Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A questão da possibilidade da liberdade na Crítica da Razão Pura:
Uma interpretação de B 560 e B 586
Dissertação de Mestrado
Onorato Jonas Fagherazzi
Porto Alegre, janeiro de 2006.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A questão da possibilidade da liberdade na Crítica da Razão Pura:
Uma interpretação de B 560 e B 586
Onorato Jonas Fagherazzi
Dissertação de Mestrado apresentada como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. João Carlos Brum
Torres
Porto Alegre, janeiro de 2006.
ads:
Aos professores do departamento:
João Carlos, Lia, Sílvia, André
José, Fernando, Paulo, Balthazar,
Alfredo, Denis e Gerson.
Agradecimentos
Ao professor João Carlos Brum Torres, pela
orientação necessária à elaboração deste trabalho dissertativo.
Aos coordenadores do Programa de Pós-graduação em
Filosofia (UFRGS), professores doutores Gerson Louzado,
Sílvia Altmann, Alfredo Storck e Lia Levy, pelo incentivo, pela
compreensão e pelo apoio.
A todos os demais professores do departamento de
Filosofia por tudo o que aprendi, em especial nos cursos sobre
Kant que me foram oportunizados pelos professores João Carlos
Brum Torres, André Nilo Klaudat, José Alexandre Guerzoni,
Sílvia Altmann e Gerson Louzado. Eu sou grato a todos esses
eminentes filósofos!
Ao professor Valério Rohden, pela amizade,pela
estima e pelo profundo testemunho existencial humano.
Aos professores do Centro Federal de Educação de
Bento Gonçalves: colegas de trabalho e realizadores da nobre
arte de educar.
À CAPES, pela bolsa de mestrado que permitiu o
desenvolvimento dessa pesquisa.
À professora Ione pelo amparo teórico gramatical.
À Eliza, pela dedicação ao nosso programa de pós-graduação.
À UFRGS, pelo apoio institucional.
“Posso não obstante, pensar a liberdade”.
Kant.
6
PARTE SUPERIOR RESUMO
É inegável que as passagens B 560 e B 586 da Crítica da Razão
Pura sejam paradoxais. Isso porque, embora Kant tenha afirmado haver
uma possibilidade da liberdade na solução da terceira antinomia (B 560),
de forma aparentemente contraditória a esse resultado, alega, numa pas-
sagem da nona seção do segundo capítulo do segundo livro da dialética
transcendental, sequer ter tido o problema de demonstrar a possibilidade
daquele conceito. Esse problema, correlato à dificuldade de compatibili-
zar-se aquelas passagens, é a causa motriz do engendramento deste
texto dissertativo. Logo, por meio dele, busca-se explicar por que razão
tais passagens não são contraditórias. Não o são, porque a acepção do
termo “possibilidade” nelas empregadas é ambígua, ou seja, possui mais
de um significado. Como veremos, distinguindo o significado dos concei-
tos de possibilidade aí envolvidos, pode-se defender uma possibilidade
lógica da idéia transcendental da liberdade enquanto númeno. Mas seria
tal possibilidade lógica do conceito da liberdade transcendental um prin-
cípio regulativo? Que princípio regulativo seria ele? Ao se analisar esse
segundo problema dissertativo, delimitando-se a segunda questão à rela-
ção da possibilidade da liberdade com os princípios regulativos em seu
uso empírico, conclui-se que estes conceitos têm acepções totalmente
distintas. Isso porque, uma vez que eles possuem diferentes funções no
itinerário da razão: enquanto um procura deixar em aberto um espaço
numênico, o outro, abre espaço para o regresso empírico das inferências,
a fim de que a razão especulativa não se atenha indevidamente a um in-
condicionado ilusório.
7
ABSTRACT
It is undeniable that the passages B 560 and B 586 from The
Critique of Pure Reason are paradoxical. That is because, although Kant
has affirmed there being a possibility of freedom on the solution of the
third antinomy (B560), in apparent contradiction to this result, he claims,
on a passage from the ninth section of the second chapter in the second
book of Transcendental Dialect, not even having had the problem of
demonstrating the possibility of that concept. This problem, correlated to
the difficulty of making those passages compatible is the motive for the
engendering of this dissertation. Therefore, this work aims to explain why
the passages mentioned above are not contradictory. They are not, so far
the meaning of the term ‘possibility’ employed on the passages is
ambiguous, that is, it conveys more than one meaning. As we will see, by
distinguishing the meaning of the concepts of possibility there involved, it
is possible to defend a logical possibility of the transcendental idea of
freedom as a noumenon. But would such logical possibility of the
transcendental freedom concept be a regulative principle? Which
regulative principle would it be? By analyzing this second dissertative
problem, delimiting the second question to the relation of the possibility of
freedom with the regulative principles on their empiric use, one concludes
that this concepts have totally distinct meanings. That is because, once
they have different functions on the itinerary of reason: while one seeks to
leave a noumenic space open, the other opens the empiric regress of the
inferences, in order to the speculative reason is not unduly restricted to an
elusive unconditioned.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................... 13
1. DO PROBLEMA DISSERTATIVO .......................................... 15
2. DO MODO COMO A POSSIBILIDADE DA LIBERDADE FOI
EXPOSTA NA SOLUÇÃO DA TERCEIRA ANTINOMIA ............ 20
2.1 Do modo como a terceira antinomia foi introduzida na dialética
transcendental ............................................................................ 21
2.1.1 A ilusão transcendental ..................................................... 22
2.1.2. Do uso lógico da razão pura............................................. 29
2.1.3 Do uso puro da razão ........................................................ 35
2.2 A terceira antinomia.............................................................. 39
2.2.1 Da prova da tese da terceira antinomia conforme Allison
(1995) ............................................................................. 41
2.2.2 Da prova da antítese da terceira antinomia conforme Allison
(1995) ......................................................................................... 49
9
2.3 Da solução da terceira antinomia ......................................... 55
2.3.1 De uma breve distinção dos conceitos fenômenos
(Phaenomena) e númenos (Noumena) em B 294/315 ............... 56
2.3.2 Da solução do terceiro conflito antinômico e suas
conseqüências............................................................................ 62
2.3.2.1 De uma breve distinção das antinomias matemáticas e
dinâmicas ................................................................................... 64
2.3.2.2 Da aplicabilidade do Idealismo Transcendental na solução
da terceira antinomia .................................................................. 67
3. ALGUMAS OBSERVAÇÕES CORRELATAS À POSSIBILIDADE
DA LIBERDADE NAS PASSAGENS B 560 E B 586 NA OBRA DA
CRÍTICA DA RAZÃO PURA....................................................... 71
3.1 Possíveis glosas referentes à solução da terceira antinomia 71
3.2 Em defesa duma possibilidade lógica da liberdade.............. 85
3.2.1 Esclarecimentos a B 586 .................................................. 85
3.3 Algumas considerações referentes ao conceito de liberdade na
solução da terceira antinomia................................................... 106
3.3.1 Da passagem do uso teórico da razão pura ao seu uso prático
conforme a obra crítica da razão prática A 83/ 85.................... 112
3.3.2 As delimitações da liberdade na Crítica da Razão Pura: a
disciplina da razão pura teórica e a liberdade enquanto conceito-
problema................................................................................... 116
3.3.3 Da relação entre a possibilidade lógica da liberdade
transcendental e os princípios regulativos................................ 119
10
CONCLUSÃO........................................................................... 135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................... 139
11
INTRODUÇÃO
Um conceito imprescindível à filosofia prática de Immanuel Kant é
o de “liberdade”. Sem tal conceito não se poderia explicar a capacidade
de o homem agir de forma moral. Isso, porque as ações humanas são
conceitualmente dependentes daquele conceito. Sem ele, conforme os
ensinamentos de Kant na Crítica da Razão Prática, o homem seria com-
pletamente determinado e poder-se-iam prever suas ações tal como um
eclipse lunar. No entanto, o homem, como se sabe, de modo completa-
mente distinto daqueles fenômenos naturais constantes e invariáveis, po-
de fazer opções mediante uma capacidade de escolher. Ele também po-
de agir mediante a representação duma razão prática, fazendo derivar
dela um ato genuinamente moral, sem dependência de inclinações subje-
tivas. Ora, para isso, não seria imprescindível ser ele capaz de uma inde-
pendência de coações externas?
A resposta de Kant não apenas seria afirmativa, mas também
vindicaria que essa acepção de liberdade fosse denominada liberdade
transcendental, não em sentido cosmológico, mas volitivo. É exatamente
12
dessa acepção de liberdade transcendental que a filosofia prática era
dependente. A filosofia prática não apenas era dependente daquele
conceito para poder engendrar tal uso prático da razão pura, mas tam-
bém para poder expô-lo mediante uma articulação sistemática entre as
obras Crítica da Razão Pura (KrV) e Crítica da Razão Prática (KpV). Ora,
se entendermos por tal articulação sistemática uma determinada unidade
interna presente naquelas obras, não seria necessário explicar o elo de
ligação entre as obras de 1787 e 1788? A passagem entre o uso especu-
lativo e prático da mesma razão crítica desenvolveu-se mediante idéias.
Ora, a liberdade, na KrV, é uma idéia. Logo, ela foi importante, em se-
gundo lugar, por ter permitido ao filósofo de Koenigsberg desenvolver o
sistemático elo de ligação daquelas obras.
Não obstante essas mencionadas peculiaridades daquele concei-
to à segunda dimensão da razão pura, ele foi introduzido naquele sistema
crítico mediante um conflito antinômico no seio da dialética transcenden-
tal, na segunda parte da Doutrina Transcendental dos Elementos. Lá, por
meio da necessidade de a razão, enquanto faculdade
(Vernunftvermögen), inferir
1
o incondicionado de todo o condicionado da-
do, é que ela, em decorrência desse magno uso lógico, vindicava as
idéias transcendentais como pretensos objetos, como coisas em si. Uma
dessas idéias transcendentais inferidas dialeticamente pela razão é a da
liberdade.
1
Geralmente, Kant usa o verbo inferir no momento em que faz alusão a razão solapar a to-
talidade de condições. Veja: Kant, Crítica da Razão Pura, 2001, B 366/7.
13
A liberdade transcendental será assim introduzida na primeira
obra crítica por meio de um conflito antinômico. Por antinomia, não se
entende outra coisa que um par de idéias contraditórias da própria razão
pura; e é mediante o terceiro desses conflitos que aquele conceito é inici-
almente apresentado. Assim sendo, ele não foi exposto como uma pres-
suposição filosófica, mas foi apresentado mediante fundamentos da pró-
pria razão pura que, por sua vez, lhe exigiram maiores análises. Nessas
análises conclusivas, referentes às antinomias, é que, por meio da distin-
ção entre as antinomias matemáticas e dinâmicas e o recurso a um idea-
lismo transcendental, o autor aclara a possibilidade daquela causalidade
livre.
Todavia o empenho do filósofo em aí demonstrar ser possivel-
mente verdade a solução da terceira antinomia e as causalidades nela
imbricadas, em especial a da liberdade transcendental, aclaradas me-
diante a passagem B 560, maiores dificuldades surgem caso assumís-
semos essa resolução sem análises mais detalhadas daquele corpus tex-
tual da segunda parte da lógica transcendental. Isso porque, se enten-
dermos que Kant tenha aclarado a possibilidade da liberdade na solução
dessa terceira antinomia, como explicar outra passagem da mesma obra
onde ele declara sequer ter pretendido demonstrar uma possibilidade da
liberdade (B 586)?
Desse modo, é inegável o paradoxo presente nessas duas pas-
sagens da Crítica da Razão Pura. Mas, seriam elas contraditórias? Pode-
ria o filósofo fazer proposições antagônicas em uma mesma obra? Acaso,
14
em proposições com mesmo sujeito e mesmo predicado não se deveria
admitir a verdade de uma e a falsidade da outra? Dada essa situação
problemática, como explicar a relação presente naquelas passagens da
primeira Crítica?
O tema do presente estudo dissertativo é correlato às passagens
de B 560 e B 586. Procuramos através de recursos do próprio sistema
crítico-filosófico de Immanuel Kant, avaliar o problema contido nessas
passagens com o propósito de não só resolvê-lo, mas de expor maiores
esclarecimentos sobre os pontos aí envolvidos. Para tanto, esta disserta-
ção possui três capítulos: no primeiro, busca-se apresentar o conflito pre-
sente nas passagens B 560 e B 586; no segundo, expõe-se um estudo
referente ao modo como foram expostos os fundamentos geradores da
terceira antinomia, seus argumentos e o modo como ela foi solucionada.
Exposta tal solução antinômica demonstrando a possibilidade duma cau-
salidade livre, no terceiro capítulo, discute-se o porquê de ela não ser
hostil a B 586 e as distintas acepções de “possibilidade” nela envolvidas.
Por fim, busca-se analisar a relação entre a possibilidade lógica da liber-
dade e os princípios regulativos.
1. DO PROBLEMA DISSERTATIVO
O conceito de liberdade, na Crítica da Razão Pura, foi exposto como
possivelmente verdadeiro nas seguintes palavras:
(I)
“As proposições da razão <causalidade livre e natural> podem,
ao contrário, no significado desta maneira corrigido, ser ambas
verdadeiras”.
2
Não obstante esses resultados, noutra passagem da mesma obra o
filósofo escreve:
(II)
“De maneira alguma intentamos demonstrar sequer a
possibilidade da liberdade”.
3
2
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 560. (Grifos meus OJF). Aqui e doravante, a Crítica da
Razão Pura será citada de acordo com a paginação da segunda edição daquela obra, seguin-
do as traduções de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger em: KANT, Kant II: Crítica da
Razão Pura, 1987, e de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão em: KANT,
Crítica da Razão Pura. 2001. A Crítica da Razão Prática será citada de acordo com a Tradução
de Valério Rohden em: KANT, Crítica da Razão Prática. 2002. A Fundamentação da Metafísica
dos Costumes será citada de acordo com a Tradução de Paulo Quintela em: KANT, Funda-
mentação da Metafísica dos Costumes. 1960. Aqui e doravante < e > significam acréscimos
necessários para a compreensão de determinadas passagens de acordo com suas respectivas
referências em frases anteriores. O sinal ‘/’ entre diferentes numerações representa a continui-
dade das respectivas páginas de um mesmo texto.
3
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 586.
16
Atentos ao caráter aparentemente contraditório desses textos, po-
de-se pensar que não sejam de uma mesma obra. Observado que assim o
são, vê-se a necessidade de maiores estudos exegéticos para esclarecer
tais obscuridades.
Em primeiro lugar, porque o tema da liberdade, nos limites da razão
especulativa, é objeto de grandes discussões por diferentes intérpretes da-
quelas passagens. Basta lembrar as glosas Strawson (1993) para se obter
um exemplo de um intérprete crítico ao desfecho da terceira antinomia. Por
outro lado, basta citar os comentários de Allison (1983), Beck (1984) e Pa-
ton (1970) para se obter argumentos em defesa da liberdade na conclusão
daquela antinomia.
Em segundo lugar, tais passagens (I) e (II) requerem maiores análi-
ses, porque são aparententemente contraditórias, como é fácil observar.
Essas duas passagens são paradoxais porque, enquanto uma alega haver
possibilidade do conceito da liberdade (I), a outra parece contradizê-lo (II).
Vê-se então que enquanto uma procura, possivelmente, afirmá-lo, a outra
parece estar abandonando-o.
Em terceiro lugar, B 560 é uma passagem que requer maiores estu-
dos porque a acepção de “possibilidade” nela presente pode ser ambígua,
caso seja mal entendida. Isso porque esse conceito não é aí claramente ex-
plicitado por Kant como se referindo à possibilidade lógica da liberdade. Lo-
go, o esclarecimento do sentido não expresso da passagem (I) contribuiria
para a discussão. Por tal razão, faz-se necessário, ao analisar ‘B 560’, o
empenho de não apenas examinar as condições de possibilidade em que se
17
poderia pensar o conceito de liberdade nas fronteiras da Crítica de 1787,
mas também de justificar a acepção de ‘possibilidade’ nela envolvida. O
termo teria aí o significado de algo logicamente pensável e não contraditó-
rio, ou de uma realidade efetiva e objetiva? Em outras palavras: seria aí a-
clarada uma liberdade simplesmente pensável, isolada duma causalidade
natural, ou, ao menos, incompatível com as leis da natureza? É inegável,
assim, que nos encontramos diante duma questão que necessita minuciosa
e atenta análise exegética, tarefa a que se dedica a presente dissertação.
Mas por que expor uma análise que possa contribuir para elucidar a ques-
tão da liberdade contida em (I) e (II)? Buscamos esses esclarecimentos, em
primeiro lugar, porque, embora paradoxais, essas passagens dificilmente
poderiam ser contraditórias ao fazerem parte de uma mesma obra.
Em segundo lugar, justifica-se a necessidade de analisá-las, não
apenas em virtude de pretender-se manter a unidade interna da primeria crí-
tica, mas porque, como se sabe, a Crítica da Razão Pura não foi uma obra
isolada de Immanuel Kant (1724/1804), mas precedente da Crítica da Ra-
zão Prática. Ora, essas duas obras não estão desassociadas, mas arquite-
tonicamente interligadas ao fazerem parte de um mesmo sistema crítico-
filosófico. Sabendo-se que o elo de ligação entre essas duas obras teria si-
do desenvolvido pela relação da razão e de suas idéias, poderia o filósofo
tês-la negado nas fronteiras da primeira crítica?
Por fim, não bastasse a necessidade da idéia da liberdade para se ex-
plicar a passagem presente nas obras de 1787 e de 1788, sem ela não se teria
como explicar a moralidade. A liberdade é um conceito tão importante à filoso-
18
fia prática de Kant a ponto de ter sido declarada “o fecho de abóbada de
to-
do o edifício de um sistema da razão pura”,
4
na medida em que sua reali-
dade objetiva é provada por meio de uma lei da razão prática
5
.
Isso porque, conforme seus ensinamentos, sem ela, “um mecanismo
natural da determinação das causas deveria estender-se absolutamente a
todas as coisas em geral”,
6
o que, sem sombra de dúvidas, comprometeria
seu sistema moral. Esse, de fato, é dependente da liberdade, uma vez que
sua “supressão (...) aniquilaria concomitantemente toda a liberdade práti-
ca”.
7
Isso porque, sem liberdade, não se poderiam explicar os seres huma-
nos como autônomos, responsáveis por seus próprios atos e, muito menos,
como morais.
8
Logo, da liberdade seríamos dependentes caso quiséssemos
explicar a imputabilidade moral.
Uma espécie de liberdade pode-se observar na solução da terceira
antinomia, mas poderia ela ser negada a partir de B 586? Teria, realmente,
o filósofo não deixado em aberto nenhuma possibilidade para o conceito da
liberdade no limite da primeira Crítica?
Observa-se, assim, a riqueza imensurável da solução da terceira an-
tinomia. Em primeiro lugar, por ter introduzido a possibilidade do conceito
problemático da liberdade. Em segundo, porque por meio desse problema,
4
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 4.
5
Conforme: KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 4.
6
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B XXVII.
7
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 562.
Noutras palavras: É pela “liberdade que pode ser designado um mundo inteligível, isto é, o
mundo moral”. KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 844. Exceção feita a B 831. Aqui e dora-
vante, < e >, significa necessárias adaptações do autor mediante construções frasais.
8
Para Kant a moralidade “pressupõe necessariamente a liberdade”. KANT, Crítica da Razão
Pura, 2001, B XXVIII.
19
Kant pôde introduzir a pensabilidade de tal consideração como não incom-
patível com a natureza. Em terceiro, porque, conforme Allison (1995), por
meio desse recurso, Kant pôde confirmar, nos limites da simples razão pura,
um espaço conceitual pelo qual poderia se desenvolver o uso prático da ra-
zão pura.
Contudo, se entendermos a primeira passagem (I) ser realmente
importante ao sistema crítico-filosófico, por ter introduzido o conceito de li-
berdade (ao menos enquanto problema) na grande crítica, não se precisaria
averiguar a forma como isso se tornou possível? Por que ele pôde aclará-la
como possivelmente verdadeira, diferentemente da solução das primeiras
antinomias? Acaso, pelas mesmas razões pelas quais o filósofo negou a
verdade das antinomias anteriores, ele não poderia ter negado também a
presente nesse terceiro conflito? Se a terceira antinomia pôde apresentar
uma possibilidade da liberdade por que tal passagem não é contraditória pa-
ra com B 586?
Desta forma, o objetivo deste trabalho é mostrar a compatibilidade
das expostas passagens (I) e (II), ainda não analisada pelos autores pes-
quisados. Solucionada tal dificuldade, busca-se esclarecer a relação entre a
possibilidade da liberdade e os princípios regulativos. Para o êxito de tais ta-
refas, o principal método será uma atenta análise das obras kantianas de
1787 e 1788 com uma forte base de apoio nos comentários de Allison (1983
e 1995) e o auxílio dos pontos de comum acordo por parte de Beck (1984),
Paton (1970) e Smith (1999).
20
2. DO MODO COMO A POSSIBILIDADE DA LIBERDADE FOI
EXPOSTA NA SOLUÇÃO DA TERCEIRA ANTINOMIA
A fim de melhor analisar a questão da liberdade envolvida nas pas-
sagens (I) e (II), é imprescindível que primeiro se atente aos resultados ob-
tidos na solução da terceira antinomia, uma vez que, nessa passagem da
Crítica da Razão Pura, é que sua possibilidade foi apresentada. Sabe-se
que, por meio da solução daquela antinomia, o filósofo aclarou uma possibi-
lidade da liberdade, o que foi feito mediante a introdução de um conflito de
idéias da razão pura. Por tal motivo, esse capítulo pretende, inicialmente,
demonstrar o modo como a terceira antinomia foi introduzida na dialética
transcendental a partir de um conflito da razão pura (2.1). Expostos os pas-
sos introdutórios da terceira antinomia, a segunda parte exibe os argumen-
tos de sua tese e antítese (2.2). A terceira parte apresenta o idealismo
transcendental como o elemento fundamental da solução da terceira anti-
nomia e o modo como ela foi solucionada (2.3). A quarta, discute possíveis
glosas referentes à sua solução. (2.4).
21
2.1 Do modo como a terceira antinomia foi introduzida na dia-
lética transcendental
A terceira antinomia consiste basicamente, numa confusão de
duas idéias conflitantes a que a razão chega involuntariamente em decor-
rência de sua própria natureza. A primeira idéia, a tese desse conflito, refuta
um total determinismo natural como forma de explicar-se a causalidade dos
fenômenos do mundo em conjunto e admite que, para explicá-los, é neces-
sário ainda admitir uma causalidade mediante a liberdade.
9
A segunda idéia
exposta na antítese, objeta à causalidade mediante a liberdade e defende
uma causalidade exclusivamente natural.
10
Para Kant, antinomia é um conflito da própria razão pura desprovido
de toda e qualquer intuição empírica ao ser desenvolvido unicamente a par-
tir de suas próprias idéias transcendentais. Mas por que a razão chega a
essas idéias?
Como se pode observar na Crítica da Razão Pura (B 398), as anti-
nomias são o estado da razão nas inferências dialéticas em que ela se en-
volve, ao buscar a totalidade absoluta da série de condições para um dado
fenômeno em geral. Tal totalidade incondicionada é reivindicada e inferida
dialeticamente pela razão em decorrência de seu uso lógico e puro. Não
9
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
10
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
22
que o uso lógico da razão seja a única causa dos seus conflitos involuntá-
rios e dialéticos expostos na dialética transcendental, mas é a causa mag-
na e incontestável dessas idéias transcendentais, que buscam uma preten-
sa unidade, para as regras do entendimento. Nas palavras de Kant:
“A razão, ao inferir, procura reduzir a grande multiplicidade do
conhecimento do entendimento ao número mínimo de princí-
pios (condições universais)”.
11
Como se lê acima, a razão infere idéias transcendentais com a fina-
lidade de reduzir os conhecimentos do entendimento por meio de princípios.
As antinomias são idéias transcendentais expostas no percurso do uso puro
da razão, a fim de expor tal síntese incondicionada do condicionado dado.
Essa atividade racional nos é resumidamente apresentada na introdução da
segunda divisão da lógica transcendental, mediante três momentos:
(I) A ilusão transcendental.
(II) O uso lógico da razão.
(III) O uso puro da razão.
Passa-se a analisar cada um desses momentos conceituais introdu-
tórios ao desenvolvimento de tal antinomia no seio da dialética transcenden-
tal.
2.1.1 A ilusão transcendental
É inegável que, para Kant, a razão chega inevitavelmente às anti-
11
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 361.
23
nomias. O problema não é a existência das antinomias, mas justificar por
que a razão chega até elas, explicar no que elas consistiriam, como pode-
riam ser solucionadas e se, sob elas, um caminho permaneceria aberto à
razão:
“As questões que se apresentam face a uma tal dialética da ra-
zão pura são, pois: 1. em que proposições propriamente a ra-
zão pura está inevitavelmente sujeita a uma antinomia; 2. so-
bre que causas repousa tal antinomia; 3. se e de que modo,
todavia, sob essa contradição permanece aberto à razão um
caminho para a certeza”.
12
Mas por que a razão chega às antinomias? Poder-se-ia tão logo de-
senvolver uma resposta aos moldes da maioria dos comentários e, de ime-
diato, passar a desenvolver o uso lógico e puro da razão. Não obstante, es-
se não foi o passo introdutório dado por Kant à questão das antinomias. O
passo introdutório à questão dos conflitos no seio da dialética transcenden-
tal foi a justificação da necessidade de se instaurar um tribunal para des-
mascarar as falsas pretensões decorrentes do uso hiperfísico da razão.
De fato, Kant inicia o texto da introdução da dialética transcendental
alegando haver uma ilusão. Uma ilusão que não é empírica e não é lógica,
mas é transcendental e inerente à própria razão. Por esse motivo, depende
de uma depurada análise crítica que ela não mais nos oculte a verdade: “A
dialética transcendental contentar-se-á, portanto, em descobrir a ilusão dos
juízos transcendentes e, ao mesmo tempo, impedir que ela engane”.
13
A apresentação da ilusão transcendental, do pretenso objeto tomado
constitutivamente como coisa em si, a partir dos paralogismos, das antino-
12
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 449.
24
mias e do ideal transcendental é, portanto, o que abre a dialética transcen-
dental. Embora seja definida e desenvolvida a análise crítica das ilusões
transcendentais da razão pura em tal local da KrV, essa já havia sido anun-
ciada no prefácio da primeira edição daquela obra como uma atividade ne-
cessária a ser desenvolvida:
“É um convite à razão para de novo empreender a mais difícil
de suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da constitui
ção de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas
e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunções
infundadas; e tudo isto, não por decisão arbitrária, mas em
nome de suas leis eternas e imutáveis. Esse tribunal outra coi-
sa não é que a própria Crítica da Razão Pura. Por uma crítica
assim não entendo uma crítica de livros e de sistemas, mas da
faculdade em geral com respeito a todos os conhecimentos a
que pode aspirar independentemente de toda experiência”.
14
Mas por que a razão chega a tais ilusões transcendentais nas anti-
nomias, nos paralogismos e no ideal da razão? Como Kant confessa na a-
bertura da seção intitulada “Apêndice à dialética transcendental”,
15
a própria
razão tem uma propensão natural a ultrapassar o campo da experiência.
Nas palavras de Kant:
“O ponto de partida de todas as tentativas dialéticas da razão
pura não somente confirma o que já provamos na Analítica
Transcendental, a saber, que todas as nossas inferências que
querem conduzir-nos para além do campo da experiência pos-
sível são enganosas e infundadas, mas nos ensina ao mesmo
tempo a peculiaridade de que a razão humana possui uma
propensão natural a ultrapassar esses limites e de que as
idéias transcendentais lhe são exatamente tão naturais quanto
as categorias ao entendimento, se bem que com a diferença
de que, enquanto as últimas levam à verdade, isto é, à con-
cordância de nossos conceitos com o objeto, as primeiras pro-
duzem uma simples, mas irresistível ilusão, cujo engano não
13
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 354.
14
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A XI/XII.
15
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 670.
25
se pode impedir nem através da mais aguda crítica”.
