
social, migração, divisão social do trabalho, co-existências de diferentes tradições culturais e
religiosas, etc., mas também pela própria pressão da vida coletiva partilhada em um mesmo
102
espaço físico. Uma pressão que gera, a partir de um amplo estoque de contatos e trocas, forças
contraditórias que ao mesmo tempo criam a multidão de anônimos e a necessidade de
singularização individual através da diferenciação de grupos.
Parece haver um progressivo deslocamento da referência por modelos culturais para
uma manipulação mais flexível de códigos tanto a nível social quanto à nível individual, com
uma conseqüente interpenetração de códigos tais como os originados nos discursos sobre a
família. Além da diversidade de formatos que se pode visualizar ao olhar para as famílias no
Brasil, a mesma diversidade também pode ser observada nas articulações de valores que
organizam as relações internas às famílias. Assim, por exemplo, mesmo famílias classificadas
facilmente como “modernas” ou “não modernas” podem vivenciar suas práticas a partir de
múltiplos códigos (HEILBORN, 2004).
Estudando indivíduos de camadas médias, Tânia Dauster (1988), identifica a
construção simbólica da família e do parentesco a partir de diferentes códigos. Os códigos de
“família” e “parente”, articulados pela noção de sangue, hierarquizam as relações familiares,
pois é enfatizado o componente inclusivo e totalizador (DAUSTER, 1988), enquanto o código
afetivo, ao valorizar escolhas e projetos, aproxima-se da valorização do indivíduo nesse
contexto. Apesar da permanência de um peso significativo dado às representações da família
como natural, afirma a autora:
Na construção da concepção moderna de família, o código afetivo é um fator
logicamente estruturante, através do qual os vínculos substanciais adquirem ou não
importância. Como já foi dito, na percepção do grupo de entrevistados, o significado
dos laços consangüíneos pode ser relativizado como eixo para a definição de família,
quando comparado aos laços afetivos. (DAUSTER, 1988, p.108).
Lia Z. Machado (2001), a partir de suas pesquisas com mulheres vítimas de violência
doméstica, relata a simultaneidade do uso de “códigos relacionais da honra” e “códigos
baseados nos valores do individualismo de direitos”.
A co-existência dos dois códigos, o relacional e o individualista, no meu entender
atravessa assim toda a sociedade, constituindo variedades de formas de articulação e
de preeminência de um ou outro código de acordo com as posições e situações de
classe. O desafio metodológico é pensar as diferentes modalidades de articulação e
103
de preeminência de um e de outro nos diferentes segmentos sociais e nas diferentes
temporalidades. Outro é também o desafio de não tornar o sentido do individualismo
monolítico, diferenciando-se, no mínimo, a presença de uma noção de indivíduo
centrada nos direitos de cidadãos e a de outra centrada nos interesses auto-referidos
e no valor da “escolha” e da opção autodirecionada. (MACHADO, 2001).
E é com esse pano de fundo que gostaria de analisar a família como um tipo de código
que organiza aspectos importantes da vida social tais como reprodução biológica, a
socialização, a relação entre os sexos e relações conjugais, entre outros aspectos. Aspectos
que, nós ocidentais, embutimos todos dentro de uma mesma categoria - família. Esse código é
acionado de formas distintas em contextos distintos e a variabilidade de ‘famílias’ pode ser
entendida como aplicação maleável de modelos culturais para adaptação a diferentes ordens
de problemas (DURHAM, 1982).
Mas trata-se de código peculiar. Acionado em condições igualmente peculiares.
Russell Parry-Scott (2004) observou que Lévi-Strauss quando formulou sua teoria sobre a
aliança e a descendência, pensando o parentesco como uma linguagem, tinha em mente a
definição de um átomo de parentesco e relações entre grupos, não entre nações. O que chama
atenção aqui é que família é um código manipulado em pelo menos duas dimensões: social e
individual, colocando contradições ao direito, que podem ser visualizadas no plano das
normas jurídicas.
104
Capítulo 4:
O espírito do casamento
Au fond, ce sont des mélanges. On mêle les âmes dans les choses; on mêle les
choses dans les âmes. On mêle les vies et voilà comment les personnes et les
choses mêlées sortent chacune de sa sphère et se mêlent: ce qui est
précisément le contrat et l'échange. (Marcel Mauss, 1973, p. 173).
Na rotina burocrática de qualquer cidadão são inúmeras às vezes em que lhe é
solicitado especificar seu “estado civil”. O termo “civil” sugere que a resposta deve indicar a
condição ou situação ocupada pelo cidadão na sociedade civil, mas o conteúdo da resposta
indica na verdade, seu estado conjugal, em princípio, uma situação privada. Responde-se aos
diversos formulários em que aparece esta solicitação com categorias pré-definidas ou, ao
menos, selecionáveis em um repertório reduzido, socialmente dado e que tem variado ao
longo dos anos, tais como as juridicamente reconhecidas: solteiro, casado, desquitado,
divorciado, viúvo, ou ainda as informais tais como: amigado, juntado, etc. O repertório destas
categorias, suas transformações e a forma como são acionadas - carregadas em alguns casos
de verdadeiros estigmas sociais - são por si só reveladores de aspectos interessantes ligados às
transformações na forma como as sociedades regulam as relações entre homens e mulheres.
No entanto ainda mais significativo é o fato de a situação conjugal da pessoa ser um indicador
de sua condição civil, ou seja, sua posição na família ser indicativa de um status civil
efetivamente ou apenas nominalmente – distinto.
Visto contra o pano de fundo de uma distinção entre sociedade civil e vida privada, ou
entre público e privado, mesmo usando estas categorias no sentido mais lato possível, isto
carece de alguma de justificação. Pode ser visto tanto como “resquício” de épocas em que as
fronteiras não fossem tão demarcadas e tanto a identidade quanto a igualdade cívicas fossem
mediadas pelo pertencimento a uma instituição ao mesmo tempo social e privada tal qual a
105
família. Uma época, portanto, na qual, a condição social e jurídica da pessoa variava
significativamente em função de sua condição conjugal. Não é preciso ir muito longe, basta
lembrar da capacidade jurídica restrita da mulher casada, questionada somente nos anos 60.
Como também pode ser justificado pelas implicações patrimoniais e solidariedades jurídicas
estabelecidas pelos laços matrimoniais, quando os bens de uma pessoa podem ser usados para
garantir dívidas contraídas pelo cônjuge, etc. ainda questões fiscais e de mercado – análise
de crédito, por exemplo que são diretamente modificadas pela condição conjugal da pessoa
e acabam por incidir sobre as formas de sua inserção no mercado.
O que importa, no entanto, é que se a condição conjugal de uma pessoa é uma
informação pertinente é porque, de alguma forma o “casamento” modifica o status social e
civil do indivíduo, cria direitos e deveres dos cônjuges entre si e para com outras pessoas,
assim como condiciona a participação na vida social. Estabelece, assim, uma ponte de mão
dupla entre público e privado e deve ser, portanto, de alguma forma vigiado pelo Estado e
pelo “mercado”, daí tantos formulários. O fato de o estado conjugal de uma pessoa ser usado
como indicador de uma condição social, econômica, civil ou religiosa, é apenas um dos
fatores que dão visibilidade aos investimentos sociais que regulam a união entre duas pessoas,
e tais investimentos podem ser avaliados pelos esforços feitos pela sociedade para registrá-los.
Os registros são a expressão e o mecanismo de operações de distinção social bem mais sutis
do que a simples oposição legítimo/ilegítimo.
Por um lado, os registros são uma forma de controlar o status social de uma pessoa,
seu acesso a deveres, direitos e à participação na vida social, o “casamento” atribui, portanto
status diferenciados a indivíduos, da mesma forma como a condição social, econômica e
jurídica do indivíduo acaba por condicionar, em maior ou menor grau, o “tipo” de casamento
a que ele tem acesso, volto a isso adiante. Por outro lado, o “tipo de casamento” atribui
também status diferenciado à família por ele criada, em estreita relação com outros
106
operadores de distinção social.
Assim, se é verdade que pode existir uma relação entre os tipos de família e os tipos de
“casamento” que as “institui”, revelada por categorias como “famílias monoparentais”, por
exemplo, é verdade também que as modalidades de união entre pessoas os tipos de
casamento - são articuladas por outros mecanismos sociais. A desigualdade social está em
estreita relação com a diversidade de formas e rmulas como pessoas irão se unir. Se, como
afirma Pierre Bourdieu (2005) família não é para todos, o casamento também não, ou ao
menos determinados tipos de casamento.
Uma primeira idéia que aqui se pretende desenvolver é que: se existe uma correlação
entre desigualdade social e modelos socialmente instituídos de casamento, também uma
correlação entre diversidade social e modelos informais de casamento. Quando se diz, aqui
“modelos socialmente instituídos”, se está querendo designar aqueles que constituem
modalidades reconhecidas socialmente e atualizadas por fórmulas que permitem sua
classificação. Digamos assim, os modelos que ousam dizer seu nome, tais como casamento,
parceria civil, união estável, etc. Quando se diz: “modelos informais”, não se está negando
que também estes sejam, de alguma forma, socialmente determinados, ou estabelecendo
algum tipo de hierarquia, mas sim pretendendo designar aqueles que não se enquadram em
modalidades previamente estabelecidas tampouco possuem mecanismos rituais para sua
publicização.
Trata-se, na verdade de uma distinção fluida que não se assenta diretamente sobre
oposições como formal/informal, legítimo/ilegítimo, pois os modelos podem ser socialmente
instituídos mas não legalmente reconhecidos. Além disso, possui uma dinâmica e fluidez que
é, em parte, constitutiva da diversidade das formas que assume a família e, em especial o
casamento nos dias de hoje. O que hoje não é legal pode sê-lo amanhã. O que ontem não era
socialmente aceito, objeto de estigmas, hoje pode sê-lo.
107
Na medida em que os direitos, deveres e o acesso à vida social são associados a
indivíduos de forma mais independente de sua posição na família ou estrato social, a
determinação do legítimo e do ilegítimo relacionada ao casamento tende a se enfraquecer, os
“registros” se flexibilizam e os modelos socialmente instituídos perdem substância assim
como se diluem os mecanismos de publicização a eles instituídos. Surgem novas variantes de
relacionamentos, de rituais e leis, etc. O viver com outra pessoa cada vez mais se torna uma
“opção” e cuja realização pode se dar de inúmeras formas. Também os critérios para avaliar a
relação são cada vez mais da ordem da satisfação subjetiva e não de adequação a modelos
externos. E isto permite que ele tanto seja vivido como um “estilo de vida” quanto como uma
“estratégia de sobrevivência material”. O que mais importa é que a imposição de modelos
cede espaço à manipulação dos diferentes códigos que compõem a diversidade.
Se a matéria do casamento se tornou plástica, mais facilmente moldável a
circunstâncias sociais e pessoais, sorte diversa parece ter tido seu espírito que, ao abandonar a
carne deixa-a em decomposição. Ao menos é o que se pode depreender das constantes
denúncias de que ele estaria em crise, ou que teria perdido sua essência. O que se está
querendo aqui não é fazer eco a essas vozes, mas sim procurar alguns traços constitutivos
deste “espírito” do casamento - que deslizam entre o sagrado e o legal - através da observação
das formas como este tem sido concebido ao longo da história ocidental.
Evidentemente que não se tentou aqui fazer uma história do casamento, se é que isto é
possível. Não existe uma história linear do casamento, mas sim uma história dos conflitos; de
um lado, os conflitos entre os diferentes objetivos atribuídos ao casamento: aliança,
procriação, ascensão social, manutenção ou circulação de riquezas, prestígio ou poder,
realização pessoal e afetiva, etc, e de outro, conflitos entre poderes que pretendem controlar as
formas como podem ser unidas duas pessoas (BOLOGNE, 1999). Este controle, por sua vez,
não é apenas um controle da instituição “casamento” como um fim em si mesmo, ou como
108
apenas uma forma de se afirmar na competição com outros poderes, mas também uma forma
controlar o corpo social e individual (FOUCAULT, 1990 E 1993).
Observar os investimentos sociais feitos sobre o casamento é um modo de revelar
parte destes conflitos, e os “registros” são um indicador importante destes investimentos, pois
atuam como mecanismos de controle. O batismo, durante a Idade Média, por exemplo, faz de
alguém uma pessoal real, inserida em uma teia de relações familiares e espirituais, submissa
aos desígnios do clero, e de quem se poderia esperar certas condutas e posturas. Não é à toa
que se intensifica a preocupação da Igreja com os registros justamente na época da contra-
reforma. Os registros efetuados pela Igreja católica eram tanto uma forma de controlar quem
era ou não cristão quanto de determinar relações de parentesco que pudessem incidir de algum
modo sobre as alianças e, portanto, estender indiretamente o controle da igreja sobre a
circulação de riquezas e poder, questão esta imprescindível para compreensão da história dos
investimentos sociais sobre o casamento.
A organização oficial, sistemática e secular dos atos que modificam a condição civil:
nascimento, morte, casamento, adoção e divórcio, quando e onde este é possível, surge na
Revolução Francesa, estando regulada por nada menos que 68 artigos do código civil
napoleônico (GILISSEN, 2003). Antes disso, porém, tais registros estiveram a cargo da Igreja
Católica. Os mais antigos datam do século XIV, na Itália, se tornando prática recorrente a
partir do século XVI, e generalizada pelo Concílio de Trento, no contexto de reação da Igreja
Católica à Reforma Protestante. De acordo com John Gilissen:
A igreja favoreceu – tardiamente – a manutenção de registros em que o clero
anotava certos atos da vida religiosa das pessoas. -lo por diversas razões,
nomeadamente para conhecer o parentesco espiritual resultante do baptismo (o
casamento entre padrinho e madrinha era proibido), para controlar a legitimidade
dos filhos, para consignar as dádivas feitas à igreja quando do casamento ou dos
óbitos (obtuária). (GILISSEN, 2003, p. 561).
No entanto, mesmo antes da Revolução Francesa, sinais do interesse não apenas
da Igreja, mas também do Estado na produção e manutenção desses registros.
A autoridade civil intervém no problema da manutenção dos registros paroquiais a
109
partir do séc. XV (Bolonha, 1454). Em França, a ordonnance de Villers-Cottrêts,
desde 1539, prescreve aos curas a manutenção de registros de baptismo (para provar
o “tempo da maioridade ou da menoridade”) e de certos óbitos. A ordonnance de
Blois, de 1579 (retomando as disposições do concílio de Trento), tornou obrigatória
a manutenção dos registros de casamento pelos clérigos. A Grande Ordonnance de
Colbert, de 1667, sobre o processo civil, completada por uma Declaração de 1736,
põe de uma regulamentação bastante minuciosa sobre a conservação de registros:
impõe uma confirmação dos registros por um notário, a manutenção de um segundo
exemplar, o depósito anual de registros no escrivão das justiças reais, a proibição aos
juizes de receberem outras provas do estado civil. (GILISSEN, 2003, p. 562).
A transferência de responsabilidade sobre os registros dos atos civis, da Igreja para o
Estado, se consolida NA França com a Constituição de 1791, nela, por exemplo, o nascimento
e não mais o batismo serve de certificação da existência - legal - de um indivíduo. Nesse
contexto, determinar a idade das pessoas passa a ser um ato administrativo pleno de
conseqüências (ARIÈS, 1981). As disposições da Constituição de 1791 são retomadas no
Code Civil napoleônico de 1804 e, através dele disseminaram-se para vários outros países.
Os registros civis, modernamente, sinalizam uma passagem do controle sobre os atos
mais significativos da vida das pessoas, da autoridade religiosa para a autoridade civil, uma
passagem marcada por tensões e contradições. Essa passagem revela também uma outra: de
uma condição marcado por séculos de “união estável” entre Igreja e Estado, senão pacífica, ao
menos possível dada a fórmula “dai a César o que é de César, e dai a Deus o que é de Deus”
para outro em que predomina o Estado em detrimento da Igreja. Nesse divórcio, a Igreja perde
parte do que lhe havia sido reservado na partilha de bens da Idade Média.
Descrevendo as transformações nas fórmulas para resolução de conflitos desde a
Grécia antiga até a era moderna, Michel Foucault (1999) identifica na Idade Média o
surgimento de importantes mecanismos que se tornaram a base do desenvolvimento do direito
ocidental moderno. O contexto em que aparecem estes novos mecanismos foi marcado pelo
surgimento das monarquias nacionais e a concentração em torno delas de riquezas, prestígio e
poder principalmente poder armado (POGGI, 1981). Intimamente associado a este processo
esteve a criação de um sistema público de justiça capitaneado pelo poder real e, muitas vezes,
baseado na força: “Guerra, litígio judiciário e circulação de bens fazem parte, ao longo da
110
Idade Média, de um grande processo único e flutuante”. (FOUCAULT, 1999, p. 64). Ou
ainda:
Pode-se dizer, esquematicamente, que um dos traços fundamentais da sociedade
feudal européia ocidental é que a circulação dos bens é relativamente pouco
assegurada pelo comércio. Ela é assegurada por mecanismos de herança, ou de
transmissão testamentária e, sobretudo, pela contestação belicosa, militar,
extrajudiciária ou judiciária. Um dos meios mais importantes de assegurar a
circulação dos bens na Alta Idade Média era a guerra, a rapina, a ocupação da terra,
de um castelo ou de uma cidade. Estamos em uma fronteira fluida entre o direito e a
guerra, na medida em que o direito é uma certa maneira de continuar a guerra. Por
exemplo, alguém que dispõe de força armada ocupa uma terra, uma floresta, uma
propriedade qualquer e, nesse momento, faz prevalecer seus direitos. Inicia-se uma
longa contestação no fim da qual aquele que não possui força armada e quer a
recuperação de sua terra obtém a partida do invasor mediante um pagamento.
Este acordo se situa na fronteira entre o judiciário e o belicoso e é uma das maneiras
mais freqüentes de alguém enriquecer. A circulação, a troca de bens, as falências, os
enriquecimentos foram feitos, em sua maioria, na alta feudalidade, segundo esse
mecanismo. (FOUCAULT, 1999, p. 63).
As fórmulas “costumeiras” de resolução de conflitos, próprias do direito Germânico e
uns poucos resquícios do direito romano, formaram a base do direito europeu até os séculos
XI e XII (POGGI, 1981; FOUCAULT, 1999; WEBER, 1999 e GILISSEN, 2003). foram
significativamente modificadas, por um lado, pelo desenvolvimento de um direito Canônico e
a “retomada do direito Romano” e, por outro, pela apropriação estatal das funções judiciais a
que se refere Michel Foucault.
Há, portanto, uma dupla tendência característica da sociedade feudal. Por um lado há
uma concentração de armas em mãos dos mais poderosos que tendem a impedir sua
utilização pelos menos poderosos. Vencer alguém é privá-lo de suas armas,
derivando daí uma concentração do poder armado que deu mais força, nos estados
feudais, aos mais poderosos e finalmente ao mais poderoso de todos, o monarca. Por
outro lado e simultaneamente as ações e os litígios judiciários que eram uma
maneira de fazer circular os bens. Compreende-se assim, porque os mais poderosos
procuravam controlar os litígios judiciários, impedindo que eles se desenvolvessem
espontaneamente entre os indivíduos e porque tentaram apossar-se da circulação
judiciária e litigiosa dos bens, o que implicou a concentração das armas e do poder
judiciário, que se formava na época, nas mãos dos mesmos indivíduos.
(FOUCAULT, 1999, p. 64).
A função judicial é, assim, apropriada pelas monarquias emergentes, institui-se o
monopólio da violência legítima, ou seja, a violência “legal” (WEBER, 1999). Neste
contexto, foram criados novos procedimentos de estabelecimento da verdade a cargo de um
111
corpo jurídico estatal, com juizes e procuradores “funcionários” do Rei
74
.
Além disso, os outros mecanismos privilegiados para por em circulação riquezas e
poder, e, de certa forma evitar ou minimizar os efeitos da guerra - as alianças - não se
tornaram imediatamente ou exclusivamente objeto de apropriação das monarquias nascentes,
mas sim de outro “poder”, exatamente aquele que inspirou às monarquias suas tendências
centralizadoras (POGGI, 1981) e emprestou-lhes alguns de seus métodos de administração
(FOUCAULT, 1999): a Igreja Católica.
O lento processo através do qual isto ocorre será brevemente descrito a seguir. Por ora,
pode-se ressaltar que tanto a criação de um direito estatal (que se confunde com a própria
criação dos Estados), comprometido com a acumulação de riquezas, quanto o controle
exercido pela Igreja sobre as alianças matrimoniais usurparam, por assim dizer, funções antes
desempenhadas pelas unidades familiares, pois eram elas que controlavam as alianças e eram
também os principais “sujeitos” dos litígios e de sua resolução, tal qual se pode depreender
pela observação da chamada “solidariedade familiar”.
O termo solidariedade familiar encobre distintas realidades. O grupo de pessoas que se
representam como ligados de alguma forma e que estabelecem a partir dessa ligação laços de
solidariedade foi e ainda é um importante organizador social e político, sobretudo nas
sociedades “primitivas” e durante a Idade Média. Designados como clãs, gens, linhagens, etc.
A solidariedade familiar se manifesta de diferentes formas, uma das mais evidente teria sido a
vingança privada. Independente de ser ou não um pano de fundo mítico que antecede e
legitima as formas estatais de resolução de litígios e a “modernidade” penal, a solidariedade
familiar e a “vingança privada” estiveram presentes tanto no direito germânico anterior às
invasões bárbaras, quanto na maior parte da Idade Média, e mesmo até o século XIX, senão
74
Ver, também Max Weber (1999).
112
ainda hoje
75
.
Nas circunstâncias históricas em que predominou a solidariedade familiar como
“unidade” de direito socialmente significativa ela se figurava como ativa - quando, por
exemplo, todos ou qualquer um dos “parentes” são responsáveis por vingar a morte de um dos
seus - ou passiva - quanto todos ou qualquer um dos “parentes” são responsabilizados pelos
atos de um dos seus. Nessas condições, os “litígios” envolvem as famílias e apenas as
famílias. O poder público - se este existe - ou a comunidade apenas assistem o desenrolar dos
fatos de forma - quando muito - a garantir sua regularidade, de acordo com os costumes ou
leis, sem, no entanto, definir ou condicionar o resultado final dos embates (FOUCAULT,
1999; GILISSEN, 2003). De fato, situações como esta estiveram na base de guerras privadas
nas Cidades da Europa Ocidental dos séculos XII à XIV, e foram decaindo na medida em que
o Estado se fortalecia
76
: “quando a autoridade se desenvolve, a solidariedade [familiar]
diminui” (GILISSEN, 2001, p. 564).
Por outro lado, se o casamento sempre foi objeto de regras sociais e controles
comunitários, aos poucos, no ocidente, foi se tornando objeto de investimentos sociais
específicos, primeiramente por parte da Igreja Católica, e depois por parte do Estado.
Pode-se dizer, que enquanto as famílias foram células do poder, como em Roma, ou na
Grécia, ou mesmo entre as tribos bárbaras, o casamento foi, assim como os litígios, um
problema comunitário, mas não público, pois além de não se poder aplicar com justeza a
distinção entre público e privado moderna, não eram objeto de intervenção extrafamiliar. Ou
seja, não eram significativos os investimentos de autoridades tais como o Estado ou a Igreja, e
o controle estava a cargo dos próprios chefes de família, ainda que os interesses da
comunidade fossem considerados e estes chefes, de alguma forma, encarnassem o poder
75
Ver, por exemplo, Elisa Reis (1995).
76
Ver, por exemplo, a análise de Eduardo B. Viveiros de Castro e Ricardo B. Araújo (1978) sobre o romance
Romeu e Julieta, de Sheakspeare.
113
religioso e “civil”. É nesse sentido que se pode afirmar que o casamento era, antes da
intervenção da Igreja Católica e dos Estados modernos, essencialmente um problema familiar:
Nas próprias civilizações onde se reservava à união de um homem e de uma mulher
o seu carácter estritamente privado, as estruturas sociais (Estado, religião)
desempenharam um papel capital. Entre os Romanos, tal como entre os Germanos, o
casamento relevava antes de mais do direito familiar. Mas a gens romana e a tribo
germânica desempenhavam um papel extremamente importante na organização
social. Através do poder do paterfamilias romano e do mainbour germânico, era a
autoridade civil ou religiosa que intervinha na conclusão de um laço sagrado. O pai é
ao mesmo tempo o chefe, o juiz e o sacerdote da família; as leis primitivas terão
muitas vezes de inclinar-se diante dos seus direitos imprescritíveis. (BOLOGNE,
1999, p. 373).
O casamento passa a ser alvo de investimentos sociais na medida em que se torna um
contrato entre famílias e quando estes contratos passam a interessar a outros que não as
próprias famílias (CASEY, 1992). Somente com o advento dos Estados modernos; a ascensão
do capitalismo e a conseqüente derrocada da sociedade tradicional, o casamento se tornou
objeto de investimentos públicos (SHORTER, s/d), no sentido moderno, por ser uma via
privilegiada de ação sobre a população e sobre a transmissão de riquezas e poder (Foucault,
1993). Para isso foi preciso transformar os mecanismos de poder. Os dispositivos médicos
serviram bem à primeira intenção, tornado a família um meio de intervenção, enquanto à lei
coube melhor o papel de regular a propriedade estendendo seus braços à organização
familiar
77
. Mas nem sempre o Estado se interessou da mesma maneira pelo casamento, assim
como o poder familiar não cedeu facilmente suas prerrogativas na regulação dos casamentos,
tampouco a Igreja desistiu do que levou séculos para construir. Assim,
A história do casamento, sobretudo numa civilização que sofreu influências
contraditórias, é uma história de conflitos permanentes entre os diversos poderes que
pretendem controlar esta instituição fundamental. Em primeiro lugar, as famílias,
que querem conservar o controlo das alianças, as quais dizem respeito ao mesmo
77
Um ponto de contato direto entre o controle da população e a legislação, que não aquelas implicadas em
questões patrimoniais, foi o movimento eugenista. No Brasil, este incipiente movimento elegeu como uma de
suas estratégias, não sem contestação interna, a lei como instrumento para efetivação e divulgação de suais
idéias. Apresentando inúmeros projetos sem muito sucesso - tentando instituir o exame pré-nupcial como
forma de regular a uniões desejáveis e indesejáveis e proibindo qualquer tipo de união consangüínea
(CASTAÑEDA, 2003). A constituição de 1934 estabelecia como condição previa para registro dos casamentos
exame de sangue e de sanidade mental, uma lei de 1941 (decreto lei 3.200 de 19 de abril) estabelecia que o
casamento de colaterais de 3º grau deveria ser previamente autorizado por dois médicos designados pelo juiz
responsável pelo registro do casamento, que submeteriam os noivos a todos os exames físicos e de sanidade, sem
os quais não se realizaria o casamento.
114
tempo à transmissão do patrimônio, do sangue que faz a pureza da raça e o orgulho
da família aristocrática, do culto doméstico outrora associado ao dos antepassados.
Acolher um estranho é sempre uma operação delicada, susceptível de muitas
rejeições. Para que as famílias abandonem as suas prerrogativas neste domínio, será
necessário que o modo de aquisição das riquezas se altere, que o culto dos
antepassados periclite, que se esbata o orgulho de classe. Isto será possível nas
classes (operários, camponeses), nos regimes (socialistas, republicanos) ou numa
época (século XX) em que a riqueza seja definida mais pelo trabalho do que pela
herança, em que o mérito tenda a prevalecer sobre o nascimento. (BOLOGNE, 1999,
p. 374).
Todas as discussões a seguir têm alguns pressupostos. Em primeiro lugar, a regulação
do casamento, seja por parte da Igreja, seja por parte do Estado, tem por objeto e ferramenta a
distinção entre tipos de “casamento”, esquematicamente pode-se dizer: de um lado as relações
legítimas, e de outro as ilegítimas. Excluído-se, evidentemente, as relações passageiras. De
fato, segundo Jean-Claude Bologne (1999), a maior parte das sociedades antigas conheceram
estes dois (ou mais) modelos. Pode-se, ainda, de forma igualmente esquemática, afirmar a
existência de um casamento oficial, com implicações patrimoniais e filiação legítima e outro,
“inferior”, que não gera os mesmos direitos. É, no entanto, somente em determinadas
circunstâncias, e sob a influência e ação da Igreja Católica, que esta duplicidade vai ser
combatida em nome não da afirmação das qualidades “superiores” um modelo sobre outro,
mas da existência de um modelo único e exclusivo, ou seja, que não aceita alternativa. Em
segundo lugar, toda a história do casamento, se é que faz sentido falar em uma única história,
é um jogo em que o controle sobre as alianças e as sucessões é disputado pelas famílias, pela
Igreja e pelo Estado. Em primeiro lugar, o controle sobre o casamento cabe à própria família,
mesmo na antiguidade, quando se afirma o casamento como algo privado e dependente do
consentimento do casal, o controle está nas mãos da família, no caso, do pai, que
desempenha o papel de religião e de Estado. (COULANGE, 1975; BOLOGNE, 1999).
Quando o poder da família decai - ou ao menos, do paterfamilia - intervem a religião, a
comunidade e por fim o Estado. Sempre em combinações variadas e sem necessariamente
apresentar algo como uma evolução, com começo, meio e fim. Cada “poder” tem não somente
seus “modelos”, mas também seus código próprios.
