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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
A ESPECIFICIDADE DA AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DO
CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA EM UBERABA - MG
MÁRCIO MUCEDULA AGUIAR
São Carlos - SP
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
A ESPECIFICIDADE DA AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DO CENTRO
NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA EM UBERABA - MG
MÁRCIO MUCEDULA AGUIAR
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais do Centro de Educação e Ciências
Humanas da Universidade Federal de São
Carlos, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Doutor em Ciências
Sociais. Área de concentração: Relações
Sociais, Poder e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Valter Roberto
Sillvério
SÃO CARLOS SP
2005
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
A282ea
Aguiar, Márcio Mucedula.
A especificidade da ação afirmativa no Brasil: a
experiência do centro nacional de cidadania negra em
Uberaba - MG / Márcio Mucedula Aguiar. -- São Carlos :
UFSCar, 2005.
154 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2005.
1. Grupos étnicos. 2. Relações raciais. 3. Brasil -
sociologia. I. Título.
CDD: 305.8 (20
a
)
Em meados de dezembro de 2000, passava pelo processo de seleção ao
doutorado. Nessa época, minha tia, Benedita Ribeiro Marincek,
encontrava-se numa unidade de terapia intensiva em Ribeirão Preto.
Ainda posso me lembrar da sua alegria e seu sorriso quando soube que
eu estava ingressando no doutorado, não sabia que esse seria o nosso
último encontro e despedida. Esse trabalho é dedicado à sua memória.
AGRADECIMENTOS
Sempre serei grato às pessoas e instituições que contribuíram para elaboração
deste trabalho. Antes de mais nada, cabe um agradecimento aos meus pais, Maria
Bernadete Mucedula Aguiar e Ailton Souza Aguiar, que em várias madrugadas em
Ribeirão Preto esperavam-me com amor e carinho e um farto café da manhã. Nada era
mais reconfortante do que esse breve encontro antes de continuar a viagem a São
Carlos.
Devo agradecer aos diretores e aos funcionários do Centro Nacional de
Cidadania Negra que sempre me atenderam gentilmente e, na medida de suas
possibilidades, forneceram-me informações importantes para a condução desta
pesquisa.
Cabe um agradecimento especial à Sônia Regina Jorge da Silva, militante
comprometida com as causas do Movimento Negro, que dedicou e dedica a sua
existência à melhoria das condições de vida da população afro -descendente em
Uberaba. Sem a sua imprescindível ajuda talvez este trabalho não terminaria.
Também não posso me esquecer de Willian Evangelista ( in Memoriam), que
com seu entusiasmo e disposição me possibilitou o primeiro contato com o Centro
Nacional de Cidadania Negra.
Ao meu amigo Frei Marcelo Santos Neves, pelo incentivo, amizade, e
principalmente, por ser o único que tinha paciência para ouvir minhas idéias em
Uberlândia.
À minha prima Lismara Marincek pela ajuda na revisão do texto. Aos membros
da banca de qualificação, Profa. Dra. Maria Inês Rauter Mancuso e o Prof. Dr. Andreas
Hoffbauer pelas valiosas sugestões. O prof. Andreas teve a gentileza de me enviar suas
críticas por escrito, uma vez que me atendeu por telefone para tentar esclarecer minhas
dúvidas. Devo agradecer também à Ana Maria Suficiel Bertolo, pela sua disposição na
secretaria do programa.
Ao meu orientador Valter Roberto Silvério, que sempre teve a disposição em me
ajudar a crescer intelectualmente desde a época da graduação. Seu exemplo e suas
aulas levaram-me ao interesse por esta temática tão importante. Apesar de
discordarmos em algumas questões e nem sempre, eu acredito, ter correspondido às
suas expectativas, ele me deu a autonomia necessária para elaborar minhas idéias e
mostrou-se, além de orientador, um amigo.
Não posso também me esquecer de Regina Helena Granja, pois sempre que
possível me ajudou com seus incentivos e amizade. À Marly Almeida Gomes Vianna
que sempre me acompanhou como professora e amiga.
À CAPES, pelo apoio ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
Devo agradecer à minha esposa Rosana Vicente de Carvalho Aguiar, pois
muitas vezes acabou se sacrificando para que eu pudesse realizar esta pesquisa. Ela
sempre esteve ao meu lado com sua alegria e disposição para enfrentar os problemas
da vida, ajudando a me superar e ser uma pessoa melhor.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar os pressupostos das políticas de
combate à discriminação e ao racismo do Centro Nacional de Cidadania Negra no
município de Uberaba, em Minas Gerais.
Parto do principio de que a percepção da instituição sobre nossas desigualdades
raciais bem como sua estratégia no combate destas está intimamente ligada à
incorporação do chamado ideal da democracia racial em sua lógica de atuação.
Isso se expressa na sua concepção de Ação Afirmativa que conjuga medidas
específicas voltadas para a população afro-descendente e medidas universalizantes
para todas as pessoas, independente de sua situação econômica ou identidade étnico-
racial.
A pesquisa constatou que o Centro Nacional de Cidadania Negra na sua origem
e desenvolvimento tem um forte paralelo com as reivindicações dos grupos do
Movimento Negro do início do século passado, como também de suas demandas mais
atuais. Além disso, seu hibridismo na percepção das desigualdades raciais possibilita a
criação de aliados, que independente de suas “cores” e posição econômica, poderão
ser imprescindíveis na construção de uma verdadeira democracia racial no Brasil.
Abstract
This term paper aims to analyse the policies against discrimination and racism of
the Black Citizenship National Centre, in Uberaba, State of Minas Gerais.
We firmly believe that the incorporation of the myth of racial democracy and its
logical ambiguity is directly related to the strategic action against racial inequality
developed by this Institute.
Such ambiguity can be seen from its conception of Affirmative Actions which
combines specific measures for the Black and global measures for everybody, no matter
their financial situation or their ethnic-racial identity.
This study found out that The Black Citizenship National Centre was born and
developed under the strong influence of Black´s movements and claims held at the
beginning of the last century as well as their present demands. Besides that, its
ambiguous perception of the racial inequalities enables the emergence of allied people
from different races and financial situation who could be vital for the construction of an
effective racial democracy in Brazil.
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 Distribuição dos Estudantes segundo a Escolaridade....................82
GRÁFICO 2 Distribuição dos Estudantes segundo a Ocupação.........................83
GRÁFICO 3 Distribuição dos Estudantes segundo Localização da Moradia......84
GRÁFICO 4 Distribuição dos Estudantes segundo Tipo de Moradia..................85
GRÁFICO 5 Distribuição dos Estudantes segundo Renda Familiar....................86
GRÁFICO 6 Distribuição dos Estudantes segundo Faixa Etária.........................86
GRÁFICO 7 Distribuição dos Estudantes segundo Identidade Étnico-racial.......87
SUMÁRIO
Resumo...........................................................................................................................06
Lista de gráficos..............................................................................................................08
Apresentação..................................................................................................................11
Questões Preliminares....................................................................................................15
Procedimento Teórico Metodológico e Pesquisa de Campo...........................................33
1. Visões Acadêmicas sobre o Movimento Negro e suas ações no combate à
Discriminação e ao Racismo...........................................................................................35
1.1 Raça, Racismo e Preconceito..............................................................................35
1.2 Breve histórico do Movimento Negro e do Centro Nacional de Cidadania
Negra.........................................................................................................................40
1.3 Diferentes leituras das estratégias do Movimento Negro.....................................56
2. Propostas Político-Pedagógicas do Centro Nacional de Cidadania Negra................65
2.1 O papel da educação na formação da auto-estima..................................................73
2.2 A preocupação com os Direitos Humanos..............................................................78
2.3 As cartilhas para crianças........................................................................................79
2.4 O perfil dos alunos....................................................................................................82
3. O Conceito de Ação Afirmativa e sua perspectiva no Brasil.......................................90
3.1 As diferenças entre políticas de ação afirmativa e outras formas de combate à
discriminação e ao racismo...........................................................................................104
3.2 Especificidades das relações “raciais” brasileira e ação afirmativa.......................107
3.3 Ações afirmativas no Brasil....................................................................................112
4 Concepções, problemas e soluções na visão das lideranças e dos Estudantes...119
4.1 Problemas da população Afro-descendente no Brasil..........................................120
4.2 O combate à discriminação e ao racismo: as políticas universalizantes e as
específicas.....................................................................................................................122
4.3 A inclusão independ
ente das “cores”: a necessidade de unir ao invés de dividir..125
4.4 A questão da identidade na visão dos Estudantes...............................................128
4.5 Os problemas enfrentados pelos afro-
descendentes na visão dos estudantes.....131
4.6 Participação no CENEG e mudanças na visão sobre o preconceito e
discriminação.................................................................................................................133
4.7 A questão das políticas universais e específicas na visão dos estudantes.........135
4.8 A questão da identidade para os estudantes........................................................138
4.9 Os aspectos positivos e negativos da instituição..................................................139
Conclusão: as especificidades brasileiras nas políticas de combate à disc riminação e ao
racismo..........................................................................................................................143
Referências Bibliográficas.............................................................................................147
Apresentação
Neste trabalho propõe-se analisar as propostas de políticas específicas de
combate à discriminação e ao racismo implementadas pelo Centro Nacional de
Valorização da Raça Negra (CENEG) no município de Uberaba, em Minas Gerais,
região do triângulo mineiro
1
.
Tal análise é importante no sentido de elucidar como são pensadas e
implementadas as chamadas políticas de ações afirmativas
2
no Brasil e se, existe uma
confluência entre a visão da instituição e a percepção dos acadêmicos sobre a
resolução de nossas desigualdades raciais.
São várias as perspectivas de análise da questão racial no Brasil que situam as
propostas de combate ao racismo e às discriminações. Um dos objetivos do trabalho é
analisar os pressupostos que orientam a atuação do Centro Nacional de Cidadania
Negra, tendo como parâmetros:
a) A experiência do CENEG pode ser vista como uma nova proposta de ação
afirmativa que conjuga medidas específicas (voltadas para a população negra) e
medidas universalizantes ( para a população como um todo) objetivando a resolução da
discriminação e racismo em Uberaba.
b) A proposta de Ação Afirmativa do CENEG toma por base dois critérios sociais
de exclusão: o de “raça” e o de “classe”, constituindo-se numa redefinição à brasileira
do conceito de ação afirmativa.
O problema do racismo e da discriminação na sociedade brasileira constitui um
dos temas mais importantes para as pessoas que almejam a construção de um país
mais justo e igualitário.
Logo após minha defesa de mestrado, uma das questões que me propunha era
entender quais seriam os mecanismos mais eficazes no combate a esse problema.
1
A região do triângulo mineiro é considerada uma das regiões mais ricas de Minas Gerais. Destacam-se os
municípios de Uberlândia, Uberaba e Ituiutaba. A região se caracteriza pelo predomínio de sua agropecuária, como
também em indústrias de setores alimentícios, têxtil, do álcool, fertilizantes e químico. Disponível: <
www.italiabrasil.com.br/minas .htm > , < www.indi.mg.gov.br/mapas/triangulo.gif > acesso em: 24 maio de 2004.
2
Para Cashmore (2000, p. 31-38) seriam consideradas ações afirmativas, políticas públicas criadas para reverter as
tendências históricas que conferem as minorias, principalmente negros e mulheres, uma posição de desvantagem,
particularmente nas áreas de educação e emprego. Tal conceito será aprofundado no capítulo 3.
12
Havia conhecido vários militantes em decorrência do Mestrado e, em muitas de minhas
conversas com eles, sempre surgia essa discussão sobre os tipos de solução
necessárias para diminuir a grande distância social entre brancos e a população afro-
descendente no Brasil. Uma das respostas mais freqüentes por parte dos militantes era
a de que seria necessária a criação de políticas públicas específicas nos moldes das
chamadas ações afirmativas desenvolvidas nos Estados Unidos.
No final dos anos 90, a temática das desigualdades raciais e das ações
afirmativas ganhou grande repercussão a partir da criação do Programa Nacional dos
Direitos Humanos
3
. Será que tais políticas seriam adequadas a nossa realidade ?
Acreditei que seria necessário um estudo de um caso concreto que pudesse elucidar
melhor a problemática.
Na época, estava residindo na cidade de Uberlândia, na região do triângulo
mineiro. Tinha ouvido falar que, na cidade de Uberaba, estava nascendo uma
instituição que tinha como objetivo o combate à discriminação e ao racismo, que
também se propunha à criação de políticas de caráter afirmativo. Assim, procurei
conhecer um dos principais articuladores da criação do Centro Nacional de Cidadania
Negra. William Evangelista (Bill) era um entusiasta e estava profundamente envolvido
com a criação do CENEG e com os convênios entre este e a Secretaria dos Direitos
Humanos e Ministério da Justiça. Comecei a pensar que essa seria uma chance rara
de observar os desdobramentos do projeto e suas concepções filosóficas, o que
poderia me propiciar uma compreensão de um caso concreto de um projeto de política
pública de combate à discriminação e ao racismo.
William Evangelista forneceu-me várias informações e, principalmente pela
leitura dos documentos e propostas, ficava claro que o Centro Nacional de Cidadania
Negra era uma proposta de ação afirmativa. Infelizmente, no decorrer da elaboração do
projeto, este militante acabou falecendo, mas os dados e principalmente sua ajuda me
propiciaram a finalização do meu projeto de pesquisa.
Inicialmente, comecei a pesquisa pela coleta das propostas oficiais da
instituição. A instituição sempre atendeu-me gentilmente e, em nenhum momento, criou
3
BRASIL. Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Política Nacional do Idoso. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Programa Nacional dos Direitos Humanos. Brasília. DF,1998. p. 39-82.
13
dificuldade de acesso aos dados. De posse desses documentos, comecei a perceber
que talvez fosse necessária a combinação entre esses dados e depoimentos das
principais lideranças da instituição que me possibilitassem o entendimento das
concepções que norteavam a instituição, bem como de sua prática cotidiana.
As principais fontes para análise das propostas foram documentos oficiais como
ofícios, convênios. Além disso, foi analisado o material didático-pedagógico buscando
apreender os pressupostos que norteavam este e as outras fontes já mencionadas.
Foi elaborado um roteiro de entrevistas que objetivava perceber qual era a visão
das principais lideranças acerca da problemática da discriminação e do racismo, bem
como as propostas que estes acreditavam serem mais viáveis para resolução do
problema. Também buscou-se apreender sua concepção de ação afirmativa, além de
sua concepção de identidade.
Os dados possibilitaram-me a percepção de que o Centro Nacional de Cidadania
Negra era uma instituição que, de certa forma, articulava em suas propostas uma série
de demandas presentes nos vários grupos do Movimento Negro, desde o início do
século XX até as demandas mais recentes.
A compreensão que a instituição tem sobre a problemática “racial” bem como a
sua atuação incorporam em muito o chamado ideal da democracia racial gerando uma
certa especificidade no combate as desigualdades “raciais”.
O trabalho pretende demonstrar exatamente essa especificidade das políticas
públicas brasileiras de combate ao racismo e à discriminação que parecem redefinir, em
termos “brasileiros”, a discussão sobre as ações afirmativas.
Nas questões preliminares procuro discuto foi pensada a relação entre raça e
desigualdade pela análise de diversos autores que trabalham a problemática e com isso
demonstrar as especificidades das propostas do Centro Nacional de Cidadania Negra.
No primeiro capítulo, apresento a definição de alguns termos que serão utilizados
no trabalho e retomo a história do Movimento Negro e sua relação com a história do
CENEG. Além disso, analiso as principais interpretações acadêmicas sobre o
Movimento Negro.
No segundo capítulo, analiso as propostas política-pedagógicas presentes nas
cartilhas e materiais didáticos do Centro Nacional de Cidadania Negra.
14
A questão das ações afirmativas bem como sua perspectiva no Brasil são
analisadas no terceiro capítulo. Por fim, no quarto capítulo analiso os depoimentos das
principais lideranças e de alguns estudantes do Centro Nacional de Cidadania Negra
buscando desvendar suas concepções acerca das ações afirmativas e propostas de
combate à discriminação e ao racismo no Brasil.
15
Questões Preliminares
A questão “racial” no Brasil sempre foi objeto de grandes polêmicas. Uma rica
literatura foi produzida e ,apesar de todas as discussões, não existe um consenso entre
militantes do movimento negro e muito menos entre os teóricos sobre quais seriam os
mecanismos mais eficazes para o combate ao racismo e à discriminação. A análise de
um caso concreto de política pública pode ajudar a compreender os dilemas e
dificuldades da resolução desses problemas.
Observar como a relação entre “raça “e desigualdade social no Brasil foi pensada
pode revelar em muito os problemas e dilemas enfrentados pelo Centro Nacional de
Cidadania Negra.
As concepções de Gilberto Freyre marcam profundamente a reflexão sobre a
escravidão e as relações entre brancos e negros no Brasil. Em Casa Grande & Senzala,
ele reflete sobre a formação da família brasileira sob o regime escravocrata. A
importância de seu estudo reside no fato de ser a primeira tentativa de se fazer uma
análise baseada na distinção entre “raça” e “cultura”. Sua obra sistematizou um projeto
de identidade nacional de um povo miscigenado e que, por isso mesmo, não
desenvolveu formas de discriminação e racismo como as existentes nos Estados
Unidos. Tal perspectiva fundamentava teoricamente o chamado mito da democracia
racial. Tal mito parte do pressuposto de que a grande miscigenação entre brancos,
negros e índios produziu uma sociedade híbrida. A miscigenação teria levado à
formação de uma sociedade em que os extremos (senhores e escravos) aproximaram-
se, corrigindo a grande distância social entre eles.
A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social
que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a
mata-tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura
latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização,
extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala
e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos
antagônicos , foi em grande parte contrariado pelo efeito social da
miscigenação. ( FREYRE, 1989, p.I)
16
Apesar de Gilberto Freyre ser o autor mais importante para a popularização
deste ideário da democracia racial, segundo Guimarães (2002,p.138) o primeiro a
utilizar este termo foi Roger Bastide a partir de, provavelmente, uma livre interpretação
das idéias de Freyre. O termo teria sido utilizado em um artigo publicado no Diário de
São Paulo, em março de 1944, no qual Bastide reporta-se a uma visita a Gilberto
Freyre. Apesar de Freyre ser o inspirador do termo, Guimarães ressalta que ele o evitou
muitas vezes, tendo para o autor um significado peculiar. Freyre costuma utilizar o
termo democracia étnica para pensar o tipo de relação existente entre brancos e negros
no Brasil. O termo democracia racial só aparece na literatura especializada em 1952,
na “Introdução” escrita por Charles Wagley do primeiro volume de uma série de estudos
sobre as relações raciais patrocinados pela Unesco. (GUIMARÃES,2002,p.139) A
expressão democracia étnica cunhada por Freyre, surgiu no contexto de sua militância
contra o Integralismo. O autor procura estabelecer um nexo entre a idéia de
democracia étnica e democracia social. Com isso, ele procura definir o conteúdo social
da democracia brasileira. O genuínamente luso-brasileiro é definido pelo misturado e
sincrético, e tudo que for contra isso é visto como um perigo à jovem democracia
brasileira. (GUIMARÃES, 2002, p.151)
A idéia de “democracia social” foi elaborada por Freyre na década de 30, para
justificar a ausência de democracia política, quer no Brasil ou em Portugal. Em certo
sentido, o seu desafio é inserir a tradição luso-brasileira entre as nações democráticas,
tentando diferenciar tal tradição do nazi-fascismo. Apesar da existência dos regimes
autocráticos de Vargas e Salazar, Freyre procura demonstrar que a cultura luso-
brasileira não é apenas mestiça, mas recusa qualquer tipo de pureza étnica,
característica dos regimes fascistas e nazistas da Itália e Alemanha. Do ponto de vista
“social”, tanto o regime de Vargas como o de Salazar seriam democráticos na medida
em que promovem a mobilidade social de pessoas de diferentes raças e culturas.
(GUIMARÃES, 2002,p.152)
Freyre só utilizará o termo “democracia racial” em 1962, em sua defesa do
colonialismo português na África e na construção teórica do seu luso-tropicalismo,
quando acredita ser necessário atacar a influência estrangeira sobre os negros
brasileiros, particularmente o conceito de “negritude”. (GUIMARÃES, 2002,p.152)
17
Para Guimarães (2002,p.139), a concepção que predominava era a de que o
Brasil era uma sociedade sem “linha de cor”, uma sociedade sem barreiras legais que
impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou as posições de
riqueza ou prestígio. Essa idéia era bastante difundida tanto na Europa como nos
Estados Unidos. Além disso, Guimarães ressalta que, para muitos abolicionistas a
escravidão no Brasil era vista como mais humana e suportável.
Tal constatação de Guimarães pode ser confirmada a partir de um trecho no qual
Joaquim Nabuco em O Abolicionismo ressalta que, apesar da escravidão, as relações
entre senhores e escravos eram até harmônicas e não geraram o clima de ódio entre
negros e brancos como havia ocorrido nos Estados Unidos.
A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo
contra o senhor falando coletivamente nem criou entre as duas raças
o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos.
Por esse motivo, o contato entre elas foi sempre isento de asperezas, fora
da escravidão, e o homem de cor achou todas as avenidas abertas diante
de si. Os debates da última legislatura, e o modo liberal pelo qual o
Senado assentiu à elegibilidade dos libertos, isto é, ao apagamento do
último vestígio da desigualdade da condição anterior, mostram que a cor
no Brasil não é, como nos Estados Unidos, um preconceito social contra
cuja obstinação pouco pode o caráter, o talento e o mérito de quem
incorre nele. Essa boa inteligência em que vivem os elementos, de origem
diferente, de nossa nacionalidade é um interesse público de primeira
ordem para nós. (NABUCO, 2000, p.16)
Essa perspectiva acabou reforçando uma certa concepção de que os problemas
que a população negra enfrenta não são muito diferentes dos da maioria dos pobres
que existem no Brasil. Não é um problema de racismo e discriminação, como o
existente nos Estados Unidos, mas da falta de inserção dessa população em condições
de trabalho e vida melhores.
Contrapondo-se a Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e toda uma
geração de pesquisadores marcou profundamente a reflexão sobre as relações raciais
no Brasil. A tese fundamental de Fernandes (1971; 1978) pode ser resumida da
seguinte forma: a sociedade pós-Abolição não criou as condições necessárias para a
absorção do elemento negro. O negro não estava preparado social e psicologicamente
para se tornar um trabalhador livre.
18
Os resultados de nossas investigações, apresentados de modo tão
sumário, patenteiam que a transição do regime escravocrata para o
regime de classes não operou com a mesma rapidez que a transformação
do status político do negro. A medida legal abolicionista, promulgada sob
o governo monárquico e consagrada pelo governo republicano que o
substitui em 1889 concedeu aos manumitidos direitos formais, o que
levaria um dos paladinos do movimento abolicionista a afirmar que a
Abolição se revelara uma ironia atroz. É que a transição precisava se
operar como um processo histórico-social: o negro deverá antes ser
assimilado à sociedade de classes, para depois ajustar-se às novas
condições de trabalho e ao novo status econômico-político que adquiria
na sociedade de Classes. ( FERNANDES ; BASTIDE ,1971, p.71-80)
O legado de nossas relações escravistas marcaria profundamente a população
negra, dificultando sua inserção no mercado de trabalho e perpetuando condições de
anomia no seu meio social.
Faltava ao liberto, portanto, a auto-disciplina e o espírito de
responsabilidade do trabalhador livre, as únicas condições que poderiam
ordenar espontaneamente a regularidade e a eficácia do trabalhador no
novo regime jurídico-econômico. Como existia a alternativa de substituí-lo,
pois os imigrantes eram numerosos e tidos como “poderosos e
inteligentes trabalhadores”, as fricções engendradas pela persistência
daquelas três constelações psicossociais eram fatais ao negro e mulato.”
(FERNANDES, 1978,p.73)
Na visão de Florestan Fernandes, na medida em que o negro se integrasse na
chamada “sociedade de classes”, a questão racial tenderia a perder importância. A
“raça” iria perdendo a importância numa sociedade capitalista norteada por critérios
“racionais” e econômicos no preenchimento das posições de classe. Fernandes (1971,
p. 275) trabalha com o conceito de “raça” enquanto conceito sociológico, ou seja, do
ponto de vista biológico o conceito não se sustenta, mas existe enquanto conceito
social, produzido a partir das relações entre os grupos sociais que se autoclassificam ou
classificam os outros enquanto “raças”, produzindo auto-avaliações recíprocas que
podem levar à aproximação ou afastamento entre os grupos. Para Fernandes (1971), a
19
integração econômica e domínio das técnicas sociais de uma sociedade de classes por
parte dos negros levaria à erosão do legado de nossas relações raciais de matriz
escravista. Observa-se que para o autor, o racismo e a discriminação são resquícios do
legado do escravismo, arcaísmos do passado. Há um certo otimismo com relação ao
desenvolvimento do capitalismo e de uma sociedade de classes. A questão de classe
se sobreporia à questão “racial”. Portanto, seu anti-racismo concretizar-se-ia em
medidas universalizantes de ampliação da educação e inserção no mercado de
trabalho.
Tal posição é questionada por Andrews (1991,p.33) que, ao analisar as relações
entre brancos e negros em São Paulo, entre 1888 e 1988, observa que a perspectiva
de Fernandes demonstra um certo otimismo em relação ao desenvolvimento do
capitalismo. Na medida em que a chamada “Revolução Burguesa” se concretizasse,
nossas relações raciais iriam se transformar. Para Andrews (1991,p.35), o capitalismo,
ao invés de abolir as categorias raciais ou de etnicidade, na verdade tende a reforçá-
las.
Andrews (1991,p.84-98) observa que, no período posterior à abolição da
escravatura, as agências estatais exerceram grande influência na formação do mercado
de trabalho. Ao incentivarem a imigração estrangeira, acabaram dificultando a inserção
do negro no mercado de trabalho. Esse incentivo era visto como necessário pelas
nossas elites para mitigar o poder de negociação entre os antigos senhores e os ex-
escravos. Ao “inundar” o mercado de trabalho como mão de obra imigrante, o custo da
mão-de-obra manteve-se baixo.
Segundo Andrews (1991,p.119), na visão de Fernandes os imigrantes e os afro-
brasileiros eram vistos como produtos de sociedades de níveis completamente
diferentes em termos de desenvolvimento econômico e social. Os europeus estariam
mais aptos ao mercado de trabalho, possuíam uma mentalidade “moderna” e
progressista, enquanto os ex-escravos sofriam as conseqüências da escravidão
prolongada: noção degradada de trabalho, vida indisciplinada, famílias desestruturadas,
condições de anomia no seu meio social. Essas condições vivenciadas pelos ex-
escravos inviabilizaram a competição entre negros e imigrantes no mercado de
trabalho. Os imigrantes teriam mais vantagens por estarem imbuídos de uma ética do
20
trabalho e terem apoio efetivo das estruturas de solidariedade familiar e comunitária.
Para Andrews (1991,p.122), muito antes da abolição, grande parte dos afro-brasileiros
escaparam da escravidão e se estabeleceram como comerciantes e artesãos. Grande
parte da população afro-brasileira era analfabeta e, em sua maioria, os imigrantes eram
alfabetizados, mas esta não era uma habilidade fundamental para incorporação no
mercado de trabalho. Andrews (1991,p.133) observa que as chamadas condições de
anomia e patologia social não eram exclusividade da população negra. O crime, a
pobreza e a desorganização social também se aplicavam aos brancos pobres e
imigrantes. Portanto, a dificuldade de inserção do negro no mercado de trabalho não se
devia à falta de um horizonte cultural adaptado à sociedade inclusiva, mas sim à política
de estado que favoreceu a mão-de-obra imigrante e inviabilizou uma posição de
negociação dos afro-brasileiros.
Uma terceira perspectiva sobre as relações raciais no Brasil é marcada
principalmente pelos trabalhos de Carlos Hasenbalg. Em sua tese de doutorado,
Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil, o autor procura desenfatizar o legado
do escravismo sobre a situação atual do negro no Brasil. Para o autor, a “raça”
concebida como um conjunto de traços fenotipicos historicamente elaborados, acaba
funcionando como um mecanismo adscritivo no preenchimento das posições de classe.
O racismo e a discriminação assumem novo papel na sociedade capitalista.
Em suma, a raça, como traço fenotípico historicamente elaborado, é um
dos critérios mais relevantes que regulam os mecanismos de
recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema
de estratificação social. Apesar de suas diferentes formas (através do
tempo e do espaço), o racismo caracteriza todas as sociedades
capitalistas multirraciais contemporâneas. Como ideologia e como
conjunto de práticas cuja eficácia estrutural manifesta-se numa divisão
racial do trabalho, o racismo é mais do que reflexo epifenomênico da
estrutura econômica ou um instrumento conspiratório usado pelas classes
dominantes para dividir os trabalhadores. Sua persistência histórica não
deveria ser explicada como mero legado do passado, mas como servindo
aos complexos e diversificados interesses do grupo racialmente
supraoordenado no presente. (HASENBALG, 1979,p.1118)
21
Para o autor, o racismo acaba funcionando como elemento determinante
primário nas relações de produção e distribuição. Após a abolição, os negros iram
ocupar um certo conjunto de posições nas relações de produção e distribuição. Tais
posições são diferentes das ocupadas pelos brancos. Existe também uma
concentração dos negros em regiões periféricas em relação aos centros dinâmicos do
capitalismo. Para Hasenbalg, essa desvantagem inicial seria um dos legados do
escravismo. Porém, na sociedade contemporânea, observa-se que a maioria dos
brancos aproveita-se do racismo e da opressão racial para obter vantagem no
preenchimento das posições na estrutura de classes. Observa-se nitidamente que em
termos de processo de estratificação e mobilidade social, se as pessoas entram na
arena competitiva com os mesmos recursos, exceto na filiação racial, o resultado é uma
posição inferior aos não-brancos. (HASENBALG, 1979,p.114) Observe-se que o autor
usa a expressão não-brancos que inclui todos os indivíduos que possuem
características fenotipicas que se aproximam do negro. Nesse caso estão incluídos as
diversas tonalidades de cor da população que são classificadas como parda. Quanto
maior for a proximidade da pigmentação de cor ao negro, menores as chances de
mobilidade. Hasenbalg (1979,p.246) ressalta que a sociedade brasileira conseguiu
evitar que a “raça” operasse enquanto princípio de identidade coletiva e ação política.
Para Hasenbalg, a ideologia racial dominante acaba se manifestando na ausência de
conflito racial aberto e na desmobilização política dos negros.
Pode-se perceber que esta perspectiva acaba levando a um certo tipo de anti-
racismo, ou seja, a crença numa certa estratégia de combate à discriminação e ao
racismo a ser adotada pelo movimento negro e pela ação estatal. Ao que parece, a
resolução dos problemas da população negra passa necessariamente pela politização
da questão racial: se a adscrição racial levasse à criação de uma identidade racial que
polarizasse o conflito, provavelmente a situação de desigualdade racial tenderia a
diminuir.
Como Carlos Hasenbalg, outros autores contemporâneos acreditam que o
movimento negro deve buscar a criação de uma identidade negra que leve à
mobilização política. Tal identidade caminharia no sentido da substituição de um
modelo multipolar de classificação, ou seja, a superação do chamado contínuo de cor
22
por uma identidade bipolar (brancos e negros) que possibilitaria uma maior mobilização
política. A gradação de cores, o branqueamento social e o mito da democracia racial
seriam efetivamente combatidos na medida em que se operasse essa alteração
identitária. Autores como Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, Michael George
Hanchard e Munanga4, partilham dessa concepção.
Munanga (1999,p.13-15) também parte do princípio da necessidade da criação
de uma identidade que sirva de plataforma mobilizadora . Nesse sentido, é necessária a
recuperação de uma negritude tanto física quanto cultural. A criação de uma
solidariedade coletiva é difícil devido à presença do ideal de branqueamento
5
,
elaborados nos fins do séc. XIX e XX pelas elites brasileiras. A idéia de um Brasil
mestiço dificulta a criação de uma forte identidade negra mobilizadora.
Telles (2003,p.301-302) observa que o racismo e a discriminação existem em
todas as sociedades multirraciais. O Brasil possui uma certa especificidade devido às
suas condições históricas, demográficas, culturais, políticas e econômicas. O
entendimento de nossas relações raciais acabou gerando duas escolas de pensamento
que na sua opinião não podem ser vistas opostas, mas complementares. A primeira
geração de pesquisadores, dos 30 aos anos 60, buscou enfatizar as maravilhas da
miscigenação e subestimou as desigualdades raciais e o racismo. A segunda geração
que se inicia nos anos 50 enfocou o problema do racismo e da desigualdade racial e
ignorou o papel da miscigenação. A primeira geração era otimista, e formada
principalmente por norte americanos, embora incluísse sociólogos brasileiros como
Gilberto Freyre, e examinou as regiões norte e nordeste; já a segunda geração era
formada exclusivamente por brasileiros, que pouco conhecia sobre os Estados Unidos e
pesquisou basicamente as regiões Sul e Sudeste.
Além das especificidades regionais, para Telles (2003,p.303) a diferença de
conclusões entre as duas gerações de pesquisadores talvez se deva à ênfase que cada
escola deu ora às relações horizontais ora às verticais. Para Telles, as relações
4
Esses três autores serão analisados com mais detalhes no decorrer do trabalho.
5
Tal ideal é resultado da intensa imigração incentivada pelas elites brasileiras no final do século XIX. Esse ideal
expressa-se na busca de um padrão estético e cultural branco, que é visto como elemento superior. Portanto na visão
de Munanga, o ideal de branqueamento foi resultado da intensa mestiçagem promovida pelas elites no final do
século XI X . Isso explicaria a dificuldade que a população negra tem de se organizar e criar uma identidade que
mobilize negros e multatos. Para maiores detalhes ver Munanga (1999).
23
horizontais são caracterizadas por uma sociabilidade inter-racial especialmente entre
pessoas da mesma classe social, enquanto as relações verticais são aquelas entre
diferentes classes sociais e que implicam relações de poder socioeconômico. Quando a
primeira geração limitou suas análises à dimensão horizontal da sociabilidade, acabou
concluindo que as relações raciais no Brasil eram bem melhores do que nos Estados
Unidos. Os grandes índices de uniões inter-racial e baixos de segregação residencial
levaram à conclusão de que os negros eram aceitos e assimilados pelos brancos. A
segunda, ao enfatizar a dimensão vertical da desigualdade e estudando a região mais
desenvolvida do país, constatou a pouca mobilidade entre negros e pardos em
detrimento dos imigrantes europeus. Portanto, a especificidade de nossas relações
raciais deve-se a convivência de uma integração ou assimilação horizontal com um alto
nível de racismo e desigualdade racial vertical.
Para Telles (2003,p.312) a alta incidência de miscigenação indica a existência de
fronteiras relativamente fracas entre pessoas de cores diferentes. Tal fenômeno é
extremamente verdadeiro principalmente entre os pobres e entre pessoas de cores
semelhantes no Brasil. Portanto, a miscigenação não pode ser vista apenas como uma
ideologia, mas uma variável importante no entendimento de nossas relações raciais. No
plano horizontal, as fronteiras raciais no Brasil são muito mais permeáveis, enquanto na
dimensão vertical as barreiras raciais são impostas fortemente. Talvez, na sua visão,
até de forma mais forte que nos Estados Unidos.
Ao analisar as várias concepções de “raça”, bem como as estratégias propostas
de combate ao racismo, parece estar em jogo a discussão da nossa nacionalidade, ou
basicamente que projeto de nação pretende se construir. No início da década de trinta,
Freyre (1989) acreditava que o Brasil estava construindo uma nova sociedade, na qual
a hibridez da origem possibilitaria a criação de uma nação miscigenada, na qual cada
“raça” daria uma contribuição na construção de uma identidade brasileira. Negros,
brancos e índios complementar-se-iam na formação da nacionalidade brasileira,
construindo um mundo novo, diferente do anglo-saxão.
Observe-se que as concepções freyrianas possuem uma certa similaridade com
as idéias de Darcy Ribeiro sob a especificidade de nossa nacionalidade:
24
apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova
Roma, uma matriz ativa da civilização neolatina. Melhor que as outras,
porque lavada em sangue negro e em sangue índio, cujo papel,
doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a
viver mais alegre e mais feliz. (RIBEIRO,1995,p.264)
Nossa nacionalidade foi construída a partir da crença na miscigenação e ainda
hoje as pessoas acreditam que o que poderíamos chamar de brasilidade é exatamente
essa hibridez, esse mosaico de cores, culturas que formariam nossa contribuição para
humanidade. O racismo existe e é forte, mas as soluções que parecem atentar para
demarcação das identidades parecem não encontrar muito eco entre a população.
Nesse sentido, autores como Fry, Da Matta e Maggie apontam a necessidade
de aguçarmos a nossa percepção para a especificidade das relações “raciais” no Brasil.
O racismo existe, mas talvez a solução deva estar relacionada à busca de propostas de
políticas públicas que levem em consideração essas especificidades.
As políticas de ações afirmativas existentes nos Estados Unidos foram criadas
num contexto no qual as identidades “raciais” eram polarizadas, o preconceito estava
fundamentado na descendência; a “mistura” era considerada algo prejudicial à
construção da nação. Uma sociedade formada por princípios meritocráticos-liberais, na
qual o “indivíduo” é mais importante que o grupo a que pertence.
Observe-se que, no Brasil, as identidades raciais não estão polarizadas. Nosso
preconceito opera com a cor, a condição social, o nível de instrução, a aparência. A
ambigüidade é um dos traços fundamentais de nossa cultura que, apesar de em certas
situações “encobrir” o preconceito e a discriminação, em outras gera possibilidade de
convivência e até uma certa rejeição contra o preconceito. Em nossa sociedade, a
lógica das relações sociais é muito mais relacional do que orientada por princípios
meritocráticos-liberais. Ter relações em determinados grupos sociais pode levar à
incorporação de uma pessoa independente de sua tonalidade de pele.
Tudo isso nos conduz a algumas correlações interessantes que permitem
elucidar o caso do “racismo brasileiro” e do nosso famoso triângulo racial.
É que primeiramente devemos ressaltar como as sociedades igualitárias
engendram formas de preconceito muito claras, por que sua ideologia
negava o intermediário, a gradação e relação entre grupos que deveriam
permanecer separados, embora pudessem ser considerados teoricamente
iguais. (DA MATTA,1997,p.46)
25
Todos esses aspectos devem ser levados em consideração na criação de
soluções para o nosso racismo. Para Da Matta não se pode equacionar soluções que
ignorem as especificidades dos dois países: nos Estados Unidos existe uma precisão
classificatória enquanto que no Brasil existe um reconhecimento social do intermediário,
gerando indeterminação étnica. Na visão de Damatta, as soluções deverão demandar
uma inteligência sociológica mais aguçada. (DA MATTA,1996,p.73)
Na mesma linha de raciocínio, Fry crítica as propostas que tomam a solução
norte-americana como referência única de resolução do problema do racismo e
discriminação:
Em comparação com a “normalidade” e “modernidade” dos Estados
Unidos, o Brasil, assim deve ser declarado carente: por não ter “raças”
polarizadas; por definir a “raça” de alguém por sua aparência e não pela
genealogia; por não ter produzido um forte movimento negro de massas;
por não ter sido palco de confrontos raciais; e por subordinar oficialmente
a especificidade das raças à desigualdade de classes. O mito da
“democracia racial” é interpretado como elemento funcional, um tanto fora
dos arranjos de “raça” do Brasil, o que afasta o Brasil do destino “natural”.
E assim como a “democracia racial” já foi símbolo dominante do
nacionalismo brasileiro, agora tornou-se demonizada em certos círculos
acadêmicos e ativistas como ideologia amplamente responsável pelo
insidiosíssimo racismo do Brasil.” (FRY, 2002,p.170)
Tanto Da Matta (1996) como Fry (1995), ao apontarem a necessidade de
atentarmos para nossas especificidades, não negam a discriminação e o racismo, mas
encaminham a discussão no sentido de considerarmos as possibilidades que o mito da
democracia racial enseja enquanto “valor” para nossas condutas sociais.
Quando se aborda o “mito da democracia racial” de um ponto de vista
mais antropológico, quer como estatuto para a ação social quer como
sistema ordenado de pensamento social que encerra entendimentos
fundamentais a respeito da sociedade, ele pode então ser compreendido
não tanto como “impedimento” à consciência social, mas como base do
que a “raça” ainda significa na verdade para a maioria dos brasileiros.
(FRY, 2002,p.172)
26
A compreensão de Da Matta tanto como a de Fry parecem atentar para a
necessidade de se levar em consideração que os modelos teóricos e as propostas de
soluções nem sempre traduzem a percepção das pessoas do fenômeno. Pensar na
racialização como modelo de superação do racismo no Brasil é uma referência clara ao
modelo norte-americano. O movimento negro luta para a criação de uma identidade
negra que supere o contínuo de “cor”. Uma identidade menos ambígua facilitaria a
criação de uma plataforma de ação política. Autores como Guimarães (1999) e
Hanchard (2001) acreditam numa relação de causa e efeito entre “racialização” e
mobilização política, entre “racialização” e superação da discriminação e racismo.
O criticável neste jogo de espelhos não é que possamos aprender com
outras culturas. O que se perde, sem um equilibrado balanço de perdas e
ganhos, é a noção central da ambigüidade cultural, ou seja, de que não
há nada de absoluto em termos culturais. Infelizmente, os Estados
Unidos, até mesmo na questão racial, em que teríamos menos a
aprender, desempenham, para nós, esse papel. (SOUZA, 1996,p. 31)
Souza também ressalta que as soluções para a problemática da discriminação e
do racismo no Brasil deveriam levar em consideração a questão do mito da democracia
racial:
Todas as noções que os brasileiros associam positivamente a si próprios
são representadas nesse mito: sensualidade, afetividade, tolerância,
cordialidade etc. (SOUZA, 1996, p.31)
As soluções que buscam demarcar identidades no Brasil parece irem ao
encontro dos valores que mais o brasileiro estima em si mesmo. Isso poderia explicar a
dificuldade do movimento negro em agremiar “aliados” para sua causa. Souza (1996)
comenta que, em uma de suas pesquisas realizadas no Distrito Federal, constatou-se
que em todos os preconceitos (contra mulher, homossexual, o pobre ou o nordestino),
existe uma linha demarcatória entre as camadas populares e classe média: as médias
possuem um alto preconceito se comparadas as primeiras. Apenas o racismo foi um
preconceito rejeitado por todas as classes sem distinção.
Sansone (2003,p.10) também expressa ceticismo com relação à possibilidade da
mobilização e emancipação em torno da identidade étnica e da “raça”. Na sua visão, o
27
chamado mito da democracia racial não pode ser tratado apenas como uma farsa, pois
em certos segmentos sociais, principalmente nas classes sociais mais baixas, ele tem
um alto significado:
não se pode ser tratado como se fosse uma farsa imposta de cima para
baixo a fim de ocultar o racismo, ou uma espécie de falsa consciência
(étnica) tal como tem sido abordado com enorme freqüência pelos
cientistas sociais[...]. (SANSONE, 2003, p.11)
Além disso, o autor ressalta a necessidade se repensar o sentido de
ambigüidade na discussão de nossas relações “raciais”:
O que pretendo dizer como ambíguo é uma certa informalidade no contato
social e nas relações com pessoas de cor e classes diferentes, bem como
uma ausência de distinções raciais claras em contraste com os países
mais “avançados”, a começar pelos Estados Unidos, que supostamente
são mais “racionais”, e onde a “raça” e etnicidade tendem a se organizar
em moldes mais distintos e mais claros. (SANSONE, 2003, p.11)
Para Sansone (2003,p.19), o padrão de relações raciais na América Latina
caracteriza-se por uma tradição de casamentos mistos, por um continuum racial ou de
cor, em vez de um sistema polarizado. Existe uma cordialidade transracial nas horas de
lazer, entre as classes mais baixas. Existe uma longa história de sincretismo no campo
da religião e cultura popular e uma organização política relativamente fraca com base
na raça e etnicidade , a despeito de longa história de discriminação racial. Daí, então,
falar do desenvolvimento de uma negritude sem etnicidade.
Assim, em vez de criarem formas políticas próprias, os brasileiros negros
tentaram, tradicionalmente integrar-se nos partidos, sindicatos,
associações existentes. De certo modo, buscaram o orgulho negro sem
etnicidade, mas dentro da nação. (SANSONE, 2003,p.290)
Portanto, ao se criarem políticas de oposição ao racismo tais questões devem
ser levadas em consideração.
Em termos da defesa da diversidade etnocultural e de formas de ação
política destinadas a se opor ao racismo, precisamos inventar algo que se
adapte a um país em que grande parte da população, possivelmente a
maioria, sente-se mestiça, de um modo ou de outro. Isso talvez seja
complicado, que mais não seja pelo fato que historicamente, as ciências
28
sociais tiveram grande dificuldade para se haver com a miscigenação e a
“mistura”; em virtude de sua preferência por linhas bem demarcadas e
fronteiras claras, as ciências sociais deixaram a cargo de escritores e
romancistas a atenção para esse fenômeno. Entretanto, isso faria mais
sentido do que esperar que o Brasil se torne menos ambíguo em termos
étnicos. (SANSONE, 2003, p.293)
A proposta do CENEG parece estar em uma situação intermediária, num meio
termo , uma solução que ressalta uma especificidade de nossa percepção das
desigualdades, pois parece combinar preocupações com o combate das desigualdades
que tem por base a “cor” e a posição social ou “classe”. Sua proposta parece refletir a
percepção de Fry sobre as instituições e idéias que começam a surgir a partir do debate
sobre ação afirmativa:
As idéias e instituições que começam a emergir da questão da ação
afirmativa, combinando preocupações com desigualdade entre as
pessoas de cores diferentes e pessoas de classes sociais diferentes,
testemunham a potência do desejo de manter a primazia do indivíduo
sobre sua natureza, por assim dizer, a primazia do chamado jeitinho sobre
a rigorosa disciplina classificatória. (FRY, 2002, p.189)
Para Costa (2002, p.40), a centralidade da categoria raça nos estudos sobre
desigualdades pode ofuscar outras dimensões de um fenômeno que é multifacetado. A
categoria “raça” poderia levar à relação de subordinação da cultura à política. Outras
clivagens, como o gênero, a classe e a de origem precisam ser adequadamente
estudadas, na reprodução estrutural das desigualdades. Para Costa, autores como
Guimarães tendem a projetar modelos identitários a partir de suas reflexões, que
parecem passar ao largo das aspirações de reconhecimento das populações
desfavorecidas pelas desigualdades raciais.
Para Costa (2002,p.53), não é possível estabelecer uma relação causal entre
racialização das relações sociais e diminuição das desigualdades raciais, como também
não é possível acreditar na tese oposta de que o racismo será vencido não por uma
política identitária, mas por condições políticas institucionais para qual o fenótipo não
tenha qualquer influência sobre o exercício da cidadania. No máximo, tais
interpretações podem ser tratadas como hipótese de trabalho ou projeto político.
29
A advertência de Costa é extremamente válida nos dias de hoje. O debate
acerca das soluções sobre as desigualdades raciais parece estar se polarizando nas
duas posições expostas pelo autor; talvez a análise da proposta do CENEG nos
propicie uma compreensão melhor dessa problemática, considerando que é uma
proposta intermediária.
Como bem ressaltou Maggie (2001), a experiência do Pré-vestibular para negros
e carentes (PVNC) revela muito de nossa maneira de pensar sobre as diferenças
sociais. Na literatura sociológica, a questão oscila entre as explicações que enfatizam o
peso da “raça” na estruturação das desigualdades sociais e a influência da classe na
construção destas. Entretanto, entre os participantes dos movimentos surge uma
terceira posição que acaba tomando os dois critérios para pensar as desigualdades
sociais. O PVNC caracteriza sua identidade da mesma forma que o senso comum,
apostando mais no que “une e não no que separa”.
Assim, seus integrantes elaboram uma identidade que engloba classe,
gênero, cor, origem regional, origem residencial e a idéia de indivíduo e
cidadão. A opção por um universalismo que não exclua a preocupação
com um grupo social específico os negros é uma das possíveis
formas positivas de construir canais para viabilizar a ascensão social de
parcelas “carentes” de nossa juventude, não necessariamente
identificadas por uma origem étnica comum. ( MAGGIE, 2001,p.199)
Observa-se que as visões tanto de Fry como Maggie levam em consideração
que a visão que os brasileiros possuem de “raça” está intimamente ligada ao nosso
projeto de nação pensado em termos de “democracia racial”. Os projetos de soluções
talvez devam levar em consideração tal questão.
Grin (2001,p.173), ao analisar os projetos propostos no seminário
“Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos
contemporâneos” ocorrido em Brasília, em 1996, observa que o debate do seminário foi
norteado por três perguntas centrais: a do estatuto ontológico de raça no Brasil, se de
fato existem sujeitos raciais no Brasil e como os sujeitos sociais definem-se e
percebem-se a partir de uma divisão racial.
Segundo a autora, três percepções podem ser sistematizadas a partir das
posições defendidas. A primeira, que vai de acordo com boa parte da militância negra e
30
de intelectuais, acredita que a experiência de racialização americana bem como as
ações afirmativas são uma alternativa eficaz para o combate à discriminação e ao
racismo. Tal perspectiva assume a discriminação como um fenômeno global,
relacionada à “diáspora negra”. O problema bem como a solução encontrada no
contexto americano deve ser objeto de consideração dos países que procuram
combater a discriminação e o racismo. Tal perspectiva, segundo Grin, produz um certo
“conforto epistemológico”.
A segunda percepção (Grin,2001, p.174) é classificada como “fundamentalismo
sociológico”. Postula que as desigualdades sociais e econômicas entre “brancos” e
“negros” devem-se à herança histórica do passado escravista, que condicionou em boa
parte a inserção do negro na sociedade pós-Abolição. Tal perspectiva, fruto das
análises de Florestan Fernandes, acredita que mudanças estruturais na sociedade
brasileira favoreceriam a integração do negro na sociedade. Os comportamentos e
atitudes em relação aos negros que ainda seriam informados pela herança escravista
tenderiam a desaparecer. Nessa perspectiva, as políticas reparatórias podem ou não
produzir resultados.
Para Grin (2001, p. 174-175), Hasenbalg ultrapassa tal visão na medida em que
demonstra que a adscrição racial é determinante na estruturação das relações sociais.
A “raça” operária em todos os níveis da sociedade brasileira, inclusive nos mais
“modernos”, a discriminação racial apareceria como fonte independente de
desvantagens para o negro. As medidas reparatórias amenizariam o problema, mas
não atingiriam seu âmago. Tal constatação evidencia-se no descompasso das
percepções raciais. Apesar das desigualdades demonstradas estaticamente, existe a
crença originária de que o Brasil é ou virá a ser uma democracia racial. Tal paradoxo da
dinâmica racial explica a dificuldade da tentativa dos movimentos negros em buscar a
racialização de nossas relações sociais como forma de desconstrução do mito da
democracia racial.
A terceira perspectiva que Grin (2001,p.176) classifica como culturalista acredita
que as intervenções governamentais no combate às desigualdades raciais não podem
deixar de levar em consideração o valor que a “mistura” e a complementaridade de
“raças” assumem para os brasileiros em termos de sua identidade nacional. Tais
31
políticas reparatórias significariam a um só tempo a desestabilização de uma
cosmologia racial híbrida complementar e inclusiva e a aceitação de uma “culpa
histórica” difícil de ser “digerida” pelos brasileiros.
Grin (2001,p.183-184), a partir dessas perspectivas, observa que se desdobram
três tipos de soluções. A primeira constata a necessidade de adoção das ações
afirmativas como mecanismo de resolução das desigualdades raciais. Como justificativa
moral, ressalta-se a necessidade do respeito do direito das minorias, bem como o
reconhecimento por parte do estado de certas diferenças que geram desigualdade. Tal
perspectiva acredita que o modelo norte-americano apresentará resultados
consistentes no Brasil.
A segunda solução aponta a necessidade de reforço do ideal liberal universal.
Tal perspectiva acredita que a melhor forma de combate ao racismo é a implementação
de políticas públicas não baseadas em critérios “raciais”. A grande maioria da
população pobre, seja branca ou negra, beneficiar-se-ia dessas políticas, e o elemento
“raça” não deveria ser reforçado, pois o fim dessa categorização levaria ao fim do
racismo.
A terceira solução de intervenção acredita que criação de políticas públicas deve
levar em consideração as especificidades das relações raciais brasileiras.
Diferentemente do modelo norte-americano, nossa cultura valoriza a ambigüidade e a
mistura. Além disso, em nossa sociedade convivem dois princípios ou valores de
organização social: o individualismo e a hierarquia. A ambigüidade gera situações de
confraternização e exclusão. Tais situações demonstram que políticas orientadas por
definições rígidas de identidade podem não surtir o efeito esperado. (Grin, 2001, p.183)
Grin crítica o papel dos analistas que propõem soluções que não levam em
consideração os modelos através dos quais os sujeitos pensam a si, as desigualdades
e as soluções:
Para fazer valer sua sugestões em favor de políticas de preferência racial,
Guimarães vislumbra uma ordem social racializada mais uma vez a
despeito dos sujeitos sociais, “ignorantes” que seriam dos mecanismos
que os colocam em situação desigual. Nessa perspectiva, entre o cientista
social e a agente social há uma distância significativa, na qual o primeiro
sabe e pontifica e o segundo ignora mas pode ser persuadido. Ademais, o
autor parece dotar a identidade racial que ele quer ver politicamente
32
ativada de um caráter instrumental do qual os sujeitos sociais se valeriam
para escapar da desigualdade real em que estão enredados.(GRIN, 2001,
p.186)
Guimarães (2002,p.73), ao comentar as críticas dirigidas às suas posições,
mostra a necessidade de se levar em consideração o contexto em que ele discute os
programas de ações afirmativas. Segundo Guimarães, nos momentos em que este
assumiu posição favorável a tais políticas, ele o fez num contexto político e em tom de
polêmica. Além disso, assumindo um estilo lógico-normativo, em que seu valores estão
abertamente declarados. Nas duas situações seu conhecimento aparece num
contexto político partidário e não expresso em termos de análise sociológica. Nesses
contextos, Guimarães ressalta que seu objetivo era se contrapor àqueles que de início
se colocavam contra a adoção das políticas afirmativas. Guimarães (2002,p.75) observa
que engajar-se num debate político não significa “pontificar”, pois o importante nessa
polêmica de primeira ordem era enfrentar os “fantasmas” que nossos intelectuais
alimentam e que a discussão explicitou.
A análise do projeto do CENEG talvez propicie elementos para que possamos
observar como e o que as organizações sociais de combate ao racismo e discriminação
entendem sobre ação afirmativa. Será que o entendimento dessas organizações sobre
tal conceito é o mesmo dos pesquisadores ? Ao que parece, sua construção do
conceito de ação afirmativa bem como sua atuação parece estar de acordo com essa
especificidade da cultura brasileira, que procuremos desvendar por este trabalho.
33
Procedimento metológico e Pesquisa de Campo
O procedimento metodológico para a execução deste trabalho foi nascendo a
partir dos problemas que foram surgindo no decorrer da pesquisa. A princípio, iniciou-se
pelo levantamento da bibliografia pertinente ao tema. Ao mesmo tempo, iniciei as
viagens a Uberaba e passei a discutir com as lideranças sobre a proposta de se fazer
um estudo da entidade.
No início, as pessoas estranhavam um pouco meu interesse pela instituição, em
alguns momentos senti até um certo receio por parte de algumas delas, mas, apesar
disso, os dados foram sendo cedidos gentilmente. Comecei com a leitura das cartilhas e
documentos oficiais da instituição. Percebi que para um melhor entendimento das
concepções da instituição seria necessária a coleta de depoimentos das lideranças que
me esclarecessem sua visão sobre o preconceito e a discriminação, a questão das
ações afirmativas etc.
Em princípio, tinha como intenção entrevistar todos os líderes, mas não me foi
possível entrevistar uma das principais lideranças devido à dificuldade de conseguirmos
nos encontrar na época, devido ao processo eleitoral que se aproximava. Também
entrevistei um membro do Conselho Afro de Uberaba e um ex-líder do Centro Nacional
de Cidadania Negra, para observar a visão de alguém de fora da instituição e uma
professora da rede pública municipal que tinha alunos que participavam dos cursos do
CENEG. Como também de um ex-líder da instituição. Optei pela utilização de nomes
fictícios para garantir o sigilo dos depoimentos e dar tranqüilidade para que elas
pudessem falar a vontade, pois em sua maioria, como já foi dito, elas eram lideranças
políticas municipais e regionais.
Enfrentei algumas dificuldades para conseguir entrevistar algumas das
lideranças devido as disputas políticas existentes na cidade. A grande parte dessas
lideranças eram membros do poder público e algumas pertenciam a cargos eletivos. E
algumas das entrevistas foram realizadas na época em que a cidade se encontrava em
processo eleitoral.
Quanto ao perfil dos alunos, a instituição estava construindo os bancos de
dados, nem sempre era possível ter acesso a eles. Com isso, optei por trabalhar com
34
os dados apresentados por uma pesquisa feita pela própria instituição, que trabalhou
com um universo 2200 fichas de alunos entre outubro de 1999 e março de 2001.
Para uma compreensão melhor dos efeitos de suas políticas de combate à
discriminação e ao racismo, resolvi entrevistar alguns estudantes, escolhi os que
freqüentavam o pré-vestibular por ser um dos cursos mais procurados na instituição. A
instituição indicou-me vários deles a partir da minha solicitação de que se levasse em
consideração a auto-identidade que aparecia nas fichas de inscrição; tinha a intenção
de entrevistar pelo menos quatro estudantes negros, pardos, brancos. Tive dificuldades
de conseguir agendar entrevistas, pois muitos trabalhavam e estudavam e nem todos
que se dispuseram, compareceram. No final, entrevistei sete pessoas, sendo quatro
delas negras, uma parda e duas brancas. As entrevistas, tanto das lideranças quanto
dos estudantes, seguiram um roteiro de perguntas abertas, sem nenhuma preocupação
com o tempo, deixei que as pessoas falassem à vontade, no final transcrevi os
depoimentos e selecionei os trechos para elaboração do último capítulo.
1 Visões acadêmicas sobre o Movimento Negro e suas ações de combate a
Discriminação e Racismo
1.1 Raça , Racismo e Preconceito
Como foi visto, várias são as perspectivas de análise sobre a relação entre
“raça” e desigualdade social no Brasil. A concepção de “raça” interfere no
diagnóstico da realidade a ser estudada como também na forma de combater a
discriminação e o racismo.
Observa-se a emergência de duas possibilidades: uma que considera a
necessidade de observar a maneira como os sujeitos sociais classificam-se e são
classificados pelo grupo, a outra que coloca a necessidade do uso de uma categoria
de “raça” que permita perceber melhor a natureza racial de nossas desigualdades
sociais. A primeira perspectiva poderia ser classificada como antropológica enquanto
a segunda mais sociológica.
A perspectiva antropológica endossada por Fry, Da Matta, Grin e Maggie,
afirma a necessidade de aguçarmos a nossa percepção de que nossas relações
raciais são marcadas pela incorporação do Mito da Democracia Racial. Para esses
autores, apesar da existência do preconceito racial no Brasil, não se pode deixar de
levar em consideração que este mito é parte fundante de nossa identidade nacional
e até mesmo possibilita, enquanto valor, a criação de uma sociedade na qual as
marcas raciais sejam irrelevantes.
Nosso sistema classificatório é multipolar, ou seja, as pessoas se auto-
identificam por uma infinidade de termos e cores. Este fato deve ser levado em
consideração se quisermos construir políticas públicas que de fato resolvam a
desigualdade entre negros e brancos no Brasil. O fenômeno da miscigenação e
ambigüidade resultante do processo de formação de nossa nacionalidade poderiam
inviabilizar qualquer tipo de política que trabalhe com padrões identitários rígidos.
Autores como Fernandes e Hasenbalg, apesar de discordarem entre si sobre
as conseqüências do racismo e da discriminação na sociedade pós-abolição,
acabam se encontrando ao usarem um conceito essencializado de “raça” que
possibilita a visibilidade das diferenças entre negros e brancos no Brasil.
36
A essencialização
1
-se a partir do momento em que trabalham com um
sistema classificatório polar que inclui as várias matizes de cores. Tal
essencialização aparece na perspectiva de Hanchard, Munanga e Guimarães.
Fernandes trabalha com o conceito de “raça” enquanto construção social. Tal
conceito de certa forma é um tropo para se pensar as desigualdades de classes. As
identidades raciais perderiam força na medida em que os negros fossem
incorporados à sociedade de classes. A “classe”, a “cor” seriam tropos importantes
para se pensar as desigualdades de acesso à cidadania de negros e brancos.
Hasenbalg (1979), ao trabalhar como “raça” enquanto categoria adscritiva,
observa que a raça opera enquanto fator de criação e manutenção das
desigualdades. Tal fator não tenderá a diminuir enquanto passa o tempo. Pelo
contrário, no capitalismo, os grupos tendem a utilizar desses mecanismos para
justificar seus privilégios e inviabilizar o acesso dos grupos racialmente subordinados
a tais bens.
Da perspectiva de Hasenbalg (1979) emerge a percepção da necessidade da
superação de uma identidade marcada por um sistema classificatório multipolar para
o bipolar. Daí a essencialização que tem sido instrumento necessário no
desmascaramento da chamada democracia racial. Ao incluir as várias matizes de
cores na categoria não-branco, foi possível, para o autor, a percepção de que
nossas desigualdades sociais são no fundo desigualdades raciais. A bipolorização
possibilitaria a elaboração da “raça” enquanto conceito político necessário ao
combate as desigualdades raciais.
Guimarães (1999; 2002), ao trabalhar com a noção de “raça” enquanto
conceito sociológico, busca precisar as várias dimensões que envolvem a exclusão
social no Brasil. Observa que a raça é um conceito necessário para compreensão de
certas ações subjetivamente intencionadas ou para se perceber o sentido subjetivo
de certas ações. O poder em nossa sociedade expressa-se em várias dimensões.
Nesse sentido, o fenômeno “racial” pode ser tratado de acordo com a perspectiva do
carisma de grupo. O carisma associado à “raça” é aquele que postula que a herança
genética de determinado indivíduo ou grupo define seu valor moral e intelectual.
No caso do Brasil, para Guimarães (1999, p. 208-209) três carismas são
mobilizáveis: cor, etnia e classe. A cor é um carisma associado à aparência física, a
etnia está associada à identidade cultural, regional e nacional enquanto a classe
está associada à posse ou ausência de bens materiais. Como nossa desigualdade
1
Tal termo não tem conotação biológica.
37
econômica é extrema, os brasileiros tendem a associar o problema do racismo a um
problema econômico. O carisma de classe sobrepor-se-ia aos demais. Ao
desmembrar o social nessas três esferas, é possível a percepção do racismo
enquanto fenômeno multifacetado é um problema não circunscrito à esfera
econômica.
A “raça”, para Guimarães (2002, p. 51), não tem fundamentação biológica,
mas possui existência nominal e efetiva no mundo social. Para Guimarães, só
poderemos prescindir da noção de “raça” quando não houver mais identidades
raciais, ou seja, quando os grupos não se identificarem a partir de marcadores
derivados da idéia de raça como, por exemplo, a noção de cor.
No momento em que a identidade negra fortaleceu-se, foi possível a
atribuição das causas da pobreza “negra” à discriminação e ao racismo, ou seja, a
racialização aparece como estratégia necessária para moblização política. A “raça”,
então, torna-se categoria importante no diagnóstico das desigualdades e na própria
superação do racismo. O modelo bipolar de classficação racial é visto também como
estratégia política.
Hanchard trabalha com o conceito de “raça” enquanto um conjunto de
diferenças fenotípicas que operam enquanto símbolos de distinções sociais. O
significado das categorias raciais é construído socialmente. O racismo aparece como
ideologia que inferioriza a população negra. O combate a esse fenômeno só se dará
com a criação de uma identidade negra que gere mobilização política. Ao enfatizar a
“raça” enquanto símbolo de distinção, o autor encontra-se com a perspectiva de
Guimarães. A diferença então, nesse sentido, opera enquanto estigma, daí também
a possibilidade de se transformar a “raça” em carisma de mobilização.
Munanga(1999) observa que nossa identidade nacional é marcada pela
mestiçagem. Nossa mestiçagem tanto biológica como cultural desembocou na
formação de um projeto de sociedade unirracial e unicultural. Tal modelo obedece a
hegemonia racial e cultural do branco ao qual todos deveriam ser assimilados. Tal
projeto começou a ser construído no final do século XIX e início do XX, por nossas
elites. Como conseqüência desse processo, houve a destruição da identidade racial
e étnica dos grupos dominados. Nossas elites incentivaram a criação de uma
identidade mestiça que reuniria todos os brasileiros. A formação de uma identidade
negra foi considerada um empecilho para nossa identidade nacional. (MUNANGA,
1999,p.16) A mestiçagem articulada no pensamento brasileiro, seja na
miscigenação biológica ou enquanto produto da interação das diversas culturas,
38
sincretismo cultural, aparece enquanto estratégia que desmobiliza a população
negra. (MUNANGA, 1999:90) A ambigüidade da linha cor/classe social e o
embranquecimento constituem mecanismos estratégicos que auxiliam
individualmente na ascensão de negros e mestiços na sociedade brasileira, mas
acaba funcionando como um elemento chave na desmobilização da população afro-
brasileira. (MUNANGA, 1999, p.96) A construção de uma identidade negra que
agregue os chamados mestiços com a população negra passa a ser a principal
estratégia para o combate à discriminação e ao racismo existente na sociedade
brasileira.
D’Adesky (2001, p. 34-35) considera negro todo indivíduo de origem ou
ascendência africana suscetível de ser discriminado por não corresponder total ou
parcialmente aos canônes estéticos ocidentais. Essa projeção de uma imagem
inferiorizada ou depreciada representa a negação do reconhecimento igualitário da
cultura afro-brasileira. Na sua definição de negro, ele incorpora mulatos, morenos,
sararás, jambos, que também são afetados pela imposição desse modelo estético
que deforma e deprecia sua identidade de grupo e funciona como critério de
hierarquização que subvaloriza negros, mulatos e morenos à categoria branco.
Observe que nesta definição a aparência ou marca terá papel fundamental na
exclusão ou incorporação do indivíduo de ascendência negra.
As várias definições de negros ou identidade negra até aqui apresentadas
partem do princípio da necessidade da criação de um termo que incorpore as várias
matizes de cores que operam como mecanismos sociais de classificação. Da
perspectiva de Hasenbalg (1979), Guimarães (1999;2002), Munanga (1999) e
Hanchard (2001) concordam com a criação de uma definição de “raça”
essencializada que de alguma forma caminha para a “necessidade” da criação de
um sistema bipolar. Uma identidade bipolarizada facilitaria a criação de uma
“plataforma mobilizadora de luta”.
A “cor”, mais que a “raça”, parece ter mais sentido ou significado na
percepção das pessoas comuns sobre as diferenças. Apesar de concordar com a
afirmação de Guimarães (1999, p.44), de que a “cor” é uma derivação da idéia de
“raça”, acredito que a categoria “cor” seria o termo mais correto. Tal categoria é
emic
2
, ou seja, nativa. A cor atua enquanto mecanismo de exclusão associado a
outros marcadores de status, como grau de instrução, ocupação e etc.
2
Para um melhor entendimento das categorias emic e etic ver: HARRIS et al. (1993, p.460) apud GUIMARÃES,
2002, p.53.
39
Só que aqui, como bem coloca Nogueira (1998, p. 239), o preconceito racial
não tem o poder de dividir a sociedade em dois grupos com consciência própria, que
seriam impermeáveis um ao outro. Nosso preconceito tende a situar os indivíduos
uns em relação aos outros num continuum que vai do extremamente negróide ao
branco.
Além disso, outros critérios atuam no sentido da identificação da cor do
indivíduo como grau de instrução, ocupação, hábitos e relações pessoais que o
indivíduo possui. Nossa ideologia de relações raciais que predomina é
assimilacionista e miscegenacionista. ( NOGUEIRA,1998, p. 244)
Quando utilizarmos o conceito de preconceito estaremos nos referindo à
definição proposta por Nogueira (1998, p. 243-244) que considera preconceito de
“cor” ou “marca racial” uma certa preterição e não exclusão ou segregação dos
indivìduos de “cor” que, quando em competição com o grupo discriminador, em
igualdade de condições, tendem a serem preteridos. Atuam associados à cor outros
critérios, como grau de instrução, ocupação, hábitos e contatos pessoais.
Serão considerados afro-descendentes os indivíduos portadores dessas
“marcas raciais” que são suscetíveis de serem discriminados e que podem estar
associadas a outros derivadores de status como condição econômica, grau de
instrução e relações pessoais.
Com relação ao conceito de racismo, acreditamos que a definição proposta
por Munanga é a que melhor exprime a especificidade de nossas relações raciais.
Na perspectiva de Munanga, nosso racismo pode ser classificado como um
Racismo Universalista, que apesar de hierarquizar as “raças” não produziu
segregação.
Observe que há duas perspectivas de racismo e anti-racismo
3
. O chamado
racismo diferencialista nasce em sociedades onde a miscigenação é vista como algo
prejudicial à manutenção do poder das elites dominantes. O racismo anglo-saxão
orientou-se por esse princípio. O resultado foi a criação de sociedades segregadas,
nas quais a linha “racial” é bem demarcada, o que de alguma forma facilitou a
implementação de políticas de ações afirmativas.
No caso brasileiro nosso racismo é universalista, partindo do principio de que
as “raças” e “culturas” estão hierarquizadas, considerando que a “cultura” branca é
“superior”. Essas “culturas” e “raças” podem ser assimiladas às mais evoluídas via
40
processo de miscigenação. O anti-racismo dessa perspectiva acredita na criação de
um projeto de nação onde as diferenças não tenham importância, pois mais do que
negros ou afrodescendentes, eles seriam brasileiros. Tal anti-racismo para Munanga
iria contra o que existe de mais “moderno”: as minorias tendem a buscar uma
sociedade multicultural, em que as diferenças são valorizadas e respeitadas.
1.2 Breve histórico do Movimento Negro e do Centro Nacional de Cidadania Negra
A história do Movimento Negro no Brasil pode ser caracterizada pela luta
pelo reconhecimento da existência do racismo e discriminação. Tornar as pessoas
conscientes dessa situação e, a partir disso, organizá-las tem sido um dos grandes
objetivos dos grupos do movimento negro.
Hofbauer (1999, p. 291-292)observou que os primórdios do surgimento do
Movimento Negro podem ser buscados nos precursores da imprensa negra. O
Grupo dos Caifazes, cujo líder da entidade era Antônio Bento, assume a liderança
do movimento abolicionista em São Paulo após a morte de Luiz Gama, em 1882.
Embora a iniciativa da organização partisse de pessoas não-negras, as idéias e
posturas políticas defendidas por esse grupo teriam ressonância entre 25 e 40 anos
mais tarde, nos primeiros jornais “negros” como também na Frente Negra Brasileira.
Hofbauer (1999, p. 291-293) aponta que o Jornal a Redempção (1887-1888),
tinha um discurso moderado com relação ao processo de abolição, o fim do trabalho
escravo deveria seguir uma transformação lenta e com garantia da ordem e
desenvolvimento próspero do país. Nos textos e artigos desse jornal, não se
duvidava da existência das diferenças raciais, porém tais diferenças não justificariam
os maus tratos dispensados à “raça” negra. Propagavam inclusive a importação de
mão-de-obra imigrante européia para a garantia de um desenvolvimento da nação
brasileira. Os discursos desse jornal só se radicalizaram na medida em que os
senhores iam perdendo controle sobre os escravos. É nesse contexto de
radicalização que se começa a criticar os projetos governamentais que asseguravam
privilégios aos imigrantes europeus sem nenhuma preocupação com o ex-escravo.
3
A referência nessa introdução sobre os conceitos de Racismo e Anti-racismo está no pensamento de Kabenbele
Munanga, que será aprofundado no decorrer do trabalho. O trabalho de D’ADESKY, 2001, também será
utilizado, mas inicialmente estou utilizando os conceitos de Munanga, 1999.
41
As primeiras manifestações do movimento negro organizado no Brasil datam
do início do século e se dão por meio de clubes, irmandades e associações
recreativas ( NASCIMENTO, A. ; NASCIMENTO, E.L.,2000).
Tais entidades tinham como objetivo a busca de uma efetiva integração da
população negra à sociedade. Essas associações, que surgem em vários lugares,
estão marcadas pela crença de que a população negra precisava ser incorporada ao
mercado de trabalho. Além disso, era necessário ter condições adequadas de
educação, moradia e bens básicos para poder estar em condições de igualdade
com relação à população branca.
Havia uma crença de que o negro não era incorporado à sociedade devido à
falta de condições econômicas. Acreditava-se também que, devido ao passado
escravocrata, o negro não estaria preparado para se adaptar a uma sociedade de
caráter inclusivo e competitiva devido aos resquícios existentes de uma certa cultura
da senzala.
Tal cultura expressava-se na concepção de liberdade do negro, marcada pela
noção de ir e vir, dificultando uma atividade sistemática de trabalho. Associada a
essa noção de liberdade estava ligada uma visão degradada do trabalho, bem como
as condições de anomia e pobreza dessa população que, de uma maneira geral,
fora excluída do mercado de trabalho na competição com os recém chegados
imigrantes. Esta visão aparece marcadamente na obra de Fernandes (1971;1978),
principalmente em A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Os autores que
seguiram o pensamento de Fernandes, que formaram a chamada escola paulista,
Ianni (1988) e Cardoso (1977), também partilhavam da mesma percepção.
Tal visão expressava-se em vários grupos do movimento negro,
principalmente na Frente Negra Brasileira, e na imprensa negra, como o Jornal o
Clarim da Alvorada, que se desenvolviam. (Fernandes, 1978, p.11-13) Tais
instituições serão discutidas mais adiante.
Nascimento (2000) observa que a chamada imprensa negra foi marcada pela
busca da criação de um protesto, mas não um protesto que visava o
desenvolvimento de uma cultura específica negra, mas buscava a integração da
população negra na sociedade em pé de igualdade com a branca.
Era comum a busca da auto-estima que se manifestava nas escolhas de
rainhas para clubes associativos, na preocupação com a educação e principalmente
na questão do emprego.
42
Tal padrão de organização e luta é o germe do Centro Nacional de Cidadania
Negra. Em 27 de abril de 1964, era fundado o Elite Clube, na cidade de Uberaba.
Este clube fora fundado por um grupo de jovens negros que buscavam uma maior
participação na vida social da cidade. A princípio, possuíam um salão onde se
realizavam eventos voltados para a cultura negra, debates e reuniões. Com o passar
dos anos, vai se transformando numa instituição com fins educacionais e culturais.
O Elite Clube tem, portanto, uma origem similar à de um conjunto de clubes e
associações do início do século XX, que buscavam uma efetiva integração na
população negra na sociedade brasileira. Essas organizações funcionavam como
marco de referência da capacidade de organização da população negra. Essas
organizações acabaram sendo o germe de futuros grupos do Movimento Negro
4
.
Os grupos do Movimento Negro do início do século objetivavam uma efetiva
integração na sociedade brasileira. Acreditava-se que, na medida em que o negro
criasse auto-estima e tivesse condições de se inserir no mercado de trabalho, a
questão étnico-racial tornar-se-ia irrelevante ou pelo menos não seria crucial para a
situação social dos negros. Tal percepção se reflete na criação de vários jornais que
surgem na década de 20. Cabe destaque principalmente para O Menelike, O
Kosmos, A Liberdade, Auriverde, O Patrocínio. (NASCIMENTO, 2000).
Em 1924 , surge um dos principais jornais de protesto, O Clarim da Alvorada.
Os militantes que publicavam este jornal estão entre os fundadores de um dos
principais movimentos do início do século: a Frente Negra Brasileira
5
. Fernandes
(1978, p. 45) observa que, no período de 1927 a 1945, surgiram várias associações,
mas a maioria teve uma vida curta.
A Frente Negra Brasileira, que se desenvolve entre 1931 e 1937, conseguiu
agremiar vários membros. Sua principal luta era a busca da efetiva integração do
negro na sociedade. Para tanto, era necessário que a população negra conseguisse
meios de sobrevivência que lhe garantissem acesso à educação. Necessário
também, seria que o negro não se visse como inferior, fato que seria modificado na
medida em que o negro fosse integrado na sociedade.
Percebe-se nitidamente que o caráter integracionista desse movimento deve-
se à crença de que o problema do racismo e da discriminação é um problema
4
Para o aprofundamento da discussão sobre o papel dos clubes e a formação de grupos do movimento negro ver:
AGUIAR,1998.
5
Para o aprofundamento da história da Frente Negra bem como de outros movimentos do início do século XX
ver: FERNANDES,1978.
43
fundamentalmente econômico. Na medida em que o negro se integrasse no
mercado de trabalho, a discriminação e o racismo seriam combatidas.
Fernandes (1978), ao analisar o caráter integracionista da Frente Negra
Brasileira, destaca os objetivos presentes no seu estatuto que objetivavam promover
a : “união política e social da gente negra nacional, para a afirmação dos direitos
históricos da mesma, em virtude da sua atividade material e moral no passado e
para reivindicação de seus direitos sociais e políticos, atuais, na comunhão
brasileira.”(FERNANDES, 1978, p.46)
Observe que a expressão comunhão brasileira expressa muito bem a questão
da integração e a percepção de que o Brasil é formado pela união dos três povos:
portugueses, índios e negros.
Hofbauer (1999, p. 294-296) aponta que a Frente Negra Brasileira foi a
primeira tentativa de unir os brasileiros de cor de pele negra numa entidade que
seguia “modelos ocidentais modernos” (destaque do autor) quanto à organização
política. A Frente Negra Brasileira percebia-se como uma organização de
autodefesa e autoajuda para um grupo social identificado como “raça negra”. A
entidade, segundo Hofbauer, em suas concepções, postulava uma ligação entre
cultura e civilização. A cultura era entendida como um processo histórico
acumulativo que garantiria o progresso da humanidade. Ao se igualar cultura e
civilização, era implícito que a “cultura” era um valor a ser atingido. Não se negava a
existência das “raças”, porém se acreditava numa escala de desenvolvimento das
“raças”, sendo que as “raças atrasadas” poderiam ascender nessa escala na medida
em que fossem inseridas nos valores civilizatórios pelo processo educativo.
Para Hofbauer é nesse sentido que não é de se estranhar a ênfase da
entidade em projetos educacionais e de formação profissional do negro.
Na sua sede, a FNB instalou um curso primário, outro de alfabetização
para adultos e promoveu cursos de inglês, além de manter uma oficina
de costura e uma “banca de marceneiro”, onde se ensinavam artes e
ofícios aos associados interessados. Assim, acreditava-se “aplainar” o
caminho para aceitação e integração maior do negro na sociedade.
(HOFBAUER, 1999, p.297)
Observe que esse padrão e percepção dos problemas enfrentados pelos afro-
descendentes refletem-se nas propostas e cursos do Centro Nacional de Cidadania
Negra que será discutido mais adiante.
44
Nascimento (2000, p.206) observa que a preocupação com a educação
demonstra o caráter integracionista da Frente Negra Brasileira. Tal perspectiva
apresentava-se na Associação José do Patrocínio, que foi o germe do Movimento
Afro-Brasileiro de Educação e Cultura que atuou até a década de 1950.
Com o surgimento do Teatro Experimental Negro (TEN) começa a
preocupação com o desenvolvimento de uma identidade específica negra. Buscava-
se uma revalorização e afirmação da diferença e que tal diferença não fosse
geradora de desigualdade. (NASCIMENTO, 2000)
Pinto (1993, p. 340-341) destaca que Abdias do Nascimento criou o Teatro
Experimental Negro pensando numa estratégia de ação que aliasse a preocupação
cultural e artística a uma função social. Tal preocupação cultural manifesta-se pela
busca do resgate da cultura negra e dos seus valores.
Tal movimento estava nitidamente influenciado pelo movimento de negritude
6
.
As ações do Teatro Experimental Negro desdobram-se em vários eventos sócio-
politicos, como a Convenção Nacional do Negro que seria realizada entre 1945 e
1946 (NASCIMENTO, 2000).
Para Pinto (1993, p. 341), na década de 40 e 50 os eventos e manifestações
do Movimento Negro passam a dar cada vez mais importância à ascendência afro, à
busca de uma cultura específica do negro.
A Convenção Nacional do Negro Brasileiro redigiu um manifesto à nação
brasileira em que divulgou a necessidade de admissão de gente negra para
educação secundária e superior e, mais uma vez, ressaltou a necessidade da
formulação de uma lei antidiscriminatória. O Manifesto ressaltava também a
necessidade de um conjunto de medidas para que a igualdade jurídica entre negros
e brancos fosse efetiva. (NASCIMENTO, 2000, p. 212).
Pinto(1993, p. 349) observou que no manifesto destacava-se uma grande
preocupação com o resgate da memória do negro brasileiro que seria um substrato
importante para a construção de uma identidade. Tal identidade assinala Pinto
(1993, p. 349), se constituiria em uma fonte possível de ação social. No manifesto
também se propunha a criminalização do preconceito, começava a se explicitar um
discurso multirracial e uma preocupação com a ascensão social pela educação e
6
O movimento de negritude inciou-se na década de trinta, por Aimé Césaire e outros artistas negros que
basicamente pretendiam redescobrir antigos valores e modos de pensar afiricanos que produziriam um
sentimento de orgulho e dignidade na população de origem africana. Para maiores detalhes ver CASHMORE,
2000 e MUNANGA,1986.
45
pequena propriedade. Esse discurso multirracial manifesta-se na reivindicação de
que a constituição brasileira mencionasse a origem pluriétnica do povo brasileiro.
Percebe-se pela primeira vez que o Movimento Negro passa a pensar no
direito e na lei como um mecanismo necessário para o combate do racismo e da
discriminação. Tal percepção transparece no jornal Quilombo , ligado ao Teatro
Negro Experimental: “Pleitear para que seja previsto e definido o crime de
discriminação racial e de cor, em nossos códigos, tal como se faz em alguns estados
da América do Norte e na constituição cubana de 1940.” (NASCIMENTO, 2000,
p.210 apud GUIMARÃES, A.S.A; HUNTLEY, l., 2000).
Nascimento ressalta que ainda constava no programa: acesso ao ensino
gratuito a todas as crianças, a admissão subvencionada de estudantes negros no
secundário e universitário, o combate ao racismo e à discriminação por meio de
medidas culturais e de ensino, além do esclarecimento da verdadeira imagem
histórica do negro. Nessas medidas percebe-se que, para Nascimento, o negro não
ingressa no ensino superior devido à discriminação e pobreza que resulta de sua
condição étnica. Aparece c laramente a associação entre raça e pobreza
7
.
Pode se observar claramente que já na década de 40 existia uma percepção
da necessidade da conjugação de políticas públicas universais e específicas para
resolução do problema do racismo no Brasil.
Na década de 50, o evento mais importante apontado por Nascimento foi a
realização do primeiro Congresso do Negro Brasileiro, quando se evidenciou
proposta da organização de campanhas de alfabetização e ensino na comunidade
negra.
Pinto (1993, p. 351) destaca que na declaração de princípios elaborada no
Congresso, colocava-se que os problemas dos negros constituíam um aspecto
particular do problema geral do povo brasileiro que seriam superados pelo espírito
associativo da gente de cor, por meio da ampliação de oportunidades educacionais
e sociais. Dever-se-ia se incentivar iniciativas que promovessem o conhecimento
das relações raciais e havia a sugestão de inclusão de negros nas listas de
agremiações partidárias para que se desenvolvesse a capacidade política e
formação de líderes negros.
Em 1954, Pinto (1993, p. 354) assinala o surgimento da Associação Cultural
do Negro que fora fundada por Solano Trindade e Abdias do Nascimento. Essa
7
Tal questão será mais discutida no decorrer do trabalho, para maiores esclarecimentos ver: GUIMARÃES,
2002.
46
associção editou os Cadernos de Cultura Negra. Entre os objetivos da associação
nos estatutos, estavam a “recuperação do elemento afro-brasileiro como também
“coordenar, esclarecer e orientar em todas as atividades de caráter econômico,
educacional, cultural , político e social, os afro-brasileiros preferentemente.” Ainda se
destacava a necessidade de se reencontrar as raízes da cultura negra, bem como
reavivar e dar conhecer o negro certos valores inerentes ao seu grupo. (DERMI
AZEVEDO, 1969 apud PINTO, 1993, p. 355).
Percebe-se claramente nos objetivos narrados por Pinto a busca de um
processo de essencialização da diferença. Tal essencialização transparece na idéia
de “reavivar certos valores inerentes ao grupo”; e pode levar a percepção da
diferença como algo imutável e fixo. Esse processo poderia dificultar a aliança com
outros grupos sociais não-negros que poderiam ser importantes aliados na luta
contra o racismo e discriminação.
A entidade entra num período de desarticulação devido às diferenças
ideológicas internas, e suas atividades seriam retomadas em maio de 1977,
momento em que seus objetivos passam a ser mais assistenciais. (PINTO ,1993, p.
355-356).
Segundo Pinto (1993, p.357-359) no período que vai dos meados de 40 até
60, o movimento negro continuaria se manifestando e cada vez mais existe uma
preocupação com a afirmação de sua identidade que se manifestava na ênfase nas
raízes afro e importância da cultura negra. Na década de 70 o evento mais
importante foi o surgimento do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação
racial (MNU)
8
. Fato que também será destacado por Nascimento (2000).
Percebe-se a construção de um novo paradigma de luta do Movimento Negro
que, no final do século XX, passou a buscar alternativas igualitárias que se
concretizassem em políticas públicas específicas. A esfera judicial também passou a
ser vista como um importante instrumento de obtenção de decisões judiciais que
levariam à criação de jurisprudências favoráveis à população negra como um todo.
Destaca-se a necessidade de democratização na esfera institucional e promoção de
igualdade de oportunidades na educação, saúde e emprego. Seria necessário que
houvesse uma representação efetiva da população negra nos poderes executivo,
legislativo e judiciário. Tal paradigma reflete-se nas propostas do Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação Racial.
8
Para um aprofundamento da história do Movimento Negro Unificado ver também. : NASCIMENTO, 1989.
47
Observe que o surgimento do CENEG, como instituição oriunda do
Movimento Negro, reflete esse conjunto de mudanças, mas há de se ressaltar que
suas principais propostas têm um forte paralelo com as reivindicações do Movimento
Negro do início do século passado, principalmente a ênfase na educação e trabalho.
A instituição inicia-se a partir de um clube associativo, que mais tarde será germe de
um órgão da prefeitura do município de Uberaba. Na década de 80, com o processo
de redemocratização, começa a ser criada um conjunto de órgãos e conselhos,
estaduais e municipais que incorporam as demandas de grupos do movimento
negro.
Em 1984, o governo Franco Montoro cria o Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra com o objetivo de criar e implementar
políticas de valorização que facilitem a inserção qualificada da população negra. A
experiência de São Paulo influenciaria a criação de vários conselhos estaduais,
como também municipais como o de Uberaba. (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p..16)
Tal mudança também é observada por Nascimento (2000), quando em 1991,
no governo de Leonel Brizola, foi criada uma Secretaria de Promoção e Defesa das
Populações Afro-brasileiras. Pela primeira vez, as reivindicações do Movimento
Negro institucionalizam-se num órgão governamental. O resultado, segundo o autor,
foi a criação de uma Delegacia especializada em crimes de racismo, como também
um balcão de atendimento a denúncias de racismo. Para que se mudassem as
concepções racistas sobre o negro presentes na sociedade, a secretaria criou um
conjunto de oficinas e cursos de capacitação da polícia militar, como também dos
professores da rede pública. Tal iniciativa foi extinta em 1995 com o fim da
Secretaria.
Tal movimento também reflete-se no município de Uberaba. Em abril de 1986,
era fundado o Conselho Afro-Brasileiro de Uberaba, órgão ligado ao poder público
municipal, fruto das aspirações de membros do Elite Clube. A aprovação do
conselho pela prefeitura possibilita uma reunião das principais lideranças do
movimento negro da cidade, quando foram escolhidos os principais representantes
que iriam compô-lo.
Os principais objetivos propostos pelo Conselho Afro-Brasileiro de Uberaba
com o Elite clube eram:
propiciar a elevação dos níveis de auto-estima e motivação de
elementos da comunidade, criando condições psicossociais que
favoreçam o fortalecimento dos seu espírito empreendedor e o
desenvolvimento da sua criatividade, proporcionando assim, maior
48
participação e satisfação no seu dia-a-dia como também informando,
divulgando a nossa cultura, promovendo o lazer e o esporte, cobrando
e denunciando todos os acontecimentos de nossa comunidade.
(EVANGELISTA, 2000, p.02)
Em 16 de abril de 1989, começa a segunda gestão do Conselho Afro de
Uberaba. Esta gestão foi marcada por problemas de ordem financeira. A falta de
recursos do poder municipal acabou inviabilizando uma sede para o Conselho. Tal
situação gera uma série de dificuldades culminando no pedido de demissão do
presidente da época. Ainda assim, seria nomeado um novo presidente que tentaria
dar continuidade a essas primeiras conquistas.
O conselho iniciou uma nova fase quando a secretaria de Turismo e Esportes
cede uma sala para o funcionamento deste em sua dependência. A viabilização
deste espaço resulta da articulação do Conselho Afro-brasileiro, das entidades
negras da cidade e membros do poder legislativo da cidade junto à prefeitura. A
Câmara Municipal aprova também uma nova composição para Fundação Cultural de
Uberaba, que contará com um Departamento de Cultura Popular e Assuntos Afro-
brasileiros.
Em 22/06/98, foi inaugurada uma nova sede para o Conselho, e a prefeitura
se responsabilizava pelo pagamento do aluguel do imóvel, contas telefônicas e
fornecia dois funcionários. Tal conquista foi viabilizada pelo convênio assinado entre
o Conselho Afro-brasileiro e a Fundação Cultural de Uberaba. O Conselho começa
a buscar novas parcerias, objetivando viabilizar cursos e promoções que
reforçassem a auto-estima da comunidade negra, além de buscar alternativas no
mercado de trabalho. Os projetos pensados tinham como objetivos
enriquecer ações já existentes e criar condições psicossociais que
fortaleçam o espírito empreendedor e o desenvolvimento da
criatividade.
É a busca da aprendizagem individual e coletiva, da melhoria da
moradia, do desenvolvimento artístico e cultural, de novas opções na
educação e na saúde, enfim, um posicionamento firme do conselho
perante a opinião pública. (EVANGELISTA, 2000, p. 2)
Com isso, o Conselho Afro-Brasileiro conceberia um programa de valorização
da Comunidade negra, que tinha como objetivo oferecer projetos voltados para
educação, cultura e saúde. Em 1999,o COPICAB (Conselho de Participação e
Integração da Comunidade Afro-brasileira), promove uma série de palestras sobre
49
problemas que afetavam a comunidade negra. Além disso, foi realizada uma
pesquisa sobre a comunidade negra na cidade. Tal pesquisa congregava 21 bairros
de Uberaba. Com base nas informações da pesquisa, o conselho concluiria pela
necessidade de criação de programas de qualificação e requalificação profissional.
Através do apoio do poder legislativo da cidade, um membro do poder legislativo
federal tomaria conhecimento desses projetos, e acabaria por apoiá-los. Nasce o
Ceneg
9
Centro de Formação Profissional e Cultural da Raça Negra.
A partir de um convênio firmado entre a Secretaria dos Direitos Humanos e a
COPICAB, resultaram recursos que possibilitaram a qualificação de 1300 pessoas,
bem como a compra de equipamentos.
No jornal Tom sobre Tom
10
, um dos articuladores comenta os objetivos a
que se propõem o Conselho Afro e o Ceneg:
O Conselho afro desenvolvendo mecanismos de militância em torno
das causas comuns da elevação do homem como um todo e
trabalhando a auto-estima do negro como força formativa de nossa
sociedade, propondo políticas sociais que atendam a formação integral
do cidadão...o exemplo mais concreto de trabalho em prol da formação
do homem é o Ceneg, que é o centro de qualificação e requalificação
de mão de obra. Voltado para o negro mas aberto a todos os
segmentos da sociedade, afinal não se pode desenvolver um racismo
às avessas mas combatê-lo e repudiar qualquer forma de racismo,
preconceitos sociais e mostrar que o Estado brasileiro nunca
desenvolveu políticas compensatórias sociais, e que apesar do Estado
o negro vem buscando com competências a ocupação de vários
espaços.
11
(CAIXETA, 2000, p. 6)
Com o sucesso dos primeiros cursos realizados, em uma assembléia geral
realizada em 23/03/00, o Elite Clube altera seu estatuto e transforma-se em Centro
Nacional de Valorização da Raça Negra :
Entidade que tem dentro de outras metas, o compromisso de elevar a auto-
estima da raça negra, propiciando-lhe novos e melhores postos de trabalho e
consequentemente uma vida mais digna...reafirmamos o compromisso de
continuarmos essa jornada, se não sempre, pelo menos até que consigamos
caminhar lado a lado, de igual para igual, com as demais raças que compõem
e forma este lindo povo brasileiro.
Sem a igualdade de capacitação, sem acesso a educação profissional, sem
poder se preparar para o exercício de sua ocupação, negros e não negros
serão diferentes no resultado final de seu esforço para conquistar a cidadania
9
Posteriormente essa sigla irá significar Centro Nacional de Valorização da Raça Negra e por fim Centro
Nacional de Cidadania Negra.
10
Grifos são meus.
11
Grifos meus.
50
e empreender ações em defesa dos Direitos Humanos.
12
(EVANGELISTA,
2000, p. 2)
Observe que neste trecho fica clara a preocupação de cunho integrativo do
CENEG. Tais objetivos encontram-se com as mesmas preocupações da Frente
Negra Brasileira no início do século. A integração social concretizar-se-ia na medida
em que a população fosse integrada no mercado de trabalho pela educação. Seu
projeto aposta num ideal de nacionalidade marcada pela crença da formação do
povo brasileiro num encontro de “raças”.
Dando prosseguimento aos projetos do CENEG, a entidade propôs a criação
de CENEGs regionais que possibilitassem a implantação de seus cursos em cidades
do triângulo mineiro. Tal proposta foi enviada à Secretaria dos Direitos Humanos.
Em ofício enviado pela entidade em 22 de Fevereiro de 2001 o Diretor executivo
comentava sobre a política do CENEG:
A opção pela qualificação e requalificação de mão de obra se mostrou
acertada, capacitando jovens e trabalhadores para a disputa do
mercado de trabalho, oferecendo a todos um instrumento de
nivelamento técnico de que não disporiam se não fosse por esta
iniciativa.
13
O projeto tem como foco o mercado de trabalho, buscando a formação,
qualificação e a requalificação da mão-de-obra. O emprego será visto como caminho
para cidadania
14
. No ofício, a entidade sugeriu a criação de um Conselho
Pedagógico para coordenar as ações educacionais da entidade buscando a criação
de um Plano de Desenvolvimento Pedagógico . Propunha também uma unificação
entre os CENEGs regionais. Discutia também a necessidade de implementação de
Programas especiais que respeitassem as diferenças e limitações dos afro-
descendentes. As cidades escolhidas foram Araxá, Frutal, Iturama, Sacramento.
Em plano de trabalho enviado à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos,
previsto para ser realizado entre abril e setembro de 2001, previa, além das cidades
já citadas, a inclusão de Uberlândia e Ituiutaba. Discutia-se a possibilidade de
12
Destaques meus.
13
CENTRO DE VALORIZAÇÃO DA RAÇA NEGRA.Ofício/2001. Uberaba, 2001.
14
Fernandes (1971,p.69-70) observava que essa associação entre cidadania e mercado de trabalho já existia na
década de 30. Favorecidas pelo processo de industrialização, havia uma mudança nas aspirações da população
51
criação de um Centro Regional de Informação e Referência da Cultura Negra, como
também a instituição de um Conselho Pedagógico que produziria material
pedagógico para a entidade.
O plano ressaltava a importância dos convênios anteriores para a população
afro-descendente:
o processo de capacitação da raça negra através de oficinas
modulares propiciou aos afro-descendentes fundamentalmente jovens
e adultos a auto-estima, e por conseqüência a ojeriza pela sedução e
oferta de drogas, caracterizados na violência estrutural, incrustados na
sociedade.”
15
Ainda, segundo a justificativa do plano de trabalho, o convênio entre o
CENEG e SEDH havia desencadeado na região o interesse pelos Direitos Humanos,
tornando-se referência em termos de afirmação dos direitos das minorias.
Atualmente, o CENEG modificou seu nome, passou a se denominar Centro Nacional
de Cidadania Negra, e coordena um conjunto de programas educacionais dirigido à
raça negra e afro-descendentes. Tal programa tem a finalidade de incluir no
mercado de trabalho cidadãos qualificados e agentes em Direitos Humanos.
Segundo informações obtidas pelo Site do CENEG
16
, o Centro já qualificou mais de
7000 jovens em suas oficinas (de ofício, esportes e artes).
Segundo, Cristina ( nome fictício), uma das líderes do Centro Nacional de
Cidadania Negra, a mudança de nome da instituição não foi consensual entre as
pessoas que participavam dela. No início, a instituição chamava-se Centro Nacional
de Valorização da Raça Negra e tinha como objetivo a formação profissional da
comunidade negra. Na visão das lideranças esses cursos seriam paliativos.
nós não éramos de acordo de ficar trabalhando, por exemplo, dando
curso para criança de engraxate, dando curso só para culinária, dando
curso de babá, era os cursos que davam, na realidade esses cursos,
são cursos paliativos....nós tínhamos uma visão maior, de trabalhar de
uma outra forma, já trabalhando pré-vestibular, já vendo o negro na
faculdade,...”
17
negra que viam importância fundamental no aprendizado sistemático de profissões bem como nas
especializações profissionais, mecanismos cruciais para competição no mercado de trabalho.
15
CENTRO NACIONAL DE VALORIZAÇÃO DA RAÇA NEGRA. Anexo I - Plano de Trabalho 1/3
Projeto: “Centro de Formação Profissional e Cultura da Raça Negra terceira etapa. Ofício/2001. Uberaba,
2001.
16
www.ceneg.org.br
17
Depoimento de Cristina concedido em 14/11/04.
52
A substituição do termo “raça” para “cidadania” deveu-se ao entendimento
das lideranças de que a instituição poderia estar trabalhando com aqueles que não
tinha condições econômicas, mesmo não sendo negros: “eu e os outros
entendemos, poderia estar também, inserindo aqueles que são de outra etnia,
porém não têm condição de freqüentar um cursinho pago.”
18
A mudança para entidade nacional deu-se a partir de um convênio entre o CENEG e
a Fundação Cultural Palmares. O convênio previa a manutenção do CENEG, bem
como sua expansão para o Brasil ao tornar-se uma instituição de qualificação de
mão-de-obra para a comunidade negra, como também a busca da preservação e
desenvolvimento da cultura afro e a integração social por meio do esporte.
Como obrigação da Fundação Palmares, ficava o suporte técnico aos
instrutores do CENEG buscando sua qualificação e requalificação profissional. Além
disso, a fundação deveria subsidiar o modelo pedagógico a ser implementado nas
unidades do CENEG, bem como subsidiar, financiar com seus recursos a
implementação do Conselho Nacional do CENEG. Tal conselho seria responsável
pelas Diretrizes Educacionais e avaliação das unidades em conjunto, bem como
administração da sede nacional em Uberaba. A vigência de tal convênio seria até
31/12/2005.
Como foi observado, nas principais propostas do CENEG encontram-se as
principais bandeiras do Movimento Negro do início do século, mas ao mesmo tempo,
quando a entidade torna-se nacional, suas reivindicações tornam-se similares às
propostas defendidas pelo Movimento Negro Unificado (MNU)
19
. A instituição
conjuga as reivindicações do movimento negro do início do século e do presente.
Vejamos.
De acordo com Alberto (2000), o MNU busca atingir o seguinte objetivo:
criação de medidas legislativas e instrumentos jurídicos que se traduzam em
políticas de igualdade no emprego, saúde e educação.
Esse objetivo geral vai se refletir num conjunto de medidas defendidas pelo
Programa Nacional de Promoção da Igualdade Racial do MNU: criação de
legislações afirmativas nas áreas civil de caráter compensatório; garantia de
representação da diversidade étnica da população nas empresas; proporcionalidade
étnico-racial nas universidades, considerando a questão étnica e econômica;
18
Idem.
19
Apesar de estarmos nos referindo ao Movimento Negro Unificado cabe destacar que ele é uma dentre as
inúmeras entidades que buscam a concretização de melhores condições de vida para a população afro-
descendente no Brasil.
53
reconhecimento das terras remanescentes de quilombos; democratização dos meios
de comunicação de massas; reestruturação da justiça, com um papel mais ativo das
promotorias e defensorias públicas no combate ao racismo e discriminação.
(ALBERTO, 2000, p. 299-301).
No Estatuto do Centro Nacional de Cidadania Negra, a entidade define-se
como uma organização da sociedade civil de interesse público, sem fins lucrativos,
que tem como meta a promoção e defesa dos Direitos Humanos e em especial da
comunidade negra e seus descendentes.
A entidade tem como principais objetivos: a promoção dos Direitos humanos
combatendo qualquer forma de discriminação e racismo; a integração da
comunidade negra no mercado de trabalho pela qualificação. Tal qualificação
concretizar-se-ia na promoção da educação gratuita por meio de oficinas de artes,
esportes e línguas e num curso pré-vestibular; em seus cursos concretizar valores
universais como ética, cidadania e paz; buscaria resgatar, preservar e divulgar os
valores da comunidade negra; implementar ações que promovam e defendam os
remanescentes de quilombos; realizar diagnósticos socioeconômicos sobre a
situação da população negra na cidade com a finalidade de propor políticas
afirmativas e buscar instituir meios de comunicação que promovam a visibilidade da
comunidade negra
20
.
Ao analisar alguns itens dessas propostas, observa-se claramente que o
CENEG constitui-se numa proposta de ação afirmativa
21
que focaliza o mercado de
trabalho e a educação.
Quanto ao “cursinho” do CENEG em Uberaba, foi estabelecido um convênio
entre a entidade e a escola Objetivo. Esta parceria começou em outubro de 2001:
cem alunos do CENEG matricularam-se no cursinho. Dos cem, quarenta foram
aprovados. O cursinho aconteceu num período curto de dois meses. Como o número
de aprovados foi satisfatório, estabeleceu-se uma nova etapa no convênio. Os
dados do ano 2002 não estavam disponíveis, mas das fichas de inscrição dos
alunos pesquisadas no ano de 2003, 254 participaram do pré-vestibular e apenas 40
desistiram. No ano de 2004 , 222 pessoas freqüentaram o curso.
As propostas do CENEG concretizaram-se a partir dos convênios firmados entre a
entidade e o Ministério da Justiça através da Secretaria de Estado de Direitos
20
CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. Estatuto do Centro Nacional de Cidadania Negra
CENEG. Capítulo 1 Da denominação, sede e foro. sem paginação. Uberaba. 2002.
21
A discussão de ação afirmativa será feita no capítulo 3.
54
Humanos. O objeto do convênio
22
era a implantação de um Centro de Formação
Profissional e Cultural da Raça Negra que desenvolveria 74 cursos de qualificação e
capacitação para o mercado de trabalho. Ainda sem sede própria, a instituição
conseguiu implantar o projeto e capacitou 4562 negros e não-negros. Os principais
cursos eram nas áreas de qualificação técnica, transformação de alimentos,
desenvolvimento Empresarial e Desenvolvimento Social.
A segunda etapa do projeto se iniciar-se-ia em outubro de 2002 em novo
convênio estabelecido com o Ministério da Justiça. Os objetivos eram bem maiores:
a idéia era a realização de 264 cursos de qualificação e requalificação de mão-de-
obra. Apesar do projeto ser centralizado na cidade de Uberaba, ele seria expandido
para outras quatro cidades do Triângulo Mineiro, cidades já citadas.
O reconhecimento do Ministério da Justiça da viabilidade dos cursos
oferecidos levou à possibilidade de sua nacionalização, a multiplicação do modelo
para outros estados do Brasil. Os recursos possibilitaram a construção da sede
nacional, que se tornou o espaço centralizador do projeto pedagógico e de política
de ação afirmativa. A sede está construída numa área de 30.000 m2 e nesta
primeira etapa foi construído um complexo educacional, ginásio poliesportivo e
Refeitório. Numa segunda fase de construção está prevista a construção de um
anfiteatro, campo de futebol, piscina olímpica bem como um Museu do Negro. O
objetivo é que a sede nacional seja um referencial para elaboração de Ações
afirmativas. Este espaço foi inaugurado em agosto de 2002.
Atualmente, os alunos possuem 12 salas de aulas, um mini-auditório, bem
como todo o equipamento de multimídia e um estúdio de gravação de CD. A oficina
de informática disponibliza um total de 30 computadores.
O projeto se concretiza a partir de 5 oficinas: ofício, artes, esportes, línguas, e
cursinho pré-vestibular. A proposta pedagógica leva em consideração, segundo os
documentos oficiais, a formação de profissionais e o resgate da cidadania que deve
envolver questões culturais, sociais e econômicas.
A instituição está sediada no bairro Univerdecidade que fica bem afastado do
centro do município de Uberaba. Uma grande área cercada de verde e ao lado da
Faculdade de Educação de Uberaba. Existe uma linha coletiva que sai do centro de
Uberaba até o CENEG. Geralmente o ônibus passa a cada trinta e cinco minutos. A
instituição conta com dezesseis funcionários contratados. Esse contrato costuma ser
22
CENTRO NACIONAL DE CIDADADANIA NEGRA. Cartilha de Divulgação. 2. ed. Uberaba: Publicação do
Centro do Centro Nacional de cidadania Negra CENEG. 2003. p.14.
55
anual e renovável conforme a disponibilidade de recursos dos convênios. Dois
funcionários são brancos e os outros catorze se compõem entre pardos e negros.
Quanto às oficinas de ofícios, seu foco é a qualificação para o mercado de
trabalho buscando criar perspectivas para inserção no mundo do trabalho. A
qualificação a visa possibilitar igualdade de condições na competição pelo mercado
de trabalho.
As oficinas de artes visam ao desenvolvimento de manifestações culturais do
povo negro como o Congado, o Moçambique, Afoxé, Capoeira e Artesanatos. As
oficinas de esporte têm como objetivo criar atividades para que as crianças ocupem
seu tempo de lazer de maneira saudável. O Esporte funciona como um mecanismo
necessário para integração social bem como o do senso de grupo. Além disso,
busca-se desenvolver na criança a preocupação com a higiene pessoal. O principal
programa desenvolvido pela oficina de esporte é o Esporte Solidário voltado
especificamente para crianças carentes. Além da prática da atividade física, as
crianças recebem reforço escolar e orientações sociais. O projeto atende também
crianças portadoras de deficiência.
As crianças contempladas pelo programa são crianças que moram em áreas de
risco, a faixa etária corresponde de 7 a 14 anos, elas devem estar freqüentando
regularmente uma escola. O transporte e alimentação são gratuitos. Este projeto
pretende ser difundido nos núcleos de Canoas (RS), Goiânia (GO), e Cuibá (MS) em
parceria com o Ministério do Esporte, transporte e Turismo. Observa-se que as
demandas do CENEG transformam-se numa política de Estado.
Como foi observado, os programas educacionais do CENEG objetivam a
criação de condições educacionais para inserção da população afro-descendente.
Em sua concepção, a educação constitui num mecanismo básico de combate à
discriminação e ao racismo. Outras instituições enfatizam formas de combate
baseados na busca da utilização do direito como instrumento privilegiado de
operação de mudanças nas concepções de racismo e discriminação na sociedade.
Dentro dessa perspectiva, uma outra organização que tem tido um papel
importante no combate à discriminação e ao racismo é o Geledés, Instituto da
Mulher Negra, que criou um serviço pioneiro de assistência legal para as vítimas de
discriminação racial, o SOS racismo. Este serviço de denúncia foi acoplado a um
serviço de assessoria jurídica que busca transformar as denúncias em ações
judiciais. Tais ações judiciais possuem caráter pedagógico na medida em que levam
56
à conscientização do problema da discriminação racial presente na sociedade
(CARNEIRO, 2000).
Essas ações judiciárias seriam necessárias pois levariam à criação de
jurisprudência para casos de discriminação racial. Portanto, a estratégia fundamental
do SOS racismo é a criação de uma demanda processual expressiva de ações
contra o racismo e a discriminação. São vários os desdobramentos possíveis dessas
ações: destaca-se principalmente a percepção pela população do caráter racista de
certas decisões processuais, e também das decisões demonstrarem a insuficiência
da legislação em vigor sobre o racismo (CARNEIRO, 2000).
A demanda processual permite a criação de casos exemplares que acabam
forçando um diálogo entre a sociedade civil organizada e o poder judiciário.
Portanto, a denúncia e o acompanhamento constituem nova estratégia do
movimento negro adotada com grande sucesso pelo Geledés (CARNEIRO, 2000).
Além dessa preocupação com medidas de caráter legal, a década de 90
caracterizou-se pelo desenvolvimento de programas não-institucionais, como
projetos educacionais de alfabetização e cursinhos pré-vestibulares. Tais iniciativas
do Movimento Negro têm levado vários autores a refletirem sobre o
desenvolvimento, limites e perspectivas da luta contra o racismo e discriminação.
1.3 Diferentes leituras das estratégias do Movimento Negro
Discutir as várias interpretações acadêmicas sobre o Movimento Negro e suas
estratégias de luta contra a discriminação e o racismo pode nos dar elementos para
uma melhor compreensão dos objetivos, dilemas e problemas enfrentados pelo
Centro Nacional de Cidadania Negra.
Os grupos do movimento negro brasileiro têm se organizado em função de
demandas culturais, que são importantes no sentido da revalorização e no combate
a imagens depreciativas do negro na sociedade. Por outro lado não conseguiram
criar um movimento nacional que transitasse das demandas culturais para um
movimento de transformação social que passasse pela esfera política. (HANCHARD
,2001).
Tal interpretação talvez seja válida somente no período de 1945-1988. Vários
fatores como o reconhecimento por parte do estado das demandas dos grupos do
Movimento Negro se iniciam na década de 80 e se prolongam nos anos 90.
(JACCOUD; BEGHIN, 2002, p.16-21) Não se pode negar que tal reconhecimento
57
deve-se ao papel político desses grupos que sempre pressionaram o Estado, ou
seja, as demandas culturais iniciaram um processo que culminaram em demandas
políticas. Além disso, cabe ressaltar que as demandas do Movimento Negro
Unificado
23
também reforçam que a interpretação de Hanchard parece estar mais
circunscrita ao seu período de estudo.
Apesar da gritante desigualdade entre brancos e negros no Brasil, não existiu
ainda no Brasil nenhum movimento nacional de oposição a essas desigualdades.
Essa constatação aparece na pesquisa desenvolvida por Michael George Hanchard
sobre o movimento negro. Num estudo comparativo entre movimento negro do Rio
de Janeiro e São Paulo entre 1945 e 1988, ele constata a dificuldade dos não-
brancos da criação de uma identidade racial que se torne um mecanismo de
mobilização política.
Utilizando o referencial de análise gramsciano, ele lança a hipótese de que
existe um processo de hegemonia racial no Brasil que neutralizou a identificação
racial entre os não-brancos dificultando sua mobilização a partir da questão racial.
Segundo Hanchard (2001, p.19), a hegemonia seria um processo de
socialização que ao mesmo tempo nega e reproduz as desigualdades raciais,
dificultando seu combate pelo movimento negro. Os grupos do movimento negro
lutam contra uma concepção que nega a existência do racismo entre brancos e não-
brancos dificultando, portanto, a mobilização dos negros e a solidariedade dos
brancos no combate às desigualdades raciais. Tal hegemonia processa-se na
crença na igualdade racial e na negação das contínuas práticas racistas. Essa
hegemonia pode ser vista ainda como efeito do mito da democracia racial
24
.
A possibilidade de mudança fica condicionada a uma reação que só
acontecerá com o desenvolvimento de uma certa consciência racial. Tal consciência
manifesta-se num certo tipo de pensamento e reação de indivíduos ou grupos em
situações de assimetria racial. (HANCHARD, 2001, p. 31).
Hanchard observa que a segregação em países como a Grã-Bretanha e os
Estados Unidos levaram os grupos segregados à criação de instituições paralelas
como igrejas, universidades, escolas e organizações políticas. Ao desenvolver tais
23
Para observação das propostas do Movimento Negro Unificado ver: ALBERTO, 2000, p.299-301.
24
O chamado mito da Democracia racial constitui um dos principais obstáculos ideológicos para o combate da
discriminação e racismo no Brasil. Tal mito se deve muito a perspectiva teórica de Gilberto Freyre que
acreditava que a escassez de mulheres brancas associada a uma certa predisposição do português a uma
colonização híbrida e escravocrata levou ao processo de miscegenação. Tal processo acabou por diminuir a
distância social entre brancos e negros e produziu as condições necessárias para a construção de uma democracia
racial no Brasil. Para maiores detalhes ver FREYRE, 1989. Como também seu principais críticos FERNANDES,
1978, IANNI,1988, CARDOSO, 1977.
58
instituições, foi possível a construção de uma política cultural que favoreceu a
aliança entre grupos diferentes bem como o desenvolvimento de uma certa
consciência racial.
Hanchard observa que entre os afro-brasileiros, apesar de existir sólidas
tradições de auto-ajuda em várias comunidades do Brasil, tais tradições em
contraste não criaram ou não favoreceram a criação de instituições paralelas que
seriam importantes no sentido de desenvolver uma rede de política cultural
necessária à mobilização política. Na visão do autor, a falta de consciência racial
levou a sérias conseqüências políticas.
Ao observar a história dos grupos do movimento negro, Hanchard constata
que as práticas culturais têm sido o locus principal de mobilização política. Tais
práticas culturais, por outro lado, tornaram-se um empecilho para o desenvolvimento
da consciência racial por reproduzir certos aspectos encontrados na ideologia de
democracia racial da sociedade brasileira. As práticas culturais dos grupos do
Movimento Negro acabam funcionando como um fim em si mesmas,
descontextualizadas de sua origem histórica e função. O resultado disso é a perda
do conteúdo político dessas práticas. Tal fenômeno é identificado como culturalismo.
(HANCHARD, 2001, p. 37-38)
Pensemos, por exemplo, a Capoeira. De símbolo de resistência do povo afro-
brasileiro transformou-se num símbolo da cultura nacional que reafirma a ideologia
da democracia racial. Tal ideologia no Brasil é hegemônica ao ponto de inviabilizar a
mobilização política dos afro-brasileiros, ridicularizar seus ativistas e ainda contribuir
para a baixa auto-estima bem como a negação de sua identidade.
Hanchard define movimento negro como uma série de movimentos com
compromissos ideológicos, estratégicos e políticos diferenciados. É um movimento
formado por uma série de grupos que possuem pouca coerência política e relações
entre si. Essa visão leva à percepção de que a esfera predominante de mudanças
sociais é política e com isso os agentes principais de mudanças passam a ser vistos
como partidos e sindicatos. Talvez isso explique porque Hanchard vê os grupos de
movimento como incoerentes, o que na verdade não se sustenta. Tal fato será
demonstrado mais abaixo a partir da análise da interpretação de Guimarães.
Esse fenômeno, para Hanchard, deve-se à chamada Hegemonia Racial que
se expressa em três aspectos: a crença de que não existe racismo e discriminação
no Brasil, ou pelo menos não tão forte como nos Estados Unidos e África do Sul; o
segundo aspecto relaciona-se a um conjunto imagens negativas da população negra
59
e aversão a qualquer ação coletiva pelos afro-brasileiros e, por último, sanções
preventivas e coercitivas contra quem demonstra a existência de assimetria racial.
O primeiro aspecto levantado por Hanchard pode ser observado facilmente,
pois a negação da discriminação racial, até há poucos anos,
25
tinha a ver com
nossa própria identidade enquanto brasileiros.
Quanto ao segundo aspecto, observa-se claramente que ainda hoje a palavra
negro é considerada ofensiva. As pessoas preferem identificar uma pessoa negra
como “morena” do que utilizar a palavra negro. Tal simbolismo começa a partir da
tenra idade, a criança é socializada em imagens estereotipadas que podem ser
vistas até nos livros didáticos. É interessante também observar as reações das
pessoas quando perguntadas sobre a viabilidade de um movimento negro para
resolver os problemas de desigualdades raciais, a maioria vê tais organizações
como um risco para a democracia racial no Brasil, pois estas estariam disseminando
um racismo às avessas.
Hanchard (2001, p. 128-129) detecta três estratégias na história do Movimento
Negro:
a) até a década de 30, a busca por uma integração na vida social;
b) na década de 40, principalmente a partir de 45, o surgimento de uma classe
média negra, a preocupação com a negritude e a transição entre as ideologias de
branqueamento e da negritude;
c) Nas décadas de 70 e 90, incorporação das temáticas de esquerda, confluência
dos discursos de “raça” e “classe”, influenciadas pelas lutas de insurreição não-
branca ou terceiro- mundista, ênfase nas manifestações simbólicas de insurreição.
26
Em São Paulo, surge o Movimento Negro Unificado (MNU). Tal movimento,
para Hanchard, está relacionado ao Grupo Evolução de Campinas, de Thereza
Santos e Eduardo de Oliveira e Oliveira. Esse grupo fora importante na medida em
que introduziu a possibilidade de apresentações culturais que mesclassem questões
políticas e ideológicas. A cultura passou a ser vista como um recurso pedagógico e
político para educar os afro-brasileiros. Esta visão teve papel importante na
percepção dos futuros líderes do MNU, que acreditavam que essas práticas eram
um diferencial importante em relação ao culturalismo encontrado no movimento
25
Tal concepção não se sustenta mais, conforme pesquisa da Datafolha em 1995, a maioria dos brasileiros
atualmente reconhecem a existência do racismo e da discriminação. Para um aprofundamento ver : Folha de São
Paulo/Datafolha. 1995. Racismo Cordial. São Paulo, Ática.
26
Para uma interpretação similar ver: GUIMARÃES, 1999, p.211-212.
60
negro. A postura do grupo Evolução era importante na medida em que estabelecia o
elo entre práticas culturais e política partidária ou organizacional.
Essa postura marcada pela questão política revela-se quando o MNU
começa a criar núcleos negros nos partidos políticos. Destacam-se os núcleos
criados no Partido dos Trabalhadores e no Partido Democrático Trabalhista na
década de 80.
Hanchard (2001) conclui que o movimento negro entre 1945 e 1988 buscou
demonstrar a existência e persistência das práticas de discriminação racial no Brasil.
No entanto, sua visibilidade e eficácia esbarraram na chamada hegemonia racial que
nega a existência das desigualdades raciais no Brasil. Além disso, o movimento
negro buscou os aspectos positivos da história afro-brasileira tentando ampliar a
consciência racial dos afro-brasileiros. Segundo o autor, os dois principais
obstáculos para o desenvolvimento e ampliação da consciência racial e, portanto, do
movimento negro foi o culturalismo e a falta de recursos para criação de instituições
negras que de fato politizassem as desigualdades raciais.
Na perspectiva de Guimarães (2002, p.105) ,há uma série de entidades
negras que surgiram nos últimos quinze anos com diferentes matrizes ideológicas,
políticas e finalidades das quais se destacam principalmente as entidades culturais,
políticas e jurídicas que têm em comum o combate ao racismo. Apesar de muitas
não serem necessariamente políticas ou terem a questão política como central, elas
acabam colocando na cena brasileira uma nova agenda que alia política de
reconhecimento ( de diferenças raciais e culturais), busca da identidade (racialismo e
voto étnico), política de cidadania (combate à discriminação racial e afirmação dos
direitos civis dos negros) e política redistributiva (ações afirmativas ou
compensatórias).
As estratégias de combate ao racismo e à discriminação do movimento negro
expressaram-se de diversas maneiras. No início do século, a Frente Negra Brasileira
acreditava numa ideologia integracionista e nacionalista. Em seu ideário não
descartava a existência das “raças”, mas acreditava na necessidade de valorização
da contribuição da “raça” negra na construção da nação brasileira. Associava a
situação de inferioridade da população negra a persistências de formas culturais
arcaicas num novo contexto social. Nos anos 40, o Teatro Experimental Negro será
influenciado pelo movimento de negritude e buscará lutar contra o sentimento de
inferioridade dos negros através da crítica ao embranquecimento e a absorção de
valores estéticos e culturais associadas à cor branca. O discurso racialista e
61
multicultural só surgirá na década de 80. Tal ideal expressou-se na revalorização da
herança cultural africana, diferenciando essa cultura do sincretismo típico da cultura
nacional. A luta contra a discriminação passa a ser também a luta contra a estrutura
injusta de distribuição de riquezas e prestígio entre brancos e negros.
(GUIMARÃES, 1999, p. 211- 212)
Hanchard enfatiza a incoerência dos grupos que não conseguem se unificar
em termos de projeto político. Tal dificuldade é fruto essencialmente do culturalismo
e da ausência de instituições criadas e mantidas pelo movimento negro. O autor
parece estabelecer uma relação íntima entre segregação e ação política. Guimarães,
ao contrário, enfatiza a pluralidade dos tipos de ações, que parece ser vista por
Hanchard como incoerência. Pluralidade que, para Guimarães, unifica-se a partir de
uma única bandeira: o combate ao racismo.
Na perspectiva de Munanga (1999, p.13-15;96), a possibilidade de
rompimento com a desigualdade racial seria a construção de ideologias
mobilizadoras que atingissem nossas bases populares. O Movimento Negro só
conseguirá seus objetivos na medida em que construir uma identidade ou plataforma
moblizadora de ações. Tal plataforma só se torna possível pela recuperação ou
construção da negritude tanto física como cultural, uma negritude que agregue os
afro-descendentes e destrua o ideal de embranquecimento bem com a ambigüidade
da linha cor/classe.
Para Munanga (1999, p.16), a ideologia da mestiçagem, elaborada em
meados do século XIX, divide negros e mestiços ao alienar o processo de identidade
de ambos. Tal ideologia é base de nossa identidade nacional e foi a justificativa para
imigração européia; as elites tinham claramente um projeto de eugenia que levaria
ao branqueamento de nossa população. Cabe ressaltar que essa ideologia está
intimamente relacionada à visão de nossas elites sobre as conseqüências
econômicas da abolição da escravatura
27
. O Movimento Negro não conseguiu
destruir o ideal de branqueamento presente na sociedade brasileira. A estratégia
utilizada pelas nossas elites para descaracterizar o movimento negro foi a
construção de uma identidade mestiça que reuniria todos os brasileiros. A identidade
negra é vista como empecilho a nossa identidade nacional.
Nossa mestiçagem criou um modelo sincrético que incorporava e assimilava
a população afro-brasileira e transformava seus elementos culturais de resistência
62
em símbolos da cultura nacional. Nosso processo de formação da identidade
nacional ressaltou os elementos da cultura negra, indígena e européia que levassem
à crença de que éramos um povo novo e mestiço. Em tal postura, extremamente
antidemocrática, a assimilação da identidade nacional se dava com a
predominância e valorização da cultura européia em detrimento das demais. O ideal
de branqueamento permeou todo o processo. (MUNANGA,1999, p.101) As
identidades resultantes da resistência cultural foram inibidas de se manifestar em
oposição à chamada cultura nacional. Tais resistências perderam seu conteúdo
político. Portanto, a luta contra a discriminação e o racismo passa pela construção
da unidade do Movimento negro e o resgate de sua cultura e passado
historicamente negado e falsificado, ao lado da recuperação de uma negritude em
sua complexidade biológica, cultural e ontológica. (MUNANGA,1999, p.01)
A construção de uma identidade negra que agregue negros e mestiços passa
a ser a principal tarefa do movimento negro contemporâneo no combate à
discriminação e racismo presentes na sociedade brasileira. (MUNANGA, p. 1999,
p.108)
Para D’Adesky (2001, p.23), a busca pelo reconhecimento
28
e afirmação do
conteúdo positivo das suas culturas tem sido a demanda central do Movimento
Negro e Indígena contemporâneo. Ao buscar o reconhecimento de suas identidades,
esses movimentos procuram redefinir a sua posição econômica e política na
sociedade brasileira. Seria necessário a construção de uma democracia que
assegurasse o reconhecimento de status e dignidade da cultura afro-brasileira e
indígena.
A agenda dos grupos do Movimento Negro e Indígenas atuais mostra a
insuficiência do princípio de igualdade de direitos. Tal princípio de igualdade é vago
na medida em que não leva em consideração as especificidades dos vários grupos
que compõem determinado país na esfera pública (D’ADESKY, 2001, p. 31-32)
O Movimento Negro não só critica as desigualdades econômicas e sociais
como também reivindica o pleno reconhecimento da cidadania do negro, na
preservação e valorização das tradições culturais de origem africana. A subversão
da ideologia do branqueamento e o desmascaramento do mito da democracia racial
é o principal objetivo do Movimento Negro contemporâneo que surge na década de
27
Na medida em que se aumentasse a mão-de-obra imigrante no mercado de trabalho, o custo da força de
trabalho diminuiria, e além disso, evitaria quaisquer tipo de reivindicações por parte dos ex-escravos sobre
melhores condições de vida e trabalho. (ANDREWS, 1998, p.98)
28
Para uma melhor compreensão deste conceito ver: TAYLOR,1994; PEREIRA DA SILVA,2000.
63
70. Se comparado a Frente Negra e aos movimentos até década de 50, sua
demanda não é simplesmente a assimilação mas a afirmação de uma identidade
étnica específica. (D’ADESKY, 2001, p.151-153)
Hofbauer (1999), ao analisar os vários critérios de inclusão e exclusão
existentes no ocidente, observa que conceitos como “raça”, “cultura” e “identidade”
são construções histórico-culturais que assumem conteúdos semânticos
diferenciados dependendo do contexto em que são utilizadas. Observa também que
o chamado branqueamento social não é algo genuinamente brasileiro e nem surgiu
a partir do processo de abolição da escravatura. Tal ideologia já existia durante a
escravidão e sustentava as relações escravistas-patrimoniais. (HOFBAUER, 2003,
p. 63) Tal ideário possibilitava a transformação ou metamorfose da cor (raça)
dependendo do contexto social. A alforria poderia funcionar ou criar uma ilusão de
melhora possível da superação do status de “escravo” e “negro”. O uso de um
conceito não-essencializado da “cor” (raça) funcionava no sentido de sustentar o
sistema escravista(HOFBAUER, 2003, p. 63-64). Hofbauer (1999, p.13) observa que
concepções essencializadas de negros e brancos dos “estudos raciais” promovidos
pela Unesco no Brasil na década de 50 permitiram o desmascaramento do mito da
democracia como também a existência das desigualdades raciais no Brasil em
estudos posteriores.
Atualmente, a reflexão sobre os critérios de inclusão e exclusão fornece
elementos para pensar as dificuldades dos grupos do Movimento Negro em agremiar
novos membros. Para observar tal fenômeno, Hofbauer analisa e compara qual o
significado que o termo negro assume no Movimento Negro e no Candomblé. Os
grupos do Movimento Negro utilizam um conceito de negro mais essencializado e
“político” enquanto o Candomblé trabalha um conceito mais “cultural” de inclusão e
exclusão. (HOFBAUER, 1999)
Existe a contraposição de duas posturas. A primeira, elaborada pelo
Movimento Negro, dá mais ênfase à “cor da pele” como mecanismo básico de
construção de uma identidade política que leve ao combate do racismo e
discriminação. Na segunda postura, os membros do candomblé dão mais ênfase ao
critério sócio-cultural na inclusão ou exclusão dos seus membros. A pluralidade dos
critérios de inclusão e exclusão explicaria a dificuldade de unir o “político” e “cultural”
e de estabelecer alianças entre os vários grupos que compõem o Movimento Negro.
A grande dificuldade levantada pelos “intérpretes” continua sendo uma
plataforma de luta comum que unifique os vários grupos de movimento negro. Tal
64
unificação parece ser possível, para os autores, a partir da construção de uma
identidade que unifique os afro-descendentes, tanto os mais “claros” como os mais
“escuros”. Pouca menção ou quase nenhuma é feita sobre o papel do Movimento
Negro na agremiação da população branca nas demandas de luta contra o racismo
e discriminação. Há um consenso de que o Movimento Negro passou de uma
demanda integracionista para uma que enfatiza a construção de um grupo étnico.
“Politização” da identidade, criação de “plataforma moblizadora de luta”,
“busca do reconhecimento”, superação do branqueamento e do culturalismo, de
alguma forma o debate contemporâneo converge na necessidade da criação de uma
identidade negra que inclua a grande parcela de multados e as infinitas matizes de
cores. Somente tal identidade levaria à superação da discriminação e do racismo no
Brasil. Parece existir, nas várias interpretações, uma relação íntima entre construção
da identidade e ação política. A construção da identidade parece ser vista como a
possibilidade de superação de uma certa “consciência alienada” das pessoas que
não se assumem enquanto negras. A “consciência negra” parece estar “adormecida”
e o papel dos grupos do Movimento Negro é despertá-la criando uma nova
plataforma mobilizadora. Poucas análises ou quase nenhuma discutem o papel do
movimento no despertar também da “consciência alienada” dos brancos nesse
processo.
Capítulo - 2 - Propostas Político-Pedagógicas do CENEG
A proposta de atuação do CENEG
1
no combate ao racismo e à discriminação
está pautada na crença de que a educação e o trabalho devem estar associadas. A
educação desenvolvendo a auto-estima e as habilidades necessárias para o trabalho, e
o trabalho como mecanismo de inclusão social.
O caminho da superação deste quadro é o caminho da ascensão social,
da igualdade jurídica, da participação política, o que supõe maiores
oportunidades de emprego o fim de toda discriminação, principalmente da
discriminação de salários. (CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA
NEGRA, MG CENEG,[ 2001?]
Na visão da entidade, a integração no mercado de trabalho é essencial para o
combate ao racismo. Ao que parece, existe uma crença de que, na medida em que o
negro se integre economicamente, sua participação na política e em outras esferas da
vida social concretizar-se-á. Apesar da entidade destacar a necessidade de se criar
políticas que valorizem a cultura e história negras, a questão econômica é vista como
grande prioridade.
Em seus cursos deverão ser levados em consideração princípios consagrados
na lei brasileira como a dignidade da pessoa humana bem como o combate a quaisquer
forma de discriminação e intolerância existentes na sociedade brasileira. De acordo
com a proposta
2
, entre os pressupostos políticos institucionais destaca-se a busca da
inclusão social dos negros e afro-descendentes através da educação e capacitação
profissionais.
por fim, que se preocupe com uma educação para a convivência,
igualitária, democrática, justa. Isto supõe um dado nível de consciência
dos direitos humanos, contextualizados pela clareza da história construída
até aqui e de tudo que precisa ser revertido. Significa aprender a ser um
novo homem, cuja indignação diante da trajetória de sua gente esteja na
base de relações solidárias, justas e, em conseqüência, reparadoras.
Deve resultar numa participação que combata manifestações culturais
1
CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. UNIDADES ESTADUAIS, PROJETO DE
NACIONALIZAÇÃO. Manual Pedagógico: proposta política- pedagógica do CENEG. Uberaba. p. 1-64. [ 2001 ?]
2
CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. UNIDADES ESTADUAIS, PROJETO DE
NACIONALIZAÇÃO. Manual Pedagógico: proposta política- pedagógica do CENEG. Uberaba. p. 12. [2001 ?]
66
que relegam a presença do negro a uma condição folclórica reducionista
através de práticas sociais superadas, desta uma sociedade que camufla
com uma condescendência carinhosa um racismo “a moda da casa”.
(CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA, MG CENEG,
[2001?],p.17-18).
Observa-se que sua proposta pedagógica é pautada na crença de que a
educação deve levar à formação de uma consciência de indignação com relação à
situação em que se encontra a população negra. Essa indignação pode levar os
educandos a se identificar com os problemas. Tal identidade pode resultar na criação
de laços de solidariedade essenciais para a reversão da situação. A tomada de
consciência evita que manifestações da cultura negra sejam tratadas como folclóricas e
exóticas. Percebe-se claramente a tentativa da criação de uma identidade negra, passo
essencial para busca de políticas públicas de caráter reparador.
A proposta pedagógica destaca a necessidade da entidade estar sempre
dialogando com diferentes segmentos da sociedade tornando-se, assim, um espaço de
reflexão histórica. Além disso, é necessária a busca de um programa de ação afirmativa
dirigida à comunidade negra. A proposta objetiva que os cursos do CENEG tornem-se
uma alavanca para a erradicação do racismo e sejam também uma alternativa de
desenvolvimento de programas comunitários.
Existe também a percepção de que um combate efetivo ao racismo só é possível
com o combate à indiferença que caracteriza boa parte da população brasileira com
relação à situação social da população negra.
3
A proposta ressalta a necessidade das unidades locais levarem em consideração
as especificidades de sua região. Sem a compreensão da realidade em que o negro
está inserido, fica difícil uma proposta pedagógica que de fato seja efetiva. Também se
ressalta a necessidade do envolvimento da comunidade no estabelecimento de metas,
projetos e definição de prioridades. Este envolvimento deve objetivar a participação de
organizações já existentes na comunidade.
O CENEG deverá funcionar articulado com a rede regular de ensino no sentido
de suprir as necessidades existentes daquela rede. Além disso, cuidará da formação
3
CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. UNIDADES ESTADUAIS, PROJETO DE
NACIONALIZAÇÃO. Manual Pedagógico: proposta política- pedagógica do CENEG. Uberaba. p. 21. [2001?]
67
continuada dos seus educadores. Recorrerá à pesquisa antes de tomar decisões bem
como de promover a disseminação de suas propostas de atuação para a comunidade.
Para que se concretizem tais projetos, o CENEG deve buscar se inserir na
comunidade através de oficinas periódicas que buscam conhecer as pessoas que
formam a comunidade. A partir disso, utiliza uma estratégia de divulgação dessas
pessoas através de colunas de jornais e programas de TV locais. As oficinas têm como
objetivo fazer com que as lideranças se conheçam entre si para alcançar um bom nível
de coesão social na comunidade negra.
Há também uma preocupação com a integração regional, buscando elaborar
atividades que levem à troca de experiências dos diferentes municípios que possuem
unidades do CENEG, realizar palestras e conferências em datas específicas visando
discutir e propor soluções para a discriminação e o racismo. Tais propostas
concretizam-se nas unidades.
Quantos às prioridades do CENEG Nacional:
- Fazer prevalecer, nas relações de seu espaço de atuação, os direitos
humanos, os direitos fundamentais de todo e cada cidadão, o repúdio ao
racismo.
- Instaurar a cultura da equidade como condição básica da justiça social e
do resgate de uma dívida histórica do país para com sua população
negra.
- Reivindicar e garantir a aplicação dos dispositivos legais que punem a
prática do racismo e de qualquer discriminação atentatória dos direitos e
liberdade fundamentais.
- Conferir efetividade ao papel do CENEG de se promover uma política
inclusiva ( portanto, de superação do “status quo”) para negros e afro-
descendentes através da educação e da qualificação profissional.
- Apresentar-se com visibilidade nos meios de comunicação social como
estratégia de transformação do conjunto da sociedade.” (CENTRO
NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA, MG CENEG,[ 2001?],p.32.)
As propostas do CENEG parecem ir ao encontro da percepção de que a
resolução dos problemas de discriminação e racismo passam necessariamente pela
educação e trabalho.
O principal programa do CENEG é o de Cidadania e Direitos Humanos que, além
de desenvolver uma série de cursos para a formação de agentes de direitos humanos,
68
tem a proposta de criar um curso de Pós-graduação “latu-sensu” em Direitos Humanos
e Cidadania. Este seria dirigido para pessoas portadoras de diploma superior e
preferencialmente para afro-descendentes. Veja que esta demanda aparece, por
exemplo, no primeiro Seminário Nacional de Universitários Negros (SESUN). Tal
encontro ressaltou a necessidade da produção de conhecimento capaz de romper com
os paradigmas racistas e eurocêntricos da universidade brasileira. (ALBERTO,
2000,p.304). Destaca-se também a preocupação da entidade em capacitar docentes
da rede pública para a discussão de questões de etnia e gênero na sala de aula. Nas
propostas defendidas pelo Movimento Negro Unificado, observa-se a preocupação com
uma educação voltada para o desenvolvimento para auto-estima. (ALBERTO, 2000,
p.303). Como se pode observar, suas demandas vão ao encontro das demandas
nacionais dos grupos do Movimento Negro.
Além disso, toda a proposta do CENEG está articulada ao Plano Nacional dos
Direitos Humanos. Como se pode observar, o CENEG nasceu da luta das entidades
negras do município de Uberaba. Tal movimento foi conseguindo espaços dentro do
poder público municipal. Graças a uma série de fatores, conseguiu se articular a um
conjunto de propostas do governo federal em torno da defesa dos direitos humanos.
Em sua análise sobre o movimento negro, Hanchard (2001) destacava a
necessidade do surgimento de instituições negras nacionais que levassem à politização
das desigualdades raciais:
Isso nos leva a uma lacuna fundamental do movimento negro, à falta de
instituições nacionais significativas que tenham por objetivo primordial e
explícito a politização das desigualdades raciais. Sem uma instituição ou
um complexo de organizações de base institucional para transformar a
subordinação afro-brasileira num foco de interesse nacional, as respostas
das elites brancas na sociedade civil e política ficam fragmentadas,
idiossincráticas e pautadas no nível estadual (em vez de
federal).(HANCHARD, 2001, P.158)
Pode-se observar, pela análise de Hanchard, que existe uma crença na
viabilidade dos mecanismos tradicionais de luta, principalmente partidos e sindicatos. A
criação de uma contra-ideologia ou uma ideologia que negue a democracia racial e, ao
69
mesmo tempo, leve à identificação entre os não-brancos torna-se necessária para a
viabilização política do movimento. No momento em que o movimento negro
transformar-se num movimento político nacional, serão processadas mudanças na
esfera legislativa e jurídica que poderiam diminuir a desigualdade racial. Na perspectiva
do autor, a “racialização” das relações sociais torna-se mecanismo necessário para
transição para um movimento de escala nacional.
Se, por um lado, ao se analisar o CENEG, percebem-se os germes de uma
futura instituição negra de caráter nacional, de outro parece que seu projeto aproxima-
se mais por uma demanda de reconhecimento do que propriamente a crença em
instituições segmentadas e racializadas, necessárias para politização das
desigualdades raciais, como parece sustentar Michael Hanchard.
Os projetos dos grupos sociais refletem mudanças na vida social que muitas
vezes não são conscientes aos agentes desses grupos. Dessa forma, torna-se
necessário buscar os pressupostos que podem estar por detrás do projeto do CENEG.
Para tentar esclarecer tais mecanismos, as considerações de Jessé de Souza (1996)
podem ser úteis.
Ao analisar as transformações ocorridas a partir da queda do Muro de Berlim,
Souza (1996) demonstra a existência de dois movimentos que afetaram o mundo da
política. De um lado, aqueles movimentos marcados por uma direção ao fim do Estado
nacional, a fluidez das fronteiras, a imposição de uma lógica de caráter
internacionalizante influenciada basicamente pelas mudanças na tecnologia e na
economia que muitos estudiosos passaram a se referir como processo de
“globalização”. De outro lado, um movimento marcado pela regionalização e afirmação
das diferenças. A tematização das diferenças passa a ser uma das questões centrais
da política na atualidade. Isso aparece com clareza no debate entre liberalismo e
comunitarismo. Tal debate representa uma certa reconstrução da teoria da democracia
moderna e da teoria política em geral. Para entender tal debate, torna-se necessário
demonstrar as limitações da teoria política dominante tanto nos Estados Unidos como
no Brasil. (SOUZA, 1996, p. 23).
O ponto de vista liberal é visto como dominante e absoluto. Tal ponto enfatiza
uma concepção procedimental de democracia. Tal concepção é marcada pela
70
influência de Joseph Schumpeter. Todo paradigma da política desde o século XVIII era
marcado pela crença na racionalidade dos grupos na vida política. A democracia não
poderia ser vista como uma representação de claros e definidos anseios populares. Se
a democracia antes era vista como um processo que levaria ao aprendizado dos grupos
sociais, agora a ênfase é colocada nos indivíduos que irão competir pelo voto popular.
A política pode ser vista como regida pela mesma lógica do mercado no qual os
indivíduos competem pelo voto popular. O cidadão passa a ser visto como um cliente
do Estado.
Tal debate no Brasil deu-se numa perspectiva comparativa; a problemática em
nosso país ocorreu no sentido de observar até que ponto nossa democracia
aproximava-se ou não de tal modelo, de certa forma assumindo o modelo americano
como melhor. Na verdade, tal modelo deixava de lado uma série de peculiaridades
culturais do Brasil que poderiam caracterizar um modelo alternativo de democracia.
(SOUZA, 1996).
A crítica ao modelo liberal americano aparece como um aspecto central nos
pensadores caracterizados como comunitaristas. Souza (1996) utilizará as indagações
propostas por Charles Taylor em sua crítica à democracia liberal americana. O autor
enfatiza que Taylor considera o reconhecimento como aspecto central da vida social. A
identidade é um processo social marcado pela ausência ou reconhecimento desta. É
neste sentido que uma pessoa ou grupo social pode ter uma identidade distorcida se a
sociedade em que ela estiver inserida refletir sua imagem de forma desfavorável.
Nesse sentido, não reconhecimento não é algo inofensivo e sem
conseqüências, mas pode infligir mal, pode ser uma forma de opressão
insidiosa aprisionando uma pessoa em uma concepção falsa, distorcida
de si. Assim, reconhecimento não é uma cortesia ou gentileza, mas uma
necessidade vital. Uma imagem depreciativa de povos ou comunidades
pode tornar-se uma das formas mais potentes e expressivas de opressão
destas. Livrar-se de uma identidade depreciativa imposta e destrutiva
torna-se fundamental, seja para a vida privada seja para a vida coletiva.
(SOUZA, 1996, p. 25).
71
Observe que as questões levantadas por Souza, a partir de sua leitura de Taylor,
são extremamente pertinentes na análise do CENEG. Vários depoimentos citados no
texto corroboram com a necessidade da população negra de possuir uma melhor auto-
estima, fato este que só será conseguido na medida que se modifiquem as imagens
depreciativas do negro disseminadas na sociedade brasileira.
O reconhecimento não é apenas entre iguais, mas implica em dignidade.
Dignidade que acarretará numa auto-imagem positiva e intimamente ligada à
autenticidade. A nossa identidade passa a depender de um diálogo interno e externo
com os outros. Tal princípio de reconhecimento acaba entrando em contradição com a
chamada cidadania igualitária, uma vez que o princípio de autenticidade é um ideal de
reconhecimento da diferença. (SOUZA, 1996).
Na visão de Souza (1996), os grupos que se sentem discriminados percebem
sua identidade como oprimida em função de uma identidade social dominante, o que
acarreta a percepção da sua diferença e a luta pelo seu reconhecimento.
O liberalismo, apesar de acreditar que cada pessoa possui um projeto individual
de vida, ressalta que esta liberdade individual não pode obscurecer um compromisso
moral maior que é o tratamento justo e igual entre todas as pessoas. Há uma grande
valorização da liberdade individual mas o compromisso com uma cidadania igualitária
mantém-se. Os comunitaristas acreditam que, na prática, essa liberdade leva a um
individualismo exacerbado na medida em que descarta qualquer referência a um ponto
de partida moral que implique autoconsciência ou reflexão.(SOUZA, 1996, p.26) A
ausência de parâmetros discutidos socialmente entre os vários grupos que compõem a
sociedade leva a um individualismo que encontra no consumismo a forma de definição
da vida bem sucedida.
Souza (1996) ressalta que também Taylor vê dificuldades na noção liberal de
autonomia individual na medida em que só existem concepções de boa vida que só
podem ser perseguidas em comum. Por isso, uma sociedade liberal deveria ser julgada
pela forma como trata as minorias, incluindo aquelas que não compartilham da
definição pública do que é considerado bom e se julgam discriminadas por isso. A
dignidade só se constitui no reconhecimento mútuo.
72
A presunção aqui é a de que é o reconhecimento que cria e produz a
identidade social, sendo a produção de imagens depreciativas impostas a
grupos subjugados de todos os tipos um dado que compromete
substancialmente o ideal de tratamento igualitário preconizado pelos
liberais. (SOUZA, 1996, p.27)
Apesar da categoria de reconhecimento ser um aspecto importante ao se
discutir medidas concretas que visem eliminar o preconceito e a discriminação racial no
Brasil, há especificidades no Brasil que devem ser levadas em consideração.
Levemos em consideração o mito da democracia racial. Apesar de ser um mito
que encobre as desigualdades raciais, é nosso mito fundante. O Brasil funda-se
enquanto nação na medida em que se vê como resultado de uma miscigenação entre
“raças” que produziu uma nação nova e, a despeito de seus problemas, vê-se como
uma nação de futuro.
Tal mito possui um certo projeto que, se levado a cabo, poderia produzir uma
democracia mais justa e igualitária. Apesar deste mito encobrir o preconceito, ele faz
com que as pessoas se envergonhem de serem preconceituosas e, em todas as
camadas sociais, encontra-se uma certa rejeição ao preconceito contra o negro.
(SOUZA, 1996, p.34).
Mesmo no projeto do CENEG percebe-se a incorporação desse ideal presente
no mito, na medida em que brancos e negros podem participar de seus cursos.
Portanto, tal mito pode ensejar um projeto de solução das desigualdades sociais
diferente do modelo americano.
73
2.1 O papel da educação na formação da auto-estima
O CENEG nacional publicou duas “cartilhas” destinadas ao aperfeiçoamento dos
professores da rede de ensino público. A primeira, “Escola Multirracial, Popular e Auto-
estima”, tem como objetivo discutir temas pedagógicos que facilitem o professor dentro
das salas de aulas. Tal revista pedagógica tem como objetivo buscar práticas
pedagógicas numa escola multirracial e popular. A outra cartilha tem como tema:
“CENEG Educação e Cidadania Negra”, e discute técnicas sugerindo planos de aulas
para a disciplina de direitos humanos.
Uma das proposta do CENEG é a criação de um modelo pedagógico que
possibilite a elevação da auto-estima da população negra. Tal proposta é defendida
num manual de temas pedagógicos elaborada para a utilização dos núcleos estaduais
do CENEG. Essa cartilha é especialmente elaborada para os profissionais da
educação.
O processo educativo é essencial na formação da cidadania. É por meio da
escola que a criança aprende as primeiras noções de cidadania. No caso da criança
negra, ela enfrenta um tipo de educação que não possibilita o conhecimento de suas
origens e muito menos uma visão correta do processo escravista. Muitas vezes o livro
didático constrói uma imagem depreciativa do negro na época da escravidão. As formas
de resistência que a população negra criou contra o escravismo não são discutidas, fato
que pode ser creditado à parca formação dos professores com relação à questão
étnico-racial no Brasil. Quando tais questões são discutidas, estas vêm no sentido de
reforçar o mito da democracia racial ou a figura do bom senhor.
A Cartilha “Escola Multirracial, Popular e auto-estima” tem como objetivo a
discussão de estratégias que possibilitem a superação dessa lacuna na formação dos
professores. A cartilha foi elaborada pela pela equipe pedagógica do Núcleo de Estudos
negros (NEN) em parceria com o CENEG.
Um dos pontos fundamentais ressaltados pela equipe é o reconhecimento da
escola como um espaço multiétnico/racial. A negação de nossas origens, sejam
africanas ou indígenas, inviabilizam o processo de formação de uma identidade positiva
nas crianças negras. Como bem destacado por D’Adesky (2001), a formação da
74
identidade passa necessariamente pelo processo de reconhecimento, reconhecimento
que se manifesta na necessidade de revalorização das tradições culturais africanas.
Nossa educação valoriza nossas origens européias, colocadas como axialmente
melhores em detrimento da cultura de origem africana e indígena.
Para que ocorra a mudança dessas concepções, é necessário que o professor
tome contato com essa problemática e redefina práticas pedagógicas.
Instrumentos de controle da ação educativa do professor, também
contribuem para a construção da baixa estima do educando negro. Afinal,
o modelo de família, de beleza, de padrão social não corresponde à
condição étnica, social e econômica imposta a esse segmento. (CENTRO
NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. Escola Multirracial, Popular e Auto-
estima. Uberaba, 1998, p.15. )
Tal constatação da cartilha pode ser facilmente observável em nosso padrão
estético, que tem como referência de beleza a cor branca e os olhos claros. O padrão
social da maioria de nossa população impossibilita o consumo de uma série de
produtos que cotidianamente estão em nossas casas através dos meios de
comunicação de massa.
Uma nova escola que respeite a nossa diversidade cultural passa
necessariamente pela redefinição do ser negro, pela construção de uma nova
referência do significado de ser negro no Brasil:
Ser negro não se limita ao fato de ‘ser de cor’ diferente; refere-se a uma
cultura, um povo, uma ancestralidade, uma visão de mundo, um padrão
estético”. Conforme definição de Nilma Lino Gomes. APUD CENTRO
NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. Escola Multirracial, Popular e Auto-
estima. Uberaba. 1998 p.16-17.
A formação de uma sociedade democrática passa necessariamente pela
revalorização de nossas origens, sociedade esta que combata imagens depreciativas
do ser negro no Brasil. Tal processo, na perspectiva do CENEG, começa na escola
através deste novo modelo pedagógico. O material didático de grande parte das
escolas apresenta personagens negros exercendo funções consideradas inferiores,
personagens estigmatizadas.
75
Pense nas apresentações de teatro desenvolvidas na escola: quem são
as princesas ou fadas madrinhas? São Negras, lindinhas, com seus
cabelos enroladinhos? E nas inevitáveis sessões “do que serei quando
crescer”, o que podem ser meninos e meninas negras? (Conforme
definição de Nilma Lino Gomes. APUD CENTRO NACIONAL DE
CIDADANIA NEGRA. Escola Multirracial, Popular e Auto-estima. Uberaba,
1998, p.26 )
Um dos grandes problemas enfrentados para o combate ao racismo e
discriminação é a falta de reconhecimento de sua existência por parte da maioria da
população e até mesmo dos educadores.
Dentro dessa preocupação, a cartilha apresenta uma série de dados sobre
gênero e raça no Brasil baseados no “Mapa da População Negra no Mercado de
Trabalho”. Tais dados são importantes na medida em que levam ao conhecimento do
educador estatísticas que comprovam o problema e que devem ser discutidas. A
cartilha também partilha da concepção da identidade enquanto uma construção
social.
4
Portanto, ela deve ser trabalhada para que a auto-estima se construa.
O racismo, bem como as práticas sexistas, discriminatórias e preconceituosas,
segundo a cartilha, só serão efetivamente combatidos quando discutidos publicamente,
seja em casa, na escola e no espaço de trabalho.
Depois dessa discussão, a cartilha apresenta uma discussão sobre a auto-
estima. O texto é de autoria de dois psicólogos, Maria Lúcia da Silva e Severino Lepê
Correia.
Ao discutir a auto-estima, o texto ressalta a necessidade da discussão da nossa
história, bem como a percepção de que a auto-estima é construída nas relações
estabelecidas dentro de diferentes contextos e dimensões. O contexto geopolitíco, a
territorialidade, a forma como se dão nossas relações com amigos e familiares, as
condições emocionais em que estão inseridas as crianças, as condições
socioeconômicas da família, a mobilidade política e o poder político do grupo de origem
e as representações que a sociedade tem desse grupo são fatores que podem
4
CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. Escola Multirracial, Popular e Auto-estima. Uberaba, 1998, p.
28
76
contribuir para a auto-estima. (CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA., MG
CENEG, 1998, p.41-42)
Os autores ressaltam que a história oficial faz questão de desconhecer a
contribuição do negro na construção desse país. Os currículos não contemplam
nenhum assunto relacionado à história africana, fator imprescindível para
desconstrução dos estereótipos que caracterizam a população afro-descendente desse
país.
Negar nossas origens e desconhecê-las é uma da formas mais violentas de
opressão que um povo pode sofrer. Acrescente-se o projeto de nossas elites de
branqueamento da população via miscigenação racial.
5
Todo esse processo levou, para
os autores, ao massacre psicológico da população de pele mais escura, aqueles que
não podiam negar seus traços sofreram e ainda sofrem numa sociedade um padrão de
beleza, bondade e sabedoria tipicamente ocidentais.
6
Para os autores um dos fenômenos mais visíveis resultantes do processo
escravista e do tráfico foi o processo de transformação das pessoas em objetos, que
eram negociados como peças
7
. Ainda na interpretação deles, ao coisificar o ser
humano, foi negada a humanidade dos negros. De nove a quinze milhões de pessoas
foram seqüestradas de suas tribos e comunidades para se transformar em mercadorias
vendidas por vultuosos lucros pelos traficantes de escravos
8
.
O grande impacto da estratégia de animalização, macaqueamento é fazê-
lo se sentir um fracassado, à margem da cultura ocidental, como até hoje.
Destinado ao subemprego, à margem da cultura ocidental, como até hoje.
Destinado ao subemprego, às idéias teológicas alheias, ao
constrangimento de não poder ter acesso, em sua grande maioria, ao
mínimo exigido para viver com dignidade: folclorizado, explorado, um
estrangeiro mesmo estando, hoje em sua própria casa; construindo as
escolas que seus filhos não estudaram e, nas que têm acesso, aprendem
a se convencerem que seu povo não tem história. (CENTRO NACIONAL
DE CIDADANIA NEGRA, MG CENEG, 1998, p. 47).
5
Para ver como esse projeto foi elaborado e o papel da instituições científicas na criação deste. ver: SCHWARCZ,
1993.
6
SILVA, Maria Lúcia da; CORREIA, Severino Lepê. “Auto-Estima e educação” In.: CENTRO NACIONAL DE
CIDADANIA NEGRA. Escola Multirracial, Popular e Auto-estima. Uberaba, 1998, pág.45.
7
Para um aprofundamendo dessa concepção do “escravo-coisa” (escravo com um “bem vivo”, propriedade) ver
GORENDER, 1988. Para uma interpretação alternativa, ver SLENES,1999.
8
SILVA, Maria Lúcia da; CORREIA, Severino Lepê. “Auto-Estima e educação” In.: CENTRO NACIONAL DE
CIDADANIA NEGRA. Escola Multirracial, Popular e Auto-estima. Uberaba, 1998, pág.46
77
Os autores procuram demonstrar que datas oficiais como treze de maio são
utilizadas para criar a imagem de um branco benevolente, que aboliu a escravatura ao
tomar consciência do sofrimento do povo africano. A abolição parece ser um processo
feito pelos brancos, desmerecendo as formas de resistência do povo negro, como as
fugas, quilombos, revoltas, irmandades religiosas, e até medidas extremas como o
suicídio e aborto que não são abordadas na história oficial.
As escolas ainda ensinam essa história oficial pela qual as crianças, negras e
brancas, aprendem por meio de grande número de personagens e figuras históricas
brancas. As crianças negras desconhecem, portanto, a história dos seus antepassados.
Com isso, a criança negra tende a não se reconhecer no espaço escolar,
que passa a não ter nada a ver consigo, nem com seu povo. Segundo os
especialistas em psicopedagogia, isso influencia no aumento da evasão
escolar e no atraso da aprendizagem, visto que, isto é um mecanismo de
discriminação presente no sistema de ensino. E com uma idéia negativa
sobre seus iguais, logicamente terá uma idéia negativa sobre si própria.
(CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA, MG CENEG, 1998,
p. 53).
Para a superação desses problemas, torna-se imperioso o desenvolvimento da
auto-estima. Para os autores, a auto-estima constitui-se num sentimento de amor-
próprio, buscando reconhecer as próprias qualidades, potencialidades e atributos
físicos, como também o respeito às próprias imperfeições. (SILVA; CORREIA, 1998, 56)
Existe uma relação íntima entre auto-estima e família. Considerando que a
família é o principal mecanismo de socialização da sociedade, ela pode tanto reforçar
como modificar valores que mantenham a ordem. Como o racismo e o sexismo estão
impregnados na sociedade, a família pode ajudar a reproduzir tais fenômenos. (SILVA;
CORREIA, 1998, P.56-57)
Muitas vezes as crianças negras nascem em famílias em que seus pais possuem
baixa auto-estima, pais que se encontram em situações marcadas pela destituição de
78
poder e sem perspectivas de futuro. Além disso, cabe ressaltar que, em sua grande
maioria, essas famílias estão desconectadas de sua cor, história e cultura.
Os autores defendem a necessidade de ações concretas para a superação das
condições em que vive o povo negro. E isso só se dará na medida em que o governo
elabore políticas públicas que promovam acesso igualitário aos equipamentos sociais.
Além disso, eles ressaltam a necessidade de uma mudança por parte dos educadores,
no sentido de perceber o impacto do racismo no psiquismo da criança negra.
A recuperação da auto-estima passa por trabalhos que recuperem a referência
dos ancestrais e de sua cultura, com isso redefinindo o sentido de ser negro na
sociedade.
2.2 A preocupação com os Direitos humanos
A disciplina Direitos Humanos merece destaque especial na proposta de
combate ao racismo e à discriminação do Centro Nacional de Cidadania Negra. A
análise da cartilha “Educação e Cidadania Negra” pode nos dar elementos para
perceber os pressupostos que norteiam a ação do CENEG. Tal cartilha foi elaborada
para a formação dos instrutores do CENEG.
A proposta da disciplina é a discussão da situação sociocultural da população
negra e a sensibilização dos educadores para situação social dos negros. Para tanto,
torna necessário o desenvolvimento de uma Consciência Racial.
E consciência racial, inserida na esfera dos direitos humanos, significa
mais que o conhecimento da história passada e atual, mas a participação
pessoal na construção de uma visão que possibilite a todos os brasileiros,
negros ou não-negros, escreverem um futuro de que todos nos
orgulhemos.”(CENTRO NACIONAL DE CIDADANIA NEGRA. Educação e
Cidadania Negra. Uberaba, [2001 ?]
Perceba que a proposta de desenvolvimento de consciência racial implica na
adesão de todos os brasileiros. Os diretores da instituição, em vários depoimentos
9
,
9
Tais depoimentos serão analisados no quarto capítulo .
79
acentuam que os cursos do CENEG devem incluir todas as pessoas,
independentemente de sua origem étnico-racial.
Entre os objetivos que os professores devem atingir ao ministrar a disciplina, está
a conscientização das adversidades que as pessoas enfrentam nas várias esferas em
que estão inseridas: na escola, no trabalho e nas relações cotidianas. Ao conscientizar
as pessoas, o curso deve levar à desconstrução do mito da inferioridade/superioridade
racial e buscar o estabelecimento de competências e habilidades que levem ao
encorajamento e exercício da cidadania. O conteúdo da disciplina tem os seguintes
tópicos: Panorama Geral da População Negra no Brasil, Indicadores sociais, O Negro e
a Educação, A Criança Na Escola e Formação da Auto-imagem/ Auto-Estima, Mídia e
Representação Afro-descendente, Linguagem Visual, Representação da Realidade,
Construção do Imaginário Coletivo, (Im) parcialidade da Mídia, Socialização pelas
Imagens.
O primeiro tópico tem como objetivo fundamental a contextualização das
desigualdades raciais no Brasil, principalmente no que tange à educação, ao trabalho e
à mídia.
Quanto ao “Negro e a Educação”, a preocupação é com a tomada de
consciência dos mecanismos que levam à auto-estima e à desconstrução dos mitos de
superioridade e inferioridade introjetados nas pessoas.
“Mídia e Representação Afro-descendente” busca desenvolver um olhar crítico,
olhar que possibilite a percepção das imagens estereotipadas que a mídia vincula
diariamente. Uma reflexão sobre a linguagem visual e suas conseqüências é o principal
objetivo deste tópico do curso.
No último tópico, “A População Negra Brasileira e o Mercado de Trabalho”,
leva-se o aluno ao contato com dados relacionados às desigualdades no mercado de
trabalho, levantando situações possíveis que os educandos podem enfrentar no seu
dia-a-dia. Ajudar os alunos a sistematizarem o que foi aprendido e traçar metas e
objetivos que levem à aplicação dos conhecimentos e habilidades adquiridas.
Para esclarecer melhor como os objetivos propostos nos cursos concretizaram-
se, a apostila passa à discussão dos planos de aulas. Há também textos na apostila
para se trabalhar os temas.
80
A grande preocupação do curso está, primeiro, na apresentação de dados que
comprovem a situação de desigualdade racial existente no Brasil. Com o conhecimento
dos dados, é possível o desenvolvimento da chamada consciência racial, passo
essencial para a superação do racismo; a consciência que não deve ser apenas do
negro, mas do branco também. Na medida em que os brancos se envolvam no
processo, as chances de mudanças tornam-se maiores.
A cartilha “Educação e Cidadania Negra” possibilita vislumbrar a proposta de
uma educação que não seja indiferente à questão racial, mas que leve as pessoas a
enfrentarem a questão.
A preocupação com a formação de instrutores habilitados a enfrentar a questão
racial manifesta-se em mais duas apostilas que possuem o mesmo título “Qualificação
de instrutores “Educação“”.
O conteúdo dessas apostilas é formada por textos de autores que trabalharam as
implicações da questão étnico-racial nas práticas educativas. Um dos textos “Identidade
do Negro Brasileiro e as Relações com as Práticas Educacionais numa Abordagem, de
Gênero e Classe” tem como objetivo mostrar aos instrutores a situação da criança
negra na escola fundamental. Mostra o papel da discriminação e do racismo na
construção de obstáculos que inviabilizam o sucesso da criança negra. Uma das
preocupações centrais do texto é mostrar como esses mecanismos afetam as meninas
negras.
Existem outros textos que destacam os seguintes temas: a relação entre a mídia
e a representação afro-descendente, a situação da criança negra na escola. O outro
volume de mesmo título apresenta como tópicos os seguintes textos: “Desigualdades
raciais no mercado de trabalho e indiferença moral”,” A população negra brasileira e o
mercado de trabalho”, “O tempo do Racismo: discriminação hoje, ontem, ou anteontem
?”. Todos os textos procuram demonstrar a existência do racismo e da discriminação no
mercado de trabalho.
Quanto à apostila “Curso Direitos Humanos” , esta procura fazer um histórico da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a seguir apresenta todos os artigos da
declaração, comentando cada um dos artigos.
81
O quarto artigo é um dos mais comentados. Ele afirma que: “Ninguém será
mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão
proibidos em todas as suas formas”. Ao comentar esse artigo, procura-se demonstrar
como o tráfico e a escravidão marcaram a cultura brasileira. Busca-se também
demonstrar como na sociedade brasileira existem situações de trabalhadores em
condições de pobreza que são contratados com vínculos aparentemente legais e
encontram-se em situações similares ao dos ex-escravos. O artigo ainda apresenta o
sentido que as palavras escravidão e escravo podem assumir nos dias atuais: venda e
prostituição de crianças, utilização de crianças na pornografia, exploração do trabalho
infantil bem como práticas exploratórias que afetam as mulheres, como matrimônio sem
consentimento e venda de mulheres.
2.3 As cartilhas para crianças
A cartilha “Uma aula de Cidadania” apresenta duas histórias. A primeira história é
a mais ilustrativa das propostas do CENEG. É interessante perceber os personagens.
Pedro é o personagem negro da história. A cartilha começa mostrando que para Pedro
o CENEG constitui-se num local de encontro com os amigos. Além disso, a história
procura ressaltar que Pedro é um aluno exemplar na escola como também um
destaque nos esportes. Procura ressaltar que em casa é uma criança muito cuidadosa
com a higiene pessoal, cuidado aprendido nas aulas do CENEG sobre saúde bucal e
higiene pessoal e repassado para seus irmãos. Conta também a chegada da
personagem Paty (branca de cabelos loiros), garota vinda de outra cidade e que possui
dificuldades com o Português. Devido a essa dificuldade, ela passa a participar das
aulas de reforço escolar do CENEG.
O interessante é que a história mostra que Pedro é o que mais ajuda na
superação de suas dificuldades. Perceba que aqui há uma inversão de papéis, pois os
estereótipos presentes na sociedade associam as crianças negras às maiores
dificuldades na escola. De certa forma parece que a história busca desconstruir a idéia
de que as crianças negras têm mais dificuldades que as brancas na escola.
82
Logo após é apresentado Bruno, que é o garoto portador de deficiência física. Ao
narrar a origem de sua deficiência, a história procura ressaltar que apesar de sua
deficiência, ele é um destaque nos esportes. Há também a apresentação do
personagem César, portador de deficiência visual, que tem grande força de vontade e
também é um destaque nos esportes.
A segunda história da apostila é sobre noções de higiene bucal e prevenção das
cáries.
Como foi dito anteriormente, o CENEG criou um projeto de esportes para
crianças. O “Esporte Solidário” tem como objetivo a integração, socialização de crianças
que estão em situações de risco social. O esporte é visto como um mecanismo para
diminuir o tempo ocioso de crianças e adolescentes. Este programa é ressaltado na
apostila ”Esporte é vida”.
A apostila mostra o destaque dos personagens César e Bruno nos esportes do
programa do CENEG. Mais uma vez a proposta é combater os estereótipos da
sociedade sobre os portadores de deficiência física.
2.4 O perfil dos alunos
Em uma pesquisa
10
realizada pelo CENEG, em 2001, é possível observar o perfil
do aluno atendido pela instituição. Este trabalho havia sido realizado com o intuito de
subsidiar um plano estratégico para a atuação em Uberaba. A pesquisa baseou-se
fundamentalmente na análise das fichas de inscrição dos alunos nos diversos cursos
oferecidos. Foram preenchidas 2.200 fichas no período de outubro de 1999 a março de
2001. Há de se ressaltar que, pelas tabelas tornadas disponíveis pelo CENEG, não é
possível saber se os alunos foram inscritos em mais de um curso.
Com relação à escolaridade percebe-se que 47,1% dos alunos cursaram apenas
o ensino fundamental, 43,1 % o ensino médio, e apenas 9.1% tinham curso superior.
Além disso, 0,6 não possuíam qualquer formação e não havia nenhuma estudante
que possuísse curso de pós-graduação. A escolaridade é um fator fundamental com
10
CAIXETA,Gilberto. Et al. ... A condição da Raça Negra em Uberaba. Projeto de Pesquisa. Uberaba: 2001.
83
relação a falta de acesso ao mercado de trabalho, isto explica porque a instituição tem
grande preocupação com a educação.
Gráfico 1: Distribuição dos estudantes segundo escolaridade
Fonte: SILVA, G.C. et al. Pesquisa: “.A Condição da Raça Negra em Uberaba: Um Diagnóstico”.
Centro Nacional de Cidadania Negra (CENEG). Uberaba, 2001.
0,6%
47,1%
43,1%
9,1%
0,0%
sem escolaridade ensino
fundamental
ensino médio ensino superior pós-graduação
84
Com relação ao trabalho, a grande maioria dos alunos da instituição são
estudantes, 39,3%, seguidos por desempregados, 30,5%; os que estão no mercado de
trabalho representam 20,6%. É quase inexistente pessoas que estejam na condição de
empregador, apenas 1,2%.
Gráfico 2: Distribuição dos estudantes segundo ocupação
Fonte: SILVA, G.C. e outros. Pesquisa: A condição da Raça Negra em Uberaba: um diagnóstico. Centro Nacional de
Cidadania Negra (CENEG). Uberaba, 2001.
(*) Neste item foi agregado à categoria desempregado, os candidatos ao primeiro emprego, que na tabela inicial
estavam separados.
20,6%
1,2%
7,0%
39,3%
30,5%
1,4%
empregado empregador autônomo estudante desempregado(*) não responderam
85
Com relação à localização de suas casas, 54,5% tinham suas residências
localizadas em bairros mais centrais da cidade, na periferia encontravam-se 24,1% dos
alunos entrevistados, 17,8% dos alunos moravam em bairros mais afastados e apenas
3,6% moravam no centro da cidade.
Gráfico 3: Distribuição dos estudantes segundo localização da moradia
Fonte: SILVA, G.C. e outros. Pesquisa: A Condição da Raça Negra em Uberaba: um diagnóstico. Centro Nacional
de Cidadania Negra (CENEG). Uberaba, 2001.
Com relação à moradia, a grande maioria dos alunos do CENEG possuía casa
própria, 69,14%, seguidos de pessoas que moravam em residências alugadas, 28,2,
enquanto, 2,68% não responderam o quesito.
3,6%
54,5%
17,8%
24,1%
centro bairros centrais bairros afastados periferia
86
Gráfico 4: Distribuição dos estudantes segundo tipo de moradia
Fonte: SILVA, G.C. e outros. Pesquisa: A condição da Raça Negra em Uberaba: um diagnóstico. Centro
Nacional de Cidadania Negra (CENEG), Uberaba, 2001.
Com relação à renda familiar, observa-se que 10,6% dos alunos pertenciam a
famílias que ganhavam até R$151,00. A grande maioria dos alunos eram oriundos de
famílias que ganhavam entre R$152,00 à R$453,00, totalizando 45,5% das fichas
pesquisadas. Na faixa mais alta de renda a representação é baixa como se pode
constatar pela leitura do gráfico.
69,1%
28,2%
2,7%
própria alugada não responderam
87
Gráfico 5: Distribuição dos estudantes segundo renda familiar
Fonte: SILVA, G.C. e outros. Pesquisa: A condição da Raça Negra em Uberaba: um diagnóstico. Centro Nacional de
Cidadania Negra (CENEG), Uberaba, 2001.
(*) Neste item foram agregados também as pessoas que ganhavam menos que R$ 151,00 que no gráfico da pesquisa
estavam separadas e representavam 0,7%.
Com relação à faixa etária, a grande maioria dos alunos encontravam-se entre
16 e 20 anos, 50,2%, seguidos dos que estavam na faixa dos 21 a 25 anos de idade,
28,9%, e, acima de 25 anos encontravam-se 13,7% dos entrevistados.
Gráfico 6: Distribuição dos estudantes segundo faixa etária
Fonte: SILVA, G.C. e outros. Pesquisa: A condição da Raça Negra em Uberaba: um diagnóstico. Centro Nacional de
Cidadania Negra (CENEG), Uberaba, 2001.
10,6%
45,5%
18,9%
10,2%
14,9%
até R$ 151,00 (*) de R$152,00 a
R$453,00
de R$454,00 a
R$755,00
acima de R$755,00 não responderam
1,5%
5,8%
50,2%
28,9%
13,7%
até 12 anos de
idade
12 a 15 anos de
idade
16 a 20 anos de
idade
21 a 25 anos de
idade
acima de 25 anos
de idade
88
Com relação à cor/raça dos entrevistados, observe que a pesquisa trabalha com
quatro categorias (negro, afro-descendente, branco e não informado). Além disso, tudo
indica que as questões eram fechadas e foram os próprios alunos que responderam, ou
seja, está se considerando a auto-identidade. Os dados demostram que 30,4 % dos
alunos se denominavam brancos, 21,4% afro-descendente, enquanto 19,7% se auto-
identificavam como negros. Observe que o percentual dos alunos que não responderam
a questão é maior do que o dos que se identificavam como negros e afro-descentes
28,6%. Como se pode observar, a possibilidade de se fazer o curso não está
circunscrita apenas àqueles que se identificam como negros.
Gráfico 7: Distribuição dos estudantes segundo identidade étnico-racial
Fonte: SILVA, G.C. e outros. Pesquisa: A condição da Raça Negra em Uberaba: um diagnóstico. Centro Nacional de
Cidadania Negra (CENEG), Uberaba, 2001.
19,7%
21,4%
30,4%
28,6%
negro afro-descendente branco não informado
89
Segundo uma das líderes do Centro Nacional de Cidadania Negra, a diferença
estabelecida entre negro e afro-descendente está relacionada à cor da pele das
pessoas. Negro significa a pessoa que tem a tonalidade de pele preta, enquanto afro-
descendente seria uma categoria formada pelas pessoas que possuem tonalidades de
pele mais clara; aqui estaria incluídos os mulatos e as diversas matizes de cor. Quanto
ao branco, seriam as pessoas que de fato possuem a pele branca. Com relação à
categoria não informado, ela foi utilizada para aquelas pessoas que não queriam falar
sobre sua identidade. Quando perguntada sobre os sentidos dos termos, Cristina assim
se posiciona:“ Negro. Veja bem, negro é pele preta, bem preta. “Definidinho” preto. O
Afro-descendente, considerou-se como afro-descendente, é o mulato, o moreno claro,
café-com-leite, o branco que tem avô, bisavó que foi negro, qualquer coisa menos a
pele preta, então essa categoria se não tem a pele bem escura, está tudo no afro-
descendente. E branco, era branquinho. Branquinho, branquinho.”
Quando perguntada sobre o sentido de não-informado:
O não informado era aquela questão, precisava colocar porque a gente não sabia,
como trabalhar quando a pessoa começa assim, é realmente não querer falar sobre
isso, não quer falar, ou então começa a falar que era umas cores, assim, muito
diferente.....às vezes você perguntava e a pessoa falava para você: “não quero falar
sobre isso, eu não sou obrigada a responder essa pergunta”, nós colocávamos lá, não
informado.”
Segundo Telles (2003, p.106), o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) desde 1950 aplica quatro categorias: branco, pardo, preto e amarelo; em
1991 e 2000 incluiu a categoria indígena. Os termos branco e negro referem-se aos
extremos desse continuum de cores, enquanto pardo acomoda os vários termos do
discurso popular que definem aquelas pessoas resultantes da miscigenação.
Observe que na classificação utilizada pela pesquisa realizada do CENEG, o
termo afro-descente está incluindo as diversas tonalidades de cores, se contrapondo a
definição de negro que são as pessoas de pele preta. Se considerarmos que a
categoria não-informado pode incluir pessoas que têm dificuldade de definir sua
identidade étnico-racial, o contigente de negros e pardos atendidos pela instituição
pode ser bem maior.
90
3 O conceito de Ação afirmativa e sua perspectiva no Brasil
A existência das desigualdades raciais no Brasil sempre foi um fato notório
1
.
Apesar disso, tal desigualdade sempre foi associada mais a uma questão de classe
ou pobreza do que uma questão propriamente racial. Silva (2000) ressalta que uma
das questões mais importantes que vem a público hoje são as marcadas diferenças
sociais que estão associadas à cor do indivíduo. Uma das constatações é a de que
não apenas as diferenças de renda estão associadas à cor dos indivíduos como
também às de origem social, geográfica ou educacional. Para o autor, a
discriminação racial no mercado de trabalho é possivelmente uma parte relevante na
explicação das diferenças de rendas.
Para Valle da Silva, um bom diagnóstico da extensão das desigualdades
raciais encontra-se na análise da PNAD realizada pelo IBGE, em novembro de 1996.
Ao se observar o quesito renda, constata-se que os indivíduos de cor branca
recebem mais que o dobro dos rendimentos obtidos por pretos e pardos.
Chegamos aos seguintes valores em reais para as médias de
rendimentos totais: R$ 950 para brancos, R$ 403 para pretos e R$ 433
para pardos. (Silva, 2000, p.36)
Tal pesquisa restringiu-se à análise dos chefes de famílias. Há também
marcantes diferenças no que diz respeito a outras características socioeconômicas
dos indivíduos. Quanto à escolaridade, o nível médio de anos de estudo atingido
pelos brancos é de 6,25 enquanto que para pretos e pardos cai para 3,81 e 3,96
respectivamente.
Os dados sobre a mobilidade social também são um bom indicativo das
desigualdades raciais entre brancos e negros. O autor define mobilidade social
como: “ processo através do qual pessoas de origem social distinta ( isto é, vindas
de famílias em posição social distinta) são alocadas em posições distintas na
hierarquia social.”(SILVA,2000, p.38) Quando se observa a mobilidade social
experimentada pelos indivíduos com relação aos seus pais ( mobilidade ocupacional
integeracional), constata-se que 52,5 dos brancos, 43,9 de pretos e 45, 5 de pardos
realizam mobilidade ascendente: “os dois grupos não-brancos experimentaram um
1
Para aprofundamento da discussão ver Hasenbalg,1979.
91
grau maior, quase 10% de imobilidade ou herança do status paterno.” (SILVA, 2000,
p. 44).
Silva observa que, por exemplo, no grupo ocupacional de estrato baixo
inferior (trabalhadores rurais não qualificados) encontram-se 28, 8% pessoas de cor
preta, 32, 4% de pessoas pardas e 18,5% de pessoas brancas. Partindo para o seu
extremo, o estrato alto ( profissionais de nível superior e grandes proprietários)
encontram-se 7,2% da população branca, 1,5% da população negra e 1,8% da
população parda. Tais dados demonstram a necessidade da criação de políticas
públicas específicas para que a população negra possa suplantar essa situação.
Essas políticas foram essenciais no combate às desigualdades raciais nos Estados
Unidos.
Nos Estados Unidos, a abolição da escravatura ocorreu em 1863 e em 1890
surgiu o movimento Segregacionista que buscava a separação entre brancos e
negros. Tal movimento perdurou até a década de 70 do século XX, sendo que a
partir de 1954 começa a ser desarticulado pela Suprema Corte Americana, quando
julga de maneira favorável a ação de um estudante contra a segregação de alunos
em escolas públicas com base na raça. (MOEHLECKE, 2000, p.183).
Com o fim das leis segregacionistas, há uma ampla defesa dos Direitos Civis
por lideranças nacionais, apoiadas por liberais progressistas brancos e
principalmente pelo Movimento Negro. Estes movimentos também questionavam a
crença de que a existência de leis anti-racistas garantiriam a igualdade de
oportunidade a todos. Na visão de tais movimentos, que ganhavam cada vez maior
aceitação na opinião pública, era necessária uma postura mais ativa por parte do
estado no combate ao racismo e discriminação. Com isso surge a idéia de ações
afirmativas. Segundo Moehlecke (2000), as primeiras políticas de ações afirmativas
para reverter a situação de desigualdade entre negros e brancos foram
implementadas nos Estados Unidos a partir da década de 60.
Um dos trabalhos mais elucidativos sobre o conceito de ação afirmativa bem
como sua história do debate jurídico norte-americano é a pesquisa realizada pelo
professor e jurista Joaquim B. Barbosa Gomes, nos Estados Unidos.
O processo revolucionário desencadeado pelas revoluções do século dezoito,
a francesa e americana, presencia a ascensão da idéia de igualdade como um
princípio incontornável das novas constituições resultantes desses processos
históricos. O conceito de igualdade passou a ser uma construção jurídico formal
92
segundo o qual a lei, genérica e abstrata, deve ser igual para todos, sem distinção.
O aplicador da lei deve incidir a lei de forma neutra. (GOMES, 2001,p. 2)
Gomes (2001, p. 2) demonstra que tal concepção de igualdade foi forjada na
luta da Burguesia contra o Antigo Regime que distingüia as pessoas pela linhagem e
posição social. O conceito que estava sendo construído era marcado por uma
concepção de igualdade formal. Tal idéia foi central no constitucionalismo do século
XIX e boa parte do século XX.
A experiência mostrou, contudo, que, tal como construída, à luz da
cartilha liberal oitocentista, a igualdade jurídica nada mais era do uma
mera ficção.(GOMES, 2001, p.3)
Na medida em que as lutas sociais se desenvolviam, tornava-se cada vez
mais imperiosa uma concepção de igualdade que transcendesse o aspecto formal e
se transformasse numa concepção substancial de igualdade. Era necessário que o
princípio de igualdade fosse operacionalizado.
Gomes (2001, p. 4) ressalta o surgimento de uma postura que buscava um
conceito de igualdade material ou substancial. Essa nova visão busca superar o
formalismo das constituições, recomendando a necessidade de se observar as
desigualdades concretas existentes na sociedade. Situações desiguais devem ser
tratadas de forma dessemelhante.
Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou
material propugna redobrada atenção por parte dos aplicadores da
norma jurídica à variedade das situações individuais, de modo a
impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a
proteção e a defesa dos interesses de pessoas socialmente
fragilizadas e desfavorecidas. (GOMES,2001, p.4)
A noção de igualdade formal começa a ser questionada por uma postura
marcada pela busca da igualdade de oportunidades. Tal noção passa a ser a
justificativa de experimentos constitucionais que objetivam diminuir ou extingüir o
peso das desigualdades econômicas e sociais. Torna-se cada vez mais imperiosa a
promoção da justiça social.
A antiga concepção de igualdade captava o ser humano numa dimensão
abstrata e genérica, sem percebê-lo enquanto ser dotado de singularidades. Para
que a igualdade fosse concretizada, seria necessário que as categorizações
93
produzidas socialmente, como o gênero, idade, etnia e raça fossem levadas em
considerações. (GOMES, 2001, p.5)
Tais políticas sociais que se concretizaram a partir desse novo princípio foram
denominadas de ação afirmativa ou, segundo Gomes, na terminologia do direito
europeu de “discriminação positiva”.
Para Gomes, essa nova postura por parte do Estado abandona a tradicional
posição de neutralidade estatal e passa a atuar ativamente na busca da
concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais. Com isso Gomes
precisa o conceito de ação afirmativa:
Concebidas pioneiramente pelo Direito dos Estados Unidos da
América, as ações afirmativas consistem em políticas públicas (e
também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional
da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação
racial, de gênero, de idade, de origem nacional e competição física.
Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até
mesmo por entidades puramente privadas, elas visam combater não
somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a
discriminação cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho
pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de
exemplaridade, têm como meta, também o engendramento de
transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores
sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios de
pluralismo e da diversidade nas diversas esferas do convívio
humano.(GOMES, 2001, p. 6)
Ainda segundo Gomes, para que tais políticas tenham sucesso, é necessária
a adesão das forças sociais ativas e conscientização da própria sociedade da
necessidade de se eliminar ou se reduzir as desigualdades sociais que operam em
detrimento das minorias.
Ao defender as políticas de ações afirmativas, Gomes (2001, p.20) busca
enfatizar que a mera proibição da discriminação nas leis não produz resultados
satisfatórios. Esse tipo de sanção não leva em consideração fatores importantes em
matéria de discriminação. A discriminação está intimamente ligada a uma questão
cultural, certos comportamentos ou concepções sobre as minorias estão tão
arraigados no imaginário coletivo que são tidos como normais. Além disso, a mera
proibição não leva em consideração a discriminação ocorrida no passado. Países de
passado escravocrata como o Brasil possuem a tendência de reservar a negros e
mulheres os postos de trabalhos associados a posições servis e manuais.
94
Gomes (2001, p. 36) enfatiza que um dos mores centrais da sociedade liberal
capitalista é noção de neutralidade estatal. O Estado não deve intervir nas esferas
da vida econômica, no domínio espiritual bem como na esfera íntima das pessoas.
Essa não intervenção garantiria a existência da igualdade entre os grupos.
Tal noção de neutralidade estatal tem se revelado fracassada em nações ou
sociedades que mantiveram certos grupos de pessoas em posição de subjugação
legal. A simples existência do princípio legal de igualdade não reverterá um quadro
de desigualdade produzido historicamente, em uma sociedade marcada pelo seu
passado escravocrata.
Para Gomes (2001, p.37), a possibilidade de ruptura com essa situação é
deixar a postura neutra em relação ao social e assumir cada vez mais uma postura
ativa e até radical de acordo com os princípios norteadores da sociedade liberal.
A origem dos programas de ações afirmativas pode ser buscada no Direito
Inglês. O conceito de Equity está na origem das noções de ação afirmativa. Tal
princípio estabelece a necessidade de levar em conta as situações particulares no
julgamento dos casos ao invés da pura aplicação da norma. Estabelecer a igualdade
na lei entre brancos e negros sem levar em consideração a especificidade da
situação dos negros pode aumentar ainda mais as desigualdades entre os grupos. O
sentido inicial do conceito de ação afirmativa que aparece nas decisões da Corte
americana é de reparação por uma injustiça passada. E sua primeira referência
apareceu na legislação trabalhista de 1935 que previa que se um empregador
discriminasse seu sindicalista ou operário sindicalizado, ele deveria criar ações
afirmativas para que estes ocupassem as posições que estariam caso não houvesse
discriminação. (GUIMARÃES, 1999, p.154).
As ações afirmativas representam, então, uma nova postura do Estado que
buscará levar em consideração os fatores como sexo, raça e cor no combate as
desigualdades.
Numa palavra, ao invés de conceber políticas públicas de que todos
seriam beneficiários independente da sua raça, cor ou sexo, o Estado
passa a levar em conta esses fatores na implementação das suas
decisões, não para prejudicar quem quer que seja, mas para evitar
que a discriminação, que inegavelmente tem fundo histórico e cultural,
e não raro se subtrai ao enquadramento nas categorias jurídicas
clássicas, finde por perpetuar as iniquidades sociais. As medidas
assim concebidas são em geral qualificadas como “race-conscious
measures” ou “race-sensitive measures. (GOMES, 2001, p.39)
95
Gomes (2001, p. 40) ressalta que, no início da década de 70, começa a se
operacionalizar uma mudança conceitual com relação ao conceito de ações
afirmativas. É desta época a vinculação entre o conceito de ação afirmativa e a
busca de certas metas estatísticas concernentes à presença de negros e mulatos
em determinado setor do mercado de trabalho.
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um
conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para
corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado,
tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de
acesso a bens fundamentais como educação e o emprego. (GOMES,
2001, p.40)
Gomes observa que a mera proibição como medida preventiva contra a
discriminação não basta. É necessário promover, buscar, tornar rotineira a
observância dos princípios de diversidade e pluralismo. A partir dessa nova postura
é possível pensar uma mudança nos comportamentos e na mentalidade das
pessoas que ainda estão condicionadas pela tradição, costume e história.
Essas medidas seriam o reconhecimento oficial da persistência e da
perversidade das práticas discriminatórias e da necessidade de sua eliminação. As
políticas afirmativas induziriam a transformações de ordem cultural, pedagógica e
psicológica e operariam mudanças no imaginário coletivo, marcado pela ideal branco
de supremacia. Essas políticas cumpririam o objetivo também de criar as chamadas
personalidades emblemáticas, que seriam exemplos vivos de mobilidade social.
(GOMES,2001, p.49)
Gomes (2001, p. 54-55) observa que a modalidade mais antiga e eficaz de
ação afirmativa foi instituída pelo Decreto Executivo n°. 11246/65, na administração
Lindon Jonhson. O governo não teria como princípio obrigar o empregador privado a
cumprir as metas de integração de minorias em seus quadros, mas em todos os
contratos firmados entre a Administração e os agentes privados, ficaria condicionado
o comprometimento não só de contratar em percentuais razoáveis certas minorias,
mas igualmente oferecer-lhes efetivas condições de progressão na carreira. Tal
decreto foi operacionalizado por um órgão específico do Ministério do Trabalho.
Posteriormente o congresso norte-americano se apossaria da idéia, instituindo um
96
plano de ação afirmativa (Public Works Employment Act, 1977) nos mesmos moldes,
só que voltado às contratações referentes a obras públicas.
Outra forma utilizada pelo Estado norte-americano foi em relação ao
financiamento da educação. As instituições educacionais que recebessem recursos
financeiros federais tinham por obrigação promover a integração e a diversidade
cultural em seus programas. Em seus processos de seleção dos alunos, deveriam
ser levados em consideração fatores como raça e sexo.
O princípio de igualdade ocidental busca tornar irrelevantes características
como raça e sexo na esfera pública. O Direito Americano romperia com tal
paradigma. Apesar de critérios como raça e gênero serem em princípio suspeitos em
termos constitucionais, são compatíveis com a lei quando concebidos com o fim
exclusivo de corrigir injustiças e promover a igualdade. (GOMES, 2001, p.77) A ação
afirmativa está de acordo com o princípio constitucional de igualdade expresso na
constituição norte-americana. Gomes também analisa como tal princípio concretizou-
se em diversas esferas da vida social. Os primeiros programas de ação afirmativa
datam da década de 60. Tais programas viabilizaram-se a partir de um decreto
administrativo do Presidente Kennedy que buscava medidas positivas no sentido de
inserção dos negros no sistema de educação de qualidade, que historicamente
esteve reservado a pessoas brancas. (GOMES, 2001, p.103)
No caso da educação, um dos casos mais polêmicos foi Regents of University
of California v. Bakke. Foi o primeiro caso em que a Suprema Corte teve de decidir
sobre a constitucionalidade de um plano de ação afirmativa. A Faculdade de
Medicina da Universidade da Califórnia havia criado um programa de admissão de
preferência às minorias. Dezesseis por cento das vagas seriam reservadas às
minorias ( GOMES, 2001, p.104). Ainda assinala que existia uma falha no programa,
pois as minorias poderiam concorrer tanto para o percentual reservado como para as
outras vagas restantes. Em função desse motivo, um candidato branco, sentindo-se
prejudicado, moveu ação contra a faculdade, alegando que ele havia sido
prejudicado no seu direito de igual proteção a lei. O juiz Lewis Powell, membro da
Suprema Corte
2
, ao analisar o caso, acabou anulando a decisão da universidade,
por entender que esta não tinha competência para apurar a existência da
2
Caso o leitor tenha interesse no assunto, e principalmente, conhecer as principais decisões da Suprema Corte
dos Estados Unidos que resultaram em ações afirmativas seja no campo da educação, como de contratação e
dispêndios de Recursos públicos e as relacionadas ao emprego ver GOMES, 2001.
97
discriminação no passado. A apuração devia ser feita pelo governo federal, mas
reconheceu a legitimidade dos programas de ação afirmativa. (GOMES, 2001,
p.105-107)
Tais programas são válidos em certas condições. E em determinadas
situações, o fator “raça” pode ser considerado um “fator positivo” se somado a outros
no processo de seleção de alunos no ensino superior. (GOMES,2001, p.109)
Em suas conclusões, Gomes (2001, p. 232-233) observa que as ações
afirmativas têm sido vistas como uma modalidade de recompensa às vítimas
históricas da opressão e da segregação. A inviabilidade de se quantificar
monetariamente o prejuízo sofrido no presente e no passado pelas vítimas da
discriminação torna viável a compensação na forma dos programas de tratamento
preferencial. Tais programas são essenciais na implementação de princípios de
pluralismo e da diversidade. Além disso, as ações afirmativas seriam um excelente
instrumento de fomento ao surgimento de exemplos vivos de ascensão social,
política e cultural.
Observe que, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, aos negros foram
negados os benefícios da ordem econômica, política e social em função da
escravidão no passado e da discriminação e do racismo no presente.
Gomes (2001, p. 234-235) também demonstra as objeções que geralmente se
apresentam contra os programas de ações afirmativas. Um dos primeiros seria o
caráter desagregador que tais programas podem gerar na sociedade, sempre que
um grupo é beneficiado um outro sente-se prejudicado. Um segundo ponto, sempre
ressaltado, é que os beneficiários desses programas geralmente são os negros de
classe média alta, sendo raramente atingidos os negros pobres em conseqüência
das exigências de qualificação profissional.
Outro aspecto levantado seria a indevida intromissão governamental na
gestão das empresas e no exercício das profissões que desrespeitaria os princípios
de liberdade acadêmica e da livre empresa. Somam-se a isso as dificuldades de se
apontar com precisão as pessoas que seriam beneficiadas por esses programas. E,
por fim, a idéia de que a “raça” não seria a causa verdadeira da desigualdade, mas
sim a situação de “classe”. Observe que essas duas últimas objeções são as que
mais têm força no Brasil.
Guimarães (1999) também aponta as principais críticas à implementação das
ações afirmativas no Brasil:
98
a) as ações afirmativas significariam o reconhecimento de diferenças étnicas e
raciais entre os brasileiros, contrariando a idéia que somos um só povo;
b) As discriminações positivas seriam um atentado contra o princípio universalista
individualista do mérito e reforçaria o particularismo e personalismo que caracteriza
a vida pública brasileira;
c) Não existem possibilidade reais de implantação de tais políticas, pois é difícil
definir quem seriam seus benificiários.
Uma das características presentes na agenda anti-racista do pós-guerra foi a
discussão do conceito de raça buscando demonstrar o seu viés ideológico e sua
ineficácia para a explicação das diferenças humanas. Para esta visão, uma das
formas de combate ao racismo é o banimento do conceito raça dos compêndios
científicos e da discussão política. O não reconhecimento poderia ser a forma mais
eficaz de combate ao racismo. Tal visão expressa-se claramente no primeiro
argumento, pois a criação de políticas públicas baseadas em critérios étnico-raciais
poderia implantar e acirrar o racismo entre nós. (GUIMARÃES, 1999, p.170-171).
Quanto ao segundo argumento, é sabido que o Brasil constituiu-se
historicamente como uma nação marcada por hierarquias e privilégios. Para os
partidários deste argumento, as políticas de ação afirmativa reforçariam ainda mais
esta forma de sociedade. Quanto ao terceiro argumento, a dificuldade de
implantação de tais políticas deve-se ao fato de não poder definir claramente quem é
negro no Brasil.(GUIMARÃES, 1999, p.170-171).
A dificuldade de se definir quem são os negros casa-se com a percepção de
um certo número de brasileiros não-brancos da noção de “unidade” do povo
brasileiro. Tal noção é defendida como um instrumento contra a marginalização; tais
brasileiros acreditam ser mais difícil excluir quem não deseja ser
excluído.(SANSONE, 1998, p.16)
A maioria desses argumentos casa-se com a percepção de que políticas de
cunho universalista de combate à pobreza teriam maior eficácia no combate à
discriminação e ao racismo, posto que os negros encontram-se na maioria pobre
que compõem a sociedade brasileira. Como já foi demonstrado, as medidas de
cunho universalista não rompem com os mecanismos informais do racismo e da
discriminação que continuam operando.
Na visão de Guimarães (1999), para que as políticas de ação afirmativa
tenham sucesso, elas precisam estar ligadas a políticas de cunho universal:
99
Políticas como essas devem estar ancoradas em políticas de
universalização e de melhoria do ensino público de primeiro e segundo
graus, em políticas de universalização de assistência médica e
odontológica, em políticas sanitárias, enfim, numa ampliação da
cidadania pobre no Brasil......O que está em questão, portanto, não é
uma alternativa simples, diria mesmo, simplista, entre políticas de
cunho universalista versus políticas de cunho particularista. O que está
em jogo é outra coisa: devem as populações negras, no Brasil,
satisfazer-se em esperar uma “revolução do alto”, ou devem elas
reclamar, de imediato e pari passu, medidas mais urgentes, mais
rápidas, ainda que limitadas, facilitem seu ingresso nas universidades
públicas e privadas, que ampliem e fortaleçam os seus negócios, de
modo que se acelere e se amplie a constituição de uma classe média
negra ? ( GUIMARÃES, 1999, p. 173).
Há também visões intermediárias sobre os tipos de soluções a serem
adotadas, levando em consideração a especificidade de nossas relações raciais.
Poderia se pensar em criar espaços limitados, porém concretos, que levassem à
formação e profissionalização dos negros. Um exemplo disso seriam os cursos de
pós-graduação sobre temáticas relacionadas à população negra que atraem jovens
sem estigmatizá-los. Ou também a criação de cursos noturnos em que a presença
de alunos negros é muito mais constante. Tal proposta poderia ser caracterizada por
um certo “universalismo guiado” que seria um conjunto de medidas locais, regionais,
para certas camadas sociais. Tal política alcançaria uma grande massa de negros,
sem levar à etnização dos investimentos sociais. (SANSONE, 1998, p.14-17)
Tal ação afirmativa seria de caráter silencioso, mais real que política, para
tentar reverter essa situação de discriminação silenciosa. Tal argumento é reforçado
pela percepção de que medidas de caráter afirmativo acabariam por atender os
negros que já têm uma certa escolaridade, deixando de lado o grosso da população
negra.
Aqui , então muito menos do que nos EUA, eventuais medidas podem
ser concentradas no combate à discriminação racial nos empregos de
classe média simplesmente porque seriam relativamente poucos os
negros atingidos embora, do ponto de vista da imagem pública e da
auto-imagem dos negros, seja importante a presença de mais negros
em empregos desse tipo. Mais relevante, parece-me, é pensar em
medidas que atinjam o coração do mercado de trabalho, e os nichos e
a regiões onde se concentram os não brancos. (SANSONE, 1998,
p.15)
100
Além disso, há o problema das conseqüências políticas da implantação das
ações afirmativas.
O Estado pode criar condições melhores para a ascensão social dos
negros, reconhecendo, tutelando e promovendo a transformação de
um grupo racial em uma (grande) minoria étnica politicamente
organizada, ou garantindo os direitos de todos e minimizando as
diferenças raciais. Escolher entre as duas posturas, coloca o problema
de alocação dos recursos públicos e da redistribuição de renda que o
Estado deveria, de alguma forma, garantir: das classes altas para as
baixas, das classes altas para os negros ou, como parecem sugerir
alguns teóricos da “reparação”, dos brancos para os negros.
(SANSONE, 1998, p.16).
Talvez o que está em jogo na discussão sobre ações afirmativas seja a
constituição de uma identidade negra no Brasil. As ações afirmativas seriam o
instrumento de sua construção, seria o recurso para a substituição de um sistema
classificatório racial multiplo por um sistema do tipo americano, bipolar, que é visto
como positivo por muitas lideranças negras. Para as lideranças negras, não está s ó
em jogo o acesso aos bens econômicos, mas uma correta consideração com relação
à diferença. Mas, as políticas de ações afirmativas, ao buscar enfatizar a diferença,
poderiam aumentar o clima de hostilidade entre brancos e não-brancos, pois a
categoria “raça” passaria a ser central na auto-identificação da pessoa no Brasil
após a adoção de políticas de ações afirmativas. ( BERNARDINO, 2000, p.285)
No debate sobre ações afirmativas há, segundo Guimarães (1999), pelo
menos duas perspectivas no debate. A primeira é conhecida como axiológica e
normativa, que remete a uma discussão em termos da correção ou do não
tratamento de qualquer indivíduo a partir de suas características específicas e
grupais. O valor desta perspectiva é de que todo indivíduo deve ser tratado de forma
igual, independentemente de suas características grupais. O mérito e o desempenho
devem ser a medida de seu tratamento, independente da situação do grupo a que
pertence. Desta visão decorrem algumas posições.
A posição liberal aceita discutir tratamento diferenciado e privilegiado para
indivíduos pertencentes a determinados grupos que sofrem ou sofreram
discriminação negativa e difusa em amplos setores da vida nacional. Mas, tal
aceitação é circunscrita a situações concretas e a condições específicas que
tornariam tais políticas permissíveis do ponto de vista moral. (GUIMARÃES,1999)
101
Em contrapartida, a posição conservadora atribui a responsabilidade aos
indivíduos pela posição social que ocupam na sociedade. Por isso, qualquer
interferência estatal nesta situação é vista como indevida. Na sociedade americana,
tal posição sugere que se há um grupo étnico, racial, religioso ou sexual em situação
de desvantagem permanente, tal desvantagem está associada às características
que identificam o grupo. (GUIMARÃES,1999) A posição de esquerda busca
demonstrar que as noções de individualismo e mérito não passam de fachada
ideológica, pois mascaram a opressão e exploração de grupos dominados e
discriminados. Na sua percepção, a reação contra as ações afirmativas esconde
uma nova forma de racismo não declarado. (GUIMARÃES,1999)
Uma nova perspectiva sobre o assunto e que ganha cada vez mais peso a
favor das políticas de ações afirmativas é de natureza histórico-sociológica. Tal
perspectiva enfatiza os impactos que as ações afirmativas tiveram ou podem vir a ter
na estrutura social. (GUIMARÃES,1999)
Na visão axiológica e normativa, as políticas de ações afirmativas teriam
substituído o tradicional igualitarismo americano, que é centrado na idéia de
igualdade de oportunidades para indivíduos, por uma igualdade de resultados
centrada não mais no indivíduo, mas no grupo identitário a que pertence o indivíduo.
Para Guimarães (1999), há uma diferença fundamental do sentido antigo e
moderno de ação afirmativa. Enquanto no sentido antigo a política de ação
afirmativa visava corrigir uma situação de discriminação passada sofrida pela pessoa
e comprovada, no sentido moderno a ação afirmativa é implementada para evitar
que um grupo venha a sofrer discriminação. Na visão moderna, existe um grupo de
pessoas que possui a grande probabilidade de sofrer discriminação. Observa-se
que, no primeiro caso, a ação pode ser considerada reparatória, enquanto no
segundo preventiva. As duas noções refletem a influência do conhecimento
sociológico sobre as causas da discriminação e do racismo.
A legislação inicial que foi promulgada na administração Kennedy-Johnson
era composta de leis que coibiam a discriminação e segregação raciais, além de
buscarem criar condições de igualdade de oportunidades educacionais, de vida e de
trabalho para todos os americanos. Eram leis e políticas que poderiam ser
caracterizadas como compensatórias, de certa forma, uma reparação ou
compensação para corrigir a desvantagem que os negros teriam em relação aos
brancos devido à escravidão praticada anteriormente.
102
Tais políticas compensatórias podem ser diferenciadas das políticas de
tratamento preferencial. As de tratamento preferencial envolvem a suspensão dos
padrões de competição ao adotarem, por exemplo, as cotas ou outros instrumentos
que favoreçam os indivíduos que pertencem a determinados grupos sem levar em
consideração o mérito individual.
As primeiras políticas de ações afirmativas implementadas na administração
de Eisenhower assumiram esse sentido de tratamento preferencial. Tais ações
afirmativas de tratamento preferencial foram adotadas por causa da constatação da
pouca eficácia da legislação e das políticas de cunho universalista e individualista.
Guimarães (1999) mostra que a jurisprudência desenvolvida inicialmente nas
Cortes americanas sobre a legalidade das chamadas ações afirmativas é marcada
pela noção de reparação. Posteriormente, há um esforço por parte das Cortes no
sentido de separar a noção de Ação afirmativa de Cotas. A diferença entre os dois
conceitos passa a ser fundamental para uma nação que tem um senso de justiça
republicano e individualista.
Para os conservadores americanos, o problema da cota está justamente em
ignorar a questão do mérito individual. Independentemente do desempenho do
indivíduo, os recursos coletivos seriam alocados por grupos de acordo com o seu
peso proporcional na população. Supondo-se que no Brasil existissem 47% de
negros na população e 20% de brancos, a distribuição de cargos em universidades e
empresas deveria obedecer tal proporção. Tal sistema seria extremamente injusto,
pois impediria que pessoas chegassem em determinadas posições em função das
suas características grupais.
A partir da injustiça que um sistema de cotas rígido poderia levar, as decisões
das Cortes passam a diferenciar a idéia de Cotas da de Metas. Segundo Guimarães,
em voto proferido na Suprema Corte, a ministra Sandra Day O ‘Conor deixa claro a
distinção entre os dois termos:
Para ser consistente com o estatuto, um contrato ou uma meta de
contratação baseada em raça deve pretender servir meramente como
parâmetro para mensurar o cumprimento do título VII e eliminar os
efeitos remanescentes de discriminação passada, ao invés de
estabelecer um requisito numérico rígido, que deverá ser
incondicionalmente cumprido, sob pena de sanção. Obrigar um
empregador ou sindicato a utilizar determinada percentagem de postos
com o emprego de membros de minorias ou de grupos, e fazê-lo sem
prestar atenção a circunstâncias tais como condições econômicas ou
103
número de candidatos minoritários qualificados que se oferecem, é
impor uma cota inadmissível.
Em contraste, uma meta admissível requereria apenas esforço bem
intencionado de parte do empregador ou sindicato para atingir um
limite de variação compatível com a meta estabelecida. ( Justice Day
O’CONNOR,1986 apud Jones, 1993. p.359 In: GUIMARÃES, 1999).
Para Guimarães, o problema das cotas detectado pela ministra era não
resguardar o mérito individual, a qualificação dos membros da maioria e a liberdade
dos empregadores. Por isso, uma meta a ser cumprida seria mais viável:
a sobre-representação de pessoas com uma mesma característica
“naturalizada” deve ser investigada, não porque seja anormal, mas
porque “sexo”, “cor”, “raça”, “etnia” são construções sociais usadas
para monopolizar tais recursos. (GUIMARÃES, 1999, p.158).
Com isso passemos a definição de ação afirmativa proposta por Guimarães:
Ações afirmativas são políticas que visam afirmar o direito de acesso a
tais recursos a membros de grupos sub-representados, uma vez que
se tenham boas razões e evidências para supor que o acesso seja
controlado por mecanismos ilegítimos de discriminação (racial, étnica,
sexual). A atribuição de metas de redistribuição é apenas um recurso
de correção de mecanismos bastante entranhados de discriminação,
que impedem por exemplo, que uma pessoa com certos atributos
físicos ou culturais seja membro de diretorias ou admitida em algumas
profissões, etc. Em qualquer caso, é necessário acreditar que existem
mecanismos de discriminação atuando na distribuição observada;
segundo, que existe vontade, por parte do indivíduos com tais
atributos, de concorrer a estes postos; terceiro, que sua qualificação
para o desempenho dessas funções não esteja aquém do que é, em
geral, requerido. Ou seja, políticas afirmativas visam corrigir, e não
eliminar, mecanismos de seleção por mérito, e garantir o respeito à
liberdade e à vontade individuais.(GUIMARÃES, 1999, p.159).
Como observa bem Guimarães, os programas de ações afirmativas não se
encontram contra a tradição liberal americana, pelo contrário, eles acabam por
corrigir mecanismos discriminatórios que impediriam uma competição justa entre
brancos e negros.
No debate americano, observam-se duas posições de defesa pelas ações
afirmativas: de um lado os que defendem a idéia de mérito e igualdade de
oportunidades e, de outro, os que a defendem a partir de uma ética política e não
acreditam nem na meritocracia nem no individualismo. Guimarães (1999, p.163)
104
também ressalta a posição de Dunkan Kennedy que defende as ações afirmativas
devido ao fato destas garantirem a representação da diversidade cultural em todos
os âmbitos da vida pública.
3.1 As Diferenças entre as políticas de ação afirmativa e outras formas de
combate à discriminação e ao racismo
Jaccoud e Benghin (2002), em seu estudo sobre as desigualdades raciais no
Brasil, demonstram a necessidade de se ter clareza sobre as várias facetas através
das quais operam a discriminação e o racismo. A própria definição do significado do
racismo e discriminação terá efeito sobre o tipo de política pública a ser utilizada
para resolução de nossas desigualdades raciais.
Jaccoud e Bengin (2002:39-40) consideram o racismo como uma ideologia
que leva à hierarquização dos grupos sociais. A necessidade de hierarquizar e
distingüir os grupos em termos de superioridade e inferioridade está no cerne do
racismo. O preconceito seria uma predisposição negativa em face ao indivíduo,
grupo ou instituição. A cor da pele, a origem étnica são associadas a certos tipos de
comportamentos sociais e lugares sociais. Ao associar o negro a atividades de
caráter manual, inviabiliza-se a possibilidade deste exercer trabalhos considerados
mais intelectuais. Portanto, se uma pessoa negra candidata-se a cargos associados
a trabalhos considerados intelectuais, já existe uma predisposição negativa por parte
do empregador em empregá-la. As autoras também demonstram que a
discriminação seria toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por
efeito anular a igualdade de oportunidade e tratamento entre indivíduos e grupos.
Com relação à discriminação, observa-se que há necessidade de uma certa
distinção entre a discriminação, considerada direta e indireta. Enquanto a direta é
um ato concreto, em que a pessoa é excluída pela sua cor ou origem, a indireta
pode ser observada pelos indicadores de desigualdades entre grupos e que
compõem determinada sociedade. Constitui-se a mais perversa e difícil de ser
combatida.
Ela geralmente se alimenta de estereótipos arraigados e considerados
legítimos e se exerce sobre o manto de práticas administrativas ou
institucionais. (...)A discriminação indireta é identificada quando os
resultados de determinados indicadores sócioeconômicos são
105
sistematicamente desfavoráveis para um subgrupo etnicamente
definido em face dos resultados médios da população. Um exemplo
dessa forma de discriminação poderia ser dado pelo pouco sucesso
dos negros no ensino fundamental, em que pese o alto grau de
universalização atingido por esse sistema. (JACCOUD; BEGHIN,
2002, p. 40)
Essa perspectiva das autoras é corroborada por outros autores como Gomes
(2001, p. 20) que demonstra a ineficácia das políticas públicas de cunho
universalistas para o combate às desigualdades raciais de grupos que
historicamente foram discriminados como negros e mulheres.
Jaccoud e Beghin (2002, p. 40) também discutem o chamado racismo
institucional que seria uma discriminação resultante de práticas institucionais que
distribuem benefícios ou recursos de forma desigual entre os distintos grupos sociais
que compõem a sociedade.
Gomes (2003, p. 34-35) comenta, por exemplo, o esquema perverso de
distribuição de recursos públicos na área de educação. Apesar da educação ser um
bem público, o estado alega que, devido à falta de recursos, não é possível fornecer
a todos uma educação pública e gratuita. Mesmo assim, ele cria mecanismos de
distribuição de recursos que acabam favorecendo a educação das classes
privilegiadas. Gomes aponta o mecanismo da renúncia fiscal de que são
beneficiárias as escolas privadas altamente seletivas. Os tributos a que essas
escolas estão isentadas e as subvenções propiciadas pelas três esferas políticas de
governo acabam favorecendo a contraposição de dois tipos de escola. Uma pública
que é aberta a todos, mas que não possui qualidade e outra privada, elitista de boa
qualidade e financiada devido às isenções por recursos públicos. Para o autor, as
vítimas preferencias desse esquema acabam sendo os membros da população
negra, que são maioria entre os mais pobres.
É na discriminação indireta que são necessárias as chamadas políticas de
ação afirmativa. Somente uma postura ativa do Estado no sentido de promover os
grupos historicamente discriminados pode alterar a situação social em que estes se
encontram. Sua situação de subalternidade só se altera no momento em que o
estado rompe com essa situação. Em pouco mais de cento e quatorze anos de
abolição da escravatura, o estado não criou nenhum mecanismo de compensação
ou promoção desse grupo historicamente marginalizado. Tais políticas não atuariam
106
no combate a atos concretos de discriminação, mas nos resultados das práticas
discriminatórias.
Existem alguns elementos que caracterizam as ações afirmativas. São
políticas temporárias e focalizadas. Tratam de forma privilegiada e temporariamente
grupos que historicamente foram discriminados. A igualdade de oportunidades
concretiza-se através de um tratamento preferencial. Além disso, podem ser
produtos do Estado ou da iniciativa privada. Possuem caráter espontâneo e
compulsório. São medidas que visam preparar, estimular e promover a ampliação da
participação dos grupos discriminados nos diversos setores da vida social,
especialmente na educação, mercado de trabalho e comunicação. (JACCOUD;
BEGHIN ,2002, p.47)
Jaccoud e Beghin (2002, p. 55) destacam que as ações afirmativas não
descartam as políticas públicas universais. O combate às desigualdades raciais
requer os dois tipos de políticas.
Com isso, agora é possível traçar algumas diferenças entre os vários tipos de
políticas de combate à discriminação e ao racismo. As políticas repressivas são
políticas que buscam coibir a manifestação da discriminação através da coerção
legal. Combatem basicamente as manifestações abertas de racismo, discriminação
ou preconceito. São abertas no sentido de se expressarem de forma direta e sem
subterfúgios. Nossa legislação sempre se preocupou em combater mais esse tipo de
manifestação. (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 47)
Existem também as políticas valorativas que têm como principal objetivo o
combate dos estereótipos negativos que foram historicamente construídos e
consolidados na forma de preconceito e racismo. Devem possuir um caráter
permanente e não focalizado, sendo seu foco tanto a população afro-descendente
como a branca. São medidas que estão ligadas mais à atuação sócio-educativa, à
valorização da herança cultural afro-brasileira bem como ao combate de modelos
estéticos que desvalorizam o elemento negro. (JACCOUD; BEGHIN,2002, p. 56)
Jaccoud e Beghin (2002), em seu diagnóstico sobre as desigualdades raciais
e balanço sobre a intervenção governamental, fazem um levantamento das
principais medidas tomadas pelo governo federal no combate ao racismo e à
discriminação. Observam que, no âmbito dos três poderes, as políticas valorativas
foram as que mais se destacaram, seguidas das afirmativas e as repressivas.
107
Fazendo uma contabilidade a partir das tabelas apresentadas
3
pelas autoras,
observa-se que foram tomadas trinta e uma medidas de cunho valorativo, dezessete
intervenções caracterizadas como ações afirmativas e três de caráter repressivo.
Observa-se que as políticas valorativas são quase o dobro das afirmativas.
Talvez esse fato reflita um certo temor por parte do poder público de tomar
medidas que gerem polêmicas. A discussão das ações afirmativas no Brasil gera
ódios e paixões. Interessante que parece que tais medidas só geram polêmicas
quando relacionadas à população afrodescendente. As leis
4
de combate às
desigualdades entre gênero e portadores de deficiência foram bem aceitas pela
sociedade. Talvez esse fato expresse a dificuldade do brasileiro em aceitar que a
chamada democracia racial é ainda um mito.
As atividades desenvolvidas pelo Centro Nacional de Cidadania Negra, estão
mais centradas nas políticas valorativas. O material didático e seus cursos visam o
combate aos estereótipos e principalmente à valorização da população
afrobrasileira. Seus cursos atendem também a população branca e pobre. A
valorização e combate aos estereótipos é extremamente importante, mas as
medidas de caráter afirmativas parece se constituírem cada vez mais imperiosas.
3.2 Especificidades das relações raciais brasileira e ação afirmativa
A experiência americana é considerada um paradigma importante nas
políticas de ações afirmativas. Muitos acadêmicos, como também membros da
sociedade civil, colocam-se contra tais programas por acreditarem que tais
programas não levam em consideração a especificidade de nossas relações raciais.
Para uma melhor compreensão dessas especificidades, retomarei o trabalho
de Oracy Nogueira sobre a distinção entre o chamado preconceito de marca e o
preconceito de origem. O preconceito de marca é baseado na cor e influenciado
pela associação a outras características, como grau de instrução, ocupação e
hábitos pessoais, com uma certa tendência de se ignorar a cor escura de indivíduos
bem sucedidos. (NOGUEIRA, 1998, p. 244)
Tal preconceito não implica em exclusão ou segregação, e sim uma
preterição do indivíduo em relação ao outro quando em competição em igualdade de
3
JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 57-64. .
4
Para um maior aprofundamento e análise dessas leis ver: GOMES, 2003, p.43-47.
108
condições com grupo discriminador. Os membros do grupo discriminado tendem a
lutar muito mais individual do que coletivamente. O preconceito de marca muitas
vezes confunde-se com o preconceito de classe:
Embora especificamente diferente do preconceito de classe, o
preconceito de cor ou de marca racial tende a coincidir com ele, em
vista da concentração dos portadores de determinadas marcar raciais
em certas camadas da sociedade. (NOGUEIRA, 1998, p. 243)
Além disso, Nogueira (1998, p. 243) observa que este preconceito atua sobre
as suas vítimas não apenas de fora, mas pela autoconcepção e auto-avaliação que
ele produz nas suas vítimas. Existe uma variedade de combinações dos traços que
podem ir do “preto” “retinto” e de cabelos encarapinhados ao branco de cabelos
finos e loiros, os limites entre as diversas categorias tendem a ser indefinidos,
possibilitando o aparecimento de casos de identificação controversa. Com isso, o
limiar entre branco e não-branco acaba variando de acordo com a cor do próprio
expectador.
Nogueira (1998, p. 244) demonstra que as expressões “grupo branco”, “grupo
pardo ou mulato” e “grupo preto” acabam não correspondendo a grupos ou
organizações específicos de elementos brancos, pretos ou pardos. Aponta ainda
que a variação desse preconceito é relacional, isto é, de acordo com a natureza dos
contatos sociais de suas vítimas. É no contato social com pessoas que não
pertencem ao seu círculo social que a pessoa tem maior possibilidades de serem
tratadas em função dos estereótipos correntes. Este preconceito cria também a
preocupação com o branqueamento que se torna um mecanismo de ascensão social
através das gerações ou de preservação de posições já alcançadas pelo indivíduo.
O preconceito de marca não implica em hostilidade, antipatia e separação. A
manifestação desse preconceito é mais evidente na medida em que vai das
camadas em que o padrão de vida é mais precário para aquelas mais abastadas.
Contrariamente, o preconceito de origem implica em exclusão ou segregação
incondicional dos membros do grupo discriminado, prevalecendo o preconceito de
origem. Os dois grupos raciais, tanto discriminador como discriminado, opõem-se e
hostilizam-se reciprocamente enquanto unidades sociais distintas. De um lado a
opressão; e de outro, ressentimento e desconfiança, gerando ódio e antagonismo. (
NOGUEIRA,1998, p. 243)
109
Nogueira (1998, p. 244-245) aponta que a ideologia das relações raciais que
predomina no Brasil é uma ideologia assimilacionista e miscigenacionista. Assim, os
brasileiros costumam mostrar maior desagrado aos estrangeiros que evitam a
assimilação e o intercasamento, procurando manter-se separado culturalmente do
resto da população. Tal ideologia contrasta-se com os de países de colonização de
origem inglesa, que é segregacionista.
Ao analisarmos os elementos que caracterizam o preconceito de marca,
observa-se que sua especificidade não invalidaria os programas de ações
afirmativas.
Silvério (2002, p. 95) demonstra que a distinção entre preconceito de marca e
de origem tem sido utilizada para demonstrar positivamente nossas “virtudes raciais”
quando comparadas ao preconceito de origem norte-americano e menos para
compreensão das sutilezas do modo brasileiro de ser preconceituoso e racista.
A definição de Nogueira deixa claro que a preterição e não a exclusão é a
base do preconceito de marca. Preterir significa desprezar, deixar de lado, ora a
preterição não deixa de ser uma forma de exclusão, apenas tornar-se mais sutil,
característica própria da ambigüidade da cultura brasileira, que tende a resolver
nossos antagonismo pela lógica conciliatória.
Tal conciliação acaba implicando em hierarquização, posto que os indivíduos
tratam-se cordialmente, mas mantém contatos marcados pela hierarquia. A pessoa é
tratada bem desde que não ultrapasse o lugar social destinado a ela.
A cor
5
do indivíduo é um princípio de operacionalização da “raça” que atua de
forma eficaz na cultura brasileira. Infelizmente como bem colocara Fernandes
(1978), o negro ainda não conseguiu romper com a associação entre a cor e posição
social ínfima.
A cor possui forte conotação social, podendo significar posição social ínfima,
marginalidade e padrões estéticos inferiores. A cor funciona como princípio de
racialização de nossa sociedade.
Nogueira comenta sobre um dito popular que traduz muito bem como a cor é
princípio estruturante de nossas relações sociais: “Em casa de enforcado não se fala
em corda.”
5
Ver GUIMARÃES, 1999.
110
Expressões como negro e preto são utilizadas para pessoas que não fazem
parte ou travam relações com o grupo discriminador. Aqueles que estão próximos
são morenos e mulatos. O uso da cor como critério de identificação constitui uma
ofensa e, portanto, deve ser evitado.
Com relação aos outros mecanismos como grau de instrução e ocupação,
aqui podem atuar políticas afirmativas ao promoverem e atuarem no sentido de
aumentar quantitativamente a representação das minorias nas universidades e
ocupações de destaque, essas combateriam o preconceito de marca.
A maioria dos portadores das marcas raciais concentram-se nas camadas
mais pobres da população. As políticas universalistas seriam de grande importância,
pois promoveriam, nesse caso, tanto os negros como os brancos pobres. Tais
políticas não inviabilizariam as ações afirmativas. Portanto, seria necessário que as
duas políticas caminhassem juntas.
Com relação às conseqüências do preconceito de marca na autoconcepção
de suas vítimas, a baixa autoestima só é combatida eficazmente na medida em que
se debatam tais questões na educação. Uma educação voltada para a diversidade e
valorização da cultura negra pode atuar eficazmente no combate aos estereótipos
presentes na sociedade brasileira. Tal política, nesse caso, é de cunho universal.
A auto-concepção também modifica-se na medida em que a minoria vê-se
representada nas ocupações de destaque da sociedade, portanto as ações
afirmativas seriam extremamente necessárias ao promoverem, afirmativamente, seja
pelas cotas ou metas, a representação da população afro-brasileira.
Andews (1996, p. 144) observa que :
São sempre melhores, a partir do meu ponto de vista, programas
classistas que ajudam às pessoas desprovidas, sem consideração de
cor por exemplo, algum programa de bolsas de estudo que permitam
às crianças das classes pobres irem a escola sem necessidade de
trabalhar. Mas nos patamares mais privilegiados da sociedade
brasileira por exemplo, na competição para entrar nas universidades
federais e estaduais -; as preferências raciais serão a única maneira
de promover uma maior presença negra. (ANDREWS, 1996, p.144)
Infelizmente o debate ainda no Brasil está marcado por duas polarizações. A
primeira reduz o debate entre ações afirmativa e políticas públicas universalistas. A
segundo é marcada pela redução do debate entre política pública de ação afirmativa
à cota. (SILVÉRIO,2002, p.91)
111
O nosso preconceito e a gritante desigualdade existente em nosso país
mostram que somente a combinação de ambos os tipos de políticas pode surtir
algum efeito. Políticas de ação afirmativa não invalidam as políticas públicas
universais. As ações afirmativas não podem ser reduzidas às cotas.
Observe que nos meios de comunicação de massa, a imagem vinculada a
padrões estéticos de beleza continua marcada pelo ideal estético branco e europeu.
Andrews (1996, p. 144) destaca a necessidade urgente de haver alguma
forma de ação afirmativa nos meios de comunicação de massa. A ausência de
representação da população afro-brasileira ou a apresentação desta em situações
que reforçam os estereótipos nesse meio pode significar que tal população não é
considerada relevante na vida nacional a não ser em situações ligadas ao esporte,
ao samba ou à figura da mulata.
Portanto, o nosso preconceito, apesar de suas especificidades, não invalida
as políticas de ações afirmativas. As ações afirmativas são mecanismos necessários
que atuam na prevenção de situações de desigualdades raciais. Além da prevenção,
tais programas são necessários para que se operem mudanças rápidas em nichos
ocupacionais e educacionais (universidades públicas, etc.) que por políticas
universais levariam um longo prazo para surtirem efeitos.
Para Silva (2003, p. 51), os programas de ações afirmativas, no caso do
ensino superior, são muito mais que oportunidades de acesso a este, significam o
reconhecimento e valorização da cultura e história dos conhecimentos produzidos
pelos afro-descendentes no Brasil.
Para Silvério (2003, p. 72) a adoção das ações afirmativas, principalmente as
cotas, seria uma forma de inclusão não subalterna de parcelas da comunidade
negra no mercado de trabalho em posições estratégicas e nas universidades. Isso
poderia representar uma rápida desracialização das posições de maior status e
renda desproporcionalmente ocupados por homens brancos. Portanto, a meta das
cotas não é racializar a sociedade ou a universidade, mas sim iniciar o processo de
desracialização.
3.3 Ações Afirmativas no Brasil
No Brasil, apesar da discussão sobre ação afirmativa assumir grande
destaque na última década do século passado, ela também não é nova. Em sua
112
dissertação de Mestrado, Moehlecke relata que o Deputado Abdias do Nascimento,
em 1983, propôs um projeto de lei ( Lei 1332) que visava a implementação de uma
ação compensatória para a população negra no Brasil.
Este projeto previa a reserva de 20% de vagas para candidatos a serviço
público, para mulheres e homens negros. Além disso, buscava criar incentivos nas
empresas do setor privado no sentido de eliminação da prática de discriminação
racial, como também incorporação ao sistema de ensino de um novo material
didático que mostrasse uma imagem positiva dos afro-brasileiros.
Uma outra referência à experiência de ação afirmativa no Brasil, segundo
Moehlecke (2000), foi a implementação das cotas partidárias para as mulheres pelo
Partido dos Trabalhadores, em 1991. Tal medida visava levar a uma maior
representação das mulheres nos cargos de direção do partido e acabou sendo
adotada por outros partidos políticos.
Os anos 80 marcaram profundamente o debate sobre a intervenção
governamental na problemática das desigualdades raciais no Brasil. Com a
redemocratização, começam a surgir possibilidades de mudanças. O governo de
Franco Montoro dá os primeiros passos ao criar, em 1984, o Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra. Tal entidade tinha como
objetivo planejar e implementar políticas de valorização que facilitassem a inserção
qualificada da população negra no mercado de trabalho. Pela primeira vez, o Estado
passa a reconhecer a existência da discriminação racial no Brasil, cabendo
responsabilidade ao setor público na sua superação. (JACCOUD; BEGHIN ,2002,
p.16)
Com a experiência paulista, outros Estados passariam a criar conselhos
estaduais ( Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Distrito
Federal) como também alguns municípios ( Rio de Janeiro, Belém, Santos e
Uberaba). Conforme a problemática vai sendo incorporada nas agenda política,
multiplicam-se as coordenadorias, assessorias afro-brasileiras, mas a maioria é de
caráter cultural. Tais entidades enfrentam vários problemas.
um conjunto de problemas, tais como; a) a difícil interação entre
militantes e funcionários públicos; b) a falta de uma estratégia comum
de atuação que possibilite a socialização de experiências exitosas; c) a
descontinuidade provocada pelas mudanças administrativas; d) a
ausência de uma precisa definição do papel dos órgãos; e) a
113
insuficiência de recursos orçamentários. (JACCOUD; BEGHIN ,2002,
p.16)
No início dos anos 80, é publicado, pelo IBGE, um estudo que possibilita a
visibilidade das desigualdades entre brancos e negros no mercado de trabalho.
Também são tombadas pelo Patrimônio Histórico o Terreiro de Candomblé Casa
Branca, na Bahia, a região da Serra da Barriga e o dia 20 de novembro passa a ser
considerado o dia nacional da Consciência Negra. É criada a Fundação do Memorial
Zumbi que congrega membros do movimento negro, da academia e setores
governamentais ligados ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
(JACCOUD; BEGHIN, 2002, p.16)
Em 1987, um ano antes da comemoração dos cem anos da abolição da
escravatura, o governo Sarney cria o Programa Nacional do Centenário da Abolição
para ser executado em 1988.
Jaccoud e Begin (2002, p. 8) ainda destacam a criação da Fundação
Palmares, que inicialmente era uma assessoria para assuntos afro-brasileiros da
Secretaria da Cultura do Ministério da Cultura. Segundo as autoras, a vinculação da
Fundação ao Ministério da Cultura reflete a visão marcadamente cultural da
problemática negra brasileira. Atualmente, além da questão cultural, a fundação
destaca-se na regularização das terras remanescentes de quilombos.
No Rio de Janeiro, em 91, o governo Leonel Brizola cria a Secretaria de
Defesa e Promoção das Populações negras que acaba sendo fechada pelo Governo
de Marcelo Alencar. Também é criada a Delegacia Especializada em Crimes Raciais
no Estado. Seguindo tal experiência, outros Estados (São Paulo, Sergipe e Distrito
Federal) criam instituições semelhantes, mas todas acabaram sendo extintas.
Cabe ainda destacar que, na década de 90, as organizações sindicais de
trabalhadores encaminham denúncia a OIT ( Organização Internacional do Trabalho)
sobre a existência de discriminação no mercado de trabalho. Tal denúncia acaba
gerando, no Ministério do Trabalho e Emprego, medidas e ações voltadas para o
combate do problema . Surge uma parceria, em 1995, entre o Ministério e a OIT, ao
se criar o Programa para implementação da Convenção 111 que visava colocar em
prática ações e políticas que promovessem a igualdade de oportunidades e de
tratamento no mercado de trabalho. Também em 1996 é criado por decreto
presidencial o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e
114
Ocupação (GTDO), composto por representantes do governo, trabalhadores,
empregadores e membros do Ministério do Trabalho. Segundo as autoras, há algum
tempo não há reunião.
As autoras destacam que o fato mais significativo da década de 90 ocorre a
partir da “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”,
quando os organizadores da marcha entregam um documento a Presidência da
República com um conjunto de reivindicações.
No mesmo dia, 20/11/95, é criado um Grupo de Trabalho Interministerial de
Valorização da População Negra (GTI) ligado ao Ministério da Justiça.
Paralelamente, em 1996, é lançado, pelo Ministério da Justiça, o I Programa
Nacional dos Direitos Humanos, que possui um tópico destinado à população negra.
(JACCOUD; BEGHIN, 2002, p.19)
O GTI tem, como objetivos, a elaboração de propostas de ações de combate
à discriminação racial, à elaboração de políticas públicas governamentais, estimular
ações de iniciativa privada, apoiar a elaboração de estudos atualizados, estimular
iniciativas públicas e privadas que qualifiquem e valorizem os negros nos meios de
comunicação.
6
As autoras destacam que o GTI apresenta os primeiros resultados a
Presidência da República em 1998. Atualmente não foi extinto mas encontra-se
desativado.
Em 1997, ocorre a criação na Assessoria Internacional do Ministério do
Trabalho e Emprego do Programa Brasil, Gênero e Raça. Como conseqüência da
iniciativa, são implementados núcleos de promoção da igualdade de oportunidades e
de combate à discriminação no emprego e na profissão nas delegacias e
subdelegacias regionais do trabalho. (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 20)
Cabe destacar que outras entidades do governo incorporam a demanda por
medidas concretas de combate à discriminação racial. Jaccoud e Beghin destacam o
papel do Ministério Público e do trabalho em parceria com o Ministério do Trabalho e
Emprego. Entre suas metas tal entidade propunha-se à eliminação de todas as
formas de discriminação racial. É assinado também protocolo com o objetivo de
trocar informações e denúncias sobre discriminação e racismo no mundo do
trabalho.
6
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2000 apud JACCOUD; BEGHIN, 2002.
115
Os anos de 2000 a 2002 destacaram-se pela preparação do Brasil para sua
participação na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância promovida pela ONU e realizado em Durban. Além disso, o
Ministério do Desenvolvimento Agrário cria seu programa de ações afirmativas. O
Poder judiciário também se destaca na incorporação dessa problemática ao
considerar constitucional o princípio de ação afirmativa.
Seguindo a mesma tendência, o Tribunal Superior do Trabalho, em 2002,
implementa uma reserva legal de vagas nos contratos com terceiros que garante a
participação de, no mínimo, 20% de trabalhadores afro-descendentes nas empresas
que tiverem convênio com este órgão governamental. (JACCOUD; BEGHIN, 2002,
p.23)
É neste ambiente de mudanças do final da década de 90 e início do novo
milênio que, no município de Uberaba, também se institui um dos primeiros
programas de ações afirmativas do Brasil. Como resultado de todo esse movimento
e da articulação do CENEG, com Poder Executivo Municipal e Câmara Municipal de
Uberaba , o programa foi instituído em 21 de fevereiro de 2002. O primeiro
parágrafo da lei n° 8.200, apresenta como objetivo a criação de um proposta de
ação afirmativa que siga os princípios do Programa Nacional dos Direitos Humanos
no que se refere a proteção e promoção dos direitos dos afro-descendentes, das
mulheres e das pessoas com deficiência.
O programa estabelece, como medida administrativa e de gestão estratégica,
a garantia de igualdade de oportunidades em que os Poderes Executivo e
Legislativo deverão observar para o preenchimento de cargos de direção e
assessoramento superior, a participação de afro-descendentes, mulheres com
deficiência em proporção ao total de número de cargos:
a) afro-descendente igual a 20% (vinte por cento);
b) mulheres, 20% (vinte por cento); e;
c) pessoas com deficiência, 5% (cinco por cento).(
UBERABA. Lei
n.8200. 2002,p. 21-22.)
O programa observa que, nas licitações públicas, deverão ser observadas
como critério adicional, a preferência por fornecedores que comprovem a adoção de
políticas de ações afirmativas.
116
No artigo 6 do referido programa institui-se um estatuto de igualdade que
tentará viabilizar as seguintes propostas: um diagnóstico sobre a situação socio-
econômica dos servidores municipais; a necessidade de um corte vertical para a
ocupação de cargos estratégicos para negros e afro-descendentes; buscar critérios
de desempate na concorrência pública para as empresas que tiverem maior
diversificação em gênero e raça, que as matérias institucionais vinculadas aos meios
de comunicação de massa busquem uma diversificação de raça e gênero;
desenvolver programas de orientação e apoio ao empreendorismo direcionados aos
negros e afro-descendentes; observar nas empresas que prestam serviços ao
município a contratação de pelo menos vinte por cento de negros.
Quanto à questão educacional, a reserva de vinte por cento de vagas da
Faculdade de Educação de Uberaba para negros e afro-descendentes, a criação de
um fundo de amparo aos estudantes carentes, a instituição de um programa de
qualificação de docentes que possibilite um melhor tratamento da questão de gênero
e raça na sala de aula. Na questão da saúde, o desenvolvimento de um programa
para o tratamento da anemia falciforme.
O Estatuto de Igualdade também estabelece a necessidade de implantação
de políticas universalistas que contemplem as camadas populares em conjunto com
políticas afirmativas que atendam a comunidade negra e afro-descendente.
O município de Uberaba reflete uma nova postura do Governo, que mudou a
agenda de combate à discriminação e ao racismo no Brasil a partir do seu
reconhecimento de fator gerador de desigualdades. Tal mudança só pode ser
compreendida à luz da influência da luta dos grupos do movimento negro no Brasil,
como também da pressão externa dos organismos internacionais, além da influência
das lutas dos negros americanos e do processo de desarticulação do apartheid na
África do Sul.
Cabe ressaltar que, no retorno da conferência de Durban , o governo federal,
através de decreto presidencial, cria o Conselho Nacional de Combate a
Discriminação (CNDC) no âmbito da Secretaria da Justiça de Estado e dos Direitos
Humanos. Tal conselho tinha, como objetivo, a criação de políticas públicas
afirmativas de promoção da igualdade e de proteção aos direitos humanos do
Ministério da Justiça. (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 23)
Jaccoud e Beghin (2002, p. 23) ainda ressalta o projeto de Lei 3198/00 de
autoria do Deputado Paulo Paim com o objetivo de instituir o Estatuto da Igualdade
117
racial. Em setembro de 2001, seria instalada uma comissão para apreciação do
projeto.
Ao analisar o estatuto, observa-se claramente que o seu objetivo é a inclusão
da dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado. O projeto
define a discriminação racial como quaisquer tipos de exclusão, distinção ou
preferência baseada na raça e cor e que acaba anulando ou restringindo o gozo de
direitos e liberdades fundamentais no campo econômico, político e social. (BRASIL.
CONGRESSO. SENADO. PROJETO DE LEI, 2000 apud in: .: SANTOS; LOBATO,
2003)
Considera desigualdades raciais como “situações injustificadas de
diferenciação de acesso e gozo de bens, serviços e oportunidades, na esfera pública
e privada.” (BRASIL. CONGRESSO. SENADO. PROJETO DE LEI, 2000 apud in:
SANTOS; LOBATO, 2003, p.161)
O estatuto também utiliza do termo afro-brasileiro na definição de seus
beneficiários, considerando as pessoas que se classificam como negras, pardas e
pretas. Ainda nas Disposições Preliminares, no parágrafo 5, encontra-se a definição
de ação afirmativa caracterizada como programas e medidas especiais que são
adotadas pelo Estado para correção das desigualdades raciais e promoção da
igualdade de oportunidades.
Os termos reparação, compensação e inclusão é colocada como diretriz
político-jurídico do Estatuto bem como a valorização da diversidade racial brasileira.
O estatuto também precisa quais serão os campos de desigualdades raciais que os
programas de ações afirmativas devem atingir: educação, cultura, esporte, lazer,
saúde, trabalho, mídia, terras de quilombos, acesso à justiça, financiamentos
públicos, contratação pública de serviços e obras e outras. (BRASIL. CONGRESSO.
SENADO. PROJETO DE LEI, 2000 apud in: SANTOS; LOBATO, 2003, p.163)
Fica claro, pela leitura, que as ações afirmativas seriam necessárias para
correção das desigualdades raciais derivadas do passado escravocrata e das
demais práticas discriminatórias do presente. No capítulo que dispõem do direito à
educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, no artigo 20 o estatuto institui a disciplina
de “História Geral da África e do Negro no Brasil”, colocando-a como disciplina
fundamental nos três níveis de ensino. O estatuto também dispõe sobre a
regulamentação das terras de comunidades remanescentes dos quilombos,
118
garantindo a propriedade da terra a essas populações. (BRASIL. CONGRESSO.
SENADO. PROJETO DE LEI, 2000 apud in: SANTOS; LOBATO, 2003, p.167)
O Cap. VII dispõe sobre a criação de um sistema de cotas. Seriam
estipuladas um percentual de 20% de vagas para a população afro-descendente nos
concursos públicos, bem como nos cursos de graduação em todas as instituições de
ensino superior e nos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante de Ensino
superior. (BRASIL. CONGRESSO. SENADO. PROJETO DE LEI, 2000 apud in:
SANTOS; LOBATO, 2003, p.177)
No Capitulo VIII, sobre os Meios de Comunicação de Massa, coloca-se a
necessidade da produção veiculada aos órgãos de comunicação valorizar a herança
cultural e participação dos afro-brasileiros na história do país. Dispõe sobre a
necessidade desses órgãos de incluir a participação de artistas afro-brasileiros em
proporção não inferior a 20% do total de artistas e figurantes.
O Estatuto da Igualdade Racial é um projeto que alavanca consideravelmente
as ações afirmativas. O problema é que, no Brasil, tradicionalmente, costumam
existir grandes avanços legais que não passam de mera forma jurídica. Há
necessidade de passar do formalismo à prática social dessas legislações.
Em 13 de maio de 2002, através de decreto presidencial, é criado o programa
nacional de Ações Afirmativas que fica sob a coordenação da Secretaria de Estado
dos Direitos Humanos. O programa objetiva a implementação de uma série de
medidas no âmbito da administração pública federal que busque a participação de
afro-descendentes, mulheres e portadores de deficiência física. (JACCOUD;
BEGHIN , 2002, p. 24)
4 Concepções, problemas e soluções na visão das lideranças e dos estudantes
Para uma melhor compreensão das concepções do Centro Nacional de
Cidadania Negra sobre os problemas enfrentados pela população afro-descendente
no Brasil bem como as possíveis estratégias de solução adotadas pela instituição
torna-se necessário um exame das visões das principais lideranças sobre tais
problemas.
Para tanto foi elaborado um roteiro de entrevista qualitativa pelo qual se
buscou apreender a visão dessas lideranças sobre os principais problemas
enfrentados pela população afro-descendente no Brasil. A entrevista também tinha
como objetivos descobrir a visão das lideranças sobre preconceito e discriminação e
as estratégias para combatê-los. Também se buscou apreender o significado das
chamadas ações afirmativas e se, na visão dessas lideranças, tais ações seriam
eficazes no combate à discriminação e ao racismo no Brasil. Sua concepção de
identidade, os aspectos positivos e negativos da instituição também foram objeto do
roteiro de entrevista.
Do CENEG foram entrevistas três das principais lideranças, um dos membros
do Conselho Afro de Uberaba e um ex-membro do CENEG. Também foi
entrevistada uma professora da rede municipal de ensino, com o intuito de observar
sua visão da instituição e dos progressos das crianças, que eram seus alunos e
participaram dos cursos do CENEG. Serão atribuídos nomes fictícios a todos os
entrevistados. As lideranças do CENEG serão identificadas por André, Marcos e
Cristina. O membro do Conselho Afro de Uberaba por João, o ex-membro como
Thiago e a professora como Giovana.
Após a análise dessas entrevistas, passarei a analisar o depoimento de
alguns estudantes que participaram no curso pré-vestibular da instituição. O curso
pré-vestibular foi escolhido devido à grande visibilidade que este tem na cidade e
principalmente por ser um dos mais procurados da instituição. No roteiro dos alunos
buscou-se apreender os principais problemas enfrentados pelos jovens, se na sua
visão existia diferença entre os problemas enfrentados pelo jovem branco pobre e o
jovem negro pobre, sua visão sobre as chamadas ações afirmativas, sua concepção
de identidade e os aspectos positivos e negativos do Centro Nacional de Cidadania
Negra. Foram entrevistados sete jovens, dentre eles quatro jovens que se auto-
120
identificavam como negros, uma como parda e dois como brancos. Os jovens negros
respectivamente serão identificados como Patrícia, Ariadne, Bruno e Helena. A
Jovem parda como Andreia, e os brancos como Ana e Lucas. Esses jovens já
haviam feito o curso e atualmente estavam cursando ensino superior. Sua idade
oscilava entre vinte e trinta e sete anos. Os nomes também são fictícios.
4.1 Problemas da população afro-descendente no Brasil
A falta de participação na sociedade como um todo, a pobreza, a forma como
se deu a abolição da escravatura no Brasil bem como o imaginário sobre o negro na
sociedade atual são os principais problemas enfrentados pelos afro-descendentes
no Brasil, na perspectiva dessas lideranças.
Nas palavras de João, um dos membros do Conselho Afro de Uberaba: “ São
os problemas antigos de sempre, a população negra é a população carente que não
chegou ainda no seu objetivo de formação, de participação cultural, ter subsídios
para uma sobrevivência melhor para mim é isto...”
Observe que João utiliza a expressão “antigos de sempre”, na sua os
problemas não se modificaram, pelo contrário, eles permaneceram. No depoimento
de André um dos líderes do Centro Nacional de Cidadania Negra, o grande
problema que originou a situação social dos negros de hoje deve-se à forma como
se deu nosso processo de abolição: “com relação a este problema afro-descendente
no Brasil é um problema antigo desde a libertação da escravidão, que na minha
visão foi uma coisa muita boa, ótima sem dúvida nenhuma, mas da maneira que foi
feita, as vezes prejudicou a ascensão do negro, porque esta libertação foi dada
como esmola e não por problemas, vamos dizer jurídico, e tudo isto, em
conseqüência disto o que ocorreu que o negro ficou liberto, ele ficou liberto sem
emprego, sem onde trabalhar...”
Na visão de Marcos, outro líder do CENEG, fica patente que além da questão
do estereótipo, há ainda o grande problema da não aceitação da necessidade de
políticas específicas para o combate da situação em que se encontra a população
negra, bem como a existência de um racismo camuflado, por isso mesmo difícil de
ser combatido : “Além do estereótipo social que habita no imaginário,
consequentemente fica muito mais adormecido no inconsciente das pessoas, além
de ter que conviver com o estereótipo é que a sociedade não aceita políticas
121
específicas para a comunidade negra, acha que somente a política universalista é
bastante para contemplar, consequentemente, ela sofre com a questão da
marginalidade social, falta de escolaridade, a menor remuneração em relação a
outras etnias no Brasil e, consequentemente, a falta de visibilidade social que a
gente entende que políticas universalistas não têm contemplado a comunidade
negra como um todo. .... eu costumo dizer que o Brasil não tem problema racial, o
Brasil tem problema étnico, é tão verdade que ninguém põe a mão no peito de um
branco perguntando qual sua origem racial, então veja que a questão étnica no
Brasil que é a questão do olhar, a pessoa acha, conceitua e a partir do conceito que
tem do olhar, ela coloca a pessoa como branca ou negra, eu vejo como grande
problema da comunidade negra, um problema étnico.
É uma discriminação cultural, é uma cultura ideológica, uma ideologia, no sentido de
ter posto na sociedade que não há problema racial, não tem problema no Brasil, não
tem preconceito no Brasil, o negro sabe que há preconceitos, e todas as vezes que
tenta alertar a sociedade sobre este preconceito, a sociedade o vê como uma
pessoa revoltada, que está se subestimando a si mesmo, na sua condição de negro
e com grande detalhe, quando a sociedade quer definitivamente encerrar o debate
diz que os próprios negros são racistas com os próprios negros. Então, essa coisa
psicológica que é muito difícil, se nós tivéssemos uma segregação aparente ou
butralizada, a luta seria com maior clareza, vamos assim dizer. Como ela é
subrepíticia, o preconceito no Brasil é subreptício, a luta se torna também invisível e
não há uma pior do que você não ver o seu inimigo sabendo que ele está no mesmo
ponto que ele está.”
Para Thiago, ex-membro do CENEG e militante na cidade de Uberaba, o
principal problema enfrentado pela população afro-descendente é a falta de
conscientização:” São vários problemas, que a gente teria que ter um dia para estar
discutindo, para estar levantando os problemas, agora acredito que o que vai
melhorar essa questão seria a conscientização dos afro-descendentes em primeiro
lugar, aceitar a questão de ser afro-descendente e valorizar o aspecto cultural. A
nossa cultura ela é bonita, ela tem que ser valorizada, ela tem que deixar de ser
cultura de fundo de quintal e vir para frente. Então a partir do momento, que nos
aceitarmos com dignidade, a nossa cultura, então muita coisa vai mudar.”
A questão do racismo camuflado também é acentuado pela professora
Giovana da rede municipal, tal racismo só se manifesta efetivamente nas situações
122
de competições: “A primeira coisa assim que eu vejo, o principal é o racismo
camuflado, desde que você não esteja concorrendo a um cargo com nenhuma
pessoa, seja mais um brasileiro que seja desapercebido pela multidão, você é aceito
como uma pessoa normal. Mas desde que você começa a ter o seu dom de
inteligência, começa a se destacar numa função que uma pessoa com descendência
branca vê que você é um concorrente forte com ele, aí você tende a ser
discriminado, mas é uma discriminação velada ao acontecimento, e a discriminação
racial em termos de cor, também, eu vejo essa questão muito assim em relação à
formação de carreira. Você pode até ter assim um amigo negro, mas desde que
esse amigo negro não faça parte de sua família, você está me entendendo ? quando
você chega a um relacionamento ao nível de casamento ou de um contrato social,
as coisas se tornam mais sérias porque aí você enxerga que o outro é negro e não
pode estar fazendo parte de sua família que porém a sua família tem raízes e que
tem que seguir as funções que o mundo impôs, isso em função do mundo, o mundo
que impôs essa questão de raça.”
4.2 O combate a discriminação e ao racismo: as políticas universalizantes e as
específicas
Com relação às estratégias de combate à discriminação e ao racismo, as
opiniões se divergem, mas maioria concorda da necessidade da combinação de
políticas de cunho universal e políticas específicas.
Na visão de João, membro do Conselho Afro de Uberaba, é necessária a
utilização das duas estratégias, não uma oposição entre elas, mas sim uma
complementaridade: “São duas coisas distintas, as ações afirmativas são
necessárias, e o combate a pobreza também, as duas coisas ao mesmo tempo têm
que ser associadas, não pode dissociar. “
Marcos também acredita na necessidade das políticas de combate à miséria,
mas ressalta a necessidade de políticas específicas como as cotas.porque a visão
é a seguinte: vamos combater a miséria, vamos combater a forme porque ali nós
estaremos combatendo a miséria negra, tudo bem, e a ascensão dele onde é que
fica ?, então, além de combater isto que é fundamental, é importante nós termos
caminhos alternativos para que haja uma ascensão, por exemplo, se as cotas
estivessem sendo discutidas para Office-boys ninguém estaria criando tanta
123
polêmica, quando é para a universidade, a faculdade, porque lá há uma luta de
classes muito bem estabelecida que é a perda de espaço para segmentos étnicos
brancos e quanto para office-boys, cabeleireiros, para gari, ninguém está
preocupado.”
Para Marcos as ações afirmativas seriam instrumentos necessários para
resgatar a dívida histórica com a população afro-descendente com relação ao nosso
passado escravista.
“...duas questões fundamentais que a sociedade tem que debater e não debate:
primeiro ação afirmativa em relação ao negro; se o Brasil foi signatário da
Conferência de Durban que declarou a escravidão um crime contra a humanidade,
este crime tem que ser ressarcido, essa sociedade tem que ser ressarcida deste
crime que houve, então uma coisa primeiro chama-se restabelecer uma relação
onde houve um crime, tudo bem, então o Brasil foi constituído sócio de uma forma
social e econômica em cima de um crime...então, nós temos que entender que a
ação afirmativa, primeiro nós estamos nos reportando à algo que é de direito do
Brasil ser ressarcido na sua maioria negra. Segundo: se você pegar a evolução
socioeconômica deste país da libertação dos escravos, que não é uma libertação é
muito mais uma abolição, até 2000 o gráfico é um gráfico ascendente e paralelo, não
vou negar que houve uma melhoria da condição de vários brasileiros, mas a linha
paralela entre brancos e negros se mantém ou seja: estA diferença é mantida, então
nós precisamos de determinadas políticas específicas para gerar uma
igualação...então eu entendo que a política de ação afirmativa é um instrumento de
geração de igualação, porque a igualdade por si só como está na constituição, ela
está sendo ineficaz neste aspecto. ....As políticas afirmativas não significam a
eliminação das políticas universalistas, elas tem que serem mantidas.”
As divergências sobre as ações afirmativas principalmente em sua
modalidade mais polêmica, as cotas, geram diferentes visões entre as lideranças.
Para André, as cotas poderiam inclusive gerar mais preconceitos como também
diminuir a auto-estima das pessoas beneficiadas. Por isso ele acredita que o
trabalho do CENEG é essencial, pois recupera a auto-estima e principalmente
qualifica os afro-descendentes para uma melhor competição por uma vaga na
universidade:
“ ...eu pessoalmente na minha maneira de pensar, cotas para negros nas
universidades que são políticas afirmativas ao nosso ver é uma maneira errada, isto
124
só serve e servirá para fortalecer o preconceito e naturalmente diminuir ainda mais a
auto-estima do negro. Porque a pessoa passa a dizer você está aqui porque você
ganhou a vaga, então isto para nós é muito ruim. Na minha visão, este é um
exemplo de política afirmativa americana que eu pessoalmente não concordo em
aspecto algum, este tipo de ação afirmativa no aspecto de cotas para negros nas
universidades, então justamente por isso que eu acho que o ponto forte nosso do
CENEG que entre todas as coisas, o principal fator foi de recuperar a auto-estima,
por isso no CENEG nós temos o curso pré-vestibular, para preparar o negro dar
qualidade e condições de disputa de vagas, então acho que uma ação afirmativa
honesta e tranqüila, seria dar apoio para o negro nestes cursos pré-vestibulares para
prepará-los bem, para enfrentar em qualidade e condições com outras raças nas
disputa das vagas na universidades ...”
Observe que André qualifica como uma ação afirmativa mais “honesta e
tranqüila” a postura do CENEG. Thiago, ex-membro do CENEG e militante também
é contra as ações afirmativas nos moldes das cotas: “Há prós e contras, para falar
relacionado a tudo isso, eu acho que deveria se fortalecer o ensino básico, não só
para o negro, mas para o excluído de uma certa forma, porque se você notar as
faculdades federais são feita para “os filhinhos de papai” , não é verdade ? , porque
eles podem fazer, freqüentar uma boa escola particular, pode freqüentar um bom
cursinho, e você sabe da decadência do nosso ensino público, então nós sabemos
que um aluno nosso do ensino público, seja estadual ou municipal, ele jamais vai ter
condição de competir em igualdade com o colégio particular, citando aí os Maristas,
e aí por diante, então quer dizer as vagas servindo aí para aqueles que realmente
podem pagar a faculdade, então eu acho que deveria estruturar a base, melhorar o
ensino profissional, é o ensino tanto municipal como estadual, quer dizer para que
as pessoas, os excluídos pudessem entrar em condições de igualdade, na faculdade
disputar, e eu acho que não teria essa questão de racismo, e essa questão das
cotas, eu acho que isso vai continuar gerando racismo, porque muitas das vezes o
filhinho de papai, que perde a vaga, porque teve que contemplar o negro e esse
negro entrou por causa da questão das cotas, vai gerar polêmica, gozações, e eu
acho que não é legal. Agora, entrando pela porta da frente, disputando com
igualdade e assumindo o seu lugar de fato e direito, eu acho que seria o mais viável.
Então, na realidade Uberaba já está tendo esse movimento, com cursinhos, e eu
acho que não é pelos cursinhos, porque aqui em Uberaba nós temos uma faculdade
125
que é federal e as outras todas são particulares, então todo mundo que freqüenta o
cursinho aqui, ele vai sentir dificuldade de passar numa faculdade federal, mas ela
passa numa particular, mas depois ele não tem como, ele não tem condições de
sobrevivência, não tem como pagar a faculdade, então é uma coisa que precisa ser
repensada, essa questão das cotas, eu acho... eu acredito que tem que fortalecer o
ensino oficial, tem que ser de qualidade como foi uns tempos atrás, não é verdade.”
Observe que Thiago ressalta a necessidade de ações não somente para os
negros, mas para os excluídos. Ao que parece, existe uma grande preocupação com
a inclusão, independente da condição étnico-racial, fato esse que será ressaltado
mais adiante.
4.3 A inclusão independente das “cores”: a necessidade de unir ao invés de dividir
Uma das questões mais importante observadas nos vários depoimentos é a
preocupação das lideranças, como também dos outros entrevistados em trabalhar
com a população branca. Todos ressaltam a necessidade de se trabalhar não só os
negros, mas os excluídos de uma forma geral. Para essas pessoas, o negro foi
historicamente excluído, mas nem por isso poderia se reproduzir tal fato num Centro
de Valorização da Cidadania Negra. A inclusão dos brancos pode levar à criação de
novos aliados que poderão ajudar na construção de uma sociedade mais justa e
igualitária.
Nas palavras de André: “Nossa ótica, por exemplo, é claro que a maioria deve
ser negra, mas são pessoas de baixa renda também, senão nós estaríamos fazendo
uma discriminação às avessas, está aberta a qualquer pessoa de baixa renda que
precise, um nome comum que se usa muito hoje: os excluídos, vamos dizer assim.”
Marcos, ao comentar a questão da miscigenação no Brasil, ressalta a
necessidade da participação no Movimento Negro de pessoas de várias condições
étnico-raciais, na medida que essas pessoas participam começam a surgir a
possibilidade do Movimento negro agremiar novos aliados:
“.... a miscigenação ela pouco enriqueceu e houve um grande equivoco do
movimento negro quando ele não aceitava o mulato na sua participação, e hoje o
movimento negro tem percebido que é muito importante tanto a participação do
negro, a participação do chamado pardo e a participação do homem branco
também, porque quando você coloca a luta negra na boca do branco é sinal que
126
você tem novos aliados estratégicos no combate desta discriminação. Agora a
miscigenação em si, não enriqueceu nada não, eu não acredito.”
Cristina ressalta a necessidade de não se discriminar, há pessoas brancas
carentes que também necessitam de assistência:
“....o que você vai fazer com uma mãe branca, que chega lá com o filho, precisando
de um curso de informática, e vocês não vão poder oferecer porque ela é de pele
branca, então o problema é muito grave, e realmente, nós recebemos lá pai, mãe, de
pele branca, mãe chorando porque pai desempregado, mãe desempregada, e o
filho, a moça precisa de um emprego, agora o centro não iria receber pelo fato da
pessoa ter pele clara ? então é muito, muito complicado, na prática. .... “
Thiago também ressalta a importância do CENEG trabalhar com os brancos
para evitar o “revanchismo”: “....eu acho que tem que ser para a comunidade negra e
tem que ser para os brancos também, observando quem está alijado do processo,
porque então vai entrar naquilo que eu disse, cair em revanchismo, “não, o curso
tem que ser só para negro!”, eu já não vejo isso dessa forma, eu acho que nós
estaríamos dando a volta por cima, mostrando, o outro lado da moeda, então eu
acho que é por aí. Eu acho que nesse aspecto o CENEG está corretíssimo. “
A professora Giovana observa que as crianças que participaram dos cursos
do CENEG ganharam auto-estima, a participação de crianças brancas e negras
levou a uma mudança nas concepções de ambas: É um ponto positivo, o
relacionamento das duas caminhando juntas é muito bom. Não tem uma divisão e
outra coisa, as nossas crianças negras também, estão olhando os nossos alunos
brancos com outros olhos. Tem isso também professor, porque muitas vezes, os
nossos alunos vêm de casa, que o branco é que é o culpado de toda situação que
ele vive, você já ouviu isso ? Porque aí o pai, só teve aquelas informações que foram
passadas do avô, do tio e da tia, e o pai continua trabalhando na mesma função do
avô, do tio e não tem chance de crescer, aí isso, torna-se um ciclo vicioso, mas isso
foi há quanto tempo? Há 500 anos, hoje nós estamos falando do negro atual, e a
dificuldade de você trabalhar o negro atual hoje, não tem dados, nos temos dados
de todo tempo histórico passado. Agora está chegando algumas coisas que são
poucas. Não te oferecem uma literatura, um referencial de suporte, uma opção
teórica que seja verdadeira.”
127
Quando perguntada sobre as mudanças nas crianças brancas que
participaram dos cursos do CENEG, ela ressalta a mudança no uso das palavras e
no tratamento delas com relação as crianças negras:
“Tendo mais cuidado em usar as palavras, e quando são usadas, elas falam assim,
não mais ...porém ele é negro mas é o meu amigo, ...... a criança é negra mas não
faz parte da minha vida, é problema do negro, hoje não é problema do negro e do
branco. As formas como o CENEG está falando, tem uma visão melhor, mudou.”
Cristina também observou a mudança nas crianças brancas que participaram
no esporte solidário:
Passam a enxergar e ter cuidado com a questão, então você pega o projeto esporte
solidário, que é um projeto, que atendeu mais de 1500 crianças, quase 2000
crianças, todas de escola pública, e crianças realmente de poder aquisitivo, muito
pequeno, mas muito pequeno, famílias problemáticas, quando elas vão para o
CENEG, você conversa com as crianças, o comportamento delas, é completamente
destrutivo, é aquela criança preconceituosa, discrimina o coleguinha, ele começa a
trabalhar e freqüentar o CENEG, quando ele saí, quando vai chegando ao final do
projeto é a coisa mais linda, é a coisa mais linda, sabe você não acredita o quanto
ele se educa, o quanto ele adquire aquele sentimento de respeito. Como ele trata o
colega negro. Você fica assim, não é possível, será que nós conseguimos isso, ...”.
Uma das atividades mais ilustrativas do Ceneg é o dia da Beleza, segundo
Cristina, nessa ocasião as crianças brancas e negras, estando juntas, aprendem a
vivênciar e respeitar a diversidade dos padrões de beleza:
....o dia da beleza no CENEG, são os cabeleireiros que se prontificam, já tem os
salões da cidade, elas ficam o dia todo no CENEG, então ali eles arrumam o cabelo,
faz trancinha, os que querem alisar a mãe autoriza, cortam o cabelo, as crianças
ficam assim lindas maravilhosas, no dia da beleza, aquilo ali a criança branca ela vai
vendo e respeitando, o cabelo dessa é crespo, é assim, é raça dela, não o meu é
liso, é minha raça, eles vão entendendo,... Tudo ao mesmo tempo. Tudo junto
convive com aquilo ali, a coleguinha tem um cabelo hipercrespo, Às vezes até
quebra o pente, a outra tem o cabelo super liso, olhos azuis, então eles vão
aprender. Tem um psicólogo que sempre vai dar uma palestra, sobre brincadeira
aquela coisa toda, então eles saem dali com uma outra concepção, inclusive
cobrando dos pais, quando os pais, tem o hábito da discriminação, ....trabalhar com
a criança, porque a própria criança, cobra do pai, ....”.
128
Como se pode observar, aqui aparece uma especificidade, os cursos do
CENEG, apesar de serem voltados para população negra, não excluem a
possibilidade da inclusão de pessoas brancas ou os chamados carentes. O CENEG
parece atentar para o surgimento de instituições ligadas ao movimento negro que
trabalha com diversos critérios de exclusão. Como bem ressaltou Peter Fry
(2002:40), muitas das instituições que surgiram a partir da discussão das ações
afirmativas acabaram combinando as preocupações com a desigualdade entre as
pessoas de cores diferentes e pessoas de classes sociais diferentes, esse arranjo
poderia ser interpretado como uma certa especificidade das políticas de combate à
discriminação e ao racismo no Brasil.
4.4 A questão da identidade
No depoimento das lideranças, do membro do Conselho Afro e do ex-membro
da instituição, ser negro está associado à luta, à resistência, além disso, é ressaltada
a relação entre ser negro e beleza.
André, ao falar de sua identidade, ainda coloca a questão do retorno a África
e como isso foi importante para construção de sua negritude:
O problema de ser negro para mim, felizmente com o passar do tempo,
antigamente, naturalmente, a gente tinha baixa auto-estima, mas depois que evolui
educacionalmente, então para mim passa a ser um orgulho, ser negro, um orgulho,
tem mais outro aspecto que poucos negros tem esta oportunidade de voltar, por
exemplo, as suas origens, ir a África. Então você chega na África aquilo te
emociona, porque é um lugar que você veio dali, e a gente tem que por na cabeça; e
que negro é bonito,....eu tenho orgulho de ser negro e acho que negro é bonito.”
Para João, membro do Conselho Afro de Uberaba, não há diferença entre ser
negro e ser branco, colocando-se inclusive enquanto adepto a miscigenação
ocorrida no Brasil: ”Eu acho que não há diferença nenhuma, como eu sou adepto da
miscigenação, eu acho que o negro deve procurar o seu espaço sem se preocupar
se ele é o melhor, pior, ou diferente. O negro é negro como o branco é branco. ....A
129
única coisa que eu acho é que não se deve fazer é ser falso, porque tem muitos
negros que numa resposta desta diria, tem que engrandecer, eu sou negro, amanhã
ele está ali. Eu nunca vou falar que um negro é melhor que o branco, eu acho que
este sentimento é pessoal, de pessoa à pessoa, então se você encontra uma cara
metade de outra cor, isto é normal, a única coisa que eu procuro brigar pelas
pessoas da minha raça é que eu quero ver todo mundo com igualdade racial,
cultural e social e é está é a briga.”
Thiago, ex-membro do CENEG, ressalta o sofrimento que ser negro na
infância representou, mas que a consciência da negritude mudou sua visão: Ser
negro, eu na época da infância, eu por questão de influências, culturais, influências
da cultura do branco, eu me sentia às vezes até envergonhado, nessa questão de
ser negro, de não poder ter o que o meu colega branco tinha, da minha mãe e meu
pai, não poder doar inclusive, brinquedos, época de natal, relacionado com o que ele
obtinha. Então, eu acho que se eu fosse um pouco mais claro, talvez a coisa seria
diferente. Hoje não, graças a Deus, eu tenho essa consciência que a negritude, ela é
bonita, ser negro, é ser bonito como qualquer outra raça, a branca, porque a gente
contribui para a formação da cultura brasileira, para formação da política brasileira,
da sociedade brasileira, então eu acho que ser negro é ser bonito, é ser belo.
Cristina ressalta a relação entre a resistência e ser negro, bom como seu
orgulho de ser negra:
Ser negro para mim é um motivo de orgulho, é uma resistência diferente, eu não
quero com isso dizer, que é superioridade. De forma nenhuma, mas...(silêncio, ela
se emociona e fala com a voz trêmula) por tudo que a gente passa, eu acho que é
símbolo de resistência. ( Silêncio) Eu acho isso.” Nesse momento, ela não
consegue conter a emoção.
No depoimento de Marcos, existe uma dupla identidade, que alguns poderiam
interpretar como contraditória ou falsa consciência, mas que pode demonstrar como
uma certa complexidade de nossas relações raciais.(SANSONE, 2003, p.18)
Ou ainda nossa negritude não pode ser interpretada como uma categoria
racial fixada numa diferença biológica, mas a identidade racial e étnica pode ser
baseada numa multiplicidade de fatores.(SANSONE, 2003, p. 25). Vejamos o
depoimento:
“Eu etnicamente me defino como pardo com identidade negra, eu tenho uma
identidade negra. ...Sem me historiar porque as pessoas sempre gostam de dizer
130
que tem um negro na família que ele nunca é negro, há sempre alguém, há alguém
na família, então deixando minha árvore genealógica de lado, etnicamente as
pessoas podem me ver como branco ou negro, isto o outro, agora, eu etnicamente. a
minha cor, eu me sinto pardo com uma identidade negra. O que é se sentir numa
identidade negra ? É estar próximo das manifestações culturais negras e estar
próximo à tudo aquilo que é próprio do negro, na sua formação ideológica é tudo isto
e nada disto. O que é, então ? é
sentir que existe a exclusão social pelo olhar do outro, que existem barreiras sociais
impostas à comunidade negra, é saber que é preciso ter uma luta que até às vezes
se torna absurda porque nem todos querem aderir a ela, mas que é preciso mudar,
que é preciso criar uma sociedade tolerante, que é preciso criar uma sociedade
tolerante, que é preciso criar uma sociedade justa e não mais justa, que está
sociedade justa e este país só se tornará uma nação quando os negros estiverem
incluídos no seu todo ... é por is so que eu me vejo na minha luta, no meu espaço, no
meu cotidiano como ser negro.”
A professora Giovana ressalta que ser negro é ter consciência da participação
do negro na construção da história desse país:
“Ser negro é ser um ser que faz parte da história desse país, ser negro é ser um ser
atuante, ser negro é não ter medo, a gente saber enfrentar os problemas que estão
na vida de todo negro, e saber que esses problemas são visíveis tanto para os
negros como para os brancos, não tentar fazer de ser negro um suporte, uma
escada a mais, acho que ser negro é poder chegar num pé de igualdade com
qualquer pessoa, que esteja perto de mim, é ser uma pessoa que possa transmitir
para as pessoas calma, sossego, sinceridade, estar entendendo o motivo disso,
porque muitas vezes, ah eu sou negra, alguém é mais do que eu.... não, não tem
nada a ver, ser negra é ser a gente mesma, ser você mesma.”
131
4.5 Os problemas enfrentados pelos afro-descendentes na visão dos estudantes
Como foi dito antes, foram entrevistados sete estudantes que passaram pelo
curso pré-vestibular da instituição. Quatro deles se auto-identificavam como negros,
um como pardo e dois como brancos. A escolha desses estudantes foi feita através
das fichas de inscrição, bem como da indicação da própria instituição, pois eram
estudantes que haviam passado pelo curso e atualmente estavam cursando o
ensino superior, atingindo assim o objetivo do Centro Nacional de Cidadania Negra.
Para evitar a identificação desses estudantes e garantir o sigilo das entrevistas,
serão atribuídos nomes fictícios aos mesmos.
Todos os jovens entrevistados, independente de sua identidade étnico-racial,
acreditam que os jovens negros enfrentam mais problemas no mercado de trabalho
e educação do que o jovem branco.
Patrícia, jovem negra, assim se coloca:
“Porque as portas pro branco pobre, porque a gente vê muito, pelo menos aonde, eu
trabalho, eles exigem independentemente da condição social, brancas loiras e
bonitas, e pobres e negras, eles quase não gostam de trabalhar com negras, porque
atrapalha no desenvolvimento do trabalho deles, atrapalha na imagem do escritório,
uma negra pobre, agora um branco independente da condição social dele, ele
sempre tem as portas abertas.”
Observa-se claramente a percepção de que o padrão estético afeta
profundamente a colocação no mercado de trabalho, tal fato não parece ser muito
importante na colocação dos jovens brancos, independente de sua condição social.
Na percepção de Andréa, jovem que se auto-identifica como parda, o
problema está no próprio negro que se acredita inferior, observe que esse é um
padrão muito comum presente nas respostas das pessoas que não acreditam no
racismo. Apesar disso, no final ela admite a existência de brancos preconceituosos.
Porque a discriminação negra começa a partir dele próprio. O negro, ele próprio se
discrimina, ele mesmo fala assim: “ ah! Eu não posso fazer isso porque eu sou
negro”, então a discriminação começa por ele mesmo, as dificuldades são de todos,
tanto do branco como do negro, mas as vezes a discriminação do negro começa a
partir dele mesmo. A partir do momento, que ele falar assim: ”eu sou igual aos
outros” não vai existir discriminação.”
132
Mas, quando perguntada se tal problema era um problema só do negro ou do
branco, também assim ela se posiciona:
“Não, o branco também. Porque existem muitos brancos que discriminam os negros,
mas começa de dentro do interior dele, ele já se olha diferente, o próprio negro já se
olha diferente, aonde na verdade somos todos iguais. Para mim não tem diferença,
não tem distinção, quando morrer vai para um lugar só.”
Já para Ariadne, jovem negra, a questão é vista de forma diferente:
Não , porque eu luto de igual para igual. Eu sou negra e vou em busca, da mesma
maneira que uma pessoa branca está do meu lado, eu posso lutar e conseguir da
mesma forma que ele. Desde que a capacidade de um seja melhor do que a do
outro, aí, sim; as vezes a gente acha assim que a gente foi discriminada, porque ele
foi escolhido, não talvez, porque a capacidade dele é melhor que a minha. Eu vejo
por esse lado.
Bruno, jovem negro, coloca que a questão do preconceito e discriminação
afeta muito mais o jovem negro que o jovem branco:
“...acho que o negro, pobre, pobre mesmo, junto com o branco pobre, vai sofrer mais
dificuldade ainda, porque ele sofre os preconceitos porque é camuflado pela
sociedade, que muitas vezes não é visto pelo sistema, mas eu acho que sofre
também, não vou falar que não sofre, mas o jovem negro sofre mais.”
Helena observa a diferença de problema enfrentado pelo jovem branco e
negro e ressalta que além da questão econômica o jovem negro enfrenta a questão
racial: “Ele enfrenta a dificuldade econômica, e o negro tem a econômica e a racial.”
Ana, jovem branca, acredita que de fato os jovens negros enfrentam
preconceito e discriminação e isso se manifesta, por exemplo, nas piadas. Apesar
disso, ela disse nunca ter presenciado essas situações:
“Olha eu acho que a sociedade brasileira ela ainda é um pouco racista, eu acredito
que o negro pobre ainda enfrente mais problema que o branco pobre, eu acho que
deve afetar sim. .....Existe porque parece que está na base da sociedade, mesmo
que a gente procure não ter preconceito, está sendo mudado, mudou bastante, mas
sempre tem uma piadinha, alguma coisinha, sempre está na base, mas já mudou
bastante, e tem muito menos que antigamente mas mas ainda tem um pouco de
preconceito e racismo sim....
Assim no meu meio, eu nunca tive, caso eu nunca percebi nada disso não. Como
que se manifesta ? deve se manifesta assim, as vezes, na escolha é mais difícil, o
133
acesso até eles, eu nunca percebi nada, eu nunca vi nada com relação ao
preconceito racial, mas existe.”
Na visão de Lucas, o jovem branco enfrenta menos dificuldades que os
negros:
“....mas eu acho que o jovem branco não enfrenta as mesmas não, eu acho que o
jovem negro enfrenta mais dificuldade. Está mudando, está melhorando, mas ao
meu ver, ainda tem. “
Quando perguntado sobre o tipo de dificuldade:
“Sei lá, de discriminação.”
Para tentar observar melhor sua percepção, foi indagado sobre a existência
do preconceito e discriminação racial no Brasil e como esses fenômenos se
manifestam :
Ainda existe, porém, está caminhando para cada vez a pessoa se conscientizar
mais, mas eu acho que ainda existe. .....Primeiro a pessoa é deixada um pouco
mais de lado, se for um atendimento, uma prioridade, entre um branco e um negro,
eles atendem primeiro o branco, depois aí vê as qualidades do negro, mas nem todo
lugar assim, mais ainda tem.
4.6 Participação no Ceneg e mudanças na visão sobre o preconceito e
discriminação.
Uma das questões interessantes a observar é se a participação no Centro
Nacional de Cidadania Negra levou a uma mudança na percepção desses ex-alunos
sobre a problemática da discriminação e do racismo.
Para Patrícia, apesar de sua visão sobre preconceito e discriminação não ter
se modificado, ela teve ganhos com relação a sua auto-estima:
“Eu acho que manteve o mesmo, só que aumentou a minha auto-estima, para poder
procurar recursos melhores....... Nossa, eu tinha medo de enfrentar e ser
discriminada, e com a ajuda do CENEG, você sabe que tem portas na maioria das
vezes estão fechadas , mas você vai com mais determinação, você tem certeza que
se você encontrar ela fechada, você volta de novo, até você conseguir achar uma
porta aberta. Para poder estar estudando, estar desenvolvendo.”
Para a jovem parda Andréia, não houve nenhuma mudança:
“É a mesma coisa. Porque eu nunca tive esse tipo de preconceito. Nunca tive esse
tipo de diferença, para mim nunca teve. Então, quando eu fui para o CENEG, eu já
134
procurei o CENEG sabendo, o nome já fala Centro de Valorização da Raça Negra,
então para mim, sinceramente não mudou nada. AH! Se falassem assim: “Você
melhorou sua Cabeça!”, não porque toda vida foi uma coisa, que eu aceitei muito
bem, inclusive o meu próprio padrasto e os filhos deles são negros, então eu convivo
com pessoas dessa raça, dentro de casa, para mim fala assim que mudou, não, se
eu falar que a minha vida mudou... Porque eu cresci dentro da raça negra. Mesmo
por causa da minha religião, uma religião do negro, eu sou do Candomblé e quem
trouxe essa religião para o Brasil foram os negros. Então 90% é uma religião de
negros, então nunca tive assim, esse tipo de preconceito, de discriminação, para
mim, tudo foi muito normal, nunca...se falasse assim, “você mudou !”, não nunca
mudei porque eu cresci ali, então eu sei.”
Para Ariadne, jovem negra, a participação no CENEG fez com que ela
percebesse que o preconceito é geral, que sua situação não se devia à condição de
negra, mas à falta de qualificação:
O CENEG o tempo que eu estudei, eles pregavam de certa forma sim, que o
preconceito é em geral com negros, homosexuais, mulheres, em geral. Então que
acredito que ali, eu passei enxergar, que o preconceito não vinha de eu ser negra
mas de eu não ter conhecimento das coisas que poderiam fazer eu crescer....Não,
..., etnia, nada disso não, mais por falta de conhecimento e capacidade.”
Para Helena, sua participação no Ceneg lhe deu acesso a informações que
lhe possibilitaram entender melhor a discriminação e o racismo e melhorar sua da
auto-estima.
Com relação a primeira indagação:” Ah sim.”
Quando perguntada da participação no Ceneg e sua auto-estima:
“Com certeza. Nós tivemos bastante pessoas que tinham algumas informações que
nós ainda não tínhamos compreendidos, então com certeza.”
Para Ana, jovem branca, a participação nos cursos do Ceneg não possibilitou
uma visão melhor do racismo e da discriminação:
Olha a gente percebeu, eu não percebi isso lá, eu acho que eu não passei a
perceber melhor, eu continue percebendo da mesma forma. Ainda mais que no
CENEG que teve a inclusão de todo mundo, então não deu para eu perceber uma
coisa muito diferente de quando eu entrei lá.”
Já para, Lucas, jovem branco, a participação e principalmente o convívio com
pessoas de cores e posições sociais diferentes, demonstrou que a instituição apesar
135
de se intitular negra, não privilegia só os negros e, portanto, não discrimina e com
isso leva as pessoas a “enxergar” melhor o problema:
“Ajudou, porque, o CENEG dá um apoio a raça negra, então o cursinho lá não foi
voltado só para os negros, então abriu a porta para a gente que é branco, apoio,
independente de cor e classe, então abriu as portas para todos. Eu achei importante,
porque se fosse só para os negros, o negro estaria se auto-discriminando, sendo os
próprios preconceituosos. Então não foi só para eles.” Então eles fazem com que as
pessoas que estão em volta enxergar melhor.”
4.7- A questão das políticas universais e específicas na visão dos estudantes
A maioria dos estudantes entrevistados acredita que a melhor maneira de
combater a discriminação e o racismo ainda são as políticas universais, mas não
descartam as políticas específicas, principalmente as cotas.
Na visão de Patrícia, as políticas específicas aumentariam a discriminação,
portanto ela acredita em políticas que contemplem as duas populações:
Quando perguntada se o Governo deveria criar políticas específicas para para
a população negra, assim ela se coloca:
“Eu acho que não, porque aumentaria a discriminação. .....Para os dois, tanto pro
branco pobre, eu sei que existe dentro do mercado de trabalho, eles escolhem o
branco, mas assim tendo só aquela participação só de negros, eu acho que ia ter
mais discriminação. Eu acho que a discriminação aumentaria.”
Andréia, jovem parda, acredita que a cota não deveria existir, mas como
existem pessoas preconceituosas o governo deve implementar:
Eu concordo sim. É uma coisa que não deveria existir ? não deveria. Mas, eu, você,
o João e a Maria, não tem preconceito, e os outros ? Existe demais, o preconceito é
grande, as pessoas falam o preconceito está acabando, não. O preconceito cada dia
que passa aumenta, então infelizmente, como existe preconceito, tem que existir
política. Não é que nós somos melhores, não, jamais, só que o ser humano, não
evolui a ponto de ver, que é tudo igual, o que muda é a cor da pele.”
Ariadne acredita que não deveriam ser criadas políticas específicas para os
negros, mas para a comunidade carente em geral:
“Seria não só a população negra, mas um projeto para a comunidade carente em
geral, porque tem negros, eu acho que o projeto deveria ser voltado inteiramente
136
para a comunidade carente, porque na comunidade carente tem negro sim, a
maioria, mas também tem branco que necessita também dos mesmos recursos que
o negro também estava em busca. Eu acho que deveria ser voltado para um todo. “
Bruno é favorável às ações afirmativas, pois acredita que elas seriam um
mecanismo para compensar as vítimas da escravidão:
Sou a favor. Porque acho que quando houve a ditadura militar que morreu muita
gente depois que acabou a ditadura, eles indenizaram muitas famílias, e no caso do
negro não, o negro vem de uma opressão atrás da outra, se a gente for analisar a
escravidão está há pouco tempo, então é uma coisa enraizada, que a gente vê ainda
até hoje na sociedade, então eu acho que essas ações afirmativas são uma forma
de priorizar o negro, estar indenizando ele de forma para promover ele, eu não
estou dando nada de graça para ele, estou incentivando ele, por esse caminho ele
terá uma condição de vida melhor. Por isso eu sou a favor das ações afirmativas.
Mas eu sou a favor também não só de ações afirmativas, porque muda educação,
porque daqui uns anos, não tem mais ações afirmativas, porque a educação daqui a
20, 30 anos, ela dê condições tanto para o negro quanto para o branco. Isso é a
minha concepção.”
Quando perguntado sobre quais políticas seriam mais eficazes, ações
afirmativas ou de combate à pobreza, Bruno deixa claro a necessidade de ambas
estarem conectadas:
As duas coisas têm que estar atuando juntas, porque tipo assim, as ações
afirmativas é um conjunto de medidas, pelo que eu entendi é um conjunto de
medidas, que têm que estar agindo juntos, então é educação e cultura, saúde,
senão melhorar pelo menos educação e saúde, para essa população pobre, eu acho
que não vai ter como atingir o ideal que é a integração dessas pessoas, a integração
social, eu poder sair e falar assim: Oh! O meu filho vai crescer, ele não precisa, não
é por causa da cor dele que ele não vai alcançar o seu objetivo, entendeu eu acho
que deve ir mais para esse lado.
Helena acredita que as políticas públicas deveriam ser para toda a população
pobre, mas não descarta o uso das cotas para negros, na sua visão é uma chance
que não pode ser desperdiçada:
“Tendo uma política voltada para a população pobre nós, negros, estamos dentro
desse quadro. Sabe, eu acho que tem que ter uma política voltada para a população
pobre mesmo, porque é onde está a minha classe,...Eu acho necessário, eu gostaria
137
que não houvesse, essa coisa de negro, mas já que está sendo colocado, eu não
vou desperdiçar essa chance. ....Cotas para uma classe menos privilegiada, mas já
que eles estão colocando como negros eu aceito também. Porque se não começar
de um lado, nunca vai haver uma melhoria da educação, porque para mim a
tendência da cota é levar uma
melhoria do ensino fundamental, e onde está a maior
parte da população pobre, essa população pobre abrange muitos negros.”
Ana, dos alunos entrevistados, é a única que diz não ter uma opinião formada
sobre o assunto que, segundo ela, é muito “complicado”. Apesar disso, subentende-
se pelo seu depoimento que ela é contra:
“Isso é uma questão muito complicada, eu tenho visto essa questão de cotas para o
vestibular, é uma questão bem complicada de se falar nisso, e que, sei lá, às vezes
se você levar uma parte, para a pessoa negra, já pode estar, prejudicando o outro
também, sendo uma forma de racismo também, é uma questão que tem que pensar
muito, que vai dar bastante trabalho para pensar sobre isso. ... porque as vezes o
governo oferece suporte, e a pessoa que tem esse suporte, não dá valor, não
mereça esse suporte. Por isso que eu acho, que é uma questão bastante
complicada, do suporte que é dado, da consciência da pessoa que está recebendo o
suporte.”
Quando perguntada sobre sua opinião sobre as cotas:
“Não tenho. Eu já pensei sobre isso, e eu tive bastante dificuldade de chegar a uma
conclusão sobre isso. Porque tem vários lados, é bem complicado essa questão.”
Lucas acredita que o melhor seria uma política geral, mas não descarta as
cotas, que na sua visão podem ser uma forma de “forçar” a sociedade a aceitar o
negro:
“Bom até então eu acharia melhor, política geral, porque aí abrangeria toda a classe,
eu vejo que na sociedade, está caminhando para acabar com isso daí, então já tem
muitos incentivos eu vejo. Para conseguir emprego, pessoas negras, pelo menos
que vejo falar, não tem tanto discriminação mais. Também na universidade, mas se
ainda existe muito esse forte preconceito ainda, se você criar uma política só voltada
para eles, pode ser que resolva...Eu sou favorável, se bem que isso aí, eles estão
criando isso aí, é um jeito de forçar, de fazer a sociedade aceitar, não é ?...Então, é
meio estranho, estaria aceitando, porque existe a cota, não por livre e espontânea
vontade. Quer dizer que ainda existe preconceito. Se não, não precisaria ter cota.”
138
4.8 A questão da identidade
Para os alunos negros entrevistados, a questão da identidade negra aparece
associada à “luta” e à “resistência”.
Observemos os depoimentos:
Patrícia:
Ser assim lutadora, batalhadora, apesar da discriminação e da vida difícil, é me
manter sempre em pé, procurando recursos melhores, ...”
Ariadne assim se define:
“Barreiras ? não. Eu não encontro barreiras, por isso, porque eu vou em busca. Eu
acho que o negro, aquele que se acha, discriminado, ou seja desamparado, é pelo
fato, de que ele não, senta ali e acha que porque ele é negro tem que ter tudo na
mão. Ele não tem vontade de buscar, e para mim eu acho que não tem esse
problema, então eu vou em busca, luto, então para mim ser negra, é uma honra,
vontade de lutar, acima daqueles que não são.”
Bruno deixa claro a associação entre ser negro e lutar:
“O negro para mim, é símbolo de luta, luta porque no meu ver tudo para o negro é
mais difícil, tudo que é mais difícil é saboroso você alcançar, porque depois que você
alcança você tem aquele prestígio, o fato de eu ser negro e as coisas serem difíceis,
eu conseguir superar esse obstáculo, então negro para mim é amor, luta, conquista,
estar sempre batalhando para os meus objetivos.”
Helena, além de fazer a mesma associação, acrescenta que ser negro é fazer
parte da história desse país:
Eu faço parte da história desse país, uma batalhadora, lutadora, ser mulher, ser
discriminada pelo sexo, mais ser negra. Uma batalhadora.”
Inicialmente, quando comecei a entrevista com Andréa, acreditava que ela se
identificava como branca e perguntei o que significava ser branca para ela e assim
ela respondeu:
“Para mim, é como eu te falei, eu não tenho preconceito, então, para mim é normal ,
se eu fosse uma branca, se eu fosse uma negra. Porque eu convivo no meio de
negros, acho que dentro do meu círculo de amigo poucos são brancos, como eu.
Então, eu vejo eles, como eu. Igual para mim não tem diferença a questão de ser
branca. Muito pelo contrário, até brinco muito, meus amigos falam assim para mim:
“Você é branca!”, mas eu estou com o “pézinho” na África, o cabelo é ruim. O cabelo
139
é enrolado, então eu tenho um pézinho na África, para mim, não tem vantagem
nenhuma ser branca.”
Novamente refiz a pergunta e ela acrescentou:
Parda. Eu sou classificada como parda, por causa do cabelo.”
Observe como existem vários critérios para definir a identidade da pessoa,
fato já ressaltado por Nogueira (1998) na sua clássica distinção entre preconceito de
cor e de marca, questão já discutida nesse trabalho.
Com relação aos alunos brancos, quando indagados sobre o signficado de
ser branco, os dois destacaram nunca terem pensado no assunto:
Ana:
Nem passou pela minha cabeça, é uma coisa que você nunca pensa, é uma coisa
que eu nunca pensei.”
Lucas:
“Ser branco ? Bom eu não sei se está correto, eu sei que eu não sofro as mesmas
discriminações, que um negro sofre, até mesmo no ambiente que você chega, o
jeito, você é tratado diferente. Mas não é assim também, mas eu não tenho notado
isso. Mas que ainda tem. No meu meio de convivência não tem, de trabalho, escola
não tem. Discriminação mais. Eu não sei se eu respondi. Não me sinto diferente,
principalmente dos negros. Porque até então, todo mundo é ser humano. Todo
mundo é igual na Terra. Todo mundo é capaz, todo mundo é inteligente, cada um
buscando seu espaço, então não tem porque eu pensar que eu sou diferente, ser
diferente assim, que uma pessoa igual, não me sinto diferente.”
4.9 Os aspectos positivos e negativos da instituição
Uma das perguntas do roteiro tinha como objetivo observar quais os aspectos
positivos e negativos que os alunos encontraram no Centro Nacional de Cidadania
Negra.
Para Patrícia, a participação na instituição tinha sido muito positiva ao ponto
dela não identificar nada a ser aprimorado:
“Foi positivo para mim. Para mim foi muito bom. Não tenho o que questionar, Do
meu ponto de vista, o que me ajudou o que me manteve, para mim está ótimo.”
Para Andreia, estar juntos, independente da cor ou posição social, foi
extremamente positivo, pois serviu para demonstrar que todos seriam iguais:
140
Questão negativa não teve. Eu acho assim, nós estávamos ali todos miscigenados
(como você falou), cada um de uma cor, cada um de uma determinada área, então
assim mostrou, serviu para mostrar, a gente foi a primeira turma de cursinho, serviu
para mostrar, que num todo, todos somos iguais, independente, de cor, raça e
condições financeiras. É uma coisa importante, não na idade que a gente já está, eu
acho que isso deve ser trabalhado com a criança desde pequena, ela já crescer
aprendendo que é, que o negro também é como ele, que o negro é um ser humano,
normal, que pode crescer, viver e ser rico. Porque hoje em dia, a gente fala assim,
às vezes o preconceito é tão grande, que às vezes passa um negro num carrão,
todo mundo fala, ah! Ele é motorista. Nunca qualifica ele como o dono. Então o
trabalho do CENEG é um trabalho interessante, importante, eu acho assim, deveria
ter mais palestra para estar falando, divulgando, a raça negra, mostrando o que o
negro pode fazer, como o negro pode entrar no mercado de trabalho. Porque igual
eles fizeram, não sei se porque a gente era a primeira turma, que ainda estava meio
bagunçado, não bagunçado, ainda não tinha aquela organização, falava-se pouco
sobre o negro na sociedade, o negro entre a gente, é uma coisa que eles deviam
procurar mais mostrar, mas num todo foi bom. Foi ótimo.”
Com relação à expressão “como você falou”, Andreia se referia a questão
levantada sobre a miscigenação no Brasil, se de alguma forma a miscigenação havia
diminuído o preconceito e o racismo no Brasil :
“Não, eu acho que não. Não, não mudou em nada. Muito pelo contrário, eu acho que
cada vez mais o preconceito vem aumentando. Não sei se isso passa de pai para
filho, ou se isso é a educação, mas hoje você vê muito mais criança, eu não falo a
gente que já é, adolescente, adulto; com preconceito do que antigamente.”
Ariadne, ressalta que o aspecto positivo da instituição foi ter mostrado as
“barreiras” e a forma de enfrentá-las, mas não concorda com a posição da instituição
sobre as cotas para negros, apesar dela se auto-identificar como negra:
“Positivo acho foi o fato de mostrar as pessoas que existem barreiras, mas existe
maneiras de quebra-las. Eu só não concordo com a maneira de falar assim, que tem
ter vamos supor 20% de bolsas para negros, isso eu não concordo. Eu acho que
20% é para a comunidade carente, esse lado do CENEG eu não concordo.”
Quando perguntada se a ênfase na questão do negro é importante, ela
responde negativamente, vejamos as perguntas e respostas:
141
“- Apesar de você ter participado, você acha que essa ênfase nessa questão negra é
importante ?
Não.
- Por que você foi fazer o curso ?
Pela forma de ser carente e não ter condições de pagar um curso.
- Não foi especificamente por ser um Centro Nacional de Cidadania Negra ?
Não, não, que poderia ser qualquer outro local, que me oferecesse esse curso, se
ele fosse gratuito eu estaria lá também. “
Observe que para Ariadne a motivação principal de procura ao Centro
Nacional de Cidadania Negra foi a possibilidade de fazer um curso gratuito sem
quaisquer motivações de ordem étnico-racial.
Para Bruno, a questão negativa é a falta de ampliação do curso e uma maior
divulgação; além disso, ele ressalta a necessidade de um maior número de parcerias
para que a instituição se desenvolva; para Bruno, devido à instituição ser ligada aos
negros, ela não pode ter falhas:
Negativo, eu acho, o curso foi uma ou duas vezes que teve, foram poucas pessoas,
mas no geral, o CENEG pelos cursos que eles estão oferecendo, eles afetam muita
gente, mas eu acho que poderia afetar mais, eu acho que poderia estar ampliando
mais, fazendo parcerias, se os diretores se dedicassem mais poderia estar formando
mais parceria, ampliando essa integração da sociedade com essas aulas de pré-
vestibular, esporte solidário, os outros curso computação e informática, eu acho que
através disso, a gente tem que formar é parceria. Não é só depender de verba de
Governo Federal, Estadual e Municipal, eu acho que é através de parceria que a
gente vai conseguir, estar buscando o objetivo, acho que é a única forma, o único
ponto negativo que eu acho é isso. Eles teriam que dedicar mais para ampliar mais.
Porque é uma organização de nome, que muitas vezes, se for negro, você tem que
fazer e fazer bem feito se ficar uma falhinha, eles vão naquela falha, e por ser negro,
acaba desestruturando, atrapalhando, um projeto que por sinal é muito bom.”
Helena destaca a questão da informação como positiva e as influências
políticas como prejudiciais a instituição:
“Positivo é a informação. Lógico que a gente percebeu, porque veio de colégio
público, deu para perceber bastante o quanto nós estamos atrasados, esse eu acho
que é o lado mais positivo da questão. Negativo, o que eu posso te dizer, a política,
ela influenciou muito, eu acho que acabou misturando as coisas, devido o CENEG
142
ter saído da política, as pessoas que participaram não valorizaram porque acharam
que era só político, mascarado, por causa da política.”
Para Ana, o aspecto mais positivo da instituição foi justamente a possibilidade
do curso ser voltado para brancos e negros, ou seja, uma instituição que não exclui
nenhuma “raça, “etnia” ou “idade”:
“...as propostas do CENEG, eu achei que foi muito positivo, o fato deles não abrirem
só para negros, de abrirem para todas as raças, todas as etnias, o fato deles não
excluírem ninguém, idade, nada, eu acho que é um ponto positivo, porque eles não
centralizam só na raça negra, eles abriram para tudo. Agora ponto negativo eu não
lembro de nada não.”
Lucas destaca que a questão mais importante foi a “integração” das “raças”,
pois se fosse só voltado para a “classe negra”, o CENEG estaria discriminando, para
ele essa integração possibilitaria uma melhor visão sobre o preconceito :
Foi bom essa integração, esse curso voltado para todos, ficar todos num meio,
então, é que eu já falei, se fosse só voltado para classe negra, se auto, se estaria
discriminando. Não, foi voltado para todos, então é até bom que aí os outros na
convivência ali começasse, os que tem a cabeça fechada, abri mais a mente a esse
respeito de preconceito que não existe mais, agora poderia ser melhorado, o que
tenho a dizer é continuar com esse projeto, continuar com ele e não deixar a peteca
cair e nos pontos que forem positivos ir buscando aperfeiçoar cada vez mais, para
atingir a todos.”
143
Conclusão: as especificidades brasileiras nas políticas de combate à discriminação e ao
racismo
Nos últimos anos, a temática das desigualdades raciais e das chamadas Ações
Afirmativas ganharam grande expressão, principalmente depois do lançamento do
Programa Nacional dos Direito Humanos em 1998.
Uma das questões que sempre me levantou dúvida era se as chamadas ações
afirmativas seriam adequadas a nossa realidade. Para tentar elucidar essa questão
acompanhei a criação de uma entidade que se inicia localmente e que se transforma
numa entidade de caráter nacional.
O Centro Nacional de Cidadania Negra, em seu desenvolvimento e atuação,
possibilitou-me a percepção de algumas questões importantes para o entendimento das
políticas de combate à discriminação e ao racismo no Brasil.
Antes de mais nada, é preciso observar que essa instituição, oriunda do
Movimento Negro de Uberaba, em suas propostas tem um forte paralelo com as
reivindicações do Movimento Negro do início do século. A questão da integração ainda
aparece como uma questão fundamental, fato esse que reforça necessidade de que as
instituições estatais façam um grande esforço no sentido de diminuir a grande distância
social entre a população branca e a população afro-descendente. A ênfase na
educação e no trabalho demonstra a necessidade da integração social. Ao mesmo
tempo na medida que a instituição se desenvolve, suas reivindicações passam a se
aproximar cada vez mais das reivindicações mais atuais do Movimento Negro.
O governo brasileiro começa a se preocupar mais com essa problemática a
partir da sua participação em tratados
1
e eventos
2
que objetivavam diminuir as
desigualdades que tinham por base a “raça”, o gênero e etc. A necessidade de se ter
uma imagem que fosse favorável para o obtenção de recursos externos, bem como a
existência de um Movimento Negro de caráter transnacional e nacional, pressionaram o
1
O Brasil é signatário de três tratados internacionais antidiscriminatórios: A Convenção 111 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) desde 1968, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do
Ensino (1968), a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1969). JACCOUDE;
BEGHIN, 2002.
144
governo brasileiro que acabou criando, dentro das metas do Programa Nacional dos
Direitos Humanos, em 1998, um item no tocante à valorização da população negra. A
partir desse contexto de mudanças é que nasce o Centro Nacional de Cidadania Negra,
que cria suas políticas de combate à discriminação e ao racismo a partir dos recursos
do Programa Nacional dos Direitos Humanos. Essa relação entre o surgimento do
Centro Nacional de Cidadania e o Programa Nacional dos Direitos Humanos parece
apontar para um novo tipo de relação entre as instituições da sociedade civil organizada
e as instituições estatais. Afinal, a obtenção de recursos foi possível graças à
apresentação de projetos e metas que estavam de acordo com os objetivos do
Programa Nacional de Direitos Humanos, obedecendo padrões de obtenção de
recursos que se afastam da tradição clientelista e assistencialista, características da
relação entre Estado e a sociedade civil no Brasil.
Apesar de nosso universo de pesquisa ser limitado, talvez a reflexão sobre
alguns aspectos dos pressupostos e das políticas de combate à discriminação e ao
Racismo do Centro Nacional de Cidadania Negra possibilite-nos uma compreensão
das chamadas ações afirmativas no Brasil.
Fica claro, a partir da análise de suas propostas e atuação, que o chamado ideal
da democracia racial está incorporado na lógica de atuação do Centro Nacional de
Cidadania Negra. É obvio que o chamado mito
3
da democracia racial ofuscou por um
longo período o problema das desigualdades raciais no Brasil, fato esse mais que
demonstrado pela literatura das chamadas relações raciais no Brasil. Mas, não se pode
deixar de levar em consideração que esse mito enquanto ideal, enseja um certo valor,
ou seja, a crença na possibilidade da criação de uma sociedade em que a identidade
étnico-racial tenha pouca relevância na vida social. Principalmente entre as classes
mais populares esse mito acaba possibilitando uma integração de pessoas de cores e
origens sociais distintas.
2
O Brasil participou nas três conferências mundiais contra o racismo, respectivamente em 1978 e 1983, e
recentemente, em 2001, na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata em Durban África do Sul. Para maiores detalhes ver In: JACCOUDE; BEGHIN, 2002.
3
Será utilizado a palavra mito quando estivermos nos referindo a uma ideologia que encobriu o racismo e
discriminação no Brasil, e a expressão ideal para designarmos um valor presente nas camadas sociais da população
brasileira que acreditam na possibilidade da criação de uma sociedade onde as diferenças étnico-raciais das pessoas
não sejam relevantes.
145
Observa-se a partir da atuação bem como dos discursos das lideranças, a
possibilidade de um certo hibridismo entre o critério de exclusão que tenha por base a
cor e o critério socio-econômico, ou seja, as políticas do Centro Nacional de Cidadania
Negra estão voltadas para negros e carentes. De alguma forma, o hibridismo da
percepção de nossas desigualdades acaba sendo incorporado na atuação da
instituição. Isso poderia ser interpretado como uma certa especificidade das chamadas
ações afirmativas. Observe que os depoimentos das principais lideranças da instituição
ressaltam a necessidade de trabalhar urgentemente com a população negra, mas não
descartam a possibilidade de se trabalhar com a parcela de brancos pobres. Há uma
preocupação em que os cursos promovam uma certa integração entre pessoas de
várias cores e origens socioeconômicas.
A possibilidade de uma melhor percepção sobre os problemas das
desigualdades raciais e criação de novos aliados é fato ressaltado tanto no depoimento
das lideranças como dos estudantes. Os estudantes, independentemente de sua
identidade étnico-racial, possuem clareza sobre as dificuldades que os jovens negros
enfrentam no mercado de trabalho bem como da existência do preconceito e da
discriminação no Brasil e, em sua maioria, são favoráveis às políticas específicas
destinadas aos afro-descendentes. Apesar disso, e isso transparece no depoimento dos
jovens negros, não descartam a necessidade de políticas que atendam negros e
carentes, ou seja, a instituição trabalha a partir de um certo universalismo. Um certo
universalismo pragmático, pois de alguma forma a incorporação dos chamados
carentes possibilita a criação de aliados importantes que possivelmente terão grande
papel na busca de uma sociedade menos desigual e discriminatória.
Interessante observar no depoimento dos jovens negros que a exclusão que eles
sofrem não é fonte de um padrão rígido de identidade, ou seja, a questão da
necessidade de uma consciência “racializada” para resolução da discriminação e do
racismo não parece ser algo motivador de suas condutas. Há uma identidade marcada
pela idéia de luta e resistência, mas nem por isso eles descartam a necessidade de
políticas que atendam negros e carentes. Com relação aos estudantes brancos,
observam estes nos seus depoimentos que a participação nos cursos entre jovens de
146
posições e cores diferentes é ressaltado como algo positivo, que possibilita inclusive
uma melhor percepção de nossas desigualdades raciais.
Essa especificidade brasileira de percepção de nossas desigualdades raciais
está presente tanto nos depoimentos das lideranças, dos estudantes como também na
atuação da instituição. Não sabemos se esse tipo de política a longo prazo surtirá
efeito, mas o que se observa é que a potencialidade de criação de novos aliados que
lutem pela supressão do racismo e da discriminação racial no Brasil é um fato que não
pode ser descartado. O problema do racismo e da discriminação não é um problema
somente dos afro-descendente, mas um problema da sociedade brasileira que só será
efetivamente resolvido com a incorporação e conscientização da população como um
todo.
Essa especificidade das chamadas ações afirmativas no Brasil, esse hibridismo
que incorpora negros e carentes, que aliás já estava presente em instituições oriundas
do próprio movimento negro, quando criou os cursos pré-vestibulares para negros e
carentes, pode ser interpretado como algo inovador, uma certa forma de os brasileiros
lidar com sua questão étnico-racial que não pode ser interpretado como algo “falso ou
“atrasado” em relação, por exemplo, ao padrão identitário norte-americano.
Portanto, a análise da instituição nos possibilitou o entendimento de que as
chamadas ações afirmativas no Brasil têm uma especificidade própria, que está muito
relacionada à incorporação dos valores do chamado ideal de democracia racial. Apesar
do universo limitado do nosso estudo, acreditamos que as questões levantadas sejam
importantes para o entendimento e estabelecimento de políticas públicas que diminuam
as desigualdades raciais no Brasil e que de fato caminhem para a construção de uma
efetiva democracia racial no Brasil.
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