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FELIPE BARCAROLLO
ESTADO, SERVIÇOS PÚBLICOS E TRIBUTAÇÃO:
UMA ABORDAGEM A PARTIR DOS CUSTOS DOS DIREITOS
SOCIAIS E DO DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS
São Leopoldo
2006
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FELIPE BARCAROLLO
ESTADO, SERVIÇOS PÚBLICOS E TRIBUTAÇÃO:
UMA ABORDAGEM A PARTIR DOS CUSTOS DOS DIREITOS
SOCIAIS E DO DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS
Dissertação Final apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito no Programa de Pós-
Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos.
Orientador: Prof. Dr. José Luis Bolzan de Morais
São Leopoldo
2006
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TERMO DE APROVAÇÃO
Este panorama, porém, vai alterar-se significativamente à
medida que os direitos fundamentais deixam de ser apenas os
clássicos direitos de liberdade (camada ou geração liberal) e
passam a integrar também os direitos de participação política
(camada ou geração democrática), os direitos (a prestações)
sociais (camada ou geração social) e os direitos “ecológicos”
(camada ou geração “ecológica”). Ora, todos esses direitos, se
por um lado, como direitos que são, exprimem exigências do
indivíduo face ao estado, assim alargando e densificando a
esfera jurídica fundamental do cidadão, por outro lado, também
limitam de algum modo essa mesma esfera através da
convocação de deveres que lhes andam associados ou
coligados.
José Casalta Nabais
RESUMO
Os serviços públicos, enquanto instrumentos para a realização de políticas
públicas, desempenham papel de relevo no Estado Democrático de Direito
insculpido na Constituição Federal brasileira de 1988, sobretudo pelas
expressas disposições concernentes aos direitos sociais. No contexto da
desestatização, a Reforma do Estado representa a migração do modelo
burocrático ao gerencial de Administração Pública. Neste ínterim, a execução
de parcela dos serviços públicos incumbe à iniciativa privada, sob a chancela e
outorga do Estado. Na atual conjuntura histórica, agravada pela incapacidade
de a Administração Pública responder às crescentes demandas sociais, os
direitos são sobrepujados aos deveres fundamentais. No entanto, esquece-se
que os custos para a implementação dos direitos fundamentais sociais
requerem financiamento público, através da espécie tributária imposto, sob o
enfoque do dever fundamental de pagar impostos. O imposto, no contexto do
Estado Democrático de Direito, representa requisito intransponível, conditio
sine qua non para a implementação, efetividade e concretização das políticas
públicas, instrumentalizadas através dos serviços públicos.
Palavras-chave: serviços públicos - políticas públicas - dever fundamental -
direitos fundamentais sociais - Estado de impostos - Estado de taxas.
ABSTRACT
Public services, as instruments to implement public policies, play a major
role in the Democratic Rule of Law written in the Federal Constitution of Brazil,
of 1988, above all through the specific provisions concerning social rights. In the
context of privatization, State Reform represents the migration from the
bureaucratic to the managerial model of Public Administration. During this
period, the implementation of part of the public services becomes the task of
private enterprise under the signature and concession of the State. In the
current historical situation, worsened by the Public Administration’s lack of
capacity to respond to growing social demands, rights are placed above
fundamental duties. However, it is forgotten that the costs of implementing
fundamental social rights require public funding, through taxation, from the
perspective of the fundamental duty to pay taxes. Tax, in the context of the
Democratic Rule of Law, is an insurmountable requirement, conditio sine qua
non, for implementation, effective use and execution of public policies
instrumentalized through public services.
Key-words: public services - public policies - fundamental social rights -
fundamental duty - tax State - rates State.
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS.........................................................8
2 OS SERVIÇOS PÚBLICOS NA EVOLUÇÃO DO ESTADO .......15
2.1 Do Estado Liberal ao Estado Social: a contextualização dos
serviços públicos .......................................................................................19
2.2 O nascimento do conceito de serviços públicos no direito
francês.........................................................................................................27
2.3 O ideário dos serviços públicos à luz da dogmática jurídica e
do texto constitucional brasileiro de 1988 ...............................................35
2.4 Crise ou evolução da noção de serviços públicos?..........................49
3 A REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL ....62
3.1 A mudança de estratégia de atuação do Estado: a Administra-
ção Pública Gerencial ................................................................................67
3.2 A outorga dos serviços públicos à iniciativa privada .......................76
3.3 (Algumas) formas de outorga dos serviços públicos à iniciativa
privada.........................................................................................................83
7
4 O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS COMO
CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A IMPLEMENTAÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS............................................................98
4.1 A implementação dos direitos sociais no contexto do mínimo
existencial: o perfil liberal-individualista do direito tributário pátrio...101
4.2 O Estado Democrático de Direito e os custos dos direitos
sociais: compatibilizando a prestação de serviços públicos com o
dever fundamental de pagar impostos...................................................118
4.3 Estado de impostos ou Estado de taxas?........................................138
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................151
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................160
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os serviços públicos desempenham papel de fundamental relevo no
contexto do Estado Democrático de Direito, porquanto consistem em meios ou
instrumentos para a viabilização dos direitos sociais, os quais devem ser
implementados para a concretização do modelo de Estado preconizado pela
Carta Constitucional brasileira de 1988.
A promulgação da atual Carta Constitucional trouxe novos desafios à
Administração Pública, sobretudo pela vasta previsão de direitos sociais, se
comparado ao Texto Constitucional de 1969, vigente à época do regime
autoritário brasileiro.
Do Estado Liberal ao Social, notáveis e significativas foram as mudanças
em prol do reconhecimento dos direitos sociais, através da previsão, a título
exemplificativo, dos direitos à saúde, à educação, à segurança, afinal, à
dignidade da pessoa humana, consoante preconiza o artigo 1°, III, da Carta
Cidadã de 1988.
9
No entanto, com o advento da nova fase da globalização, mormente pela
competitividade internacional e pela volatilidade dos mercados, ocorrida na
década de 90 do século XX, notáveis foram as mudanças de perspectiva de
atuação do Estado, que migrou da Administração Pública Burocrática à
Gerencial, sob o fundamento de reordenar sua posição estratégica,
transferindo à iniciativa privada atividades então executadas pelo Poder
Público, para, afinal, definir a ação estatal como adstrita a determinadas
tarefas.
Neste contexto de desestatização, em que os serviços públicos, dado o seu
caráter de não-exclusividade, foram outorgados à iniciativa privada, uma série
de questionamentos são trazidos à baila, a exemplo do papel do tributo na
consecução de políticas públicas, diante da notória dificuldade de o Estado
fazer frente às demandas sociais crescentes.
A concretização dos direitos sociais, através das políticas públicas, torna-
se possível através dos meios ou instrumentos de que disponibiliza o Estado:
os serviços públicos. Destarte, para a implementação de políticas públicas, que
garantam aos cidadãos os direitos sociais elencados na Carta Constitucional
de 1988, necessário se faz o financiamento estatal, através do papel/função do
imposto no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro.
Diante disto, o problema que busca enfrentar o presente trabalho concerne
à crescente dificuldade financeira de o Estado Democrático de Direito
10
concretizar os direitos sociais através de políticas públicas, instrumentalizadas
pelos serviços públicos, sobretudo pela dimensão que o legislador
constitucional outorgou aos direitos sociais inscritos na Carta Cidadã de 1988 e
pela “invisibilidade” no tocante aos deveres fundamentais, dentre os quais
destaca-se o dever fundamental de pagar impostos.
Destarte, o objetivo central da presente produção intelectual concentra-se,
pois, no dever fundamental de pagar impostos como requisito intransponível
para a implementação de políticas públicas, com vistas à concretização da
justiça e da solidariedade sociais.
Para tanto, tendo em vista o relevante papel que os serviços públicos,
enquanto instrumentos para a concretização das políticas públicas, exercem no
Estado Democrático de Direito, o capítulo 2 versa sobre os aspectos gerais
concernentes aos serviços públicos, contextualizando-os na evolução do
Estado.
Após breve escorço introdutório acerca da evolução dos serviços públicos,
realiza-se estudo sobre o seu nascimento no direito francês, destacando-se a
posição do instituto à luz da doutrina de Léon Duguit, considerado por
expressiva parcela da doutrina como o fundador da Escola do Serviço Público.
Investiga-se também o ideário dos serviços públicos à luz do Texto
Constitucional brasileiro de 1988, bem como da doutrina, nacional e
11
estrangeira, que se ocupa do tema. Cumpre mencionar que não é uníssono o
entendimento acerca dos serviços públicos, sobretudo pelas mudanças de
perspectiva que o instituto sofreu quando da migração do perfil burocrático de
Estado à Administração Pública Gerencial, em que a concepção subjetiva,
principalmente, sofreu transformação. Tal estado de coisas traz um
questionamento à doutrina: verifica-se, neste contexto, crise ou evolução da
noção de serviços públicos?
No terceiro capítulo, busca-se cotejar a mudança de estratégia de atuação
do Estado – do modelo burocrático ao gerencial, sob a égide da Reforma do
Estado, motivada pela globalização e pela emergência dos blocos econômicos
sobre o poder soberano dos estados.
Esta mudança de perfil do Estado veio a projetar a desestatização das
atividades até então desempenhadas pelo Poder Público, ou seja, a outorga
dos serviços não-exclusivos, que não requerem o exercício do poder
extroverso
1
do Estado, à iniciativa privada, a quem incumbe o desenvolvimento
das atividades empresariais.
Dada a nova forma de atuação do Estado, centrada no viés gerencial, com
vistas a reordenar a posição estratégica da Administração Pública e concentrar
1
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo
Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin (Orgs.). Reforma do estado e
administração pública gerencial. 6.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 28.
Para o autor, o poder extroverso significa “o poder de impor leis e impostos à sociedade civil,
ou seja, a um grupo organizado de cidadãos, que não é parte integrante direta do Estado, mas
que, simultaneamente, é objeto de poder do Estado e fonte da legitimidade do governo.”
12
os esforços em certas atividades (fundamentais às prioridades nacionais, na
esteira do artigo 1°, V, da Lei n. 9.491/97) é que tem início a outorga dos
serviços públicos ao setor privado, sob a égide de legislação específica, com
vistas ao gerenciamento, à fiscalização e à regulação dos serviços públicos
pelo Estado. Outrossim, destaca-se que, com o advento da Lei n. 11.079, de 30
de dezembro de 2004, foram criadas as Parcerias Público-Privadas (PPP), uma
nova forma de contratação entre o Poder Público e o setor privado.
Por final, o capítulo 4 culmina por apresentar a espécie tributária imposto
como condição de possibilidade ou fundamento suficiente para o
enfrentamento das demandas sociais, diante das quais o Estado encontra-se
paulatinamente incapacitado de oferecer resposta a contento à população.
No transcurso do capítulo 4, procurar-se-á investigar a função do imposto,
enquanto espécie tributária, no contexto do Estado Democrático de Direito
brasileiro, bem como os custos dos direitos sociais, mediante a defesa de um
Estado de impostos.
Busca-se afirmar o papel fundamental do imposto enquanto instrumento
indispensável para a concretização do Estado Democrático de Direito,
sobretudo pela necessidade de financiamento das políticas públicas
viabilizadoras dos direitos fundamentais sociais em um contexto de amplas e
profundas desigualdades, como ocorre no Brasil.
13
Sustenta-se, ainda, o dever fundamental de pagar impostos – no contexto
de um Estado de impostos – dada a sua finalidade extrafiscal e ubíqua – como
mecanismo de (re)distribuição de rendas, que prima pela capacidade
contributiva e possibilita a concretização da justiça e solidariedade sociais.
O enfrentamento da temática que permeia a presente Dissertação –
Estado, Serviços Públicos e Tributação – adota o método hermenêutico, ou
seja, busca-se ventilar aspectos pontuais de Direito Público à luz do caráter
extrafiscal e ubíquo do imposto, tomando-se como estratégia a reconstrução do
saber tradicional aplicado à espécie, marcando-o pelo caráter transformador e
compromissário do Estado Democrático de Direito brasileiro.
O trabalho encontra-se vinculado à linha de pesquisa Hermenêutica,
Constituição e Concretização de Direitos do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UNISINOS, bem como afetado às atividades de pesquisa do
Professor Doutor José Luis Bolzan de Morais, orientador da presente
dissertação, no tocante à disciplina de Tributação e Políticas Públicas, por este
ministrada.
Salienta-se que o presente estudo não tem a pretensão de esgotar assunto
de tamanha envergadura – Estado, Serviços Públicos e Tributação – porquanto
trata-se de temática deveras complexa, que necessita ser permanentemente
estudada, no afã de construir uma sociedade justa e solidária, à luz dos
ditames constitucionais.
14
É nesta perspectiva que o trabalho toma corpo, no sentido de perquirir o
papel e a evolução que os serviços públicos, enquanto instrumentos para a
concretização de políticas públicas, exercem no contexto do Estado
Democrático de Direito, ressaltando-se a fundamental importância exercida
pelo imposto, enquanto espécie tributária, na implementação dos direitos
fundamentais sociais inscritos na Carta Cidadã brasileira de 1988.
2 OS SERVIÇOS PÚBLICOS NA EVOLUÇÃO DO ESTADO
A pedra de toque do Direito Administrativo contemporâneo, em especial no
tocante à noção de serviços públicos, diz respeito à paulatina investida que a
iniciativa privada vem realizando em seara que, outrora, era de domínio do
Estado. Nesta ordem de idéias, verifica-se a ampla mobilidade e o grande
espaço que o fenômeno da desestatização vem ocupando na atual quadra
histórica, transferindo-se aos particulares atividades então desempenhadas,
em caráter preponderante, pelo Poder Público.
A grande revolução ocorrida na seara dos serviços públicos advém da
Reforma do Estado, mormente pela Administração Pública Gerencial
engendrada no Brasil a partir dos anos 90 do século XX, também conhecida
como a “nova administração pública”.
2
Corolário lógico da globalização,
3
2
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin (Orgs.). Reforma do estado e
administração pública gerencial. 6.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 7.
3
VILA-CHÃ, João J. A globalização: aspectos teóricos e implicações práticas. Revista
Portuguesa de Filosofia, Braga, vol. 59, jan./mar. 2003, p. 6. Neste ensaio, o autor tece as
seguintes considerações sobre os efeitos da globalização na sociedade: “No seu uso mais
substantivo, o termo globalização refere-se a processos e a práticas concretas, historicamente
constituídas, determinantes das circunstâncias globais em que nos encontramos. No seu uso
puramente conceptual, o termo globalização destina-se essencialmente a servir de instrumento
descritivo dos principais aspectos organizativos referentes ao mundo na sua globalidade, ou
seja, das principais linhas de estruturação do mundo em sua configuração histórica.” Mais
adiante, o autor, na página 14, leciona: “Que a globalização tem uma dimensão eminentemente
16
inequívocos são os ajustes nas estruturas do Estado, decorrentes da
desestatização, em que “todo o bloco soviético e grande parte do mundo em
desenvolvimento são influenciados por pressões para a estabilidade de
grandes macroeconomias e redução do envolvimento direto do Estado na
economia”.
4
Cumpre sinalar-se que o modelo de Estado no Brasil, na esteira de Luís
Roberto Barroso, “chega à pós-modernidade sem ter conseguindo ser nem
liberal nem moderno”.
5
Já Tércio Sampaio Ferraz Junior destaca que o modelo
cultural torna-se particularmente óbvio se olharmos para a enorme quantidade de pessoas que
hoje no mundo se podem considerar como consumidores de bens culturais exportados, por
exemplo, pelos Estados Unidos da América, sobretudo no que diz respeito a materiais
produzidos pela indústria do Cinema e da TV. Ou ainda, veja-se a enorme e quase
incompreensível influência que os meios de comunicação social exercem sobre o modo como
as pessoas se comportam, ou seja, nos seus modos de estar-no-mundo; e que dizer do efeito
que essa importação de cultura tem no que se refere aos valores pelos quais as pessoas,
consciente ou inconscientemente, regem ou acabam por reger, as suas vidas?”
4
DEZALAY, Yves; TRUBEK, David M.. A reestruturação global e o direito: a
internacionalização dos campos jurídicos e a criação de espaços transnacionais. In: FARIA,
José Eduardo (Org.). Direito e globalização econômica: implicações e perspectivas. São Paulo:
Malheiros, 1998, p. 30.
5
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
160-161. No ensaio em relevo, o autor realiza breve escorço histórico do Estado – do perfil
liberal ou mínimo à desestatização, destacando, ao final, que o Estado Brasileiro chega à pós-
modernidade sem ter conseguido ser nem liberal nem moderno, in litteris: “O Estado
atravessou, ao longo do século que vem de se encerrar, três fases diversas e razoavelmente
bem definidas. A primeira delas, identificada como pré-modernidade ou Estado liberal, exibe
um Estado de funções reduzidas, confinadas à segurança, justiça e serviços essenciais. É o
Estado da virada do século XIX para o XX. Nele vivia-se a afirmação, ao lado dos direitos de
participação política, dos direitos individuais, cujo objeto precípuo era o de traçar uma esfera de
proteção das pessoas em face do Poder Público. Estes direitos, em sua expressão econômica
mais nítida, traduziam-se na liberdade de contrato, na propriedade privada e na livre iniciativa.
Na segunda fase, referida como modernidade ou Estado Social (welfare state), iniciada na
segunda década do século que se encerrou, o Estado assume diretamente alguns papéis
econômicos, tanto como condutor do desenvolvimento como outros de cunho distributivista,
destinados a atenuar certas distorções do mercado e a amparar os contingentes que ficavam à
margem do progresso econômico. Novos e importantes conceitos são introduzidos, como os de
função social da propriedade e da empresa, assim como se consolidam os chamados direitos
sociais, tendo por objeto o emprego, as condições de trabalho e certas garantias aos
trabalhadores. A quadra final do século XX corresponde à terceira e última fase, a pós-
modernidade, que encontra o Estado sob crítica cerrada, densamente identificado com a idéia
17
de Estado formatado pela Constituição Federal brasileira de 1988 encontra-se
impregnado por uma perspectiva de justiça social.
6
Neste diapasão, porquanto o Direito está intimamente atrelado à forma de
Estado em determinado contexto histórico-temporal, inolvidável que os serviços
públicos, enquanto instrumentos para a concretização de políticas públicas,
sofre(ra)m sucessivas transformações no curso da história.
Assim é que a noção de serviço público possui maleabilidade ao sabor das
circunstâncias históricas, através das contingências sociais, políticas e
econômicas que permeiam a sociedade, mormente pela mudança de papéis do
Estado, tendo em vista a sua migração do modelo liberal à perspectiva social.
Por isto é que nenhuma noção ou intento de conceituação de serviço público
terá caráter absoluto, pois todas são genéricas, descritivas e tendenciosas.
7
de ineficiência, desperdício de recursos, morosidade, burocracia e corrupção. Mesmo junto a
setores que o vislumbravam outrora como protagonista do processo econômico, político e
social, o Estado perdeu o charme redentor, passando-se a encarar com ceticismo o seu
potencial como instrumento de progresso e de transformação. O discurso deste novo tempo é o
da desregulamentação, da privatização e das organizações não-governamentais. No plano da
cidadania, desenvolvem-se os direitos ditos difusos, caracterizados pela pluralidade
indeterminada de seus titulares e pela indivisibilidade de seu objeto. Neles se inclui a proteção
ao meio ambiente, ao consumidor e aos bens e valores históricos, artísticos e paisagísticos.
Não se deve encobrir, artificialmente, a circunstância de que o Brasil chega à pós-modernidade
sem ter conseguido ser nem liberal nem moderno. De fato, no período liberal, jamais nos
livramos da onipresença do Estado. A sociedade brasileira, historicamente, sempre gravitou em
torno do oficialismo.”
6
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Notas sobre contribuições sociais e solidariedade no
contexto do estado democrático de direito. In: GODOI, Marciano Seabra de; GRECO, Marco
Aurélio (Coord.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 220-221.
Assevera o autor: “Consagrando valores-fim, a Ordem Social, na CF/88, visa à justiça social.
Esta expressão permite-nos delinear o público e o privado no espaço da sociabilidade.
Entendemos por espaço da sociabilidade aquela esfera híbrida, na qual os interesses privados
assumem importância pública. Trata-se de uma instituição da era moderna, cuja raiz primordial,
a unicidade da humanidade, o lugar em que o processo vital comum se organiza
publicamente.”
7
MALJAR, Daniel Edgardo. Intervención del estado en la prestación de servicios públicos.
Buenos Aires: Editorial Hammurabi S.R.L., 1998, p. 18.
18
Cumpre salientar que a intensidade na prestação dos serviços públicos
sofreu notável acréscimo quando o Estado migrou do modelo liberal ao social,
momento em que o Poder Público deu primazia à implementação de políticas
públicas, conforme leciona Manuel García-Pelayo:
El concepto de Welfare State se refiere capitalmente a una
dimensión de la política estatal, es decir, a las finalidades de
bienestar social; es un concepto mensurable en función de la
distribución de las cifras del presupuesto destinadas a los
servicios sociales y de otros índices, y los problemas que
plantea, tales como sus costos, sus posibles contradicciones y
su capacidad de reproducción, pueden también ser medidos
cuantitativamente. En cambio, la denominación y el concepto
de Estado social incluyen no sólo los aspectos del bienestar,
aunque éstos sean uno de sus componentes capitales, sino
también los problemas generales del sistema estatal de nuestro
tiempo, que en parte pueden ser medidos y en parte
simplemente entendidos. En una palabra, el Welfare State se
refiere a un aspecto de la acción del Estado, no exclusiva de
nuestro tempo – puesto que el Estado de la época del
absolutismo tardío fue también calificado como Estado de
bienestar-, mientras que el Estado social se refiere a los
aspectos totales de una configuración estatal típica de nuestra
época.
8
A importância dos serviços públicos é tão relevante que a doutrina afirma
que o instituto permeia todo o Direito Público, formatando-se a Administração
Pública pelo conjunto de serviços públicos à disposição dos cidadãos. Para
Antonio Martínez Marin, os serviços públicos legitimam e fundamentam o
governante em suas ações, porquanto todas as regras do Direito Público têm
por fundamento ou justificativa a noção de serviço público, in verbis:
8
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 2.ed. Madrid:
Alianza Editorial, 1996, p. 14.
19
Y no sólo es Gaston Jèze quien reconoce al servicio público
como piedra angular del Derecho público y del administrativo
de modo especial. Léon Duguit lo repite de nuevo: <<La noción
de servicio público domina todo el Derecho público, ya se trate
de funciones, de órganos o de cosas>>. Es la manifestación
coherente y obvia del genio bordelés, para quien el Estado –
pura abstracción – no debía ser sino <<una cooperación de
servicios públicos organizados y controlados por los
gobernantes>>, y dado que el Derecho público es el que regula
al Estado, la conclusión también sólo podía ser la referida: si el
Estado debe ser un conjunto de servicios públicos, el Derecho
de aquél no es otro que el de éstos.
9
Destarte, pela importância e evolução que a noção de serviços públicos
tem sofrido desde o seu surgimento, necessário se faz traçar breve escorço
sobre a trajetória do instituto, considerado como a pedra angular do Direito
Administrativo por Gaston Jèze.
10
Antes de se adentrar na temática dos
serviços públicos na França, mister se faz breve contextualização do evoluir do
instituto na história e no Estado.
2.1 Do Estado Liberal ao Estado Social: a contextualização dos serviços
públicos
Destaca Gilberto Bercovici que a migração do Estado Liberal ao Social é
paulatina, ou seja, deve-se às sucessivas mutações sofridas pelas políticas
liberais no curso da história.
11
Nesta ordem de idéias, o Direito também sofreu
9
MARÍN, Antonio Martínez. El buen funcionamiento de los servicios públicos. Madrid: Tecnos,
1990, p. 23-25.
10
JÈZE, Gaston. Principios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma,
1946, p. 65.
11
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max
Limonad, 2003, p. 50.
20
modificações, anunciando a implementação das políticas públicas do Estado,
no escopo de reduzir as desigualdades sociais e regionais, o que se encontra
assegurado na Carta Constitucional brasileira de 1988.
A compreensão “protoliberal de estado mínimo, atuando apenas para
garantir a paz e a segurança”,
12
implicou em limitar os papéis do Estado
Liberal, garantindo-se, exclusivamente, a defesa da esfera individual. Com isto,
o Liberalismo tem como pressuposto a idéia de limites da ação estatal frente à
liberdade de iniciativa do indivíduo.
O Estado Social, ao revés do Estado Mínimo ou État Gendarme, possui
como norte a idéia de justiça social, fruto da alteração significativa ocorrida no
seio do Estado quando da migração do modelo liberal ao social, o que veio a
desencadear a necessidade em perseguir políticas públicas em prol da
sociedade.
No Estado Liberal, o papel da Administração Pública cingia-se a garantir ao
cidadão a mantença da ordem e da segurança sociais. O valor fundante nesta
fase residia na liberdade de ação individual. Neste sentido, o Liberalismo
possui como diretrizes “a idéia dos direitos econômicos e de propriedade,
individualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo. Seus
12
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do
estado. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 50.
21
pilares têm sido a propriedade privada e uma economia de mercado livre de
controles estatais”.
13
A distância existente entre Estado e sociedade, típica do Liberalismo,
concebia dois sistemas estanques e autônomos, o que compreende uma
inibição do Estado frente aos problemas econômicos e sociais. Eis as
considerações que Manuel García-Pelayo tece acerca da relação Estado e
sociedade:
El Estado era concebido como una organización racional
orientada hacia ciertos objetivos y valores y dotada de
estructura vertical o jerárquica, es decir, construida
primordialmente bajo relaciones de supra y subordinación. Tal
racionalidad se expresaba capitalmente en leyes abstractas (en
la medida de lo posible sistematizadas en códigos), en la
división de poderes como recurso racional para la garantía de
la liberdad y para la diversificación e integración del trabajo
estatal, y en una organización burocrática de la administración.
Sus objetivos y valores eran la garantía de la libertad, de la
convivencia pacífica, de la seguridad y de la propiedad, y la
ejecución de los servicios públicos, fuera directamente, fuera
en régimen de concesión.
La sociedad, en cambio, era considerada como una
ordenación, es decir, como un orden espontáneo dotado de
racionalidad, pero no de una racionalidad previamente
proyectada, sino de una racionalidad inmanente, que se puede
constatar y comprender – puesto que la razón humana
subjetiva es isomórfica con la constitución de la razón objetiva,
del logos de las cosas -, una racionalidad expresada en leyes
económicas y de otra índole, más poderosas que cualquier ley
jurídica, y una racionalidad, en fin, no de estructura vertical o
jerárquica, sino horizontal y sustentada capitalmente sobre las
relaciones competitivas, a las que se subordinaban las otras
clases o tipos de relaciones.[...] Lo importante para nosotros es
que, bajo tales supuestos, el Estado, organización artificial, ni
debía, ni a la larga podía, tratar de modificar el orden social
natural, sino que su función habría de limitarse a asegurar las
condiciones ambientales mínimas para su funcionamiento
13
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do
estado. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 55.
22
espontáneo y, todo lo más, a intervenir transitoriamente para
eliminar algún bloqueo a la operacionalización del orden
autorregulado de la sociedad. De esto modo, el Estado y la
sociedad eran imaginados como dos sistemas distintos, com
regulaciones autónomas y con unas mínimas relaciones entre
sí.
14
Denota-se que o papel exercido pelo Estado Liberal era negativo, ou seja,
o perfil minimalista do Poder Público prestava-se a atuar na esfera da
segurança individual. Do contrário, estar-se-ia ferindo a liberdade, o que
tolheria o pleno desenvolvimento do homem, impedindo-o de gozar das mais
altas liberdades, típicas do Liberalismo.
15
O Estado Liberal de Direito, também denominado Estado Não-
Intervencionista, Estado Burguês, Estado Guarda-Noturno, Estado Mínimo ou
État Gendarme, consistia em modelo que protegia o mínimo existencial, ou
seja, imunizava-se, da incidência tributária, a parcela mínima para garantir a
dignidade humana, muito embora o Estado estivesse despreocupado como a
14
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 2.ed. Madrid:
Alianza Editorial, 1996, p. 21-22.
15
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. vol.
II. 5.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, p. 702-703. O Liberalismo, na esteira de
Bobbio, Matteucci e Pasquino, é assim descrito: “O Liberalismo ocidental apresenta-se
unicamente como metapolítico e pré-partidário (B. Croce), uma vez que se tornou patrimônio de
outros movimentos políticos e que ninguém mais coloca em discussão as estruturas do Estado
liberal-democrático: não pode deixar de apelar para o ideal do império da lei e da anarquia dos
espíritos (Einaudi). Todavia, viu-se na necessidade de oferecer uma resposta à questão social,
isto é, ao desafio do socialismo, quando este o acusava de ser defensor de liberdades
meramente ‘formais’, enquanto a grande maioria da população não usufruía de liberdades
‘substanciais’, lógico pressuposto ou condição essencial para as primeiras. O Liberalismo lutara
fundamentalmente pelas liberdades de (isto é, de religião, de palavra, de imprensa, de reunião,
de associação, de participação no poder político, de iniciativa econômica para o indivíduo, e
conseqüentemente reivindicara a não interferência por parte do Estado e a garantia para estes
direitos individuais, civis e políticos. O enfoque atual é orientado para as liberdades do ou da
(isto é, da necessidade, do medo, da ignorância), e para atingir estas finalidades implícitas na
lógica universalista do Liberalismo renunciou-se ao dogma da não-intervenção do Estado na
vida econômica e social.”
23
implementação de políticas públicas.
16
A transição ocorrida do Estado Liberal ao Social deve-se ao fato de o
Estado deixar de ser apenas o poder soberano formal para ser o principal
responsável pelo direito à vida, concretizado mediante a implementação dos
direitos sociais. Assim destaca Gilberto Bercovici:
Com o advento do Estado Social, governar passou a não ser
mais a gerência de fatos conjunturais, mas também, e
sobretudo, o planejamento do futuro, com o estabelecimento de
políticas a médio e longo prazo. Com o Estado Social, o
government by policies vai além do mero government by law do
liberalismo. A execução de políticas públicas, tarefa primordial
do Estado social, com a conseqüente exigência de
racionalização técnica para a consecução dessas mesmas
políticas, acaba por se revelar muitas vezes incompatível com
as instituições clássicas do Estado Liberal.
17
16
TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional,
internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 22-23. Ricardo Lobo Torres
assim destaca os papéis do Estado Liberal: “De feito, proíbe-se a incidência de impostos sobre
a parcela mínima necessária à existência humana digna, que, estando aquém da capacidade
econômica e constituindo reserva de liberdade, limita o poder fiscal do Estado. A imunidade
aos impostos, que já começara a ser defendida pelos cameralistas, adquire maior vigor com a
doutrina liberal e a teoria da tributação progressiva: Hume: ‘taxes be laid on gradually and affect
not the necessities of life’; Montesquieu: ‘on jugea que chacun avoit un nécessaire physique
égal; que ce nécessaire psysique ne devoit point être taxe’. A imunidade do mínimo existencial
protege também contra a incidência de taxas remuneratórias de prestações estatais positivas: a
Constituição brasileira de 1824 garantia os ‘socorros públicos’ (art. 179, 31) e dizia que ‘a
instrução primária é gratuita a todos os cidadãos’ (art. 179, 32); a Constituição portuguesa de
1826 também assegurava os socorros públicos (art. 29) e a instrução primária gratuita (art. 30),
da mesma forma que a francesa de 1791. Revela acentuar que a assistência social gratuita aos
pobres, apoiada no mecanismo da imunidade de taxa, foi objeto de longa elaboração legislativa
e doutrinária: na Inglaterra sobressaiu o Poor Law Amendment Act (1834), com extensa
regulamentação no sentido de distinguir entre indigência e pobreza, ao fito de limitar a
obrigatoriedade do auxílio estatal aos indigentes, que eram os incapazes de obter meios para a
sobrevivência, ao contrário dos pobres, que poderiam conseguir recursos pelo trabalho. Mas
nessa fase inicial do capitalismo e do liberalismo era muito rígido o tratamento dado à pobreza,
especialmente aos trabalhadores assalariados, cujos problemas deveriam obter solução de
mercado e que não mais mereciam o elogio dos filósofos, agora deslocado para a classe rica.”
17
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max
Limonad, 2003, p. 51.
24
Dada a mutação ocorrida na passagem do Estado Liberal ao Social,
modificaram-se profundamente as perspectivas e papéis do Estado. De mero
mantenedor da paz e da segurança dos indivíduos, nítida filosofia do Estado
mínimo, defensor das liberdades negativas, outorgando ampla liberdade de
iniciativa ao cidadão, percebeu-se, paulatinamente, movimento migratório do
Estado rumo à assunção de tarefas públicas, o que significa a mudança de
perfil do Estado, que passou a primar pela justiça social no enfrentamento da
então nomeada “questão social”.
A partir de então, o Estado Social passa a disponibilizar aos cidadãos uma
série de serviços públicos, em nítida expansão de sua atividade prestacional
positiva. Destarte, inaugura-se a justiça social no âmbito do Estado, o que
significa a instauração das liberdades positivas, típicas do Estado do Bem-
Estar Social ou Welfare State. A mudança havida no projeto do Estado Mínimo
significa “um novo espírito de ajuda, cooperação e serviços mútuos”
18
à
disposição da coletividade.
O papel desempenhado pelo Estado Social traz uma nova categoria de
direitos aos indivíduos – direitos sociais –, mormente pela profunda revisão do
État Gendarme ou do absenteísmo estatal. Neste sentido, Rogério Gesta Leal
afirma que a sociedade hodierna pugna por um maior empenho do Poder
Público na prestação de políticas públicas, in litteris:
18
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do
estado. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 60.
25
A Sociedade Industrial que se forma, enseja demandas sociais
diferenciadas – eminentemente urbanas –, bem como a
realização de grandes obras e serviços públicos, fazendo com
que o Estado se afigure como um grande fornecedor de bens
materiais e assistenciais, principalmente visando a gerenciar as
profundas e tensas relações e conflitos sociais advindos do
modelo de produção e concentração de capital e riqueza, e
face do conseqüente processo de marginalização e exclusão
social das categorias sociais menos privilegiadas.
Este ciclo histórico, progressivamente, vai impondo ao Estado
outras missões e fins até então descartados pelo Estado
Liberal de Direito, exigindo do Poder Público o atendimento às
demandas comunitárias cada vez mais crescentes. Os
problemas sociais que surgem aqui, bem como a falta de
capacidade de resolução por parte dos particulares,
impulsionam a reflexão sobre o alargamento dos deveres
estatais para muito além de suas atribuições de garantir,
simplesmente, uma ordem jurídica estável e proporcionadora
de relações sociais da mesma natureza.
[...]
Passam então os Poderes Públicos instituídos a avocar, para
si, a responsabilidade de uma tutela política mais eficaz, de
natureza mais coletiva e indeterminada no âmbito das
satisfações econômicas básicas de sua população, e uma
gradativa intervenção ou direção na vida econômica dos
setores produtivos, com o objetivo explícito de reajustar e
mitigar os conflitos nas estruturas sociais respectivas.
19
Do Estado Liberal ou Mínimo, realizador de tarefas negativas, restritas à
proteção da segurança e da ordem sociais, através do seu grau zero de
intervenção, em que à propriedade eram outorgadas as prerrogativas absolutas
do uso, gozo e disposição, surge, com o advento do Estado Social, a exigência
funcional da propriedade, em que é sopesada, de forma preponderante, a
função produtiva da terra, ao revés da perspectiva liberal, que tornava absoluto
o título formal da propriedade.
20
19
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 68-69.
20
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do
estado. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 67.
26
O papel interventivo/promocional do Estado Social encontra suporte nos
serviços públicos enquanto instrumentos para a concretização de políticas
públicas, disponibilizadas aos cidadãos como fruto das conquistas sociais. Na
esteira de Bobbio, Matteucci e Pasquino, o Estado do Bem-Estar presta-se a
garantir “tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação,
assegurados a todo o cidadão, não como caridade mas como direito político”.
21
O Estado Social e sua natureza nitidamente interventiva tem como
pressuposto a prestação de políticas públicas como ação positiva do Estado, o
que vem a garantir a idéia de justiça e de solidariedade sociais. Ao tecer
considerações sobre o Estado Social, Gilberto Bercovici destaca que este
“fundamenta e consolida a unidade política materialmente, tornando-se o locus
da luta de classes”.
22
As políticas públicas características do Estado Social trazem consigo a
necessidade de implementação dos serviços públicos como instrumento para a
concretização dos direitos fundamentais sociais, objetivando a transformação
da sociedade em prol do bem comum, com vistas à difusão da dignidade da
pessoa humana, diretriz de fundamental importância no contexto do Estado
Democrático de Direito.
21
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. vol.
I. 5.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2004, p. 416.
22
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max
Limonad, 2003, p. 53.
27
É nesta perspectiva que a temática ora perquirida – serviços públicos –
exsurge como uma estratégia para o Estado, que passa de mero protetor da
segurança e da ordem em sociedade a promovedor da justiça e da
solidariedade sociais, no escopo de tornar efetivo o caráter promocional e
interventivo do Estado Social, diminuindo-se as desigualdades e privilegiando o
mais basilar valor do ser humano: a sua dignidade.
2.2 O nascimento do conceito de serviços públicos no direito francês
O ideário que norteia o Estado francês imprime aos serviços públicos papel
de grande destaque, alçando-os ao patamar de elemento fundamental do
Poder Público. Outrossim, os serviços públicos ocuparam, durante largo
período da história, a própria idéia de soberania estatal.
A doutrina francesa atinente à Escola do Serviço Público, de Léon Duguit,
traz o questionamento acerca do significado que o vocábulo encerra. Afinal,
está-se a tratar dos serviços públicos ou do serviço público? Tanto no plural
quanto no singular, a expressão encerra o mesmo sentido.
23
23
CHRÉTIEN, Patrice; DUPUIS, Georges; GUÉDON. Marie-José. Droit administratif. 6.ed.
revue. Paris: Dalloz, 1999, p. 476. Na referida obra, os autores assim referem: “<<Les>>
services publics ou <<le>> service public? Au pluriel ou au singulier, l’expression, on le devine,
n’a pás exactement le même sens. Sans parler de ce qu’elle peut avoir propos, une question
préalable se pose: <<de quoi parle-t-on lorsqu’on emploie l’expression de service public?>>
Pour situer les réponses possibles, le rapport au Premier ministre de la mission présidée par
Renaud Denoix de Saint-Marc (vice-président du Conseil d’État) constate que <<par un
glissement verbal, on passe aisément [...] du service public, principe unificateur, aux services
publics, activités précises considérées une à une, puis aux organismes chargés de les fournir:
le même mot désigne un concept général, un grand secteur comme l’énergie, une enterprise
comme Électricité de France>>. Si l’on veille à bien distinguer, apparaissent donc, d’une part,
28
O primeiro indício do desenvolvimento do conceito de serviço público
surgiu na Franca, com Léon Duguit. Tal categoria jurídica passou a ser
paulatinamente construída pela jurisprudência administrativa francesa, através
do Conselho do Estado, bem como pela construção ideológica da Escola do
Serviço Público.
É com Léon Duguit que os serviços públicos adquirem força perante o
Estado, eis que a noção do instituto substitui o próprio conceito de soberania
como um dos pilares do Direito Público.
24
O mais consagrado precedente envolvendo a temática dos serviços
públicos está albergado no caso Blanco, julgado pelo Tribunal de Conflitos na
data de 8 de fevereiro de 1873. No julgado em relevo, o genitor de Agnès
des services publics aux modalités d’organisation très diverses, d’autre part, ce que le même
rapport appelle la <<doctrine juridique du service public>>. L’essenciel de la doctrine tient
en deux affirmations. Selon ce rapport, il est supposé qu’<<à l’origine de tout service se trouve
un besoin reconnu par la collectivité, que l’initiative privée ne parvient pas à satisfaire>>.
Ensuite, il est admis que <<ce sont les pouvoirs publics qui veillent à (sa) satisfaction>>. Ce qui
signifie qu’il s’agit d’une doctrine accordant <<une place centrale aux pouvoirs publics
nationaux et locaux>>: <<Ce sont eux qui décident qu’une activité a le caractère de service
public... eux qui décident d’en réglement les conditions d’éxecution... eux, enfin, qui contrôlent
cette exécution>>. Quelques grands principes s’imposent bien pour la fourniture du service:
continuité, égalité, adaptabilité; mais aussi neutralité, transparence, ou (pour les services
publics organisés sous la forme d’un établissement public) spécialité. Il n’empêche que
l’ensemble se veut <<très plastique>>. Rien ne saurait entraver <<l’adaptation de l’organisation
des services publics à toutes sortes de changements dans la technique, l’economie et la
societé>>."
24
DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho público y privado. Buenos Aires: Editorial
Heliasta S.R.L., 1975, p. 27. Nesta obra, Duguit salienta: “La nocción del servicio público
sustituye al concepto de soberanía como fundamento del Derecho público. Seguramente esta
noción no es nueva. El día mismo en que bajo la acción de causas muy diversas, cuyo estudio
no nos interesa en este momento, se produjo la distinción entre gobernantes y gobernados, la
noción del servicio público nació en el espíritu de los hombres. En efecto, desde ese momento
se ha comprendido que ciertas obligaciones se imponían a los gobernantes para con los
gobernados y que la realización de esos deberes era a la vez la consecuencia y la justificación
de su mayor fuerza. Tal es esencialmente la noción de servicio público. Lo nuevo es el lugar
preferente que esta noción ocupa hoy en el campo del Derecho, y la transformación profunda
que por tal camino se produce en el Derecho moderno.”
29
Blanco pleiteava indenização em desfavor da Administração Pública francesa,
em virtude de um vagonete da Companhia Nacional de Manufatura do Fumo
haver atropelado sua filha. Eis o relato de Georges Vedel e Pierre Devolvé, a
partir do arrêt Blanco:
Une jeune enfant, Agnès Blanco, avait été blesée par un
wagonnet qui circulait entre deux bâtiments de la manufacture
des tabacs de Bordeaux. Par la voie d’un arrêté de conflit élevé
devant le tribunal civil, la question de savoir si l’action en
indemnité intentée par le père de la victime relevait de la
compétence administrative ou de la compétence judiciaire fut
soumise au Tribunal de Conflits Celui-ci se prononça pour la
compétence administrative [...].
L’arrêt retenait essentiellement que les dommages avaient leur
source dans l’activité d’un service public et c’est en raison de
cette relation avec le service public que la compétence du juge
administratif devait être préférée. En même temps, l’arrêt
formulait l’idée célèbre que la responsabilité des dommages
causés par les services publics devait être réglée par des
principes autonomes distincts de ceux édictés par le Code Civil
pour les rapports de particulier à particulier. D’un seul trait,
l’arrêt énonçait ainsi un critère de compétence, le service
public, et affirmait l’autonomie du juge administratif et du droit
administratif par rapport au droit privé.
25
Outra parcela da doutrina afirma ser exacerbada a importância dada ao
arrêt Blanco, porquanto à época em que o fato se desencadeou, a noção de
serviço público era muito incipiente. Somente trinta anos mais tarde tal julgado
veio a ser objeto de estudos, com a obra La responsabilité de la puissance
publique, de G. Teissier, em 1906. Na obra Grands Services Publics,
Lachaume, Boiteau e Pauliat também mencionam o célebre caso Blanco, in
litteris:
25
DELVOLVÉ, Pierre; VEDEL, Georges. Droit administratif. t. I. 12.ed. Paris: PUF, 1992, p.
110-111.
30
La jurisprudence, quant à elle, utilisa et utilise beaucoup la
notion. La référence au service public dans le célèbre arrêt
Blanco [...] et l’on sait que cette décision par l’utilisation – pour
ne pas dire la manipulation – qui devait en être faite par le
commissaire du governement Teissier [...], devint l’arrêt
symbole du service public même s’il apparaît, aujourd’hui, que
l’expression <<service public>> était, à l’époque, largement
synonyme de celle de <<puissance publique>> et, qu’en
conséquence, l’arrêt Blanco ne possédait probablement pas le
caractère révolutionnaire dont il fut crédité [...].
26
Assim é que a teoria do serviço público adquire relevo nos anos 30 do
século XX, na etapa denominada de intervencionismo público, sistematizada
por Léon Duguit e Gaston Jèze, surgindo, assim, a Escola do Serviço Público,
também denominada Escola Realista ou de Bordeaux.
O serviço público, em Léon Duguit,
27
é concebido como fundamento da
Teoria do Estado, um conjunto de atividades cuja prestação deve ser
assegurada, regulada e controlada pelos governos, porquanto indispensável à
consecução e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência sociais.
26
BOITEAU, Claudie; LACHAUME, Jean-François; PAULIAT, Hélène. Grands services publics.
2.ed. Paris: Armand Colin, 2000, p. 9.
27
DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitutionnel. t. II. 3.ed. Paris: E. de Boccard, 1928, p. 61.
Eis as lições do jurista francês: “On aperçoit dès lors la notion de service public: c’est toute
activité dont l’accomplissement doit être assuré, réglé et contrôlé par les gouvernants, parce
que l’accomplissement de cette activité est indispensable à la realisation et au développement
de l’interdépendance sociale, et qu’elle est de telle nature qu’elle ne peut être réalisée
complètement que par l’intervention de la force gouvernante.” No mesmo sentido: DUGUIT,
Léon. Les transformations du droit public. Paris: Armand Colin, 1913, p. 52-53. Nesta obra, a
organização e gestão dos serviços públicos são concebidos por Léon Duguit como fundamento
do direito público, in verbis: “Le fondement du droit public, ce n’est plus le droit subjectif de
commandement, c’est la règle d’organisation et de gestion des services publics. Le droit public
est le droit objectif des services publics. De même que le droit privé cesse d’ètre fondé sur le
droit subjectif de l’individu, sur l’autonomie de la personne mème et repose maintenant sur la
notion d’une fonction sociale s’imposant à chaque individu, de mème le droit public n’est plus
fondé sur le droit subjectif de l’État, sur la souveraineté, mais repose sur la notion d’une fonction
sociale des gouvernants, ayant pour objet l’organisation et le fonctionnement des services
publics.”
31
Através de sua teoria dos serviços públicos, Léon Duguit tinha como
propósito a busca de um novo critério de justificação da atuação do Estado,
este não mais fundado na soberania. O elemento soberania é rechaçado pela
doutrina de Duguit, sendo substituído pela noção de serviço público. Tal é a
importância que o referido jurista empresta à noção de serviço público que em
seu Traité de Droit Constitutionnel assim leciona:
En même temps, les pouvoirs des gouvernants sont limités à
cette les activité de service public, et tout acte des gouvernants
est sans valeur quand il poursuit un but autre qu’un but de
service public. Le service public est le fondement et la limite du
pouvoir gouvernemental. Et par là ma théorie de l’État se trouve
achevée.
28
No tocante aos serviços públicos e sua conversão em premissa
fundamental do Estado, Duguit salienta que o Direito Público moderno se
converte em um conjunto de regras que determinam a organização dos
serviços públicos, assegurando seu funcionamento regular e ininterrupto. Para
Léon Duguit, o fundamento do Direito Público não é o direito subjetivo de
mando, mas sim a regra de organização e de gestão dos serviços públicos:
El Derecho público es el Derecho objetivo de los servicios
públicos. Así como el Derecho privado deja de estar fundado
en el derecho subjetivo del individuo, en la autonomia de la
persona misma y descansa hoy en la noción de una función
social que se impone a cada individuo, el Derecho público no
se funda en el derecho subjetivo del Estado, en la soberanía
sino que descansa en la noción de una función social de los
28
DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. t. II. 3.ed. Paris: E. de Boccard, 1928, p. 62.
32
gobernantes, que tiene por objeto la organización y el
funcionamiento de los servicios públicos.
29
Nesta tradição, a doutrina francesa em muito contribuiu para a noção dos
serviços públicos. Gaston Jèze, após o criador da Escola do Serviço Público,
foi o doutrinador que mais se destacou na temática. Jèze, no prefácio de sua
obra Principios Generales del Derecho Administrativo, ressalta que “el servicio
público es, hoy, la piedra angular del Derecho administrativo francés”. Salienta
também o mencionado jurista que “esta noción sirve para volver a modelar
todas las instituciones del Derecho público”.
30
Gaston Jèze reputa à noção de serviço público elemento fundamental e
definidor do Direito Administrativo. Menciona o publicista francês que os
serviços públicos são suscetíveis de modificações a todo o instante. Eis as
lições de Jèze:
Cette possibilité de modification résulte de l’obligation qui
incombe aux agents publics de fair fonctionner le mieux
possible le service public. Il faut pouvoir toujours apporter les
changements nécessités par les transformations économiques,
sociales, politiques, par les nouveaux idéals politiques et
sociaux. Aucun obstacle juridique ne peut empêcher cette
modification.
31
29
DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho público y privado. Buenos Aires: Editorial
Heliasta S.R.L., 1975, p. 37-38.
30
JÈZE, Gaston. Principios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma,
1946, p. 65.
31
JÈZE, Gaston. Les principes généraux du droit administratif. 3.ed. Paris: Marcel Giard, 1930,
p. 1-2.
33
Léon Duguit, em seu Traité de Droit Constitutionnel, aponta as seguintes
discordâncias com relação às concepções de serviço público propostas por
Gaston Jèze, in verbis:
Jèze, dans un chapitre d’ailleurs très intéressant de son livre,
Principles généraux du droit administratif, 1914, écrit que
<<pour résoudre la question de savoir si dans tel cas donné le
procédé du service public est effectivement employé, il faut
rechercher uniquement l intention des gouvernants>>. En un
mot, d’après cet auteur, le service public est une création
artificielle du législateur qui seul peut l’instituer et peut donner
discrétionnairement ce caractére à une activité quelconque.
Cette proposition se rattache directement à une conception
contre laquelle je me suis élevé énergiquement à plusieurs
reprises, conception d’après laquelle le droit est une pure
création de l’État. Cf. notamment t.I, p. 91. Assurément, si une
loi positive attribue expressément le caractère de service public
à une activité déterminée, le juge sera obligé d’appliquer la
disposition législative. Mais il n’en résultera pas que dans la
réalité il y ait un service public; et celle-ci l’emportera tôt ou tard
sur la décision arbitraire du législateur.
D’autre part, j’estime qu’ici, comme dans tout domaine social, le
juriste manque à sa mission s’il n’indique pas au législateur
quel est le droit, s’il ne détermine pas, suivant l’expression de
Gény, le donné social, c’est-à-dire la norme juridique que le
legislateur ne fait que constater et mettre en œuvre. La norme
juridique, quand il s’agit de service public, est précisément celle
qui impose aux gouvernants l’accomplissement d’une certaine
activité.
32
A doutrina de Gaston Jèze reconhece que o serviço público deve ser
investigado caso a caso, porquanto necessário se faz averiguar a
vontade/intenção do governante quanto à atividade administrativa em relevo.
Neste passo, salienta-se que o critério de reconhecimento dos serviços
públicos é mais objetivo em Gaston Jèze (por isto denominá-lo positivista), ao
32
DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. t. II. 3.ed. Paris: E. de Boccard, 1928, p. 74-75.
34
passo que para Léon Duguit o critério para reconhecer o serviço público
encontra-se na realidade social (critério sociológico).
Em síntese apertada, enquanto Léon Duguit conceitua o serviço público
através da sociologia e identifica as regras de Direito Administrativo com o
serviço público administrativo, Gaston Jèze posiciona-se de maneira formal,
positivista e rigorosamente jurídica, tratando os serviços públicos como
procedimento técnico traduzido em regime peculiar – processo de Direito
Público, associando, de forma estreita, o serviço público administrativo e o
Direito Administrativo.
33
Lachaume, Boiteau e Pauliat, na obra Grands Services Publics, acentuam
que a definição clássica de serviços públicos do início do século XX e da
maioria dos autores contemporâneos reúne três elementos essenciais:
[...] intervention d’une personne publique même si elle n’assure
pas la gestion quotidienne du service, satisfaction d’un besoin
d’intérêt general, recours à un régime juridique spécifique
adapté aux exigences d’une bonne satisfaction de l’intérêt
général, ce qui ne signifie pas, loin de là, une soumission
intégrale du service public au droit administratif. Il est vrai que
certains auteurs sont réticents à pendre en considération le
régime juridique spécifique comme élément entrant dans la
définition du service public estimant, non sans raison, au regard
de la logique juridique, que le régime juridique spécifique est
33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1968, p. 150-151. Pontua Celso Antônio Bandeira de Mello à página
151: “O simples enunciado do pensamento dêstes expoentes da Escola do Serviço Público, e
suas divergências, já permite verificar o quanto difícil é obter-se um denominador comum para
a noção de serviço público e o quanto é imprecisa sua conceituação [...].”
35
une conséquence de la présence d’une mission de service
public et non une condition de son existence [...].
34
Em que pese não ser possível estabelecer, de maneira precisa e uniforme,
a noção de serviço público, pode-se verificar, da análise dos elementos
constantes na doutrina francesa, que sua noção encontra-se presente quando
três elementos estiverem conjugados: a intervenção de uma pessoa pública,
mesmo que esta não assegure a gestão quotidiana do serviço; a satisfação de
uma necessidade de interesse geral e o recurso a regime jurídico específico,
que se adapte à satisfação do interesse geral.
2.3 O ideário dos serviços públicos à luz da dogmática jurídica e do texto
constitucional brasileiro de 1988
O Estado Liberal ou abstencionista, na concepção predominante do século
XIX, pretendia o seu distanciamento em relação aos indivíduos; a garantia de
independência, autonomia e liberdade do indivíduo perante o Estado era, ao
mesmo tempo, garantia de independência, autonomia e liberdade da sociedade
em relação ao Estado.
35
34
BOITEAU, Claudie; LACHAUME, Jean-François; PAULIAT, Hélène. Grands services publics.
2.ed. Paris: Armand Colin, 2000, p. 8.
35
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 2.ed. Madrid:
Alianza Editorial, 1996, p. 21. Destaca o autor que o ideal do Liberalismo significava a não-
interferência do Estado na sociedade. Assim, o Poder Público tinha suas funções reduzidas, ou
seja, havia a inibição de sua atuação nos âmbitos econômico e social (Estado Mínimo), nestes
termos: “Como es sabido, una de las características del orden político liberal era no sólo la
distinción, sino la oposición entre Estado y sociedad, a los que se concebía como dos sistemas
con un alto grado de autonomía, lo que producía una innibición del Estado frente a los
problemas económicos y sociales, sin perjuicio a las medidas de política social y económica
que hemos denominado como factorializadas.”
36
Dada a migração do Estado Liberal ao Social, necessária foi a progressiva
implementação dos direitos sociais através dos serviços públicos, instrumento
através do qual a Constituição brasileira de 1988 concretiza os direitos
fundamentais sociais.
É nesta perspectiva – de mudança do Estado Liberal ao Estado Social –
que coube ao Poder Público a implementação de políticas públicas, tendentes
a disponibilizar aos cidadãos uma série de prestações públicas, com vistas a
proporcionar o mais amplo gozo do direito ao bem-estar social. Neste contexto,
Fernando Garrido Falla salienta que a Administração Pública, sob a égide do
Estado Social, tem se caracterizado como prestadora de serviços públicos. Eis
as considerações pontuais tecidas pelo eminente publicista, in verbis:
El interés público no sólo justifica la actuación administrativa
por vía de coacción o de fomento, sino que puede exigir que la
Administración aparezca como titular de una actividad
fundamental consistente en proporcionar bienes y servicios a
los administrados.
Este tipo de actividad estatal viene a romper el esquema del
anterior Estado abstencionista cuya única misión era la de
asegurar el orden público mediante una función de polícia,
dejando la satisfacción de otras necesidades de la colectividad
al libre juego de las fuerzas sociales. La doctrina se vio
precisada a construir los conceptos adecuados para explicar el
doble tipo de actividad que desde entonces vino a descubrirse
como propia del Estado, de donde la contraposición entre la
Administración jurídica (o polícia) y la Administración social.
Desde la mitad del siglo XIX a nuestros días el incremento de
esta último puede calificarse de impresionante, si bien en esta
evolución se descubren etapas que prestan un matiz propio a
la Administración de acuerdo con la natureza de los servicios y
cometidos que sucesivamente va asumiendo.
36
36
FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. vol. II. 10. ed. Madrid: Tecnos,
1992, p. 321. E o autor prossegue em sua análise, nas páginas 321 a 325 da obra mencionada,
no sentido de perquirir a importância que os serviços públicos representam ao Estado Social e
37
Os serviços públicos consistem em mecanismo ou instrumento que atua
em prol da implementação dos direitos sociais,
37
eleitos por determinado país
de acordo com as suas circunstâncias políticas, isto é, através do modelo de
Estado que se pretende perfilhar. Logo, os serviços públicos, criados através
de critérios históricos e políticos, encontram-se emoldurados na ordem jurídica
de cada País.
A expressão serviço público teve sua origem, nos Estatutos Constitucionais
pátrios, com o advento da Carta Fundamental de 1934, não havendo no
referido diploma legal qualquer conceituação atinente à temática. Não obstante
a inexistência de um conceito constitucional de serviço público, a Magna Carta
de 1988 fornece alguns referenciais que conformam o instituto.
Democrático de Direito, destacando que a Administração Pública pode atuar como prestadora
de serviços assistenciais, como titular de serviços de caráter econômico e como gestora de
empresas econômicas.
37
KRELL, Andreas Joachim. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos
direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 25-
26. Em que pese a previsão expressa dos direitos sociais na Carta Magna de 1988, Andreas
Joachim Krell destaca que grande parcela da população brasileira sofre das mais prementes
necessidades humanas. Eis as controvérsias surgidas em torno da efetividade dos direitos
sociais: “São os direitos sociais que mais têm suscitado controvérsias no que diz respeito a sua
eficácia e efetividade, inclusive quanto à problemática da eficiência e suficiência dos
instrumentos jurídicos disponíveis para lhes outorgar a plena realização. Constitui um paradoxo
que o Brasil esteja entre os dez países com a maior economia do mundo e possua uma
Constituição extremamente avançada no que diz respeito aos direitos sociais, enquanto mais
de 30 milhões de seus habitantes continuem vivendo abaixo da linha da pobreza (‘indigência’).
A maioria dessas pessoas não encontra um atendimento de qualidade mínima nos serviços
públicos de saúde, de assistência social, vive em condições precárias de habitação, alimenta-
se mal ou passa fome. A Constituição do Brasil sempre esteve numa relação de tensão para
com a realidade vital da maioria dos brasileiros e contribuiu muito pouco para o melhoramento
da sua qualidade de vida; o texto legal supremo, para muita gente, representa apenas uma
‘categoria referencial bem distante’. Encontram-se em contradição flagrante a pretensão
normativa dos Direitos Fundamentais sociais e o evidente fracasso do Estado Brasileiro como
provedor dos serviços essenciais para a vasta maioria da sua população. Discute-se, cada vez
mais, a complexidade do processo de transformação dos preceitos do sistema constitucional
mediante realização de programas e políticas governamentais.”
38
Fundamentalmente, dois critérios são utilizados para a verificação da
existência dos serviços públicos: o sentido orgânico ou subjetivo (artigos 37,
XIII; 39, § 7°; 40, III, 40, § 16; 136, § 1°, II, todos da Constituição Federal
brasileira de 1988) e o objetivo, que vem a significar uma modalidade de
atividade de natureza pública (artigos 21, X, XI, XII, XIV; 30, V; 37, § 6°; 54, I,
“a”; 61, § 1°, II, “b”; 139, VI; 145, II; 175; 198; 202, § 5°; 223 e 241, todos da
Constituição Cidadã de 1988).
Nas lições de Dinorá Adelaide Musetti Grotti,
38
o rol dos dispositivos legais
elencados bem demonstra que a Constituição brasileira dá guarida à categoria
do serviço público. Por conseguinte, tratam-se os serviços públicos de uma
série de atividades de titularidade da Administração Pública, que não se
desnaturam quando a execução dos mesmos é delegada ao setor privado,
porquanto o artigo 175, caput, da Carta Constitucional de 1988 permite que o
Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou
permissão, sempre através de licitação, preste serviços públicos à população.
Antonio Troncoso Reigada salienta que o serviço público tem seu
nascedouro na medida em que o Estado deixa de limitar sua atuação à
preservação da liberdade e à garantia dos direitos individuais e se converte em
protagonista direto do crescimento econômico e do progresso social. O
processo evolutivo, para o Estado Democrático de Direito, se caracteriza pela
participação dos cidadãos e das minorias na tomada de decisões políticas, o
38
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a constituição brasileira de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 89.
39
que vem a calhar na ampliação das funções sociais dos poderes públicos. O
serviço público resulta, neste sentido, em um compromisso político novo dos
governantes em favor da vertebração social do Estado e do interesse geral.
39
Abordada a temática dos serviços públicos sob o prisma dos direitos
fundamentais sociais,
40
estes não consistem em direitos contra o Estado, mas
39
REIGADA, Antonio Troncoso. Dogmática administrativa y derecho constitucional: el caso del
servicio público. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, año 19, n. 57, sep./dec.
1999, p. 99. Eis as lições de Antonio Troncoso Reigada: “En una época donde reinaba el
dogma de la separación nítida entre el Estado y la Sociedad, el instrumento que disponían los
poderes públicos para poder intervenir directamente en el progreso social era la declaración de
una actividad como servicio público. Es decir, el servicio público es a la vez el título habilitante
de potestades administrativas y la justificación de que en esas materias existe una competencia
propia de la Administración pública. Paradójicamente, la fuerte conciencia de los derechos
individuales y la separación radical entre Estado y sociedad que respetaba unos ámbitos
amplios de los particulares libres de toda intromisión favorecen el nacimiento del servicio
público como un instrumento de intervención pública en sectores sociales. La declaración de
una actividad como servicio público equivale ordinariamente a la titularidad exclusiva del
Estado, aunque éste lo desarrollaba a través de particulares que actuaban como
concesionarios del servicio. De hecho, al principio los servicios públicos no se concebían sino
para su gestión por los particulares, pero con la garantía que supone la intervención de la
jurisdicción contencioso-administrativa. Comienzan así a aparecer desde finales del siglo XIX
un conjunto de servicios públicos económicos, como son los de correo, teléfono, suministro
eléctrico o televisión. Estos servicios se caracterizaban legalmente porque eran prestados por
el Estado o por particulares en régimen de monopolio.”
40
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O direito público em tempos de crise: estudos em homenagem
a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 144-145. Salienta o autor a
importância que os direitos fundamentais sociais assumem com o advento da Nova Carta
Constitucional: “Os direitos fundamentais a prestações, inobstante possam ser referidos alguns
precedentes, ainda que isolados e tímidos, enquadram-se no âmbito dos assim denominados
direitos de segunda geração (ou dimensão), correspondendo à evolução do Estado de Direito,
na sua matriz liberal-burguesa, para o Estado democrático e social de Direito, consagrando-se
apenas neste século, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Na Constituição vigente,
os direitos a prestações encontraram uma receptividade sem precedentes no
constitucionalismo pátrio, de modo especial no capítulo dos direitos sociais. Além disso,
verifica-se que, mesmo em outras partes do texto constitucional (inclusive fora do catálogo dos
direitos fundamentais), se encontra uma variada gama de direitos a prestações. Basta, neste
contexto, uma breve referência aos exemplos do art. 17, § 3°, da CF (direito dos partidos
políticos a recursos do fundo partidário), bem como do art. 5°, incs. XXXV e LXXIV (acesso à
Justiça e assistência jurídica integral e gratuita), para que possamos perceber nitidamente que,
até mesmo entre os direitos políticos e direitos individuais (para utilizar a terminologia de nossa
Carta), encontramos direitos fundamentais que exercem precipuamente uma função
prestacional. Para além do exposto, importa ter presente que também os direitos a prestações
abrangem um feixe complexo e não necessariamente uniforme de posições jurídicas, que
podem variar quanto a seu objeto, seu destinatário e até mesmo quanto à sua estrutura
jurídico-positiva, com reflexos na sua eficácia e efetivação. Assim, conforme o seu objeto,
40
sim direitos por meio do Estado. Isto significa dizer que os serviços públicos
consistem em prestações materiais positivas que o Estado, por expressa
previsão legal, está adstrito a realizar, no escopo de concretizar o gozo efetivo
dos direitos sociais constitucionalmente protegidos.
Ana Cláudia Finger assevera que a noção de serviço público tem sofrido
mutações. No entanto, não houve alteração na essência do instituto. Neste
sentido, o serviço público significa a prestação material dirigida aos cidadãos,
objetivando o atendimento das necessidades, realizadas pelo próprio Estado
ou por quem lhe faça às vezes, sob regime de direito público, caracterizando-
se pela presença de prerrogativas de supremacia e sujeições especiais.
Salienta a autora:
Nesta linha, a pesquisa evidencia o serviço público como uma
atividade desenvolvida pelo Poder Público, portanto, sob um
regime jurídico administrativo, correspondente a satisfação de
necessidades essenciais da sociedade, segundo princípios de
generalidade, continuidade, modicidade de tarifas e eficiência.
Sendo a sua prestação um dever do Estado para atendimento
de uma essencial necessidade da comunidade, o serviço
público constitui um direito público subjetivo do cidadão,
constituindo instrumento de realização efetiva dos direitos
fundamentais sociais.
E é nesta seara que se insere um dos temas mais ingentes da
dogmática constitucional atual: o papel que incumbe ao Poder
Judiciário na concretização efetiva dos direitos fundamentais
poder-se-á distinguir os direitos a prestações em direitos a prestações materiais ou fáticas e
direitos a prestações normativas ou jurídicas. Neste contexto, há que atentar para o fato de que
os direitos a prestações não se restringem aos chamados direitos sociais, entendidos como
direitos a prestações fáticas, englobando também os direitos à proteção e direitos à
participação na organização e procedimento. Distingue-se, portanto, entre os direitos a
prestações em sentido amplo (direitos à proteção e participação na organização e
procedimento), que, de certa forma, podem ser reconduzidos primordialmente ao Estado de
Direito na condição de garante da liberdade e igualdade do status negativus, e os direitos a
prestações em sentido estrito (direitos a prestações sociais materiais), vinculados
prioritariamente às funções do Estado Social.”
41
sociais, mormente diante da notória incapacidade do Estado na
prestação real dos serviços sociais básicos.
41
Um dos exercícios mais difíceis no campo do Direito Administrativo
consiste em conceituar, de forma adequada, o serviço público. Caio Tácito
salienta que é extremamente dificultoso sintetizar os elementos configuradores
de instituto de tamanha envergadura, variável no tempo e no espaço. Eis as
lições do citado publicista:
[...] não há um conceito apriorístico de serviço público,
elastecendo-se o seu âmbito na medida em que se expande a
presença do Estado nos domínios da vida social
contemporânea.
Não há, na matéria, um sentido estático, refletindo-se, nas
perspectivas da legislação cambiante, as transações de ordem
política que modificam a missão administrativa do Estado.
[...]
Ao conceito jurídico do serviço público, como expressão típica
de atividade estatal, poder-se-á, ainda, agregar a sua
significação econômica, social, política ou fiscal, nem sempre
coincidente com o sentido orgânico ou administrativo da
expressão. A lei considera mesmo, para fins determinados,
como serviço público lato sensu, atividades que são de
exercício privado, como, por exemplo, a advogacia, o
jornalismo, ou a assistência social.
42
Para Fernando Herren Aguillar, a Carta Constitucional brasileira de 1988
não alberga um conceito jurídico de serviço público. Destaca que as
conceituações do instituto emanadas da doutrina não passam de
41
FINGER, Ana Cláudia. Serviço público: um instrumento de concretização de direitos
fundamentais. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, n. 12,
abr./jun. 2003, p. 143.
42
TÁCITO, Caio. Temas de direito público: (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar,
1997, p. 638.
42
sistematizações didáticas da experiência de vida dos estudiosos, asseverando
que “os conceitos existentes de serviço público, quaisquer que sejam eles, são
formulados doutrinariamente a partir da observação dos fatos ou da aplicação
concreta do direito”.
43
Não obstante a constatação de que a Constituição Federal brasileira de
1988 não contempla a conceituação de serviço público, Ruy Cirne Lima leciona
que a definição do que seja serviço público deve ser tratada pelo Texto
Constitucional, in litteris:
A definição do que seja, ou não, serviço público pode, entre
nós, em caráter determinante, formular-se somente na
Constituição Federal e, quando não explícita, há de ter-se
como suposta no texto daquela. A lei ordinária que definir o que
43
AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social de serviços públicos. São Paulo: Max
Limonad, 1999, p. 134. No mesmo sentido, ver: COMADIRA, Julio Rodolfo. El servicio público
como título jurídico exorbitante. A & C - Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo
Horizonte, ano 4, n. 12, abr./jun. 2003, p. 84. Julio Rodolfo Comadira afirma que existem tantos
conceitos de serviço público quanto autores que se ocupam em conceituá-lo. Assim leciona o
autor: “[...] el servicio público es un título jurídico en sí mismo exorbitante, invocable por el
Estado para asumir la titularidad de competencias prestacionales con el fin de ejercerlas em
forma directa (por administración) o indirecta a través de órganos personificados pública (v. gr.:
entes autárquicos) o privadamente (v.gr.: sociedades anónimas); para desarrollarlas
subsidiariamente en ausencia de prestadores privados, sin titularizarlas en sentido proprio, o
bien para ejercer su poder de policía sobre actividades privadas prestacionales, com el objeto
de dar satisfacción o, en su caso, de asegurar la satisfacción de necesidades consideradas
esenciales para el logro del bien común.” No sentido de não haver a conceituação dos serviços
públicos no Texto Constitucional e na legislação infraconstitucional, ver: GUGLIELMI, Gilles J.;
KOUBI, Geneviève. Droit du service public. Paris: Montchrestien, 2000, p. 62. Para os autores
franceses, a noção de serviço público deve ser extraída do conteúdo de textos legais e da
jurisprudência, tendo em vista não haver a conceituação do instituto no Texto Constitucional e
na legislação infraconstitucional, nestes termos: “Comme il n’existe pas de définition
constitutionnelle ou législative et comme il n’émerge pas de définition précise de la
jurisprudence – aucune décision du Tribunal des conflits ou du Conseil d’État ne défend une
définition particulière du service public -, la notion de service public semble devoir être
caractérisée par certaines données extraites de textes juridiques et de jugements ou arrêts qui
caractérisent telle ou telle activité. Une définition générale du service public a été formulée en
ces termes par R. Chapus: <<une activité constitue un service public quand elle est assurée ou
assumée par une personne publique en vue d’un intérêt public>>.”
43
seja, ou não, serviço público terá de ser contrastada com a
definição expressa ou suposta pela Constituição.
44
Eros Roberto Grau salienta que a caracterização dos serviços públicos no
Brasil segue a linha doutrinária de Léon Duguit, no sentido de que o serviço
público é atividade indispensável à realização e ao desenvolvimento da
interdependência social. Diz o autor:
Serviço público, diremos, é atividade indispensável à
consecução da coesão social. Mais: o que determina a
caracterização de determinada parcela da atividade econômica
em sentido amplo como serviço público é a sua vinculação ao
interesse social.
Daí por que diremos que, ao exercer atividade econômica em
sentido amplo em função de imperativo da segurança nacional
ou para atender a relevante interesse coletivo, o Estado
desenvolve atividade econômica em sentido estrito; de outra
banda, ao exercê-la para prestar acatamento ao interesse
social, o Estado desenvolve serviço público.
Detida atenção dedicada a essa circunstância permitirá ao
estudioso do Direito Brasileiro observar que são distintos entre
si o interesse coletivo e o interesse social, ainda que ambos se
componham na categoria interesse público.
45
44
LIMA, Ruy Cirne. Pareceres (direito público). Porto Alegre: Livraria Sulina, 1963, p. 122. Ver
também: LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 6.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1987, p. 82. Nesta obra, o autor assim expôs à doutrina brasileira sua definição de
serviço público: “Com o conceito de serviço público é construída a teoria da <<falta de
serviço>>, já introduzida e aplicada no nosso direito, em tema de responsabilidade do Estado.
Ainda com o conceito de serviço público, encarado sob o aspecto do gôzo de seus benefícios
pela coletividade, explica a nossa Ciência jurídica do uso dos particulares, comum, ou privado
(autorizações, permissões e concessões), sôbre o domínio público, ou sôbre o patrimônio
administrativo (admissões a hospitais, bibliotecas, etc.). [...] Se damos, entretanto, pela
afirmação de uma figura jurídica, específica, conceituada como serviço público, importa lhe
determinemos, para logo, o conteúdo. Que é serviço público? Serviço público é todo o serviço
existencial, relativamente à sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado, que,
por isso mesmo, tem de ser prestado aos componentes daquela, direta ou indiretamente, pelo
Estado ou outra pessoa administrativa.”
45
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica).
8.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 111. A moldura de Estado delineada na
Constituição Federal de 1988 preconiza a preservação dos laços sociais e a promoção da
coesão social. Nesta senda, Eros Roberto Grau salienta, nas páginas 113 e 114 da obra em
relevo, que incumbe ao Estado a responsabilidade pela provisão, a título de serviço público, de
todas as parcelas da atividade econômica em sentido amplo imprescindíveis à realização e ao
desenvolvimento da coesão e da interdependência social, in verbis: “De resto, além de permitir
44
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 projeta um
Estado desenvolvimentista e forte, calcado em fundamentos (artigo 1°) e em
objetivos (artigo 3°), almejando a vitalidade da ordem econômica (artigo 170)
com a manutenção de uma vida digna a todos os cidadãos.
Os serviços públicos, elencados na Magna Carta de 1988, projetam-se
infraconstitucionalmente em princípios operativos, albergados pela Lei n. 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995, quais sejam: continuidade;
46
regularidade;
47
a identificação de novas áreas de serviço público, a Constituição do Brasil, através das
diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem realizados pelo Estado e pela sociedade,
indica decisivamente a intensidade a ser adotada na prestação das atividades que o
caracterizam. O que importa considerar é a possibilidade de encontrarmos no bojo da
Constituição Brasileira parâmetros conformadores da área, no interior do espaço das atividades
econômicas em sentido amplo, definida como própria dos serviços públicos. Daí por que, v.g., a
afirmação isolada de que o texto constitucional eleva determinadas parcelas da atividade
econômica em sentido amplo à categoria de serviço público (os chamados serviços públicos
por definição constitucional) é equívoca, pois inúmeras vezes ocorre incluírem-se tais parcelas
na categoria das atividades econômicas em sentido estrito.” A referida obra traz o seguinte
exemplo, bastante elucidativo à situação em exame, página 113-114: “Suponha tenha a União
deixado de prestar serviços de transporte por via fluvial, atividade que, enquanto empreendida
por determinada empresa estatal federal, permitia o transporte de produtos agrícolas. O
exemplo de que me sirvo ensejou, recentemente, debate no Supremo Tribunal Federal a
propósito da caracterização dessa atividade como serviço público ou não. Lembro dizer o art.
21, XII, ‘d’, da Constituição de 1988, o seguinte: ‘Art. 21. Compete à União: [...] XII – explorar,
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: [...] d) os serviços de
transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que
transponham os limites de Estado ou Território’. A mera leitura do preceito constitucional
poderia levar-nos à conclusão de que estamos, no caso – serviços de transporte por via fluvial
em trajeto que transpõe os limites de um Estado -, diante de serviço público de competência da
União. Sucede que, no caso, a empresa estatal federal prestava fundamentalmente serviços de
transporte fluvial de produtos agrícolas, não sendo possível sustentarmos – o exemplo, na
versão que dele tomo, é assim, definitivamente – que a sua prestação é indispensável à
realização e ao desenvolvimento da interdependência social (Duguit) ou que ele corresponda a
um serviço essencial, relativamente à sociedade (Cirne Lima). Daí não caber, no caso, a
qualificação da atividade de que se cuida (transporte aquaviário) como serviço público.” E
prossegue o autor, à página 115, distinguindo os serviços públicos das atividades econômicas
em sentido estrito: “Desejo deixar vincado, neste passo, o seguinte: o interesse social exige a
prestação de serviço público; o relevante interesse coletivo e o imperativo da segurança
nacional, o empreendimento de atividade econômica em sentido estrito pelo Estado.”
46
Este princípio, também conhecido como princípio da permanência, teve sua origem no direito
francês, onde adquiriu a conotação de ser essencial, porquanto atrelado à idéia de
continuidade do serviço público a ser prestado pelo Estado. Acerca deste princípio, ver:
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14.ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 53. A doutrina francesa reporta-se ao aresto Dehaene no tocante ao
princípio da continuidade, eis que a permanência é nota essencial aos serviços públicos, os
45
generalidade ou universalidade;
48
modicidade;
49
cortesia; segurança;
atualidade, adaptabilidade ou mutabilidade;
50
eficiência;
51
igualdade ou
quais desempenham papel de notória essencialidade e de fundamental importância ao convívio
em sociedade. Neste sentido, ler: PINON, Stéphane. Le principe de continuité des services
publics: du renforcement de la puissance étatique à la sauvegarde de l’expression
démocratique. Revue Interdisciplinaire d’Etudes Juridiques, Bruxelles, n. 51, 2003, p. 70;
MARÍN, Antonio Martínez. El buen funcionamiento de los servicios públicos: los principios de
continuidad y regularidad. Madrid: Tecnos, 1990, p. 75. Na esteira de que os serviços públicos
não poderão sofrer solução de continuidade, ver: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito
administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 489; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
administrativo brasileiro. 26.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 314-315. Na mesma linha
argumentativa de Marçal Justen Filho, face à não obstaculização de serviços públicos
essenciais, consultar: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública.
Concessão, Permissão. Franquia. Terceirização e outras formas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1999,
p. 94-95. Para Zelmo Denari, inadimplente, o usuário de serviço público pode ser privado de
seu gozo. Para tanto, consultar a obra coletiva: GRINOVER, Ada Pelegrini et alli. Código
brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 195-196. No sentido de ser exercício regular de direito
por parte do fornecedor de energia o corte de fornecimento em caso de inadimplência, ver:
TÁCITO, Caio. Falta de pagamento: corte de energia. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, n. 219, jan./mar. 2000, p. 399. No mesmo sentido de Caio Tácito, ver: BLANQUET,
Luiz Alberto. Concessão de serviços públicos: comentários à lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de
1995, à lei n. 9.704, de 7 de julho de 1995 com as inovações da lei 9.427 de 27 de dezembro
de 1996, e da lei 9.648 de 27 de maio de 1998. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2000, p. 52.
47
A regularidade se vincula à prestação devida de acordo com as regras, normas e condições
preestabelecidas para esse fim, ou que lhe sejam aplicáveis. Para tanto, consultar: MARÍN,
Antonio Martínez. El buen funcionamiento de los servicios públicos: los principios de
continuidad y regularidad. Madrid: Tecnos, 1990, p. 63-64; FINGER, Ana Cláudia. Serviço
público: um instrumento de concretização de direitos fundamentais. Revista de Direito
Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, n. 12, abr./jun. 2003, p. 142-143.
48
O princípio da generalidade ou universalidade denota que o serviço público necessita ser
prestado de forma equânime, ou seja, em benefício a todos os cidadãos que se encontram em
igualdade de condições, de maneira a tratar uniformemente os sujeitos na prestação de
serviços públicos. Neste sentido: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 489.
49
Sobre o princípio da modicidade dos serviços públicos, ver o estudo de: ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 1996, p. 99. Assevera a eminente publicista que a doutrina chegou a erigir
como característica do serviço público a gratuidade. No entanto, prevalece, em sede
doutrinária, utilizado como requisito em larga escala, a modicidade das tarifas devidas pela
obtenção de serviços públicos. Destaca também que a gratuidade do serviço público trata-se,
em verdade, de falácia, nestes termos: “Ainda hoje é comum a referência ao ensino público
gratuito, à universidade pública gratuita, quando, em verdade, essa gratuidade constitui uma
falácia, pois há pagamento de valores devidos pelos usuários desses serviços, ainda que
constituam valores módicos, especialmente considerando-se os similares prestacionais das
atividades por particulares.” A contraprestação devida pelos usuários na fruição dos serviços
públicos deve obedecer a modicidade, de modo a não onerá-los excessivamente ou
marginalizá-los no acesso aos serviços de natureza essencial. Neste sentido: PORTO NETO,
Benedicto. Concessão de serviço público no regime da Lei n. 8.978/95: conceitos e princípios.
São Paulo: Malheiros, 1998, p. 90; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito
administrativo. 14.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 605.
A modicidade da tarifa não significa, de maneira imperativa, valor reduzido, mas corresponde à
idéia de menor tarifa em face do custo e do menor custo frente à adequação do serviço.
46
uniformidade;
52
neutralidade;
53
publicidade ou máxima transparência;
obrigatoriedade
54
e responsabilidade.
55
Desta forma, o artigo 6º da Lei n.
8.987/95, para além de sistematizar os princípios gerais operativos dos
Sustenta esta diretriz: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 491-492.
50
É da essência do serviço público a mutabilidade ou adaptabilidade, tendo em vista a variação
das necessidades sociais e a alteração dos modos possíveis de sua solução. Para tanto, ver:
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 490. A
doutrina francesa também menciona a importante premissa que norteia os serviços públicos –
princípio da adaptação constante, porquanto as relações sociais sofrem sucessivas e
ininterruptas mutações. Ver: BOITEAU, Claudie; LACHAUME, Jean-François; PAULIAT,
Hélène. Grands services publics. 2.ed. Paris: Armand Colin, 2000, p. 309-310. No mesmo
sentido, ver: CHRÉTIEN, Patrice; DUPUIS, Georges; GUÉDON. Marie-José. Droit administratif.
6.ed. revue. Paris: Dalloz, 1999, p. 503.
51
O princípio da eficiência tem por objetivo o cumprimento das finalidades do serviço público
através dos recursos disponíveis, no escopo de satisfazer as necessidades da população da
forma menos onerosa possível, envidando os recursos carreados pela Administração Pública
na consecução e prestação de serviços públicos de qualidade. Neste sentido, ver: MELLO,
Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14.ed. São Paulo: Malheiros, 2002,
p. 104; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16.ed. São Paulo:
Malheiros, 1999, p. 651-652.
52
O princípio da igualdade ou uniformidade deve reger o funcionamento dos serviços públicos,
tendo em vista a exigência de igualdade no acesso, no funcionamento e na utilização do
serviço, sendo incabível fixar-se discriminações injustificadas em seu alcance e fruição. Para
tanto, ver: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade.
3.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39; GUGLIELMI, Gilles J.; KOUBI, Geneviève. Droit du
service public. Paris: Montchrestien, 2000, p. 385; CHAPUS, René. Droit administratif général.
t. I. 11.ed. Paris: Montchrestien, 1997, p. 547; BOITEAU, Claudie; LACHAUME, Jean-François;
PAULIAT, Hélène. Grands services publics. 2.ed. Paris: Armand Colin, 2000, p. 335;
SOUVIRÓN MORENILLA, José María. La actividad de la administración y el servicio público.
Granada: Comares, 1998, p. 514.
53
A prestação dos serviços públicos não poderá estabelecer-se mediante discriminações entre
usuários, agentes e fornecedores. Ademais, os serviços públicos não devem ser utilizados em
proveitos outros que não proporcionar o bem-estar à coletividade. Neste sentido: BOITEAU,
Claudie; LACHAUME, Jean-François; PAULIAT, Hélène. Grands services publics. 2.ed. Paris:
Armand Colin, 2000, p. 371; MIGUEZ MACHO, Luis. Los servicios públicos y el régimen jurídico
de los usuarios. Barcelona: CEDECS, 1999, p. 145; ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo
sobre concessão e permissão de serviço público no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996,
p. 96; CHRÉTIEN, Patrice; DUPUIS, Georges; GUÉDON. Marie-José. Droit administratif. 6.ed.
revue. Paris: Dalloz, 1999, p. 501.
54
O princípio da obrigatoriedade dos serviços públicos decorre do inescusável dever de o
Estado prestá-los ou promover-lhes a prestação, sob pena de responsabilidade. Sobre o
princípio da obrigatoriedade, consultar: CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito
constitucional tributário. 19.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 476-477.
55
O núcleo gerador da responsabilidade objetiva é o caráter público do serviço, o exercício de
atividade pública, de serviço público. A respeito da temática, consultar: BACELLAR FILHO,
Romeu Felipe. Responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito privado
prestadoras de serviço público. Interesse Público, São Paulo, ano 2, n. 6, abr./jun. 2000, p. 44;
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14.ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 679.
47
serviços públicos concedidos ou permitidos, na forma do artigo 175 da
Constituição Federal de 1988, consagra a disciplina que se aplica à
Administração Pública extensivamente.
O serviço público, na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello, significa
o oferecimento de utilidade ou comodidade material a ser experimentada pelo
interesse geral, fruível pelos cidadãos, que o Estado assume como pertinente a
seus deveres e presta por si mesmo ou por quem o represente, sob regime de
Direito Público, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no
sistema normativo.
56
Juarez Freitas conceitua os serviços universais ou públicos como aqueles
essenciais para a realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito,
prestados sob regime de Direito Público. Desempenhados direta ou
indiretamente pela Administração Pública ou, ainda, por pessoas alheias a seu
âmbito, destaca o autor que o Estado não pode prescindir da adequada
prestação dos serviços públicos, porquanto indispensáveis à consecução dos
interesses sociais.
57
Importantes contribuições à noção de serviços públicos exsurgem dos
ensinamentos de Odete Medauar, que não limita o conceito do instituto ao
56
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14.ed. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 600.
57
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3.ed.
rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 312.
48
âmbito econômico, ressaltando que o contexto em que tal noção se insere é
mais vasta. Neste sentido leciona a autora:
Pode-se pensar de modo evolutivo no tocante ao serviço
público. A concepção clássica pode não vigorar hoje nos seus
exatos termos. Aliás, deve-se lembrar que em sua noção
Duguit não associou serviço público a gestão estatal. O serviço
público muda sua conformação segundo as transformações da
sociedade, da tecnologia, da política.
Pode-se inserir o dado econômico, a concorrência, a gestão
privada, sem nunca deixar de lado o social, a coesão social, os
direitos sociais. E sem abolir a presença do Estado.
As atividades essenciais à coletividade não podem ficar à
mercê somente do jogo do mercado. Neste aspecto mantém-se
atual o pensamento de Duguit, expresso nas primeiras décadas
do século XX. Também permanece atual o francês Demichel,
para quem “a noção é indispensável. Expressa uma atividade
submetida não às únicas leis do mercado, mas a regras de
funcionamento do Estado, que impõem a este uma exigência;
esse elemento de exigência é precioso porque é elemento de
proteção de classes menos favorecidas”. Eu diria: é elemento
de proteção de toda a coletividade.
58
Do modelo de Estado Liberal – vigilante e centrado nos interesses e
garantias individuais – ao Estado Social, visível é o alargamento dos papéis do
Poder Público no oferecimento de serviços públicos enquanto instrumentos
para a concretização de políticas públicas, as quais visam a implementação
dos direitos fundamentais sociais encartados na Constituição Cidadã brasileira
de 1988, voltados ao atendimento das necessidades sociais básicas ou para a
satisfação de comodidades de interesse geral, realizadas pelo próprio Estado
ou por quem lhe faça às vezes.
58
MEDAUAR, Odete. Nova crise do serviço público? In: CUNHA, Sérgio Sérvulo da; GRAU,
Eros Roberto (Coord.). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da
Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 537-538.
49
A noção de serviço público, embora vinculada a um núcleo de
essencialidade, tem sofrido mutações no curso da história, de acordo com o
tensionamento das forças sociais e, por conseguinte, pelo papel e
conseqüentes responsabilidades atribuídas ao Poder Público, mormente na
passagem do Estado Liberal ao Social. Afinal, a noção de serviços públicos
perpassa momento de crise ou de evolução?
2.4 Crise ou evolução da noção de serviços públicos?
Muito se discute, em sede doutrinária, acerca da atual conjuntura dos
serviços públicos. Afinal, está-se a tratar de crise ou de evolução do instituto? A
temática da crise dos serviços públicos teve seu nascedouro no momento em
que houve modificações em seu conceito tradicional, mormente sob as
perspectivas subjetiva ou orgânica,
59
material ou objetiva
60
e formal,
61
ou seja,
59
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1968, p. 151-152. O autor, no que concerne ao serviço público em
sentido subjetivo ou orgânico, preleciona: “Em sentido subjetivo o serviço público é concebido
como um organismo público, ou seja, uma parte do aparelho estatal. Nesta acepção, falar em
serviço público é o mesmo que se referir a um complexo de órgãos, agentes e meios do Poder
Público. É uma organização pública de podêres e competências. [...] Sem que importe discutir
aqui as várias formulações colecionadas, interessa apenas registrar que o que têm em comum
é tomar a noção de serviço público como equivalente a um organismo, isto é, considerá-lo
subjetivamente, orgânicamente.” Neste sentido: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito
administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 481. Para Marçal Justen Filho, o ângulo subjetivo
da noção de serviço público “trata-se de atuação desenvolvida pelo Estado (ou por quem lhe
faça as vezes).”
60
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 481.
Para o autor, a concepção material ou objetiva de serviço público significa que “o serviço
público consiste numa atividade de satisfação de necessidades individuais de cunho
essencial.” Na esteira do autor, página 482, o aspecto objetivo do conceito de serviço público
compreende a “satisfação direta e imediata dos direitos fundamentais.” Na mesma esteira de
Marçal Justen Filho, ver: FINGER, Ana Cláudia. Serviço público: um instrumento de
concretização de direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo
Horizonte, n. 12, abr./jun. 2003, p. 141-142. A autora destaca a importância do aspecto material
50
através da pessoa que o presta, da atividade de interesse da coletividade e do
regime em que este serviço encontra-se regulado.
Cumpre mencionar que a celeuma instaurada no âmbito dos serviços
públicos no Brasil é fruto das mudanças de perspectiva do Estado, que migrou
da Administração Pública Burocrática à Gerencial, tendo em vista a gestão
paulatina dos mesmos pela iniciativa privada.
Na mesma perspectiva, destaca Luis Martín Rebollo que o serviço público,
em sua noção tradicional, significava uma atividade de competência do Estado,
excluída do mercado, cuja titularidade incumbia ao Poder Público. Neste
sentido as considerações do administrativista, calcado no modelo europeu:
dos serviços públicos, porquanto implementam a satisfação direta e imediata dos direitos
fundamentais: “Ao inverso da concepção tradicional, onde os direitos fundamentais se
submetem à lei, o constitucionalismo contemporâneo preconiza que a lei é concebida para a
garantia dos direitos fundamentais e estes, por sua vez, vinculam todos os poderes
constituídos. Nesse sentido, a finalidade essencial atribuída à Constituição, compreendida não
apenas como um sistema de normas de superior hierarquia, mas sim como um produto de uma
sociedade, passa a ser a tutela dos direitos fundamentais. Conquanto esteja inteiramente
centrado na teoria dos direitos fundamentais, em suas três grandes frentes (fundamentação,
positivação e eficácia), o problema nuclear que vem sendo enfrentado pelo constitucionalismo
moderno diz respeito à proteção desses direitos. Em verdade, a eficácia jurídica das normas
constitucionais definidoras de direitos fundamentais é tema sobre o qual vem se debruçando
acendradamente a doutrina constitucional, especialmente no que toca aos direitos sociais. De
fato, a eficácia e efetividade dos direitos sociais é a questão que mais tem suscitado
controvérsias, dividindo a doutrina constitucionalista. De um lado, os que assinalam a
impossibilidade de tais direitos serem justicializados, eis que se tratam de direitos prescritos por
normas dotadas de eficácia muito reduzida. De outro, há os que defendem que os direitos
fundamentais sociais revestem-se do caráter de verdadeiros direitos subjetivos e, à vista disso,
gozam de eficácia jurídica, sendo passíveis de justicialização. [...] os direitos fundamentais
sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos por meio do Estado. Isto significa que
são direitos a prestações materiais positivas que o Estado, por meio das leis, dos atos
administrativos e também da implementação dos serviços públicos está adstrito a realizar, a fim
de concretizar o gozo efetivo dos direitos constitucionalmente protegidos.”
61
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11.ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 96.
O aspecto formal do serviço público, conforme destaca a autora, “seria aquele exercido sob
regime de direito público derrogatório do direito comum.”
51
El servicio público, en su acepción tradicional, presuponía una
actividad que ha sido “retenida” por el Estado, excluida del
mercado, asumida en cuanto a su titularidad aunque su gestión
pudiera concederse. Ese era el concepto comúnmente admitido
entre nosotros de servicio público. Un concepto orgánico o
subjetivo.
Pues bien, ese modelo que hemos analizado, ese modelo que
estaba consolidado y a partir del cual se han montado buena
parte de las técnicas de intervención del Derecho
Administrativo en este pasado siglo, ese modelo, digo, es el
modelo que, justamente, está en crisis. A punto, si no de
desaparecer, sí de modificar de forma sustancial.
Varias son las razones de esta crisis. La liberalización
económica es la principal y, en nuestro caso, las exigencias
que a su servicio derivan de la normativa comunitaria europea
de obligado cumplimiento en cuanto se impone y rompe, sin
excepciones, el Derecho interno.
62
Cármen Lúcia Antunes Rocha destaca que no final do século XX o Estado
assumiu novos rumos, novas concepções. Muitas das atividades do Estado
tornaram-se nebulosas.
63
Neste passo, Agustín A. Gordillo, em seu Tratado de
62
REBOLLO, Luis Martín. Servicios públicos y servicios de interes general: la nueva
concepción y operatividad del servicio público em el derecho administrativo español. In:
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação das tendências
contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 102-103.
63
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público no
direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 1-2. Eis as pontuais considerações da autora:
“Chamam a atenção, permanentemente, neste final de século, as novas (novas?) concepções
do Estado. Afirma-se um vácuo, ou pelo menos uma carência de ideologias, ou uma acentuada
nebulosidade nas idéias que conduziram ao repensamento daquelas antes marcantes e
marcadas como ‘direita e esquerda’. A derrocada dos regimes do Leste Europeu parece ter
posto à prova a operacionalidade de algumas correntes de pensamento, e todo esse
contingente histórico serve a essa (que me parece) falsa ou aparente conclusão de ‘fim da
história’, considerada como o exercício da dialética. Na verdade, não creio que as ocorrências
históricas das duas últimas décadas e deste final de século, em especial, demonstrem o
discurso da falência de ideologias. Antes, o que parece mais seguro é afirmar que os fatos
históricos demonstram: a) que o poder econômico, que tradicionalmente sustenta o poder
político no sistema capitalista e nos seus antecedentes, quer-se fazer poder político (o que
também não é inédito), porque as novas tecnologias demandam mercados cada vez mais
extensos, pelo que, sem a anuência ou mesmo a conivência dos que exercem o poder político
no Estado, não podem ser obtidos; b) que o poder político, sempre dependente do poder
econômico (desde o Estado Antigo, passando pelas experiências medievais e pela formação
da burguesia e do Estado Moderno), agora se faz não apenas companheiro deste, mas é a ele
servil; c) que o poder político não democrático não permite sobreviver qualquer ideologia ou
experiência embasada em idéias sobre a melhor forma de realização dos fins do Estado em
benefício do homem; d) que o poder político democrático demanda uma estrutura econômica
que depende da colaboração cada vez maior da sociedade, quer-se dizer, dos particulares,
atuando nessa qualidade e condição juntamente com o Estado.”
52
Derecho Administrativo, tece comentários acerca da crise do conceito de
serviço público:
Dos elementos de esta noción – el de la persona que atiende el
servicio y el del régimen que lo regula – están actualmente, al
parecer de la doctrina francesa moderna, en crisis. Esa crisis
lleva a tales autores a proponer concepciones “existenciales”
del servicio público o más francamente a abandonar totalmente
el término y el concepto.
La crisis de la noción tradicional se hace presente en los tres
aspectos de la misma.
64
A crise do serviço público também é sustentada por Jean Rivero. Assevera
o referido estudioso que o Estado e a transformação de seus papéis
manifestam-se através de três vias de crise: o desenvolvimento paulatino da
gestão privada de atividades antes exclusivas do Estado, a incerteza sobre a
definição do serviço público e as vacilações encontradas na jurisprudência
francesa sobre a noção de serviço público.
65
64
GORDILLO, Agustín A.. Tratado de derecho administrativo. t. II. Buenos Aires: Ediciones
Macchi, 1991, p. XIII-7.
65
RIVERO, Jean. Direito administrativo. Tradução de Rogério Ehrhardt Soares. Coimbra:
Almedina, 1981, p. 192-194. Eis as lições do jurista francês: “1.° O desenvolvimento da gestão
privada. - As hipóteses de gestão privada, excepcionais no momento do aresto Terrier,
adquiriram uma extensão considerável. Por um lado os serviços tradicionais recorrem
freqüentemente aos contratos de direito privado, o que alarga o campo da competência judicial
[...]. Por outro lado, e sobretudo, o abandono progressivo do liberalismo económico multiplicou
os serviços públicos com carácter industrial e comercial, que funcionam nas mesmas condições
que as empresas privadas similares, sob um regime de direito privado, e que a jurisprudência
submete consequentemente à competência judicial [...]. 2.° Incertezas sobre a definição do
serviço público. – A noção de serviço público esbateu-se. Na prática mais frequente do Estado
Liberal, no serviço público encontravam-se reunidos três elementos: um organismo
administrativo, uma actividade de interesse geral e um regime jurídico derrogatório do direito
comum. Ora estes três elementos foram-se dissociando: tornou-se corrente que uma actividade
de interesse geral (serviço público no sentido funcional, ou ainda missão de serviço público)
seja exercida por um organismo de direito privado, sob um regime que mistura direito privado e
direito público, ou ainda (caso dos serviços económicos) que um organismo público (serviço
público no sentido orgânico) se encontre colocado em princípio sob um regime de direito
privado. Nestas condições tornou-se muito difícil e muito arbitrário dizer o que é ou o que não é
um serviço público; a resposta varia conforme nos coloquemos no ponto de vista da natureza
do órgão, no ponto de vista da sua missão ou ainda no ponto de vista do regime jurídico
53
As sucessivas transformações do Estado ocasionaram mudanças nas
concepções material ou objetiva, orgânica ou subjetiva e formal de serviço
público, o que acarretou certo desgaste no ideário clássico do instituto. Destaca
Dinorá Adelaide Musetti Grotti que na época do Estado Liberal era válida a
junção dos três elementos ou componentes dos serviços públicos. No entanto,
pouco a pouco esta noção sofreu desgastes, porquanto houve a dissociação
dos elementos que compunham o conceito. Assevera a autora:
Em primeiro lugar, à medida em que o Estado foi se afastando
dos princípios do liberalismo, em virtude de suas imperfeições
no âmbito econômico e social, começou a ampliar suas
intervenções e o rol de atividades próprias, definidas como
serviços públicos, pois passou a assim considerar
determinadas atividades comerciais e industriais que, antes,
eram tradicionalmente reservadas à iniciativa privada.
Passou-se de um Estado em que a iniciativa privada era a
regra, e o serviço público a exceção, em que a boa
administração era a que administrava o menos para um Estado
no qual, depois da Primeira Guerra Mundial, surgiram
problemas novos cuja solução aparecia como de interesse
geral, justificando a criação de uma nova geração de serviços
públicos, cuja prestação, acreditava-se, dependia, até então,
apenas, da iniciativa privada.
Ao mesmo tempo, outro fenômeno se verificou: o Estado
percebeu que não dispunha de organização adequada à
realização desse tipo de atividade; em conseqüência, começou
a haver a gestão e serviços públicos por particulares, por meio
dos contratos de concessão de serviços públicos e,
posteriormente, por meio de pessoas jurídicas de direito
privado, criadas para esse fim, sob regime predominantemente
privado.
66
aplicável. [...] 3.° As hesitações da jurisprudência. – Assinalámos já os arestos que tendem a
restaurar a noção de serviço público na sua função de critério de competência. Mas, por um
lado, alguns dos mais autorizados comentadores desta jurisprudência, e os mais respeitadores
do pensamento do Conselho de Estado, não dissimulam a incerteza que pesa sobre a noção,
que os esforços jurisprudenciais que a tentaram tornar mais precisa não dissiparam [...]. Na
medida em que essas tentativas fazem surgir no meio das características fundamentais do
serviço público <<a existência de prerrogativas de poder público>> privam a noção de uma
grande parte do seu valor próprio.”
66
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a constituição brasileira de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 53-54.
54
Assim, verifica-se que a mencionada crise dos serviços públicos, no caso
brasileiro, pode ser caracterizada pelas mutações sofridas pelo Estado, dada a
assunção, pela iniciativa privada, de atividades até então desempenhadas,
preponderantemente, pelo Poder Público.
Assim, face às dificuldades de o Estado dar vazão às políticas públicas de
serviços essenciais que a coletividade requer, o Programa Nacional de
Desestatização – Lei n. 8.031/90, sucedida pela Lei n. 9.491/97 – trouxe uma
série de justificativas para a outorga dos serviços públicos ao setor privado,
implementando-se, destarte, o regime das concessões e permissões. Agregada
ao programa da desestatização, a partir de 1995 iniciou-se a reforma gerencial
da Administração Pública, por meio da adoção de formas modernas de gestão
do Estado brasileiro.
Em virtude da necessidade da implementação de políticas públicas pelo
Estado Social, e face à incapacidade paulatina deste em prestá-las, deu-se
início à chamada crise subjetiva,
67
tendo em vista que as pessoas públicas não
são mais as únicas a prestarem serviço público, porquanto algumas atividades
são atualmente prestadas por pessoas jurídicas de direito privado, o que vem a
romper com o viés subjetivo (clássico) do instituto. Da mesma forma, destaca-
se o rompimento com o aspecto formal dos serviços públicos, tendo em vista
que estes não são prestados sob o regime jurídico público, única e
exclusivamente.
67
Acerca da análise da concepção subjetiva ou orgânica dos serviços públicos, ver a nota 59.
55
Agustín A. Gordillo salienta, no que concerne à pessoa que presta o
serviço público, que atualmente outras entidades se encontram encarregadas
de prestar serviços públicos à coletividade. Destaca que os concessionários de
serviços públicos também estão incumbidos de prestar serviços em regimes
exorbitantes do direito comum, isto é, possuem atribuições que, outrora,
somente o Poder Público detinha.
68
Guillermo Muñoz assevera que os serviços públicos são conhecidos
classicamente como uma forma de intervenção administrativa, com titularidade
pública reservada a determinada atividade. Entretanto, suscita o autor que as
idéias liberais hoje existentes trouxeram uma oscilação entre a gestão estatal
exclusiva dos serviços públicos e o repasse de certas atividades antes inatas
ao Poder Público à iniciativa privada, denominando esta nova figura jurídica de
concessionário interposto.
69
68
GORDILLO, Agustín A.. Tratado de derecho administrativo. t. II. Buenos Aires: Ediciones
Macchi, 1991, p. XIII-8-9. Assim leciona o estudioso: “Ese aspecto de la ‘crisis’ es parcialmente
obviable, sin embargo, pues estas asociaciones profesionales, corporaciones de oficios,
etcétera, no son personas enteramente ajenas al proceso administrativo, como se advierte.
Dado que la administración no es sino un órgano del Estado, carente de personalidad jurídica
propia, no es sólo a través de ella y mediante su intervención que puede hacerse una
delegación de función administrativa. Dicho en otros términos, el contrato temporal de
concesión no es la única forma en que el Estado puede delegar poderes de naturaleza pública
en un ente determinado para que realice una parte de la función administrativa; también puede
la ley directamente crear un ente y conferirle tales faculdades sin limitación temporal prefijada.
De esta manera, realizando una ampliación conceptual a la frase ‘directa o indirectamente
realizada por la administración’, se solucionaría este aspecto de la crisis. En consecuencia,
cabe afirmar que cuando la ley crea un ente, o autoriza la constitución de un ente, y le confiere
el ejercicio de una parte de la función administrativa, tal función se ejerce precisamente en
forma indirecta, es decir, por órganos distintos de los directamente encargados por la
Constitución para realizarla. La ley puede fijar fundamentalmente dos tipos de entes; unos, en
los que los directivos son nombrados por el Estado (entes autárquicos, empresas del Estado), y
otros, en los que los directivos son nombrados por los administrados (asociaciones
profesionales y gremiales, etc.). En esta interpretación, al decir entonces que el servicio público
es una actividad realizada directa o indirectamente por la administración no se excluye del
concepto a ninguno de los casos traídos a la luz por la doctrina francesa moderna.”
69
MUÑOZ, Guillermo. Las transformaciones del servicio público. In: SUNFELD, Carlos Ari;
VIEIRA, Oscar Vilhena (Coord.). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999, p. 170.
56
Também pontuam Gilles J. Guglielmi e Geneviève Koubi, em Droit du
Service Public, que as modificações havidas na seara dos serviços públicos,
em nível mundial, denotam as rupturas sofridas pelo sistema jurídico global e a
conseqüente mutação do instituto. Asseveram os juristas franceses que “les
transformations du droit du service public découlent des modifications du
système juridique global“.
70
Logo, tratar de serviços públicos não consiste em aplicar regime de direito
público, necessariamente. Isto veio a causar notável modificação na concepção
formal do instituto. Nesta perspectiva, Cristiane Derani comenta que o novo
perfil do Estado é traçado sob o enfoque da desregulamentação e das
privatizações, mormente pela inserção da iniciativa privada na prestação de
serviços públicos, senão vejamos:
Há uma espécie de uniformização das diretrizes orientadoras
do novo perfil dos Estados. A desregulamentação, a
privatização, a reforma da previdência, o ajuste fiscal são
políticas perseguidas por diversos Estados atualmente. O
aparelho estatal é levado a reorganizar-se segundo as
exigências do funcionamento mundial de mercados, dos fluxos
dos fatores da produção, das alianças estratégicas entre
corporações.
O Estado não se retira do domínio econômico. Suas políticas
econômicas passam a se formar em desconsideração do
sujeito, na direção do fortalecimento do movimento de
reprodução do dinheiro. Ele modifica seu modo de intervenção,
caracterizando-se pela diminuição das ações de
implementação do bem estar social.
Esta passagem se verifica na atuação do Estado no domínio
econômico. A retirada do Estado Social, refletida na
desconstrução do aparelho burocrático voltado à atividade de
concretização dos ideais iluministas da liberdade, igualdade e
70
GUGLIELMI, Gilles J.; KOUBI, Geneviève. Droit du service public. Paris: Montchrestien,
2000, p. 85.
57
fraternidade indica uma mudança no curso da ação do Estado
no domínio econômico.
71
Em conformidade com os novos papéis assumidos pelo Estado, imperioso
mencionar-se que a crise da noção dos serviços públicos no Brasil está afetada
ao retorno do modelo (neo)liberal – em nome das propostas advindas com o
neoliberalismo – o qual veio a suplantar tendências marcantes do modelo de
Estado Social.
Outrossim, o que pode ser vislumbrado, no atual contexto do Estado
brasileiro, é uma evolução da noção de serviços públicos, porquanto o Direito,
enquanto ciência eminentemente social, deixa-se tocar pelas transformações
ocorridas na sociedade, sobretudo considerando-se as mudanças de perfil
perpetradas no Brasil pós-1990, quando implementou-se a desestatização
como forma de redução da dívida pública e, notadamente, com o advento da
Administração Pública Gerencial, instaurada a partir de 1995 como fruto da
Reforma do Estado.
Assim, o que se verifica é a mutação da noção tradicional dos serviços
públicos, tendo em vista as sucessivas e ininterruptas transformações que o
Estado está a sofrer. Neste limiar, tem-se uma realidade distinta daquela vivida
na época do surgimento do instituto dos serviços públicos na França. E nem
71
DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos: as ações do Estado na produção
econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 31-32.
58
poderia ser diferente, porquanto o Direito é vida,
72
é ciência da compreensão
hermenêutica.
Inequívoco que, à época em que se originou o instituto, a tradição histórica
e cultural da humanidade era outra. Houve nítida mudança das condições
sociais nos séculos XX e XXI. O evento da globalização, a volatilidade dos
mercados e a complexidade social estão a promover constantes
transformações no Estado. Logo, o que se verifica nos serviços públicos é uma
mutação/evolução conceitual.
Eros Roberto Grau, em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de
1988, posiciona-se, nitidamente, no sentido de que a noção de serviço público
sofreu processo evolutivo, in litteris:
Assim, o que efetivamente há de ser determinante para tanto
será o exame da Constituição, desde que o intérprete tenha
compreendido que, em verdade, serviço público não é um
conceito, mas uma noção, plena de historicidade [...]. De três
outros aspectos, contudo, devo ainda cogitar: o atinente à
inconsistência da identificação do que seja serviço público
mediante a consideração do regime jurídico a que se sujeita a
atividade (a), o referente à definição constitucional de certas
atividades como serviço público (b) e o concernente à situação
72
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 49. Nesta obra, destaca Eros Roberto Grau: “O direito é um
organismo vivo, peculiar porém, porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é
contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa a sua força, o seu fascínio, a sua
beleza. É do presente, na vida real, que se tomam as forças que lhe conferem a vida. E a
realidade social é o presente; o presente é a vida – e vida é movimento. Assim, o significado
válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do
direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos
normativos à realidade e seus conflitos.”
59
jurídica das empresas públicas e das sociedades de economia
mista que prestam serviço público (c).
73
Destarte, a evolução da noção dos serviços públicos necessita ser
perquirida à luz do contexto histórico
74
vivenciado pela coletividade em uma
determinada conjuntura temporal.
75
73
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 8.ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 113. No mesmo sentido, verificar: DALLARI, Adilson Abreu. Privatização,
eficiência e responsabilidade. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Coord.). Uma
avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p. 211. Neste ensaio, destaca o autor: “Qualquer análise que se pretenda fazer de
determinado sistema jurídico ou de um segmento dele, por mais abrangente que seja, sempre
terá um valor relativo, pois todo e qualquer sistema jurídico sempre está em constante
evolução, acompanhando as inevitáveis mutações da sociedade na qual deve operar. A
intensidade e a velocidade das mutações sociais determinam o processo de alteração das
instituições jurídicas.”
74
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte I. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.
13.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 183-184. Eis a concepção de historicidade em Martin
Heidegger: “Há significados de ‘história’ que nem possuem o sentido de ciência histórica e nem
a visam como objeto. Eles se referem ao próprio ente que nem sempre é, necessariamente,
objetivado. Dentre estes sentidos reivindicam um uso privilegiado aqueles em que este ente é
compreendido como passado. Este significado explicita-se no seguinte discurso: isto ou aquilo
já pertence à história. ‘Passado’ significa aqui não ser mais simplesmente dado ou então ainda
ser simplesmente dado, embora sem ‘efeito’ sobre o ‘presente’. De todo modo, entendido como
o passado, o histórico também possui o significado contrário, quando dizemos: não se pode
escapar da história. História significa, nesse caso, o passado mas que ainda surte efeito. Como
quer que seja, o histórico, na acepção de passado, é compreendido numa relação de efeito
positiva ou privativa sobre o ‘presente’, no sentido do ‘aqui e agora’ real. ‘Passado’ tem ainda
uma curiosa duplicidade de sentido. O passado pertence, indiscutivelmente, ao tempo anterior,
aos acontecimentos de então. [...] A seguir, a história não significa tanto o ‘passado’ no sentido
do que passou, mas a sua proveniência. O que ‘tem história’ encontra-se inserido num devir. O
seu ‘desenvolvimento’ pode ser ora em ascensão, ora queda. O que, desse modo, ‘tem uma
história’ pode, ao mesmo tempo, ‘fazer’ história. É ‘fazendo época’ que, no ‘presente’, se
determina um ‘futuro’. História significa, aqui, um ‘conjunto de acontecimentos e influências’
que atravessa ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’. Aqui, o passado não tem primazia. História
também significa, ademais, em oposição à natureza, que também se move ‘no tempo’, os entes
passageiros ‘do tempo’, isto é, as transformações e destinos dos homens, dos grupos humanos
e de sua ‘cultura’. Nesse caso, história não significa tanto o acontecer enquanto modo de ser
mas a região daquele ente que se distingue da natureza, no que respeita à determinação
essencial da existência do homem como ‘espírito’ e ‘cultura’, embora a natureza, de certo
modo, pertença à história assim entendida. Por fim, vale ainda como ‘histórico’ o que é legado
na tradição, quer seja conhecido historicamente ou admitido como evidente ou ainda velado em
sua proveniência.”
75
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte II. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.
11.ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 177-178. Nesta obra, Heidegger ressalta a importância do
tempo (temporalidade) ao direito e à compreensão hermenêutica: “Não devemos então
renunciar ao ponto de partida da temporalidade enquanto sentido ontológico da totalidade da
pre-sença mesmo que permaneça ontologicamente obscuro o que se denomina ‘contexto’
entre nascimento e morte? Ou não será que, ao contrário, a temporalidade explicitada é que
60
A hermenêutica filosófica, na esteira de Martin Heidegger, ressalta a
importância do ser-aí (Dasein
76
) para o estudo ora empreendido, porquanto, na
perspectiva traçada pela temática em exame – evolução da noção de serviços
públicos, o Dasein consiste em possibilidade aberta, em constante construção.
A evolução da noção de serviços públicos é passível de ser verificada,
concretamente, com a mudança de perfil da Administração Pública no Brasil,
que migrou do perfil burocrático à perspectiva gerencial de Estado, sob os
auspícios da nova ordem global. Neste sentido, os serviços públicos, até então
prestados de forma preponderante e quase exclusiva pelo Poder Público, foram
propicia o solo para se dar uma direção precisa à questão ontológico-existencial do chamado
‘conceito’? No âmbito destas investigações, talvez já seja um ganho aprender a não facilitar os
problemas. Haverá algo mais ‘simples’ do que caracterizar o ‘contexto da vida’ entre
nascimento e morte? Pois ele consta de uma seqüência de vivências ‘no tempo’. Quando se
analisa mais profundamente esta caracterização do contexto em causa e, sobretudo, os seus
pre-conceitos ontológicos, o resultado é curioso. Nesta seqüência de vivências, só é
‘propriamente’ ‘real’ a vivência simplesmente dada ‘em cada agora’. As vivências passadas e
futuras já não são mais ou ainda não são ‘reais’. A presença atravessa o espaço de tempo que
lhe é concedido entre os dois limites de tal maneira que, apenas sendo ‘real’ cada agora, ela,
por assim dizer, salta por cima da seqüência dos agora de seu ‘tempo’. É por isso que se diz
que a pre-sença é ‘temporal’. Nessa contínua troca de vivências, o si-mesmo se mantém numa
certa coincidência de identidade. São divergentes as opiniões quanto à determinação dessa
permanência e de sua possível relação com a troca das vivências. Fica indeterminado o ser
deste contexto de vivências em sua troca e permanência. Nessa caracterização do contexto da
vida, que se tenha por verdadeiro ou não, parte-se, no fundo, da suposição de algo
simplesmente dado ‘no tempo’, embora, evidentemente, não seja ‘uma coisa’.”
76
VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 5. Na referida
obra, Vattimo salienta: “Que significa, para o Dasein, ser um todo? Se o Dasein é
essencialmente poder-ser, nunca o poderemos encontrar como um todo. O facto de partir da
quotidianidade média como lugar de <<todas>> as possibilidades do Dasein admite
implicitamente estas possibilidades como simples-presenças, possibilidades que havia que ter
em conta no seu conjunto, sem passar nenhuma por alto. Por outro lado, a partir da
quotidianidade média, vimo-nos levados a considerar o estar-aí no seu modo de ser
inautêntico, e só no fim chegámos a uma noção de autenticidade, todavia ainda imprecisa e
aproximada. Sigamos, com Heidegger, o fio condutor da totalidade: em que sentido o Dasein
(que é sempre poder-ser) pode ser um todo? Não se pode pretender experimentar o Dasein
como totalidade no sentido da simples-presença porque é constitutivo para ele ser
possibilidade aberta.”
61
outorgados ao setor privado, rompendo-se, destarte, com a formatação
clássica do instituto.
3 A REFORMA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
O que tem caracterizado o devir histórico do Direito é a complexidade e a
pluralidade,
77
sobretudo na atual conjuntura da história, permeada pelas crises
do Estado e pela baixa compreensão do Texto Constitucional Brasileiro.
78
De
77
AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social de serviços públicos. São Paulo: Max
Limonad, 1999, p. 20.
78
STRECK, Lenio Luiz. A revolução copernicana do (neo)constitucionalismo e a (baixa)
compreensão do fenômeno no Brasil – uma abordagem à luz da hermenêutica filosófica. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Tratado de direito constitucional tributário: estudos em
homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 727-728. Assevera
Streck: “Na verdade, embora o positivismo possa ser compreendido no seu sentido positivo,
como uma construção humana do direito enquanto contraponto ao jusnaturalismo, e tenha,
portanto, representado um papel relevante em um dado contexto histórico, no decorrer da
história acabou transformando-se – e no Brasil essa questão assume foros de dramaticidade –
em uma concepção matematizante do social, a partir de uma dogmática jurídica formalista, de
nítido caráter retórico.” Logo, a crise constitucional ventilada por Streck diz respeito à
blindagem dos diplomas legislativos infraconstitucionais (códigos e legislação extravagante) em
relação à Carta Magna de 1988, blindagem essa que se manifesta pela resistência do
positivismo exegético e dedutivista em face do neoconstitucionalismo. Destarte, conforme
leciona Streck, a plenipotenciariedade da lei – como fonte e pressuposto do sistema – cede
lugar aos textos constitucionais que darão guarida às promessas da modernidade contidas no
modelo do Estado Democrático (e Social) de Direito. Segundo Streck, à página 725, Werner
Kägi, nos idos de 1945, salientava: <Sage mir Deine Einstellung zur Verfassungsgerichtsbarkeit
und ich sage Dir, man für einen Verfassungsbegriff Du hast>, ou, em vernáculo, <Diz-me a tua
posição quanto à jurisdição constitucional e eu te direi que conceito tens da Constituição>.
Acerca da revolução copernicana do Direito Constitucional, ver: STRECK, Lenio Luiz.
Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2.ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 13-14. Nesta obra também destaca Streck: “A compreensão acerca do
significado do constitucionalismo contemporâneo, entendido como o constitucionalismo do
Estado Democrático de Direito, a toda a evidência implica a necessária compreensão da
relação existente entre Constituição e jurisdição constitucional. Nesse sentido, a ilustrativa
assertiva de Werner Kägi, já em 1945: Sage mir Deine Einstellung zur
Verfassungsgerichtbarkeit und ich sage Dir, man für einem Verfassungsbegriff Du hast. Isto
significa afirmar que, enquanto a Constituição é o fundamento de validade (superior) do
ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição
constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito.
63
um lado, o cidadão-contribuinte, premido pela tributação excessiva do Estado,
que não vê concretizados os direitos fundamentais sociais inscritos na
Constituição Cidadã brasileira de 1988; por outro lado, o Estado, intrincado e
indecifrável emaranhado burocrático, ou, como refere José Casalta Nabais, o
leviatão fiscal.
79
Em síntese apertada, esta é a conjuntura que a Administração
Pública brasileira atravessa no atual quadrante da história.
Cumpre referir que, antes do advento da Reforma do Estado, a
Administração Pública estava desempenhando atividades nitidamente
empresariais. O inchamento do Estado consiste em situação que se verifica
desde longa data, sobretudo na década de 60 do século XX, sob a justificativa
da substituição das importações. Tendo em vista a fragilidade em que se
encontrava o setor privado, a economia foi impulsionada pelo Poder Público.
80
Portanto, o significado de Constituição depende do processo hermenêutico que desvendará o
conteúdo do seu texto, a partir dos novos paradigmas exsurgentes da prática dos tribunais
encarregados da justiça constitucional. Com isso, conceitos como soberania popular,
separação de poderes e maiorias parlamentárias cedem lugar à legitimidade constitucional,
instituidora de um constituir da sociedade. Do modelo de constituição formal, no interior da qual
o Direito assumia um papel de ordenação, passa-se à revalorização do Direito, que passa a ter
um papel de transformação da realidade da sociedade, superando, inclusive, o modelo do
Estado Social.”
79
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 217-
218. Em passagem da obra, Nabais comenta: “Procura-se, ao fim e ao cabo, saber até onde
pode ir o “despotismo mascarado” ou o “leviatão fiscal”, que o crescimento contínuo das
despesas públicas e dos impostos, nos termos já há muito prognosticados por A. WAGNER,
tem vindo a alimentar e com clara expressão na crescente percentagem do PIB que passa
pelas mãos do estado pela via dos impostos, uma percentagem que, por toda a parte do
mundo desenvolvido, já ultrapassou os 30%, aproximando-se mesmo em alguns casos dos
50%. Por outras palavras, apela-se ao princípio do estado fiscal como última barreira contra um
estado que, tendo atingido a dimensão fiscal que se conhece e concentrado no legislador todo
o poder que esta dimensão exprime, continua paradoxalmente a servir-se de um arsenal
protectivo dos cidadãos contribuintes obsoleto e, em larga medida, inoperante – o princípio da
legalidade fiscal.”
80
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
161-162. Salienta o autor: “Curiosa e paradoxalmente, o avanço e o agigantamento do Estado
64
Outrossim, com o advento da Carta Constitucional brasileira de 1988, em
especial na década de 90, iniciou-se grande debate acerca dos papéis e do
tamanho do Estado. Afinal, o modelo dos últimos vinte e cinco anos exauriu-se.
Adverte Luís Roberto Barroso que “o Estado brasileiro chegou ao fim do século
XX grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção e sem conseguir
vencer a luta contra a pobreza”.
81
Destaca-se que o fenômeno da globalização trouxe, inexoravelmente,
impactos e transformações na organização espacial das relações sociais e o
privilegiamento das relações e exercício de poder à distância entre, dentro e
para além dos Estados, em fenômeno complexo de desterritorialização e
reterritorialização do poder econômico, político e social. Nesta perspectiva,
José María Gómez analisa os processos de mudança estrutural da política
mundial e da própria figura do Estado-nação. Pontua o autor, in verbis:
Afinal, o principal desafio que enfrenta a política democrática
nesta época de transformação consiste, precisamente, em criar
condições e capacidades efetivas, por um lado, para cobrar
responsabilidade das forças transnacionais e internacionais da
globalização pelo alto que vêm se beneficiando de uma
espantosa concentração de recursos de poder econômico e
político em escala planetária (e que operam, portanto, para
além do único e cada vez mais impotente controle democrático
existente – o territorial); e, pelo outro, para legitimar instâncias
de governança supranacional através de uma ampla
participação – não exclusivamente interestatal – no processo
Econômico brasileiro se deu a partir da década de 60, sobretudo após o movimento militar de
1964, e ao longo de toda a década de 70, quando foram criadas mais de 300 empresas
estatais: Eletrobrás, Nuclebrás, Siderbrás etc. Foi a era das ‘Brás’.”
81
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
163.
65
de deliberação e tomada de decisão política sobre problemas
globais (ambientais, direitos humanos, pobreza e
desenvolvimento, etc.) que dizem respeito ao conjunto de
humanidade.
82
Verifica-se, destarte, que a globalização, sobretudo pelo aspecto
econômico, trouxe a necessidade de o Estado reestruturar-se, ou seja, de
responder aos desafios da nossa época, porquanto antagonizam-se a
exigência, pelos cidadãos, de prestações públicas maiores que o Estado pode
oferecer e, por outro lado, a notória dificuldade de o Estado responder, de
forma adequada, a todas as demandas sociais.
O Estado contemporâneo está, paulatinamente, abandonando as
pretensões que asseguraram sua autoridade na era moderna. O Estado, ao
deixar de ser a expressão de uma soberania para se tornar um prestador de
serviços, faz da definição de seu limite uma questão política. Neste sentido,
Fernando Herren Aguillar leciona:
Inegável, ainda, a crise fiscal do Estado brasileiro. Sua
capacidade arrecadatória é cada vez mais débil em face de
seus gastos, alimentando, em tempos de inflação, o aumento
de preços, e, em tempos de estabilidade, o aumento dos juros.
O Estado brasileiro tem-se revelado extremamente ineficiente
na administração dos recursos públicos e os resultados podem
ser aquilatados pelo nível generalizado de insatisfação popular
em relação aos representantes do governo e do parlamento.
83
82
GÓMEZ, José María. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 10-11.
83
AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social de serviços públicos. São Paulo: Max
Limonad, 1999, p. 24.
66
A crise do poder soberano
84
do Estado diante da ascensão de grandes
conglomerados transnacionais e a superação da soberania como suprema
potestas sinalizam, dentre inúmeros aspectos, que o Estado necessitou
redefinir seus papéis, mormente com o advento da desestatização e da
Reforma do Estado, que trouxeram à sociedade desafiadoras provocações, um
profundo repensar sobre as funções e atribuições do Estado Democrático de
Direito no Brasil.
É nesta ordem de idéias que o gigantismo do Estado,
85
premido pelas
forças da globalização, teve que se readequar aos novos tempos, sobretudo
84
Acerca das crises do Estado, ver, por todos: MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do
estado e da constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 23-58. Dentre as crises que permeiam o Estado, enquanto
instituição central da modernidade, encontra-se a crise conceitual. Eis as lições do autor, p. 25-
26 e 33: “Assim, a soberania caracteriza-se, historicamente, como um poder que é
juridicamente incontrastável, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do
conteúdo e da aplicação das normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado
espaço geográfico, bem como fazer frente a eventuais injunções externas. Ela é, assim,
tradicionalmente tida como una, indivisível, inalienável e imprescritível. Neste viés, pode-se
dizer que a soberania moderna é aquela típica do Estado Nação. Aquela caracterizada por uma
estrutura de poder centralizado e que exerce o monopólio da força e da política – legislativa,
executiva e jurisdicional – sobre um determinado território – como um espaço geográfico
delimitado por suas fronteiras – e a população – como um conjunto de indivíduos que é
reconhecido como cidadão/nacional – que o habita. [...] Mas ao lado de tais circunscrições,
outras assumem relevância. Neste viés, pode-se apontar, além dos vínculos criados pelo
Estado Constitucional, a crise do Estado Moderno em apresentar-se tradicionalmente como
centro único e autônomo de poder, sujeito exclusivo da política, único protagonista na arena
internacional e ator supremo no âmbito do espaço territorial de um determinado ente estatal
nacional. [...] Ou seja, o que se quer referir aqui é que o modelo de Estado construído na
modernidade, com sua tríplice caracterização – sem esquecermos o quarto elemento proposto
por alguns doutrinadores, o finalístico, como função a ser cumprida – já não consegue dar
conta da complexidade das (des)estruturas institucionais que se superpõem hoje. Em vez da
unidade estatal própria dos últimos cinco séculos, tem-se uma multipolarização de estruturas,
ou da falta delas – locais, regionais, nacionais, continentais, internacionais, supranacionais,
mundiais; públicas, privadas, semipúblicas; oficiais, inoficiais, marginais; formais, informais,
paraformais; democráticas, autocráticas; etc.”
85
SILVA, Almiro Couto e. Os indivíduos e o estado na realização de tarefas públicas. Revista
de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, jul./set. 1997, p. 62-63. Neste ensaio, o autor
aponta o gigantismo do Estado, nestes termos: “De outra parte, entretanto, é irrecusável que,
em todo o mundo, há enorme preocupação com o gigantismo do Estado e com a qualidade de
alguns dos serviços que ele presta. Tal preocupação traduziu-se numa retração das fronteiras
do Estado, que passou a devolver a particulares terreno por ele ocupado ou que até mesmo a
67
pelas desafiadoras posturas que a globalização e, por conseguinte, as crises
do Estado
86
têm exigido, a exemplo da redefinição e relativização do seu poder
“soberano”.
3.1 A mudança de estratégia de atuação do Estado: a Administração
Pública Gerencial
Da Administração Pública Burocrática à Gerencial, não é novidade afirmar
que o cenário global traz imensuráveis desafios ao povo brasileiro. O rearranjo
estrutural da Administração Pública, provocado pela Reforma do Estado, tem
entregar a particulares tarefas que anteriormente só ele desempenhava. O pêndulo que
oscilara para o setor público torna, agora, para o setor privado. Para isso contribuiu
grandemente o fato de as empresas públicas e as sociedades de economia mista não terem
tido, em muitos casos, desempenho satisfatório. Seus dirigentes eram tentados a abusar da
relativa liberdade de que gozavam, no regime preponderantemente privado que as disciplinava.
[...] Todas essas circunstâncias, aliadas ao imenso custo do Estado Social ou do Estado
Providência, causador de déficits públicos quase insuperáveis, e às correntes ideológicas que
se viram reforçadas pelas bruscas mudanças políticas no leste europeu, acabaram por
empurrar também o Brasil para o rumo hoje trilhado pela grande maioria das nações
democráticas. A privatização, no sentido estrito do termo, e a terceirização são as ilustrações
mais significativas dos caminhos a que se inclina o Estado, neste final de século. Mais do que
uma vitória da doutrina neoliberal, a onda privatizante que bate atualmente em todos os
continentes tem que ser vista como um triunfo do pensamento pragmático ou problemático
sobre o pensamento estruturado em bases puramente racionais, de cunho axiomático,
dogmático ou sistemático, que tanto seduziu a filosofia e a ciência até tempos bem recentes.
Muito embora existam radicais nos dois extremos, pois há os que julgam que privatizar a
qualquer custo é sempre um bom negócio e os que acreditam que o Estado nunca deve
desfazer-se do seu patrimônio, a verdade, como em tantas outras situações, parece estar no
meio termo. O certo é que as privatizações tem sido feitas não apenas em países de acentuada
tradição liberal e defensores antigos e ardorosos do sistema capitalista, como também até
mesmo em países comunistas, muito embora no último caso se trate de privatização parcial,
pois essas alienações restringem-se à parte minoritária do capital de empresas públicas. Cuba,
para ficar num exemplo que diz tudo, em 1994 vendeu ao grupo mexicano Domos 49% das
ações de sua empresa estatal de telecomunicações, a Emtel/Cuba.”
86
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a transformação
espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 34-57. Dentre as
crises do Estado, o autor trata da crise estrutural ou o fim do Estado do Bem-Estar Social,
anunciando, por conseguinte, as crises fiscal, ideológica e filosófica que permeiam o Estado
Social. Também podem ser vislumbradas, na esteira do autor, a crise constitucional
(institucional), a crise funcional (perda da exclusividade) e a crise política e da representação.
68
início no governo Fernando Henrique Cardoso, como forma de enfrentar a crise
fiscal.
87
A necessária reorganização do Estado, fruto da globalização, compreende
posições antagônicas em sede doutrinária. Para José María Gómez, as
reformas do Estado “não fazem mais do que agravar o déficit de accountability
horizontal (entre os poderes do Estado) e vertical (entre o Estado e a
cidadania)”.
88
Já para Fernando Henrique Cardoso, “impõe-se a reorganização
87
LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 146. Neste sentido leciona o autor: “[...] a reforma do
Estado Constitucional provocada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (no Brasil), tem
como base epistemológica e teórica a experiência da nominada Administração Gerencial,
emergida na segunda metade do século XX, como resposta à fragilização do Estado Tecno-
burocrático, como modo de enfrentar a crise fiscal, como estratégia para reduzir o custo e
tornar mais eficiente a administração de imensos serviços outorgados ao Estado e como um
instrumento de proteção do patrimônio público contra os interesses do rent-seeking ou da
corrupção aberta.” No tocante à crise fiscal, ver: MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do
estado e da constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002. p. 40-42. Destaca o autor que a crise fiscal-financeira do Estado
está por detrás de todas as outras crises, ou da maioria delas, nestes termos: “Muitas das
situações transitórias, para solução das quais este modelo de Estado Social fora elaborado,
passaram, dadas as conjunturas internacionais, a ser permanentes ou de longa duração – o
caso do desemprego nos países centrais exemplifica caracteristicamente este fato – quando
políticas públicas de caráter temporário se transformaram em prestações públicas permanentes
ou duradouras, produzindo, em razão disso, uma profunda defasagem entre a poupança
pública constituída para fazer frente a tais garantias sociais. Para superar esta situação, duas
perspectivas principais são apontadas: aumento na carga fiscal ou redução de custos via
diminuição da ação estatal. Há, também, quem sugira, diante de certas situações
paradigmáticas, a extensão da incidência tributária via aumento da faixa de contribuintes. Ou
seja, conjuga-se o aumento da tributação seja pelo crescimento das alíquotas, seja pela
quantificação subjetiva do papel de agente passivo da relação tributária, embora não estejamos
aqui considerando as diferenças peculiares a ambas as possibilidades.”
88
GÓMEZ, José María. Política e democracia em tempos de globalização. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 99-100. Destaca o autor: “Além disso, no quadro dos imperativos e das implicações do
novo modelo econômico (endividamento público interno e externo desenfreado, desmonte
privatizador do Estado através da dilapidação do patrimônio público e do acúmulo de
demissões, contensão dos gastos sociais, sujeição absoluta da política econômica à vigilância
dos operadores dos mercados financeiros, etc.), o conjunto das reformas neoliberais
debilitaram exponencialmente as capacidades das instituições estatais em termos de ação e
coordenação geral das políticas públicas, minando a ação do Estado enquanto agente de
desenvolvimento e integração social, de valorização e eficácia dos serviços públicos e do
funcionalismo público, desmontando assim as bases da constituição dos atores sociais e da
representação simbólica coletiva da comunidade política.”
69
dos Estados nacionais, para que eles possam fazer frente a esses desafios que
estão presentes na conjuntura atual”.
89
A Reforma do Estado admite um emaranhado de ponderações e leituras.
Verifica-se que uma série de atividades, até então desempenhadas pela
Administração Pública, foram outorgadas à iniciativa privada, sob a justificativa
de reduzir a dívida pública. O Programa Nacional de Desestatização,
promovido pela Lei n. 8.031/90, sucedida pela Lei n. 9.491/97, instaurou o
movimento de reestruturação econômica do setor público, transferindo à
iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo Estado.
O fato é que o Poder Público, diante do seu agigantamento, necessitou
readequar-se aos novos tempos, concentrando seus esforços nas atividades
em que sua presença mostra-se fundamental, mediante a outorga das
atividades empresariais ao setor privado, sob o regime regulatório. Assim, o
Estado passou de executor de atividades empresariais a um Estado
Regulador.
90
89
CARDOSO, Fernando Henrique. Reforma do Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser;
SPINK, Peter (Orgs.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. 6.ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 15.
90
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
169. Acerca do novo perfil do Estado e o surgimento das agências reguladoras, destaca
Barroso: “A constatação de que o Estado não tem recursos suficientes para todos os
investimentos necessários e que, além disso, é geralmente um mau administrador, conduziu ao
processo de transferência para o setor privado da execução de ampla gama de serviços
públicos. Mas o fato de determinados serviços serem prestados por empresas privadas
concessionárias não modifica a sua natureza pública: o Estado conserva responsabilidades e
deveres em relação à sua prestação adequada.”
70
O processo de globalização transformou de forma radical os papéis do
Estado, fato este que, na esteira de Cármen Lúcia Antunes Rocha, “enseja e
enceta o surgimento de um momento inteiramente novo na América Latina”,
91
ao analisar a integração latino-americana de mercados: o MERCOSUL. Para
Alberto Nogueira, o novo contexto da globalização exige que o Estado seja um
global player, ou seja, planetário, permanente, internacional e imaterial. No
entanto, reformar o Estado não importa em desmantelá-lo.
92
A Reforma do Estado no Brasil enseja três transformações estruturais que
se complementam e não se confundem. Destaca Luís Roberto Barroso que a
primeira transformação da ordem econômica brasileira foi a extinção de
determinadas restrições ao capital estrangeiro, eis que a Emenda
Constitucional n. 6, de 15 de agosto de 1995, suprimiu o artigo 171 da Carta
Constitucional de 1988, que trazia a conceituação de empresa brasileira de
capital nacional, outorgando à mesma proteção, benefícios especiais e
preferências.
93
A segunda modificação, que propiciou o movimento de Reforma do Estado,
diz respeito à flexibilização dos monopólios estatais, eis que, com a Emenda
Constitucional n. 5, de 15 de agosto de 1995, alterou-se a redação do § 2° do
91
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição, soberania e Mercosul. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, n. 139, jul./set. 1998.
92
NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalizações e tributação: a nova matriz mundial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 41-42.
93
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
164.
71
artigo 25, possibilitando-se que os Estados-membros outorguem à iniciativa
privada a exploração dos serviços públicos locais de distribuição de gás
canalizado, hipótese que, até então, incumbia somente à empresa sob controle
acionário estatal. Na área do petróleo, a Emenda Constitucional n. 9, de 9 de
novembro de 1995, rompeu o monopólio estatal, facultando à União Federal a
contratação com empresas privadas que atuam na área petrolífera.
94
Por final, a terceira fase de transformação do Estado, inaugurada com as
privatizações, instaurou-se sem alterações na Carta Magna de 1988, com a
edição da Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990,
95
revogada, a posteriori, pela Lei
n. 9.491, de 9 de setembro de 1997, que instituiu o Programa Nacional de
Desestatização. O referido programa, sob a égide da Reforma do Estado,
trouxe, em 1990, inovação significativa: a passagem da Administração Pública
Burocrática à Gerencial.
Os objetivos fundamentais da Lei n. 9.491/97, consoante dispõe o seu
artigo 1°, consistem em reordenar a posição estratégica do Estado, transferindo
94
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
164-165.
95
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
165-166. No tocante à desestatização, assevera o autor: “Acrescente-se, em desfecho do
levantamento aqui empreendido, que, além das Emendas Constitucionais n. 5, 6, 7, 8 e 9,
assim como da Lei 8.031/90, os últimos anos foram marcados por uma fecunda produção
legislativa em temas econômicos, que inclui diferentes setores, como: energia (Lei 9.247, de
26.12.96), telecomunicações (Lei 9.472, de 16.07.97) e petróleo (Lei 9.478, de 6.08.97), com a
criação das respectivas agências reguladoras; modernização dos portos (Lei 8.884, de
11.06.94); concessões e permissões (Leis 8.987, de 13.02.95 e 9.074, de 7.07.95), para citar
alguns exemplos.”
72
à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público
(inciso I); reestruturar a economia do setor público, mediante a redução da
dívida pública líquida (inciso II); retomar os investimentos nas empresas e
atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada (inciso III);
reestruturar a economia do setor privado, modernizando a infra-estrutura e o
parque industrial do País (inciso IV); permitir que a Administração Pública
concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja
fundamental para a consecução das prioridades nacionais (inciso V) e
contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais (inciso VI). Em seu
artigo 2°, III, refere a citada legislação de regência que podem ser objeto de
desestatização os serviços públicos objeto de concessão, permissão ou
autorização.
Desta forma, perpassa na atual conjuntura do Estado Brasileiro a migração
da Administração Pública Burocrática, centrada no processo, na definição de
contratação de pessoal para a compra de bens e serviços, na satisfação de
demandas dos cidadãos, para a Administração Pública Gerencial, orientada em
resultados.
96
A primeira etapa ou fase da Reforma do Estado, na migração da
Administração Pública Burocrática à Gerencial, diz respeito à redução dos
gastos públicos. Assim, a política de desestatização surge como reação à crise
96
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo
Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter (Orgs.). Reforma do Estado e
administração pública gerencial. 6.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 28.
73
do Estado. Bresser Pereira destaca que é por este fator que o neoliberalismo
passou a ser identificado com cortes nos gastos e com o projeto de reduzir o
tamanho do Estado.
97
O objetivo principal da Administração Pública Gerencial é descentralizar.
Os serviços públicos, enquanto serviços não-exclusivos,
98
podem ser também
desempenhados pela iniciativa privada e pelo setor público não-estatal (não-
governamental).
O modelo da Administração Pública Gerencial vai de encontro ao
burocratismo estatal, que defende o controle e o desempenho dos serviços
públicos pelo Estado e tem dificuldade de conviver com o ideário da
desestatização. O modelo gerencial de Estado sustenta que o financiamento ou
subsídio dos serviços públicos incumbe ao Poder Público, desde que
97
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo
Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter (Orgs.). Reforma do Estado e
administração pública gerencial. 6.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 32.
Acerca da Reforma Gerencial do Estado, ver também: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Reforma
do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São
Paulo: Ed. 34, 1998, p. 20. Nesta obra, merece relevo a consideração tecida por Bresser
Pereira: “A Reforma Gerencial em curso entende que o regime democrático, apesar de todas
as suas limitações reais, está consolidado no Brasil, nega o pressuposto do egoísmo intrínseco
do ser humano, e não encontra base empírica para a afirmação neoliberal de que as falhas do
Estado são sempre piores do que as do mercado. Por isso, está muito longe de ser neoliberal.
Por outro lado, critica a alternativa estatista e burocrática, porque a vê como intrinsecamente
ineficiente e historicamente autoritária. Sabe, entretanto, que essas falhas do Estado são
grandes, como são fortes as tendências autoritárias da burocracia. Por isso, oferece uma
combinação de instrumentos administrativos e políticos, apostando que dessa forma logrará
superar a ineficiência e o autoritarismo da burocracia e oferecer uma alternativa ao
individualismo radical da nova direita neoliberal.”
98
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo
Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter (Orgs.). Reforma do Estado e
administração pública gerencial. 6.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 34.
Para Bresser Pereira, “serviços não-exclusivos são todos aqueles que o Estado provê, mas
que, como não envolvem o exercício do poder extroverso do Estado, podem ser também
oferecidos pelo setor privado e pelo setor público não-estatal (‘não-governamental’). Esse setor
compreende os serviços de educação, saúde, culturais e de pesquisa científica.”
74
controlados pela sociedade. Logo, a Reforma do Estado não propõe um Estado
Liberal ou Mínimo, consoante leciona Luís Roberto Barroso:
A redução expressiva das estruturas políticas de intervenção
direta na ordem econômica não produziu um modelo que possa
ser identificado com o de Estado Mínimo. Pelo contrário,
apenas deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial
para o domínio da disciplina jurídica, com a ampliação de seu
papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e
atividades econômicas. O Estado, portanto, não deixou de ser
um agente econômico decisivo. Para demonstrar a tese, basta
examinar a profusão de textos normativos editados nos últimos
anos.
De fato, a mesma década de 90, na qual foram conduzidas a
flexibilização de monopólios públicos e a abertura de setores
ao capital estrangeiro, foi cenário da criação de normas de
proteção ao consumidor em geral e de consumidores
específicos, como os titulares de planos de saúde, os alunos
de escolas particulares e os clientes de instituições financeiras.
Foi também nesse período que se introduziu no país uma
política específica de proteção ao meio ambiente, limitativa da
ação dos agentes econômicos, e se estruturou um sistema de
defesa e manutenção das condições de livre concorrência que,
embora longe do ideal, constituiu um considerável avanço em
relação ao modelo anterior. Nesse ambiente é que
despontaram as agências como instrumento da atuação
estatal.
99
A constatação de que o Estado não detém recursos financeiros suficientes
para a realização dos investimentos públicos necessários implicou a
transferência, para a iniciativa privada, da execução dos serviços públicos, sob
a ingerência do Poder Público. A assunção das atividades inerentes aos
serviços públicos por empresas privadas não transmuda a natureza pública
destes serviços de interesse social. O Estado, neste contexto, atua como
99
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
166.
75
gestor dos serviços públicos outorgados às empresas privadas, ou seja,
conserva responsabilidades e deveres em relação à adequada prestação dos
serviços essenciais à população. Eis as lições de Luís Roberto Barroso:
Daí a privatização haver trazido drástica transformação no
papel do Estado: em lugar de protagonista na execução dos
serviços, suas funções passam a ser as de planejamento,
regulação e fiscalização. É nesse contexto histórico que
surgem, como personagens fundamentais, as agências
reguladoras.
É bem de ver que a relação que se tem feito entre as agências
reguladoras e serviços públicos executados por particulares é
apenas histórica, já que nada impede a existência de agências
para regulação de atividades puramente privadas, como
instrumento de realização da disciplina jurídica do setor.
Quanto aos serviços públicos, as funções transferidas para as
agências reguladoras não são novas: o Estado sempre teve o
encargo de zelar por sua boa prestação. Ocorre todavia que,
quando os serviços públicos eram prestados diretamente pelo
próprio Estado ou indiretamente por pessoas jurídicas por ele
controladas (como as sociedades de economia mista e as
empresas públicas), estas funções não tinham visibilidade e, a
rigor, não eram eficientemente desempenhadas. Agora,
todavia, a separação mais nítida entre o setor público e o setor
privado revigora esse papel fiscalizador.
100
A transferência, ao setor privado, da execução dos serviços públicos
significou, no ano de 2002, a criação de uma série de agências de regulação
no âmbito nacional: ANA – Agência Nacional de Águas, ANATEL – Agência
Nacional de Telecomunicações, ANEEL – Agência Nacional de Energia
Elétrica, dentre outras. No Estados-Membros também foram criadas agências
reguladoras, a exemplo da AGERGS – Agência Estadual de Regulação dos
100
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
170.
76
Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul, instituída pela Lei Estadual
10.931, de 9 de janeiro de 1997.
A Reforma do Estado, nesta ordem de idéias, surge como conseqüência do
fenômeno da desestatização, que dista de ser tarefa simples, porquanto trata
de acontecimento de grande complexidade, que alterou, de maneira
substancial, os papéis do Poder Público, mediante a outorga dos serviços
públicos ao setor privado, com vistas ao desempenho de atribuições de
relevante interesse social.
3.2 A outorga dos serviços públicos à iniciativa privada
Diante da necessidade de arrecadar maior numerário aos cofres públicos, o
Estado adentrou no desempenho de atividades econômicas, dada a
incapacidade de manutenção das finanças públicas através da receita
proveniente da tributação. Juan Manuel Barquero Estevan salienta que o
Estado deve desempenhar, em caráter excepcional ou restrito, o desempenho
de atividade econômica lucrativa, esta inerente à iniciativa privada, nestes
termos:
Partiendo del presupuesto de que en el “Estado impositivo” el
impuesto es la fuente de ingresos dotada de mayor legitimidad,
se negará al poder público, o se le reconocerá sólo de manera
restringida, la posibilidad de desarrollar una actividad
económica lucrativa en concurrencia con la economia privada.
Y algo más adelante, se utilizará para fijar límites a la
posibilidad de recurrir a las exacciones parafiscales
77
(Sonderabgaben), y en general, para exigir una justificación
especial para el recurso a los tributos distintos del impuesto.
101
É nesta ordem de idéias que o Estado, paulatinamente, passou a ocupar
espaço que até então incumbia à iniciativa privada. Dada a insuficiente
arrecadação de tributos para o implemento de políticas públicas, a
Administração Pública viu-se carente de fontes outras de receitas financeiras,
porquanto as cifras oriundas da tributação eram insuficientes para a
manutenção do Estado e de seus respectivos direitos sociais.
Foi nesta circunstância que o Estado inseriu-se na exploração de
atividades econômicas, passando a interferir nos meios de produção da
sociedade. Isto trouxe à lume grande transformação no modelo até então
existente de Estado, que tinha providas suas necessidades – sistema de
financiamento público – através da arrecadação tributária.
Não obstante as investidas do Estado sobre atividades antes circunscritas
ao setor privado, com o advento da globalização houve a necessidade de o
Estado reestruturar-se, ou seja, migrar da Administração Pública Burocrática à
Gerencial. As justificativas para a Reforma do Estado encontram-se na Lei n.
9.491/97, que criou o Programa Nacional de Desestatização. Tal diploma legal
101
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 32. E o autor, na
p. 34 da obra mencionada, assim prossegue em seus ensinamentos: “Todavía en 1917, en un
libro que llevaba el muy gráfico título de Staatsocialismus oder Staatkapitalismus, Goldscheid
profetizaba que el Estado no sería capaz de enjugar esas deudas por medio de impuestos y
que para sanear sus arcas tendría que recurrir a los ingresos empresariales, lo que implicaba
que habría de procurarse una creciente participación en los medios de producción.”
78
inaugurou a concepção de desestatização, prevista em seu artigo 2°, § 1°,
alíneas a e b.
Segundo leciona Dinorá Adelaide Musetti Grotti, a nova lógica do Estado
adota a descentralização como estratégia; impõe a diminuição do seu tamanho,
envolvendo as questões de privatização, terceirização e publicização; a
recuperação da sua capacidade financeira e administrativa; a necessidade de
fortalecimento de sua função reguladora, fiscalizadora e fomentadora; o
desmonte do Estado prestador, produtor, interventor e protecionista; e o
aumento da governabilidade. Eis as lições da autora:
No direito brasileiro a idéia de privatização, tomada no seu
sentido amplo, abrange todas as medidas tomadas com o fim
de reduzir a presença do Estado, compreendendo: a) a
desmonopolização de atividades econômicas; b) a concessão
de serviços públicos, com a devolução da qualidade de
concessionário à empresa privada e não mais à empresa
estatal; c) a terceirização, mediante a qual a Administração
Pública busca a parceria com o setor privado, através de
acordos de variados tipos; d) a desregulação, com a diminuição
da intervenção do Estado no domínio econômico; e) a
desestatização ou desnacionalização, com a venda de
empresas estatais ao setor privado.
102
A reforma administrativa buscada pelo Brasil perfilha as mesmas diretrizes
traçadas pela Administração Pública em vários países: maior eficiência no
desempenho das atividades da Administração, maior agilidade e capacidade
gerencial, maior legitimidade e transparência, maior aproximação com a
102
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a constituição brasileira de 1988. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 150.
79
sociedade, seja através da proposição de formas de colaboração, ou parceria,
seja através da instituição de novos mecanismos de controle social.
O Estado, em sua conformação atual, encontra-se impossibilitado de
implementar as políticas públicas que se fazem necessárias. Neste passo,
mister se faz redefinir os papéis do Estado, objetivando transferir-se à iniciativa
privada atividades indevidamente exploradas pelo Poder Público. Isto quer
significar que o Estado não deve explorar, diretamente, os serviços não-
exclusivos, os quais podem ser ofertados ao setor privado, sob a gerência e
controle da Administração Pública. Nícolas María López Calera assim retrata
esta problemática:
[...] es evidente que la realidad del Estado es hoy altamente
problemática. No se sabe exactamente a dónde va el Estado a
finales del siglo XX. Nuestras libertades y el destino de la
humanidad están seriamente comprometidos por lo que es y
sobre todo lo que pueda ser el Estado en el próximo siglo. [...]
Concretamente creo que el Estado no debe ni puede
desaparecer, pero sobre todo estoy convencido de que se
deben reinventar teóricamente sus fundamentos y determinar el
papel que le corresponde en un momento histórico lleno de
cambios espectaculares y de perplejidades teóricas y prácticas
muy fuertes. La trayectoria del Estado moderno ha sido en
general, aunque lenta, progresiva. Se ha culminado con el
Estado social de derecho, con el Estado intervencionista y de
bienestar.
[...]
En consecuencia se vuelve a insistir en la necesidad de
recuperar el viejo modelo económico del liberalismo y se
apuesta decisivamente por el mercado para resolver los
problemas de desarrollo y de distribuición de la riqueza: more
Market, less State. Esto es, se exige <<desestatalizar>> y
despolitizar la economia y dar paso de nuevo y con renovado
vigor a la iniciativa privada.
103
103
CALERA, Nicolás María López. Yo, el Estado. Madrid: Editorial Trotta, 1992, p. 15-17.
80
A temática da desestatização tem suscitado grandes debates em diversas
esferas da sociedade. A revolução havida no que toca aos papéis do Estado na
implementação de políticas públicas, instrumentalizadas através dos serviços
públicos, concerne à paulatina transferência, ao setor privado, de tarefas até
então adstritas ao Poder Público, situação que sinaliza a Reforma do Estado,
corolário da globalização e das transformações ocorridas na economia
capitalista mundial.
A desestatização, fruto do fenômeno da globalização,
104
teve início, no
Brasil, após o desenrolar das políticas de desestatização ocorridas na Europa.
Neste sentido, Cristiane Derani critica que o Brasil, quando do início das
políticas de desestatização, pouco de social imprimia ao governo, se
estabelecido o cotejo comparativo com as políticas sociais desenvolvidas pelos
países europeus. Eis as considerações da Autora:
De fato, enquanto na Europa se escrevia sobre alguns
problemas da retirada do Estado Social, naquelas paragens, o
tom monocórdico da superioridade do mercado e da falência do
Estado imperava no discurso político, universitário e na mídia.
Ademais, a despeito de toda retórica, o Brasil iniciou o
desmanche de um Estado que pouco de social tinha, ao
contrário do gordo Estado providência nos países como a
Inglaterra, França e Alemanha.
105
104
SUNFELD, Carlos Ari. A administração pública na era do direito global. In: SUNFELD,
Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena (Coord.). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999, p.
160. Em estudo específico, o autor tece comentário sobre aspecto pontual da globalização: “O
fenômeno da globalização supõe a abdicação, pelos Estados, justamente do direito à livre
escolha de seu sistema econômico, pois não devem mais existir ‘sistemas econômicos
nacionais’, e sim um único sistema: o mundial, de inspiração neoliberal. Isso evidentemente
implica radical limitação, para o Estado, na escolha do conteúdo de suas normas, as quais
passam a ser moldadas em função de políticas que escapam de seu controle e influência.”
105
DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos: as ações do Estado na produção
econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 114. A autora leciona, na página 115 da obra
81
O Estado Democrático de Direito, para dar consecução a políticas públicas
adequadas aos cidadãos e para minorar os impactos de suas dívidas, além da
instituição de tributos, socorreu-se também dos meios de produção, através de
sua atuação em atividades tipicamente empresariais, desenvolvidas pela
iniciativa privada.
No entanto, o Programa Nacional de Desestatização – Lei n. 9.491/97,
previu, em seu artigo 1°, dentro outros aspectos fundamentais, a necessidade
de o Estado Brasileiro não mais explorar atividades de cunho econômico, no
escopo de transferir à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas
pelo setor público, assim contribuindo para a redução da dívida pública líquida.
O processo de desestatização na França teve início com as leis de
privatização francesas n. 86-793, de 2 de junho de 1986 e n. 86-912, de 6 de
agosto de 1986. Cristiane Derani realiza breve cotejo entre a reforma do
Estado que se desencadeou no Brasil e a ocorrida na França, nestes termos:
Segundo parecer do Conselho Constitucional francês, estão
fora do processo de privatização as empresas que geram
serviços públicos previstos pela Constituição. Existe um limite
constitucional ao processo de privatização francês: “todo bem,
toda empresa, cuja exploração tenha ou adquira características
em relevo, que o fenômeno das privatizações não deve ser compreendido somente sob o
prisma econômico, tendo em vista que a desestatização não consiste, tão somente, em
expandir fronteiras de mercado: “Não se pode compreender privatização simplesmente pela
sua mecânica econômica. Privatizar não é somente abrir fronteiras de mercado. Sob o ponto de
vista jurídico, privatizar é eliminar deveres do poder público, no que concerne à atuação do
Estado no domínio econômico. As questões de privatização, dos serviços públicos e da
concorrência situam-se no entroncamento da economia com o direito e a política. A exploração
de um serviço público substitui, a princípio, a concorrência, porque sua produção é uma
necessidade social e, portanto, independe dos estímulos produzidos pelo mercado.”
82
de um serviço público nacional ou de um monopólio de fato,
deve se tornar propriedade da coletividade.
De uma parte, as empresas públicas que exploram um serviço
público, cuja existência e funcionamento seriam exigidos pela
Constituição, não podem ser privatizadas. De outra parte, a
referência à existência de um monopólio de fato se opõe
igualmente a uma privatização.
Esta comparação com o direito francês sobreleva a necessária
reflexão sobre a constitucionalidade da venda de empresa
pública prestadora de serviço público constitucional. O art. 175
da CF é claro na faculdade de transferência do Estado para o
agente privado do exercício da atividade, que, por sua vez,
continua sendo privativa do poder público. O art. 22 da
Constituição, por exemplo, outorga à União o dever de explorar
os serviços de telecomunicações, ela própria ou mediante
concessão. Este dever é ratificado no art. 175 – “Incumbe ao
Poder Público ... a prestação de serviços públicos”. O dever de
prestar serviço público é uma norma constitucional, um poder
intransferível outorgado pela Carta Magna. A Constituição
prevê que o poder público contrate com o agente privado, para
que ele realize este dever do Estado, durante um certo tempo e
observadas certas condições.
106
A política de desestatização advinda com a Lei n. 9.491/97 trouxe
significativas mudanças no âmbito do Estado brasileiro. As transformações
engendradas nos serviços públicos com o advento do Programa Nacional de
Desestatização – PND podem ser vislumbradas sob várias perspectivas, dentre
as quais destaca-se o novo modelo de prestação dos serviços essenciais,
através das concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
Em que pese a Constituição Brasileira de 1988 ser permeada por diretrizes
que salientam serem os serviços públicos de interesse social, Cristiane Derani
adverte que, se estabelecida comparação entre o modelo francês e o brasileiro,
verifica-se que a legislação de regência francesa atinente à desestatização
106
DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos: as ações do Estado na produção
econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 123.
83
estabelece uma série de limitações a este processo, com vistas a salvaguardar
os interesses nacionais. No entanto, como assevera a mencionada estudiosa, o
Programa Nacional de Desestatização do Brasil não se manifesta nos termos
do modelo francês, ou seja, não protege, de maneira efetiva, os interesses (e
dos) nacionais.
107
Destarte, no escopo de perquirir os influxos que a globalização e a
desestatização exercem no contexto do Estado Democrático de Direito
brasileiro, merecem relevo algumas formas de outorga dos serviços públicos ao
setor privado no Brasil, notadamente após o advento das Leis ns. 8.031/90 e
9.491/97, que implantaram a desestatização e fomentaram a Reforma do
Estado. Ademais, no ano de 2004, com a Lei das Parcerias Público-Privadas
(PPP), adveio nova modalidade de contratação entre o Poder Público e a
iniciativa privada, situação que vem a confirmar as tendências contemporâneas
do Estado rumo ao perfil gerencial.
3.3 (Algumas) formas de outorga dos serviços públicos à iniciativa
privada
Muito embora o setor privado, com o advento da Reforma do Estado, tenha
assumido o desempenho de algumas atividades de interesse social, necessário
salientar que o papel da Administração Pública mostra-se imprescindível. O
107
DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos: as ações do Estado na produção
econômica. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 133.
84
Estado, que até então geria e executava os serviços públicos, agora,
preponderantemente, os regula, vigia, inspeciona e, se necessário for,
sanciona.
108
Conforme estatui o artigo 175 da Constituição Federal brasileira de 1988, o
serviço público pode ser prestado diretamente pelo Poder Público, através da
União, Estados, Municípios e Distrito Federal, ou sob o regime das concessões
e permissões. Logo, a exploração da prestação destes serviços indispensáveis
à coesão e à interdependência social pode ser delegada a empresas privadas
ou mesmo vinculadas à Administração Pública, através de empresas públicas
ou sociedades de economia mista. Cumpre sinalar-se que a titularidade dos
serviços públicos é sempre do Poder Público, por força de disposição
constitucional.
109
108
REBOLLO, Luis Martín. Servicios públicos y servicios de interes general: la nueva
concepción y operatividad del servicio público em el derecho administrativo español. In:
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação das tendências
contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 111. Ainda
destaca o autor: “Y es que liberalizar no es equivalente ni a privatizar, ni mucho menos a
desregular. La administración puede que gestione directamente menos. Pero va a regular más.
A fijar condiciones, criterios, pautas en beneficio de la competencia, esto es, al final, de los
derechos de los usuarios. Y vigilará también el cumplimiento de las condiciones de la
autorización otorgada a las empresas que presten el servicio.”
109
BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e
legitimidade democrática. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Cood.). Uma avaliação
das tendências contemporâneas do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
168-169. Luís Roberto Barroso assim destaca as possibilidades de enfrentamento do serviço
público pelo Estado, no tocante à prestação indireta: “Na prestação indireta abrem-se duas
possibilidades: pode o Estado constituir pessoas jurídicas públicas (autarquias e fundações
públicas – as chamadas ‘fundações autárquicas’) ou privadas (sociedades de economia mista e
empresas públicas) e, mediante lei (CF, art. 37, XIX), outorgar a tais entes a prestação do
serviço público, seja de educação, água, eletricidade ou qualquer outro. Ou pode, por outro
lado, delegar à iniciativa privada, mediante contrato ou outro ato negocial, a prestação do
serviço. Serve-se aí o Estado de figuras jurídicas como a concessão e a permissão. Mais
recentemente, têm sido concebidas diferentes formas de delegação, identificadas
genericamente como terceirização, que incluem espécies negociais como a franquia e o
contrato de gestão, entre outros. O caput do art. 175 provê sobre o tema: Art. 175. Incumbe ao
Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre
através de licitação, a prestação de serviços públicos. A exploração da atividade econômica,
85
Existem pontos de intersecção entre a permissão e a concessão de
serviços públicos. Dentre as similitudes existentes entre a permissão e a
concessão, destacam-se: ambas afiguram-se prestações indiretas de serviço
público; são passíveis de certame licitatório prévio e perfectibilizam-se no
mundo jurídico mediante contrato.
Por outro lado, as diferenças existentes entre as concessões e permissões
dos serviços públicos consistem em que a permissão, contrariamente à
concessão, é precária, ou seja, pode ser extinta a qualquer tempo pela
Administração Pública, de forma unilateral, não gerando qualquer sorte de
indenização ao permissionário do serviço público; a concessão requer
concorrência, podendo, nos casos de privatização de serviços públicos
federais, ser precedida de leilão, ao passo que a permissão pode ser efetuada
através de qualquer espécie de licitação; e a concessão entabula-se entre o
Poder Público e pessoa jurídica ou consórcio de empresas, ao passo que a
permissão pode ser realizada através de pessoa física.
No tocante ao intuito personalíssimo que norteia as diretrizes contratuais
da concessão de serviços públicos, destaca-se que esta é entregue a pessoa
por sua vez, não se confunde com a prestação de serviços públicos, quer por seu caráter de
subsidiariedade, quer pela existência de regras próprias e diferenciadas. De fato, sendo o
princípio maior o da livre iniciativa, somente em hipóteses restritas e constitucionalmente
previstas poderá o Estado atuar diretamente, como empresário, no domínio econômico. Tais
exceções se resumem aos casos de: a) imperativo da segurança nacional (CF, art. 173, caput);
b) relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput); c) monopólio outorgado à União (v.g., CF,
art. 177). [...] a reserva de atividades econômicas à exploração direta e monopolizada da União
foi substancialmente alterada e flexibilizada. E, quando não se trate de monopólio, o Estado
deverá atuar diretamente no domínio econômico sob o mesmo regime jurídico das empresas
privadas, como deflui do § 1° do art. 173 da Carta Federal.”
86
determinada, conforme os ditames constitucionais e legais definidos, não
podendo ser conferida a quem o deseje o administrador público, mas àquele
que o processo administrativo determine, em obediência às estritas balizas da
legalidade. Neste sentido, destaca Cármen Lúcia Antunes Rocha:
Nem poderia ser diferente em face dos princípios
constitucionais da Administração Pública, mormente o da
impessoalidade, que, fundamentando a própria República
Democrática, faz as vezes de base sustentadora do modelo
administrativo adotado. Logo, a condição de concessionário há
de ser obtida por quem comprove atender às condições postas
para que o interesse público especificamente buscado com a
prestação do serviço público, objeto daquela, seja
integralmente satisfeito. Não é concessionário quem quer, mais
quem é escolhido, nos termos impessoais da lei, para ocupar
essa condição. Amizade ou inimizade do administrador com as
pessoas que componham uma pessoa jurídica não é título para
se obter a concessão, no primeiro caso, tampouco se para
deixar de obtê-la, no segundo. Daí a exigência
constitucionalmente estabelecida de processo licitatório prévio
para a contratação da concessão (art. 175), repetida no art. 2°,
II e III, da Lei n. 8.987/95. Nesse dispositivo legal elege-se a
modalidade de licitação a ser adotada para a concessão, a
saber, a da concorrência.
110
O caráter temporal da concessão dos serviços públicos importa no lapso
que medeia entre o início e o térmico do contrato entabulado entre a
concessionária do serviço público e a Administração Pública. Destaca-se que
necessário se faz um prazo mais elastecido para os contratos de concessão de
serviços públicos, tendo em vista os investimentos vultosos que necessitam ser
realizados pelo concessionário.
110
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público
no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 45-46.
87
Assim, a concessão de serviços públicos sempre se dá por tempo
determinado, premissa que decorre por força de disposição legal, insculpida no
artigo 18, I, da Lei n. 8.987/95. O contrato de concessão de serviços públicos
sempre é entabulado por prazo certo, afigurando-se desalbergada, pelo
ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade de eternizarem-se as
concessões, porquanto a perenização destes contratos representaria a
transferência não da prestação, mas sim do próprio serviço público objeto da
concessão.
Outra característica de fundamental importância é que os contratos de
concessão de serviços públicos são precários, ou seja, são efêmeros,
instáveis, de breve duração e incertos quanto à permanência, característica
esta decorrente da temporariedade da concessão, prevista no artigo 42, § 2°,
da Lei n. 8.987/95.
A concessão dos serviços públicos é retratada por Fritz Fleiner
111
como
prerrogativa que compete à iniciativa privada em casos excepcionais,
111
FLEINER, Fritz. Instituciones de derecho administrativo. Tradução de Sabino A. Gendin.
Madrid: Editorial Labor S.A., 1933, p. 275. Eis as lições do autor, página 278-279 da obra em
destaque: “Sin embargo, la ley puede permitir a las autoridades administrativas que concedan a
un particular el ejercicio de una actividad monopolizada, sea compitiendo con la Administración
pública o sustituyéndola. Pero esto es solamente admisible cuando existen garantías de que
también por la explotación privada (escuelas, tráfico) se alcanza el fin público. Con esto, la
autoridad concede al particular un derecho que no había tenido hasta entonces; su esfera
jurídica individual se ensancha. Con razón se caracteriza este proceso como una concesión de
soberanía: concesión de ferrocarriles, concesión de telégrafos, concesión de caminos,
concesión de servicios de pasajes fluviales, etc. [...] Por lo general, depende del arbitrio de la
autoridad competente el otorgar una concesión propiamente dicha. Sólo excepcionalmente
otorga la ley un derecho al particular para reclamar una concesión, si se cumplen ciertas
condiciones. La concesión se obtiene por un acto unilateral de la soberanía del Estado, por un
decreto. A tal efecto se puede prescribir, de una manera excepcional, la forma de ley. La
concesión es un acto administrativo que origina derechos. El concedente otorga al
concesionario un derecho público subjetivo para establecer y explotar una determinada
88
porquanto a regra é que a prestação dos serviços públicos seja praticada pelo
Estado. No entanto, dada a conjuntura advinda com o fenômeno da
globalização econômica, traduzindo-se pelo rompimento do poder soberano do
Estado, pela inexistência de fronteiras ou barreiras entre países e através da
virtualização do capital, o Estado, em nome de sua crise fiscal,
112
tem conferido
à iniciativa privada o exercício de pressupostos até então de sua exclusividade
– a execução de serviços públicos.
empresa. La concesión de otorga, por lo general, después de haber sido examinado, en el
procedimiento tramitado al efecto, si la empresa reúne los requisitos generales de policía. Sin
embargo, este exame puede ser reservado a un procedimiento especial. El pliego de
condiciones fija, con arreglo a la ley, los derechos y obligaciones (por ejemplo obligaciones del
servicio, etc.) de la empresa frente a la Administración pública. Mas en caso de duda no origina
un derecho exclusivo a favor del concesionario, en el sentido de prohibirse al concedente que
autorice también a otros la actividad otorgada a la empresa, o que actúe el mismo en
competencia con el concesionario.”
112
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004, p.
37. Nesta obra, o autor anuncia os reflexos que a globalização tem impingido ao Estado,
exigindo, por conseguinte, uma série de ajustamento de condutas pelos administradores
públicos e até mesmo pelos cidadãos, diretamente afetados pela nova ordem que se inaugura
com o advento da globalização. Eis as lições do mencionado jurista: “No âmbito dessa ordem,
as estruturas administrativas, políticas e jurídicas do Estado-nação não desaparecem, é óbvio.
Mas vêem relativizados alguns dos instrumentos básicos que caracterizam sua ação nas
últimas décadas, como a ‘gestão normalizadora’ dos mercados; a intervenção nas negociações
entre o capital e o trabalho para mantê-los dentro dos limites com níveis de crescimento de
pleno emprego; a produção direta de insumos e a prestação direta de serviços por meio de
empresas públicas; o estabelecimento de barreiras legais à entrada e saída de capitais e
produtos; a imposição de determinadas restrições ao regime de propriedade privada em face
de sua ‘função social’; e, por fim, a utilização da política tributária com vistas à indução do
comportamento e decisões dos agentes econômicos, ao financiamento dos programas sociais
e à distribuição de renda. Tornando-se vulneráveis à disciplina estabelecida por opções e
decisões econômicas feitas em outros lugares por pessoas, grupos empresariais e instituições
sobre as quais têm escasso poder de controle, as estruturas administrativas, políticas e
jurídicas do Estado-nação são reformadas e redimensionadas por processos de deslegalização
e privatização formulados e justificados em nome da ‘governabilidade’, da resolução da ‘crise
fiscal’, da adequação dos mecanismos de formação de preços aos custos econômicos reais, da
‘flexibilização’ das relações salariais, da captação de recursos externos para investimentos
produtivos, do acesso a tecnologia de ponta e a novos produtos e processos, do aumento da
produtividade industrial e da competitividade comercial e da inserção da economia nacional na
economia transnacionalizada. Com o drástico ‘enxugamento’ das restrições governamentais
sobre a atividade econômica e a subseqüente ‘desregulamentação’ do mercado propiciados
pela reforma e pelo redimensionamento do Estado-nação, suas estruturas administrativas,
políticas e jurídicas passam a exercer novos papéis e novas funções.”
89
A doutrina, tanto nacional quanto estrangeira, diverge sobre a natureza
jurídica da concessão dos serviços públicos. A corrente unilateralista,
113
adotada no século XIX, posiciona-se no sentido de o serviço público estar fora
do comércio, constituindo-se mera exteriorização do poder soberano do
Estado. Por outro lado, a doutrina atual vislumbra na concessão dos serviços
públicos a reunião dos elementos constitutivos de autêntico contrato de direito
público, tendo em vista seus objetivos, finalidades e relações estabelecidas
entre a Administração Pública, o concessionário do serviço público e a
sociedade. A natureza jurídica da concessão dos serviços públicos é bem
retratada por Cármen Lúcia Antunes Rocha,
114
porquanto anuncia as três
113
WALD, Arnoldo. O direito de parceria e a lei de concessões: (análise das Leis ns. 8.987/95 e
9.074/95 e legislação subseqüente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 100-101.
Neste sentido, Arnoldo Wald elenca, como partidários da corrente unilateralista, Otto Mayer e
Fritz Fleiner, na Alemanha; Dufour e Batbie, na França; Cammeo, Santi-Romano e Merla, na
Itália e Alcides Cruz, no Brasil.
114
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público
no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 34-37. Destaca a autora: “Atualmente,
anotam-se três correntes que predominaram quanto ao tema e que foram classificadas em
teorias unilaterais, contratuais e mistas. Pelas primeiras se considerava, basicamente, a
concessão um ato da Administração Pública ou dois atos isolados, ou seja, um desta e outro do
concessionário, mas autônomos e suficientes. Os adeptos dessas teorias consideravam que,
estando a coisa – objeto da concessão – fora do comércio, não poderia constituir matéria a ser
contratada, pelo que, somente por um “ato de poder de império”, seria possível a sua
formalização, que, então, se subsumia às normas inerentes a esta condição unilateral e
soberana do ente público. [...] Há, mesmo entre os partidários dessas teorias unilaterais,
divergências profundas, porquanto alguns vêem na concessão um ato administrativo de direito
público, enquanto outros a tomam como um ato de legislação, uma vez que cria direitos,
inovando a esfera individual de prerrogativas inerentes ao concessionário. Pelas segundas se
explicava a concessão como um contrato, considerando-o público ou privado, conforme o
posicionamento do autor que tratava do tema, quanto à natureza do contrato firmado pela
entidade pública. É que determinados autores não acreditam na existência de contrato de
Direito público, ou contrato regido fundamentalmente pelas normas de Direito Público. Daí ser a
concessão, para alguns, um contrato de Direito Privado, enquanto outros acordam em que
seria ela um contrato, mas submetido a normas de Direito Público. Outros, ainda, nela
reconhecem um contrato misto, quer dizer, com normas que não se regem por qualquer desses
ramos do Direito especificamente. As teorias mistas consideravam a concessão mais que
apenas um ato, mas um conjunto de comportamentos administrativos, aperfeiçoados por um
ato administrativo unilateral seguido de um contrato. Todas essas teorias, mormente as
bilaterais contratuais, tiveram seus momentos de predominância e seus argumentos de acerto
e desacerto, tal como posteriormente se mostrou. [...] A teoria que tem prevalecido, contudo, é
a do ‘contrato de direito público’, conquanto não haja unanimidade entre os doutrinadores,
ainda hoje, quanto a esta natureza jurídica da concessão.”
90
correntes que vigoram na doutrina e que predominam no que concerne à
concessão de serviços públicos.
A temática da garantia econômica da concessão dos serviços públicos no
Brasil, também conhecida como o custo dos serviços públicos, é retratada por
Caio Tácito, que, através de estudo de direito comparado entre os modelos
francês e norte-americano, leciona que deve haver justo equilíbrio econômico
entre a empresa prestadora do serviço público – concessionária – e os
cidadãos.
115
A relação entre custo e serviço prestado também é uma das grandes
polêmicas que norteiam os contratos de concessão de serviços públicos no
Brasil. Com o advento da desestatização, muitas vozes se direcionaram no
sentido de que o custo dos serviços públicos, a exemplo do fornecimento de
115
TÁCITO, Caio. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 232-233. Eis as lições do
administrativista: “Na França, a garantia da equação econômica da concessão traduz-se, a
princípio, na obrigação de indenizar, ou seja, como forma a posteriori de proteção ao equilíbrio
financeiro da empresa. Somente em época recente, com a adoção das cláusulas de variação e
de revisão de tarifas, a feição preventiva passou a predominar. Ao contrário, nos Estados
Unidos, a crescente ação regulatória do poder público, tendente a coibir, em sua origem, a
política de preços excessivos, instituiu um regime de tarifas flexíveis, em que são ponderados
os índices constitutivos do custo dos serviços de utilidade pública. Ao mesmo tempo em que
velam pelos interesses dos usuários, mediante a fiscalização qualitativa do serviço e a vedação
de preços exorbitantes, as comissões administrativas têm, igualmente, a diretriz de preservar a
estabilidade financeira das empresas, tanto para fornecer-lhes os meios de manutenção e
expansão do serviço, como para proteger os interesses dos investidores (acionistas, ou
debenturistas). A legalidade do exercício do poder de tarifação (rate making power) afere-se
pelo postulado constitucional do direito de propriedade e as regras da igualdade perante a lei
(equal protection of the laws) e do processo legal adequado (due process of law). O abuso de
poder que possa ocorrer, através de tarifas confiscatórias ou arbitrárias terá o imediato
corretivo judicial. A competência das cortes norte-americanas para apreciação da justiça e
razoabilidade das tarifas estipuladas pelas agências administrativas aprofunda-se no exame da
matéria de fato e de direito. A regulamentação é meio de vitalizar o interesse público na
continuidade e desenvolvimento de um serviço adequado. Não é instrumento de asfixia, ou de
depauperamento dos capitais investidos. Deve ser o termômetro do justo equilíbrio entre os
interesses contraditórios do público e da empresa capitalista: nem lucros excessivos, nem
remuneração insuficiente, ou nula.”
91
energia elétrica e água, sofreu grande majoração se estabelecido o
comparativo à época em que a prestação era de incumbência do Estado.
Neste contexto de globalização, necessária se faz a participação
democrática dos usuários de serviços públicos na formação das políticas
tarifárias. Determinar a tarifa razoável e a justa remuneração do investimento é
ato regulamentar relevante no controle do Estado sobre as empresas
concessionárias.
O custo dos serviços públicos concedidos deve observar a participação
democrática dos usuários,
116
a teor do conteúdo inscrito no artigo 175,
parágrafo único, II, da Constituição Federal de 1988. O diploma legislativo que
dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços
públicos previsto no artigo 175 da Constituição Federal – Lei 8.987/95 –
também contempla, em seus artigos 5° e 29, XII, respectivamente, a
publicidade e a formação de associações de usuários para a defesa de
interesses inerentes aos serviços públicos prestados.
116
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público
no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 94. A autora, ao lecionar sobre a participação
democrática dos cidadãos na gestão dos serviços públicos, menciona que devem ser
observados os princípios da igualdade, impessoalidade, imparcialidade e neutralidade, in
litteris: “Dentre os direitos dos usuários exsurge o da participação democrática, que vem na
esteira dos princípios constitucionais que modelam o Estado brasileiro (art. 1°, caput, e seu
parágrafo único, embutido, ainda em nível fundamental, no inciso II do parágrafo único do art.
175, para o caso específico do exercício cidadão na matéria de prestação de serviços
públicos). Esse direito impõe-se qualquer que seja a forma de prestação daquela atividade
eleita pelo Poder Público, direta ou indiretamente. Em qualquer hipótese, o cidadão tem o
direito constitucionalmente assegurado de participar de sua gestão, de sua fiscalização e de
seu controle, independentemente de sua qualidade de usuário direto e freqüente de
determinado serviço, pois a sua condição de cidadão e usuário em potencial desse serviço o
habilita à condição de titular daquele direito.”
92
Corolário dos custos dos serviços públicos é a razoabilidade nas tarifas
praticadas pelas concessionárias, impedindo-se, destarte, o efeito confiscatório
aos cidadãos. Neste viés, as tarifas devem ser parametrizadas em termos
razoáveis, permitindo-se a difusão do serviço público a todos do povo e, por
conseguinte, possibilitando que o concessionário do serviço público obtenha
lucro na exploração, conditio sine qua non para a melhoria dos serviços
prestados aos cidadãos.
Grande celeuma, que gera debates calorosos em nossos Tribunais,
concerne à suspensão no fornecimento de serviços públicos básicos aos
cidadãos para os casos de inadimplemento contratual – falta de pagamento.
Nesta perspectiva, a universalização do acesso aos serviços públicos
essenciais impede que a prestação seja elitizada. Cármen Lúcia Antunes
Rocha salienta que, em nome do princípio da igualdade na prestação dos
serviços públicos, deve ser observada a desigualação nos valores tarifários aos
que não suportam contra-prestar na forma exigida. Eis as lições da eminente
constitucionalista:
Por isso é que se enfatiza o princípio da igualdade no serviço
público, permitindo-se que as desigualdades legitimem
desigualações de valores tarifários, numa política imposta
constitucionalmente, que pretende evitar as cargas vultosas
sobre os menos capazes de suportá-las e reforçando-as sobre
aqueles que melhor são aquinhoados economicamente e
podem, então, a elas fazer jus. É para ser igual que se impõe
ser neutro o serviço público, fazendo-se, assim, como que
prevaleça a impessoalidade nesse desempenho.
117
117
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Estudo sobre concessão e permissão de serviço público
no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 97.
93
A mudança de perfil da Administração Pública também trouxe outra forma
de contratação entre o Poder Público e a iniciativa privada: a chamada Lei das
Parcerias Público-Privadas – PPP (Lei Federal n. 11.079, de 30 de dezembro
de 2004).
Um dos principais problemas enfrentados pelo Brasil é a infra-estrutura
deficiente, o que vem a desencadear a ineficiência econômica pelas seguintes
razões: os produtores precisam manter a produção em estoque por maior
tempo, as estradas precárias aumentam os custos de transporte, há deficiência
da malha ferroviária para o escoamento da produção a baixos custos e os
portos estão em sua capacidade limite.
118
As parcerias público-privadas significam, pois, os “múltiplos vínculos
negociais de trato continuado estabelecidos entre a Administração Pública e
particulares para viabilizar o desenvolvimento, sob a responsabilidade destes,
de atividades com algum coeficiente de interesse geral”.
119
Segundo
estabelece o artigo 2° da Lei das PPP, parceria público-privada é o contrato
administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa.
O legislador, ao criar o sistema das parcerias público-privadas, nominou de
concessões patrocinadas as concessões de serviço público que envolvem o
118
PINTO, Marcos Barbosa. Parcerias público-privadas: panorama da nova disciplina
legislativa. In: JUSTEN, Monica Spezia; TALAMINI, Eduardo (Coord.). Parcerias público-
privadas: um enfoque multidisciplinar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 29.
119
SUNFELD, Carlos Ari. Guia jurídico das parcerias público-privadas. In: SUNFELD, Carlos
Ari (Coord.). Parcerias público-privadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 18.
94
pagamento adicional de tarifa pela Administração Pública. Destarte, com o
advento da Lei das PPP, as concessões de serviço público da Lei de
Concessões (Lei n. 8.987/95) foram divididas em duas modalidades: as
patrocinadas, em que existe o adicional de tarifa e as comuns, em que a
tarifação adicional não existe.
Com a Lei das PPP, destaca-se a intenção do legislador em viabilizar um
volume de investimentos superior ao que seria possível mediante os
mecanismos tradicionais, ou seja, as PPP são implementadas em áreas em
que não teria investimento privado e tampouco público, tendo em vista que esta
espécie de contratação entre o Estado e o setor privado envolve investimentos
mais vultosos, que não podem ser inferiores a R$ 20 milhões (artigo 2°, § 4°, I,
da Lei n. 11.079/2004). Ademais, tendo em vista o grande volume de
investimentos realizados pelo setor privado nesta modalidade de contratação, o
serviço será prestado por, no mínimo, 5 anos (artigo 2°, § 4°, II e artigo 5°, I) e,
no máximo, por 35 anos (artigo 5°, I).
O programa das PPP possui quatro riscos fundamentais: o primeiro, no
tocante ao comprometimento irresponsável de recursos públicos futuros,
podendo assumir o setor privado compromissos impagáveis; o segundo
consiste na possibilidade de a Administração Pública, por pressa ou
incapacidade técnica, vir a comprometer-se com contratações de longo prazo
mal planejadas e estruturadas; o terceiro pode recair no abuso populista no que
tange ao patrocínio estatal destas concessões e o quarto risco apontado é o
95
desvio no uso da concessão administrativa.
120
Outra inovação trazida pela Lei das PPP diz respeito às novas formas de
concessão. A concessão comum, consoante prevê o artigo 2°, § 3°, não
envolve contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado, ou
seja, a remuneração do concessionário poderá incluir tanto a cobrança de
tarifas como outras receitas alternativas, a teor da previsão inscrita na Lei n.
8.987/95, desde que estas receitas não envolvam pagamentos de natureza
pecuniária do Poder Público ou concedente. Aliás, a ressalva contida na Lei
das PPP indica que a esta modalidade de concessão – comum, aplica-se a Lei
n. 8.987/95.
A concessão patrocinada, regulada pela Lei n. 11.079/2004 (artigo 2°, §
1°), conjuntamente com a Lei n. 8.987/95, possui como caráter peculiar o seu
regime remuneratório, isto é, tarifa-se tanto os usuários quanto o poder
concedente, ou seja, existe também a contraprestação pecuniária do parceiro
público.
No tocante à concessão administrativa (artigo 2°, § 2°), esta subdivide-se
em duas modalidades. A concessão administrativa de serviços públicos é
aquela a que se refere o artigo 175 da Constituição Federal brasileira de 1988,
ou seja, prestam-se os serviços públicos diretamente aos cidadãos,
independentemente da cobrança de qualquer tarifa, remunerando-se o
120
SUNFELD, Carlos Ari. Guia jurídico das parcerias público-privadas. In: SUNFELD, Carlos
Ari (Coord.). Parcerias público-privadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 25-26.
96
concessionário por contraprestação versada em pecúnia pelo concedente.
Logo, a Administração Pública, enquanto poder concedente, será a usuária
indireta dos serviços públicos. Já a concessão administrativa de serviços ao
Estado é aquela que objetiva os mesmos serviços elencados no artigo 6° da
Lei das Licitações, e.g., o oferecimento de utilidades ao Poder Público, que
será considerado como usuário direto dos serviços e a quem incumbirá a
respectiva contra-prestação pelos serviços experimentados.
É nesta perspectiva – de outorga da execução de parcela dos serviços
públicos à iniciativa privada – que reside a Reforma do Estado, cuja causa
fundamental encontra-se em sua crise fiscal, ou seja, a transformação das
políticas públicas de caráter temporário em permanentes ou de longa duração,
ampliando a defasagem entre a poupança pública e os custos para a
implementação dos direitos sociais.
A crise do Estado impôs a necessidade de reformá-lo. Antes do advento da
globalização, os Estados protegiam suas economias da competição
internacional. Com os influxos da nova ordem global, o controle exercido pelo
Estado em relação à sua economia reduziu-se drasticamente.
O papel que incumbe ao Estado, nesta quadra histórica, é a garantia da
universalidade no acesso à educação, à saúde, enfim, aos serviços públicos
essenciais, de interesse geral, necessários para a garantia da coesão e da
97
interdependência sociais, com vistas a assegurar, no âmbito do Estado
Democrático de Direito, a justiça e a solidariedade sociais.
Não obstante a Carta Constitucional brasileira de 1988 encartar uma série
de direitos sociais, necessário sopesar também os deveres dos cidadãos,
ínsitos aos direitos, representados pelo dever fundamental de pagar impostos.
Destarte, não existe Estado sem financiamento público. O imposto, no
contexto do Estado Democrático de Direito, é instrumento fundamental,
condição de possibilidade para a concretização de políticas públicas,
instrumentalizadas através dos serviços públicos.
4 O DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS COMO
CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS
Do État Gendarme, em que predominava o absentsmo e o perfil negativo
do Estado, a nítida separação entre sociedade civil e o Poder Público, a
garantia das mais amplas liberdades de iniciativa individuais, a extrema
limitação das funções estatais, que garantiam aos cidadãos tão somente a
ordem e a segurança sociais, sobreveio momento histórico caracterizado por
grandes transformações sob os mais variados aspectos, tais como o cultural, o
econômico, o social e o internacional.
121
O novo período inaugurado na história do Estado trouxe uma conotação de
justiça e solidariedade sociais, a exemplo do Estado do Bem-Estar Social ou
Welfare State, implantado nos países europeus. Neste passo, se fazia
necessária uma maior atuação do Estado, até então dominado pelas forças do
Liberalismo, em prol das necessidades coletivas, com vistas à promoção do
bem comum. O viés prestacional do Estado Social imprimiu a possibilidade de
121
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 2.ed. Madrid:
Alianza Editorial, 1996, p. 13.
99
exigir-se a implementação dos direitos fundamentais sociais através do Poder
Público, e não contra o mesmo.
Por força da Constituição Cidadã de 1988, momento histórico para o Brasil
pós-ditadura, inaugurou-se um discurso de Estado voltado à promoção do bem-
estar social, implantando-se um Estado Democrático de Direito, consoante
dispõe a Carta Magna, em seu artigo 1°.
Nesta perspectiva, os direitos sociais receberam tratamento diferenciado,
no intuito de assegurar a concretização destes direitos de interesse geral, tais
como o bem-estar, a igualdade, a justiça, a dignidade da pessoa humana,
dentre outras diretrizes eleitas como caras pelo legislador constituinte de 1988.
As conseqüências trazidas pela inauguração, no âmbito do Estado Social,
do Estado Democrático de Direito, determinaram uma série de mutações nos
papéis que até então o Poder Público estava a desempenhar. Esta evolução do
Estado brasileiro, mormente na passagem do século XX ao século XXI, é assim
retratada por Ricardo Lobo Torres:
Assiste-se, nesta virada do século XX para o XXI, à passagem
do modelo do Estado Social de Direito (ou Estado de Bem-
estar Social, Estado da Sociedade Industrial, Estado Pós-
Liberal, etc.) para o Estado Democrático de Direito (ou Estado
Subsidiário, Estado da Sociedade de Risco, Estado de
Segurança, etc.), com a conseqüente alteração da estrutura da
fiscalidade, máxime daquela referente aos ingressos
contraprestacionais, ou seja, dos tributos e preços públicos
100
exigidos como contrapartida pela entrega de prestações de
serviço público essencial ou concedido.
122
Do recém inaugurado Estado Social, cujo objetivo precípuo consistia em
promover políticas públicas aos cidadãos, no escopo de diminuir as
desigualdades sociais e distribuir renda de forma mais equânime, verificou-se
que o Estado rapidamente migrou, em virtude da desestatização, para uma
reforma econômica orientada para o mercado.
Não obstante a nova ordem política e social que se instaurou pós-1988, a
partir de 1990, o recente Estado Democrático de Direito recebia os influxos do
complexo fenômeno da globalização, situação que desencadeou uma série de
modificações na estrutura organizacional do Poder Público, fato este que
determinou a Reforma do Estado, implantando-se o modelo da Administração
Pública Gerencial.
Sob a égide desta nova formatação do Estado, talhada, no Brasil, através
do Programa Nacional de Desestatização – Lei n. 9.491/97, uma série de
conseqüências e reflexos puderam ser percebidos pelos cidadãos, sob os
objetivos fundamentais de transferir à iniciativa privada atividades
indevidamente exploradas pelo Poder Público, a redução da dívida pública,
dentre outros aspectos apontados pela referida legislação de regência.
122
TORRES, Ricardo Lobo. A fiscalidade dos serviços públicos no estado da sociedade de
risco. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Serviços públicos e direito tributário. São Paulo:
Quartier Latin, 2005, p. 122.
101
Diante de tais aspectos, sobretudo pelas novas perspectivas sinalizadas
pela Reforma do Estado, mister se faz o cotejo entre o papel da tributação
diante das tendências da crescente política de desestatização, situações essas
que vêm a calhar na reestruturação da Administração Pública, sobretudo pela
fixação dos limites referentes aos gastos públicos.
123
O capítulo que ora se inaugura procura investigar o papel da tributação,
sobretudo dos impostos, no financiamento das políticas públicas; o perfil liberal-
individualista do Direito Tributário pátrio na conformação dos direitos sociais em
mínimo existencial; a função do tributo no Estado Democrático de Direito,
dentre outros aspectos atinentes à temática, que se encontram contemplados,
fundamentalmente, nas obras de José Casalta Nabais, Juan Manuel Barquero
Estevan e Ricardo Lobo Torres.
124
4.1 A implementação dos direitos sociais no contexto do mínimo
existencial: o perfil liberal-individualista do direito tributário pátrio
A história do Estado é a história dos tributos ou, na esteira de Alberto
Nogueira, “o tributo é o nervo da República”.
125
Afinal, existe Estado, mesmo
que em sua feição mínima, que não tribute os indivíduos? Em recente estudo,
123
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 9-10.
124
Para a investigação da temática do presente capítulo, utiliza-se, especialmente, os autores
acima referidos, mormente pelo nível de abordagem sobre o tema em relevo.
125
NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalizações e tributação: a nova matriz mundial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 262.
102
sustenta Victor Uckmar: “La storia dei popoli, le lotte politiche, il consenso dei
cittadini, la buona amministrazione pubblica, lo sviluppo dell’economia,
l’assistenza sociale e più di recente la globalizzazione, sono strettamente
collegati al fatto fiscale”.
126
A garantia da boa convivência em sociedade requer um mínimo de
financiamento do Estado (Staatfinanzierung) através da imposição tributária,
conditio sine qua non para o equilíbrio das finanças públicas e para o custeio
dos direitos sociais. Aliás, a idéia de Estado Social se confunde com a própria
necessidade de pagar tributos como meio através do qual podem ser
concretizadas as políticas públicas.
Os escritos em Direito Tributário, bem como o ideário que norteia a
tributarística pátria, não labora com a idéia de tributo, em especial do imposto,
como meio de viabilizar a justiça e a solidariedade sociais, fato esse que pode
ser verificado pela intensa preocupação desta específica área do Direito
Público com o denominado planejamento tributário ou comportamento elisivo.
Não se faz necessário empreender grande desforço intelectivo para
perceber-se que, diante desta circunstância, o Direito Tributário debruça-se,
enfaticamente, em prol do contribuinte, sinalizando condutas muitas vezes
126
UCKMAR, Victor. La giusta imposta. In: TÔRRES, Heleno Taveira. Tratado de direito
constitucional tributário: estudos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo:
Saraiva, 2005, p. 3.
103
questionáveis sob a ótica da justiça e da solidariedade sociais, no escopo de
ver minorados os impactos fiscais sobre as suas atividades.
127
Necessário esclarecer-se que não está a se vedar ou criticar
comportamentos elisivos, muitas vezes necessários à própria mantença da
empresa, faculdade que o próprio arcabouço tributário disponibiliza aos
contribuintes; conduta esta, portanto, que não se afigura contra legem.
Não obstante a legislação, em certas ocasiões, permitir comportamentos
elisivos ou a possibilidade da realização do planejamento tributário para
determinado fato imponível, o que causa estranheza é que, do muito que se
produz em terras brasileiras em matéria tributária, analisa-se,
perfunctoriamente, o papel do imposto na sociedade hodierna. Afinal, por que
tributar?
Agrega-se a esta crise da justiça e solidariedade sociais o grande
catalisador, que majora as tentativas de comportamento não só elisivo, mas
também evasivo: a lamentável crise política instaurada no ano de 2005 no
127
NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalizações e tributação: a nova matriz mundial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 264-265. No tocante ao comportamento elisivo, destaca Alberto
Nogueira que alguns empresários chegam a cogitar da possibilidade de instalarem as sedes
das empresas em navios, no meio do oceano, acaso o Estado queira interferir em seus
negócios. No entanto, lapidarmente pondera: “De uma forma ou de outra, mais dia, menos dia,
a globalização atingirá a área da tributação de forma diversa da atual, onde impera, absoluta, a
regra diabólica da sonegação sob os mais variados aspectos. O ‘deslocamento’ da base
impositiva das multinacionais, fenômeno equivalente a uma apatria tributária às avessas (ou
seja, aqui o ‘apátrida’ se beneficia com as delícias de um ‘paraíso fiscal’), é algo incompatível
com os mais elementares princípios de Justiça e de convivência humana. Trata-se, disso
estamos convictos, de mais uma das distorções que usualmente perturbam a triunfante marcha
dos homens na busca de uma ordem social justa.”
104
Brasil, em que se verifica a gestão perdulária das verbas públicas e um grande
simulacro dos representantes políticos brasileiros.
Para que(m) tributar diante deste estado de coisas no cenário político
brasileiro? Isto, de forma inequívoca, vem a acarretar certo repúdio ao poder
tributário estatal, o que denota comportamento que subverte o real papel do
tributo no Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição
brasileira de 1988: o financiamento do Estado, mormente para a
implementação de políticas públicas, que visam o atendimento aos direitos
sociais.
Conforme leciona Andreas Joachim Krell, a prática e efetividade/eficácia
dos direitos fundamentais sociais, tendentes à implementação de políticas
públicas pelo Estado, instrumentalizadas através dos serviços públicos,
dependem de recursos públicos disponíveis.
128
Daí sustentar-se a necessidade
de tributar como forma intransponível de financiamento do Estado.
É cediço que o Estado, para implementar políticas públicas adequadas aos
cidadãos, necessita de financiamento público, tendo em vista que, de outra
forma, não haveria suporte financeiro suficiente para alcançar aos cidadãos
padrões razoáveis de segurança, saúde, educação, saneamento, dentre outros
direitos sociais.
128
KRELL, Andreas Joachim. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos
direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 29.
105
A questão que se põe em sede doutrinária, sobretudo pelo perfil liberal-
individualista do Direito Tributário brasileiro, é a implementação dos direitos
sociais em um contexto de mínimo existencial, situação retratada no Brasil por
Ricardo Lobo Torres.
129
Foi no contexto da Alemanha pós-guerra, com o advento da Lei
Fundamental de Bonn, que surgiu o mínimo existencial ou social para a fruição
de uma vida digna, que garanta ao cidadão padrões mínimos e razoáveis de
direitos sociais.
Considerando-se que a Constituição brasileira de 1988 previu a
concretização dos direitos sociais através dos serviços públicos, tais como
educação, saúde e segurança, dentre outros, necessário se faz que o Estado
garanta a efetividade destas políticas públicas aos indivíduos, sob pena de
transgredir o Texto Constitucional.
Logo, a idéia do mínimo existencial que sustenta a doutrina brasileira
advém do direito alemão, tendo em vista a Corte Constitucional alemã
assegurar o direito a um mínimo de existência, corolário do princípio da
dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1°, I, da Lei Fundamental de
129
No tocante à temática em exame, ver, por todos: TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose
dos direitos sociais em mínimo existencial. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos
fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 1-46; TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era
dos direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2.ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, p. 243-342; TORRES, Ricardo Lobo. Os mínimos sociais, os direitos
sociais e o orçamento público. Revista Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Central Universidade
Gama Filho, 1997, p. 227-241.
106
Bonn, na época em que aquele país vivia os efeitos da grande guerra mundial.
Andreas Joachim Krell salienta que a jurisprudência alemã recepcionou a
existência do direito fundamental a um mínimo vital.
130
A teoria do mínimo existencial, cuja função consiste em atribuir ao cidadão
o exercício do direito subjetivo contra o Estado nos casos de prestação de
serviços públicos essenciais, que garantam uma vida digna, não recebeu, na
esteira de Cármen Lúcia Antunes Rocha,
131
o devido tratamento pela doutrina e
jurisprudência pátrias.
A existência do direito a um mínimo existencial também pode ser verificada
na obra de Robert Alexy intitulada Teoría de los Derechos Fundamentales, em
que o jurista alemão destaca que “existen, por lo menos, algunos derechos
fundamentales a prestaciones fácticas positivas, por ejemplo, el derecho a un
mínimo existencial [...]”.
132
Forçoso, a partir da perspectiva da teoria do mínimo existencial vigente no
Brasil, utilizar, de forma preponderante, as lições de Ricardo Lobo Torres,
porquanto é este autor que desenvolve a idéia da metamorfose dos direitos
130
KRELL, Andreas Joachim. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos
direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 42.
131
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão
social. Interesse Público, São Paulo, n. 4, out./dez. 1999, p. 38.
132
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos
y Constitucionales, 2001, p. 362.
107
sociais em mínimo existencial no direito brasileiro. Eis as lições do eminente
tributarista:
A jusfundamentalidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo
existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra
a incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de
todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na
entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres.
Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do
exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária,
a partir do processo democrático. Esse é o caminho que leva à
superação da tese do primado dos direitos sociais
prestacionais (ou direitos a prestações positivas do Estado, ou
direitos de crédito – droit créance – ou Teilhaberechte) sobre os
direitos da liberdade, que inviabilizou o Estado Social de
Direito, e ao desfazimento da confusão entre direitos
fundamentais e direitos sociais, que não permite a eficácia
destes últimos sequer na sua dimensão mínima.
133
A transformação dos direitos sociais em mínimo existencial, nas lições de
Ricardo Lobo Torres, significa a metamorfose dos direitos da justiça em direitos
da liberdade, o que vem a ratificar o postulado fundamental do Estado Liberal:
a liberdade. Com esteio na filosofia de John Rawls, Ricardo Lobo Torres
salienta que “as necessidades básicas (basic needs), isto é, os mínimos
sociais, integram o primeiro princípio – da liberdade – e por isso são
fundamentos constitucionais e não se confundem com as questões de justiça
básica (basic justice)”.
134
133
TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional,
internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 1-2.
134
TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional,
internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 3.
108
As condições de liberdade para a manifestação do mínimo existencial
representam, para Ricardo Lobo Torres, a liberdade de expressão, ou seja, o
exercício da leitura e da escrita. Daí concluir-se que a leitura e a escrita
consistem em pressupostos para a doutrina do mínimo existencial. Afirma
ainda o autor que “sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade
de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da
liberdade”.
135
Manuel García-Pelayo busca traçar os valores e os fins perseguidos pelo
Estado Social, tergiversando do modelo instaurado no período do Liberalismo,
em que havia a garantia mínima – perfil negativo do Estado ou absenteísmo
estatal – na consecução de políticas públicas, nestes termos:
Si el Estado social significa un proceso de estructuración de la
sociedad por el Estado (correlativo a un proceso constante de
estructuración del Estado por la sociedad), hay que
preguntarse sobre los valores y fines que los orientan. Los
valores básicos del Estado democrático-liberal eran la libertad,
la propiedad individual, la igualdad, la seguridad jurídica y la
participación de los cuidadanos en la formación de la voluntad
estatal a través del sufragio. El Estado social democrático y
libre no sólo no niega estos valores, sino que pretende hacerlos
más efectivos dándoles una base y un contenido material y
partiendo del supuesto de que individuo y sociedad no son
categorías aisladas y contradictorias, sino dos términos en
implicación recíproca de tal modo que no puede realizarse el
uno sin el otro. Así, no hay posibilidad de actualizar la libertad
si su establecimiento y garantías formales no van
acompañadas de unas condiciones existenciales mínimas que
hagan posible su ejercicio real; mientras que en los siglos XVIII
y XIX se pensaba que la libertad era una exigencia de la
dignidad humana, ahora se piensa que la dignidad humana
135
TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional,
internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 5.
109
(materializada en supuestos socioeconómicos) es una
condición para el ejercicio de la libertad.
136
Fator de destaque, que vem a representar a maior polêmica gerada em
torno da teoria do mínimo existencial, diz respeito aos limites da prestação de
políticas públicas pelo Estado, ou seja, o que efetivamente alberga o mínimo
existencial. Tal problemática é revelada por Ricardo Lobo Torres no seguinte
excerto: “O problema mais difícil da temática do mínimo existencial é o da sua
quantificação”.
137
Sustenta Ricardo Lobo Torres que a extensão do mínimo existencial em
países como o Brasil, que não possui sistema de segurança social símile aos
padrões europeus, é maior. Conseqüência lógica desta situação é que nos
países em desenvolvimento, a interpretação conferida ao mínimo existencial
possui forte tendência ampliativa, ou seja, o tratamento dado aos cidadãos, no
que toca aos direitos sociais, é ampliado. Dando continuidade à sua teoria,
assim prossegue o estudioso:
O problema da quantificação do mínimo existencial e a
possibilidade técnica de mensuração da qualidade de vida
abrem o caminho para algumas questões candentes: a) o
mínimo existencial vai deixando de exibir apenas a
problemática ligada a aspectos qualitativos da definição de
interesses fundamentais ou de jusfundamentalidade para se
deixar envolver também pelos aspectos quantitativos de uma
qualidade de vida mensurável; b) o Judiciário passa a examinar
136
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. 2.ed. Madrid:
Alianza Editorial, 1996, p. 26.
137
TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional,
internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 30.
110
e controlar a face quantitativa do mínimo existencial, como
ocorre com o limite inferior da tabela do IR, imune ao tributo,
que começa a escapar da discricionariedade do Legislativo.
Por tudo isso é que se torna tão problemática a tensão entre
qualidade e quantidade em tema de mínimo existencial. A
doutrina suíça fala em ‘direitos sociais mínimos’ (kleinen
Sozialrechte) e a americana adere à expressão minimum
protection. Mas é cada dia mais difícil estremar o mínimo
existencial, em sua região periférica, do máximo de utilidade
(maximum welfare, Nutzenmaximierung), que é princípio ligado
à idéia de justiça e aos direitos sociais. Os direitos sociais da
cidadania que sobreexcedem os mínimos sociais devem se
maximizar até o ponto em que não se prejudique o processo
econômico nacional, não se comprometa a saúde das finanças
públicas, não se violem direitos fundamentais nem se
neutralizem as prestações por conflitos internos.
138
Não obstante a manifestação diuturna da população, no sentido de exigir a
implementação de políticas públicas, instrumentalizadas através dos serviços
públicos, há quem sustente a hemorragia dos direitos sociais no contexto do
Estado Democrático de Direito brasileiro. Em ensaio intitulado A cidadania
multidimensional na era dos direitos, Ricardo Lobo Torres, em tom lamentoso,
vislumbra “a desinterpretação dos mínimos sociais e da necessidade de
maximização dos direitos sociais, com o emburilhamento das garantias que os
cercam”.
139
Para o mesmo autor, as promessas contidas no bojo do Texto
Constitucional de 1988, e.g., o acesso universal à saúde, contemplado nos
artigos 196 e seguintes, proclama, de forma demagógica, o caráter gratuito e
138
TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional,
internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 32-33.
139
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: TORRES,
Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
287.
111
igualitário na prestação de serviços de saúde, o que vem a gerar expectativas
utópicas e inalcançáveis aos cidadãos.
140
Para Ingo Wolfgang Sarlet, a negativa de recursos materiais mínimos à
subsistência ou a falta de recursos financeiros para a aplicação em prestações
públicas, sobretudo para o direito à saúde, significa eximir-se da prestação do
mais essencial direito social, senão vejamos:
Não nos parece absurda a observação de que negar ao
indivíduo os recursos materiais mínimos para manutenção de
sua existência (negando-lhe, por exemplo, uma pensão
adequada na velhice, quando já não possui condições de
prover seu sustento) pode significar, em última análise,
condená-lo à morte por inanição, por falta de atendimento
médico, etc.
141
Andreas Joachim Krell leciona que a efetividade na prestação de serviços
públicos básicos e de assistência social no Brasil não desembocaria em
assistencialismo ou na relação de dependência do cidadão face às prestações
do Estado. Salienta o autor que os pretórios pátrios mostram fortes objeções
em formular mandamentos no escopo de direcionar os governos rumo à
adequada atividade prestacional de serviços públicos.
142
140
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: TORRES,
Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
287-288.
141
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5.ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 352.
142
KRELL, Andreas Joachim. Controle judicial dos serviços públicos básicos na base dos
direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 44.
112
Em que pese o Direito Tributário pátrio laborar, maciçamente, em prol da
perspectiva liberal-individualista da tributação, despreocupado com o valor
social e com a finalidade extrafiscal do imposto, a exemplo da explicitação da
teoria do mínimo existencial de Ricardo Lobo Torres, de cariz eminentemente
liberal, há voz em sentido contrário na doutrina pátria, que lamenta a posição
de Lobo Torres.
143
Na esteira de Alberto Nogueira, o tema da tributação é de extrema
complexidade, mormente na nova ordem mundial, em que a crise se agudiza
pelo fenômeno da globalização. O autor chama a atenção para o novo direito
tributário que se coloca, em que devem ser incorporados os direitos sociais,
dentre estes os mínimos sociais. Para a estruturação do novo direito tributário,
integrado ao Estado Democrático de Direito, Alberto Nogueira entende que o
princípio da capacidade contributiva tem papel essencial.
144
A análise da teoria do mínimo existencial de Ricardo Lobo Torres, de nítido
viés liberal-individualista, limita-se à prestação do mínimo que garanta aos
cidadãos a subsistência. Nesta perspectiva, o mínimo existencial ou vital tem
como valor primordial a liberdade, baliza fundamental do Estado Liberal, em
que eram garantidos ao povo a ordem e a segurança estatais, assegurando-se
o máximo de liberdade ao indivíduo.
143
NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalizações e tributação: a nova matriz mundial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 265-267. Nesta obra, o autor revela inconformismo com a tese
do mínimo existencial, capitaneada no Brasil por Ricardo Lobo Torres.
144
NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalizações e tributação: a nova matriz mundial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2000, p. 267-273.
113
No entanto, com o advento da Carta Constitucional brasileira de 1988,
impregnou-se no Texto Supremo o Estado Democrático de Direito, elevando ao
patamar de direitos sociais uma série de políticas públicas, que a doutrina do
mínimo existencial busca criticar e rotular de “proclamação demagógica”.
145
A proteção constitucional do mínimo existencial envolve a implementação
de serviços públicos, mecanismos através dos quais concretizam-se os direitos
sociais encartados no Texto Fundamental de 1988.
Em que pese Ricardo Lobo Torres salientar que o direito à saúde,
enquanto direito social, é tratado com liberdade normativa, podendo ter suas
garantias aperfeiçoadas pelo poder regulamentar do Executivo,
146
necessário
frisar-se que “os direitos subjectivos a prestações, mesmo quando não
145
TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: TORRES,
Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
287-288. Eis o exemplo utilizado pelo autor, através do qual sustenta a proclamação
demagógica dos direitos sociais: “Veja a questão da saúde pública. A saúde preventiva, tratada
como direito fundamental pelo art. 196 da CF, confundiu-se com a saúde curativa, claramente
definida como direito social pelo art. 6°, criando-se um sistema único de saúde que seria
universal e gratuito, mas que acabou por transferir para terceiros a responsabilidade do seu
financiamento e por empurrar para os planos privados de assistência a classe média, tornando-
se utópico e ineficaz. Com efeito, o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde,
assegurado no art. 196 da Constituição, transformado em gratuito pela legislação
infraconstitucional, é utópico e gera expectativas inalcançáveis para os cidadãos. As
prestações de medicina curativa, compreendidas no âmbito dos direitos sociais (art. 6° da
Constituição), devem ser analisadas a partir dos critérios elaborados pela teoria da justiça.
Dependem de escolhas orçamentárias, sempre dramáticas num ambiente de escassez de
recursos financeiros, que conduzem inexoravelmente à exclusão de alguns – a depender das
opções por investimentos em hospitais, sanatórios ou postos médicos que atendam à
população segundo as condições de idade, sexo ou domicílio. Qual é o cardíaco brasileiro que
tem o direito de ser operado pelo Dr. Jatene? Qual o critério de justiça que deve presidir as
opções fundamentais em torno da saúde? Essas questões, que constituem o cerne da
discussão em torno da justiça local, estão inteiramente obscurecidas entre nós pela
proclamação demagógica da universalidade e da igualdade no atendimento!”
146
TORRES, Ricardo Lobo. Os mínimos sociais, os direitos sociais e o orçamento público.
Revista Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Central Universidade Gama Filho, 1997, p. 232.
114
concretizados, existem para além da lei por virtude da constituição, podendo
ser invocados contra as omissões inconstitucionais do legislador”.
147
Outrossim, a garantia do mínimo existencial denota, como cediço,
conseqüências orçamentárias, ou seja, prévio financiamento para a
implementação de políticas públicas. Logo, para custear os direitos sociais,
necessário se faz a arrecadação de impostos, enquanto espécie tributária não
afetada a atividade estatal específica, objetivando o custeio das despesas
públicas, conditio sine qua non para a concretização dos direitos sociais.
Para Ricardo Lobo Torres, estremam-se da problemática do mínimo
existencial os direitos econômicos (artigos 174 a 179 da Constituição brasileira
de 1988) e os direitos sociais (artigos 6° e 7°). Tais direitos distinguem-se dos
fundamentais, na esteira do autor, porque dependem da concessão do
legislador, carecendo de oponibilidade erga omnes. Destaca também que a
emergência dos direitos sociais não os metamorfoseou em autênticos direitos
fundamentais.
148
Para o autor, as normas constitucionais que versam sobre
147
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2.ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2001, p. 371.
148
TORRES, Ricardo Lobo. Os mínimos sociais, os direitos sociais e o orçamento público.
Revista Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Central Universidade Gama Filho, 1997, p. 233. Em
sentido contrário: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do
legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2.ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 371. Destaca o jurista lusitano: “[...] os direitos subjectivos
públicos, sociais, económicos e culturais, mesmo na parte em que pressupõem prestações do
Estado, são direitos originários a prestações (fundados na constituição) e não são direitos a
prestações derivados da lei.” Também destaca o autor: “A força imediatamente vinculante que
hoje se atribui a uma parte dos direitos fundamentais (os direitos, liberdades e garantias e os
direitos de natureza análoga) pode e deve ser interpretada, no que respeita aos direitos a
prestações, no sentido de fundamentar originariamente esses direitos, mesmo que não haja
imposição constitucional dirigida expressamente ao legislador.”
115
direitos econômicos e sociais cingem-se a orientar o legislador e têm eficácia
contida, sem qualquer efeito vinculante. Eis as considerações de Ricardo Lobo
Torres:
As prestações positivas para a proteção desses direitos
implicam sempre despesa para o ente público, insuscetível de
ser imputada à arrecadação de impostos ou, sem lei específica,
aos ingressos não-contraprestacionais. Por isso mesmo
carecem de status constitucional, eis que a Constituição não se
envolve com autorizações de gastos públicos, não se imiscui
com problemas econômicos conjunturais nem procede à
discriminação das despesas e dos serviços entre a União, os
Estados e os municípios, assuntos reservados com
exclusividade à lei ordinária de cada qual das três esferas de
governo. Os direitos econômicos e sociais existem sob a
‘reserva possível’ ou da ‘soberania orçamentária do
legislador.’
149
Logo, sustenta Ricardo Lobo Torres que os direitos sociais existem sob a
reserva possível,
150
dependendo, para a concretização destes direitos, do
149
TORRES, Ricardo Lobo. Os mínimos sociais, os direitos sociais e o orçamento público.
Revista Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Central Universidade Gama Filho, 1997, p. 238.
150
No tocante à relevância dos direitos sociais prestacionais e o limite da reserva do possível,
ver, por todos: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5.ed. rev. atual. e
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 286-290. Leciona o autor, à página 288-289:
“Já há tempo se averbou que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre
o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras de direitos fundamentais
sociais, de tal sorte que a limitação dos recursos constitui, segundo alguns, em limite fático à
efetivação desses direitos. Distinta da disponibilidade efetiva dos recursos, ou seja, da
possibilidade material de disposição, já que o Estado (assim como o destinatário geral) também
deve ter a capacidade jurídica, em outras palavras, o poder de dispor, sem o qual de nada lhe
adiantam os recursos existentes. Encontramo-nos, portanto, diante de duas facetas diversas,
porém intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos fundamentais sociais
prestacionais. É justamente em virtude destes aspectos que se passou a sustentar a colocação
dos direitos sociais a prestações sob o que se denominou de uma ‘reserva do possível’, que
compreendida em sentido amplo, abrange tanto a possibilidade, quanto o poder de disposição
por parte do destinatário da norma.” Acerca dos direitos fundamentais como direitos a
prestações e a reserva do possível, ver: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição
dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas. 2.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 364-365. Eis as lições do autor: “O
problema dos direitos fundamentais como direitos de <<quota-parte>> e <<direitos a
prestações>> (Teilhaberechte) é, mesmo para quem o considera um <<passepartout>>,
terminológico ou mero <<epifenómeno do verbalismo e vandalismo participatório>>, uma
116
orçamento que o Estado dispõe para a prestação de políticas públicas. Neste
contexto, destaca-se o papel desempenhado pelo imposto como condição de
possibilidade para a implementação do mínimo existencial.
Afinal, quais os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil?
Conforme estatui o artigo 3° da Carta Magna de 1988, consiste em objetivo
fundamental do Estado brasileiro, dentre outros, a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização
e a redução das desigualdades sociais e regionais.
Para a garantia dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, o
legislador constituinte de 1988, no Título II – Dos Direitos e Garantias
Fundamentais, Capítulo II – Dos Direitos Sociais, elencou uma série de direitos
questão que não só coloca com acuidade a necessidade de se precisar a força dirigente dos
direitos fundamentais, como vem tornar polémicos alguns dos alicerces sobre os quais se tinha
construído o Estado de Direito burguês. A força dirigente e determinante dos direitos a
prestações (económicos, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objecto clássico da
pretensão jurídica fundada num direito subjectivo: de uma pretensão de omissão dos poderes
públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de interferir nos direitos, liberdades e
garantias) transita-se para uma proibição de omissão (direito a exigir que o Estado intervenha
activamente no sentido de assegurar prestações aos cidadãos). A <<polemização>> dos
fundamentos do Estado é também patente: os direitos a prestações suscitam a discussão do
tipo de Estado (capitalista, socialista) que melhor os pode assegurar; pressupõem uma tarefa
de conformação social activa por parte dos poderes públicos, sobretudo do legislador;
reclamam nova distribuição de bens e rendimentos, e, até, uma transformação social de
estruturas económicas. Conjugando este último aspecto – legitimação do Estado – com o
primeiro – força determinante dos direitos a prestações – logo se descortina o punctum saliens
da questão: a insuficiência da estrutura política, constitucional e jurídica do Estado Liberal (e
daí também a insuficiência, já referida, de um argumentar estritamente jurídico-estadual, isto é,
rechtsstaatlich) e os subsequentes problemas que a substituição ou complementação
arquitectónica do Estado Liberal coloca quando se deseja efectivamente transitar para um
Estado Democrático-Constitucional. No campo dos direitos a prestações se evidencia,
igualmente, a aporia da constituição dirigente: a um máximo de <<desejabilidade
constitucional>> de direitos económicos, sociais e culturais, corresponde, em geral, uma
relativização dos mesmos direitos, derivada da interpositio necessária do legislador e da
subordinação da efectividade constitucional à proclamada reserva do possível (em termos
económicos, sociais e, naturalmente, também políticos).”
117
sociais (fundamentais, segundo exsurge do Título II da Carta Constitucional de
1988), garantindo-se aos brasileiros, destarte, o mínimo existencial, ou seja,
direitos sociais mínimos para a existência de uma vida digna a todos.
Não obstante estar encerrado no Texto Constitucional brasileiro de 1988 o
alto valor conferido aos direitos sociais, cumpre salientar que a previsão destes
direitos em um contexto de mínimo existencial, conforme sustentado por
Ricardo Lobo Torres, diverge da atribuição de sentido conforme a Constituição
(Verfassungskonforme sinngebung
151
).
A conformação dos direitos sociais em um contexto de mínimo existencial
deve buscar a atribuição de sentido no Texto Constitucional, ou seja, “o
intérprete adjudica sentido, a partir de sua condição de ser-no-mundo, numa
dada situação hermenêutica e sua Wirkungsgeschichtles Bewusstsein
(consciência dos efeitos da história)”.
152
Considerando-se que os direitos sociais, enquanto direitos e garantias
fundamentais, encontram-se albergados no Texto Fundamental de 1988,
151
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.
2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 579.
152
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.
2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 580. Lenio Luiz Streck prossegue em seus
ensinamentos: “[...] enquanto a hermenêutica clássica trabalha com a perspectiva de uma
Auslegung (arrancar um sentido “acoplado” ao texto, como se a lei tivesse um sentido-em-si-
mesmo, objetificado), a filosofia hermenêutica dá um salto em direção a uma Sinngebung
(produção de sentido) [...].” Na página 581 da mencionada obra, prossegue o autor: “O que
ocorre no processo interpretativo é sempre uma Sinngebung (produção de sentido). Assim,
mais adequado seria falar em ‘atribuição de sentido conforme a Constituição’, e não
meramente em ‘interpretação conforme a Constituição’, se quisermos nos manter fiéis à origem
tedesca do instituto.”
118
imperiosa se faz a conformação destes direitos e, por conseguinte, do mínimo
existencial, à luz da Constituição, que “passa a ser, em toda a sua
substancialidade, o topos hermenêutico que conformará a interpretação do
restante do sistema jurídico”.
153
Para além de o Texto Fundamental de 1988 prever uma série de direitos
fundamentais sociais, os quais podem ser reclamados por grande parcela da
população brasileira, dada a imensidão de brasileiros que vivem à margem da
sociedade e de políticas públicas de caráter essencial, necessário cotejar-se a
previsibilidade dos referidos direitos com a imposição tributária, requisito
intransponível para a manutenção do Estado e para a implementação de
políticas públicas. Enfim, qual a função do imposto no contexto do Estado
Democrático de Direito?
4.2 O Estado Democrático de Direito e os custos dos direitos sociais:
compatibilizando a prestação de serviços públicos com o dever
fundamental de pagar impostos
O Estado Democrático de Direito, instaurado na República Federativa do
Brasil com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, inaugurou nova
153
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 5.ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 245. Dada
a primazia que deve ser conferida ao Texto Constitucional, assevera Streck: “A Constituição é,
assim, a materialização da ordem jurídica do contrato social, apontando para a realização da
ordem política e social de uma comunidade, colocando à disposição os mecanismos para a
concretização de objetivos traçados no seu texto normativo deontológico.
119
fase na vida política, econômica e sobretudo social do país. Como intitula Paulo
Bonavides, a Constituição é o “certificado da cidadania dos povos, o
compromisso de seu futuro, o monumento da sua maioridade, a Carta de seus
direitos, o compêndio de suas liberdades, a garantia de sua proteção
fundamental”.
154
A ruptura ocorrida entre a Constituição brasileira de 1969 e o Texto
Fundamental de 1988 trouxe aos cidadãos brasileiros uma série de direitos
sociais até então marginalizados. Menciona-se, neste ínterim, que se
inaugurou, pós-1988, um novo período na história do Brasil, marcado pela
primazia aos direitos sociais, no âmbito do Estado Democrático de Direito. A
amplitude da Magna Carta brasileira de 1988 na previsão de direitos
fundamentais sociais carrega o “pressuposto básico da dignidade da pessoa
humana, princípio fundante do nominado Estado Democrático de Direito”.
155
A inauguração deste novo período na história do Brasil encontra-se no
pórtico da Carta Constitucional de 1988, que prevê, em seu artigo 1°, III, a
dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do
Brasil. Considera também como objetivo fundamental, em seu artigo 3°, III, a
erradicação da pobreza e da marginalizão e a redução das desigualdades
sociais e regionais.
154
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da
Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 2.ed. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 58.
155
MORAIS, José Luis Bolzan de. De sonhos feitos, desfeitos e refeitos vivemos a
globalização. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de
direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 49.
120
Após o extenso rol dos direitos e garantias fundamentais insculpidos no
artigo 5°, segue a dedicação de capítulo específico da Norma Fundamental,
intitulado Dos Direitos Sociais, em que estão previstos como tais a educação, a
saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
Não bastasse a extensa lista de direitos sociais previstos no intróito da
Constituição brasileira de 1988, o legislador constituinte deu tratamento
específico à Ordem Social, elencando a saúde e a educação, dentre outros,
como diretrizes caras, de fundamental importância para o gozo efetivo dos
direitos fundamentais sociais.
A temática em relevo – implementação de políticas públicas,
instrumentalizadas pelos serviços públicos – enseja a efetividade dos direitos
fundamentais sociais e o exercício do poder de tributar do Estado, na esteira de
José Souto Maior Borges:
A dignidade da pessoa humana, com todas as suas
implicações axiológicas (justiça, segurança, direito à habitação,
à sadia qualidade de vida, ao meio ambiente ecológico
equilibrado etc.), está caracterizada por amplíssima conotação
(aquilo que a dignidade mesma da pessoa humana
normativamente significa) e denotação (as implicações
efectuais dessa dignidade da personalidade humana). E
impossível prefixar-lhe, i. é, demarcar a priori o seu conteúdo
normativo, as suas virtualidades de aplicação, a significação
objetiva desse princípio fundamental.
Os vínculos entre a tributação e os direitos humanos não se
manifestam ao primeiro e superficial exame exegético. Mas se
ocultam nas dobras do ordenamento constitucional brasileiro,
ao longo dos princípios e normas que o integram. Para
identificá-los, será necessário correlacionar, p. ex., as normas
121
constitucionais que dispõem sobre a seguridade social,
instrumentada por contribuições (tributárias) que a custeiam
(art. 195). O direito à previdência social está
constitucionalmente posto a serviço da dignidade de vida de
todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País. Sem o
direito à vida, nenhuma dignidade da existência humana.
Mostra-se ainda coerente a Constituição Federal quando
proíbe a pena de morte (art. 5°, XLVII). Direito à vida e pena de
morte são entre si incompatíveis. A saúde é direito de todos e
dever do Estado (art. 196). Idem, quanto aos direitos sociais:
educação, saúde, trabalho, lazer etc. (art. 6.°). A casa é o
abrigo inviolável do indivíduo (art. 5.°, XI), expressão
constitucional mais fortemente protegida contra o confisco
tributário (art. 5.°, XXII a XXIV, c/c o art. 150, IV).
São praticamente inesgotáveis as regras constitucionais
preservadoras da dignidade da existência humana e
disciplinadoras das implicações entre esse princípio
fundamental e o exercício do poder de tributar.
156
Exsurge da Constituição Federal de 1988 cristalina preocupação com o
tema dos direitos humanos e dos direitos fundamentais sociais, no escopo de
garantir aos cidadãos uma qualidade de vida razoável, mediante a
implementação de políticas públicas realizadas pelo Estado na busca do bem-
estar geral. Neste sentido são as considerações que Ingo Wolfgang Sarlet tece
acerca dos direitos prestacionais sociais, in litteris:
Já se assentou, neste contexto, que, enquanto os direitos de
defesa se identificam por sua natureza preponderantemente
negativa, tendo por objeto abstenções do Estado, no sentido de
proteger o indivíduo contra ingerências na sua autonomia
pessoal, os direitos sociais prestacionais (portanto, o que está
em causa aqui é precisamente a dimensão positiva, que não
exclui uma faceta de cunho negativo) têm por objeto precípuo
conduta positiva do Estado (ou particulares destinatários da
norma), consistente numa prestação de natureza fática.
Enquanto a função precípua dos direitos de defesa é a de
limitar o poder estatal, os direitos sociais (como direitos a
prestações) reclamam uma crescente posição ativa do Estado
156
BORGES, José Souto Maior. Direitos humanos e tributação. Revista Tributária e de
Finanças Públicas, São Paulo, n. 40, set./out. 2001, p. 189-190.
122
na esfera econômica e social. Diversamente dos direitos de
defesa, mediante os quais se cuida de preservar e proteger
determinada posição (conservação de uma situação existente),
os direitos sociais de natureza positiva (prestacional)
pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação
que constitui seu objeto, já que objetivam a realização de
igualdade material, no sentido de garantirem a participação do
povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais.
157
O Estado Democrático de Direito representa, em verdade, um acréscimo
em relação ao Estado Social, porquanto neste tem-se uma melhoria nas
condições sociais de existência. Naquele, o conteúdo extrapola o bem-estar
social, através da efetivação de uma vida digna ao homem, buscando fomentar
a participação pública, traço marcante que vigora nos regimes democráticos.
Portanto, o modelo de Estado instaurado no Brasil traz, para além de um
extenso rol de direitos fundamentais sociais, protetivos da dignidade da pessoa
humana, a garantia da participação de todos os cidadãos na vida política e
social da nação.
O grande desafio que se coloca, dada a precariedade de enfrentamento
pela doutrina pátria, e por ser temática deveras angustiante, diz respeito ao
dever fundamental de pagar impostos como condição de possibilidade para o
implemento ou efetivação de políticas públicas, decorrentes dos direitos
elencados na Carta Constitucional brasileira de 1988.
157
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5.ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 284.
123
O Estado Democrático de Direito brasileiro e seu sistema econômico
capitalista utilizam a via impositiva como marco fundamental, conditio sine qua
non para o implemento de políticas públicas, instrumentalizadas através dos
serviços públicos. Na esteira de Liam Murphy e Thomas Nagel, os impostos
“são também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema político
põe em prática uma determinada concepção de justiça econômica ou
distributiva”.
158
Nesta esteira, inequívoco o raciocínio que sinaliza ser a imposição
tributária requisito indispensável para a concretização do Estado Democrático
de Direito inscrito na Constituição Federal brasileira de 1988, notadamente
pelos direitos fundamentais sociais lá insculpidos, que requerem prévio
financiamento público para que a efetividade destes direitos reste
implementada.
A doutrina do Direito Tributário brasileiro instila timidamente discussões do
ponto de vista da justiça tributária, no tocante à relação tributo – políticas
públicas. Neste sentido as lições de Murphy e Nagel:
Quanto cada qual deve pagar? Para que deve ser usado o
dinheiro? Quais produtos ou serviços devem ser isentos de
impostos ou dedutíveis da base tributária? Quais são as
desigualdades legítimas e admissíveis na renda líquida da
população ou nos impostos pagos por pessoas diversas? São
essas perguntas – carregadas de implicações morais e
ardentemente disputadas – acerca das obrigações que temos
158
MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.
124
uns para com os outros através das operações fiscais do
governo que rege a todos.
Mas, embora esteja claro que essas questões têm alguma
relação com a justiça, elas não têm dado azo, do ponto de vista
moral, a uma discussão tão sofisticada quanto a que foi
desencadeada por outras questões públicas dotadas de uma
dimensão moral – questões acerca da liberdade de expressão,
da pornografia, do aborto, da igualdade de proteção legal, da
ação afirmativa, da regulamentação da conduta sexual, da
liberdade religiosa, da eutanásia e do suicídio assistido.
159
Situações como a hipertrofia do setor público, que reclam(ou)a reformas
emergenciais, dada a incapacidade de prover, da maneira como a população
brasileira necessita, políticas públicas adequadas, que supram as
necessidades daqueles necessitados; o alto grau de incerteza acerca das
conseqüências advindas das políticas tributárias, traço marcante do sistema
fiscal brasileiro; a alta carga tributária; a gestão perdulária dos recursos
públicos; a grande crise política brasileira e, por final, o déficit na prestação de
serviços públicos essenciais, demonstram a relação ou vinculação direta
existente entre a tributação e as políticas públicas, estas à mercê da
efetividade insculpida na Carta Constitucional brasileira de 1988.
Perdura o desinteresse, o ocultamento ou a baixa densidade nas
discussões acerca das dimensões éticas das estratégias de governo, para
verificar-se a compatibilidade ou correspondência entre a implementação de
políticas públicas e a tributação, sobretudo no contexto atual do Estado
brasileiro, que sofre os reflexos da globalização, da desestatização dos
serviços públicos, enfim, da Reforma do Estado.
159
MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-6.
125
Para falar-se em direitos fundamentais sociais, já que as políticas públicas
são possíveis de se materializarem pela via impositiva, há que se lembrar
também dos deveres fundamentais, categoria que José Casalta Nabais
ressalta em sua obra O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Eis as
considerações que o jurista lusitano empreende no tocante ao esquecimento
dos deveres fundamentais:
Expressão superlativa desse desprezo pelos deveres
fundamentais é-nos fornecida pela Grundgesetz da República
Federal da Alemanha que, ao não empregar uma única vez
sequer ao longo de todo o seu texto o termo dever
fundamental, revela alguma peculiaridade e mesmo um
evidente radicalismo bem compreensível nesse tempus
aedificandi, em que, reagindo contra o nacional-socialismo e
vindicando bem o carácter provisório e transitório da Lei
Fundamental, se regressou ao entendimento da época das
declarações revolucionárias de direitos do homem e do
cidadão, que não conheciam outros deveres senão os
correlativos dos direitos que acompanharam o homem na sua
passagem do estado de natureza para o estado civil. Na
verdade e ao contrário, por um lado, do que estabelecia a
Constituição de Weimar e do que já então dispunham diversas
constituições dos Länder e, por outro, do que prevê a
generalidade das constituições do seu género
(designadamente as outras constituições há pouco referidas), a
Lei Fundamental não conhece qualquer capítulo, título ou parte
subordinada à epígrafe ‘direitos e deveres fundamentais’, mas
tão só um capítulo (rectius, uma divisão sem qualificação)
intitulado ‘direitos fundamentais’.
160
No âmbito do Estado Democrático de Direito impõe-se questionar: como
compatibilizar o gozo efetivo das políticas públicas sem o prévio financiamento
do Estado, através da tributação via impostos? Dentre os deveres
160
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 18-
19.
126
fundamentais, consoante leciona José Casalta Nabais, a exemplo do dever de
voto, situa-se o dever de pagar impostos.
161
Nos tempos atuais, corriqueiramente, reclama-se pela efetividade dos
direitos fundamentais. De outra banda, ocultam-se os deveres fundamentais
dos cidadãos e a responsabilidade pelos custos que materializam os referidos
direitos. Afinal, como implementar somente direitos sem os co-respectivos
deveres?
Em ensaio publicado acerca da face oculta dos direitos fundamentais, José
Casalta Nabais destaca que o esquecimento dos deveres fundamentais deve-
se à conjuntura política, social e cultural que se emoldurou após a Segunda
Guerra Mundial, dada a necessidade de exorcizar o passado dominado pelo
Liberalismo, em que se dava primazia aos deveres. Destaca que tal episódio
da história ocorre a partir dos anos 20 do século XX, “mais precisamente nos
finais dos anos quarenta em Itália e na então República Federal da Alemanha,
depois nos anos setenta na Grécia, Portugal e Espanha e já nos anos oitenta
no Brasil”.
162
Surge, pois, premissa de grande relevância para o estudo em foco, que
reclama um (re)pensar: direitos e deveres fundamentais devem ser alçados ao
161
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 20.
162
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos
direitos. Disponível em: http://www.agu.gov.br/Publicacoes/ Artigos/05042002JoseCasaltaAface
ocultadireitos_01.pdf. Acesso em: 14 nov. 2005, 11h30min.
127
mesmo patamar, ou seja, é preciso que se confira a mesma importância tanto
aos direitos quanto aos deveres fundamentais.
Nesta ordem de idéias, por que reclamar o implemento de direitos
fundamentais sociais se não há o sinalagma com os deveres fundamentais?
163
José Casalta Nabais compara a relação direito-dever fundamental como um
“direito boomerang”, ou seja, “eles são, por um lado, direitos e, por outro lado,
deveres para o respectivo titular activo, ou seja, direitos que, de algum modo,
acabam por se voltar contra os próprios titulares”.
164
O esquecimento dos deveres fundamentais, sem os quais não se efetivam
ou concretizam direitos, consiste em assunto que não tem despertado a
atenção da doutrina. Da mesma forma como na relação tributo – implemento
de políticas públicas predomina a baixa densidade de debates ou o
ocultamento da doutrina e da jurisprudência, no tocante aos deveres
fundamentais verifica-se o mesmo silêncio.
163
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 80.
Na obra em relevo, destaca o autor que, no tocante aos direitos sociais, somente mencionam-
se os deveres do Estado. Quanto aos deveres do cidadão, o silêncio predomina. Eis a doutrina
mencionada, in litteris: “Por seu turno, no que concerne aos direitos sociais, temos apenas
deveres do estado, cujo titular é o legislador e que são: os deveres (negativos) de não pôr em
causa a consagração e o conteúdo constitucional dos direitos (ou seja, o an, o quid e o
quantum constitucional), o dever (positivo) de concretização jurídico-política do respectivo
conteúdo, e ainda o dever (negativo) de, uma vez concretizado o direito social, não revogar
pura e simplesmente a respectiva lei concretizadora e de não afectar aquele nível de
concretização legal que haja obtido uma clara ‘sedimentação’ na consciência jurídica
comunitária.”
164
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 53.
128
Por que exacerbar direitos sem ressaltar, na via contrária, os deveres dos
cidadãos? Cumpre mencionar que não se está a defender a minoração dos
direitos fundamentais sociais, arduamente conquistados pelo povo brasileiro,
condição indispensável para a instauração do bem-estar geral e para uma
distribuição mais igualitária de renda. Mas por que não se inflamam os debates
acerca dos deveres fundamentais, mormente do dever fundamental de pagar
impostos?
Os debates que circundam os direitos fundamentais sociais e a
implementação de políticas públicas, de um lado, e o esquecimento dos
deveres fundamentais, de outro, rumam ao ponto nevrálgico que atinge o cerne
do Estado hodierno: a crise fiscal, que revela o descompasso entre receitas e
despesas públicas.
A problemática do esquecimento dos deveres fundamentais, da escassez
de tratamento dos mesmos ou da assinalagmaticidade entre o estudo dos
direitos e deveres fundamentais, na esteira de José Casalta Nabais, é
verificável na generalidade dos países, porquanto o tratamento dos deveres
fundamentais está longe de ser equiparado ao dos direitos fundamentais.
Afirma que, para além de os deveres fundamentais carecerem de uma
regulamentação, os mesmos não dispõem “de um regime constitucional(mente
traçado) minimamente parecido com o previsto para os direitos (maxime, para
os direitos fundamentais em sentido estrito ou os, entre nós, designados
129
‘direitos, liberdades e garantias’)”.
165
Os deveres fundamentais encontram-se consagrados na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a saber: o dever de obediência (art.
7°), o dever de pagar impostos (art. 13) e o dever de suportar a privação da
propriedade em caso de expropriação por utilidade pública (art. 17).
A previsão dos direitos fundamentais extravasa os clássicos direitos de
liberdade e passa a integrar os direitos a prestações sociais, os direitos
ecológicos e os direitos de participação política, sobretudo com o advento do
Estado Democrático de Direito. Nesta senda, José Casalta Nabais destaca a
importância na convocação de deveres fundamentais frente aos direitos que a
coletividade exige do Poder Público:
Ora, todos estes direitos, se por um lado, como direitos que
são, exprimem exigências do indivíduo face ao estado, assim
alargando e densificando a esfera jurídica fundamental do
cidadão, por outro lado, também limitam de algum modo essa
mesma esfera através da convocação de deveres que lhes
andam associados ou coligados.
166
165
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 23.
Na página 36 da referida obra, José Casalta Nabais leciona: “Por outro lado, os deveres
fundamentais, ao contrário do que o seu esquecimento ou fraco tratamento constitucional
parecem sugerir, não são, nem um aspecto – o aspecto dos limites – dos direitos fundamentais,
nem um aspecto – o aspecto dos reflexos individuais – dos poderes estaduais, mas sim uma
categoria constitucional própria colocada ao lado da dos direitos fundamentais.”
166
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 18-
19.
130
José Luis Bolzan de Morais destaca que o gérmen da crise fiscal do Estado
remonta aos anos de 1970, época em que houve um aumento das demandas
perante o Estado, aliado à depressão econômica mundial – crise da matriz
energética – fatos estes que trouxeram impactos inexoráveis às nações. Neste
contexto, houve a diminuição da capacidade da população em suportar suas
despesas, com a conseqüente transferência deste ônus ao Estado, situação
em que houve notável aumento das despesas públicas. Neste estado de
coisas, ocorreu a majoração do déficit público, porquanto o jogo de tensões
sociais sugere uma menor incidência tributária, o que significa menor
arrecadação aos cofres públicos, maior necessidade da população no que toca
às prestações públicas, acirrando-se, por final, o círculo vicioso entre a crise
econômica, a debilidade pública e as necessidades sociais.
167
O caráter fundamental da incidência de impostos sobre as atividades
tributáveis consiste, na esteira de Juan Manuel Barquero Estevan, em
instrumento indispensável do Estado, que dele necessita para o adequado
desempenho de suas funções. Por expressa disposição constitucional, trata-se
o imposto de instrumental financeiro por excelência, fonte maior de
ingressos/receitas ao Estado, incluindo-se a totalidade ou o restante das
exações incidentes sobre as atividades (taxas, contribuições, etc.). Eis as
lições do referido autor:
167
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a transformação
espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 41-42.
131
[...] puede afirmarse que la idea de fondo de esa “teoría del
Estado fiscal” es o al menos ha sido generalmente compartida
en buena parte de los países que han acogido sistemas de
Estado de bienestar o Estado social, en los que se ha venido
considerando el impuesto como el instrumento más adecuado
para la financiación de las tareas públicas y como vehículo de
intervención y redistribución.
168
Num Estado Democrático de Direito, ressalta José Casalta Nabais,
encontram-se basicamente três modalidades de custos lato sensu que
necessitam de suporte, a saber: os custos atinentes à própria existência e
sobrevivência do Estado, materializados pelo dever de defesa da pátria; o
dever de votar e, enfim, os custos stricto sensu ou custos financeiros públicos,
que necessitam de concretização mediante o dever de pagar impostos. E
assim destaca Nabais, no sentido de que todos os direitos têm custos públicos:
[...] os direitos, todos os direitos, porque não são dádiva divina
nem frutos da natureza, porque não são auto-realizáveis nem
podem ser realisticamente protegidos num estado falido ou
incapacitado, implicam a cooperação social e a
responsabilidade individual. Daí que a melhor abordagem para
os direitos seja vê-los como liberdades privadas com custos
públicos. Na verdade, todos os direitos têm custos
comunitários, ou seja, custos financeiros públicos. Têm
portanto custos públicos não só os modernos direitos sociais,
aos quais toda a gente facilmente aponta esses custos, mas
também custos públicos os clássicos direitos e liberdades, em
relação aos quais, por via de regra, tais custos tendem a ficar
na sombra ou mesmo no esquecimento. Por conseguinte, não
há direitos de borla, apresentando-se todos eles como bens
públicos em sentido estrito.
Não tem, por isso, o menor suporte a ideia, assente numa
ficção de pendor libertário ou anarquista, de que a realização e
protecção dos assim chamados direitos negativos, polarizados
no direito de propriedade e na liberdade contratual, teriam
168
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 30.
132
apenas custos privados, sendo assim imunes a custos
comunitários.
169
José Casalta Nabais também destaca que os deveres fundamentais se
fazem necessários pelas posições jurídicas passivas (caráter passivo) ou pela
situação de dependência dos indivíduos perante o Estado, justificando-se,
destarte, o dever de pagar impostos como fruto da atuação do Estado, que
implementa políticas públicas mediante instrumental que possui chancela
constitucional: os serviços públicos.
Os custos dos direitos sociais necessitam de financiamento público,
notadamente em se tratando de despesas que visam a consecução e a
implementação de políticas públicas essenciais à população. Neste diapasão,
forçoso mencionar-se que o gozo dos direitos fundamentais sociais, para que
os cidadãos desfrutem da mais ampla esfera de direitos e liberdades, não se
concretiza mediante custos sociais passíveis de individualização, ou seja,
mediante tributação referente à atividade estatal específica, mas sim através de
impostos,
170
que deságuam no financiamento de custos gerais inerentes à
169
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos
direitos. Disponível em: http://www.agu.gov.br/Publicacoes/ Artigos/05042002JoseCasaltaAface
ocultadireitos_01.pdf. Acesso em: 14 nov. 2005, 11h30min.
170
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 15.ed. atual. São Paulo: Saraiva,
1999, p. 159. Destaca o autor: “Portanto, tratando-se de imposto, o Estado não precisa criar
nenhum serviço, nem dispor de qualquer atividade especial para oferecer ao contribuinte em
troca do que este irá pagar, pois não há, no imposto, a contrapartida que vamos encontrar na
taxa. Basta que a pessoa jurídica de direito público tenha competência, crie o imposto por lei,
naturalmente escolhendo, em boa técnica, as situações que revelem, direta ou indiretamente,
capacidade contributiva.” Acerca do papel do imposto no sistema tributário brasileiro, ver
também: BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
p. 197. Assim destaca o autor: A definição do art. 16 encerra conceito puramente jurídico, mas
que coincide com a noção teórica. Por esta, a nosso ver, imposto é a prestação de dinheiro
que, para fins de interesse coletivo, uma pessoa jurídica de Direito Público, por lei, exige
coativamente de quantos lhe estão sujeitos e têm capacidade contributiva, sem que lhes
133
efetividade dos direitos sociais, à realização, à promoção e à proteção dos
indivíduos.
Neste passo, importa mencionar que os custos dos direitos sociais
necessitam prévio financiamento público via instituição de impostos, enquanto
espécie tributária. Estes, por sua vez, pelo fato de não possuírem afetação, por
expressa disposição legal, a atividade estatal específica, são destinados à
captação de riqueza para o tesouro público, não havendo correspondência ou
equivalência entre o imposto recolhido pelo Erário e a vantagem que o Estado
oferta ao sujeito passivo da obrigação tributária.
Neste sentido, Alfredo Augusto Becker assinala que “a lei (direito positivo)
é o único instrumento – criado pela atividade artística do homem – que até hoje
se mostrou eficaz e capaz de, nas mãos do Estado, promover e manter o Bem
Comum”.
171
Assim, o imposto, desde que instituído por lei e constituído de
forma hígida, é o instrumental tributário por excelência que objetiva, através de
recursos carreados ao Erário, a satisfação dos direitos fundamentais sociais.
assegure qualquer vantagem ou serviço específico em retribuição desse pagamento. No
mundo contemporâneo, cessaram quase as prestações em natureza: paga-se imposto em
dinheiro, embora o CTN pareça admitir outra coisa estimável em dinheiro (art. 3°). Só as
pessoas jurídicas de Direito Público, o país, o Estado federado ou Província, os Municípios e
subdivisões locais (nos Estados Unidos, p. ex., cidades, condados, distritos escolares etc.)
dispõem de poder político para tornar efetiva a obrigação de pagar imposto,
independentemente de qualquer contraprestação por parte de quem suporta esse dever. Essas
pessoas podem cometer a cobrança e aplicação de imposto a outra entidade estatal ou
paraestatal, que, então, arrecada os gravames em seu nome, para determinado fim, igualmente
público. É a ‘parafiscalidade’.”
171
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3.ed. São Paulo: Lejus, 2002, p.
214.
134
A falta de sensibilidade dos cidadãos no tocante à não afetação do
imposto, como espécie tributária, a atividade estatal específica, porquanto não
há prévia ciência acerca da destinação que o tributo (imposto) irá tomar após
adentrar os cofres públicos, traz questionamentos à população: para que
recolher impostos se os recursos não serão aplicados diretamente a algum fim
específico?
Em que pese haver, no senso comum, perguntas desta natureza, atípicas
ao tecnicismo tributário, é preciso que se atente para uma avaliação normativa
da política tributária, ou seja, o papel do imposto na concretização do Estado
Democrático de Direito brasileiro, instaurado pós-1988. Para Liam Murphy e
Thomas Nagel:
Quando nos posicionamos contra ou a favor de uma redução
nos impostos, não pensamos somente nos efeitos dessa
redução sobre a renda que teremos à disposição, mas também
em suas conseqüências sociais e econômicas mais amplas.
[...]
Os impostos têm de ser avaliados como um elemento do
sistema geral de direitos de propriedade que eles mesmos
ajudam a criar. A justiça ou injustiça na tributação não pode ser
outra coisa senão a justiça ou injustiça no sistema de direitos e
concessões proprietárias que resultam de um determinado
regime tributário.
172
Outra distinção que se faz necessária na temática em exame é aquela
pertinente aos impostos diretos e os indiretos. Para os impostos diretos, é
172
MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 10-11.
135
possível graduar-se diretamente a soma devida pelo contribuinte, em
conformidade com a sua capacidade contributiva, a exemplo do imposto
incidente sobre a renda (IR). Já os impostos indiretos, diversamente, trazem o
ônus tributário a evento jurídico que não mensura a capacidade contributiva do
cidadão, e.g., o imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS),
o imposto de importação (II) e o imposto sobre produtos industrializados (IPI),
dentre outros.
Refere José Casalta Nabais que os impostos diretos são facilmente
sentidos. Já os indiretos, dada a anestesia fiscal, não são percebidos pelos
indivíduos. No que concerne à anestesia fiscal, importante a contribuição de
Padre Antônio Vieira, referida por Nabais, in verbis:
A costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão
dormindo e não acordado, para mostrar quão dificultosamente
se tira aos homens, e com que suavidade se deve tirar, ainda o
que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia
não menos que a conservação e propagação do género
humano; mas repugnam tanto os homens a deixar arrancar de
si aquilo que se lhes tem convertido em carne e sangue, ainda
que seja para bem de sua casa e de seus filhos, que por isso
traçou Deus tirar a costa de Adão, não acordado, senão
dormindo; adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o
sentimento. Com tanta suavidade como isto, se há-de tirar aos
homens o que é necessário para sua conservação. Se é
necessário para a conservação da Pátria, tire-se a carne, tire-
se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja;
mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade,
que os homens não o sintam, nem quase o vejam. Deus tirou a
costa a Adão, mas ele não viu nem sentiu; e se o soube, foi por
revelação. Assim aconteceu aos bem governados vassalos do
imperador Teodorico, dos quais por grande glória sua dizia ele:
Sentimus auctas illationes, vos addita tributa nescitis: ‘Eu sei
que há tributos, porque vejo as minhas rendas acrescentadas;
136
vós não sabeis se os há, porque não sentis as vossas
diminuídas’ [...].
173
Os direitos fundamentais sociais e o dever fundamental de pagar impostos
devem coexistir, ou seja, para a realização do Estado Democrático de Direito, é
preciso que haja reciprocidade entre direitos e deveres fundamentais,
porquanto o financiamento das políticas públicas deve obter-se,
fundamentalmente, através de impostos. Por final, assevera José Casalta
Nabais:
[...] os deveres fundamentais outra coisa não são, ao fim e ao
cabo, senão direitos a uma repartição universal ou geral dos
encargos comunitários, dos encargos que a existência e
funcionamento da comunidade estadual implicam. Direitos
esses que, para não serem meros privilégios, têm de possuir a
nota ou a característica da universalidade.
174
As necessidades financeiras crescentes do Estado não podem prescindir
do imposto como instrumento central de sustentabilidade do imenso gasto ou
custo social, próprio dos regimes sociais e democráticos de Direito. Em obra
dedicada à teoria pura da imposição, Aníbal Almeida acentua ser necessário
que haja entre os cidadãos o dever cívico de contribuir para o financiamento
das despesas públicas como um dever fundamental.
175
173
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos
direitos. Disponível em: http://www.agu.gov.br/Publicacoes/ Artigos/05042002JoseCasaltaAface
ocultadireitos_01.pdf. Acesso em: 14 nov. 2005, 11h30min, p. 13.
174
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 139.
175
ALMEIDA, Aníbal. Teoria pura da imposição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 75-76. Nesta
obra, destaca o autor: “Da perspectiva da administração fiscal – da ‘ilusão financeira’ (e das
suas alegadas <<vantagens>>, é claro que para o fisco....), para recorrer à expressão epónima
de um livro de um autor usualmente tido por <<infra-marginal>> e actualmente ressuscitado, A.
137
O arcabouço tributário, desde que pautado por políticas adequadas,
consiste em importante e insubstituível sustentáculo do Estado, sobretudo para
a efetividade dos direitos fundamentais sociais, no escopo de minorar as
desigualdades, objetivando distribuir renda de forma mais equânime. Na esteira
de Juan Manuel Barquero Estevan, “la financiación por medio de tributos debe
constituir una pieza básica, en términos cuantitativos, en la financiación del
Estado”.
176
Afinal, qual é a espécie tributária que garante maior justiça e solidariedade
sociais no contexto do Estado Democrático de Direito? Seriam os impostos,
que não possuem afetação a atividade estatal específica, ou as taxas, que se
caracterizam pela utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico
e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição?
Puviani –, o IRS que, actualmente, cumpre, por excelência, de modo universal, a referida figura
do ‘imposto progressivo por escalões’ no domínio crucial dos impostos directos, assustará
observadores irreflectidos (como se observou), mas irracionalmente (como se viu). Da
perspectiva cívica é, no entanto, uma realização quase perfeita do ideal dos mais
consequentes dos promotores do estado de direito, que concebiam o dever cívico de contribuir
para o financiamento das despesas públicas como um dever fundamental a exercer
esclarecidamente, de olhos bem abertos – nunca <<iludidos>> e, muito menos,
<<anestesiados>> por um fisco insaciável, ínvio e nocturno, manhoso e videirinho –, com clara
consciência das decisões políticas quantificadas (como que <<materializadas>>) em receitas e
despesas públicas patentes, e dos critérios que devam presidir a essas decisões, o que,
logicamente, exigiria a unicidade da imposição sob essa mesma espécie, leal e escancarada,
tão acessível e discutível como escorreita e racional. Mas, como vimos extensamente, a
multiplicidade fiscal, decerto labiríntica, a que chégamos hoje parece quase irredutível, e o
remédio é sofrê-la como fatalidade, segundo o dito bem conhecido e já idoso de Benjamin
Franklin sobe ambas as fatalidades (a morte e os impostos). Resta, porém, ainda e sempre, o
exercício de uma cidadania que pressupõe conhecimento e pensamento problemático, sob
todos os ângulos, mais ou menos visíveis, da <<matéria fiscal>>.”
176
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 59.
138
4.3 Estado de impostos ou Estado de taxas?
A grande polêmica que se estabelece no tocante à tributação e a
implementação de políticas públicas diz respeito à impossibilidade de
mensuração do gozo dos direitos sociais frente à imposição tributária.
177
Tal
situação é conhecida pela doutrina como o princípio da equivalência, do
benefício ou da contraprestação.
A efetividade e realização do Estado Democrático de Direito importa na
deverosidade social,
178
categoria que José Casalta Nabais trata pelo dever
fundamental de pagar impostos como requisito intransponível para o suporte
dos custos sociais.
Afinal, o financiamento dos gastos públicos deve estar fundado com base
em ingressos tributários impositivos – impostos – observado o princípio da
capacidade contributiva, ou através da idéia de equivalência, benefício ou
contraprestação, mediante a cobrança de taxas, contribuições ou preços
públicos?
177
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 185.
Assim leciona Nabais: “[...] o imposto não pode ser encarado, nem como mero poder para o
estado, nem simplesmente como mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o
contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da
comunidade organizada em estado.”
178
NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a
compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2004, p. 90.
139
Eis a questão que se coloca: devem os custos dos direitos sociais serem
objeto de socialização (financiamento coletivo) ou as referidas despesas devem
ser assumidas de forma individual, conforme se apresentar a necessidade de
cada cidadão?
179
Destaca Juan Manuel Barquero Estevan que existem propostas de
financiamento do Estado mediante tributos causais, os quais deveriam custear
a totalidade das tarefas estatais. Neste contexto, um reduzido número de
tarefas seriam financiadas via impostos, tais como as prestações
administrativas gerais (polícia).
180
Segundo esta proposta, o sistema de
financiamento seria baseado no princípio da contraprestação ou equivalência,
ou seja, tributa-se aquilo que o cidadão realmente for usufruir, diferentemente
da lógica do imposto, que objetiva carrear recursos aos cofres públicos, não
havendo afetação da exação a atividade estatal específica, no intuito de
(re)distribuir renda e minorar as desigualdades sociais.
As taxas, em conformidade com o artigo 77 do Código Tributário Nacional,
têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia ou a utilização,
179
SACCHETTO, Cláudio. O dever de solidariedade no direito italiano: o ordenamento italiano.
In: GODOI, Marciano Seabra de; GRECO, Marco Aurélio (Coord.). Solidariedade social e
tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 32. Cláudio Sacchetto, de forma singular, responde a
pergunta formulada: “Se a exigência se dirige a sujeitos socialmente frágeis, ofende-se não só
o mínimo vital, a Existenzminimum mas também a função social da propriedade porque, neste
caso, ela cumpre uma função social de sobrevivência. [...] nem sempre tem sentido ‘tirar’ com a
cobrança para depois redistribuir, se os destinatários são aproximadamente as mesmas
pessoas de quem se tirou: em outros termos, torna-se conveniente deixar com eles os recursos
necessários e algo a mais, absolutamente não tributá-los. Um tipo de imposto negativo, que se
traduz em equidade, mas também em eficiência.”
180
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 89.
140
efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao
contribuinte ou posto à sua disposição. Assim, entende-se que a taxa, como
espécie tributária, consiste em prestação afetada a um ato de fruição,
aproveitamento ou uso de atividade estatal, em nítido caráter de
contraprestação ou equivalência.
O exemplo mais presente do pagamento de taxas pela utilização específica
de serviço público no âmbito europeu é o caso das autopistas. Tendo em vista
o fluxo exacerbado em algumas rodovias européias, sobretudo na Espanha, o
Poder Público local houve por instituir a espécie tributária taxa, objetivando
evitar o congestionamento destas vias em momentos de grande fluxo.
Tal situação é retratada por José Andrés Rozas Valdés, quando ressalta
que “la provisión de autopistas en nuestro caso, a partir de un supuesto real, el
del País Vasco, que es un buen ejemplo del difícil equilibrio que entre lo público
y lo privado caracteriza este orden de cosas”.
181
A contraprestação pela
utilização das autopistas, na esteira de Juan Manuel Barquero Estevan, deve
ser instituída pela via das taxas, nos seguintes termos:
En realidad, en tal caso, la contraprestación por el uso se
integra en un concepto más amplio, que es la contraprestación
por la posibilidad de uso de una determinada instalación o
servicio, con independencia de su uso efectivo. Las
contribuciones especiales serían “precios de opción”, pagos
exigidos por la autorización básica para el uso de una
181
VALDÉS, José Andrés Rozas. Una aproximación a la financiación de autopistas, desde la
experiencia española. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Serviços públicos e direito
tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 565.
141
instalación o servicio, con independencia de su uso efectivo.
Volviendo al ejemplo de las autopistas, su financiación a través
de contribuciones especiales implicaría que los ciudadanos
adquirirían una autorización básica para su utilización en virtud
del pago de la contribución. Para el caso de sobrecarga se
debería abonar además una tasa, pero en caso de ausencia de
sobrecarga los sujetos que hibieran abonado la contribución
disfrutarían del uso de la autopista sin necesidad de satisfacer
tasa alguna. En este esquema teórico, las contribuciones
especiales deben servir para cubrir los costes fijos de las
instalaciones, costes que se imputan a la mera disponibilidad
para el uso, y que son independientes de la medida del uso
efectivo.
182
No âmbito do Direito Tributário Ambiental também discute-se a melhor
espécie tributária aplicável à eco-tributação. Ricardo Lobo Torres salienta que o
princípio do poluidor-pagador
183
orienta-se no sentido de que os potenciais
poluidores devem custear as despesas estatais concernentes à precaução e à
prevenção de riscos ao meio ambiente. Já o princípio do consumidor-
pagador
184
aponta que o indivíduo que usufruir dos bens de consumo comum
do povo deve pagar por eles.
182
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 90-91.
183
TORRES, Ricardo Lobo. Valores e princípios no direito tributário ambiental. In: TÔRRES,
Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 27-28. Assim
destaca o autor: “O princípio do poluidor-pagador sinaliza no sentido de que os potenciais
poluidores devem arcar com a responsabilidade pelo pagamento das despesas estatais
relacionadas com a precaução e a prevenção dos riscos ambientais. É princípio de justiça
porque busca evitar que repercuta sobre a sociedade a obrigação de suportar os custos da
sustentação do meio ambiente sadio. O princípio do poluidor-pagador está ligado à idéia de
internalização de eventuais prejuízos ambientais, sem a qual seria repassada para terceiros a
responsabilidade pela carga tributária necessária a garantir os riscos ambientais. O poluidor,
que se apropria do lucro obtido em suas atividades poluentes, não pode externalizar
negativamente a poluição que produz. [...] O princípio do poluidor-pagador se concretiza no
direito tributário por intermédio das regras atinentes à instituição de multas, de taxas ou de
contribuições.”
184
TORRES, Ricardo Lobo. Valores e princípios no direito tributário ambiental. In: TÔRRES,
Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 28. No
tocante ao princípio do consumidor-pagador, salienta o autor: “O princípio do consumidor-
pagador aponta no sentido de que aquele que usufrui os bens de uso comum do povo deve
pagar por eles. O princípio emana também da passagem do Estado de Impostos ao Estado de
Taxas, que atua de preferência através de tributos contraprestacionais, deixando os impostos
para a remuneração das despesas gerais do Estado.” Por final, na página 30, invoca o autor o
142
Em que pese as discussões instauradas acerca da melhor espécie
tributária aplicável – impostos ou taxas – cumpre esclarecer que o imposto
desempenha papel extrafiscal no Estado Democrático de Direito, porquanto
possui natureza nitidamente (re)distributiva, ou seja, angaria recursos aos
cofres estatais para implementar os direitos fundamentais sociais inscritos na
Magna Carta brasileira de 1988.
O imposto exerce papel fundamental na realização do Estado (Social e)
Democrático de Direito, porquanto atua como equalizador das desigualdades
sociais, redistribui renda e proporciona o bem-estar geral. Ademais, acaso
implementado o Estado de taxas, o princípio do benefício que lhe é inerente
acarretaria um problema fundamental, na esteira de Liam Murphy e Thomas
Nagel: a miopia.
185
princípio do custo benefício, in litteris: “O princípio do custo benefício se aplica aos tributos
contraprestacionais, sendo que, no Direito Tributário Ambiental, se adapta perfeitamente às
taxas cobradas em razão do exercício do poder de polícia (art. 145, CF c.c. art. 77 do CTN). O
princípio do custo/benefício, que mede os aspectos quantitativos das taxas, se compagina
inteiramente com o princípio do poluidor-pagador, que define quem deve pagar o tributo
ambiental.” A defesa da espécie tributária taxa também pode ser verificada em: TABOADA,
Carlos Palao. El principio “quien contamina paga” y el principio de capacidad económica. In:
TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 81.
Leciona o autor: “La relación entre el principio “quien contamina paga” y el de equivalencia ya
sugiere que el tipo de tributo más adecuado para la realización del primero es la tasa más que
el impuesto.” No sentido do cabimento de taxas e, em especial, das contribuições de
intervenção no domínio econômico, verificar: TÔRRES, Heleno Taveira. Da relação entre
competências constitucionais tributária e ambiental – os limites dos chamados tributos
ambientais. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Org.). Direito tributário ambiental. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 136. A negativa acerca da instituição de impostos ambientais é também
verificada na doutrina de Heleno Taveira Tôrres, nestes termos: “E como negamos qualquer
espaço para recurso à espécie de criação de ‘impostos’ ambientais, admitindo somente
cabimento de taxas e especialmente das contribuições de intervenção no domínio econômico,
[...] visto que as taxas estarão sempre vinculadas às atividades de poder de polícia ou de
serviços públicos pertinentes, sem qualquer inovação que mereça especial demora meditativa.”
185
MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 26. Eis a constatação dos autores: “Mas o
princípio do benefício tem um problema ainda mais fundamental: quer nos recomende a
tributação proporcional, quer não, ele não pode nos dizer nada acerca de quais devem ser as
alíquotas, pois nada nos diz acerca de qual o nível adequado de gastos do governo. Toma os
143
O cerne da problemática de financiamento do Estado, que requer a
instituição de impostos, vai de encontro ao princípio do benefício ou da
equivalência, típico de um Estado de taxas. A característica predominante de
um Estado de taxas é a redução dos direitos sociais, o que vem a traduzir a
idéia de um Estado Mínimo, ideário típico do Liberalismo.
O Estado de impostos é entendido, muitas vezes, de forma errônea, eis
que as prestações públicas que a população desfruta sem contraprestação
direta são vistas como gratuitas, fato este que leva a uma fruição irresponsável
das mesmas. Neste sentido destaca Juan Manuel Barquero Estevan:
[...] el impuesto se percibe como ingreso sin contraprestación,
como una especie de pago a fondo perdido, lo que promueve
los comportamientos elusorios de todo orden. La motivación de
los responsables públicos se ve igualmente afectada, dado que
el control de los ciudadanos pueden ejercer en un Estado de
impuestos es siempre menor que en un Estado de tasas.
[...] Los ciudadanos carecen de la posibilidad de establecer una
comparación de costes-beneficios con las concretas
prestaciones recibidas de un ente público [...].
186
Portanto, pode-se concluir que um Estado de impostos envida esforços no
tocante à implementação dos direitos sociais (a concretização destes direitos
demanda custos sociais). Contrariamente, em um Estado de taxas vige o
princípio do benefício ou equivalência, em nítido caráter de contraprestação.
gastos como dados e distribui os impostos proporcionalmente aos benefícios resultantes. Esse
é um exemplo daquilo que chamamos de miopia.”
186
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 98.
144
O montante arrecadado pelo Erário em um Estado de impostos tem por
objetivo a implementação de políticas públicas, no escopo de melhor
(re)distribuir renda, diminuir as desigualdades sociais e proporcionar o bem-
estar àqueles do povo necessitados, que não podem suportar o pagamento de
taxas para o gozo dos direitos sociais.
Neste quadrante, exerça-se o seguinte raciocínio: em um Estado de taxas,
quem pode suportar a tributação (pagamento de taxas) não necessita de
prestações públicas efetivas (direitos sociais), ao passo que os cidadãos que
mais necessitam do Estado não podem arcar com a tributação através das
taxas.
187
Destarte, aquele que não suporta financeiramente a tributação, em um
Estado de taxas, não pode esperar que outrem arque com o pagamento do
tributo. Isto denota, por conseguinte, que em um Estado de taxas ocorre,
expressamente, uma renúncia a prestações públicas positivas, o que significa
um retrocesso ao modelo de Estado instaurado em grande parcela das
Constituições contemporâneas, sobretudo naquelas em que vigoram regimes
sociais e democráticos de Direito.
187
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 117-118. O autor,
de forma lapidar, elucida a problemática: “Ahora bien, allí donde el interés general o la cláusula
de Estado social excluyan que una determinada necesidad quede en manos del sector privado,
se plantea la pregunta de si esos mismos intereses generales no se verán lesionados si esa
concreta necesidad sólo puede verse satisfecha cuando quien la experimenta tiene capacidad
de pago suficiente para ello. De ahí se deriva una exigencia dirigida para cualesquiera fórmulas
de financiación basadas en tributos causales: deben solucionar el problema de cómo realizar
las tareas públicas allí donde existe demanda de los ciudadanos pero no existe capacidad de
pago. Porque para muchas de esas tareas se cumple que quien necesita la prestación, no la
puede financiar, y quien la puede financiar no la necesita.”
145
Desta forma, verifica-se que o imposto é a espécie tributária adequada
para o financiamento do Estado (Social e) Democrático de Direito. Em que
pese esta afirmação, destaca Juan Manuel Barquero Estevan que existe certa
resistência ao pagamento de tributos que não prevêem contraprestação:
La resistencia a los tributos sin contraprestación es tan intensa,
como consecuencia de la altura de la cuota impositiva global,
que si no produce ese cambio, habrá importantes tareas
estatales que comenzarán a verse progresivamente
perjudicadas. En concreto, se pone seriamente en peligro el
mantenimiento de la inversión pública en infraestructuras. La
globalización y la competencia impositiva entre Estados hará
más acuciante este problema.
188
Como implementar, por exemplo, saúde, educação e segurança aos
cidadãos menos abastados aplicando-se o princípio do benefício ou da
contraprestação? Seria possível a efetividade dos direitos fundamentais
sociais, inscritos na Constituição Cidadã brasileira de 1988, no contexto de um
Estado de taxas? Garantir-se-ia de que forma a manutenção de serviços
públicos essenciais àqueles indivíduos que se situam em condições financeiras
desprivilegiadas, que não revelam capacidade contributiva?
A contraprestação pelos direitos sociais, típica de um Estado de taxas,
romperia com o ideário de redistribuição de renda e de diminuição das
desigualdades sociais. Enfim, tal modelo de Estado viria a debelar os direitos
188
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 101.
146
fundamentais sociais arduamente conquistados pelos cidadãos nas Cartas
Constitucionais hodiernas, a exemplo do Texto Fundamental brasileiro de 1988.
Característica fundamental de um Estado que objetiva a justiça e a
solidariedade sociais, insuscetível de verificação em um Estado de taxas, é o
princípio da capacidade contributiva, em que predomina a contribuição de cada
indivíduo para as despesas da coletividade em razão de sua força econômica,
ideal de justiça distributiva formulada na longínqua história da civilização. Em
última análise, a capacidade contributiva “é aferida mediante a relação que se
estabelece entre a riqueza de um indivíduo e a carga tributária por ele
suportada”.
189
Sustentar um Estado de taxas consiste em negar o direito à educação,
dentre outros direitos fundamentais sociais, ao cidadão que não disponha de
numerário suficiente para contraprestar o benefício auferido, situação esta que
vem a transgredir o princípio da capacidade contributiva (dentre outros), diretriz
de capital importância para um sistema tributário cuja filosofia insira-se em um
contexto de justiça e solidariedade sociais. E Juan Manuel Barquero Estevan
lança o seguinte questionamento:
¿Es razonable o, mejor, es acorde com los principios que están
en la base de nuestro Estado social descargar sobre las
familias de personas con necesidades educativas y
asistenciales especiales el coste de esas necesidades?
190
189
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3.ed. São Paulo: Lejus, 2002, p.
496.
190
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 105.
147
Desta forma, a predominância de impostos é a forma mais justa de
(re)distribuição de renda e de equilíbrio social, porquanto consentânea com o
princípio da capacidade contributiva e com o ideário de justiça distributiva.
Cláudio Sacchetto
191
salienta que a crise do princípio da capacidade
contributiva deve-se à crise do princípio da solidariedade, sua matriz político-
ideológica. A idéia que predomina é de que os direitos dos indivíduos e os
deveres de solidariedade são antagônicos, isto é, o indivíduo realiza os seus
direitos sem vincular-se aos deveres de solidariedade social.
A repristinar as características que norteiam o Direito Tributário pátrio, de
cariz liberal-individualista, bem como o instrumental jurídico ensinado nos
bancos acadêmicos, Cláudio Sacchetto ressalta:
Provocativamente, direi que tem sentido falar de solidariedade
hoje porque independente do posicionamento positivo ou
negativo que se possa a priori ter perante o tema, poucos são
aqueles que dele têm um conhecimento mais profundo.
Nas classes universitárias, pouco dela se fala porque não há
tempo, pois prefere-se tratar – em coerência com a visão
funcionalista e instrumental do saber jurídico, dos docentes de
Direito Tributário – apenas da técnica fiscal, porque existem os
créditos a serem respeitados.
Caberia dizer, citando Sêneca, que ‘na escola não se tem
tempo para aprender o necessário porque se ensinam muitas
coisas supérfluas’.
Os estudantes são apáticos ou céticos quanto a questões
constitucionais tributárias. Não há mais tempo para falar sobre
elas com adequação e tranqüilidade. Porque não é mais tarefa
191
SACCHETTO, Cláudio. O dever de solidariedade no direito italiano: o ordenamento italiano.
In: GODOI, Marciano Seabra de; GRECO, Marco Aurélio (Coord.). Solidariedade social e
tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p.10. Destaca o jurista italiano no ensaio em relevo, na
página 11: “É um fato cultural, histórico, desconfiar do Estado e ver a arrecadação dos
impostos como ‘subtração’, ao invés de contribuição a um Erário comum.
148
das universidades formar homens de cultura e de cultura
humanista, global, tampouco fazer educação cívica.
Em suma, tem sentido falar de solidariedade porque hoje existe
o risco de perder o conceito de responsabilidade pública, que
os cidadãos deixem de ter consciência que uma parte de suas
vidas deve ser gerida em comum com os outros: este é o
significado real da solidariedade, como ensina a etimologia do
termo (do latim ‘in sólido’).
192
É neste sentido que reside o fim extrafiscal e o caráter ubíquo da espécie
tributária imposto: para além de cumprir sua função estritamente fiscal –
arrecadação tributária aos cofres do Erário como condição de possibilidade
para a implementação de políticas públicas, instrumentalizadas através dos
serviços públicos – atua também como mecanismo que visa (re)distribuir renda
e riqueza, minorando-se, assim, as desigualdades sociais, o que significa dizer
que um Estado de impostos aproxima-se mais, se comparado a um Estado de
taxas, dos ideais de justiça e solidariedade sociais. Afinal, a solidariedade,
antes de ser um dever/direito, é um valor.
Logo, o fundamento para a instituição de impostos nos Estados (Sociais e)
Democráticos de Direito é o dever de financiamento das necessidades
coletivas, em nítida política tributária conforme aos ditames da capacidade
contributiva e do interesse social, em cumprimento ao caráter extrafiscal e
ubíquo do imposto.
192
SACCHETTO, Cláudio. O dever de solidariedade no direito italiano: o ordenamento italiano.
In: GODOI, Marciano Seabra de; GRECO, Marco Aurélio (Coord.). Solidariedade social e
tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 10-11.
149
A “debilidade fundamental”
193
do imposto reside no fato de o cidadão não
vislumbrar, em sua instituição, qualquer sorte de benefício passível de ser
individualizado, associando-se a este fator o sacrifício econômico
experimentado ao efetuar-se o pagamento da referida exação. Contrariamente
à insensibilidade dos indivíduos quanto ao real caráter da espécie tributária
imposto, cumpre esclarecer que a arrecadação de impostos destina-se,
consoante já ressaltado, a financiar as tarefas estatais ou a prestação de
políticas públicas, afigurando-se indispensável a manutenção desta espécie
tributária para a promoção e realização do Estado (Social e) Democrático de
Direito.
Outro aspecto importante para a instituição de impostos como mecanismo
de financiamento geral, já que não afetado a atividade estatal específica,
concerne à mobilidade e independência que a referida espécie tributária traz
para o financiamento das tarefas públicas, situação que não se verifica nas
taxas, cujo fato gerador tem supedâneo na utilização, efetiva ou potencial, de
serviço público específico e divisível. Desta forma, o imposto presta-se a que o
Poder Público disponha livremente do numerário arrecadado, aplicando-o em
áreas em que haja prioridade de investimentos estatais em prol da sociedade.
193
ESTEVAN, Juan Manuel Barquero. La función del tributo en el estado social y democrático
de derecho. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 109. O autor
também destaca, na página 110, que o imposto mostra carência constitutiva, ou seja, o imposto
contrapõe os interesses geral e individual. Destaca também que o cidadão não se conscientiza
que a tributação, através de impostos, é pressuposto para as vantagens implementadas pelo
Estado, e que as políticas públicas devem-se ao recolhimento de impostos. Destaca o autor,
por final, que o imposto separa/afasta o indivíduo do Estado.
150
O financiamento do Estado através de impostos dá suporte a um sistema
tributário mais justo e solidário, que prima pela capacidade contributiva, em que
aos cidadãos necessitados é possibilitado o acesso às políticas públicas
independentemente de qualquer sorte de contraprestação. Aliás, no contexto
de um Estado de taxas, não há que se falar em direitos sociais e, por
conseguinte, em políticas públicas, dado o nítido viés contraprestacional que
permeia este modelo de Estado.
É nesta perspectiva que reside o dever fundamental de pagar impostos,
requisito intransponível para a manutenção do Estado Democrático de Direito,
balizado pela justiça e solidariedade sociais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No contexto de um Estado (Social e) Democrático de Direito, a teor do que
se encontra preconizado na Carta Constitucional brasileira de 1988, a temática
dos serviços públicos ocupa lugar de destaque, sobretudo pelo relevo que o
legislador constituinte confere aos direitos sociais.
Em um Estado Democrático de Direito, em que se prevêem a realização de
direitos e garantias fundamentais, e.g., os direitos sociais à educação e à
saúde, as políticas públicas, instrumentalizadas pelos serviços públicos,
confundem-se com a própria idéia de Estado. Afinal, é da essência do modelo
de Estado inscrito na Constituição brasileira de 1988 a prestação de políticas
públicas, no claro intuito de constituir uma sociedade livre e solidária, com
vistas a reduzir as desigualdades sociais.
A passagem do Estado Liberal ao Social incorporou à ordem jurídica uma
série de direitos até então desconhecidos, que sofreram modificações em grau,
intensidade e sentido. Nesta perspectiva, o Estado Mínimo conferia aos
indivíduos a proteção da liberdade individual, da segurança e da ordem sociais.
152
Com o advento do Estado Social, o Poder Público, em nítido caráter
prestacional e interventivo, houve por concretizar uma série de políticas
públicas, objetivando, destarte, a realização dos direitos sociais, atuando pró-
sociedade, no escopo de minorar as desigualdades e proporcionar um
ambiente de justiça e solidariedade sociais.
No Brasil, país que ostenta grandes desigualdades nas mais vastas esferas
da sociedade, os serviços públicos, enquanto mecanismos que viabilizam a
implementação de políticas públicas, exercem papel de fundamental relevo
para a concretização do Estado Democrático de Direito, sobretudo pela
extensa nomeada de direitos sociais esgrimidos pelo legislador constituinte.
Nesta ordem de idéias, imperioso traçar, tópica e sistematicamente, as
considerações finais do presente trabalho, cuja evolução perpassa o
nascedouro dos serviços públicos na França; o tratamento conferido ao
instituto pelo Texto Constitucional brasileiro de 1988; a evolução conceitual dos
serviços públicos no contexto da desestatização; a mudança de perfil da
Administração Pública e, por final, o dever fundamental de pagar impostos
como requisito intransponível para a concretização de políticas públicas. Eis as
seguintes constatações:
1) O Estado Mínimo, típico do período histórico do liberalismo, limitou os
papéis do Poder Público à garantia da liberdade, da segurança e da ordem
sociais. Já com o advento do Estado Social, houve alteração significativa no
153
seio do Estado, porquanto este, a partir do reconhecimento dos direitos sociais,
passou a realizar políticas públicas em prol da sociedade.
2) A transição ocorrida – do Estado Liberal ao Social – significa que o
Poder Público deixa de ser apenas o poder soberano para ser o principal
responsável pelo direito à vida, mediante a concretização de políticas públicas.
Agrega-se a este status quo o fato de a sociedade hodierna exigir um maior
empenho do Estado na prestação de políticas públicas.
3) Os serviços públicos, surgidos na França do século XIX, através do mais
consagrado precedente envolvendo a temática (arrêt Blanco), adquirem relevo
nos anos 30 do século XX, na etapa denominada de intervencionismo público,
sistematizada por Léon Duguit e Gaston Jèze – Escola do Serviço Público –
que concebia o instituto como fundamento da Teoria do Estado, um conjunto
de atividades cuja prestação deve ser assegurada porque indispensáveis à
coesão e à interdependência sociais. Com Duguit, o elemento soberania é
substituído pela noção de serviço público.
4) A noção clássica de serviço público alberga três elementos essenciais:
a intervenção de uma pessoa pública, mesmo que esta não assegure a
execução direta do serviço; a satisfação de uma atividade de interesse geral e
o recurso a um regime jurídico específico, que se adapte à satisfação do
interesse geral.
154
5) Os serviços públicos consistem em instrumento para a concretização de
políticas públicas, as quais visam a implementação dos direitos fundamentais
sociais.
6) Não há uma noção ou conceito apriorístico de serviço público, porquanto
o âmbito de abrangência do instituto se expande ou se retrai em conformidade
com a presença do Estado nos domínios da vida social contemporânea.
7) A noção de serviço público, embora ligada a um núcleo de
essencialidade, tem sofrido transformações, sobretudo pelos papéis e
responsabilidades atribuídas ao Estado no curso da história.
8) As transformações sofridas pelo Estado brasileiro, sobretudo pelas
mudanças de perspectiva governamental – migração da Administração Pública
Burocrática à Gerencial – ocasionaram rupturas nas concepções
material/objetiva, orgânica/subjetiva e formal dos serviços públicos. Destarte, a
evolução dos serviços públicos pode ser delineada em virtude da assunção,
pela iniciativa privada, de atividades até então desempenhadas,
preponderantemente, pelo Poder Público. Assim, o serviço público, em sua
visão tradicional ou clássica, significava uma atividade de competência do
Estado, excluída do mercado, cuja titularidade incumbia ao Poder Público.
9) A Administração Pública Gerencial tem início, no Brasil, através do
Programa Nacional de Desestatização, com o advento da Lei n. 8.031/90,
155
posteriormente alterada e revogada pela Lei n. 9.491/97. Neste contexto de
desestatização ganham relevo as concessões e permissões dos serviços
públicos, através das Leis n. 8.987/95 e n. 9.074/95, o que sinaliza o
esgotamento do Estado brasileiro no tocante à implementação de políticas
públicas, anunciando, assim, a Reforma da Administração Pública. O perfil
gerencial do Estado brasileiro também trouxe outra forma de contratação entre
o Poder Público e a iniciativa privada: a Lei das Parcerias Público-Privadas
(PPP).
10) A Reforma do Estado, consoante exsurge do Programa Nacional de
Desestatização, deve-se ao agigantamento do Poder Público, ou seja, tendo
em vista o desempenho, pelo Estado, de atividades de caráter nitidamente
empresarial, a Administração Pública necessitou readequar-se aos novos
tempos, concentrando seus esforços nas atividades em que sua presença
mostra-se fundamental.
11) Em que pese a execução dos serviços públicos, sob a perspectiva da
Administração Pública Gerencial, incumbir à iniciativa privada, o Estado, diante
de seus novos papéis, regula, inspeciona e, se necessário for, sanciona. Assim
sendo, o Estado, de executor dos serviços públicos, agora concentra-se,
fundamentalmente, na atividade regulatória destas atividades.
12) O fator preponderante para a Reforma do Estado encontra-se na crise
fiscal, tendo em vista a transformação das políticas públicas de caráter
156
temporário em permanentes ou de longa duração, ampliando-se, assim, a
defasagem entre a poupança pública e os custos para a implementação dos
direitos sociais.
13) Para a implementação de políticas públicas no Estado Democrático de
Direito, necessário se faz o financiamento do Estado através da imposição
tributária, requisito indispensável para o equilíbrio das finanças públicas e para
o custeio dos direitos sociais.
14) Os direitos fundamentais sociais inscritos na Carta Cidadã brasileira de
1988 vão de encontro à teoria do mínimo existencial de Ricardo Lobo Torres,
que sustenta a limitação dos direitos sociais aquém do querer do legislador
constitucional. Para o renomado tributarista, por exemplo, proclama-se, de
forma demagógica, o acesso universal à saúde.
15) Para Alberto Nogueira, a defesa do mínimo existencial de Ricardo Lobo
Torres causa estranheza, mormente para o novo direito tributário que se
coloca, em que devem ser incorporados os direitos sociais, dentre os quais os
mínimos sociais ou existenciais.
16) Contrariamente ao sustentado pela teoria do mínimo existencial de
Ricardo Lobo Torres, com a vigência da Carta Constitucional de 1988
impregnou-se no Brasil o Estado Democrático de Direito, elevando-se ao
157
patamar de direitos sociais uma série de políticas públicas que vão de encontro
à defesa do mínimo existencial sob o enfoque liberal-individualista.
17) A conformação dos direitos sociais em um contexto de mínimo
existencial, segundo leciona Ricardo Lobo Torres, diverge da atribuição de
sentido conforme a Constituição (Verfassungskonforme sinngebung),
incumbindo ao intérprete, a partir de sua condição de ser-no-mundo,
numa dada situação hermenêutica, a consciência dos efeitos da história
(Wirkungsgeschichtles Bewusstsein), consoante ressalta Lenio Luiz Streck.
18) Os debates que circundam os direitos fundamentais sociais e a
implementação de políticas públicas, de um lado, e o esquecimento dos
deveres fundamentais, dentre os quais destaca-se o de pagar impostos, rumam
ao ponto nevrálgico que atinge o cerne do Estado hodierno e a sua crise: as
conseqüências orçamentárias que norteiam as políticas públicas e o
financiamento público. Predomina, assim, a assinalagmaticidade entre direitos
e deveres fundamentais, porquanto o tratamento dos deveres está longe de ser
equiparado aos direitos.
19) O grande desafio que se coloca, no âmbito do Estado Democrático de
Direito, é o dever fundamental de pagar impostos como condição de
possibilidade para a implementação de políticas públicas.
158
20) Os custos dos direitos sociais não podem prescindir do imposto como
instrumento central de sustentabilidade do Estado. Assim, o financiamento do
Estado por meio de tributos, em especial dos impostos, observado o princípio
da capacidade contributiva, consiste em peça chave, conditio sine qua non
para a concretização do Estado Democrático de Direito.
21) O imposto desempenha papel extrafiscal e ubíquo no Estado
Democrático de Direito, porquanto possui natureza nitidamente (re)distributiva,
ou seja, destina-se a angariar recursos aos cofres estatais para implementar os
direitos sociais, no intuito de minorar as desigualdades e promover a justiça e a
solidariedade sociais.
22) O Estado de impostos envida esforços no tocante à implementação de
políticas públicas, visando a concretização dos direitos sociais. Contrariamente,
no contexto de um Estado de taxas vige o princípio do benefício ou da
equivalência, em nítido caráter contraprestacional.
23) Em um Estado de taxas, quem suporta a tributação (taxas) não
necessita abrigar-se das políticas públicas, ao passo que os cidadãos que mais
necessitam do Estado não podem arcar com este ônus tributário. Esta
situação, nitidamente, vem a agravar as desigualdades sociais e romper com o
viés social e democrático vigente nos estatutos constitucionais hodiernos.
159
24) A migração de um Estado de impostos a um Estado de taxas
significaria reduzir o papel do Estado na promoção e na implementação de
políticas públicas, porquanto os tributos causais (taxas) não ensejam o
financiamento das funções (re)distributivas do Estado, mas sim o caráter
contraprestacional ou da equivalência, ou seja, paga-se o tributo (taxa) pela
tarefa que, efetivamente, o cidadão for usufruir do Poder Público.
Por derradeiro, o financiamento do Estado através de impostos dá suporte
a um sistema tributário mais justo e equânime, que prima pela capacidade
contributiva e pela (re)distribuição de renda, proporcionando aos cidadãos
necessitados o acesso às políticas públicas, instrumentalizadas pelos serviços
públicos, independentemente de qualquer contraprestação pelos direitos
sociais experimentados. Daí concluir-se que os direitos não são dádiva divina
nem frutos da natureza; necessitam, pois, de cooperação social, aqui
representada pelo dever fundamental de pagar impostos.
Parafraseando Ronald Dworkin e José Casalta Nabais, levemos a sério os
deveres fundamentais e os custos orçamentários de todos os direitos
fundamentais, para que reste concretizada a justiça e a solidariedade sociais
no contexto do Estado Democrático de Direito.
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