115
E, por fim, em terceiro lugar, os mecanismos de tal controle estão associados às
fórmulas através das quais tornar pública a relação. Assim, estes pressupostos têm por
implicação que não se irá aqui discutir o casamento em si, mas sim as formas pelas quais a
sociedade o celebra, institui, oficializa, enfim, o reconhece e, mais do que chancelar a união
entre duas pessoas, classificá-la. E, nesse quadro, observar os mecanismos através dos quais
as relações conjugais foram se tornado alvo de investimentos sociais específicos e como,
nesse processo vão se distanciar ou se aproximar direito e família, contrato e o sacramento,
indivíduo e sociedade, mesclando seus diferentes códigos.
Casamento na igreja: desprezo, sacralização e direito
O contexto no qual se desenvolveu a tentativa da Igreja Católica de instituir um único
casamento foi marcado pela coexistência de umas poucas tradições romanas sobreviventes às
invasões bárbaras e fórmulas do direito germânicos. No que diz respeito ao casamento,
segundo o historiador do direito John Gilissen (2003) do século V ao século IX, na Europa
Ocidental, três concepções estiveram presentes: uma proveniente do direito romano, outra do
direito germânico e outra construída pela Igreja Católica.
As concepções romana e germânica, que coexistiram durante algum tempo em
virtude do princípio da personalidade dos direitos, fundiram-se no direito Canônico
por volta dos séculos VIII e IX. Casamento e divórcio continuam a ser regidos pelo
direito da igreja até o séc. XVI e, em muitas regiões, mesmo até os séculos XVIII e
XIX. Em contrapartida, o regime de bens entre esposos é exclusivamente regido
pelo costume laico, na Idade Média e na Época Moderna. (GILISSEN, 2003, p.
564).
No direito romano, abstraindo-se as variantes de suas diferentes fases, desenvolveu-se
uma perspectiva que defendia ser o casamento, assim como o divórcio, atos essencialmente
privados e contratuais não se exigindo, portanto, grandes formalismos, a não ser o necessário
para caracterizar a manifestação da vontade das partes, essa tida como elemento essencial.
No direito romano do Baixo Império, o casamento é um acto essencialmente privado
e contratual; existe a partir do momento em que os esposos estão de acordo em
serem, daí para o futuro, marido e mulher. Trata-se de uma convenção puramente
consensual, despida de qualquer formalismo, não sendo exigida a coabitação;
Ulpiano disse: nuptias non concubitus, sed consensus facit (Digesto, 35, I, 1).
(GILISSEN, 2003, p. 564).
116
Da mesma forma, não eram necessários grandes formalismos para se dissolver a união
quase sempre de forma assimétrica, pois, como na maior parte das sociedades antigas, o
divórcio existia na sociedade romana principalmente sob a forma do repúdio da mulher pelo
marido ou pelo pater famílias deste (GILISSEN, 2003, p. 564). No entanto, houve também,
em alguns momentos a possibilidade de repúdio unilateral feito tanto pela mulher como pelo
marido, bastando que um dos dois manifestasse a vontade de se divorciar, e desde que não
houvesse havido transferência da tutela da mulher - de seu pai para seu marido. Esta
possibilidade, associada a generalização dos casamentos em que não havia tal transferência
levou, segundo John Gilissen (2003), no fim da República e durante o Império, a um grande
número de casamentos desfeitos, e conseqüentemente a uma crise de natalidade que teria
levado Justiniano a coibir os divórcios
78
.
No entanto, é preciso compreender melhor o caráter privado atribuído ao casamento
em Roma, pois tal caracterização refere-se mais à não intervenção de forças extrafamiliares,
que irão marcar de forma tão profunda o casamento posterior, do que a ausência de expressão
pública ou de interesse por parte da sociedade e autoridades romana no regime matrimonial. O
casamento é, na verdade um problema “familiar”, mas que não deve ser medido pelas
categorias público/privado com o sentidos que passaram a expressar posteriormente. Os
limites impostos ao casamento romano, que o mantinha na alçada das familiais eram dados,
por um lado, pelo consensualismo, ou seja, a afirmação do consenso expresso dos noivos
como fundamento da união e, de outro, pela forma de transmissão da autoridade sobre as
mulheres.
Ainda que em Roma não fosse prescrita uma fórmula oficial, o consenso como
fundamento da união matrimonial colocava problemas quanto ao modo de tornar explicito e
78
Da mesma época, o Cristianismo primitivo prega a indissolubilidade do casamento como uma forma de
proteger as mulheres do repúdio de seus maridos. No cristianismo primitivo as mulheres tinham importância
considerável na comunidade (Dias, 2004). Curiosamente, hoje defende-se o divórcio como uma forma de
proteger as mulheres de seus maridos.
117
inequívoco este consenso, além do que, na Roma arcaica e, residualmente durante a República
e o Império, o status jurídico da pessoa - da mulher em especial e, do homem de modo menos
significativo - se modificava por ocasião de suas núpcias, sendo, portanto, marcado por rituais
que tanto assinalavam esta mudança quanto sinalizavam diferentes “modalidades” de
casamento.
As transformações históricas da sociedade romana modificaram o casamento em
muitas direções, no entanto, o que prevalecia quando do colapso do Império, e que depois,
consolidado na forma do direito compilado por Justiniano, veio a ser objeto das reflexões
jurídicas da Idade Média foi o resultado uma trajetória que consolidou progressivamente o
consensualismo e a manutenção da autoridade paternal sobre a mulher casada. Já no final do
Império. Segundo John Gilissen:
Nada resta, portanto das antigas formas de casamento que faziam cair a mulher sob a
manus (poder) do seu marido (casamento cum manu): casamento religioso
(confarreatio), casamento por compra (coemptio), casamento por prescrição
aquisitiva da manus (usus). O tipo usual é, portanto, o casamento sine manu, ficando
a mulher juridicamente no seu grupo familiar original. São, no entanto, requeridas
certas formalidades para que haja “justas núpcias” (justae nuptiae); tratava-se, antes
de tudo, do estabelecimento de um domicílio comum, sendo a mulher conduzida ao
domicílio do marido (deductio uxoris in domum mariti), espécie de entrega da
mulher, acompanhada de cerimônias. (GILISSEN, 2003, p. 565).
Na historiografia do direito é bastante comum ocorrer uma sobre-valorização da
herança romana, a partir da presença de certos caracteres externos do direito romano em
nossas legislações e em nossos “rituais” jurídicos, como, por exemplo, o uso cerimonial de
expressões em latinas o. O mesmo ocorre no que diz respeito à regulação jurídica do
casamento romano cuja forma ritual que teria, em parte, “sobrevivido” até hoje. De fato,
alguns dos costumes romanos mantiveram-se entre as populações romanizadas mesmo após as
Invasões Bárbaras. Outros foram posteriormente resgatados” pelo direito canônico, ou ainda
“redescobertos” na Renascença. A própria Igreja Católica adotou como seus alguns destes
rituais, em um processo seletivo no qual se procurou afastar quaisquer práticas ligadas ao
paganismo. Comentando esta herança, afirma Jean-Claude Bologne:
118
O anel, o véu e a coroa são os principais ritos que se transmitiram da Roma antiga às
sociedades ocidentais. As civilizações antigas acrescentavam numerosos ritos
religiosos ou supersticiosos que são sem demora proibidos pelas autoridades
eclesiásticas. Das cerimônias matrimoniais romanas, conservam-se as formas civis
tradicionais, e em particular a junção das mãos direitas (dextrarum junctIo). Na
ausência de contratos por escrito, costume oriental que só será introduzido em Roma
no século I, a junção das mãos é o elemento constitutivo do casamento. Comprovada
em todos os povos do Mediterrâneo (Gregos, Judeus, Romanos...), adquire uma
importância capital em Roma, pelo menos desde Terêncio (século II a. C.), que já
lhe faz alusão. Não é uma cerimônia religiosa: é efectuada pela pronuba, ou
paranympha, uma mulher de boa reputação que serve de “casamenteira”. A mão
direita da esposa é colocada na do marido e eles trocam o seu consentimento, que é,
por si, suficiente para realizar o casamento. Com efeito, nenhum rito formal, nem
mesmo a junção das mãos, é obrigatório desde que o consentimento dos noivos
esteja assegurado. (BOLOGNE, 1999, p.65. grifos meus).
Da própria citação acima se pode depreender algumas características que tornam
profundamente distinto o casamento, tal qual construído pela Igreja Católica, do casamento
romano, como por exemplo, o caráter não religioso deste e ausência de um rito obrigatório
que atribuísse validade à união. Ainda sobre esta “herança”, afirma Paula B. Dias:
(...) o facto de encontrarmos, nos dias de hoje, sobrevivências justificadoras de uma
visão de continuidade, não altera a evidência de que estas se concentram numa
dimensão externa cristalizada em ritos sociais que pouco representam da substância
original. O casamento e as relações entre os dois sexos sofreram, entre a
Antiguidade clássica pagã e a actualidade, profundas fracturas que desfocam
qualquer identificação entre essas duas épocas.
Algumas destas fracturas ocorreram na Antiguidade Tardia e podem ser atribuídas à
influência do cristianismo. De facto, podemos dizer que hoje temos um ritual
essencialmente romano, mantido como forma exterior de uma substância ideológica
cristã e de uma dimensão jurídica enformada por um Estado cristianizado. (DIAS,
2004, p. 100).
Dentre as modificações mais importantes, do ponto de vista aqui adotado, podem ser
destacadas: a intervenção de forças extrafamiliares e a tentativa de impor um único tipo de
casamento. Ambas atuando principalmente através do estabelecimento de fórmulas através
das quais o casamento passa a adquirir validade.
Já no fim do Império Romano, começa a se desenhar novas configurações do público e
do privado (SENNET, 1993; DUMONT, 1993), a Igreja e não mais apenas a religião -
estende sua autoridade ao interior das famílias (COULANGES, 1975) e mesmo ao íntimo dos
indivíduos. Por outro lado, a tentativa da Igreja Católica de instituir um único casamento
pressupõe uma igualdade que esbarra na manutenção de desigualdades sociais, ligadas à
estratificação social romana, à diversidade étnica do Império e acrescida da oposição entre
119
paganismo e cristianismo. Assim, se a igualdade somente pode ser garantida fora deste mundo
nos termos de Dumont - com o casamento cristão irá ocorrer algo parecido algum tempo
depois, será preciso sacramentá-lo, ou seja, um casamento único pode encontrar
fundamentação para além deste mundo, como se verá posteriormente. Mas, antes que isso
ocorra muita coisa terá se transformado, por exemplo, extensão da autoridade da Igreja às
vidas privadas. Sobre esta extensão e suas contradições com o casamento pagão, afirma Paula
B. Dias:
Estamos pois muito longe da religiosidade pragmática e pública do do ut des do
mundo pagão. Este novo Deus não se contenta com episódicos sacrifícios rituais,
exige a entrega total de todas as esferas da vida do indivíduo. A vida privada tornou-
se objecto de interesse para as autoridades religiosas, terreno de intervenção de um
Estado progressivamente cristianizado e das autoridades episcopais. (DIAS, 2004, p.
101).
E ainda:
Se esta intervenção política ou religiosa sobre a vida privada nos parece pouco
característica, refiramos que essa não era a tradição clássica pagã, sobretudo numa
primeira fase. Estado e religião pouco interferiam na esfera privada. Era sob a alçada
do paterfamilias que, através de uma diversidade de procedimentos, se geria a vida
privada dos indivíduos. Além disso, com o cristianismo, este controlo externo da
vida privada convivia com o insistente apelo, nascido de uma concepção negativa da
sexualidade humana, às virtudes da castidade e da continência, de que resultava uma
sobrevalorização das formas celibatárias de vida. Seriam estas as duas características
mais marcantes que resultaram dos novos tempos cristãos, as duas em choque nítido
com a tradição pae o modo de conceber a liberdade e a dimensão privada dos
homens. (DIAS, 2004, p. 101).
A despeito das transformações da sociedade romana permaneceu, como de resto em
toda a antiguidade, uma distinção entre casamento legítimo e formas não legitimas de união.
No caso de Roma, entre justas núpcias e concubinato, para os homens livres e contubernium,
para os escravos. No Império, o primeiro dava origem a prole legítima e transmissão de bens e
status, o segundo não, ainda assim, algo que não requeria necessária intervenção de forças
externas às famílias. Na antiguidade de um modo geral, e em Roma de modo particular,
afirma Jean-Claude Bologne:
O casamento continuava a pertencer à ordem do privado e visava essencialmente
atribuir um estatuto aos filhos, ou seja, permitir uma justa transmissão do
patrimônio. Muito naturalmente, os que não possuíam bens para transmitir (os
escravos) não precisavam de “núpcias legítimas”. O concubinato, que permitia uma
união estável, mas não legítima, com uma mulher de quem não se desejava ter um
120
herdeiro, não era infamante. O divórcio e a adopção forneciam uma resposta
indirecta ao espinhoso problema da esterilidade. O adultério do homem oferecia uma
porta de saída ao amor ou ao desejo sexual frustrados pelo sistema. O da mulher, que
punha em perigo a legitimidade da descendência, era severamente condenado. A
lógica interna era notável. (BOLOGNE, 1999, p. 378).
De forma ainda mais geral, de acordo com James Casey (1992) em contextos onde
prevalece o trabalho como fonte de riquezas, associado principalmente ao cultivo da terra, e
os filhos da mulher são incorporados à mão de obra do grupo a que esta pertence, o controle
sobre a sexualidade da mulher é menor. Onde prevalece a propriedade alienável como base da
riqueza, e esta é transmitida aos filhos, o controle da sexualidade da mulher é maior. O caso
da Roma do Império é semelhante a essa segunda opção. Por um lado a escravidão,
principalmente associada a guerra, desloca a importância da geração de “mão de obra” e,
conseqüentemente do interesse comunitário sobre os casamentos, somente quando o número
de “romanos” ficou perigosamente reduzido diante dos estrangeiros tais questões ganham
novos ares. Foi preciso, ao mesmo tempo proibir o divórcio para estimular o nascimento de
prole legítima e tornar os estrangeiros cidadãos de Roma.
A questão da propriedade coloca em pauta o modo como distinguir entre diferentes
formas de união, àquela que irá incidir sobre a transmissão de bens seja na forma de trocas ou
doações entre os cônjuges, seja na forma de herança. É através do estabelecimento de algum
tipo de cerimônia para o casamento que se pode, ao torná-lo público, assegurar esta distinção.
No entanto, se o casamento romano é, finalmente, um acto puramente consensual,
ele distingue-se do concubinato pela vontade recíproca de fundar um lar, de procriar
e de educar os filhos. A principal dificuldade na matéria residia na prova desta
vontade; é por isso que, de facto, o casamento era freqüentemente rodeado duma
certa pompa (por exemplo, o cortejo dos esposos e das suas famílias pelas ruas da
cidade) e acompanhado de certos ritos: entrega de um anel, redacção de um
documento escrito (nomeadamente para registrar a entrega do dote: instrumentum
dotale). (GILISSEN, 2003, p. 565).
Não se deve, no entanto, atribuir essa ritualística e, sobretudo, a persistência de alguns
dos seus elementos à continuidade entre as práticas da antiguidade e as atuais. Se, por um
lado, tornar pública a relação permanece como um divisor entre as relações legítimas e as
ilegítimas as formas que assume essa publicização e o controle sobre ela escondem
121
divergência importantes em relação à antiguidade, que não se resume à Roma.
Entre os povos germanos, abstraindo-se sua enorme diversidade, prevalecia a
monogamia a não ser, em alguns casos, para os nobres e chefes, uma vez que o casamento era
parte da política de alianças entre tribos e clãs. Diferentes interpretações evolucionistas dão
conta de que entre estes povos, em época primitiva, teria havido o casamento por rapto, com
os homens subtraindo as mulheres de outro clã. Para evitar a guerra entre clãs, no caso de um
rapto, seguia-se um pagamento para resgatar a vingança, que posteriormente evoluiu para o
sistema de casamento por compra da noiva, antecipando-se o pagamento a partir de um
acordo prévio entre os clãs:
- (...) em primeiro lugar verificam-se os esponsais (sponsalia), ou seja, o acordo
entre os dois chefes de família, mediante o pagamento do preço, chamado pretium
nuptiale (preço nupcial), mundskat (valor do múndio) ou ainda widem. O
consentimento da rapariga não era necessário; talvez o do noivo. Os esponsais m
certos efeitos jurídicos: o noivo que recusa a sua esposada expõe-se ao pagamento
de um wehrgeld; a lei dos Alamanos e a dos Bávaros exige mesmo do esposado
inconstante que declare, sob juramento e com auxílio de 12 co-juradores, não ter
encontrado qualquer defeito na noiva abandonada, mas que tinha sido arrastado pelo
amor de uma outra mulher!
- seguidamente, a cerimônia nupcial, que consistia na entrega material da noiva
(traditio puellae) ao marido, entrega seguida da cópula. Esta entrega era geralmente
acompanhada de festas e da realização de certos ritos e gestos simbólicos,
nomeadamente de um cortejo nupcial, introduzindo publicamente a mulher na
cabana conjugal, seguido da recolha dos noivos ao leito, na presença de
testemunhas. Alguns destes ritos sobreviveram no folclore. (GILISSEN, 2003, p.
566).
Independente da justeza dessas interpretações, as invasões germânicas, com o fim do
Império Romano do Ocidente, disseminaram não apenas rituais pagãos associados ao
casamento, mas uma concepção de fundo sobre o mesmo, contra os quais a Igreja Católica
teve de se confrontar ou a elas se adaptar na tentativa de instituir um modelo único de união.
Uma destas práticas que revelam a concepção que tinhas os “povos bárbaros” diz
respeito à existência de uma etapa previa ao casamento propriamente dito os esponsais -, na
qual os chefes de família acordam a união e combinam os pagamentos relativos. O fato de que
isso se dava sem o consentimento da noiva e possivelmente também sem o consentimento do
122
noivo
79
acentua ainda mais o controle que as famílias tinha sobre as alianças. Os
“pagamentos”, por seu turno, variavam enormemente, ora como uma indenização, ora como
pagamento pela noiva ou pelos direitos sobre ela, feito à noiva ou a família dela, ora circulava
da família da noiva para a do noivo, era pelo preço da virgindade
80
, etc.
Assim como em outras civilizações da antiguidade, os povos germânicos também
operavam com uma distinção entre tipos de união, não necessariamente classificáveis como
legítimos e ilegítimos, mas associados ao status social dos indivíduos e com conseqüências
variáveis quanto ao estabelecimento de alianças e à circulação de riquezas.
(
BOLOGNE,
1999; CASEY, 1992 e
GILISSEN, 2003). De acordo com John Gilissen:
Existia também na Germânia uma forma de casamento bastante corrente entre as
famílias nobres, o casamento frilla ou friedelehe; consistia numa espécie de
concubinato costumeiro, pelo qual um membro de uma família de nascimento
elevado se ligava com uma pessoa de condição inferior; o friedelehe está na origem
do casamento morganático, designação provinda do morgengabe ou dádiva matinal.
(GILISSEN, 2003, p. 566).
O direito Germânico conhecia apenas uma possibilidade de anulação dos casamentos o
repúdio da mulher pelo marido. Possibilidade que não se estendia à mulher, uma vez que esta
estando sob o domínio de seu marido, não dispunha de autonomia para se desligar dele, caso a
mulher viesse a abandonar o marido poderia até, em certas circunstancias, ser condenada a
morte (GILISSEN
, 2003
). No entanto, mesmo o repúdio da mulher pelo marido não poderia
ser tão simples:
Mas o repúdio não se fazia sem risco: a mulher repudiada pela família do marido
procurava naturalmente a protecção da sua família natural; esta podia considerar-se
no direito de vingar a ofensa feita à honra de um dos seus antigos membros, donde
talvez decorresse uma guerra privada. O repúdio apenas podia, portanto, basear-se
em motivos legítimos: adultério da mulher, atentado da mulher à vida do marido,
esterilidade, feitiçaria, etc.
(GILISSEN, 2003, p. 566).
Dessa mistura entre rituais e práticas romanas, “bárbaras” e cristãs, a Igreja católica
veio aos poucos impor uma tentativa de sistematizar e universalizar uma concepção sobre o
79
Um edito de Clotário II (584-629), sob influência da igreja, exige o consentimento da mulher; mas, na prática,
isto parece não ter sido seguido (GILISSEN, 2003).
80
Para uma análise sociológica das variações ver James Casey (1992) capitulo V.
123
casamento, um casamento único, que se confunde tanto com a idéia de torná-lo um
sacramento quanto com as práticas de uniformização legal associadas à construção do direito
canônico.
Em um contexto no qual se confundia, o contubernium, de origem romana e a
friedelehe
81
, de origem germânica, todos considerados casamentos inferiores, porém não
desonrosos, a Igreja Católica vai afirmar um único casamento e não “graus” de casamento, e
o faz a partir da manipulação dos códigos do sagrado e do direito Canônico. Este teve grande
importância na Idade Média
82
, pela própria importância da Igreja Católica - única instituição
medieval de alcance universal e pretensões ecumênicas mas também por ter este uma base
escrita que permitia sua disseminação por sobre os costumes locais, mantidos pela tradição
oral (POGGI, 1981; GILISSEN, 2003). Foi a “Idade do Ouro da codificação do direito”
(CASEY, 1992), pois conheceu intensa atividade legislativa, principalmente sobre questões
teológicas e matrimoniais. A legislação cristã sobre o matrimônio se formou a partir de
adaptações aos ambientes locais, com seus costumes e problemas, e não por uma fórmula
pronta, decretada de baixo para cima (CASEY, 1992).
Além disso, esta base escrita pôde ser objeto de reflexões eruditas e reformulações
constantes, dando origem a práticas hermenêuticas que condicionaram todo o
desenvolvimento do saber jurídico posterior, assim como também da filosofia e das ciências.
Essas reflexões, partiam dos textos bíblicos, do Novo Testamento e das Epístolas de São
Paulo, assim como também das interpretações dos “doutores da Igreja” e da própria legislação
canônica produzida nos concílios ou pelos decretos papais. Sua importância pode ser avaliada
81
De açodo com Jean Claude Bologne (1999, p. 415) Contubernium (latim): casamento entre escravos, ou entre
uma pessoa livre e um(a) escravo(a). Uma forma inferior de casamento, que se resume
à
coabitação (cum +
taberna, “cabana”). Friedelehe: para os antigos Germanos, casamento (ehe) por amizade (friedel), legítimo, mas
inferior ao Muntehe. Concubinagem, ou comcubinato (pág 419): estado de duas pessoas que vivem juntas sem
serem casadas.
82
Segundo John Gilissen (2003), o direito canônico conheceu três fases; uma fase ascendente –dos séculos III a
XI; apogeu, nos séculos XII e XIII e uma fase de decadência, a partir do século XIV e sobretudo a partir do
século XVI, em função da Reforma e da laicização do Estado.
124
pela exclusividade com que a Igreja pode legislar e decidir sobre litígios nos assuntos ligados
a casamentos e divórcios durante séculos. Aliás, da própria atividade de interpretar casos
particulares e avaliá-los diante da doutrina da igreja, ou seja “administrar” conflitos e
gerenciar as práticas sociais em aspectos tão cruciais como nascimentos, casamentos e morte,
surgiram também reflexões incorporadas às discussões eruditas formando assim parte de sua
doutrina. As atividades dos tribunais eclesiásticos não podem ser, portanto, consideradas
exclusivamente teóricas, excluisvamente marcada pelas questões políticas envolvendo a Igreja
e as monarquias nascente ou descolada da prática, mas como uma espécie de laboratório.
Por um lado, os concílios, e sua metodologia própria de interpretação, o a
materialização da doutrina da Igreja Católica e o espaço de negociações e conflitos. Suas
interpretações são não apenas sugestões, mas sim leis. Por outro, nessa mesma época se
desenvolve a chamada retomada do direito romano e o surgimento das universidades, também
elas fonte de intensa produção de saber jurídico e religioso. No século XII, a leitura própria
feita pela Igreja não só do direito Romano, mas do próprio significado do direito e do
estabelecimento de leis, tem em relação ao casamento alcance significativo, pois permitiu
armar uma oposição fundamental: às antigas formas de casamento germânicas, reguladas
pelos costumes e controladas pelo poder patriarcal, a Igreja opôs o direito escrito de
inspiração romana e a doutrina do consensualismo ali desenvolvida.
As condições dentro das quais a Igreja desenvolveu suas pretensões de instituir um
casamento único, com um rito único, condenando estas formas “inferiores” estiveram
associadas tanto a suas pretensões de gerir as sucessões e as alianças quanto condicionadas
pela manutenção da escravidão.
O que mantém tanto na tradição eclesiástica quanto na legislação civil, a necessidade
de vários graus de casamento é a persistência da escravatura durante toda a Alta
Idade Média. A doutrina da Igreja, neste ponto, parece ser clara: sendo todos os
homens iguais, não se pode distinguir dois tipos de casamento perante Deus segundo
a condição dos noivos. É a opinião dos primeiros séculos, que assimilam o
contubernium dos escravos ao casamento. Mas, muito rapidamente, a Igreja tem de
se ajustar às realidades sociais. no século II, Atenágoras explica que os cristãos
casam em conformidade com as leis estabelecidas pelo imperador; os casamentos
125
com escravos, proibidos pela lei civil, exigem (e é o único caso) uma licença do
bispo para se realizarem. A Igreja dos primeiros séculos, que se propaga entre os
escravos a quem promete a igualdade perante Deus, não é a Igreja triunfante do
império de Constantino, e ainda menos dos reinos germânicos que, também eles,
conhecem a escravatura. (BOLOGNE, 1999, p. 29).
A existência de graus distintos de casamento irá se alterar com a substituição da
escravatura pela servidão, pois o servo ainda que não tenha condições de vida muito
diferentes das dos escravos, goza de um estatuto jurídico que lhe permite possuir, herdar,
casar, coisas sérias demais para ficarem apenas sobre o controle dos costumes. Mas é, no
entanto, somente com a decomposição da estrutura social pré-moderna, e o advento de uma
sociedade de indivíduos que, pelo menos na Europa, surgem as bases da unificação do
casamento, primeiro sobre o abrigo de leis naturais, depois sobre o abrigo da legislação civil.
Comentando a parte final dessa história, afirma Jean-Claude Bologne:
O desaparecimento teórico e progressivo da desigualdade social retira, com efeito,
qualquer justificação aos diversos tipos de casamento: não é necessário o
contubernium, uma vez que já não existem escravos (os servos, que lhes sucederam,
terão direito ao mesmo tipo de casamento que os seus senhores); não é necessário
o concubinato, uma vez que não classes sociais (as ordens que as substituem
são, em princípio, abertas). O casamento único corresponde à visão ideal de um
homem único. É certo que a sociedade continua a estar dividida em compartimentos,
mas o mesmo não se pode dizer dos modelos que a descrevem, e o casamento já não
pode ser dividido dessa forma. (BOLOGNE, 1999, p. 378).
No entanto, o caminho até isto não foi isento de percalços. Inicialmente, o cristianismo
primitivo manteve-se distante do casamento, aliás, mais do que isso o desprezava. A
valorização da castidade e a virgindade, assim como o repúdio aos ritos de pcias,
associados ao paganismo, fizeram com que até pelos menos o século X as núpcias figurassem
nas preocupações da Igreja como um mal a ser evitado, quando muito justificado. Exatamente
diante da necessidade de justificá-lo, que se irá recorrer aos Testamentos, Antigo e Novo.
De facto, toda a tradição cristã primitiva concorda com São Paulo em considerar o
casamento como um mal menor, quando não é possível manter a castidade e se corre
o risco de sucumbir
à
fornicação (relações sexuais fora do casamento). “Mais vale
casar que arder”: a célebre fórmula do Apóstolo servirá de divisa aos teólogos
medievais do casamento. Mas na escala dos valores, a virgindade consagrada a Deus
é muito superior, bem como a continência guardada pelos viúvos. Logo que haja
relação sexual, suspeita de prazer e, portanto, de pecado. (BOLOGNE, 1999, p.
73).
Compreende-se ainda mais a necessidade de justificar tais idéias diante da constância,
126
no direito das sociedades antigas de sansões aos que permanecessem em celibato (CASEY,
1992; BOLOGNE, 1999 e GILISSEN, 2003). Ainda que pudessem ser localizadas,
simultaneamente, diferentes vertentes que, de uma ou outra forma condenando a sexualidade
vão afirmar uma hierarquia da “fornicação ao casamento e da continência à virgindade”, ou
ainda pregar a “união livre e a comunidade sexual” (BOLOGNE, 1999). Ainda de acordo com
este autor, várias dessas vertentes, como a dos essênios, tiveram forte influência nos
primórdios do cristianismo e assinalam, em parte, uma continuidade entre este e moralidades
marginais ao judaísmo e à sociedade romana. Mesmo entre os cristãos, uma pluralidade de
seitas irá polarizar o início do desenvolvimento de uma doutrina matrimonial entre “visões
demasiado pessimistas ou demasiado optimistas do casamento” (BOLOGNE, 1999).
São Paulo, ele mesmo doutor da lei Judaica e cidadão romano, teria sido o primeiro a
dar consistência teórica ao casamento cristão, mesmo não estando livre de ambigüidades que
deram flexibilidade para a Igreja Católica adaptar as teses paulinas às suas pretensões de
institucionalização de seus rituais e às suas transformações internas. As referências de São
Paulo ao casamento articularam sua inevitabilidade com a condenação que lhe estaria
reservada no Novo Testamento. Condenação esta por estar o casamento organicamente ligado
à sexualidade e, talvez amesmo por isso, oposto à vida mística, de qualquer forma, algo
próximo demais deste mundo. A igreja primitiva vai valorizar a virgindade e a castidade,
negando, em um primeiro momento, qualquer valor intrínseco ao casamento.