16
Deste modo, entende-se estar na própria natureza racional uma
das primeiras causas do conflito antinômico. A razão chega a esse conflito,
não apenas devido ao seu uso lógico, mas também por sua própria nature-
za. A natureza da própria razão, por si, já é portadora daquele conflito anti-
nômico. Ele não é um conflito quimérico, mas faz parte daquilo a que a ra-
zão chega sem se dar conta, portanto, involuntariamente. Isso, porque a ra-
zão humana possui uma dimensão hiperfísica, ou seja, uma propriedade de
deparar-se não apenas com objetos empíricos, mas também com um pen-
sar deles não correlato e dependente, manifesto por idéias. Essas são as
idéias transcendentais. Totalmente desprovidas de todo e qualquer conteú-
do empírico, elas transcendem o que é sensível de forma totalmente pura e
involuntária. Isso porque, na natureza da própria razão pura, já se encontra
uma propensão de expandir-se ao que não é empírico, mas totalmente puro
e inevitável. Deste modo, ela não pensa apenas nos objetos imanentes,
mas também nos que ultrapassam a totalidade dos limites que se poderia
restringi-la. Tal racionalidade humana ultrapassa livremente o que é ima-
nente de forma natural. A natureza da própria razão é, portanto, uma das
primeiras justificativas das idéias transcendentais. Assim afirma Kant:
“A razão humana, num determinado domínio dos seus conhe-
cimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por
questões, que não pode evitar”.
17
A própria razão pura se defronta com tais questões “pois lhe são im-
16
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 670. (Grifos meus).
26
postas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta,
por ultrapassarem completamente as suas possibilidades”
18
mediante seu
“anseio de alargar os conhecimentos”.
19
Noutras palavras, é propriedade da
natureza da própria razão ter uma ambição de buscar respostas a todas as
perguntas que surgem de seu próprio pensar puro. Ninguém precisa ensiná-
la a ter essas idéias. Ela “eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho
consente a natureza) para condições mais remotas”.
20
Pergunta-se, não
apenas pelas condições de possibilidade de conhecer o que existe, mas, se
alguém a criou, ou se ela sempre existiu; se ela segue leis determinísticas,
ou livres; se existe uma alma, ou uma imortalidade da alma.
Apenas para ilustrar a questão, pergunto: acaso, esses não são, fo-
ram e continuam sendo antiqüíssimos temas de debates? Esses não eram
temas de debate desde a explicação da criação do mundo em sete dias por
Moisés em seu livro do Gênesis, há mais de dez séculos antes de Cristo?
Acaso, estas idéias puras não surgem de nosso pensar e, portanto, de nos-
sa própria razão?
Logo, a razão, de fato, é uma fonte involuntária de tais idéias. Ela é
insatisfeita consigo mesma
21
e seduzida por um impulso de sempre querer ir
além sem ver seus próprios limites.
22
Ela é como a pomba, argumenta Kant
analogicamente, que, embora se apóie no ar da atmosfera para poder voar,
17
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A VII.
18
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A VII.
19
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 8.
20
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A VIII.
21
Para maiores esclarecimentos, veja: BERLANGA, Racionalidad Critica, 1987, p. 119/142.
22
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 8.
27
poderia imaginar-se mais bem sucedida num espaço onde ele fosse inexis-
tente. Contudo, ela não se dá conta que este lhe seja a própria condição
para o exercício de tal habilidade.
23
Do mesmo modo, a razão é seduzida
por uma força da razão mediante a qual não vê limites, mas busca ir mais
além.
24
Todavia, se assim o fizesse, sem nenhuma limitação, tornar-se-ia
dogmática e não crítica.
25
Assim sendo, a própria razão é a responsável de
pensar esses princípios cujo uso jamais se apóia na experiência.
26
Esses
não cessam, mesmo quando tenham sido descobertos, analisados e deno-
minados idéias transcendentais do uso transcendente, ou não. Esses são
conceitos puros inferidos dialeticamente a partir da razão pura e geradores
de ilusões transcendentais, quando tomados como objetos de pretensa uni-
dade incondicionada em decorrência da própria razão humana. Da mesma
forma como “tampouco podemos evitar que o mar pareça mais alto no meio
<do> que na praia”,
27
elas são inevitáveis à própria razão pura. Nas palavras
de Kant:
“A dialética transcendental contentar-se-á, portanto, em desco-
brir a ilusão dos juízos transcendentes e, ao mesmo tempo,
impedir que ela engane. Porém, a dialética transcendental ja-
mais poderá conseguir que tal ilusão desapareça (como a ilu-
são lógica) e cesse de ser uma ilusão. Com efeito, temos a
ver com uma ilusão natural e inevitável que se funda sobre
princípios subjetivos, fazendo-os passar por objetivos; A
dialética lógica, ao invés, ao resolver os raciocínios sofísticos,
tem a ver somente com um erro na aplicação dos princípios ou
com uma ilusão artificiosa na sua imitação. Existe, portanto,
uma dialética natural e inevitável da razão pura; não uma dia-
lética em que um ignorante porventura incorra por falta de co-
23
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 8.
24
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 8.
25
Conforme as lições de Kant expostas na Doutrina Transcendental do Método.
26
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 352.
27
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 354.
28
nhecimento, ou que um sofista qualquer engenhou artificio-
samente para confundir pessoas racionais, mas uma dialética
que é incindivelmente inerente à razão humana e que, mes-
mo depois de termos descoberto seu caráter ilusório, não
cessará de engodá-la e de precipitá-la incessantemente em
momentâneas confusões, que precisarão cada vez ser elimi-
nadas”.
28
Deste modo, embora haja uma ilusão transcendental que “não ces-
sa, embora tenha já sido descoberta e sua nulidade tenha sido claramente
discernida pela crítica transcendental”,
29
essa, não apenas é causada em
decorrência da natureza da própria razão, mas também por causa de seu
uso lógico. A razão não chega às idéias apenas porque elas lhe são invo-
luntárias, mas porque as exige mediante uma função lógica.
“A causa disso <da ilusão transcendental> é que em nossa ra-
zão (considerada subjetivamente como uma faculdade cogniti-
va humana) encontram-se regras fundamentais e máximas do
seu uso, as quais possuem completamente o aspecto de prin-
cípios objetivos e pelos quais acontece que a necessidade
subjetiva de uma certa conexão de nossos conceitos em bene-
fício do entendimento é tomada por uma necessidade objetiva
da determinação das coisas em si mesmas”.
30
Logo, embora Kant mantenha o argumento da natureza da razão
como uma das causas das antinomias até o final daquela obra crítica, ele se
empenhará associá-lo às exigências do uso lógico da razão. Portanto, a ne-
cessidade dos conflitos antinômicos é explicada por Kant não simplesmente
em função da natureza da razão, mas levando em conta também a busca
de uma pretensa unidade para as regras do entendimento a partir de idéias
transcendentais em seu uso transcendente que é decorrente de exigências
28
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 354 / 355. (Grifos meus).
29
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 353.
29
lógicas. Por meio de mais essa justificativa é que Kant sustenta que a ra-
zão “prossegue irresistivelmente a sua marcha”
31
defrontando-se com anti-
nomias.
É
o que melhor se esclarece na próxima seção.
2.1.2. Do uso lógico da razão pura
Introduziu-se esta seção (2.1.2) com base na afirmação de que ha-
veria um uso lógico da razão e que ele seria um dos motivos pelos quais a
razão se envolve em antinomias em virtude de exigências próprias. Mas no
que consistiriam essas exigências?
Para Kant, a razão, um dos principais conceitos presentes em sua fi-
losofia, não é apenas um conceito oposto à imaginação e à percepção sen-
sível e distinto do entendimento.
32
Ela, assim como o entendimento, também
possuiria um uso lógico. Assim como o entendimento, a razão busca unida-
de. Assim como o entendimento buscou unificar o múltiplo dado da sensibi-
lidade, ela também se constituiria numa faculdade. Faculdade essa identifi-
cada com um uso lógico e puro, necessário para “elaborar a matéria da intu-
ição e levá-la à suprema unidade do pensamento”.
33
“Distinguimos a razão do entendimento chamando-lhe a facul-
dade dos princípios. (...) se o entendimento pode ser definido
como a faculdade de unificar os fenômenos mediante regras, a
razão é a faculdade de unificar as regras do entendimento me-
diante princípios”.
34
30
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 353.
31
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 21.
32
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 863.
33
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 355.
34
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 356/359.
30
Assim sendo, enquanto o intelecto é a faculdade de julgar e orde-
nar o múltiplo das intuições dadas pela sensibilidade e por meio de suas
categorias, a razão (Vernunftvermögen) é a faculdade que busca dar unida-
de a esses conceitos puros do entendimento. Para tanto, a faculdade da ra-
zão, mediante seu uso lógico e real, buscaria unificar as regras do entendi-
mento:
“A razão é a faculdade da unidade das regras do entendimento
sob princípios. Portanto, ela jamais se refere imediatamente à
experiência ou a qualquer objeto, mas ao entendimento, para
dar aos seus múltiplos conhecimentos unidade a priori median-
te conceitos, a qual pode denominar-se unidade da razão e é
de natureza completamente diferente da que pode ser produ-
zida pelo entendimento. Esse é o conceito geral da faculdade
da razão”.
35
A razão apresentaria, assim, uma semelhança com o que já se ha-
via exposto na analítica transcendental. Assim como já se havia demonstra-
do que a faculdade do entendimento buscaria sintetizar e ordenar as diver-
sas representações do múltiplo dado em uma certa unidade, a partir de re-
gras a priori denominadas categorias,
36
a fim de que esse múltiplo pudesse
ser unificado, semelhante atividade teria a razão ao buscar reduzir a grande
multiplicidade do conhecimento do entendimento a um número mínimo de
princípios. Nas palavras de Kant:
“A razão, ao inferir, procura reduzir a grande multiplicidade do
conhecimento do entendimento ao número mínimo dos princí-
pios (condições universais), e deste modo produzir a sua su-
35
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 359.
36
“As categorias são conceitos que prescrevem leis a priori aos fenômenos e, portanto, à natu-
reza como conjunto de todos os fenômenos (natura materialiter spectata)”. KANT, Crítica da
Razão Pura, 2001, B 163.
31
prema unidade”.
37
Unidade essa, promovida em decorrência do uso lógico da razão.
Isso porque, a razão silogiza e, por meio dele, ela nos dá inferências. A má-
xima lógica daquela sua atividade de raciocinar é por ela tornada em um
princípio de procurar a totalidade absoluta para o condicionado dado. Kant
introduz este ponto ao dizer:
“A razão exige uma totalidade absoluta para um condicionado
dado do lado das condições (às quais, enquanto unidade sinté-
tica, o entendimento submete todos os fenômenos)”.
38
Deste modo, a razão não se satisfaz apenas com o condicionado
dado. Ela exige que, assim como o condicionado está dado, o incondiciona-
do também seja dado.
“A razão exige essa completude com base no princípio: se o
condicionado é dado, então também é dada a soma total das
condições e, por conseguinte, o absolutamente incondicionado
mediante o qual unicamente era possível aquele condiciona-
do”.
39
A razão não se satisfaz apenas com as condições expostas na ana-
lítica transcendental. Ela exige uma totalidade unificada para todo aquele
condicionado dado. Ela, portanto, é insatisfeita e aspira a uma série comple-
ta de todas as condições. Eis a explanação desse mesmo argumento noutra
passagem da dialética transcendental:
“A razão pura não possui nenhum outro objetivo a não ser o da
totalidade absoluta da síntese do lado das condições (seja de
inerência, de dependência, ou de concorrência), e que com a
absoluta completude do lado do condicionado ela não conse-
37
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 361.
38
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 436.
39
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 436.
32
gue nada. Com efeito, a razão necessita unicamente a pri-
meira totalidade para pressupor a série total das condições e
deste modo fornecê-la a priori ao entendimento”.
40
Deste modo, a fim de buscar a totalidade absoluta para todo condi-
cionado dado é que a razão procura o incondicionado. O incondicionado,
portanto, é a idéia que unificaria o todo do condicionado dado. Isso porque
essa totalidade do condicionado dado não poderia advir
pela experiência, mas só pela própria razão. A razão não teria outro meio de
unificá-lo a não ser pelo que representaria a totalidade daquele condiciona-
do dado: o incondicionado.
O incondicionado é o que a razão motiva procurar em seu uso lógi-
co: “O princípio peculiar da razão em geral (no uso lógico) é: encontrar para
o conhecimento condicionado do entendimento o incondicionado pelo qual é
completa a unidade de tal conhecimento“.
41
Esse será estabelecido pela ra-
zão por meio de idéias transcendentais. Não que elas sejam produzidas por
acaso e nem que elas sejam um resultado do arbítrio, mas faz parte de suas
próprias exigências que se estabeleça o incondicionado, a fim de que se u-
nifique o condicionado dado das categorias da qualidade, da quantidade, da
relação e da modalidade, já expostas na analítica dos conceitos da primeira
Crítica.
Deste modo, enquanto o entendimento está restrito à gama da expe-
riência possível, a razão não apenas exige “levar o entendimento ao com-
pleto acordo consigo próprio, tal como o entendimento submete a conceitos
40
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 393.
33
o diverso da intuição”;
42
mas também, à própria fonte de conceitos inferidos
pela própria razão pura (cf. B 366-367). Isso porque, enquanto faculdade, a
razão relaciona-se não só a tais condições de possibilidade dos objetos,
mas à busca de um incondicionado para todo condicionado dado.
O incondicionado é o que a razão exige e que se encontra além de
toda e qualquer experiência possível, a fim de sintetizar as condições ne-
cessárias do conhecimento como uma das necessidades para que se possa
desenvolver o todo do conhecimento.
43
Em outras palavras, o incondiciona-
do é o que a razão busca
44
além das experiências possíveis e, ao mesmo
tempo, a leva a ultrapassar os limites de todas as experiências dos fenô-
menos
45
para unificar o condicionado dado, “pelo qual é completada a uni-
dade de tal conhecimento”.
46
A razão busca o incondicionado, enquanto unificador de todo condi-
cionado dado, ou seja, do condicionado das categorias do entendimento.
47
E, ao buscar a unidade incondicionada da alma, das condições objetivas do
fenômeno e das condições objetivas dos objetos em geral, depara-se com
uma variedade de idéias transcendentais. Mas o que são idéias transcen-
dentais?
Para Kant, a idéia é “um conceito a partir de noções, que ultrapassa
41
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 364.
42
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 362.
43
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 380.
44
A razão não é passiva. Ela é quem busca a suprema unidade. Para maiores esclarecimen-
tos, veja: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 361 e B 364.
45
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B XX.
46
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 364.
47
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 364.
34
a possibilidade da experiência”.
48
Portanto, esse nome nunca é sinônimo
de representação empírica, mas um conceito racional puro. A representa-
ção da cor roxa, por exemplo, jamais poderá ser denominada de idéia. Isso
porque idéia, para Kant, não possui nenhuma relação com a percepção,
mas unicamente com a necessidade da própria razão enquanto faculdade.
49
Já o pensamento de um unicórnio-odonte seria o exemplo de uma idéia, ao
não possuir nenhuma representação empírica, mas jamais poderia ser con-
siderada transcendental. Transcendentais serão apenas as idéias produzi-
das a priori pela razão, de modo totalmente necessário às suas próprias
leis.
50
Na dialética transcendental assim se lê:
“Entendo por idéia um conceito necessário da razão ao qual
não pode ser dado nos sentidos um objeto que lhe correspon-
da. Os conceitos puros da razão, que agora estamos a consi-
derar, são, pois, idéias transcendentais. São conceitos da ra-
zão pura, porque consideram todo o conhecimento de experi-
ência determinado por uma totalidade absoluta de condições.
Não são forjados arbitrariamente, são dados pela própria natu-
reza da razão, pelo que se relacionam, necessariamente, com
o uso total do entendimento”.
51
Deste modo, vimos até aqui que, assim como o entendimento unifi-
cou as representações do múltiplo dado por meio de conceitos puros, a ra-
zão (Vernunftvermögen) buscará unificar as regras do entendimento (B 359)
por meio de idéias. Para tanto, essa máxima lógica motiva a razão inferir di-
aleticamente um incondicionado. Mas como a razão chegaria a tais concei-
tos da totalidade incondicionada?
48
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 377.
49
Veja: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 384.
50
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 396.
51
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 383/384.
35
Eis que aqui ela se depara com uma diferença entre o uso lógico e
o uso puro. Se no uso lógico a razão procura a condição universal (B 364),
em outras palavras, o incondicionado, é no seu uso puro que ela se torna a
fonte destas idéias. É no uso puro que a razão infere dialeticamente os con-
ceitos necessários ao seu uso lógico. Esses usos estão expostos no primei-
ro e segundo capítulos da dialética transcendental. Analisar-se-á, na próxi-
ma seção, como Kant articulou o uso puro da razão.
2.1.3 Do uso puro da razão
Como se viu, era necessidade da razão obter um incondicionado.
Isso era decorrente do seu uso lógico em procurar o incondicionado de todo
o condicionado. Esse incondicionado seria buscado, não na experiência,
mas por meio de idéias transcendentais. Portanto, embora a indiscutível ba-
se das antinomias realmente seja o uso lógico da razão, há um uso puro
que lhe possibilita inferir dialeticamente o incondicionado. Isso foi observado
por Allison (1995) e pela maioria dos comentaristas, como, por exemplo,
Lebrun (2001).
Deste modo, semelhante à faculdade do entendimento, a faculdade
da razão opera mediante conceitos puros. Conceitos esses, essenciais ao
seu uso lógico. A causa magna da terceira antinomia, de fato, é o uso lógico
da razão. Mas a razão chegaria às antinomias se não tivesse um uso puro?
Certamente não. Logo, o uso puro da razão é um meio necessário pelo qual
se move o argumento das antinomias no seio da dialética transcendental,
36
uma vez que somente o uso lógico da razão não geraria nenhum pretenso
objeto em si mesmo.
Assim sendo, a razão, para chegar aos incondicionados da alma, do
mundo e de Deus e procurar a unidade das condições de possibilidade, re-
correria a princípios. Deste modo, o uso lógico da razão garante seu uso pu-
ro. Do mesmo modo como o entendimento, para unificar o múltiplo da intui-
ção sensível, operou por meio de um uso lógico e puro, a razão para tal pre-
tensão também teria essa dupla dimensão: lógica e pura. Isso porque não
bastaria que a razão almejasse unificar o condicionado dado se ela não ti-
vesse os possíveis elementos necessários para isso. Para tal finalidade, ela
precisaria ter os necessários conceitos puros que são as idéias transcen-
dentais enquanto princípios em um uso que realmente tivesse validade ob-
jetiva. Essas idéias corresponderiam a tantas quantas fossem as espécies
de relações que o entendimento apresenta mediante as categorias. Nas pa-
lavras de Kant:
“Tantas quantas são as espécies de relação que o entendimen-
to se representa mediante as categorias, serão também os
conceitos puros da razão. Portanto, dever-se-á procurar em
primeiro lugar, um incondicionado da síntese categórica em
um sujeito, em segundo lugar, um incondicionado da síntese
hipotética dos membros de uma série e, em terceiro lugar, um
incondicionado da síntese disjuntiva das partes em um siste-
ma”.
52
Assim sendo, as idéias transcendentais estão expostas em três
classes pelas quais se busca uma unidade sintética para todo o condiciona-
52
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 379.
37
do dado. Elas se compõem de três distintos sistemas de idéias: paralógi-
cas, antinômicas e teológicas. Assim se lê na Crítica da Razão Pura:
“Ora, todos os conceitos puros em geral têm a ver com a uni-
dade sintética das representações, e os conceitos da razão pu-
ra (idéias transcendentais), por sua vez, com a unidade sintéti-
ca incondicionada de todas as condições em geral. Conse-
qüentemente, todas as idéias transcendentais podem reduzir–
se a três classes, cuja primeira contém a unidade absoluta (in-
condicionada) do sujeito pensante, a segunda, a unidade ab-
soluta da série de condições do fenômeno, a terceira, a unida-
de absoluta da condição de todos os objetos do pensamento
em geral”.
53
Desse modo, a terceira antinomia faz parte de um sistema de idéias
transcendentais em decorrência de um uso lógico, um uso puro e de sua
própria natureza. Então, não se defende aqui que haja uma única causa pe-
la qual Kant tenha exposto as antinomias. Além de haver tais usos racionais
geradores dos conflitos antinômicos, também há uma dimensão natural de
ela elevar-se a elas, em decorrência de sua própria natureza.
“Tais inferências devem, com respeito ao seu resultado, ser
denominadas antes sofismas que silogismos; se bem que, em
virtude de sua origem, possam trazer o último nome, pois não
foram inventados nem surgiram por acaso, mas se originaram
da natureza da razão”.
54
Como também se observa em B 670, B 697, B 449 e B 825, de fato,
a própria natureza da razão a conduz às idéias que ultrapassam os limites
de toda e qualquer experiência empírica. Por fim, decorrente das três gran-
des causas aclaradas, a razão enquanto faculdade, vê-se inevitavelmente
envolvida em conflitos que necessitam de uma análise crítica. Um deles é o
53
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
54
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 397. (negrito meu).
38
das antinomias, isto é, idéias puras e involuntárias da própria razão, rela-
cionadas, não aos objetos presentes no conjunto de elementos do mundo
natural, mas como uma totalidade das condições.
55
“Algo totalmente diverso ocorre quando aplicamos a razão à
síntese objetiva dos fenômenos, onde ela pensa fazer valer, na
verdade com muita ilusão, o seu princípio da unidade incondi-
cionada, envolve-se depressa em contradições”.
56
Por antinomias cosmológicas entendem-se, assim, os inevitáveis
conflitos antinômicos a que chega a própria razão pura quando considera “a
unidade da série absoluta das condições do fenômeno”.
57
Ela chega até e-
las, como se viu, ao se utilizar seu uso puro, a fim de poder desempenhar
sua função lógica. Por essa razão eleva-se até o incondicionado do mundo,
por exemplo. O incondicionado do mundo, portanto, aqui é entendido como
uma idéia enquanto objeto da cosmologia, ou seja, “a soma total de todas
as aparências”.
58
Portanto, o mundo, aqui, não é um todo fora de nossas re-
presentações e, portanto, não se pode constituir como um objeto legítimo do
conhecimento, mas como um todo numênico reivindicado pela própria razão
como unificador de todas as categorias a elas relacionadas.
59
Deste modo, as antinomias se referem à unificação das categorias
do entendimento e, por essa razão, são simples idéias que não podem ser
55
Conforme Allison (1995), o jargão filosófico totalidade de condições é sinônimo de idéias
cosmológicas. Veja: ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 13.
56
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 433.
57
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 391.
58
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
59
“É um conjunto matemático de todos os fenômenos e a totalidade de sua síntese”, ao passo
que a natureza é o mesmo mundo “considerado como um todo dinâmico” KANT, Crítica da Ra-
zão Pura, 1987, B 446.
39
dadas (por seu conteúdo) na experiência.
60
Para tanto, elas requerem um
incondicionado: “algo como a completude absoluta na série das premissas,
que, conjuntamente, não pressupõe mais nenhuma outra”.
61
Logo, este in-
condicionado é reivindicado pela razão como uma espécie de unificador das
categorias e se expressa por meio de idéias transcendentais (conceitos
cosmológicos)
62
que têm como finalidade fundamentar a síntese absoluta
dos fenômenos e aqui deveriam corresponder aos quatro grupos de catego-
rias: quantidade, qualidade, relação e modo.
63
Dessas quatro categorias
Kant extraiu as quatro antinomias. A primeira trata da finitude ou infinitude
do mundo no tempo e no espaço (B 454 e B 455); a segunda, se existe ou
não uma substância simples no mundo (B 462, B 463); a terceira, se existe
uma causalidade livre ou natural (B 472 e B 473) e a quarta, se existe ou
não um ser necessário como parte ou causa do mundo (B 480 e B 481).
2.2 A terceira antinomia
Conduziu-se, por meio da natureza da razão e de seu uso lógico e
puro, até a terceira antinomia. Esta não passou de um conflito antinômico a
que a razão pura chega, ao buscar o incondicionado de todo o condicionado
60
KANT, Prolegômenos a Toda Metafísica Futura, 1983, §52.
61
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 444.
62
“Dou o nome de conceitos cosmológicos a todas as idéias transcendentais, na medida em
que se referem à totalidade absoluta na síntese dos fenômenos; em parte, devido a essa mes-
ma totalidade incondicionada sobre a qual também assenta o conceito de universo, que não é
ele mesmo senão uma idéia; em parte, porque apenas se referem à síntese dos fenômenos,
síntese empírica”. KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 434.
63
PASCAL, O Pensamento de Kant, 1983, também defende esta idéia.
40
por meio de uma “oposição entre liberdade e determinação plena”.
64
Mas o
que realmente afirma esse terceiro conflito antinômico?
Da mesma forma que a das duas antinomias anteriores, esta tam-
bém foi exposta por meio de um par de teses opostas: uma, afirmando uma
causalidade livre, provada por meio de objeções à antítese. A outra, afir-
mando uma causalidade natural e evidenciada por meio das objeções à te-
se.
Nas palavras do filósofo, eis a tese da terceira antinomia:
“A causalidade segundo leis da natureza não é a única da qual
possam ser derivados os fenômenos (phaenomena) do mundo
em conjunto. Para explicá-los, é necessário admitir ainda uma
causalidade mediante a liberdade”.
65
Já o enunciado da antítese da terceira antinomia é a seguinte:
"Não há liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece me-
ramente segundo leis da natureza”.
66
Como se observa, essas são as duas afirmações que se contra-
põem lado a lado na arena dialética da terceira antinomia. Cada uma delas
é exposta por meio de uma minuciosa análise, a fim de se certificar a vali-
dade de cada tese. Cada uma dessas afirmações exigiu, portanto, um mo-
mento de prova específico. Mas como se desenvolveram tais provas? No
próximo subtítulo, vamos expor a justificação da tese e no posterior, as pro-
vas da antítese de tal antinomia.
64
HÖFFE, Immanuel Kant, 2004, p. 106.
65
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
66
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
41
2.2.1 Da prova da tese da terceira antinomia conforme Allison
(1995)
Como se pode observar na Crítica da Razão Pura, a prova da tese
deste conflito, bem como de sua antítese, desenvolveu-se de forma apagó-
gica, isto é, por meio da demonstração da verdade de uma proposição atra-
vés da comprovação da refutação da tese contrária.
67
Portanto, o observado
momento da prova da tese da terceira antinomia não se desenvolveu medi-
ante a demonstração dos argumentos favoráveis à causalidade natural, mas
a partir da refutação da tese oposta. Deste modo, o momento de prova da
referida tese desenvolveu-se, basicamente, por meio de objeções à causali-
dade livre, à antítese de tal antinomia.
A passagem da prova da tese da terceira antinomia é explicada por
Allison (1995) a partir de sete passos:
1. Admite-se que apenas haja uma causalidade natural.
2. Se há uma causalidade natural, todo evento ocorreu mediante
uma causa.
3. Se todo evento ocorreu mediante uma causa, essa causa sempre
foi anterior ao efeito, num determinado tempo.
4. Se sempre há uma causa anterior no tempo, conseqüentemente,
há uma causa antecedente à causalidade do efeito.
5. Se toda causa pressupõe outra causa, jamais se chegará a uma
primeira causa de toda série, a não ser subalterna,e nunca a um
42
primeiro começo de toda série.
6. Contudo, a própria lei da natureza alega que nada acontece sem
ter uma causa suficientemente determinada a priori.
7. Portanto, quando se toma a ilimitada universalidade, não é possí-
vel salvar-se unicamente a causalidade natural.
Assim sendo, conforme Allison (1995), e o que se pode facilmente
observar na passagem de B 472, o primeiro passo da prova da tese de tal
antinomia é o da presunção da tese a ser objetada: a de uma causalidade
natural. Assim é, portanto, por Kant aclarado o primeiro momento da prova
da tese daquela antinomia:
“Admita-se que não exista nenhuma outra causalidade além
da causalidade segundo leis da natureza”.
68
Contudo, havendo unicamente uma tal causalidade, seguir-se-ia que
“tudo o que acontece pressupõe um estado antecedente, ao qual sucede,
inevitavelmente, segundo uma regra”.
69
Portanto, se admitíssemos que haja
apenas uma tal causalidade natural, tudo seguiria uma causalidade deter-
minada e não haveria nenhuma liberdade no mundo. Tudo seria completa-
mente determinado por eventos naturais.
70
Esse seria o segundo passo.
Admite-se haver apenas uma causalidade natural pela qual toma-se
por certo que todo acontecido ocorre mediante uma determinada causa.
67
Sobre esse ponto, veja também: ZINGANO, Razão e História em Kant, 1988, p. 138.
68
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
69
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
43
Mas, se de todo efeito há uma causa, não se deveria inferir que todo acon-
tecido necessariamente relacionar-se-ia a uma determinada causa anteri-
or? Acaso, do nada algo poderia advir?
71
Explico. Observa-se uma bola de
sinuca em movimento. Por que ela está a se mover? Não se suporia, ao ob-
servar o efeito do movimento duma bola, por mais sutil que seja, ter-se ori-
ginado a partir de um determinado impulso? Nesse caso, o determinado im-
pulso não teria exercido uma determinada força indispensável ao movimen-
to da bola? Caso contrário, ela não teria permanecido em estado de repou-
so? Logo, assim como Newton (1987) expusera em sua obra Princípios Ma-
temáticos,
72
essa determinada bola permaneceria em seu estado de inércia,
caso não recebesse uma determinada energia exterior a ela.
Desse modo, tendo assumido a proposição: todo evento, necessari-
amente, tem uma causa, tem-se também de aceitar, necessariamente, uma
conseqüência. Conseqüência de ter existido não só uma causa anterior ao
efeito, mas que ela tenha ocorrido num determinado tempo anterior ao
mesmo. Acaso, não é verdade ter existido uma causa anterior necessária
ao movimento daquela bola na ordem temporal? Logo, admitindo que ape-
nas haja uma causalidade natural, tem-se que admitir não só a proposição:
70
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
71
Nas palavras de Descartes: “o nada não poderia produzir coisa alguma”. DESCARTES, Me-
ditações, 1996, p. 284.
72
“Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta,
a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças impressas nele”. NEWTON,
Princí-
pios Matemáticos,
1987, p. 162.
44
“tudo o que ocorre tem que possuir uma causa”,
73
mas que ela
necessari
a-
mente teria surgido antes do efeito, numa determinada ordem temporal.
Conforme Allison (1995), esse seria o terceiro passo da prova da referida
tese antinômica. Nas palavras de Kant:
“O próprio estado antecedente tem que ser algo que aconteceu
(veio a ser no tempo, já que precedentemente não era), pois,
se tivesse sido sempre, a sua conseqüência não teria também
surgido pela primeira vez, mas teria sido sempre”.
74
Uma vez que não há nenhuma causa material que, por si, sempre
tenha existido, mas constantemente estaria a depender de outra causa an-
terior, não se inferiria outra coisa a não ser um raciocínio infinito. Isso por-
que, não havendo uma causa que o tenha sido sempre, pressupor-se-ia ou-
tra ainda mais antiga, e assim sucessivamente. Eis o quarto passo do racio-
cínio da prova daquela tese:
“A causalidade da causa pela qual algo acontece é ela mesma
algo acontecido que, segundo as leis da natureza, pressupõe
novamente um estado precedente a sua causalidade; este es-
tado, por sua vez, pressupõe um estado ainda mais antigo, e
assim por diante”.
75
Assim sendo, pressupondo unicamente uma causalidade natural, a
não ser qualquer outra causalidade fora da série, seria a uma infinita cadeia
de causalidades a que se chegaria. Exemplifica-se tal proposição: ao se
pressupor exclusivamente o princípio da causalidade como único meio de
explicar a totalidade das causalidades, não bastaria corroborar que a causa-
lidade do efeito do movimento duma bola de sinuca tenha sido provado pela
73
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 561.
74
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
45
tacada de um determinado jogador. Isso porque, antes do efeito do movi-
mento da bola, certamente teria havido outra causa anterior da causa de
tal movimento. Pressupõe-se que essa causa teria sido uma determinada
pessoa. Mas, para tanto, não se teria também que aduzir que aquela pes-
soa teria seguido uma causa motivacional em dar movimento àquela bola?
Para tanto, não teria ela que ter as necessárias condições físicas de dar
movimento àquela bola? Para ela estar viva não deveria necessariamente
ter sido concebida? Para ser concebida, não deveria ter havido um encontro
de duas pessoas pelo qual uma célula masculina teria fecundado uma célu-
la feminina? Mas, acaso, esse raciocínio não poderia assim sucessivamente
continuar até o infinito? Certamente, seria a resposta de Kant mediante o
raciocínio da assunção de uma única causalidade não livre, mas natural. Is-
so porque, admitindo apenas haver tal causalidade, toda causa pressuporia
outra causa e, portanto, jamais se chegaria a uma primeira causa de toda
a série. Não chegando à primeira causa de uma série, a partir de uma única
causalidade natural, a não ser que ela seja subalterna e inválida, não se de-
veria aclarar francamente um limite de tal causalidade jamais poder obter
uma completude de toda série causal? Esse é o quinto passo desse racio-
cínio:
“Portanto, se tudo acontece segundo simples leis da natureza,
sempre haverá somente um início subalterno e jamais um pri-
meiro início; conseqüentemente, jamais haverá uma completu-
de da série do lado das causas procedentes umas das ou-
tras”.
76
75
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
76
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472/474.
46
Logo, uma vez aceito que de todo efeito deve-se admitir que a
“causalidade da causa”
77
sempre foi um acontecido,
78
esse seria um racio-
cínio que nos levaria a uma infinita série causal. Infinita porque, por meio
dela, jamais se chegaria a um primeiro começo, a não ser que fosse subal-
terno. Ou seja, uma causa causante incausada,
79
pressuposta e não corro-
borada pelos mesmos princípios. Acaso, não foi isso o ocorrido entre filóso-
fos da antigüidade?
80
Ao menos para Kant, seria a resposta afirmativa uma
vez que eles teriam chegado a um “primeiro motor”,
81
exatamente ao busca-
rem a causa precedente de toda a cadeia causal.
Contudo, essa era uma asserção desprovida da realidade empírica.
Era ela um postulado lógico-argumentativo buscado pela própria razão, a
fim de não se contradizer. Postulado esse necessário para alcançar, objeti-
vando responder à pergunta da gênese da série da cadeia causal, seu pri-
meiro começo.
82
Aqui faço minhas as palavras de Smith (1999) ao que Kant
procurava demonstrar neste argumento de difícil compreensão:
“O ponto vital deste argumento sustenta a asserção que o prin-
cípio da causalidade invoca uma causa suficiente para cada
evento, e que tal suficiência não será achada em causas natu-
rais, as quais são em si mesmas derivadas ou condiciona-
das".
83
Não obstante, nas provas da tese da terceira antinomia, Kant objeta
77
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
78
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 472.
79
Na lição de Aristóteles.
80
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 478.
81
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 478.
Para maiores esclarecimentos, veja: ARISTÓTELES, Metafísica, Livro 12, 1069 b 35.
82
Para maiores esclarecimentos, veja: ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una In-
terpretación y Defensa, 1983, p. 471, bem como, BECK, A Commentary on Kant’s Critique of
Practical Reason, 1984, p. 184.
47
a essa pressuposição, porque a própria lei da natureza alega que nada a-
contece sem ter uma causa suficientemente determinada a priori - e esse é
o sexto passo de tal prova. Nas palavras de Kant:
“A lei da natureza consiste precisamente em que nada aconte-
ce sem uma causa suficientemente determinada a priori”.
84
Deste modo, para Kant, assumir que tudo acontece em conformida-
de com as leis da natureza, tal como propõe a tese da antinomia, implicaria
necessariamente assumir uma primeira causa,
85
causada por si mesma, isto
é, precedente dum determinado tempo. Mas, não a encontrando, ao postu-
lar sua existência se cairia em uma petição de princípio,
86
uma contradição
em si mesma. Nas palavras de Kant, esse é o sétimo e último argumento:
“A proposição segundo a qual toda a causalidade que é possí-
vel somente conforme as leis da natureza contradiz a si mes-
ma em sua ilimitada universalidade e, por isso, não pode ser
admitida como a única causalidade”.
87
Assim sendo, ao defender-se apenas a existência de uma causali-
dade natural, essa sempre implicaria necessariamente uma causa anterior
ao efeito, caindo-se numa regressão infinita. Ou seja, uma infinita série cau-
sal que poderia comprometer um sistema de idéias ao não se conseguir
chegar à primeira causa causante de todas as causas. Isto porque o próprio
conceito de causa iria exigir um motivo precedente ao último motivo conce-
83
SMITH, A Commentary to Kant´s “Critique of Pure Reason”, 1999, p. 492.
84
KANT, Crítica da Razão Pura, 1978/79, B 474.
85
Conforme a lição de SMITH, A Commentary to Kant´s “Critique of Pure Reason”, 1999, p.
492.
86
Petição de princípio é a conhecida falácia que “consiste em pressupor, na demonstração, um
equivalente ou sinônimo do que se quer demonstrar”. ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia,
2003, p. 763.
87
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
48
bível, até um número infinito de causalidades como o são os números na-
turais. Assim sendo, ao não se conseguir chegar a uma primeira causa, a
tese não nega a causalidade natural afirmada pela antítese, mas admite que
nem tudo necessariamente segue essa causalidade mecânica. Há de se
admitir a possibilidade de que algo possa não necessariamente seguir uma
causalidade determinística, porque, como se viu, ao perguntar pela causa
da causa, não se chegaria a outro lugar senão a um absurdo. Por conse-
guinte, além da causalidade mecanicista, é necessário admitir, no mínimo, a
possibilidade de uma causalidade livre (liberdade transcendental) não de-
terminada por leis da natureza, mas por uma livre espontaneidade. Nas pa-
lavras de Kant:
“Uma causalidade pela qual algo acontece sem que a causa
disso seja ainda determinada ulteriormente, segundo leis ne-
cessárias por uma outra causa precedente. Isto é, tem que ser
admitida uma espontaneidade absoluta das causas que dê iní-
cio de si a uma série de fenômenos precedentes segundo leis
da natureza; por conseguinte, uma liberdade transcendental,
sem a qual, mesmo no curso da natureza, a série sucessiva
dos fenômenos do lado das causas não é jamais completa”.
88
Em virtude de que, se fosse admitida unicamente uma causalidade
natural, esta se contradiria em decorrência de sua ilimitada universalidade.
89
Portanto, ao final da prova da tese da terceira antinomia conclui-se pela ne-
cessidade da admissão
90
de uma causalidade livre. Causalidade essa, me-
diante a qual fosse possível pensar uma
“faculdade de iniciar por si mesmo um estado cuja causalida-
de, pois, não está por sua vez, segundo a lei da natureza, sob
88
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
89
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
90
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
49
uma outra causa que a determinou quanto ao tempo”.
91
Esse é o significado de uma liberdade a partir de uma idéia trans-
cendental pura que não é outra coisa a não ser uma causalidade espontâ-
nea. Causalidade essa admitida mediante a necessidade de se ter uma pri-
meira causa que “dê início, de si, a uma série de fenômenos precedentes
segundo leis da natureza”,
92
a fim de não se cair em uma petição de princí-
pio, ou em uma contradição em si.
93
Contudo, a terceira antinomia não apenas argumenta em favor de
uma causalidade livre, mas, simultaneamente, duma antítese. Isto porque,
em toda antinomia se pressupõem duas afirmações conflitantes. Logo, ob-
servados os principais passos argumentativos dados por Kant a fim de justi-
ficar a tese da terceira antinomia, eis que se pergunta: como o autor desen-
volveu a ‘prova’ da antítese daquele terceiro conflito antinômico?
2.2.2 Da prova da antítese da terceira antinomia conforme Alli-
son (1995)
De modo análogo ao raciocínio da ‘prova’ da tese do referido confli-
to, o da antítese não toma como ponto de partida a existência de uma cau-
salidade natural. Sua prova é apagógica e, portanto, assume inicialmente a
91
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 561.
92
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
93
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
50
tese oposta a fim de refutá-la.
94
A passagem da prova da antítese da terceira antinomia é resumida
por Allison (1995) a partir de sete passos:
1. Admite-se que haja apenas uma causalidade livre (liberdade
transcendental).
2. Se houvesse uma causalidade livre, poder-se-ia admitir uma força
de começar, em absoluto, uma série de conseqüências a partir de
um estado em estanque.
3. Isso, por sua vez, implica que uma série de ocorrências teria seu
absoluto começo em uma causa espontânea, e que essa causalida-
de em si teria um começo absoluto.
4. Contudo, como se aprendeu na segunda analogia, todo começo
de ação pressupõe uma causa anterior.
5. Para que esse estado possa ser o primeiro de todos, ele necessa-
riamente deveria ser um início dinâmico.
6. Não obstante, a liberdade transcendental é oposta às condições
de unidade da experiência como especificadas na lei da causalidade
e, portanto, nunca pode ser encontrada dentro de qualquer experi-
ência possível.
7. Por conseguinte, a idéia da liberdade não é outra coisa senão um
vazio ente do pensamento e, portanto, não pode haver uma liberda-
de transcendental.
94
ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 19.
51
Eis que se procura explicar cada um desses passos. O primeiro de-
les foi o de supor somente haver uma causalidade livre. Nas palavras do fi-
lósofo:
“Suponde que haja uma liberdade em sentido transcendental
como uma espécie particular de causalidade segundo a qual
pudessem ser produzidos os eventos do mundo”.
95
Deste modo, havendo uma causalidade livre, por meio dela se pode-
ria explicar um primeiro começo de uma série de eventos. Esse segundo
passo assim é expresso: se há liberdade transcendental, há “um poder de
começar absolutamente um estado e, por conseguinte, também uma série
de conseqüências do mesmo”.
96
Contudo, assumindo que haja tal causalidade livre, deverá admitir-
se que não apenas ela seja o início de uma série de ocorrências, mas essa
própria causalidade, por si mesma, deveria ter-se originado do mesmo mo-
do. Esse seria o terceiro passo da prova da antítese. Nas palavras de Kant:
“Em tal caso, terá absolutamente início não somente uma série
mediante essa espontaneidade, mas a determinação dessa
própria espontaneidade para a produção da série, isto é, a
causalidade, de modo que não precede nada pelo qual essa
ação ocorrida seja determinada segundo leis constantes”.
97
De fato, era necessário que, se houvesse uma causalidade livre, ela
mesma se engendrasse. Isto porque, se ela admitisse uma outra causa que
a tivesse gerado, ela perderia seu papel de ser a primeira causa movente
95
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
96
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
97
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
52
de uma série de eventos e deixaria de ser uma liberdade transcendental.
Contudo, Kant contra-argumenta esse terceiro passo alegando, de modo
semelhante ao que já nos havia ensinado na Segunda analogia:
98
“Todo iní-
cio, entretanto, para agir pressupõe um estado da causa ainda não eficien-
te”,
99
ou seja, “todas as mudanças acontecem de acordo com o princípio da
ligação de causa e efeito”.
100
Esse é o quarto passo da referida prova. Por
meio dele, exigir-se-ia que não apenas a liberdade transcendental fosse a-
clarada como o primeiro começo duma série de causas, mas como o primei-
ro começo absoluto de todas as causalidades da referida série.
Portanto, um primeiro início dinâmico seria o quinto passo da prova
da antítese, ou seja, significaria, conforme Allison (1995), um poder de, ao
se admitir uma causalidade transcendental, de iniciar uma série de causali-
dades e de ser também seu próprio começo. Assim se lê na primeira Crítica:
“Um primeiro início dinâmico da ação pressupõe um estado
que não possua absolutamente nenhum nexo causal com o
estado antecedente da mesma causa, ou seja, que de modo
algum resulte desse estado”.
101
Admite-se aqui a liberdade transcendental como um início absoluto
e independente de qualquer outra causa anterior a ela. Contudo, do ponto
de vista de uma causalidade natural, como recém se leu em B 473, tudo o
que aconteceu, necessariamente, exige uma causa anterior pela qual tenha
98
Por analogia entende-se o conjunto das “regras que determinam as relações entre os fenô-
menos num tempo, reduzindo-os assim à unidade necessária da apercepção” (PASCAL, O
Pensamento de Kant, 1983, p. 78). Delas fez parte a segunda analogia, ou seja, uma das re-
gras que determina as relações entre os fenômenos num tempo, exprimindo um princípio no
tempo a partir de uma lei causal. Conforme KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 232.
99
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
100
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 232.
101
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473.
53
se originado, e esta “opor-se-ia à lei causal”.
102
Logo, seria um absurdo e-
xistir algo por si mesmo. Acaso, nos eventos naturais poderia haver um ser
que pudesse existir independente de toda e qualquer causa anterior a ele?
Tomando-se como negativa a resolução dessa questão a partir desse racio-
cínio de Kant, conseqüentemente, a liberdade transcendental é posta em
cheque e opõe-se às leis causais. Esse é o sexto passo.
“Assim, a liberdade transcendental é contrária à lei de causali-
dade; por conseguinte, um encadeamento de estados sucessi-
vos de causas eficientes, segundo o qual não é possível uma
unidade da experiência, que se não encontra pois em qualquer
experiência, é um vazio ser de razão”.
103
Crendo, portanto, realmente ser um absurdo haver um começo es-
pontâneo dum evento natural a partir do nada, não se deveria concluir pela
negação de tal causalidade livre? Isso é o que propõe o sétimo passo da
prova da antítese.
“Não possuímos, portanto, senão a natureza, na qual temos
que procurar a interconexão e a ordem dos eventos no mun-
do”.
104
Deste modo, conclui-se que a causalidade mediante a liberdade é,
“por conseguinte, um vazio ente do pensamento”,
105
uma idéia totalmente
oposta em si mesma, por ser extremamente incoerente com o exposto prin-
cípio da lei da causa e efeito,
106
o que nos leva a admitir como quer B 475
que não possuímos, senão a causalidade da natureza.
102
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 475.
103
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 473 / 475.
104
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 475.
105
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 475.
106
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 232.
54
Constatado que a tese da terceira antinomia começa pressupondo
uma causalidade natural e conclui pela existência de uma causalidade livre
e, de modo oposto, a sua antinomia começa pressupondo que apenas haja
uma causalidade livre e conclui afirmando uma causalidade natural, poder-
se-ia aclarar que correto seria o primeiro ou o segundo raciocínio? Muita
precipitação seria a do leitor se já quisesse optar pela defesa da causalida-
de defendida pela tese, ou pela antítese, sem antes analisar a resolução de
tal conflito antinômico. Isto porque, aqui, elas apenas são expostas como
inevitáveis contradições espontâneas
107
e apagógicas disputando por uma
verdade que ainda não pode ser decidida. Porque, conforme Allison (1995),
ao serem tese e antítese de tal conflito, conseqüências antagônicas e in-
conciliáveis, aqui, nos limites da terceira antinomia, nada se pode concluir
além de um inegável “conflito entre idéias cosmológicas”
108
da própria razão
pura. Isso, uma vez que, nos limites desses conflitos antinômicos, o filóso-
fo, ao invés de chegar à corroboração de que ambas as causalidades pos-
sam ser verdadeiras, apenas constatou uma “falsidade da premissa co-
mum”
109
de ambas as causalidades. Portanto, tanto a causalidade livre como
a natural, aqui na terceira antinomia, apenas puderam ser introduzidas.
110
A
demonstração da possibilidade de ambas, em especial a da liberdade, que
ora se está a analisar, desenvolveu-se mediante a solução de tal conflito.
Era necessário expor a solução de tal conflito, uma vez que a razão
107
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 434.
108
ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 11.
109
ALMEIDA, Liberdade e Moralidade Segundo Kant, 1997. p. 177.
110
ALMEIDA, Liberdade e Moralidade Segundo Kant, 1997. p. 177.
55
não poderia ficar numa discórdia permanente, pois, antes, isso a levaria a
uma eutanásia.
111
Por eutanásia não se entenderia aqui o “ato de propor-
cionar morte sem sofrimento a um doente atingido por afecção incurável
que produz dores intoleráveis”,
112
pois o filósofo não está a escrever sobre
modos de se abreviar a vida de seres humanos, mas sim sobre a questão
da própria razão pura. Logo, o conceito eutanásia deve, aqui, ser entendido
como uma metáfora de Kant, uma vez que a própria razão é que estaria em
questão, ao perder sua utilidade caso não solucionasse aqueles conflitos
contundentes. A resposta àqueles conflitos foi desenvolvida não mediante
um dogmatismo, nem um ceticismo, mas sim por meio de uma “decisão crí-
tica”.
113
É a solução crítica da terceira antinomia, a que iremos nos reportar
na próxima seção.
2.3 Da solução da terceira antinomia
Ao considerar-se, de modo análogo a Allison (1983), que o desfecho
da terceira antinomia está exposto de B 556 até B 565, reconhecemos, co-
mo aquele autor, dois passos essenciais utilizados por Kant na solução da
terceira antinomia, a saber: o idealismo transcendental e a distinção entre
antinomias dinâmicas e matemáticas, cuja análise é decisiva para a solução
111
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 434.
112
HOUAISS, Dicionário da Língua Portuguesa, 2001. (in cd room).
56
daquela antinomia. Não obstante, antes de se analisar o modo como a ter-
ceira antinomia foi solucionada mediante aqueles procedimentos, deve-se
expor, brevemente, a distinção das antinomias matemáticas e dinâmicas,
bem como a distinção de fenômenos e númenos.
2.3.1 De uma breve distinção dos conceitos fenômenos (Phae-
nomena) e númenos (Noumena) em B 294/315
Uma questão preliminar à compreensão da solução da terceira anti-
nomia é a distinção entre os conceitos de fenômenos e númenos. Não que
essa tenha sido uma distinção exposta nos limites da dialética transcenden-
tal, pois ela já havia sido aclarada ao final da analítica transcendental. Em-
bora essa passagem não faça parte do itinerário da dialética transcendental
que estamos a analisar, uma vez que tal distinção é base da solução daque-
la antinomia, é de extrema importância aclarar a distinção desses conceitos.
Portanto, aqui nos é pertinente a seguinte questão: qual é a distinção ele-
mentar que há entre os conceitos de fenômenos e númenos?
Ora, não se tem a pretensão de discutir a referida passagem e os
inúmeros problemas aí envolvidos porque isso não faz parte do âmbito da
presente dissertação. Porém, uma vez que são de grande importância para
a demonstração da possibilidade da liberdade, aqui se expõe o cerne de
tais conceitos. O cerne da distinção entre fenômenos e númenos encontra-
se no terceiro capítulo da analítica transcendental, que se denomina: “Do
113
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 525.
57
princípio da distinção de todos os objetos em geral em fenômenos e nú-
menos”.
114
Tomando tal parte da Crítica da Razão Pura como base, obser-
va-se que, para Kant, fenômeno (Phaenomenon) não é simplemente uma
aparência (Erscheinung), mas uma aparência com consciência. Deste mo-
do, o Phaenomenon não é o que simplesmente está “presente aos senti-
dos”,
115
mas o resultado da submissão de tais objetos da experiência às ca-
tegorias. De fato, as categorias são aplicadas à ‘aparição’ (Ercheinung) dos
objetos sensíveis (B 308), resultando nos objetos empíricos enquanto pen-
samentos.
“No entanto, quando denominamos certos objetos, enquanto
fenômenos <Erscheinungen>, seres dos sentidos (Phaenome-
na), distinguindo a maneira pela qual os intuímos da sua natu-
reza em si, já na nossa mente contrapormos a estes seres
dos sentidos, quer os mesmos objetos, considerados na sua
natureza em si, embora não os intuamos nela, quer outras coi-
sas possíveis, que não são objetos dos nossos sentidos (en-
quanto objetos pensados simplesmente pelo entendimento) e
designamo-los por seres do entendimento (noumena)”.
116
Deste modo, Phaenomenon não é a denominação de certos objetos,
enquanto seres dos sentidos, mas quando deles distinguirmos sua manifes-
tação já na nossa mente. Logo, esse não é o objeto sensível originado pela
faculdade da sensibilidade, mas pela do entendimento (B 306/307). Isso
porque, conforme o exposto por Smith (1999), em seu volumoso trabalho A
Commentary to Kant´s Critique of Pure Reason, fenômenos referem-se à
aparência dos objetos, quando interpretadas pelas categorias.
117
O produto
114
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 294.
115
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 299.
116
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 306. (Grifos meus).
117
SMITH, A Commentary to Kant´s “Critique of Pure Reason”, 1999, p. 83.
58
resultante da sensibilidade sem nenhuma interferência do entendimento é
apenas uma “aparência sem consciência”.
118
Aparência essa, que nos é
dada “como data <dados> para um conhecimento possível
119
antes da uni-
dade realizada pelas condições de possibilidade do conhecimento e que,
unificada pela magna faculdade do conhecimento, resulta nos autênticos fe-
nômenos (Phaenomena). Esses, por possuírem conteúdos da sensibilidade,
contrapõem-se aos objetos que são simplesmente pensados e denomina-
dos de númenos. Os númenos, em oposição aos fenômenos (Phaenome-
na), não são objetos de experiência resultantes da comparação de aparên-
cias pelo entendimento, mas objetos totalmente independentes de toda e
qualquer intuição sensível. Logo, os númenos, conforme B 307, são o que o
entendimento pensa sem nenhuma relação para com nossas intuições. Em
outras palavras, eles não são os objetos provenientes de intuições sensí-
veis, mas encontram-se inevitavelmente vinculados à limitação de nossa
sensibilidade.
120
Assim sendo, conforme B 306, os númenos são os objetos sem intu-
ições empíricas. Eles são os objetos simplesmente pensados, identificam-se
com a coisa em si e denominam-se númenos:
“Se entendermos por númeno uma coisa, na medida em que
não é objeto de nossa intuição sensível, abstraindo do nosso
modo de a intuir, essa coisa é então um númeno”.
121
Por númenos entende-se, portanto, um objeto simplesmente pensa-
118
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B XXVII.
119
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A 237.
120
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 344.
121
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 307.
59
do, desprovido de toda e qualquer referência empírica, o que seria o opos-
to dos fenômenos. Isto é, o que seria simplesmente pensado de modo in-
dependente de toda e qualquer intuição empírica e, portanto, seria um con-
ceito não contraditório, sem nenhuma realidade objetiva, mas incognoscível
e problemático. Nas palavras do autor:
“Chamo problemático a um conceito que não contenha contra-
dição e que, como limitação de conceitos dados, se encadeia
com outros conhecimentos, mas cuja realidade objetiva não
pode ser, de maneira alguma, conhecida. O conceito de um
númeno, isto é, de uma coisa que não deve ser pensada como
objeto dos sentidos, mas como coisa em si (exclusivamente
por um pensamento puro), não é contraditório, pois não se po-
de afirmar que a sensibilidade seja a única forma possível de
intuição. Além disso, este conceito é necessário para não alar-
gar a intuição sensível até às coisas em si e para limitar, por-
tanto, a validade objetiva do conhecimento sensível (pois as
coisas restantes, que a intuição sensível não atinge, chamam-
se ,por isso mesmo, númenos, para indicar que os conheci-
mentos sensíveis não podem estender o seu domínio sobre
tudo o que o pensamento pensa). (...) O conceito de um nú-
meno é, pois, um conceito-limite para cercear a pretensão da
sensibilidade e, portanto, para uso simplesmente negativo”.
122
O númeno é, assim, um conceito-problema. Um conceito que não se
refere a nenhum objeto originado de intuições sensíveis, mas inevitavelmen-
te relacionado a limitar tais dados sensíveis para que não se estendam para
o todo pensável.
123
Portanto, númenos são objetos puros, e podem ser as
próprias categorias do entendimento quando desprovidas de toda represen-
tação empírica. Nesse momento, pode-se apenas pensá-las, mas não co-
nhecê-las. Isso porque elas seriam somente idéias desprovidas de qualquer
intuição empírica e, como já se havia visto no §23 da analítica transcenden-
tal, conceitos sem intuições empíricas são vazios. Nesse sentido é que se
122
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 310/311.
123
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 310/311.
60
constituiria sua acepção negativa.
Deste modo, ao não se ter nenhuma intuição empírica dum deter-
minado objeto, ele será desprovido de todo e qualquer conhecimento objeti-
vo. Portanto, o númeno em sua acepção negativa é o conceito-limite de to-
do nosso conhecimento.
124
Nas palavras de Smith (1999):
Númeno em seu sentido negativo é definido como sendo me-
ramente o que não é um objeto de intuição sensível”.
125
É impossível conhecer os númenos. Isso porque os númenos estão
absolutamente fora de todas as condições de possibilidade do conhecimen-
to. Só podemos pensá-los, mas não conhecê-los. Esse é, portanto, o con-
ceito delimitado à matéria sensível pela nossa capacidade cognitiva. Entre-
tanto, são necessários para que a intuição sensível não seja estendida para
a esfera numênica, onde nada se pode conhecer do ponto de vista teórico.
Contudo, a limitação da validade objetiva do conhecimento sensível
sem possibilitar sua extensão até o domínio daquilo que o intelecto pensa,
pode parecer apenas de utilidade negativa. Mas eis que o conceito de nú-
meno não permanece limitado ao seu sentido negativo porque, ao limitar o
entendimento a apenas referir-se às intuições empíricas, deixa em aberto
um campo à própria razão pura. Embora o conceito de númeno negativo se-
ja problemático ao ser um conceito que limita a sensibilidade (B 310), ao
cercear o entendimento aos princípios empíricos sem mostrar qualquer ou-
124
Grayeff também define númeno negativo dessa maneira por nós apresentada. Para maiores
esclarecimentos, veja: GRAYEFF, Exposição e Interpretação da Filosofia Teórica de Kant,
1951, p. 208.
125
SMITH, A Commentary to Kant´s “Critique of Pure Reason”, 1999, p. 83.
61
tro objeto fora da esfera sensível, serve para engendramento de um espa-
ço vazio.
Nas palavras de Kant:
“Assim, o conceito de objetos puros, simplesmente inteligíveis,
é totalmente destituído de qualquer princípio da sua aplicação,
porque não se pode conceber o modo como deveriam ser da-
dos; e o pensamento problemático que deixa vago um lugar
para eles serve apenas como um espaço vazio, para limitar
os princípios empíricos, sem todavia conter ou mostrar qual-
quer outro objeto de conhecimento fora da esfera destes últi-
mos”.
126
Existe, assim, uma realidade em si simplesmente pensada e não
conhecida, reservada aos objetos que não possuem matéria sensível, mas
se possuírem “um modo particular de intuição, a intelectual”,
127
passam a
denominar-se númenos positivos:
“Se quiséssemos, pois, aplicar as categorias a objetos que não
são considerados fenômenos, teríamos, para tal, que tomar
para fundamento uma outra intuição, diferente da sensível, e o
objeto seria, então, um númeno em sentido positivo”.
128
Por fim, embora se atribua ao conceito de númeno negativo a fun-
ção de conceito-limite (Grenzbegriff) de nossa sensibilidade (B 344), eles
são objetos do nosso pensamento puro (B 343) e, por tal razão, não pode-
mos conhecê-los, mas pensá-los. Há, portanto, dois distintos objetos em
nossa mente: Phaenomena e Noumena. Como veremos, tal distinção foi de
fundamental importância para a resolução da terceira antinomia. Na próxima
seção, procura-se expor os principais passos daquela passagem da Crítica
de 1787 a partir da interpretação de Allison (1995).
126
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A 259/260.
127
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 307.
128
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 308.
62
2.3.2 Da solução do terceiro conflito antinômico e suas conse-
qüências
Conforme já observamos, na solução da terceira antinomia (B
560),
129
Kant afirma serem possivelmente verdadeiras, tanto tese como antí-
tese daquele conflito. Se ambas as asserções podem ser verdadeiras é
porque haveria aí tanto a possibilidade da causalidade livre quanto da cau-
salidade natural. Esse resultado também pode ser observado na seção 53
dos Prolegômenos;
130
contudo, o mais espinhoso é explicar o que permitiu a
Kant poder considerar tese e antítese possivelmente verdadeiras se eram
aparentemente contraditórias.
Conforme Allison (1995), o idealismo transcendental é o principal
argumento da solução da terceira antinomia. Nela, tal idealismo pôde fazer
vigorar uma solução diferente porque ela não era uma antinomia matemáti-
ca como as precedentes, mas dinâmica. Porque ela era dinâmica, nela pô-
de-se admitir uma perspectiva fenomênica e outra fora da série dos mes-
mos, e, ao distinguir suas aplicações, considerar a possível verdade de su-
as tese e antítese, mediante a consideração de domínios de aplicações dis-
tintos viabilizados pela teoria do idealismo transcendental. Mas, o que é es-
se idealismo transcendental? Por idealismo transcendental, aqui não se en-
129
Isso pode ser corroborado em: ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Inter-
pretación y Defensa, 1983, p. 473.
130
Conforme: KANT, Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura, 1984, § 53.
63
tende outra coisa a não ser o que o próprio filósofo define nas seguintes
palavras:
“Compreendo por idealismo transcendental de todos os fenô-
menos a doutrina que os considera, globalmente, simples re-
presentações e não coisas em si e segundo a qual, o tempo e
o espaço são apenas formas sensíveis da nossa intuição, mas
não determinações dadas por si, ou condições dos objetos
considerados como coisas em si”.
131
Assim sendo, o idealismo transcendental é a essência do sistema fi-
losófico exposto por Kant na Crítica da Razão Pura. É a essência de tal filo-
sofia por caracterizá-la e distingui-la de todas as demais. Isso porque, como
se lê na passagem citada, não se pode conhecer outra coisa a não ser as
representações que não podem existir a não ser em nossa própria mente.
132
As representações advêm da experiência e jamais nos são dadas como coi-
sas em si mesmas. Logo, admite-se apenas “a existência da matéria sem
sair da simples consciência de si próprio, nem admitir algo mais do que a
certeza das representações em mim”.
133
Deste modo, admite-se o conheci-
mento empírico do intuído a partir das condições de possibilidade do conhe-
cimento, mas apenas enquanto representações e não enquanto coisas em
si mesmas.
Assim sendo, observadas as distinções entre os fenômenos e os
númenos, o núcleo central do idealismo transcendental, ao serem conceitos
essenciais à solução de tal antinomia, ver-se-á como Kant pôde expor o
desfecho daquele mencionado problema antinômico. O segundo passo a
131
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A 369.
132
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 520.
64
ser reconhecido não é outro senão a distinção entre as antinomias mate-
máticas e dinâmicas.
2.3.2.1 De uma breve distinção das antinomias matemáticas e
dinâmicas
Assim como as categorias foram classificadas em matemáticas e di-
nâmicas na Analítica transcendental, as antinomias, na dialética transcen-
dental, com mesma terminologia são classificadas. São assim denominadas
na “Nota final à solução das idéias matemático-transcendentais e advertên-
cia preliminar com vistas à solução das idéias dinâmico-transcendentais”,
134
porque diferem vultosamente no modo como apresentam a
“razão humana (...) submetida a duas leis contrárias, a saber: a
lei de reduzir todo o condicionado a algo incondicionado e a lei
de considerar toda condição como condicionada por sua
vez”.
135
Ao seguir essas leis de procurar o incondicionado de todo o cond-
cionado, a terceira antinomia é totalmente diversa das anteriores, as ‘mate-
máticas’. As matemáticas faziam menção ao mundo ter ou não ter um início
no tempo, ou limites no espaço (primeira antinomia) e faziam menção ao
mundo ter substâncias compostas de partes simples ou nele não haver ne-
nhuma parte simples (segunda antinomia). Desse modo, suas teses e antí-
133
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A 370.
134
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 556 a B 560.
135
HÖFFE, Immanuel Kant, 2004. p. 105 (mimeo).
65
teses eram matemáticas, visto que apenas faziam menção à “adição ou di-
visão de homogêneos”.
136
Ou seja, a condição e o condicionado dessa sé-
rie eram, “de ponta a ponta, do mesmo gênero”.
137
Ora, em tal série, portan-
to, “o regresso jamais é pensado completamente, ou então, caso isto de-
vesse ocorrer, um membro condicionado em si teria que ser falsamente ad-
mitido como um primeiro e, portanto, como incondicionado”.
138
Assim sendo,
a razão ou “tornava a série muito longa ou muito curta para o entendimento,
de forma que este nunca podia igualar-se à idéia adequada”.
139
Referente a
essa série, conclui-se, portanto, que nelas não se pode encontrar nenhuma
“condição da série dos fenômenos”,
140
uma vez que o “condicionado e suas
condições são homogêneos”,
141
ou seja, constituintes de membros de idênti-
cas séries espaço-temporais e, por tal razão, nelas não se poderiam distin-
guir fenômenos e númenos. Disso se reconhece a falsidade de tais antino-
mias. Nas palavras de Allison (1995): “Ele resolve as duas primeiras
antinomias, ou matemáticas, alegando que nem a tese e nem a antítese são
verdadeiras” .
142
Nas palavras de Kant:
“Este último, <em relação à solução das antinomias
matemáticas> foi anteriormente rejeitado por estar assentado
sobre pressupostos que eram falsos de ambos os lados (...),
pois nestas idéias não pode ser encontrada uma única
condição da série dos fenômenos que também não seja ela
mesma, um fénômeno, como tal, um membro da série”.
143
136
KANT, Prolegômenos a Toda Metafísica Futura, 1984, § 52 C.
137
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 556.
138
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 556.
139
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 557.
140
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 560.
141
ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 23.
142
ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 22.
66
Deste modo, onde nada de heterogêneo pode ser encontrado, uma
vez que todos os seus membros simplesmente são “membros de mesma
série espaço-temporal”,
144
parece “necessário aceitar que esta série tenha
um número finito ou infinito de membros, o que significa que as teses opos-
tas são consideradas como contraditórias”
145
e, portanto, como vimos, admi-
tidas como falsas. Contudo, a solução da terceira antinomia pôde aclarar
sua tese como verdadeira, sem correr o risco de ser objetada por não ter
mantido o mesmo paralelismo com as antinomias anteriores, uma vez que
não é matemática, mas dinâmica. Sua série não está relacionada à soma ou
à divisão do condicionado dado, mas a um condicionado heterogêneo. Nas
palavras de Allison (1983):
“Aqui os elementos podem, porém não necessitam, ser
homogêneos posto que, pelo menos, é concebível que exista
uma causa ou fundamento de um evento que em si mesmo
não seja sensível, i.e., que não seja parte da série dos
fenômenos. Enquanto não sensível, tal causa ou fundamento
haveria de chamar-se inteligível”.
146
Deste modo, uma vez que aqui não mais se encontram elementos
homogêneos, mas sim heterogêneos, ou seja, que “admitem uma condição
dos fenômenos que esteja fora da série dos mesmos, isto é, uma condição
que não é ela mesma um fenômeno, ocorre algo que é de todo diverso do
resultado da antinomia”.
147
É possível admitir-se o sensível e o não sensível
ao mesmo tempo, distinguindo-se seus respectivos níveis recorrendo ao i-
143
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 557 e B 560.
144
ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, 1983, p.473.
145
ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, 1983, p.473.
146
ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, 1983, p.473.
67
dealismo transcendental. Por meio dele, distinguindo-se a tese, de um pon-
to de vista dos númenos, enquanto trata de um pensamento puro e des-
provido de todo e qualquer fenômeno; e, a antítese, enquanto relacionada a
questões fenomênicas, ou seja, enquanto uma causalidade natural neces-
sária à compreensão das aparições dos dados sensíveis,
148
pode-se obser-
var que, por meio desta proposta, é possível deixar em aberto uma possibi-
lidade de pensar um incondicionado e a verdade de ambas as causalidades
envolvidas na terceira antinomia.
149
Nas palavras de Allison (1983):
“Portanto, deixa-se aberta a possibilidade de que ambas as
partes podem ser corretas: a tese, com sua afirmação de uma
primeira causa inteligível, transcendentalmente livre da
totalidade da série dos fenômenos; e a antítese, com sua
recusa a admitir tal causa na série”.
150
Assim sendo, pelo Idealismo Transcendental, chega-se a mais uma
de suas utilidades positivas. É o que se confirmará na próxima seção diante
dos possíveis resultados obtidos frente àquele conflito da razão pura aplica-
do a tal teoria crítico-filosófica.
2.3.2.2 Da aplicabilidade do Idealismo Transcendental na solu-
ção da terceira antinomia
O idealismo transcendental, ao ser a “chave para a solução da dialé-
147
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 559.
148
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 559.
149
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, Conforme: B 560.
68
tica cosmológica”,
151
pôde ser aplicado ao terceiro conflito antinômico. Por-
que por meio dele diferenciou-se fenômenos e númenos naquela antinomi-
a, pôde-se aclarar a possibilidade daquelas causalidades nela envolvidas. A
tese, então, poderá ser válida com relação aos númenos, ao responder a
uma busca da razão, a “uma espontaneidade que pode, por si mesma, inici-
ar uma ação sem que seja necessário antepor-lhe uma outra coisa que, por
sua vez a determine para a ação segundo a lei da conexão causal”;
152
e a
antítese, ao responder, por sua vez, a uma demanda do entendimento rei-
vindicante de uma unidade para satisfazer as condições da experiência.
Deste modo, a solução kantiana dessa antinomia consistiu em não
considerar que uma de suas afirmações fosse verdadeira e a outra falsa,
mas de que ambas pudessem ser verdadeiras. Isso, porque a proposição
‘há liberdade’ apenas será possivelmente verdadeira se não estivermos nos
referindo ao mundo sensível. De outro modo, a proposição ‘não há uma
causalidade natural’, será apenas verdadeiramente possível ao se referir
aos númenos. Por meio dessas distinções, evita-se o confronto de ambas
as teses ao se distinguirem os diferentes espaços a que possam ser aplica-
das. Elas são aplicadas a diferentes domínios ou dimensões da realidade e,
portanto, não pretendem valer para a realidade no seu todo.
Aclaradas as distinções entre a terceira antinomia e as anteriores, e
distinguidas as pertinentes aplicações de cada causalidade em diferentes
planos dos fenômenos e númenos, foi exposto o argumento da solução da
150
ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, 1983, p. 474.
69
terceira antinomia. Logo, teria sido mais do que justo que a solução da ter-
ceira antinomia não houvesse negado ambas as causalidades, livre e natu-
ral. Isso porque a causalidade natural no mundo sensível é incontestável.
Exemplifico. Ao se largar um objeto de uma determinada altura, num local
onde ele esteja sujeito à gravidade, incontestável é que ele caia. A causali-
dade natural também é observada no homem enquanto ser fenomênico. Por
acaso, o homem não procura alimentar-se quando está com fome? Por a-
caso, quando está com sede não procura algo para beber? Portanto, em
conformidade com as leis naturais, o homem enquanto fenômeno, enquanto
realidade natural, não pode fugir ao cumprimento dessas leis necessárias.
O reino dos fenômenos é o reino da necessidade. Nele não há lugar para a
liberdade.
Contudo, insuficiente seria querer explicar a totalidade das ações
humanas unicamente por meio de causas naturais. Isso porque, como ar-
gumenta Kant, se assim o fosse, poder-se-iam prever suas ações com tanta
exatidão quanto a de um eclipse lunar.
153
Ora, não se consegue prever as
ações humanas de forma tão exata e precisa. Pode ser doze horas e um
homem estar com muita fome, mas se ele tiver trabalhos urgentes a serem
feitos, pode priorizá-los, ou simplesmente deixá-los de lado. Logo, é insufi-
ciente querer explicar as ações humanas unicamente por meio de uma cau-
salidade natural. O homem não age de forma necessariamente dependente
de causas naturais e, portanto, dever-se-ia ter presente o conceito de liber-
151
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 518.
70
dade a fim de explicar a totalidade de suas ações.
Ora, uma ação livre é independente das leis naturais. Mas a liber-
dade, não sendo fenômeno, é teoricamente incognoscível. Não se podendo
conhecê-la, não se trataria de uma mera ilusão? De fato, Kant teria preten-
dido aclarar o conceito de liberdade na solução da terceira antinomia, como
afirma em B 560, ou teria razão em B 586, onde alega não ter tido sequer a
preocupação com tal conceito? Esse capítulo ocupou-se em demonstrar o
raciocínio que o filósofo seguiu, a fim de expor os fundamentos geradores
da terceira antinomia, seu conflito apagógico e a maneira como ela foi solu-
cionada. No próximo capítulo, buscar-se-á discutir possível glosa referente à
passagem B 560, uma vez que, conforme o observado, é aparentemente
conflitante a B 586.
152
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 561.
153
Conforme: KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 177.
71
3. ALGUMAS OBSERVAÇÕES CORRELATAS À POSSIBILIDADE
DA LIBERDADE NAS PASSAGENS B 560 E B 586 NA OBRA DA CRÍTI-
CA DA RAZÃO PURA
“O homem é liberdade”.
Sartre
154
3.1 Possíveis glosas referentes à solução da terceira antinomia
Eis que se chegou ao cerne deste trabalho, uma vez que até aqui se
viu a exposição dialética da terceira antinomia, o modo como ela se desen-
volveu e como ela foi solucionada. Com relação à possibilidade de solução,
notadamente, observou-se que B 560 admite possíveis tanto uma causali-
dade natural, como uma causalidade livre. Salientou-se, contudo, que a
primeira dessas causalidades já havia sido admitida na Analítica transcen-
dental e, portanto, não era mais problema reafirmá-la na solução desta anti-
nomia. Porém, a segunda delas era uma novidade a ser introduzida no sis-
154
SARTRE, O Existencialismo é um Humanismo, 1970, p. 227.
72
tema. Melhor dizendo, não apenas essa causalidade era uma novidade a
ser introduzida, mas ainda um conceito exigente de maiores esclarecimen-
tos. Isso porque a posição do filósofo frente a ela ainda parece não ser unâ-
nime porque, como se mencionou no início do primeiro capítulo, de forma
totalmente oposta à passagem que apresenta tal causalidade livre, há outra
aparentemente contraditória. Trata-se da passagem B 586.
Deparamo-nos, assim, com uma situação delicada e obscura pelo
fato que, embora Kant alegue, em B 560, haver tal conceito necessário à e-
xistência da liberdade prática (razão prática),
155
enquanto possibilidade, pa-
rece tê-la negado em B 586. Que comentário poder-se-ia desenvolver a par-
tir dessas obscuridades?
Como se anunciou, esse é o problema do presente capítulo. Frente
a ele, não se pretende defender uma posição própria sem antes confrontar
diferentes posicionamentos dos comentadores. Esses podem ser divididos
em duas correntes. A primeira delas (I) supõe que Kant, na solução da ter-
ceira antinomia, sequer tenha apresentado a possibilidade da liberdade; a
segunda delas (II), de modo oposto, argumenta em favor de que em B 560
Kant teria aclarado a liberdade enquanto possibilidade. Passa-se a analisar
155
Idéia essa, exposta em B 561/B 562 e reafirmada na obra de 1785. Nas palavras de Kant:
“razão prática ,ou como vontade de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como li-
vre; isto é, a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a idéia da liberdade e,
portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais”.
KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1960, BA 101. Nas palavras de Almeida e
Zingano, respectivamente, justifica-se tal idéia: “<Este conceito possui> duas notas caracterís-
ticas: a independência de nossas escolhas relativamente aos impulsos sensíveis que afetam
nosso arbítrio e o poder de autodeterminação de nosso arbítrio”. ALMEIDA, Liberdade e Mora-
lidade Segundo Kant, 1997, p. 179. “Prático, propriamente, é somente o que se deriva da cau-
salidade livre de um agente racional e constitui, na diferença de regras tiradas do conhecimen-
to, a filosofia prática no sentido forte do termo.” ZINGANO, Razão e História em Kant, 1989, p.
35.
73
aquela primeira glosa e, conseqüentemente, a segunda, a fim de se poder
discuti-las (III).
I. Dos principais argumentos em favor de quem não admite que Kant
tenha exposto a possibilidade da liberdade na solução da terceira antinomia.
Em favor de quem pareça seguir esse posicionamento, estaria fun-
damentalmente presente o argumento citado na abertura desse capítulo -a
passagem B 586. Nessa passagem, exposta de forma isolada do restante
corpo textual referente à solução de tal antinomia, o filósofo afirmaria sequer
ter a intenção de demonstrá-la.
156
Strawson (1993), por exemplo, critica a solução da terceira antino-
mia ao observar que, se Kant nela tivesse seguido os mesmos critérios das
duas antinomias anteriores, a tese da terceira antinomia deveria ter sido
considerada como falsa.
“Parece óbvio que a correta solução ‘crítica’ deste conflito seri-
a: Uma vez que as coisas no espaço e tempo são aparências,
como os estados temporais do mundo ou como as séries de
regiões espaciais do mundo são anteriores, elas não existem
enquanto tal. Considerando que a série não existe enquanto
tal, não há nenhuma pergunta de seu existir como um todo in-
finito, ou, como é afirmado na tese, como um todo finito como
um primeiro membro incausado. Todo membro da série que é,
de fato, ‘encontrado com’ a experiência, todavia, pode e deve
ser tomado como tendo uma causa antecedente. A tese, en-
tão, é falsa, a antítese verdadeira”.
157
156
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 586.
157
Para maiores esclarecimentos, veja: STRAWSON, The Bounds of Sense, 1993, p. 209.
74
Entende-se, portanto, de acordo com essa glosa, que Kant poderia
não ter sequer pretendido defender a possibilidade da liberdade na solução
de tal antinomia. De fato, há argumentos aparentemente favoráveis a essa
exegese. Elencam-se os principais argumentos: o primeiro deles, seria o
próprio propósito da dialética transcendental. Realmente, Kant havia afirma-
do ser uma das finalidades da dialética transcendental criticar a razão em
seu uso hiperfísico em prol de se desmascarar a falsa aparência de tais
presunções. É importante se mencionar tal passagem:
“A segunda parte da lógica transcendental deve ser, por con-
seguinte, uma crítica da aparência dialética e denomina-se dia-
lética transcendental, não como arte de suscitar dogmatica-
mente tal aparência (arte, infelizmente muito corrente, de múl-
tiplas prestidigitações metafísicas), mas enquanto crítica do
entendimento e da razão, relativamente ao seu uso hiperfísico,
para desmascarar a falsa aparência de tais presunções sem
fundamento e reduzir as suas pretensões de descoberta e ex-
tensão, que a razão supõe alcançar unicamente graças aos
princípios transcendentais, à simples ação de julgar o enten-
dimento puro e acautelá-lo de ilusões sofísticas”.
158
Ora, para pensar a liberdade exige-se um uso hiperfísico da razão.
Mas, por acaso, em conformidade com esses propósitos expressos por
Kant, não deveria o autor tê-la negado? Logo, poderia parecer plausível que
aquele conceito, nos limites da dialética transcendental, deveria mesmo ter
sido negado ao ultrapassar todas as condições de possibilidade do conhe-
cimento, a fim de não contradizer os resultados já obtidos na estética trans-
cendental e na analítica transcendental.
Em segundo lugar, em favor da interpretação de acordo com a qual
Kant sequer teria o problema de demonstrar a possibilidade da liberdade
75
nos limites da primeira obra crítica, haveria o argumento de que a liberda-
de é apenas uma idéia. Idéias não podem ser observadas empiricamente.
Do que não se vê, não se pode ter nenhuma certeza. Se não se tem ne-
nhuma certeza, seria ela meramente ilusória. Logo, verdadeiramente, saber-
se-ia “tão pouco sobre a sua possibilidade”.
159
O terceiro argumento é que, como o autor afirma em ‘B 565’, se a-
penas houvesse fenômenos, não se teria como salvar o conceito da liber-
dade. Se todas as idéias fossem apenas empíricas, certamente não haveria
meios de defendê-la, pois dela não teríamos nenhuma intuição empírica.
Ora, a causalidade livre não é um conceito empírico. O que não possui ne-
nhuma representação empírica não pode ser provado enquanto objeto exis-
tente num mundo fenomênico. Ora, sabe-se que a liberdade, na terceira an-
tinomia e em sua respectiva solução, não está relacionada a nenhum fenô-
meno empírico, mas tão somente a uma causalidade totalmente desprovida
de todo e qualquer conteúdo daquela espécie e, portanto, poderia muito
bem ter sido negada na dialética transcendental.
II. Dos principais argumentos em favor de quem admite que Kant te-
nha exposto a possibilidade da liberdade na solução da terceira antinomia.
Como se alegou, a solução da terceira antinomia é uma passagem
conflitante e admite um comentário adverso ao recém-exposto. A segunda
158
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 88.
159
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 701.
76
glosa refere-se àqueles que defendem Kant ter apresentado, na solução da
terceira antinomia, uma possibilidade do conceito liberdade. Essa é a opi-
nião da maioria dos comentaristas,
160
dentre eles, Allison (1983).
A favor dessa segunda exegese encontram-se vários argumentos. O
primeiro deles é a própria passagem de B 560 que, ‘com todas as letras’, a-
firma a possibilidade não só duma causalidade natural, mas também livre.
Ora, se ela afirmou uma possibilidade da liberdade, é porque esse conceito
não foi totalmente negado. Se ele não foi totalmente negado, é porque o fi-
lósofo não teria tido razões suficientes para alegar que ele, de forma algu-
ma, seria inexistente em sua totalidade. Se o filósofo teria aí aclarado sua
‘possibilidade’, é porque de algum modo ele poderia ser ‘possível’ enquanto
‘pensável’, enquanto conceito numênico e não fenomênico.
Logo, se ele não é um conceito mostrado como impossível, é por-
que, ao menos, pode-se presumivelmente pensar a liberdade. Isso porque,
por mais que um cético pudesse dizer que a liberdade seria uma quimera,
ele teria que pensá-la antes de fazer esse juízo. Ao pensá-la, necessaria-
mente não poderia negá-la, ao menos enquanto idéia por ele postulada a
fim de expor seu posicionamento crítico.
Ora, B 560 afirma que uma causalidade livre (ao menos enquanto
uma idéia) pode ser verdadeira. Deste modo, pôde-se afirmar, como quer a
160
Embora das mais diversas formas argumentativas, a defesa duma possibilidade da liberda-
de, na Crítica da Razão Pura, é defendida, além de Allison (1983, 1995) em que ora se funda-
menta este trabalho dissertativo, também por outros autores de grande relevância. É, portanto,
de fundamental importância mencioná-los: (I) Beck (1984) em: A Commentary on Kant’s Criti-
que of Practical Reason. (II) Paton (1970) em: The Categorical Imperative. (III) Rohden (1981)
em: Interesse da Razão e Liberdade. (IV) Almeida (1997) em: Liberdade e Moralidade Segundo
Kant. (V) Bennett (1981) em: La Crítica de la Razón Pura de Kant 2. La Dialética. (VI) Herrero
77
maioria dos autores pesquisados,
161
que Kant nos demonstrou uma possibi-
lidade da liberdade não no terceiro conflito antinômico, mas em sua solu-
ção. Não que aqui tenha ocorrido a demonstração de uma possibilidade ob-
jetiva da liberdade, uma vez que esta apenas será estabelecida na Crítica
da Razão Prática. Contudo, sabe-se muito bem que ele poderia ter negado
a possibilidade da verdade de tal causalidade nos limites da simples razão
pura, como já havia feito com o que estivera em questão nas duas primeiras
antinomias. Não obstante, não foi esse o procedimento do filósofo e, portan-
to, eis que essa já é outra grande razão em favor da glosa defensora da
possibilidade lógica da liberdade na passagem B 560.
Não apenas essa passagem, já citada, deixaria clara a demonstra-
ção de uma possibilidade da liberdade, enquanto pensamento logicamente
possível em B 560, mas várias outras corroborariam essa tese. Exemplo
disso é ‘B 562’, o segundo argumento favorável à defesa de que a possibili-
dade daquele conceito estaria presente em B 560. Nas palavras do grande
filósofo:
“Esta última <a liberdade em sua acepção transcendental>
constituía naquela o momento próprio das dificuldades que,
desde sempre, envolveram a questão sobre a sua possibilida-
de”.
162
Além de ‘B 562’, várias outras passagens confirmam a exatidão
dessa segunda interpretação relacionada à possibilidade da liberdade na
solução do terceiro conflito antinômico ao longo da Crítica da Razão Práti-
(1991) em: Religião e História em Kant.
161
Como já foi exposto.
78
ca. A passagem A 4 dessa segunda Crítica é o argumento central da glosa
de Allison (1983), a fim de se confirmar a exatidão do comentário relacio-
nado àquele conflito. Esse é o terceiro e último argumento da justificativa
dessa interpretação:
“A razão especulativa, no uso do conceito de causalidade, a
necessitava <a liberdade> para salvar-se da antinomia <e por-
tanto> (...) ela tem de considerar válido ,pelo menos enquanto
pensável, <o conceito liberdade transcendental>”.
163
Noutras palavras:
“A razão especulativa (para encontrar entre as suas idéias
cosmológicas, segundo sua causalidade, o incondicionado e
assim não contradizer a si mesma) tinha de admitir, pelo me-
nos como possível (...) a liberdade”.
164
Logo, aquela passagem da Crítica da Razão Prática, como quer Alli-
son (1983), de fato é muito importante. Importante porque ela é clara, ao a-
legar o filósofo, ter pretendido, na solução duma das antinomias, deixar em
aberto a possibilidade dum conceito de liberdade enquanto pensável. Poder
pensar a liberdade”
165
era o que Kant já havia afirmado no próprio prefácio
da segunda edição, e a solução da terceira antinomia não fez outra coisa a
não ser aclará-la com outras palavras.
162
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 561/ 562.
163
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 4.
164
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 82.
79
III. Observações referentes à exegese da passagem B 560.
Recém procurou-se enumerar as duas correntes que dividem opini-
ões sobre a possibilidade da liberdade. Demonstramô-las sem expor ne-
nhuma opinião sobre o referido assunto. O que aqui se defende é próximo à
tese de Allison (1983). Essa entende que Kant, na solução da terceira anti-
nomia, deixou em aberto a possibilidade lógica da liberdade transcendental.
Nas palavras de Allison (1983):
“<Kant na> ‘Primeira crítica’ estabelece a possibilidade da li-
berdade transcendental mediante a solução da terceira anti-
nomia”.
166
Mas não se poderia objetar, com razão, a essa interpretação com o
argumento de que Kant teria hipostasiado aquela possibilidade da liberdade
mediante o sustentado em B 586? Até se poderia, mas as conseqüências
seriam alarmantes, porque o conceito da liberdade foi de fundamental im-
portância à continuidade do sistema filosófico exposto na Crítica da Razão
Pura. Por ele não ter sido negado no âmbito daquela obra, o filósofo pôde
legar uma passagem ao sistema de sua filosofia prática. O conceito de li-
berdade não só foi importante por permitir o engendramento daquela anun-
ciada passagem por meio do conceito das idéias, mas essencial ao desen-
volvimento do conceito de razão prática, fundamental à filosofia moral de
Kant.
165
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B XXVIII.
80
Mas, se Kant não tivesse ao menos demonstrado a possibilidade
lógica da liberdade na solução da terceira antinomia, como ele poderia
admitir esses conceitos dependentes da liberdade? Se, na Crítica da Razão
Pura, Kant não tivesse demonstrado aquela possibilidade, como ele teria,
na Crítica da Razão Prática, podido alegar que na obra precedente teria
deixado em aberto uma possibilidade de pensá-la? Por acaso, a razão prá-
tica não era dependente da liberdade? A moralidade não era dependente da
liberdade? E a liberdade não foi um conceito essencial para se explicar a
capacidade dos seres racionais agirem de acordo com a representação da
suprema lei moral, o Imperativo Categórico?
Conseqüentemente se nos defronta um dilema crucial: ou se assu-
me uma exegese que defenda a possibilidade da liberdade na primeira Crí-
tica, ou não se terá como explicar o engendramento da moralidade. Ora,
não apenas é plausível, mas necessário e imprescindível admitir uma pos-
sibilidade da liberdade na abertura do sistema filosófico de Kant. Logo, a
possibilidade da liberdade na passagem B 560 é defendida por três razões
fundamentais. A primeira foi pela razão recentemente aclarada: a de que
aquele era um conceito essencial às obras subseqüentes à primeira crítica
e, sem a possibilidade de se pensar tal conceito, o filósofo não teria conse-
guido explicar os conceitos apresentados noutras obras do sistema arquite-
tônico da razão pura. A segunda delas faz menção, não ao todo do sistema
filosófico, mas ao argumento apresentado na passagem do desfecho da pe-
166
ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, 1983, p. 469.
81
núltima antinomia cosmológica e noutras passagens já citadas, onde Kant,
com todas as letras, afirma estar a legar a possibilidade de tal conceito a
partir da solução da terceira antinomia. A terceira razão de se defender a
possibilidade da liberdade na solução da terceira antinomia é que ela era
uma parte indispensável da transição da primeira à segunda obra crítica.
Em favor desse argumento, o filósofo assim afirma numa passagem da dia-
lética transcendental:
“Ao invés de todas estas considerações, cujo conveniente de-
senvolvimento de fato constitui a dignidade peculiar da Filoso-
fia, ocupar-nos-emos agora com um trabalho não tão brilhante,
mas nem por isso desmerecedor, a saber, de aplainar e conso-
lidar o terreno para aqueles majestosos // edifícios morais nos
quais se encontra toda espécie de galerias de toupeira, cava-
das por uma razão à procura inútil, mas bem intencionada, de
tesouros e que tornam insegura aquela construção”.
167
Deste modo, se não se admitir que Kant tenha demonstrado a pos-
sibilidade da liberdade na solução da terceira antinomia, se seguiria que não
só não se poderia admitir a liberdade prática,
168
mas sequer se poderia ex-
plicar essa referida ‘passagem aos conceitos práticos’
169
que por meio da-
quele conceito o filósofo aí estava a desenvolver. Essa passagem, na Críti-
ca da Razão Pura, foi articulada por meio das idéias transcendentais e isso
pode ser verificado na citação recém-mencionada. Ademais, nossa glosa
seria imprudente se negássemos a possibilidade da liberdade na solução da
167
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 375/376. (Grifos meus).
168
Isso, porque como já aclaramos, vale a pena lembrar que esse conceito prático era depen-
dente da liberdade transcendental.
169
Por passagem entende-se aqui a estratégia argumentativa usada pelo filósofo em prol de
não fechar seu sistema filosófico nos limites de sua primeira obra crítica, mas poder dar-lhe
continuidade a partir da exposição dum uso prático da razão pura. Melhores explicações a res-
peito disso são dadas na terceira parte desse trabalho de pesquisas.
82
terceira antinomia, porque não se teria como explicar a passagem que o fi-
lósofo estaria a desenvolver na sua segunda obra Crítica.
Portanto, em virtude dessas três razões expostas, não seria uma a-
firmação imprudente alegar haver uma possibilidade lógica da liberdade na
obra de 1787. Na primeira Crítica, imprudente seria alegar que ela se consti-
tuía num conceito efetivo, porque, no momento, ele não passa de um con-
ceito-problema, ou seja, de um conceito que é estrategicamente introduzido
aos poucos, a fim de se fazer uma passagem à continuidade do próprio sis-
tema, mas ainda sem a demonstração de uma possibilidade real. Para tan-
to, esse conceito, enquanto idéia, é articulado em prol de fazer-se uma pas-
sagem aos conceitos práticos. Analogicamente falando, a liberdade aí é
como peça estratégica dum determinado jogo de xadrez, movimentada para
dispersar o adversário e dar ‘xeque’ em prol de novas estratégias de jogo.
Mas aqui, ‘o xeque de Kant’, bem entendido, não se refere à articulação de
estratégias para conquistar peças inimigas, mas a de poder solapar a nega-
ção do conceito de liberdade prática. A liberdade prática é dependente da
liberdade transcendental,
170
e que fez parte duma transição da Crítica da
Razão Pura para a Crítica da Razão Prática.
Transição essa possível, porque a liberdade pôde ser pensada ao
não mais ser contraditória para com a causalidade natural. Isso porque, co-
170
“Razão prática ou como vontade de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como
livre; isto é, a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a idéia da liberdade, e,
portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais”
KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 101. Sobre esse ponto Para maiores
esclarecimentos, veja: ALMEIDA, Liberdade e Moralidade Segundo Kant, 1997, p. 179.
ZINGANO, Razão e História em Kant, 1988, p. 35 a 37. ROHDEN, Interesse da Razão e Li-
berdade, 1981, p. 79. PASCAL, O Pensamento de Kant, 1983, p. 97.
83
mo já vimos na exposta seção referente à solução da terceira antinomia,
sustentou-se sua aplicação aos númenos e não às causalidades naturais.
Pela distinção de fenômenos e númenos é que se pôde admitir ambas as
causalidades como possíveis e não contraditórias umas às outras. Por meio
dessa estratégia pôde-se aclarar a possibilidade de uma causalidade livre e
outra natural: a das leis naturais, formulada pelo entendimento, rege o com-
portamento dos fenômenos, dos eventos naturais; a da liberdade, formulada
pela faculdade da razão, rege o comportamento ao nível das ações huma-
nas. Portanto, distinguidos seus domínios, ambas as causalidades podem
ser compatíveis e possivelmente admissíveis. Nas excelentes palavras de
Paton (1970):
“Liberdade e necessidade parecem ser igualmente necessá-
rias, a primeira para a ação, a segunda para a ciência; e, con-
tudo, elas parecem ser contraditórias. Uma vez que nós não
temos condições de abandonar nenhuma das duas, nós temos
que supor que não há nenhuma real contradição entre elas, e
nós temos que tentar ver se a aparente contradição pode ser
removida; caso contrário, dessas duas causalidades, é a liber-
dade que nós deveríamos ter que abandonar”.
171
Assim, por meio dessas três razões expostas, a liberdade transcen-
dental não pode ser entendida como negada por Kant nos limites da simples
razão pura, não apenas em vista do todo harmônico a caracterizar seu sis-
tema filosófico, mas pelos próprios argumentos da Crítica da Razão Pura.
Por meio dele, há possibilidade de, como aponta Beck (1984), admitir-se
uma defesa daquele conceito, uma vez que ele “tem sido estabelecido (...)
171
PATON, The Categorical Imperative, 1970, p. 266.
84
como não autocontraditório, na primeira Crítica”.
172
Favorável a isso, tam-
bém se encontra Paton (1970) que assim manifesta sua opinião:
“É necessário defender a liberdade contra o ataque de que ela
seja incompatível com a necessidade causal que nós sabemos
prevalecer na natureza”.
173
Desse modo, pelos argumentos aduzidos com o apoio desses co-
mentaristas somos levados a crer que a razão teórica demonstrou, ao me-
nos, “a possibilidade da liberdade”.
174
Uma espécie de “faculdade de absolu-
ta espontaneidade, <que> não era uma carência mas, no que concerne a
sua possibilidade, uma proposição fundamental analítica da razão especula-
tiva pura”,
175
o que realmente nos leva a discordar da posição de quem não
aceita a demonstração sequer da possibilidade da liberdade transcendental
na solução da terceira antinomia e a concordar com Allison (1983).
176
Mas
se essa resolução admite uma possibilidade de se pensar a causalidade da
liberdade, teria ela, legitimamente, corroborado a realidade dessa causali-
dade? Por acaso B 586 não poderia ser usada para se objetar essa exege-
se? É bem verdade que muitos comentadores, ao procurarem defender es-
se tema, passam despercebidamente à análise da passagem paradoxal a B
560.
Não obstante, procura-se, assim, nesse trabalho, não só justificar
172
BECK, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, 1984. p. 16.
173
PATON, The Categorical Imperative, 1970, p. 266.
174
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 83.
175
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 84.
176
Embora siga diferentes passos argumentativos e este não seja o nosso problema de análi-
se, quer-se lembrar que Rohden (1981) também defende a demonstração da possibilidade da
liberdade na solução da terceira antinomia na seguinte passagem: “O resultado crítico da solu-
ção da III antinomia, com base na distinção entre duas significações de objetos, possibilitou
85
porque Allison (1983) teria razão ao afirmar haver uma possibilidade da li-
berdade na solução da terceira antinomia (3.2.2), mas também buscar-se-á
explicar por que razão B 586 não seria conflitante com tal questão (3.2.1).
3.2 Em defesa duma possibilidade lógica da liberdade
A partir de Allison (1983 e 1995) e de Kant (2002), nessa seção,
busca-se expor uma defesa de que o filósofo teria, na grande crítica, deixa-
do em aberto uma possibilidade lógica da liberdade. Eis que, para tanto, ini-
cia-se demonstrando porque B 586 não é contraditória a B 560.
3.2.1 Esclarecimentos a B 586
Após ter-se observado a importância da liberdade transcendental
para o sistema e para o conceito de liberdade prática e, portanto, não po-
dendo negá-la, concordamos com a maioria dos autores pesquisados em
defender a possibilidade lógica da liberdade na solução da terceira antino-
mia. Mas se admitirmos Kant ter demonstrado a possibilidade da liberdade
na solução da terceira antinomia, como se explicaria a passagem B 586 on-
de ele diz que, de maneira alguma, tentou demonstrar a possibilidade da li-
berdade? Acaso, ela não seria conflitante com tudo o que até aqui tentamos
defender? Num primeiro momento, poder-se-ia pensar assim, mas como
pensar o conceito de liberdade”. ROHDEN, Interesse da Razão e Liberdade, 1981, p. 102.
86
Paton (1968) já nos ensinava, Kant freqüentemente assinala importantes
pensamentos em apêndices e mesmo em notas.
177
A partir de uma delas é
que poderemos constatar que nada de contraditório há entre as principais
idéias por nós defendidas até aqui para com a passagem de B 586, uma
vez que a palavra possibilidade comporta várias acepções. Dentre elas de-
vem-se distinguir os conceitos de possibilidade lógica e real a serem defini-
dos na seção vindoura.
3.2.1.1 As distintas acepções de possibilidade empregadas por
Kant nas passagens B 560 e B 586
Conforme se observa ao longo da Crítica da Razão Pura, o conceito
de possibilidade é amplamente utilizado pelo autor dessa obra. Não há um
único local e uma única acepção de tal conceito, mas várias são as passa-
gens e as diferentes significações que o mesmo recebe no decorrer dessa
magna Crítica.
Dentre as principais exposições em que o conceito de possibilidade
está envolvido, exemplificam-se a categoria possibilidade-impossiblidade
(exposto na Analítica transcendental), o esquema da possibilidade (elucida-
do no primeiro capítulo da analítica dos princípios), o princípio do postulado
da possibilidade (aclarado no segundo capítulo da analítica dos princípios) e
a acepção de possibilidade lógica dos conceitos (também empregada na
questão da liberdade na dialética transcendental).
177
Conforme: PATON, Kant on the Errors of Leibniz, 1968.
87
Uma vez que é uma finalidade compreender-se as distintas acep-
ções do conceito possibilidade, empregadas nas passagens B 560 e B
586, delimita-se esta seção em dois propósitos: o segundo, consiste na ex-
posição do conceito de possibilidade real de um conceito dialético; o primei-
ro, na explicação da acepção de possibilidade lógica dum conceito dialético,
empregada na discussão da liberdade na segunda parte da lógica transcen-
dental. Para esse primeiro propósito, toma-se como base o primeiro capítulo
da analítica dos conceitos, uma vez que tal conceito, de modo análogo, é aí
exposto.
Introduzido a partir da tábua de juízos, o conceito “possibilidade” não
possui outro significado senão a expressão duma cópula dos juízos proble-
máticos. Logo, aqui a possibilidade lógica refere-se à cópula dum juízo que
não possui nenhuma contradição lógica. Produzidos pela categoria da pos-
sibilidade-impossibilidade da classe da modalidade, embora possam ser
pensados mediante a ausência de contradições, não exprimem um valor
necessário. Ou seja, o que de fato é e não pode não ser, mas algo contin-
gente. Tais juízos, portanto, ao não terem uma ligação cujo valor tenha ne-
cessidade, dependem duma deliberação do entendimento. É, portanto, ca-
racterística de tais juízos não serem assertóricos, nem apodíticos, mas
problemáticos. Não são assertóricos porque não exprimem uma cópula cujo
valor seja “considerado real (verdadeiro)”.
178
Não são apodíticos porque a li-
gação que exprimem não é de “valor necessário”,
179
mas “apenas possível
178
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 100.
179
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 100.
88
(arbitrário)”.
180
“A proposição problemática é, pois, a que exprime apenas
possibilidade lógica (que não é objetiva), isto é, uma livre es-
colha de tomar esta proposição por válida, uma aceitação sim-
plesmente arbitrária dela pelo entendimento”.
181
Na possibilidade lógica, portanto, não temos certeza absoluta dos ju-
ízos enunciados. Por tal razão, eles são problemáticos ao apresentarem a
relação de um juízo para com as notas de sua certeza conforme as condi-
ções do pensamento em geral, contingentes e desprovidos de todo e qual-
quer dado empírico. Trata-se de um conceito que não tem um caráter obje-
tivo, mas que é possível de ser pensado enquanto “não se contradiz a si
próprio”.
182
Isso também se observa na definição de possibilidade lógica in-
troduzida no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura mediante
as seguintes palavras:
“Mas posso pensar no que quiser, desde que não entre em
contradição comigo mesmo, istp é, desde que o meu conceito
seja um pensamento possível”.
183
Assim sendo, “reconhecemos a possibilidade lógica através do prin-
cípio de contradição”.
184
A possibilidade lógica é dada aos conceitos quando
eles não se contradizem. Mas, se a possibilidade lógica é um pensamento
não contraditório, não se poderia cair em objetos fantasmagóricos ao criar
idéias apenas logicamente articuladas? Certamente, se apenas assim se
procedesse a fim de dar validade a determinados conceitos, e se a realida-
180
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 100.
181
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 101.
182
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 302.
183
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, nota de B XXVI.
184
KANT, Lições de Metafísica, 2002, p. 61.
89
de e a efetividade de objetos fossem admitidas simplesmente em razão da
possibilidade lógica, o que não levaria a conceber objetos irreais. Mas ver-
dadeiramente, não é o intento do autor demonstrar a realidade e a efetivi-
dade de objetos pela simples coerência de conceitos logicamente articula-
dos. Muito pelo contrário, é seu propósito mostrar que tal nota característica
é necessária à objetividade dos conceitos, e que alguns deles, desprovidos
de todo e qualquer dado empírico, apenas podem ser pensados. Nas pala-
vras de Kant:
“Seria uma pressuposição completamente infundada admitir a
possibilidade de um ser supra-sensível, definido segundo cer-
tos conceitos, pois neste caso não é dada nenhuma das con-
dições exigidas para um conhecimento do ponto de vista da-
quilo que nele repousa na intuição e, por isso, fica-nos o sim-
ples princípio da contradição (que só pode demonstrar a pos-
sibilidade do pensamento e não a possibilidade do próprio ob-
jeto pensado) como critério desta possibilidade”.
185
De fato, como Kant expõe na reflexão 2181, a possibilidade lógica
das coisas não é sua efetividade. Da mera possibilidade de pensamentos
não se pode deduzir a existência dos objetos afirmados. O “princípio de
contradição é o supremo critério negativo da verdade. É conditio sine qua
non de todo conhecimento, mas não é critério suficiente de toda verda-
de”.
186
A efetividade das coisas não fica apenas no âmbito conceitual ao re-
querer concordar não apenas com as condições formais da experiência,
mas também materiais.
“Toda a distinção por nós realizada entre o simplesmente pos-
sível e o efetivo repousa no fato de o primeiro significar so-
mente a posição da representação de uma coisa relativamente
185
KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, 1995, p. 306.
186
KANT, Lições de Metafísica, 2002, p. 50.
90
ao nosso conceito, e em geral à faculdade de pensar, en-
quanto o segundo significa a colocação da coisa em si mes-
ma (fora desse conceito). Por isso, a distinção entre coisas
possíveis e efetivas é tal, que é valida simplesmente para o
entendimento humano, pois que, na verdade, sempre conse-
guimos pensar alguma coisa, mesmo que não exista, ou re-
presentar-nos algo como dado, mesmo que disso não tenha-
mos qualquer conceito. Assim, as seguintes proposições: as
coisas podem ser possíveis sem ser efetivas, da mera
possibilidade não se pode, por isso, de modo nenhum,
concluir a efetividade, são perfeitamente válidas para a ra-
zão humana sem que, com isso, se demonstre que esta
distinção se situe, ela própria, nas próprias coisas”.
187
Portanto, embora se possa ter a possibilidade de um conceito pen-
sável, ao não ter como correlato dados sensíveis, ele não é efetivo. Porque
ele pode ser pensado, ele é possível, mas apenas em sua acepção lógica e
não real.
188
“Se algo é simplesmente pensado, neste caso significa que é
possível. Se algo é pensado porque já se dá, então é real”.
189
Há, portanto, uma possibilidade lógica e uma possibilidade real que
devem, necessariamente, ser esclarecidas para a melhor compreensão da
discussão da questão da liberdade no texto da dialética transcendental. Dis-
tinção essa que, por exemplo, já estava presente no próprio sistema filosófi-
co de Aristóteles. No livro da Metafísica (V, 12, 1019), ele já havia definido a
possibilidade lógica como um conceito cuja oposição poderia ser verdadei-
ro: “o possível é quando o contrário não é necessariamente falso”.
190
O filó-
sofo grego exemplifica esse conceito lógico com a possibilidade de se pen-
sar um homem sentado. Estar sentado é uma possibilidade lógica de todos
187
KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, 1995, p. 243. (negrito meu).
188
Conforme B 182 da CRP, real é aquilo que corresponde a uma sensação.
91
os homens sanes, uma vez que não lhe é uma condição necessária sem-
pre permanecerem de pé. Logo, se não é uma condição necessária que
um determinado homem sempre esteja de pé, há uma possibilidade de pen-
sá-lo estar sentado em determinado momento. Mas supor um homem estar
sentado, para Aristóteles, seria uma possibilidade lógica, mas não real por-
que essa não é uma condição necessária do conceito homem, mas apenas
uma ação oposta do que é impossível. Ou seja, essa ação é possível de ser
pensada como não contraditória e, portanto, indica um princípio realizável
por não possuir nenhuma contraditoriedade. Não obstante, ela não indica
algo de que se tenha certeza, porque aquele sujeito poderia muito bem não
estar sentado, mas estar nadando, por exemplo. Logo, ela não é uma pos-
sibilidade real, mas apenas pensada de modo lógico.
Kant, assim como Aristóteles, também distingue tais acepções dos
conceitos de possibilidade. Em suas palavras:
“O conceito é sempre possível se não se contradiz. Esta é a
nota lógica da possibilidade e, por ela, o seu objeto distingue-
se do nihil negativum. Mas não deixa menos de ser um concei-
to vazio se não for particularmente demonstrada a realidade
objetiva da síntese pela qual o conceito é produzido. Mas co-
mo se mostrou acima, isto repousa sempre sobre princípios da
experiência possível, e não sobre o princípio da análise (o
princípio de contradição). Esta é uma advertência para que, da
possibilidade dos conceitos (lógica), não se infira logo a possi-
bilidade (real) das coisas”.
191
Observa-se, assim, que em Kant há uma explicação muito importante
dos conceitos possibilidade lógica e real na discussão da questão da liber-
189
KANT, Lições de Metafísica, 2002, p. 62.
190
ARISTÓTELES, Aristotelis Metaphysica, 1987, Livro V, 12, 1019.
191
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, nota de B 624.
92
dade. A possibilidade real de uma consideração dialética é dada aos con-
ceitos somente quando eles não são vazios, mas aplicam-se a uma síntese
empírica. Isto é, podem possuir uma intuição externa. Não obstante, a pos-
sibilidade lógica de um nome dialético não possui nenhum correlato empíri-
co, mas se atribui a algo pensável sem ser contraditório com outro conceito.
Ou seja, é o que é possível de se pensar ao não ser algo que se possa ne-
gar em sua totalidade. Não se trata de uma questão apodítica; também não,
assertórica; mas, problemática: pode ser e não ser ao mesmo tempo. É, na
filosofia kantiana, o caso da liberdade que não é um objeto de conhecimen-
to no plano especulativo, não é uma realidade lógica, mas não deixa de ser
possível pensá-la numa perspectiva racional problemática. Isto porque, sem
tal possibilidade lógica da liberdade, seria impossível pensar apenas numa
causalidade natural a fim de explicar toda a sucessão de ações. Porque é
impossível pensá-la, deve-se abrir espaço para a existência de uma possibi-
lidade livre enquanto não contraditória às leis naturais. Essa é a demonstra-
ção da possibilidade da liberdade, apresentada mediante a distinção dos fe-
nômenos e númenos da solução da terceira antinomia, ao não ser mais, a
partir daí, um conceito problemático conflitante entre a causalidade natural e
livre.
Segundo Kant, em relação à terceira antinomia, era justamente essa
“a única coisa que podíamos fazer e também aquela que única e exclusiva-
mente nos interessava”.
192
Portanto, possível de se pensar uma causalidade
192
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 586.
93
livre em sua acepção lógica. De fato, há, na dialética transcendental, uma
possibilidade lógica da liberdade, isto é, um conceito equivalente a um es-
paço numênico não possuidor de nenhuma sensação empírica, mas que faz
parte de um vazio conceitual e, portanto, nada mais é do que um conceito-
problema. Embora possível de ser pensado, é cuidadosamente articulado
pela razão especulativa para não gerar conflitos com os resultados já obti-
dos na analítica transcendental.
Para tanto, tal possibilidade é exposta mediante um númeno, um
conceito desprovido de todo e qualquer valor real (B 100). A nota caracterís-
tica real de uma possibilidade dialética, não obstante, dependeria não ape-
nas de que se pudesse pensar um conceito sem contradições, mas também
de que ele estivesse de acordo com as condições formais da experiência
(com referência à intuição e aos conceitos).
A possibilidade real, não obstante, não nega a possibilidade lógica,
mas a conserva em si mesma e a coloca possivelmente ao acordo com uma
síntese empírica. Isso porque a condição lógica, “embora necessária para o
conceito, está longe de ser suficiente para a possibilidade real”.
193
Logo, pa-
ra se ter uma possibilidade real, não basta uma possibilidade lógica: “A pos-
sibilidade de uma coisa nunca pode ser provada a partir da não-contradição
de um conceito, mas somente e enquanto este é documentado por uma in-
tuição que lhe corresponda”.
194
Isso porque são conceitos vazios e proble-
máticos os que não se referem a uma experiência possível -o que não é o
193
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 302.
194
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 308.
94
caso da possibilidade real. Essa não é totalmente vazia de conteúdo ao
não ser apenas o enunciado de um conceito logicamente possível, mas
poder se referir a uma intuição empírica a partir de condições de possibili-
dade de conhecimento dos objetos. É bem verdade que a possibilidade real
depende duma condição lógica, mas apenas como pré-requisito à síntese
requerida para o conhecimento dos objetos:
195
“Mas, se vos perguntar o que entendeis por contingente e me
responderdes que é aquilo cuja não-existência é possível, de-
sejaria então saber como conheceis esta possibilidade da não-
existência, se não tiverdes a representação de uma sucessão,
na série dos fenômenos e, nesta sucessão, uma existência
que segue a não-existência (ou reciprocamente) e, portanto,
uma mudança; porquanto, dizer que a não-existência de uma
coisa não é em si contraditória é um apelo vão a uma condição
lógica que, embora necessária para o conceito, está longe de
ser suficiente para a possibilidade real”.
196
A possibilidade real, portanto, não apenas requer uma possibilidade
lógica, mas da “forma objetiva da experiência em geral <que> contém a sín-
tese que é requerida para o conhecimento dos objetos”.
197
Assim sendo, a
possibilidade real é o conceito dado a todas as condições de possibilidade
que podem ser aplicadas a uma sensação empírica. Ou seja, se trata da
soma, da unidade, da ligação do que é necessário para se obter o conheci-
mento aplicado a um objeto empírico.
Desse modo, para Kant, a possibilidade real de um conceito dialético
é quando ele pode ser uma condição de possibilidade do conhecimento
empírico. Efetivo, não obstante, seria apenas se ele não apenas fosse um
postulado da possibilidade das coisas, mas o resultado de sua junção com
195
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 267.
196
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 301/302.
95
dados sensíveis. Na possibilidade real das coisas, portanto, se requer o
engendramento de uma percepção, ou seja, uma sensação acompanhada
de consciência (B 198).
Possuir percepção de um objeto não é propriedade do postulado da
possibilidade, mas do postulado da realidade. Logo, a possibilidade real e o
postulado da possibilidade são de distintas naturezas. Se “o conceito prece-
de a percepção, isto significa a mera possibilidade da coisa”,
199
mas nunca
a possibilidade real possuidora de validade objetiva uma vez que pode ser
aplicável aos objetos de toda experiência possível.
“Para atribuir, porém, a um tal conceito validade objeti-
va (possibilidade real, pois a primeira era simplesmente
lógica), é exigido mais”.
200
Por fim, como se viu nessa seção, a possibilidade real de um con-
ceito difere totalmente de sua mera possibilidade lógica. Muito antes, con-
forme a já citada nota de B 624, a possibilidade lógica é restritiva a tais con-
ceitos apenas possíveis de serem pensados como não contraditórios, mas
que não possuem nenhum possível correlato a uma síntese empírica. Para
se ter a possibilidade real dum conceito em questão, seria necessário que
ele não apenas não fosse contraditório, mas pudesse se referir a uma sínte-
se empírica enquanto uma condição de possibilidade do conhecimento.
Dessa possibilidade conectada a dados da experiência possível, se estabe-
leceria sua validade apodítica, ou seja, realidade (B 100-1). Mas da liberda-
197
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 267.
198
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 273.
199
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 273.
200
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, nota de B XXVI.
96
de se poderia obter tal certeza? Em que condições se poderia afirmá-la? É
o que se procura esclarecer no texto a seguir.
3.2.2 Em defesa da possibilidade lógica da liberdade em B 560
Desse modo, tendo clara a distinção das acepções de possibilidade
envolvidas nas passagens B 560 e B 586 é possível entender-se porque e-
las não são contraditórias. Verdadeiramente, B 586 não é nem um pouco
contraditória à atestada possibilidade da liberdade, aclarada na solução da
terceira antinomia, uma vez que aqui não admitimos outra possibilidade da
liberdade a não ser a de sua acepção lógica. Ou seja, duma possibilidade
apenas enquanto idéia pensada a partir de um conceito, não real, mas logi-
camente possível. Isso é o que se pode observar no restante das passa-
gens que se referem ao conceito da liberdade naquela obra crítica, em es-
pecial na solução da terceira antinomia, que havia afirmado uma possibili-
dade da liberdade simplesmente enquanto pensamento conceitual, ou seja,
apenas de forma lógica.
Assim sendo, pode-se afirmar que Kant, na solução da terceira anti-
nomia, não demonstrou a liberdade como uma realidade objetiva, mas, uma
vez que não a negou enquanto idéia transcendental, deixou em aberto um
espaço a este conceito enquanto pensabilidade. Se a tivesse negado, ele
não teria podido expor os conceitos de liberdade prática, nem a compatibili-
dade de um caráter empírico e inteligível nas sessões subseqüentes à de-
97
monstração da possibilidade da liberdade na solução da terceira antinomia,
e, muito menos, a passagem ao conceito de razão prática. Mas, uma vez
que ele os demonstrou, não teria que ter previamente apontado uma possi-
bilidade, ao menos lógica, do conceito desta necessária liberdade transcen-
dental? Realmente o filósofo aí se encontrava em um dilema no qual, ou
abriria um espaço conceitual em que fosse possível pensar a liberdade e
seus conceitos posteriores, ou seríamos totalmente envolvidos por um com-
pleto determinismo físico, no qual se fecharia o próprio sistema filosófico,
uma vez que, num de seus escritos pré-críticos, ‘Sobre o otimismo’, de
1759, Kant já tinha a clara idéia de que nós somos seres não determinados,
mas dotados de liberdade.
Deste modo, a solução da terceira antinomia permitiu-nos ter um
uso da razão totalmente diferente, indicando-nos “uma competência muito
mais ampla da razão enquanto uma faculdade não exclusivamente dedica-
da à cognição”.
201
Porque nela foi possível demonstrar a possibilidade lógica
da liberdade ao não ser incompatível com as necessidades naturais, uma
vez que ambas podem se encontrar em um mesmo sujeito, mas em diferen-
tes espaços conceituais, é que ela pôde ser aclarada.
202
É o que Kant tam-
bém irá afirmar na Fundamentação da Metafísica dos Costumes:
“Há, pois, que pressupor que entre liberdade e necessidade na-
201
BECK, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, 1984, p. 25.
202
Conforme QUARFOOD (2001), esse era o papel essencial da filosofia especulativa: “A filo-
sofia teórica deve mostrar que estas duas características podem ser combinadas nos mesmos
sujeitos em diferentes circunstâncias, como coisas em si e aparências. Este é o resultado da
terceira antinomia da Crítica da Razão Pura : o idealismo transcendental faz ensejo a dois pon-
tos de vistas e, portanto, mostra que liberdade é logicamente compatível com a causalidade da
lei natural, sem provar que realmente há liberdade”. Q
UARFOOD, Kant´s Practical
Deduction of Moral Obligation in Groundwork III, 2001, p. 77.
98
tural dessas mesmas ações humanas se não encontra ne-
nhuma verdadeira contradição; pois não se pode renunciar
nem ao conceito de natureza nem ao de liberdade (...) Não se
pode, contudo, dizer ainda aqui que começa a fronteira da fi-
losofia prática. Pois aquela liquidação do debate não lhe per-
tence de maneira alguma; o que ela exige da razão especulati-
va é somente que acabe com esta discórdia em que se acha
embaraçada em questões teóricas, para que a razão prática
tenha repouso e segurança em face dos ataques exteriores
que poderiam disputar-lhe o terreno sobre o qual quer instalar-
se”.
203
Porque Kant não negou a possibilidade da liberdade na solução da
terceira antinomia é que se pôde admitir uma liberdade prática. Isso, porque
a “natureza humana (Natur der Menschen) não se apresenta como um con-
junto de fatos brutos conectados por leis causais empíricas, mas como uma
facticidade da razão”.
204
Se fosse admitida apenas uma causalidade do pon-
to de vista fenomênico, isto é, enquanto objeto da experiência, a vontade,
necessariamente, estaria à mercê de um puro empirismo que aniquilaria a
propriedade de o homem autodeterminar-se, independente das sensações e
móbiles empíricos. Não se teria aí condição alguma de mais tarde explicar o
agir livre do homem. O viés da liberdade era indispensável para explicar-se
o uso prático de nossa razão. Para tal fim, era necessário que a filosofia es-
peculativa não negasse, mas deixasse indeterminada uma causalidade li-
vre, ou seja, a da liberdade transcendental.
205
Mas essa liberdade transcen-
dental, em sua acepção cosmológica, possuiria alguma relação com a liber-
dade da vontade?
Deste modo, demonstrado que B 586 não conflitaria com B 560, pô-
203
KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1983, BA 115/116.
204
LOPARIC, As Duas Metafísicas de Kant, 2003, p. 305.
205
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 82.
99
de-se certificar ter a Crítica da Razão Pura deixado em aberto uma possibi-
lidade da liberdade transcendental enquanto idéia, conceito lógico. Porque
foi aclarada essa possibilidade da liberdade como não contraditória às cau-
salidades naturais por meio da solução da terceira antinomia, é que o filóso-
fo pôde engendrar o conceito de liberdade prática. A liberdade prática, como
já vimos, era dependente da liberdade transcendental. A liberdade por ela
exigida, no entanto, não era liberdade transcendental em sua acepção rela-
cionada à cosmologia, mas sim, à espontaneidade das ações.
Conforme Allison (1995), e o que se constata na dialética transcen-
dental, aclarada a possibilidade da liberdade transcendental por meio da so-
lução da terceira antinomia, o filósofo viu-se ocupado em fazer a passagem
de uma liberdade transcendental em sua acepção cosmológica
206
para a da
espontaneidade de uma ação,
207
portanto, volitiva.
208
Mas como se desenvol-
veu o argumento da passagem de uma acepção cosmológica da liberdade
transcendental para sua acepção volitiva (da espontaneidade de uma ação
humana)? Acaso, aquela já não era possuidora de uma espontaneidade ab-
soluta das causas de uma série de fenômenos?
209
Precisar-se-ia fazer essa
passagem da liberdade transcendental em sua acepção cosmológica para a
volitiva?
206
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 561.
207
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 561.
208
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 563. É inegável que deva existir uma li-
berdade transcendental em sua acepção não relacionada a uma série de eventos cosmológi-
cos, mas sim a uma propriedade causal da vontade humana, porque senão, a liberdade prática
não subsistiria porque ela é dependente da liberdade transcendental. Isso pode ser observado
em: KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 168, bem como em A 173 onde Kant expõe que
a liberdade transcendental também tem que ser pensada como objeto do sentido interno.
209
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 474.
100
Responde-se à referida questão de forma positiva. Era necessário
fazer-se essa passagem porque, embora ambas tenham como principal
característica a ‘espontaneidade’, referem-se a dois usos completamente di-
ferentes. Inclusive, ambas são por Kant definidas de modo distinto. Nas pa-
lavras do filósofo, a passagem que introduz essas duas acepções:
“A idéia transcendental de liberdade (...) reporta-se unicamente
ao seguinte: tem que ser admitida uma faculdade de iniciar es-
pontaneamente uma série de coisas sucessivas ou de esta-
dos”.
210
Deste modo, como bem observa Allison (1995), há um sentido de li-
berdade transcendental em sua acepção cosmológica enquanto causalida-
de no tempo,
211
e enquanto a capacidade de iniciar estados de ações. Para
esta acepção de liberdade é que Kant nos dá o exemplo de levantar-se da
cadeira de forma livre e sem determinações de qualquer causalidade natu-
ral. Nas palavras do filósofo, ilustra-se o conceito de liberdade transcenden-
tal não relacionado à cosmologia, mas aos estados de ações:
“Com efeito, falamos aqui do início absolutamente primeiro,
não quanto ao tempo, mas quanto à causalidade. Se agora
(por exemplo) me levanto da minha cadeira de modo inteira-
mente livre e sem a influência necessariamente determinante
das causas naturais, então, neste evento, inicia-se absoluta-
mente uma nova série juntamente com as suas conseqüências
naturais até o infinito, se bem que, quanto ao tempo, esse e-
vento seja somente a continuação de uma série preceden-
te”.
212
Mas como Kant fez a passagem da acepção cosmológica da liber-
210
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 476.
211
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 478.
212
KANT, Crítica da Razão Pura , 1987, B 478.
101
dade transcendental para a liberdade transcendental enquanto propriedade
de iniciar um estado de uma ação na dialética transcendental? Como se
pode observar em B 561, introduzido o conceito de liberdade transcendental
em sua acepção cosmológica, ou seja, enquanto um conceito que “não con-
tém nada emprestado da experiência”, não deixamos de estar na esfera do
pensamento de uma razão pura. Todo o pensamento da razão pura se de-
senvolve por meio de idéias. Ambas as acepções de liberdade transcenden-
tal são idéias. Logo, é a própria razão pura por meio das idéias que pôde
fazer a passagem de uma acepção de liberdade cosmológica à volitiva.
213
Graças a essa passagem, o autor pôde, assim, engendrar o concei-
to de liberdade da vontade dependente, não da liberdade transcendental em
sua acepção cosmológica, mas sim enquanto sinônimo de espontaneidade
das ações. Além disso, em segundo lugar, não fechou o sistema da razão
na filosofia teórica, mas fez uma passagem à razão prática. Em terceiro, fez
uma exposição, já no Cânone dessa obra magna, de uma teoria moral se-
micrítica.
214
Verificada a possibilidade da verdade de tais causalidades, ela não
só atestou a legitimação da tese afirmando uma causalidade livre (de que
aqui nos ocupamos) e da antítese, demonstrando uma causalidade natural,
mas também o engendramento da liberdade em sua acepção prática. Essa,
enquanto causalidade presente numa ação volitiva, humana e independente
213
Sobre esse ponto, veja: ROHDEN, Interesse da Razão e Liberdade, 1981; bem como:
BENNETT, La Crítica de la Razón Pura de Kant 2. La Dialética, 1981.
214
Para maiores esclarecimentos, veja: ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 96.
102
de impulsos da sensibilidade,
215
é ao mesmo tempo “uma causalidade ca-
paz de produzir, independente dessas causas naturais e mesmo contra o
seu poder e influência, algo determinado (...) e, por conseguinte, capaz de
iniciar completamente por si mesma uma série de acontecimentos”.
216
Con-
tudo, esta era dependente de uma liberdade transcendental;
217
e tendo afir-
mado a possibilidade de tal liberdade na solução da terceira antinomia foi
“salva a liberdade prática, a saber, aquela na qual a razão tem
causalidade segundo fundamentos objetivamente determinan-
tes, sem que a necessidade da natureza em relação aos
mesmos efeitos, como fenômenos, seja prejudicada. Justa-
mente isto pode servir para o esclarecimento daquilo que tí-
nhamos a dizer acerca da liberdade transcendental e sua con-
ciliação com a necessidade da natureza (no mesmo sujeito,
mas não tomado numa única relação)”.
218
Por essa possibilidade, não apenas salvou-se a liberdade em sua
acepção prática, como foi visto na citada passagem dos Prolegômenos,
mas pôde-se também compatibilizar um caráter empírico e inteligível.
219
Do
caráter empírico, os seres racionais fazem parte ao agir por um determinado
impulso sensível com vistas a um fim almejado; do caráter inteligível, quan-
215
KANT, Crítica da Razão Pura , 1987, B 562.
216
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 562. Esta mesma interpretação do conceito de liber-
dade prática é defendida por ALMEIDA, Liberdade e Moralidade Segundo Kant, 1997, p. 181.
217
Para maiores esclarecimentos, veja: B 562. Desta relação entre a liberdade transcendental e
prática, contudo, faz-se exceções às passagens expostas no Cânone da Crítica da Razão Pura
a cujo problema não se aterá.
218
KANT, Prolegômenos, 1983, § 52 - CE.
219
Nas palavras de KANT: “Caráter empírico <é quando>, mediante o qual, as suas ações en-
quanto fenômenos, se interconectariam completamente com outros fenômenos segundo leis
constantes da natureza e poderiam ser derivadas destes, enquanto eles são suas condições,
constituindo, pois, em conjunção com os mesmos, membros de uma única série da ordem na-
tural. (...) Caráter inteligível mediante o qual aquele sujeito é causa daquelas ações enquanto
fenômenos, ele mesmo, no entanto, não se subordinando a quaisquer condições da sensibili-
dade e não sendo, pois, um fenômeno.” (B 567). Outra imprescindível passagem relativa a este
assunto encontra-se no texto da Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “Daqui tem de
resultar a distinção, embora grosseira, entre um mundo sensível e um mundo inteligível, o pri-
meiro dos quais pode variar muito segundo a diferença de sensibilidade dos diversos especta-
103
do o conteúdo de suas ações segue as normas racionais. Porque ambas
as causalidades são possíveis e compatíveis, foi possível pensar-se em
uma vontade submetida a uma causalidade livre sem ser, no entanto, in-
compatível com uma causalidade natural. Para tanto, era necessário que
não se negasse a possibilidade de existência destas duas causalidades a-
claradas pela terceira antinomia, uma vez que, se apenas houvesse uma
causalidade natural, submetida às leis da natureza, portanto não livre, con-
forme Kant, em hipótese alguma poderíamos identificar traços morais no
homem, muito antes, apenas verificar-se-ia um determinismo.
220
De outro
modo, se apenas houvesse uma causalidade livre, o homem, em hipótese
alguma, seria afetado pelos impulsos sensíveis, o que também não proce-
deria, porque, neste caso, a vontade seria totalmente inerte e nada faria. I-
gualmente, se ela se referisse apenas aos fenômenos e não se referisse,
em hipótese alguma, ao segundo sentido <em si>, essa vontade poderia,
pelo lado dos fenômenos, ser sujeita às leis da natureza como não livre. Por
outro lado, pertencente aos númenos, poderia ser livre sem que houvesse
contradição, trazendo-nos a necessária compatibilidade. É o que Kant afir-
ma no prefácio da segunda edição, bem como em B 565.
221
“Se (...) o princípio da causalidade se referir apenas às coisas
tomadas no primeiro sentido, isto é, enquanto objeto da expe-
riência, e se as mesmas coisas, tomadas no segundo sentido,
dores, enquanto o segundo, que lhe serve de base, permanece sempre idêntico”. KANT, Fun-
damentação da Metafísica dos Costumes, 1960, BA 107.
220
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B XXVII.
221
“Em conseqüência, o efeito pode ser encarado, ao mesmo tempo, como livre no que se refe-
re a sua causa inteligível e como resultado de fenômenos segundo a necessidade da natureza
no que se refere aos fenômenos.Trata-se de uma distinção que, quando exposta desse modo
geral e totalmente abstrato, tem que parecer extremamente sutil e obscura, mas que se aclara-
rá em sua aplicação”. KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 565.
104
lhe não estiverem sujeitas, então essa mesma vontade pode,
por um lado, na ordem dos fenômenos (das ações visíveis),
pensar-se necessariamente sujeita às leis da natureza, ou se-
ja, como não livre; por outro lado, enquanto pertencente a
uma coisa em si, não sujeita a essa lei e, portanto, livre, sem
que deste modo haja contradição”.
222
Este dualismo causal era “uma pressuposição necessária da teoria
ética kantiana e a principal conclusão de sua crítica à metafísica especulati-
va”,
223
uma vez que, a partir daí, é possível considerar o homem como per-
tencente a um mundo sensível (fenomênico), dependente das leis naturais e
condicionadas, e a um mundo inteligível (numênico), dependente de leis au-
tonônomas e da sua própria vontade, sem dependência alguma de fatos ex-
teriores à sua própria causalidade. Por tal razão, a filosofia teórica teve que
mostrar que estas duas características (causalidade natural e causalidade
livre) podem ser combinadas no mesmo sujeito em diferentes perpectivas,
uma como fenômeno e a outra, como númeno.
224
Sabe-se, portanto, que Kant também tinha como um de seus pro-
blemas, a partir da solução da terceira antinomia, compatibilizar um caráter
empírico e um caráter inteligível, o que já ele procura desenvolver numa se-
ção intitulada “possibilidade da causalidade mediante a liberdade, em união
222
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, BXXVIII. A acepção ‘coisa em si’ é usada por Kant co-
mo sinônimo de númeno, mas as vezes númenos e coisa em si são de distintas acepções. A
respeito do problema da distinção entre númeno e coisa em si, eximimos comentários por não
ser nosso problema dissertativo, mas recomendamos a leitura de: ALLISON, Kant’s Transcen-
dental Idealism an Interpretation and Defense, 1983. LOUZADO, “Non est” não é “est non”:
phaenomenon e noumenon na Crítica da Razão Pura, 2003. BONACCINI, Kant e o Problema
da Coisa em Si no Idealismo Alemão: sua atualidade e relevância para compreensão do pro-
blema da filosofia, 2003.
223
BECK, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, 1984, p. 26.
224
Conforme: QUARFOOD, Kant´s Practical Deduction of Moral Obligation in Groundwork III,
2001, p. 76.
105
com a lei universal da necessidade natural”.
225
Com isso, não queremos
negar que Kant, na solução desta terceira antinomia, tenha tido o problema
de demonstrar que a causalidade livre não é incompatível com a causalida-
de natural, mas que, para tal fim, ele não poderia, antes, negar a possibili-
dade da liberdade que estava em questão. Isso porque, da possibilidade de
uma causalidade natural já éramos conhecedores desde a analítica trans-
cendental; contudo, a causalidade livre era uma novidade introduzida pela
terceira antinomia, por meio de uma idéia conflitante da razão pura e que,
como se viu, poderia muito bem ter sido negada, mas não o foi. Possibilida-
de esta que nos permitiu analisar o homem como pertencente a uma ordem
inteligível e pensá-lo também como ser fenomênico ao mesmo tempo. A
possibilidade de a terceira antinomia afirmar ambas (causalidade natural e
causalidade incondicionada) permite-nos encontrar “liberdade e natureza,
cada qual em seu significado pleno, ao mesmo tempo e sem qualquer con-
flito, exatamente nas mesmas ações, conforme as comparamos com sua
causa inteligível ou sensível”,
226
de onde se conclui pela possibilidade de e-
xistência de dois caracteres de um mesmo ser. Pela possibilidade de am-
bos, é possível aceitar que uma ação possa estar na ordem sensível e
submissa a certas leis sem conter a menor contradição.
227
225
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 566.
226
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 569.
227
Conforme: KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 1983, BA 110 / 111.
106
3.3 Algumas considerações referentes ao conceito de liberda-
de na solução da terceira antinomia
Espera-se ter, por meio do capítulo anterior, introduzido duas impor-
tantes observações a respeito duma possível glosa a B 560: a primeira é a
de que não se admitem comentários de que Kant tenha hipostasiado o con-
ceito de liberdade em B 560; a segunda é que, admitidas as diferentes a-
cepções do conceito ‘possibilidade’, as passagens B 586 e B 560 podem ser
entendidas como não contraditórias. Além dessas, acrescentam-se outras
duas: a terceira é que, com base em Allison (1995) e Paton (1970), Kant te-
nha legado, por meio da solução da terceira antinomia, um espaço lógico-
conceitual pelo qual fosse possível desenvolver-se o conceito de uma razão
prática; a quarta, refere-se aos limites de tal liberdade na obra da Crítica da
Razão Pura.
Entende-se, deste modo, de forma análoga a Allison (1995), que um
dos problemas de Kant em tal passagem tenha sido o de não negar, mas in-
troduzir tal conceito necessário e fundamental para a filosofia prática e, ge-
nuinamente, deixar em aberto um espaço lógico-conceitual pelo qual fosse
depois possível desenvolvê-lo em todas as dimensões exigidas por um sis-
tema de uso prático da razão. Paton (1970) também é defensor dessa tese.
Smith (1999), em seu magno comentário, escrito com toda maestria que lhe
é própria, literalmente, alega uma glosa similar. Com base nessas três ânco-
ras kantianas, não se quer negar que Kant tenha exposto a doutrina de uma
possibilidade lógica da liberdade. Isso porque, de fato, ela não é declarada
107
aí mais que um conceito problema, visto ser oposta ao que se manifesta no
mundo sensível e residente num contexto restritamente pensado e não co-
nhecido. Isso se pode averiguar na doutrina transcendental do método.
O que apenas poderia ser pensável pertenceria unicamente às idéi-
as puras da razão. Graças ao fato desse pensar deprovido de todas as re-
presentações empíricas, a crítica pôde reconhecer, nos limites da razão pu-
ra, um espaço lógico para tais conceitos. Esse lugar de conceitos-
problemas não evidencia mais que uma possibilidade lógica de um conceito
que, como se viu, é definido por Kant numa preciosa nota da Crítica da Ra-
zão Pura como o lugar vazio ocupado por um conceito não possuidor de
uma realidade empírica, mas apenas como não contraditório aos outros do
mesmo sistema.
O conceito de liberdade é um conceito vazio de conteúdo porque,
como já expusemos, ele é um conceito apenas pensável, mas não obser-
vável empiricamente. Todo conceito dessa natureza, se não for contraditó-
rio com os demais, apenas é possível logicamente. É assim possível por-
que, como já vimos, é legítimo e, embora não possamos conhecê-lo, somos
autorizados a pensá-lo noutra dimensão da realidade: o plano numênico, ou
supra-sensível. Só assim faz sentido falar de limites do conhecimento. Se
podemos pensar um plano de realidade não empírico, podemos pensar que
há idéias independentes das leis naturais. A liberdade não é um fato, mas
também não podemos declará-la uma ilusão porque podemos pensá-la, por
não ser um absurdo. Dada esta distinção, o homem, enquanto ser racional
(ser numênico) e não simplesmente sensível, pode pensar-se livre, isto é,
108
não estando na sua totalidade submetido a leis naturais.
Por fim, pode-se concluir que, verdadeiramente, o problema de
Kant na terceira antinomia era o de expor os problemas antinômicos a que a
razão chega ao buscar o incondicionado do condicionado de todas as cau-
salidades cosmológicas. O interesse da solução da presente contradição
não era outro que o da própria razão
228
que estava em questão e que assim
pôde aí deixar em aberto um lugar vazio conceitual.
“Mantendo aberto à razão especulativa o lugar vazio para ela,
ou seja, o inteligível, para transferir a ele o incondicionado”.
229
Porque é mantido um espaço conceitual a partir da solução da ter-
ceira antinomia, como o próprio filósofo afirma na mencionada passagem, o
autor pôde continuar seu sistema arquitetônico de uma razão pura. O uso
especulativo desta deixou em aberto uma possibilidade lógica de tal concei-
to, ou seja, um espaço vazio pelo qual fosse possível expor uma razão pura
em seu uso prático. Uso esse que, exposto após 1787 na obra Crítica da
Razão Prática, não apenas deu continuidade a tal sistema filosófico exposto
na insigne obra precedente, mas se constituiu numa prova de que aquela
obra verdadeiramente legou um espaço conceitual para que esse conceito
fosse admitido pela filosofia crítica. Logo, uma das principais preocupações
de Kant na análise desse conflito antinômico era exatamente seu envolvi-
mento com o interesse da razão pura enquanto sistema. O sistema depen-
dia de um espaço lógico pelo qual se pudesse desenvolver um uso comple-
228
BECK, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, 1984, p. 26.
229
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 84/85.
109
to, sistemático e arquitetônico da razão pura. Esse espaço lógico não fe-
nomênico, mas numênico é o grande legado da crítica que, como quer Alli-
son (1995), em grande parte, surgiu da solução da terceira antinomia. Belo
testemunho daquele legado espaço conceitual, são as seguintes palavras
de Kant: “Nada há para nós a não ser um espaço vazio”.
230
Nas palavras de
Allison (1995):
“É apenas porque a solução desta antinomia deixa um espaço
conceitual para uma concepção incompatibilista que é possível
dar ouvido às reinvindicações da razão prática”.
231
Nas palavras de Paton (1970), uma glosa similar à exposta:
“É tarefa da razão especulativa resolver a antinomia ao estabe-
lecer este duplo ponto de vista e, então, defender a razão prá-
tica e crenças morais contra todos os possíveis ataques. Ra-
zão prática legitimamente requer esse serviço da razão teóri-
ca, e, portanto, isso não vai além de seus próprios limites”.
232
Deste modo, demonstrada não uma validade objetiva da liberdade,
mas uma possibilidade de se compatibilizar tal conceito por meio de um i-
dealismo transcendental, pôde-se deixar em aberto um espaço lógico-
conceitual.
233
A confirmação de que parte desse espaço lógico-conceitual,
necessário ao conceito de razão prática, estaria presente na solução da ter-
ceira antinomia, como querem Allison (1995) e Paton (1970), é a terceira
consideração aqui de grande importância. Isso porque, como se viu ao lon-
230
KANT, Crítica da Razão Pura, 1978/79, B 730.
231
ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1995, p. 11.
232
PATON, The Categorical Imperative, 1970, p. 266.
233
Defensor dessa tese também é BECKENCAMP, ao afirmar: “A crítica da razão especulativa
prepara, pois, o terreno para a crítica da razão prática, ao defender o conceito de uma causali-
dade livre contra todos os possíveis ataques da razão teórica. No lugar vazio assim entreaberto
pela crítica da razão especulativa, a razão prática pura instaura o domínio de sua própria legis-
110
go desse capítulo, assim o filósofo pôde, pelas idéias transcendentais, fa-
zer uma passagem à razão prática. Para desenvolver esse conceito, con-
tudo, era necessário haver um espaço que o tornasse possível.
Conforme Allison (1995) e Paton (1970), um espaço lógico-
conceitual é estabelecido na solução da terceira antinomia, bem como em B
730 da KrV e A 85 da segunda Crítica. Logo, conclui-se, por meio desses
apontados recursos, que Kant, a partir da solução da terceira antinomia, re-
almente deixou em aberto um espaço lógico que, imprescindivelmente, fez
parte de uma passagem da filosofia teórica à filosofia prática. Uma das cita-
ções a que se poderia fazer referência para se atestá-lo seria a seguinte:
“Ora, conquanto tenhamos que dizer, com respeito aos concei-
tos transcendentais da razão: eles são somente idéias, não os
consideramos de modo algum supérfluos e nulos. Com efeito,
se mediante eles já não pode ser determinado nenhum objeto,
eles, não obstante, podem, no fundo e sem que se perceba,
servir ao entendimento como cânone para o seu uso ampliado
e coerente, pelo qual, na verdade, não conhece mais nenhum
objeto como os que ele conheceria pelos seus conceitos, mas,
não obstante, é guiado melhor e adiante nesse conhecimento.
Cala-se com isso o fato que tais conceitos transcendentais da
razão tornem talvez possível uma passagem dos conceitos
naturais aos conceitos práticos e, deste modo, possam
fornecer às idéias morais mesma consistência e conexão
com conhecimentos especulativos da razão”.
234
Assim, essa citação nos deixa claro que as idéias fazem parte de
um dos passos desenvolvidos criticamente por Kant, a fim de abrir uma
‘passagem’ do uso teórico da razão pura para seu uso prático. De fato, fo-
ram as idéias que possibilitaram ao filósofo, na Crítica da Razão Pura, con-
lação”. BECKENKAMP, “O Lugar Sistemático do Conceito de Liberdade na Filosofia Crítica
Kantiana”, 2004.
234
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 385/386. (Grifos do autor).
111
firmar um espaço conceitual vazio de conteúdo, sem ser contraditório às
leis da natureza. Dessas idéias, fez parte a desenvolvida solução da tercei-
ra antinomia e a defesa de uma possibilidade da liberdade. Logo, a solução
de tal antinomia foi importante para a continuidade do próprio sistema críti-
co-filosófico. Isso porque ele era indispensável ao desenvolvimento do sis-
tema da razão pura como um todo, uma vez que por meio dele é que se fa-
ria a passagem da Crítica da Razão Pura (B) para a Crítica da Razão Práti-
ca. Mas como teria ele desenvolvido essa passagem de um uso teórico da
razão para o seu uso prático?
112
3.3.1 Da passagem do uso teórico da razão pura ao seu uso
prático conforme a obra crítica da razão prática A 83/ 85
235
Kant escreve na Crítica da Razão Prática:
“A determinação da causalidade dos entes no mundo sensorial
jamais podia ser, enquanto tal, incondicionada e, não obstante,
para toda a série das condições necessariamente tem que ha-
ver algo incondicionado e, por conseguinte, também uma cau-
salidade que se determine inteiramente por [84] si. Por isso, a
idéia de liberdade como uma faculdade de absoluta esponta-
neidade não era uma carência mas, no que concerne a sua
possibilidade, uma proposição fundamental analítica da razão
especulativa pura. Todavia, visto que é absolutamente impos-
sível fornecer, em qualquer experiência, um exemplo adequa-
do a ela, porque não pode encontrar-se entre as causas das
coisas como fenômenos nenhuma determinação da causalida-
de que fosse absolutamente incondicionada, assim podíamos
defender somente o pensamento de uma causa agente livre
enquanto aplicamos este a um ente no mundo sensorial, con-
tanto que ele ,por outro lado, seja também considerado como
noumenon; <isto> na medida em que mostrávamos que não é
contraditório considerar todas as suas ações como fisicamente
condicionadas, contanto que elas sejam fenômenos, e consi-
derar ao mesmo tempo a causalidade das mesmas como fisi-
camente incondicionadas, contanto que o ente agente seja um
ente inteligível, e ,assim, tornar o conceito de liberdade um
princípio regulativo da razão; mediante o que, na verdade, não
conheço o que seja o objeto ao qual semelhante causalidade é
atribuída, contudo, removo o obstáculo enquanto, por um lado,
na explicação dos acontecimentos do mundo, por conseguinte
também das ações de entes racionais, faço justiça ao meca-
nismo da necessidade natural de retroceder do condicionado à
condição até o infinito, por outro lado, porém, mantenho aberto
à [85] razão especulativa o lugar vazio para ela, ou seja, o inte-
ligível, para transferir a ele o incondicionado. Mas eu não podia
realizar este pensamento, isto é, transformá-lo sequer, se-
gundo sua possibilidade, em conhecimento de um ente agin-
do desse modo. Ora, esse lugar vazio é preenchido pela razão
prática pura através de uma determinada lei da causalidade
em um mundo inteligível (mediante liberdade), ou seja, pela lei
235
É digno registar nossos agradecimentos aos professores doutores Gerson Luiz Louzado e
Sílvia Altmann, uma vez que, por meio do seminário de Kant II/04 oportunizaram o engendra-
mento dessa reconstrução argumentativa. A mim, apenas cabe a responsabilidade da imperfei-
ção face o exposto.
113
moral”.
236
Assim sendo, se considerarmos as páginas A 83/85 da Crítica da
Razão Prática como o amadurecido texto referencial para se explicar a
passagem’ do uso teórico da razão para seu uso prático, elas seriam de
grande importância para demonstrar a relação sistemática engendrada en-
tre a primeira e a segunda críticas. Isso, porque, por meio dessa passagem,
poder-se-ia explicar o modo como o filósofo articulou a transição de um uso
especulativo da razão ao seu uso prático. Transição essa que, em síntese,
assim poderia ser explicada:
I. Deixar-se-ia haver uma determinação completa duma causalidade
sensível; não obstante, ela não poderia ser incondicionada e, portan-
to, admitir-se-iam idéias transcendentais.
II. Uma das inferidas idéias transcendentais seria a da causalidade da
liberdade transcendental. Porque ela era idéia e não se poderia for-
necer nenhuma experiência, poder-se-ia defender apenas seu pen-
samento, ou seja, sua possibilidade lógica.
III. Por ser possível defender seu pensamento, poder-se-ia manter em
aberto um espaço vazio.
IV. Esse lugar vazio seria preenchido.
V. O preenchimento desse espaço vazio dar-se-ia pela representação
duma razão prática mediante uma determinada lei da causalidade.
VI. Essa lei da causalidade seria a lei moral.
236
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 83/85.
114
Mas como foram desenvolvidos os passos da inferida ‘passagem’
entre essas duas obras filosóficas? Não se pretende explicar cada detalhe
aí envolvido, porque certamente necessário seria desenvolver um estudo
tão grande quanto o até aqui já percorrido, mas tem-se o intuito de apenas
expor os principais passos dados da Crítica da Razão Pura à Crítica da Ra-
zão Prática de acordo com A 83/85.
Como se leu na citação de A 83/85, o primeiro passo foi o de, refu-
tando um total empirismo por meio de um idealismo transcendental, expor a
pensabilidade dos conceitos numênicos. Enquanto conceito numênico, a i-
déia da liberdade pôde ser defendida em tal obra. Reconhecendo a pensa-
bilidade de tal idéia legou-se, na primeira Crítica, um espaço lógico numêni-
co não confirmando outra coisa a não ser o que já se havia exposto no ter-
ceiro capítulo da analítica dos princípios. Para se exemplificar tal espaço
conceitual deixado em aberto pela volumosa crítica, basta lembrar a anali-
sada solução da terceira antinomia que, como mostramos, mostrou a possi-
bilidade lógica da liberdade. Porque ela foi possível de ser pensada, pôde o
filósofo mostrar, ao final da dialética transcendental, como já analisamos, a
existência de um espaço vazio.
A esse espaço vazio acresce-se o inteligível. O intelegível, acrescido
ao númeno, o transforma em númeno positivo. É a própria espontaneidade
da razão pura desenvolvendo-se a partir de um espaço lógico-conceitual le-
gado pela razão pura especulativa e sendo ocupado pelo seu uso prático.
De fato, demonstrado esse espaço lógico-conceitual na Crítica da Razão
115
Pura, é a idéia de um incondicionado prático que inicialmente ocupa esse
lugar por meio da idéia da razão pura prática, a partir de um inteligível que
se manifestará a partir da representação da própria lei moral. O Imperativo
Categórico, a representação da razão prática, ocupou o espaço vazio con-
ceitual deixado arquitetonicamente aberto ao final da dialética transcenden-
tal e concluindo com a passagem que está a ser analisada. O cume de tal
empreendimento assim pôde, na Crítica da Razão Prática, ser expresso:
“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre
valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação uni-
versal”.
237
Esquematicamente assim poderíamos apresentar o ponto filosófico
em questão:
Desse modo, a solução da terceira antinomia foi um momento ar-
Æ
(III) Há um lugar vazio.
As idéias são conceitos-
problema.
Æ INTELÍGÍVEL Æ
Æ
(IV) Há uma ocupação
desse espaço vazio pe-
la razão prática pura.
(II) Das idéias apenas se de-
fende a possibilidade de pen-
sá-las.
(V) A Razão prática pu-
ra ocupa esse espaço
por meio de uma lei
causal.
(I) Há idéias.
(VI) Essa lei causal que
representa a razão prá-
tica pura é a lei moral.
Crítica da Razão Pura Crítica da Razão Prática
116
gumentativo de fundamental importância à totalidade arquitetônica desse
sistema filosófico, porque legou tal espaço vazio numênico, possibilitando
uma passagem sistemática a um uso prático da razão pura. Mas tal liberda-
de partícipe dessa passagem à razão prática não teria ultrapassado os re-
sultados teóricos já obtidos na estética transcendental e na analítica trans-
cendental da Crítica da Razão Pura? Esse é o próximo ponto de análise.
3.3.2 As delimitações da liberdade na Crítica da Razão Pura: a
disciplina da razão pura teórica e a liberdade enquanto
conceito-
problema
“O conhecimento do uso exato da razão pura, dos seus princí-
pios e das suas idéias é a tarefa que agora nos cumpre de-
sempenhar para poder determinar e avaliar convenientemente
a influência e o valor da razão pura”.
238
A idéia da liberdade na dialética transcendental foi importante para
desenvolver o que recém procurou-se expor: a transição do primeiro ao se-
gundo uso de uma mesma razão pura.
239
Por meio da aclarada transição,
Kant (1987/88) pôde, de forma evidente, expor uma “ampliação do uso da
razão”.
240
Não obstante, o emprego de tal idéia foi articulado sem prejudicar
os resultados críticos já obtidos na estética transcendental e na analítica
transcendental. Isso porque os conceitos puros da razão, em especial o da
237
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 54.
238
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 376.
239
A respeito da importância das antinomias a própria razão pura, em especial a terceira, pode
ser observada numa das cartas de Kant a Christian Garve datada de 1798. Veja maiores co-
mentários em: ALLISON, Kant´s Theory of Freedom, 1999, p. 11.
240
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 491.
117
liberdade que ora analisamos, como Kant reitera, em relação à experiên-
cia, não passam, de fato, de um problema. Assim escreveu o filósofo:
“Liberdade transcendental exige uma independência desta
mesma razão (com referência à sua causalidade ao começar
uma série de fenômenos) frente a todas as causas determi-
nantes do mundo sensível, parecendo, nesta medida, con-
trária à lei da natureza e, portanto, à experiência possível,
e permanecendo, pois, um problema”.
241
De fato, como já vimos anteriormente, Kant (2001), já na analítica
transcendental, havia procurado mostrar a proximidade conceitual entre
possibilidade lógica e conceito-problema. Verdadeiramente, assim se de-
senvolveu o conceito de liberdade na dialética transcendental, como um
conceito possível de pensar e defender enquanto númeno,
242
mas em rela-
ção à experiência, nada mais se indica do que um conceito-problema.
243
De fato, o problema de Kant na solução da terceira antinomia não
era só o de expor a solução dos problemas antinômicos a que a razão che-
ga ao buscar o incondicionado de todo o condicionado da totalidade das
causalidades cosmológicas, mas também os relevantes resultados com re-
lação à determinação de um sistema completo da própria razão pura. O in-
teresse do próprio sistema arquitetônico da razão pura, portanto, era uma
das grandes finalidades do conceito de liberdade presente na solução da
terceira antinomia. Não obstante isso, esse conceito não é ali apresentado
como contraditório aos resultados críticos teóricos já expostos na estética
241
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 831.
242
Conforme: KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 82.
243
Conforme: KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 4.
118
transcendental e na analítica transcendental. Isso porque a possibilidade
da liberdade transcendental pela solução da terceira antinomia não foi ex-
posta de outra maneira à razão especulativa a não ser como conceito deli-
mitado pelas necessárias condições à obtenção do conhecimento. Ora, a
experiência, de fato, é de fundamental importância para obter-se o conhe-
cimento dos objetos empíricos. Da liberdade transcendental não se possui
nenhuma experiência nos limites da simples razão teórica, e, por isso, no
perímetro de tal razão, como já lemos em B 831, ela não passou de um
conceito-problema.
Nessa primeira obra crítica, portanto, não há uma possibilidade efe-
tiva da liberdade transcendental, mas sim uma delimitação crítica que a
própria razão pura teórica se impõe criticamente, a fim de não ampliar o co-
nhecimento empírico para além dos objetos da simples experiência. Essa
era uma necessária delimitação à razão pura teórica ao pretender conhecer
o que não possui nenhuma representação empírica, uma vez que assim cai
“em obscuridades e contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se
apoiado em erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir”.
244
De
fato, dos objetos empíricos têm-se sensações indispensáveis para a elabo-
ração do conhecimento pelo intelecto. Ora, da liberdade não há sensações
e dela, por ora, em relação à cognição dos objetos empíricos,
245
não se tem
244
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, A VII.
245
É “incontestável que os conceitos puros do entendimento não podem nunca ser para uso
transcendental, mas sempre e apenas para uso empírico, e que só com referência às condi-
ções gerais de uma experiência possível pode-se relacionar os princípios do entendimento aos
objetos dos sentidos, mas nunca às coisas em geral (sem considerar o modo como podem ser
intuídas).” KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 303.
119
outra coisa a não ser uma precisa delimitação crítica mediante um conceito
não efetivo, mas possível de ser pensado. Porque é possível de ser pen-
sado enquanto conceito não conhecido, a liberdade - na Crítica da Razão
Pura - não passou de um conceito crítico problemático do uso da razão es-
peculativa.
246
Mas, como vimos, de fundamental importância ao uso prático
ao tê-lo tornado possível, uma vez que a própria ampliação da razão pura aí
estava em questão.
247
3.3.3 Da relação entre a possibilidade lógica da liberdade trans-
cendental e os princípios regulativos
A possibilidade lógica da liberdade transcendental poderia ser con-
siderada um princípio regulativo da razão? Qual é a relação da possibilidade
lógica da idéia da liberdade transcendental com tais princípios da razão pu-
ra? Pode parecer simples essa questão, mas, com certeza, muitas são as
dificuldades ao se tentar solucioná-la. A primeira delas é que, antes de res-
ponder se a possibilidade lógica da idéia da liberdade transcendental é um
princípio regulativo, dever-se-ia responder a que tipo de princípio regulativo
estaria se referindo a presente questão. Isso porque o autor os define de
duas formas distintas: ora como regras para se engendrar a unidade incon-
246
Conforme: KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 29.
247
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 491.
120
dicionada das condições em geral
248
(I), ora como regras para regular o re-
gresso das séries a fim de que a razão jamais se atenha num absoluta-
mente incondicionado (II). Vejamos tais distintas acepções:
(II)
“O princípio <regulativo> da razão é, propriamente, só uma re-
gra que prescreve, na série dos fenômenos dados, um regres-
so ao qual jamais é permitido se deter num absolutamente in-
condicionado”.
249
(I)
“O uso regulativo (...) consiste em dirigir o entendimento para
um determinado objetivo com vistas ao qual as linhas de orien-
tação de todas as suas regras confluam para um único ponto.
Embora, na verdade, seja apenas uma idéia (focus imaginari-
us), isto é, um ponto do qual realmente não partem os concei-
tos de entendimento na medida em que se situa totalmente fo-
ra dos limites da experiência possível, ele serve para propiciar
a tais conceitos a máxima unidade, ao lado da máxima exten-
são”.
250
Mas qual, de fato, seria o uso regulativo dos princípios da razão?
Proporcionar a máxima unidade, ao lado da máxima extensão, aos concei-
tos puros do entendimento (I); ou o regresso na dada série de condições
(II)? Portanto, entender qual é o significado e quais são as principais acep-
ções dos princípios regulativos da razão e delimitar a questão a um deles é
o necessário itinerário percorrer anteriormente à resposta da questão que
versa sobre a relação entre a possibilidade lógica da liberdade transcenden-
tal e os princípios regulativos.
Os princípios regulativos da razão são introduzidos no livro da dialé-
tica transcendental a partir da razão enquanto faculdade. Mas no que con-
248
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
249
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 536/537.
250
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 672.
121
sistiria essa capacidade racional? Como Kant expõe, no início daquela se-
gunda parte da lógica transcendental, a razão constitui-se numa faculdade
que procura estabelecer unidade, não ao múltiplo dado, mas às regras do
entendimento. Nas palavras de Kant:
“Se o entendimento é uma faculdade da unidade dos fenôme-
nos mediante regras, a razão é a faculdade da unidade das
regras do entendimento sob princípios. Portanto, ela jamais se
refere imediatamente à experiência ou a qualquer objeto, mas
ao entendimento, para dar aos seus múltiplos conhecimentos
unidade a priori mediante conceitos, a qual pode denominar-se
unidade da razão e é de natureza completamente diferente da
que pode ser produzida pelo entendimento.
Este é o conceito geral da faculdade da razão, na medida em
que pode ser tornado compreensível ante a falta completa de
exemplos (que só deverão ser dados no que se segue)”.
251
Assim sendo, a razão, enquanto faculdade, é que “reserva para si
somente a totalidade absoluta no uso dos conceitos do entendimento e pro-
cura conduzir a unidade sintética, que é pensada na categoria, até o absolu-
tamente incondicionado”.
252
É ela que procura dar unidade às regras do en-
tendimento e, para tanto, usa idéias transcendentais.
“A razão, por sua, vez reúne o múltiplo dos conceitos mediante
idéias ao pôr uma certa unidade coletiva como objetivo das
ações do entendimento que, do contrário, só se ocupam com
uma unidade distributiva”.
253
Deste modo, assim como “todos os conceitos puros em geral têm a
ver com a unidade sintética das representações”,
254
há conceitos da razão
(idéias transcendentais em seu uso sobrevoante) que, por sua vez, referem-
251
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 359.
252
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 383.
253
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 672.
254
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
122
se à “unidade sintética incondicionada de todas as condições em geral”.
255
Esses são os conceitos da totalidade de condições e são
“necessários, pelo menos, como problemas para fazer progre-
dir a unidade do conhecimento ,se possível ,até o incondicio-
nado e são fundados na natureza da razão humana, embora,
de resto, tais conceitos transcendentais possam carecer de um
uso adequado in concreto e, por conseguinte, não possuam
nenhuma outra utilidade que a de conduzir o entendimento em
direção à qual o seu uso, enquanto é ampliado ao máximo
possível, é ao mesmo tempo posto em perfeito acordo consigo
mesmo”.
256
Logo, a fim de demonstrarem tal unidade, as idéias transcendentais
são estendidas pela razão até uma máxima ampliação possível, ou seja, o
incondicionado. O incondicionado é, portanto, o que pode conter a
totalidade das condições para um condicionado dado. Ora, vis-
to que unicamente o incondicionado torna possível a totalidade
das condições e que, inversamente, a totalidade das condi-
ções é sempre incondicionada, um conceito racional puro, em
geral, pode ser explicado mediante o conceito de incondicio-
nado, enquanto contém o fundamento da síntese do condicio-
nado”.
257
Portanto, dever-se-á procurar três incondicionados:
“Dever-se-á procurar ,em primeiro lugar, um incondicionado da
síntese categórica em um sujeito; em segundo lugar, um in-
condicionado da síntese hipotética dos membros em uma sé-
rie; em terceiro lugar, um incondicionado da síntese disjuntiva
das partes em um sistema”.
258
A razão, enquanto faculdade, é que “procura reduzir a grande multi-
plicidade do conhecimento do entendimento ao número mínimo de princí-
pios (condições universais) e, deste modo, produzir a sua suprema unida-
255
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
256
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 380.
257
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 379.
258
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 379.
123
de”.
259
Mas de onde surgem as idéias transcendentais responsáveis por
dar unidade a essas regras do entendimento? A própria razão é a fonte
dessas idéias. É do uso puro da razão que elas são fornecidas. A própria
“razão pura fornece a idéia para uma doutrina transcendental
da alma (psychologia rationalis), para uma ciência transcen-
dental do mundo (cosmologia rationalis), finalmente também
para um conhecimento transcendental de Deus (theologia
transcendetalis). Mesmo o simples projeto de uma ou outra
dessas <pretensas> ciências não provém absolutamente do
entendimento, ainda que ele estivesse ligado ao uso lógico su-
premo da razão – isto é, a todos os silogismos imagináveis,
com o fim de proceder de um objeto de tal uso (fenômenos) a
todos os outros, até os membros mais remotos da síntese em-
pírica – mas é unicamente um produto puro e autêntico ou
problema da razão pura”.
260
É inevitável, assim, a divisão das idéias transcendentais em três clas-
ses: a que “contém a unidade absoluta (incondicionada) do sujeito pensan-
te”,
261
“a unidade absoluta da série das condições do fenômeno”,
262
e “a u-
nidade absoluta da condição de todos os objetos do pensamento em ge-
ral”.
263
Mas como prosseguem essas três classes de idéias a fim de expor a
reivindicada unidade? Para esse fim, as idéias transcendentais são toma-
das como princípios regulativos da própria razão pura, assim denominados
em seu uso transcendente.
Os princípios regulativos em seu uso transcendente são, portanto, as
idéias transcendentais da razão em seu uso sobrevoante que seguem as di-
retrizes da razão enquanto faculdade, a fim de aduzirem tal requerida uni-
dade incondicionada. Tais princípios, portanto, dizem respeito a um desen-
259
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 361.
260
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391/2.
261
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
262
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
124
volvimento de determinadas atividades da própria razão relacionado a um
dos distintos usos de suas idéias transcendentais. Assim como as idéias
transcendentais podem ter dois usos (transcendente e imanente), os princí-
pios regulativos também expõem uma dupla “legislação”. Tais regras, ou di-
zem respeito ao uso das idéias transcendentais que buscam dar uma uni-
dade incondicionada às condições aplicadas a determinados condicionados,
ou ao regresso daquela dada unidade incondicionada.
É no apêndice da dialética transcendental que se encontra o mais
denso comentário de Kant aos princípios regulativos da razão pura que
normatizam e, por vezes, até se identificam com o uso sobrevoante das i-
déias transcendentais. Lá, o uso regulativo da razão, em sua aplicação
transcendente, como já citamos uma vez, assim é definido:
“<É> o que consiste em dirigir o entendimento para um deter-
minado objetivo com vistas ao qual as linhas de orientação de
todas as suas regras confluam para um único ponto. Embora,
na verdade, seja apenas uma idéia (focus imaginarius), isto é,
um ponto do qual realmente não partem os conceitos do en-
tendimento na medida em que se situa totalmente fora dos li-
mites da experiência possível, ele serve para propiciar a tais
conceitos a máxima unidade, ao lado da máxima extensão”.
264
Desse modo, por princípios regulativos em seu uso transcendente
não se entende outra coisa senão as regras da própria razão aplicadas a
suas próprias idéias transcendentais, com a finalidade de apresentar uma
máxima unidade às condições expostas na analítica transcendental e na es-
tética transcendental. De fato, fora uma exigência genuinamente natural da
263
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 391.
264
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 672.
125
própria razão que, assim como tais categorias unificaram o múltiplo dado,
elas mesmas, fossem unificadas. Ora, essa máxima unidade é exposta
por Kant por meio daquelas idéias transcendentais enquanto princípios. Lo-
go, por princípios regulativos transcendentes não se entende outra coisa
que o uso dos conceitos da própria razão para, “na medida do possível,
trazer unidade aos conhecimentos particulares e, assim, levar a regra a se
aproximar da universalidade”.
265
Esse uso das idéias “subjacentes como
conceitos problemáticos”
266
é o que caracteriza o uso hipotético da razão.
É no uso hipotético da razão que as idéias transcendentais e os
princípios regulativos em seu uso transcendente muito se relacionam, em
vista da reivindicada unidade incondicionada. Esses princípios não possuem
validade objetiva, pois são princípios subjetivos da razão e apenas dizem
respeito a um determinado interesse especulativo da própria razão.
“Todos os princípios subjetivos inferidos, não da constituição
do objeto, mas do interesse da razão por uma certa perfeição
possível do conhecimento desse objeto, são por mim chama-
dos de máximas da razão. Deste modo, há máximas da razão
especulativa que repousam unicamente sobre o seu interesse
especulativo, embora ,em verdade, possam parecer princípios
objetivos”.
267
Assim sendo, as idéias transcendentais, enquanto princípios da
razão, não têm nenhum valor constitutivo, apenas regulativo:
“As idéias transcendentais jamais possuem um uso constitutivo
de maneira que ,através delas, sejam dados conceitos de cer-
tos objetos. (...) Ao contrário, possuem um uso excelente e im-
prescindivelmente necessário, ou seja, o uso regulativo”.
268
265
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 675.
266
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 675.
267
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 694.
268
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 672.
126
Mas o que fazem tais princípios regulativos da razão enquanto fa-
culdade? Eles apenas dirigem o intelecto para certo objetivo, em vista de
certas linhas diretivas de todas as suas regras. Eles não fazem parte das
condições de possibilidade do conhecimento dos objetos empíricos, porque
não se relacionam diretamente com as intuições empíricas, nem de forma
direta e nem de modo indireto. Isso se justifica também pelo fato de não se-
rem juízos sintéticos a priori e, nem mesmo, uma condição de possibilidade
da experiência.
269
Caso sejam eles tomados como constitutivos, passam a
gerar ilusões transcendentais:
“No caso em que <as idéias transcendentais> forem compre-
endidas desse modo, <ou seja, contendo um uso constitutivo>,
não passarão de simples conceitos racionalizantes (dialéti-
cos).”
270
Noutras palavras:
“Quando princípios meramente regulativos forem considerados
constitutivos, então, enquanto princípios objetivos, poderão
conflitar entre si; mas se forem considerados simplesmente
máximas, já não há um verdadeiro conflito, mas simplesmente
um interesse diverso da razão, o qual causa uma separação
no modo de pensar. De fato, a razão possui um único interes-
se, e o conflito das suas máximas é só uma diferença e limita-
ção recíproca dos métodos para satisfazer esse interesse”.
271
Conforme B 676, seria, de fato, dada uma unidade do conhecimento
variado do entendimento, se tal unidade pudesse ser postulada a priori, in-
dependente de qualquer interesse da razão. Não obstante, ela é vinculada a
um determinado interesse da expansão da razão “que a autoriza a sair de
269
Veja: ALLISON, El Idealismo Transcendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, 1983.
270
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 672.
271
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 694.
127
um ponto que jaz tão acima da sua esfera para daí contemplar os seus ob-
jetos num todo completo”.
272
Além do mais, embora tal reivindicada unida-
de seja dependente dum incondicionado, ele jamais é alcançado a não ser
na idéia. Logo, Kant conclui que a razão só traça o caminho para o pensa-
mento de tal unidade sistemática:
“Um princípio <regulativo em seu uso transcendente> (...) vai,
todavia, longe demais para que a observação ou a experiência
possa se lhe equiparar; e ,sem determinar qualquer coisa, só
traça para a razão o caminho rumo à unidade sistemática”.
273
Logo, aquela desejada unidade, aqui identificada com a unidade da
razão enquanto idéia, não passa de uma simples pretensão da razão:
“Esta unidade da razão é, todavia, simplesmente hipotética.
Não se afirma que uma tal unidade tem que ser encontrada de
fato, mas que se tem que a procurar em benefício da razão, ou
seja, para erigir certos princípios para as diversas regras que a
experiência nos fornece, e onde é factível introduzir, deste
modo, uma unidade sistemática do conhecimento”.
274
Não sendo outra coisa que um simples pensamento, a tal reivindica-
da unidade incondicionada, os princípios regulativos da razão em seu uso
empírico, serão os responsáveis pelo regresso de tal idéia. Esses não pro-
curam a unidade incondicionada do entendimento, mas o regresso da idéia
incondicionada:
“Em contrapartida, o método de procurar a ordem na natureza
segundo um tal princípio, e a máxima de considerá-la fundada
numa natureza em geral, embora fique indeterminado onde e
até que ponto, constituem, não obstante, um legítimo e exce-
lente princípio regulativo da razão”.
275
272
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 704.
273
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 696.
274
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 677 / 678.
275
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 696.
128
Identificadas as duas principais acepções dos princípios regulativos
da razão, delimita-se a questão gênese da presente seção apenas na relação
entre as idéias transcendentais e o uso transcendente daqueles princípios. A
questão que se procura responder, portanto, assim poderia ser reformulada:
poderia a possibilidade lógica da idéia transcendental da liberdade transcen-
dental ser considerada um princípio regulativo em seu uso empírico?
Como se analisou, a faculdade da razão utiliza idéias transcendentais
como princípios regulativos em um uso transcendente, a fim de expor uma
reivindicada unidade incondicionada. Assim sendo, chega-se a pretensos
objetos incondicionados enquanto idéias totalmente desprovidas de todo e
qualquer conteúdo empírico. Uma dessas idéias é a idéia transcendental do
mundo. Na análise de busca por tal incondicionado, a razão inevitavelmente
cai em antinomias. Ao cair em antinomias, a solução crítica não apontou ou-
tro resultado na terceira antinomia do que poder pensar uma possibilidade
lógica da liberdade transcendental ao se distinguir sua aplicabilidade. Não
obstante, tal possibilidade lógica da liberdade transcendental não é, e ja-
mais seria, um princípio regulativo em seu uso empírico, porque, como se
analisou, esses não têm como função a busca da máxima extensão direcio-
nada à transcendente idéia incondicionada, mas o regresso inerente àque-
las idéias. Vejamos a citação completa, que melhor define tais princípios re-
gulativos em seu uso empírico, até aqui, apenas parcialmente citada.
“Logo, o princípio <regulativo> da razão é, propriamente, só
uma regra que prescreve, na série dos fenômenos dados, um
regresso ao qual jamais é permitido deter-se num absoluta-
mente incondicionado. Ele não é, pois, um principium da pos-
129
sibilidade da experiência e do conhecimento empírico dos ob-
jetos dos sentidos, portanto, nenhum princípio do entendi-
mento, pois toda a experiência está confinada a seus próprios
limites (conforme a intuição dada); também não se trata de
um princípio constitutivo da razão que nos permite ampliar o
conceito de mundo dos sentidos para além de toda a experi-
ência possível, mas sim de um princípio da continuação e am-
pliação maior possível da experiência e ,segundo o qual, ne-
nhum limite empírico pode valer como absoluto. É, pois, um
princípio da razão que, enquanto regra, postula o que deve-
mos fazer no regresso, mas que não antecipa o que no objeto
é dado em si, antes de todo o regresso. Devido a isto, o intitulo
um princípio regulativo da razão já que, ao contrário, o princí-
pio da totalidade absoluta da série de condições, enquanto da-
do em si mesmo, no objeto (nos fenômenos), seria um princí-
pio cosmológico constitutivo. Pretendi indicar a nulidade deste
último exatamente mediante esta distinção; também tencionei
evitar que se atribua realidade objetiva a uma idéia que serve
unicamente como regra, atribuição que, de outro modo, acon-
tece inevitavelmente (através de uma sub-repção transcenden-
tal)”.
276
Assim sendo, pelo uso empírico dos princípios regulativos da razão
com respeito a todas as idéias cosmológicas, não entendemos outra coisa
que uma regra que prescreve o regresso na busca de um pretenso incondi-
cionado, a fim de que não nos atenhamos àquelas idéias enquanto coisas
em si mesmas. Isto porque elas são ilusões transcendentais, uma vez que
apenas se chegaria a elas caso fossem tomadas como princípios constituti-
vos. Não obstante, elas não são princípios constitutivos porque
“inexiste, como apontamos diversas vezes, um emprego trans-
cendental de conceitos puros tanto do entendimento quanto da
razão, já que a totalidade absoluta das séries de condições no
mundo dos sentidos repousa exclusivamente sobre um em-
prego transcendental da razão, a qual exige esta completude
incondicionada daquilo que ela pressupõe como uma coisa em
si mesma, e já que, no entanto, o mundo dos sentidos não
contém esta completude, então jamais se pode falar, no que
tange à magnitude absoluta das séries no mundo sensível, em
termos da alternativa de se ela é limitada ou ilimitada em si,
mas sim, unicamente, até que ponto devemos regredir no re-
276
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 536/537.
130
gresso empírico quando nos remontamos da experiência às
suas condições, a fim de que nos fixemos, segundo a regra
da razão, em nenhuma outra resposta às questões da mes-
ma que não a adequada ao objeto”.
277
Deste modo, a totalidade absoluta das condições repousa exclusi-
vamente sobre um uso transcendente das idéias a partir de um pretenso ob-
jeto. Todavia, este jamais pode ser dado pela experiência e ,como não seria
outra coisa que uma simples idéia tomada como pretenso princípio constitu-
tivo, gera-se seu respectivo regresso empírico. Esse regresso empírico tem
por finalidade a de, por meio de princípios transcendentais (em seu uso em-
pírico, bem entendido), desmascarar tais ilusões sofísticas. Conforme a
passagem B 88 (por nós já citada), essa era a própria tarefa da dialética
transcendental.
Tendo como fundamento a “proposição: no regresso empírico ne-
nhuma experiência de um limite absoluto pode ser encontrada, e, portanto,
nenhuma experiência de uma condição que seja absolutamente incondicio-
nada empiricamente”,
278
é que se gera tal regresso empírico. O regresso
empírico é a finalidade dos princípios regulativos em seu uso empírico para
que as idéias transcendentais não permaneçam numa necessidade incondi-
cionada. Nas palavras de Kant:
“No que se refere a esta nossa tarefa, pois, o princípio regulati-
vo da razão consiste em que tudo no mundo dos sentidos te-
nha existência empiricamente condicionada e que, em parte
alguma haja uma necessidade incondicionada com respeito a
qualquer uma de suas propriedades, bem como que não exis-
ta qualquer membro da série de condições do qual não se te-
nha sempre que esperar, e procurar, na medida do possível, a
277
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 543/4.
278
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 545.
131
condição empírica numa experiência possível; além disto,
nada nos autoriza a derivar qualquer existência a partir de
uma condição exterior à série empírica, bem como também
considerá-la como absolutamente independente e autônoma
na própria série. Mediante tal, no entanto, este princípio de
modo algum desmente a asserção de que toda a série possa
estar fundada sobre algum ente inteligível (e que, devido a is-
to, está livre de toda condição empírica, contendo, antes, o
fundamento da possibilidade de todos estes fenômenos)”.
279
Logo, como vimos, as idéias transcendentais da razão podem ser
princípios regulativos direcionados a um uso transcendente ou imanente de
acordo com o interesse da razão. Assim como há um duplo uso que a razão
faz dos princípios regulativos, há um duplo uso das idéias transcendentais:
um emprego legítimo, denominado heurístico, e outro hipostático ao serem
tomadas erroneamente como princípios constitutivos:
“Tudo faz crer que as idéias transcendentais tenham a sua uti-
lidade e, por conseguinte, um uso imanente, se bem que pos-
sam ter uma aplicação transcendente e, justamente por isso,
ser enganosas quando a sua significação é ignorada e elas
são tomadas por conceitos de coisas reais. Com efeito, jamais
as idéias mesmas, mas simplesmente o seu uso pode ser so-
brevoante (transcendente) ou (doméstico) (imanente) com res-
peito a toda experiência possível, de acordo com a direção que
se dê a tais idéias, quer orientando-as diretamente para um
objeto pretensamente correspondente a elas ou orientando-as
só para o uso do entendimento em geral, com vistas aos obje-
tos com que tem a ver”.
280
Assim sendo, como vimos, a idéia da liberdade transcendental terá
um duplo uso: transcendente e imanente. No primeiro uso, sobrevoante, a
idéia transcendental da liberdade almeja encontrar a unidade incondiciona-
da das regras do entendimento, inferindo dialeticamente um pretenso objeto
incondicionado do mundo enquanto uma coisa em si mesma. Não obstante,
279
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 589/590.
132
como para se chegar a essa pretensa coisa em si mesma necessitar-se-ia
tomar aqueles princípios em seu uso transcendente como constitutivos e
eles não o são, esses não passariam de uma ilusão transcendental. Por tal
razão, como já se comentou, gera-se o regresso empírico no qual as idéias
transcendentais passam a ter um uso imanente, enquanto autêntico uso re-
gulativo, quando não tomadas de modo constitutivo, mas apenas entendi-
das em seu verdadeiro significado: o de se referir à interconexão dos princí-
pios do entendimento puro.
Essa interconexão dos princípios do entendimento puro, não obstan-
te, certamente não seria dada na idéia da liberdade transcendental enquan-
to um númeno. Isso porque, certamente, esse uso ultrapassaria as condi-
ções de possibilidade do conhecimento empírico e não se relacionaria com
o idêntico emprego das regras do entendimento. Esse é o uso heurístico
das idéias transcendentais da razão e ele não teria nenhuma finalidade de
se estender para além dos limites da experiência, mas sim, muito pelo con-
trário, de impedi-los. Impedir que a razão se dissipe para além dos limites
do conhecimento possível é a tarefa dos princípios regulativos em seu uso
empírico. Ora, a possibilidade lógica da liberdade transcendental jamais tem
por finalidade impedir que se alcance um possível espaço vazio situado a-
lém dos limites da simples experiência. Logo, a possibilidade lógica da li-
berdade transcendental não é um princípio regulativo em seu uso empírico,
uma vez que ela não tem nenhuma finalidade de fazer regredir a série de
280
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 671.
133
condições de um incondicionado, mas exatamente a de legar um determi-
nado espaço vazio, uma espécie de númeno que fica em aberto no final da
obra de 1781.
Portanto, a possibilidade lógica da liberdade transcendental é um
númeno, um conceito-problema, um juízo analítico e não teria jamais uma
validade objetiva (B 101). Não obstante, as idéias transcendentais em seu
uso imanente possuem uma determinada “validez”,
281
mas atribuir uma pos-
sibilidade transcendental a conceitos que apenas possuem uma determina-
da possibilidade lógica seria uma ilusão:
“A ilusão de tomar a possibilidade lógica do conceito (já que ele
não se contradiz a si próprio) pela possibilidade transcendental
das coisas (em que um objeto corresponde ao conceito) só
pode enganar e satisfazer aos inexperientes”.
282
Por fim, como as idéias regulativas, em seu sentido empírico, jamais
seriam um númeno ao se relacionarem com as regras do entendimento que
se aplicam aos objetos da experiência, elas não são correspondentes à
possibilidade lógica da liberdade transcendental. Não obstante, como Kant
aclara na analítica da Crítica da Razão Prática, deixando em aberto a pos-
sibilidade lógica daquele conceito da liberdade é que se pode transformar a
idéia transcendental em princípio regulativo em seu uso empírico. Em suas
palavras:
“Como dissemos, os conceitos da razão são meras idéias, não
possuindo, em verdade, objeto algum numa experiência qual-
quer; nem por isto, contudo, designam objetos imaginários e
ao mesmo tempo supostos como possíveis. Os conceitos da
281
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 544.
282
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 302.
134
razão só são pensados problematicamente a fim de que fun-
demos, em referência a eles (enquanto ficções heurísticas),
os princípios regulativos do uso sistemático do entendimento
no campo da experiência. Se desistirmos deste propósito,
são simples entes da razão cuja possibilidade não é demons-
trável, e que em conseqüência disto, também não podem ser
tomados, através de uma hipótese, como fundamento para ex-
plicar fenômenos reais”.
283
Deste modo, uma vez que os princípios regulativos em seu uso em-
pírico referem-se à aplicabilidade das idéias transcendentais ao entendi-
mento aplicado aos objetos da experiência, eles são completamente distin-
tos da possibilidade lógica da liberdade. Não obstante essa disparidade
conceitual, exatamente da possibilidade lógica daquele conceito enquanto
problema é que se pode chegar ao uso sistemático daqueles princípios. Nas
palavras de Kant:
“Por isso a idéia de liberdade, como uma faculdade de absoluta
espontaneidade, não era uma carência, mas no que concerne
a sua possibilidade, uma proposição fundamental analítica da
razão especulativa pura. Todavia, visto que é absolutamente
impossível fornecer, em qualquer experiência, um exemplo
adequado a ela, porque não pode encontrar-se entre as cau-
sas das coisas como fenômenos nenhuma determinação da
causalidade que fosse absolutamente incondicionada, assim
podíamos defender somente o pensamento de uma causa a-
gente livre enquanto aplicamos este a um ente no mundo sen-
sorial, contanto que ele ,por outro lado, seja também conside-
rado como noumenon; <isto> na medida em que mostrávamos
que não é contraditório considerar todas as suas ações como
fisicamente condicionadas, contanto que elas sejam fenôme-
nos, e considerar ao mesmo tempo a causalidade das mesmas
como fisicamente incondicionadas, contanto que o ente agente
seja um ente inteligível, e ASSIM TORNAR O CONCEITO DE
LIBERDADE UM PRINCÍPIO REGULATIVO DA RAZÃO”.
284
283
KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 799.
284
KANT, Crítica da Razão Prática, 2002, A 84. (modificações do autor).
135
CONCLUSÃO
Por meio deste trabalho dissertativo, somos levados a crer que a
terceira antinomia é um conflito de idéias expostas apagogicamente medi-
ante um uso lógico e puro, a que a razão é levada enquanto faculdade que
busca o incondicionado de todo o condicionado. De fato, as idéias trans-
cendentais são inferidas mediante a busca dum incondicionado que unifique
todo condicionado dado. Contudo, a razão (Vernunftvermögen), ao buscá-lo
cai inevitavelmente nessas idéias contraditórias das quais faz parte a tercei-
ra antinomia.
A terceira antinomia é um par de idéias referentes a uma causalida-
de livre (tese) e a uma causalidade natural (antítese). A causalidade natural
é exposta mediante a antítese daquele terceiro conflito e provada, em sínte-
se, mediante a contraprova de que não se poderia unicamente ter uma cau-
salidade livre para explicar a totalidade de eventos e de ações. Já a causa-
lidade livre é exposta mediante a tese daquele terceiro conflito e provada,
em síntese, mediante a contraprova de que não bastaria ter uma causalida-
de natural para explicar a totalidade de eventos e ações. Não obstante, es-
136
se terceiro conflito apenas introduziu a questão relacionada à liberdade
enquanto problema apresentado apagogicamente. Contudo, Kant, ao ana-
lisar o desfecho da terceira antinomia, ao contrário da solução das duas
primeiras das quais negou a verdade tanto da tese quanto da antítese, nela
as reconhece potencialmente verdadeira. Bem lembrado, isso só foi possí-
vel mediante a distinção das antinomias matemáticas e dinâmicas e o re-
curso do idealismo transcendental. Kant, com esse recurso e distinguindo a
aplicabilidade da tese aos númenos, e da antítese aos fenômenos, pôde le-
gitimar a possibilidade da verdade da tese e da antítese da terceira antino-
mia. Deste modo, distinguindo a aplicabilidade de ambas as causalidades,
ele pôde concluir que a causalidade natural não é conflitante com a da li-
berdade. Assim sendo, ambas puderam ser possivelmente verdadeiras sem
se aniquilarem mutuamente.
285
Que ambas as causalidades imbricadas na terceira antinomia são
possivelmente verdadeiras, o filósofo afirmou na passagem B 560. Não obs-
tante isso, como já vimos na abertura desta dissertação, Kant, surpreenden-
temente, também teria afirmado, na mesma obra, que sequer pretendera
demonstrar a possibilidade daquele conceito da liberdade (B 586). Embora
tenha afirmado isso, conclui-se, mediante a análise dessas passagens B
560 e B 586, que elas, embora paradoxais, não são contraditórias. Não o
são porque a acepção do conceito ‘possibilidade’ nelas envolvida não é a
285
De fato, assim intenta Beckenkamp (2004): “uma das distinções fundamentais da filosofia
crítica kantiana, a que se dá entre os fenômenos ou seres do mundo sensível e os númenos,
ou seres inteligíveis, é mobilizada numa estratégia de defesa do conceito de liberdade”.
BECKENKAMP, “O Lugar Sistemático do Conceito de Liberdade na Filosofia Crítica Kantiana”,
137
mesma. Não é a mesma porque enquanto o conceito de possibilidade em
B 586 refere-se a uma possibilidade real, o da passagem B 560 vincula-se
a uma possibilidade lógica.
Deste modo, distinguindo essas diferentes acepções de possibilida-
de, é que se entende por que as passagens B 560 e B 586, ao invés de
conflitantes, são harmônicas. Isso porque é consenso entre os comentado-
res da Crítica da Razão Pura e da Crítica da Razão Prática, Kant ter expos-
to, não uma possibilidade real da liberdade, mas apenas em seu significado
lógico. A possibilidade real de um conceito atribui-se apenas àqueles que se
referem às condições formais da experiência.
286
Ou seja, aos conceitos re-
lacionados às condições de possibilidade da experiência. Já a possibilidade
lógica de um conceito não implica nenhuma relação deste com a experiên-
cia, mas permite ser pensado de modo não contraditório às demais conside-
rações.
Por fim, é bem verdade que a solução da terceira antinomia conden-
sa, em sua breve asserção, vários aspectos mediante os quais, distintas in-
terpretações poderiam ser propostas. Não obstante isso, a argumentação
apresentada leva a crer ser defensável que haja uma possibilidade lógica de
uma liberdade transcendental na solução da terceira antinomia. Isto é, da li-
berdade enquanto um conceito não possuidor de uma realidade efetiva e
que, portanto, não passa de um conceito-problema dentro dos limites da ra-
zão especulativa. Ainda assim, embora se trate de um conceito-problema, é
2004.
286
KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 265. Em Allison (1983), confirma-se essa ser a defi-
138
factível de ser defendido como possivelmente pensável. Porque ele pôde
ser pensado, foi possível observar a exposição de uma ‘suposta passa-
gem’ à filosofia prática no seio da dialética transcendental, seguida de um
sistema semiprático no Cânone da própria Crítica da Razão Pura.
Assim sendo, em virtude do observado, a possibilidade lógica da li-
berdade transcendental, enquanto um conceito possivelmente pensado sem
ser contraditório com as causalidades da natureza,
287
não apenas foi acla-
rada mediante a solução da terceira antinomia, mas também se crê que
Kant, nos limites daquele primeiro texto crítico, deixou em aberto um espaço
lógico-conceitual necessário ao desenvolvimento de seu sistema filosófico
relacionado ao uso prático da razão. Enfim, pôde-se afirmar que o maior in-
teresse de Kant na solução da terceira antinomia não era outro que o de
preservar a possibilidade da arquitetônica do próprio sistema completo da
razão pura.
288
nição de conceito de possibilidade real e não lógica.
287
Conforme: KANT, Crítica da Razão Pura, 1987, B 566, B 570, B 586. KANT, Crítica da Ra-
zão Prática, 2002, A 84. Veja também: LOPARIC, O Fato da Razão: uma interpretação semân-
tica, 1999.
288
Veja: KANT, Crítica da Razão Pura, 2001, B 826.
139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Guido Antonio de. “Moralidade e Racionalidade na Teoria Moral
Kantiana”. In: ROHDEN, Valério. (org). Racionalidade e Ação. Porto Ale-
gre: Editora da Universidade – UFRGS, 1992.
_________________________. Crítica, Dedução e Facto da Razão.
Analytica, Vol. 4, n. 1, 1999.
_________________________. Kant e o “Facto da Razão”: “cognitivismo”
ou “decisionismo” moral? Studia Kantiana. Vol. I, n. 1, 1998.
_________________________. Liberdade e Moralidade Segundo Kant.
Analytica, Vol. 2, n. 1, 1997.
ALTMANN, Sílvia. Juízo, Categoria e Existência. Porto Alegre, 2003. 331f.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
ALLISON, Henry E. Idealism and Freedom. New York: Cambridge
University, 1996.
_______________. Kan’s Transcendental Idealism an Interpretation and
defense. New Haven and London: Yale University Press, 1983.
_______________. Kan’s Transcendental Idealism an Interpretation and
defense. New Haven and London: Yale University Press, 2004.
_______________. Kant’s Theory of Freedom. New York: Cambridge
University Press, 1995.
ARISTÓTELES. Aristotelis Metaphysica. Edição Trilingüe por Valentin
García Yebra. Madrid: Editorial Gredos, 1987.
140
AL-AZM. Sadik J. The Origins of Kant´s Arguments in the Antinomies.
Oxford: Clarendon Press, 1972.
BARSA, Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, 2001. (In
cd room).
BECK, Lewis White. A Commentary on Kant’s Critique of Practical
Reason. Chigago: Paperback, 1984.
BECKENKAMP, Joãosinho. Entre Kant e Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004.
______________________. “O Lugar Sistemático do Conceito de Liber-
dade na Filosofia Crítica Kantiana”, mimeo, 2004.
BENDA, Julien. O Pensamento Vivo de Kant. Tradução Wilson Veloso,
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
BÍBLIA. Gênesis. Bíblia Sagrada. Tradução de João José Pedreira de Cas-
tro. São Paulo: Ave Maria, 1993.
BITTNER, Rüdiger. Máximas. In: Studia Kantiana. Vol. 5, n. I, 2003.
BENNETT, Jonathan. La Crítica de la Razón Pura de Kant 2. La Dialética.
Madrid: Alianza Editorial S. A., 1981.
BONACCINI, Juan Adolfo. Kant e o Problema da Coisa em Si no Idealis-
mo Alemão. Rio de Janeiro: relume Dumará; Natal, Rio Grande do Norte:
UFRN, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2003.
BOUTROX, M. Émile. La Philosophie de Kant. Paris: Librarie
Philosophique J. Vrin, 1926.
CAYGILL, Howard. Dicionário de Kant. Tradução Álvaro Cabral; revisão
técnica, Valério Rohden. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2000.
CUMMISKEY, David. Kantian Consequentialism. New York: Oxford
University, 1996.
DELBOS, Victor. Kant. Tradução de José Pérez. São Paulo, Cultural Mo-
derna, 1969.
DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Tradução de Sonia Dantas Pinto Guima-
rães. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.
DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1996.
141
FÖRSTER, Eckart. (org.) Kant’s Transcendental Deductions. Califórnia:
Stanford University Press, 1989.
GAFFREE, Januario Lucas. A Teoria do Conhecimento. Porto Alegre:
(sem editora), 1909.
GOULYGA, Arsenij. Emmanuel Kant, Une Vie. Traduction de Jean-Marie
Vaysse. Paris: Aubier Montagne, 1985.
GREGOR, Mary J. Laws of Freedom. Oxford: Basil Blackwell, 1963.
GUYER, Paul. Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals. Oxford:
Rowman & Littlefield Publishers, 1998.
HARTNACK, Justus. La Teoria Del Conoscimiento de Kant. Madrid:
Catedra Teorema, 1992.
HENRICH, Dieter. Kant´s Notion of a Deduction. In: FÖRSTER, Eckart.
Kant’s Transcendental Deductions. California: Stanford University Press,
1989.
______________. The Deduction of the Moral Law: The Reasons for the
Obscurity of the Final Section of Kant´s Groundwork of the Methaphysics of
Morals. In: GUYER, Paul. Kant’s Groundwork of the Metaphysics of
Morals. Oxford: Rowman & Littlefield Publishers, 1998.
______________. The Unity of Reason. London: Harvard University Press,
1994.
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução de Christian Victor Hamm e
Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (mimeo)
_____________. Immanuel Kant. Translated by Marshall Farrier. New York:
State University of New York Press, 1994.
HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. 2001. (in cd room).
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela P. dos
Santos, Alexandre F. Morujão. 5ª ed. – Lisboa: Fundação Calouste Gulben-
kian, 2001.
______________. Kant II: Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério
Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1987.
______________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradu-
ção de Paulo Quintela. Portugal: Edições 70, 1960.
142
______________. Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura. Traduções
de Tânia Maria Bernkopf. 2ª ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1984.
______________. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério
Rohden e António. Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
_________________.
Kant´s Schriften XVI. Berlin und Leipzig, 1923.
_______________. Crítica da Razão Prática. Tradução com introdução e
notas de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______________. Lógica. Tradução de G. A. Almeida. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1992.
_______________. Doutrina do Direito. Tradução de Edson Bini. São Pau-
lo: Ícone, 1993.
_______________. Critica Della Ragione Pratica. Introduzione, traduzione
e note di Carlo Lazzerini. Milano: Editora Carlo Signorelli, 1959.
_______________. Textos Pré-críticos. Tradução De José de Andrade,
Alberto Reis e Rui Magalhães. Portugal: RÈS, 1992.
_______________. A Religião Dentro dos Limites da Simples Razão.
Tradução de A. Morão. Portugal: Edições 70, 2000.
_______________. Lecciones de Ética. Tradução de Roberto R. Aramayo
e Concha Roldan Panadero. Barcelona: Grupo Editorial Grijalbo, 1978.
_______________. À Paz Pérpetua. Tradução de Marco Antonio de A.
Zingano. Porto Alegre: L&PM Editores, 1989.
_______________. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vis-
ta Cosmopolita. Tradução De R. Naves e Ricardo Terra. São Paulo: Brasi-
liense, 1986.
_______________. Observações Sobre o Sentimento do Belo e do Su-
blime. Tradução de Figueiredo. Campinas: Papirus, 1983.
_______________. O Conflito das Faculdades. Tradução de A. Morão.
Lisboa: Edições 70, 1993.
_______________. Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natu-
reza. Tradução de A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1990.
143
_______________. Sobre a Expressão Corrente: isto pode ser Correto
na Teoria mas Nada Vale na Prática. In: À Paz Perpétua e Outros Opús-
culos. Lisboa: Edições 70, 1990.
_______________. Realidade e Existência: Lições de Metafísica. Tradu-
ção de Adaury Fiorotti; introdução Tradução e notas da edição italiana Ar-
mando Rigobello. São Paulo: Paulus, 2002.
_______________. Practical Philosophy. In: The Cambridge Edition of the
Works by Mary J. Gregor. Translated and edited by Mary Gregor.
Cambridge: University Press, 1996.
KIENZLE, Bertram. Filosofia, Liberdade e Conhecimento. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 1999.
KÜLPE, O. Kant. Buenos Aires – Barcelona: Editorial Labor, 1929.
LEBRUN, Gerard. Sobre Kant. Tradutor José Morais. São Paulo: EDIUSP,
1993.
LOGAN, Beryl. Immanuel Kant’s Prolegomena to Any Future
Metaphysics. London and New York: Routledge, 1996.
LOUZADO, Gerson Luiz. “Non est” não é “est non”: phaenomenon e
noumenon na Crítica da Razão Pura. Porto Alegre, 2003. 230f. Tese
(Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
MARQUES, António. Organismo e Sistema em Kant. Lisboa: Editora Pre-
sença, 1987.
NEWTON, Isaac. Princípios Matemáticos. São Paulo: Editora Abril Cultu-
ral, 1987.
O’NEILL, Onora. Constructions J Reason. New York: Cambridge
University Press, 1989.
PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Tradução de Raimundo Vier.
Petrópolis: Vozes, 1963.
PATON, H. J. Kant on the Errors of Leibniz. In L. W. Beck (ed.). Kant
Studies Today. Open Court, La Salle, Illinois, 1968.
___________. Kant’s Metaphysics of Experience. England: Thoemmes
Press, 1997. Volume 1.
___________. Kant’s Metaphysics of Experience. England: Thoemmes
144
Press, 1997. Volume 2.
___________. The Categorical Imperative. 7ª ed. London: Hutchinson Of
London, 1970.
___________. The Moral Law Groundwork of the Metaphyhsic of
Morals. New York: New York, 1989.
___________. Kant on the Errors of Leibniz. Apud: BECK, L. W. (ed.).
Kant Studies Today. Illinois: Open Court, 1968.
QUARFOOD, Kant´s Practical Deduction of Moral Obligation in Groundwork
III. In: Kant und die Berliner Aufklärung Akten des IX Internationalen
Kant Kongresses. New York: De Gruyter, 2001.
REICH, Klaus. The Completeness of Kant´s Table of Judgments.
Translated by Jane Kneller and Michael Losonsky. Califórnia: Satndford U-
niversity Press, 1992.
ROHDEN, Valério (Coord). Racionalidade e Ação: antecedentes e evolu-
ção atual da Filosofia Prática Alemã. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
1992.
_____________________. Interesse da Razão e Liberdade. São Paulo:
Ática, 1981.
SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de
Vergílio Ferreira. 3ª ed. – Lisboa: Editorial Presença, 1970.
SOLOMON, Robert C. e HIGGINS, Kathleen M. The Age of German
Idealism. London and New York, Routledge, 1993.
STRAWSON. P. F. The Bounds of Sense. London and New York:
Routledge, 1993.
TORRES, João Carlos Brum. TRANSCENDENTALISMO E DIALÉTICA.
Porto Alegre: L&PM Editores, 2004.
VAIHINGER. Dr. H. Kant’s Kritik der Reinen Vernunft. Stuttgart, Berlin,
Leipzig: Union Deutsche Verlangsgesellschaft, 1882.
WIKE, Victoria S. Kant´s Antinomies of Reason: Their Origin and Their
Resolution. Washington: University Press of America, 1982.
WURZBURG, W. Arnold; LONDRES, H. J. Eysenck e BERNA, R. Meili. Di-
cionário de Psicologia. São Paulo: Edições Loyola, 1982.
145
ZINGANO, Marco Antônio. Razão e História em Kant. São Paulo: Brasili-
ense, 1989.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo