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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA.
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO.
Corpo em conflito:
Discurso religioso e prática de vida das mulheres em Minas Gerais no
século XVIII.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Religião como
requisito parcial à obtenção do título de mestre
em Ciência da Religião, por: Laurilene A. de
Oliveira Munck. Orientador: Prof. Dra. Fátima
R. Gomes Tavares.
JUIZ DE FORA
2006
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Laurilene Aparecida de Oliveira Munck.
Corpo em conflito:
Discurso religioso e prática de vida das mulheres em Minas Gerais no
século XVIII.
JUIZ DE FORA
2006
2
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Aos meus pais,
Loir e Glória.
3
AGRADECIMENTOS
É muito difícil citar em poucas linhas o nome de todas as pessoas que de uma forma
ou outra contribuíram para a realização deste trabalho
Quero agradecer, em primeiro lugar, à CAPES, pela bolsa de estudo concedida
durante os dois anos em que me dediquei à realização deste trabalho.
A minha orientadora, professora Fátima Tavares, que aceitou com carinho a tarefa
de me orientar.
A amiga Jaqueline, que dividiu comigo não só a orientadora, mas também as
alegrias e tensões que acompanham a realização de um trabalho acadêmico.
Aos professores do Departamento de Pós-Graduação em Ciência da Religião, pela
convivência e amizade.
Agradeço também, de modo muito especial, ao professor Fabiano Fernandes, que
apesar do pouco tempo de convivência mostrou-se muito atencioso e disposto a ajudar.
Aos colegas de curso, gostaria de agradecer o companheirismo e os momentos de
aprendizagem que compartilhamos juntos.
Aos amigos Robson e Cíntia, pela recepção inesquecível em Mariana.
Aos amigos que fiz em Mariana, Gustavo Henrique e Daniela Gonçalves, pela
importantíssima ajuda na transcrição dos documentos manuscritos.
Aos funcionários do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, em especial
à Luciana, pela atenção e solicitude com que me atendeu durante a realização da pesquisa.
Aos meus familiares. A minha irmã Cristiane, que nos momentos de angústias e
dificuldades, sempre teve uma palavra de incentivo. Aos meus pais, Loir e Glória, pelo
constante apoio e estímulo em minhas conquistas acadêmicas. A eles, agradeço
eternamente.
Ao Celso, com quem compartilho projetos e sonhos. Não tenho palavras para
agradecer pela paciência diária e pelo apoio nos momentos mais difíceis nestes dois anos
tão atribulados.
A todos, o meu muito obrigado!
4
RESUMO
Foi após o Concílio de Trento (1545-1563) que o Sacramento matrimonial foi
instituído como padrão de comportamento sexual. A partir desse momento as novas leis da
Igreja Católica passaram a ser fundamentadas nas decisões estabelecidas no Concilio de
Trento, que teve como um dos seus principais objetivos defender o matrimônio enquanto
sacramento e instituição. Tento em vista esse contexto, a questão central da dissertação é
mostrar como o corpo feminino foi a principal vítima de um conflito constante entre o
discurso religioso que queria enquadra-lo na obediência e na submissão e a prática de vida
das mulheres, que acabava por criar um corpo “rebelde” que burlava as leis da Igreja e do
Estado para buscar formas paralelas de relacionamentos compreendidos como “ilícitos”.
Tomamos como principal fonte de análise as Devassas Eclesiásticas que se
encontram no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
ABSTRACT
After the Council of Trent (1545-1563), the sacrament of marriage became an
official pattern for sexual behaviour from this moment on, the new Catholic Church laws
happened to be substantiated by the decisions of the Council, whose main target was to
protect marriage as a sacrament and an institution as well. Within this understanding the
main objective of this work is to reveal how women’s body turned into the principal victim
off an endless conflict between religious speech, that struggled to keep it under obedience
and submission, and the everyday life practices of women, who finally gave created to a
rebel body, beyond the laws of the Church and the State, in order to search for different
kinds of relationships seen as illicit by then.
Our main source of studies was the documents known as “Devassas Eclesiásticas”,
which can be found in the ecclesiastical archives of the Arquidiocese of Mariana - MG
5
ABREVIATURA
AEAM – ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA.
6
Sumário
Introdução......................................................................................................08
Capítulo 1:
O corpo feminino na colônia................................................................................................15
1.1 – Entre o medo e o desejo..............................................................................................17
1.2 – O corpo “domesticado”...............................................................................................27
1.3 – O corpo “rebelde”........................................................................................................35
Capítulo 2:
Mariana: reduto da fé e do “pecado”....................................................................................43
2.1 – De arraial a cidade.......................................................................................................43
2.2 – Os religiosos mineiros.................................................................................................54
2.3 – As visitas episcopais....................................................................................................60
Capítulo 3:
As mulheres de Mariana e seus “pecados”...........................................................................69
3.1 – Culpadas por concubinato...........................................................................................69
3.2 – O avesso do matrimônio..............................................................................................82
3.3 – Meretrizes e feiticeiras................................................................................................88
Conclusão.....................................................................................................100
Fonte e bibliografia.....................................................................................103
Anexo............................................................................................................110
7
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo discutir a situação de conflito que permeou o corpo
feminino nas Minas Gerais do século XVIII. Ele se coloca dentro dos estudos atuais das
relações de gênero sendo, portanto, um estudo que se insere no campo da “História das
Mulheres” e da “História da sexualidade”.
A fonte manuscrita utilizada neste trabalho são as Devassas eclesiásticas, ou seja,
“registros de denúncias feitas a visitadores que percorreram o território de Minas, no
século XVIII, vigiando e punindo aqueles que transgredissem, sob qualquer forma, as
normas de conduta exigidas pelos rigorosos padrões cristãos”.
1
Esse conjunto de
documentos manuscritos pertence ao Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
Nos livros de devassas encontramos informações sobre o modo de vida da população
mineira acumuladas durante um século, tais como: questões relacionadas à sexualidade de
homens e mulheres, de suas práticas mágicas e das relações de conflito entre as diferentes
camadas da sociedade, “propiciando ainda o desvendamento do modo de vida da
população urbana e rural nas suas diversas facetas: habitação, vestuário, condições
materiais de vida, lazer”.
2
A documentação com a qual nos propusemos a trabalhar não é inédita, outros
autores já se debruçaram sobre esta mesma fonte: Luciano Figueiredo, Laura de Mello e
Souza, Caio Boschi, Francisco Vidal Luna, Iraci del Nero da Costa e Cônego Raymundo
1
FIGUEIREDO, Luciano R. de Almeida. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII.
São Paulo: HUCITEC, 1997, p, 15.
2
SOUZA, Laura de Mello e. “As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana: fonte primária para a
história das mentalidades”. Anais do Museu Paulista. São Paulo, Tomo 33: 65-73, 1984, p, 68.
8
Trindade, autores que serão contemplados no decorrer do trabalho. Mas, como bem nos
afirma Laura de Mello e Souza “o historiador só pode trabalhar com documentos que
existem: não podem inventá-los, mas pode reinventá-los, lê-los com novos olhos”.
3
O presente trabalho busca, através das franjas deixadas pelos historiadores acima
citados, dimensionar a distância que houve entre o discurso oficial da Igreja Católica,
instituído principalmente depois do Concílio de Trento, sobre o uso dos corpos das
mulheres, e a prática de vida destas em um âmbito circunscrito à cidade de Mariana. Os
processos de devassas enfocados em Mariana são representativos da diferença relativa que
existiu entre a prática de vida das mulheres e o discurso oficial.
A análise proposta procura priorizar o período de 1720 a 1770, seguindo em linhas
gerais a periodização apresentada por Luciano Figueiredo.
4
Segundo o autor: 1720
anuncia-se como o encerramento da desordenada e instável etapa de povoamento da
região, tempo em que se estruturam as instituições políticas e o aparato administrativo.
Momento ainda em que, vinculada intimamente a esse processo, foi intensa a ação do
Bispado na fundação de paróquias e no esforço de melhor controlar a religiosidade e a
conduta da população mineira. Com o desenvolvimento da mineração e da consolidação da
sociedade alcançamos a década de 1770, tempo em que se conjuga vários declínios.
Temos a partir de então, a queda dos níveis de produção do ouro iniciada há poucas
décadas, a desarticulação de vários núcleos urbanos, a intensificação do êxodo agrícola
com base nesses núcleos e a diminuição de maneira drástica, da vitalidade das visitas do
Bispado ao cotidiano das localidades. De acordo com Luciano Figueiredo, “a queda no
3
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 4 ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 2004, p, 28.
4
Luciano Figueiredo em seu livro Barrocas famílias, op. cit., p, 16-17, diz: que desejando precisar uma
temporalidade para a sua pesquisa incorporou os critérios sugeridos por Francisco Iglesias, que reúnem, para
a periodização da História mineira, tanto a dimensão das mudanças políticas quanto econômicas, ao longo do
século XVIII. IN: IGLÉSIAS, Francisco. Periodização da história de Minas. Revista brasileira de Estudos
Políticos. Belo Horizonte, v. 29, 1970.
9
número de devassas a partir de 1770 seria inexorável. Embora o bispado continuasse a
estimular visitações, a pressão das devassas nas comunidades decaia face a seu número
inexpressivo diante da dimensão do território”.
5
A delimitação temporal apontada é reforçada pela época abarcada pelas fontes
manuscritas, já que o primeiro livro de devassa onde encontramos menção a Mariana
abarca o período de 1722-1723 e o último livro de devassa que menciona esta localidade
refere-se ao período de 1742-1794. Além disso, após 1770, encontramos apenas oito
mulheres que foram delatas e punidas pelas devassas eclesiásticas, que não destoavam em
nada dos casos anteriores a 1770.
A seguir, detalharemos a nossa trajetória de pesquisa dentro do Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
No Arquivo tive acesso a um índice que nos permite contemplar os 36 livros de
devassas, cobrindo um século aproximadamente e separados apenas por espaços de
tempo.Os livros são separados pelos períodos quando ocorreram as devassas em
determinadas comarcas, por exemplo: o livro de 1730 apresenta as devassas que ocorreram
neste mesmo ano em determinadas localidades; o livro de 1752-1760 apresenta as devassas
que ocorreram dentro desse período de tempo. As devassas são compostas de Termos de
Testemunha e Termos de Culpa.
6
Não há no arquivo uma classificação do acervo que nos
permita saber de forma clara quais são os Livros de Testemunha e quais são os Livros de
5
FIGUEIREDO, Luciano R. de Almeida. Segredos de Mariana: pesquisando a inquisição mineira. Em
Acervo-Revista do Arquivo Nacional, 2(2): 1-34, 1987, p, 14.
6
Os livros de testemunhas eram aqueles que continham os depoimentos dos denunciantes, o escrivão
registrava nestes os dados da testemunha, seu relato pessoal, às vezes minucioso, às vezes não, dos crimes
denunciados e o nome das pessoas ou grupos apontados na narrativa, isto era realizado em uma primeira
visitação. Já os livros de culpa eram aqueles em que as denúncias eram sintetizadas em “pronunciações”, uma
espécie de sinopse dos casos. Neste momento, segunda visitação, o condenado comparecia individualmente a
Mesa (da visitação), assinava o termo de culpa admitindo o seu crime, pagava à Igreja uma quantia em ouro
proporcional ao grau da transgressão. FIGUEIREDO, Luciano R. de Almeida. O avesso da memória:
cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. 2º ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999,
p. 143-144.
10
Culpa e quais foram as localidades visitadas. Para se chegar a tal classificação, deve-se
pesquisar livro por livro.
Depois desse primeiro contato com o Arquivo Eclesiástico, encontramos
importantes informações em um artigo escrito por Luciano Figueiredo intitulado
“Segredos de Mariana: pesquisando a inquisição mineira”, onde o autor nos diz como
funcionava a “pequena inquisição” mineira e relatava as dificuldades encontradas para
quem pesquisa os livros de devassas que, aliás, eram as mesmas dificuldades identificadas
por nós anteriormente. Dentre as dificuldades destacamos principalmente a inexistência de
uma classificação mais detalhada dos livros que acaba dificultando bastante o
dimensionamento do acervo.
Visando superar esta dificuldade, Luciano Figueiredo apresenta neste mesmo artigo
um sumário dos livros de devassas, separando-os em Livros de Culpa e Livros de
Testemunha e explicita quais as localidades referidas em cada livro. Após o contato com
este autor, redimensionamos o nosso trabalho e voltamos ao arquivo com um índice
confiável. Optamos por trabalhar com os livros que tinham como referência a cidade de
Mariana e as freguesias que ficavam sobre a jurisdição eclesiástica de sua comarca,
7
sendo
esta a delimitação espacial do nosso trabalho. Uma outra delimitação foi nos guiar
principalmente pelos “crimes” cometidos por mulheres, onde estas aparecem como
culpadas e os homens como cúmplices.
Em um primeiro momento, as pesquisas aos Livros de Culpa foram feitas através de
fichas, estas foram montadas visando extrair o maior número de informações possíveis,
como: nome da acusada, cor, condição civil, condição social, a acusação, cúmplice, etc.
Quando começamos a preencher essas fichas, observamos que o número de “crimes” se
7
Freguesias que ficavam sobre a jurisdição eclesiástica da Comarca de Mariana: Catas Altas do Mato
Dentro, Inficionado, Camargos, Antônio Pereira, São José da Barra Longa, São Caetano, São Sebastião,
Sumidouro, Monte Furquim, Guarapiranga e São Miguel do Rio Pomba.
11
avolumava de forma expressiva, o que nos fez parar e refletir se seria necessário restringir
mais o espaço geográfico a ser trabalhado, visto o curto período de tempo que tínhamos
para nos dedicar à coleta das fontes. Optamos por ficar somente com os crimes que
ocorreram em Mariana e as suas denominações anteriores: Arraial do Ribeirão do Carmo e
Vila de Nossa Senhora do Carmo, deixando de lado os “crimes” que ocorreram nas
freguesias que ficavam sobre a jurisdição da Comarca de Mariana.
A opção pela cidade de Mariana foi também devido à grande importância que a
mesma teve no século XVIII, sendo esta localidade onde se instituiu a primeira vila e a
primeira cidade de Minas, além de ter sido a sede do poder administrativo civil na época da
criação da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro e de ter sido também a sede do
Bispado de Minas, que foi criado em 1745.
A partir da definição espaço-temporal – Mariana/1720-1770 – reiniciamos a coleta
dos dados, nos Livros de Culpa, usando a mesma ficha já mencionada anteriormente.
Porém, à medida que a leitura destes documentos foi sendo feita, constatamos que o
conteúdo presente nesta documentação seguia basicamente um mesmo modelo, poucas
eram as variações. Não havia necessidade de transcrevê-lo, já que a única variação
encontrada era com relação a informações referentes às acusadas, que já havia sido
coletada nas fichas.
Optamos por fazer um estudo quantitativo dos dados disponíveis, como: cor,
condição social, condição civil e com relação às reincidências das transgressões, o que nos
permitiu a montagem de gráficos, possibilitando uma melhor visualização do perfil das
mulheres que foram acusadas em Mariana e, por conseguinte, permitiu uma análise mais
aprofundada.
Com os Livros de Testemunhas, a coleta dos dados se deu da mesma forma descrita
anteriormente, mas neste caso a transcrição dos depoimentos tornou-se indispensável,
12
visto, a riqueza de detalhes que nos “saltavam aos olhos” quando começamos a transcrevê-
los. Encontramos nestes livros três tipos de “pecados” atribuídos às mulheres de Mariana,
sendo estes: o concubinato, que parece ter sido um dos crimes mais referidos em Minas
Gerais, o meretrício e a feitiçaria.
Não podemos deixar de mencionar as dificuldades encontradas ao trabalhar a partir
de fontes manuscritas do século XVIII. O maior problema encontrado foi com relação à
linguagem e a escrita, mas com o tempo fomos nos familiarizando e o trabalho foi se
tornando mais produtivo. Outro problema foi com relação ao estado de conservação da
documentação, que se encontra bem danificada pela ação do tempo. Algumas páginas dos
livros de devassas se encontram comprometidas por uma espécie de mofo, apagando a
escrita ao ponto da ilegibilidade, o que acaba comprometendo parcialmente a leitura de
alguns documentos e dificultando o trabalho do pesquisador.
Apontadas algumas dificuldades concretas de pesquisa, descreveremos a seguir os
pontos centrais tratados no corpo da dissertação.
No primeiro capítulo tratamos sucintamente, de como o discurso oficial da Igreja
Católica reforçado pelo Concílio de Trento, procurou criar um corpo “domesticado”, que
tinha como principal objetivo enquadrar a sexualidade feminina dentro de um casamento
monogâmico e indissolúvel, no entanto as mulheres vivenciavam através de um corpo
“rebelde” formas alternativas de sobrevivência que acabavam por burlar as leis canônicas.
No segundo capítulo, procuramos traçar um breve histórico da trajetória de Mariana
de arraial a cidade bem como um breve perfil social do clero mineiro e como se dava o
funcionamento das visitas episcopais em Minas Gerais.
No terceiro capítulo pretendemos focalizar as transgressões femininas que foram
delatas às visitas episcopais. Como o nosso objetivo é captar quais foram os principais
crimes atribuídos a elas pelas devassas eclesiásticas, optamos por fazer uma análise que
13
levasse em consideração tanto os Livros de Culpa quanto os Livros de Testemunho. Em
um primeiro, momento iremos analisar as mulheres que assinaram o termo de culpa e
prometeram emenda, já num segundo momento, iremos transcrever e analisar os relatos de
testemunhas que chegavam perante a mesa da visitação para delatar mulheres concubinas,
meretrizes e feiticeiras.
14
CAPÍTULO I
O CORPO FEMININO NA COLÔNIA
O que pretendemos aqui não é uma história do corpo enquanto estrutura física do
homem, levando em conta apenas o seu caráter biológico. O objetivo desse trabalho é
estudá-lo através da temática da sexualidade.
Para a historiadora Magali Engel, abrem-se duas possibilidades importantes para a
abordagem da sexualidade como um objeto histórico. A primeira se orienta para uma
história dos discursos sobre o sexo, e a segunda aponta para uma história das vivências e
do cotidiano da sexualidade, priorizando “o estudo dos comportamentos reveladores dos
variados usos do corpo”.
8
Enfatizamos aqui que optamos por trabalhar, neste capítulo, com as duas
possibilidades de abordagem descritas acima. Iremos nos ater sobre o discurso
normalizador da Igreja Católica, que queria “domesticar” o corpo feminino dentro do
casamento e ao mesmo tempo, procuraremos mostrar como se dava a vivência dessa
sexualidade através das transgressões morais e sexuais praticada pelas mulheres no período
colonial.
Com relação à sexualidade da mulher colonial, iremos nos servir das reflexões de
Gilberto Freyre que, em “Casa grande e senzala”, discorreu sobre a família patriarcal e
conseqüentemente sobre a mulher, inaugurando a abordagem sobre a sexualidade do
8
Cf: ENGEL, Magali, “História e sexualidade”. IN: Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas (orgs.).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p, 297-311.
15
colono brasileiro. Apesar das inúmeras criticas que lhe foram imputadas, sua obra serviu
de inspiração a diversos historiadores que passaram a buscar subsídios nos seus estudos
pioneiros.
9
De acordo com Ronaldo Vainfas, as críticas direcionadas a ele são por “adocicar os
rigores da escravidão, por negar o preconceito racial dos portugueses, por generalizar os
padrões familiares da casa-grande ao conjunto da sociedade colonial, etc”.
10
O conceito de “família patriarcal” utilizado primeiramente por Gilberto Freyre
passou a ser alvo de crítica, nas últimas décadas do século XX, por vários historiadores que
começaram a questionar tal generalização. O objetivo principal destes historiadores era
apontar que a sociedade colônia convivia com outras formas de arranjos familiares e que o
conceito de patriarcalismo não abarcava as várias formas de convivência conjugal. Vários
trabalhos foram aflorando inviabilizando o exclusivismo da “família patriarcal”.
Mariza Corrêa
11
foi precursora, ao questionar o padrão patriarcal único para todo o
Brasil. A autora procurou demonstrar através da complexidade da sociedade e da economia
colonial a inviabilidade de se pensar a família brasileira de uma única forma. Outro ponto
colocado em destaque é a ênfase dada por Gilberto Freyre, com relação à submissão e a
inferioridade da mulher, temas estes correlatos ao conceito de patriarcalismo. De acordo
com a autora, “o argumento da inferioridade da mulher deveria ser utilizado com uma certa
parcimônia e sempre contextualmente”, já que trabalhos recentes têm demonstrado uma
grande participação das mulheres, seja no comando da casa ou gerenciando os negócios da
9
De acordo com Mary Del Priore, Gilberto Freyre “não apenas serviu como ponto de partida para um amplo
debate sobre o papel da mulher nos primórdios da colonização, como as fontes documentais por ele
utilizadas, inesgotavelmente pilhadas, nortearam a maior parte dos trabalhos históricos sobre a sexualidade,
vida privada, família e trabalho feminino”. Segundo Del Priore , ele foi e continua sendo um grande
inspirador. IN: DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil Colonial. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2003, p, 10.
10
VAINFAS, Ronaldo. “Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade
escravista”. IN: SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p, 229.
11
CORRÊA, Mariza. “Repensando a família patriarcal”. IN: ALMEIDA, Maria Suely Kofes et al. Colcha de
retalhos: estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
16
família. A historiografia acabou traçando um novo perfil para as mulheres, como veremos
no decorrer deste trabalho.
Buscaremos, assim, subsídios não só no trabalho de Gilberto Freyre como também
em estudos já consolidados sobre a sociedade colonial. Estudos estes que irão emergindo
durante a leitura do texto.
1.1 – ENTRE O MEDO E O DESEJO.
Foi ao longo do século XIII, período compreendido como Idade Média, que a Igreja
Católica, através da Inquisição
12
, passou a exercer um forte controle sobre a conduta da
sociedade, incluindo aí homens e mulheres que transgrediam as suas leis e recebiam, por
isso, pesados castigos sobre o seu corpo físico:
13
que eram, muitas vezes, queimados,
apedrejados ou mesmo enforcados em praça pública. Se a vida dos homens nesse período
não foi fácil, imaginemos, então, a vida das mulheres, que foram as principais vítimas de
um discurso misógino, produzido por homens letrados – teólogos, moralistas, confessores,
médicos – que, “afastados do que fosse acidental ou singular nas vidas femininas,
12
A fundação da Inquisição em Portugal se deu somente no ano de 1536. Para maiores informações sobre a
sua fundação e organização ver a obra de: BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal,
Espanha e Itália – séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
13
“As atitudes das autoridades e da população perante o corpo do condenado são bastante interessantes. Para
os inquisidores, em primeiro lugar, o corpo do acusado é considerado a baixa natureza material do homem, o
recipiente produtor de suas fraquezas, cujo papel é ambíguo: por um lado, é o instrumento do demônio para
desviar a alma da via justa; por outro lado, devido esta debilidade, é o meio ideal de inquérito e de produção
de prova (daí a tortura utilizada nos casos mais difíceis). Para os carrascos da Justiça secular, o corpo do
condenado é objeto do seu trabalho, podendo ser manipulado de diversas maneiras. Essa possibilidade de
jogo sádico em torno de um corpo preso, imóvel e impotente tem um reverso: a função do carrasco foi
sempre considerada impura, e a ameaça de vingança dos espíritos dos executados pesa sobre o seu cotidiano
(daí o pedido de perdão ao condenado arrependido). Para a população que assiste ao espetáculo, o corpo da
vítima é uma superfície onde se manifesta a luta entre Deus e o demônio, mas, além disso, é um microcosmo
que reflete o universo efervescente de vida onde se misturam espírito e matéria”. IN: BETHENCOURT,
Francisco, op. cit., p, 257-8.
17
investiam em engordar uma mentalidade coletiva que exprimisse uma profunda misoginia
e um enorme desejo de normatizar a mulher”.
14
Este discurso acabava por disseminar conceitos sobre o gênero feminino e apontava
alguns traços como característico das mulheres os quais, em sua maioria, denegriam a sua
imagem. A mulher era considerada “origem do mal e da infelicidade, potência noturna,
força das sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno da ordem e da razão lúcida”.
15
Dois inquisidores alemães do século XV, Heinrich Krämer e Jakob Sprenger,
autores de um tratado de demonologia, o “Malleus maleficarum”
16
, escrito em 1484,
também traduzido como “O martelo das feiticeiras”, não deixaram dúvida quanto à sua
opinião sobre as mulheres, fonte maior dos grandes males do mundo, seres fracos e
desprezíveis cuja natureza inconstante é o alvo preferido do demônio, que as corrompe
facilmente, e a partir delas, já submissas, podem transformar a ordem social. Segundo estes
inquisidores,
convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter
sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito,
cuja curvatura é, por assim dizer, contrária a retidão do homem. E como, em
virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente.
17
A mulher passa a ser comparada ao homem através de uma hierarquia baseada na
própria natureza, e é através dessa comparação que se chega à conclusão de que a mulher é
biologicamente inferior ao homem. Diziam os médicos, no século II d.c., que os homens
eram fetos que haviam realizado seu potencial pleno.
14
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia.
2.ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1995, p.17.
15
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1998, p, 168.
16
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos
Tempos, 1991.
17
Idem, p, 116.
18
Haviam reunido um excedente decisivo de ‘calor’ e de um ardoroso ‘espírito
vital’, nas etapas iniciais de sua coagulação no ventre. A ejaculação quente do
sêmen masculino provava isso: pois é o sêmen, quando dotado de vitalidade,
que faz com que nós, homens, sejamos quentes, vigorosos nos membros,
pesados, com boa voz, intrépidos e fortes no pensar e no agir.