E desse contexto que irá surgir, nos séculos IV e V, a mais influente teoria da Igreja
sobre o casamento: os três bens do casamento segundo Santo Agostinho: descendência,
fidelidade e sacramento. O primeiro, bastante antigo, vai justificar o casamento pela
finalidade de descendência, ainda que estivesse ancorado nos próprios textos bíblicos,
encontrou opositores entre aqueles que defendiam serem tempos diferentes os do Antigo e do
Novo Testamento. Nas épocas do primeiro haveria de fato a necessidade de povoar a terra,
127
na época do segundo, mais próxima do “fim dos tempos” não fazia tanto sentido povoar a
terra condenada enquanto se espera pela salvação. Havia assim a necessidade se afirmar a
procriação como um “bem” no interior do casamento até mesmo como parte da afirmação de
uma doutrina “oficial” da igreja contra as inúmeras seitas heréticas que proliferaram nos
primeiros séculos do cristianismo – ora condenado qualquer tipo de relacionamento, ora
pregando a união livre. Aqui não se trata apenas de uma polícia do casamento, mas sim de
uma política do casamento.
Por outro lado, circunscrever a sexualidade ao interior do casamento, conseqüência da
afirmação do segundo bem” coadunava-se bem tanto com a desvalorização da sexualidade
dos primórdios do cristianismo quanto com uma moral sexual-matrimonial herdada de Roma.
A Igreja católica fez suas algumas das concepções romanas mescladas pelo individualismo e a
“rejeição do mundo” cristã (DUMONT, 1993). No Império teria se desenvolvido uma nova
mentalidade conjugal, mais espiritualizada que vê no casamento um modo de realização
afetiva e no casamento estável um modelo de vida apetecível. De acordo com Paula Dias
(2004) isto teria contribuído para formação do que Paul Veyne chamou “invenção de uma
moral sexual e conjugal”. Esta mudança de mentalidade teria acontecido, de forma
independente da contribuição cristã, e mais como conseqüência de melhoras na condição de
vida das mulheres: “o cristianismo não fez mais do que integrar e apropriar-se da moral das
classes superiores do paganismo e divulgá-la como sua, contribuindo para a permanência
deste modelo no futuro” (DIAS, 2004: 113). Ainda de acordo com esta autora:
Fruto das leis de Augusto que não foram, na sua essência, revogadas pelos seus
sucessores, fruto da divulgação dos casamentos sine manu que, aliada ao ius
trium liberorum, trazia vantagens reais às mulheres no plano patrimonial e
tornava o divórcio menos atractivo, da divulgação das correntes estóicas e de
teorias médicas postas em voga por médicos helenistas, o estádio final do
paganismo concebeu uma forma de vida privada que, nos seus aspectos
externos, se assemelha ao propugnado pelo cristianismo: o domínio de si próprio
eleva-se como virtude, a sexualidade pré-matrimonial, a
homossexualidade
e
mesmo o amor conjugal excessivo passam a constituir fontes iguais de
perturbação interior, de desordens da natureza condenáveis pela filosofia
estóica.
(DIAS, 2004, p. 111-112)
128
Independente das bases em que se desenvolveu a concepção cristã do casamento, esta
sempre foi marcada por uma desconfiança da sexualidade. Com Santo agostinho, a idéia de
fidelidade retoma o “remédio” prescrito por São Paulo e significa auxiliar um ao outro a
“carregar sua própria fraqueza”, evitando dessa forma os perigos de uma sexualidade livre e
do adultério. Para completar a doutrina da Igreja, foi preciso opô-la as coisas deste mundo, ou
sejam sacralizar o casamento. E é esse terceiro “bem” que acabou por se tornar quase
sinônimo de casamento cristão.
O terceiro bem do casamento é o sacramentum, que não corresponde ao
“sacramento” moderno. O termo, que traduz o grego mystêrion (“mistério”), é
haurido em São Paulo (Ef 5, 32), que qualifica desta forma o casamento de Cristo e
da Igreja, concretizado pelo casamento cristão. Ainda não se trata de uma
participação na graça divina por virtude de um rito definido no seio de uma série
limitada, mas do “signo visível de uma realidade invisível”. É pelo amor conjugal
que o homem e a mulher medem o amor que une Cristo ao conjunto dos cristãos.
Compreende-se imediatamente a firmeza manifestada desde sempre pela Igreja
perante o problema do divórcio: quebrar este laço que revela o de Cristo e dos seus
fiéis pode assemelhar-se a uma apostasia. Como se se renunciasse ao próprio Deus...
No pensamento de Santo Agostinho, o amor conjugal recíproco é o principal bem do
casamento; a procriação mais não é do que uma conseqüência natural da sociedade
conjugal, e não um elemento constitutivo. Posteriormente, a tônica será posta na
procriação e no sacramento, declarados “bens primeiros” do casamento, sendo o
auxílio contra a fornicação apenas um bem secundário”. Secundário, mas
importante, pois proibirá, por exemplo, a anulação de um casamento estéril (este
ainda permite o cumprimento do dever conjugal), enquanto a impotência, que destrói
os três bens do casamento, poderá tornar-se uma causa para a anulação.
(BOLOGNE, 1999, p. 80).
A influência do “doutor da Igreja” parece ter sido enorme. Suas teorias sobre o
casamento reaparecem depois em outros teólogos, tais como São Tomás de Aquino, agora no
século XIII, em um contexto ainda mais marcado pela desconfiança em relação à sexualidade
e a desvalorização do casamento.
Desde São Tomás de Aquino, estes três bens, que haviam servido para reavaliar o
casamento, tornam-se quando muito uma “desculpapara um estado desvalorizado
pela sexualidade. Para além destes três objectivos, o “acto conjugal” é imperdoável;
no próprio interior do casamento, uma sexualidade que gira unicamente em torno do
prazer (sola libidinis e delectationis causa), desprezando, portanto o primeiro bem,
torna-se um pecado mortal. O pensamento de Santo Agostinho não ia tão longe.
(BOLOGNE, 1999, p. 80).
Mas, nem de teologias e teorias se formou a concepção da Igreja Católica sobre o
casamento. O processo de seqüestro do casamento por parte da Igreja pode ser visualizado
pelas formas como esta instituiu ritos próprios para às núpcias. Nessa trajetória, indicadores
129
importantes são a Benção nupcial, em um primeiro momento e o estabelecimento de leis
canônicas para “normatizar” os casamentos em uma fase posterior.
A indissolubilidade é imposta no século IX. Mas a impossibilidade de separação era
contornada pela anulação dos casamentos. Um sofisticado sistema de interdições, por
exemplo, entre parentes até o sétimo grau, podia ser manipulado pelas autoridades religiosas
de forma a tornar nulos certos casamentos ou obter dispensas para validar outros. Desenvolve-
se uma teoria extremamente bem elaborada dos chamados os impedimentos dirimentes
levam a nulidade - e impedimentos proibitivos cujo sansão é de caráter espiritual. A porta
principal de entrada pela qual a Igreja estendeu seu controle aos casamentos foi, de certa
forma, sua porta de saída, ou seja, as alternativas para a indissolubilidade dos casamentos e ao
mesmo tempo as razões pelas quais ela poderia se negar a validá-los.
Desde as origens, a aristocracia, e particularmente a nobreza de corte, dificilmente se
submeteu à legislação eclesiástica em matéria de casamento. Se os conflitos abertos
são raros, as tensões e as pressões são permanentes entre os poderes civil e
eclesiástico. Duas concepções do casamento opõem-se aqui: a aliança entre famílias
e esse “grande mistério” que deve reflectir o amor de Cristo para com a sua Igreja.
Percebe-se que a aristocracia tenha exprimido a sua desconfiança perante ao amor,
que, desde a Idade Média, tentou excluir do casamento para o confinar a um diverti-
mento palaciano. (BOLOGNE, 1999, p. 101).
O aumento da influência da Igreja sobre os casamentos se deu pelas margens, uma vez
que o cristianismo primitivo esteve inicialmente de costas para o casamento. A valorização da
castidade e a virgindade, assim como o repúdio aos ritos de núpcias, associados ao
paganismo, afastavam a Igreja de qualquer ritual nupcial. Mas, como desvalorizar
teoricamente o casamento não evitava a continuidade das práticas “pagãs”, muitas vezes
impostas pelas famílias aos jovens convertidos, ou, no caso das mulheres, base do
cristianismo primitivo, submetendo-as ao domínio de seus maridos, na prática a Igreja acabou
por ser forçada a uma atitude mais efetiva que a simples negação. De acordo com Toubert,
citado por Bologne: “Não dúvida (...) que a celebração das núpcias constituía então, em
todo o ocidente, uma espécie de baluarte da cultura popular, um ponto privilegiado de
resistência à cristianização” (BOLOGNE, 1999, p. 123). Mesmo ao longo da Idade Média, a
130
doutrina da igreja católica, construída aos poucos e as práticas “judiciais” desenvolvidas por
ela para pôr em prática suas determinações, não eram apenas uma questão teológica. Assim:
No sistema feudal, o objectivo do casamento não é representar a união mística de
Cristo com a sua Igreja, mas mais prosaicamente “preservar (...) a permanência de
um modo de produção”. As discussões sobre os sacramentos afiguram-se muito
teóricas numa sociedade que tem, acima de tudo, de assegurar a transmissão do
feudo. Na prática feudal, para evitar a divisão infinita das terras, verifica-se
freqüentemente que o casamento solene reservado ao primogênito, enquanto os
outros filhos, se não entram nas ordens eclesiásticas, ficam limitados a formas
menos nobres ou menos duradouras de uniões. O concubinato ou a prostituição, os
amores ancilares encarregam-se de controlar uma sexualidade que não pode
manifestar-se oficialmente. (BOLOGNE, 1999, p. 95).
Mas as práticas, assim como a doutrina da Igreja, não surgiu da noite para o dia. A
primeira prática da Igreja a ter alguma influência sobre os casamentos foi a benção dos padres
aos noivos, somente muito depois foi instituída um cerimonial próprio, sem o qual o
casamento não teria validade, assim como um conjunto de leis para regular a licitude e
validade dos casamentos e das formas de sua anulação ou dissolução. A benção nupcial, no
entanto teria surgido mais por uma demanda dos fiéis que por imposição da Igreja. Aliás, os
primeiros concílios da Igreja Católica desaconselhavam tal prática, assim como
desaconselhavam qualquer envolvimento dos padres nos assuntos ligados ao casamento. De
acordo com Jean-Claude Bologne:
Com efeito, o ideal cristão primitivo continua a ser a castidade, e a virgindade. O
casamento, o menor dos males, parece pouco compatível com a exigência cristã. São
Jerônimo, nos finais do século IV, ainda considera indigno dos padres que
desempenhem um papel nas núpcias: “Que aquele que prega a continência não
suscite núpcias. Por que razão forçaria uma virgem a casar, aquele que no
Apóstolo que os que têm mulheres devem comportar-se como se as não tivessem?”.
Pretende, sem dúvida, com isso, à semelhança de Santo Ambrósio e Santo
Agostinho na mesma época, servir de intermediário entre os jovens cristãos e os seus
pais, por vezes pagãos, para concluir os esponsais. No seu espírito, trata-se
certamente de prudência: se com o tempo os esposos não se entenderem, poderiam
amaldiçoar quem os uniu. Esta desconfiança, no Ocidente, vai ao ponto de recusar o
papel de tutor que os bispos orientais aceitaram relativamente aos jovens cristãos.
Na ausência do pai, o padre pode efectivamente ser escolhido para casar a órfã!
(BOLOGNE, 1999, p. 81).
De fato, muitos padres se recusavam a aplicar benção aos noivos e sua participação
nas cerimônias é apenas na condição de um convidado importante: “não é portanto na
qualidade de oficiantes que os padres são convidados para as núpcias, mas na de convidados
ilustres, pastores da comunidade e testemunhas de confiança”. (BOLOGNE, 1999, p. 81-82).
131
A Benção se tornará obrigatória no Império Romano do Oriente somente no início do século
X, e no Ocidente no século XVI (BOLOGNE, 1999, p. 81). Antigos costumes pagãos teriam
levado na Gália, por exemplo, a que esta benção fosse solicitada aos padres para ser aplicada
ao leito nupcial, o que evidentemente aproximava demais o sagrado e o profano, para não
dizer o sagrado ao sexual para que fosse amplamente disseminada e aceita, apesar de uma
certa popularidade (CASEY, 1992; BOLOGNE, 1999). Sua variante menos agressiva era
aplicar a benção em solo sagrado, tal qual teria havido em Roma ainda no século IV,
provavelmente de forma clandestina e isolada. Somente depois de estabelecida uma base
teórico-teológica sobre o casamento cristão, é que foi possível tentar a generalização de sua
expressão ritual.
Falta, porém, um elemento essencial para que a cerimônia religiosa se imponha: a
sua generalização. Carlos Magno tornou obrigatória, através de um capitular de 802,
a apresentação perante um padre para indagação das condições de validade. Mas a
bênção que parece impor (et tunc cum benedictione jungantur) não poderá tornar-se
uma forma legal de casamento enquanto os clérigos se recusarem a dá-la a toda a
gente. Um outro capitular é mais explícito: depois de ter prescrito a investigação do
padre, apela à bênção, “se a jovem for virgem”. Manifestamente, a Igreja intervém
aqui na qualidade de registro civil e não para abençoar sistematicamente os casais.
(BOLOGNE, 1999, p. 83).
Mas, se o casamento é possível a todos, nessa época a Igreja ainda não conhece seu
sofisticado sistema de interdições matrimoniais. A benção não, pois esta é um “privilégio” dos
incorruptos, ou seja, dos que chegaram puros ao casamento. A contradição entre o rigor das
restrições à aplicação da benção aos noivos e as demandas pela generalização de uma
ritualística própria da Igreja foi em parte solucionada posteriormente pela idéia de
sacramento, agora entendido como a transposição ritual a uma participação na graça divina.
Ainda de acordo com Bologne:
Nos finais da época carolíngia, a paisagem européia parece então uniformizar-se. A
bênção é efectuada na igreja, ao mesmo tempo que a cobertura dos noivos com o
véu, segundo o rito romano. Por um lado, porém, não se trata ainda do rito essencial
do casamento: a união das mãos, a entrega da aliança e da carta nupcial, continuam a
cumprir-se fora da igreja, sob a direção do pai da noiva. Por outro lado, a Igreja não
renunciou à sua intransigência, e os padres lamentam-se de que sejam tão raras as
missas de casamento com bênção: são muito poucos os que chegam ao casamento
“incorruptos”, lastima Jonas de Orleães, falecido em 843. Como fazer respeitar
então o capitular de Carlos Magno que, em 802, tornou a nção nupcial
teoricamente obrigatória? A contradição é patente, na época carolíngia, em que se
132
ensaia a primeira legislação religiosa sobre o casamento. Padres mais complacentes,
ou mais compreensivos, concedem a sua bênção aos que se voltam a casar.
(BOLOGNE, 1999, p. 84).
A vida sempre foi marcada por rituais que sinalizam a passagem de um status social a
outro. Durante a Idade Média, a Igreja associou esses rituais ao paganismo e procurou ou
combatê-lo ou assimilá-los. Quando da segunda alternativa, o fez, sobretudo tornado-os
sacramentos. Assim, o batismo, a comunhão, a crisma e, por fim, a extrema-unção formam
um ciclo completo de vida para o fiel e podem ser dados uma única vez. Assim, por
exemplo os que tinham casado anteriormente mas não haviam recebido o sacramento
matrimonial, não eram ainda batizados quando desta primeira união ou haviam casado com
não-cristãos, poderiam não ser mais “puros”, mas mantinham ainda a possibilidade de um
novo casamento, agora sacramentado. Tornar o casamento um sacramento possibilitou uma
manipulação de leis que abriram a possibilidade de instituição de um casamento único. Mas
foi também um ato político e sócio-econômico, pois a primeira menção ao casamento como
um sacramento surge em um decreto do Papa Luciano III contra os hereges em 1184
(BOLOGNE, 1999, p. 123), e e tornou-se doutrina oficial da igreja no Concílio de Florença,
em 1438 (CASEY, 1992).
Uma das conseqüências da sacramentalização do casamento foi abrir as portas para
que a Igreja adquirisse exclusividade e legitimidade para regular os casamentos, divórcios e
anulação. Coisa que ela fez através do direito canônico. Pelo menos até a Reforma
Protestante. Outra coisa foi afastar do mundo os fundamentos do casamento, permitindo assim
que este pudesse transitar com desenvoltura em meio às contradições terrenas.
Por fim, vale ainda ressaltar que o casamento sempre foi um importante rito de
passagem, ao assinalar, dependendo do contexto, entrada na vida adulta; acesso à sexualidade
legítima, a participação na vida social geral e mesmo ao atribuir ao indivíduo um “estado
civil” (CASEY, 1992; BOLOGNE, 1999; SEGALEN, 2002; CARRERAS, 2004). A
importância disso pode ser avaliada pela comparação entre a desvalorização do casamento nos
133
primórdios do cristianismo e essa valoração do estado gerado pelo casamento alguns séculos
mais tarde:
Um projecto de direito dos costumes para a cidade de Gand, redigido em 1546,
testemunha bem este novo estado: “Ninguém se tornará senhor de si mesmo, se não
for pelo do casamento, pela emancipação, pela chegada à idade de vinte e cinco
anos, pela promoção à cavalaria, ao sacerdócio, a uma dignidade, aos estados ou
ofícios do príncipe no campo ou das cidades, e ainda se for reconhecido mercador
público.”. O casamento é assim assimilado às ordens sociais (sacerdócio, cavalaria)
e aos cargos públicos, os únicos que podem conferir a independência aos jovens
antes da idade, então elevada, de vinte e cinco anos. (BOLOGNE. 1999, p.378)
Evidentemente, portanto, a Igreja não pode permanecer na sua posição de distância em
relação ao casamento, tampouco pode abrir mão de marcá-lo ritualmente. A benção nupcial
no início da generalização imposta pela a Igreja Católica tinha tanto a função de certificar
(registrar) quanto de abençoar. Assim, cumpriu também outra função tornar pública as
relações e atenuar uma armadilha mantida pela própria Igreja os casamentos clandestinos
sustentados por sua própria valorização do consensualismo. De fato, o combate aos
casamentos clandestinos foi um ponto de inflexão na história do casamento no ocidente, pois
levou, de um lado, a que as monarquias então nascentes também criassem leis para intervir no
casamento e, por outro lado, obrigou a Igreja a rever suas práticas, em especial em direção ao
estabelecimento de um ritual solene para as núpcias que complementasse as bênçãos.
Ao que parece, a primeira intervenção estatal sobre o casamento aparece no século
XVI, associado, como não poderá deixar de ser, aos espinhosos problemas colocados pelas
alianças às famílias nobres. Na França, motivado por um caso de repercussão em que um
jovem havia se comprometido clandestinamente inviabilizando aos olhos da Igreja uma união
de grandes vantagens políticas, Henrique II estabelece um édito em 1557 que prevê sanções
civis para os casamentos clandestinos, como privação da herança (CASEY, 1992;
BOLOGNE, 1999). Poucos anos antes, um célebre caso de divórcio teve conseqüências mais
drásticas. Quando Henrique VIII tenta se divorciar mas não obtém autorização da Igreja
Católica, opta, não por uma legislação régia, mas pela separação com a Igreja Romana e a
fundação da Igreja Anglicana, em 1534. Aqui não se trata exatamente de uma secularização
134
do casamento, mas de uma transferência do comando de sua gerência religiosa. Na verdade,
na Inglaterra o controle do rei sobre as alianças foi bem mais acentuado, pois este manteve até
metade do século 17 o direito de dispor das terras e do casamento dos seus vassalos
menores
83
. Na França, uma sentença do parlamento anulou o casamento de Gastão de Orleães
e Margarida de Lorena, atendendo interesses do Rei e diante da alegação de que seria um
casamento nulo, pois sem o consentimento do irmão da noiva, abre-se assim um precedente e
entre 1591 e 1640, dezenove casamentos clandestinos foram anulados pelo parlamento.
Talvez não pareça muito, e certamente não são casos quaisquer, mas aí se estabeleceu as bases
da intervenção do Estado sobre o casamento. Na Inglaterra, um édito equivalente será adotado
em 1772.
Se o problema nas cortes deriva da indissolubilidade dos casamentos, entre os plebeus
o maior problema estava nos casamento clandestinos. Conseqüência do compromisso da
Igreja com a doutrina do consensualismo tal qual entendida pela releitura do direito romano.
A possibilidade de casar sem o acordo paterno, e até sem padre, é uma conseqüência da nova
lógica da política matrimonial. Mas, isso abriu a possibilidade de jovens contrariados com os
pais optarem por decidir sobre seus próprios casamentos, nem sempre atendendo a razão, isto
levou a Igreja a dotar novas práticas contra os casamentos clandestinos até os proibir no
Concílio de Trento. (BOLOGNE, 1999, p. 127).
Uma fórmula para atenuar este problema foi a adoção uma espécie de retorno a
antiguidade com os esposais. Com isso estabelecia-se um compromisso, mas não um
sacramento, podendo ser rompido com certas conseqüências, com isso também se adiava a
concretização do sacramento para um momento posterior (daí a distinção entre palavras de
83
“Trata-se da Warship, exercida por uma jurisdição específica, o Court of Wards. O rei delega nele os seus
poderes para casar os jovens herdeiros; esse direito é então vendido em leilão, se o herdeiro pertencer à gentry,
ou atribuído ao parente mais chegado do menor, se for lord. Este direito será exercido até 1660, quando são
abolidos os direitos feudais. Contudo, o rei conservará depois a prerrogativa sobre certos casamentos delicados,
para os favorecer, para os impor ou para os impedir. As alianças acompanham então as mudanças na coroa.
Assim, haverá poucos casamentos no séqüito de Isabel, pois ela própria não se mostra interessada no casamento,
enquanto Jaime I favorecerá as alianças anglo-escocesas”. (BOLOGNE, 1999, p. 98).
135
futuro e palavras de presente), ao mesmo tempo abria um espaço de negociação e ajuste da
parte das famílias e dos próprios noivos.
No interior da Igreja católica, duas concepções duelaram sobre o casamento, em
respostas a esses problemas e no momento em que praticamente se fechava a doutrina da
Igreja sobre o casamento. Uma que insistia nos mecanismo através dos quais tornar público e
inequívoco o casamento e outra que insistia na validade dos casamentos apenas pela
expressão da vontade dos noivos. Tais discussões estiveram intimamente associadas, por um
lado, à disputa da Igreja com o poder das famílias em dispor sobre uma parte tão importante
da vida de seus membros e de seu patrimônio, de outro, ao combate aos casamentos
clandestinos que minavam esse patrimônio.
Dois grandes clérigos do século XII construíram os alicerces do que é ainda, sob
muitos aspectos, o conceito europeu de casamento. Um deles foi Pedro Lombardo,
Bispo de Paris, cujas idéias constam das suas Sentences; o outro, o monge italiano
Graciano, autor do Decretum, mestre da famosa escola jurídica de Bolonha. Em
essência, a tarefa diante desses dois homens era espiritualizar e dar caráter oficial às
relações sexuais, até então sujeitas a considerável incerteza. Cada um a seu modo, os
dois precisavam encontrar alguma fórmula que conciliasse a "fraqueza da carne" e
as ambições sociais dos leigos com a crescente necessidade de clareza e
uniformidade na vida cristã. Precisavam encontrar algum modo de disciplinar a
sexualidade, reconhecendo no entanto que nem todas as ligações entre os dois sexos
podiam ser oficializadas, e que o matrimônio tinha implicações em termos de
patrimônio e hierarquia social. (CASEY, 1992, p. 112)
Das discussões sobre as posições de um e outro, acabou chegando-se a uma fórmula
baseada na intenção das partes. Onde tanto a consumação sexual quanto a transferência de
patrimônio teriam espaço e importância, mas sem ser determinantes. Na verdade, duas
heranças da antiguidade estavam presentes: “o casamento consensual de origem romana, que
assenta no consentimento dos dois esposos e o casamento fundado sobre a união sexual, de
origem germânica, em que a consumação garante a infragibilidade” (BOLOGNE, 1999, p.
122). Lobardo, insistia na primeira enquanto Graciano acreditava que a consumação
sacramentava o casamento, no entanto, ambos irão concordar com o consensualismo. No
ambiente mediterrâneo, origem de Graciano, a linhagem e o dote sempre foram muito
importantes. As famílias mantinham o controle das alianças que eram realizadas através do
136
casamento de jovens em idade bastante precoce e, ainda que houvesse troca de
consentimentos e um contrato estabelecendo o dote, a consumação só se dava depois de anos.
Já na Europa setentrional, origem de Lombardo, prevalecia o dote feminino e a família
conjugal como base do matrimônio, daí talvez uma maior importância à consumação como
passo necessário para sacramentar o casamento e à transferência de riqueza no interior do
casamento. No entanto, a concordância de ambos com o consensualismo e as divergências
quanto à forma de expressá-lo esbarravam na facilidade com que o sistema permitia o
reconhecimento de casamentos clandestinos.
É uma bela idéia o regresso ao consensualismo, que garante o entendimento
conjugal, já que os noivos se comprometem livremente um com o outro. Mas é
difícil fugir às pressões familiares numa cerimônia oficial. Por isso, em caso de
oposição dos pais, assiste-se à multiplicação das uniões clandestinas, muito fáceis,
posto que nenhum rito é exigido para reconhecer a sua validade. A Igreja, que
permite tais abusos com a sua nova doutrina, confronta-se com graves problemas de
consciência. Difíceis de provar mais tarde, em caso de discórdia entre os esposos,
estas uniões não são necessariamente mais estáveis do que os casamentos forçados.
Eventualmente abençoadas por padres condescendentes, por vezes em paróquias
longínquas, colocam a questão da responsabilidade do clero nas alianças reprovadas
pela sociedade. Nos tribunais enxameiam então as queixas dos pais que vêem
escapar-lhes a progenitua e arruinarem-se as suas políticas de aliança. A Igreja vê-se
acusada de cumplicidade com o que se apresenta então como “raptos” (BOLOGNE,
1999, p. 127).
O compromisso por parte da Igreja Católica com a doutrina romana do
consensualismo de fato criava problemas para todos os lados. Uma das razões que teria levado
a Igreja a retomar do direito romano o consensualismo era exatamente a possibilidade
aumentar o número casamentos facilitando sua realização.
A troca dos consentimentos não se submetia a nenhuma condição de forma, senão a
das palavras a pronunciar (de presente ou de futuro). Apesar da importância da
consumação enquanto confirmação do compromisso, este continuava a ser
prioritário, e uma mulher podia ser considerada viúva se o marido morresse antes da
noite de núpcias. Bastava portanto que duas pessoas se declarassem casadas para
oficializar uma ligação escandalosa. O sistema tinha grandes vantagens, mas
maiores inconvenientes: primeiro, a ausência do consentimento paterno, em certos
casos, criava perturbações familiares que a Igreja não desejava suscitar; depois, as
raparigas seduzidas multiplicavam as queixas perante as autoridades, e a falta de
provas colocava os juízes numa posição embaraçosa. Por isso se combatia muito
tempo o contrato consensual no seio da própria Igreja, em favor do contrato solene,
na igreja, perante um sacerdote, na presença da família e de algumas testemunhas.
Esta solução estava já latente no pensamento de Alexandre II, na época em que se
estabeleceu o sistema consensual no Ocidente, por volta de 1170. Mas esta veleidade
em estabelecer um casamento solene duraria apenas alguns anos no pensamento do
papa. A Idade Média ainda não estava preparada para dar esse passo: precisava de
outras soluções para combater os casamentos clandestinos. (BOLOGNE, 1999, p.
137
196, grifos meus).
Uma dessas soluções foi a distinção estabelecida por Pedro Lombardo entre a mera
promessa (palavras de futuro) e o reconhecimento do ato matrimonial (palavras de presente).
Base da retomada dos esposais. Com a expressão verbal, para ele, estaria garantida a
inequívoca manifestação da vontade da partes, independente de uma fórmula especifica.
Assim, ele transformava o casamento em um contrato como qualquer outro. Segundo James
Casey (1992) à luz do direito canônico posterior, a semelhança com os contratos fazer supor
que Lombardo também acreditava na necessidade de ser a troca de consentimento feita de
forma pública e diante de testemunhas, ainda que tal não fosse explicitado. A concepção
divergente, de Graciano, é assim sintetizada por James Casey:
Para ele, o contrato com testemunhas, a forma das palavras, tinham pouca
importância comparativamente à intenção. Assim, uma promessa de casamento era
quase equivalente ao casamento, e vinculava as partes. Se depois ocorriam relações
sexuais, os esponsais se convertiam automaticamente em matrimônio. Graciano
parece sustentar o que se poderia chamar de conceito "sacramental" do casamento:
como todos os grandes mistérios do nascimento, procriação e morte, ele precisava
ser incluído num plano divino, para que as misérias da carne não parecessem destoar
inteiramente dos propósitos de Deus.
