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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
MESTRADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
FILHO DO SILÊNCIO, MESTRE DAS PALAVRAS
A LINGUAGEM MÍSTICA DO SILÊNCIO EM RŪMĪ
Heliane Miscali de Oliveira
Juiz de Fora — Minas Gerais
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
MESTRADO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
FILHO DO SILÊNCIO, MESTRE DAS PALAVRAS
A LINGUAGEM MÍSTICA DO SILÊNCIO EM RŪMĪ
Heliane Miscali de Oliveira
Orientador: Faustino Teixeira
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Ciência da Religião, como
requisito para a obtenção do grau de
mestre em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora.
Juiz de Fora — Minas Gerais
2006
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FILHO DO SILÊNCIO, MESTRE DAS PALAVRAS
A Linguagem Mística do silêncio em Rūmī
Heliane Miscali de Oliveira
Dissertação defendida e aprovada, em ___________________, pela banca constituída por:
_____________________________________________________
Profº. Drº. Faustino Teixeira (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
_____________________________________________________
Profª. Drª. Cândida Georgopoulos
Universidade Federal de Juiz de Fora - MG
_____________________________________________________
Profº. Drº. Marco Lucchesi
Universidade Federal do Rio de Janeiro - RJ
Juiz de Fora
Agosto de 2006
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus Pai, a Virgem Soberana Mãe, a Jesus Cristo e a todos os Seres da
Corte Celestial que zelam por nós.
Agradeço pelo amor infindo, a força, a luta, a coragem, a tranqüilidade, a beleza e a
luz dos meus pais muito amados, Valter e Nair, presença sem a qual nada seria possível
em minha vida.
Agradeço ao imenso amor, amizade, cumplicidade, alegria e afeto de meu irmão
Leonardo e dos queridos pequeninos lá de casa.
A D. Matilde e Seu Mário; Gabriel, Ciça e Larinha; Guto e Patrícia; Marco e Bia,
que também são minha família. Obrigada pela acolhida, o carinho, o apoio.
A meu Tio Vandir (in memoriam), Tio Eliseu e Tia Hilda: por toda ajuda e todo
cuidado.
A meus amigos inefáveis: Álex, Alexandre, Edson, Elbert, Fábia, Fernanda, Gabriel
e Dé, Gérson e Ju, Gustavo, Karla, Leandra Guerra, Leonardo Rosa, Reuber, Vanderson,
Vinícius. Obrigada pelas partilhas e todos os silêncios de escuta e comunhão. Agradeço, de
forma especial, aos meus amigos Sérgio e Rodrigo pelo incentivo, a compreensão, a
proximidade e a busca comum do que nos alimenta em Amor.
À Laíde, à Jayne, à Lílian, à Sandra, à Helena, Irineide, Pedro e a todos os colegas
da Escola Teodoro Coelho, pela compreensão e o carinho.
Ao Carlos Frederico, à Ana Zinsly, à Fawzia, à Silvia, à Janaína, à Rafaela, à
Luciana, ao Reginaldo Campoe, à Cristiane e ao Adson por tudo e por tanto.
A minha orientadora Vitória Peres (in memoriam), pelos ensinamentos, pelo apoio,
o cuidado, a partilha, o carinho, a compreensão e a disciplina. Por ter acreditado nesse
trabalho e por me fazer ver que era possível. Hoje, sua lembrança é silêncio que canta nos
contornos do Mistério Sublime.
A todos os meus professores do Departamento de Ciência da Religião, em especial,
aos professores Volney, Marcelo e Fátima e também aos funcionários Antônio, Paulinho e
Mara.
A meus professores, do Departamento de Letras: Edmilson Pereira, Mário Roberto
Zágari, Maria Luíza Scher e Terezinha Scher, pelo exemplo, o afeto e a confiança que me
conferiram.
A CAPES.
A Tuffic, pela excelsa paciência nas aulas de árabe.
Ao professor Marco Lucchesi a à professora Cândida Georgopoulos, pelos diálogos
de silêncio e poesia. E por terem aceitado com alegria o convite para comporem a banca
examinadora.
A Pablo Beneito e Pilar Garrido, pela maestria, a amizade, a compreensão e o
anúncio do cálamo divino com que Deus escreveu todas as palavras e todos os silêncios.
Ao professor Faustino, que trouxe a luz em que se consomem as mariposas ébrias
do Amor de Deus, para acender os primeiros passos deste caminho e que acolheu com
hospitalidade e delicadeza a orientação do trabalho em sua fase final.
Ao Santo Daime, pelos ensinamentos de respeito profundo por tudo o que vive e as
lições de humildade e perfeição. Agradeço também a todos os amigos do Céu das Estrelas.
Ao Mário, pelo amor inteiro, por ser minha luz da Luz, por tudo dito aqui e por
tudo o que nunca se dá ao dito.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Considerações Iniciais...............................................................................................11
Rūmī: Vida e Obra ..............................................................................................22
Notas sobre a tradução..............................................................................................31
Capítulo I A linguagem mística
1.1 A linguagem mística: a fala do Mistério ............................................................35
1.2 A linguagem mística e a linguagem poética....................................................... 52
1.3 A poesia do Inefável............................................................................................58
Capítulo II A linguagem do silêncio
2.1 Silêncio: realidade manifesta de uma intuição do transcendente........................69
2.2 Silêncios sentidos................................................................................................75
2.3 O ístimo do discurso e do silêncio:quando da palavra se faz silêncio................80
Capítulo III A poesia do silêncio de Rūmī
3.1 Traduções do silêncio em poesia........................................................................86
3.2 Silêncios e sentidos nos versos de Rūmī............................................................94
Conclusão...........................................................................................................................105
Bibliografia........................................................................................................................109
Por aqui se vê porque é que a palavra pode
suscitar as coisas e, traduzindo-as no espaço,
torná-las manifestas pelo seu afastamento e seu
vazio: é que esse longínquo habita-as. Já está
nelas esse vazio por onde é justo apreendê-las. É
que as palavras têm por vocação extrair, como
centro invisível da sua verdadeira significação. É
pela sombra que se alcança o corpo, é pela
penumbra dessa sombra, quando se atingiu o
limite oscilante onde, sem se apagar, ela se
desafia e se deixa penetrar de luz. Mas,
naturalmente, para que a palavra alcance esse
limite e o represente, é necessário que também
ela se torne uma gota de luz.
Maurice Blanchot . O livro por vir
Para o Mário e minha família, com amor.
RESUMO
Este trabalho busca, através dos Estudos de Mística, analisar a significação do
termo “silêncio” como recurso alusivo da linguagem Mística, no poeta persa Mawlānā
Jalāl-od din Rūmī (1207- 1247). O presente estudo explora as interfaces da linguagem e
da poesia no livro Diwan de Shams de Tabriz, de Rūmī, como forma de compreender a
partir da produção poética do autor a representação da experiência mística através da
linguagem.
Nesse sentido, Rūmī oferece a possibilidade de se pensar o silêncio não como
instância finita diante da qual a linguagem se emudece, mas sim como forma possível de se
estabelecer uma outra linguagem de acesso à dimensão inapreensível do Sagrado.
A monumental obra poética de Rūmī reflete o seu caminho espiritual de uma
maneira tão amalgamada que é permitido tomar sua experiência de ruptura com o mundo
ordinário através de seu rompimento com o discurso verbal, apresentando assim uma
espécie de saída para o silêncio: ao falar de seu encontro com o Absoluto se impõe uma
transcendência que não pode ser alcançada pela linguagem, e ao mesmo tempo que é
fundada em uma Unidade.
Interessa a este estudo compreender o espaço dessa Unidade Absoluta de Deus em
Rūmī, que, muito embora esteja representada em seus versos, deles escapa pela condição
última da transcendência.
ABSTRACT
This work search through mystical studies to analyze a silence term meaning as an
allusive mystical language in a poet Mawlānā Jalāl-od din Rūmī (1207- 1247). This study
explore a language and poetry interface in Mawlānā’s book Diwan de Shams de Tabriz in
order to comprehend a mystical representation through language from the poetical
production of this author. In this direction Rūmī it offers the possibility of – if thinking
silence not as finite instance – ahead of which the language become silent, as well as
possible form of establishing one another language to access at the inapprehensible
dimension of the Sacred one.
The monumental poetical workmanship of Rūmī reflects your spiritual path and in a
way so amalgamated that it is allowed to take its experience of rupture with the usual world
through its disruption with the verbal speech thus presenting a species of exit for silence.
To the speech of its meeting with the Absolute one if it imposes a transcendence that cannot
be reached by the language, at the same time that transcendence is established in the Unity.
The interests of this study is understand the space of this Unity of God in Rūmī that much
even so represented in its verses of them escapes for the condition finishes of the
transcendence.
Introdução
Considerações Gerais
O propósito deste trabalho foi destacar a Linguagem Mística do poeta sufi
Mawlānā Jalāl-od din Rūmī,
1
buscando abordar, através de uma seleção de seus
poemas, a dinâmica de comunicação entre a experiência mística e a poesia, levando
em conta a forma como se articula aí a dimensão alusiva do silêncio, presente na
entrega do místico pela busca do desvelo
2
e matéria de interesse no campo da
Mística, uma vez que alça projeções na realidade que se sustenta para além das
palavras.
O trabalho se encontra dividido em uma introdução e três capítulos. Esta
disposição procura avaliar, na parte introdutória, além de tópicos referenciais sobre
a pesquisa, assuntos que contextualizem os leitores acerca do poeta estudado. Para
tanto, além das informações de ordem inicial, inseridas no tópico “Considerações
Gerais”, foi elaborado um segundo tópico — “Rūmī: vida e obra” — em que são
apresentados alguns dados biográficos de Rūmī e as características básicas de sua
produção poética.
Após serem apresentadas, de forma sucinta, as propostas do estudo, bem
como a apresentação do autor, a introdução se fecha com uma terceira subdivisão
intitulada “Notas sobre a tradução”, onde é possível encontrar as informações, de
ordem metodológica, aplicadas ao texto, que buscam esclarecer a utilização das
1
“Mawlānā é um termo atribuído posteriormente ao nome de Rūmī e significa “Nosso Senhor” ,
“Nosso Mestre” . Ao longo deste estudo o termo Mawlānā será amplamente empregado como um
homônimo de Rūmī.
2
“O sufi é aquele cuja linguagem, quando fala, reflete a realidade de seu estado, isto é, não diz nada
que não é, e quando está silencioso, sua conduta explica o seu estado, e seu estado anuncia que se
desligou de todos os laços deste mundo.”. Eva de VITRAY- MEYEROVITCH, Rûmî e o sufismo, p. 68
11
traduções estudadas, o parâmetro comparativo empregado na análise dos poemas,
os riscos assumidos e as soluções equacionadas ao entrar no delicado espaço da
linguagem poética de Rūmī, escrita originalmente em persa e árabe.
O primeiro capítulo se atém ao tema específico da Linguagem Mística,
procurando construir um entendimento para esta linguagem própria de que a
mística parece se utilizar, ao suspender o vocabulário humano e imprimir seu
discurso no tecido da experiência. Nesse sentido, é âmbito de interesse explorar
também as relações de proximidade com a Linguagem Poética, avaliando autores
importantes neste ofício como Juan Martín Velasco, Michel de Certeau e Carlo
Saccone. O trabalho discorrerá no sentido de analisar, através de seus poemas,
como Rūmī aponta para a construção de um interstício entre a poesia e a mística.
No segundo capítulo, o texto se volta para “A Linguagem do Silêncio”,
examinando as possibilidades teóricas mais relevantes que o estudo da linguagem
mística pode oferecer para a compreensão do silêncio a que Rūmī faz menções
recorrentes em sua obra o Divan de Shams de Tabriz
3
.
No terceiro capítulo, “A Poesia do Silêncio de Rūmī”, o estudo traça um
recorte de algumas evidências que surgem nessa relação entre linguagem, poesia e
mística, mas não intenta aprofundar-se no sentido de perscrutar a gênese dessa
interação. O capítulo se inscreve dentro da malha traçada por estes três pilares,
mas somente para que se situe desta forma a análise de uma gama de poemas de
Rūmī que evocam a dimensão do silêncio.
Rūmī, além de um grande místico e mestre sufi, também pode ser
considerado um dos maiores poetas da tradição persa. Sua experiência com o
Mistério se constrói através de sua linguagem, constantemente alusiva e dêitica a
3
“Seu pseudônimo [ de Rūmī ] citado no fim da maior parte dos ghazals do Divan é Khâmouch,
khamoch, Khamouch: silêncio. A escolha dessas palavras que tem o mesmo sentido não é fantasiosa.
O silêncio dentro da via suprema que ele segue é uma entrada no mundo do espírito, uma chave sobre
a abertura dos segredos esotéricos.” Jalāl al-Dīn RŪMĪ, Le Livre de Shams de Tabriz: cent poèmes, p.
9
12
esta instância inapreensível a que ele chama de “Amado”. Aliás, no sufismo, não é
raro que a linguagem do amor expresse a busca por Deus. Muitos poetas místicos,
inseridos num universo lingüístico que absorveu a tradição oral da poesia pré-
islâmica, tomaram os padrões simbólicos da poesia amorosa e os utilizaram nas
descrições narrativas de experiências de união mística.
4
Neste estudo, o termo “Amado” será bastante utilizado, pois expressa o
referencial lingüístico de Rūmī, embora ocorra também algumas outras referências
alusivas, embasadas em critério dos estudos de fenomenologia, como “Mistério”,
“Sublime” e “Sagrado”.
O termo “Deus”, muito embora possa ser aplicado, porque remete a um
transfundo comum de interpretação a partir das crenças, também apresenta
problemas porque desconsidera os sistemas lingüísticos e culturais das diversas
tradições.
Portanto, o termo que será utilizado várias vezes, durante o trabalho, será “O
Real”. Tal sintagma, cunhado por Jonh Hick
5
compreende a alusão ao
transcendente. Segundo o autor, o termo é metafórico e representa o esforço da
linguagem humana em suas tentativas de representar o contato do Real conosco.
Assim, tal como os místicos de todas as tradições, Rūmī se confronta com a
busca por traduzir em palavras a realidade arrebatadora do Real e a inefabilidade da
realidade unitiva
6
.
Na busca de uma linguagem adequada, que comporte discursivamente a
natureza de sua vivência mística, apresenta um encontro com o transcendente, que
4
Sobre a relação que a linguagem mística tece com a linguagem amorosa, afirma Sílvia Schwartz:
“Nessa linguagem, os temas da lembrança da amada da loucura amorosa, da perplexidade, dos
paradoxos que envolvem a identidade das duas partes são recorrentes, bem como os temas da
embriaguez e do amor, sempre ambíguos nas alusões ao amado.” Sílvia SCHWARTZ, A Béguine e al-
Shaykh: Um estudo comparativo da aniquilação mística em Marguerite Porte e Ibn’Arabi, p.115
5
Jonh HICK, The Fifth Dimension: En Exploration of the Spiritual Realm, p. 2.
6
“Existe o impasse do místico ao se ver sem uma linguagem adequada, desta procura por uma saída
do silêncio, do indizível, dessa angustiante mudez diante de uma realidade tão arrebatadora.”. Vitória
Peres de OLIVEIRA, “A mística sufi e a poesia”, in Eduardo GROSS, Manifestações Literárias do
Sagrado, p. 101-125.
13
se depara, em palavras, com a saída para o silêncio. Trata-se, na realidade, de
uma construção sempre alusiva: “A revelação da verdade não supõe o misticismo
do inefável, mas uma ontologia do inexaurível.”
7
. Para Rūmī,
Tu não podes te liberar do mundo pelo o ouvido
Tu não podes te liberar de ti mesmo por muitas palavras
Tu não podes te liberar de todos os dois,
Do mundo e de ti mesmo, salvo pelo silêncio.
8
Mawlānā escreve seus versos de forma tal que o silêncio que aí parece, torna-
se uma espécie de entidade necessária para a compreensão de sua poesia, por
promover o que é preciso não dizer para se fazer sabido. Nessa relação entre
silêncio e poema, o sentido literal dá espaço ao subjetivo, para que as alusões
assumam a tarefa de expressar a experiência
9
. As alusões e outros recursos
estilísticos compõem alguns dos termos da linguagem dos místicos e representam
indícios daquilo que se pode chamar “insuficiência da linguagem”. Sobre este termo,
afirma Martín Velasco:
Característica comum a todos os místicos e a todas as formas de
linguagem mística é a convicção da “insuficiência da linguagem”, com a
expressão de Jorge Guillén. Daí o “tormentoso itinerário contra o
conceito e a palavra” (J. Quint). [...] Mas essa luta extenuada dos
místicos com as palavras não comporta o naufrágio de sua linguagem.
Ao contrário, libera forças criadoras que geram uma linguagem nova,
despertam suas capacidades expressivas e levam ao limite o poder
significativo das palavras mediante ao que J. Baruzzi chama
“transmutações operadas no interior dos vocábulos tomados da
linguagem normal.”. Tais transmutações são obtidas no meio de toda
7
Paulo Afonso de ARAÚJO, Fenômeno e sentido, p. 120.
8
D. RUMI, Rubâi’ât, p. 71
9
“Parecerá óbvio aos estudiosos da mística: tentar uma comunicação precisa sobre o transe místico é
acometer um empreendimento impossível, contudo, nossos contemplativos tentam sugerir algo de sua
união teopática, servindo-se de uma simbologia particular, que é, no findo, uma desconsolada
aproximação de uma experiência que jamais pode ser traduzida pela linguagem, precisamente por não
ser verbal.”. Luce LÓPES-BARALT, “El dinamismo místico em la cima del éxtasis”, in Fuentes
neerlandesas de la mística espñola, p.83.
14
classe de recursos: adjetivos, prefixos, superlativos, signos de
admiração, etc
10
.
Estes recursos são utilizados por Rūmī, que em seu percurso místico se
depara com as dificuldades de expressão acerca da natureza peculiar das realidades
que contempla e as experiências que o conduzem ao contato com o Amado.
É importante ressaltar que além das dificuldades, inerentes à própria
linguagem de comunicação do Mistério, dos anúncios dos segredos que habitam o
coração daquele que contempla “um sol-estrela que se eleva além das realidades
das formas”
11
, o trabalho lida também com obstáculos estruturais no que diz
respeito ao estudo da mística.
Por um lado, temos presenciado um sensível crescimento dos estudos de
Mística, em pólos internacionais acadêmicos importantes, liderados por intelectuais
de renome como Pablo Beneito, da Universidade de Sevilha, Luce López-Baralt, da
Universidade de Porto Rico, William Chittick, da Universidade de Nova York. No
Brasil, o interesse pela mística tem atraído pesquisadores de diversas áreas, através
dos programas de pós-graduação em Ciência da Religião, como o da Universidade
Federal de Juiz de Fora. No contexto contemporâneo, é possível verificar também
uma crescente busca de formas de espiritualidade — entre elas, a Mística, em suas
tantas manifestações religiosas — como uma resposta aos problemas da atualidade,
seja de ordem cultural, social ou individual.
Nesse sentido, parece relevante um estudo que penetre neste bonito espaço
que a Mística pode oferecer ao homem, como uma maneira de acessar essa
liberdade interior, esse sentido último que habita no aprofundamento de si, no
despojar-se das formas do mundo. Atividade não de alienação, mas de busca.
Tarefa fundante do que vive, sente e pensa.
10
Juan Martín VELASCO, El fenômeno místico en la historia y en la actualidad, p. 19.
11
D. RŪMĪ, Masnavi, p. 90.
15
Contudo, por outro lado, há o desafio de se compreender as relações que a
“modernidade” tem promovido entre as idéias e a experiência, tema procedente nas
investigações das ciências da religião
12
.
Desde Parmênides, o mundo ocidental tem se distinguido entre as fronteiras
do que é e o que não é. O pensamento histórico se construiu através dos princípios
do ser e do não-ser e condenou a uma espécie de importância menor, outras
tentativas de compreender o ser. A mística e a poesia foram exiladas do conjunto
das ciências e, assim, o homem foi exilado de si mesmo.
Os poetas e místicos, hábeis na percepção de uma origem comum entre
amor, religião e poesia, foram confiscados pelo pensamento moderno. A experiência
com o transcendente, assim como na do amor e na da poesia, deslinda a imagem
de um homem arrancado de si. E a esse sentimento de ruptura, sucede-se outro de
total identificação com aquilo que parecia alheio e ao qual se busca juntar, de
maneira indissociável: o sagrado, o que se nos escapa.
Para Rudolf Otto, o sagrado é uma categoria a priori composta de dois
elementos: uns racionais e outros irracionais. Os elementos racionais são
constituídos pelas idéias de “absoluto” e “perfeição”. Otto postula ainda a
existência de um domínio que constitui algo mais elevado: é o domínio do divino, do
santo, do sagrado.Terreno sobre o qual se apóiam todas as concepções religiosas.
Assim o sagrado é uma expressão de uma disposição divinizadora, nata ao homem,
de maneira que a revelação do sagrado não é a de um objeto exterior ao homem,
mas sim de uma abertura do coração que contemple esse “Outro” oculto.
12
“Com efeito, ao mesmo tempo em que se sucederam as teologias nas modernidades clássicas e a
crítica religiosa ou as filosofias da religião nas modernidades modernas, a religião foi vivida
intensamente pelos indivíduos e pelas comunidades, e sua influência marcou de modo decisivo e
profundo os destinos individuais e a vida social e política. [...] Mas, em que medida o pensamento da
religião pelas modernidades segundo os cânones da conceptualidade filosófica repercutiu sobre a vida
religiosa concreta?”. Henrique C. de Lima VAZ, “Religião e Modernidade filosófica”, in O impacto da
modernidade sobre a religião, p. 104.
16
No caso de Otto, e em grande parte da fenomenologia da religião, existe uma
valorização da
intuição e da introspecção
13
. As experiências privadas que não são
passíveis de expressão na linguagem são o pressuposto epistemológico do estudo
da mística
14
. Este é o obstáculo, pois, como entender a experiência mística, sob as
luzes da modernidade? Como traçar aí a especificidade da experiência original e
suas relações com que habita o mais fundo do ser?
Para Henrique Vaz, em sua reflexão sobre o destino da “tradição cristã, nas
mãos dos saberes modernos que reivindicam para si a hermenêutica da experiência
religiosa”
15
, falta a “experiência de santidade”:
A experiência cristã de santidade parece abrir na vida humana uma
dimensão de insondável profundidade, cujo sentido Jacques Marritain
exprimiu magnificamente no seu texto sobre a significação do ateísmo
contemporâneo: “Crer em Deus deve significar viver de tal modo que a
vida seria impossível se Deus não existisse”. Aqui entramos no espaço
de um universo espiritual em cujas fronteiras parecem emudecer as
filosofias e as ciências da religião. Nele, a palavra é dada ao santo que
fala de sua experiência de Deus, e essa experiência só admite
aparentemente uma interpretação autêntica, que é oferecida,
justamente, pela teologia mística.
16
Mesmo diante das avaliações advertenciais sobre as dificuldades de um
estudo de mística, está expressa a intenção genuína do trabalho e sua aposta pela
convicção na linguagem mística de Rūmī como a expressão de uma verdade que se
13
A formulação clássica e freqüentemente citada de Otto é "Convidamos o leitor a prestar atenção
para o momento em que o sentimento de emoção religiosa profunda surge. Se ele é incapaz ou se ele
desconhece tais momentos devemos parar aqui a nossa conversa. [...] No exame e análise desses
momentos e desses estados de recolhimento solene, convém observar com toda a precisão possível o
que não é comum nos estados de exaltação puramente moral; que nos conduzem a busca da boa ação
e que formam, em seu conteúdo sentimental, a adição que lhes é própria." . Rudolf OTTO, O
Sagrado, p. 13
14
"O que é o numinoso? Ele não é o racional, isto é, não pode desenvolver-se em conceitos. Não
podemos indicar o que ele é observando as reações sentimentais que o seu contato provoca em nós.
Falamos assim, simplesmente para dizer alguma coisa. Mas parece que, aqui ainda, não dissemos
propriamente nada ou pelo menos a definição que tentamos dar por meio de um conceito é sempre
negativa." . Rudolf OTTO, O Sagrado, p. 17-18.
15
Henrique C. de Lima VAZ, “Religião e Modernidade filosófica”, in O impacto da modernidade sobre a
religião, p. 106.
16
Henrique C. de Lima VAZ, “Religião e Modernidade filosófica”, in O impacto da modernidade sobre a
religião, p. 106-107.
17
projeta para além das modernidades e que diz respeito não a uma interpretação,
mas a revelação de uma vida desta vida.
Rūmī, no caminho entre a linguagem e o Real, caminha pela via discursiva da
experiência, ainda que faça do silêncio um apontamento para exprimir sua busca
inexaurível pelo Amado. A experiência rompe, portanto, com a linguagem, na
medida em que, quando se fala sobre o Real, ou sobre o contato com ele, impõe-se
um limite à transcendência que não pode ser alcançado pela linguagem.
Para tanto, é importante se ter bem clara a idéia semântica do que ora
chamamos “silêncio poético”, pois, a princípio, poderia parecer contraditório afirmar
o status do silêncio na mística sendo que os místicos sempre comunicaram muito
através de sua linguagem.
Dessa forma, o trabalho não se caracteriza propriamente por uma
inefabilidade da mística, mas sim uma mística
do Inefável: é no discurso místico
que a linguagem se desprende da necessidade de descrições objetivas para deslizar
no arrebatamento, no êxtase inenarrável do encontro. Com isso, formas lingüísticas
não apenas delineiam a experiência, mas participam na revelação do domínio
transcendente.
Importa ao estudo em questão compreender o papel da linguagem na
experiência mística e situar a importância do silêncio
17
como elemento articulador
da tensão entre o dialogismo da linguagem e a unicidade da experiência mística.
Ao se estabelecer uma reflexão sobre o silêncio, que se configura a partir da
poética de Rūmī, como possível expressão narrativa da experiência mística,
entende-se que o silêncio se apresenta não como a fronteira a partir da qual a
linguagem verbal não pode avançar, mas sim, o princípio de uma outra linguagem,
17
“Ele (o silêncio) é, sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a
que o situa na relação do ‘um’ com o ‘múltiplo’, a que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos
deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa.”.
Eni Puccinelli ORLANDI, As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p.17
18
provida de sentido. Esse sentido se constrói por aquilo que, embora engendrado
pela linguagem, dela escapa, transcendendo-a.
É como afirma Marco Lucchesi: “E os místicos morrem de amor. A vida e a
morte iluminam as águas do silêncio. Do silêncio do não-ser. Da fruição divina. O
Tudo e o Nada. Desabitar-se para habitar-se. Sair para não-sair. Morrer para não
morrer. Tal a dialética dos místicos.”
18
O diálogo das palavras com o silêncio ativa os sentidos a um processo de
floração da poesia de Rūmī, como forma de dizer o silêncio, dando voz ao que de
hábito não se dá por exprimir. Isso acontece de tal forma que, na impossibilidade
de enunciação do verdadeiro silêncio, aquele intransplantável à expressão, busca-se
evidenciá-lo por uma via alusiva, verificada na análise dos poemas evolvidos.
O homem é um animal que fala: às características animais, o homem
acrescenta a linguagem; nele, as características animais são
permanentes e inseparáveis. É o mesmo com a linguagem. Se
aparentemente não fala, fala interiormente. Está sempre falando, como
uma torrente que se mistura à lama. A água clara da torrente é sua
linguagem, e a lama sua animalidade nele, a lama é acidental.
19
Refletir sobre o indizível. Este não é o motivo pelo qual não encontramos
palavra alguma, mas sim aquilo pelo qual nenhuma palavra pode ser encontrada: o
inconceituável, sobre o qual só se fala pelas alusões. Nas palavras de Rūmī :
Este discurso destina-se àquele que precisa de palavras para conceber
alguma coisa. Mas aquele que compreende sem palavras, que
necessidade tem delas? Este céu e essa terra são palavras para aquele
que compreende, e eles também foram criados por palavras: Faça-
se...! E assim foi. Portanto, para aquele que ouve o que lhe é dito em
voz baixa, barulhos e gritos não são necessários.
20
18
Marco LUCCHESI, “A dança da unidade”, in Faustino TEIXEIRA, No limiar do mistério, p 326.
19
D. RUMI, Fihi-ma-fihi, p. 111
20
D. RUMI, Fihi-ma-fihi, p. 47.
19
Este trabalho é, pois, sobre o silêncio. Reconheço que o desafio sempre se
configurou como abissal, afinal surgiram várias dúvidas que pareciam
completamente impeditivas: como falar do silêncio? Dizer do indizível sobre um
poeta místico inserido na tradição corânica da Revelação? Tocar com palavras
humanas o sagrado do Absoluto Inefável de Deus?
Perguntas construídas no discurso e respondidas no espaço em que se
deixam manifestas as possibilidades de se dizer todas as coisas através da poesia,
fazendo com que o sentido do Real se torne contemplável em seu verdadeiro rosto
e em sua secreta medida, a partir do momento em que o silêncio se modela no ar e
dessa palavra suspensa se consiga penetrar no vazio incircunscrito do qual a
experiência é a chave.
Deixo as últimas palavras destas “Considerações Gerais” para expressar a
profunda gratidão a todas as pessoas que, de alguma maneira, contribuíram para
este trabalho e também a todos aqueles que se sentem especialmente tocados pelo
tema do silêncio. Num contexto contemporâneo, em que tudo parece dizer tanto,
informar tanto, gritar e banalizar o significado sublime da palavra humana, falar do
silêncio pode soar, aparentemente, estranho e curioso. Paradoxal e complexo.
Para mim, dizer do silêncio representou a clara consciência de nossa finitude.
Nossa diminuta porção perante a Deus — Palavra de todas as palavras, Silêncio de
todos os silêncios. Ficou claro durante alguns momentos deste caminho, a
“Majestade” e a “Beleza” do Inefável. Ficou claro que vocábulos como “cuidado”,
“cortesia espiritual”, “delicadeza” seriam fundamentais para se falar do que não se
pode dizer.
A tarefa se configurou, desde o início, como um profundo desafio.
20
A ausência súbita, inesperada e difícil da Professora Vitória Peres trouxe o
silêncio da ausência, da retirada, diante do qual todos os sentidos humanos se
tornam emudecidos.
Mas existe, o que não se cala: o Amor. E dele, fonte inesgotável de tudo o
que se cria, de tudo o que vive, surgiram estímulos e forças para se chegar ao final
deste estudo.
Agradeço ao amor dos que amo: minha família, meu namorado, meus
amigos. Agradeço a meus Mestres. Agradeço a Rūmī e seu amor pelo Infinito.
Agradeço a Vitória, que está agora nos braços do Amor Maior. E agradeço ao
Professor Faustino, orientador e amigo, pelo amor com quem sempre fala dos
Místicos; por sua busca pelos buscadores; por ser, entre nós, a mostra vivente de
um “fedele d’amore”. A idéia inicial deste estudo surgiu justamente daí: a partir do
mini-curso, sobre mística islâmica, por ele ministrado, durante o encontro da
Associação Brasileira de História das Religiões, em Juiz de Fora, no ano de 2003. Do
instante em que o ouvi na leitura do belíssimo conto de Attar
21
sobre as Mariposas
Amorosas: da busca apaixonada que as conduz ao Mistério da Luz, da entrega
ardorosa ao crepitar da Chama, e do silêncio que fica, única narrativa possível, para
dizer da experiência de União que ali existiu.
21
F. ATTAR, A linguagem dos Pássaros, p. 218.
21
Rūmī: Vida e Obra
Mawlānā Jalāl-od din Rūmī nascido em Vakhsh, vilarejo próximo a Balkh, no
Khorassan, atual Afeganistão, em 30 de setembro de 1207 é o místico do Islã mais
conhecido no Ocidente.
22
Existe, por sua autoria, uma vasta e monumental obra que
encanta e arrebata legiões de leitores, em todas as partes do mundo
23
. Tal fato
apenas corrobora com a constatação de que Rūmī, verdadeiramente, ocupa um
lugar de destaque entre os poetas místicos, pelo cuidado e a beleza com que
registra imagens magníficas de seu vigoroso amor fundado em Deus.
24
Na rica tradição mística do Islã, Rūmī tem despontado como uma de
suas figuras mais luminosas. Trata-se de um dos místicos que revelou
com grande intensidade poética os temas do amor e da unidade do ser
humano com o mistério sempre maior de Deus.
25
Podemos identificar, na poesia de Rūmī, algumas possíveis influências de
outros textos, embora seja bastante evidente o enraizamento de sua obra na
tradição corânica.
Sobre os relatos e os temas com que Rūmī trabalha, as fontes parecem
mesmo bastante variadas:
Folclore iraniano, fábulas de Kalila-Wa Dimna, essa coleção traduzida
do pahalavi para o persa, e sobretudo as obras de Sanâ’i e de ‘Attar,
dos quais ele extraiu numerosos apólogos. Também encontram-se
freqüentes alusões a Ghazãli, notadamente a seu célebre tratado sobre
o renascimento das ciências religiosas (Ihyâ’ ‘Ulûm ud-Dîn), a
Avicenas, a Nizâmi.
26
.
22
Annemarie SCHIMMEL, Le Soufisme ou lês dimensions mystiques de I’slam, p. 382.
23
“Djalal ad-Dîn deixou uma obra impressionante, de modo que continua sendo um desafio abordá-la
em sua totalidade, tal a complexidade da relação entre mística e poesia, cuja fronteira nem sempre
resulta muito clara.”. J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 33.
24
Annemarie SCHIMMEL, Le Soufisme ou lês dimensions mystiques de I’slam, p. 399.
25
Faustino TEIXEIRA, “Rûmî: A paixão pela Unidade”, in No limiar do Mistério, p. 10.
26
Eva de VITRAY - MEYEROVITCH, Rûmi e o sufismo, p.60.
22
Contudo, é importante observar que Rūmī pertence à tradição mística
muçulmana, compreendida dentro de um “movimento especial chamado, no Islã,
tawwuf, que pode ser definido como um método sistemático de união íntima,
experimental com Deus.”
27
. Este termo está relacionado com a expressão uf (lã) e
está ligada ao fato de os sufis usarem roupagens de lã como signo de seu
destacamento.
No que diz respeito às fontes doutrinais, além do Corão e os hadiths, houve
ainda o ensinamento de seu pai, Bahâ-od-Dîn Walad, importante teólogo da época e
o primeiro mestre de Rūmī. Todas essas influências apenas corroboram para que
Rūmī seja um mestre espiritual, um poeta e um místico.
28
Embora estivesse arraigado de forma visceral à sua fé islâmica, era também
capaz de reconhecer e demonstrar o que chamamos de “Religião do Amor”, a que
ultrapassa e arrebenta as fronteiras doutrinárias.
29
. Rūmī foi um dos primeiros
mestres espirituais a demonstrar abertura inter-religiosa, reconhecendo e acolhendo
a dinâmica da Revelação presente nas diversas tradições religiosas.
O pensamento de Rūmī apresenta todos os contornos de um pluralismo
de princípio, ou seja, apresenta um dinâmica, que não olvidando os
pontos que fundamentam a sua fé particular, o Islã, inscreve neles a
27
G.C. ANAWATI e L. GARDET, Mystique Musulmane, p. 11.
28
“Bizâncio era, em sua época, um rico lugar de cultura, onde os gregos reencontravam suas próprias
obras-primas através das traduções árabes e persas. Konya tinha por sultão um mecenas que se
comprazia em rodear-se de sábios e artistas. As correntes islâmica e helência se interpenetravam,
num clima de fraternidade e de trocas entre cristãos e muçulmanos. Por outro lado, os principais
tratados do sufismo já haviam, sido redigidos. Desde então se a obra de Rumi se beneficiou destas
múltiplas contribuições, se seu pensamento se enriqueceu deles, se encontrou entre seus
antepassados os ‘moldes’ conceptuais e os planos onde se inseriu sua experiência pessoal – humana e
mística -, tudo isso imposta menos que o potencial de transmissão, tanto lírico quando didático, de sua
mensagem: a apresentação do sufismo atinge com ele o seu apogeu.” Eva de VITRAY - MEYEROVITCH,
Rûmi e o sufismo, p.61.
29
“É possível que reconheçamos em Rumi influências neoplatônicas, de Ibn a’rabi, parábolas de
Platão, certas tradições gregas e cristãs. Mas torna-se quase impossível demarcar os fios coloridos do
tecido de seus sentimentos. Em seu conjunto, as obras de Rumi podem ser explicadas sem
dificuldades a partir do Corão e da tradição do Profeta.” Annemarie SCHIMMEL, Le Soufisme ou lês
dimensions mystiques de I’slam, p. 392-393.
23
força evolutiva de seu próprio Princípio Causal. Por este motivo, seu
pensamento se apresenta tão vivo ainda hoje.
30
.
Rūmī é considerado antes de tudo um mestre do despertar. Ele transmite um
ensinamento fundado sobre o conhecimento, valendo-se de uma exuberante beleza
poética em toda a sua produção literária.
O vasto poema de Rūmī, com aproximadamente 45 mil versos divididos em
seis livros, o Masnavi, (ou Mathanawî ) é composto sob um paradigma prosódico,
apresentando dísticos rimando entre si. A temática aí apresentada se vale de
relatos, fábulas, citações da tradição corânica e da tradição profética para compor o
que chamamos, nas palavras de Eva de Vitray-Meyerovitch, “uma verdadeira
epopéia mística.”
31
. A obra lírica de Rūmī consiste em suas quadras, Rubâ’îyât e
seus ghazals ou Odes místicas (Divan de Shams de Tabriz).
Além da obra lírica, Rūmī legou-nos o Masnavi, outra das expressões
máximas de poesia mística persa e ao mesmo tempo tratado teológico-
filosófico. O termo masnavi, ou mathanawi, designa uma fórmula
métrica apta a integrar materiais de origem diversa: passagens
corânicas, hadiths do Profeta, alegorias, sermões e anedotas.
Composto de seis livros num total de aproximadamente 25.000 versos,
o Masnavi é um dos grandes textos espirituais da mística
universal.[...]. Rumi escreveu ainda, em prosa, um inspirado volume
de diálogos e textos denominados Fihi-ma-fihi (literalmente, Nisto está
o que está nisto, traduzido por Vitray-Meyerovitch por O livro do
interior), ao estilo dos sermões e comentários filosófico-espirituais dos
mestres cristãos, além de outros textos menores e uma coletânea de
cartas.
32
.
30
Mário G. WERNECK FILHO, A gota no oceano: perspectivas dialogais no Masnavi de Jalaluddin Rūmī,
p. 132
31
Eva de VITRAY - MEYEROVITCH, Rûmi e o sufismo, p. 59.
32
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 34.
24
Embora este trabalho busque também analisar, em certa medida, vários
textos de todas essas obras, nosso torno basilar se atém a obra o Divan de Shams
de Tabriz, uma das maiores obras de Rūmī.
33
.
Divan é o nome conferido à reunião de 3.230 gazéis, 44 tarji’at, forma
poética composta de dois ou mais gazéis, num total de 1.700 versos e cerca de
2.000 rubayyáts.
34
Diferentemente de outros Divans, cuja forma adotada sempre
termina com o nome do próprio autor, Rūmī utiliza em cerca de 500 gazéis são
finalizados com a expressão Khamush (“silêncio”). Além disso, 1000 gazéis são
terminados com o nome de Shams de Tabriz.
O nome Shams significa “sol” e Rūmī faz vários jogos semânticos com essa
relação. Shams era um dervixe girante de aproximadamente sessenta anos, embora
outros autores calculem sua idade em 45 ou mesmo 65 anos. De certo, era mais
velho que Rūmī. Parecia ter sido um jovem de rara beleza. Shams, em muitos
relatos, é descrito como uma figura bastante singular, envolta em manto roto de lã.
Sobre ele, Al- Aflaki, biógrafo de Rūmī, escreve:
No ano de 642, da Hégira, Shamsud-Din de Tabriz chegou em Konya.
Este grande homem depois de adquirir uma reputação de santidade
como discípulo de um homem santo, tecedor de cestas, havia viajado
muito em busca de mestres espirituais, obtendo o sobrenome de
parina (O Voador, o Pássaro).
Rogou a Deus que lhe revelasse quem era o mais oculto dos favoritos
da vontade divina para poder com ele aprender mais mistérios do
Amor Divino.
Assinalou-se-lhe o filho de Bahaud-Din Valad, de Balkh, como o
homem que se achava mais próximo do favor de Deus. Por
33
Trata-se de uma considerável produção literária de Rumi (Lê Soufisme ou lês dimensions mystiques
de I’slam, p. 389). A julgar pelo volume de sua obra poética, Rumi parece ter escrito diariamente ao
longo de quinze anos, até começar a redigir o grandioso Masnavi. Além disso, a maioria dos seus
poemas foi composta em estado de transe místico: ditava-os, cantava-os, recitava-os apenas, e seus
discípulos os memorizavam e posteriormente os escreviam.” . Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos.
Divan de Shams de Tabriz, p. 38.
34
Estes são dados colhidos na tradução do Divan para o português, feita por José Jorge de Carvalho,
contudo, esses números podem sofrer uma pequena alteração, em função das traduções que foram
utilizadas para a contagem. Exemplo disso: J. Arbarey afirma que “O compito total excluindo os
poemas-estrofe, as quadras e outras peças menores, perfaz um total de 3229 separadas em odes de
34662 emparelhados.” J. ARBAREY, Mystical poems of Rūmī 1, p. 2.
25
conseguinte, Shams foi a Konya, onde chegou no sábado 26 de
Jemadal-akhir, no ano de 642 da Hégira (9 dezembro de 1244).
Instalou-se numa pousada fingindo-se ser um importante mercador.
Contudo, em sua habitação, não havia mais do que uma rota jarra de
água, uma velha esteira, e uma caneca de argila crua. Só interrompia
seu jejum uma vez a cada doze dias, com um trapo molhado em sopa
de mãos de cordeiro.
Um dia, estava sentado à porta da pousada, quando passou Jalal
montado em uma mula entre uma multidão de estudantes e discípulos
que iam a pé.
Shams se levantou, avançou e pegou as rédeas da mula, dirigindo-se a
Jalal nestes termos:
- Cambista de moedas de recônditos significados, que conheces os
nomes de Deus? Diga-me quem foi o maior servidor de Deus.
Mohamed ou Bayazid Bistam?
Jalal lhe respondeu:
- Mohamed foi incomparavelmente o maior de todos os profetas e
santos.
- Então – replicou Shams – Como é que Mohamed disse: “Não temos te
conhecido Ó Deus como deveria ser conhecido, enquanto Bayazid
disse: “Glória a mim! Quão grande é minha glória!
Ao ouvir esta pergunta, Jalal desmaiou. Ao voltar a si, levou Shams
para sua casa e ficaram juntas durante meses em sagradas
comunicações.
Embora existam outras versões deste encontro, todas elas buscam falar desta
dimensão mística que lança seu alcance para além de um plano acentuado na
racionalidade, levando em conta, principalmente, o fato de que a existência do
humano inclui uma condição de abertura para além dos limites da perspectiva
material. Nisso, reside o pressuposto da afirmação de um estado transcendente,
cuja comprovação não se dá pela via da inteligência, mas sim pelo testemunho do
vivido. É nesse fenômeno, que reside a possibilidade de relação, o encontro entre
criatura e criador, experiência espiritual que contempla o nível da imanência do
absolutamente transcendente como presença amorosa, ou seja, a essência de um
Amor que redimensiona a natureza do coração humano e o permite amar como à
própria maneira com a qual Deus ama.
26
Nesse sentido, é que se pode observar como um dos exemplos das marcas do
Amor banhado nas águas do Sagrado, a expressão poética do encontro de Shams e
Rūmī:
O amor humano é etapa e ponte que traduz uma caminhada mais
complexa em direção ao Amado. O amor é, para Rūmī, um “estado de
alma” que conduz ao horizonte do amor divino e aponta o caminho. Daí
sua convicção da importância da religião do amor como a mais sublime
forma de todas as religiões. O amor é “o único lugar, o único ponto
capaz de religar o eu do ser humano e o mundo da unidade, que é o
mundo da divindade.
35
A concepção de Amor em Rūmī se dá como uma etapa que aponta para uma
caminhada em direção ao Amado. O amor é, para ele, um caminho que conduz ao
horizonte do amor divino. O que parece se processar aí é que, sendo o amor a mais
profunda essência do Amado, ele possua em si a força necessária da transformação
e da manutenção do fluxo permanente do ser humano que anseia a união original.
Esta é a nostalgia que inspira o lamento da flauta, o som que clama a comunhão
amorosa:
Escuta a flauta de bambu, como se queixa,
Lamentando seu desterro:
‘Desde que me separaram de minha raiz,
Minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres.
Meu peito se rompe, lutando para libertar meus suspiros,
E expressar os acessos de saudade de meu lugar.”
36
A experiência mística que nasce com o selo da transcendência anuncia esta
comunhão como um impulso de reconciliação universal que se desdobra pelo
desprendimento de si no encontro com o Amado. O que se antecede a este ponto,
no entanto, traz uma conotação aparentemente opositiva: o precedente da
35
José Jorge de CARVALHO, “Introdução”, in Poemas Místicos – Divan de Shams de Tabriz, p.23.
36
Jalaluddin RŪMĪ , Masnavi, p. 17.
27
comunhão com o absoluto reside em uma ruptura, uma separação do místico
consigo próprio:
“O amor partiu meu coração
e o sol vem clarear minhas ruínas.”
37
Nestes versos, Rūmī expõe a presença do Amor que pode arruinar o coração
para torná-lo um com o Amado. Esta é a noção de um amor que supera todas as
divergências pelo fato de ser universal.
38
.
Depois de terem ficado próximo por um período de quase dois anos, Shams
decidiu se ausentar, indo para Damasco. Ele temia os ataques dos discípulos de
Rūmī que se sentiam preteridos diante da influência que Shams exercia sobre o
espírito do mestre.
Rūmī sofreu bastante a partida do amigo e solicitou a seu filho Sultân Walad
que convencesse Shams a regressar a Konya. Embora ela tenha aceitado os pedidos
de Rūmī, as perseguições não cessaram e, em 3 de dezembro de 1247, Shams
desapareceu. Alguns relatos indicam que ele foi assassinado.
A saudade e desconsolo de Rūmī o inspiraram a escrever em memória de seu
mestre bem-amado o conjunto de odes intituladas Diwân-e-Shams e Tabrîzî, que,
segundo Meyerovitch, são:
Admiráveis cantos deamor e de luto, obra imensa toda ela consagrada
a esse amor, terrestre em aparência, mas que é, em realidade, uma
hipótese do amor divino. Encontra-se, ao longo desse poemas, uma dor
sempre presente e o eco de um sofrimento causado pela primeira
separação. [...].
37
J. RUMI, A sombra do Amado: Poemas de Rûmî, p. 33. p. 29.
38
“Este é um caráter indiferenciado do amor que permite que se veja um outro traço marcante e
objetivo no que tange à tolerância, ou melhor seria dizer ao encontro [...]. Ao encontrar o outro,
encontro-me nele, e aqui há um reconhecimento projetivo. No face a face claro, no qual não há
persona, mas sim criaturas que por singularidade dão prova do Uno.”. Mário WERNECK FILHO, A gota
no Oceano: Perspectivas Dialogais no Masnavi de Jaluddin Rūmī, p. 123.
28
Entretanto, ele conseguiu transcender a sua dor, interiorizando esse
amor personificado que representava a seus olhos a face do Amor
divino: ainda que Mawlânâ não tenha aparentemente reencontrado
Shams de Tabrîz, ele o reencontrou de fato nele mesmo, pois ambos
comungavam o mesmo estado espiritual (hâl).
39
Eis um exemplo:
Mostra tua face porque as flores
E o jardim são meus desejos.
Abre a boca porque o açúcar
em abundância é o meu desejo.
Ó Tu, Sol de esplendor,
Sai de trás da nuvem por um só instante
Porque esta face cintilante
E tão brilhante é meu desejo.
Por teu amor, como um falcão
Compreendo o chamado do tambor
E retorno, pois o braço de sultão
É o meu desejo.
Tu dizes caprichosamente:
“Não me entristeças mais, Vai-te!”
E estes teus dizeres “Não me entristeças mais,
Vai-te!”, são meu desejo.
E essa repulsa em tuas palavras
“Vai-te, pois o Rei não está em tua morada”
E este ar vigoroso de meu guardião
É meu desejo.
[...]
Mais claro que o Rouxinol, eu falo
Mas por ciúme de todos,
Um selo foi posto em minha boca
E o grito de pena é meu desejo.
[...]
Oculto de todos os olhos
E todo o visível vem dele.
Essa arte que me assim visível
E invisível é meu desejo.
40
39
Eva Vitray- MEYEROVITCH, Rûmî e o sufismo, p.16.
40
J, RUMI, Le livre de Chams p. 67-69 e Mystical Poems L. 1, nº 51, p. 45-46 .
29
Rūmī morre em 17 de dezembro de 1273. Dia que é considerado uma
importante data na Turquia, celebrado com cerimônias solenes em Konya, pois
representa o encontro com a vida eterna, a que Rūmī sempre contemplou e cantou
durante sua existência terrestre como a forma do Supremo Encontro. Sobre sua
despedida, Meyerovitch conta:
Durante sua última doença, a um amigo que viera lhe desejar uma pronta melhora, Rūmī
respondeu:
“Quando entre Amante e o Amado não há mais que uma cortina de crina, não quererás que
a luz se unisse à luz?”
E recitou:
Por que estaria eu aflito, já que cada parcela de meu ser está em gozo?
Por que não sairia eu desse poço? Não tenho uma corda sólida? Construí um pombal para as
pombas das almas.
Oh, pássaro de minha’alma! Voa, pois possuo cem torres fortificadas.[...]
Quando no dia de minha morte, levarem meu ataúde,
Não penses que meu coração tenha ficado neste mundo.
Não chores sobre mim, não digas : ‘Infortúnio, infortúnio!’
Cairias na armadilha do demônio: este sim é o infortúnio.
Vendo meu cadáver, não grites: ‘Partiu, partiu!’
A união e o encontro serão meus nessa hora.
Se me continhas à tumba, não digas: ‘Adeus, adeus!’
Viste o declínio; descobre a elevação.
À lua, ao sol, o dormir causaria mal?
A ti, isso parece um dormir: na realidade é uma aurora.
A tumba te parece prisão? É a liberação da alma.
Qual o grão semeado na terra que não tenha um dia germinado?
Por que duvidar? O homem, ele também, é uma semente enterrada.
Qual cântaro desceu vazio sem voltar cheio?
O espírito é como José: lamentar-se-ia ele do poço?
Conserva aqui a boca fechada para abri-la mais além.
E que além, no espaço, soe teu canto de vitória.
41
41
Eva de Vitary-MEYEROVITCH, Rūmī e o sufismo, p.17-18.
30
Notas sobre a tradução
Uma vez que a proposta do trabalho se centra no objetivo de averiguar,
através dos poemas de Rūmī a dimensão mística do silêncio, vários poemas e
fragmentos que se sirvam diante deste tema, serão utilizados. Neste sentido, todas
as obras de Rūmī que constam na bibliografia, ao final do trabalho Masnavi, Fihi-
ma-fihi, Rubâi’ât — foram também utilizadas. Contudo, o trabalho se concentrará,
de modo mais específico, ao livro Diwan de Shams de Tabriz, composto em
aproximadamente 3.230 gazéis (forma de poesia persa clássica, em que o ritmo é
rimado em quadras), dos quais cerca de 500 apresenta a expressão Khamush
(“silêncio”).
Com relação às traduções que foram consultadas, privilegiou-se as do livro de
A. J. Arberry e Mahin Tajadod, Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière, bem como a
de Meyerovitch. A comparação entre os livros Mystical Poems, volumes I e II,
tradução de Arberry e Le livre de Chams, tradução de Mahin Tajadod,
proporcionaram a comparação dos poemas escolhidos em suas versões em inglês e
em francês, para que se pudesse assim construir uma modesta tradução para o
português. É válido ressaltar que as traduções em Língua Portuguesa, já existentes,
encontradas nas obras de Marco Lucchesi, A sombra do Amado - Poemas De Rumi e
a de José Jorge de Carvalho Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz foram
também analisadas.
Faz-se necessário ainda o esclarecimento do esquema adotado na
transliteração dos termos pertencentes aos textos originas: Safa Jubran, do
Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (USP), propõe uma romanização dos
vocábulos em árabe para a língua portuguesa. Contudo, quando se fizer necessário,
utilizaremos as tabelas apresentadas a seguir, formadas a partir da proposta
31
verificada nos métodos de estudos das línguas árabe e persa, que constam nas
referências bibliográficas deste estudo.
A descrição abaixo procura apenas esboçar um itinerário para a compreensão
da difícil tarefa de transliterar. Como afirma Franklin Lewis:
A escrita Árabe foi usada não somente para escrever em árabe, mas
também em persa, em Urdu, e mais ainda quando Atartürk adotou o
alfabeto latino na Turquia Otomana. Infelizmente, falando do ponto de
vista, da transliteração, essas várias linguagens não pronunciavam as
letras árabes da mesma maneira.Como Rūmī era um falante nativo do
persa, mas conhecia fluentemente o árabe e viveu grande parte de sua
vida na Turquia, que naquela época representava um espaço menor do
que a Grécia e onde se falava um maior número de línguas, a questão
de como representar nomes, títulos, livros, termos técnicos e mais
ainda para a natureza do nosso estudo é extremamente
problemática.”
42
E essa “tarefa extremamente problemática” foi cumprida através de métodos
comparativos entre autores que se dedicam com apuro ao domínio das traduções e
transliterações. Optou-se por construir tabelas que reunissem os caracteres mais
recorrentes avaliados nas obras utilizadas. Nas páginas seguintes, seguem-se essas
tabelas de transliteração em Árabe e Persa Clássico, respectivamente:
42
F. LEWIS, F. Past and presente, east and West. The life, teachings and Poetry of Jalâl al-Din Rumi,
p. 16.
32
Tabela de transcrição dos caracteres escritos em Língua Árabe:
Transc. nome final medial inicial
isolada
ā alif
b bāʾ
t tāʾ
ṯāʾ
ğ jīm
ḥā’
Khā’
d dāl
ḏāl
r rā’
z zāy
s sīn
š šīn
ṣād
ḍād
ﺿ
ṭā’
ẓā’
‘ayn
ġ ġayn
f fā'
q qāf
k kāf
l lām
m mīn
n nūn
h hā'
w wāw
y yā’
33
Tabela de transcrição dos caracteres escritos em Persa Clássico:
Transc. nome final medial inicial isolada
ā alef
b be
p pe
t te
s
se
ğ Jim
č che
ḥā’
x khe
d dāl
ḏāl
r rā’
z zāy
ž zhe
s sīn
š šīn
ṣād
ż ḍād
ﺿ
ṭā
ẓā
‘ain
ġ ghain
f fe
q qāf
k kāf
g gāf
l lām
m mīn
n nūn
v vāv
h he
y ye
ﯿ
34
CAPÍTULO 1: A LINGUAGEM MÍSTICA
1.1 - A linguagem mística: a fala do mistério.
A linguagem mística
43
é o meio da manifestação de uma experiência com a
realidade transcendente. É a construção da possibilidade de se fazer sensível aos
sentidos ordinários a experiência de contemplação do Mistério, sendo que se trata
de uma linguagem, em que está presente toda a transformação originada pela
intangível vivência do místico.
44
Desta maneira, a inefabilidade se torna um traço característico das
experiências místicas. Qualquer descrição, por mais minuciosa que seja é, segundo
aquele que vivencia a experiência mística, inadequada na transmissão do conteúdo
ali experienciado, já que os estados místicos detém acessos a uma espécie de
conhecimento que se dá através de uma visão interior, dirigidos a âmbitos da
verdade alheios à sondagem do intelecto discursivo.
É natural que ao se referir a uma experiência mística e toda sua dialética
constitutiva, a linguagem que é empregada nesse processo de construção dos
relatos que envolvem a Iluminação torna-se alusiva
45
. O léxico utilizado pelo místico
parece apenas se aproximar dos relatos a que se tenta dar descrição, afinal,
43
“Se a mística, etimologicamente implica cerração, mistério, segredos entre a alma e Deus, também
dedica-se ao silêncio.”. A. EGIDO, Hermenéutica y Mística, p. 161.
44
“A linguagem do místico se caracteriza pelos objetos a que se refere, afetados de coeficientes de
interioridade, servem para descrever o que esses objetos passam a ser pouco a pouco para o sujeito.”
Juan Martín VELASCO, El fenómeno místico, p. 52.
45
“Usar termos particulares e fora do comum é permito, sobretudo, à Teologia Mística. Ela trata, pois,
de coisas elevadas, sagradas e secretas, que concerne mais à experiência que à especulação. Isso no
mais alto estado de união sobrenatural e amorosa com Deus.” Michel de CERTEAU, La Fable Mystique,
p. 190.
35
acessando os elementos de outra realidade
46
, faltam referentes conceituais
presentes na linguagem ordinária que dê conta descritiva do momento de
contemplação.
47
Sobre isso, Rūmī afirma:
Embora as palavras dos místicos tenham cem formas diferentes, Deus
é único, o Caminho é um; como poderia haver duas palavras? A
diversidade está na forma; no significado, tudo é o mesmo.
48
Juan Martín Velasco, em seu livro El fenómeno místico, afirma que a primeira
propriedade da linguagem mística consiste em ser uma linguagem
fundamentalmente descritiva que trata de caracterizar por predicados apropriados,
eventualmente através de formas simbólicas diversas, uma realidade vivida que
tem sua forma própria de objetividade
49
.
A descrição dessa linguagem é voltada para a experiência mística, ou seja,
uma experiência intensa de união com o Amado. Trata-se de uma dinâmica
revestida de um profundo caráter subjetivo e interior que alude a um conteúdo que
não se dá a perceber pelos referentes de uma percepção externa apenas
50
. Por isso,
a incapacidade de se empreender uma análise da linguagem mística, pautando-se
46
“Lembremo-nos de que o domínio da mística não é o domínio do alógico ou do irracional, mas do
translógico: a realidade que se alcança com um passo além do lógico ou do pensamento conceptual.”
In.: Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental, p. 30
47
“Mas também o termo ‘mística’ coube a mesma infeliz sorte. Decaído de sua nobre significação
original, acabou por designar uma espécie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de
irracionalidade.[...]. Com efeito, o sentido original, e que vigorou por longo tempo, do termo mística e
de seus derivados diz respeito a uma forma superior de experiência, de natureza religiosa ou religioso-
filosófica (Plotino), que se desenrola normalmente, num plano transracional – não aquém, mas além
da razão -, mas, por outro lado, mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo.
Orientadas pela intencionalidade própria dessa original experiência que aponta para uma realidade
transcendente, essas energias elevam o ser humano às mais altas formas de conhecimento e de amor
que lhe é dado alcançar na vida.”. Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e filosofia a tradição
Ocidental, p. 9-10.
48
D. RUMI, Fihi-Ma-Fihi, p. 75.
49
“Há todavia a dificuldade da língua e do vocabulário. Tirado de seu contexto e de sua ressonância
própria ou do que poderia ser chamado de suas harmonias ‘religiosas’ as palavras correm o risco de se
encontrarem revestidas de um sentido totalmente outro.” G.C. ANAWATI e L. GARDET, Mystique
Musulmane, p. 14.
50
“É a graça que ensina, não a língua.” Michel de CERTEAU, La Fable Mystique, p. 191.
36
apenas na verificação da experiência sensível como o produto final de todos os
termos e proposições que a compõe.
51
Num plano profundo de compreensão que a vivência mística cria, as palavras
deixam de ser utilizadas como instrumentos de câmbio comunicativo. Não se trata
mais de uma espécie de ídolo invisível, que possibilita à linguagem a forja de
interesses e informações já contempladas. A linguagem mística se desprende dos
atos de fala, tal como se compreende pelos estudos lingüísticos, e adquire o status
de uma unidade reveladora
52
. Nela, as palavras existem para além de qualquer uso
e qualquer finalidade. Nela, os sentidos primevos da criação já razoavam antes do
homem. Nela, as danças sagradas professavam o amor e contemplação dos
amorosos de Deus.
53
Sobre isso, diz Mawlānā:
Alguém disse: ‘Mawlānā não fala’. E disse: “Foi minha imaginação que
atraiu essa pessoa. Minha imaginação não lhe diz: “Como vai?’ ou
“Como estás?’. Ela a atraiu sem palavras. Se é dessa maneira que
minha realidade atrai e conduz a outro lugar, o que há de espantoso
nisso? A palavra é a sombra da realidade e seu complemento. Se a
sombra atrai, a realidade atrai mais ainda.
A palavra é um pretexto: o que faz uma pessoa ser atraída por outra é
a afinidade que as une, não a palavra.
54
Nesse sentido, este capítulo busca avaliar as considerações advertenciais
sobre as dificuldades de um estudo de mística comparada, que, em muitos
trabalhos, vêm chamando a atenção para a interdependência entre experiência
51
“Do ponto de vista do sujeito, a experiência mística tem lugar num plano transracional, ou seja,
onde cessa o discurso da razão: inteligência e amor convergem na fina ponta do espírito – o apex
mentis – numa experiência inefável do Absoluto, que arrasta consigo toda a energia pulsional da
alma.” Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental, p. 10.
52
“É preciso distinguir entre experiência mística em si e sua expressão conceitual, verbal. [...]. A
experiência mística sendo algo essencialmente pessoal não pode ser interpretada a não ser à luz da
vida mesmo do místico, para além da expressão verbal.” G.C. ANAWATI e L. GARDET, Mystique
Musulmane, p. 15.
53
“Nem instrumentos, nem utensílios, as palavras são a verdadeira carne humana e uma espécie de
corpo do pensamento: a fala nos é mais interior do que todos os nossos órgãos de dentro. Nossa carne
física é a terra, mas nossa carne espiritual é a fala; ela é o pano, a textura, a tessitura, o tecido. A
matéria de nosso espírito.” Valère NOVARINA, Diante da palavra, p. 14.
54
D. RUMI, Fihi-Ma-Fihi, p. 29.
37
mística e linguagem.
55
Há, atualmente, um grande debate epistemológico sobre a
possibilidade de uma Mística Comparada. Tal confronto apresenta duas esferas
bastante definidas como o que se poderia chamar de “essencialistas” e
“contextualistas”. De um lado, os essencialistas — ou perenialistas — buscam criar
regras que elucidem a experiência não mediada dos místicos de diversas tradições,
ao mesmo tempo em que evidenciam um transfundo comum e compartilhado,
sendo, pois, possível que experiências místicas de universos culturais e tradições
distintas possam se identificar através de elementos comuns. Já os estudiosos da
linha contextualista não afirmam a existência de uma relação pura e não mediada
com o Mistério. A experiência é, dessa maneira, conformada com elementos
presentes na linguagem, na cultura e na tradição religiosa. São vivências únicas e
irredutíveis.
56
Colocando a mediação como pressuposto epistemológico para
qualquer experiência, esta corrente amplia a ênfase metodológica na importância do
contexto da experiência mística: se experiências são mediadas, não existe algo que
possa ser chamado de uma experiência mística universal, devendo cada estudo da
mística estar associado a um estudo de uma época e uma tradição espiritual
específica. Esses estudos parecem indicar a idéia de que toda mediação é
lingüística, ou pelo menos toda mediação que se pode estudar. Embora demonstrem
a exclusão de uma esfera pré-lingüística — o que representa uma das restrições
55
A ênfase na inexprimibilidade da experiência religiosa gera em muitos autores a suposição de uma
unidade da mística e até das religiões no inefável.”. Rafael SOJI, O Contextualismo Lingüístico na
Mística Comparada desde Ludwig Wittgenstein, p. 45.
56
“Nos últimos anos, uma outra escola de pensamento, ora chamada ‘descontextualismo’, ora
‘desconstrutivismo’, ou ainda ‘pós-construtivismo’, vem se desenvolvendo. Um grupo de filósofos,
entre os quais se destaca Robert Forman, desafia as hipóteses contextualistas. O próprio Forman
prefere intitular sua escola de pensamento de ‘psicologia perene’ e indaga se há limite para o modelo
contextualista da experiência humana. Para os psicólogos perenes, o reconhecimento da diversidade
irredutível, tanto na expressão doutrinária quanto na experiência simbólica das diversas tradições
religiosas, não exclui a identificação de uma determinada experiência mística – por ele chamada de P.
C. E (pure consciouness event) – na qual se registra uma convergência entre místicos de variadas
tradições. Em seu ponto de vista, esse silencioso evento místico de ‘consciência pura’ pode escapar aos
processos construtivos comuns de linguagem e da crença. Esse tipo de experiência, ora compreendido
como unio mystica, ora como nirvana ou satori, não parece ser modelado ou formado pelo sistema de
linguagem, mas parece, pelo contrário, uma experiência não-conceitual e não modelada por conceitos
e crenças, alcançada por meio do abandono da bagagem conceitual.” Sílvia SCHWARTZ, A Béguine e
al- Shaykh: Um estudo comparativo da aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’ Arabi, p. 8.
38
dessa abordagem — a corrente contextualista trouxe contribuições para os estudos
da Mística Comparada, pois indicou a necessidade de levar em conta critérios
externos e parâmetros metodológicos específicos. Conseqüência disso são os
trabalhos acadêmicos que vêm surgindo na literatura contemporânea, já aptos a
evidenciar os métodos de comparação utilizados. A exemplo disso, Michel Sells faz
um levantamento apurado de conceitos como o de “mediação”:
Toda experiência pode ter um objeto gramatical, mas a primeira
motivação da linguagem apofática é substituir ou subverter o objeto
gramatical. De maneira similar, a noção não mediadora do coração no
misticismo apofático, particularmente em Eckhart e Poret contradiz a
opinião comum de que toda experiência é mediada. Se é verdade que
toda experiência é construída, é igualmente verdade que o conceito de
experiência é uma construção moderna. Nenhum dos escritores
místicos discutidos neste livro fala diretamente de “experiência”. O
místico apofático fala de um nascimento do filho na alma, da
aniquilação, e do despertar sem despertador, mas não fala de
experiência. Fala de um evento, como nascimento, aniquilação ou
despertar.
57
Este trabalho não desconsidera o confronto entre as duas posições como
também não se situa entre a fronteira que as polariza. Não se constitui como um
dos objetivos principais deste estudo avaliar as contribuições ou debilidades das
posturas essencialistas e contextualistas. É opção clara e aceita que a postura aqui
adotada aponta para uma unidade do Mistério, mas tal unidade é percebida e
contemplada na diversidade teofânica do Real
58
.
57
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, p. 214.
58
O conceito das múltiplas teofanias do Real é bastante difundido na mística islâmica. Rūmī fará
alusões a esta realidade em vários de seus poemas. Mais tarde, Ibn Arabī discorrerá em seus estudos
sobre o fato de que todas as coisas estão intimamente inter-relacionadas por meio de suas raízes
comuns na Divina Realidade. O universo e sua infinita multiplicidade não são outra coisa senão a
manifestação dos nomes de Deus, que são os semblantes que Deus volve à criação. Os nomes
revelados proporcionam as chaves que abrem a porta do mundo invisível. A razão, inclusive na melhor
das circunstâncias, só brinda um conhecimento insuficiente de Deus. Permite que as pessoas
compreendam que Deus é incomparável e eternamente incognoscível, mas jamais lhes poderá dizer
nada acerca de sua semelhança e sua auto-revelação no macrocosmo e no microcosmo. Pelo contrário,
39
Não faz parte do itinerário teórico que sustenta nossas reflexões caminhos
que levem à percepção da possibilidade de se entender o ser reduzido a seu
contexto, limitado por sua linguagem, aparado em seu momento histórico. Seria, no
mínimo inapropriado para um estudo acerca do sentido do silêncio na experiência
mística que não se levasse em conta um conjunto de invariáveis inerente ao ser
humano. Parece fundamental deixar claro que nossa opção não se alinha com a
idéia de reduzir a experiência ao influxo de um contexto, ainda que não deixemos
de observar a influência que o contexto possa exercer na experiência mística.
59
É
como afirma Faustino Teixeira:
As diversas tradições místicas, assim como os demais fenômenos
religiosos, são plurais em seus objetivos, práticas e discursos, estando
sempre marcados por dado contexto cultural, que influencia a forma
simbólica que define a experiência supra-lingüística. Os
contextualistas, com razão, advertem que a ‘linguagem dos místicos
não pode transcrever uma experiência sem interpretá-la e mediatizá-
la, por mais que o místico lute contra os limites da linguagem humana,
incapaz de abordar a transcendência.
60
Contudo, tomar verdadeiras tais interpretações não invalida um estudo
analítico comparado da experiência mística e a linguagem de sua expressão
61
.
a revelação confere um conhecimento equilibrado de Deus, já que combina a declaração de
incompatibilidade que compreende a razão com a semelhança que responde à imaginação.
59
“Mas o ‘ser que somos’ não se esgota na forma histórica, certamente condicionada, de realizar este
ser. Existe, sem dúvida, um conjunto de invariantes humanas, só realizáveis historicamente e, por
tanto, na diversidade das tradições e das culturas, que nenhum pensamento humano é capaz de
perceber e descrever a-historicamente, aculturalmente, em uma noção que expresse uma essência
temporal, absoluta.”. Juan Martín VELASCO, El fenômeno Místico, p. 43-44.
60
Faustino TEIXEIRA, No limiar do mistério, p. 13.
61
“As Investigações Lógicas, que dão início à fenomenologia enquanto escola filosófica na virada do
século, são o resultado e, em parte, o cumprimento do programa que pretende explorar as condições
de sentido, na forma de uma gramática puramente lógica. Nesse programa, não há espaço para o
silêncio. Ou melhor, silêncio enquanto fundamento implícito de sentido é, precisamente, o que se deve
conquistar através da reflexão fenomenológica. Embora esta descrição geral pareça reger todo o
interesse filosófico pelo silêncio, existe ainda um outro caminho para se descrever o projeto e dar lugar
à extensão de seus interesses, uma descrição que pode, em parte, indicar os diferentes
desenvolvimentos da semântica lógica de Husserl e Frege. A tradição que se desenvolveu a partir de
Frege orientou-se para a construção da lógica simbólica. Já o trabalho de Husserl encaminhou uma
reflexão aprofundada sobre a natureza da subjetividade e da importância teórica da atitude pré-
teórica. É também onde o problema do silêncio se inclui no campo discursivo da fenomenologia como
uma forma de comportamento não-teórico, não-discursivo, mas significativo. O silêncio pode ser
encarado não somente como negação do discurso, mas também como sua fundação co-constituinte e
secreta.”. Hans RUIN, “O silêncio da Filosofia”, in Por uma fenomenologia do silêncio, p. 16.
40
Mesmo reconhecendo a dificuldade inerente ao próprio movimento dos místicos de
experimentar o mistério e o interpretar na mesma realidade, é possível se
reconhecer a plausibilidade de semelhanças profundamente próximas em
experiências místicas distintas, através de similitudes analógicas.
62
. É como afirma
Sílvia Schwartz:
Do ponto de vista do diálogo entre as diversas tradições religiosas,
estudar, comparar e relacionar tendências, métodos e relatos místicos
de diferentes trajetórias espirituais pode proporcionar o intercâmbio
criativo de diferentes perspectivas, além de revelar semelhanças e
coincidências marcantes, sem com isso anular distinções e traços
característicos de cada um. Partilhamos a idéia de que somente o
estudo e as comparações caso a caso entre místicos distintos, e não
generalizações apriorísticas, podem de fato fornecer subsídios para
uma melhor compreensão tanto da mística quanto das inter-relações
que podem se apresentar entre místicos de distintas tradições
religiosas.
63
Este estudo que se pauta na possibilidade de se compreender o silêncio como
uma expressão da vivência mística não busca incorrer em uma forma incomum de
se explorar o tema do inefável associado à transcendência radical de Deus. Ainda
que a noção de transcendência radical possa aparecer muitas vezes como uma
incapacidade da linguagem de descrever a realidade espiritual da presença de Deus
— de modo a provar que este estado de união mística só poderia ser acessível
através da vivência espiritual, já que a transcendência radical e a experiência não
se consistiriam em palavras — não é a proposta deste estudo configurar a
impossibilidade da descrição e sim identificar os recursos que esta mesma
linguagem oferece para seu referente supra-lingüístico. Não se limitará o Mistério
por uma lacuna abissal de inefável que o mantém alheio à linguagem. Pelo
contrário: buscar-se-á o caminho de uma linguagem própria que habita este audível
62
Ao defender uma “imaginação analógica, Tracy indica a possibilidade de uma conversação inter-
religiosa, e , com ela, a possibilidade de transformação que acompanha a abertura ao questionamento
suscitado por experiências ou textos diversos de uma tradição. David TRACY, Pluralidad y ambigüedad:
hermenéutica, religión, esperanza, p. 140.
63
Sílvia SCHWARTZ, A Béguine e al- Shaykh: Um estudo comparativo da aniquilação mística em
Marguerite Porete e Ibn’ Arabi, p. 11.
41
inefável circundante de um Mistério que fala a todo instante e ainda assim se
mantém como Mistério.
Ao se entrar em uma categoria como a do Mistério toca-se o dilema entre
objetividade e subjetividade na análise da experiência mística, que se constitui
como uma questão importante nos fundamentos da Ciência da Religião,
principalmente nas pesquisas em Mística Comparada. Para tanto, é de fundamental
importância se levar em conta pressupostos epistemológico da Fenomenologia. Para
Rudolf Otto, por exemplo, o termo o Misterium Tremendum representa o objeto do
numinoso. O termo tremendum designa uma experiência sentimental do mistério
que se caracteriza pelo terror de algo de fora que realmente existe no real. Porém,
esse tipo de experiência do tremor, como êxtases ou alucinações, por exemplo,
não acontece diante de algo bom ou ruim, mas do que Otto definiu como o
“totalmente outro”, o que não pode ser definido por predicados por ser de uma
ordem totalmente diversa daquilo que nomeamos racionalmente.
Para Otto, o Mistério é algo absolutamente positivo, pois designa apenas
aquilo que está oculto, o extraordinário, o estranho.
O totalmente outro (mirum) não advém de fenômenos ou objetos naturais
que não podemos compreender: trata-se de uma qualidade particular numinosa, de
um sentimento nato, e não de uma graduação. Então o estupor não está sujeito a
gradações, pois se trata daquilo que é inconcebível, não porque o meu
conhecimento é limitado, mas porque a minha limitação esbarra em algo que é
“absolutamente outro”. Assim, de acordo com Rudolf Otto, a experiência de
encontro direto com o Numinoso é o centro de toda experiência religiosa.
Contemplar o Mistério é um convite ao reencontro existencial e ao espanto
radical com a Essência profunda, o tecido da vida. O encontro direto com o Sagrado
é um modo de abrir-se para o encontro com a Presença Divina, para além dos
símbolos. Desta forma, não só a poesia, mas também a oração pode ser entendida
42
como um espaço para um exercício espiritual de encontro com Deus. Nas palavras
de Abraham J. Heschel: “A oração não é um pensamento que vagueia só no mundo,
mas um acontecimento que começa e termina em Deus. O que vai em nosso
coração é uma preliminar humilde a um acontecimento em Deus.”
64
Segundo ele, a
oração é um caminho para o despertar do ser humano. É um veículo para a
manifestação do Divino.
Além disso, a oração é um recurso eficiente para ilustrar essa dimensão de
caráter unificador. Claude Gefré aponta para “uma linguagem universal da oração
que transcende a diversidade das religiões do mundo.”
65
. A prece representa um
dos fatores que se constitui como pilar central de toda a experiência religiosa, o
atestado do Real que ultrapassa os limites da fronteira humana: “Ao gesto da
procura segue-se uma palavra de acolhida: ‘Deus conhece todas as línguas e
compreende o suspiro silencioso exalado pelo coração de um amoroso’
66
. A oração
não se resume ao grito de um sentimento, mas traduz o esforço acumulado de
inúmeras gerações, de corações ardentes que se dirigem ao mistério e que nele
encontram acolhida e proteção: ‘Recordai-vos de Mim, que eu Me recordarei de vós’
(Corão 2, 152).”
67
A oração se constitui como fenômeno que expressa o movimento em direção
ao Mistério inefável, que transcende e desarticula toda palavra.
68
E, nesta
64
A. J. HESCHEL,O homem a procura de Deus, p. 32.
65
Claude GEFRÉ, Passion de l’homme, passion de Dieu, p. 124
66
Annemarie SCHIMMEL, L’incendie de l’âme: l’aventure spirituelle de Rumi, p. 2001.
67
Faustino TEIXEIRA, “Introdução”, in Volney BERKENBROCK & Faustino TEIXEIRA, Sede de Deus:
orações do Judaísmo, Cristianismo e Islã, p. 10
68
“Mistério inefável, que não apenas transcende mas igualmente desarticula toda palavra. Um mistério
que é inefável, mas invocável, confiável e encontrável. Não é necessário, porém, que este Outro seja
reconhecido e identificado com o Deus personalizado. A oração existe no movimento da própria
intencionalidade do sujeito que reconhece a carência e a intransparência da finitude e a consciência de
uma ‘falta’: a percepção de que ‘o sentido do mundo encontra-se fora do mundo” (Wittgenstein). E
esta carência reveste-se de uma sede e de uma busca infinita, expressando no ritmo multiforme e
plural de orações vocais de angústia, alegria, sofrimento, esperança, muitas vezes silenciosas, outras
vezes sussurradas ou ardorosamente bradadas e cantadas.” Faustino TEIXEIRA, “Introdução”, in
Volney BERKENBROCK & Faustino TEIXEIRA, Sede de Deus: orações do Judaísmo, Cristianismo e Islã,
p. 8-9.
43
importância da palavra reside o desafio de se compreender a afirmação da
inexprimibilidade da experiência religiosa, uma vez que se trata de uma linguagem
sempre alusiva como um processo primordial de comunicação da experiência
imediata e uma compreensão interna.
69
Rūmī afirma:
Alguém perguntou: “Para se aproximar de Deus, há algum caminho
mais curto que a oração?” Ele respondeu: “A oração. Mas a oração não
é somente essa forma exterior. Isso é o ‘corpo’ da oração; a oração
formal comporta um começo e um fim, e tudo o que implica um
começo e um fim é um corpo. [...]. Portanto, a alma da oração não é
somente sua forma: ela abre caminho para a absorção em Deus e
apara a perda da consciência. Assim, todas as formas são exteriores.
70
Ao falar da oração, Rūmī não aponta para um estado de efusão ou
contemplação tão somente, mas sim de um lugar marcado em nós. A prece é a
cavidade desse lugar em nós. O locus esvaziado da espera de uma voz que clama
ao Amado a habitação. É o espaço de que se utiliza nossa palavra para tocar o
inefável de Deus.
A partir deste exemplo, o da oração, tão caro a Rūmī, traçamos a abordagem
que nos parece mais conveniente a este trabalho: não aquela que busca apenas
afirmar semelhanças entre as várias experiências místicas, situadas em lugares,
épocas e contextos distintos, mas, sim, aquela que se centra na possibilidade de
tomar as semelhanças presentes na diversidade, à medida que o termo
“semelhanças” não elucida, de forma alguma, o surgimento de uma mesma
manifestação. Cada experiência e única e irrepetível, mas anuncia a Unidade
69
“As alusões são ‘rastros deixados num caminho’, que escapam ao olhar do exotérico, mais habituado
às trilhas tradicionais e conhecidas. O iniciado, ao contrário, ‘explora além disso a dimensão da
experiência interna e, em sua peregrinação pela senda do conhecimento, rastreia os atalhos da
inspiração, seguindo os indícios que encontra em seu passo, sem se deter mais do que o necessário
nas sucessivas pousadas e paisagens que, como degraus de sua ascensão, vai deixando para trás.”
Faustino TEIXEIRA, No limiar do mistério, p. 11 .
70
D. RUMI, Fihi-Ma-Fihi, p. 35.
44
Inefável da realidade Última que transfunda o toque do Mistério
71
. Nisto, a
linguagem mística apresenta seu mérito e seu desafio, pois falar não é sempre
comunicar; não é exprimir; não é designar. Estas ações podem se referir ao real
aparente, ao mesmo tempo, que, dele, podem até subtrair o que lhe for mais caro,
no próprio ato de fala.
72
O místico, por outro lado, experiencia o que não pode ser calado porque
emana uma profusão de sentidos e significados, mas, ao mesmo tempo, não pode
ser expresso. Esta dialética constitutiva é a marca mais visceral das experiências
místicas.
73
Na linguagem mística, o amor fecunda o silêncio e surge a palavra. Uma
palavra que deixa de ser um instrumento do dizer para se fazer uma ferramenta de
aparição: nela habitam a doçura do desvelo e a dor que rasga e desnuda. Nela, a
ambivalência tece lugar, já que a palavra que revela está sempre encoberta. O
místico olha para o segredo que habita o interior da palavra e o seu próprio interior.
A ele lhe é dado saber que as palavras sabem mais do que nós e que é preciso tocá-
las com mãos de amor para levá-las aos ouvidos do coração, que a tudo tocam
74
.
71
“É claro que cada tradição religiosa tem sua experiência, que se reveste de uma expressão
particular, isto é, cada forma religiosa implica uma antropologia própria, uma cultura espiritual
determinada, e postula uma filosofia correspondente. Apesar das diferenças formais, observa-se, no
entanto, muitos pontos em comum e até mesmo problemas semelhantes na busca do sentido
verdadeiro, na ‘viagem’ até o sentido espiritual.” . F. ATTAR, “Prefácio”, in A linguagem dos pássaros,
p. XIV.
72
“A linguagem é um meio útil de comunicação e expressão, mas, quando tentamos utilizá-la para
mais profunda experiência que o homem pode ter, metemo-nos em uma armadilha da qual ficamos
sem saber como ns livrar.” D. T SUZUKI, Mística: cristã e budista, p. 83.
73
“Se percorrermos, com efeito, as interpretações do fenômeno místico na literatura moderna a
respeito, não é difícil perceber que são guiadas por procedimentos reducionistas inspirados nas
diversas ciências humanas. Mas a incontestável originalidade da experiência mística que transluz nos
testemunhos autênticos e irrecusáveis dos grandes místicos mostra-se irredutível a estreitos
pressupostos reducionistas. A experiência mística é um dado antropológico original. Sua interpretação
exige, pois, uma concepção da estrutura do ser humano apta a dar razão dessa originalidade. De fato,
todos os grandes textos da tradição do Ocidente, que se podem considerar místicos, de Platão a São
João da Cruz, transmite-nos uma imagem do ser humana, traçada segundo invariantes fundamentais,
que permanecem ao longo dos dois grandes ciclos da nossa civilização, o greco-romano e o cristão-
medieval.” VAZ, Henrique C. de Lima. A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental. Edições
Loyola, São Paulo, 2000. p. 18.
74
“Se a mística constitui um fenômeno humano é porque, ainda que a realidade a que se refere a
palavra – experiência no mais íntimo da pessoa com uma realidade sobre-humana – exceda o campo
45
Para o místico, tudo o que existe no mundo tem um corpo. Não há nada no universo
que seja matéria morta. Ele se põe a ouvir o espírito que sopra dos corpos. O que é
espiritual não está fora da matéria, é matéria cantada. É o místico não é aquele que
comunica, transmite e exprime: ele é aquele que capta, que está aberto. Que
experienciou em si o arrombamento da aniquilação, e na fenda de seu receptáculo
diáfano está a alegria de ver a linguagem mística como quem vê o pensamento.
75
As alusões são um dos recursos que a linguagem mística elabora para a
abordagem de seu tema constitutivo: o Mistério. Segundo Michael Sells, em seu
livro, Mystical Languages of unsaying, “O componente-chave da mística nos escritos
apofáticos é a localização do ‘mistério’. O Mistério não é apenas um conjunto de
doutrinas obscuras que se tiram da fé, nem tão somente um secreto prêmio para o
iniciado. Mas é o referencial sincero da profundidade de uma tradição particular e
sua linha diretriz para um diálogo interno com outras tradições.”
76
. Sendo o místico
alguém que se volta para a realidade última do Mistério inexaurível de Deus, sua
experiência está tomada pela natureza absolutamente “Outra”, em relação às
realidades mundanas e à própria existência dessa realidade última a que se refere à
categoria religioso de “Mistério”:
Em um certo sentido, cabe observar que esta presença,
incluindo uma prevalência, do conteúdo sobre a vivência do
do que se percebe na vida ordinária, faz-se presente no mundo humano através de uma série de
manifestações que a converte em feito histórico, em magnitude humana. A primeira aproximação ao
feito místico nos são oferecidos estes aspectos visíveis que se fazem presentes.”. Juan Martín
VELASCO, El fenômeno místico, p. 49
75
“No ponto de partida de nossas reflexões convém traçar uma primeira figura conceitual do que
entendemos por experiência mística. Evidentemente, a fonte principal, e mesmo única, na qual
podemos haurir uma informação segura sobre a natureza e o conteúdo desse tipo singular de
experiência é o testemunho dos próprios místicos. Na verdade, eles são os primeiros teóricos de sua
própria experiência, e reconhecendo como autêntico seu próprio testemunho experiencial e
aceitando,em princípio, a interpretação por eles proposta é que os estudiosos da mística podem definir
o objeto de sua própria identificação.(...). Como primeira aproximação, podemos dizer que a
experiência mística tem lugar no terreno desse encontro como Outro Absoluto, cujo perfil misterioso
desenha-se, sobretudo, nas situações-limite da existência, e diante do qual acontece a experiência
com o sagrado.” Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental, p.
15.
76
Michael SELLS, Mystical Languages of unsaying, p. 8.
46
místico é uma expressão comum de todas as formas de mística
religiosa autêntica. Como se pode ver, ao se destacar como
essência de todas elas a condição extática da experiência, esta
surge e vive da presença desse mais além do sujeito que só se
lhe faz presente descentrando-lhe em sua direção por meio do
mais absoluto transcendimento. O que, em realidade, constitui a
originalidade da experiência mística cristã é a peculiaridade da
configuração deste mistério.
77
Nesse caso, cumpre-se observar que não só a mística cristã, como afirma
Velasco, mas também as diversas tradições místicas buscam encontrar, no limiar do
mistério, o pórtico da suprema união, o espaço para se converterem naquilo que
amam e buscam.
78
.
Na raiz grega do termo “mística” (mystikós) encontra-se o verbo myein, que
significa “fechar os lábios e os olhos”.
79
. Já a palavra “mistério” (mysterion, em
grego) provém de múein, que quer dizer perceber o caráter escondido, não
comunicado de uma realidade ou de uma intenção. É importante ressaltar que o
Mistério não equivale a um enigma
80
. É da natureza do termo a designação de um
espaço próprio de profundidade que se inscreve na experiência do místico e a
totalidade do Real, indecifrável em sua essência.
81
O Mistério não se constitui em
77
Juan Martín VELASCO, El fenómeno místico, p. 217.
78
São João da Cruz descreve “a amada em amado transformada” (SÃO JOÃO DA CRUZ, Obras
Completas, p. 135); quando Hallaj professa sua identificação com a verdade, em sua famosa “locução
teopática” (shath): Ana al-Haqq (Eu sou a verdade); quando o místico sufi Bistami afirma: “Louve a
mim (Subhânî), louve a mim!Eu sou o meu Senhor, Mais Alto” (BISTAMI, Lês dites de Bistami, p. 44);
e quando os trinta pássaros da epopéia mística, descrita por Farid ud-DinAttar, encontram uma nova
vida na luz do Simurg: “No reflexo de seu rosto, os trinta pássaros (si morg) mundanos contemplaram
a face do Simorg espirital” (Farid ud-Din ATTAR, A linguagem dos pássaros, p. 231.
79
Ver Faustino TEIXEIRA, No limiar do mistério, p. 27-28.
80
“O homem é mistério, e Deus é quem é o seu mistério: colocado no centro da criação ‘como um
istmo entre a luz e a obscuridade’, ‘sentado sobre o umbral dos mundos’, é tão somente a criatura que
aceitou o depósito divino, a amâna do Corão. (...) A essência da santidade muçulmana, como a da
profecia, não é nada menos que a iluminação divina, a visão imediata e o conhecimento das coisa
invisíveis e desconhecidas, quando o véu dos sentidos é retirado de repente e o ‘eu’ consciente se
desvanece na glória que o domina, a da ‘única luz verdadeira”. Tradução de Eva de VITRAY –
MEYEROVITCH, Mística y poesia em el Islam, p. 14-16.
81
“O místico é o sujeito da experiência, o mistério, seu objeto, a mística, a reflexão sobre a relação
místico-mistério. A derivação etimológica desses termos vem de myein (fechar os lábios ou os olhos),
donde, por uma transposição metafórica, ‘iniciar-se’, do qual deriva o complexo vocabular: mýstes,
iniciado, mystikós, o que diz respeito à enunciação, tà mystiká, os ritos de iniciação, mistikôs
(advérbio), secretamente e, finalmente, mystérion, objeto da iniciação. Essa terminologia vem do culto
grego dos mistérios, ao qual mais adiante nos referirmos.” Ver L. BOUYER, “Mystique: essai sur
47
uma Realidade que não pode ser conhecida. O Mistério pertence a uma realidade
que se dá a conhecer e, nesse conhecimento, ainda assim, se mantém como
Mistério.
82
Eis aí o paradoxo místico que constitui a experiência de uma Realidade
inexaurível de Deus, que jamais esgota a possibilidade humana de o contemplar,
através de seu coração. Sobre a relação etimológica
83
do termo mistério, Lui
Aguilera Ruiz afirma:
Em primeiro lugar convêm fazer uma aproximação etimológica que
nos proporcione uma base geral. Duas palavras foram usadas pelos
latinos para expressar o silêncio: tacere e silere. A primeira é um
verbo ativo de sujeito pessoal, que se refere à interrupção ou ausência
da palavra em uma determinada situação; a segunda corresponde a
um verbo intransitivo de sujeito impessoal, ( e, portanto, aplicável não
só ao homem mas também à natureza, aos objetos e aos animais) que
expressa tranqüilidade, ausência de ruído ou movimento. Os gregos
também fizeram uma distinção parecida: siôpaô significaria calar, e
sigaô estar em silêncio. Vemos que para ambos povos há um silêncio
cuja significação está em relação com a palavra que não se pronuncia e
outro que contém uma modalidade de significado próprio e
independente da palavra.
84
O coração constitui o “órgão sutil da percepção mística, entendido como
receptáculo cristalino e protéico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de
l’histoire d’um mot”, in La Vie Spirituelle, Supplément 3, p.3-23 ; Id., Mystérion, La Vie Spirituelle,
Supplément 6 (1952) : 397-412 ; Lidell – Scott-Jones, Greek-English, ed. 1951, s.v. myô." .In. : VAZ,
Henrique C. de Lima, A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental, p. 17.
82
“A experiência mística, em seu teor original, situa-se justamente no interior deste triângulo: na
intencionalidade experiencial que une o místico como iniciado ao Absoluto como mistério; e na
linguagem com que, num segundo momento, rememorativa e reflexivo, a experiência é dita como
mística e se oferece como objeto a explicações teóricas de natureza diferente.”. Henrique C. de Lima
VAZ, A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental, p. 17.
83
Ainda sobre a etimologia do silêncio, Eni Puccinelli Orlandi, afirma: “Se nos voltarmos agora para a
história das palavras, encontramos a etimologia de silentium, referida a silens que significa: que se
cala, silencioso, que não faz ruído, calmo, que está em repouso, sombra. etc. Algumas observações a
respeito do uso dessa palavra são interessantes. Embora na época clássica não haja diferença de
sentido entre sileo e taceo (calar), primitivamente sileo não designava propriamente ‘silêncio’ mas
‘tranqüilidade’, ausência de movimento ou ruído: ‘Estar em silêncio’ = ‘estar quieto’. Empregava-se
sileo para se falar de coisas, de pessoas e, especialmente, da noite, dos ventos e do mar. Silentium,
mar profundo. E aí nos deparamos com o aspecto fluido e líquido do silêncio. A nossa metáfora
aproveita esse impulso etimológico. Como para o mar, é na profundidade, no silêncio, que está o real
do sentido. As ondas são apenas o seu ruído, suas bordas (limites), seu movimento periférico
(palavras). A linguagem supõe pois a transformação da matéria significante por excelência (silêncio)
em significados apreensíveis, verbalizáveis. Matéria e formas. A significação é um movimento.” Eni
Puccinelli ORLANDI, As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 35.
84
Luiz Aguilera RUIZ, La música callada: el silencio como lugar teologal em San Juan de la Cruz,
p.123.
48
Deus: a inesgotável, infinita manifestação da Divindade na morada da União.”
85
. O
coração é o órgão de captação desse Mistério, aquilo a que pascal chamou de espirit
de finesse. É uma atitude de simpatia fundamental, uma capacidade básica de
sentir os outros em uma situação concreta.
Se a Linguagem Mística é uma das maneiras pela qual a Mistério fala, o
coração é um órgão importante dessa comunicação. Rūmī aborda a necessidade de
se polir o espelho do coração
86
Dil
87
em persa, Qalb em árabe — que é um órgão
de conhecimento místico e portanto, de fundamental importância para Rūmī. Para o
Ocidental, a noção exata do que seja a sabedoria do coração, às vezes, se torna um
tanto refratária, ou, por outras, até apresenta uma tendência a que se veja o termo
coração com uma referência à conotação cristã. Não obstante possam existir
semelhanças entre tais conceitos, este termo, em árabe e persa, resguarda ainda
uma outra riqueza semântica tão vasta quanto seu significado para a espiritualidade
mulçumana.
O coração é a morada da segurança, meus amigos;
Ele possui fontes e roseirais no seio dos roseirais.
Voltem-se para o rumo do coração e sigam, ó viajantes da noite;
Lá se encontram árvores e riachos de água viva.
(Masnavi Livro III versos 515-516)
85
Abu-l-Hassan Al-NURI , Morada de los corazones, p. 36.
86
O coração é um jardim secreto onde de ocultam árvores/ ele manifesta cem formas, mas não tem
mais que uma só./ É um oceano imenso, sem limites e sem rios/ Cem vagas aqui se quebram: vagas
de cada alma. Rûmî, Djalâl od-Dîn. Rubâi’yât. Paris: Albin Michel. 1993, p.42.O alvo da disciplina moral
é purificar o coração da ferrugem das paixões e do ressentimento, até que, como um espelho claro, ele
reflita a luz de Deus. GHAZĀLI, Alquimia da Felicidade Perfeita, p.8.
87
“Ao darmos conta do êxtase unitivo, o santo descreve em sua prosa aclamadora a substância última
do ser, que funciona como um espelho flutuante capaz de refletir os atributos incessantes de Deus, em
vertiginoso cambio perpétuo, sem atar-se a nenhum dos elos em particular. Este receptáculo sublime
das epifanias divinas da Divindade constitui um lócus do depositário espiritual entre Deus e a alma, e
por sua vez nesse sagrado que se harmoniza a suprema unidade de Deus com o mundo criado.[...] O
coração não é uma víscera de carne, nem uma simples sede das emoções humanas, mas sim um
órgão de recepção mística de uma extraordinária complexidade.” Miguel N. UBARRI e Lieve BEHIELS,
Fuentes neerlandesas de la mística espñola, p.85
49
O termo “qalb” apresenta uma variedade semântica como uma forma de
demonstrar as variadas epifanias do Uno
88
. Nesse sentido, o coração é como um
cristal que, com grande sutileza, reflete matizes da Luz espargidos em seu cerne. A
grande importância dessa pluridimensionalidade do termo “qalb
89
é, portanto,
propiciar que o influxo da multiplicidade no seu âmago seja total:
Eu Estou contido, qual hóspede
No coração do verdadeiro crente,
Sem qualificação, definição ou descrição;
A fim de que pela meditação do coração,
Todos os seres possam obter de Mim
Soberania e fortuna.
Masnavi. Livro VI ; versos:3072-3073)
O coração (usado como termo técnico da mística islâmica) será o órgão de
máxima importância no desenvolvimento espiritual do Sufi, pois, por sua
pluridimensionalidade ele é capaz de acolher as múltiplas manifestações da
Unidade. Ele jamais esgota sua capacidade de apreensão, bem como é despossuído
de toda a fixidez formal. Pode, por conseguinte, efetivar a progressiva transposição
das diversas moradas pelas quais o ser do amante deverá caminhar em seu intento
gradual de aproximação ao Amado. Nesse sentido, o coração como órgão de
conhecimento recebe seu influxo do amor que é em si-mesmo uma gnose, no
88
O coração (qalb) dos seres humanos perfeitos experimenta flutuações (qalb, taqallub)
intermináveis, já que constitui o lugar no qual percebem as revelações de Deus que jamais se
repetem. Willian CHITTICK, Mundos Imaginales: Ibn-Arabi y la Diversidad de las Creencias,p.54. Para
uma apreensão mais detalhada do termo, conferir: Hanna E. KASSIS e Karl L. KOBBERVIG, Las
Concordâncias Del Corán, p.412-414.
89
“A extraordinária riqueza plurivalente do símbolo do coração (qalb), se perde lamentavelmente em
qualquer tradução para língua Ocidental. O coração como símbolo religioso Cristão, tem muito pouco a
ver com sua contrapartida Islâmica: é que no árabe, o vocábulo qalb , derivado da raiz q-l-b significa
tanto ‘coração’ como ‘flutuação’, mudança perpétua’, inversão, entre outras acepções. No contexto
místico, [...] queda imediatamente associado ao órgão sutil de percepção mística, entendido como
receptáculo cristalino e protéico capaz de refletir todas as epifanias dos atributos de Deus: a
inacabada, infinita manifestação da Divindade na morada da União. Luce LOPÉZ-BARALT, Morada de
los Corazones, 1999. p.36.
50
sentido de ser um princípio que age como revelador da consciência. Nas
progressivas mudanças do coração, estão inscritas as verdades da Verdade.
51
1.2 - A linguagem mística e a linguagem poética
A poesia está imbuída de um senso poético que lhe confere significação
substancial. Na obra poética, este senso poético é inseparável do poema, seja qual
for o seu sentido inteligível. É nisto que se diferencia o poema de todo discurso que
se constrói pela prosa: no fazer poético, as palavras não estão ali, meramente, ao
acaso. Elas se tornam sinais e ao mesmo tempo objetos que se organizam nesse
corpus vivo e único. Não há como operar substituições sinonímicas sem que sofra
ou morra o sentido do poema como tal.
90
A poesia não se refere a um objeto material fechado em si mesmo, mas à
universalidade da beleza e do ser. Suas potencialidades espirituais e intuitivas,
presentes através das palavras de que se serve o poeta, não podem ser despojadas
de seu papel de sinais sem privar a poesia de sua ligação com a beleza
transcendental. E assim, como sinais, as palavras conduzem os leitores a esse
universo de complexidade significativa a que o autor busca os conduzir. Se se
extinguir o senso poético, rompe-se a atmosfera de fascinação que envolve o
poema. Além disso, mesmo que o senso lógico não seja tão fundamental à
construção poética, o autor não pode se livrar dele em totalidade: é necessária uma
significação inteligível para que se possa entrar no desconhecido e contemplar uma
nuance do Mistério. É constituinte da experiência mística que o sentimento do
desconhecido só se propague através do conhecido, pois a poesia é fruto do
humano. Ela surge no homem identificada com tudo o que lhe é mais fundante.
Assim, é natural que ao se exteriorizar em objeto traga a marca de sua origem.
90
“Ambas (literatura e mística) fazem parte de uma mesma compreensão e compartilham signos e
referentes, marcadas por uma expressão comunicativa. Em ambas, formas abertas, plurais, quebra da
compreensão de gêneros e afins. Tendência ao fragmento. Ao brilho do fragmento. [...]. Mas não creio
que a poesia represente uma via mística. Existem poetas que são místicos. Ou santos. Ou loucos.”
Marco LUCCHESI, “Literatura mística na compreensão do belo, na compreensão das minorias”, in
IHU On- Line, Ano 5, nº 133, p. 32-33 [entrevista].
52
É importante salientar que ao construir uma produção poética, o místico se
confronta não apenas com a dificuldade de uma seleção lexical condizente ao
estado de Iluminação a que ele tenta tecer referências mas também dos jogos de
linguagem, de figura e de pensamento que estão envolvidos e podem , cada um a
seu método, criar artifícios de expressão que tragam à luz uma poesia de beleza e
substância. É como afirma São João da Cruz
91
:
Na verdade, quem poderá escrever o que esse Espírito dá a conhecer
às almas inflamadas no seu amor? Quem poderá exprimir por palavras
o que ele lhes dá a experimentar? E quem finalmente, dirá os desejos
que nela desperta? Decerto ninguém o pode. De fato, nem as próprias
almas nas quais isso se passa podem exprimi-lo. Este é o motivo de
empregarem figuras, comparações, semelhanças, para com elas
esboçar apenas algo do que sentem; e da abundância do espírito
transbordam segredos e mistérios, mais do que procuram, por meio de
razão explicá-los.
Ao se pôr em contato com um sentimento arrebatador, uma experiência clara
e numinosa, o místico se apercebe de uma realidade que lhe apresenta como um
tanto turva, obscura, uma luz quase insustentável. Ainda assim, mesmo que esse
contato lhe desfigure uma união indizível com o Mistério, ele busca se exprimir com
uma certa clareza, pois tem n’alma o canto que libera um conhecimento substancial
e cristalino. Mas um conhecimento inefável. É por isto que não se exprime à
maneira de um raciocino lógico.
Nascida de uma experiência vital, vida ela mesma, a palavra quer se exprimir
por sinais portadores de vida, que levará aquele que os recebe à inefabilidade da
experiência original.Como todas as fontes da faculdade do poeta foram tocadas, é
natural que sua produção tente explorar todos as estâncias desta experiência.
Contudo, a poesia não é o espelho límpido dos estados de alma. É próprio do
discurso místico-poético o apontamento para a interiorização como uma maneira de
reviver a enunciação do mistério original. No entanto, a poesia mística não é apenas
91
SÃO JOÃO DA CRUZ, Obras Completas, p. 575-576.
53
um discurso sobre o sentido espiritual, mas também uma via para a assimilação
interior de realidades espirituais.
Se a poesia mística busca um grau de inteligibilidade para que a clareza da
experiência ganhe espaço, o poeta também acaba se deparando com a inevitável
confrontação com a obscuridade da própria linguagem, que, a um certo grau,
também estará sempre presente. Essa obscuridade reside em toda a verdadeira
poesia: é a alma da poesia.
Tanto a inteligibilidade quanto a obscuridade que marcam a obra poética
emergem de um fundo gerador presente na experiência mística e faz apelos às
potencialidades da alma que, cada uma a seu modo, possuem uma maneira de
atingir o Real e dizê-lo. Para tanto, o poeta penetra num estado de recolhimento.
Trata-se de uma quietude próxima à contemplação mística
92
.
Contudo, a poesia guarda suas diferenças com relação à mística. Não se
referem a uma mesma dinâmica. São essências particulares, próprias e distintas em
suas naturezas. Na experiência mística, o objeto atingido é o Abismo Incriado
presente e unido à alma daquele que o contempla. Já o poeta toca o seu objeto, as
coisas e a realidade do mundo, antes que a Deus, em si mesmo. A essência de Deus
é transcendente à multiplicidade de seus atributos. A poesia se refere à vocação
amorosa de seus atributos e reproduz, via linguagem alusiva, ao Mistério
contemplado, enquanto a experiência mística recebe o Mistério, amalgamado e
enraizado na própria existência do místico.
Na poesia mística está presente o recurso simbólico registrado não como um
mero sistema de cifras, mas sim como uma linguagem dotada de meio particular de
expressão, pois esta é uma forma tangível de acesso ao Real. Dentro deste universo
simbólico, o leitor empenha não só seu aparato racional, mas também seus
92
O termo ‘contemplação’ tem uma extensão genérica no campo da mística. A contemplação da
mística especulativa dirige-se ao Mistério como foco da unidade inteligível de todas as coisas: ela está
sob o signo do transcendental Unum.” Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e filosofia a
tradição Ocidental, p. 69.
54
sentimentos e sua imaginação, permitindo desta maneira que a poesia mística abra
mão de um conteúdo informativo e possa operar uma transformação. Com relação a
este poder transformador dos símbolos poéticos, há um bonito poema de Rūmī:
Dentro deste mundo há outro mundo
Impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
Nem a primavera dá lugar ao outono.
Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
Até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja transforma-se em pavão,
O lobo em belo pastor.
Para mudar a paisagem,
Basta mudar o que sentes
93
.
Experiência mística e experiência poética não são a mesma coisa. São tal
como duas fontes diferentes. A água que as alimenta é a mesma: trata-se do
Mistério Inexaurível de Deus. Contudo, são fontes destinadas a tarefas distintas.
Enquanto uns são chamados a reproduzir o Mistério de maneira a aumentar os
tesouros da ciência e da beleza entre os homens, os outros são chamados a
tornarem-se fagulhas deste Mistério, a abnegar-se de si e de tudo o que há nesse
mundo.Tanto a Beleza quanto a Graça possuem mãos amorosas e corações
iluminados que se prestam ardorosamente nesse socorro misterioso à humanidade.
Os resultados que se sucedem a esses dois chamados, distintos em essência,
mas próximos pela fonte divina, também são diferentes, pois, na experiência
mística, o conhecimento adquirido é seu fruto e seu repouso. Ele próprio se
converte em atos imanentes. Já na experiência poética, o poeta atinge um alto grau
de compreensão e deseja transformá-lo em objeto. O sentido de plenitude para os
místicos está no repouso da união, da adesão ao Amado, enquanto que para o
93
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p.54-55.
55
poeta, a alegria plena estará em criar uma forma nova que se identifique com a
inspiração criadora.
Mas se o místico é ao mesmo tempo poeta, como ele articula a existência de
seus dons poéticos e seus dons místicos?
Este parece ser o caso de grandes místicos-poetas das diversas tradições
religiosas. Tereza de Ávila, São João da Cruz, Rūmī, Rabi’a são apenas alguns
exemplos dessa possibilidade no que ela se apresenta de mais significativa. Ao que
tudo indica, a experiência poética e a experiência mística revelam-se como
estâncias bastante favoráveis uma vez que na experiência mística todo o espírito
94
é
vivificado pela união com o Real. A contemplação, por si só, não os faria poetas,
mas a experiência divina que transpassa os que a experimentam com fervor e força
exalta as percepções e possibilidades já latentes, possibilitando, desta forma, que
suas faculdades poéticas revelem algumas minúcias da realidade inefável que
puderam contemplar. É como afirma Juan Martín Velasco:
A função central do símbolo na linguagem mística lhe confere sua
afinidade indubitável com a linguagem poética. Tal afinidade levou a H.
Bremond a considerar ‘a atividade poética um esboço natural e profano
da atividade mística’ e a considerar, exageradamente, um poeta como
um ‘místico evanescente’ ou um ‘místico fracassado’.
‘Exageradamente’, porque não faltam poetas que subtraiam as
diferenças entre as duas atividades e põem a fronteira radical entre
ambas no fato de que o essencial para a linguagem mística é o estado
místico, a experiência que o místico verte em linguagem enquanto para
a poesia, a dizer de alguns deles e dos mais eminentes – J. Guillén,
que e apóia em P. Valéry ou em E. Poe – o essencial é o poema e não o
estado poético do poeta.”[...]
Se chegar a afirmações tão rotundas como as de H. Bremond, é
indubitável que existe uma afinidade estrita entre a poesia e a mística
que se mostra de forma mais clara nos casos privilegiados, mas em
94
“Vale dizer: o mais íntimo de nós mesmos é o nível ontológico mais elevado de nosso espírito, e é
no fundo dessa imanência (interior íntimo) que o Absoluto se manifesta como absoluta transcendência
(superior summo). Aí pode ter lugar a experiência mística. Ela é, em suma, a atividade mais alta da
inteligência espiritual, que é, por sua vez, a atividade mais elevada do espírito. Com atos de
inteligência espiritual, a contemplação metafísica e a contemplação mística podem exercer-se na sua
plenitude. Portanto, somente o discurso antropológico que compreende em si a categoria do espírito, e
admite como atos espirituais mais elevados os atos da inteligência espiritual, é capaz de acolher e
explicar adequadamente a autêntica experiência mística. Henrique C. de Lima VAZ, A experiência
mística e filosofia a tradição Ocidental, p. 19.
56
nada excepcionais, naqueles quem que a linguagem mística é ao
mesmo tempo poética, como sucede em São João da Cruz.
95
É fundamental que se leve em conta que, embora a experiência mística e a
experiência poética não se referem, em absoluto, a um mesmo estado, elas se
encontram identificadas e viabilizam tanto ao místico quanto ao poeta aberturas
para que possa existir uma comunicação profícua entre essas duas dimensões.
O poeta pode passar do seu recolhimento poético a um estado de
recolhimento místico, fazendo com que sua sensibilidade hipertrofiada de
articulação entre as palavras possa se colocar em abertura de recepção ao silêncio
de onde emana todos os sons divinos.
Da mesma forma, o místico pode deixar que flua na experiência do dizível
percepções impressas nos olhos de seu coração
96
, deixando que sua voz cante o
contato do espírito com a realidade, em si mesma, inefável, bebendo na fonte do
Amado a alimentando nesse movimento de amor as imagens da Sua Beleza. A
poesia se transfigura, assim, em conhecimento. Um conhecimento concreto, íntimo,
agudo, profundo e singular que abraça o seu coração
97
.
95
Juan Martín VELASCO, El Fenómeno místico, p. 63.
96
“A concepção antropológica subjacente à experiência mística – como também à contemplação
metafísica – deve admitir, em conseqüência, o reconhecimento da capacidade do espírito humana que
Platão denominou ‘Olho da alma’. Esse ‘olhar da alma’ prolonga sua contemplação para além da
multiplicidade sensível e imaginativa e da multiplicidade conceptual, e é intuição simples da idéia ou do
Absoluto Ideal.” . Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e filosofia a tradição Ocidental, p. 21
97
“Todas as fontes estão em Ti.”. Salmo 86.
57
1.3 - A poesia do Inefável
De certa maneira, a produção poética que nasce como fruto de uma
experiência mística representa uma tentativa de expressar o conhecimento da
presença do Mistério. Assim, é possível perceber que os místicos, em seus poemas,
sempre falam do conhecimento de uma presença, ainda que seja a presença de
uma falta.
98
.
O amor partiu meu leve coração
e o sol vem clarear minhas ruínas.
Ouvi belas palavras do Sultão.
Caí por terra triste, acabrunhado.
Acercou-se de mim, vi o seu rosto.
‘Do rosto eu não sabia mais do que o véu.’
Se a luz do véu abrasa esse universo,
O que dizer do fogo de teu rosto?
O Amor veio e partiu. Eu o segui.
Voltou-se, como águia, e devorou-me.
Perdi-me no tempo e no espaço.
Perdi-me nos mares do verbo.
O gosto deste vinho,
Conhece quem sofreu.
Os profetas bebem tormentos.
E as águas não temem o fogo.
99
.
A nostalgia da origem, o “lamento da flauta’ a saudade da Presença são
sintagmas que abrem espaço para o Divino que surge no discurso místico e
98
“Essa ‘presença compreendida na ausência’, essa aporia, tem seu paralelo discursivo no momento
aporético da teologia negativa, em que os místicos ‘sabem o que eles não sabem.” Sílvia SCHWARTZ,
A Béguine e al- Shaykh: Um estudo comparativo da aniquilação mística em Marguerite Porete e Ibn’
Arabi, p. 7.
99
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 29.
58
sustentam a tentativa de dizer, via uma linguagem alusiva, paradoxal e metafórica,
os vestígios do Mistério inabarcável.
100
Toda a poesia que surge desse silêncio de
ausência parece querer fazer-se em canto silábico a presença antes vivenciada.
A ausência incompreensível sentida convida ao pronunciamento literário,
mesmo que crie aí um contexto paradoxal: a partir do contato com a esfera silente,
a geratriz de toda a palavra, o místico busca tecer na poesia resquícios que
preservem a luz do Encontro.
101
Já é tarde, muito tarde.
O Sol já desceu o poço.
Mas a Beleza desponta,
No brilho claro da lua.
Ora, bebe desse vinho
E clareia essa vigília.
A alma inquieta silencia,
Não acordes teu sultão.
Oh! As lágrimas de alívio
A colheita, a estação,
Teu discípulo no jogo:
Todos partiram de noite.
Homens de olhos de fogo
Estrelas da glória. A noite
Qual hindu, fugiu gritando:
“O turco invadiu a tenda!”
Ao preciso movimento,
O bispo toma o peão.
Ao socorro da Beleza,
100
“O poeta, em particular, é respeitado como o tipo de homem que melhor pode evoluir para um sufi
de grande santidade. A poesia pode, de fato, conduzir à verdadeira essência do sufismo. O gênio do
poeta é semelhante à inspiração religiosa.[...] O sufismo possui uma poesia toda peculiar – uma
poesia considerada por muitos, sufis ou não, mais espiritual e elevada em expressão extática que a de
qualquer religião atuante no mundo. Além disso, a linguagem da poesia – suas metáforas, seu ritmo
vivo e pulsante – é mais aparentada ao discurso do místico que a rude linguagem dos filhos da terra.
Ela não está restrita às convenções ou limitações do idioma. Paira suprema, acima de hesitações e das
gaguejantes exigências do discurso mundano.” . Sidar ALI SHAH, Princípios Gerais do Sufismo e outros
textos, p.22-23.
101
“A poesia não consiste em formular de maneira ornamentada o que seria possível dizer
simplesmente, mas sim em outorgar a palavra ao que se subtrai dela.”. Guillermo MACCI, “Em torno a
la poesía” in Suplemento Cultura y Nación, Clarín, p.2.
59
Cai o bispo e vence o rei.
De noite, as almas avançam
A cumprir os seus destinos.
Quem souber esta verdade,
Tem a alma transparente.
(...)
Busca o silêncio da noite,
Purifica teu espírito.
O sultão subiu aos Céus,
Tornou-se pérola rara.
Cai o silêncio no mundo
Todo, por causa da noite.
Segue no seio do nada
O teu legado de paz.
Ah! Shams, o lençol da noite
Não te cobre, pois não és
Do Oriente ou do Ocidnte.
Cessam de pronto as palavras.
102
Sobre este poema, afirma Marco Lucchesi:
Segue este poema da física da luz para a sua metafísica, com uma
intensidade que atinge, na espessura da noite, altitudes e amplidões da
Via Láctea. Sentimento de solidão, espera e serviço. Iminente a vinda
do Xá (O Rei, o Amado). Foi-se o vizir. Foram-se os mensageiros. Mas
permanece, o Rosto. O Sol de Shams de Tabriz ilumina as profundezas
do céu e do poço, do tempo e do espaço, da corda e da carne, do turco
e do hindu, das contradições sobre as quais o universo de Djalal ad-
Dîn repousa e age. A noite do destino, laylat al-qadr, quando o Alcorão
desceu integralmente a Maomé. As dez últimas noites do mês de
Ramadã.
103
Uma outra possibilidade que a poesia mística pode assumir é incitar o
encobrimento. Do contato com o Mistério pode nascer um tipo de poesia que tenta
encobrir a Luz para que se preserve a luminosidade do encontro. Trata-se de uma
poesia que se esforça por alienar a linguagem do que foi contemplado
102
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 87-88.
103
J. RŪMĪ, A sombra do Amado - De Rumi, p. 117-118.
60
profundamente. Traz, em sua escrita, o limite que não comporta a intuição da face
do Real, sempre inexorável às tentativas do desvelo da palavra.
Somos a mó, o coração é o trigo;
Que sabes a mó de seu girar eterno?
A pedra é corpo, e a água, pensamento;
Diz a pedra: “Não sei o que é o tempo.”
E a água responde: “Pergunta ao moleiro,
Que abriu este canal por onde passo.”
Diz o moleiro : “É a fome que te move.
Se a roda não girar, o trigo morre.”
Ah! Cessa esse murmúrio de palavra:
Escuta no silêncio a voz de Deus.
104
É possível notar a presença de dois silêncios: um silêncio presente no poema,
e o outro a que a palavra não alcança. Rūmī parece salientar a enorme dificuldade
que a recepção do poemas encontra no sentido de acolher o silêncio proposto ali, ou
seja, o silêncio que nasce no contato com o Real. Dada a falta e tolerância, o
mecanismo adotado sugere uma transformação desse silêncio a que se chega via
poema em um silêncio da palavra evasiva, já que os versos promovem nos que os
lêem uma espécie de refutação dessa nudez ontológica da identidade humana
105
.
A existência desses dois silêncios identificados, aqui, nos versos de Rūmī,
desmembram bipolaridades do Silêncio do Amado: um silêncio de sublimidade que
se oferece ao poeta como vestígios alusivos do Mistério e um outro que tenta
resguardar o inefável do campo exprimível. A linguagem poética de Rūmī não só
parece contemplar essas duas insuperáveis instâncias do Real, como também cria
104
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 41.
105
“São Bernardo declara no sermão 85 sobre os Cânticos, em que, após ter tratado dos graus
particulares de perfeição que conduzem a alma à união e ao gozo de Deus, que pode ser nessa vida,
ele diz ‘Se alguém me perguntar o que é gozar do Verbo, eu lhe respondo que pergunte àquele que fez
a experiência. Ainda que eu tivesse a experiência, como poderia explicar o inefável?” Michel de
CERTEAU, La Fable Mystique, p. 191.
61
entre elas um espaço de transição que articula, em poesia, a voz desse silêncio
extremo de habitação à diluição no silêncio de encobrimento, para que possam, em
seu ciclo de alternância infinitas voltar a se fundir e se distanciar novamente. Nisto
reside a essência favorável da poesia: ele risca o âmbito em que o místico pode
alcançar a palavra que o identifica como ser transitivo embebido pela nostalgia do
Amado.O poema trilha o caminho do místico que, incapaz de se sustentar em um
dos extremos, deixa seus rastros na linha de uma aporia que se encontra no Real.
Silêncio!
És feito de pensamento, afeto e paixão.
O que resta é nada
Além de carne e ossos.
Por que nos falam
De templos de oração
De atos piedosos?
Somos o caçador e a caça,
Outono e primavera,
Noite e dia,
O Visível e o Invisível.
Somos o tesouro do espírito.
Somos a alma do mundo ,
Livres do peso que vergasta o corpo.
Prisioneiros não somos
Do tempo nem do espaço
Nem mesmo da terra que pisamos.
No amor fomos gerados,
No amor nascemos.
106
Através desta compreensão geral que o trabalho busca traçar acerca da
experiência mística como esta consciência de uma relação entre o homem e Deus,
torna-se importante situar a dimensão da linguagem apofática
107
, como uma das
106
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 150-151.
107
“O problema da linguagem da mística especulativa está, pois, intimamente ligado ao problema da
sua natureza: o paradoxo da linguagem de um savoir incommunicable, que vem sendo transmitido
desde Platão a toda linguagem da mística especulativa e é uma das fontes, seja dito de passagem, da
não raro desconcertante linguagem filosófica de Hegel.[...] Depois de Plotino, a mística especulativa
neoplatônica recebe uma importante contribuição por parte de seus sucessores, a começas por
62
fontes indispensáveis para se conhecer a prática discursiva que o místico muitas
vezes se vale para falar de seu encontro com o Mistério. Dessa forma, podemos
entender que, muito embora a linguagem mística utilize vocábulos pertinentes a
qualquer outro tipo de linguagem, numa dada língua, ela se caracteriza,
principalmente, pelo fato de ser a “linguagem de uma experiência”
108
. Ao traçar um
estudo sobre a linguagem apofática, analisando as obras de Ibn ‘Arabi e Meister
Eckhart, Michel Sells afirma:
Apesar de um contraste doutrinal completo os dois místicos mostram
uma notável afinidade no uso de suas respectivas linguagens
apofáticas para falar de um eterno momento de união que sempre
ocorreu e sempre ocorrerá. Este contraste poderia ser parcialmente
explicado pelo auge histórico de uma larga metacultura Abraâmica e
Greco-romana da qual Eckhart e Ibn ‘Arabi faziam parte e cedo decaiu.
O contraste nas posições doutrinais pode colocar em alto relevo,
contudo, o trabalho da linguagem e do pensamento apofático através
de específicas barreiras religiosas e culturais.
109
Já nos versos de Rūmī, também podemos encontrar vestígios de um recurso
apofático uma vez que este caminho se configura apropriado para a proposta de
Mawlānā: sua experiência poética não afirma as potencialidades e matizes do
Mistério e, ao fazê-lo, não as nega simplesmente, mas busca através da sugestão
alusiva conduzir à interpretação última de que o Amado transcende a qualquer
afirmação que dele pode ser feita.
Porfírio, merecendo destaque Proclo (século V), que estabelece didaticamente a distinção entre
conhecimento catafático (afirmativo) e conhecimento apofático (negativo), distinção que se tornará
clássica na tradição teológico-filosófica posterior.” Henrique C. de Lima VAZ, A experiência mística e
filosofia a tradição Ocidental, p. 34-35.
108
“O místico não fala como um teólogo simplesmente. Fala de Deus que se Lhe é dado em uma
experiência. Daí sua concretude, frente à abstração própria de outros registros da linguagem religiosa,
como é próprio da Teologia.” Juan Martín VELASCO, El fenómeno místico, p. 51
109
Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, p.206
63
Vem.
Conversemos através da alma.
[...] Sem abrir a boca,
contemo-nos todos os segredos do mundo.
[...] Ninguém fala de si mesmo em voz alta.
110
Como a poesia, a apófase não é um discurso que qualquer um pode apreciar
imediatamente. Como a poesia, a apófase resiste a paráfrases dentro de outros
modos lingüísticos; paráfrases somente podem ser parciais. Quando escrevemos
sobre um poema não tentamos exprimir o significado do poema – se o significado
pudesse ser expresso discursivamente ele não necessitaria de um poema. Tentando
entender como um poeta trabalha, somos levados mais profundamente para dentro
do evento da leitura do poema. O que este evento significa para diferentes leitores
pode diferir enormemente de um para outro. Até aqui o que tem sido comumente
aceito pelo discurso poético – uma resistência a uma redução semântica- é
freqüentemente visto como uma forma de mistificação na apófase.
111
. O momento
da fusão do sujeito e do predicado é efêmero, o despertar sem despertador logo é
reificado em outro objeto de experiência. O escritor pode continuamente voltar a
não dizer o previamente dito.
Por isso, uma das grandes dificuldades que o místico encontra é articular um
caminho viável entre a característica fundamentalmente descritiva da linguagem
mística e a inefabilidade do Mistério nela experienciado
112
. Este limite com a qual o
místico se confronta parece lhe infundir o domínio da transgressividade
113
, que se
110
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 60.
111
“O evento expressivo é constantemente presente, ele não pode ser controlado, a contínua mudança
de afirmativas mantém a mente em constante atividade, deslocando continuamente o “objeto” como
um eterno retorno feito dentro do discurso o que leva o leitor a um mergulho profundo na meditação
aporética. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, p.215.
112
“Estão em matéria tão alta e tão espiritual (como dizem esses santos) onde a experiência ultrapassa
a doutrina; onde aquele que sabe não lhes pode dizer; onde a língua não é mestra, mas a Graça; onde
a humildade atinge aquele que se esforça e vai e aprende o que não ode ensinar; onde a palavra
substancial do Pai opera tais maravilhas que nós não saberíamos exprimir.” Michel de CERTEAU, La
Fable Mystique, p. 192.
113
“A propriedade em que mais chamativamente se manifesta a peculiaridade da experiência de quem
o usa e o cria é o que, de uma forma muito genérica e muito viva chama-se de ‘transgressividade’ da
64
constrói via linguagem
114
. Daí os dislates, os oxímoros, os paradoxos, aporias
115
.
Todas as construções que promovem a travessia de um sentido semântico que não
pode ser amparado na palavra, pois, na palavra do homem, encontram-se
impressos os limites do humano
116
. Como Rūmī afirma, as palavras humanas são
como véus que filtram a palavra de Deus a um ponto que o ouvido e o coração do
homem podem recebê-la sem aniquilar-se:
Deus, o Altíssimo, criou esses véus com uma finalidade; se a Beleza
divina se manifestasse sem véus, não suportaríamos essa revelação e
não poderíamos alegrar-nos com ela. Graças a esses véus, somos
ajudados e reconfortados.
117
Nestes versos, pode-se observar como o entendimento das palavras humanas
também é concebido como um desenrolar, divino e necessário, das palavras do
Amado. Ao chamarmos as coisas por um nome, estabelecemos o vínculo chamativo
para o Real que ali fala. Afinal, ao nos depararmos com a linguagem mística e a
linguagem mística. Esta consiste na constante tendência a levar o sentido primeiro dos vocábulos até o
imite de sua capacidade significativa e na utilização simbólica de todos eles. As expressões dessa
transgressividade são tão variadas quanto numerosas. Aparece sobretudo como recurso permanente
nas mais atrevidas e mais vivas metáforas, nas que se realizam de maneira mais perfeita, o que P.
Ricoeur chamou de ‘a metáfora viva’: ‘É muito mais que uma figura estilística; comporta uma inovação
semântica [...] um testemunho em favor da virtude criativa do discurso”. Juan Martín VELASCO, El
fenómeno místico, p. 63.
114
Um evento significativo com a linguagem apofática, inclui um momento que é niilista ou “anárquico
— sem a arché ou primeiro princípio. No momento anárquico sugere um retorno da segunda
proposição sobre a primeira a fim de remover a delimitação. Nos termos da metáfora plotiniana da
massa incandescente que iluminava a esfera, o momento anárquico ocorre quando da remoção desta
massa incandescente, que serve como o começo, fonte ou o princípio da luz. Este momento foi
encontrado na prece a Deus de Eckhart para ser livre de Deus, na aniquilação do eu de Porete e no
desejo de não fazer nada ou reprimir-se de fazer qualquer coisa para Deus, a inexistência de Deus de
Eriugena, o contínuo deixar-se ir de toda a imagem do eu ou da deidade de Ibn ‘Arabi, e o despertar
sem despertador de Plotino. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, p.209.
115
“Os recursos mais claramente expressivos da transgressividade da linguagem mística são, sem
dúvida, junto a já anotada metáfora, o paradoxo e a antítese. É sabido o uso que alguns autores têm
feito do paradoxo como meio expressivo da linguagem religiosa.”. Juan Martín VELASCO, El fenómeno
místico, p. 54.
116
“Há um chamado na fala humana e uma espera no pensamento. Tudo aquilo cujo nome dizemos
falta. Pensar, falar, não é emitir idéias, encadeá-las, desenrolá-las – mas conduzir toda a palavra até o
limiar e o avesso das palavras. Há um pensamento sob o pensamento que diz sempre: “Vai até onde
as palavras tomam o caminho de volta.” Ir até a beira, ultrapassar a margem, passar de uma margem,
de um limiar a outro, é o movimento respiratório profundo, o passo, a caminhada, o embalo de nosso
espírito que é espírito de travessia.”. Valère NOVARINA, Diante da palavra, p. 18.
117
D. RUMI, Fihi-Ma-Fihi, p. 63.
65
linguagem poética, é possível perceber que ambas se estruturam na linguagem,
pois tudo é linguagem
118
. Contudo, ao se dimensionar um ‘linguagem do silêncio’
apontamos para a linguagem que risca a ausência, denuncia a falta, atesta do
espaço aniquilado parta que ali se faça a habitação do Real
119
, fonte de todos os
sentidos e todas as palavras. Rūmī afirma:
As palavras são ilimitadas, mas revelam-se conforme a capacidade do
Buscador. “Não há nada em nós cujos tesouros não tenhamos, só
permitimos que se revelem no nível conhecido.”. A sabedoria é como a
chuva, é infinita em sua fonte, mas vem de acordo com o que a
ocasião exige, no inverno, na primavera, no verão e no outono, sempre
na medida correta, em maior ou menor quantidade. Porém, lá de onde
vem, é ilimitada. (...). As palavras revelam-se conforme a vontade
espiritual e a fé.
120
As palavras guardam sempre para nós a face escondida. Toda luz de sentido
que cada vocábulo parece receber traz a lembrança da primeira partilha com o
silêncio. Qualquer fagulha fônica dotada de significação parece aludir a um
fragmento da presença invisível que se encontra para além dela própria. É como
afirma Mawlānā:
Nós nos dirigimos àquele que está sempre em estado de união mística,
no silêncio, na ausência assim como na presença; mesmo na discórdia,
estamos unidos a ele; mesmo brigando a socos, conversaríamos com
ele e estaríamos unidos a ele. Não olhes para essa mão fechada, nela
há uvas passadas. Se não crês no que digo, abre-as e verás. Aliás, o
que importa se são uvas passas ou pérolas preciosas? Há também
118
“Acima dos princípios formais compõem-se os eventos significativos da linguagem apofática como
um modo literário. O evento significativo é um restabelecimento (através da gramática, da sintaxe e
da metáfora) de uma fusão do eu e do outro dentro da união mística”. Michael SELLS, Mystical
Languages of Unsaying, p. 209
119
“Quando tirado do contexto, o nada da deidade é indistinguível discursivamente de um “mero
nada”; a liberdade da alma da autorização; o desinteresse da alma proveniente da indiferença; a
confusão da alma que não conhece nada da irracionalidade; a tentativa de interpor-se distinções
discursivas afirma que o místico realmente não sabe nada ou que cessou todo o desejo, incluindo o
desejo de desejar Deus, quando ela fala, ela faz isso para explicar exteriormente o momento
anárquico. Pois, para explicar exteriormente o momento anárquico é necessário girar a linguagem
apofática em direção à teologia convencional”. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, p.
209
120
D. RUMI, Fihi-Ma-Fihi, p. 55-56.
66
aqueles que aprimoram o conhecimento, com sutilezas e refinamentos
em verso e prosa. Mas se o emir tende a se dirigir para este lado e a
nós, não é em função de conhecimentos, sutilezas ou discursos; essas
proezas estão presentes em todos os lugares.
Os paradoxos e contradições da linguagem apofática procedem logicamente
de uma aporia da inefabilidade, o momento apofático da anarquia, — o afastamento
da massa incandescente dentro da esfera iluminada — ocorre no momento de uma
afirmação original de transcendência. De fato, o elemento catafático original na
afirmação da transcendência (usar o nome X para afirmar que o estado X está
acima de todos os nomes) é necessariamente o início da crítica apofática do nome.
A afirmação da transcendência – quando tomada em toda a seriedade apofática – se
volta sobre si mesma. O paradoxo da imanência e da transcendência, a coincidência
de opostos, a substituição do objeto gramatical todos estão violando a convenção
lógica que funciona para delimitar as entidades. É quando a linguagem encontra a
noção de ilimitado, que a lógica convencional, não logicamente é transformada. Os
paradoxos apofáticos são construídos sob a fundação de distinções lógicas
convencionais, mais altamente se modifica a racionalidade do contexto catafático,
mais bem sucedido poderá ser o paradoxo apofático. Sobre as relações que o
místico opera na linguagem, afirma Michel de Certeau:
Um deslocamento do sujeito no espaço do sentido que circunscreve as
palavras e por uma manipulação técnica dessas palavras, marca o
novo uso que é feito, em suma, é uma prática de desapego. Ele
desfigura a língua. Ela a distancia da função que visava a uma imitação
das coisas. Ele desfaz também as coerências da significação para
insinuar em cada unidade semântica os jogos retorcidos e
extravagantes das relações do sujeito com o outro e consigo: ele
atormenta as palavras para lhes fazer dizer o que, literalmente, elas
não dizem, de maneira que elas se tornam, de alguma maneira, a
escultura das táticas das quais elas são instrumentos. Um termo,
mesmo ambíguo, poderia definir esses processos que destacam a
língua de seu funcionamento estrutural para modelar sobre as paixões
dos sujeitos locutores
121
.
121
Michel de CERTEAU, La Fable Mystique, p. 195.
67
Esse momento no qual a transcendência revela a si mesmo como imanente é
o momento da união mística. Nesse momento, os padrões referenciais das
estruturas da linguagem são transformados. Há uma quebra entre as distinções
gramaticais: reflexiva e não-reflexiva na antecedência de um pronome (ele vê si-
mesmo através de si-mesmo em si-mesmo). A quebra da distinção perfeito
/imperfeito sempre ocorreu e sempre ocorrerá. No momento da união mística, os
atributos divinos não são conhecidos como um sujeito não-divino. A distinção de
deidade e criação e dualidade do amante e o Bem Amado são omitidas
122
. Os
atributos aparecem no espelho e a imagem no espelho é o divino no humano e o
humano no divino, como Rūmī afirma:
A palavra surge da alma
mas diante dela se apequena.
Das pérolas da alma
A língua se envergonha,
Não tem como explicá-las
(...) Quebra o núcleo da letra
e chega ao sentido da palavra.
Cada vez que imaginas algo,
pensas removido o véu e alcançada a verdade,
Mas o único véu é tua imaginação
123
.
Na união mística os atributos divinos não são conhecidos, mas realizados,
simultaneamente atualizados e compreendidos no espelho polido do coração.
122
“O contexto desta afirmação é a transição do quarto estágio, o estágio das obras, para o quinto e
sexto estágios da união mística. O sétimo estágio padrão é catafático e direcional. Cada estágio leva a
um mais elevado, e eles não podem ser saltados. O abandono do desejo dá lugar nesse contexto a um
esforço por fazer boas obras seguindo o desejo divino. É através deste esforço que a alma realiza a
aporia apofática do desejo, que iguala o desejo de fazer boas obras ao seguir o desejo divino — que
contém o egoísmo — fazendo chegar à estação da aniquilação. No instante em que abandona a si, às
obras e aos desejos, a Dama do Amor nos fala que a deidade deseja trabalhar com a alma ( como
trindade, Dama do Amor, ou Longe-Próximo). Um semelhante contexto direcional pode ser encontrado
em outros escritores apofáticos como uma garantia do contexto direcional do meio no qual ele escreve
ou prega. Deste modo a estação da não estação de Ibn ‘Arabi é colocada dentro de um contexto sufi
de gradação de estações, práticas e disciplinas”. Michael SELLS, Mystical Languages of Unsaying, p.
209.
123
Tradução de José Jorge de CARVALHO, Poemas Místicos Divan de Shams de Tabriz., p.134.
68
CAPÍTULO 2: A LINGUAGEM DO SILÊNCIO
2.1 - Silêncio: intuição manifesta de uma realidade transcendente
Ó alma, não cunhes moeda
com o ouro das palavras;
o buscador é aquele que vai
à própria mina de ouro.”
124
Em um de seus poemas, Rūmī escreve: “Sou filho do silêncio, Ó mestre da
palavra”
125
. É desta frase que nasce a inspiração para o título deste trabalho,
tomando Rūmī não apenas como interlocutor do Mestre Divino, mas também um
mestre da palavra, a partir da identificação entre amante e Amado. Trata-se de uma
busca da relação do indizível com o dizível.
126
Busca marcada por um exercício de
cautela que, através dos poemas de Rūmī, pretende chegar a uma especificidade do
silêncio. Dessa maneira, cabe, primeiro, esclarecer qual a compreensão que
tecemos do sintagma “Filho do silêncio”, uma vez que o objeto do estudo é
justamente a produção poética de Rūmī. Aparentemente, teríamos aí uma
inviabilidade analítica: como conciliar a busca de uma elucidação sobre o sentido do
silêncio em Rūmī, se o manancial que nos provê é sua poética?
127
124
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 88.
125
“Já não temo ninguém./ O Amado me acompanha [...]/ Talento de orador,/ Coragem de guerreiro./
Sou filho do silêncio/ Ó mestre da palavra!” J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 101-102
126
“A relação entre palavra e silêncio: a palavra imprime-se no contínuo significante do silêncio e ela o
marca, o segmenta e o distingue em sentidos discretos, constituindo um tempo (tempus) no
movimento contínuo (aevum) dos sentidos no silêncio. Podemos enfim dizer que há um ritmo no
significar que supõe o movimento entre silêncio e linguagem.” Eni Puccinelli ORLANDI, As formas do
silêncio: no movimento dos sentidos, p. 25.
127
“Com freqüência, a linguagem mística confina-se com o silêncio e sensivelmente desemboca-se
com ele. Mas seu silêncio não é cômodo, prazeroso, indiferente. É uma condição de linguagem. Os
grandes místicos conseguiram que São João da Cruz recomendava aos Carmelitas de Beas: «Tudo
envolto em silêncio ». E uma leitura atenta de seus escritos descobre-se esse silêncio não só quando a
língua ou a pena descansam senão a raiz de que surgem as palavras e com o clima que as envolve.”
Juan Martín VELASCO, El fenómeno místico, p. 56.
69
Para responder a essa especulação, potencialmente impeditiva para o objeto
deste estudo, é preciso que deixemos de lado nossa compreensão mais imediata do
vocábulo “silêncio” que, geralmente, acaba por conduzir a um conceito incomplexo
de uma mera supressão das palavras e, por conseguinte, dos sentidos por ela
expressos. Rūmī tece constantes referências ao silêncio não como uma mera
circunstância do discurso sobreposta pela intenção do autor, mas sim de um silêncio
imbuído de sentido.Há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de
incompletude da linguagem: todo o dizer é uma relação fundamental com o não
dizer.
128
Além disso, o contexto que envolve os poemas de Rūmī é perpassado pela
experiência mística. Dessa forma, há que se levar em conta todos os meandros e
possibilidades aí existentes. Tudo quanto se refere ao estudo da linguagem Mística
aponta para a necessidade de uma adaptação de conceitos que, nela, assumem
outra disposição. Assim, essa reflexão de uma linguagem mística do silêncio toma a
evidência poético-discursivo do que não se encontra dito, para que tornem-se
tangíveis aspectos que não pareceriam numa análise de fundamento apenas
lingüísticos ou pragmáticos. Para tanto, não se tomará, por sinonímia, expressões
como “Rūmī, o poeta” e “Rūmī, o místico”. Ainda que, no caso deste autor, essas
sejam duas esferas próximas e identificadas, elas resguardam particularidades que
devem ser observadas e levadas sempre em consideração
129
. Não fazê-lo, seria,
pois, assumir uma postura pouco cuidadosa.
O silêncio, em Rūmī, representa uma condição essencial para a união mística
com Deus, fonte da suprema realização do místico.Trata-se de um elemento
128
“Acredito que o mais importante é compreender que: 1. há um modo de estar em silêncio que
corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram
silêncio. Há palavras nas palavras; 2. o estudo do silenciamento (que já não é silêncio mas ‘pôr em
silêncio’) nos mostra que há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender
uma dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica do ‘implícito”.
Eni Puccinelli ORLANDI, As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 11-12.
129
“Nem toda a poesia que se passa por mística o é com certeza.”. Virginia MCWEENY, Pérsia Mystica:
Poeti sufi dell’etá clássica, p. 74.
70
indispensável para uma verdadeira comunicação entre Deus e o Homem
130
; um
sinal de que para fora da linguagem ainda permanece um sentido. Em Rūmī, há
palavras no silêncio e silêncio nas palavras. São, em sua poesia, dimensões que se
inter-atravessam. Estas são razões que sustentam o aprofundamento sobre um
aspecto que se revela tão valioso para a observação dos matizes mais inefáveis da
mística e da poesia de Rūmī.
Gilvan Fogel, em seu artigo “A respeito do fazer necessário e inútil ou do
Silêncio”, o silêncio seria uma espécie de forja que aplicada em uma via, a qual ele
considera “metalurgia da liberdade”, instaura o lugar do Real. O recurso imagético
do autor fornece rudimentos analógicos para a elaboração de um dos principais
tópicos deste capítulo: O lugar do Real. É o silêncio que aponta para a dimensão
inexaurível do Real que ultrapassa todo e qualquer limite que possa ser construído
pelo arcabouço vocabular
131
. O Mistério se faz verbo, na vivência corânica, mas é
pré-existente a toda a palavra. O Mistério habita a palavra e todo além que há antes
e depois dela. Por isso, é sempre o espaço inesgotável da graça.
132
O silêncio rompe
a proposta estanque da significação lexical e constrói em si o espaço sempre
habitável do Real. Rūmī aborda esta perspectiva em vários de seus poemas
133
.
Neles, é possível observarmos que a construção dos versos surge como que a partir
da escuta do grande Silêncio.“O lugar, o âmbito, que é transcendência, é
silêncio.”
134
.
130
“São o segredo, o silêncio e a inefabilidade os três eixos em torno dos quais os comentários
trançam a comunicação de uma experiência intraduzível.”, A. EGIDO, Hermenéutica y Mística, p. 176.
131
“O silêncio é fundante. Quer dizer, o silêncio é matéria significante por excelência, um continuum
significante. O real da significação é silêncio. E como o nosso objeto de reflexão é o discurso,
chegamos a uma outra afirmação que sucede a essa: o silêncio é o real do discurso.” Eni Puccinelli
ORLANDI, As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 31.
132
“No discurso religioso, em seu silêncio, “o homem faz falar a voz de Deus.” Eni Puccinelli ORLANDI,
As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 30.
133
“O homem está dotado da faculdade de nomear as coisas, isto é, de formar conceitos sobre elas e
formar conceitos é apreendê-las. Assim, o caráter do conhecimento do homem é conceitual e é por
meio deste conhecimento conceitual que o homem pode aproximar-se do aspecto observável da
Realidade.” . Tradução de Eva de VITRAY – MEYEROVITCH, Mística y poesia em el Islam, p. 29
134
“O lugar, o âmbito, que é transcendência, é silêncio.”. Gilvan FOGEL, “A respeito do fazer
necessário e inútil ou do silêncio”, in Por uma fenomenologia do silêncio, p. 42.
71
Por amor, o aturdimento domina o poder das palavras”,
Que não consegue mais pronunciar o que se passa;
Pois, se apresenta uma resposta, teme grandemente
Que seu tesouro secreto lhe escape dos lábios.
Assim, fecha os lábios para não dizer nem bem e nem mal,
Para que seu tesouro não possa lhe escapar.
Da mesma forma, os companheiros do Profeta nos contam:
“Quando o Profeta costumava nos dizer ditos profundos,
Esse escolhido, enquanto dispersava as pérolas de seu discurso,
Nos pedia para preservar perfeita quietude e silêncio.
135
Este silêncio, presente nos versos de Rūmī, também pode ser entendido como
o instante anteposto ao desvelo da possibilidade do iluminar-se, do fazer-se visível
como a irrupção da e na experiência mística. Toda a construção poética e a
recorrente alusão a este silêncio representa a atualização deste momento primordial
e fundante, de maneira tal que sua poesia é uma dinâmica de tessitura do instante
iluminativo do místico.
136
O silêncio é isto. O silêncio é este meio, este ‘médium’ — este
elemento. Melhor: o silêncio é este modo de ser, que é sob a forma da
ação necessária, enquanto e como destinação e estória de liberdade
para a morte. E tal modo de ser é a insistência da ressonância de
silêncio porque este modo de ser, que fala pela forma de todo e
qualquer modo possível de ser (os verbos do existir), é aquilo que,
desde fora, se mostra como o incontornável o inabarcável, isto é, o
irrepresentável e, por isso, o incontrolável, o insubsumível. Enfim, é
silêncio porque a insistência de tal ressonância se evidencia como a
vigência de transcendência. É o transcendente enquanto tal — porque
é o vir-a-ser ou o realizar-se de possibilidade ou, sempre, de uma
possibilidade de ser. O silêncio se faz como escuta, quer dizer, como
abandono atento, como entrega cuidadosa a isto que, assim, nesta e
desde esta participação, se faz ação, atividade, uma vez que tal
transcendência é em si e por si mesma ação, atividade, isto é, auto –
exposição, fazer-se e aparecer desde si.
137
135
Eva de VITRAY – MEYEROVITCH, Mística y poesia em el Islam, p.310.
136
“Se a linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não
é o nada, não é o vazio sem história. É silêncio significante. (...) Significa que o silêncio é garantia do
movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio. O silêncio não é pois, em nossa
perspectiva, o ‘tudo’ da linguagem. Nem o ideal do lugar ‘outro’, como não é tampouco abismo dos
sentidos. Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a que
aceita a reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remte a outro
discurso que lhe dá realidade significativa.” Eni Puccinelli ORLANDI, As formas do silêncio: no
movimento dos sentidos, p. 23.
137
Gilvan FOGEL, “A respeito do fazer necessário e inútil ou do silêncio”, in Por uma fenomenologia do
silêncio, p. 51.
72
Tal entendimento do silêncio como atividade e mecanismo que conduz a
produção poética é de vital importância para este estudo, já que rompe com a
semântica de um silêncio com conotação intimista, subjetivista. Tal domínio de
introspecção e ensimesmamento não possui relação fundante com este estudo
138
,
uma vez que o propósito aqui esclarecido é o de falar sobre essa “não fala”: o que é
o silêncio?; quais são os seus meios? e o que ele pode significar quando abordado
com instrumentos hermenêuticos que possibilitem o seu estudo? É claro, contudo,
que não se trata de uma desqualificação da subjetividade, uma vez que a
“subjetividade pode chegar a se reconhecer como indício de uma verdade que a
transcende. Por certo, só graças à subjetividade essa verdade se converte em algo
intuído, em algo capaz de manifestar-se como aquilo que ultrapassa a
consciência”
139
. A subjetividade encontra, pois, no silêncio seu solo radical.
No artigo “O silêncio da Filosofia”, Hans Ruin
140
afirma: “A tematização desta
questão (o silêncio) talvez seja objeto tanto de uma certa apreensão como de um
certo entusiasmo.”. Talvez o que resulte fascinante seja a possibilidade de observar
as freqüentes alusões ao silêncio que surgem em diversas manifestações místicas,
das mais variadas tradições religiosas. As delicadas nuances que assumem a
linguagem mística como atitude visceral naqueles que tiveram uma profunda
experiência com o Mistério apontam sempre para esse dado “mais além”. Algo que
138
“Silêncio e solidão — são palavras que, quando ouvidas desde intimismo e introspecção, costumam
soar carregadas e sobrecarregadas com uma aura de dramatismo, de patetismo, quer dizer,
esvaziadas de todo autêntico drama e de todo autêntico “pathos”. Assim, costumam evocar recantos
interiores, recintos intimistas — fechados, abafados, quase sempre melosos, pegajosos. Neste
ambiente, são comuns os arroubos, os “arrebatamentos místicos”, os transportes, acompanhados de
suspiros, arrepios, calafrios, ora elevados, ora macambúzios e todos queixumes. (..) Tal clima
sentimentalista e intimista, tal solipsismo mórbido, assim como também o não menos solipsista
heroísmo romântico, gera desdém, desprezo e repúdio em qualquer homem de tarefa necessária, quer
dizer, em todo e qualquer homem genuinamente de silêncio e solidão, que é o homem de escuta e
obediência à voz impositiva de transcendência.”. Gilvan FOGEL “A respeito do fazer necessário e inútil
ou do silêncio”, in Por uma fenomenologia do silêncio, p. 51-52
139
Santiago KOVADLOFF, O silêncio primordial, p. 14.
140
Marcia SHUBACK, Por uma fenomenologia do silêncio, p. 13
73
não se constitui como dito e que, no entanto, é deveras importante que seja
expresso.
141
Esta dinâmica em Rūmī significa um esforço profundo para se falar da
Transcendência, valendo-se de uma estrutura dêitica que aponta para o Mistério
que envolve toda a criação e do qual só se pode dar conta pela experiência ordinária
acessível de nossos sentidos.
142
Em Rūmī, podemos observar, em vários de seus poemas, a presença de uma
plenitude humana e espiritual que busca converter o silêncio não em um recurso
mediador da revelação, simplesmente, mas sim o desvelar dessa Realidade última,
ou seja, desse lugar da Presença do Real, onde o Mistério de Deus e o mistério do
homem se encontram fazendo de Palavra e Silêncio uma só coisa:
Deus não criou sobre a Terra,
e nem nos céus sublimes,
nada mais misterioso que
o espírito do homem.
143
Interessa a este trabalho a análise do silêncio como uma dimensão
fundamental do homem e as suas relações com a palavra, assim como as
ambigüidades que os amenizam.
141
“Quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como significação, criou a linguagem para
retê-lo. (...) Em suma: quando o homem individualizou (instituiu) o silêncio como algo
significativamente discernível, ele estabeleceu o espaço da linguagem.” Eni Puccinelli ORLANDI, As
formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 29.
142
“O silêncio não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. Ele passa pelas
palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo, de modo fugaz. Ele escorre por entre e trama das
falas.”. Eni Puccinelli ORLANDI, As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 34.
143
Eva de VITRAY – MEYEROVITCH Mística y poesia em el Islam, p.24
74
2.2 - Silêncios e sentidos
Este estudo não se configura nos parâmetros de uma análise lingüística
sistematizada já que o tema em que se atém é a Experiência Mística. Além disso,
existe o cuidado para que não se quebre o encanto de um símbolo cujo poder se
centra no valor de sugerir em sua estrutura alusiva
144
.
A própria gênese constitutiva da comunicação está prenhe de linguagens.
145
Identificamos, com facilidade, através de idiossincrasias uma linguagem da palavra,
do corpo, da música, dos gestos, da poesia, da matemática, da pintura, da fé, dos
símbolos e tantas outras. Mas quando se trata de um comunicação de uma
experiência mística, da vivência mais íntima que um buscador alcança em todo o
seu itinerário ao longo da via que o conduz ao Mistério Sempre Maior, podemos,
então, compreender a existência do que ora chamaremos de uma “linguagem do
silêncio”, uma vez que ela não representa a ausência de comunicação mas sim a
transmissão de uma mensagem que está para além da nossa sensibilidade
ordinária.
146
Nela, pode-se compreender não só o espaço de uma linguagem outra,
mas também a singularidade como cada uma delas se vincula ao silêncio,
convergindo para uma perfeita unidade manifesta em múltiplas teofanias do Real.
Essa fala silenciosa representa o chamado fundo irredutível da experiência,
tal como afirma Santiago Kovadloff: “Não desejo falar do que, silenciado, poderia
144
“De tal forma que se não posso enunciar literalmente o verdadeiro silêncio, o silêncio
intransplantável à expressão, posso, em compensação, fazê-lo ouvir por via alusiva: conseguir que o
eco de seu latejar essencial ressoe em minha palavra. Para tanto, esta palavra deve saber ir ao seu
encontro, aproximar-se, habitá-lo, permanecer nele e suportar sua insondável densidade.”. Santiago
KOVADLOFF, O silêncio primordial, p. 10-11.
145
“Para nosso contexto histórico-social, um homem em silêncio é um homem sem sentido. Então, o
homem abre mão do risco da significação, da sua ameaça e se preenche:fala. Atulha o espaço de sons
e cria a idéia de silêncio como vazio, como falta. Ao negar sua relação fundamental com o silêncio, ele
apaga uma das mediações que lhe são básicas. (...) Quando não falamos, não estamos apenas mudos,
estamos em silêncio: há o ‘pensamento’, a introspecção, a contemplação etc.” Eni Puccinelli ORLANDI,
As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, p. 37.
146
“A fala da água, da terra, da lama/ é audível aos ouvidos dos homens de coração.”. Jelaluddin
RUMI, Masnavi, p. 71.
75
ser dito alguma vez. Não é um confinamento o silêncio que me atrai: não aprisiona
outra realidade. Quero, em vez disso, falar do silêncio que não cumpre a função de
maquiagem e que, como tal, não encontra nem pode encontrar equivalência na
palavra. Quero, em suma, falar de um fundo irredutível.”
147
. Cabe, no entanto, a
pergunta que, sob o ponto de vista semântico, de uma análise do discurso, soaria
perfeita: ‘Como falar do que não pode ser designado?’. A resposta encontra
ressonância na própria constatação de que o inominável pode ser percebido O
interlúdio entre o inconcebível e o constatável centra-se na figura do protagonista
da experiência. Rūmī, nesse caso, é o destinatário de todo o esforço interpretativo
já que se aspira a expressão de algo que o envolve. Toda a análise deste estudo
não se baseia em um objeto próprio e isolado, mas sim, no sujeito da experiência
mística
148
. O silêncio pode ser analisado no sujeito, pois se trata de uma instância
que pertence ao ser.
Silêncio. Guarda essa pérola rara.
Como podes vender o imensurável?
149
A palavra necessita do silêncio. Uma comunicação significativa precisa ser
ponderada no silêncio da escuta que permite recebê-la ou ignorá-la. Este silêncio de
reflexão e liberdade constrói a palavra autêntica que dele surge e ale retorna
147
Santiago KOVADLOFF, O silêncio primordial, p. 9-10.
148
“A palavra que acolhe o silencio não se funda em um ato voluntário. Ela é, ao contrario, fruto de um
arrebatamento. É vocação, é resposta a um chamado. Impõe-se, sobretudo, como inapelável
necessidade a quem depois a organiza como enunciado. Guarda, em seu núcleo, os atributos primários
do ato criador e remete a um salto abrupto, que sai do solo trilhado da indiferença e do hábito rumo à
altura desusada da paixão. É reitero, vocação. A existência, sob seu influxo, encontra-se imersa em
uma atmosfera superior. E quando lança a sua ação em consonância com essa convocação que o
arrebata, o homem que se decide a acatá-la não sabe aonde irá exatamente, nem a quem obedece.”
Santiago KOVADLOFF, O silêncio Primordial, p. 11.
149
J. RŪMĪ, A sombra do Amado - De Rumi, p. 63
76
quando atinge o limite de uma compreensão lógica, já que a existência humana não
se pode ser reduzida ao razão é capaz de compreender
150
.
Os olhos foram feitos para ver coisas insólitas,
fez-se a alma para gozar da alegria e do prazer.
O coração foi destinado a embriagar-se
na beleza do amigo ou na aflição da ausência.
A meta do amor é voar até o firmamento,
a do intelecto, desvendar as leis e o mundo.
Para além das causas estão os mistérios, as maravilhas.
Os olhos ficarão cegos
quando virem que todas as coisas
são apenas meios para o saber.
O amante, difamado neste mundo
por uma centena de acusações,
receberá, no momento da união,
cem títulos e nomes.
Peregrinar nas areias do deserto
nos exige suportar
beber leite de camelo,
ser pilhado por beduínos.
Apaixonado, o peregrino beija a Pedra Negra
ansioso por sentir mais uma vez
o toque dos lábios do amigo
e degustar como antes o seu beijo
Ó alma, não cunhes moedas como ouro das palavras:
o buscador é aquele que vai
à própria mina de ouro.
151
O silêncio cria o lugar do encontro porque abre um espaço de liberdade para
o diálogo e garante aos interlocutores participação na conversa. A pausa silenciosa
entre as enunciações ora pode representar a mudança de um turno de fala
152
ou até
mesmo o encerramento da conversa. Ela introduz uma distância adequada para que
150
“As coisas não são tão exeqüíveis nem expressáveis como nos querem fazer crer, na maior parte
das vezes; em geral, os acontecimentos são inexpressáveis, consomem-se num espaço em que nunca
entrou a palavra; as obras de arte são o mais inexpressável de tudo, são existências misteriosas cuja
vida perdura junto com nossa vida mortal”, R. M. RILKE, Cartas, p. 25.
151
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 88
152
“O fato de se exigir pelo menos dois falantes e pelo menos uma troca de turnos permite que se
exclua o monólogo, o sermão, a conferência etc. das conversações.De igual forma, a identidade
temporal é necessária porque na conversação, mesmo que se dê em espaços diversos (no caso da
conversação telefônica), deve ocorrer durante o mesmo tempo.”. Luiz Antônio MARCUSCHI, Da
conversação, p.16.
77
se corrija o excesso da fala e confere um valor específico à palavra mediada
possibilitando um entendimento entre os interlocutores
153
. O silêncio que se
configura como pausa, na teoria da conversação
154
, é o elemento que separa os
enunciados, tornando-os inteligíveis, e cria condições de se avaliar o que está sendo
dito e tecer repostas adequadas
155
. O encontro entre Rūmī e Shams nos possibilita
ver que, somente na confrontação com o outro é que se apercebe do próprio
silêncio que cada um carrega consigo.
Se o sol que ilumina o mundo chegasse mais perto,
O mundo seria consumido.
Fecha tua boca e cerra os olhos a estas coisas,
Para que a vida do mundo não se torne um coração a sangrar.
Não busques mais este perigo, este derramamento de sangue;
Daqui em diante, impõe-se silêncio ‘Sol de Tabriz’.
Ele disse: ‘Tuas palavras não têm fim.
Agora conta toda a tua história desde o princípio.
156
Ao compreendermos o silêncio do outro, aprende-se a ouvir o próprio silêncio
e aprende-se a permanecer em silêncio com o outro. Como afirma Hans Ruin:
Para começar, dou a vocês minhas palavras e vocês me dão o seu
silêncio, e quando vocês retornam para suas palavras, eu lhes dou o
meu silêncio. Nesse sentido, todo encontro sincero entre as pessoas
envolve o presente das palavras e do silêncio. Pois sem este silêncio,
simplesmente não haveria encontro. (...) . Pertencendo à abertura da
153
“Assim como a tomada de turno e as falas simultâneas ou sobrepostas, também as pausas, os
silêncios e as hesitações são organizadores de locais importantes, podendo configurar lugares
relevantes para a transição de um turno a outro.” Luiz Antônio MARCUSCHI, Da conversação, p.18.
“As pausas podem ser vistas em seus diferentes tipos, de acordo com sua posição estrutural
(Levinson, 1983, p. 326). Assim, observa-se que um silêncio após uma pergunta pode ser entendido
não como uma pausa, mas como um prefácio de uma despreferência. O falante corrente pode inclusive
retornar à palavra e inferir uma resposta como negativa de seu parceiro, o que revela que tomou
aquilo como um turno.” Luiz Antônio MARCUSCHI, Da conversação, p.16.
154
“A conversação é a primeira das formas de linguagem a que estamos expostos e provavelmente a
única da qual nunca abdicamos pela vida afora. Em suma, além de matriz para a aquisição da
linguagem, a conversação é o gênero básico da interação humana. Tais observações, além de
sugerirem que a linguagem é de natureza essencialmente dialógica, realçam o princípio fundamental
do caráter par da linguagem.” Luiz Antônio MARCUSCHI, Da conversação, p. 14
155
“Algumas sociedades instituem um silêncio prévio (a conversação) que serve para entrar na
matéria antes de identificar devidamente ao interlocutor estranho... Marca una posição de espera e de
observação ante una situação ambígua na qual os papéis tradicionalmente estabelecidos não acabam
de impor-se”. D. LE BRETON, El silencio, p.19-20
156
Jelaluddin RŪMĪ, Masnavi, p. 23.
78
presença, o discurso é um modo de ser com os outros, potencialmente
e não necessariamente atualizado em comunicação.(...) Além de
constituir a articulação do sentido primordial dado na compreensão, o
discurso caracteriza-se por ‘ouvir e ‘guardar silêncio’. Ouvir é abrir-se
tanto para a voz do outro como para a voz que cada um carrega dentro
de si. É uma escuta que significa, ao mesmo tempo, um
pertencimento, como escreve Heidegger, jogando com a palavra
alemã Zugehörigkeit. Mas por que mencionar a expressão ‘guardar
silêncio’? Enquanto modo de discurso continua Heidegger
, o silêncio
também constitui um modo de dizer. O seu exemplo é alguém que
quer se fazer compreender de maneira mais autêntica precisamente
por guardar silêncio. Este silêncio, significativo, sem dúvida não é o
mesmo que ficar mudo, que estar privado do discurso. É um modo de
configurar sentido sem articulação explícita. Para ser silenciosa, desse
modo, a presença já deve ter algo a dizer.
157
Pode-se assim perceber que o silêncio é uma forma não verbal de
comunicação que possibilita o reconhecimento de uma necessidade de uma visão
mais ampla da linguagem, ou seja, permite que se possa entender a linguagem, não
como a habilidade de produzir e decifrar seqüências de frases, mas também no
modo de se estar num mundo com o outro, na fundação dessa experiência
significativa e na possível articulação das significações dadas. O silêncio, em Rūmī,
passa, assim, a ser uma característica de seu discurso poético, o desvelamento
autêntico da própria condição existencial, um traço ontológico neutro da presença.
157
Hans RUIN,O silêncio da Filosofia”, in Por uma fenomenologia do silêncio, p. 15.
79
2.3 - O ístimo do discurso e do silêncio: quando da palavra se faz silêncio
O silêncio, como apontamos, é uma forma de comunicação, uma modalidade
de significado.
158
. Ele permite uma forma de assimilação e expressão do que há de
incontrolável e misterioso na dita realidade, é expressão do que há por detrás do
que se vê e do que se ouve, do que escapa à conceituação e, no entanto, existe. É
espaço de encontro e reconciliação na busca de um autêntico equilíbrio interior e de
uma verdadeira harmonia com mundo. Mas nem todos os silêncios são positivos: há
o silêncio que pode expressar escuta, mas também indiferença. Júbilo ou angústia;
amor ou ódio, inclusive, pode expressar apenas um estado casual, distraído,
aparentemente sem nenhuma carga comunicativa. O silêncio não possui um único
significado, sua ambígua polissemia lhe permite uma multiplicidade de usos que
devem ser interpretados segundo as circunstancias
159
.
Na verdade, o silêncio nem sequer existe em si mesmo, já que não existe na
natureza o grau zero do som. Portanto, trata-se de uma interpretação da nossa
percepção em contato com a realidade, portanto, não se trata de um ente sem
relação: sempre se mostra na esfera do seu humano como elemento de sua relação
com o mundo e com os outros homens. A polissemia do silêncio é tal qual a da
palavra, pertence ao âmbito de liberdade do humano.
Essa existência relacional do silêncio permite ao este trabalho uma possibilidade
ampla de reflexão sobre a infinita recorrência deste termo na poética de Rūmī.
Trata-se, pois, de um silêncio que restabelece a atmosfera que cura a ferida da
158
“O silêncio é um grande agente comunicador, porque com ele se comunicam estados de ânimo,
sentimentos, paixões, angústias e alegrias, vivências intensamente arraigados no coração.” . F.
TORRALBA, El silencio: un reto educativo, p. 24
159
“Sofrem os místicos a enfermidade da linguagem. (...). Parte de um conteúdo inefável: o que Deus
comunica à alma um conteúdo inefável: «O que Deus comunica à alma, nesta estreita ligação, é
totalmente indizível e não se pode dizer algo que seja como Ele. porque de Deus mesmo não se pode
dizer algo que seja como Ele.”. F. RUIZ. Mistico y Maestro SAN JUAN DE LA CRUZ, p. 26.
80
separação. Ele busca a restauração da unidade perdida e funda um sentimento de
dissolução dos limites, de fusão com o Real.
O silêncio representa a dinâmica do Mistério tremendum et fascinans. Ele insufla
a atração fascinante e também a aterradora da presença do tremendo. Mas tal
enfrentamento deste dois aspectos simboliza a passagem para uma outra realidade
(aniquilação, fanā̉ ) na qual o silêncio é um caminho de iniciação a esta morada
plena (habitação, baqā).
A escuta silenciosa deste silêncio que nasce no mais íntimo do ser convoca uma
recusa para a linguagem comum, reclamando a existência de uma outra presença
que se dá através do místico e o desperta para a verdadeira voz do Real. O silêncio
é não só o átimo que cintila o olho espiritual ao desvelo da Verdade Última, mas
também é o signo do instante de percepção e contemplação deste Mistério, pois, é a
música que exala do coração daquele que ouviu a voz de Deus no receptáculo da
escuta amorosa: o coração. Nesse sentido, o estado silente do místico representa
um aspecto de linguagem como uma forma de caracterizar a realidade inexprimível
do instante de aniquilação do ser e da habitação de todo o mistério
160
.
Da aproximação mística de Rūmī e o Amado nasce sua poesia, feita de palavras
e de silêncios, como apontamento apofático para o Mistério que envolve sua
experiência. Sua palavra não surge como signo de descrição mas sim como sentido
de uma significação dotada de sentido: um sentido habitado além do simples
pensamento conceitual. Trata-se de uma dinâmica incomum ao discurso comum,
mas profundamente pertinente à linguagem mística e à linguagem poética.
O silêncio humano não se expressa na ausência de palavras. Ele também se
expressa através das palavras das quais prescinde. E escrever sobre o silêncio
significa considerar seus matizes tanto variados quanto profundos, presentes nas
160
“É somente através de um certo modo de silêncio qualificado que se pode constatar a presença em
seu modo mais vivo de estar ciente de sua situação, de encontrar-se mais acolhedora e desperta.”.
9
.
Hans RUIN,O silêncio da Filosofia”, in Por uma fenomenologia do silêncio, p. 21.
81
palavras de Rūmī. Contudo, tal presença é atestada como a linguagem que vive no
espaço aberto pelo sentimento superlativo do Real, que pode ser considerado
linguagem porque nomeia as fendas interpretativas do suposto domínio total da
inteligibilidade: cabe ao poema, conservar este silêncio como plenitude e presença.
Em Rūmī, esta linguagem assume uma validade numinosa e ganha significados que
excedem o que é possível dizer.
161
. Este silêncio de epifania não pode ser entendido
numa simples trama de significados convencionais.
162
Entrega-te ao silêncio
E fala sem palavras,
Como fazem os anjos
No domo deste céu.
163
O silêncio, mediando as relações entre linguagem, mundo e pensamento,
resiste à pressão de controle exercida pela urgência da linguagem usual. Essa
mediação revela elementos que verificam a ilusão referencial: o silêncio atua no que
se sente e se vivencia e também no que se relata dessa experiência. Contudo, é
preciso compreender que esta dinâmica possui faces distintas e não se identificam
em plenitude. É como afirma Santiago Kovadloff, ao falar do poeta:
A linguagem de cada poeta não é outra coisa que a versão pessoal dos
conteúdos impostos pelo criador a essa imponderabilidade
intensamente ouvida. A obra de cada poeta remete ao destino
confundido pela presença do que pe essencialmente indiscernível – o
silêncio extremo real – nas mãos laboriosas de seu intérprete. O
poema, pois, constitui a formalização do valor e o alcance atribuídos à
irrupção do indecifrável ou incógnito no marco do que, até esse
momento, só parecia possível.
164
161
“ Poderíamos dizer que estamos diante do abissal, ou seja, diante do sentido que ultrapassa o
significado e que, por isso, só se deixa apreender como pressão, como signo incerto, mas não como
conteúdo nem como símbolo bem perfilado.” Santiago KOVADLOFF, O silêncio Primordial, p. 24
162
“O silêncio não é o fracasso, e sim o acabamento, a culminação da linguagem”. Octavio PAZ, Teatro
de signos, p. 132.
163
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 80.
164
Santiago KOVADLOFF, O silêncio Primordial, p. 30-31.
82
Rūmī alcança em seus poemas o fruto dessa palavra plena que vem de seu
intenso sentimento, do exaurir da conquista apaixonada de seu relato místico. Ele
projeta nas palavras a sugestão de uma presença intangível e fixa em seus versos a
vigora experimentação de uma intimidade que não pode ser apreendida a não ser
como Mistério.
165
Além disso, seria insólito supor que as expressões amorosas do
discurso místico possam ser simplesmente explicadas pelas palavras
166
.
A história pode ser contada até este ponto
mas o que se segue está oculto e não pode ser expresso em palavras.
Mesmo que fales e tentes exprimi-los de cem maneiras diferentes,
é inútil: o mistério não fica mais claro.
167
O poeta jamais dirá o que ouviu: o seu silêncio se prolongará em seus versos
fazendo com que seus leitores aproximem-se desse limiar da própria existência. A
poesia é o espaço em que permite ao homem o alcance da palavra que o identifica
como ser no mundo. E o silêncio é uma condição de significação que indica uma
incompletude constitutiva da linguagem quanto ao sentido.
168
Os poemas representam um esforço de inserção no discurso para acessar o
sentimento inapreensível que se compreende, também, para além dele. Ao se
lançar a este mecanismo, Rūmī opera a distinção entre essas duas realidades e
situa, assim, a fenda sobre a qual a linguagem mística habita. Nela, põem-se por
terra os elementos da linguagem comum em detrimento de uma linguagem alusiva
e dêitica, pois é quando tais palavras não servem como guia para um intelecto
racional que se cala ante ao Real. É quando a presença silenciosa do
165
“A escritura é conjuntura, lugar de convergência. Ponto de encontro entre o arrebatamento que
liberta e a compreensão que organiza: metáfora.” . Santiago KOVADLOFF, O silêncio Primordial, p. 32.
166
“Quem poderá exprimir por palavras o que lhes dá a experimentar? E quem, finalmente, dirá os
desejos que nelas desperta? Decerto, ninguém o pode. (...). Jamais poderão explicar com palavras o
que com palavras não se pode exprimir.” SÃO JOÃO DA CRUZ, Obras Completas, p. 575-576.
167
Jelaluddin RŪMĪ, Masnavi, p. 383.
168
“O silêncio não são as palavras silenciadas que se guardam no segredo, sem dizer. O silêncio
guarda um outro segredo que o movimento das palavras não atinge.”. M. LE BOT, Le silence dans les
mots, p. 12.
83
arrebatamento canta. Em sua proximidade, o coração do amante toca o semblante
do Amado abrindo espaço para um conhecimento imediato: o silêncio passa a ser,
então, essa apreensão imediata de um instante em que se acessa o Real. Este
delicado toque Amoroso traz o desvelamento do que as palavras não dizem e a
alma conhece sem palavras o que depois buscará — sem êxito absoluto — formular
por meio delas.
Sentados no palácio, duas figuras,
são dois seres, uma alma, tu e eu.
Um canto radioso move os pássaros
Quando entramos no jardim, tu e eu.
Os astros já não dançam e contemplam
A lua que formamos, tu e eu!
Enlaçados no amor, sem tu nem eu,
livres de palavras vãs, tu e eu!
Bebam as aves do céu a água doce
De nosso amor, e rimos tu e eu!
169
A linguagem diz sempre o indizível. As palavras não podem calar o que o
silêncio, por meio delas, diz. E nem o silêncio se propõem a dizer o que nelas está
escondido. Ele apenas aponta para aquilo que sempre se nos escapa. É como afirma
São João da Cruz:
Daqui podemos concluir que as maiores comunicações, e as mais
elevadas e sublimes notícias de Deus, que a alma possa ter nesta vida,
nada disso é Deus em sua essência, nada tem a ver com Ele, pois, na
verdade, Deus permanece sempre escondido para a alma.
170
169
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 33.
170
SÃO JOÃO DA CRUZ, Obras completas, p. 594-595.
84
Deus, enquanto realidade, excede todos os nosso esforços de pensar e refletir
pois Deus não é uma realidade verificável.
171
No fundo de tudo que existe, há o
encontro do indivisível do mistério da criação e o mistério de Deus. Rūmī evidencia
em seus poemas que os limites que pertencem ao humano alimentam nossos
balbucios sobre essa realidade inapreensível do Mistério. Eles indicam a
impossibilidade reconhecida de um domínio conceitual sobre Deus. No entanto, é
preciso um cuidado hermenêutico para com a categoria do inapreensível para que
não caiamos na falácia de considerar que tanto o falar quanto o calar sobre Deus
resulte num mesmo estado. Rūmī aponta os muitos sentido que moram no silêncio
do místico: no não-falar de Deus, habita um silêncio vazio. Já no silêncio místico
sobre Deus, valendo-se de linguagens alusivas, metáforas e representações, que
sempre se completam e se anelam, temos o silêncio que fala pois indica a presença.
É um silêncio de oração. Para trabalhar com essa inefabilidade, o discurso místico
assume suas características próprias e lança mão de seus recursos dêiticos.
171
“Este aspecto já expressa muita coisa sobre sua realidade. Deus, o referente ‘real’ (caso deva
existir), não corresponde, porém, a nossas imagens de Deus, porque todas as experiências e imagens
que fazemos de Deus são inadequadas, insuficientes e falhas.”. Edward SCHILLEBEECK, História
humana: Revelação de Deus, p. 104.
85
CAPÍTULO 3: A POESIA DO SILÊNCIO DE RŪMĪ
3.1 - Traduções do silêncio em poesia
“ Já não temo ninguém.
O Amado me acompanha [...].
Talento de orador,
Coragem de guerreiro.
Sou filho do silêncio
Ó mestre da palavra!”
172
Neste capítulo, o trabalho se propõe ao exercício da leitura dos poemas de
Rūmī e a busca por encontrar neles o eco das reflexões que foram sendo colhidas ao
longo da construção deste estudo. Trata-se, sobretudo, de um exercício arrojado,
que apresenta como fundamento uma consciência clara acerca das dificuldades da
interpretação. Para tanto, é importante evidenciar a autonomia do texto poético e a
impossibilidade de se esperar que uma explicação conceitual esgote o conteúdo dos
versos aqui analisados.
173
O texto que aqui se constrói, por entre os versos de Rūmī, pretende ser
compreendido como linguagem mediadora, ou seja, um suporte dessa estrutura
dialogal entre o poema e quem o lê. Neste câmbio — a que se propõe o discurso
metalingüístico — encontra-se a perspectiva de uma fusão harmoniosa entre o texto
literário e o sentido místico que se pode exaurir destes poemas, tomados, agora, de
maneira mais substancial, para que neles sejam acolhidos alguns tópicos
mencionados anteriormente.
172
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 101-102.
173
“A recepção e interpretação da poesia parece implicar uma relação dialogal sui generis.” . Hans –
George GADAMER, Verdade e Método II, p. 580.
86
É importante esclarecer — conforme já fora mencionado e esclarecido, na
parte introdutória deste estudo — que este trabalho faz uso não dos poemas
originais, mas sim de duas traduções — uma em Língua Francesa e a outra em
Língua Inglesa
174
— que foram analisadas e comparadas para que se pudesse, dessa
forma, esboçar o tecido de uma tradução em português. Tais traduções nos privam,
por certo, da harmonia fônica, do arrebatamento icônico da grafia em árabe e
persa, das imagens que surgem dos jogos de palavras, sons e idéias,
provavelmente influenciados pela proximidade com tradição oral, cuja repetição de
versos e os aparatos estilísticos cumprem um papel fundamental para a atividade
de memorização.
Por outro lado, as traduções proporcionam aos leitores que não têm acesso
ao texto original, o contato com autores como Farid ud-Din Attar, Hafiz e Rūmī,
grandes mestres da palavra e do pensamento, que atingem apaixonadamente,
através da força de suas imagens e a beleza encantadora de suas palavras, leitores
de todas as partes, em todas as épocas. A autora Beatriz de Moraes Vieira, em seu
texto sobre Literatura Persa Clássica, afirma sobre a atividade de tradução dos
poemas de tradição persa para a Língua Portuguesa:
No Brasil, os ares da cultura persa clássica se fizeram sentir de modo
mais marcante nos anos 40 e 50, quando diversos autores de renome
no quadro da literatura nacional, como Aurélio Buarque de Hollanda e
Manuel Bandeira, traduziram poetas persas de grande envergadura,
como Saadi, Omar Khayyam, Hafiz
. Encontram-se também citações
diretas a tais autores em obras modernistas, qual a homenagem do
próprio Bandeira em “Gazal em louvor de Hafiz” e a de Cecília Meireles
a Khayyam, no poema “3
º
Motivo da Rosa. Muito provavelmente as
obras persas chegaram ao Brasil mediante as traduções inglesas e
sobretudo francesas, a partir das quais foram traduzidas para o
português. Há que se considerar também o fato de a obra do argentino
Jorge Luis Borges, contemporâneo dos modernistas brasileiros,
apresentar numerosas referências à literatura persa clássica
. Mais
recentemente, nas décadas de 80 e 90 – no seio de uma ampla
174
As obras referidas são, respectivamente: Le Livre de Chams de Tabriz: cent poèmes e Mystical
Poems of Rumi I e II, que constam na bibliografia.
87
tendência de contestação da postura etnocêntrica e imperialista
(mesmo que não intencional) que caracterizou, de maneira geral, os
estudos orientalistas por parte dos ocidentais, que em muitos aspectos
descaracterizaram a fisionomia das obras orientais que traduziram
–,
iniciou-se, ao que tudo indica, um novo influxo de traduções de obras
persas, ainda a partir das línguas européias, mas procurando lançar
obras inéditas no país, ou intentando maior acuidade editorial e
preocupação de cotejar diversas traduções, de diversas origens
.
Apresentando notas explicativas, comentários e estudos introdutórios,
na medida do possível em busca de menos imprecisões e maior
fidelidade (ou menor infidelidade) a intenções originais mais
presumíveis, segundo o contexto filosófico-estético-histórico de
elaboração dos textos, tais edições possibilitam ao leitor brasileiro um
panorama incipiente de uma das mais belas e profícuas produções
poéticas da história literária mundial, até então parcamente conhecidas
entre nós.
175
Neste fragmento, fica visível a crítica que a autora apresenta ao estilo das
traduções para o Português. Tal crítica pode ser basear, no argumento difundido
entre os estudiosos do assunto, como, por exemplo, Ibrahim Gamard, que afirma,
ao falar da poesia de Rūmī:
A popularidade de sua poesia se espalhou no Ocidente por causa da
bonita temática mística do amante e Bem Amado e da alegria espiritual
que envolve este encontro. Essas emanações sofreram algumas
distorções, nas versões inglesas, muitas vezes, em função do não
aprofundamento dos significados das palavras e dos ensinamentos,
promovendo uma minimização, por vezes, deliberada dos versos que
expressavam a profunda piedade muçulmana de Mawlānā.
176
Contudo, é possível se perceber o reconhecimento dos aspectos positivos das
obras de tradução. Uma vez que realizadas com critérios rigorosos, estudo
aprofundado e a sensibilidade cuidadosa de primar não só pelo acesso às imagens
originais, mas também pela fruição estética do texto na língua traduzida,
proporcionam aos leitores um rico contato com o autor traduzido.
175
Beatriz de Moraes VIEIRA, “Sutileza e memória: Um olhar sobre a literatura persa clássica”, in
Itinerários da Memória na Poesia de Manuel Bandeira, p. 102-103.
176
Ibrahim GAMARD, “Introdução”, in Rūmī and Islam: selections from Hs Stories, Poems, and
Discourses, p. XIII.
88
Tais métodos podem ser, por exemplo, observados nas duas traduções em
Língua Portuguesa, utilizadas neste trabalho: a de Marco Lucchesi e a de José Jorge
de Carvalho. Ambos tradutores apresentaram, na parte inicial de suas obras, a
descrição da conduta criteriosa que adotaram diante desta tarefa.
Marco Lucchesi, dotado de um grande interesse no estudo do persa e de um
conhecimento aprofundado do árabe, teve acesso a uma rara edição persa de
Furûzânfarre e com ela pôde tecer comparação, de alguns poemas, com as
traduções para o francês, de Vitray-Meyrovitch; para o italiano, de Alessandro
Bausani; para o alemão de Annemarie Schimmel; para o inglês de Reynold
Nicholson, além da Arberry, Barks e Starr e os quatro volumes de Nevit Ergin. Tudo
isso, permitiu-lhe “alcançar a música dos versos, elipses e anáforas de Rûmî,
sabendo de antemão da perda para nossa língua quanto ao jogo de longas e breves
(que constitui a melodia do verso na língua farsi) e quanto à sua impressionante
capacidade de aglutinação.”
177
. Para complementar seu trabalho, consta, ainda, ao
final do livro, uma série de notas sobre os poemas que oferecem uma gama de
termos místicos, geográficos e históricos,além de recobrar algumas passagens que
sofreram pequenas alterações em sua tradução.
José Jorge de Carvalho, embora faça alusão às “gigantescas distâncias
geográficas, lingüísticas, culturais e de convenções literárias” que o separam de
Rūmī, afirma sua busca por uma fidelidade possível quanto ao espírito dos poemas.
Para tanto, o autor utilizou traduções em alemão, inglês, francês, espanhol e
italiano como as de: Friedrich Rückert, William Hastie, Nicholson, Arberry, Colin
Garbett, Vitary-Meyrovitch, Helminski, Robert Bly, Colemam Barks, John Moyne,
Tajodod e Jean-Claude Carrière, Annemarie Schimmel e Johann Chistoph Bürgel,
177
Marco LUCCHESI, in “Esta Edição”, A sombra do Amado : poemas de Rumi, p. 26.
89
Bausani, Jonathan Star e Sharam Shiva, Ergin, Liebert, James Cowan, Andrrew
Harvey e Nader Khalili.
178
Aliás, a agregação, ora às posições combativas, ora às posições defensivas da
arte de exprimir em outras línguas o conteúdo de um texto literário, pode ser
verificada em um mesmo autor ao longo de sua atividade, como nos apresenta a
autora Raquel Abi-Sâmara, ao analisar os estudos de Gadamer sobre a poesia de
Paul Celan:
Em “Im Scahtten des Nihilismus”, sustenta Gadamer: “Mas, quem sabe
o que é poesia lírica, sabe que as traduções são apenas aproximações
que raramente podem despertar uma idéia do que é dito na língua
original” (GW 9:368). A singularidade musical, a unidade indissociável
de som e sentido num poema não podem, segundo o filósofo, ser
reproduzidas em outro idioma. Acreditar na intraduzibilidade da lírica
pressupõe uma ideologia de base dualista: nela, autor e tradutor estão
em relação de oposição e prevalece, em última instância, a oposição
entre original e cópia, ou seja, o texto de partida é considerado
superior ao texto de chegada
179
.
Mais à frente, em seu texto, a autora mostra que Gadamer muda sua postura
radical e envia uma carta à tradutora de seu livro Wer bin Ich und wer bist Du? para
o português, em que afirma:
Ler os ‘textos’ poéticos na língua materna é como traduzir, é quase
como uma tradução em língua estrangeira. Pois o que acontece é uma
transposição de signos rígidos para um rio fluente de pensamentos e
imagens. (...) Tanto ler com traduzir são interpretações. Ambos
produzem uma nova totalidade textual de som e sentido. (...) Todo
leitor é um semi-tradutor
180
.
Embora a discussão sobre os limites e possibilidades da atividade de tradução
não seja um ponto central do trabalho, configurou-se como necessário tocar, ainda
178
Conforme descreve na parte introdutória de: Jalal ud-Din RŪMĪ, Poemas Místicos: Divan de Shams
de Tabriz, p.42-43.
179
Hans-George, GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p.32.
180
Hans-George, GADAMER. Quem sou eu, quem és tu?, p.32
90
que de maneira sucinta, alguns aspectos relevantes dessa temática, para que se
possa, nestes termos, anunciar a aposta em que está inserida a conduta aqui
adotada: a busca de uma linguagem que habita o poema e traz à tona um olhar
para o interstício entre o mundo sensorial e o mundo imaginal, onde vivem a
mística e a poesia. Lugar de morada da sensível percepção do silêncio do Amado,
que a tudo envolvendo, toca também a palavra e todo o sentido que habita além
dela.
Para Rūmī, a poesia revela o mundo, ao mesmo tempo que cria outro. Em
seus poemas, estejam traduzidos em que língua for, trazem as palavras que cantam
uma harmonia universal e fazem do poema o lugar de um encontro entre a poesia
humana e o silêncio de Deus. Seus versos suscitam poemas unidos na beleza da
forma e no sentido da substância, experiência e fazer poético:
Novamente a violeta curvou-se para junto do lírio, e desabrochou em duas.
Novamente vestida de rubi a rosa impetuosa descerrou o hábito
E novamente seu hábito verde mostrou-se alegremente vindo do outro lado do mundo
Veloz como o vento, inebriada, majestosa e jovial.
O comum cipreste da estação das frutas voltou e consumiu o outono com furor,
E do topo da montanha, destacada, a suave anêmona mostrava sua face.
O jacinto dizia ao jasmim: ‘A Paz esteja sobre você’;
O outro replicava: ‘Sobre você esteja a paz; venha, jovem, vamos às campinas!’
Um Sufi tendo alcançado as boas graças, bate palmas
como sicômoro dançando qual zefir por todos os lados.
O botão oculta a visão de sua face, velada como a das senhoras _
A brisa afaga de lado suas pétalas dizendo: ‘desvele sua face bom amigo!’
O amigo está neste quarto conosco. A água em nossa correnteza;
A lótus em sua elegância. Porque estás sedento e pálido?
A face carregada do inverno partiu, o fenecedor feneceu;
Jasmim de pés ligeiros, longa possa ser sua vida!
O ocupado narciso abre e fecha os olhos; o verdor compreendeu estas palavras e disse:
‘Às suas ordens!’
O cravo disse ao salgueiro: ‘Estava a sua espera’;
O salgueiro respondeu: ‘ Meu catre é tua câmara : bem vindo!’
A maçã disse: ‘ Laranja porque você está enrugada?’
‘Não me escondi por medo de mal olhado’, replicou a laranja.
O pombo-trocaz chegou arrulhando ‘Onde está seu amigo?”
O rouxinol menestrel dirigiu-se para a rosa.
Junto à primavera do mundo existe uma primavera secreta;
Ó saki de face lunar e lábios suaves dá-me vinho!
A lua alteia nas sombras da noite a luz que contém o sol até o meio dia!
Muitas palavras permanecem não ditas, mas já é tarde e inadequado;
91
Tudo o que foi omitido durante a noite
Eu completarei amanhã.
181
Pode-se perceber como Rūmī se vale das imagens, cores, ritmos e visões
para seu exercício de transcendência da linguagem comum e elabora, assim, a
construção de um universo de sentido de sua experiência. Sentido que habita
também no silêncio, por apresentar sua linguagem própria. Ao final deste poema,
Mawlānā não deixa em aberto o sentimento de incompletude, mas anuncia a relação
dialética entre revelação e omissão, pela proximidade com que trabalha as antíteses
“a lua que alteia nas sombras” com “a luz que contém o sol”. Cria, diante da
luminosidade diáfana do dia que ilumina o “desabrochar da violeta” e o “abrir da
“rosa” a presença de “uma primavera secreta” em que as palavras conhecidas se
tornam “inadequadas”
182
.
Contudo, essa “inadequação” da linguagem traz consigo uma provocação
ontológica, uma vez que o homem é inseparável das palavras e com elas tece
identificação, na mesma medida em que, juntos, são criados e finitos. Aqui se pode
aludir à imagem de um fio unido a duas pontas: em uma delas a realidade que as
palavras não expressam e no outro a realidade que só pode ser expressa por
palavras. É sobre este fio, que Mawlānā constrói seus versos:
Silêncio: os exemplos claros
Vão contra nossa regra.
Sem isso, nenhuma regra de vida
Chega a teus ouvidos.
183
181
D. RŪMĪ, Le livre de Chams, p. 47 e J. ARBERRY, Mystical Poems I, nº 25, p. 25
182
Sobre esta idéia de inadequação dos contrários, na poesia, esclarece Octávio Paz: “O princípio de
contradição complementária isenta algumas imagens, mas não todas. O mesmo talvez deva se dizer
de outros sistemas lógicos. Ora, o poema não só proclama a coexistência dinâmica e necessária de
seus contrários como sua identidade final. E essa reconciliação, que não implica redução nem
transmutação da singularidade de cada termo, é um muro que até agora o pensamento ocidental se
recusou a saltar ou a perfurar.”. Octávio PAZ, O arco e a lira, p. 123.
183
D. RUMI, Le livre de Chams p. 53 e Mystical Poems II, nº 299, p. 76.
92
A “regra da vida” que chega a nossos ouvidos é feita pelas palavras que
indicam e designam, por sua função nominal, e representam, por seus signos e
símbolos. A palavra é a realidade humana ou pelo menos o relato dessa realidade.
Mas Rūmī, mesmo atestando a linguagem como uma condição de existência do
homem, parece também anunciar a limitação desta mesma linguagem e sua
realidade última que se nos escapa. A distância entre as palavras e a Realidade para
além dela — que cria a possibilidade metafórica através da qual os vocábulos se
ampliam e se ressemantizam — é conseqüência do distanciamento humano de sua
União Original, ou, nas palavras de Rūmī, “o lamento da flauta”.
93
3.2 Silêncios e sentidos nos versos de Rūmī
É natural que ao se mencionar a palavra “silêncio”, antes mesmo de explorar
a semântica do termo, sob as luzes da Linguagem Mística, toca-se numa espécie de
sentido geral do vocábulo: uma circunstância de silêncio externo, em que há
supressão de palavras. Um risco que se corre, ao buscar vários sentidos no
silêncio poético de Rūmī, é o de desconsiderar a existência de um silêncio que
existe em situações cotidianas, em meio a linguagem prosaica, ou nas palavras de
Rūmī, em “todas as tuas histórias e palavras vãs”
184
. Nem todo silêncio contém uma
hiperliteralidade: existem momentos de um silêncio casual, que não buscam
expressar nenhuma intencionalidade. Silêncios de proposta terapêutica ou silêncios
que encaminhem para um estágio de silenciamento interior. Embora este “Silêncio
Exterior”, por assim dizer, não seja objetivo das considerações deste capítulo, é
preciso mencioná-lo, até mesmo para que se possa conceituar de forma elucidativa,
a quais tipos de silêncio Rūmī se refere em seus poemas.
Um estágio que o silêncio se apresenta em Rūmī, pode ser identificado como
um silêncio interior, o que se poderia chamar de “Silêncio de Si”:
Esquece o mundo e comanda o mundo.
Sê a lâmpada, o barco salva-vidas,
A escada.
Sai de tua casa e, como pastor,
Ajuda a curar a alma do teu próximo.
Entra no fogo espiritual
E deixa-te calcinar
(...)
Silêncio!
E depois, mais silêncio.
Não uses a boca para falar
A boca é para provar dessa doçura
185
.
184
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 153.
185
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 89.
94
Este silenciar a boca, não presume para Rūmī apenas o cessar de uma
linguagem externa, mas também um calar das vozes interiores. Um silêncio que
representa um distanciamento, um desapego dos desejos. Místicos que vivenciaram
a experiência intensa do arrebatamento do encontro com o Real, assim como Rūmī,
relatam do estágio de aniquilamento, do esvaziamento de todas as atividades de
sua alma para que nela habite plenamente o suspiro amoroso do Amado.
Finalmente partiste para o invisível.
Estranho rumo seguiste para deixar o mundo.
A força de tuas asas rompeu a gaiola,
Ganhaste os ares e voaste para o mundo da alma.
(...)
Silêncio.
Liberta-te da dor da fala.
Não durmas, agora que encontraste o abrigo
Junto ao amigo querido.
186
Rūmī, nestes versos alusivos, nos permite contemplar a busca da alma
mística e “a força de suas asas” que, aniquilada de si, “rompe a gaiola”, para se
fazer um com Deus, “no mundo da alma”. A fala, representada pela sonância dos
apegos e desejos, se constitui em dor. Aniquilada pelo Silêncio da plenitude,
transforma a linguagem em “abrigo junto ao Amigo querido”.
Quando os lábios se calam,
O coração fala uma centena de línguas
187
.
O Silêncio de Si”, prática da mais alta disciplina de um místico promove o
encontro com a liberdade interior, o encontro verdadeiro com a própria identidade
original, e por isso, encontro com o Real:
186
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 166-167.
187
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 101.
95
Descerrei o hábito do amor
Abandonei a palavra.
Mas tu que não tens um corpo nu
Não precisas de um hábito: durma.
188
O Silêncio de Si precede a habitação do Real. A esta “aniquilação”, a
linguagem mística apresenta o termo árabe fanā
189
, que designa a morte do Eu
para a habitação do Tu. Para esta “habitação” temos a presença do termo
baqā
190
.
Os estágios de fanā’ e baqā’ fazem parte do itinerário de iluminação do
místico que busca por sua união com o Amado e sua total identificação com
ele.
191
. Sobre os estágios de fanā’ e baqā’, afirma Virginia Del re McWeeny:
Só a morte da alma concupiscente, nafs, conduz à estrada da
iluminação, aos estados em que se comunicam diretamente com o Tu
Absoluto, com a Alma Universal. Este estado dos estados, a aniquilação,
é o fanā’, que conhece diversas passagens antes de tocar no vértice
Absoluto, a perda da última consciência, aquela que se faz nada, a
vertigem que precede o estado de baqā’, subsistência da Essência
Divina.
192
Em alguns poemas, Rūmī parece construir uma espécie de “Silêncio de
Renúncia”. Esta renúncia se apresenta através da declaração de retirada da
188
D. RUMI, Le livre de Chams p. 42 e Mystical Poems I, nº 36, p. 34
189
“O conhecimento não pode se dar enquanto o sujeito habitar um ego. O ego empírico é um dos
obstáculos mais sérios que encontra aquele que busca a experiência da visão na realização de si”.
Toshihiko IZUTSU, Unicité de l’Existence et Création Perpétuelle en Mystique Islamique, p.19.
190
“Sempre que Rūmī fala de tesouros ligados à não existência ele emprega o famoso termo clássico
do sufismo ‘aniquilação’ (fanā) que é sempre usado em conjunção com o termo ‘subsistência’ (baqā).
A existência do homem, o ego ou si mesmo - chamem como quiser - deve ser aniquilada para então se
atingir o verdadeiro eu que é sua existência individual, deve tornar-se completamente aniquilado e
obliterado. Então Deus pode novamente dar a ele seu caráter, forma e tudo de positivo que ele
possuía. Entretanto este estado é percebido consciente a atualmente, mas não teoricamente, como
verdade através da realização espiritual de que tudo nele é derivado absolutamente de Deus. Ele nada
mais é que um raio dos atributos manifestos do Tesouro Escondido” W. CHITTICK, The Sufi Path of
Love, p. 179 .
191
“Palavras não podem explicar este mistério, a única coisa possível é que o homem após
experimentar esta admirável aniquilação das qualidades humanas e uma união com o Amado – que,
contudo, não é uma união substancial – pode se tornar tradutor das verdades divinas, já que todo seu
ser torna-se transparente para aqueles mistérios que estão acima dos limites e palavras.” Annemarie
SCHIMMEL, Trumphal Sun, p. 310.
192
Virginia Del re MCWEENY. Persia mystica: poeti sufi dell’età classica,p.50.
96
palavra, seja para evidenciar uma desidentificação com a situação descrita no
poema, ou o próprio desacordo com a proposta de uma fala inadequada diante da
grandeza contemplada naquele momento:
Dentro dessa casa onde sem cessar
Escutam-se os sons dos sinos
Perguntei ao dono
Que tipo de casa era aquela.
Se é a casa da Kaaba,
Por que então vejo ídolos?
E se é um templo de imagens,
Que é então esse clarão de Deus?
Nessa casa existe um tesouro
Que não há em parte nenhuma do universo
Essa casa e seu mestre,
Não são mais do que um gesto e pretexto
Não toques essa casa
Casa que é um talismã
E ao dono não diga
Que, à noite, ele se embriagou.
O âmbar e o almíscar dessa casa
São a poeira e o resíduo
Da porta dessa casa
Os ruídos são todos versos e melodia.
Brevemente, cada indivíduo que encontra
O caminho dessa casa
Será o sultão sobre a Terra
E o Salomão do templo.
Ó tu, o Mestre desse teto,
Uma vez mais persigna tua face
Porque tu face de beleza
É um signo da fortuna.
Eu juro por tua vida,
Para além daquilo que vejo
Essa terra que me fora doada
Não seria mais que fantasia e fábula.
O jardim está totalmente aturdido
Ah, aquelas folhas! Aqueles botões!
Os pássaros estão estupefatos.
Ah! Aqueles grãos, ah, aquelas armadilhas
97
Ele é o Mestre da roda,
Semelhante a Vênus e à Lua
Essa é a casa do amor
Que é sem fronteira e limites.
A alma, qual espelho,
Recebe sua imagem no coração.
À ponta de teus cabelos
O coração penetra como lã nos fios que tecem a trama.
Ao ver José se aproximar
As mulheres lançaram fora suas mãos
Ó tu, o sopro, vem, vem até mim
Porque toda a vida está nesse meio.
A casa toda inteira está embriagada
E ninguém percebe
E toda aquele que entra
Está aqui e está lá.
Embriaga-te, e nada mais,
Não fiques na soleira, entra na casa.
Aquele que se assenta na soleira
Vê todas coisas pela sombra.
Aqueles que são ébrios de Deus
Mesmo misturados são um só
Aqueles que se inebriam de desejo
São de dois ou três tipos.
Entra nas florestas de leões
Na pense nas feridas
Porque ter o pensamento da dor
É um traço das mulheres.
Não existe aqui embaixo nenhum dano
Nada além do bem e do amor
Entretanto, em frente a porta
Existe a tranca da ilusão.
Não toque fogo na floresta
E mantém silêncio, ó coração,
Guarda tua língua
Porque ela é chama
193
.
“Guardar a língua” representa proteger o espaço sagrado que ela poderia
destruir com suas “chamas”. Nestes versos, encontra-se a presença de um silêncio
que se faz necessário para a construção do espaço de distanciamento e proteção.
193
D. RUMI, Le livre de Chams p. 61 e Mystical Poems I, nº 40, p. 37-39.
98
Ao silenciar a língua, apaga-se o reconhecimento de um universo outro que não seja
a habitação do Real. Rompe-se o diálogo com o mundo ilusório e enfatiza a relação
de identificação do místico com a Unidade Inefável e Sublime de Deus:
Silêncio!
As seis direções são raios de sua luz;
E além das direções, é ele que governa!
194
Talvez o maior número de aparições do termo “silêncio”, nos versos de Rūmī,
esteja associado à idéia de um “Silêncio da Unidade.” Trata-se de um silêncio capaz
de exprimir a linguagem anterior à própria linguagem, dissociada,
constitutivamente, entre aquele que fala e aquele que escuta. É o discurso de uma
união para além de qualquer palavra. É a palavra feita no “tempo em que os nomes
não eram, e nenhum sinal da existência havia sido dotado de nome.”
195
:
Eu estava morto, e eis me aqui vivo
Eu estava em lágrimas, sorrindo, eis me aqui.
Chega a felicidade eterna do amor,
Felicidade eterna, eis me aqui.
Meus olhos são saciados
Minha alma cheia de audácia
Tenho o coração intrépido como o do leão,
Vênus ardente, eis me aqui.
(...)
A Lua em todo lugar celebra
Eu te sou. Olha para mim,
E olha em ti: por teu sorriso,
O sorridente jardim: eis me aqui.
Como peça de xadrez, Sois Móvel e silente
E traz em ti toda a palavra
Da torre do Rei do mundo,
Feliz e vitorioso, eis me aqui.
196
194
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 121.
195
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 76.
196
D. RUMI, Le livre de Chams p. 93 e Mystical Poems I, nº 170, p. 142 .
99
Neste poema, pleno da “felicidade eterna do amor”, o místico expressa um
vínculo que não é construído apenas pela linguagem, mas que habita um espaço de
comunicação pelo mistério da união amorosa, que apaga as dissociações entre eu e
tu — “Eu te sou” — e apresenta a unidade, tão plena e íntima quanto silente.
Há, através dos poemas, a presença desse silêncio unitivo, seja como
evocação de um momento “anterior ao faça-se”
197
, o pré-estágio da criação divina,
seja no reencontro, em que este momento é retomado e experienciado como a
realização de toda a busca:
Na noite da criação
enquanto todos dormiam
lá estava eu, desperto:
testemunhei o primeiro instante
e ouvi a primeira história jamais contada.
Fui o primeiro a enredar-me
Nos cabelos do grande imperador.
Girando ao redor do eixo do êxtase,
Entrei em rotação como a roda do céu.
Como descrever isso a ti,
Que foste criado tanto tempo depois?
Fiz companhia àquele amado amigo
E sedento como um cântaro quebrado
Bebi o vinho amargo de sua tirania.
Vivi na sala dos tesouros.
Por que não brilharia como a taça do rei?
Sou o segredo que jaz no fundo do oceano.
por que a bolha não se tornaria mar?
Silêncio!
Ouve apenas tua voz interior.
Recorda o primeiro instante
Estamos além das palavras.
O momento de união com o Amado evoca a comunhão secreta, da qual a fala
se tornaria mácula. Trata-se do segredo que se compartilha apenas na vivência do
197
Rūmī afirma: “Procurai ser melhores que as palavras. Pois o silêncio é anterior ao faça-se.”
Tradução de Marco LUCCHESI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 57.
100
mais sublime e visceral amor. Eis que Rūmī nos apresenta o “Silêncio Secreto do
Amor”:
Quando entro no florido jardim de rosas da união,
Conheço-me, face e pés,
Por tua marca que é meu signo.
Amor, como tu és estranho!
Que par: estranho e maravilhoso,
Como Tu fechaste a minha boca,
Minha palavra voltou a mim
Quando a alma buscou Tabriz
Próxima de Shams,
Ele, minha verdade e minha fé,
Todos os segredos da palavra,
São conhecidos.
198
Através do “Silêncio Secreto do Amor” Rūmī fala da impossibilidade de se
compartilhar com qualquer interlocutor a partilha da mais alta importância e
sacralidade. “Pérola rara” que se deve guardar para si e para o Amado que habita o
coração. Guardar em segredo a experiência da união é alimentar a palavra que se
guarda em silêncio:
De toda parte chega o segredo de Deus:
Eis que todos correm, desconcertados.
Dele, por quem todas as almas estão sedentas,
Chega o grito do aguadeiro.
(...)
Limpa bem teus ouvidos
E recebe essa voz
— o som do céu chega como um sussurro.
(...)
198
D. RUMI, Le livre de Chams p. 243 e Mystical Poems I, nº 199, p. 147 .
101
Silêncio!
Eis que chega o Rei
Para completar o poema.
199
A marca da poesia de Rūmī traz a presença, sobretudo, de um silêncio que
permeia todos os outros a que se pode fazer alusão: trata-se de um “Silêncio
Místico”, compreendido como um silêncio espiritual, uma das etapas pelas quais o
buscador precisa passar em sua experiência do encontro.
Rūmī nos fala desse silêncio, que promove, ao mesmo tempo que a solidão
mundana, a habitação do sentido divino do Real. Ao silenciar as vozes do mundo, as
vozes do eu, põe-se a ouvir a voz de Deus.
Raimundo Lúlio, em sua obra Livro do Amigo e do Amado, traz uma
passagem que ilustra bem a noção de estar só, quando se está na presença do
mundo, e acompanhado, no silêncio dizente do Amado: “Sozinho estava o amigo, à
sombra de uma bela árvore. Passaram uns homens por aquele lugar e lhe
perguntaram por que estava só. E o amigo esclareceu que sozinho ficou, quando os
viu e ouviu, pois até, então estivera na companhia de seu Amado”
200
.
Rūmī traz uma passagem que guarda certa semelhança com esta idéia:
Se tu estás com todos,
Tu estás sem todos,
Quando tu estás sem mim;
E se tu estás sem todos, tu estás com todos,
Quando estás comigo
201
.
199
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 158-159.
200
Raimundo LÚLIO, Livro do Amigo e do Amado, p. 68.
201
D. RÛMÎ, Mathanawî, p. 628.
102
Aqui Mawlānā nos fala da presença sublime do Amado, envolvida de uma paz
interior capaz de silenciar todas as demais presenças para que se deixe habitado,
no coração do místico, apenas o silêncio de plenitude, indicativo da íntima
comunhão com a transcendência. Ao alcançar este nível da linguagem do amor, o
místico se vê abraçado ao “Silêncio Místico”, que passa a lhe acompanhar em todas
as palavras.
Vinde, vinde, o jardim está em flor.
Vinde, vinde, o Amado já chegou!
Vinde, vinde, banhai-vos nesta chuva
Das áureas flechas dos raios de sol.
Sorri de todo infiel solitário.
Chorai o amigo que perdeu o Amado.
O Louco rompeu as cadeias,
Da torre fugiu, está solto.
Que dia é este? O dia do Juízo?
E o Livro das Ações está fechado.
Silêncio, cobri vosso rosto
Ide buscar as uvas doces
202
.
Uma vez identificado com o Real, o coração do místico se torna um espelho
polido em que são refletidas as visões diáfanas de Deus. Nelas, os olhos daquele
que contempla estão abertos pela luminosidade do Real, e são, portanto, capazes
de perceber as teofanias sutis da realidade comum:
Fecha esses olhos que só vêem imperfeições
202
J. RUMI, A sombra do Amado - De Rumi, p. 47.
103
E abre aqueles que sabem contemplar o invisível,
Que não se detêm diante de mesquitas, de ídolos,
Pois os desconhecem por completo.
Silêncio!
É nesse silêncio que surge o tumulto
E faz calar nosso mundo inferior.
Diante desses silêncios, o místico se vê compelido ao desafio de dizer, pela
comunhão da linguagem, sua comunhão com o Indizível. Desafio que produz aquilo
que Michel de Certeau chama de “a frase mística” como “artefato de silêncio”
203
,
que reproduzem o sentido, fundado não só na realidade, mas na apreensão da
realidade. Rūmī nos mostra que a experiência da unidade habita no sentido. A
poesia é uma das formas de reproduzir essa condição plural da vivência e conferir-
lhe uma Unidade. O poema não é só um meio sustentado em si mesmo, mas é
pleno de sentido.
A poesia de Rūmī traduz sua experiência religiosa do Mistério contemplado, em
sua vivência religiosa como muçulmano
204
. Através deste breve estudo, buscamos
analisar a dimensão do silêncio como meio de ruptura com a realidade imediata e
linguagem de uma dimensão superior de contato com a Unidade de Deus. Pode-se
afirmar que o silencio seja uma característica da Linguagem Mística, a fala do
Mistério.
203
M. DE CERTEAU, Le 'Phrases Mystiques' : Diego de Jesús, introducteur de Jean de la Croix, en La
fable mystique, p. 208.
204
“O sétimo nome de Deus é ‘o nome inefável’, que não pode ser pronunciado, a não ser em silêncio
e que não pode ser anunciado a não ser àqueles a quem Deus comunica.” M. DUPUY, Silence, en :
Dictionaire de Spiritualité XIV, Paris, Beauchesne, 1990, 832.
104
CONCLUSÃO
“ Atenta para as sutilezas
que não se dão em palavras.
Compreende o que não se deixa
Capturar pelo entendimento.”
205
Este trabalho representa uma tentativa de explorar o tema da Linguagem
Mística, em Rūmī, utilizando alguns instrumentos teóricos do campo da Linguagem
e do Espaço Literário.
A possibilidade de se tomar o “Silêncio Místico”, presente em vários poemas
de Rūmī , como o elemento que agregaria os recortes dessa reflexão se tornou, a
princípio, encantadora.
Para tanto, fez-se necessária a demarcação cuidadosa tanto dos objetivos
especulados, quanto dos recursos disponibilizados. A proposta trazia desafios,
alguns riscos e o adorável convite para ouvir o canto silencioso do coração amante
desse místico que vivenciou profundamente sua busca pelo Amado Divino.
A pesquisa apresentou, em sua fase inicial, a apresentação destes dados,
bem como informações biográficas e contextuais de Rūmī e sua produção, além de
explicitar os parâmetros metodológicos que seriam adotados ao longo deste estudo.
É importante considerar que este trabalho teve como material de suporte o
texto literário de um místico persa, nascido em 1207. Cada imagem, cada poema,
cada alusão ou metáfora construída por Rūmī evoca diversas possibilidades de
interpretação e significados, que estão perpassados pelo tempo, pela cultura, pela
205
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p.111.
105
língua e uma série de outros fatores que poderíamos aqui mencionar. Tais fatores
poderiam se configurar como grandes obstáculos para a construção de um trabalho
que se fundamentasse em paradigmas da Lingüística ou até mesmo da Teoria
Literária. Não foi este o caso: inserido dentro dos estudos da Linguagem Mística,
esse variado universo de elementos apenas contribuiu para que se reforçasse o
argumento da condição simbólica como umas das principais características dessa
linguagem da experiência.
No primeiro capítulo, o trabalho buscou analisar aspectos da Linguagem
Mística: características, definições e implicações que se tornariam importantes para
todo o estudo.
No segundo, a intenção ficou centrada na possibilidade de se avaliar a
linguagem do silêncio: as várias linguagens e os vários sentidos do silêncio que
puderam ser percebidos na poesia de Rūmī.
Já no terceiro e último capítulo, a proposta se limitou a costurar as duas
avaliações anteriores, reunindo-as e as situando dentro dos poemas de Rūmī.
Ao analisar os seus versos é possível perceber dados que caracterizam a
maneira de anunciação de místicos de diferentes tradições, pois o contato fundante
com a dimensão do Real cria uma peculiaridade reconhecível nos textos produzidos
a partir da experiência do encontro. A presença de figuras como paradoxos,
oxímoros e contrastes, permite aos místicos anunciarem a identidade dos contrários
e recriarem a evocação de uma realidade para além das formas da razão. Desta
maneira, iluminam a insuficiente racionalidade humana diante da contemplação do
Mistério Infinito
206
.
Não existindo sobre a terra e sobre o homem palavra que explique, narre ou
se aproprie dessa Instância Inefável, Rūmī nos mostra o silêncio. Mas não aquele
206
“A via mística é, fundamentalmente, a via paradoxal por excelência: busca a anulação do sujeito
em uma união total, um assoberbamento, sem espaço e tempo, do indivíduo na divindade, e por isso
resulta numa liberdade individual absoluta, nas quais as regras, doutrinas e disputas verbais se tornam
insignificantes.”. Virginia Del re MCWEENY, Persia mystica: poeti sufi dell’età classica, p.24.
106
que nada comunica. Esse não ajudaria para a construção dos quase 40 mil versos
de suas odes poéticas. Rūmī nos fala do silêncio que comunica o espaço da
admiração e o assombro do espírito. O silêncio que comporta a linguagem humana
apenas como uma intérprete de uma linguagem outra. O anúncio que desvenda a
experiência de encontro com a verdade como única, pessoal e por isso
incomunicável.
Rūmī nos mostra que a palavra tem seu valor não só pela beleza harmoniosa
das construções poéticas. A beleza secreta das palavras está naquilo que se
esconde por trás delas. Na liberdade dos objetos por elas apenas assinalados. Na
certeza real de que linguagem tocada pela poesia pode ultrapassar o signo dos
significados relativos de representação para nos conduzir ao espaço belo da
apresentação.
Os poemas de Rūmī apresentam as palavras que María Zambrano chama de
“Palavras não destinadas, como as pombas mais tarde, ao sacrifício da
comunicação, atravessando vazios e lintéis, fronteiras, palavras sem peso de
comunicação alguma nem de notificação. Palavras de comunhão.”
207
É justamente essa palavra que se guarda como substância de um segredo
que é capaz de revelar a maravilhosa harmonia do amor como recurso que
configura sentido à busca do místico.
Para um místico, Deus é amor e objeto de seu amor. O amor é o centro
fundamental da Mística. E pra nos dizer desse amor – inenarrável – Rūmī tece
milhares de versos. Tanto mais inexprimível é este amor, tanto maior as descrições
alusivas que a ele são feitas. A esta experiência de encontro amoroso, Rūmī entrega
seus sentidos e sua vida e permite que sua linguagem seja trespassada por este
rasgo de amor.
207
María Zambrano, Clareiras do bosque, p.86.
107
Esta vertigem da consciência direta da divindade habita a sutil fronteira entre
o inexprimível e a linguagem de comum compreensão. A lucidez da visão mística e
a palavra que já lhe habita o coração.
Enfim, a conclusão a que se pode chegar num trabalho que gira em torno do
silêncio dizente de um poeta e místico não se propõe a ser descritiva ou
metalingüística. Não existe uma formulação imediata e precisa, mas sim,
apontamentos que anunciam que:
Dentro deste mundo há outro mundo
Impermeável às palavras.
Nele, nem a vida teme a morte,
Nem a primavera dá lugar ao outono.
Histórias e lendas surgem dos tetos e paredes,
Até mesmo as rochas e árvores exalam poesia.
Aqui, a coruja se transforma em pavão,
O lobo, em belo pastor.
Para mudar a paisagem
Basta mudar o que sentes;
E se queres passear por esses lugares
Basta expressar desejo.
Fixa o olhar no deserto de espinhos.
- Já é agora um jardim florido!
Vês aquele bloco de pedra no chão?
- Já se move e dele surge a mina de rubis!
Lava tuas mãos e teu rosto
Nas águas deste lugar
Que aqui te preparam um fausto banquete.
Aqui, todo ser gera um anjo:
E quando me vêem subindo aos céus
Os cadáveres retornam à vida.
Decerto viste as árvores crescendo da terra,
Mas quem há de ter visto o nascimento do Paraíso?
Viste também as águas dos mares e rios,
Mas quem há de ter visto nascer
De uma única gota d’água
Uma centúria de guerreiros?
Quem haveria de imaginar essa morada,
Esse céu, esse jardim do paraíso?
Tu, que ouves este poema, traduze-o
Diz a todos o que aprendeste
Sobre este lugar
208
.
208
Jalal ud-Din RUMI, Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz, p. 54-55.
108
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