18
As mulheres, em contraste, eram homens imperfeitos. “O precioso calor vital não
lhes chegaram em quantidade suficiente no ventre. Sua falta de calor as tornava mais
flácidas, mais líquidas, mais frias e úmidas e, de um modo geral, mais desprovidas de
formas do que os homens”.
19
O corpo feminino era inferior ao masculino. A mulher era mais frágil do que o
homem, “suas carnes, mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular mais
esponjoso e cheio de gordura, em contraste com o aspecto musculoso que se exigia do
corpo masculino”.
20
George Duby
21
através de um estudo sobre as damas do século XII, diz que os
homens da Igreja descobrem na natureza feminina três vícios maiores, entre outros
pecados: “elas desviam o curso das coisas” (através da vaidade), são “hostis à tutela
masculina” e possuem os maiores dos vícios em sua natureza: a luxúria, desejo que as
queima por dentro, e as faz “correr atrás dos amantes”.
A mulher, ao mesmo tempo em que despertava desejo nos homens, acaba também
por lhes imprimir um certo sentimento de repulsa, isto porque o corpo feminino era visto,
“tanto por pregadores da Igreja Católica, quanto por médicos, como um palco nebuloso e
18
BROWN, Peter. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.
Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 19.
19
Idem, p.19.
20
DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia. IN: Mary Del Priore (org.). História das mulheres no
Brasil. 2.ed. São Paulo: contexto, 1997. P. 79.
21
DUBY, George. Eva e os padres: damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Sobre
este assunto, olhar o capítulo 1: Os pecados das mulheres, p. 11.
19
obscuro no qual Deus e o diabo se digladiavam”.
22
A sexualidade feminina deveria ser
vigiada e adestrada de acordo com os preceitos da Igreja Católica. O sexo era sinônimo de
mal, de sujo, de perverso. A mulher deveria praticar o sexo com o único intuito da
procriação.
Enquanto as mulheres eram vigiadas e impedidas de utilizar sua sexualidade como
bem quisessem, aos homens religiosos cabia a autopunição, através de mortificações e do
flagelo para espantar de sua imaginação e sonhos a figura feminina. Através do sofrimento
eles buscavam “dominar a imaginação, neutralizar os sentidos e represar, por conseguinte,
o mais singelo despertar do desejo”.
23
No Brasil, desde os tempos da colonização, a repressão sexual feminina teve como
alicerce princípios éticos e religiosos, que acabaram por acarretar, na prática, discursos
moralistas e práticas perversas, reveladas na marginalização e exploração das índias, das
mulheres negras e dos escravos, tratados como objetos ao dispor de seus senhores,
inclusive para as satisfações de ordem sexual. Segundo Gilberto Freyre, “foram os corpos
das negras – às vezes meninas de dez anos – que constituíram, na arquitetura moral do
patriarcalismo brasileiro, o bloco formidável que defendeu dos ataques e afoitezas dos
dons-juans a virtude das senhoras brancas”.
24
Para Freyre, o ambiente em que começou a
vida brasileira foi de quase intoxicação sexual.
O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da
Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne.
Muitos clérigos, dos outros, deixaram-se contaminar pela devassidão. As
mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo
22
KLAPISCH-ZUBER, Christiane. As normas do controlo. IN: Georges Duby e Michelle Perrot. História
das mulheres: Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 78.
23
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986. p. 18.
24
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 50.ed. rev. São Paulo: Global, 2005. p. 538.
20
esfregar-se nas pernas desses que se supunham deuses. Davam-se ao europeu
por um pente ou um caco de espelho.
25
Em uma carta enviada ao padre mestre Inácio de Loyola, escrevia o padre Anchieta,
dando informações sobre o Brasil: “as mulheres andam nuas e não sabem se negar a
ninguém, mas até elas mesmas acometem e importunam os homens, jogando-se com eles
na rede porque tem por honra dormir com os cristãos”.
26
Segundo essa imagem, carregada da misoginia européia, eram as mulheres das
“novas” regiões as responsáveis pela conduta dos portugueses. Inocentados, até pelos
jesuítas que os atacavam, os portugueses apareciam nos relatos dos primeiros tempos da
colônia mais vítima do que algozes; tanto assim que as mulheres, particularmente as índias,
eram desqualificadas quando identificadas como o espírito ruim da tentação, do engano e
do pecado.
27
A nudez dos índios foi ressaltada por leigos e religiosos, embora alguns a tenham
registrado com naturalidade. Na carta de Caminha sobre a notícia do achamento do Brasil,
ele os descrevia: “andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de
mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto”.
28
Gandavo
limitou-se a constatar que nada cobriam no corpo, e traziam “descoberto quanto à natureza
lhes deu”.
29
Foram os jesuítas que mais se chocaram com a nudez dos índios, chegando
mesmo a achar que eles mantinham alguma ligação com o demônio, tamanha era a sua
falta de pudor em relação as suas partes íntimas. “Os corpos nus provocavam a libido dos
25
Idem, p. 161.
26
ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões (1534-1597). Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p. 78.
27
Cf: LODOÑO, Fernando Torres. “As mulheres da terra e seu destino: escravidão e mancebia”, p, 31-46.
IN: A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
28
Carta de Caminha: a notícia do achamento do Brasil / Paulo Roberto Pereira, organização. Rio de Janeiro:
Expressão e cultura, 2202. p. 36.
29
GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP,
1980, p. 52.
21
religiosos, que se autoflagelavam como forma de reprimir os impulsos bestiais; a beleza
física das índias tentava contra o voto de castidade”.
30
Para os religiosos, além da nudez escancarada, os índios também levavam uma vida
promíscua, o que induzia os jesuítas a pensar se havia entre eles algum tipo de união
estável. “Predominava, no entanto, a idéia de que tais matrimônios eram falsos ou
duvidosos, uma vez que a poligamia, o desrespeito às regras de parentesco cristãs e a
instabilidade das uniões invalidavam-nos aos observadores saber quais eram, de fato, os
casados”.
31
Anchieta, em uma carta dando informações sobre o casamento dos índios no
Brasil, dizia:
Os índios do Brasil parecem que nunca têm ânimo de se obrigar, nem o marido
à mulher, nem a mulher ao marido, quando se casam: e por isso a mulher nunca
se agasta porque o marido tome outra ou outras, reste com elas muito ou pouco
tempo, sem ter conversação com ela, ainda que seja a primeira; e ainda que a
deixe de todo, não faz caso disso, porque se é ainda moça, ela toma outro, e se é
velha assim fica sem esse sentimento, sem lhe parecer que o varão lhe faz
injúria nisso, sobretudo se isso o serve e lhe dá de comer, etc. E de ordinário
tem paz com suas comborças, porque tanto as têm por mulheres de seus maridos
como a si mesmas.
32
O único remédio para a instabilidade das uniões seria casá-los de acordo com os
preceitos da Igreja católica, “o que pressupunha muita instrução moral ao lado da
sistemática demonização das práticas locais”.
33
Através desses escritos, podemos ponderar como não deve ter sido fácil para os
primeiros jesuítas que aqui aportaram, lidar com tanta “libertinagem”, que se dava entre as
30
Raminelli, Ronald. Eva tupinambá. In: Mary Del Priore (org). História das mulheres no Brasil. 7.ed. São
Paulo: Contexto, 2004, p. 26.
31
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. 4.ed. Rio de janeiro:
Nova Fronteira, 1997, p. 34.
32
ANCHIETA, op. cit. P. 456.
33
VAINFAS, Trópico dos pecados, p. 35.
22
nativas e os portugueses que aqui chegavam sem trazer suas famílias. Se entre os índios o
que imperava era uma vida distante da tão proclamada moral cristã, onde os “pecados”
praticados com o corpo, como a nudez, a poligamia e a prática da antropofagia, que
assustaram tantos religiosos, o que podemos dizer dos primeiros colonos, que mesmo
conhecendo as leis cristãs, “tão logo desembarcaram, tratavam-se de amancebar-se com as
índias da terra, e não contentes com esse já monstruoso pecado, muitos se união a várias
mulheres de uma só vez, pronto a copiar o estilo dos caciques e dos principais do gentio”.
34
Se homens leigos eram acusados de cultivar o pecado e comprometer a base da
moral cristã, amancebando-se com índias, o que dizer então, dos religiosos, que sendo
grandes divulgadores da moral, também cometiam os seus deslizes, ora visto que a
primeira pessoa ouvida pelo primeiro inquisidor da primeira visitação do tribunal do Santo
Ofício ao Brasil era um sacerdote.
Não se tratava de um recém-ordenado, mas de um padre de 65 anos, portanto de
muitos e muitos anos de prática no pastoreio de vasto rebanho de ovelhas de
pecadoras. E justo ele, um velho religioso, vinha abertamente declarar-se
pederasta confesso e assumido. Aí ficava difícil. Segundo ele próprio narrava,
“cometeu a torpeza de tocamentos desonestos com algumas quarenta pessoas
pouco mais ou menos, abraçando, beijando”; e de “muitos moços e mancebos”,
cuja idade variava de 12 a 18 anos, “nem sabe os nomes nem onde ora estejam”.
Sob o impacto do susto, o inquisidor Heitor Furtado de Mendonça repreendeu-o
com ira (transparece isso nos autos), pois que não era um pecador qualquer, e
sim “sacerdote, pastor de almas e tão velho...” Mas, confuso, mandou-o
embora.
35
Como podemos observar, tanto leigos quanto religiosos tiveram seus pecados, seus
vícios e suas fraquezas com relação à exaltação dos seus instintos sexuais. Na fala de
34
Idem, p. 39.
35
Ver Conf. Bahia, 1591-1592, p. 23-7, onde se encontra a íntegra desse depoimento. Apud: ARAÚJO,
Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2.ed. Rio de janeiro:
José Olympio, 1997, p, 189.
23
Gilberto Freyre, “raro, entre nós, os eclesiásticos que se conservaram estéreis; e grande
número contribuiu literalmente para o aumento da população, reproduzindo-se em filhos e
netos de qualidades superiores”.
36
Se no século XVI houve a preocupação em disciplinar as populações nativas com
relação à nudez, a poligamia e as uniões incestuosas, nos séculos seguintes as relações
sexuais e amorosas teriam cada vez mais a maior participação dos negros. “A mesma
estranheza erotizante que os jesuítas demonstraram no século XVI diante da nudez
indígena, religiosos e viajantes europeus demonstrariam, nos séculos seguintes, em relação
aos africanos, e sobretudo diante das negras com seios à mostra”.
37
E foi através da dança que muitas negras exibiam o seu corpo, como bem nos
afirma Mary Del Priore, a dança, fruto da festa, permite por sua vez, o uso do corpo como
forma de lazer. Através do lundu e do batuque, glorifica o que ocorre da “cintura para
baixo”. “As regiões físicas do desejo destacam uma estratégia de sedução que valorizará,
por longa duração, os quadris e as nádegas das brasileiras”.
38
Como uma forma de lazer, a
dança decerto propiciava não só a exibição lúbrica do corpo feminino como a ocasião de
seduzir e ser seduzida.
39
Se através da dança a mulher negra exibia a sua sensualidade, foi através da sua
condição de escrava que ela esteve subordinada ao seu senhor. De um sistema econômico
assentado na monocultura da cana-de-açúcar, na exportação e na escravidão, a mulher
negra foi protagonista de uma triste história. Freqüentemente à margem da sociedade, tudo
lhe foi tolhido, a começar pela dignidade de escolher o seu próprio destino. A sua vida foi
36
FREYRE, Gilberto, op. cit. P, 534.
37
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas..., p. 264.
38
DEL PRIORE, Mary. Mulher e sentimento na iconografia do século XIX. IN: Lana Lage da Gama Lima.
Mulheres, adúlteros e padres: história e moral da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Dois pontos Editora,
1987, p. 90.
39
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. IN: Mary Del Priore (org).
História das mulheres no Brasil 7.ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 62.
24
marcada pelo trabalho na lavoura, no engenho, nas atividades domésticas da casa-grande,
na senzala e nos braços do seu senhor, que abusava sexualmente de suas escravas, abusos
que acabavam por gerar cenas de violência e, no limite, o estupro.
Para Gilberto Freyre uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia
ou da negra terá predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as
mulheres das raças submetidas ao seu domínio.“O furor ‘femeeiro’ do português se terá
exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo”.
40
Um jornal de 1851
discorre sobre a inevitável sujeição sexual da escrava ao seu senhor:
Uma escrava é obrigada a ceder aos desejos libidinosos de seu senhor para se
não expor, com a recusa, a toda a sorte de torturas; não pode guardar a honra de
sua filha (se tem) nem mesmo a sua contra tentativas de seu poderoso senhor:
um escravo não pode queixar-se da infidelidade de sua mulher, e vingar-se de
seu sedutor. Em geral é isto que acontece.
41
Muitas foram as escravas que, por não terem condições dignas de sobrevivência,
vendiam os seus corpos a qualquer homem que pagasse para ter com elas algumas horas de
prazer. Só assim elas conseguiam viver com o mínimo de dignidade e muitas foram
empurradas pelo próprio dono ao caminho da prostituição, que viam em suas escravas uma
forma de aumentar os seus ganhos. Outras tinham a função de iniciadoras sexuais dos
filhos do senhor. Segundo Gilberto Freyre, “o que a negra da senzala fez foi facilitar a
depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do
sinhô-moço. Desejo, não: ordem”.
42
40
FREYRE, Gilberto, op. cit., p. 113.
41
Sobre os meios de abolir a escravatura e de promover a colonização no Império do Brasil, O Americano,
2/04/1851. Apud: GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da
mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988, p, 70.
42
FREYRE, Gilberto, op. cit., p, 456.
25
Como vimos, a sexualidade feminina na época colonial manifestava-se sob vários
aspectos. Cabia, portanto, à Igreja Católica, controlar os seus instintos e diminuir com isso
os seus “pecados”.
Durante esse período, o corpo feminino foi duramente perseguido pela Igreja
Católica e por médicos que queriam desvendar os seus mistérios. À Igreja cabiam os
cuidados com a alma e aos médicos, os cuidados com o corpo.
Reflexo do poder masculino onipresente na sociedade ocidental cristã, a fala
desses autores, representantes de diferentes segmentos da sociedade colonial e
metropolitana, tinha objetivos: delimitar o papel das mulheres, normatizar seus
corpos e almas, esvaziá-las de qualquer saber ou poder ameaçador, domesticá-
las dentro da família. Objetivos que se
adequavam perfeitamente aos
fundamentos da colonização do império colonial português.
43
Ao Estado português e à Igreja, através de velhos costumes misóginos, cabiam a
vigilância da sexualidade feminina, que deveria ser abrandada para não pôr em perigo “o
equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e
eclesiásticas”.
44
Como afirma Mary Del Priore,
45
“a mulher parecia-se como a ponte de um
continente submerso do qual nada se sabia”. A mulher era estigmatizada com a predileção
da insaciabilidade. O seu corpo era um poço de desejos, suas atitudes eram ameaçadoras
frente às fraquezas masculinas. A mulher levava o homem através de seu corpo a cometer
“pecados”, por isso, era preciso adestrá-las dentro do casamento, a fim de “domesticar” a
sua sexualidade. Aos homens era permitido, tanto pela Igreja quanto pelo Estado, uma vida
mais livre.
43
DEL PRIORE, Mary, Ao sul do corpo..., p. 17.
44
ARAÚJO, Emanuel, A arte da sedução...., p. 45.
45
DEL PRIORE, Mary, Ao sul do corpo..., p, 22.
26
Com esse discurso, a Igreja Católica procurava “domesticar” a sexualidade da
mulher dentro do leito conjugal, propondo aos cônjuges fazer sexo exclusivamente dentro
do casamento e era através de famílias institucionalizadas que a Igreja buscava propalar a
moral cristã.
1.2 - O CORPO “DOMESTICADO”.
Se a vida dos habitantes do Novo Mundo estava alicerçada sobre o “pecado”, cabia
à Igreja Católica e ao Estado tirá-los de tal situação, reordenado-os à luz dos valores
cristãos, o que implicaria uma profunda reforma dos costumes e das moralidades vigentes.
As novas leis da Igreja estavam fundamentadas nas decisões estabelecidas no
Concílio de Trento
46
, que teve como um dos seus principais objetivos defender o
matrimônio enquanto sacramento e instituição.
Após o Concílio de Trento, o sacramento matrimonial foi instituído como
padrão de comportamento sexual, perdurado até os nossos dias. No que diz
respeito ao Brasil colônia, a complementaridade de poderes entre Igreja, Estado
e Inquisição desempenhava a tarefa de padronizar moralmente a sociedade
conforme as regras do catolicismo, que só vislumbrava duas possibilidades para
a cristandade: o matrimônio, a sexualidade permitida para a propagação
humana, e o pecado da carne, a sexualidade evitada para a salvação da alma.
47
No Brasil, foram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
48
, da
primeira década do século XVIII, que regulamentaram as determinações tridentinas que
46
Para maiores detalhes com relação ao Concílio de Trento ver o primeiro capitulo “A Contra-Reforma e o
Além-mar” da obra de Vainfas, Trópico dos pecados..., p, 19.
47
GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado: na sociedade colonial paulista (1719-
1822). São Paulo: Annablume, 1998, p, 86.
48
Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas e ordenadas pelo ilustríssimo, e reverendíssimo
senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade,
27
alteraram profundamente os princípios ocidentais no que diz respeito à moralidade e à
sexualidade.
Segundo o texto das Constituições Primeiras, fundamental para conhecermos a
doutrina da Igreja em terras brasileiras, o matrimônio tinha como fim primeiro “a
propagação humana, ordenada para o culto, e honra de Deus”, mas era ao mesmo tempo
encarado como “remédio da concupiscência”, sendo aconselhado para “os que não podem
ser continentes”.
49
Foi através desse discurso baseado no casamento monogâmico que a Igreja e o
Estado acabaram por impor à sociedade colonial seus direitos sobre a “domesticação” do
corpo e da sexualidade. A mulher, a partir de então, tornou-se a peça fundamental desse
discurso. “O fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o
homem era superior, e portanto, cabia a ele exercer sua autoridade”.
50
A vida dessas mulheres foi marcada pela submissão: quando solteiras deviam
obediência ao pai e quando casadas estavam sujeitas às decisões do marido. Cabia ao
marido refrear os maus instintos da mulher.
Sendo a ignorância, a inconstância, a soberba e a vaidade seus defeitos típicos,
competia ao homem, preocupado com a “fragilidade da honra feminina”, mantê-
la reclusa no próprio lar, porque “quanto mais trancada, mais segura, mais
honrada, menos solicitada e arriscada”. As esposas deveriam ser “caladas e
sofridas” e, mesmo para ir a Igreja, seriam autorizadas pelos maridos apenas
“quando claramente lhes não constar que são fingidas”.
51
propostas e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho de 1707. 3 ed. São
Paulo: Tipografia 2 de Dezembro, 1853.
49
Liv, I, tít. LXII. Apud: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. Revista
Ciência e cultura 28 (11): 1250-1263, 1976, p, 1253.
50
ARAÚJO, Emanuel, A arte da sedução..., p, 45.
51
GOLDSCHMIDT, op. cit., p, 54/55.
28
Charles Boxer
52
, fazendo alusão aos portugueses com relação ao tratamento que
reservavam para esposas e filhas, cita um provérbio que nos mostra a dimensão da reclusão
destinada a elas. Segundo ele, era em apenas três ocasiões que uma dama realmente
virtuosa deixava seu lar, durante toda a sua existência: para se batizar, para se casar e para
ser enterrada.
Dentro deste modelo de conduta, cabia às mulheres serem boas donas de casa,
cuidar da educação dos filhos e respeitar as decisões do marido, muitas chegando ao
matrimônio sem sequer ter a oportunidade de escolher o próprio companheiro. Isso não se
dava apenas entre as famílias abastadas, mas também era comum entre trabalhadores de
menor status, como agricultores e artesãos, talvez em proporções mais reduzidas se
comparadas às famílias que representavam a elite colonial. “Na Metrópole ou na Colônia
eram os pais ou familiares da noiva e, em menor escala, o futuro cônjuge os grandes
protagonistas do acerto matrimonial”.
53
Era através do casamento que as famílias
buscavam consolidar interesses sociais, políticos e econômicos. Cabia a mulher repreender
os seus sentimentos e aceitar a decisão do pai, o que acabava muitas vezes ocasionando
casamentos sedimentados sobre a infelicidade de ambos.
A idade mínima para se contrair matrimônio era de 14 anos para os moços e de 12
anos para as moças. A partir dessa idade, os pais já passavam a se preocupar com o destino
das filhas, procurando, através de casamentos arranjados, “domesticar” a sexualidade e
abafar qualquer tipo de sentimento que poderia colocar em risco a pureza das filhas e a
honra da família. Nas palavras de Freyre: “Quem tivesse sua filha, que a casasse meninota.
Porque depois de certa idade as mulheres pareciam não oferecer o mesmo sabor de virgens
52
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3º ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p, 161.
53
VAINFAS, Trópico dos pecados..., p, 130.
29
ou donzelas que aos doze ou aos treze anos. Já não conservavam o provocante verdor das
meninas-moças apreciado pelos maridos de trinta, quarenta anos”.
54
As mulheres deveriam defender a todo custo a sua virgindade. “Esperava-se que
fossem difíceis de se render, capazes de resistir ao assedio executado contra um bem
cultural, baluarte que garantia a identificação da mulher direita, isto é, daquela integrada
aos valores sociais”.
55
O alto funcionário da administração colonial, Melo Castro e Mendonça, governador
da Capitania de São Paulo, Justifica o matrimônio do seguinte modo:
Na verdade não há coisa mais inerente ao homem, tanto que chega aos anos da
puberdade, que ser agitado pelos fortíssimos sentimentos, que a Natureza lhe
inspira de procurar meios de se reproduzir, meios que não podendo subsistir à
face de um povo cristão, não sendo regulados pelas leis de Deus, e do Soberano,
e pelos ditames da honestidade e da decência, forçosamente o impelem a buscar
no sagrado do matrimônio a satisfação aos seus desejos.
56
Mas mesmo dentro do casamento, o casal continuava a sofrer a intervenção da
Igreja. “Moderação, freio dos sentidos, controle da carne, era o que esperava de ambos,
pois o ato sexual não se destinava ao prazer, mas à procriação de filhos”.
57
Para a Igreja o
sexo voltado para a procriação era elevado à categoria de sagrado e o sexo realizado
apenas com o intuito do prazer, estava na contramão dos dogmas da igreja e, portanto, era
considerado herético.
Se o sexo fora do casamento era considerado transgressor, de acordo com os
ditames da Igreja Católica, os casados, ao contrário, pecavam se não tivessem esse tipo de
54
FREYRE, Gilberto, op. cit., p, 429.
55
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. Casamento e família em São Paulo colonial. São Paulo: Paz e Terra,
2003, p, 346.
56
“Memória econômica-política da Capitania de São Paulo”, in Anais do Museu Paulista, Vol. XV, p, 85.
Apud: Maria Beatriz Nizza da Silva, op. cit., p, 1253.
57
ARAÚJO, Emanuel, A arte da sedução..., p, 52.
30
relação, pois marido e mulher deveriam empenhar-se no pagamento do débito conjugal.
“Peca mortalmente o casado, que nega o débito, sem causa grave, ao consorte que o
pede”.
58
A mulher nunca deveria demonstrar claramente os seus desejos carnais, cabia a
elas apenas insinuá-los. O marido deveria estar sempre atento aos mais singelos sinais
emitidos pela esposa, cabendo a ele a iniciativa do ato. Normas, como vemos, que levam
em conta quase exclusivamente o desejo sexual masculino, afastando a iniciativa sexual da
mulher e que vem ao encontro do modelo da mulher passiva, casta e virtuosa, isto é,
despida da sensualidade, desejável para o preenchimento do papel de esposa.
59
As regras conjugais não terminavam por aí: até com relação a posição correta na
hora do ato, a Igreja se preocupava e estabelecia as suas normas. “A união conjugal deveria
se efetuar segundo a posição chamada ‘natural’, com a mulher deitada de costas e o
homem sobre ela. Todas as outras posições eram consideradas escandalosas e ‘contra a
natureza’”.
60
Essas posições consideradas “contra a natureza” eram vistas aos “olhos” da
Igreja como uma busca demasiada do prazer e ao mesmo tempo estéreis, isto porque,
“teólogos e moralistas condenavam o coito com o homem em pé, sentado ou por baixo da
mulher, casos em que o esperma procriador poderia desperdiçar-se ao não entrar no lugar
certo”.
61
Alguns teólogos e moralistas também foram enfáticos com relação à questão do
amor entre os cônjuges. O amor no matrimônio não era muito bem acolhido. “Os
defensores do casamento católico odiavam a paixão e, seguidores da escolástica,
recomendavam moderação nos sentimentos e nas paixões eróticas, somente legítimos se
58
GOLDSCHMITD, op. cit., p, 60.
59
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda, op. cit., p, 370.
60
FLANDRIN, Jean-Louis. A vida sexual dos casados na sociedade antiga: da doutrina da Igreja à realidade
dos comportamentos. IN: Philippe Áries e André Béjin (orgs). Sexualidades ocidentais. 3º ed. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987, p, 143.
61
ARAÚJO, Emanuel, A arte da sedução..., p, 52.
31
vinculados à procriação, honrosa para Deus, gloriosa para o Estado”.
62
Entre marido e
mulher não deveria existir mais do que um sentimento de amizade, jamais a paixão. “O
companheirismo, baseado na estima e concórdia mútuas, é o sentimento aconselhado aos
esposos”.
63
Isso não quer dizer que todas as uniões matrimoniais tenham acontecido sem
afeto.
Segundo Fernando Londoño, os maridos tinham como procurar outros espaços nos
quais pudessem encontrar o que o matrimônio não lhes proporcionava. Transferiam-se a
paixão, o desejo sexual e o afeto entre as pessoas da legalidade do casamento para a
ilegalidade de outras relações. O que por sua vez, era coerente com o discurso moralista da
época, que, ao identificar, o prazer com o pecado da luxúria, o bania das relações
conjugais. Segundo ele, esse comportamento não produzia nos esposos nenhum
constrangimento.
64
Nas classes populares, as mulheres desfrutavam de maior liberdade pessoal,
principalmente no que diz respeito a sua sexualidade, mas nem por isso deixavam de ser
perseguidas e punidas ao transgredir as regras impostas tanto pela Igreja, quanto pelo
Estado. Já as mulheres que pertenciam às classes dominantes, tinham sua sexualidade
confinada no interior da casa, podendo sair apenas com a autorização do marido, que tinha
amplos poderes sobre ela, inclusive o direito de castigá-la fisicamente. Elas tinham poucas
opções fora do casamento para encontrar a satisfação de desejos pessoais muitas vezes não
realizados no matrimônio. O seu papel principal era o de reprodutora. Aliás, era através da
maternidade que a mulher se afastava de Eva, a pecadora, para se aproximar de Maria, “a
mulher que pariu virgem o salvador do mundo”.
62
VAINFAS, Ronaldo, Tropico dos pecados..., p, 123.
63
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda, op. cit., p, 378.
64
LONDOÑO, Fernando Torres, op. cit., p, 52.
32
Mas será que essas novas diretrizes com relação ao casamento monogâmico
funcionaram aqui no Brasil? Segundo Eni de Mesquita Samara,
65
a idéia de que uma
parcela significativa da população aderia mais facilmente ao celibato e ao concubinato do
que ao casamento levou-a a questionar os entraves à realização do mesmo. Ela chegou a
conclusão de que as dificuldades encontradas eram tanto de ordem racial, como econômica
e social.
Entre tais dificuldades podemos enumerar: a questão da pureza de sangue; a falta de
recursos financeiros, atrelado ao alto custo das despesas matrimoniais; obtenção de
certidões de batismo, o que para os escravos era de difícil obtenção por passarem
facilmente de uma capitania para outra e havia ainda os impedimentos, para os quais era
necessário pedir uma dispensa. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, em seu artigo já
citado, Sistema de casamento no Brasil colonial
66
, os impedimentos mais freqüentes eram
os destinados aos homens infiéis e a questão de afinidade e consangüinidade, embora os
textos doutrinários se referissem a outros como: erro de pessoa, condição, voto, crime,
disparidade de religião, força ou medo, ordem, ligame, pública honestidade, impotência,
rapto, ausência do pároco e de duas testemunhas.
Ao examinar uma centena de processos inquisitoriais contra bígamos, do século
XVI ao XVIII, provenientes dos mais variados recantos do Brasil colonial, Ronaldo
Vainfas diz não ter encontrado nenhuma alusão a certidões de batismo ou outros
documentos exigidos pelo pároco celebrante dos casamentos, com a única exceção das
certidões de óbito do primeiro cônjuge, sendo os contraentes viúvos – e mesmo esses são
casos raríssimos. Segundo ele, “pouco sabemos, de fato, com base nos autos do Santo
65
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. 4º ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
66
A questão relacionada aos impedimentos se encontra nas páginas 1253 e 1254 do referido artigo.
33
Ofício, sobre o eventual pagamento de taxas matrimoniais”.
67
E chega a seguinte
conclusão:
Ao nosso ver, segmentos pobres deixavam de se casar no Brasil, não porque
lhes fosse impossível enfrentar obstáculos financeiros e burocráticos exigidos
pelo matrimônio oficial, nem muito menos por terem escolhido qualquer forma
de união oposta ao sacramento católico. Amancebavam-se por falta de opção,
por viverem, em sua grande maioria, num mundo instável e precário, onde o
estar concubinado era contingência da desclassificação, resultado de não ter
bens ou ofício, da fome e da falta de recursos, não para pagar a cerimônia de
casamento, mas para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada
segundo os costumes sociais e a ética oficial.
68
Se a maioria dos habitantes do Brasil pertenciam às camadas menos favorecidas,
podemos inferir, através das palavras de Vainfas, que o modelo de casamento proposto
pelo Concílio de Trento - monogâmico e indissolúvel – não foi uma constante aqui no
Brasil. Claro que existiram casamentos que seguiam as normas tridentinas, sendo que a
maioria deles se dava entre as classes ligadas à elite colonial. Aliás, ser casado
representava sinal de status perante a sociedade. Mas o grosso da população escolheu viver
relacionamentos conjugais que se apresentavam à margem do padrão proposto por Trento.
As mulheres, embora conhecessem a importância do sacramento do
matrimônio, preferiam viver em parcerias conjugais ditadas pela oportunidade e
pela ocasião, parcerias moldadas pelas dificílimas condições materiais e
insegurança econômica na colônia, que ditava regras e costumes próprios.
69
Se o corpo feminino deveria ter a sua sexualidade “domesticada” dentro do
casamento e se a Igreja Católica e o Estado Português não conseguiram fazer do
67
VAINFAS, Ronaldo, Trópico dos pecados..., p, 93.
68
Idem, p, 94.
69
DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil colonial...., p, 22.
34
sacramento matrimonial uma unanimidade entre a maioria da população do Brasil colonial,
como ficou essa sexualidade? Quais foram as principais transgressões colocadas em prática
por mulheres que não se submeteram ao discurso da Igreja Católica? Quais foram as
alternativas encontradas por mulheres que preferiram viver à margem do casamento
institucionalizado?
1.3 - O CORPO “REBELDE”
Submissão. Será que todas as mulheres do período colonial foram submissas? Será
que os papéis destinados a elas foram uma constante e estiveram presentes em todas as
classes sociais? Ao que tudo indica, não. Estudos atuais têm demonstrado como um
exagero a visão clássica que considerava a mulher como um ser inteiramente submisso ao
homem. Para Antônio Candido: “a dominação do homem não poderia ser tão absoluta uma
vez que o regime patriarcal permitiu que numerosas mulheres se realizassem fora de suas
casas”.
70
Para Alzira Campos: “Apenas as camadas superiores poderiam aspirar a
preencher os requisitos desejáveis para a identificação intersexual. Nos estratos médios e
baixos, as virtudes diminuíam em número e mudavam em qualidade”.
71
Para Eni de
Mesquita Samara, o modelo de estrutura familiar baseado no modelo patriarcal acabou por
criar o mito da mulher submissa e do marido dominador, que foi impropriamente usado
como válido para toda a sociedade brasileira.
Esboça-se, portanto, não uma tendência de negar em absoluto a opressão das
mulheres na Colônia, mas sim a de matizá-la, restringi-la a certas mulheres de
elite enclausuradas pelos esposos, ressaltando-se por outro lado, as rebeldias e
70
SOUZA, Antônio Cândido de Mello e. “The Brazilian Family”. Apud: Alzira Lobo de Arruda Campos, op.
cit., p, 353.
71
CAMPOS, Alzira Lobo Arruda, op. cit., p, 353.
35
transgressões femininas, a eventual ascensão de muitas mulheres ao governo
doméstico e, sobretudo, a relativa “liberdade” em que viviam as mulheres nas
camadas populares da sociedade.
72
As mulheres que faziam parte da elite colonial, devido à sua posição privilegiada,
acabavam por seguir os padrões de conduta propostos pelo modelo patriarcal: viviam
enclausuradas em suas casas, cuidando dos filhos e sob o jugo do marido. Já as mulheres
pobres não tinham outro destino que não o de lutar sob árduas condições de vida,
utilizando-se de várias artimanhas para conseguir meios de sobrevivência para si e para
seus filhos. Muitas foram as acusadas de concubinato, adultério, prostituição e feitiçaria. E
é através desse corpo “rebelde”, no qual o modelo ideal de mulher – proposto pelo discurso
da Igreja Católica – se tornou inatingível, que iremos nos debruçar a partir de agora.
Se nas camadas superiores o casamento foi motivado por interesses patrimoniais,
nos demais extratos da colônia o que imperava eram uniões que se realizavam à margem
do sacramento matrimonial, sendo o concubinato a alternativa sexual e conjugal
encontrada para viver relacionamentos nem sempre aceitos pelos ditames da sociedade.
As mulheres de origem africana foram as que mais estiveram associadas a este tipo
de relacionamento. Isto porque, “a escravidão era uma fonte privilegiada de concubinatos,
pois todos os que possuíam escravas, fossem grandes senhores ou simples trabalhadores,
achavam-se no direito de estender seu domínio a posse sexual”.
73
“Enquanto propriedade
do senhor a escrava não se podia recusar a ter relações com ele e por essa razão este tipo de
concubinato era visto com tolerância pelo pároco”.
74
As esposas legítimas nem sempre
concordavam com a vida imoral que levavam os seus maridos, e mostravam as suas garras
72
VAINFAS, Ronaldo, Trópico dos pecados..., p, 117.
73
DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil colonial, p, 26.
74
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Mulheres na colônia: uma história a ser escrita. Revista da SBPH, 1983,
p, 6.
36
quando era preciso afastar do seu convívio negras e mulatas que serviam para satisfazer os
apetites sexuais dos seus companheiros. Nas palavras de Freyre:
Não são dois nem três, porém muito os casos de crueldade de senhoras de
engenho contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os
olhos de mucamas bonitas e traze-los à presença do marido, à hora da
sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco.
Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas
de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina
dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas,
queimar as caras e as orelhas. Toda uma série de judiarias.
75
Não sabemos ao certo o que levava essas mulheres a chegarem a tal ponto de
perversidade. Seria apenas o ciúme do marido ou dentro dessa prática estaria embutida
todo o seu rancor com relação à representação da mulher perfeita imposta a elas?
O concubinato acabava por abranger os diferentes estratos sociais. Todos, ricos e
pobres, negros e brancos, mulheres e homens, religiosos e laicos, casados solteiros e
viúvos encontravam-se propensos a se envolver neste tipo de relacionamento. “A
concubina podia ser solteira ou viúva vivendo maritalmente com um parceiro solteiro ou
viúvo, mas também casada, cometendo adultério
76
, mesmo que vivesse separada do seu
marido”.
77
Muitas mulheres casadas, na ausência dos maridos, cometeram tal crime. Na
colônia era comum o homem se ausentar de casa por longos períodos em busca de
melhores condições de trabalho e, na volta, muitos encontravam suas mulheres vivendo
com outros homens e mesmo com filhos. No Brasil, o delito era comuníssimo e sequer o
75
FREYRE, Gilberto, op. cit., p, 421.
76
Para uma analise mais profunda sobre o adultério, consultar: Ronaldo Vainfas, “A condenação do
adultério”. IN: Lana Lage da Gama Lima (org). Mulheres, adúlteros e padres. Rio de janeiro: Dois Pontos,
1987, p, 33.
77
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Mulheres na colônia, p, 11.
37
medo de morrer às mãos do marido impediu muitas mulheres de romperem o claustro
doméstico a que eram submetidas e entregarem-se às aventuras extraconjugais.
78
O código Filipino, de fato, determinava que “toda a mulher, que fizer adultério a
seu marido, morra por isso”. Entretanto, não era apenas a severidade da lei que incidia
sobre a adúltera, mas também a do marido, pois no título “Do que matou a sua mulher, por
achar em adultério”, ficou estabelecido que “achando o homem casado sua mulher em
adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for
peão, e o adúltero fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade”.
79
Quando os laços matrimoniais eram comprovados por testemunhas, o marido era
legalmente autorizado a matar sua esposa que não cumpria as regras do casamento, no que
diz respeito à fidelidade. A mulher, no entanto, não poderia acusar o marido de adultério,
mas mesmo assim houve casos de mulheres que mataram os seus maridos.
Na Capitania do Maranhão, D. Maria da Conceição foi condenada a degredo
perpétuo para Angola, por ter mandado matar o cônjuge e ter mesmo assistido a
sua “morte aleivosa” às mãos do sobrinho e caixeiro com quem ela vivia em
“pública e adulterina devassidão” e com quem se ajustará casar.
80
A bigamia também esteve entre os crimes considerados heréticos e muitas foram as
denúncias coletadas por ocasião das visitas diocesanas. “Algumas mulheres no Brasil
colonial, não hesitaram em cometer este crime, a fim de resolverem sua vida amorosa e
matrimonial”.
81
Mas devemos salientar que o número de homens envolvidos nesse crime
78
Emanuel Araújo, O teatro dos vícios..., p, 227.
79
Código Filipino, Livro V, Título: XXXVIII. Código Filipino on line. Disponível em:
<
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>. Acesso em: 11 dez. 2005.
80
ANRJ, Consultas do desembargo do Paço, Cod. 149, vol. 3, fl. 138v. Apud: SILVA, Maria Beatriz Nizza,
Mulheres na colônia, p, 12.
81
SILVA, Maria Beatriz Nizza, Mulheres na colônia..., 12.
38
foi bem maior do que o número de mulheres, isto porque para o homem, um segundo
casamento lhe trazia vantagens, pois este receberia um novo dote.
A prostituição também foi uma constante na vida de muitas mulheres
representantes das camadas desfavorecidas: negras, mulatas e mesmo as brancas estiveram
na mira das autoridades civis e eclesiásticas. Acusadas de transgressoras por infringir as
normas de conduta, elas foram vítimas das árduas condições de vida que as levavam a
cometer tal “pecado” para driblar a fome e a miséria. A prostituição se dava de diversas
maneiras: eram mães que exploravam as filhas, maridos que aceitavam sem o menor
constrangimento a prostituição das esposas, mulheres que transformavam suas casas em
prostíbulos e senhores ou senhoras que aumentavam os seus rendimentos através da
prostituição de suas escravas.
A prostitutas, além do seu ofício, eram perigosas para o Estado, pois o aumento da
prole ilegítima e conseqüentemente o crescimento de mestiços na sociedade acabava por
contrariar as aspirações do Estado com o ideal da “pureza de sangue”
82
. Isto porque para os
homens do período manter relações com índias, negras ou mulatas não era, segundo eles,
pecado, já que essas mulheres eram consideradas “mulheres públicas” de má vida; o maior
pecado era se envolver com mulheres virgens, casadas e brancas. “Machismo e racismo,
com algum verniz de moralismo cristão, eis o que se pode extrair, em doses variadas,
dessas conversas masculinas no primeiro século do Brasil”.
83
E foi através das péssimas condições da medicina que muitas mulheres também
foram acusadas de feitiçaria. No período colonial, o saber médico era muito precário e a
medicina ainda caminhava a passos lentos, isto porque na metrópole qualquer tipo de saber
que ia contra a política religiosa era vista com certa desconfiança. “Nos séculos XVI e
82
Sobre a pureza de sangue ver: BOXER, Charles R. “Pureza de sangue e raças infectas”, p, 262-285. IN: O
império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
83
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os pecados. Revista Nossa História, ano 1, nº 1, novembro, 2003.
39
XVII, os jesuítas, o Tribunal do Santo Ofício e a Coroa uniram-se contra qualquer nova
iniciativa cientifica ou cultural, considerando-as pura heresia”.
84
Isto acabou dificultando
os avanços da medicina e conseqüentemente uma péssima preparação dos médicos para
lidar com as doenças do corpo.
Dada a falta de médicos em algumas vilas e povoados e a insuficiência da medicina
para curar determinadas doenças ainda pouco ou nada conhecidas, muitas foram as
mulheres que se renderam à necessidade de tratar do próprio corpo. Através de um saber
informal, essas mulheres foram chamadas de curandeiras, benzedeiras e até de feiticeiras.
Através de orações, de ervas e adivinhações, elas procuravam afastar entidades malévolas,
visto que as doenças, neste período, eram consideradas advertência divina. Era através das
doenças que os homens se redimiam dos pecados cometidos.
Foi através dessa crença na origem sobrenatural da doença que tais mulheres
recorreram a expedientes sobrenaturais. “Mas essa atitude acabou deixando-as na mira da
Igreja, que as via como feiticeiras capazes de detectar as manifestações de satã nos corpos
adoentados. Isso mesmo quando elas estavam apenas substituindo os médicos, que não
alcançavam os longínquos rincões da colônia”.
85
Era quando os remédios e os exorcismo praticados por padres não surtiam efeito
que muitos se rendiam aos conhecimentos informais de feiticeiros e feiticeiras, sendo que
muitas vezes eram os próprios médicos e padres que, desconhecendo os sintomas das
doenças, sugeriam aos enfermos consultar um desses curandeiros. Nas palavras de Luiz
Mott: “Diversos são os padres e frades acusados ao Tribunal da Inquisição de terem
84
DEL PRIORE, Mary, Magia e medicina na colônia..., p, 80.
85
Idem, p, 81.
40
encaminhado seus fregueses aos calunduzeiros, reconhecendo a melhor eficácia dos negros
no alívio de certas doenças físicas ou emocionais”.
86
Estas práticas informais de cura eram passadas de mães para filhas e foram através
de tais práticas que muitos leigos tiveram acesso ao “mundo espiritual”. Foi através de
palavras ditas no momento da oração que muitos clamavam por Deus e pelos santos de sua
devoção, embora muitos tenham sido acusados de usar palavras de inspiração diabólica.
Se no campo da medicina as mulheres utilizaram-se de artifícios sobrenaturais para
encontrar a cura de doenças pouco conhecidas, foi no campo amoroso que muitas mulheres
se viram às voltas com práticas mágicas que tinham como principal objetivo, segundo
Laura de Mello e Souza
87
, a “preservação da afetividade”. Entre os artifícios utilizados,
temos: as “cartas de tocar”, as orações amatórias e os sortilégios, todos sendo utilizados
para facilitar relações amorosas.
As “cartas de tocar” faziam-se por meio de um objeto gravado com o nome da
pessoa amada, o qual, encostado na dita pessoa, era capaz de seduzi-la. Na Primeira
visitação, Isabel Roiz vendia cartas de tocar na cidade da Bahia. Francisco Roiz usara uma
“para tocar com ela uma mulher com quem ele muito desejava casar”. Em Minas no
Taquaral, feitiçaria amorosa e promiscuidade sexual pareciam juntas: Agueda Maria “tinha
um papel com algumas palavras e cruzes que ela dizia servir para tocar em homens para
terem com ela tratos ilícitos”.
88
Já as orações para fins amorosos tornaram-se também uma prática muito difundida.
“Tratava-se de um ramo da magia ritual em que irresistível o poder de determinadas
86
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: Laura de Mello e Souza (org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. 8º ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, 192.
87
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo na terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
Colonial. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Com relação a este assunto dar especial atenção ao
capitulo 5, intitulado: “Preservação da afetividade”, p, 227.
88
Idem, os exemplos citados encontram-se na página 229.
41
palavras divinas e, sobretudo, do nome de Deus. Mas lançavam mão também do conjuro de
demônios”.
89
Várias foram às mulheres acusadas desse tipo de feitiçaria. Podemos citar
alguns exemplos: Antonia Fernandes, também conhecida por Nóbrega, rezava junto ao
amado: “João eu te encanto e reencanto com o lenho da vera cruz, e com os anjos filósofos
que são trinta e seis e com o mouro encantador que tu não te apartes de mim, e me digas
quanto souberes e me dês quanto tiveres, e me ame mais que todas as mulheres”. Outra
mulher, moradora do Pará, fazendo cruzes com os dedos e com a cabeça, rezava: “Fulano,
com dois te vejo, com cinco te mando, com dez te amarro, o sangue te bebo, o coração te
parto. Fulano, juro-te por esta cruz de Deus que tu andes atrás de mim assim como a alma
anda atrás da luz, que tu para baixo ires, e vires, em casa estares, e vires por onde quer que
estiveres não poderás comer, nem beber, nem dormir, sem comigo vires estar, e falar”.
Outras orações contavam não apenas com a ajuda de Deus, dos Santos e das
Virgens, mas também com a ajuda das estrelas, plantas e animais e existiam aquelas
mulheres que recorriam também a orações demonizadas. Além das orações, as mulheres
também utilizaram- se de vários tipos de sortilégios. “A escrava Joana aprenderá com uma
índia a lavagem das partes pudentas para prender homens. Desprezava a primeira água mas
guardava a segunda, administrando-a em comidas e beberagens”. Já a jovem escrava
Marcelina Maria “cozinhava um ovo, dormia com ele entre as pernas e então o dava de
comer ao homem que o desejava conquistar”.
90
Como podemos observar, no Brasil colonial, o corpo “rebelde” ganhava vida
através de mulheres que se recusavam a seguir as normas impostas pelos órgãos
normalizadores – Igreja Católica e Estado. Vivendo na contramão do ideal de mulher
perfeita: obediente, honesta, discreta e submissa, elas mostraram que nem sempre o
discurso religioso se realizava na prática do uso de seus corpos.
89
Ibidem, p, 230, os exemplos abaixo encontram-se na página 231.
90
Ibidem, os exemplos citados encontram-se na página 239.
42
CAPÍTULO II
MARIANA: REDUTO DA FÉ E DO PECADO.
Este capítulo, em um primeiro momento, apresentará um breve histórico da cidade
de Mariana buscando demonstrar a sua trajetória: da condição de arraial à vila até se tornar
a primeira cidade mineira, depois iremos nos deter a um estudo conciso do perfil do clero
mineiro, bem como buscar um melhor entendimento sobre a organização das visitas
episcopais.
2.1 – DE ARRAIAL A CIDADE.
Mariana carrega consigo o “orgulho” de ter sido a primeira capital, foi também a
primeira vila criada em Minas Gerais, como foi também a primeira cidade mineira e sede
do bispado de Minas. E segundo o Cônego Raymundo Trindade foi a localidade onde
instituiu-se a primeira paróquia mineira.
91
De acordo com a versão histórica defendida por Diogo de Vasconcelos
92
, foi o
Coronel Salvador Fernandes Furtado em Companhia de Miguel Garcia que, no dia 16 de
julho de 1696, na festa da “Virgem”, descobriram o ribeirão aurífero que passaram a
chamar de Ribeirão do Carmo.
91
TRINDADE (Cônego), Raymundo. Archidiocese de Mariana: subsídios para a sua história. São Paulo:
Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 1929. 3v, p, 33.
92
VASCONCELOS, Diogo. História antiga das Minas Gerais. 4 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p, 132.
43
A descoberta do Ribeirão do Carmo “logo se espalhou e em pouco tempo o arraial
já contava com uma população suficientemente numerosa, que lhe permitia pleitear o seu
reconhecimento institucional”.
93
A institucionalização da vida dessas tantas e tão dispersas comunidades se dava
pela oficialização de sua ermida, de sua capelinha visitada por um cura, pela sua
elevação um dia a matriz, elevação que significava a ascensão de toda uma
região inóspita, ou de ocupação mais antiga e em expansão, ao novo status de
paróquia ou freguesia.
94
Segundo Diogo de Vasconcelos, os aventureiros descobridores do Carmo,
absorvidos e deslumbrados pela incompreensível abundância do ribeirão, descuidaram-se
do principal, que foi o alimento. “Conseqüentemente à miséria reduzidos, poucos meses
depois do descobrimento obrigou-os a levantar mão das catas, e a se dispersarem”.
95
Nas
palavras de Antonil “não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineradores por
falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão,
sem terem outro sustento”.
96
Estas duas colocações vêm nos mostrar a dimensão da fome
que assolou as Minas nos primeiros anos de povoamento. O que fez com que o pequeno
arraial recém descoberto fosse abandonado por duas vezes, entre 1697 e 1698, e depois
1701 e 1702.
De acordo com Cláudia Damasceno, na segunda deserção, somente permaneceram
Francisco Fernandes e Manuel da Cunha, sendo que em 1703 estes teriam vendidos os seus
bens a um outro desbravador, o português Antônio Pereira Machado, que, tendo
conhecimento da técnica que os espanhóis usavam, procurou ouro nas encostas. “Logo se
93
FONSECA, Cláudia Damasceno. O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas representações.
Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998, p, 29.
94
MARX, Murillo. Cidades no Brasil: terra de quem? São Paulo: EDUSP, 1991, p, 18.
95
VASCONCELOS, Diogo, op. cit., p, 140.
96
ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955, p, 189.
44
difundiu a notícia do sucesso das explorações de ribanceira e de terra firme empreendidas
por Antônio Pereira, e com a volta dos antigos moradores e a chegada de novos
aventureiros, nova era sobreveio ao circuito do ribeirão”.
97
A conseqüência do concurso de adventícios assim atraídos não se fez esperar.
Os antigos moradores recompuseram suas casas abandonadas no primitivo
assento, e os recém-chegados derramaram-se pela margem do rio, invadindo
sem respeito, nem consideração as terras por Antônio Pereira compradas a
Manuel da Cunha. Embora ofendido Antônio Pereira fez cara alegre por não
poder lutar contra a onda, e a muitos concedeu trabalharem nas minas e
morarem nas terras.
98
E não foi pequeno o concurso de aventureiros que entravam da Bahia, de
Pernambuco, do Rio de Janeiro, de São Paulo e da Metrópole. Essas pequenas
aglomerações que iam se formando ao redor dos ribeirões auríferos, logo se espalharam
pelas encostas dos morros. No inicio do povoamento as moradias eram bastante simples:
chão de terra batida, paredes de pau-a-pique e cobertas de palhas, palmeira ou sapé.
“Conforme a povoação foi prosperando e estabilizando-se, as paredes foram rebocadas por
dentro e por fora, pisos de madeira ou pedra foram colocados e telhas substituíram os
telhados de sapé”.
99
Além da grande imigração de brancos para a zona de mineração, o número escravos
que acompanhavam os seus senhores ainda era maior. Mas, “nem todos os invasores se
entregavam diretamente ao trabalho das minas. Havia, além dos mercadores fixos ou
97
DAMASCENO, Cláudia, op. cit., p, 29.
98
VASCONCELOS, Diogo, op. cit., p, 406.
99
BOXER, Charles, A idade de ouro do Brasil..., p, 72-73.
45
ambulantes, uma grande quantidade de artífices, pedreiros, ferreiros, carpinteiros, alfaiates,
sapateiros e outros que se estabeleceram no povoado”.
100
Neles assistiam ainda os numerosos funcionários do civil e do eclesiástico e
centenas de “mulheres erradas” de todas as cores e tons, fora a multidão de vadios, vivendo
de assaltos e bromas, constituindo durante todo o século XVIII um grave problema para os
capitães generais.
101
Foi essa imigração em massa que propiciou na Minas Gerais “o
surgimento de uma vida urbana em moldes novos para os padrões até então vigentes na
sociedade colonial brasileira”.
102
Uma população heterogênea – livres, forros e escravos –
voltada para uma atividade exploratória e dependente do fornecimento externo de produtos
de subsistência, o que acabou acarretando uma maior estruturação do mercado interno.
A questão da posse da terra e da distribuição da terra é de fundamental para a
compreensão do processo de constituição, conformação e transformação dos espaços
urbanos.
103
Em Minas Gerais, a posse da terra se deu pelo sistema de datas minerais, ao
contrário do litoral, onde a posse se dava pelo sistema de sesmaria. Seguindo a explicação
de Caio Prado Júnior
104
, a distribuição das datas minerais se dava da seguinte forma: as
descobertas das jazidas eram obrigatoriamente manifestadas às autoridades competentes. O
descobridor tinha o direito de escolher, em primeiro lugar, sua data; a fazenda real
separava em seguida uma para si, vendendo-a depois em hasta pública. Repartiam-se as
100
JÚNIOR, Augusto de Lima. A capitania de Minas Gerais: origens e formação. Livraria e Editora Zélio
Valverde, 1943, p, 141.
101
Idem, p, 141-142. De acordo com Caio Prado Júnior, em nenhum lugar a presença dos vadios foi mais
catastrófica do que nos distritos da mineração. Nas palavras do autor: “vamos encontrar ai um número
considerável destes indivíduos desamparados, evidentemente deslocados, para quem não existe o dia de
amanhã, sem ocupação normal fixa e descendente remuneradora; ou desocupado inteiramente, alternando o
recurso à caridade com o crime. O vadio na sua expressão mais pura. Os distritos auríferos de Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso ofereceram tal espetáculo em proporções alarmantes que assustarão todos os
contemporâneos. Uma boa parte da população destas capitanias estava nestas condições, e o futuro não
pressagiava nada de menos sombrio”. IN: JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São
Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, 293.
102
LUNA, Francisco Vidal Luna; COSTA, Iraci Nero da. Minas colonial: economia e sociedade. São Paulo:
FIPE/Livraria Ed, 1982, p, 11.
103
DASMACENO, Cláudia, op. cit., p, 30.
104
JÙNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, p,
176.
46
demais por sorte, cabendo a cada contemplado uma aérea proporcional ao número de
escravos que se apresentasse. “Desde que estava feita a distribuição das datas, os mineiros
poderiam comprar, vender, trocar ou amalgamar, através de negociações mútuas”.
105
A descobertas de novas minas, o aumento da população que acabava por ocasionar
o surgimento de novos arraiais, a arrecadação dos impostos sobre o ouro, levou El-Rei a
criar a capitania de São Paulo e Minas do Ouro, com governo separado da do Rio de
janeiro. “Realmente, a situação nas Minas era tal que dificilmente poderia um governo,
com sede no Rio de Janeiro dar assistência aos seus moradores. Assim, a carta régia de
nove de novembro de 1709 criou a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro”.
106
Essas
duas regiões permaneceram unidas sob a mesma jurisdição até 1720, quando foram
definitivamente separadas em capitanias autônomas.
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho foi nomeado para o cargo de primeiro
governador da nova capitania.
107
Fixando residência em Ribeirão do Carmo, que se tornou
a primeira capital da capitania recém-criada. Segundo as ordens do Monarca, o novo
governador deveria criar vilas, elegendo igualmente paulistas e emboabas para o governo
dos senados e da câmara, desta maneira buscava-se apaziguar os ânimos destes dois
grupos.
108
Abria-se um novo período, norteado pela ação mais racional do Estado,
105
BOXER, Charles, A idade do ouro do Brasil..., p, 74-75.
106
BARBOSA, Waldemar de Almeida. História de Minas. Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1979, p,
98. Volume 1.
107
Para um maior conhecimento sobre os governadores de Minas Gerais ver a obra de Laura de Mello e
Souza. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG,
1999, em especial o artigo intitulado: Os nobres governadores de Minas: mitologias e histórias familiares, p,
175-199.
108
Nos núcleos mineiros “viviam indivíduos das mais variadas procedências, e que logo se definiram em dois
grupos principais: o dos paulistas, formado pelos descobridores dos primeiros ribeirões auríferos e por seus
descendentes; o dos ‘emboabas’, que agrupava os portugueses do Reino e os colonos vindo de regiões outras
que São Paulo, sobretudo da Bahia. Os paulistas, primeiros habitantes das Minas, julgavam-se detentores de
vantagens e de direitos especiais, considerando a zona mineradora como propriedade sua; hostilizavam
abertamente os que chegavam, como demonstra o nome que usavam para designa-los: ‘emboabas’, palavra
que para alguns significava ‘forasteiro’, e que para outros queria dizer ‘aves de pés cobertos’, numa alusão
clara às botas usadas pelos portugueses, e em oposição aos pés descalços dos mamelucos paulistas. Era
grande a hostilidade que mutuamente se votavam essas duas facções, tornando tensa a vida cotidiana nos
arraiais mineradores, longe das autoridades e da justiça. (...) tudo indica ter sido um dos motivos da
47
empreiteiro, a partir de então, do movimento urbanizatório e do estabelecimento do
aparelho administrativo.
109
Nesta época, 1711, Ribeirão do Carmo já contava com uma população abundante o
que justificava a sua necessidade de ascensão a um novo patamar institucional. Segundo
Murillo Marx,
crescendo sua expressão populacional, econômica e edificada, terá aumentado
suas aspirações a outra categoria institucional, a outro tipo de reconhecimento
por parte da sociedade organizada, em meio à divisão territorial estabelecidas
pelos poderes constituídos, enfim, por parte do Estado. A sua aspiração seguinte
constituir não mais um embrião oficial, a célula menor eclesiástica e
administrativa, porém algo mais (...) seria alcançar a autonomia política e
administrativa, seria passar a constituir a sede de um município, passar a zelar
por si mesma, aglomeração, e por fim território próprio correspondente que lhe
seria designado seu termo.
110
Foi neste mesmo ano, que Antônio de Albuquerque, reunindo os principais
moradores de Ribeirão do Carmo, notificou-os, de que, em nome de sua Majestade,
resolvera criar vila neste arraial
111
, como bem nos mostra um trecho do termo de uma
junta:
Aos 8 dias do mês de abril de mil setecentos e onze, nas casas em que mora o
Senhor Governador e Capitão Geral Antônio de Albuquerque Coelho, acham-se
presentes em uma junta geral,
que o dito Senhor ordenou para este mesmo dia,
as pessoas e
moradores principais deste distrito do Ribeirão de Nossa Senhora
do Carmo, lhes fez presente o dito Senhor que na forma das ordens de Sua
rivalidade o fato de alguns forasteiros começarem a tirar grandes lucros do comércio de abastecimento das
Minas, passando, em decorrência disso, a gozar de influência constante na região”. IN: Laura de Mello e
Souza. Opulência e miséria das Minas Gerais. 7º ed. São Paulo: Brasiliense, 1997, p, 21. Ver também:
BOXER, Charles, A idade de ouro do Brasil, capítulo três “Paulistas e emboabas”, p, 87-109.
109
SOUZA, Laura de Mello, Desclassificados do ouro..., p, 148.
110
MARX, Murillo, op. cit., p, 33.
111
Neste mesmo ano foram criadas outras duas vilas: Vila Rica (Ouro Preto) e Vila Real de Sabará.
48
Majestade que Deus guarde tinha determinado levantar uma vila neste dito
distrito, e Arraial, por ser o sítio mas capaz para ela, e que como para esta se
erigir era somente e preciso concorrerem os ditos moradores para a fábrica de
Igreja, elevando a Câmara e cadeia, como era estilo e pertencia a todas as
Repúblicas, deviam eles ditos moradores, cada um conforme suas posses,
concorrerem para o dito efeito com que aquele zelo e vontade que esperava tão
bons vassalos do dito senhor, e assim devia neste particular dizer o que
entendiam, sujeitando-se a viverem com aquela boa forma (a) que são
obrigados...
112
Como podemos observar, através da análise do documento acima, cabia aos
próprios moradores financiar as construções que deveriam ser feitas para fazer jus a sua
condição de vila, como: a construção de um lugar apropriado para o funcionamento da
câmara e da cadeia, e também para a construção e manutenção da Igreja Matriz.
O rei aprovara o ato enviando uma Carta Régia confirmando a criação da Vila e o
seu nome:
Eu, El Rei, vos envio muito saudar. Viu-se a nossa carta de trinta e um de julho
do ano passado em que me dais conta de ser essa a primeira que erigiu o
Governador e Capitão Geral Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho com
o nome de Nossa Senhora do Carmo de Albuquerque, em que pedis haja por
confirmada a ereção dessa Vila e que vos conceda os privilégios que têm a
Câmara da Cidade do Porto. E pareceu-me dizer-vos que hei por confirmada
essa Vila, porém não há de ser com a denominação de Nossa Senhora do Carmo
de Albuquerque, mas somente Vila de Nossa Senhora do Carmo e vos concedo
que possa intitular Leal Vila...
113
Quando da criação de uma vila, a determinação de seu termo, ou seja, da área do
novo município, era uma das providências a serem tomadas, assim como a delimitação do
112
Transcrição de documentos.Apud: Termo de Mariana, op. cit., p, 149.
113
Transcrições de documentos. Apud: Termo de Mariana, op. cit., p, 153.
49
rossio. “Este último constituía o terreno público da vila, que competia a Câmara
administrar, seguindo as vagas orientações das Ordenações do Reino”.
114
A demarcação
dos rossios era uma tradição medieval regulamentada pelas ordenações lusitanas, e visava
garantir uma área para o usufruto comum dos habitantes (locais públicos, terrenos para
plantações, pastagens) e para servir as necessidades futuras de expansão da nova vila.
115
Estes locais destinados a tais construções eram constituídos por terrenos solicitados
pela câmara ao rei, de doações que às vezes levavam tempo até serem confirmadas.
Segundo Cláudia Damasceno, “o caso da vila do Carmo foi diferente do usual: a terra para
o seu rossio foi cedida à câmara por Antônio Pereira em troca de alguns favores reais,
como o cargo vitalício de escrivão da câmara”.
116
A partir de então, os moradores do arraial do Carmo começaram a conviver com as
transformações que se iam sucedendo em razão da sua nova condição de vila.
“Começaram-se as obras da nova Igreja e da Câmara que ficou provisoriamente instalada
numa casa que foi cedida por Pedro Frazão de Brito. Afinal, cuidou-se de eleger a Câmara
definitiva, em substituição à Junta escolhida pelo Governador Albuquerque, em oito de
abril de 1711”.
117
Nesta época, foram construídos edifícios expressivos
118
que condiziam com a sua
nova posição institucional, como: o terreno da capelinha da Conceição que se transformou
em Largo da Matriz, a praça, o pelourinho, a cadeia, a Câmara, a Casa da Intendência,
114
DAMASCENO, Cláudia, op. cit., p, 34
115
Murillo Marx, op. cit., p, 56.
116
DAMASCENO, Cláudia, op. cit., p, 34.
117
JÙNIOR, Augusto de Lima. As primeiras vilas do ouro. Belo Horizonte: Estabelecimentos Gráficos Santa
Maria; S.A, 1962, p, 39.
118
O Viajante Auguste De Saint-Hilaire na sua passagem pela cidade de Mariana discorre sobre a localização
destes edifícios. IN: Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1975, p, 79-80.
50
assim como a dos Juízes de Fora e o Palácio dos Governadores que “foi o primeiro edifício
assobradado e coberto de telhas da vila, graças à criação, em 1713, da olaria do Carmo”.
119
Em meados do século XVIII, “o rei D. João V manteve sua decisão de instalar na
Vila do Carmo a sede do novo bispado, que desde 1720 intencionava criar em Minas”.
120
Segundo Dom Oscar de Oliveira,“era absolutamente necessária à fundação de uma diocese
nas Gerais do ouro, a coibir, com a presença mais próxima do bispo, relaxamento de padres
e de leigos, e para incrementar melhor a religião”.
121
Como a sede de um bispado deve ser
senão numa cidade, “o Rei, em qualidade de Grão-Mestre da Ordem de Cristo emancipava
a terra, como fundo empregado no serviço da Fé, obrigação principal da dita ordem; e na
qualidade de Soberano elevara à categoria de cidade a Vila destinada a sede episcopal”.
122
Eis a carta régia que elevou a categoria de cidade a Vila de Ribeirão do Carmo:
Gomes Freire de Andrade, Amigo. Eu El Rei vos envio muito saudar.
Atendendo a que a Vila do Ribeirão do Carmo é a mais antiga das Minas Gerais
e que fica em sítio muito cômodo para a ereção de uma das duas novas catedrais
que tenho determinado pedir a Sua Santidade, no território da Diocese do Rio de
janeiro, fui servido criar cidade, a dita Vila do Ribeirão do Carmo, que ficará
chamada Mariana, e assim vos ordeno façais praticar e publicar, mandando
registrar esta minha ordem nos Livros da Secretária desse Governo, Senado da
Câmara e mais partes aonde convier. Escrita em Lisboa a 23 de abril de 1745.
Rei.
123
A Vila de Ribeirão do Carmo, a partir de então, passou a ser considerada cidade e
recebeu o nome de Mariana. Seu nome foi alterado, para homenagear a realeza: D. Maria
119
Cláudia Damasceno, op. cit., p, 37.
120
Idem, p, 40.
121
OLIVEIRA, Dom Oscar. Mariana: Vila do Carmo no ciclo do ouro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais. V. XVIII, 1981, p, 33-43. Edição especial comemorativa dos 250 anos da Vila
de Minas Nova de Minas Gerais.
122
TRINDADE (Cônego), Raymundo, op. cit., p. 84.
123
Apud: Augusto de Lima Júnior, As primeiras vilas do ouro, p, 45-47.
51
Ana D’ Áustria, esposa do Rei de Portugal. A antiga Vila do Carmo agora “elevada à
cidade mereceu um plano em que as ruas se entrecortavam em ângulo reto, embora não
desenhem uma grelha perfeita, e muito embora já no século XVIII, ostenta uma
multiplicidade de largos diferentes, bem delineados e, especialmente, notável dicotomia
exemplar”.
124
Foi o engenheiro militar José Fernandes Alpoim, autor do plano urbanístico
de Mariana.
125
Este engenheiro, elaborou uma planta ortogonal, seguindo normas
específicas baixadas pela Coroa, “as quais definiam, dentre outras coisas, a eleição de
sítios para uma praça espaçosa e para a construção de edifícios públicos – o novo prédio da
câmara e da cadeia, porém foi projetado apenas em 1762 e concluído vinte anos depois, em
1782”.
126
D. João V juntamente com o Papa Bento XIV nomearam para ocupar o importante
cargo de bispo no recém-criado bispado de Minas Gerais Dom Frei Manoel da Cruz, que
tomou posse na nova Sé, somente em 1748. Na verdade, a criação do bispado se dera em
1745, mas “o prelado deixara a sua antiga diocese, no Maranhão, em agosto de 1747,
empreendendo uma fantástica travessia dos sertões que só terminaria em outubro de
1748”.
127
O prelado foi recebido com toda a pompa que requeria o momento. “A criteriosa
organização dos eventos proporcionou uma diversidade de manifestações que conciliavam
as procissões religiosas aos desfiles alegóricos; as missas solenes as oralizações dos
poetas”.
128
Essas manifestações para receber o primeiro bispo da diocese, Dom Frei
124
Marx, Murillo, op. cit., p, 98.
125
Para maior conhecimento sobre esse plano urbanístico de Mariana olhar o artigo de Cláudia Damasceno já
citado, em especial as páginas 47-50 aonde ela discorre sobre o “Plano Alpoim: entre o ideal e o possível”.
126
VILLATA, Luiz Carlos. O cenário urbano em Minas Gerais setecentista: outeiros do sagrado e do
profano. IN: Termo de Mariana: história e documentação. Mariana: UFOP, 1988, p, 82.
127
SOUZA, Laura de Mello, Desclassificados do ouro, p, 37.
128
FIGUEIREDO, Cecília Maria Fontes. Instalação do bispado de Mariana e a festa oficial: aspectos de uma
fonte documental. Termo de Mariana: história e documentação. Mariana: UFOP, 1998, p, 170.
52
Manoel da Cruz, tornou-se em uma das maiores festividades de que se teve notícia nas
Minas, graças ao cronista anônimo do “Áureo Trono Episcopal”.
129
Após a instalação do primeiro bispado, Mariana foi agraciada com o primeiro
instituto de educação, o Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte. Segundo Saint-
Hilaire, o seminário de Mariana foi fundado por alguns mineiros que desejavam educar
bem os seus filhos sem precisar enviá-los à Europa
130
. A partir de então, “o seminário
começou a ordenar uma grande quantidade de padres de nascimento local, que passavam
pelo crivo das investigações canônicas”.
131
Segundo Caio Boschi,
132
ao permitir a criação
de um seminário na Capitania ou de assistir passivamente à ordenação indiscriminada de
novos sacerdotes e não criando, ao mesmo tempo, uma política de absorção dessa mão-de-
obra, a Coroa acabou por criar e alimentar um elemento desintegrador do sistema colonial.
Mais adiante iremos nos deter a um estudo mais detalhado sobre a ação do clero em Minas
Gerais.
O seminário foi o estabelecimento mais importante da cultura religiosa de Minas.
“Por ele passou praticamente todo o clero mineiro colonial; foi a primeira escola de Minas
em que se ensinaram gramática, filosofia e teologia moral”.
133
O ímpeto urbanizador trouxe como uma de suas conseqüências um convívio
entre populações muito mais íntimo do que em qualquer outro ponto da colônia.
129
Relato da posse em 1748 de Dom Frei Manoel da Cruz como primeiro bispo da diocese de Mariana feita
por um cronista anônimo.
130
SANT-HILAIRE, Auguste, op. cit., p, 79.
131
JÚNIOR, Augusto de Lima. A capitania de Minas Gerais..., p, 159. Essas investigações canônicas
mencionadas por Diego de Vasconcelos diz respeito a um processo de habilitação chamado “De Genere, Vita
et Moribus” que consistiam em uma investigação a respeito das origens étnicas, sociais, dos antecedentes
morais e das condições econômicas dos candidatos. Várias testemunhas, pessoas que conheciam o
habilitando, respondiam a um questionário com 28 perguntas. Além das questões relacionadas à origem, em
que eram interrogadas acerca da pureza racial e legitimidade da filiação dos jovens ingressantes e, de outras
dirigidas à confirmação da autenticidade da fé, havia aí, ainda, as ligadas ao comportamento sexual e moral.
Cf: LEWKOWICZ, Ida. “A fragilidade do celibato”, p, 53-68. IN: LIMA, Lana Lage Gama Lima, op. cit.
132
BOSCHI, Caio César, Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizador em Minas Gerais. São
Paulo: Ática, 1986, p, 85-86.
133
SILVA, Marilda Santana da. Dignidade e transgressão: mulheres no Tribunal Eclesiástico em Minas
Gerais (1748-1830). Campinas: Editora Unicamp, 2001, p, 56.
53
Essa intimidade não só favoreceu a emergência dos conflitos como propiciou a
aplicação de medidas punitivas. Normalizar a população e cobrar impostos
tornaram-se necessidades prementes (...) uma vez urbanizada a capitania e
criadas as condições do aparelho administrativo, os governantes passaram a se
preocupar com a gente que morava nas Minas.
134
Esse processo urbanizador permitiu tanto à Igreja quanto ao Estado um maior
incremento do processo colonizador. Esse incremento foi sentido quando da criação de um
aparelho administrativo que lhe permitiu um maior controle da exploração aurífera através
da cobrança de impostos sobre o ouro arrecadado. Foi com a criação de um bispado em
Minas Gerais, que o Estado – através do sistema de padroado
135
– procurou afirmar a sua
autoridade através da figura de um bispo, objetivando com isso, um maior controle da
população e conseqüentemente do espaço colonial.
2.2 – OS RELIGIOSOS MINEIROS.
A vida dos religiosos em Minas Gerais não foi marcada pelo zelo que requeria a sua
profissão,
136
junto à população. Muito pelo contrário, o que encontramos é um clero
disperso e indisciplinado, que buscava formas paralelas de trabalho para aumentar os seus
rendimentos.
134
SOUZA, Laura de Mello, Desclassificados do ouro..., p, 152.
135
O Padroado português pode ser amplamente definido como uma combinação de direitos, privilégios e
deveres concedidos pelo papado à Coroa de Portugal como patrona das missões e instituições eclesiásticas
católicas romanas em vastas regiões da África, da Ásia e do Brasil. Para maiores informações sobre o sistema
do Padroado consultar a obra de BOXER, Charles. O império marítimo português... op. cit., em especial o
capítulo 10 “O padroado da Coroa e as missões católicas” p, 242-261.
136
“Como regra geral o sacerdócio é considerado, no período colonial, como uma profissão, um oficio ou
uma carreira à qual a pessoa se dedica em modo análogo às demais profissões então existentes.Recebendo a
côngrua do governo, o padre passa a ser considerado como um funcionário publico incumbido de exercer as
funções litúrgicas próprias do catolicismo, que era a religião oficial da sociedade colonial”. AZZI, Riolando.
A instituição eclesiástica durante a primeira época colonial, p, 183. IN: HOORNAERT, Eduardo et al.
História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. 4º ed. Petrópolis: Vozes, 1992. (Tomo
II/I).
54
As côngruas dos clérigos nunca foram elevadas no período colonial. Era
comum, portanto, que aqueles que desejassem levar uma vida de maior conforto
se dedicassem à criação de gado ou a algum tipo de comércio. A partir do
século XVIII, especialmente nos centros urbanos, muitos clérigos se envolvem
em atividades políticas, sob a influência das idéias liberais e iluministas.
137
Esses religiosos que se dedicavam a outras profissões acabavam por colocar a sua
vida religiosa em um segundo plano, pouco se importando com a administração dos
sacramentos; aliás, como veremos adiante, eles cobravam preços exorbitantes para
administrá-los. A tudo isso, vem se somar a falta de formação do clero, que após passar
pela ordenação, “não tinham oportunidade de se atualizar, dadas às distâncias e
dificuldades de se ter em mãos qualquer tipo de literatura durante o período colonial. No
sertão, numerosos clérigos apenas sabiam o essencial para administração dos ritos da fé
católica”.
138
Com a descoberta do ouro, Minas Gerais recebeu muitos aventureiros dos mais
diversos lugares do Brasil e de Portugal, que para cá se deslocavam em busca da tão
propalada riqueza, que aguçava os ânimos tanto dos homens de cabedal como daqueles que
pertenciam à camada mais baixa da sociedade, que se transferiam para a colônia em busca
de melhores condições de vida para si e para os seus familiares, que permaneciam na
Metrópole à espera de notícias.
Em meio a essa avalanche de gente das mais diversas procedências, encontramos
um grande número de religiosos que chegavam às Minas. Mas qual teria sido o principal
motivo que os levou a desembarcar nessas longínquas terras? Segundo Caio Boschi,
137
Idem, p, 184.
138
Ibidem, p, 183.
55
não é pertinente, imputar-lhes exclusivamente a pecha de que sua razão única
era a ambição em acumular bens materiais ou era a exploração dos bons
negócios que aquele espaço histórico proporcionava a todos os adventícios.
Seria incorrer em radicalismo afirmar que, pelo menos parte (mínima que fosse)
daqueles religiosos não tivesse propósitos evangelizadores nas suas incursões
ou nas suas tentativas de fixação em terras mineiras.
139
Fica difícil saber se a motivação inicial tenha sido de caráter econômico ou apenas
religioso. O que sabemos é que quando aqui estabelecidos esses religiosos se mostraram
bastante inclinados a acumular pecúlios, seja através da prática do sacerdócio ou de outras
funções paralelas que lhe permitiam pleitear maiores rendimentos. Segundo as palavras de
Riolando Azzi, “na província de Minas Gerais, o baixo nível do clero se evidencia desde o
início, com o ciclo do ouro. Para lá acorrem inúmeros clérigos à busca de riqueza e com
preocupação pastoral muito limitada”.
140
Sobre o clero mineiro “pesava a acusação de ser
revoltoso, ambicioso e simoníaco, além de refratário ao pagamento de impostos, atitude
esta que estaria transmitindo à população”.
141
Diogo de Vasconcelos vê o clero mineiro
como um “elemento perturbador e corrosivo” e mais adiante completa: “influentes pelo
número e pelas luzes que mais ou menos, os distinguiam, mais fugidos dos conventos ou
apóstatas, viviam entregues à turbulência e aos desregramentos os mais condenáveis.
142
De acordo com Caio Boschi, a Coroa teria enviado para os governadores da
Capitania e para os bispos uma longa série de cartas, ordens e avisos régios, com o
propósito de limitar ao máximo o número de religiosos existentes em Minas Gerais.
143
O
139
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais.
São Paulo: Ática, 1986., p, 79.
140
AZZI, Riolando, op. cit., p, 189.
141
Idem, p, 81.
142
VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais, p, 322.
143
Dentre elas, podem-se apontar as seguintes determinações: Cartas Régias de 9 de novembro de 1709, de
12 de outubro de 1710, de 9 de junho de 1711; Ordens régias de 12 de novembro de 1713, de 12 de
novembro de 1714, de 12 de novembro de 1715, de 12 de julho de 1721, de 23 de outubro de 1721, 19 de
maio de 1723, de 27 de julho de 1723, de 9 de novembro de 1723, de 10 de maio de 1725, de 16 de fevereiro
de 1732, de 21 de fevereiro de 1738 e de 28 de abril de 1744; e o Aviso Régio de 4 de dezembro de 1739. Cf.
56
objetivo maior era “que fossem mantidos na capitania apenas os sacerdotes com funções e
vínculos nitidamente definidos”.
144
Pois para a Coroa esse clero disperso, sem paróquia
para administrar poderia se transformar em “um elemento desintegrador do sistema
colonial”.
Os paroquianos mineiros sentiam-se onerados quando precisavam dos serviços
prestados pelo clero, cujos membros cobravam preços exorbitantes pela prática de qualquer
tipo de sacramento. Escrevendo à Coroa, a pedido das Câmaras Municipais de Minas
Gerais, em junho de 1716, o governador, dom Braz Balthazar da Silveira, dava uma tabela
dos preços cobrados.
Estimulavam eles uma oitava de ouro por pessoa que comungasse e meia oitava
por quem quer que não comungasse. Cobravam dezesseis oitavas por missa
cantada, quatro para um serviço fúnebre, três para ler proclamas de casamentos,
uma para o batismo – sem contar a espórtula – e vinte por um sermão.
145
Podemos concluir, através dos valores acima mencionados, que ficava difícil para
os desclassificados sociais participarem da vida religiosa católica oficial em Minas Gerais.
Pessoas que não ganhavam o suficiente para o seu próprio sustento como poderiam se
despender dessas quantias e participarem efetivamente dos sacramentos ministrados pela
Igreja?
Nestas condições não é de se esperar do clero colonial, animado de tal espírito,
grande diligência no cumprimento dos seus deveres. E de fato, é o que se
verifica. Ele exercera ativamente sua função de satisfazer às necessidades
espirituais da população lá onde pode ser remunerado por ela, nas paróquias
“pingues”; nas capelas de engenhos abastados. O resto da população fica ao
“Coleção Sumaria... – Título 1º – e Título 7º – Religiones...”. IN: RAPM, 1911, v.16, p, 335 e 393-400,
respectivamente. Apud: BOSCHI,Caio César, Os leigos e o poder..., p, 80.
144
Idem, p, 85.
145
Charles Boxer, A idade de ouro do Brasil..., p, 202. Sobre a tributação eclesiástica de Minas Gerais, ver
Caio Boschi, Os leigos e o poder..., p, 71-79.
57
desamparo. Para ela, os padres rezaram no máximo as missas e ministrarão a
comunhão da desobriga que constitui o melhor dos seus rendimentos. O resto do
tempo, ocupar-se-ão em afazeres bem distantes de suas obrigações.
146
Realmente os padres estavam mais preocupados com os seus rendimentos do que
com a disciplina religiosa que deveriam exercer sobre as suas ovelhas. Claro que essa
disciplina, essa preocupação com a prática dos sacramentos, existia, mas só quando por
trás de tais práticas estavam pessoas bem posicionadas socialmente que poderiam pagar
por elas.
O viajante Auguste De Saint-Hilaire, em sua estada em Minas Gerais, no início do
século XIX, nos narra quais eram as obrigações dos párocos mineiros: dizem apenas uma
missa simples aos domingos; jamais se faz a leitura do evangelho na missa paroquial; não
se rezam as orações da prática; não se faz doutrinação. Os curas só visitam os doentes para
a administração dos sacramentos; nunca catequizam as crianças. A confissão é de todas as
funções sacerdotais a que toma maior tempo aos padres, ele viu cinco negros despachados
em um quarto de hora. Certa vez, Saint-Hilaire diz ter agradecido um vigário que assistira,
em seus últimos momentos, um homem por quem se interessava e recebeu como resposta
do vigário a seguinte frase: “O senhor não tem de me agradecer, respondeu-me ele, sou
pago para isso”.
147
O que vemos é que prática do sacramento se tornava um negócio a
partir do momento em que só era realizado quando pago pelo necessitante.
E a este abandono em que se deixa a população, acrescenta o clero o exemplo tão
freqüente de uma vida escandalosa e desregrada.
148
Muitos deles tiveram seus nomes
envolvidos em querelas, sobre eles recaíam um rol de denúncias que abarcavam vários
tipos de acusações: padres bêbados, jogadores, pederastas, violentos, apóstatas, revoltosos,
146
Caio Prado Júnior, op. cit., p, 345.
147
Auguste De Saint-Hilaire, op. cit., p, 85-86.
148
Caio Prado Júnior, op. cit., p, 356.
58
além do grande número de padres que viviam concubinados com negras e índias e delas
tendo filhos.
149
Até 1748, os sacerdotes atuaram com relativa autonomia, assistindo às paróquias,
atendendo as irmandades leigas e, eventualmente, dedicando-se às atividades comerciais e
a exploração mineral, apesar das proibições das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia.
150
Até este período, o território mineiro era visitado por religiosos do bispado do
Rio de Janeiro, que não conseguiam exercer um controle eficaz sobre todas as Igrejas que
se iam proliferando à medida que novos arraiais auríferos eram erguidos. A presença física
e moral do bispo do Rio de Janeiro na capitania de Minas Gerais “não se podia fazer
permanente e as reclamações contra as arbitrariedades de seus prepostos não cessavam”.
151
Mas, a partir da criação do bispado de Mariana, a população mineira passou a
contar com a presença constante do bispo, D. Frei Manoel da Cruz
152
que se mostrou
bastante diligente durante a sua jurisdição.
Logo após as comemorações da investidura episcopal foram tomadas medidas
normalizadoras. Entre elas, proibia-se aos padres que andassem pelas ruas à
noite, que celebrassem missas de chinelos ou sem vestir a batina, exigiu-se rigor
maior na ordenação e novos sacerdotes, promulgou-se uma nova tabela de
preços dos serviços religiosos.
153
149
Para um maior conhecimento sobre esses crimes ver: SOUZA, Laura de Mello e, Desclassificados do
Ouro, p, 245-249.
150
KANTOR, Íris. Do imposto à etiqueta: conflitos de juridições no processo de implantação do bispado de
Mariana em Minas Gerais (1748), p, 58. IN: GONÇALVES, Andréa Lisly e OLIVEIRA, Ronald Polito de
(orgs). Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 2004.
151
Caio Boschi, os leigos e o poder..., p, 88.
152
Eis a lista dos bispos de Mariana: D. Frei Manoel da Cruz (1748-1764), D. Frei Domingos da Encarnação
Pontével (1780-1793), D. Frei Cypriano de S. José (1799-1817), D. Frei José da SS. Trindade (1820-1835),
D. Antônio Ferreira Viçoso (1844-1875), D. Antônio Correia de Sá e Benevides (1844-1875), d. Silvério
Gomes Pimenta (1897-1922), D. Helvécio Gomes de Oliveira (1922). Também foram bispos nomeados P.
Joaquim Borges Figuerôa, D. Bartholomeu Manoel Mendes Reis, D. Carlos Pereira Freire de Moura e Diogo
Antônio Feijó, que, entretanto, não chegaram a tomar posse e cá não vieram. IN: Salomão de Vasconcellos,
Mariana e seus templos, p, 20.
153
Íris Kantor, op. cit., p, 60.
59
Mas ao que parece, pelo menos é o que nos diz Charles Boxer, “a nomeação de um
bispo para a Sé de Mariana, não tornou mais leve o ônus financeiro dos fiéis”, o bispo
continuou a arrecadar anualmente altas somas de dinheiro na realização dos
sacramentos.
154
O bispo era apenas um funcionário do Estado, não tendo nenhum poder de
mando senão aquele emanado pelo poder régio. O que vemos em Minas Gerais é uma
política regalista, onde os interesses do Estado se sobrepõem aos espirituais.
“Desacreditados, desautorizados, desprestigiados e descrentes de sua verdadeira missão, os
bispos marianenses deixam-se acomodar à condição de funcionário régio”.
155
Foi como funcionários do Estado que os bispos se lançaram na tarefa de moralizar o
clero e a população mineira. Foi através das visitas diocesanas que eles afirmaram a sua
autoridade, buscando conhecer os “pecados” alheios e puni-los conforme o delito, usando
de sua influência moral para “domesticar” uma população assentada nas transgressões
morais e sexuais.
2.3 – AS VISITAS DIOCESANAS.
As devassas eclesiásticas que ocorrem em Minas Gerais tiveram como marco
inicial o ano de 1721 e marco final o ano de 1802. Essas visitas foram inicialmente
realizadas pelo bispado do Rio de Janeiro (1721-1748), passando para a jurisdição do
bispado de Mariana a partir da criação de sua diocese em 1745. Mesmo após a criação do
novo bispado, Minas continuou a receber visitas do Rio de Janeiro. “Quando o novo trono
154
Charles Boxer baseia-se para tal afirmação em um relatório anônimo “Rendimento da mitra do Bispado de
Mariana”, Códice Costa Matoso, f. 418-420. IN: Idade de ouro do Brasil, p, 203.
155
Caio Boschi, Os leigos e o poder..., p, 92.
60
episcopal foi efetivamente ocupado pelo seu titular, em 1748, uma visita ainda subordinada
e ordenada pela Sé carioca finalizava suas atividades”.
156
Considerada por Luciano Figueiredo “pequena inquisição”, as visitas diocesanas
não tiveram a ação direta do Tribunal do Santo Ofício português, que marcou presença em
outras partes do Brasil.
157
“Nas Minas, elas cumpriam uma prática mais superficial,
imediatista, em que a mesa não se ocupava tanto de uma ação propriamente doutrinária ou
‘pedagógica’ junto à população, como fazia a Inquisição nos outros pontos da Colônia”.
158
As visitas diocesanas deveriam ser realizadas pessoalmente pelos bispos, mas na
impossibilidade da sua presença, elas poderiam ser efetuadas por intermédio de um Vigário
Geral ou visitadores designados para tal função. Segundo as Constituições primeiras, os
visitadores deveriam ser, “sacerdotes virtuosos, prudentes e zelosos da honra de Deus e
salvação das almas”.
159
Transformando-se, enquanto nelas permaneciam, em suprema autoridade
eclesiástica das localidades nas quais se instalassem, esses visitadores deviam
tudo observar, vigiar, anotar e punir (se fosse o caso), em relação a tudo o que
encontrassem no percurso dos seus trajetos entre uma e outra freguesia: capelas,
oratórios, confrarias e sacerdotes, bem como uso, costumes e comportamentos
da população.
160
156
BOSCHI, Caio César. As visitas diocesanas e a inquisição na colônia. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v.7, n. 14, p, 160, mar./ago. 87.
157
O Santo Ofício nunca aportou em terras brasileiras, fez-se representar por seus funcionários, os
“familiares” e os visitadores que aqui estiveram, na Bahia (1561-1595), em Pernambuco (1618-1620) e no
Grão Pará (1763-1769). Sobre os familiares do Santo Ofício no Brasil ver o artigo de Anita Novisky. A Igreja
no Brasil colonial: agentes da Inquisição. Anais do Museu Paulista. São Paulo, tomo 33, 1984, p, 17- 27.
158
FIGUEIREDO, Luciano R. de Almeida. Segredos de Mariana..., p, 12.
159
Regimento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Bahia, em Constituições primeiras ... p, 102.
Apud: Laura de Mello e Souza. As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana..., p, 65-66.
160
BOSCHI, Caio, As visitas diocesanas..., op. cit., p, 162.
61
Realmente essas autoridades agiam como “verdadeiras patrulhas a serviço da fé”.
Através de um interrogatório composto por 40 quesitos
161
, que abarcavam diversas formas
de delito, esses eclesiásticos buscavam não somente vasculhar a situação da religião e da fé
nas Igrejas e freguesias visitadas, mas também inquirir a população sobre questões íntimas.
Com isso, a Igreja, através da prática da Devassa, procura adentrar na intimidade dos
casais e puni-los contra qualquer forma de relacionamento que não estivesse de acordo
com os preceitos da Igreja, e por isso, considerados como “pecado”. Podemos dizer que
essas visitas exerceram um amplo controle sobre a conduta da sociedade.
Como bem nos evidência Laura de Mello e Souza,
Dentre as matérias a zelar, ocupam o primeiro plano as questões referentes à
adequação do culto e da observância da religião; entretanto na prática, é sobre o
comportamento cotidiano da população no seu aspecto mais geral – e não no
restrito apenas às questões religiosas – que incide o olhar vigilante da Igreja: as
testemunhas que comparecem à mesa da denúncia falam muito mais da vida
amorosa, da sexualidade, dos costumes de seus semelhantes, do que da sua
regularidade no comparecimento às missas e na obediência aos jejuns.
162
Concordando com Laura de Mello e Souza, não encontramos em Mariana nenhuma
mulher que tenha sido incriminada por não seguir a observância da religião, sendo que
98% dos casos coletados dizem respeito a sua vida amorosa e a sua sexualidade, mas isso
será analisado no próximo capítulo.
As visitas tinham início com a produção de um Edital, sendo este destinado “a
todos os Reverendos Vigários, Curas, Coadjuntores, Capelães, Curados e bem assim a
todas as mais pessoas assim eclesiásticas como seculares”. O objetivo era, segundo o
161
Este interrogatório se encontra na integra no anexo 1.
162
SOUZA, Laura de Mello. As devassas eclesiásticas..., op. cit., p, 66.
62
“Ilustríssimo Senhor Bispo, que com a visitação Diocesana se desterra os vícios, erros e
abusos, escândalos, e se fazem muitos serviços a Deus nosso Senhor em grande bem
espiritual e temporal”
163
.
Esse Edital deveria ser lido pelo clero e pelas autoridades seculares e eclesiásticas,
que se encarregariam de noticiar a chegada do visitador em cada uma das Igrejas, a fim de
que nessas ocasiões todos assistissem à procissão para salvação das almas dos mortos, que
então se realizaria, antes de dar início à devassa. Desse modo o Edital convidava “a todos
as pessoas, assim eclesiásticas, como seculares, que souberem de pecados públicos e
escandalosos, venham perante mim denunciar em termo de vinte quatro horas”, mais
adiante era valorizado no referido Edital uma preocupação com relação as denúncias, “que
não seja movida por ódio, vingança, ou respeito algum temporal, senão por zelo e serviço
de Deus, nosso Salvador”.
164
No final do Edital havia um interrogatório, já mencionado acima, que deveria ser
lido pelos Reverendos aos seus fregueses. Após a leitura deste, cabia a população, sabendo
do envolvimento de pessoas em quaisquer dos delitos mencionados, denunciá-los à mesa
da visitação, composta pelo “visitador-geral, nomeado por provisão episcopal, um
meirinho, espécie de tesoureiro dessa pequena empresa; e o escrivão secretário da visita,
responsável por registrar com letras às vezes ininteligíveis as narrativas dos depoentes”.
165
Havia testemunhas que se apresentavam voluntariamente, outras vezes era preciso
“proceder à chamada nominal de alguns moradores socialmente bem posicionados e com
alguma expressão econômica, segundo indicação do vigário geral”.
166
Mas de acordo com
Laura de Mello e Souza, “o que se nota é o nível modesto dos depoentes, talvez escolhidos
163
AEAM, Livro de Devassa, 1733, tendo como Visitador o Reverendo Doutor Domingos Luis da Sylva.
Esse edital encontra-se na integra no anexo 1.
164
Edital, anexo 1.
165
Luciano Figueiredo, Segredos de Mariana..., op. cit., p, 14.
166
Idem, p, 15.
63
a dedo pela Igreja que, assim, intimidava mais facilmente os humildes biscateiros e
artesãos, deles extorquindo segredos e confidência”.
167
Segundo Caio Boschi, houve pessoas que se auto-confessavam
168
, denunciando os
seus próprios delitos, assumindo sua culpa sem titubear perante os visitadores. Para o
autor, “não seriam a perfeição da vida cristã e a salvação da alma as únicas ou principais
razões que moviam as pessoas a se apresentarem diante do visitador”. Essa confissão era
como se fosse uma prevenção, “na medida em que evitava que as faltas e os pecados do
confidente fossem conhecidos pelo visitador por intermédio de terceiros, situação na qual,
dependendo da natureza da falta, a devassa tomava outra dimensão,”
169
podendo inclusive
sair da esfera do visitador e ir parar no Tribunal do Santo Ofício.
Nestas visitas, eram utilizados basicamente dois livros, o Livro de Testemunho e o
Livro de Culpa. No primeiro livro encontramos os depoimentos de testemunhas que
apareciam perante a mesa da visitação e delatavam o que sabiam sobre o comportamento
de seus vizinhos, mas o que vemos com grande freqüência é que nem sempre os casos
delatados era de conhecimento pessoal da testemunha, na maioria das vezes eles
testemunhavam “por ouvir dizer”, ou porque o caso era de “fama pública e notória” e “por
causar escândalo”. O que vem nos mostrar que qualquer murmúrio entre a vizinhança era
considerado motivo suficiente para se acusar alguém.
As denúncias seguiam basicamente uma ordem. Tinham inicio com a coleta de
dados pessoais da acusada como: nome, cor, condição civil e social (no caso de ser escrava
era mencionado o nome do seu dono), e em alguns casos encontramos o nome da rua onde
residia a acusada. Depois deste primeiro momento se dava a denúncia em si, algumas
testemunhas narravam o crime com grande riqueza de detalhes; outros, ao contrário,
167
Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro, p, 228.
168
Não encontramos entre as mulheres que foram denunciadas em Mariana nenhum caso de auto-confissão.
169
Caio Boschi. Visitas diocesanas..., p, 168.
64
falavam apenas o necessário, não se preocupando em falar dos pormenores, talvez por não
terem maiores esclarecimentos sobre o fato em questão.
Após a coleta das denúncias, era produzida pelo escrivão uma listagem com o nome
dos culpados, o crime pelo qual foram incriminados e a quantia a ser paga pela pena. Essa
fase das devassas era conhecida como pronunciações, uma espécie de termo de conclusão
das visitas.
Mas o que levava essas pessoas a denunciarem? Caio Boschi enumera algumas
razões que teriam contribuído para tal acontecimento: “a convicção, o zelo e a fidelidade
dos religiosos; o temor da ira divina e da excomunhão; o desencargo de consciência; o
mero ímpeto colaboracionista com a Igreja; o desejo de vinganças pessoais; o ódio ou a
simples inveja em relação ao denunciado”.
170
Fica difícil saber quais destas razões
propiciaram tantas denúncias, o que sabemos é que elas aconteceram em grande
freqüência, e fizeram parte de uma trama que tinham nos visitadores os grandes
incentivadores da delação.
Ao não questionar a confiabilidade e a idoneidade das declarações do
denunciante, o visitador eximia-se também de proceder às diligências
indispensáveis à apuração da veracidade da denúncia. Uma só denúncia era
suficiente para a formação da culpa, dispensando o exame de sua substância e
sua qualificação. As particularidades e circunstâncias dos delitos eram
desprezadas. Não se concedia ao acusado a faculdade de se defender. Por
conseguinte, a pronúncia, literalmente, já era a sentença.
171
Depois de feitas e registradas, as denúncias eram encaminhadas para a sede do
bispado, onde seriam julgadas. Logo após o julgamento, as freguesias seriam novamente
visitadas, mas dessa vez traziam consigo a relação dos culpados, aplicando-lhes as devidas
170
Idem, p, 168.
171
Ibidem, p, 170.
65
penas. Se no primeiro livro, eram os delatores que eram chamados a comparecer perante a
mesa da visitação, neste segundo momento, eram aquelas pessoas que foram acusadas que
eram chamadas a comparecer perante os visitadores. Era um momento que exalava medo e
insegurança, pois a população não sabia quem teria sido denunciado e nem por qual crime.
Alguns devem ter sido surpreendidos pela acusação, outros nem tanto.
O que vemos através da analise do Livro de Culpa é que a grande maioria das
pessoas que eram chamadas a emendar-se perante a mesa, pertenciam às camadas menos
favorecidas, pessoas pobres que eram acusadas de cometerem os mais variados pecados,
como: meretrício, concubinato, feitiçaria, curas e benzeduras, lenocínio, entre outros
172
.
Como podemos deduzir, “a visita durava o tempo necessário para, em uma primeira
etapa, efetuar a tomada dos depoimentos e posterior sentenciação ou pronúncia e, em um
segundo momento, para proceder à realização da audiência de abjuração”.
173
Como toda fonte primária, as Devassas Eclesiásticas também apresentam
problemas para quem as utiliza. Segundo Laura de Mello e Souza
deve se considerar o fato de existir uma intermediação entre a testemunha que
narra os fatos e o relato que chegou até nós: o escrivão da Devassa, reprodutor
consciencioso da ideologia oficial – de que a Igreja era um dos principais
sustentáculos – e provável co-autor em muito daquilo de que preconceituoso se
dizia sobre a população da terra. Muito do que ficou dito nas Devassas não deve
ter acontecido exatamente daquela forma e talvez não tenha acontecido
nunca.
174
Já Caio Boschi fala que no geral, “os documentos em pauta se regem por um
modelo, cuja linguagem e forma praticamente são padronizadas, o que arrefece um pouco a
172
No próximo capítulo iremos nos submeter a um estudo mais detalhado sobre os livros de culpa.
173
Caio Boschi, Visitas diocesanas..., p, 177.
174
Laura de Mello e Souza, As devassas eclesiásticas..., p, 73.
66
pulsação do cotidiano social que se poderá captar nas referidas fontes”.
175
Com certeza o
escrivão não era capaz de colocar no papel sentimentos e emoções que eram vivenciados
no momento da delação. As testemunhas também não devem ter falado tudo aquilo que
sabiam, por medo ou por receio de serem acusados de cúmplices nos casos retratados por
elas.
E de acordo com Luciano Figueiredo “a veracidade do caso narrado também seria
objeto a merecer certa relativização, pois é bastante plausível que nos ambientes
urbanizados as antipatias pessoais fossem utilizadas perante o visitador para incriminar
algum contendor”.
176
Acreditamos que muitas das denúncias coletadas pela visitação tenham tido,
realmente, como pano de fundo rixas entre indivíduos ou grupos opostos, isto porque, a
formação social de Minas Gerais – marcada pelo escravismo, pela grande disparidade
social e pelos altos tributos cobrados pela mineração – serviu muitas vezes de estopim para
delações que tinham como objetivo maior atingir o inimigo.
Se problemas foram detectados pelos historiadores acima mencionados, não
podemos deixar de falar da unanimidade que ocorre entre eles quando o assunto é a riqueza
de detalhes que a fonte nos oferece sobre o dia-a-dia da população mineira setecentista.
Está-se diante de fontes históricas fornecedoras de informações dificilmente
captáveis em outra espécie documental, seja pelos assuntos nelas tratados, seja
pela variada gama de segmentos sociais por ela abrangidos, especialmente
quando se constata que a expressiva maioria dos depoentes eram pessoas
geralmente excluídas da documentação burocrático-administrativa.
177
175
Caio Boschi, visitas diocesanas... , p, 169.
176
Luciano Figueiredo, Segredos de Mariana..., p, 21.
177
Caio Boschi, As visitas diocesanas..., p, 169.
67
As devassas eclesiásticas nos permitem conhecer os “pecados” que se proliferavam
no interior de uma população heterogênea. A sua leitura nos permite conhecer aspectos da
sexualidade do homem mineiro e, também como este, se relacionava com o discurso oficial
da Igreja Católica, que buscava controlar essa população.
68
CAPÍTULO III
AS MULHERES DE MARIANA E SEUS “PECADOS”.
Neste capítulo a nossa atenção será voltada para as práticas femininas no âmbito
moral e sexual julgadas pelas Devassas Eclesiásticas, que ocorreram em Minas Gerais no
século XVIII.
As mulheres que viveram em Mariana serão as protagonistas desse capítulo. Foi
através dos “pecados” cometidos por elas que nos foi possível conhecer na prática, como
se dava a ação das visitas episcopais na sociedade mineira colonial.
3.1 – CULPADAS POR CONCUBINATO.
A análise das devassas episcopais que ocorreram em Minas Gerais torna-se uma
excelente fonte de pesquisa, pois nos permite traçar algumas considerações a respeito do
perfil moral das mulheres que viveram nas diversas localidades mineiras, no que se refere
não apenas à política do matrimônio e o crescente numero de relações de concubinato, mas
também às várias estratégias utilizadas como forma de sobrevivência.
Através de um levantamento – considerando apenas os Livros de Culpa
178
–sobre os
crimes mais recorrentes entre as mulheres que viveram em Mariana, encontramos um total
178
Os Livros de culpa referentes a Ribeirão do Carmo, Vila do Carmo e Mariana foram: Devassas: 1730,
1737-1738, 1752-1760, 1764-1769 e 1742-1794, sendo que neste último, “excepcionalmente a cidade de
Mariana – sem dúvida, por ser sede do bispado – suportaria uma visitação quase permanente”. In: Luciano
Figueiredo, Segredos de Mariana, p, 14.
69
de 246 termos de culpa, no qual as mulheres aparecem como culpadas e o homem como
cúmplice; destes, 240 eram termos referentes à prática do concubinato
179
. Esses números
vêm nos mostrar que o crime de concubinato aparece desproporcionalmente mais elevado
do que outros crimes, indicando ser este o delito da carne
180
mais cometido.
Os 240 termos de culpa referentes à prática do concubinato, encontram-se
distribuídos nos Livros de Devassas da seguinte maneira: 126 termos são do livro de 1730,
54 termos se referem ao livro de 1737-1738, 6 termos foram encontrados no livro de 1752-
1760, 3 termos no livro de 1764-1769 e os 51 termos restantes foram coletados no livro de
1742-1794. Como bem nos mostra o gráfico 1.
126
54
6
3
51
0
20
40
60
80
100
120
140
número de termos de culpa
1730 1737-1738 1752-1760 1764-1769 1742-1794
Livros
Total de casos de concubinato = 240
Termos
179
Os seis crimes restantes eram: 3 casa de alcouce, 1 curar com palavras e 2 receber homens para fins de
jogos.
180
“O Código Filipino relacionava situações decorrentes de práticas sexuais não permitidas que foram
arroladas nas Constituições Primeiras com pequenas variações, sob a denominação de ‘delitos da carne’. A
saber: incesto, sodomia, molície, bestialidade, concubinato, estupro, sedução e lenocínio”. IN:
GOLDSCHMIDT, Eliana, op. cit., p, 36.
70
Através do gráfico acima é possível definir alguns períodos que revelaram maior ou
menor número de mulheres punidas em Mariana pela prática do concubinato. De acordo
com Luciano Figueiredo, o enorme número de devassas ocorridas na década de 30
significa o ápice das devassas episcopais em Minas. “O bispado do Rio de Janeiro
esforçava-se, nitidamente, para impor uma ordenação moral nos núcleos urbanos em
consolidação”.
181
O gráfico acima vem confirmar a afirmação feita por Luciano
Figueiredo, já que na década de 30 encontramos 180 mulheres que foram delatadas e
punidas pelas devassas, representando 75% dos termos coletados.
Ainda de acordo com Luciano Figueiredo, as devassas passariam por um período
(1740-1747) de pouco movimento, mas tomariam novamente um grande impulso com a
criação do Bispado de Mariana. “Seguir-se-ia uma fase mais longa que as anteriores –
entre 1753-1770 – em que se nota o esforço de resistir à tendência de decréscimo,
parecendo haver mesmo uma certa estabilidade. A queda no número de devassas a partir de
1770 seria inexorável”.
182
Essas afirmações também podem ser confirmadas pelo nosso
levantamento. Na década de 40 encontramos apenas quatro mulheres que assinaram o
termo de culpa, sendo que depois da criação do bispado esse número subiu para 56
mulheres, sendo que destas apenas oito foram consideradas culpadas depois de 1770.
Os termos de culpa se apresentam nos livros das devassas da seguinte Maneira:
Termo em forma que fez Gracia Soares escrava de Dr. Freire de Andrade.
Aos seis dias do mês de janeyro de mil setecentos e trinta annos nesta freg.a de
Nossa Senhora da Conceyçao da Villa do Ribeyrao do Carmo, em pouzada do
Reverendo Senhor Doutor visitador Manoel da Rosa Coutinho apareceo Gracia
Soares, preta solteyra escrava de Domingos Freire de Andrade moradora nesta
villa, notificada a sua ordem para satisfação da culpa que lhe resultou da
181
FIGUEIREDO, Luciano, Segredos de Mariana..., op. cit., p, 14
182
Idem, p, 14.
71
devassa da visita desta freguesia a qual o dito senhor admoestou em primeiro
lapso de concubinato na forma do Sag.a Concílio Tridentino; que de todo se a
parte da ilícita comunicação que tem com o dito seu dono e nem converse com
elle em publico ou sendo nem em caza delle nem que consinta na sua nem lhe
mande dadivas presentes ou recados e faça de todo cessar o escândalo de seu
pecado considerando as gravíssimas ofensas que na continuação dele faz a Deos
Nosso Senhor, e o manifesto perigo a que expõem a sua salvação preservando
em tão miserável estado, com cominação de ser com maior rigor castigada e
censurada, e por ella foi dito que confessava a culpa e a fazia judicial e aceitava
admoestação e prometia emenda. Foi condenada em duas oitavas e meia de ouro
que pagou de que tudo se fez este termo e assignou com o dito Reverendo
Senhor Doutor visitador e eu Padre Paulo Rodrigues Adao o escrevy.
183
Os Termos de Culpa seguiam em geral este modelo, diferindo apenas em algumas
palavras quando havia a mudança do escrivão. Estes Termos nos permite conhecer um
pouco mais sobre a vida dessas mulheres que viveram em Mariana e foram vítimas das
devassas eclesiásticas, ajudam-nos a desvendar a que universo pertenciam essas mulheres,
já que nos permitem contemplar algumas características como: a natureza do crime, a sua
reincidência, a cor, a condição social e a condição civil das sentenciadas, além de citar em
alguns casos a condição social dos cúmplices.
184
O que nos interessa especificamente são as mulheres condenadas por concubinato,
já que representam 98% das sentenciadas. Considerando a cor
185
, evidencia-se o
predomínio das mulheres ditas negras ou pretas, representando 39% (97) das sentenciadas,
sendo que o restante encontra-se distribuída da seguinte forma: branca 18% (42), parda
183
A.E.A.M, Devassa 1730, fl. 2.
184
Quando o escrivão não informa a cor e a condição social da acusada subentende-se que seja livre e branca.
185
Segundo Alzira Lobo não é tarefa das mais simples tentar classificar etnicamente a população. “Negro,
como é sabidissímo, aplicava-se também aos indígenas, os ‘negros da terra’. ‘Mulato’ aparece designando
mamalucos. ‘Pardo’, aparece (mas não sempre) confundido com mulato: há quem traga ambas as
designações. Pessoas antigas esclareceram que ‘pardo era o mulato claro’. Talvez o termo se referisse ao
produto de um segundo ou terceiro cruzamento. No século XIX, ‘pardo’ começou a firmar seu significado
passando a se referir a mestiços em geral, enquanto ‘mulato’ se especializou como designativo de híbrido de
branco e negro”. IN: CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda, op. cit., p, 124.
72
18% (42), crioula 7% (16), mulata 5% (12), carijó 1% (2), como bem nos mostra o gráfico
2.
Gráfico 2: Casos de concubinato em Mariana, se
g
undo a cor das
setenciadas.
39%
18%
18%
7%
5%
1%
12%
Negra/Preta
Branca
Parda
crioula
mulata
Carijó
Indeterminada
Fonte: AEAM, Devassas, 1730, 1737-8, 1742-1794, 1752-1760, 1754-1769.
Com relação à condição social das sentenciadas encontramos uma grande parcela
delas inseridas na categoria forra
186
, representando quase a metade dos casos, ou seja, 45%
186
“uma das poucas unanimidades entre os historiadores é a de ter sido a privilegiada a mulher no acesso à
alforria, apesar de ela ser bem menos numerosa na população escrava. Em que pese a constatação empírica,
as explicações sobre o fato variam. A primeira seria o seu preço, inferior ao do homem, por isso mais fácil de
ser pago. Outra explicação diria respeito à sua maior possibilidade de estabelecer laços afetivos com seus
senhores, pois atuavam como domésticas, amas-de-leite, prostitutas ou amantes.Uma terceira pressuporia o
fato de que, sendo ela responsável pela reprodução da escravidão, através do principio romano de partus
sequitur ventrem, sua família (consangüínea ou por via do compadrio) centraria mais esforços em liberta-la
do que ao homem. IN: Ronaldo Vainfas (org). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p, 31.
73
(107), já as escravas aparecem em segundo lugar com um percentual de 33 % (80), as
livres representado 16% (38). (Cf. Gráfico 3).
Gráfico 3: Concubinato em Mariana, se
g
undo a condição social das
setenciadas.
45%
33%
16%
6%
Forra
Escrava
Livre
Indeterminada
Fonte: AEAM, Devassas, 1730, 1737-8, 1742-1794, 1752-1760, 1754-1769.
Considerando o estado civil das sentenciadas, nota-se a supremacia numérica das
solteiras, 87% (209), e a ínfima participação tanto das casadas, 4% (9), quanto das viúvas
1% (2). Foi encontrada apenas uma mulher divorciada
187
, não chegando a representar nem
um 1% perante o universo dos casos coletados. (Cf. Gráfico 4).
A análise dessas três características – cor, condição social e estado civil – nos
permite traçar o perfil das mulheres que viveram na cidade de Mariana no século XVIII e
foram vítimas das acusações levadas a cabo pelos tribunais episcopais pela prática do
187
“A separação do matrimônio foi reconhecida pela Igreja desde o Concílio de Trento (1545-1563), ao
afirmar que ‘por muitas causas se pode se separar entre os consortes, quanto ao toro, ou quanto à habitação,
por tempo certo ou incerto’. No Brasil colonial, a separação dos corpos foi regulamentada pela legislação
eclesiástica das Constituições primeiras do arcebispado da Bahia. (...) A separação ocorria nas exceções de
‘causa maior’, podendo ocasionar a separação dos corpos nos casos do adultério, de apostasia e heresia e nos
casos de sevícias de cônjuges”. IN: SILVA, Marilda Santana da. Dignidade e transgressão: mulheres no
Tribunal Eclesiástico em Minas Gerais (1748-1830).São Paulo: Editora Unicamp, 2001, p, 147.
74
concubinato, crime este que era considerado “delito da carne” a partir do momento que ia
contra o discurso da Igreja, que objetivava a constituição de famílias legítima através do
casamento monogâmico e indissolúvel. As concubinas eram na, grande maioria, como já
foi analisado acima, negras, forras e solteiras.
188
Gráfico 4: Casos de concubinato em Mariana, se
g
undo o estado civil das
setenciadas
87%
4%
1%
0%
8%
Solteira
Casada
Viúva
Divorciada
Indeteminada
Fonte: AEAM, Devassas, 1730, 1737-8, 1742-1794, 1752-1760, 1754-1769.
O grande número de “mulheres de cor”, solteiras e forras nos leva a aventar a
possibilidade de que a prática do concubinato estava intimamente relacionada à sua
188
Esta pesquisa realizada através de fontes eclesiásticas vem confirmar estudos feitos por outros
historiadores a respeito dos crimes de concubinato em diferentes localidades do Brasil no período colonial:
“analisando os dados da visita diocesana a Ilhéus, Luiz Mott verificou que entre os 291 indivíduos acusados
de concubinato, 72% eram solteiros, e mais de 86% eram “gentes de cor”, sobretudo pardos, índios e negros;
Iraci del Nero e Francisco Vidal Luna, por sua vez, indicaram que das 306 relações concubinárias apuradas
na devassa mineira de 1738, 77% envolviam pessoas solteiras e, pelo menos em 80% dos casos, as mulheres
eram de cor sendo 53% o índice de forras”. Apud: Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados..., p, 89.
75
condição social. Geralmente pertencentes às camadas baixas, estas mulheres foram vítimas
da falta de recursos financeiros atrelada a discriminação racial que recaía sobre elas de uma
forma tão estigmatizada que as impossibilitava de contrair o matrimônio tal como era
proposto pela Igreja
189
. “Muitos solteiros viviam amancebados por anos a fio, preferindo a
morte à vergonha de esposar mulheres infamadas pelo sangue, pela cor ou pela condição
social”.
190
A estruturação dos dados acima analisados nos levou a sugerir que, de um lado,
houve uma maior aceitação dos padrões morais propostos pela Igreja Católica entre as
mulheres abastadas da sociedade marianense e, inversamente, de outro, o predomínio de
atitudes “desviantes” entre as “mulheres de cor” que conseqüentemente faziam parte da
população desclassificada.
Isto não significa que as mulheres que pertenciam a famílias abastadas também não
convivessem com o “pecado”, mas apenas o ocultavam melhor, ou quase ninguém se
atrevia a denunciá-las.
Os Termos de Culpa também nos permite conhecer um pouco mais sobre o grau de
reincidência dos crimes de concubinato em Mariana, onde as vítimas eram punidas em
primeiro, segundo e terceiro lapso. Das duzentas e quarenta mulheres punidas, 80% (195)
são enquadradas por praticar relações extraconjugais pela primeira vez; as restantes
formam a comunidade das reincidentes, sendo que, para o segundo lapso, encontramos
12% (28) de mulheres e, para o terceiro, 3% (6). (Cf. Gráfico 5).
189
Estudos recentes vem demonstrando “que a mulher forra, em particular a mulher forra africana, tinha
condições sociais e econômicas especiais que a tornavam detentora de um poder econômico só muito
recentemente detectado”. IN: Sheila de Castro Faria. Mulheres forras: riqueza e estigma social. Revista
Tempo/UFF, Departamento de História – Vol.5, nº 9, jul. 2000, p, 65-92. (Dossiê História das mulheres e das
relações de gênero).
190
Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados..., p, 84.
76
Gráfico 5: Casos de concubinato em Mariana, se
g
undo o
g
rau de
reincidência.
80%
12%
3%
5%
1º Lapso
2º Lapso
3º Lapso
Indeterminado
Fonte: AEAM, Devassas, 1730, 1737-8, 1742-1794, 1752-1760, 1754-1769.
Como podemos observar através da analise do gráfico cinco, existe uma grande
discrepância, em termos numéricos, entre as mulheres acusadas de primeiro lapso e aquelas
acusadas de segundo ou terceiro lapso; isso nos sugere que muitas mulheres abandonavam
os seus companheiros ou utilizavam-se de estratégias para driblar as autoridades
eclesiásticas. “A separação domiciliar e visitas noturnas eram algumas das formas
encontradas para fugir de suspeitas. Com este mesmo objetivo alguns homens alegavam
parentesco com a mulher com quem compartilhava o teto ou justificavam o convívio
através de promessas de casamento”.
191
De acordo com Luciano Figueiredo:
191
FIGUEIREDO, Luciano R. Mulheres nas Minas Gerais. IN: Mary Del Priore (org.). História das
mulheres no Brasil. 7º ed. São Paulo: Contexto, 2004, p, 182.
77
o afunilamento das penas é um indicio revelador da reação dos que viviam
concubinados diante da ação repressiva, já que a diminuição gradativa do
número de punidos conforme o grau, indica o temor da excomunhão ou da
prisão, penalidades violentas que aguardavam aqueles que ultrapassassem o
terceiro lapso.
192
Se aqueles que ultrapassavam o terceiro lapso tinham como punição à excomunhão
e a prisão, os que eram incriminados em primeiro, segundo e terceiro lapso pagavam uma
quantia em ouro, ou em dinheiro e ainda havia aquelas que eram aliviadas da condenação.
Como bem nos mostra os trechos retirados dos livros de culpa das Devassas.
Aos sete dias do mês de janeyro de mil setecentos e trinta annos, Francisca foi
condenada em primeiro lapso de concubinato e a pagar duas oitavas e meia de
ouro pela sua admoestação.
193
Aos vinte e dois dias do mês de setembro de mil
setecentos e trinta e sete annos, Maria foi condenada em segundo lapso de
concubinato e a pagar três mil reis pela sua admoestação.
194
Aos vinte e quatro
dias do mês de outubro de mil setecentos e trinta e sete annos, Maria de Souza
foi condenada em terceiro lapso de concubinato e a pagar doze mil reis pela sua
admoestação.
195
Aos vinte sete dias do mês de janeiro de mil setecentos e trinta
annos, Joana Pinta foi condenada em primeiro lapso de concubinato e foi
aliviada da condenação por ser pobre.
196
Como podemos notar, a quantia a ser paga aumenta de acordo com o lapso do
concubinato, mas encontramos casos onde não se faz menção à multa. Em todos os termos
de culpa, a mulher “confessava a culpa judicial e aceitava admoestação e prometia emenda
(...) de que tudo se fez este termo que assinou com o dito Reverendo Senhor Doutor
192
Idem. Barrocas Família..., p, 152.
193
AEAM, Devassa, 1730, fl. 3.
194
AEAM, Devassa, 1737-8, fl. 55.
195
AEAM, Devassa, 1737-8, fl. 65.
196
AEAM, Devassa, 1730, fl. 12 e 12v.
78
visitador”
197
, com exceção de nove casos onde aparece a seguinte frase: “digo o de se lhe
haver o crime por provado”
198
, o que nos remete a um sinal de contestação do crime.
Nestes casos também não houve menção a multa.
Entre os 240 casos computados de concubinato encontramos um caso em que a
condição civil do cúmplice é mencionada, sendo este casado.
Aos doze dias do mês de julho de mil setecentos de cinqüenta e um anos nesta
leal cidade de Mariana em casa de morada do Reverendo Doutor Vigário Geral
onde eu o escrivão [?]
apareceu presente Joana Gomes, bastarda, moradora na
freguesia de Furquim para ser admoestada do ilícito trato que tem vivido com
Manoel Gonçalves [Sampayo] homem casado e apartado de sua legítima
mulher.
Isto nos leva a afirmar que a prática do concubinato nem sempre se realizava entre
pessoas solteiras. “Logo, o casamento, tanto para a mulher quanto para o homem, não
significava empecilho algum para a constituição de relacionamento com outras pessoas”.
199
Com relação aos cúmplices, a sua posição social é mencionada apenas nos livros de
1730 e 1737-1738, nestes livros encontramos homens que ocupavam diferentes posições
sociais na cidade de Mariana, como: Capitão, Tenente, Sargento, Alferes, Baltazar, Doutor,
boticário e padres. Já nos livros de 1752-1760, 1764-1769 e 1742-1794 não há mais
menção à posição social dos cúmplices: a sua posição só é mencionada quando a situação
de concubinato se dá entre o Senhor e sua escrava. Isto nos leva a aventar a possibilidade
de que, num primeiro momento, o poder episcopal, ainda sediado no Rio de Janeiro,
desejava conhecer uma realidade nova que ainda não estava claramente enquadrada no
âmbito da organização eclesiástica; enfim, eles buscavam conhecer os novos habitantes das
197
Idem
198
Os nove casos em que ocorrem esse sinal de contestação encontram-se no livro de 1730, fl. 26, 28, 43,
43v, 47, 54, 63, 73 e 77.
199
FIGUEIREDO, Luciano de Almeida R. O avesso da memória..., p, 126.
79
Minas do Ouro. Já num segundo momento, em que as devassas são conduzidas por um
poder episcopal que se instala em Mariana a partir de 1748, nota-se a supressão de
informações nos livros de devassas com relação aos cúmplices. Isto reflete a maturidade
com que os condutores das devassas passam a lidar com uma realidade que se julgava mais
bem conhecida e controlada.
Não podemos deixar de registrar que, na maioria dos casos onde se faz menção à
posição social do cúmplice, este é o próprio dono (Senhor) que mantinha relações
extraconjugais com suas escravas, relacionamentos estes que acabavam por gerar filhos
ilegítimos e a propagação da prostituição. Para Vainfas:
longe de circunscrever-se ao circulo estreito dos grandes senhores do Nordeste
ou das Minas Gerais, as práticas concubinárias entre senhor e escrava pareciam
igualmente difundidas no seio da população modesta, havendo casos de que
humildes donos de uma só escrava mantinham com ela amancebamento e
visando, por vezes aumentar suas rendas, colocavam-na prostituição.
200
O que nos causou estranheza foi que os termos de culpa traziam no corpo do texto a
seguinte frase “(...) que de todo se aparte da ilícita comunicação, que tem com o dito seu
dono, e não converse mais com ele em público ou secreto, nem entre em casa dele, e nem o
consinta na sua, e nem lhe mande dádivas, presentes ou recados que faça de todo cessar o
escândalo de seu pecado (...)”
201
, o que nos remete a uma incoerência por parte do
escrivão, pois como uma escrava poderia deixar de conversar e entrar na casa do seu
senhor se a sua própria condição de escrava a impossibilitava de tomar tal decisão? A
única possibilidade cabível, ao nosso ver, seria a venda dessa escrava para outro senhor.
Mas não podemos afirmar ao certo o que acontecia entre ambos após assinar o termo de
culpa.
200
Ronaldo Vainfas, Moralidades brasílicas..., p, 234.
201
AEAM, Devassa, 1730, fl. 2v.
80
Para Luciano Figueiredo “estas visitações poucos efeitos trouxeram para uma
definitiva disciplina dos relacionamentos; ao contrário tem-se a nítida impressão de que
chegaram a tornar-se fonte de rendas para o bispado”.
202
Como nos mostra uma ordem
régia encaminhada em 1725 a dom Lourenço de Almeida,
porque as visitas que fazem os visitadores nessas Minas não constam de outras
coisas, senão de irem tirando róis das pessoas que têm negras em casa e sem
outra nenhuma ordem de juízo nem haver testemunhas, nem perguntar se há ou
não escândalo as vão condenando em treze ou quatorze oitavas de ouro que
executivamente mandam cobrar.
203
Podemos insinuar que, depois de paga a quantia e assumida a culpa, pouco
importava para os visitadores o rumo que iam tomar esses relacionamentos, sendo que
essas mesmas pessoas poderiam ser novamente denunciadas, apesar de que o número de
casais reincidentes no mesmo crime foi bem menor do que aqueles que eram culpados pela
primeira vez. A Igreja mineira possivelmente fazia vista grossa nos relacionamentos entre
senhores e escravas.
Entre os cúmplices encontramos um único caso em que a sua cor é mencionada,
sendo a sua condição social a de homem forro.
(...) apareceu Ignácia Baptista preta, forra, solteira (...) notificada a sua ordem
para satisfação da culpa que lhe resultou da devassa da visita desta freguesia o
qual o dito senhor admoestou em segundo lapso de concubinato na forma do
Sagrado Concílio Tridentino que de todo se aparte da ilícita comunicação que
tem com Bento, preto, forro (...).
204
202
FIGUEIREDO, Luciano, O avesso da memória..., p, 114.
203
‘Sobre as vexações de alguns visitadores’, 10 de setembro de 1725. Transcrição do cód. 23, APM, SC, em
RAPM, ano 30, 1979, p, 224-5. Apud: FIGUEREIDO, Luciano, O avesso da memória, p, 115.
204
AEAM, Devassa, 1730, fl. 60v.
81
Através dos vários termos de culpa analisados, constatamos que o crime de
concubinato foi uma prática bastante assídua entre as mulheres que viveram na cidade de
Mariana no século XVIII, estando presente entre todos os segmentos da sociedade. Em
geral, esta relação, tida como ilícita, trazia conseqüências muito mais danosas às mulheres
do que aos homens. Isso ocorria porque a mulher era a peça chave de um discurso centrado
na obediência, na honra, na moral e na construção de um casamento indissolúvel.
O seu corpo foi a principal vítima de um conflito constante entre o discurso
religioso, que queria enquadrá-lo na obediência e na submissão, e a sua prática de vida.
Isso acabava por criar um corpo “rebelde”, que burlava as leis da Igreja e do Estado para
buscar formas paralelas de relacionamentos tidos como “ilícitos”, mas que, ao mesmo
tempo, eram condizentes com o que lhes era imposto pela sociedade. Foi através das visitas
episcopais, das punições que a Igreja buscava restabelecer a ordem social, desempenhando
um importante papel, no que se refere à boa conduta, principalmente feminina, para salvar-
lhe a honra e a moral. O grande número de mulheres envolvidas no crime de concubinato
vem nos mostrar que o discurso de dominação das autoridades eclesiásticas, através da
imposição de comportamentos e formas de conduta, diferia do cotidiano vivido pela
maioria das mulheres de Mariana. O que se vê é uma contraposição entre o discurso
religioso, que moralmente condenava formas não ortodoxas de relacionamentos conjugais,
e as práticas de vida das mulheres pertencentes às camadas populares, que socialmente as
aceitavam.
3.2 - O AVESSO DO MATRIMÔNIO.
Desde os primórdios da colonização do Brasil, a Igreja Católica tentou fazer do
matrimônio – monogâmico e indissolúvel – a única forma aceitável de relacionamento, no
82
qual as mulheres poderiam desempenhar o seu papel de mãe sem estar cometendo algum
tipo de pecado. A mulher deveria aceitar as normas da Igreja com relação ao seu corpo,
não devendo em hipótese alguma coloca-lo à mercê de muitos homens. Mas o que
aconteceu foi justamente o contrário do que a Igreja pregava. Os relacionamentos
extraconjugais ganharam força e o concubinato tornou-se uma pratica corriqueira no dia-a-
dia da população.
Em Minas Gerais, o custo e a burocracia do processo matrimonial, a busca
incansável de riquezas, a existência de padrões morais diversos nascidos da
heterogeneidade étnica, o racismo, o escravismo, o patriarcalismo, o perfil
demográfico da sociedade mineira e a vigência do princípio de igualdade (os
cônjuges deveriam ser iguais na cor, no status, nas posses, na honra) na escolha
do cônjuge afastavam os mineiros do casamento e, inversamente, facilitavam as
uniões esporádicas, instáveis e ilícitas.
205
Todos os empecilhos acima mencionados iriam se juntar à falta de mulheres
brancas para se casar com homens solteiros, colonos portugueses, que para cá se dirigiam
em busca do ouro. Para Caio Prado, esse problema teria suas raízes na forma pela qual se
processou, na maior parte dos casos, a emigração para o Brasil. Segundo ele,
ela não se faz senão excepcionalmente por grupos familiares constituídos, mas
quase sempre por indivíduos isolados que vêm tentar uma aventura, e que
mesmo tendo família, deixam-na atrás à espera de uma situação mais definida e
segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e não raro se eterniza,
porque o novo colono, mesmo estabilizado acabará preferindo a facilidade de
costumes que lhe proporcionam mulheres submissas de raças dominadas que
encontra aqui, às restrições que a família lhe trará.
206
205
VILLATA, Luiz Carlos. O cenário urbano em Minas Gerais: outeiros do sagrado e do profano. IN: Termo
de Mariana: História e documentação. Mariana: Imprensa Universitária da UFOP, 1998, p, 77.
206
PRADO JÚNIOR, Caio, op. cit., p, 361.
83
O desequilíbrio numérico entre os sexos dentro de cada um dos grupos de estados e
cor incompatibilizava-se com a regra matrimonial que exigia a homogamia, na medida em
que não havia iguais para se casarem.
207
A vida itinerante da maioria dos colonos que se
viam às voltas da mineração também se tornou um grande empecilho na formação de
famílias constituídas sobre o matrimônio, como queriam a Igreja e o Estado. Por causa do
ouro, esses homens não tinham paradeiro certo, ficando longos períodos distante das
famílias, o que levava alguns a preferir relacionamentos consensuais. E foi “contra a
difusão do concubinato, que muito se bateu a Igreja, conforme refletem as Devassas
Eclesiásticas”.
208
Encontramos, na cidade de Mariana, mulheres que foram delatadas pela prática do
concubinato, como nos mostram os depoimentos de testemunhas
209
. Maria, mulata, foi
denunciada “por viver amigada com Francisco Nunes mulato neste arrayal [ilegível] o que
sabe pello assim ver e ser publico e notório o escândalo e foi dito ao Cônego Cristóvão de
Magalhães Leite”.
210
Outra acusada foi Josepha Marrai, moradora da rua da Câmara.
Segundo a testemunha, “ela vive com seu mulato forro com quem se tratava na frente das
mucamas e era publico andarem amigados e o presente mulato a tem fora de caza”.
211
Outra mulher que recebeu a acusação de amancebamento foi Ignácia: de acordo
com a testemunha, “Ignácia vive na caza de Manoel Lopes de Oliveira e dizem alguns que
são cazados e se não se estranho por estar de portas adentro o que sabe pello ouvir dicer e
pello ver.
212
207
Luiz Carlos Villata, op. cit., p, 77.
208
Laura de Mello e Souza, Desclassificados do Ouro..., p, 163.
209
Os Livros de Testemunhos nos quais encontramos crimes de concubinato delatados contra mulheres que
viveram na cidade de Mariana foram: 1722/23, 1726, 1733 e 1753.
210
AEAM, Devassa, 1726, fl. 90v.
211
AEAM, Devassa, 1726, fl. 114.
212
AEAM, Devassa, 1733, fl. 12v.
84
Podemos ainda pontuar, embora em menor escala, o concubinato praticado pelas
mulheres casadas, muitas das vezes com a anuência do marido.“Outro dice que Maria
Gomes cazada que está com Manoel dos Reis outras vezes a missa nos dias de preceitos o
que sobe por outros que a chama o que faz por não ter escrava que o a acompanhe e al dice
nos interrogatórios e do custume della”.
213
Maria Isabel Pinto, branca, casada, também é
acusada de ser “amigada com Matheus de que nega que mora com elle [ilegível] com quem
é reverendo das portas adentro”.
214
Outra acusada foi Mônica Ribeiro, a testemunha,
dice que Mônica Ribeiro cazada com Joseph Pacheco muitas vezes vai ella só e
outras com o marido na caza do Capitão Domingos Pinilha Ferreira de que
resulta assim e atesta o seu escândalo na vizinhança desse arrayal entre ambos e
a comunicação e por ouvires também falar nisso a várias pessoas e também por
vez elle testa muitas vezes a mulher ir a caza do tal capitão.
215
Nesta acusação notamos claramente o consentimento do marido, sendo que
segundo a testemunha, além dele permitir a presença da mulher na casa do Capitão ele às
vezes a acompanha.
Como é sabido, muitas escravas foram acusadas de manter amancebamento com
seus senhores, e, através das fontes, podemos constatar essa realidade. A testemunha,
dice que sabe por uns há hua preta Maria escrava de André Rodrigues continuas
muitas vezes a caza de Manoel Lopes e esta a caza do senhor della por seo
desrespeito de que tem resultado escandalloso e que o sim presta de ouvires
outras muitas pessoas publicas na vizinhança desta a [ilegível] que anda com
elle amancebada em ocazião de pecado e trato ilícito.
216
213
AEAM, Devassa, 1722/23, fl. 86v.
214
AEAM, Devassas, 1726, 83v.
215
AEAM, Devassa, 1722/23, fl. 88v.
216
AEAM, Devassa, 1722/23, fl. 180v.
85
Encontramos casos em que a relação de concubinato era marcada por anos de
convivência. “Dice que neste arrayal mora Ivana negra [ilegível] dice viver amigada há
seis annos em estar portas a dentro”.
217
Outra acusada foi Roza, a testemunha disse:
que em outro tempo haverá seis annos que ouvira dicer que Roza que se acha
hoje forra trata ilicitamente com Manoel Soares Bernardes seo irmão, por cujo
motivo ficou o Manoel com ódio da tal negra que lhe parece ainda hoje
conserva sabe por outras circunstanciasd que certamente o Francisco tratando
com ella comprando-lhe cazas, a sua negra e pagando lhe algumas obras, que
lhe mandara fazer, mas agora seo vi mais indícios por embora [ilegível] só
ouviu dicer que ainda há poucos dias huas bulhas com ella por ciúmes e lhe
tomara a negra, que elle havia dado o que lhe tornara a dar feitos as pazes, o que
sabe pellas razons que tenho dito
218
Neste relato, Roza é acusada por dois crimes: incesto e adultério. De acordo com a
testemunha ela mantêm “tratos ilícitos” com seu irmão há uns seis anos e também conserva
um caso com Francisco que lhe compra casas e lhe paga algumas obras.
Eram delatadas tanto as mulheres solteiras quanto às casadas, sendo assim, a
valorização do sacramento do matrimônio “fazia com que a justiça eclesiástica visse com
maus olhos tanto a adoção do modo de vida dos casados por aqueles que não o eram, como
a transferência do convívio e das obrigações conjugais por parte daqueles que haviam
unido em casamento para outros relacionamentos”.
219
Através desses depoimentos que foram registrados nos livros de devassa, podemos
ver que a prática do concubinato abarcava as mais diversas situações, sendo que em muitos
casos a expressão “viver de portas adentro” dizia respeito a um tipo de “conjugalidade que
nada devia ao legitimo casamento, exceto à falta de benção sarcedotal à união”.
220
Mas
217
AEAM, Devassa, 1726, fl. 90.
218
AEAM, Devassa, 1753, fl.155v.
219
GOLDSCHMIDT, Eliana, op. cit., p, 150.
220
VAINFAS, Ronaldo, Moralidades brasílicas, p, 237.
86
“não era apenas o casal amigado de portas adentro, isto é morando junto na mesma casa,
que podia ser acusado de concubinato. Também era incriminado aquele em que a mulher
residia em outro domicílio, mas teúda e manteúda”.
221
De acordo com Marilda Santana
222
, “viver ilicitamente” para estas mulheres,
significava mais que “viver com honra”, o concubinato era algo a mais para as
“desclassificadas do ouro”, era a própria garantia de sobrevivência material. Ainda,
segundo a autora, nos casos de concubinatos de mulheres brancas não foi o benefício
material que as impulsionou a transgredir os valores morais da sociedade mineira colonial.
Possivelmente estavam em busca de “outros amores”; nesse sentido, recorriam ao
concubinato para alcançar benefícios de ordem afetiva.
Observamos que nesses depoimentos aparecem termos diversos que são utilizados
pelas testemunhas para designar o crime de concubinato: “amigados”, “amancebados”,
“vivendo de portas adentro”, “vivendo em situação de pecado”, “como se fossem casados”.
Não importando a linguagem utilizada, a Igreja procurava condenar quaisquer formas de
relacionamentos consensuais, que iam contra as leis do sacramento matrimonial e,
portanto, sujeitos à condenação. “Para a Igreja não poderia haver evidência maior de ‘trato
ilícito’ do que a coabitação de um casal não regulada pelo casamento cristão”.
223
O saber da população a respeito do concubinato era adquirido na medida em
que as normas eclesiásticas referentes ao matrimônio eram difundidas pela
comunidade. O conhecimento a respeito da validade exclusiva do casamento
que obedecia às regras tridentinas fazia com que aumentassem as denúncias de
relacionamentos conjugais suspeitos de não seguir o padrão. Entretanto a
familiaridade das pessoas com a mancebia não favorecia apenas o incremento
221
GOLDSCHMIDT, Eliana, op. cit., p, 133.
222
SILVA, Marilda Santana da, op. cit., p, 147.
223
FIGUEIREDO, Luciano, Barrocas famílias, p, 133.
87
das delações, mas também o surgimento de artifícios para ocultar das
autoridades eclesiásticas a transgressão.
224
O conhecimento, por parte da população, de relacionamentos extraconjugais era
facilitado pelo modo como se dava a formação das vilas em Minas Gerais. A proximidade
das casas, sendo muitas delas de meias-paredes, as ruas estreitas e o entra-e-sai de escravos
em grandes casas rurais, fazia com que a intimidade do lar ficasse comprometida por
olhares de vizinhos curiosos e indiscretos. Atentos aos mais singelos movimentos que iam
contra a rotina mineira, testemunhas denunciaram as intimidades dos corpos que se davam
no interior das casas, mas que, nem por isso, deixavam de ser de conhecimento público.
O que encontramos em Minas Gerais, através das devassas, foi um confronto
constante entre aqueles que delatavam, os que eram alvo da acusação e a Igreja que punia
os que transgrediam as suas normas, agindo contra um discurso que procurava normalizar a
população.
3.3 – MERETRIZES E FEITICEIRAS.
Através dos Termos de Testemunho
225
encontramos várias mulheres que foram
delatadas e acusadas pela prática da prostituição. Ao que parece, ao lermos os depoimentos
das testemunhas, a prostituição fazia parte do cotidiano de muitas mulheres que viviam em
Mariana.
Para Laura de Mello e Souza, o alto índice de prostitutas em Minas Gerais estava
associado à pobreza mineira e às difíceis condições de subsistência que a região oferecia.
Segundo ela: “muitas devem ter sido o caso de mulheres sozinhas, mães solteiras que
tinham de sustentar os filhos e a casa com o produto do seu trabalho, exercendo
224
Idem, p, 132.
225
Os Livros de Testemunho que encontramos crimes de meretrício e feitiçaria delatados contra mulheres
que viveram na cidade Mariana foram: 1722/23, 1726, 1753.
88
esporadicamente a prostituição para completarem a receita doméstica”.
226
Luciano
Figueiredo também associou a prostituição feminina à pobreza mineira. Ao analisar o
comércio feminino – negras de tabuleiro
227
– nas Minas Gerais, ele chega a afirmar que:
Os limitados rendimentos desse pequeno comércio fazia com que a pobreza
fosse um traço marcante entre as mulheres que dele se ocupavam,
independentemente de sua condição social. Forras ou escravas, recorriam à
prática da prostituição como meio de complementar seus rendimentos ou
jornais, e minorar, assim sua miséria.
228
Para Mary Del Priore, as Devassas Eclesiásticas que ocorreram em Minas Gerais
acabaram rotulando como “mal procedidas” as mulheres com formas não ortodoxas de
relações extraconjugais. “Por maiores rendimentos, os extremos da sociedade da mineração
se tocavam: senhores exploravam suas escravas e mães exploravam filhas, sem qualquer
constrangimento senão aquele dado pela miséria e pela fome”.
229
Como foi o caso da mãe de Narciza, que foi acusada de consentir que a filha se
prostituisse com vários homens. A testemunha,
dice que vio elle também e faz a may da dita Narciza nome senão lembra e o
padrasto que se chama joão Peres a chamar morando na mesma caza com a filha
de quem se dizia que lhe consentio os torpez tratos com lucro de seiscentos reis
só que [ilegível] pello pecado e esta mesma informa que trazia do Rocha onde
mora em terras do seo Bento Rodrigues pinto, o cual ponto que soube de
semelhantes desaforos de a custumarem a entregar a filha aos homens os
colocou fora de suas terra e ainda aqui nesta cidade he constante que elles a
226
SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro..., p, 253.
227
O termo “negra de tabuleiro” se refere às “negras ou mulatas, forras ou escravas que vendiam variados
gêneros comestíveis, tais como pastéis, bolos, doces, mel, leite, pão, banana, fumo e bebidas. Tratava-se de
uma multidão de mulheres que circulava no interior das povoações e arraiais com seus quitutes, aproximando
seus apetitosos tabuleiros, com muita freqüência, dos locais de extração do ouro e diamantes. IN: Luciano
Figueiredo, O avesso da memória, p, 42.
228
FIGUEIREDO. Luciano, O avesso da memória..., p, 58.
229
DEL PRIORE, Mary. Mulheres no Brasil colonial..., p, 34.
89
lavavas a caza dos homens para fins torpez com hu delles mesmos contou a elle
que o padrasto levava o cunhado a sua caza e so e só depois a mais o foi buscar
a mesma caza, o qie sabe por ser escandalloso e notório e pellas razons que tem
al não dice só custume e assignou com o exceletissimo reverendo e seu cônego
visistante Gonçalves Jorge de Almeyda.
230
Neste caso, a mãe de Narciza e seu padrasto são acusados de consentir que ela
usasse seu corpo para fins torpes e desonestos com vários homens com finalidade de lucro.
Segundo a testemunha, o lucro era de seiscentos reis. Isso vem comprovar que a
prostituição das filhas tinha como intuito primeiro arrecadar dinheiro para complementar a
receita doméstica. Mas, como vimos, nem todos compactuam com esse “clima de
imoralidade”, visto que o Sr. Bento Rodrigues, ao tomar consciência do que os pais faziam,
os expulsou de suas terras.
Desde modo, a prostituição das filhas constituía-se em estratégia de sobrevivência
não apenas em domicílios chefiados por mulheres sozinhas, mães solteiras, viúvas ou
abandonadas pelo marido, mas ocorria também em casas a onde a presença masculina
estava presente.
Cosma Dominianna também foi acusada pelo mesmo crime ao consentir que suas
filhas admitissem homens em casa.
(...) dice que he certo e constante que Cosma Dominianna crioula forra,
moradora na calçada de Santanna conssente nos pecados de suas filhas mullatas
e chamadas Vicência Francisca e Anna Maria, permitindo lhes que adimittão em
caza homens para fins torpez e deshonestos pois esta vivendo com ellas em
caza, sendo notório muito mao procedidas e saba elle também de [ilegível] a tal
Cosma, ofereceo a certo sujeito hua dellas e he notório que ella bem sabe do
230
AEAM, Devassa, 1753, fl. 138.
90
mao procedimento das ditas filhas e lhe permite com alguna interece que lhe
resulta e nesta matéria a escândalo.
231
Nesta situação Cosma Dominiana consente que suas duas filhas usem o próprio
domicílio para receber homens para fins torpes e desonestos. De acordo com a testemunha:
ela permite esse procedimento das filhas visando algum interesse, mas não relata quais
interesses são esses. Podemos sugerir que era através do meretrício das filhas que Cosma
buscava o sustento da família.
Outra mulher que foi acusada por consentir os pecados de sua filha, Romana da
Costa, foi a parda Ignácia, conhecida também pelo apelido de “a enforcada”. A testemunha
disse:
que Ignácia por alcunha a enforcada sempre foi informada de consentidora dos
pecados e torpezas de sua filha Romana da Costa pois que sendo mulher
publicamente mao procedida sempre viveo de portas a dentro com ella, e
sabendo dos amazios da filha indo por caza delles algua couza com recados
della e finalmente sendo sabedora dos complicois della tem lhe prohibes couza
algua, antes estimando o por algún interece, que lhe resulta com também sabe
ella de siencia certa que a tal Ignácia costuma ter em sua caza alguas mulheres
para se darem aos homens sendo medio negra para os homens lhes dêem alguas
couzas e saendo desses torpezes he de certo que raríssimas vezes esta tem ter
mulheres em sua caza para semelhantes fins o que he aasim notório e
escandalloso e por isso a sabe por outras razons particulares.
232
Neste caso, além da testemunha acusar Ignácia de prostituir a própria filha, ela
também é acusada de alcoviteira, pois empresta o próprio domicilio para a prática da
prostituição, ganhando em troca alguma coisa. Outra mulher que foi culpadada fama que
231
AEAM, Devassa, 1753, fl. 152.
232
AEAM, Devassa, 1753, fl. 157.
91
contra ela havia de dar casa de alcouce”
233
foi Francisca da Costa, preta, forra.
234
Segundo,
Luciano Figueiredo, “o domicilio de mulheres forras e pobres e mais raramente senzalas de
escravos, constituiu-se no espaço por excelência utilizado para tal fim. A miséria e a
promiscuidade nestes locais revelariam a pobreza dos que se entregavam a esta
atividade”.
235
Pachoa, casada, também foi acusada de consentir o pecado das filhas. Segundo a
testemunha: “ella tem em sua caza suas filhas que dizem ser meretrizes publicas e que tais
suas filhas com fama na vizinhança [ilegível] e que esta recebe homens com seu
consentimento e é escandaloso”.
236
Houve casos de senhoras que foram acusadas de consentir que suas negras
andassem em pecado, vivendo da prostituição de suas escravas, como bem nos mostra a
acusação feita a Ana Ferreira: “a qual é infamada de [ilegível] negros e negras
consentidora quem em caza se há concubinato com sua negra della se lhe for lucrativo
[ilegível] três dias dormindo com vários homens [ilegível] publicamente infamado e causa
escândalo”.
237
A precariedade das condições materiais de vida que empurravam mulheres para o
ofício de meretriz surge na documentação. Encontramos casos em que mais de uma
meretriz coabitavam no mesmo domicílio.
Dice que Mônica crioula moradora na rua São Gonçalo, Maria da Silva carijó e
Anna de tal vulgarmente chamadas sozinhas de publicas meretrizes que
admittem com escândalo homens em suas cazas que com fins torpez e
233
“Alcouceiro”, versão colonial do cáften, ofício que mesmo não legitimado, esteve presente nas vilas e
arraiais mineiros ao longo do século XVIII; ocupado quase sempre por mulheres que dele tiravam o seu
rendimento, no todo ou em parte. IN: Luciano Figueiredo, O avesso da memória, p, 89.
234
AEAM, Devassa, 1730, fl. 49.
235
Luciano Figueiredo, O avesso da memória, p, 90.
236
AEAM, Devassa, 1726, fl. 95v.
237
AEAM, Devassa, 1726, fl. 87v.
92
dishonestos do [ilegível] escandalizar [ilegível] torpezas o que tudo he assim
publico escandaloso e por isto os moradores por ver repetidas vezes os [ilegível]
nas cazas dos ditos com grande publicidade.
238
Neste outro caso, a testemunha,
Dice que Narciza parda forra outro de cujo nome senão lembra, e chamada
vulgarmente a Prima e sua Maria carijó moradoras na travessa do Seminário
para a rua Nova são notoriamente muito mao procedidas escandalozas
meretrizes por motivos bulhos naquela rua e são grandes escândalos aos
vizinhos que todos as desejão dali fora. Admitindo em tua caza todos os homens
que querem lá entrar o que sabe por terminamente escandalloso e prezencia os
bulhas e ver muitas vezes as entradas dos amazios.
239
Esses dois relatos expostos acima mostram que mulheres sozinhas, que não
usufruíam proteção masculina, viam na venda seus corpos a sua sobrevivência. De acordo
com Luciano Figueiredo, essa era uma realidade social resultante das estritas áreas de
atuação para a mulher trabalhadora em Minas Gerais. “Ceder o domicílio para encontros
ou nele se prostituir constituem, na verdade, alternativas interligadas que se ajustam às
duras condições de vida e aos estreitos canais de participação econômica encontrados pelas
camadas femininas”.
240
Em alguns casos, o meretrício foi seguido por atos de violência. A violência contra
a mulher era intrínseca ao próprio sistema escravista, estando presente na fala desta
testemunha, que disse: “que Bernarda a pisca, moradora na rua Nova he publica e
escandalosa meretriz que se dá aos homens que a procurão motivando discórdias entre os
238
AEAM, Devassa, 1753, fl. 143 e 143v.
239
AEAM, Devassa, 1753, fl. 137.
240
FIGUEIREDO, Luciano, O avesso da memória, p, 92.
93
homens que por seo desrespeito já ouvirão suas pancadas na caza della o que se sabe ser
publico e notório.
241
Mulheres casadas também foram acusadas de praticarem o meretrício. Segundo a
testemunha:
“Maria Cecília parda forra cazada vive separada de seo marido com notório e
publico escandalloso pois vive tão mao procedida que he o escândalo tanto
despalido como outra cualcuer que onde esta o que he publicíssimo dar se a
todos os homens que a procura tendo a porta aberta para todos e por isso a
abre.
242
Outra acusada foi Josepha: de acordo com a testemunha, “ Maria preta moradora na
Passagé se queixou a elle testemunha que sua may Josepha preta forra acustumada entregar
a vários homens para com ella offender a Deos”
243
. Neste caso, é a própria filha que não
concorda com a vida que a mãe leva, prostituindo-se com vários homens, sendo que a
denúncia não partiu da filha, mas de um amigo, que, sabendo do acontecido, denunciou-a.
Acusada também pela prática do meretrício foi Anna Rodrigues. A testemunha
disse:
Que elle vi freqüentemente pagar Anna Rodrigues parda forra para a caza de
João Gonçalves com quem he asir publico e escandaloso tratar ilicitamente
tanto asir que ella mesma faz ganho do pecado por ser asir diz a quem queira
ouvir o que sabe pela razons que dito tem e porque ella entra a toda hora a luz
do dia sem vergonha.
244
A prostituição constituiu-se em Mariana, bem como em outras localidades de Minas
Gerais, em um pecado “público e escandaloso”. Com certeza muitas mulheres não tiveram
241
AEAM, Devassa, 1753, fl. 139v.
242
AEAM, Devassa, 1753, fl. 139v.
243
AEAM, Devassa, 1733, fl. 05v.
244
AEAM, Devassa, 1753, fl. 154v.
94
o menor pudor ao se dedicar à pratica do meretrício, já que alguns encontros se davam à
luz do dia. O uso do corpo e da sua sexualidade – como podemos observar em várias
passagens das Devassas citadas acima – também lhes trazia vantagens, pois era através
dele que a mulher buscava estratégias de sobrevivência. Era através do “comércio sexual”
que ela arrecadava dinheiro para se manter em uma sociedade marcada pelo “falso fausto”,
pela pobreza de muitos e pela riqueza de poucos.
O padre Jesuíta Antonil, ao escrever sobre “os danos, que tem causado ao Brasil a
cobiça depois do descobrimento do ouro nas minas”, associa a sexualidade feminina a um
dos motivos que teria contribuído para extravio do ouro em Minas Gerais:
(...) Convidou –os afama das minas tão abundantes no Brasil homens de toda a
casta, e de todas as partes: uns de cabedal, e outros vadios. (...) Convidou-os o
ouro a jogar largamente, e a gastar em superfluidades quantias extraordinárias
sem reparo, comprando (por exemplo) um negro trombeteiro por mil cruzados;
e uma mulata de mau trato por dobrado preço, para multiplicar com ela
contínuos e escandalosos pecados. (...) E o pior é que a maior parte do ouro, que
tira das minas, passa em pó e em moedas para reinos estranhos: e a menor é a
que fica em Portugal e nas cidades dos Brasil: salvo o que se gastam em
cordões, arrecadas, e outros brincos, dos quais se vêem hoje carregadas as
mulatas de mau viver e as negras, muito mais que as senhoras.
245
O dizer de Antonil vem confirmar o que havia sido dito acima: mulheres prostitutas
teriam obtido grandes benefícios com o uso desmedido de sua sexualidade, vivendo em
alguns casos com ornamentos a que senhoras pertencentes às camadas ilustres da sociedade
mineira não tinham acesso.
Será que essas mulheres chamadas de meretrizes fizeram uso do seu corpo
simplesmente porque eram pobres e não tinham outra opção para se manter e sustentar a
245
ANTONIL, André João, op. cit., p, 236-238.
95
sua prole, ou será que por trás dessa “profissão” elas conseguiam benefícios bem maiores e
bem mais rápido? Ao nosso ver, a utilização da sua sexualidade trazia embutida uma
ambição bem maior do que simplesmente prover a sua alimentação e a da sua família.
Em uma sociedade escravista, aonde a mulher negra era tida como coisa, onde o
preconceito permeava o seu dia-a-dia, era através do seu corpo que ela buscava a
realização de seus sonhos, como se vestir como as sinhás brancas, comer bem e alcançar
um dos maiores desejos da escravidão, a carta de alforria. O uso da sua sexualidade era o
caminho mais rápido, não digo fácil, pois muitas mulheres devem ter sido violentadas por
homens que usavam de sua condição de dono para submetê-las a grandes sofrimentos e
humilhação. Mas muitas, com certeza souberam tirar proveito de tais situações, forjando
sentimentos de afeição e amor para conseguir benefícios.
Para Mary Del Priore, “as prostitutas do Brasil colonial foram ideologicamente
úteis para a construção e valorização do seu oposto: a mulher pura, identificada com a
Virgem Maria e distante da sexualidade transgressora”.
246
As mulheres virtuosas viviam “com toda a honra, decoro e honestidade” sendo a
casa de tal mulher “uma daquelas em que reinavam a modéstia, gravidade,
decência e temor a Deus”. As prostitutas ou meretrizes ou ainda mulheres
damas, ao contrário, procediam “sem pejo algum”, promovendo “grande
escândalo em toda a vizinhança”. (...) Enfim uma era a antítese da outra, e está
contradição garantia a existência de ambas. O importante era que não fossem
confundidas.
247
Crimes envolvendo a prática de feitiçaria também foram encontrados entre as
mulheres que viveram em Mariana, embora Laura de Mello e Souza tenha constatado que
nas Minas Gerais do século XVIII, a maioria dos envolvidos nessa prática tenha sido
246
DEL PRIORE, Mary, Mulheres no Brasil colonial, p, 32.
247
Apud: GOLDSCHMIDT, Eliana, op. cit., p, 97.
96
homens, mais numerosos talvez do que as mulheres. Segundo a referida autora, “Isto se
deve em grande parte à sua extração social, homens pobres que eram, negros forros e,
algumas vezes escravos: ora, nas culturas primitivas, africanas e indígenas, a magia é
desempenhada sobretudo pelos homens”.
248
A feitiçaria realizada pelas mulheres de Mariana abarcou objetivos diversos, como
nos mostram os depoimentos de testemunhas. A escrava Antônia recebeu duas acusações,
sendo estas de teor diferentes. De acordo com a primeira testemunha,
Dice que sabe por ouvir dicer publicamente a varias pessoas na vizinhança deste
arrayal que sua preta Antônia escrava de João Pereira Lima que he feitisseira e
como tal he tida e anda neste arrayal com fama publica disso e por ouvires
quiste bem a ocaziaõ o Capitão Domingos Lopes bem dada negra que esta
mandou feitissos com seus escravos e hei ter-se o senhor della que a lansou
desse arrayal.
249
Já a segunda testemunha atesta que Antônia,
escrava de João Pereira Lima a cual ouviu e lhe testa dicer-lhe a couza de seis
mezes que tirou a tida debaixo da cama do seo senhor uma panella fervendo
sem fogo e que era por não ter ação de a por de castigo e sabe por ser publico
que a preta tem fama neste arrayal de feitisseira e também pellos feitissos e não
[ilegível] fozes mao com elles e al não dice i do custume della.
250
A feitiçaria também foi utilizada para fins amorosos, como foi a acusação feita
contra Roza e Magdalena de Gana. A testemunha,
248
SOUZA, Laura de Mello e, Desclassificados do ouro, p, 260.
249
AEAM, Devassa, 1722-23, fl. 185.
250
AEAM, Devassa, 1722/23, fl. 186.
97
Dice que ouvira dicer que Roza parda forra moradora na rua de cima dos
Moseos he acustumada a fazer ingredientes para os homens quererem bem, mas
elles também não sabem de que modo os faz e lhe parece que também sabem
naquella rua muitos vizinhos com a mesma Magdalena de Gana que elle
também sabe pello ouvires dicer.
251
De acordo com Laura de Mello e Souza, esse tipo de prática mágica que tem
finalidade amorosa ou sexual nem sempre apresenta substrato africano: “muitas mostram
um parentesco impressionante com a magia e a feitiçaria européias”.
252
Outra mulher que foi culpada por realizar feitiços e obter rendas prometendo curas
e fazendo adivinhações foi Margarida de Lara, onde o dito senhor visitador (...),
“admoestou que te todo se afaste de curar com palavras, nem seja, imbusteyra e
anunciadora de futuros, enganando ao povo, porque de semelhantes imbustes e curas se
pode introduzir supertições perniciosas e pecaminosos abuzos”.
253
Encontramos duas mulheres que foram acusadas de feiticeira, mas as testemunhas
não falaram a que tipo de prática de feitiçaria essas mulheres se dedicavam. A primeira foi
a escrava conhecida por ‘Quinhenha’, “que é infamada de ser feitisseira fazer feitissos es
fez feitissos he sabe pello asir ouvir dicer.
254
Já a segunda foi a negra, forra, Madalena, “ a
quem he informado de ser fetisseira fazer feitissos que é público a passar pella mesma
culpa a qual anda amigada com [ilegível] com elle na forma que he publico.
255
Neste caso,
Madalena é acusada por dois crimes: feitiçaria e concubinato. Ambas, segundo as
testemunhas, moravam no Morro da Passagem, em Mariana.
251
AEAM, Devassa, 1753, fl. 145.
252
SOUZA, Laura de Mello e, As devassas eclesiásticas..., p, 72.
253
AEAM, Devassa, 1730, fl. 76v.
254
AEAM, Devassa, 1726, fl. 118.
255
AEAM, Devassa, 1726, fl. 120.
98
Como podemos ver, através dos relatos de várias testemunhas, as práticas de
feitiçaria em Mariana não estavam impregnadas somente de elementos africanos, mas
também de elementos europeus, fazendo surgir uma manifestação religiosa bastante
distante dos preceitos cristãos definidos pela Igreja Católica. Motivo pelo qual as Devassas
incidiram tão insistentemente sobre tais práticas, “cerceando as possibilidades de
manifestação de uma cultura própria, especifica, que era a do negro e, mais grave ainda,
era a do escravo”.
256
Enfim, foi comum nos casos analisados, encontrarmos mulheres que se dedicavam
ao meretrício e a feitiçaria; usaram dessas práticas como forma de resistência para com
uma sociedade que lhe tolhia o mais simples desejo do ser humano, viver com dignidade e
respeito. Numa sociedade marcada pela desigualdade social, essas mulheres tiveram de
deixar de lado os pruridos morais para poderem sobreviver”.
257
256
SOUZA, Laura de Mello e, As devassas eclesiásticas..., p, 72.
257
SOUZA, Laura de Mello e, Desclassificados do ouro, p, 257.
99
Conclusão
No início do trabalho nos propusemos a apresentar um panorama geral sobre o
corpo feminino na colônia
. Buscamos demonstrar que desde a chegada dos primeiros
colonizadores, as mulheres indígenas foram vítimas de um discurso misógino, difundido e
sustentado especialmente pela Igreja Católica, que viam nelas seres vulneráveis as
injunções do demônio. Depois das índias vieram as negras que também foram vítimas de
preconceitos. A cor de sua pele e a sua condição social foi um dos principais motivos que
as fizeram presas fáceis nas mãos de colonizadores portugueses que as usavam como
“coisa” para extravasar os seu desejos sexuais
.
Foi principalmente, a partir do Concílio de Trento (1545-1563) que a Igreja
Católica procurou disciplinar o corpo da mulher dentro do matrimônio, objetivando com
isso criar um modelo ideal de mulher que se comprometesse a usar a sua sexualidade
somente dentro do casamento tendo como fim último à procriação. A mulher deveria
contribuir através de seu papel de esposa submissa e mãe exemplar para o sucesso da
empresa colonial do Estado português, que objetivava criar famílias institucionalizadas de
acordo com a moral católica tridentina. Se esse discurso parece ter sido colocado em
prática por grande parte
das mulheres da elite colonial, não podemos dizer o mesmo das
mulheres desclassificadas – negras, forras e escravas – que acabaram por criar suas
próprias formas de sobrevivência e resistência. Foi comum entre elas a pratica do
concubinato, da prostituição, da bigamia, do adultério e da feitiçaria.
100
Como o nosso objetivo era saber como se dava à distância entre o discurso religioso
e prática de vida das mulheres que viveram na cidade de Mariana tornou-se necessário
traçar em linhas gerais o desenvolvimento desta localidade mineira. Buscamos a partir de
então demonstrar de forma concisa a sua trajetória de pequeno arraial até se transformar na
primeira cidade de Minas. Tornou-se também necessário conhecer a realidade de vida dos
religiosos mineiros, bem como buscar um melhor entendimento sobre como se davam às
visitas episcopais que deram origem à documentação que utilizamos.
Pudemos detectar, através da analise das devassas, que na grande maioria dos casos
explorados as mulheres figuram como culpadas pela prática do concubinato, tornando-se
este o conteúdo mais freqüente nas acusações, já que representa 98% dos casos, seguido
pela prática do meretrício e da feitiçaria.
O concubinato tornou-se a típica união não só dos grupos menos favorecidos como
também esteve presente nas classes mais abastadas da sociedade, visto que foi comum
relação concubinária entre desiguais, como: senhor e escrava, portugueses com índias ou
negras. Se entre os cúmplices encontramos a presença de homens que ocuparam diferentes
cargos de prestígio em Mariana não podemos dizer o mesmo das mulheres delatadas já que
se encontram inseridas nas camadas menos favorecidas da sociedade mineradora.
Verificamos que entre as mulheres sentenciadas há o predomínio das “mulheres de
cor”, bem como de forras e escravas, sendo que entre estas encontramos a superioridade
numérica das solteiras, que representam 87% dos casos coletados.
Em segundo lugar apareceu o meretrício que fez com que mulheres casadas ou
mães solteiras colocassem a própria filha na prostituição; outras vezes eram mulheres
desamparadas que colocavam o próprio corpo à mercê de muitos homens. Com essa prática
elas buscavam angariar recursos para se manter em uma sociedade marcada pelas altas
101
cobranças de impostos e pela luta diária pelas mínimas condições de sobrevivência que
marcava o dia-a-dia da população mineira.
Em último lugar encontramos mulheres que se dedicavam à feitiçaria, que foi uma
prática atribuída principalmente as “mulheres de cor”. Através da prática da feitiçaria elas
eram acusadas de unir e separar pessoas, prever o futuro e até de planejar a morte de seu
semelhante. A feitiçaria tornou-se uma forma de manifestação cultural que tinha como
principal inimigo o discurso da Igreja Católica que via em tais manifestações sincréticas a
íntima ligação com o mal, e conseqüentemente com o demônio.
Se a Igreja Católica através das visitas episcopais se mostra eficiente no incentivo a
delação, ora visto o grande número de mulheres delatadas e incriminadas, não podemos
dizer o mesmo com relação a sua “eficiência” na hora da condenação, já que foram
encontrados alguns termos de culpa onde não se faz menção a multa; em alguns casos a
acusada também é poupada da multa por ser pobre, ao menos esse era o motivo
oficialmente apresentado, além desses, houve nove casos em que parece ter havido um
sinal de contestação do crime, nos quais também não encontramos menção a multa. Mas na
maioria dos casos a acusada paga a multa e aceita admoestação.
Contudo, acreditamos que a rara isenção de multas e de indícios claro de punição
reflita mais uma determinada prática de poder do que uma simples anuência episcopal. Na
lógica do poder episcopal talvez mais importante do que punir era afirmar a sua autoridade
religiosa através dessas visitas que souberam conciliar uma prática de forte inspiração
inquisitorial com a maleabilidade necessária para afirmar sua autoridade religiosa em uma
região de fronteiras em expansão.
102
FONTES E BIBLIOGRAFIA
1 - Fontes Manuscritas:
- Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
Livros de Devassas:
Devassas, 1722-1723.
Devassas, 1726.
Devassas, 1730.
Devassas, 1733.
Devassas, 1737-1738.
Devassas, 1753.
Devassas, 1752-1760.
Devassas, 1764-1769.
Devassas, 1742- 1794.
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http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>. Acesso em: 11 dez. 2005.
109
ANEXO
Cópia do Edital que mandou se fizesse o Muito Reverendo Doutor Visitador da
Comarca do Rio das Mortes.
O doutor Domingos Luis da Sylva Comissário da [ileg.] da Santa Cruzada Vigário Colado
da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição das Catas Altas, e visitador nestas minas
pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Antônio de Guadalupe e por mercê
de Deus e da Santa Sé Apostólica Bispo da cidade do Rio de Janeiro, e [ileg.] Diocese e do
Conselho de sua Majestade que Deus guarde [ileg.]. A todos os Reverendos Vigários,
Curas, Coadjuntores, Capelães, Curados e bem assim a todas as mais pessoas assim
eclesiásticas como seculares desta Comarca do Rio das Mortes, saúde e paz para sempre
em JESUS CRISTO nosso Senhor que de todos é verdade, remédio e salvação. Faço saber
que considerando o dito Ilustríssimo Senhor Bispo, que com a visitação Diocesana se
desterra os vícios, erros e abusos, escândalos, e se fazem muitos serviços a Deus Nosso
Senhor em grande bem espiritual e temporal [ileg.], me mandou hora visitar essa Comarca
do Rio das Mortes, para que sendo eu pessoalmente informado, lhe dar a providência que
mais conviesse ao estado presente, e para que se faça como convém ao serviço de Deus, e
bem espiritual dos fiéis, mandei passar o presente Edital pelo qual ordeno a todos os
Reverendos Párocos, Vigários, Curas, Encomendados, e Capelães tenham junto seus
fregueses assim eclesiásticos, como seculares, no tempo que eu chegar a cada uma das
Igrejas, para que possam assistir a procissão de salvação dos defuntos, que logo se há de
110
fazer, antes de ser principiada a devassa, e os Reverendos Sacerdotes da Freguesia,
assistirão com suas [ileg.] e os oficiais da Confraria, que em cada freguesias e Capelas que
estiverem, assistirão com suas opas, com toda a decência debaixo da pena, que me parecer
justa impor, no caso em que não cumpram nem obedeçam a este meu Edital, pelo qual, em
virtude da Santa Obediência e sob pena de excomunhão major ipso facto incurrenda
mando a todas as pessoas, assim eclesiásticos, como seculares, que souberem de pecados
públicos e escandalosos, venham perante mim denunciar em termo de vinte e quatro horas
e para que o faça como convém ao serviço de Deus os admoesto para que a denunciação
que fizerem não seja movida por ódio, vingança ou respeito algum temporal, senão for por
zelo e serviço de Deus nosso Salvador; e debaixo da mesma pena de excomunhão major
ipso facto incurrenda, mando que nenhuma pessoa eclesiástica ou secular de qualquer grau
ou condição que seja intimide ou trate mal de palavra ou obra as testemunhas que vierem
jurar nesta Visitação, antes ou depois que elas vierem jurar; outrossim, mando debaixo da
mesma pena que nenhum Reverendo, Pároco, Vigário, Cura, Capelães, Provedor,
Tesoureiro, Administrador ou Fabriqueiro mostrem paramentos que não forem próprios de
Igrejas, capelas e oratório que forem por mim visitados, para que assim se possa prover
convenientemente do que for necessário; e mando a todos os Reverendos, Vigários, Curas,
Capelães, escrivães do auditório eclesiástico tenham pronto seus cartórios, e testamentos e
róis das pessoas que falecerem nos meses da alternativa eclesiásticas, com testamento ou
sem ele, para de tudo me poder informar no ato da visitação; outrossim serão notificados
todas as pessoas que são obrigadas a dar contas, registrar missas e capelas, como também
as confrarias quaisquer que sejam para que tenham prontos os seus estatutos e ereções e
examinadas e lhes tomar de tudo exata conta, pertencendo ela no ato da visitação e os
Reverendos Párocos, Curas e Capelães mando tenham prontos os róis dos confessados,
livros de batizados, casamentos, de defuntos, e os mais que são obrigados a ter e assim eles
111
Reverendos Párocos e Capelães como todos os mais clérigos das suas freguesias me
apresentaram os seus papéis com pena de suspensão e com o favor de Deus hei de
continuar esta Visita principiando pela freguesia de Itaverava e daí irei seguindo pela
ordem do roteiro que a este edital vai cosido junto, visitando todos os dias com aquela
brevidade que o tempo e a ocasião permitirem, cada um dos Reverendos Párocos e pessoas
acima nomeadas mandarão saber a igreja próxima onde eu estiver o dia e tempo que
chegarei às suas, onde estarão aparelhados com todo o necessário na forma que de direito
são obrigados e cumprirão debaixo da pena de suspensão e lido este meu edital em termo
de um dia o passarão ao Pároco que se seguir conforme a ordem que se aponta e terão cada
um prontas as certidões de como o entregaram ao Pároco a quem tocava, assentando cada
um na certidão o dia e hora em que lhe for entregue, e lido o presente edital até a última
igreja e nela me fará dela entrega o Reverendo Pároco sem vício nem entrelinha alguma; e
para que venha notícias de todas as matérias sobre que hão de testemunhar, cada um dos
Reverendos lerá aos seus fregueses na estação da missa conventual os interrogatórios
seguintes:
1º - se sabem, ou ouviram dizer que alguma pessoa cometeu o gravíssimo crime de heresia,
ou apostasia, tendo, crendo, dizendo, ou fazendo alguma coisa contra a nossa Santa Fé
Católica, em todo, ou em algum artigo dela, ainda que disso não esteja infamado.
2º - se alguma pessoa tem ou lê livros de hereges ou quaisquer outros de fazer sem licença
da Sé Apostólica; [ileg.] das pessoas que para isso a podem dar.
3º - E se sabem, ou ouviram dizer que alguma pessoa dissera alguma blasfêmia contra a
honra de Deus, da Virgem Nossa Senhora ou seus Santos dizendo algumas palavras
injuriosas, ou que não convenham à honra de Deus ou a Seus Santos.
112
4º - Se sabem que alguma pessoa seja feiticeira, faça feitiços, ou use deles para crer bem ou
mal, para cegar, ou deslegir [sic], para saber coisas secretas, ou adivinhar, ou para outro
qualquer feito, envoque, os Demônios ou com ele tenha pacto, expresso, ou tácito ainda
que disso não seja infamado.
5º - Se alguma pessoa adivinha ou benze, ou cura com palavra, ou bênçãos sem licença de
Sua Ilustríssima, ou de seu Provisor, e se alguém que vá buscar crendo que com suas
bênçãos pode haver saúde.
6º - Se algum homem está casado com duas mulheres vivas, ou mulher com dois maridos
ainda que disso não haja fama.
7º - Se algum clérigo de Ordens Sacras, religioso ou religiosa professa estão casados ainda
que não haja fama pública do caso.
8º - Se algum sacerdote cometeu alguma mulher no ato da confissão ou descobriu o sigilo
dela ainda que não esteja disso informada.
9º - Se alguma pessoa cometeu o crime de simonia, vendendo ou comprando benefícios, ou
apresenta renda deles, ou dê [ileg.] receba dinheiro [ileg.] temporal por administrar
sacramentos, ou outra coisa espiritual ou sobre ela faça convenções, ou fatos ilícitos, ou
reprovados.
10º - Se há alguma pessoa que pusesse mãos violentas, em Clérigo ou Religioso ou que na
Igreja e [ileg.] nela ferisse, ou injuriasse, ou espancasse ou por qualquer outra via
cometesse sacrilégio.
11º - Se há alguma pessoa que jurasse falso em juízo ou seja disso infamada ou
acostumada a jurar fora do juízo, juramentos falsos e escandalosos.
12º - Se alguma pessoa dá alcouce em sua casa, consentindo ou endossando que nela se
dêem mulheres a homens, e disso for infamado.
113
13º - Se algum pai ou mãe consente que suas filhas façam mal de si, ou marido de sua
mulher, senhor e seus escravos, e estão disso infamados.
14º - Se alguma pessoa usa de alcovitar mulheres livres ou escravas para homens, e disso
esteja infamado.
15º - Se alguma pessoa cometeu o pecado nefando, ou de bestialidade.
16º - Se alguma pessoa cometeu o crime de incesto, tendo ajustamento com alguma parenta
por consangüinidade, ou afinidade em grau proibido, ou comadre com compadre, ou
padrinho com afilhada, ou madrinha com afilhado, e disso haja fama pública.
17º - Se alguma pessoa eclesiástica ou secular, solteiro ou casado que estejam
amancebados com escândalo, e disso haja fama na freguesia, lugar, roça, aldeia, ou na
maior parte da vizinhança e rua.
18º - Se alguma pessoa eclesiástica ou secular, que tenha em sua casa alguma mulher de
que haja escândalo ou suspeita na vizinhança.
19º - Se há alguns casados que dêem má vida a suas mulheres com escândalo, ou vivam
apartados sem causa justa.
20º - Se há alguma pessoa que seja sazoneira, dando dinheiro, pão, vinho, azeite ou outras
coisas semelhantes emprestado para receberem mais que a sorte principal, ou vendem
mercadorias fiadas por mais do que valem, com o dinheiro na mão do preço rigoroso por
razão da espera; ou as compras por menos do ínfimo coisa considerável por darem dinheiro
de antemão, e haja das ditas fama pública.
21º - Se há algumas pessoas que dêem bestas de aluguel, ou bois, ou vacas, com condição
ou pacto que se morrerem nem por isso deixarão de lhos pagar ao aluguel delas.
22º - Se alguma pessoa ou pessoas estão em ódio com escândalo.
23º - Se alguns estão prometidos de casar e coabitam como se foram recebidos em face de
Igreja.
114
24º - Se alguma pessoa está casada em grau proibido sem legitima dispensação.
25º - Se há alguma pessoa que seja acostumada a comer carne em dias proibidos sem
legítima causa, ou licença, ou seja acostumado a não ouvir missa ou jejuar nos dias de
obrigação seja disso infamado.
26º - Se há alguma pessoa que esteja obrigada a mandar dizer missas de Capela, ou a
cumprir testamentos, e o não faz, e se os Sacerdotes em o receber das missas excedem o
número de cem como lhes está ordenado.
27º - Se alguma pessoa morreu por culpa do Pároco sem sacramentos, ainda que não haja
fama disso.
28º - Se o Pároco é negligente na administração dos Sacramentos, ou pelos administrar
pede dinheiro, ou coisa que o valha e ainda que seja acostumado não quer administrar sem
primeiro lhe darem, e ainda que disso não esteja infamado, ou se não ensina a Doutrina
Cristã como está ordenado pelas Constituições ou se em alguma coisa deixa de cumprir as
obrigações e seus ofícios ou se falta em observar a Pastoral de sua Ilustríssima.
29º - Se o Pároco é remisso e negligente em ir encomendar e enterrar os defuntos ou não
quer fazer sem dinheiro lhe darem alguma coisa ainda que não haja fama.
30º - Se o Pároco injuria os fregueses ou os trata mal na estação ou outra coisa deixa de
fazer seu ofício como deve ainda que não haja fama.
31º - Se algum clérigo é tratante rendeiro, ou negociador, continua as tabernas, é
acostumado a trazer armas pela cidade, Vila ou lugar, onde andar em hábito de leigo ou
andar de noite, se é taful ou tassul, brigoso, revoltoso, não reza as honras Canônicas e se
não traz hábito, e tonsura decente e de qualquer das duas coisas esteja infamado.
32º - Se algum clérigo se serve de mulher suspeita ou qualquer pessoa Eclesiástica ou
secular tem das portas adentro alguma pessoa de que haja escândalo, ou os eclesiásticos
filhos em casa que ouvissem [sic] depois de clérigos.
115
33º - Se há alguém que se deixe andar excomungado por espaço de um ano sem pedir o
beneficio da absolviçãol.
34º - Se há alguma pessoa que não se confessasse e comungasse na quaresma passada, ou
seja acostumada a trabalhar nos domingos e dias santos.
35º - Se há algumas pessoas que não paguem as Igrejas ou aos Ministros delas, os dízimos,
premissas e benesses inteiramente como são obrigados.
36º - Se há algumas pessoas que dêem ou emprestam ou por outra qualquer via aliem os
bens da Igreja sem as solenidades que o direito rogar, e licença de sua Ilustríssima, ou se
algumas pessoas que tragam usurpados os ditos bens sem o título que por direito se requer.
37º - Se há alguma casa em que se jogue com escândalo ou se dê tavulagens.
38º - Se sabem ou ouviram dizer que alguma pessoa intimidasse testemunhas que viessem
ou houvessem de vir a visitação, para que não dissessem a verdade ou depois de
testemunharem as tratassem mal com palavras ou obras.
39º - Se sabem que algum Oficial de justiça eclesiástica, Provisor, Vigário Geral,
Visitador, Vigário de Vara, Promotor, Escrivãos, Meirinhos, Notários, Solicitadores e
Porteiro cometeram erros ou delitos em seus ofícios, levando mais do que se lhes deve,
tomando peitas descobrindo o segredo da justiça, ou por outra qualquer via.
40º - e finalmente se sabem de qualquer pecado público e escandaloso nos venham dizer
dado neste Arraial de Catas Altas, [ileg.] meu sinal e selo de sua Ilustríssima, ou sem ele
excausa aos oito dias do mês de julho de mil setecentos e trinta e três anos, eu o Padre
Francisco Alures Passos Secretário da Visita que os escrevi = ao sinal = Domingos Luiz da
Silva = V.S.S.EXC. = Silva, não se continha mais no dito Edital que bem e fielmente
transladei do próprio a que me reporto e que depois de transladado conferi eu Padre
Francisco Alures Passos Secretário da Visita que escrevi, e assinei aos doze dias do mês de
julho de mil setecentos e trinta e três anos.
116
Francisco Alures Passos.
Fonte: AEAM, Livro de Devassa, 1733, fls, 2-7. Apud: Luciano R. De Almeida
Figueiredo. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997, p, 185-190.
117
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