Mas foram os pontos de vista de Lombardo que prevaleceram no Concílio Laterano,
em de 1215, fonte de boa parte da legislação sobre o casamento na Idade Média até, pelo
menos a contra-reforma. Mas seu ponto de vista não foi integralmente vitorioso, pois os
casamentos secretos, embora ilegais, poderiam ser considerados válidos. A concepção de
Graciano quanto ao papel das relações sexuais para consolidar os casamentos tiveram e
ainda tem – efetividade nos julgamentos de casos particulares.
Desnecessário dizer que a Reforma foi um duro golpe à autoridade da Igreja Católica.
Uma das questões centrais na reforma foi exatamente a questão dos casamentos, objeto de
escritos tanto de Lutero quanto de Calvino. O concílio de Trento teve no casamento um dos
pontos mais importantes de discussão, objeto de longos debates ao longo do ano de 1563, nos
quais se podem perceber diferenças conforme a origem geográfica dos participantes (CASEY,
1992). Os representantes da França vão insistir no consentimento paterno como condição para
138
validar o casamento. A resposta do Concílio veio na forma do Decreto Tamesi, que instituiu
um rito solene como condição para validar os casamento. Se até este momento, o casamento
era o único sacramento que não era administrado diretamente pelo padre, pois resulta da
vontade dos próprios nubentes, na prática a autoridade eclesiástica se tornou a fonte do
sacramento, ainda que na teoria permanecesse o consensualismo como fundamento.
Entre as principais formalidades estabelecidas estão: em primeiro lugar, a publicação
do anúncio do casamento nas paróquias de cada um dos noivos por três vezes consecutivas em
dias de festa. Sem segundo lugar, a celebração, que não se confunde com a bênção, pelo padre
da paróquia de um dos noivos, diante de duas testemunhas.
A Reforma coloca ainda outra sorte de problemas posteriores, em parte relacionados à
manutenção dos rituais de oficialização dos casamentos. Na medida em que a Igreja pretende
regular as práticas dos que não professam a religião oficial faz a reforma considerar o
casamento estratégico. Ela se opõe a três pontos que a Igreja católica tomou como base de sua
doutrina: o consensualismo, a competência exclusiva da Igreja e os esposais.
A reforma recoloca q questão da heterogeneidade social, mas que agora não pode ser
resolvida pela via da sacralização, mas sim pela via dos direitos. Se, por um lado, o casamento
cristão tem origem divina, por outro, os iluministas vão lhe atribuir uma origem natural, ou
seja, mantendo-se uma base transcendental que vai justificar uma intervenção sobre o que é
ou não considerável legítimo. O direito natural procura emancipar o casamento da igreja. Vê o
casamento como um contrato e não como um sacramento. Esta base transcendental é que
permite a afirmação de um individualismo nascente apesar das diferenças sociais. O
casamento-sacramento realiza em outro plano a igualdade, enquanto o casamento jus-natural,
ao localizá-lo na natureza permite também esse mesmo “artifício”.
Talvez tenha sido um movimento irresistível e sem volta o que aproxima o casamento
do direito. Primeiro a Reforma, depois o fim do antigo regime e a constitucionalização dos
139
Estados no século XIX (PGGI, 1981) obrigaram a Igreja a rever-se. A própria Igreja acaba por
utilizar-se dos códigos oriundo da linguagem dos direitos e sua retórica, para manter a
legitimidade de suas pretensões de controle sobre os casamentos e, em parte, sobre as
consciências.
A Igreja fez da família última fronteira de sua defesa de um indivíduo relacional e
holista, mas para isso teve de resistir às investidas para tornar mundano o casamento, quando
não pode mais ressentir, acaba por ceder também parcialmente a está retórica legalista, mas o
faz afirmar o direito social sobre o direito individual, e assim mantém um último suspiro
conta o individualismo moderno.
A simples leitura da o documento produzido pela Santa Sé, nos anos oitenta, em
resposta à “crise da família” permite visualizar a contaminação da retórica do direito, em
seu título: Carta dos direitos da Família. Mas, não se trata de qualquer “direito”, não somente
ele merece especial proteção quanto também não pode ter como fundamento o direito liberal
de contorno individualista. Logo no preâmbulo isso fica claro, pois ali é afirmado ser a família
o lócus da pessoa e não pode ser reduzida ao individualismo atomizado com o qual a lei se
expressa pois seus direitos têm fundamentação social e não egoística. O casamento funda a
família, é livremente contraído expresso publicamente e relacionado à procriação, pois é
“natural” e tem a função de perpetuar a vida. Da mesma forma a família é vista como natural
e, portanto na condição de ser anterior ao Estado têm assim, direitos próprios e inalienáveis.
A secularização do casamento: Classe, status e “bom” partido
A trajetória do casamento na Europa nos séculos XVI a XIX, deve ser vista contra o
pano de fundo da emergência da igualdade jurídica, expressa pela liberdade contratual
individual, e o risco da subversão das hierarquias sociais tradicionais, seja pelas alianças entre
pessoas de estamentos diferentes, seja pela própria decomposição dos códigos de honra que
fundamentam as distinções estamentais (WEBER, 1999), oriundas da reorganização das
140
relações sob o capitalismo.
No século XVIII os contratos de casamento adquirem enorme importância, trata-se
não dos mesmos tipos de documentos anteriormente encontrados, que teriam existido ainda
em Roma, que se limitam a registrar os valores dos dotes ou arras para posterior recuperação e
cuja prática cai em desuso juntamente com a cultura escrita após as invasões bárbaras. Com o
direito canônico, por sua vez, são reguladas as convenções do casamento enquanto o regime
de bens permanece regulado pelos costumes regionais (GILISEN, 2003). Após o Concílio de
Trento é que os contratos adquirem novos significados (BOLOGNE, 1999). Por um lado as
maiores exigências de controle dos registros dos atos que modificam a vida civil, resultado da
Contra Reforma criam o hábito entre todas as classes sociais de redigir um documento para
ser levado à igreja. A certidão de casamento é um documento importante em um contexto de
perseguições religiosas. Por outro lado, é: “sobre a distinção entre contrato e sacramento que
os juristas civis justificam a intervenção do Rei em matéria matrimonial” (BOLOGNE, 1999,
p. 234). De fato, a Igreja sempre reconheceu que os casamentos têm efeitos “civis” e se
absteve de regulá-lo diretamente, ficando ao cargo dos costumes, no entanto, em Paris, por
exemplo, no século XVIII essa regulamentação pelos costumes admitia uma diversidade
incompatível com a segurança jurídica necessária à transição para uma economia mercantil
capitalista.
Esta diversidade foi contornada exatamente com a prática amplamente disseminada de
redigir um acordo quanto aos efeitos civis do casamento, dentro de uma margem que não
“ofendesse aos costumes”. Assim, as famílias poderiam estabelecer previamente o regime de
bens e estipular quais poderiam ou não ser partilhados, bem como controlar parcialmente as
transferências de patrimônio por herança, os contratos tinham uma evidente preocupação de
conservar o patrimônio familiar e garantir a estabilidade social, evitando os riscos de
casamentos por interesse. Essa prática começa a ceder exatamente com o surgimento do
141
Código Civil, em 1804.
Outra forma de avaliar a importância e disseminação destes contratos é a análise de
uma literatura popular dedicada a parodiá-los. Na forma de “pasquins”, alguns possivelmente
distribuídos pela polícia para a “educação do povo” (BOLOGNE, 1999, p. 236), estas obras
tinham outras vezes forte conotação sexual e satirizavam a minúcia e mesquinhez dos pobres
em relacionar seus pertences mais insignificantes ou sua ingenuidade. Em títulos como: o
contrato de casamento entre “João-Que-Tem-Pouco” com a “Jaqueline-Que-Nada-Tem” ou
“João-Bom-Humor” e “Jaqueline Bom-Coração”. Satirizam os notários batizados com nomes
sugestivos de “Pedro Escrúpulo” e “João Vadio” e também as mulheres, ao estabelecer por
contrato os “males que declara não possuir” e, é claro satirizam a própria idéia de contrato e o
casamento em si. Podem ser também veículo de uma sátira política, como no “contato de
casamento do Parlamento com a cidade de Paris” ou o “contato de casamento da menina
nobreza com o senhor terceiro Estado”, este último redigido em 1789! (BOLOGNE. 1999, p.
238). Estas sátiras conheceram também versões mais sérias, como o “Contrat du Mariage”, de
Balzac.
Talvez outro aspecto que estas paródias estejam sinalizando é uma crise dos
casamentos século XVIII. Que pode ser avaliada por uma explosão de nascimentos ilegítimos
que leva Edward Shorter (s.d.) a afirmar ter havido uma primeira revolução sexual. Do
ponto de vista da “crise” nos casamentos, Bologne (1999) cita como evidências: “Os
domicílios separados, o adultério mundano, o jogo do amor e a sua caricatura camponesa
levada aos palcos dos teatros de boulevard”. Se o século XVIII viu inúmeras sátiras ao bom
selvagem, viu também nestas comédias populares uma sátira ao idílio dos casamentos
camponeses. No entanto, se ninguém viu em Voltaire uma ameaça ao direito natural ou a
evidência de sua crise, estas comédias são sintomáticas de uma crise nos valores tradicionais
do casamento reduzidos pela generalização dos contratos a uma aliança sem amor e a políticas
142
para equilíbrio das fortunas.
Mas, no interior desta casca despejada do seu conteúdo pelo jogo social, o novo
casamento está a nascer. A Revolução transtornou definitivamente o equilíbrio das
fortunas, muito ameaçado pela ascensão da burguesia e pela substituição
progressiva dos patrimônios imobiliários pelas fortunas móveis. O sistema da
venalidade dos ofícios, último andaime do edifício matrimonial, desmorona-se com
a queda da monarquia. Outros valores podem agora revestir o casamento. O amor,
que no esquema tradicional devia nascer de uma união contraída por razões mais
sérias (dinheiro, paz, concordância dos temperamentos...), vai recuperar os seus
direitos e reclamar uma presença imediata, sob a sua forma romântica e apaixonada.
Confundindo o sentimento com as suas manifestações (liberdade sexual, liberdade
de escolha), adoptará como modelos o povo miúdo e os camponeses que, escapando
ao pesado sistema dos dotes, teriam que obedecer no espírito do burguês a nobres
sentimentos. Antes, o último burguês amava a sua mulher: doravante, será o
burguês a ditar as modas. (BOLOGNE. 1999, p. 380 )
Mas, antes que um novo casamento surgisse dos escombros do antigo casamento
cristão, assentado na liberdade individual guiada pelo amor romântico, foi preciso um passo a
frente, a Revolução Francesa, e dois passos atrás, o casamento civil. Mesmo a revolução, no
que diz respeito a estas questões, segundo Bologne:
(...) é menos radical do que aparenta. Se a paixão está em lugar de vulto, continua a
ser vista com a mesma desconfiança. A imagem do fogo de palha que se opõe ao
amor conjugal que se consome lentamente não caducou. Casamento por amor, que
seja. Mas os jovens inflamados exigem agora morrer aos vinte anos com essa paixão
absoluta, ou, à falta de coragem para tanto, querem poder recomeçá-la graças ao
divórcio ou às sucessivas uniões livres. O casamento por amor teria podido triunfar
nas nossas mentalidades sem o restabelecimento do divórcio? Já não se reivindicam
sentimentos constantes e eternos que se desenvolvam plenamente num casamento
único, ainda que nem por isso tenham desaparecido os casais felizes e duradouros. A
Igreja, por seu lado, deu uma nova interpretação ao amor conjugal: se aceita a sua
anterioridade relativamente ao casamento, explica, porém, que ele exige um
aprofundamento, modificações, senão mesmo sacrifícios para durar toda uma vida.
(BOLOGNE, 1999, p. 381).
As disputas, ainda que tenham motivações políticas e sociais, se articulam pela
oposição entre duas formas de conceber o matrimônio: como um contrato ou como um
sacramento. Ou ainda um contrato civil que gera um sacramento ou um sacramento com
conseqüências civis. A reforma colocou outros problemas: se o casamento católico tem
conseqüências civis, como estendê-las aos não católicos? É nesse contexto que, primeiro se
irá criar alternativas “civis”, exatamente para os protestantes, em 1781 e, por fim, a
constituição de 1791 torna civil o casamento. O movimento se irá completar ainda com o
Código Civil em 1804:
143
O Código Civil traduz o Estado social e político do seu tempo. Redigido e discutido
no momento em que Bonaparte consolida o seu poder pessoal, o Código o reflete a
tendência para conciliar as conquistas civis e políticas da Revolução com o desejo da
estabilidade econômica e social, baseada na família e na propriedade. Mantém-se a
abolição dos direitos feudais; é garantida a liberdade civil de todos indivíduos
:
liberdade de contratar, de testar, etc. (GILISSEN, 2003: 454).
O Code civil de 1804 dedica um espaço significativo, porém desigual tanto ao
“contrato de casamento” e quanto aos “respectivos direitos dos cônjuges
84
”.
Os cônjuges podem celebrar a sua convenção antenupcial (contrat de mariage)
como “julguem conveniente”, desde que não seja contrária aos bons costumes e
tenha em conta as disposições gerais (art. 1387). Todas as convenções matrimoniais
devem ser reduzidas a escrito, antes do casamento, pelo notário (art. 1394.), não
podendo ser modificadas depois do casamento (art. 1395.).
Apenas na falta de convenção feita nos termos da lei, vigora a associação conjugal
quanto aos bens (art. 1387). O Code civil não institui, assim, um regime dito de
comunhão legal senão a título supletivo, quer dizer, suprindo a falta de manifestação
de vontade das partes. (GILISSEN, 2002, p. 590).
O século XIX vai ser marcado também pela emergência dos discursos sobre a família
no contexto das transformações sociais e políticas da época dando origem a inúmeras
propostas reformadoras mais ou menos conservadoras e estudos que tomam a família por base
da integridade social. Assim, como a família se torna objeto de crescente preocupação,
práticas e de discursos (DONZELOT, 2001; COSTA, 1999; LASH, 1991), paralelamente
alteram-se as formas de conceber as relações familiares na medida surge um discurso sobre o
sexo, e com isso promove-se não uma substituição, mas uma progressiva passagem do
dispositivo da aliança para o dispositivo da sexualidade
85
.
Pode-se admitir, sem dúvida, que as relações de sexo tenham dado lugar, em toda
sociedade, a um dispositivo de aliança: sistema de matrimônio, de fixação e
desenvolvimento dos parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens. Este
dispositivo de aliança, com os mecanismos de constrição que o garantem, com o
84
Aparecem no titulo V do Livro III, arts. 1387 à 1581, portanto cerca de 194 artigos (GILISSEN, 2003).
uma preocupação em superar os costumes associados ao irracional e ao antigo regime. Além do regime da
comunhão legal, o Code civil contém numerosas disposições relativas a outros tipos de regimes de bens; proíbe,
contudo, aos esposos estatuir de uma forma geral que a sua associação seja regida por qualquer dos costumes que
regiam antigamente as diversas partes da França (art. 1390), pois todos eles foram derrotados pelo Code civil.
(GILISSEN, 2002, p. 590).
85
De acordo com Foucault: “A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade
subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos,
a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e
das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder”
(Foucault, 1990, p. 100)
144
saber muitas vezes complexo que requer, perdeu importância à medida que os
processos econômicos e as estruturas políticas passaram a não mais encontrar nele
um instrumento adequado ou um suporte suficiente. As sociedades ocidentais
modernas inventaram e instalaram, sobretudo a partir do século XVIII, um novo
dispositivo que se superpõe ao primeiro e que sem o pôr de lado, contribuiu para
reduzir sua importância. É o dispositivo de sexualidade. (FOUCAULT, 1990, p.
101)
Tanto o dispositivo da aliança quanto o da sexualidade tem atuam sobre os parceiros
sexuais, mas de modo distinto: o primeiro através de regras que ditam o permitido e o
proibido, tem como um de seus objetivos manter a ordem (FOUCAULT, 1990, p. 100) e as
leis que a sustentam, daí a preocupação com a definição de um status às relações
conjugais/sexuais, e os destinos da transmissão e circulação de riquezas ele permite,
justificando o interesse que nele tem a economia: “Numa palavra, o dispositivo de aliança,
está ordenado para uma homeostase do corpo social; a qual é sua função manter; daí seu
vínculo privilegiado com o direito” (Foucault, 1990, p. 100). dispositivo da sexualidade
importa “as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres” se liga à economia através “do
corpo que produz e consome”. O surgimento do dispositivo da sexualidade está base da dupla
emergência do individuo moderno enquanto sujeito autonomizado e singularizado pelas
revelações de sua sexualidade, vista como um estado ou condição e não como performance
(SENNET, 1993) e matriz das unidades básicas de consumo e produção. Mas mais do que
isso, esteve na base da configuração da família moderna. Ainda de acordo com Foucault:
A célula familiar, assim como foi valorizada durante o século XVIII, permitiu que,
em suas duas dimensões principais - o eixo marido-mulher e o eixo pais-filhos - se
desenvolvessem os principais elementos do dispositivo de sexualidade (...). Não, se
deve entender a família, em sua forma contemporânea, como uma estrutura social,
econômica e política de aliança, que exclua a sexualidade ou pelo menos a refreie,
atenue tanto quanto possível e só retenha dela as funções úteis. Seu papel, ao
contrário, é o de fixá-la e cosntituir seu suporte permanente. Ela garante a produção
de uma sexualidade não homogênea aos privilégios da aliança, permitindo, ao
mesmo tempo, que os sistemas de aliança sejam atravessados por toda uma nova
tática de poder que até então eles ignoravam. A família é o permutador da
sexualidade com a aliança: transporta a lei e a dimensão do jurídico para o
dispositivo de sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade das sensações
para o regime da aliança. (FOUCAULT, 1990, p. 102-3)
.
E aind
a
, em outro momento
:
A família não deve ser mais apenas uma teia de relações que se inscreve em um
estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de transmissão de
145
bens. Deve-se tornar um meio físico denso, saturado, permanente, contínuo que
envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança. Adquire, então, uma figura
material, organiza-se como o meio mais próximo da criança; tende a se tornar, para
ela, um espaço imediato de sobrevivência e de evolução. O que acarreta um efeito de
limitação ou, pelo menos, uma intensificação dos elementos e das relações que
constituem a família no sentido estrito (o grupo pais-filhos). O que acarreta,
também, uma certa inversão de eixos: o laço conjugal não serve mais apenas (nem
mesmo, talvez, em primeiro lugar) para estabelecer a junção entre duas
ascendências, mas para organizar o que servirá de matriz para o indivíduo adulto.
(...). A nova "conjugalidade" é, sobretudo, aquela que congrega pais e filhos.
(FOUCAULT, 1993, P.199)
Se o dispositivo da aliança opera com um código social, o da sexualidade opera um
código individual. Operando mudanças profundas no sentido e intensidade da regulação
exercida pelo discurso e práticas jurídicas, pois este também têm presente em seu corpo, nem
sempre bem articuladas as duas dimensões. No Brasil, o processo de secularização do
casamento teve características particulares ligadas a todo um cenário histórico que nos é
próprio, porém, nele não é possível encontrar algumas das tensões e ambigüidades
apontadas acima, como também definir melhor os contornos dentro dos quais o casamento se
modifica e as formas que assume a família e sua diversidade.
146
Capítulo 5:
Compromisso de papel passado: o casamento civil no Brasil
Ainda que discutir a legislação sobre família no Brasil não seja o objetivo desta tese,
algumas considerações serão necessárias para compreensão da argumentação aqui
desenvolvida. Sobretudo no que diz respeito às formas contraditórias como esta legislação
tem lidado com transformações sociais recentes, com destaque para a constante mudança do
papel social das mulheres nas últimas décadas, e aos choques inerente às contradições entre
sua matriz teórica liberal e práticas sociais que a contrariam.
Vários autores têm demonstrado as contradições na forma como foram acionados os
princípios e ideais do liberalismo político e econômico na vida política, social e jurídica do
Brasil (SCHWARZ, 1988; HOLANDA, 1995). Desenvolveu-se um compromisso entre a
afirmação do liberalismo – político ou econômico - como uma espécie de bandeira da
vanguarda no país e simultaneamente a manutenção de práticas políticas e sociais
frontalmente contrárias aos seus ideais. Deu-se assim origem a um liberalismo conservador,
marcado por uma retórica formalista, “livresca”, e um compromisso seletivo e de fachada com
o ideário político das revoluções burguesas. Estes arranjos teriam possibilitado a convivência
de uma retórica liberal com práticas autoritárias, cartoriais, patrimonialistas e, sobretudo com
a manutenção da escravidão - ainda que não exista contradição intrínseca entre escravidão e
as idéias liberais originais. Possibilitou ainda a manutenção de estrutura política
centralizadora e autoritária durante Império e nos primeiros anos da República.
No que diz respeito à construção de nossas idéias jurídicas, pode-se dizer que esta se
organiza a partir da Independência, em nome de princípios liberais tais como expressos na
Constituição de 1824 e mais marcadamente presentes no código penal de 1830. Ainda que,
sobretudo a primeira, mantivesse em seu corpo dispositivos francamente anti-liberais,
147
qualquer que seja a vertente liberal invocada. No mesmo movimento em que se convocou um
processo constitucional - tendo o próprio D. Pedro, assim como D João VI jurado a
constituição Portuguesa, assumindo assim um compromisso com um regime constitucional
reivindicou-se a urgência da codificação das leis no Brasil. Deslocou-se o processo de
elaboração da legislação civil para longe dos tempos conturbados da Independência. A
vigência da legislação Filipina do início do século XVII somente cessou em 1917, com a
entrada em vigor do Código Civil.
O processo de independência e a imposição armada aos seus dissidentes, a convocação
da Assembléia Constituinte e sua posterior dissolução, assim como a outorga da Constituição
de 1824, bem como a manutenção da legislação civil Filipina impediram a aplicação das
reformas que a Revolução Liberal de 1820 introduziu em Portugal. Atendendo, assim, tanto
aos interesses políticos do Imperador quanto os interesses econômicos das elites agrárias
escravocatas. Mas não impediu que as idéias liberais fossem associadas à modernização do
país e, sobretudo fossem materializados posteriormente no movimento abolicionista e nas
reivindicações de elaboração de um projeto de codificação das leis civis.
Uma característica importante deste momento foi que a Constituição e as leis civis
adotaram no que diz respeito aos institutos mais importantes da legislação liberal: os contratos
e ao direito de propriedade - bases da sociedade burguesa uma política francamente liberal,
dando às leis um compromisso com o individualismo – é o indivíduo burguês que, no
exercício de sua liberdade natural pode contratar e possuir - sem, no entanto, estender esses
pressupostos a toda a população.
A partir daí, a concepção de pessoa que norteia o ordenamento jurídico brasileiro,
apesar da persistência às vezes contraditória de diferentes tradições, pode ser identificada com
uma matriz liberal que privilegia o sujeito individual de diretos (WOLKMER, 2005) daí se
148
poder dizer que o homo juris
86
, ou seja, o sujeito de direitos privilegiado em nosso
ordenamento jurídico é um indivíduo
87
.
A oposição entre a escola de Recife e suas pretensões de ser um centro de saber
cosmopolita, afinados com as novidades das ciências jurídicas européias e a Escola de direito
do Largo de São Francisco, com seu modelo de formação direcionado para suprir os quadros
políticos e administrativos do Império e mesmo da Primeira República ilustra bem as
ambigüidades da vida social do país. O equilibro entre a retórica formalista e abstrata, que
servia de invólucro de idéias liberais e as práticas patrimonialistas foi rompido ou ao
menos questionado - com a emergência ou a extensão da condição de indivíduo portador de
direitos a amplos sectores sociais. É quando não cidadãos começam a pleitear direitos que
aparecem as contradições.
De forma semelhante, contradições diversas aparecem quando se observa o discurso
jurídico sobre a família no Brasil. De início, pode se perceber dois aspectos que certamente
guardam alguma relação entre si: por um lado, o homo juris não é neutro do ponto de vista de
86
Ralf Dahrendorf (1969) fala das abstrações próprias das ciências sociais que poderiam aludir a um homo
sociológicus, assim como diferentes disciplinas, no âmbito de suas preocupações teóricas, fragmentam o Homem
e elegem suas características preferenciais: na economia, assim poder-se-ia falar de um homo oeconomicus, que
seria a abstração do humano que consubstancia as principiais vertentes teóricas da economia. Na psicologia
poderia se falar de um “pychological man”. Ver também Elisa Reis (1989). Crawford B. Macpherson (1979),
analisando a teoria e a prática política no século XVII, principalmente na Inglaterra, com o objetivo de resgatar
uma base teórica para a emergência do Estado Liberal, afirma ter encontrado essa em uma concepção humana
partilhada pelos principais pensadores deste contexto, desde Hobbes a Locke. De acordo com tal concepção, o
humano é, essencialmente, um ser egoísta e individualista, uma visão que o autor resume na fórmula:
individualismo possessivo. Johan Huizinga (1990), usa o termo homo ludens para dar conta do papel do jogo na
estruturação das relações humanas, incluindo o que diz respeito ao funcionamento da justiça. Luis Dumont vai
falar de um homo aequalis e homo herarquicus. Assim, a abstração do humano, própria do discurso jurídico,
ainda que não livre de contradições, poderia ser chamada de homo juris.
87
A identificação do indivíduo como sujeito exclusivo de direitos não é homogênea nem livre de
questionamentos diversos e convive ainda hoje com a manutenção de uma série de dispositivos contrários a esta
tradição liberal, com demonstra Roberto Kant de Lima (1989; 1991 e 2000) em relação à justiça penal. No
direito penal, por exemplo, coexistem diferentes concepções de pessoa oriundas de suas duas orientações
teóricas mais importantes: De um lado, um conjunto de pressupostos e teorias aglutinadas no que ficou
conhecido como Escola Clássica ou liberal, cujo herói ancestral fundador teria sido Cessare Becarria, e de outra
a chamada escola positivista fundada por Cessare Lombroso. De acordo com Peter Fry e Sérgio Carrara
(1986), analisando a reforma do código penal brasileiro nos anos 80, entre nós teria persistido, de forma
contraditória, pressupostos do modelo positivista mesmo em uma reforma que se apresenta como liberal. Para
uma discussão sobre a recepção do positivismo e do liberalismo no pensamento jurídico Brasileiro ver Marcos
Alvarez (2002). Para uma discussão mais ampla sobre o liberalismo no Brasil, ver Roberto Schwarz (1988).
149
gênero
88
e, de outro lado, o direito de família tem como objeto além de indivíduos a
família a população e a própria sociedade. Se, boa parte da missão auto-atribuída pelo
discurso jurídico é “proteger” a família como instituição social e a própria sociedade –
articuladas em uma fórmula central, ainda que não exclusiva deste discurso: a família é a base
da sociedade
89
, a forma como irá desempenhar essa função esbarra tanto no compromisso
com a afirmação do indivíduo como sujeito privilegiado de direitos, um indivíduo abstrato ao
qual se pode emprestar atributos de igualdade e liberdade, mas que não se encarna da mesma
forma na realidade social, quanto na incapacidade de universalizar procedimentos ao conjunto
de uma sociedade recortada por inúmeras desigualdades.
O direito de família, pela própria natureza de seu objeto, se organiza a partir de uma
lógica própria de uma tecnologia da população, nos termos de Michel Foucault (1993), pois a
família e as questões que lhe são conexas - reprodução social e biológica - são um espaço
privilegiado para gestão das populações. Mas também, pela tradição em que este se encera - o
pensamento jurídico liberal, que tem na afirmação do indivíduo, sua liberdade e igualdade,
uma armadilha a mais a ser enfrentada, normalmente resolvida com a exclusão do âmbito da
igualdade do que não forem “aptos”, como por exemplo, exclusão do direito de votar dos não
proprietários, exclusão das mulheres e crianças da capacidade de negócios jurídicos, etc. Ou
ainda, equacionando a liberdade característica da humanidade com as desigualdades legais
manipulando a própria pertença à humanidade, seja excluindo-a radicalmente, como no caso
dos escravos, seja reduzindo suas potencialidades, como no caso das mulheres e crianças.
Em função desta característica, o direito de família opera internamente com dois
códigos, o igualitário - que deriva da concepção de indivíduo do pensamento liberal clássico:
livre, racional (e, normalmente, masculino e proprietário) - e um código hierárquico, derivado
88
Os estudos feministas, no Brasil e no mundo, tem se esmerado em demonstrar a parcialidade dos discursos
jurídicos e políticos e mesmo científicos. Para um exemplo, ver Íris M. Young (1987). Sobre as mulheres e o
Código Civil brasileiro, ver Leila Barsted e Elizabeth Garcez (1999).
89
Conforme a Constituição Federal, art. 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
150
de um modelo que privilegia (protege) a família e a honra. Enquanto esses dois aspectos estão
unidos, no modelo de família patriarcal, no qual o “indivíduo” em torno do qual giram os
“direitos” da família é o “pai de família” e os outros membros se definem juridicamente em
relação a ele, não tão são visíveis as contradições.
Na medida em que a família patriarcal perde centralidade, se dissolve a maior parte
das distinções formais entre homem e mulher e a criança adquire primazia, o discurso jurídico
se freqüentemente envolvidos em debates e situações nas quais é obrigado a rever seus
mecanismos diante de situações nas quais a desigualdade entre homens e mulheres impede a
aplicação de fórmulas igualitárias abstratas ou, quando as fórmulas desiguais substantivas que
ainda lhe restam chocam-se com pretensões igualitárias (TABAK, 1994). Ou ainda, situações
nas quais o reconhecimento de direito às liberdades individuais coloca em cheque a proteção
de “instituições sociais”, tais como nos debates sobre o divórcio, casamento de homossexuais
ou, de certa forma, sobre o aborto. Nessas situações, o discurso jurídico é muitas vezes
confrontado pela necessidade de reconhecer e proteger - em nome de direitos individuais, no
caso, sobretudo das mulheres e dos homossexuais, e em nome do interesse maior das crianças
- aquilo que, por princípio, deveria negar, por exemplo, a existência de famílias ilegítimas.
A ligação visceral do discurso jurídico com um modelo de família de feições
patriarcais, e sua auto-atribuída missão de protegê-lo, vem se modificando progressivamente,
ainda que não sem contradições e vicissitudes, sobretudo em função das alterações no papel
social das mulheres (ALVES e BARSTED, 1989, SOUSA-SANTOS, 1993) e das lutas de
movimentos sociais organizados. Seu predomínio e seus percalços podem ser rasteados na
história do direito brasileiro pela presença de idéias como a de “mulher honesta”, “a chefia
familiar” ou de “família legítima” e pela relativa inexistência de mecanismos para lidar
juridicamente com relações familiares que não correspondessem a este modelo patriarcal.
No entanto, o papel do sistema de justiça na “proteção” citada acima, ou seja, de forma
151
mais geral, seu papel de operar o discurso jurídico na “construção social da família”, é algo
que ainda precisa ser mais bem observado, através de análises semelhantes as que se fizeram
sobre outros discursos – e práticas - com pretensões de estabelecer o normal e a norma para as
famílias, tal como o discurso médico-higienista (DONZELOT, 2001; COSTA, 1999; LASH,
1991). De fato, o discurso jurídico não é o único voltado para as famílias tampouco parece ter
sido o mais eficiente instrumento regulador durante a colônia e o império (COSTA, 1991),
sobretudo pela ausência de mecanismos para sua efetivação e pela distância entre o conjunto
da população e o sistema de justiça. Durante o período colonial, teria prevalecido um direito
costumeiro condicionado pelas condições de vida próprias à colônia e a margem das leis
metropolitanas (WOLKMER, 2005). Além disso, como afirma Eunice Durham:
Até a República foi a Igreja, agindo como aparelho ideológico do Estado, que
procurou estabelecer a mediação entre as determinações legais sobre a organização
da vida social (incorporadas no direito civil) e as práticas sociais desenvolvidas
pelas diferentes camadas sociais. Deve-se reconhecer, entretanto, que a Igreja foi
mais eficaz em deslegitimar e destruir práticas alternativas do que em impor a
uniformidade cultural. (DURHAM, 1988, p. 35).
Poderia-se supor que a existência ontem, hoje e, ao que parece, sempre, de práticas
que contrariem o(s) modelo(s) afirmado historicamente pelo direito é um indicador de sua
pouca efetividade. E isso pode ser atribuído a razões estruturais distância entre o sistema de
justiça e a população, bem como, a origem “social” dos que formulam o discurso jurídico,
colocando-o em prática, e que dele se servem majoritariamente
90
:
Assim, a família estruturada pela legislação brasileira não é o reflexo da forma de
relacionamento do grupo familiar conforme vivenciada em todas as classes sociais.
É, antes, a codificação de uma visão de mundo da classe dominante, preocupada
com a legitimação, em termos legais, dos laços familiares, com a definição de poder
marital e paterno com a regulamentação do regime de bens. (ALVES e BARSTED,
1989, p. 167).
Ainda que atribuir um conteúdo de classe ao direito seja um raciocínio plenamente
justificado pela análise dos conteúdos dos textos legais, nos quais se pode facilmente
vislumbrar dispositivos de controle da elite sobre o comportamento das camadas populares,
90
Aqui se está falando de tendências históricas relacionadas, ao direito de família e ao direito civil. No caso do
direito penal, por exemplo, a relação é diferente, ou seja, os “letrados” recrutados dos setores de elite formulam
os discursos jurídicos que serão utilizados para as camadas mais baixas da população (FOUCAULT, 1999).
152
assim como mecanismos inerentes às elites, tal como a regulação da transmissão de bens,
equacionar diferentes prescrições normativas quanto à forma de viver a experiência familiar, à
oposição entre elites e classes populares, sobretudo quando tenha como caráter distintivo entre
ambas o acesso diferencial a bens simbólicos (principalmente em termos de escolarização)
somente se sustentaria se admitida uma correlação entre a eficácia da regulação jurídica das
famílias e classes sociais. Como se a “ignorância” dos pobres os tivesse, de forma paradoxal,
colocado à margem da legalidade e alvo privilegiado das leis. Ademais, a baixa “efetividade”
da regulação jurídica é também presente em outros segmentos sociais, ainda que com
motivações outras, como se pode observar pela disseminação de formas alternativas de
família entre as camadas médias. Procurar ou não a justiça não é resultado de maior ou
menor ignorância das leis, como sugere Sigaud (1996 e 2001). Também diz respeito à reação
a valores tidos como conservadores ou opressores, tal qual nas classes médias. Além, é claro,
de razões econômicas.
O casamento civil no Brasil
Em 1916, depois de sessenta anos de idas e vindas, dezesseis apenas de debates sobre
o texto final, o Brasil elaborou seu Código Civil. Mais de oitenta anos de atraso em relação ao
Código Criminal, aprovado em 1831, e quase 70 em relação ao Código Comercial, de 1845. O
que não deixa de ser significativo. Até então, as leis civis estavam a cargo, com algumas
modificações da legislação portuguesa As Ordenações Filipinas, de 1603. Mas, apesar das
pretensões vanguardistas do liberalismo e do cientificismo, que serviram de inspiração à
elaboração do Código Civil, no que diz respeito à regulação jurídica das relações conjugais,
não houve grandes avanços, pois os passos até então mais significativos haviam sido dados
pouco antes, não tanto em relação aos conteúdos, que permaneceram ligados a um modelo
patriarcal de família, mas em relação a quem caberia o papel de dar a palavra final sobre o
assunto: trata-se da laicizarão do casamento.
153
Até 1891, quando foi promulgada a Primeira Constituição Republicana que tornou
laico o Estado - o controle sobre toda a vida civil era quase integralmente exercido pela Igreja
Católica, na forma de suas certidões e registros. O que, na prática restringia os direitos civis
àqueles a quem a Igreja reconhecesse como parte de sua comunidade. A instituição definitiva
do casamento civil se deu pouco antes, em 1890, com o Decreto 181, de 24 de maio. Tornar
laico o casamento, evidentemente, cercou-se de polêmicas e inúmeras resistências por parte
da Igreja Católica
91
e não se deu da noite para o dia. Esteve no centro das disputas entre os
políticos liberais e seu projeto de modernização da sociedade brasileira e a Igreja Católica,
com suas pretensões de ampliar sua influência sobre o poder secular e retomar a centralização
do poder religioso em Roma, tal qual posto pelo Concílio de Trento e, de certa forma, pelo
Concílio Vaticano I.
Pouco antes, em 1848 os bispos adquirem junto a Roma autorização para celebrar
casamentos com inúmeras restrições - entre católicos e não católicos o que antes só poderia
ser feito com autorização de Roma. Apesar disso, foram exatamente os não católicos,
especificamente emigrantes, que pressionaram a partir da segunda metade do século XIX,
para criação de uma legislação instituindo o casamento civil. Sobretudo para contornar os
problemas decorrentes da ilegalidade da gestão das propriedades e negócios familiares para
famílias não reconhecidas legalmente, ou seja, aquelas para as quais a Igreja Católica não
oficializava
92
o casamento. Tal legislação foi finalmente aprovada em 1861 e regulamentada
em 1863. Ao mesmo tempo em que instituía o casamento civil o condicionava
paradoxalmente à celebração religiosa por religião reconhecida pelo Estado. Em tese, reduziu
o “monopólio” da Igreja Católica, mas procurava reduzir também os temores desta de que o
91
Conforme comentário de José Murilo de Carvalho (1996), uma das motivações da revolta de Canudos teria
sido a separação entre Igreja e Estado, em particular ao se criar o casamento civil em concorrência com o
religioso. Para uma interpretação “jurídica” dos preceitos religiosos acerca do casamento, ver Joan Carreras
(2004). Para as reações da Igreja ao casamento civil, ver Maria da Conceição Silva (2003).
92
Em 1855, o então Ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, apresentou um projeto que instituía o casamento
civil restrito, no entanto, apenas às uniões entre católicos e não católicos (GRIMBERG, 2001).
154
casamento civil iria legitimar as relações concubinas. Na prática, esta lei não funcionou, pois
eram reduzidos os recursos – humanos, sobretudo – das outras religiões. Esta lei acabou sendo
revogada quatro anos mais tarde.
Do ponto de vista dos conteúdos, o espírito “patriarcal” prevaleceu no código Civil,
apesar de propostas inovadoras, como a igualdade jurídica entre homens e mulheres,
defendidas por Clóvis Beviláqua, mas rejeitada durante os debates, permaneceu a
incapacidade jurídica das mulheres casadas e a distinção entre mulher honesta e mulher
desonesta. Houve mesmo retrocessos em relação às Ordenações Filipinas, como no que diz
respeito aos filhos ilegítimos. De acordo com Keila Grimberg:
No período colonial, os filho naturais tinham o mesmo direito dos legítimos. Os
ilegítimos, oriundos de relações incestuosas ou do adultério, poderiam ser
reconhecidos com uma permissão especial do Rei. Mas, durante o século XIX e com
o início da preocupação com o destino das propriedades familiares, medidas
consideradas liberais começam a ser tomadas, praticamente impossibilitando os pais
de reconhecerem seus filhos ilegítimos. Apesar de argumentarem que essas leis eram
importantes para manter a paz da família, a ordem e a moralidade pública, no fundo
era a garantia da propriedade que interessava. Nesse ponto, o Código Civil apenas
continuava um movimento inaugurando tempos antes, ainda no Império, que definia
a família em função da chamada proteção à moral, mas também por conta da
necessidade de circunscrever os limites dos direitos à propriedade. Diferenciando
homens e mulheres entre capazes e incapazes, filhos entre legítimos e ilegítimos, o
código não contribuiu para perpetuar antigas relações patriarcais como também
introduziu conteúdos morais ao ideário liberal que movia seu autor. (GRIMBERG,
2001, p. 46-47).
De uma forma geral, as vicissitudes da implantação do código civil no Brasil
estiveram visceralmente ligadas à desigualdade social e jurídica oriunda da escravidão. Se os
problemas em relação ao casamento podem ser vistos contra o pano de fundo de questões tais
como: conceber o casamento como um sacramento ou como um contrato, suas bases se
assentam sobre a existência cada vez mais significativa de não católicos no Brasil, bem como
as disputas políticas entre conservadores e liberais, e entre estes e a Igreja, em sentido mais
amplo, a maior parte das dificuldades estavam, tanto no plano teórico quanto no plano da
aplicabilidade, relacionadas à laicização do Estado e, fundamentalmente à existência da um
contingente de não-cidadãos que, no entanto, comerciavam, casavam, trabalhavam, etc. Ainda
de acordo com Keila Grimberg:
155
Durante pelo menos o século XIX, havia pessoas que tinham contratos de compra,
venda, aluguel, trabalho, sem serem consideradas pela lei civil plenamente capazes
de fazê-lo, que exerciam as obrigações, mas não dispunham dos direitos
correspondentes. Menores trabalhavam, mas não podiam defender-se em juízo.
Mulheres casadas geriam fortunas, mas não dispunham de livre direito para fazer
seus testamentos. Protestantes e judeus não podiam ter seus casamentos
reconhecidos pelo Estado, que não se casavam na Igreja católica. Escravos
urbanos alugavam seus serviços e repartiam os ganhos com seus senhores, mas nem
por isso deixavam de ser escravos. (GRIMBERG, 2001, p. 9-10).
A condição dos escravos era a mais grave e crucial para os projetos de modernização
legislativa, sendo coisa, propriedade, os escravos não poderiam ser considerado pessoa, do
ponto de vista de sua capacidade de fazer negócios jurídicos, mas os faziam amplamente. Por
outro lado, do ponto de vista da legislação penal, poderiam ser considerados pessoa sendo
responsabilizado por seus atos contrários à lei. De acordo com Keila Grimberg:
Afinal, como legislar sobre seres humanos que às vezes eram coisas, às vezes
pessoas? está uma importante chave para a compreensão dos problemas da
codificação típicos do Brasil. Para além das questões inerentes a qualquer processo
de codificação civil, como as relativas à condição da mulher e às relações com a
Igreja, havia no Brasil um problema incomum: apesar de não ser teoricamente
impossível conciliar a existência de escravos com a vigência de um Código Civil,
parecia extremamente difícil legislar sobre uma parcela significativa da população
que era, aos olhos da lei, coisa e pessoa a um tempo. (GRIMBERG, 2001, p. 53-
54).
Em relação ao casamento, estas contradições parecem ter sido, pelo menos em parte,
equacionadas pela Igreja que, desde 1720, com a publicação das Constituições Primeiras do
arcebispado da Bahia estabelecia igualdade entre casamentos de escravo e não escravos, desde
que devidamente oficializados pela Igreja de acordo com suas regras e fossem livres de
impedimentos. De acordo com Maria Beatriz Nizza da Silva:
A doutrina da Igreja acerca dos casamentos de escravos foi formulada nas
Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, impressas em 1720 e observadas
em todo o Brasil. De acordo com "o direito divino e humano", os escravos podiam
casar-se com pessoas cativas ou livres: "seus senhores lhe não podem impedir o
matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os
podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por
ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir". (SILVA, 1998, p.
188).
Durante o período Colonial, no entanto, excluindo-se certos contextos rurais, as
relações entre escravos, entres estes e libertos ou brancos (dos indígenas, o silencio é quase
total), apesar de poderem ser reconhecidas não escapavam a prática generalizada do
156
concubinato (SILVA, 1998) devido, por um lado, às dificuldades práticas ligadas à
oficialização dos casamentos: publicação de proclamas durante três semanas consecutivas na
localidade do casamento e nas localidades de nascimento dos noivos, etc (SILVA, 1998) e,
por outro lado, a falta de motivação por parte dos donos dos escravos
93
.
Os argumentos utilizados pela Igreja para convencer os donos de escravos da
conveniência dos casamentos dentro de seu plantel: basicamente a possibilidade de ampliar o
número de escravos, não surtia efeito, nem mesmo depois de 1850, com a proibição do tráfico
negreiro, pois os filhos continuariam nascendo com ou sem reconhecimento da união prévia e
a própria Igreja flexibilizava a possibilidade de registro dos ilegítimos.
Este era, aliás, o argumento preferido da Igreja a favor do matrimônio, como se em
outro tipo de união a procriação não ocorresse. Seguindo a mesma linha de
argumentação, D. João VI, em 1817, alertava para "os males físicos e morais" que
resultavam "de se conservarem os escravos na vida libertina”, ou seja, no estado
celibatário, e ordenava ao ouvidor da comarca do Rio de Janeiro que promovesse o
casamento de escravos. Claro que a chamada “libertinagem” dos escravos nada tinha
a ver com a sua capacidade de reprodução e por essa razão poucos foram os
senhores que se deixaram convencer por tais argumentos. (SILVA, 1998, p. 189).
Ainda durante o Período Colonial, o reconhecimento das uniões ilegítimas era também
possível, através dos chamados “casamentos de consciência” (BRÜGGER, 1996). Tais
casamentos eram realizados de forma sigilosa, mediante solicitação junto às autoridades
religiosas, nas quais deveriam ser explicitadas as razões pelas quais se estaria optando pelo
reconhecimento da união posterior a sua consumação. Os chamados impedimentos, que
poderiam ser acionados para explicar as altas taxas de casamentos não formalizados eram, na
verdade flexíveis, de tal forma que a Igreja muitas vezes os desconsiderava e, ao celebrar os
casamentos de consciência demonstrava que era melhor reconhecer a união do que permitir
sua continuidade “em pecado” (BRÜGGER, 1996; SILVA, 2003).
Assim, as dificuldades que surgiram com o projeto de codificação da legislação civil
93
Isso não significa, no entanto, que não houvesse famílias estáveis. A visão de uma promiscuidade disseminada
entre a população escrava que, em parte, pode ser atribuída à historiografia inspirada em Gilberto Freire, bem
como a relativa falta de referências em sua obra às famílias escravas na zona ucareira de Pernambuco, levou,
até recentemente a uma negligência quanto à existência de famílias escravas, em parte relativizada por dados
obtidos para a região cafeicultora do vale do Paraíba.
157
no Brasil, foram de natureza distinta, pois seu pressuposto de cidadania universal teve de se
equilibrar tanto sobre uma base social de desigualdades arraigadas, entre escravo ou ex-
escravos e a população de origem européia e entre homens e mulheres, quanto sobre relações
liberais de mercado emergentes. Os mecanismos que permitiam distribuir formas e fórmulas
distintas de casamento a pessoas diferentes tiveram de ser refeitos a luz da legislação civil. A
flexibilização entre modelos legítimos e ilegítimos, bem como a própria flexibilização da
indissolubilidade do matrimonio tiveram de seguir novos rumos.
Um ponto importante a ser destacado é a valorização, na doutrina católica, do
consentimento como um fundamento para a união (CASEY, 1992; CARRERA, 2004). Esse
consentimento aparece como a base de um compromisso que assumem entre si e perante Deus
os que se casam. um indicador de uma questão chave, que é a distinção entre modelos
jurídicos e modelos morais de casamento. Ou, de certa forma a idéia, de um lado, o “contrato”
entre pessoas juridicamente capazes e/ou uma relação de subordinação entre desiguais
naturalizada, moralizada e, por fim, legalizada. Sobre este último aspecto, o que é legalizável
ou não, e sobre o que é moralizável seja pela lei, seja pela igreja, a forma como se lidava com
as relações conjugais informais é indicativa de transformação nas formas de regular as
famílias.
Se, por um lado, o reconhecimento público do casamento estava associado a prestígio
social, mas um prestígio cuja origem seria a estabilidade de condições associadas ao
casamento. Da mesma forma, a grande quantidade de casamentos não reconhecidos ou não
assumidos tinha a ver com a precária estabilidade social O casamento projeta para fora da
relação uma imagem socialmente significativa a qual a igreja não podia desprezar.
Moralizando as relações ela reduz as margens dos relacionamentos de conveniência.
A questão do consentimento é significativa, pois, além de ser um vínculo para a
moralização das relações conjugais, acompanhadas de mecanismo de individualização,
158
permitia a Igreja minar o poder das famílias sobre as escolhas dos parceiros e sobre as
estratégias de mobilidade social.
Descasamento à brasileira
As mudanças que sofre a população e as modificações demográficas podem ser
explicadas por modificações no contexto familiar, que, por sua vez altera-se e se revela pela
dinâmica nupcial que lhe é própria. A nupcialidade é, assim, parte fundamental da
compreensão das dinâmicas familiares e populacionais e da heterogeneidade social. Ainda
que, sua análise nem sempre tenha sido proporcional a sua importância (GUERTECHIN,
1984). Uma das mais significativas mudanças nos padrões de nupcialidade no Brasil nas
últimas décadas tem sido o aumento da proporção de uniões informais em detrimento do peso
das relações formais.
Essas uniões não legais começam a ser apuradas quantitativamente a partir do Censo
Demográfico de 1940, no de 1950 quem não fosse casado religiosa ou legalmente
era considerado solteiro. Uma série de dados comprováveis tem inicio com o Censo
de 1960. A partir dessa data, as taxas de uniões não formalizadas são crescentes,
para o Brasil, 1960 6,4%; 1970 9,6 e 1980 11,8%, conforme os Censos
demográficos. (QUNTEIRO, 1990, p. 8).
As uniões informais sempre foram comuns no Brasil, são uma espécie de “tradição de
ilegitimidade da população brasileira” (BERQUÓ e OLIVEIRA, 1992). As taxas de uniões
não formalizadas ou outros dados estatísticos relacionados, no entanto, não permitem uma
compreensão mais acurada do fenômeno. Não é possível, através deles, por exemplo, avaliar
se estas uniões são um passo prévio a uma formalização posterior ou, se sucedem a uma união
formal precedente. Na media em que a nupcialidade não deve ser avaliada de forma estática,
mas sim referidas aos movimentos entre estados: não casado para casado, de casado para
viúvo, separado, divorciado, informal para formal ou vice versa, etc. A cobertura estatística
destes movimentos ajudaria compreender melhor o caráter da informalidade no país.
Da mesma forma os dados não permitem avaliar os significados e características
atribuídas aos relacionamentos que se escondem no rótulo “informal”, bem como pouco ou
159
nada revelam da margem de opções e de escolha dentro dos quais podem circular os
indivíduos. Por outro lado, permitem relacionar as uniões informais com níveis de renda e
escolaridade inferiores à média encontrada entre os casados formalmente, bem como indicar a
prevalência maior de informal união entre as camadas mais pobres da sociedade, ainda que
não exclusivamente. Outra fonte de informação sobre este tipo de união, os estudos de
comunidade reforçam essa associação entre pobreza e informalidade:
Salvo raras exceções, a prática dessas uniões (i)legais foi apontada, nestes estudos
[estudos de comunidade], como corolário da pobreza e da desinformação que a
acompanha. Esta visão respaldou-se no fato da incidência dessas uniões serem
observadas nas camadas populares, cuja desinformação propiciava um código moral
menos rígido e conseqüente desinteresse pela formalização da união conjugal.
(QUNTEIRO, 1990, p. 8).
Além disso, a cobertura estatística dos fenômenos ligados a nupcialidade, carece,
muitas vezes, de informações mais elaboradas sobre a formação, duração e dissolução de
casamentos, tais como: idade ao casar, tempo médio de duração dos casamentos, tipos de
união, formas de dissolução, relações entre nupcialidade e residência, etc, com os seus
respectivos coloridos de gênero e classe (GOLDANI E ALTMAM, 1984)
94
. ainda outros
problemas como por exemplo as descontinuidades na aplicação de metodologias e mudanças
nas perguntas tidas como relevante ao longo dos cesos. Ainda que desde os primeiros censos
se tenham recolhido dados sobre estado civil, os dados sobre nupcialidade não são facilmente
comparáveis, pois obtidos a partir de categorias diversas em distintos momentos. (VIEIRA E
RIOS NETO, 1996). Além do que, muitas vezes as categorias utilizadas para análises não são
suficientemente problematizadas; o que é casamento informal? O que são relações
concubinas? O casamento apenas no religioso pode ser considerado informal? A
autodeclaração do estado civil consegue dar conta da diversidade?
A definição de quais categorias utilizar é ilustrativa da reflexividade própria da
modernidade, pois podem ter origem nas categorias jurídicas, definidas pelo Estado, ou, como
94
As fontes principais são produzias pelo IBGE. São elas: o Censo, a PNAD e dados sobre registro civil.
160
tem sido cada vez mais freqüente, surgem da intervenção de especialistas que, acabam assim,
por definir os contornos da própria vida social.
Apenas recentemente os estudos sobre população têm considerado a nupcialidade um
objeto de investigação por si (Xavier, 1986). Assim, alguns fatores podem ser encontrados
na literatura para explicar as uniões informais e suas proporções crescentes no país. Em
primeiro lugar, a união consensual pode ser vista não como um modelo ou uma categoria que
se imporia ou seria livremente escolhidos pelas pessoas em um quadro de opções disponíveis,
mas sim como uma “uma forma de ajuste dos agentes face ao cotidiano, ou melhor,
constituiria parte integrante das estratégias de sobrevivência da população” (DURHAM, 1980
e 1982; XAVIER, 1986).
Mudanças nas condições socioeconômicas das mulheres podem também ser acionadas
como fatores explicativos. A maior (e melhor) participação destas no mercado de trabalho
acompanhada de uma maior participação no espaço público - devido ao aumento de sua
escolarização, ainda que comparativamente permaneçam desigualdades em relação aos
homens, tornariam as mulheres menos dependentes ou menos atraídas pelos modelos
tradicionais de família (VAITSMAN, 1994 E 1997). Além disso, o declínio dos valores
tradicionais e do peso relativo dos controles religiosos e comunitários sobre os
comportamentos, associados ao individualismo crescente na era moderna, tem tornado as
pessoas menos susceptíveis a regulação institucional e tradicional.
Outro ponto destacado pela literatura é a impossibilidade de, frente a impedimentos
legais ou constrangimentos de ordem religiosa, as pessoas formalizarem sua união. Até 1977,
quando foi instituído o divórcio, os desquitados estavam impedidos legalmente de
formalizarem uma segunda união, da mesma forma, a indissolubilidade pregada pela Igreja
Católica não o permite até hoje, restando, portanto, aos que desejassem uma segunda união
apenas a informalidade. O novo Código Civil estabelece, com base nesta situação, uma
161
distinção entre concubinato e união estável, ficando o primeiro restrito às uniões que não
poder ter reconhecimento formal em função de impedimentos de ordem legal, tais como:
bigamia ou incesto. Ainda que reconheça alguns direitos quando existirem FILHOS.
Analisando dados sobre nupcialidade nos anos 80, Elza Berquó e Maria C. Oliveira
(1992) concluem ser difícil estabelecer correlações entre a nupcialidade e crises econômicas
que expliquem as variações no Brasil nesta década. Estudando especificamente famílias
faveladas, Ivonete Xavier (1986) conclui ser a união consensual uma forma de enfrentamento
das dificuldades do cotidiano e assim, uma estratégia de sobrevivência para famílias
populares.
Além disso, taxas de nupcialidade variam de acordo com tendências demográficas. A
maior ou menor oferta de um dos sexos leva a uma situação de “compressão do mercado
matrimonial” (GREENE e RAO, 1992). Quando a pirâmide etária apresenta concentrações
maiores nas faixas na qual as mulheres são recrutadas para formar famílias e menores nas
quais são recrutados os homens
95
, “faltam” homens e a compressão tende a ser compensada
por diferentes mecanismos. Entre eles os recasamentos para os homens, que acentuaria a
tendência à união informal, uma vez que, com taxas mais altas de recasamentos a
formalização da união se torna, por um lado, menos desejável e, por outro, restrita por
questões religiosas e legais. Como dito acima, uma razão sempre aventada para uniões
informais é a impossibilidade de formalizar a união para quem foi casado, seja perante a
Igreja, que efetivamente não aceita esta possibilidade, seja perante o judiciário, na hipótese de
não ter sido desfeita união anterior junto à justiça. Há ainda razões de ordem subjetiva de
diminuem o desejo por formalizar a relação da parte dos que já tiveram um casamento
desfeito anteriormente. Mais recentemente tem-se também enfatizado a existência de uma
95
uma tendência de que os casamentos ocorram com homens mais velhos que as mulheres. Isso é geralmente
explicado em termos culturais ou em função da escassez de homens e o maior poder social destes sobre as
mulheres.
162
opção pela informalidade, ou seja ser ela também uma questão de escolha e uma forma de se
contrapor a valores tidos como opressores (VAITSMAN, 1994).
Maria da Conceição Quinteiro (1990), em pesquisa sobre relações não formalizadas,
realizada com diferentes perfis sociais, apresenta algumas nuances próprias das análises
qualitativas. Um primeiro aspecto levantado pela autora é a hipótese mais geral de que as
uniões ganham novos significados a medida em que passam a ser práticas recorrentes e de
diferentes segmentos sociais, e também, a medida em que passam a ser abrigadas
juridicamente. De acordo com a autora:
As uniões conjugais na atualidade prescindem da legalização, tanto É assim que a
discriminação observada no passado sobre quem não cumprisse os rituais formais,
hoje é tênue, pois as uniões não legais, já se Inscrevem no repertorio conjugal,
Inclusive no âmbito do direito civil haja vista a vasta jurisprudência que as protege.
Esta não existe por acaso. Veio ao encontro das situações de fato no sentido de
normatizá-las. (QUNTEIRO, 1990, p. 7).
Ainda de acordo com esta autora, as uniões informais aparecem de modo distinto entre
as camadas populares e nas classes médias. Normalmente associada às camadas populares,
quando estendidas às classes médias mudaria seu conteúdo e, revestida de modernidade e
contestação a moral matrimonial rígida e tradicional (QUNTEIRO, 1990), promoveria
também uma mudança do seu significado para camadas sociais. Paradoxalmente, de acordo
com Segalen (2002) mesmo essa rejeição de valores e modelos tradicionais, entre as camadas
superiores, pode vir acompanhada de uma revalorização dos rituais tradicionais, ainda que
somente como aspectos exteriores. Segundo Quinteiro:
De fato, as uniões não legais carregam os estigmas morais e de classe. Mais,
recentemente, as uniões não legais deixaram de ser privilégio das camadas
populares, fazendo com que se alterem as visões a seu respeito. (QUNTEIRO, 1990,
p. 8).
A autora opta pela designação não-legais, perdendo um pouco de precisão, mas
evitando a associação com categorias que podem ter conteúdos utilizados pejorativamente
entre os pesquisados. Qual a melhor expressão: concubinato? União livre? Vários designam
situações combatidas e por isso soam pejorativamente, como se expressassem algo moral ou
163
ilegal (QUINTEIRO, 1990). Entre os seus entrevistados, a autora registrou uma maior
dificuldade de definição da própria situação conjugal entre os pertencentes às classes médias,
enquanto os que se encontravam em camadas populares mais freqüentemente se definem
simplesmente como “casados”.
Outra questão importante diz respeito às formas sociais de controle. Estar fora do
“legal” não significa estar fora de controle, como, aliás, fica claro pela manipulação dos
estigmas. Segundo a autora:
A família exerce papel controlador da união, porque cabe a ela mais do que a
qualquer outra instituição, a vigilância para que o modelo tradicional de casamento
seja reproduzido, ou para que dele se aproxime. Nesse sentido, dependendo da
permissão do casal, ou de um dos cônjuges, a família exerce com força seu papel
globalizante e interfere diretamente na vida conjugal, a família estimula enlaces,
desenlaces e reenlaces. (QUINTEIRO, 1990, p. 16).
Também o grupo de amigos e vizinhos, ainda que não da mesma forma nem com a
mesma intensidade, pode reforçar esse controle. Podem também, ao promover aceitação
social ao casal, atenuar o preconceito social decorrente da ausência de formalização.
Entre as camadas populares, é principalmente a família que legitima as uniões o
legais, e o faz, geralmente tendo como critério maior ou menor proximidade com o modelo
tradicional: a família o se opõe a este tipo de união, contando que o casal reproduza a
relação conjugal e familiar do “modelo tradicional” (QUINTEIRO, 1990: 19).
nas classes médias, o ideal de autonomia e liberdade presente de forma marcante
nesses segmentos e nas identidades sociais ali formadas, imprime um padrão distinto de
relação entre o casal e a família, exatamente para evitar o caráter englobador das famílias.
Mesmo quando estas famílias de classe média tendem a aceitar melhor e mais rapidamente as
uniões não legais, em nome de valores modernos, são mantidas mais afastadas do casal para
evitar interferências e “preservar” as relações:
O período de vigilância familiar às vezes de longa duração é visto como
indispensável para a consecução da união. Mas, por outro lado, a família passa a
aceitar a união depois desse período de “decantação” das arestas, resultantes da
negociação que envolve a autonomia conjugal. Por vezes, a aceitação chega a
bom termo com o nascimento do primeiro filho, momento em que a união está mais
164
próxima do modelo e o casal mais próximo da família. (QUINTEIRO, 1990, p. 20).
Ainda segundo esta autora, esse afastamento estratégico da família tende a valorizar e
aproximar o grupo de amigos, pois um dos aspectos mais significativos é preservara as
relações conjugais das tensões inerentes às morais sexuais com margens de tolerâncias
distintas entre as diferentes gerações. Além disso, internamente às relações, respeito e auxilio
são as “moedas” que agenciam a relação em arranjos que consideram a formalização apenas
um assessório ou mesmo um impedimento ao desempenho satisfatório das trocas. De certo
modo, a oposição entre: fazer por gosto e fazer por obrigação, é um operador da lógica que
preside as relações internas e, ao mesmo tempo, um articulador das representações
estabelecendo uma hierarquia entre o formalizado e o espontâneo, esse mais valorizado.
Da mesma forma, as representações carregam nos aspectos de autonomia individual e
liberdade, assim como facilidade para romper a união para sustentar essa hierarquia. O tempo
é uma dimensão estruturante, bem mais do que, segundo os entrevistados, vigoraria em um
casamento legal, precedido da afirmação felizes para sempre, ainda que apenas fática e
amarrado a procedimentos e prazos burocráticos. A união sem vínculo legal pode ser vista e
vivenciada como provisória, no sentido de ser uma etapa prévia a ser substituída pelo
casamento legal posterior, mas também no sentido de poder ser dissolvida para dar lugar a
uma relação mais satisfatória.
As diferentes razões apontadas para elucidar a informalidade crescente no Brasil são
recortadas por questões como: são essas uniões um fim e si mesmas ou um meio? Respondem
a questões meramente instrumentais, a desígnios normativos do meio social, a “vontade dos
agentes”, ou a constrangimentos legais e morais? Ou ainda, uma mistura disso tudo. Se
decisões sobre casar ou separar somente podem ser aproximadamente referidas a variáveis
sócio-demográficas e econômicas, somente uma análise qualitativa de casos pode apreciar as
motivações, e mesmo assim com limitações quanto a generalização.
No entanto, na literatura sobre o tema podem ser encontrados modelos organizados em
165
basicamente dois grupos, por um lado inspirados nas teorias econômicas aplicadas aos estudos
matrimoniais, fortemente influenciadas pela obra de Gary Becker
96
, vai-se enfatizar as
escolhas racionais e motivações de ordem práticas, por outro, se irá privilegiar considerações
de ordem moral para acentuar a determinação dos comportamentos por referência a modelos
legais ou sociais. Na primeira vertente, dependendo de como se colocam as questões acima,
um cenário explicativo pode ser armado da seguinte forma:
A teoria econômica trata o casamento como uma forma de contrato como outro
qualquer, sujeito a rescisões e novos contratos. Em termos microeconômicos, o
casamento se quando os ganhos esperados de se permanecer solteiro são menores
do que aqueles alcançados no casamento. O descasamento, por sua vez, ocorre
quando a utilidade esperada de se continuar casado está abaixo daquela obtida no
descasamento. Portanto, a probabilidade de descasamento é tanto maior quanto for a
diferença entre ganhos esperados do descasamento e aqueles esperados do
casamento. (Vieira e Rios Neto, 1996, p. 209).
A segunda vertente, pode ser exemplificada pela idéia de submissão a modelos
valorados culturalmente ou impostos juridicamente. Talvez o que tenham em comum ambas
as perspectivas é que, tomam a não submissão aos modelos como problema, quando talvez a
pergunta fosse quanto a efetividade dos modelos na determinação de formas de ação. A partir
de duas ordens de problemas, como se pode discutir os limites e alcance da lei e das práticas
judiciais sobre fenômenos como o aumento da incidência de uniões não formalizadas? E
como responde a ele? A questão de fundo passa a ser identificar é se a lei tem algum papel na
nupcialidade como a regulação jurídica ante a proliferação de uniões consensuais e de outras
modalidades de relação , tais como a “união estável” e a “parceria civil”.
As leis a margem do casamento: união estável e parceria civil
A baixa efetividade da regulação jurídica sobre comportamentos familiares – indicada,
por exemplo, na quantidade de relacionamentos feitos e desfeitos à margem do sistema
judicial - pode também ser vista como resultado de diferentes graus de compromisso entre o
discurso jurídico e as práticas que ele condena ou valoriza. Tal compromisso deve ser
96
Sobre a influência deste autor, ver Göran Therborn (2006)
166
organizado por um equilíbrio entre o exercício de poder soberano e de poder disciplinar, nos
termos de Michel Foucault, ou seja, uma regulação direta, através da aplicação de
mecanismos de sansão positiva ou negativa e uma regulação baseada no estabelecimento do
que é ou não normal
97
. Considerando ainda que, no sistema disciplinar, o casamento é um dos
dispositivos privilegiados que incide sobre a família que, por sua vez regula os corpos e
comportamentos.
A existência de um capítulo inteiro no código penal dedicado aos crimes contra a
família, que estabelecem medidas punitivas a condutas consideradas ofensivas à família, pode
ser considerado uma expressão dessa dualidade de poderes que cerca o discurso jurídico, no
entanto, sua baixa efetividade quem é, por exemplo, condenado pelos crimes ali previstos?
um exemplo de o quanto é complexo o compromisso que se estabelece entre o direito de
família tal qual formulado nos códigos e as práticas sociais destinadas a instituí-los.
Parte desta complexidade pode ser deduzida do duplo aspecto ligado ao
funcionamento do direito: sua eficácia material e sua eficácia simbólica
98
. De fato parece ser
amplamente reconhecido que exista uma função pedagógica no direito
99
e, em particular, no
exercício do direito de família, que extrapola a colocação em prática de seus preceitos legais.
Tal função se inicia com uma dupla tradução, primeiro na formulação das leis:
O legislador, interpretando ao nível do direito a ideologia dominante em sua época,
ao regular as relações entre pais e filhos, marido e mulher e dependentes de vários
matizes, ao organizar a estrutura do casamento e do regime de bens, cumpre uma
função não só normativa, mas principalmente valorativa, que decodifica, ao nível do
direito, as relações de poder e a delimitação dos papéis sociais. (ALVES e
BARSTED, 1989, p. 167).
A seguir, as leis são interpretadas nos tribunais em contato direto com os casos a que
97
A distribuição das questões relacionadas à família nos textos legais é um indicador da busca deste equilíbrio,
tais questões podem ser encontradas nos dispositivos que regulam o trabalho feminino, nas questões
previdenciárias e em mecanismos diretos de incentivos, tais como salário família.
98
Ver, por exemplo, Jacques Commaille, (1986) e Pierre Bourdieu (1989)
99
Como diz Durkheim (1999), a punição se dirige antes ao homem honesto que ao criminoso. Foucault (1999)
ao descrever a mudanças no sistema de penas na Europa desde o século XIX, acentua o processo de
normalização como incidindo menos sobre a reforma social afastando-se do iluminismo e mais sobre uma
reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento, redefinindo-se assim, suas “funções”
pedagógicas.
167
devem ser aplicadas
100
. Assim, as pretensões do direito em regular a família não se
concretizam automaticamente com a promulgação das leis. Tampouco pode se deduzir das
leis a eficácia dessa regulação ou uma transposição mecânica e homogênea de seus conteúdos
de forma imediata para a realidade social.
Afirmar o direito como protetor da família (assim como da propriedade), bem como
afirmar seu poder regulador das relações sociais é, certamente, um ato político, pois situa o
discurso jurídico em um mercado de idéias gerais em confronto por legitimidade, mas,
estender estas afirmações a suas práticas concretas para efetivação de um ou mais modelos de
família não é algo simples. A seguir as advertências de Michel Foucault (1993), não se deve
procurar deduzir de uma lógica própria do sistema capitalista práticas de dominação, mas sim
identificar as lógicas próprias de sistemas de dominação “locais” e investigar os interesses que
estes possam apresentar para o funcionamento da sociedade burguesa.
A complexidade destas questões pode ser observada, por exemplo, a partir de duas
ordens de discussão: os debates em torno do reconhecimento da chamada união estável e do
casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ambas refletem as disputa entre as visões laicas e
religiosas sobre a conjugalidade, o papel de destaque das questões patrimoniais e os aspectos
“contratuais” emprestados às relações conjugais.
O reconhecimento de relações conjugais não formalizadas, para fins de direito, foi
construído paulatinamente (COSTA, 1999), significou a criação gradual de mecanismos que
permitem à “família natural” - sobretudo à mulher - o acesso a direitos antes reservados aos
casais juridicamente estabelecidos aos quais o discurso jurídico reserva a designação
casamento, tais como direitos relacionados à herança e à pensão.
Nos debates em torno do reconhecimento do direito ás relações não formalizadas,
destacam-se argumentos como os que afirmam ser esse um passo na destruição da própria
100
Ver, por exemplo, a interpretação que Bourdieu (1983) aos mecanismos interpretativos acionados pelos
operadores de direito.
168
família, no entanto, a criação do mecanismo citado acima tem sido responsável por um
aumento na procura do sistema judicial para o reconhecimento jurídico de relações familiares.
Ao contrário de diminuir o número de casamentos formais, favoreceu seu aumento
101
.
Mesmo à margem da legislação que regula a família, este tipo de proteção podia ser
observado em áreas contíguas, como por exemplo, na justiça do trabalho e em decisões
isoladas, fruto de pressões sobre o judiciário. Mas circunscrito a questões de ordem
patrimonial. Nos anos 40, a legislação trabalhista reconheceu o direito à pensão à mulher cujo
parceiro, ou seja, aquele com que vivia sem ser casada, houvesse morrido em acidente de
trabalho, desde que ele não tivesse familiares legalmente habilitados à pensão. Nos anos
sessenta, uma súmula
102
do Supremo Tribunal Federal, que diz: “comprovada a existência de
sociedade de fato entre os concubinos
103
, é cabível sua dissolução judicial com a partilha do
patrimônio adquirido pelo esforço comum” (apud BARSTED e GARCEZ, 1999 e também
COSTA, 1999. Grifo meu) criou um mecanismo particularmente adequado para a regulação
de questões patrimoniais, mas não para relações familiares: a união de fato.
Para comprovar a sociedade de fato
104
, inicialmente se fazia necessário demonstrar a
contribuição da mulher à formação do patrimônio, ao longo dos anos 70, passou-se a
considerar essa “contribuição” na forma dos serviços informais ou mesmo serviços
domésticos e cuidado de filhos - aos quais teria a mulher se dedicado durante a relação, como
suficiente para habilitá-la para a partilha do patrimônio (COSTA, 1999). Ainda na década de
70 concedeu-se o direito ao sobrenome e o reconhecimento da concubina como dependente
para fins do imposto de renda e, finalmente, com a constituição de 1988 passou-se a
101
Uma contradição interessante é percebida por SCOTT (2001), que afirma ser, em parte, o aumento de famílias
sem casais resultado da valorização da conjugalidade e não de sua desvalorização.
102
Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, de 1960.
103
Distinguindo-se concubinagem pura e impura, sendo a primeira entre pessoas que não tivessem restrições
legais ao matrimônio e a segunda a aquele que por alguma razão estivessem a isso impedidos.
104
A terminologia adotada é significativa, pois sociedade remete a sócios, portanto, contrato e “de fato” se opõe
à legal, no sentido de formal, tal qual aparece recorrentemente na distinção: de fato e de direito.
169
reconhecer tais uniões como constituindo família
105
. Seguiram-se outras leis, em 1994 e 1996
e, recentemente, com a entrada em vigor do novo Código Civil
106
, que consolidaram esta
tendência.
Por trás da transformação dos termos: união de fato, união concubina e, finalmente,
união estável e das resistências à aprovação dessas leis, revela-se uma gradual passagem da
concepção de estas relações não formalizadas poderiam ser aproximadas a um contrato que
tenha por objetivo proteger direitos patrimoniais, sobretudo para a mulher, para um
reconhecimento destas relações como constituindo famílias, mesmo que a margem do
casamento. Se a “união estável” demonstra particularmente bem o caráter contratual e
patrimonial, é a “parceria civil” que vai expor de forma mais aguda as implicações contratuais
da relação. É também uma forma de estender a legitimidade de uma sexualidade “domada”,
tal qual é a do casamento reconhecido e vinculado não exclusivamente ao hedonismo, a uma
sexualidade vista sempre como ilegítima.
O debate sobre a extensão de direitos relativos à conjugalidade e parentalidade a
pessoas do mesmo sexo é marcado pelas questões ligadas a concepções do que é ou não
família, como também das representações sobre a homossexualidade, sobre a sexualidade em
si e em suas relações com a família (UZIEL, 2004; MELLO, 2005). Tal debate ganha
importância com o aumento da visibilidade das relações homossexuais no final do século XX
e insere-se em um movimento maior de busca por igualdade que se entende, abrangendo não
somente:
[...] o direito à cidadania, em nível individual, mas, também, o direito à constituição
de grupos familiares, integrando-se ao rol de sujeitos sociais portadores de
demandas que, no mundo ocidental, convencionalmente realizam-se por meio da
constituição do casal conjugal e da socialização de crianças filhos biológicos ou
adotivos. (MELLO, 2005, p. 200).
105
O art. 226 § da Constituição Federal de 1988 estendeu o reconhecimento de entidade familiar à união
estável entre o homem e a mulher: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
106
Cujas contribuições mais significativas nesse assunto parecem ser: a substituição do pátrio poder por poder
familiar, a substituição da expressão “todo homem é capaz” para “toda a pessoa é capaz”.
170
O marco inicial das discussões sobre “casamento entre pessoas do mesmo sexo”
parece ser a criação da Frente Parlamentar Mista Pela Livre Expressão Sexual, em 2003, no
entanto, é com o Projeto de Lei 1.151/95
107
que a discussão ganha maior visibilidade. Os
debates em torno deste projeto sinalizam a permanência de um conflito entre uma visão laica
e uma visão religiosa da conjugalidade e revelam que, ainda que a questão da conjugalidade
em si possa ser vista como a motivação inicial, as demandas concretas que chegam aos
tribunais dizem respeito a questões de ordem patrimonial, e a condução dos debates por
questões estratégicas - o descaracterizaram como do âmbito da família para o dos contratos
(MELLO, 2005). Como a constituição restringe o casamento a relações entre homens e
mulheres, conduzir o debate em termos de “casamento” daria margem aos opositores para
alegar a inconstitucionalidade da lei (MELLO, 2005). No substitutivo do projeto Lei n°
1.151/95 o termo união civil foi substituído por parceria civil registrada acentuando ainda
mais o recuo que vai da regulação sobre a família para a regulação sobre contratos, ainda que
os argumentos utilizados no debate mantivessem no horizonte a questão original da proteção
jurídica a relações familiares constituídas por pessoas do mesmo sexo (JESUS, 2005; UZIEL,
2005).
Na condição de um contrato”, a parceria civil registrada guarda, no entanto,
especificidades. Por um lado, o caráter familiar, em oposição ao meramente contratual se
revela, por exemplo, no estabelecimento de precedência para curatela ao “parceiro” em
detrimento dos parentes e também pelo fato de que a parceria pode ser efetuada por quem
seja (e permaneça) solteiro, divorciado ou viúvo, não podendo, portanto se sobrepor ao estado
civil. Por outro lado, em se tratando de contrato, está submetido a um regime de rescisão mais
simples do que aquele que atinge o casamento.
107
Anteriormente, uma proposta de emenda condicional - a PEC 70/2003 propunha a modificação do § 3 do
art. 226 que restringe a união estável a relações entre homem e mulher, mas o debate alcançou repercussão
com o projeto de lei citado.
171
Novas conjugalidades e o contrato de namoro
Outra forma como a questão da moralização das relações conjugais pode ser
visualizada diz respeito os estudos sobre conjugalidade nas camadas dias urbanas. Estes
estudos trazem à tona os princípios morais que organizam as relações em contextos marcados
por inúmeras especificidades
108
. Um destes aspectos é a configuração que assume as uniões
diante das formas como o indivíduo é valorizado e representado e os valores de igualdade
cultivados. As marcas da conjugalidade igualitárias que daí emerge seriam a psicologicidade,
a igualdade e a mudança (SALEM, 1989; HEILBORN, 1993 e 2004). Mas também a idéia de
mutualidade e simetria regendo as relações. Decorre como conseqüência desta configuração,
ainda que sem ser destituída de assimetria de gênero que permanece de diversas maneiras:
A conjugalidade encerra, assim, uma realidade supra-individual e move-se em
termos de um contrato, o necessariamente consciente, que chancela uma
dependência recíproca. Entre os parceiros. É este caráter privado do casamento,
diante do qual outros vínculos adquirem um caráter metonímico, que explica a
operação de certos mecanismos sociológicos que, acoplados à regra da simetria da
troca a mutualidade dão origem a uma espécie de contabilidade conjugal. Trata-
se um mecanismo de aferição do contrato, que freqüentemente tem por alvo a
disponibilidade de cada um dos membros em cumprir o acordo de mútua
dependência que o casamento encerra.(HEILBORN, 1993, p. 15-16).
O contrato nesse contexto é uma metáfora para expressar a atribuição de desempenho
mútuo de ações, e não tem, evidentemente, sentido jurídico– é um contrato moral. Este
contexto é marcado pelo desprezo a qualquer tipo de formalização – a privatização do
casamento. No entanto, a própria metáfora é indicativa de algo próximo de uma
contaminação pela linguagem jurídica e, em maior grau expressa padrões de relações
intercambiáveis entre domínios ou províncias de significados distintas. Refere-se mais a
forma que ao conteúdo da relação. A retórica da legalidade e seus códigos acabam por
contaminar com sua racionalidade/reciprocidade próprias as últimas fronteiras da
subjetividade, num processo semelhante ao que Jürgen Habermas chama de colonização do
108
Para uma revisão dos estudos de família nesse contexto, ver Tânia Salem (1986) especificamente sobre
conjugalidade, ver Tânia Salem (1989), Maria Luiza Heilborn (2004) e Jeni Vaitsman (1994).
172
mundo da vida e Anthony Giddens de “seqüestro da experiência”
109
.
Na medida em que transformações sociais e as disputas de “poder” entre família,
Estado e Igreja, vão transformando o casamento, este deixa de ser visto como um estado e
mais como um ato. De acordo com Bologne:
Tendo-se tornado a conclusão de uma história de amor e não o início de um novo
estado, o casamento tende a tornar-se um acto e não um estado. não é através do
casamento que o homem encontra o seu lugar na sociedade, mas pela sua posição
social e pela sua profissão. Já não é necessário estar casado para reconhecer um filho
e fazer dele herdeiro. Quanto à sexualidade, desde a descoberta dos meios de
contracepção e de protecções eficazes contra as doenças sexualmente transmitidas,
não tem de ficar confinada ao casamento. As velhas justificações do casamento
caem por terra uma atrás das outras; permanece um laço simbólico, uma tradição
social que mantém a sua sedução, mas não a sua necessidade. (BOLOGNE, 1999,
p. 381)
Em um movimento contrário ao que Foucault em sua História da Sexualidade e
Sennet em O declínio do Homem Público atribuem ao sexo quando de sua transformação em
sexualidade, o casamento deixa cada vez mais de ser parte dos próprios sujeitos e sim algo
externo. Uma das formas de se visualizar a sutilezas deste distanciamento é através do
surgimento e discussão de idéias como a de um “contrato de namoro”
Uma rápida consulta a Internet pela expressão contato de namoro”, traz dezenas de
referências distribuídas da seguinte forma: 1- alusões uma matéria de jornal que teria
apresentad0 o tal contato como “modismo” ente os habitantes de uma grande cidade a
elaboração de um contrato de namoro que serviria posteriormente para evitar que uma das
pessoas pleiteasse o reconhecimento da relação com “união estável”, sem apresentar qualquer
comprovação de que não fosse uma prática isolada de pessoas em circunstâncias
excepcionais. 2 Opiniões de juristas a respeito, praticamente todos considerando nulos os
efeitos de tal contrato, o que não deixa de ser curioso quando se observa a quantidade dos
debates para se discutir algo que não tem fundamento, tampouco é praticado de forma
109
O processo que este denomina “colonização do mundo da vida”, que tem embora muitas diferenças, tem
também semelhanças com o que Giddens chama de “seqüestro da experiência” representam uma forma de
intervenção no cotidiano pelos sistemas operando um processo de transformações gerais nos papéis através dos
quais se relacionam indivíduo e sociedade, ou nível sistêmico e mundo da vida, no âmbito da esfera pública o
papel de cidadão perde espaço para o de cliente do estado de bem estar, no âmbito do privado há um inchaço do
papel de consumidor em relação ao de trabalhador.
173
recorrente, parece tocar algo sensível, que desperta interesse e leva a pensar. 3 – paródias
110
.
Esse terceiro tipo de referência é o mais importante. Em primeiro lugar, se lembrarmos
das paródias citadas por Bologne sobre os contatos de casamento, e após uma rápida análise
das paródias vê-se que nelas se vai satirizar a reificação do afeto, quando entre as cláusulas
estão incluídas a obrigatoriedade de “passear de mãos dadas”, “estar sempre feliz”, etc. Além
disso, a assimetria de gênero é constante nesse tipo de paródia. Mas, de certa forma, o que faz
desse tipo de material mais interessante é que ele pode ser visto como crítica inusitada à
intervenção das gicas próprias do discurso jurídico e da economia no plano dos sentimentos
envolvidos na relação entre duas pessoas.
110
A busca pela expressão “contrato de namoro” em um buscador na internet retornou 81.300 referências, no
Brasil.
174
Conclusões:
No primeiro capítulo: “politização do direito e da família”, trabalhei com a idéia de
que a linguagem do poder utiliza uma retórica da crise da família, para com isso sinalizar que
“família” é um importante articulador político. Essa natureza intrinsecamente política está
embrenhada nos discursos que tomam por objeto a família. Por outro lado, ela também é um
instrumento de poder e atualiza diferentes formas de dominação em suas relações internas.
Trabalhei também a idéia, mais evidente, de que o direito é um operador de poder, seja
do poder soberano que tem o Estado como sujeito, ou do poder disciplinar, difuso. Apresentei,
brevemente a sugestão de que as relações com e de poder do direito condicionam as
possibilidades de sua leitura externa. No que diz respeito à família, o direito estende seus
braços na forma de tentativas de regulação diretas, como práticas de gestão e na forma de um
poder simbólico. Mas não se estende de forma mecânica ou mesmo controlada, tampouco
deixa de se contaminar, reflexivamente, pela realidade que pretende dominar, seja no contato
direto com seus “objetos”, nas varas de família, seja nos diálogos com outros saberes,
sobretudo no momento de formulação de suas leis.
No segundo capítulo: “ciências sociais e direito”, tentei estabelecer alguns pontos de
distanciamento e aproximação entre as ciências sociais e o discurso jurídico, revendo
alternâncias entre amor e ódio, desde uma possível origem comum, nas práticas sociais e nos
saberes emergentes no final do século XIX e princípio do século XX, desnecessário talvez
repisar a emergência do positivismo como ponto de contato, procurei então sinalizar alguns
dos conflitos entre ambos, e seus compromissos com modelos de sociedade e de pessoa,
eventualmente opostos. Na medida em que as ciências sociais procuram se institucionalizar a
partir de uma nova sensibilidade para perceber a sociedade como realidade cognoscível e
175
poder causal, bem como o indivíduo como sujeito de conhecimento, o discurso jurídico
desenvolvia uma nova sensibilidade para o indivíduo como sujeito de direitos e a ordem
social como objeto de intervenção. Também procurei ressaltar que o direito é tanto um
discurso quanto uma prática.
A distinção elaborada por Simmel entre individualismo qualitativo e individualismo
quantitativo, ainda que pouco explorada, está subjacente a essas leituras e aparece como uma
chave para compreensão de grande parte das dificuldades relacionadas a forma como o
disrcusso jurídico se ajusta às transformações sociais no que diz respeito à relações familiares.
Ainda neste capítulo, em um subtópico denominado “Antropologia e direito”, procurei
assinalar algumas das especificidades da leitura antropológica dos fenômenos jurídicos, se é
que é possível utilizar a expressão “jurídico” impunemente para designar a diversidade de
objetos sobre os quais a Antropologia lança seu olhar. Primeiramente expondo brevemente
um debate clássico da antropologia no qual as noções de vida, contrato e obrigação em
diferentes contextos etnográficos foram expostas à discussão. Distanciando-me um pouco das
razões últimas do debate - ser ou não pertinente a utilização de categorias do direito ocidental,
para análise em situações não modernas - procurei reter algo da matéria prima utilizada pelos
autores mobilizados nos debates.
Tais categorias serviram não apenas para caracterizar o moderno e o não modernos
como antes e depois da grande transformação autonomizam esferas publica, privada, estatal
e o mercado. Mas para acentuar a relatividade destas separações e a complexidade social.
A seguir, retorno a alguns autores clássicos, como Malinowski, para com ele tentar
evitar os riscos da tentação de acreditar na “submissão automática às leis”, ou seja atribuir a
elas um poder determinante sobre os comportamentos, assim como também manter no
horizonte as advertências deste autor quanto ao caráter sistêmico do direito. Com a leitura de
Marcel Mauss, foi possível apresentar suas teorias sobre os fundamentos do direito e
176
economia, em especial a afirmação da indistinção entre coisas e pessoas no direito primitivo.
Assim como sua concepção sobre a lógica social que rege as relações no interior de um grupo
social e que estão pautadas, não na racionalidade contábil capitalista moderna, tampouco em
seu oposto, um irracionalismo ou um estado pré-lógico qualquer, mas sim em princípios de
reciprocidade que se expressam em “obrigações”, jurídicas ou não. Em outro autor, Clifford
Geertz, procurei resgatar a idéia de que o direito é um modo de imaginar o real e criar
mecanismos para fazer a realidade se aproximar e reforçar o imaginado. Também a idéia cara
a este autor de que a cultura é um conjunto de símbolos e a Antropologia, assim como a vida
social, consiste no constante decifrar e transmitir esses símbolos, o discurso jurídico não está
fora deste circuito. Por fim, procurei mostrar a pertinência e a possibilidade de usar categorias
nativas para, através de um trabalho de comparação, conhecer melhor a sensibilidade jurídica
nas situações focalizadas nesta tese.
Por fim, ainda neste capítulo, procurei apresentar alguns estudos sobre o universo
jurídico no Brasil que tenham mais ou menos explicitamente se utilizado das ferramentas
teóricas da Antropologia. A leitura destes trabalhos levanta a suspeição quanto à prevalência
de uma concepção relacional de pessoa por trás das práticas jurídicas, em maior ou menor
contradição com a matriz teórica liberal que daria às fundações de nosso sistema de práticas
judiciais e de leis, seus pressupostos teóricos e metodológicos.
A seguir, trabalhei com a idéia de que as análises sobre a família no Brasil reproduzem
uma equação na qual que modelos de família podem explicar e descrever a família. E idéia de
que a ênfase na estrutura da família e nos processos sociais que atuam sobre ela reforçam a
idéia de que sua construção se dá por referência à modelos e não pela manipulação de
códigos, e que isso não consegue dar conta da diversidade contemporânea.
Para argumentar nesse sentido, primeiramente, apresento baseado em diversos autores,
a diversidade social com característica das sociedades complexas, e, a seguir apresento a
177
perspectiva de que a família é uma instituição por oposição a sua fundamentação na natureza,
por outro lado sua institucionalização se pela articulação de diferentes dimensões da vida,
sexualidade, reprodução, etc. Além disso, se pela manipulação de códigos e através do
estabelecimento do “normal” e de práticas administrativas. Diante disso, a diversidade deixa
de aparecer como residual, algo que deve ser explicado tendo como pano de fundo a
“eficácia” dos modelos ou sua destruição. Nesse cenário, o direito deixa de se visto como se
tivesse uma capacidade de modelar a realidade superior a que possui e a lei surge como
alegoria da vida social. Todo isso tendo como efeito realçar a diversidade de formas de viver a
família e o casamento.
Optando pela idéia de códigos, a diversidade vem à tona e os mecanismos de
interpenetração entre diferentes discursos e diferentes práticas ganham visibilidade. O
casamento é a parte mais sensível da “crise da família”, e ao mesmo tempo é um ponto nodal
das relações entre direito e família. Assim, representa o encontro/síntese de lógicas distintas.
Se, por um lado, é próprio da modernidade a família como um espaço do afeto, por outro, o
casamento, não está imune à contaminações externas tais quais expressas nas criticas à sua
redução a um contrato.
Uma breve visita histórica, no capitulo: “o espírito do casamento” – permite apontar os
indicadores de diferentes códigos: o sacramento e o contrato. Ao mesmo tempo indicar uma
base sociológica sobre a qual se assenta a diversidade de formas e fórmulas para se unirem
duas pessoas. Na última parte, procuro ilustrar essas questões com nossa história.
Por fim, usei, de modo um tanto pretensioso, a expressão “espírito”, sobretudo porque
o faço inspirado em dois grandes mestres: Marcel Mauss e Max Weber. E se o faço é porque,
não ambos têm muito a dizer sobre os problemas aqui presentes como também sobre a
forma de enfrentá-los. Marcel Mauss, na abertura de seu Ensaio Sobre a Dádiva, recorreu a
um poema escandinavo para poder transportar seu leitor para a atmosfera das idéias e fatos
178
nas quais ele se propunha construir seus argumentos, posto que, sem esse movimento o
espírito da dádiva, dificilmente poderia ser compreendido, posto que entre nós a dádiva se
encontra soterrada por várias camadas de racionalidade e pragmatismo.
Max Weber, por sua vez socorreu-se de Benjamim Franklin, na exposição
metodológica de sua Ética protestante e o espírito do capitalismo, para descrever o que ele
está designando espírito do capitalismo sem contaminá-lo com preconceitos religiosos e
teóricos que lançassem o leitor antecipadamente para o final do que deveria ser uma longa
jornada. Para introduzir a idéia de que haveria um espírito, ou um colorido próprio nos
contratos/compromissos conjugais, transcrevo a seguir uma citação que talvez não tenha o
mana das citações acima, mas tem a vantagem de não ter de nos levar tão longe quanto a
Escandinávia e cujas digitais teóricas e religiosas antecipam o ponto de chegada:
Nos próximos parágrafos poremos em relevo o caráter analógico do termo
‘consentimento’. Com esse termo nos referimos tanto aos contratos quanto ao pacto
conjugal, mas não em idênticos sentidos. Embora nos contratos bilaterais as pessoas
intercambiem direitos ou deveres, que recaem sobre ‘coisas’, quer dizer, bens
extrínsecos aos próprios contratantes, no pacto conjugal se entregam os esposos
mesmos; entregam e aceitam reciprocamente as próprias pessoas. Essa diferença
radical deve ser respeitada sempre. De outra maneira, correr-se-ia o risco de
provocar um reducionismo antropológico, aplicando à realidade interpessoal do
pacto do matrimônio categorias que m sentido num âmbito econômico, regido
pela utilidade e pela funcionalidade. (CARRERAS, 2004, p. 51).
111
Parece que está tudo aí. Mas separado. O consentimento como fundamento de um
pacto. Mas o consentimento tanto pode servir a um pacto no qual entram as pessoas dos
pactuantes, quanto a um contrato frio, útil, formal, no qual coisas são negociadas e do qual
fazem parte direito e deveres. De um lado o mercado, o jurídico, de outro a privacidade das
famílias e das consciências (que consentem).
O contrato é uma terceira coisa que não se confunde com as partes que o instituem. No
sacramento as pessoas não podem se distinguir, se separar da substância da relação que
assumem. O casamento oscila entre os dois e entre eles circulam bens (afeto, etc) e bens
111
O autor é Doutor em direito pela Universidade Central de Barcelona, Doutor em direito Canônico pelo
Pontifício Ateneu da Santa Cruz, em Roma de onde é professor de direito matrimonial canônico, é também
advogado da Rota Romana.
179
materiais.
A categoria compromisso, utilizada para relacionamentos conjugais e para representar
o estabelecimento de laços afetivos, morais e até mesmo comerciais é suficientemente larga
para que nela, dependendo do contexto, deslizem os conteúdos discutidos aqui em outros
momentos, nas categorias: dívida, contrato e obrigação. O casamento é um nódulo no qual se
concentram o jurídico, o moral e o afetivo.
A regulação jurídica do casamento é um em que direito das coisas, e das pessoas
aparecem juntos. Como afirmam Malinowski e Mauss, o direito é um sistema de
reciprocidade social, é um fato social total tanto no sentido de que possuem aspectos
econômicos, morais e mesmo religiosos, quanto no sentido de que sua organização é uma
mobilização social. A dádiva pressupõe um modo de sociabilidade que se opõem ao
meramente instrumental racional - e ao normativo. A reciprocidade como componente da
dádiva não significa apenas satisfação de necessidades, utilitárias, mas sim o reconhecimento
mútuo da dignidade dos parceiros (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004).
Por fim é possível olhar a família, ou melhor, os processos de sua “construção” como
se eles se realizassem pela manipulação de diferentes códigos. São fontes desses códigos: a
literatura, a bibliografia sobre família, a religião, a ciência, assim como o discurso jurídico.
Assumindo ser a família uma construção social, de alguma forma debates teóricos internos a
cada uma destas fontes contribuem para essa construção, e o judiciário tem boa chance de
funcionar como um mediador importante em todo esse processo. Na medida em que, em suas
formulações, estão presentes estes debates e na medida em que sua efetividade social, seja na
imposição do “normal” seja na disseminação de seus códigos próprios.
180
Referências:
Legislação e obras de referência:
BRASIL, Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada
em 5 de outubro de 1988: atualizada até a emenda constitucional N. 42 de 19-12-2003..
BRASIL, Código Civil (2002) Código Civil Brasileiro. Lei Nº 10.406, de 10-01-2002,
atualizada pela Lei Nº 10.825, de 22-12-2003. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRASIL, Código Civil (1916) Código Civil Brasileiro. Lei Nº 3.071, de 01-01-1916. Código
Civil. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRASIL, Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Código Civil, São Paulo: Saraiva, 2004.
181
Livros Artigos e Teses:
ADORNO, Sérgio. A ambivalência do ensino jurídico no Império. Ciências Sociais Hoje -
1987. São Paulo: ANPOCS/Edições Vértice, 1987, p. 9-32.
_____. Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as mortes que contam no Tribunal do
Júri. In: SOUTO, C. e FALCÃO, J. (orgs). Sociologia e Direito, 2 ed. São Paulo: Pioneira,
1999, p. 311-336.
AGUIAR, Neuma. Cidadania, concubinato e patriarcado: relações de gênero e direitos civis
na região metropolitana do Rio de Janeiro. In: PANDOLFI, D. et al. (orgs) Cidadania,
Justiça e Violência. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 181-204.
ALMEIDA, Ângela. Notas sobre a Família no Brasil. In: ALMEIDA, M. (org.). Pensando a
família no Brasil: da colônia a modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo/UFRJ, 1987, p.
53-66.
ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. Introdução: o cultural e o
político nos movimentos sociais latino-americanos. In: ALVAREZ, S.; DAGNINO, E. e
ESCOBAR, A. Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Belo
Horizonte: UFMG, 2000, p. 15-57.
ALVAREZ, Marcos. A criminologia no Brasil, ou como tratar desigualmente os desiguais.
Dados, Rio de Janeiro, vol. 45, n. 4, 2002, p. 677-704.
ALVES, Branca e BARSTED, Leila. Permanência ou mudança: a legislação sobre família no
Brasil. In: Ribeiro, I. (org.). Família e Valores. Rio de Janeiro: Loyola, 1989, p. 165-187.
ARANTES, Rogério B. Direito e Política: o Ministério Público e a defesa dos direitos
coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 14, n.39, fev. 1999, p. 83-
102.
AREND, Silvia M. Fávero. Amasiar ou casar: a família popular no final do século XIX,
Porto Alegre, Editora Universidade/UFRGS, 2001
ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita. Quando a vítima é mulher: análise de
julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: CNDM/CEDAC,
1987.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2° ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1981.
ASSIER-ANDRIEU, Louis. Le juridique des anthopologues. Droit et société. N 5, 1987, p.
91-110.
_____.O direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ÁVILA, Maria B.; PORTELLA, Ana P. e FERREIRA, Verônica (orgs). Novas legalidades e
democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond,
2005.
AZEVEDO, Rodrigo. Juizados especiais criminais: uma abordagem sociológica sobre a
informalização da justiça penal no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo,
vol.16 n.47. out. 2001, p. 97-110.
BARSTED, Leila L. e GARCEZ, Elizabeth. A legislação civil sobre família no Brasil. In L L.
BARSTED e J. HERMANN (org.) As mulheres e os direitos civis. Rio de Janeiro: CEPIA,
1999, p. 9-26.
182
BECK, Ulrich et al. Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997.
BECKER, Howard. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
BERQUÓ, Elza.; OLIVEIRA Maria.; CAVENAGHI, Suzana. Arranjos familiares "Não -
Canônicos" no Brasil. VII ENCONTRO DE ESTUDOS POPULACIONAIS. Anais, vol. 1,
Caxambu: ABEP, 1990, p. 99-135.
BERQUÓ, Elza.; OLIVEIRA Maria. Casamento em tempos de crise. Revista Brasileira de
Estudos Populacionais, Campinas, vol. 9, n. 2, 1992, p. 155-167.
BIANCO, Bela Feldman. Antropologia das sociedades contemporâneas – métodos. São
Paulo: Global Universitária, 1987.
BILAC, Elisabete. Sobre as transformações na estruturas familiares no Brasil: notas muito
preliminares. In: RIBEIRO, I e RIBEIRO, A. (orgs). Família em processos
contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. São Paulo: Loyola, 1995, p. 43-
61.
_____.Família: algumas inquietações. In: CARVALHO, M. A família contemporânea em
debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003, p. 29-38.
BOBBIO, Norbert. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOHANNAN, Paul. A antropologia e a lei. In Panorama da antropologia. Rio de
Janeiro/São Paulo/Lisboa: Editora Fundo de Cultura. 1966, p. 165-173
_____. A categoria injô na sociedade Tiv. In: DAVIS, S. (org.). Antropologia do direito. Rio
de Janeiro: Zahar editores, 1973a, p. 57-69.
_____. Etnografia e comparação em antropologia do direito. In: DAVIS, S. (org.).
Antropologia do direito. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1973b, p. 101-123.
_____. Justice and judgement among the Tiv. Illinois: Waveland Press, 1989.
BOLOGNE, Jean-Claude, História do casamento no ocidente. Lisboa: Temas e Debates,
1999.
BOTH, Elizabeth. Família e redes sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
BOURDIEU, Pierre. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In:
_____. O poder simbólico. Lisboa: Difel/Bertran, 1989, p. 209-254.
_____. A codificação. In Coisas ditas. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1990.
_____. O espírito da família. In Razões práticas. 6 ed. Campinas: Papirus, 2005.
BRÜGGER, Silvia. Casamento e valores sociais: o triunfo do discurso amoroso. X
ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, ABEP, Anais, vol. 3, 1996.
S/I.
BURGESS, Ernest. A família como unidade de personalidade em interação. In: PIERSON, D.
(org.). Estudos de organização social. Tomo II. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946,
p. 543-557.
_____. Uma ‘história natural da família’. In: PIERSON, D. (org.). Estudos de organização
social. tomo II. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946, p. 558-565.
CAILLÉ, Alain; GRAEBER, David. Introdução. In: P. H. MARTINS (org.). A dádiva entre
os modernos. Petrópolis: Vozes, 2002.
CALDEIRA, Teresa. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São
183
Paulo: EDUSP/Ed 34, 2000.
CAPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988.
CARDIA-VONÈCHE, Laura; BASTARD, Benoit. Lês silences du juge ou la privatisation du
divorce: une analyse empirique des décision judiciares de première instance. Droit et société.
N 4, 1986, p. 497-506.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis. Comparação e Interpretação na Antropologia Jurídica.
Anuário Antropológico 89. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/ ed. Universidade de Brasília,
1992, p. 23-46.
_____. Justiça, solidariedade e reciprocidade: Habermas e a antropologia. Série Antropologia
n° 149 Brasília: UNB, 1993.
_____. Legalidade e eticidade nas pequenas causas. In: _____. direito legal e insulto moral.
Coleção Antropologia da política. Nº 14. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de
Antropologia da Política, 2002, p. 31-46.
_____. A retórica do ressentimento e a evocação obrigatória dos sentimentos. In: _____.
direito legal e insulto moral. Coleção Antropologia da Política. Nº 14. Rio de Janeiro:
Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 2002, p. 75-93.
_____. Honra, dignidade e reciprocidade. Série Antropologia n° 344. Brasília: UNB, 2004.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Introdução a uma Leitura de Mauss. In: Mauss. São
Paulo: Editora Ática. 1979, p. 7-50.
CARRERAS, Joan. Casamento: sexo, festa e direito. São Paulo: Loyola, 2004.
CARVALHO, Eduardo. O negócio da terra. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991.
CARVALHO, Inaiá; ALMEIDA, Paulo. Família e proteção social. São Paulo em
Perspectiva, vol.17, n.2, abr./jun. 2003, p. 109-122.
CARVALHO, José Murilo. Cidadania: tipos e percurso. Estudos Históricos, Rio de Janeiro:
vol. 9 n. 19, 1996, p. 337-359.
_____. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 6 edição. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro, 2004.
CARVALHO, Maria do Carmo. O lugar da família na política social. In: CARVALHO, M.
(org.). A família contemporânea em debate. 5° ed. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003, p. 15-
22.
CASEY, James. A história da família. São Paulo: Ática, 1992.
CASTAÑEDA, Luzia. Eugenia e casamento. História, Ciências Sociais e Saúde -
Manguinhos. Rio de Janeiro: vol 10, n. 3, set-dez. 2003, p. 901-930.
CERQUEIRA F°., Gisálio; NEDER, Gizlene. Os Filhos da Lei. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. São Paulo, vol.16, n.45. fev., 2001, p. 113-125.
CHAPPLE, Eliot; COON, Carleton. A família. In: PIERSON, D. (org.). Estudos de
organização social. Tomo II. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946, p. 514-542.
CICCHELLI, Vicenzo; PEIXOTO, Clarisse. sociologia e antropologia da vida privada na
Europa e no Brasil: os paradoxos da mudança. In: PEIXOTO, C.; SINGLY, F. e CICCHELLI,
V. Família e individualização. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 7-11.
CANCHY, Michael. Lei e amor na Idade Média. In: A. HESPANHA, Justiça e litigiosidade:
história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
184
COELHO, Fábio Ulhoa. Direito e poder. Saraiva: São Paulo, 1992.
COLBARI Antonia. Familismo e Ética do Trabalho: O Legado dos Imigrantes Italianos para a
Cultura Brasileira. Revista. Brasileira de História, São Paulo, vol. 17, n° 34, 1997, p. 53-74.
COMMAILLE, Jacques. D 'une sociologie de la famille à une sociologie du droit. D 'une
Sociologie du droit à une sociologie des réguIations sociales. Sociologie et sociétés, Vol.
XVIII. Nº1, abril de 1986, p. 113-128.
CORREA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
COSTA, Carolina. Uniões informais no Brasil em 2000: uma análise sob a ótica da mulher.
Belo Horizonte, 2004. 67f. Dissertação (Mestrado em Demografia) - Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional. Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal de Minas Gerais
COSTA, Jurandir. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal. 1999.
COSTA, Leilah B. A evolução da proteção da união estável no direito brasileiro In L L.
BARSTED e J. HERMANN (org) As mulheres e os direitos civis. Rio de Janeiro: CEPIA,
1999, p. 27-42.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. 12 ed. São Paulo: Helmus, 1975.
DAHRENDORF, Ralf. Homo Sociologicus. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
_____. A Família como valor: considerações não-familiares sobre a família à brasileira. In:
ALMEIDA, A. M. et al (orgs.) Pensando a Família no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo/UFRRJ, 1987, p. 115-136.
_____. Cidadania: a questão da cidadania num universo relacional. In: _____. A Casa e a
rua, 4° edição, Rio de Janeiro: Guanabara, 1991, p. 71-102.
_____. A mão invisível do Estado: notas para o significado cultural dos documentos na
sociedade brasileira. In: DINIZ, E. (org.). O desafio da democracia na América Latina. Rio
de Janeiro: IUPERJ, 1995, p. 417- 434.
DAUSTER, Tânia. Código familiar: uma versão sobre o significado de família em camadas
médias urbanas. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, vol. 5, n° 1,
jan/jun: 1988, p. 103-125.
DAVIS, Shelton. Introdução. in: DAVIS, S. (org.). Antropologia do direito. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1973, p. 9-24.
DEBERT, Guita. Família, classe social e etnicidade: um balanço da bibliografia sobre a
experiência de envelhecimento. BIB - Boletim Informativo e Bibliográfico, Rio de Janeiro:
n. 33, ANPOCS, 1992, p. 33-49.
_____. Gênero e envelhecimento. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, vol. 2 n. 3, 1994, p.
33-51.
DE SINGLY, François. O nascimento do ‘indivíduo individualizado’ e seus efeitos na vida
conjugal e familiar. In: PEIXOTO, C.; SINGLY, F. e CICCHELLI, V. (org.). Família e
individualização. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 13-19.
DIAS, Paula Barata. A influência do Cristianismo no conceito de casamento e de vida privada
na Antiguidade Tardia. Ágora. Estudos Clássicos em Debate, vol. 6, 2004, p. 99-133.
185
D’INCAO, Maria Ângela. Sentimentos modernos, São Paulo: Brasiliense, 1996.
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias, 3 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
DUARTE, Luís Fernando Dias. A Pesquisa em ciências sociais e um Fantasma Psicológico.
Religião e Sociedade, n. 11/2. Rio de Janeiro: CER/ISER/Campus,1984, p. 184-191.
_____. Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família. In: RIBEIRO, I.;
RIBEIRO, A. (org). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na
sociedade brasileira, São Paulo: Loyola, 1995, p. 27-41.
DUARTE, Luis F. D. et al. Vicissitudes e limites da conversão à cidadania nas classes
populares brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 8, n.22, jun.
1993, p. 5-19.
DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica sobre a ideologia
moderna, Rio de Janeiro: Rocco. 1993.
DURHAM, Eunice. A família operária: consciência e ideologia. Dados. Rio de Janeiro, vol.
23, n° 2, 1980, p. 201-213.
_____. Família e casamento. III ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS
POPULACIONAIS, Vitória: ABEP, Anais, vol. 1, 1982, p. 31- 48.
_____. Família e reprodução humana. Perspectivas antropológicas da mulher 3. Rio de
Janeiro, n. 3, maio, 1983, p. 13-42.
_____. Cultura e Ideologia. Dados, Rio de Janeiro, vol. 27 n. 1, 1984, p. 71-89.
DURKHEIM, Émile. L'origine de l'idée de droit. In: _______, Textes. 1. Éléments d’une
théorie sociale. Paris: Éditions de Minuit, 1975, p. 233 – 241.
_____. Da divisão social do trabalho. 2 ed. São Paulo, Martins Fontes. 1999a.
_____. Divisão do trabalho social e direito. In: SOUTO, C. e FALCÃO, J. (orgs). sociologia
e direito, 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1999b, p. 99-108.
ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondas do “movimento de acesso à justiça”: epistemologia
versus metodologia. In: PANDOLFI, D. et al. Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro:
Fundação Getulio Vargas, 1999.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 9ª ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
EVANS-PRITCHARD, E. E. Introduction. In M. MAUSS The Gift: forms and function of
exchange in archaic societies. London: Cohen & West LTD. 1969, p. V-XI.
FACHIN, Rosana. Em busca da família do novo milênio. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
FARIA, José; CAMPILONGO, Celso. A sociologia jurídica no Brasil. Porto Alegre: Sérgio
António Fabris Editor: 1991.
FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação
e desenvolvimento. Coleção sociologia Brasileira vol. 7. Petrópolis: Vozes, 1977.
FERRAZ, Sérgio Eduardo. Os dados do normativo: apontamentos sobre a recepção das
teorias contemporâneas de justiça no Brasil (1990-2003). BIB - Boletim Informativo e
Bibliográfico. São Paulo, 58, 2 sem, pp 131-157.
FONSECA, Cláudia. Amor e família: vacas sagradas de nossa época. In: I. RIBEIRO e A.
RIBEIRO (orgs). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade
brasileira. São Paulo: Loyola, 1995, p. 69-89.
186
_____. Caminhos da adoção. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1990.
_____. Microfísica do poder. 11a edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1993.
_____. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC/Nau editora, 1999.
FORTES, Meyer. O ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, Textos de Aula:
Antropologia, Brasília, n° 6, (S/D).
FREIDSON, Eliot. O renascimento do profissionalismo, São Paulo: EDUSP, 1998.
FREITAS, Renan S. A margem de lógicas transcendentes: etnometodologia e teorias de
decisões judiciárias. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 5, n.12, 1990, p.
70-87.
FRY, Peter e CARRARA, Sérgio. As vicissitudes do liberalismo no direito penal brasileiro.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 1, n.2, 1986, p. 48-54.
GEERTZ, Clifford. Local knowledge. New York: Basic Books, 1983.
_____. A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Guanabara. 1989.
_____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas
Sociedades Modernas, São Paulo: UNESP, 1993.
_____. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, U.; LASH, S.; GIDDENS, A.
Modernização reflexiva. 2° reimpressão. São Paulo: UNESP. 1997.
GILISSEN, J. Introdução histórica do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GLUCKMAN, Max. Custom and conflict in Africa. Glencoe: Free Press, 1959.
_____. Obrigação e dívida. In: DAVIS, S. (org.). Antropologia do direito. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1973, p. 25-65.
GODBOUT, Jacques. Introdução à dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, vol. 13 n. 38. 1998
_____. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: FGV. 1999.
GOODENOUGH, Ward. Regras de Residência. Textos de Aula, Brasília: antropologia 2.
UNB, S/D.
GREENE, Margaret e RAO, Vilayendra. A compreensão do mercado matrimonial e o
aumento das uniões consensuais no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Populacionais,
Campinas, vol. 9, n. 2, 1992, p. 168-183.
GRIMBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GUEDES, Simoni. Redes de parentesco e considerações entre trabalhadores urbanos:
tecendo relações a partir de quintais. Caderno CRH, Salvador, n. 29, jul./dez., 1998, p. 189-
208.
GUERTECHIN, Thierry Linard de. Uma medida indireta da nupcialidade no Brasil de
1970 a 1980. IV ENCONTRO DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Águas de Lindóia: ABEP,
Anais, vol. 3, 1984, p. 1297-1305.
187
GURVITCH, George. Sociologia do direito: resumo histórico crítico. In: SOUTO, C. e
FALCÃO, J. (orgs). sociologia e direito, 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 11-23.
HABERMAS, Jürgen. A família burguesa e a institucionalização de uma privacidade ligada
ao público. In: _____. Mudança estrutural na esfera pública. Biblioteca tempo
Universitário 76, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 60-67.
HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional.
Mana, Rio de Janeiro: vol. 3, n.1. PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 1997.
HEILBORN, Maria Luiza. Vivendo a dois: arranjos conjugais em comparação. Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, Campinas, vol. 10, n. 1/2, 1993, p. 13-24.
_____. Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Editora
Garamond, 2004.
_____. SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na
ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré; ANPOCS/CAPES:
Brasília, 1999.
HERKENHOFF, João Batista. A função judiciária no interior: pesquisa sócio-jurídica
empírica. In: SOUTO, C. e FALCÃO, J. (org.). Sociologia e direito, 2 ed. São Paulo:
Pioneira, 1990, p. 299-310.
HESPANHA, António M. A história do direito na história social. Lisboa: Livros Horizonte,
1978.
HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
HOLSTON, James. Legalizando o ilegal: propriedade e usurpação no Brasil. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 8, n.21, fev.1993, p. 68-89.
HUIZINGA, Johan, Homo ludens. 2a edição, São Paulo: Perspectiva, 1990.
JELIN, Elisabeth. Familia: crisis y depués. In C. H. WAINERMAN (comp.) Vivir em famila.
Buenos Aires: UNICEF/Losada. 1994.
JESUS, Beto. Parceira civil: a construção da opinião pública. In M. B. ÁVILA et al (orgs).
Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005.
KANT de LIMA, Roberto. Cultura jurídica e práticas policiais: a tradição inquisitorial.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 4, n.10, junho, 1989, p. 65-84.
_______. Ordem pública e pública desordem: modelos processuais de controle social em uma
perspectiva comparativa. (inquérito e jury system). Anuário Antropológico 88, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro/ed. Universidade de Brasília, 1991, p. 21-44.
_______. A administração de conflitos no Brasil: a lógica da punição. In: VELHO, G. e
ALVITO, M. Cidadania e Violência. 2 ed, rev. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 2000, p. 166-
178.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KOZIMA, José W. Instituições, retórica e o bacharelismo no Brasil. In: A. C. WOLKMER
(org) Fundamentos de História do direito. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
LACLAU, Ernesto. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. RBCS – Revista
Brasileira de Ciências Sociais, vol. 1 n.2. São Paulo, ANPOCS, 1986.
LASCH, Cristopher. Refúgio num Mundo sem Coração, a família: Santuário ou Instituição
188
Sitiada? São Paulo: Paz e Terra, 1991.
LEACH, Edmund. A categoria hka na sociedade Kachin in: DAVIS, S. (org.). Antropologia
do direito. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1973, p. 70-85.
LENOIR, Remi. Objet sociologique et problème social. in: CHAMPAGNE P. et al. Initiation
a la Pratique Sociologique, Paris: Dunond, 1990, p. 53-100.
LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do direito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A família. In: SHAPIRO, H. Homem, cultura e sociedade. Rio de
Janeiro: Fundo de Cultura, 1972, p. 308-333.
_______. O feiticeiro e sua magia. In _______. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1975, p. 193-236.
_______. As estruturas elementares do parentesco. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1982.
LINS DE BARROS, Myriam. Autoridade & Afeto: avós, filhos e netos na família brasileira.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
_____. A representação das mudanças sociais da família por avós de camadas médias urbanas.
Debates Sociais, v. 50, n. 51, Rio de Janeiro: 1991, p. 97-120.
MACHADO, Lia Z. Família, reciprocidade e condições de classe. Anuário Antropológico
83, Rio de Janeiro-Fortaleza: Tempo Brasileiro/Edições UFC, 1985, p. 316-324.
_____. Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil. Série Antropologia
n°291. Brasília: UNB, 2001.
MACPHERSON, Crawford B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a
Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MAINE, Henry S. Ancient Law. Dorset Press,1986.
MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes,
1973.
_____. Crime e costume na sociedade selvagem. São Paulo/Brasília: Editora Universidade
de Brasília/Imprensa oficial do estado de São Paulo: 2003.
MARTINS. Paulo Henrique. A dádiva entre os modernos. Petrópolis: Vozes, 2002.
MASCARO, Alysson. Critica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier
Latin do Brasil, 2003.
MAUSS, Marcel. Sociologie e Anthopologie. 5 ed. Paris: puf. 1973, p. 331-362.
_____. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
MELLO, Luiz. Outras famílias: a construção social da conjugalidade homossexual no Brasil.
Cadernos Pagú. Nº 24, janeiro-junho, 2005, p. 197-225.
MELLO, Sylvia. Família: perspectiva teórica e observação factual. In: CARVALHO, M.
(org.). A família contemporânea em debate. 5 ed. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003, p. 51-60.
MORAIS, José Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado/Editora, 1996.
MORGAN, Lewis. A família arcaica. In: _____. A sociedade primitiva, vol 2. Lisboa:
Editorial Presença/Martins Fontes, 1980, p. 121-138.
MOURA. Margarida. Os herdeiros da terra. São Paulo: Hucitec, 1978.
189
NADER, Laura. Harmonia coercitiva: a economia política dos modelos jurídicos. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol. 9, n. 26, out 1994, p. 18-29.
_____. Harmony Ideology: justice and control in a Zapotec mountain village. Stanford:
Stanford University Press, 2000.
NUÑEZ, Antônio. O poder judiciário no Brasil: tendências e leituras. O que se deve ler em
Ciências Sociais no Brasil, São Paulo, n.2, 1987, p. 198-205.
OLIVEIRA, Maria. E BERQUÓ, Elza. Família no Brasil: análise demográfica e tendências
recentes. Ciências Sociais Hoje, São Paulo, 1990, p. 30-64.
OLIVEN, Rubens. Urbanização e mudança social no Brasil. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
ORTIZ, Renato (2000), Walter Benjamim e Paris. Individualidade e trabalho intelectual.
Tempo Social: Revista de Sociologia da USP. Vol. 12 n°1. São Paulo, USP.
PANDOLFI, Dulce. et al. Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Fundação Getulio
Vargas, 1999.
PAOLI, Maria Célia. Família operária: notas sobre sua formação histórica no Brasil. IV
ENCONTRO DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Águas de Lindóia: ABEP, Anais, vol. 1,
1984, p. 443-469.
PARRY SCOTT, Russell. Famílias sem casais e a diversidade conjugal no Brasil. In: Dossiê
Comportamentos familiares. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, ano 3 nº 2
Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em ciências sociais- UERJ, 2001, p. 93-112.
_____. Família, gênero e poder no Brasil do século XX. BIB - Boletim Informativo e
Bibliográfico. São Paulo, 58, 2 sem, 2004, pp 29-78.
PATARRA, Neide. Transição demográfica: novas evidências, velhos desafios. Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, Campinas, vol. 11, n. 1, 1994, p. 27-37.
PEIRANO, Mariza. This horrible time of papers: documentos e valores nacionais. Série
Antropologia 312. Brasília: UNB, 2002.
PERILLO, Sonia. Efeitos das transformações econômicas e sociais na evolução da estrutura
familiar. VI ENCONTRO DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Olinda: ABEP, 1988. Anais,
vol. 4, p.601-618.
POCOCK, John. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
POGGI, Gianfranco. A evolução do Estado moderno. Rio de Janeiro: Zahar: 1981.
QUINTEIRO, Maria da Conceição. Casados não casados: uniões consensuais nas camadas
médias e populares. Textos NEPO 19. Campinas: Núcleo de Estudos de População – NEPO,
dez. 1990, p. 2-56.
RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis:
Vozes, 1973.
REIS, Elisa. Reflexões sobre o homo-sociologicus. Revista Brasileira de Ciências Sociais.
São Paulo, vol. 4, n.11, out. 1989, p. 23-33.
_____. Desigualdade e solidariedade: uma releitura do ‘familismo amoral’ de Banfield.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol. 10, n. 29, out 1995, p. 35-48.
_____. Sobre a cidadania. In: _____. Processos e escolhas: estudos de sociologia política. Rio
de Janeiro: Contra Capa, 1998, p. 27-41.
ROCHA, Leonel Severo. Le destin d’un savoir: une analyse des origines de la sociologie du
190
droit au Brésil. Droit et sociéte, n. 8, 1988, p.115-124.
ROMANELLI, Geraldo. Autoridade e poder na família. In:, CARVALHO, M. (org.). Família
Contemporânea em debate. 5° ed. São Paulo: EDUC Cortez, 1995, p. 73-88.
SADEK, Maria. Justiça e cidadania no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré/Idesp, 2000.
SADER, Eder. e PAOLI, Maria Célia. Sobre ‘classes populares’ no pensamento sociológico
brasileiro: notas sobre acontecimentos recentes. In: CARDOSO, R. (org.). A Aventura
Antropológica, 2° ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986, p. 39-67.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.
SALEM, Tânia. Famílias em camadas médias: uma perspectiva Antropológica. BIB -Boletim
Informativo e Bibliográfico, Rio de Janeiro, n° 21, 1° sem., 1986, p. 25-39.
_____. O casal igualitário: princípios e impasses. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
São Paulo, vol. 3, n.09, fev. 1989, p. 24-37.
SALLES, Vânia. Novos olhares sobre a família. Revista Brasileira de Estudos
Populacionais, São Paulo, vol. 11, n° 2, jan/jun, 1994, p. 159-170.
SAMARA, Eni. Família no Brasil: balanço da produção e rumos de pesquisa. V ENCONTRO
NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, Águas de São Pedro: ABEP, Anais, vol 1,
1986, p. 167-192.
_____. O que mudou na família brasileira? (da colônia à atualidade). Psicologia USP, São
Paulo, vol.13, n.2, 2002, p. 27-48.
SANTOS,Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça: Política Social na Ordem Brasileira.
Rio de Janeiro: Campus, 1979.
SAPORI, Luis. A administração da Justiça Criminal numa área metropolitana. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 10, n.29, out. 1995, p. 143-157.
SARTI, Cynthia. O valor da família para os pobres In: RIBEIRO, I. e RIBEIRO, A. (org.).
Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. São
Paulo: Loyola, 1995.p. 131-150.
_____. A família com espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 2 ed. rev. São Paulo:
Cortez, 2003a.
_____. Família e individualidade: um problema moderno. In: CARVALHO, M. (org.). A
família contemporânea em debate. 5° ed. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003b, p. 39-49.
SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979.
SEGALEN, Martine, El mito de la familia occidental. In Antropología histórica de la
familia, cap. 12. Madrid: Taurus, 1997, p.251- 259.
_____. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Cia das Letras, 1993.
SHORTER, Edward. A formação da Família Moderna. Lisboa: Terramar, s/d.
SIGAUD, Lygia. Direito e coerção moral no mundo dos engenhos. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro: vol. 9, n. 18, 1996, p. 361-388.
_____. As vicissitudes do "ensaio sobre o dom". Mana - Estudos de Antropologia Social v.5
191
n.2 Museu Nacional/UFRJ: Rio de Janeiro out. 1999.
_____. “Ir à justiça”: Os direitos entre os trabalhadores rurais. In: Novaes R. (org). Direitos
Humanos: temas e perspectivas. Rio de Janeiro: MAUAD, 2001, p.75-85.
_____. Armadilhas da honra e do perdão: usos sociais do direito na mata pernambucana.
Mana - Estudos de Antropologia Social v.10 n.1. Museu Nacional/UFRJ: Rio de Janeiro-
abril. 2004.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
SILVA, Maria da Conceição. Catolicismo e casamento civil na cidade de Goiás: conflitos
políticos e religiosos (1860-1920). Revista Brasileira de História, São Paulo: vol 23, n. 46,
2003, p. 123-146.
SIMMEL, George. A metrópole e a vida mental, in, O. G. VELHO: O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1973.
_____.A divisão do trabalho como causa da diferenciação da cultura. In J. SOUZA e B.
ÖELZE (orgs). Simmel e a modernidade. Brasília: UNB, 2005. pág.41-76.
_____.O indivíduo e a liberdade. In J. SOUZA e B. ÖELZE (orgs). Simmel e a
modernidade. Brasília: UNB, 2005. pág.107-115.
_____.Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
SINHORETTO, Jacqueline Sistemas Alternativos de Solução e Administração de Conflitos -
Relatório preliminar, BRASIL/Ministério da Justiça, Secretaria da Reforma do Judiciário e
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Brasília, 2005.
SORJ, Bernardo. A nova sociedade brasileira. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
SOUSA Jr., José. Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas. Porto
Alegre: Sérgio António Fabris Editor: 2002.
SOUSA-SANTOS, Boaventura. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica
jurídica. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988.
_____. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In: SOUTO, C. e FALCÃO, J.
(org.). Sociologia e direito. 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1990, p. 87-95.
_____. Introdução à sociologia da administração da justiça. J. G. de SOUSA Jr; R. A. R.
AGUIAR (orgs) Introdução crítica ao direito do trabalho. Série ‘O direito Achado nas
Ruas’ V. 2. Brasília: UNB/CEAD/NEP, 1993. 104-124.
_____. A sociologia dos tribunais e a democratização da justiça. In: _____. Pela mão de
Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7° ed. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p.
161-186.
_____. MARQUES, M.; PEDROSO, J. ‘Os tribunais nas sociedades contemporâneas’.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 11, n.30, fev. 1996, p. 29-62.
SOUZA, Cândice; BOTELHO, Tarcísio. Modelos nacionais e regionais de família no
pensamento social brasileiro. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v.9 n.2, 2001, p.
414-432.
SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de janeiro: Zahar, 1979.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1988.
192
SZMANSKI, Heloisa. Teorias e ‘teorias’ de família. In: CARVALHO, M. (org.). A família
contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003, p. 23-27.
TABAK, Fanny. A lei como instrumento de mudança social. in: TABAK, F. e VERUCCI, F.
(org.). A difícil igualdade: os direitos da mulher como direitos humanos. Rio de Janeiro:
Relume&Dumará, 1994, p. 31-33.
THERBORN, Göran. Sexo e poder: a família no mundo. São Paulo: Contexto, 2006.
TORRES, Anália C. Casamento e Gênero: mudança nas famílias contemporâneas a partir do
caso português. Dossiê Comportamentos familiares. Interseções: Revista de Estudos
Interdisciplinares, ano 3 nº2, Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em ciências sociais-
UERJ, 2001, p. 53-70.
TYLOR, Edward. On a method of investigating the development of institutions: applied to
laws of marriage and descent. In: GRAURN, N. Social evolutionary theory and the rise of
kinship studies. 1971 Readings in: Kinship and Social Structure. New York: Harper & Row,
1971, p. 19-31.
UNGER, Roberto Mangabeira. A sociedade liberal e seu direito. In: SOUTO, C. e FALCÃO,
J. (org.). Sociologia e direito. 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1990, p. 149-159.
UZIEL, Ana Paula. Homossexualidade e parentalidade: ecos de uma conjugação. In M. L.
HEILBORN (org) Família e sexualidade. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
_____. Parceria civil: o desejo e o direito de ter filhos. In M. B. ÁVILA et al (orgs). Novas
legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro:
Garamond, 2005.
VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e plurais. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
_____. Pluralidade de mundos entre mulheres de baixa renda. Revista Estudos Feministas,
vol. 5 n°2, 1997, p. 303-319.
VARGAS, Joana. Familiares ou desconhecidos? A relação entre os protagonistas do estupro
no fluxo da justiça criminal. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 14, n.40
jun. 1999, p. 63-82.
_____. Estupro: que justiça? Fluxo do funcionamento e análise do tempo da justiça criminal
para o crime de estupro. Rio de Janeiro. 2004. 291 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas -
sociologia). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ.
VELHO, Gilberto. Duas categorias de acusação na cultura brasileira contemporânea. In:
_____. Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1981a, p. 55-64.
_____. Parentesco, individualismo e acusações. In: _____. Individualismo e Cultura: Notas
para uma Antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1981b, p. 65-78.
_____. Visão de mundo e estilos de vida em camadas médias urbanas: algumas questões sobre
o estudo de família. In: _____. Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da
sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1981c, p. 111-120.
_____. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1984.
_____. Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1989.
_____. Família e parentesco no Brasil contemporâneo: individualismo e projetos no universo
193
de camadas médias. Dossiê Comportamentos familiares. Interseções: Revista de Estudos
Interdisciplinares, ano 3 nº 2 Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em ciências sociais-
UERJ, 2001, p. 53-70.
VIANNA, Adriana. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento. Rio
de Janeiro, 2002. 334f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de janeiro.
VIANNA, Luiz W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio
de Janeiro: Revan, 1999.
VIEIRA, Paula e RIOS Neto, Eduardo. Casa separa: um estudo de descasamento e
recasamento, Rio de Janeiro e São Paulo, 1984. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol 1,
n.18. 1996, p. 207-225.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. Antropologia do parentesco: estudos ameríndios. Rio
de Janeiro: UFRJ, 2005.
_____.; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Romeu e Julieta e a Origem do Estado. In: Arte e
Sociedade: Ensaios de sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, p.130-169.
XAVIER, Ivonete. A nupcialidade em famílias faveladas. IV ENCONTRO DE ESTUDOS
POPULACIONAIS, Águas de São Pedro: ABEP, Anais, v.2, 1986, p. 965-981.
YOUNG, Íris M. A imparcialidade e o público cívico. In: BENHABIB, S. e CORNELL, D.
(org.). Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos,
1987, p. 66-86.
_____. Vida política y diferencia de grupo: una critica del ideal de ciudadanía universal. In:
CASTELLS, C. (org.). Perspectivas feministas en teoría política. Barcelona: Paidós, 1996,
p. 99-126.
WEBER, Max. sociologia do direito. In: _____. Economia e Sociedade. Volume II, Brasília:
UNB, 1999, p. 1-153.
_____. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira/Thomson
Learning. 2 ed. 2003.
WOLKMER, Antônio C. História do direito no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
194
Anexos:
1. Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996.
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 9.278, DE 10 DE MAIO DE 1996.
Regula o § 3° do art. 226 da Constituição Federal.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA,
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e
uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
Art. 2° São direitos e deveres iguais dos conviventes:
I - respeito e consideração mútuos;
II - assistência moral e material recíproca;
III - guarda, sustento e educação dos filhos comuns.
Art. 3° (VETADO).
Art. 4° (VETADO).
Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união
estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a
ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
§ 1° Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens
adquiridos anteriormente ao início da união.
§ 2° A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária
em contrato escrito.
Art. 6° (VETADO).
Art. 7° Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada por um
dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos.
Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito
real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado
à residência da família.
Art. 8° Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união
estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio.
Art. 9° Toda a matéria relativa à união estável é de competência do juízo da Vara de Família, assegurado o
segredo de justiça.
Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 11. Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 10 de maio de 1996; 175º da Independência e 108º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Milton Seligman
195
2. Mensagem de veto à lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996.
Mensagem nº420
Senhor Presidente do Senado Federal,
Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do parágrafo do artigo 66 da Constituição Federal,
decidi vetar parcialmente o Projeto de Lei 1.888, de 1991 (84/94 no Senado Federal), que "Regula o § 3°
do art 226 da Constituição Federal ".
São os seguintes os dispositivos vetados, por concedera-los contrários ao interesse público:
Artigos 3°, 4° e
"Art. Os conviventes poderão, por meio de contrato escrito, regular seus direitos e deveres.
observados os preceitos desta Lei, as normas de ordem pública atinentes ao casamento, os bons
costumes e os princípios gerais de direito.
Art. Para ter eficácia contra terceiros, o contrato referido no artigo anterior deverá ser registrado no
Cartório do Registro Civil de residência de qualquer dos contratantes, efetuando-se, se for o caso,
comunicação ao Cartório de Registro de Imóveis, para averbação.
Art. 6° A união estável dissolver-se-á por vontade das partes, morte de um dos conviventes, rescisão ou
denúncia do contrato por um dos conviventes.
§ 1 ° Pela vontade das partes, os conviventes põem termo à união estável, amigavelmente e por escrito,
valendo entre os mesmos o que for estipulado no acordo, desde que não contrarie o estatuído nesta Lei.
§ Havendo contrato escrito e averbado em cartório, qualquer dos conviventes deverá requerer a
averbação do acordo de dissolução da união estável.
§ Ocorre a rescisão quando houver ruptura da união estável por quebra dos deveres constantes desta
Lei e do contrato escrito, se existente.
§ 4° A separação de fato dos conviventes implica denúncia do contrato, escrito ou verbal”
Razões de veto:
A matéria foi objeto de tratamento parcial na Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que tem
merecido críticas generalizadas tendo sido até suscitada a argüição de sua inconstitucionalidade. (Amoldo Wald,
direito de Família, 10ª ed., apêndice, Carlos Alberto Menezes direito, Revista de direito Renovar, I, p. 27 e
seg., Otto Eduardo Vizeu Gil in Revista de Informação Legislativa. Nº 127, p. 77).
O Projeto de lei na 1.888191. que se inspirou em estudo do Professor Álvaro Vilaça, pretendia
regulamentar a matéria in totum, o que implicaria na revogação da Lei n° 8.971. Houve, todavia, um substitutivo
que reduziu o âmbito da nova legislação, ensejando o projeto de lei que agora é submetido à sanção.
Em primeiro lugar, o texto é vago em vários dos seus artigos e não corrige as eventuais falhas da Lei
8.971. Por outro lado, a amplitude que se ao contrato de criação da união estável importa em admitir um
verdadeiro casamento de segundo grau, quando não era esta a intenção do legislador, que pretendia garantir
determinados efeitos a posteriori a determinadas situações nas quais tinha havido formação de uma entidade
familiar. Acresce que o regime contratua1 e as presunções constantes no projeto não mantiveram algumas das
condicionantes que constavam no projeto inicial.
Assim sendo, não se justifica a introdução da união estável contratual DOS termos do an. 3°,
justificando-se pois o veto em relação ao mesmo e, em decorrência, também no tocante aos artigos 4° e 6°.
Todavia, tendo em vista o atendimento pleno do disposto no art. 226, § 3°, da Constituição, deverá o
Poder Executivo oferecer, dentro de noventa dias, a sua contribuição ao aprimoramento da lei ora sancionada.
Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar em parte o projeto em causa, as quais ora
submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.
Brasília, 10 de maio de 1996.
196
Carta dos direitos da Família.
PREÂMBULO
Considerando que:
1. Os direitos da pessoa, ainda que expressos como direitos do indivíduo, têm uma dimensão
fundamentalmente social que, na família encontra sua expressão inata e vital;
2. A família está alicerçada sobre o matrimônio, essa união íntima e complementar do homem e
da mulher que se estabelece pelo laço indissolúvel do matrimônio, livremente contraído e
publicamente afirmado, e que se abre à transmissão da vida;
3. O matrimônio é instituição natural à qual está confiada exclusivamente a missão de transmitir a
vida;
4. A família, sociedade natural, existe anteriormente ao Estado e a qualquer outra coletividade e
possui os direitos próprios que são inalienáveis;
5. A família, muito mais do que uma unidade jurídica, sociológica ou econômica, constitui uma
comunidade de amor e de solidariedade, insubstituível para o ensino e transmissão dos valores
culturais, éticos, sociais, espirituais e religiosos, essenciais para o desenvolvimento e bem-estar
de seus próprios membros e da sociedade;
6. A família é o lugar onde várias gerações estão reunidas e se ajudam mutuamente para crescer
em sabedoria humana e harmonizar os direitos dos indivíduos com as outras exigências da vida
social;
7. A família e a sociedade, unidas entre si por laços orgânicos e vitais, assumem papéis
complementares para defender e promover o bem de toda a humanidade e de cada pessoa;
8. A experiência de diferentes culturas, ao longo da história, mostra para a sociedade a
necessidade de reconhecer e defender a instituição da família;
9. A sociedade e, de modo particular, o Estado e as organizações internacionais devem proteger a
família através de medidas políticas, econômicas, sociais e jurídicas, têm por fim fortalecer a
unidade e a estabilidade da família para que ela possa exercer sua função específica;
10. Os direitos, as necessidades fundamentais, o bem-estar e os valores da família, ainda que
estejam, em alguns casos, progressivamente melhor salvaguardados, são, muitas vezes,
desconhecidos e até mesmo ameaçados pelas leis, instituições e programas sócio-econômicos;
11. Muitas famílias são obrigadas a viver em situação de pobreza que as impede de exercerem
dignamente seu papel;
12. A Igreja Católica, sabendo que o bem da pessoa, da sociedade e da própria Igreja passa pela
família, sempre considerou que é próprio de sua missão proclamar a todos os homens o
desígnio de Deus, inerente à natureza humana sobre o matrimônio e sobre a família; promover
estas duas instituições e defendê-las contra tudo o que as prejudique;
13. O Sínodo dos Bispos, reunidos em 1980, explicitamente recomendou que seja redigida uma
Carta dos direitos da Família e enviada a todos os interessados;
A Santa Sé, depois de consultar as Conferências Episcopais, apresenta, agora, esta:
CARTA DOS DIREITOS DA FAMÍLIA
E convida insistentemente todos os Estados, Organizações internacionais, instituições e pessoas
interessadas para que promovam o respeito destes direitos e assegurem seu reconhecimento efetivo e sua
aplicação.
ARTIGO 1º
Todas as pessoas têm o direito de escolher livremente o estado de vida e, portanto, casar-se e constituir
uma família ou permanecer solteiras.
a)Todo homem e toda mulher, atingindo a idade de contrair matrimônio e tendo a capacidade
necessária, tem direito de casar-se e constituir uma família sem discriminação de nenhum tipo; as restrições
legais para exercer este direito, de natureza permanente ou temporária, não podem ser introduzidas, a não ser que
197
sejam requeridas por exigências graves e objetivas da própria instituição do matrimônio ou de sua significação
pública e social. Em qualquer caso, devem respeitar-se a dignidade e os direitos fundamentais da pessoa;
b)Os que desejam casar-se e constituir uma família têm o direito de esperar da sociedade as condições
morais, educativas, sociais e econômicas que lhes permitam o exercício do direito de casar-se com maturidade e
responsabilidade;
c) O valor institucional do matrimônio deve ser reconhecido pelas autoridades públicas; a situação dos
que vivem juntos sem estarem casados pode ser colocada no mesmo nível dos que contraíram devidamente o
matrimônio.
ARTIGO 2º
Para se realizar o matrimônio exige-se o livre consentimento dos esposos devidamente expressos.
a)Sem desconhecer, em algumas culturas, o papel tradicional que as famílias desempenham para
orientar a decisão de seus filhos, deve ser evitada qualquer dificuldade que possa impedir uma pessoa de
escolher o seu cônjuge;
b)Os futuros esposos têm direito à liberdade religiosa, consequentemente, impor como condição prévia
ao casamento a negação da fé contrária à consciência constitui violação deste direito;
c) Os esposos, na complementaridade natural do homem e da mulher, têm a mesma dignidade e direitos
iguais frente ao casamento.
ARTIGO 3º
Os esposos têm o direito alienável de constituir uma família e determinar o intervalo entre os
nascimentos e o número de filhos que desejam, levando em consideração os deveres para consigo mesmos, com
os filhos que têm, com a família e a sociedade, numa justa hierarquia de valores e de acordo com a ordem
moral objetiva que exclui o recurso à contracepção, à esterilização e ao aborto.
a)Os atos dos poderes públicos ou das organizações particulares, que tendem a limitar, de qualquer
modo, a liberdade dos esposos nas suas decisões relativas aos filhos, constituem uma grave ofensa à dignidade
humana e à justiça;
b)Nas relações internacionais, a ajuda econômica concedida para o desenvolvimento dos povos não
deve ser condicionada pela aceitação de programas de contracepção, esterilização ou aborto;
c) A família tem direito à ajuda da sociedade no que se refere ao nascimento ou à educação dos filhos.
Os casais que têm uma família numerosa têm direito a uma ajuda adequada e não devem sofrer discriminações.
ARTIGO 4º
A vida humana deve ser absolutamente respeitada e protegida desde o momento de sua concepção.
a)O aborto é uma violação do direito fundamental à vida do ser humano;
b)O respeito pela dignidade do ser humano exclui qualquer manipulação experimental ou exploração do
embrião humano;
c) Qualquer intervenção sobre o patrimônio genético da pessoa humana que não vise à correção de
anomalias constitui uma violação do direito à integridade física e está em contradição com o bem da família;
d)Tanto antes, como depois nascimento, os filhos têm direito a uma proteção e assistência especial, bem
como a mãe durante a gestação e um período razoável depois do parto;
e)Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozam do mesmo direito à proteção social,
em vista do desenvolvimento integral de sua pessoa;
f) Os órfãos e as crianças abandonadas sem a assistência dos pais ou tutores devem gozar de proteção
especial por parte da sociedade. No que concerne às crianças que devem ser confiadas a uma família ou devem
ser adotadas, o Estado deve instaurar uma legislação que facilite às famílias idôneas acolher as crianças que
precisam ser amparadas de modo temporário ou permanente e que, ao mesmo tempo, respeite os direitos naturais
dos pais;
g)As crianças excepcionais têm o direito de encontrar no lar ou na escola um ambiente conveniente ao
seu desenvolvimento humano.
ARTIGO 5º
Os pais devem, por terem dado a vida aos filhos, m o direito primeiro e inalienável de educá-los; por
isto devem ser reconhecidos como os primeiros e principais educadores de seus filhos.
a)Os pais m o direito de educar seus filhos de acordo com suas convicções morais e religiosas,
levando em consideração as tradições culturais da família que favorecem o bem e a dignidade da criança, e
devem também receber da sociedade a ajuda e a assistência necessárias para cumprir seu papel de educadores de
modo condigno;
b)Os pais têm o direito de escolher livremente as escolas ou outros meios necessários para educar seus
filhos, em conformidade com suas convicções. Os poderes públicos, ao repartirem os subsídios públicos, devem
fazer de tal forma que os pais fiquem verdadeiramente livres de exercer este direito sem terem que se sujeitar a
ônus injustos. Os pais não devem, direta ou indiretamente, sofrer ônus suplementares que impeçam ou limitem o
exercício desta liberdade;
c) Os pais m o direito de obter que seus filhos não sejam obrigados a receber ensinamentos que não
198
estejam de acordo com suas convicções morais e religiosas particularmente à educação sexual que é um
direito fundamental dos pais, deve sempre ser proporcionada sob sua atenta orientação no lar ou nos centros
educativos, escolhidos e controlados por eles mesmos;
d)Os direitos dos pais são violados, quando o Estado impõe um sistema de educação obrigatório, no
qual se exclui a educação religiosa;
e)O direito primeiro dos pais de educarem seus filhos deve ser garantido em todas as formas de
colaboração entre pais, professores e responsáveis das escolas e, em particular, nas formas de participação
destinadas a conceder aos cidadãos um papel no funcionamento das escolas e na formulação de aplicação das
políticas de educação;
f) A família tem o direito de esperar dos meios de comunicação social que sejam instrumentos positivos
para a construção da sociedade e defendam os valores fundamentais da família. Ao mesmo tempo, a família tem
o direito de ser protegida de modo adequado, em particular em relação a seus membros mais jovens, dos efeitos
negativos ou dos ataques provindos dos mass-media.
ARTIGO 6º
A família tem o direito de existir e progredir como família.
a)Os poderes públicos devem respeitar e promover a dignidade própria de cada família; sua legítima
independência, intimidade, integridade e estabilidade;
b)O divórcio fere a própria instituição do casamento e da família;
c) O sistema da família grande, onde existe, deve ser estimado e ajudado para melhor perceber seu papel
tradicional de solidariedade e assistência mútua, respeitando, ao mesmo tempo, os direitos da família nuclear e a
dignidade de cada um de seus membros como pessoa.
ARTIGO 7º
Cada família tem o direito de viver livremente a vida religiosa em seu lar, sob a proteção dos pais, bem
como o direito de professar publicamente e propagar sua fé, de participar nos atos de culto em público e nos
programas de instrução religiosa, livremente escolhidos, sem qualquer discriminação.
ARTIGO 8º
A família tem o direito de exercer sua função social e política na construção da sociedade.
a)As famílias têm o direito de criar associações com outras famílias e instituições para exercer o papel
próprio da família de maneira adequada e eficiente, e para proteger os direitos, promover o bem e representar os
interesses da família;
b)No plano econômico, social, jurídico e cultural, o papel legítimo das famílias e das associações
familiares deve ser reconhecido na colaboração e no desenvolvimento dos programas que têm repercussão na
vida familiar.
ATIGO 9º
As famílias têm o direito de poder contar com uma política familiar adequada por parte dos poderes
públicos nos domínios jurídico, econômico, social e fiscal sem qualquer discriminação.
a)As famílias m o direito de se beneficiar de condições econômicas que lhes assegurem um nível de
vida conforme sua dignidade e seu pleno desenvolvimento. Não devem ser impedidas de adquirir e possuir bens
próprios que possam favorecer uma vida de família estável; as leis de sucessão e de transmissão de propriedade
devem respeitar as necessidades e os direitos dos membros da família;
b)As famílias têm o direito de se beneficiar com medidas no plano social que levem em consideração
suas necessidades, em particular no caso de falecimento prematuro de um dos pais, no caso de abandono de um
dos cônjuges, no caso de acidente, de doença ou de invalidez, ou desemprego ou ainda, quando a família deve
arcar para seus membros com encargos suplementares relacionados com a velhice, com as condições sicas ou
psíquicas ou com educação dos filhos;
c) As pessoas idosas têm o direito de encontrar no seio de sua própria família, ou se isso não for
possível, nas instituições adaptadas, a situação na qual elas possam viver sua velhice na serenidade, exercendo
atividades compatíveis com sua idade e que lhes permitam participar na vida social;
d)Os direitos e as necessidades da família e, em particular, o valor da unidade familiar devem ser
levados em consideração na política e na legislação penal, de tal modo que um preso possa ficar em contato com
sua família e que esta receba um auxílio conveniente durante o período de reclusão.
ARTIGO 10
As famílias têm direito à uma ordem social e econômica na qual a organização do trabalho seja tal que
torne possível a seus membros viverem juntos, e não coloquem obstáculos à unidade, ao bem-estar, à saúde, e à
estabilidade da família, oferecendo também a possibilidade de lazeres sadios.
a)A remuneração do trabalho deve ser suficiente para formar e fazer viver dignamente uma família, seja
através de um salário adaptado, chamado salário-família, seja através de outras medidas sociais como os “abonos
familiares” ou a remuneração do trabalho de um dos pais na própria casa, essa deve ser tal que a mãe de família
não seja obrigada a trabalhar fora de casa, com prejuízo da vida familiar e, em particular, da educação dos filhos;
b)O trabalho da mãe, em casa, deve ser reconhecido e respeitado pelo seu valor, pela família e pela
199
sociedade.
ARTIGO 11
A família tem direito a uma casa decente, adaptada à vida familiar e condizente com o número de seus
membros, de tal maneira que sejam assegurados os serviços básicos necessários à vida da família e da
coletividade.
ARTIGO 12
As famílias dos imigrantes têm direito à mesma proteção social que a outorgada às outras famílias.
a)As famílias dos imigrantes têm direito ao respeito de sua própria cultura e ao apoio e assistência
necessária para sua integração na comunidade à qual trazem sua contribuição;
b)Os trabalhadores emigrantes têm direito de poder estar com sua família logo que lhes seja possível;
c) Os refugiados m direito à assistência dos poderes públicos e das organizações internacionais para
facilitar o reagrupamento de sua família.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo